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http://dx.doi.org/10.

1590/1805-9584-2016v24n2p677

Transversalidades: gênero e feminismos


em diversidade e movimento
Entrelugares e Mobilidades. feministas que problematizam desigualdades nas
relações de gênero em distintos contextos.
ASSIS, Gláucia de Oliveira; MINELLA, Na primeira parte, intitulada “Feminismos:
Luzinete Simões; FUNCK, Susana Bornéo trânsitos e movimentos”, há um conjunto de seis
artigos, cuja ênfase recai sobre questões relativas
(Orgs.) 1.ed.
à mobilidade, ao deslocamento, à imigração, à
Tubarão, SC: Editora Copiart, 2014, 592p. organização política e aos feminismos transnacionais.
São autoras desses textos: Adriana Piscitelli;
(Desafios Feministas, Volume 3) Assumpta Sabuco Cantó; Beatriz Padilla; Ana
Alcázar Campos; Ana Inés Mallimaci Barral; Bela
Feldman-Bianco. Os desafios dos ativismos trans-
A transversalidade da categoria gênero e nacionais se devem à necessidade de conciliar
as diversas expressões de desigualdades demandas locais (mas não necessariamente
combatidas pela pluralidade de agendas homogêneas), a expectativas e a problemáticas
feministas são assertivas centrais possíveis de relativas aos fluxos e mobilidades globais.
serem extraídas da leitura de Entrelugares e Além de questões referentes à globalização
Mobilidades (2014). Este terceiro volume integra e à etnicidade; à raça e à classe também são
a Coleção Desafios Feministas e é organizado esmiuçadas na sua articulação com relações
por Gláucia de Oliveira Assis, Luzinete Simões de gênero. A percepção generificada sobre a
Minella e Suzana Bornéo Funck. A partir dessa migração permite perceber as diferentes
assertiva, a questão que a coletânea se propõe problemáticas vivenciadas por mulheres e
destrinchar é: quais são os desafios para os homens em situação de deslocamento; sobre
feminismos contemporâneos? mulheres em situações diversas de classe e etnia/
Essa é a problemática que nutre os outros raça. Também permite refletir sobre sua
dois volumes da Coleção. Assim como Entrelugares agência, seja na busca pela migração como
e Mobilidades (Volume 3), Linguagens e Narrativas fator para mudança social, seja na resistência
(Volume 1) e Políticas e Fronteiras (Volume 2) perante situações de violência em locais de
reúnem trabalhos apresentados nas mesas- acolhida e nos desafios para formação de redes
redondas do X Seminário Internacional Fazendo e associações feministas transnacionais.
Gênero: Desafios Atuais dos Feminismos, que Outros dois artigos, um escrito por Rekha
ocorreu em setembro de 2013, na Universidade Pande e outro por Mariza Ruiz, enfatizam questões
Federal de Santa Catarina. A coletânea que sobre feminismos em planos mais localizados.
apresentamos aqui é composta por 26 artigos, Ambos inter-relacionam os movimentos políticos
os quais abordam temas variados, mas que feministas com o contexto político local. Pande
compõem uma coerência ao se analisar seu realiza uma análise histórica da descolonização
conjunto, visto estarem entrelaçados por algumas e os efeitos atuais da globalização sobre meninas
preocupações em comum. A partir de distintos e mulheres na Índia. Ruiz permite que vislumbremos
campos das ciências humanas e de olhares a importante participação das mulheres nos
interdisciplinares, os estudos de gênero que movimentos políticos de resistência à ditadura e
embasam esta coletânea trazem abordagens pela democratização no Uruguai.

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Por fim, um conjunto de mais três artigos é Acrescenta-se o papel de instituições com o
voltado para o campo rural, sobre mulheres em cuidado das crianças, no escopo de uma
assentamentos do MST, camponesas e da demanda histórica dos movimentos feministas,
agricultora familiar, expondo os desafios da em especial aqueles motivados por mulheres
organização e o ativismo político em contexto trabalhadoras. Nessa proposta, a educação
de globalização, responsável tanto pelas ameaças escolar, nos espaços da creche, da pré-escola
perpetradas pela economia capitalista, quanto e da educação infantil são analisados por: Maria
pela abertura à possibilidade de transnacionali- Eulina Pessoa de Carvalho; Juliana Di Paula Queiroz
zação de mulheres militantes. As autoras desses Odinino; Verena Wiggers e Regina Ingrid
três artigos são Elisete Schwade, Gema Galgani Braganolo.
Silveira Leite Esmeraldo e Hélène Guetat-Bernard. Um olhar sobre a sociologia da infância e a
A segunda parte da coletânea aborda as (in)visibilidade das diferenças de gênero é
intersecções entre geração, classe, raça/etnia desenvolvido por Ana Cláudia Delfini Capistrano
e gênero de modo mais enfático. Os artigos de Oliveira. Outros temas abordados são:
têm abordagem mais local, em sua maioria educação sexual para infância, por Cecilia
sobre o Brasil, com exceção do texto de Cecilia Rustoyburu; militância feminista e juventude, por
Rustoyburu, que trata sobre educação sexual e Nilda Stecanela; e adoção internacional, por Silvia
política de direitos para infância a partir da Maria Favero Arend. A preocupação que o Estado
situação argentina, e o artigo de Silvia Maria adote políticas mais eficazes em relação às
Fávero Arend, que debate a entrada do Brasil questões de gênero nas instituições públicas
no circuito internacional de adoção de crianças. concernentes às crianças e jovens é uma
O entrecruzamento entre raça/etnia, gênero constante conclusão nesses textos. Arend aborda
e classe é central no artigo de Ângela Figueiredo, ainda demandas jurídicas envolvendo infância,
a respeito das trabalhadoras domésticas, legislação família e adoção no contexto brasileiro e no
trabalhista e a luta destas mulheres por maior plano internacional, expondo a questão da
acesso a direitos e cidadania. A autora enfatiza migração das crianças devido a situações de
como a situação de negação histórica de direitos, adoção.
a violência e o assédio sexual vivenciados por A pluralidade de temas e situações sociais
essas trabalhadoras estão totalmente vinculados abordados nesses artigos, ao se interseccionar
ao fato de que são mulheres negras que atendem gênero e geração, tem sua importância traçada
a essa ocupação em maior número no Brasil e por garantir maior visibilidade a questões ainda
ao significado dessa profissão construído em pouco exploradas na literatura especializada,
bases escravocratas pela sociedade brasileira. bem como trazer uma possibilidade analítica
A articulação entre esses marcadores para esta inter-relação. O denso artigo de Oliveira
sociais mencionados acima é a tônica da análise propõe que se conduza à categoria geração o
desenvolvida por Jurema Werneck, em um mesmo sabor desconstrucionista que já tem sido
levantamento teórico que expõe os problemas realizado em relação a gênero. A proposta é o
do racismo patriarcal. Em uma inter-relação uso de um enfoque relacional, posicionando
também com a religiosidade, Sônia Maria adultos e crianças: afinal, como as crianças
Giacomini reflete sobre mães-de-santo na pensam a respeito de gênero? As crianças não
umbanda e no candomblé e suas trajetórias poderiam ser vistas de maneira naturalizada,
como lideranças religiosas e políticas – universos assexuada, homogênea, “assim, o mesmo
que para essas mulheres e suas comunidades processo de desconstrução do feminino pela
religiosas não são, tampouco precisam ser, categoria gênero está para ser feito na infância”
irredutivelmente separados. (Ana Cláudia de OLIVEIRA, 2014, p. 526).
A relação entre gênero e geração Outros três artigos abordam questões rurais.
centraliza a atenção de dez autoras, em nove Temis Gomes Parente analisa o reassentamento
artigos. Alda Britto da Motta enfatiza a invisibilidade de famílias a partir da implantação da Usina
de mulheres velhas nas produções acadêmicas Hidrelétrica Estreito, entre os estados de Tocantins
e nas políticas públicas. As relações entre e Maranhão. O olhar voltado às questões
diferentes gerações de homens homossexuais é específicas vividas pelas mulheres nessa situação
o tema abordado por Júlio Assis Simões. permite à autora concluir que elas sofrem uma
Os outros artigos que trazem à tona a situação pior de desempoderamento, visto
questão das gerações enfatizam a infância e a como, entre outros fatores, perda de autonomia,
construção social das identidades de gênero, e, apropriando-se do dizer destas mulheres, de
das hierarquias e do sexismo nessa etapa da vida. “serviço para agir”.

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Por fim, tem-se o universo da pesca, baseada no sexo biológico. Nos estudos sobre os
abordado em dois textos a partir de enfoques homens também sobressaem o trânsito entre essas
diferentes. Maria do Rosário de Fátima Andrade diferenças, bem como as várias masculinidades.
Leitão analisa o papel crescente das lideranças O volume compreende, portanto, uma
femininas em movimentos sociais de pescadores estratégia bem fundamentada em expor a
artesanais, em Pernambuco em especial; ao transversalidade social do gênero e sua
passo em que o objeto abordado por Carlos intersecção com outros marcadores sociais,
Emanuel Sautchuk constitui a construção das expondo inclusive invisibilidades em alguns
masculinidades, a partir da corporalidade, das campos temáticos. Os artigos da coletânea
relações de alteridade e da socialização envoltas apontam, de modo muito claro, que essas
nos atos técnicos de pesca artesanal e profissional problemáticas são necessárias para repensar
em uma localidade no estuário do Rio Amazonas. também políticas públicas – e que não podem
Ao longo das últimas décadas, desde a ser implementadas ao largo de uma reflexão
emergência do feminismo, as remodelagens e de como podem ser úteis para alterar ou
desdobramentos têm sido tais que já não é reafirmar a desigualdade de gênero.
possível pensar nesse termo no singular. Questões Trata-se de uma coletânea densa cuja
relativas à diferença foram sendo postas cada abordagem plural baseia-se em pesquisas bem
vez mais à tona em um contexto global em que fundamentadas em contextos empíricos e levan-
não apenas a desigualdade de classe representa tamentos teóricos específicos, acrescentada da
a tônica de nossos olhares, análises, críticas e agilidade e a atualidade que se vivencia em
propostas de transformação. eventos acadêmicos. A “mulher” (bem como o
Pós-colonial, teoria do ponto de vista, “homem”) enquanto figura atemporal, a-histórica,
construcionista social, multiétnica e multirracial universal e entidade discreta e unívoca é posi-
ou pós-moderna são algumas das vertentes cionada em questão. Entrelugares e Mobilidades
feministas que explicitam a variedade de sujeitos demonstra o interesse em aprofundar e em
que se autoidentificam e/ou são identificados alargar o escopo das pesquisas sobre feminismos
como mulheres, às quais uma total unidade não e relações de gênero e, dessa forma, permite
pode ser considerada. Nossas possibilidades de um sopro de estímulo frente a outras possibilidades
viver no mundo são entrecortadas por diferenças que podem emergir a partir do trabalho de
e por desigualdades de classe, de etnia, de raça, pesquisadoras e militantes feministas.
de geração, de religião, de orientação sexual,
de trajetória de vida (em especial nos casos de Rosana Carvalho Paiva
migração e de ativismo político), de ocupação Universidade Federal do Amazonas, Manaus,
profissional, de escolaridade e de identificação Amazonas, Brasil
de gênero em oposição à definição social

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