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Não é fácil definir um movimento tão complexo, mas é preciso dizer de onde
partimos. Podemos dizer que o feminismo é um movimento contra a opressão do
patriarcado, protagonizado por mulheres. Cis ou trans. Entre as tantas correntes, muitas
até mesmo contraditórias, está o feminismo interseccional: as mulheres negras se
deram conta de que a partir do gênero, associado a outras opressões como raça, classe
1
SCHUMAHER, Schuma. Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua
institucionalização. In: MATOS, Marlise; ALVAREZ, Sonia. Expressões feministas nas Conferências
Nacionais de Políticas para Mulheres. Vol II: Quem são as mulheres das políticas para as mulheres no
Brasil? Porto Alegre: Zouk, 2018, p. 21-56.
2
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2013.
3
ROWLAND, Susan. Jung. A Feminist revision. Cambridge: Polity Press, 2002.
e estéticas, são produzidas situações de violência singulares. E se a palavra feminismo
vem sempre associada à igualdade, para que esta última deixe de ser uma utopia tão
distante, a luta precisa ser decolonial e anticapitalista.
4
Os gorros são chamados de pussy hats e fazem a referência ao episódio em que Donald Trump disse que
pegaria as mulheres pela pussy (vagina).
5
SCHUMAHER, Schuma. Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua
institucionalização. In: Matos, Marlise; Alvarez, Sonia. Expressões feministas nas Conferencias Nacionais
de Políticas para Mulheres. Vol II: Quem são as mulheres das políticas para as mulheres no Brasil? Porto
Alegre: Zouk, 2018, p. 21-56.
Nossos passos vêm de muito tempo e de longe, quando esse movimento sequer
tinha um nome. O papel das mulheres brasileiras na luta contra a escravidão, passando
pela garantia do voto e da educação para todas foi fundamental. Nesse sentido, honrar
todas as mulheres que nos trouxeram até aqui é urgente. Feminismo é gratidão.
Mulheres partidas
Se falamos do conjunto, também é preciso falar das partes, das sujeitas que
formam essa massa. E cada uma chega com uma história pessoal diferente, mas todas
do mesmo lugar: o sofrimento de estar presa a um corpo subjugado. Seja por ter sido
violentada, torturada ou mutilada (quase morta), ou por querer, simplesmente, ser
ouvida. Ser feminista é ter a consciência de que a única garantia da liberdade de cada
uma é a libertação de todas. E para tanto, esse corpo no coletivo se faz potência.
Num país com um dos maiores índices de violência contra a mulher do mundo,
o campo da Psicologia Analítica precisa se debruçar sobre o tema. Se não podemos
andar sozinhas nas ruas, ficar em casa pode ser ainda mais perigoso. A maioria dos
estupros no Brasil, especialmente de crianças, é protagonizado por pessoas próximas.
Segundo levantamento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), divulgado
pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em 2020, a violência
sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, e é
cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias. O suspeito é do sexo masculino
em 87% dos registros e, igualmente, de idade adulta, entre 25 e 40 anos, para 62% dos
casos6.
6
Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/dados-e-estudos/disque100/relatorios/relatorio-
2019_disque-100.pdf/view Acesso em 16/2/2022
7
7Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2021/05/17/dia-internacional-contra-a-lgbtfobia-
mortes-foram-subnotificadas-no-ultimo-ano Acesso em 21/ 7/ 2021
8
Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf Acesso
em 16/2/2022
pornografia trans no mundo desde 2016, segundo o RedTube, website de
compartilhamento de vídeos pornográficos9.
9
Disponível em https://revistahibrida.com.br/2020/05/11/o-paradoxo-do-brasil-no-consumo-de-
pornografia-e-assassinatos-trans/ Acesso em 21/ 7/ 2021
10
TANCETTI, Barbara; ESTEVES, Jéssica Harumi. O racismo como complexo cultural brasileiro: uma
revisão a partir do feminismo decolonial. Junguiana, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 59, 2020. Disponível em
Feminismo como uma defesa do processo de individuação
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
08252020000200004&lng=pt&nrm=iso Acesso em 18/2/2022.
11
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
12
“Proporcionalmente à soma total de mulheres europeias, só uma imperceptível minoria vive na Europa
de hoje; e trata-se de mulheres que vivem nas cidades e que pertencem – com as devidas precauções – às
pessoas mais complicadas. Isso é inevitável, pois sempre foi uma pequena minoria que conseguiu
expressar claramente o espírito de uma época [...] O processo cultural característico de uma época se
desdobra mais intensamente nas cidades, pois necessita do concurso de muitas pessoas para tornar
possível a cultura, e é desse agrupamento que as conquistas culturais se difundem gradativamente aos
grupos menores, historicamente mais atrasados.” JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição.
Petrópolis: Vozes, 2013, p. 125-126.
maternidade e o papel de esposa (para ser validada perante a sociedade), ser bela, uma
excelente profissional e ainda ser a cuidadora da família, sobra tempo de vida para a
introspecção necessária ao processo de individuação?
13
Considera-se que o termo mais adequado seja orientação sexual ao invés de opção sexual, já que não se
trata de uma escolha consciente.
reconhecimento, a precariedade do trabalho das mulheres ou
dos imperativos religiosos.14
Se a individuação é o caminho junguiano, por outro lado, o próprio autor diz que
a individualidade é determinada, por um lado, “pelo princípio da singularidade e da
diferenciação e por outro pela necessária pertinência à sociedade” (JUNG, 2015, p. 173).
14
Disponível em https://glosario.pikaramagazine.com/glosario.php?lg=es&let=c&ter=capitalismo-
heteropatriarcal Acesso em 18/2/2022. Tradução nossa.
15
O termo sindemia considera outros impactos de uma pandemia, como fatores econômicos, sociais e
psicológicos.
Em seu livro Feminismo em comum para todas, todes e todos, Márcia Tiburi
dedica um capítulo para a importância de as mulheres relatarem-se a si mesmas. Já no
início, ela faz um alerta importante, aliado ao fato de que demorou muito a se assumir
feminista. “Demorei a perceber que eu também, de algum modo, era mulher e que, de
modos diversos, sofria com discriminações de sexo e gênero. Não basta ser igual a um
homem para poder viver em sociedade sem ser muito perturbada e coagida.” (TIBURI,
2018, p. 100)16
A filósofa diz que é preciso combater o essencialismo, que diz como são as
mulheres e como são os homens. Como seria possível individuar se há uma ideia de que
existe uma verdade única, localizada na essência? Para Tiburi, o feminismo nos dá uma
biografia, uma narrativa de si, a autoavaliação crítica e autocrítica das mulheres. A
narrativa daquelas pessoas que não tiveram narrativa, que não tiveram direito a uma
história. O feminismo nos daria então a chance de nos desenvolver ao nosso tempo, aos
nossos pensamentos, ao nosso corpo.
16
TIBURI, Marcia. Feminismo em Comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
2018.
Por outro lado, muitas mulheres vêm insistindo em colocar seus pensamentos,
sentimentos, intuições e sensações no mundo: Virginia Woolf, Nise da Silveira, Silvia
Federici, Clarice Lispector e, mais recentemente, Natalia Timerman, só para
homenagear algumas.
Para dar conta das novas formas de ser mulher na sociedade, novos conteúdos
precisam ser partilhados, novas palavras precisam ser inventadas. Nos passos do
pretuguês de Lélia Gonzales, a carioca Vilma Piedade cunha o termo dororidade, num Comentado [2]: Itálico para destacar?
17
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017, p.17.
e branquitude hegemônicas constituíam a identidade, o poder e o orgulho manifestos
da nação e do Ocidente” (BROWN, 2019, p. 13)18.
18
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
19
Disponível em https://resist.org/latest/trump-administration-rolling-back-womens-rights-by-50-years-
by-changing-definitions-of-domestic-violence-and-sexual-assault/ Acesso em 18/2/2022
20
Disponível em https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2021/08/lei-maria-da-
penha-gestao-cor-de-rosa-de-damares-enxuga-orcamento-ano-ano.html Acesso em 06/8/ 2021.
encontro ao estado laico. E sua atuação aposta em políticas públicas como campanhas
pró-abstinência sexual para prevenir a gravidez na adolescência, na direção contrária às
orientações da Organização Mundial da Saúde e da Organização das Nações Unidas para
a Educação (Unesco) para tratar do tema21. Em votação do Conselho de Direitos
Humanos da ONU, em 2019, sobre direitos sexuais e das mulheres, o Brasil acompanhou
a posição de países de maioria islâmica, contribuindo para um cenário mundial contra
as lutas feministas. Ainda é difícil avaliar o impacto de tudo isso nas gerações futuras.
Se para James Hillman, em seu livro Cem anos de psicoterapia e o mundo está
cada vez pior22, a clínica pode ser vista como uma célula revolucionária; é preciso ir além.
Para formar um corpo, é preciso que essas células estejam organizadas. O feminismo, o
antirracismo e tantas outras lutas políticas e sociais podem amalgamar a ligação entre
essas células, forjando uma contribuição significativa do campo junguiano para um
outro mundo possível. É o que diz a sabedoria popular: uma andorinha só não faz verão.
E se isso não for bem compreendido pelos que levam o legado junguiano adiante, outra
centena de anos se passará e continuaremos tendo a impressão de que o mundo está
cada vez pior.
Não é por acaso, que nem a Psicanálise ou mesmo a Psicologia Analítica tenham
uma grande linha de pensamento fundada por uma mulher que diga o que é “normal”
ou “saudável”. É tarefa das feministas junguianas honrar e rasurar o legado de Sabina
Spielrein, Marie-Louise von Franz e Toni Wolff, de autoras mais contemporâneas como
Verena Kast, Patricia Berry e Fanny Brewster, entre tantas outras, inclusive as já citadas,
bem como encantar o mundo com o pensamento das brasileiras. Apesar das instituições
junguianas do país serem integradas por muitas mulheres, essas não têm o feminismo
como um valor fundamental, o que deveria ser uma realidade até que essa palavra
21
Disponível em
https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/34853/9789275319765_spa.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Acesso em 06/8/2021.
22
.HILLMAN, James e VENTURA, Michael. Cem anos de psicoterapia – e o mundo está cada vez pior
São Paulo, Summus, 1995.
virasse um anacronismo. A ordem ainda é hierárquica e pouco acessível e inclusiva,
ainda mais quando falamos de países periféricos. É preciso entendermos que somos
mortas histórica e simbolicamente quando não temos nossa própria voz, onde não
somos ouvidas. Ninguém nasce mulher, mas morre-se por ser mulher.