Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
1
Doutoranda em Antropologia pela UFAM e mestre em Antropologia pela UFBA. Contato:
carvalhorosana8@gmail.com
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
1. Introdução2
Este texto de Zaluar é tomado aqui como inspiração para uma reflexão semelhante a
respeito da violência no campo. Teria o período de redemocratização também aumentado a
violência no contexto rural? Para tanto, as publicações “Conflitos no Campo – Brasil” são
tomadas como fonte de dados quantitativos e análises conjecturais. Estas compreendem
publicações lançadas anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) desde 1985. Estes
cadernos apresentam indicadores quantitativos referentes a situações de violência e conflito no
mundo rural brasileiro, juntamente com análises que contextualizam estes números no cenário
político e econômico de cada período. Os cadernos são considerados uma fonte fidedigna, pois
os dados são levantados principalmente a partir da atuação direta dos agentes da CPT em campo.
Por este motivo, e por sua periodicidade anual, não interrompida nestes quase 30 anosc
2
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no II Seminário Estadual de Educação do Campo (II SIEC), 2015,
realizado pela UFRB e UEFS, bem e também publicada no e-Book do II SIEC. Agradeço aos comentários e
contribuições dos colegas e da coordenadora do GT, prof. Dra. Guiomar Germani.
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
As situações de violência no campo são compreendidas no âmbito deste trabalho, com base
nas referidas publicações, como as situações conflitivas que envolvem o antagonismo perpetrado
por fazendeiros, empresas de agronegócio e mineração, além de empreendimentos estatais como
usinas hidroelétricas e implantação de unidades de conservação de proteção integral. Entre estes,
salienta-se a ação de milícias ou grupos de pistoleiros, muitos também formados por policiais
militares, além da repressão da própria polícia em ações de despejo, repressões a manifestações e
prisões ilegais.
Por outro lado, tem-se o campesinato e trabalhadores rurais em diversas situações quanto à
posse ou propriedade da terra e condições de trabalho, indígenas e moradores de comunidades
tradicionais; agentes ligados a assessorias e entidades confessionais, como a própria CPT. A
violência envolve tanto situações críticas como assassinatos e tentativas de homicídio, quanto
situações de amedrontamento e terror, além de aspectos relacionados à segurança pública como
atuação das polícias militar e federal e do poder judiciário. As lutas encontram-se centralizadas
na resolução dos conflitos por terra, por água, pela preservação ambiental e por direitos
trabalhistas.
A respeito da relação entre poder, história e violência, Michel Foucault (1999) analisa a
diferença entre o sistema penal e uma suposta passagem entre um modelo que punia os
criminosos através de violência bruta sobre seus corpos e outro modelo em que há uma
disciplinarização dos corpos com fins a alcançar a mente ou alma dos criminosos, sem o flagelo
da exposição pública dos suplícios. Alfredo Wagner de Almeida (2001) expõe que pensar em
uma passagem imediata e histórica entre estes dois modos de punição conduziria a uma visão
evolucionista. Por esta visão, supostamente haveria uma clivagem entre uma “justiça pré-
O problema desta simplificação evolucionista, ainda segundo Almeida, é que ela tende a
obscurecer diferentes vias do desenvolvimento capitalista. Por um lado, em países como os
EUA, Inglaterra e a França de Foucault, houve a combinação entre grandes revoluções, guerras
civis e uma formação democrática. Em outros casos, como na Alemanha e Japão, houve a
configuração de “capitalismo autoritário”, com imposições vindas de cima pra baixo. Este
também seria o caso do Brasil desde sua formação colonizada.
Almeida (2001) salienta que esta forma autoritária e violenta da constituição do Brasil esteve
presente no trabalho escravo em oposição ao trabalho “livre” e nos mecanismos de coerção. Este
autor e também Zaluar (2007) apresentam uma análise sobre a presença da violência nas
estruturas de poder da formação colonial brasileira, salientando como esta ocorreu através da
ação de indivíduos e grupos privados e seu controle de poder sobre terras, mão de obra e
processos políticos. A punição associada à vingança privada constituiu a forma de manutenção
desta estrutura e se valeu do emprego de grupos armados, como milícias, jagunços e pistoleiros –
inclusive na Guarda Nacional, uma predecessora das forças militares. O problema é considerar
que estas práticas tenham sucumbido com a consolidação do Estado e do regime republicano.
Apesar dos códigos jurídicos brasileiros terem acompanhado o processo ocidental de penas
não incididas sobre o suplício dos corpos, mas sim pelo controle através do aprisionamento nas
instituições totais, não é possível afirmar que estas outras formas punitivas tenham desaparecido
do modus operandi brasileiro. Foucault (1999) argumenta que a já mencionada passagem entre
os dois modelos de punição ocorreu em torno do século XVIII. O caso brasileiro é diferente.
Além das questões intrínsecas à colonização, com a ação de poderes privados como
3
Termos utilizados por Foucault no livro A Regra do Jogo, de 1974 (apud Almeida, 2001).
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
intermediários em relação à Coroa, a escravidão compreendeu uma instituição em que o total
controle sobre o corpo, o tempo, o trabalho e a terra esteve ancorada em atos de força bruta, de
castigos e suplícios públicos como modo exemplar de realizar punições. Considerando-se que o
poder não representa um atributo pertencente a um indivíduo ou grupo, mas um domínio que é
exercido em um campo de relações (Foucault, 2005), podemos refletir que este universo de
práticas e violências teve continuidade com a reprodução da situação de desigualdade social e de
poder até a contemporaneidade. Assim, como defende Almeida (2001), a “humanização das
penalidades” seria um mito, restrito aos códigos jurídicos e não às práticas.
A questão pontuada por Zaluar (2007), referente a violência urbana, é relevante para ser
estendida à problemática vivida no campo. Impor invisibilidade para as situações de violência e
violação de direitos humanos foi uma estratégia bem empregada durante a ditadura militar, que
ainda está sendo rompida pela Comissão Nacional da Verdade. As possibilidades de denúncia e
registro por organizações, movimentos sociais e mídia eram bastante restritas. O relatório da
Comissão Camponesa da Verdade, publicado em 2014 atesta a presença expressiva do Estado
como agente da violência através de assassinatos, torturas, desaparecimentos, prisões ilegais,
destruições patrimoniais, agressões físicas, ameaças e o conluio e omissão perante atos ilegais
realizados por agentes privados. O relatório não conseguiu expor todos os casos ocorridos no
Brasil e este trabalho não tem como objetivo realizar uma comparação em sentido estrito, por se
ater a análise do período pós-golpe.
A respeito dos estudos realizados sobre o campo jurídico, Roberto Kant de Lima e
Bárbara Babtista (2014) defendem que sejam realizados de modo a enfatizar as práticas
desenvolvidas pelos operadores no campo do direito e não apenas com base nas abstrações
normativas, que constituem objeto nas metodologias de pesquisa positivistas e mais ortodoxas.
Deste modo, torna-se possível observar como os dispositivos normativos são apropriados,
interpretados e postos em prática por juízes, promotores e advogados. O estudo de processos
penais e rituais próprios deste universo pode incidir para a construção de novos conhecimentos e
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
não reafirmação de dogmas consagrados e, portanto, promover uma melhora neste campo. Esta
questão pode ser considerada no contexto da violência do campo, pois a impunidade
(assassinatos e outras situações de uso de força bruta que não alcançam julgamento ou resultam
na absolvição dos suspeitos) consiste em uma das problemáticas apontadas pelos movimentos
sociais durante todo o período histórico considerado e que incide diretamente sobre a
manutenção desta situação de violência.
João José Reis e Eduardo Silva (1989) também apontam que o Brasil, desde seu período de
formação colonial, foi tecido por uma dualidade envolvendo a negociação e conflito. Se por um
lado, a estrutura de poder mencionada acima é marcada por atos de violência, por outro, ao
estudar as relações escravocratas, os autores observam que houve também ações de resistência
ao sistema escravista, que poderiam ou não ser violentas e se encontram expressas em inúmeras
situações envoltas na micro-política destas relações: em referência a “formas explícitas de
resistência física (como as fugas, quilombos e revoltas), passando pela chamada resistência do
dia-a-dia – roubos, sarcasmos, sabotagens, assassinatos, suicídios, abortos -, até aspectos menos
visíveis, porém profundos, de uma ampla resistência sociocultural” (Reis & Silva, 1989, p. 62).
Estas ações são relativas a um campo de negociação que pontua o limite das forças de
dominação e opressão, na busca do alcance de reivindicações, individuais e coletivas.
Esta visão sobre o espaço da negociação e resistência pode nos conduzir a observar dois
aspectos importantes: a presença inescapável do conflito nos grupos sociais. Georg Simmel
(1983) defende que o conflito cumpre um papel de sociação que não pode ser renegado, ainda
que para isso, seja necessário considerar seus aspectos positivos e também negativos e que estão
presentes em todas unidades sociais. Desta forma, estas não podem ser consideradas como
espaços de consenso e totalidade completa, nas quais apenas operariam as forças de atração e não
repulsão. Seguindo esta linha teórica, Max Gluckman (2010) salienta o papel do conflito para a
mudança social. Contudo, no caso do objeto aqui em análise, o que chama a atenção é que as
Com este aporte, é possível compreender a nação que então se formava a partir do período
colonial como palco de divergência de interesses. A assimetria econômica e de
representatividade política entre os grupos em dissenso era e é extrema; a constituição de um
Estado não representou um veículo de harmonização dos conflitos e a violência esteve também
sempre presente, através das práticas de poder privado historicamente constituídas e pelo
monopólio da violência considerada legítima pelo Estado.
A respeito das fontes dos dados quantitativos, como já mencionado, elas proveem
predominantemente de agentes da CPT, atuantes nos locais aos acontecimentos, ou próximos a
eles. A cada publicação, há um informe a este respeito, indicando que os dados também são
provenientes de jornais locais ou de circulação nacional. Entretanto, quando há disparidade de
informações destas duas fontes, são privilegiadas aquelas provenientes dos agentes da CPT, por
4
Além destes cadernos, a CPT realiza outras publicações, também disponíveis em seu site
(www.cptnacional.org.br): Jornal Pastoral da Terra, diversas cartilhas, documentos diversos (abaixo-assinados,
notas de denúncias, notas sobre congressos e outras atividades) e o Boletin Tierra, publicação referente a toda a
América Latina realizada pela Via Campesina.
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
serem mais confiáveis, isentas de interesses políticos que podem ser contrários aos dos
camponeses e por serem dados produzidos em contexto mais próximo e direto dos
acontecimentos. No caso de conflitos que se arrastam por anos, estes só entram nos quadros
quando há algum acontecimento novo, específico do ano em questão. Nestes informes é
salientado que há possibilidade de casos que podem não ser ter sido registrados, por não ter sido
denunciados aos agentes da CPT, polícia ou jornais. Logo, é sempre possível que os casos de
conflito sejam em maior quantidade do que o conhecido. Ainda assim, estes registros são
considerados os mais fidedignos e servem de base para análises realizadas por pesquisadores,
órgãos públicos e organizações não governamentais.
A primeira tarefa para uma análise dos dados é refletir que os números não são o real, apesar
de seu realismo aparente. Nem todos os casos chegam a se tornar conhecidos, a serem
registrados e catalogados. Além disso, a realidade, a experiência vivida, vai muito além da
estatística. Os dados quantitativos não tem como apresentar a amplitude da experiência concreta
e de todos os fatos e acontecimentos envoltos em cada situação de violência, tampouco as
emoções e sofrimentos. As estatísticas são apenas um caminho para indicar a dimensão da
situação social, no caso, a violência no campo no Brasil.
Com esta observação em mente, procurei nos cadernos os números das situações de conflito e
violência. Algumas categorias básicas foram levantadas ano a ano: número de conflitos, número
de pessoas envolvidas, extensão das áreas em disputa (referente aos casos de conflitos por terra),
pessoas assassinadas, ameaçados de morte e tentativas de assassinato. Estas categorias foram
escolhidas por serem os indicadores mais básicos para uma análise quantitativa dos conflitos e
* Entre conflitos por terra, bóias-frias, sindical, seca, trabalhista, garimpo, agrotóxico e outros.
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
** Entre agentes de pastorais e sindicatos, trabalhadores e índios.
Uma leitura da tabela acima mostra um aumento do número de situações de conflito, o que a
princípio indica que a resposta à questão levantada é afirmativa, no sentido de que houve um
aumento destes no período que se segue à redemocratização. Porém, os outros indicadores não
acompanham esta ordem crescente, pois apresentam flutuações, o que mostra que as correlações
não são tão simples.
As publicações mencionam situações de: violência contra a pessoa (que não seja ameaça ou
tentativa de assassinato), despejos, expulsões, violência contra a posse e propriedade, torturas,
prisões ilegais, estupros e abortos motivados por “choque” (em consequência de experiências de
violência); além de enfatizar quando estas situações acontecem com mulheres, crianças e
adolescentes e questões derivadas, como mortes por desnutrição de crianças que estão vivendo
em situações de conflitos.
Além destes casos de violência, é preciso considerar a correlação entre poder e violência
simbólica, proposta por Bourdieu (2010), para quem o poder simbólico corresponde a uma série
de disposições e motivações inculcadas na formação dos indivíduos, nos espaços de socialização
como família e escola. Concepções, gostos, modos de ver o mundo são moldados de maneira
sutil e correspondentes à sua proveniência das posições mais elevadas do campo social. Essa
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
forma de dominação não é percebida como tal, posto ser naturalizada. Práticas de violência se
veem envoltas nesta dimensão como forma de tolher as possibilidades de transgressão e mudança
do comportamento pretendido pela norma. A tomada de consciência do dominado ocorre quando
a artificialidade do poder simbólico é tida como manifesta. Desnaturalizado, as expressões de
poder simbólico podem ser combatidas. Nos momentos desta ruptura, a violência simbólica se
torna também mais manifesta, como forma de manter a reprodução das estruturas de poder. Estes
conceitos ajudam a compreender o porquê da permanência da estrutura de dominação social e, de
modo geral, das poucas ações de resistência e oposição explícita. Alem disso, nos permite alargar
a reflexão para situações de violência simbólica vividas no cotidiano e que são atuantes no jogo
dos conflitos.
Várias formas de violência descritas são denominadas como “pedagogia do terror” (CPT,
1991), ou uma forma de terrorismo, referente a maneiras mais seletivas de prejudicar as
organizações, como assassinando os líderes, destruindo os meios de produção dos pobres e
reduzindo o acesso a direitos como aposentadoria, auxílio-natalidade e indenizações por
acidentes ou más condições de trabalho. As formas modernas de escravidão também entram
nesta lista.
O novo período democrático que se seguiu a ditadura foi considerado como um momento de
descentralização do poder político, mas acompanhado de um contrapeso: o fortalecimento dos
poderes regionais e, consequentemente, das oligarquias. Estas permaneceram organizando
milícias ou grupos paramilitares formadas por jagunços e pistoleiros (muitos deles também
policiais), que pelos 90, passam a se aproveitar de brechas legais para serem intituladas como
“empresas de segurança privada” e assim não serem devidamente enquadradas como formação
de quadrilha.
A não realização de uma reforma agrária eficaz com alcance das metas, tal como foi
prometido pelo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) e pelo Plano
Nacional de Reforma Agrária (PNRA) – tampouco pelos governos Sarney, Collor, FHC, Lula e
Dilma – nem a contemplação de todas as reivindicações durante as assembleias constituintes
também contribuíram para o agravamento das situações de conflito.
Em 1985, é fundado o Movimento dos Sem-Terra (MST) no Rio Grande do Sul e ao longo
dos anos seguintes, a categoria sem-terra, bem como ações de ocupação, acampamento e
manifestações ganham contornos amplos no cenário do campo e são acompanhadas pelos
“Devemos, porém, ser sinceros e dizer que tanto a CPT como o movimento
sindical e partidos, conhecem pouco essas categorias e pouco trabalhamos com
elas. Mas devemos reconhecer que esta classe é dinâmica e criativa: ela
começou a se organizar em cima das suas necessidades, sem esperar pelos
sindicalistas ou pelos agentes. Se queremos reforçar a organização dos
trabalhadores, devemos escutá-la e descobrir como ela está se organizando para
exigir seus direitos. Poderemos talvez descobrir formas originais e novas de luta
e organização” (CPT, 1989, p. 23).
Neste âmbito, outras categorias que passam a ser mencionadas são atingidos por
barragens e quebradeiras de coco babaçu; e em 1991 é mencionado a emergência de novos
movimentos sociais. Na primeira década dos anos 2000 passam a ser integradas outras categorias
como fundos e fechos de pasto, faxinais e castanheiros e todas estas situações envolvendo
territórios e identidades coletivas passam a ser integradas no quadro conceitual relativo aos
conflitos por terra.
Entretanto, seja pela abrangência da sua mobilização e alcance de efeitos práticos, seja
pela possibilidade de haver maior conformação teórica entre agentes da CPT e dirigentes do
MST em termos de uma proposta marxista, este movimento teve maior destaque ao longo de
todos os anos 1990 e 2000. Durante o governo FHC (1995 – 2002) há aumento do número de
ocupações de latifúndios, formação de acampamentos e manifestações, realizados principalmente
pelo MST.
As relações com o judiciário são enfatizadas como um dos entraves para a possibilidade
de redução da violência. A situação de aliança entre políticos e empresários da mineração,
usinas hidroelétricas entre outros grandes empreendimentos e agronegócio (quando não são estes
últimos eles mesmos políticos) garante a impunidade dos agentes envolvidos nas situações de
criminalidade, mediante dispositivos jurídicos favoráveis. Assim, é apontado que de um total de
1.630 mortes em luta pela terra, registradas de 1964 a 1990, apenas houve 24 processos; e,
destes, somente em três houve condenação dos mandantes (CPT, 1990, p. 25).
Apesar do governo Lula ter sido vislumbrado pelos movimentos sociais como uma
possiblidade de saída da opressão e da desigualdade, no caso do campo, houve pouca
regularização fundiária voltada a reforma agrária, mas um aumento dos índices de assassinatos,
tentativas e ameaças de homicídio, principalmente no primeiro quatriênio.
Até os anos 1990, as regiões Norte e Nordeste são descritas como as mais violentas, tanto em
termos dos indicadores quantitativos, quanto da análise qualitativa presente nos Cadernos. No
caso da região Norte, ou mais propriamente da Amazônia Legal, assim como a região abrangida
pelo cerrado, existe uma situação de fronteira que se relaciona a expansão da violência. Para
João Pacheco de Oliveira (1979), por fronteira compreende-se não uma região concreta
delimitada, mas uma forma de propor a investigação analítica que considere as relações entre
várias partes, agentes e escalas que atuam no recorte empírico de interesse. Estas relações são
tangidas por um modelo sistemático de expansão capitalista tendo por base empreendimentos
privados e com o suporte político necessário. No caso destes dois contextos empíricos -
Amazônia e Cerrado da região central e pequena parte do Nordeste do Brasil - esta ação de
expansão ocorre principalmente por via de madeireiras, empresas agropecuárias de produção de
soja e gado e mineradoras. Estas intervenções atingem localmente pequenos produtores,
subjugando-os e destruindo sua autonomia. Neste bojo, encontra-se também presente certa
“ideologia de fronteira” para motivar migrantes a ocupar terras supostamente livres, de acordo
também com as “frentes de expansão” que constituem uma expansão do sistema capitalista
(Velho, 2013).
Na última publicação realizada em 2014, com dados referentes ao ano de 2013 são
apresentados balanços também referentes a este período de 30 anos. De maneira resumida, os
pontos principais destacados por diversos autores que assinam os textos da publicação de 2014
são 1) a crescente judicializacão dos conflitos, 2) o reconhecimento do direito a terra, como no
caso dos territórios já homologados não implica em total segurança, pois os direitos de indígenas
e comunidades tradicionais permanecem sob ameaça, 3) incorporação de padrões de violência
por empresas privadas, 4) a estratégia dos acampamentos e ocupações perde a eficácia e se
buscam novas modalidades de luta, 5) aumenta a importância do marco relacionado aos povos e
comunidades tradicionais, 6) a desqualificação feita pela grande mídia dos movimentos sociais e
das entidades que lhes prestam assessoria,
6
Fonte: site de notícias da UOl (www.noticiasuol.com.br), 08/01/2015 – “Mortes no Campo aumentam 15% sob
Dilma, diz Pastoral; governo contesta”.
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
6. Considerações Finais
Assim como Zaluar (2007) tinha apontado a respeito do contexto urbano, também no campo
a militarização da polícia e a adoção das práticas violentas na ditadura como a tortura e o
assassinato incrementaram as situações de conflito, de modo complementar à herança da
formação colonial brasileira. Além disso, os nexos entre poder privado e público e interesses
econômicos (agravados com o neoliberalismo e pelo neodesenvolvimentismo) fomentaram um
agravamento da desigualdade.
Mesmo neste cenário, nota-se também que a violência representa apenas um lado da
expressão do conflito. O outro lado constituem as várias formas de luta e resistência presentes na
solidariedade entre pessoas e grupos, na formação de movimentos sociais e redes de
mobilização, na valorização de conhecimentos tradicionais, na elaboração e difusão de práticas
ambientalmente sustentáveis e agroecológicas.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Lichamentos: atos de “justiça camponesa” entre a
“humanização da penalidade” e a “desumanização do indígena”. In: GRUPIONI, Luís Doniste
Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Rossi. Povos Indígenas e Tolerância. Construindo Práticas
de Respeito e Solidariedade. São Paulo: EDUSP, 2001.
ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Narrativas Agrárias e a Morte do Campesinato. Ruris,
vol. 1, n. 2/ setembro de 2007.
REIS, João José, & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Entrelaçando Nº 10. Ano V (2016)- ISSN 2179.8443
SIMMEL, Georg. A Natureza Sociológica do Conflito. In: Moraes Filho, Evaristo (org). Simmel.
São Paulo: Ática, 1983.
ZALUAR, Alba. Democratização Inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados,
21 (61), 2007.
VELHO, Otávio. Frentes de Expansão e Estrutura Agrária. Estudo do Processo de Penetração
numa Área da Transamazônica. Manaus: UEA Edições, 2013.