Você está na página 1de 16

Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

MULHERES DE EXTREMA-DIREITA:

DOSSIÊ 3
empoderamento feminino e valorização moral da mulher

Esther Solano*
Camila Rocha**
Lilian Sendretti***

O objetivo deste artigo é analisar a noção de empoderamento feminino à luz da literatura contemporânea para
compreender a atuação de mulheres de extrema-direita e sua interlocução com mulheres comuns. Com base em
pesquisas qualitativas conduzidas com mulheres brasileiras que votaram em Jair Bolsonaro, aventamos a hipótese
de que a massificação de uma cultura posfeminista ao longo das décadas de 1990 e 2000, bem como a emergência
de fenômenos como o feminismo neoliberal e o feminismo popular (Banet Weiser; Gill; Rottenberg, 2020), propi-
ciaram novas sensibilidades que tornaram possível um novo tipo de atuação feminina de extrema-direita baseada
na valorização de padrões morais tradicionais.
Palavras-chave: Empoderamento feminino. Extrema-direita. Feminismo neoliberal. Pós-feminismo.

INTRODUÇÃO cados, sobretudo, pela centralidade de temas


relacionados ao gênero (Correa, 2018; Mude,
O campo feminista vem acumulando 2018). No entanto, em paralelo à valorização
uma série de conquistas nos últimos anos em de estruturas ligadas à dominação masculi-
diversos países. Maior visibilidade e combate na, determinadas ativistas, influenciadoras e
de violências sexuais, maior centralidade da mulheres comuns passaram a se compreen-
ideia de cuidado na academia e em políticas der como feministas conservadoras, ou ainda
públicas, avanços relacionados à dignidade femonacionalistas, se apropriando de agendas
menstrual, à paridade de gênero em instituições em defesa das mulheres para se tornarem mais
políticas e à legalização do aborto, sobretudo na atraentes e palatáveis ao eleitorado feminino.
América Latina, são indicativos nesse sentido. Com o intuito de compreender em maior
Ao mesmo tempo, países democráticos profundidade a emergência de tais fenômenos,

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023


em todo o mundo testemunharam a eleição argumentamos neste artigo que a noção de em-
de lideranças de extrema-direita, bem como a poderamento feminino, associada à valoriza-
difusão de movimentos com agendas conser- ção moral das mulheres a partir de uma estru-
vadoras e reacionárias no debate público mar- tura binária de gênero, é crucial para compre-
ender a atuação de mulheres de extrema-direi-
* Universidade Federal de São Paulo.
ta e sua interlocução com mulheres comuns.
Rua Angélica, Jardim das Flores. Cep: 06110-295. Osasco – Com base em pesquisas qualitativas conduzi-
São Paulo – Brasil. prof.esther.solano@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0738-0117 das com mulheres brasileiras que votaram em
** Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP. Jair Bolsonaro, aventamos a hipótese de que a
Rua Morgado de Mateus, 615, Vila Mariana. Cep: 04015-051.
São Paulo – São Paulo – Brasil. massificação de uma cultura posfeminista ao
camilarocha44@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8291-9149 longo das décadas de 1990 e 2000, bem como
*** Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP. a emergência de fenômenos como o feminismo
Rua Morgado de Mateus, 615, Vila Mariana. Cep: 04015-
051. São Paulo – São Paulo – Brasil. neoliberal e o feminismo popular (Banet Wei-
liliansendretti@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9926-4468 ser; Gill; Rottenberg, 2020), propiciaram novas

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.55443 1
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

sensibilidades que permitiram que um novo sobretudo da direita radical e ultrarradical, ao


tipo de atuação feminina de extrema-direita se postular a defesa da família tradicional como
tornasse possível. fundamento de uma pátria próspera. Ao inves-
Para tanto, dividimos este artigo em qua- tigar a atuação de movimentos de extrema-di-
tro seções. Na primeira seção apresentamos reita na Europa a partir da análise de publica-
como a extrema-direita transnacional tem en- ção de suas cartilhas, panfletos e da mobiliza-
quadrado a defesa de direitos das mulheres a ção em protestos, o sociólogo alemão Andreas
partir de uma perspectiva familista e anti gêne- Kemper (2016, p. 60) chamou essa perspectiva
ro. Na segunda seção, a partir da literatura es- de “familismo”,1 isto é, uma posição biopolí-
pecializada, apontamos como a emergência de tica de entender a família tradicional como o
uma cultura posfeminista fomentou novas sen- princípio fundamental de criação e reprodu-
sibilidades relacionadas ao empoderamento fe- ção da nação – bem como da reprodutibilidade
minino e à celebração da positividade, as quais de identidades e valores nacionais. Para além
fundamentaram a emergência de dois fenôme- de subjugar identidades individuais, sobretu-
nos correlatos, o feminismo neoliberal e o femi- do em relação aos direitos reprodutivos das
nismo popular. Na terceira seção, com base em mulheres e ao reconhecimento de direitos de
entrevistas realizadas com mulheres brasilei- grupos LGBTQIAP+, no caso europeu, o fami-
ras que votaram em Jair Bolsonaro, analisamos lismo é particularmente importante devido ao
como o empoderamento feminino, sobretudo contexto anti-imigração.
aquele divulgado por influenciadoras digitais, Atualmente, as direitas radicais são ma-
é apropriado em um contexto de desigualdades joritariamente masculinas quando conside-
sociais acentuadas. Na quarta e última seção, ramos suas principais lideranças, o perfil de
argumentamos que a rejeição do ativismo femi- seu eleitorado e de seus militantes, sobretudo
nista contemporâneo, lido como imoral e auto- os grupos ativistas que empregam ações dire-
ritário, favorece a interlocução com discursos tas violentas (Coffé, 2018, p. 7; Mudde, 2018,
de extrema-direita sobre a valorização moral p. 188). Nas eleições de 2022 no Brasil, por
das mulheres, a partir de uma estrutura binária exemplo, as mulheres, especialmente as mu-
de gênero, por meio da celebração do empode- lheres negras, corresponderam ao grupo social
ramento feminino e da positividade. que mais rejeitou a candidatura de Jair Bolso-
naro. Também vale lembrar que nas eleições
presidenciais de 2020 nos Estados Unidos, as
MULHERES E EXTREMA-DIREITA mulheres corresponderam à porção do eleito-
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

rado que mais rejeitou a candidatura de Do-


O gênero é um componente transversal nald Trump. Logo, partidos e lideranças de
aos diversos segmentos das direitas contem- extrema-direita perceberam que não podem
porâneas (Mude, 2018). Seja no âmbito local dispensar o eleitorado feminino se quiserem
ou global, seja em sua dimensão política mais continuar a ganhar eleições.
moderada, radical ou ultrarradical, há um en- De acordo com os dados da IDEA – In-
tendimento compartilhado de que diferenças ternational Institute for Democracy and Electo-
físico-biológicas entre homens e mulheres ser- ral Assistance –, que monitora as eleições ao
vem como fundamento para naturalização de redor do mundo, a participação eleitoral das
papéis sociais relacionados ao gênero, como mulheres aumentou na maioria das democra-
os papéis de cuidado que são atribuídos, nesse
perspectiva, essencialmente às mulheres. 1
[…] This form of familialism opposes individual lifestyles
A naturalização de diferenças de gênero that do not envisage a parental role. This familialism is also
nationalistic, bound to a national population policy” (Kem-
é fundamental para a cosmovisão de direita, per, 2016, p. 60)

2
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

cias nas últimas décadas (IDEA, 2016, p. 31).2 Tais perspectivas se interconectam nas
No Brasil, atualmente, as mulheres são mais narrativas da extrema direita e moldam um
de 50% do eleitorado. Cada vez mais, parti- enquadramento no qual “as mulheres são
dos e grupos políticos de direita radical têm bem-vindas, mas o gênero não” (Ylä-Anttila e
interesse em capitalizar o eleitorado feminino Luhtakallio, 2020, p. 41). Isto é, a participação
para se tornarem mais enraizados socialmente política de mulheres é importante para que
e mais competitivos eleitoralmente. Mas quais partidos e movimentos de direita ganhem ca-
são suas estratégias para atrair o eleitorado fe- pilaridade social a partir do questionamento
minino? Como as mulheres são atraídas para de pautas ligadas aos avanços de direitos que
pautas conservadoras e reacionárias? Como ameaçam a família tradicional. Neste sentido,
movimentos e grupos de direita, inclusive de “as mulheres são bem-vindas, mas o gêne-
mulheres pertencentes a esses movimentos, ro não” é um enquadramento que sintetiza a
conjugam os avanços feministas em relação fundamentação biológica binária na cosmo-
aos direitos políticos e econômicos das mulhe- visão das direitas radicais e, ao mesmo tem-
res – tais como o direito ao voto, a disputa de po, sinaliza para a identificação de ameaças
cargos eletivos e a maior presença das mulhe- às “mulheres de verdade”. E, nesse sentido, é
res em postos de trabalho de alta renda – com importante destacar que, como aponta a pes-
uma cosmovisão familista? quisadora Sonia Corrêa (2018, p. 445), a cru-
Atualmente, lideranças e grupos de ex- zada anti gênero é um fenômeno transnacional
trema-direita femininos são capazes de articu- que possui continuidades desde os anos 1970,
lar ideias-forças como o nacionalismo, tradição quando teve início em reação aos avanços de
e religião para engajar mais mulheres que com- pautas relativas à sexualidade e ao feminismo.
partilham ou valorizam uma posição ética con- Contudo, Corrêa afirma que tal cruzada adqui-
servadora. Sua intenção é que tais mulheres riu novos repertórios e uma nova semântica a
passem a participarem de tais movimentos ou, partir do século XXI.
ao menos, se tornem mais receptivas às plata- Considerando tais novidades, o cientis-
formas de extrema-direita. Exemplos de ativis- ta político Cas Mudde (2018) indica que par-
mo nesse sentido são o feminacionalismo, que tidos e grupos de extrema-direita se valeriam,
postula a ideia de mulheres atuando como van- atualmente, de duas abordagens principais:
guarda de um ideário nacionalista, o movimen- o “sexismo hostil” (direito das mulheres são
to tradwives (mulheres tradicionais), que enfo- uma ameaça à família) e o “sexismo benevo-
ca a opção de mulheres por papéis domésticos lente” (mulheres precisam de mais direitos

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023


e um estilo de vida tradicional, considerado, para serem protegidas, pois são mais frágeis),
pelas ativistas como contracultural e represen- possibilitando a criação de canais de interlo-
tativo de uma “submissão subversiva” em meio cução com mulheres comuns que são, ao mes-
à sociedade contemporânea (Tebaldi, 2023, p. mo tempo, conservadoras e favoráveis aos di-
8-9), e, finalmente, a atuação de mulheres que, reitos das mulheres.
a partir da ideia de autonomia feminina, defen- Miller-Idris e Hilary Pilkington (2019),
dem identidades religiosas tradicionais. ao analisarem os casos da França, Alemanha e
2
Contudo, ao mesmo tempo em que as mulheres são a
Estados Unidos, apontam como grupos de ex-
maioria do eleitorado em diversos países, a proporção de trema-direita têm mobilizado eleitoras a partir
mulheres candidatas e, sobretudo, de mulheres eleitas ain-
da é inferior aos dos homens – principalmente no Brasil, de uma retórica anti-imigração e anti-muçul-
que ocupa atualmente um dos piores lugares no índice de
representação de mulheres na política, segundo os dados mana especificamente ligada aos direitos das
do Global Gender Gap Index e do Global Data on National mulheres “ocidentais”. Segundo as autoras,
Parliaments. Esse fenômeno é chamado de “gender gap”
na política, isto é, a discrepância entre o número de mu- estes grupos argumentam que o aumento da
lheres na população e no eleitorado quando comparado ao
número de mulheres eleitas para cargos políticos eletivos. imigração conduz, no curto prazo, ao aumento

3
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

de violência e agressão sexual contra mulheres fim de evitar o que se chama de “great repla-
brancas e, no longo prazo, ao fortalecimento de cement”, ou seja, a substituição da população
um ethos cultural e estético não-ocidental que nativa de determinada região por populações
representa uma ameaça às conquistas das mu- imigrantes. E o segundo é atrair o eleitorado
lheres ocidentais a partir de slogans como “pro- feminino para plataformas eleitorais de direita
teger as mulheres significa fechar as fronteiras”. radical, focando também nas mulheres nativas
Tal fenômeno foi denominado pela socióloga e trabalhadoras que ocupam postos de trabalho
teórica política Sara Farris (2017) de “femona- menos qualificados e que, nos últimos anos,
cionalismo”, ou seja, a apropriação de pautas e vem perdendo espaço no mercado de trabalho
demandas em defesa dos direitos das mulhe- para imigrantes.
res por partidos e movimentos nacionalistas Ao mesmo tempo, em países de maioria
em campanhas políticas racistas e xenofóbicas. islâmica, como a Indonésia, jovens mulheres
O femonacionalismo visa especificamente as religiosas que atuam como influenciadoras
mulheres com uma mensagem controversa e digitais buscam cooptar outras mulheres para
contestada de que a imigração, oriundo princi- que optem por um modo de vida tradicional.
palmente de países muçulmanos, traz consigo Para tanto, encorajam suas seguidoras nas re-
culturas misóginas que ameaçam as suas liber- des sociais a fazer uma autotransformação e
dades. Nesse sentido, não é apenas a regula- alcançar uma meta ética: serem boas mulhe-
mentação dos corpos das mulheres que motiva res muçulmanas. A ideia, porém, é que as se-
a extrema direita (sexismo hostil), mas também guidoras tenham um senso de “escolha” a fim
a difusão de uma suposta retórica de proteção de alcançar o idealizado pelo eu. Dessa forma,
às mulheres (sexismo benevolente). uma jovem muçulmana que segue uma in-
Isso seria possível porque, na percepção fluenciadora religiosa pode optar por aprender
destas mulheres, as pautas que foram mobi- a se tornar digna do amor de Deus. No entan-
lizadas por movimentos feministas duran- to, quando suas seguidoras optam por cultivar
te o século XX, como o direito das mulheres suas subjetividades piedosas, elas compreen-
de trabalharem, a pauta de paridade salarial, dem que são, então, obrigadas a seguirem de
violência contra mulher, seguridade social ao perto os mandamentos religiosos, visando o
trabalho doméstico, já estariam normalizadas. objetivo original estabelecido pela influencia-
Assim, partidos de extrema direita reformula- dora (Beta, 2019).
ram sua retórica antifeminista, concentrando- As ideias de autonomia, escolha e em-
-se em questões sociais por meio de agendas poderamento também perpassam o ativismo
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

políticas voltadas para a oferta de políticas de de mulheres evangélicas e conservadoras na


cuidado conjugadas com uma ideologia que política brasileira. Em sua ótica, há uma opo-
visa reforçar o papel tradicional das mulheres. sição entre mulheres “sem valor” e mulheres
Um exemplo disso é a atuação do AfD (Alter- “de valor”, ou “mulheres de verdade”. E, nesse
native für Deutschland), principal partido de sentido, seria possível escolher ser uma mu-
extrema-direita alemã, que incluiu em seu pro- lher valorosa, ocupar posições de poder e lutar
grama de governo a defesa de políticas sociais por mais direitos para outras mulheres.
focalizadas nas mulheres como o pagamento Tendo isso em vista, na próxima seção
de trabalho doméstico e a inclusão de políticas apontamos como a emergência de uma cultura
de auxílio para mães com mais de um filho. posfeminista, bem como de fenômenos deno-
Esse tipo de política pública ofertada por di- minados como feminismo neoliberal e femi-
reitas radicais na Europa teria, principalmen- nismo popular, favoreceu a popularização de
te, dois objetivos. O primeiro é o de aumentar sensibilidades conectadas ao empoderamento,
as taxas de natalidade das mulheres nativas, a à autonomia e à valorização de si, as quais,

4
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

posteriormente, passaram a ser mobilizadas A campanha da marca Dove intitulada


por mulheres ativistas de direita e extrema-di- “Beleza Real”, lançada em 2004, figura como
reita para cooptar mulheres comuns. um dos melhores exemplos do emprego de
sensibilidade posfeminista pelo marketing
voltado para a venda de produtos femininos.
POSITIVIDADE, AUTONOMIA E Para Kasey Windels et al. (2019), tal campanha
EMPODERAMENTO FEMININO representou uma mudança de paradigma ao
fomentar um debate público sobre padrões de
A ideia de empoderamento feminino se beleza. Suas peças publicitárias, baseadas em
desenvolveu em meio às lutas feministas que pesquisas que apontavam que poucas mulhe-
lhe atribuíam um conteúdo controverso ou de- res se consideravam bonitas, foram capazes de
safiador em relação à ordem social e econômi- elevar as vendas da marca de 2,5 bilhões dóla-
ca. De acordo com a acadêmica feminista Sri- res para 4 bilhões de dólares. De acordo com
latha Batliwala (2010), movimentos radicais as autoras, o sucesso do que ficou conhecido
de mulheres nos anos 1970 adotaram o con- como femvertising (abreviação de publicidade
ceito em seus discursos e práticas. No entan- de empoderamento feminino) se comprovou
to, ao final dos anos 1990, “empoderamento” em anos posteriores.
se tornou uma “palavra da moda”. Tal trans- Em 2013, a campanha “Retratos da Real
formação foi marcada por sua reapropriação Beleza”, da mesma marca, em que mulheres re-
como mote de atores corporativos e filantropos ais descreviam sua aparência para um retratis-
capitalistas para exaltar as contribuições de ta, se tornou o anúncio veiculado no YouTube
mulheres e meninas para o desenvolvimento. mais visto de todos os tempos até então. Nos
Por conta disso, o conceito perdeu seu conteú- próximos anos, foram lançados novos prêmios
do contestatório original, tornando-se o que a para promover e incentivar o femvertising. Em
antropóloga Andrea Cornwall (2018) classifica 2015, o Festival de Cannes introduziu o Leão
como “empoderamento light”. de Vidro para a promoção social e o incentivo à
Durante as décadas de 1990 e 2000, a publicidade feminina, e, no mesmo ano, a SHE
noção de empoderamento, agora em sua ver- Media lançou o Prêmio #Femvertising Awards
são “light”, tornou-se cada vez mais desvin- para homenagear marcas que desafiam as nor-
culada das lutas do campo feminista contra mas de gênero e desenvolvem mensagens que
a ordem vigente. Ao mesmo tempo, o próprio apelam justamente para a sensibilidade posfe-
feminismo perdeu seu apelo, tornando-se algo minista descrita por Gill (2007, 2020). Embora

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023


tido como excessivo e supérfluo à medida que tais mensagens possam parecer positivas, para
um forte senso de autonomia feminina, agên- a autora, exortar as mulheres a amarem seus
cia e escolha passou a permear os discursos da corpos seria simplesmente uma forma dife-
mídia tradicional, fomentando o surgimento rente de regulação das mulheres, exigindo que
do que a acadêmica feminista Rosalind Gill elas controlem suas crenças através de intensa
(2020) denomina como “cultura posfeminis- regulação psíquica.
ta”. Em sua visão, tal cultura estaria alicerçada A despeito de ter recebido duras críticas
em uma sensibilidade posfeminista que tornou por utilizar uma linguagem de libertação para
possível enfatizar a ideia de empoderamento a alavancar a venda de produtos, a positividade
partir da ênfase nas ideias de escolha e autono- celebrada pelo femvertising preparou o terreno
mia, enfocando, sobretudo, o corpo da mulher para a emergência de outros dois fenômenos
como sua fonte de valor e a exigência de “atu- correlatos. Entre 2012 e 2013, dois textos de
alizar” a vida psíquica para se tornar positiva, ampla circulação nos Estados Unidos captura-
confiante e brilhante. ram a atenção da acadêmica feminista Cathe-

5
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

rine Rottenberg. O primeiro foi o texto intitu- mo e violência são obscurecidos (ver McRob-
lado “Why Women Still Can’t Have It All” (Por bie, 2009; Gill, 2011; Rottenberg, 2014b; Gill,
que as mulheres ainda não podem ter tudo), 2016). Em seu entendimento, o feminismo
publicado em 2012 por Anne-Marie Slaughter, popular é um conjunto de práticas acessíveis
então ex-reitora de Princeton e conselheira de ao grande público que envolvem um “ativismo
Hillary Clinton, na época Secretária de Estado, hashtag” e aquisição de mercadorias, consti-
que se tornou o ensaio mais lido na história tuindo um feminismo ‘feliz’ que muitas vezes
da revista “The Atlantic”. Em 2013, o manifes- acaba eclipsando críticas feministas estrutu-
to “Lean In” (Incline-se) de Sheryl Sandberg, rais. Para a autora, a visibilidade do feminismo
chefe de operações da Meta, tornou-se best sel- popular na televisão, no cinema, nas mídias
ler. De repente, ou assim pareceu à acadêmica sociais e nos corpos é fundamental, no entan-
feminista Catherine Rottenberg (2020), mulhe- to, muitas vezes também é limitante: “como se
res poderosas estavam se identificando publi- ver ou comprar feminismo fosse a mesma coi-
camente como feministas, algo incomum nas sa que mudar as estruturas patriarcais”, afir-
décadas do pós-feminismo, e que sinalizaria a ma. (Banet-Weiser, 2018, p.4).
emergência de um novo fenômeno, o “feminis- O que há em comum em todos estes fe-
mo neoliberal”, em consonância com o que a nômenos, que também podem ser lidos como
teórica política Nancy Fraser (2019) denomina três momentos temporais interconectados por
como neoliberalismo progressista. sensibilidades similares, é o foco nas ideias
Segundo Rottenberg, o feminismo neo- de positividade e autonomia individual. Para
liberal, ao contrário da sensibilidade posfemi- além disso, o feminismo neoliberal e o femi-
nista, afirma claramente a existência da desi- nismo popular coincidem no diagnóstico de
gualdade de gênero, mas, simultaneamente, que há uma disparidade de gênero nas esferas
nega as estruturas sócio-econômicas e cultu- econômicas dominantes que pode ser equacio-
rais que moldam as vidas das mulheres. Nes- nada trazendo mais mulheres à mesa simples-
se sentido, as mulheres seriam, então, plena- mente porque são mulheres.
mente responsáveis por seu próprio bem-estar Segundo Banet-Weiser, a inclusão das
e autocuidado, e seus dilemas poderiam ser mulheres é autorizada por um contexto po-
equacionados a partir da “escolha” por um lítico e econômico específico. O mercado do
equilíbrio bem-sucedido entre trabalho e famí- feminismo não se trata simplesmente da mer-
lia. Nessa ótica, as mulheres passam a figurar cantilização de slogans, mensagens políticas
tão somente como empresas hiperindividuali- e produtos feministas; trata-se também de
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

zadas que passam a fazer cálculos de custo-be- validar um sujeito econômico e um contexto
nefício, ensejando a perda de qualquer força econômico no qual a inclusão das mulheres
oposicionista presente em contradiscursos fe- sinaliza feminismo. Embora esta inclusão não
ministas oriundos de lutas políticas coletivas esteja necessariamente comprometida em in-
(Rago, 1998; Fanti e Medeiros, 2019). terrogar questões estruturais, de modo que o
A celebração da positividade também feminismo popular raramente critica o neoli-
está presente no que Sarah Banet-Weiser beralismo e seus valores. Pelo contrário, suces-
(2020) denominou como “feminismo popular”. so econômico e auto-empreendedorismo, são
Para a autora, o feminismo popular emerge ao parte integrante do feminismo popular. Assim,
longo de um contínuo em que expressões espe- seria preciso compreender tal fenômeno como
taculares, favoráveis à mídia, tais como femi- co-constitutivo de práticas capitalistas.
nismo de celebridades e feminismo corporati- Na seção seguinte, apontaremos como
vo alcançam maior visibilidade, e expressões tais sensibilidades e fenômenos descritos aci-
que criticam o patriarcado e sistemas de racis- ma atravessam as falas de mulheres brasileiras

6
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

comuns divididas em dois grupos: 1. eleitoras pela mulher dentro da família e à harmonia do
de Jair Bolsonaro em 2018 que se decepciona- lar, ainda que todas destaquem a importância
ram com sua atuação e 2. eleitoras convictas de políticas públicas que permitam que as mu-
de Bolsonaro que se autodenominam como lheres possam conciliar o trabalho fora de casa
conservadoras. com o cuidado com a família.
Muitas mulheres com quem conversa-
mos não se afirmam feministas, ecoando um
EMPODERAMENTO FEMININO, espírito posfeminista, mas independente de
INFLUENCIADORAS E DESIGUAL- o fazerem ou não, todas são perpassadas, em
DADES maior ou menor grau, pelas sensibilidades co-
nectadas à cultura posfeminista, ao feminismo
Em 2020 e 2022, com apoio do Instituto neoliberal e ao feminismo popular. As ideias
Update, conduzimos dois estudos qualitativos de independência e autonomia das mulheres
com mulheres brasileiras que votaram em Jair são extremamente positivas para as entrevista-
Bolsonaro.3 Nestes estudos as mulheres foram das. Todas defendem que as mulheres tenham
reunidas em pequenos grupos e, por duas ho- sua própria renda, sua própria carreira, e que
ras, conversaram conosco sobre questões rela- sejam independentes de seus parceiros e fami-
cionadas ao seu cotidiano. liares, o que consideram ser sinônimo de em-
No primeiro estudo, realizado de forma poderamento feminino:
exploratória no segundo semestre de 2020,
Ser empoderada é não precisar de homem para por-
conversamos com seis eleitoras de Bolsonaro ra nenhuma. Se quero viajar, vou viajar. Se quero
do Sudeste e do Nordeste que se autodenomi- ser sozinha, me sustento. É não depender de nin-
nam conservadoras. Um ano e meio depois, no guém, é falar “eu posso”. (Mulher, 54 anos, Rio de
início de 2022, decidimos conversar com trin- Janeiro).4
ta e nove mulheres de diferentes faixas de ren- Tu não precisa mais de um homem para fazer as coi-
da, cor, religião e regiões do país que votaram sas. Existe essa questão da dependência da mulher.
Se o homem te dá suporte financeiro ele tem esse
em Bolsonaro em 2018, se decepcionaram com
poder de controlar, e tem mulheres que se subme-
sua atuação mas ainda não haviam decidido
tem. Outras mulheres percebem que não precisam
em quem votar para presidente. se submeter. São as empoderadas. Isso assusta as
A despeito de possuírem várias diferen- pessoas. (Mulher, 26 anos, Rondônia).
ças entre si, praticamente todas as mulheres Empoderamento é poder escolher o que a gente quer
com quem conversamos almejavam ser mu- para a nossa vida e nossos corpos. O julgamento da

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023


lheres empoderadas. Todas afirmavam que o sociedade é tão grande que coloca a gente pra baixo.
machismo as prejudicava em seu cotidiano e Tem muitas empresas que usam a questão do em-
poderamento só na propaganda, mas não tem uma
desejavam ser mulheres autônomas, indepen-
mulher trabalhando lá no corpo da empresa, na pu-
dentes dos homens tanto materialmente como blicidade, é bem complicado. A mídia é um processo
emocionalmente, e livres para alcançar seus popular, se a gente tem o tempo todo a mídia falando
objetivos de vida. A grande diferença que se- que a mulher não é capaz daquilo, aquilo impacta o
para as mulheres que se autodenominam con- futuro das crianças. A gente educa nossas crianças
servadoras das demais é a importância que as através da mídia. Tudo está na propaganda, no filme,
no desenho. (Mulher, 23 anos, Rio Grande do Sul).
primeiras conferem ao papel desempenhado
3
Empoderada é a mulher que trabalha, corre atrás
O estudo também compreendeu um grupo de jovens que
não sabiam em quem votar nas eleições presidenciais no dos objetivos, não depende de homem para nada.
ano de 2022, cujos dados não serão abordados. Todos os (Mulher, 38 anos, Bahia).
dados oriundos de entrevistas qualitativas analisados nes-
te artigo foram publicados no livro “Feminismo em Dispu-
4
ta: Um estudo sobre o imaginário político das mulheres As falas sofreram pequenas alterações textuais para con-
brasileiras” (2022), organizado por Beatriz Della Costa, ferir maior fluidez sem, contudo, prejudicar de qualquer
Camila Rocha e Esther Solano. forma seu conteúdo original.

7
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

Empoderamento é a mulher lutar por seus objeti- ram atingir o equilíbrio entre família e trabalho
vos, querer conquistar seu espaço no mercado de preconizado pelo feminismo neoliberal e cele-
trabalho e na vida pessoal. É ser livre, sem aceitar
bram seu sucesso individual por meio de um
julgamentos. (Mulher, 31 anos, São Paulo).
ethos de positividade transmitido em suas pos-
Entre as entrevistadas que se autodeno- tagens nas redes sociais, muitas delas financia-
minam conservadoras, o diferencial é que o mo- das pelo femvertising digital. São ressaltadas,
delo de mulher empoderada combina, necessa- sobretudo, as capacidades empreendedoras e
riamente, representatividade no espaço público de “superação” das influenciadoras, fazendo
e protagonismo no âmbito familiar e doméstico: com que as seguidoras se inspirem e possam
então, como aponta Rosalind Gill, “atualizar”
Para mim, ser mulher é ser forte, guerreira, vitorio-
suas vidas psíquicas para se tornarem positi-
sa. É estar na lida todos os dias, sair de casa cedo
para trabalhar, chegar tarde e cuidar dos filhos, para vas, confiantes e brilhantes.
quem tem filho pequeno. É dar conselho, lidar com Porém, também é importante enfatizar o
marido que muitas vezes é ciumento, machista. A atual cenário de disputa do feminismo e dos
mulher, hoje em dia, tem cargo público, está no con- papéis de gênero que é possível vislumbrar nas
gresso, está na política. É ter que estar sempre dis-
falas das entrevistadas acerca das influencia-
posta, ter energia. Porque o homem não tem energia.
doras. Feminismo interseccional, feminismo
Eles acham que trabalham fora e não tem que fazer
mais nada da vida. Fica tudo em cima da mulher, e a neoliberal e feminismo popular aparecem mui-
gente ainda é muito discriminada por isso. (Mulher, tas vezes misturados e entrelaçados, por vezes
49 anos, São Paulo). até mesmo simultaneamente à cultura posfe-
Uma mulher empoderada que não é família não me minista e perspectivas religiosas mais ou me-
espelha, mas se não for auto suficiente, também não nos conservadoras. Há entrevistadas que, com
me espelha (Mulher, 32 anos, Ceará). entusiasmo, afirmam seguir, ao mesmo tempo,
De qualquer forma, todas as entrevista- influenciadoras de maquiagem e mulheres
das desejam ser mulheres empoderadas. Ou que falam sobre feminismo, ou são percebidas
seja, mulheres que “não dependem dos ho- como feministas, como a cantora Anitta. Ou-
mens” e são livres para correr atrás de seus tras entrevistadas seguem, simultaneamente,
objetivos, seja estudar e fazer carreira, ser fa- influenciadoras nordestinas, negras, e LGB-
mosa, ser autossuficiente financeiramente, TQIAP+ e conteúdos golpes e relacionados
ter filhos, cuidar da família, ou tudo isso ao à maternidade. E, finalmente, há aquelas que
mesmo tempo. Tais ideias refletem justamen- priorizam influenciadoras empreendedoras,
te a necessidade apontada por Rottenberg de religiosas e familistas, como, por exemplo, Ka-
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

realizar cálculos de custo-benefício, como rina Bacchi, responsável por fazer propaganda
empresas hiperindividualizadas, para “estar dos conteúdos da Brasil Paralelo, produtora
sempre disposta e ter energia” e “ser vitoriosa” brasileira de conteúdos audiovisuais conser-
por meio da possibilidade de escolher “o que a vadores e de extrema-direita:
gente quer para a nossa vida e nossos corpos”. As pessoas que eu sigo falam sobre maquiagem,
A noção de empoderamento feminino, roupa, mas também falam sobre coisas importantes.
hoje, costuma alcançar e impactar as entrevis- Eu sigo Shantal Verdelho, ela é uma influencer, ela
mostra o que as blogueiras fazem, divulga marcas,
tadas por meio das redes sociais. Popularizadas
mas também fala sobre coisas importantes, sobre fe-
no país a partir dos anos 2010, as redes sociais
minismo, sobre o papel da mulher. Camila Cabello
possibilitaram a emergência de influenciado- é uma cantora e fala bastante sobre as coisas que
ras digitais, e as influenciadoras que tendem acontecem no mundo, quando estavam acontecen-
a ser mais valorizadas pelas entrevistadas são do as enchentes ela postava, pedia doações. Acho
justamente aquelas tidas como mulheres em- muito interessante ler livros sobre feminismo. Eu
até já li sobre as sufragistas, mas acho muito inte-
poderadas de sucesso. Ou seja, que consegui-

8
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

ressante ouvir pessoas falando disso e elas também sigo a Priscilla Alcântara. Ela é uma cantora gospel,
transmitem as informações de outras formas. Essas os hinos dela são uma coisa que acalma, é uma coisa
blogueiras conseguem passar informação às pessoas muito boa. Eu também gosto da personalidade dela,
de forma simples, descontraída. Isso é bom porque eleva o espírito a Deus e leva a paz às pessoas. (Mu-
elas têm um público feminino muito grande, e esse lher, 28 anos, Amapá).
feminismo ainda pode não ser muito aceito na nossa Debora Pires e Carol Borges, da Comunidade Sha-
sociedade, que é extremamente machista. Mas elas lom, Larissa Garbiati, da Comunidade Colo de Deus,
estão entre mulheres, e as mulheres entendem. (Mu- Victoria Maciel, Clara Tafner, Renata Lima Viana,
lher, 23 anos, Distrito Federal). Carolina Melo Porto, Samia Marsili, Rebecca Athay-
Anitta, Marília Mendonça, GKAY (Gessica Kayane), de. Todas são católicas. Eu gosto da forma que elas
Thaís Araújo. Essas são as que eu sigo. Anitta é uma abordam temas voltados à sexualidade que muitas
mulher pública, ela vai ao público e fala porque vezes são um tabu muito grande na Igreja e não de-
as mulheres não podem fazer o que os homens fa- veriam ser. Mostram a força de ser mulher, me enco-
zem, e porque quando uma mulher tenta fazer algo rajam. São mulheres fortes e me aproximam mais da
normal, que um homem hétero faz, ela é apedreja- minha fé. (Mulher, 18 anos, Ceará).
da, ela é feminista. A Marília foi uma mulher que A Adriana Arydes é uma cantora católica, eu gosto
abriu portas num meio masculino, também apoiava dos posicionamentos dela, ela é de família tradicio-
o feminismo, falava que não deveria ser feio uma nal. A Simone Fiuza, mulher que trabalha, que é em-
mulher fazer o que um homem faz, e que não deve- presária, mas que também gosta de estar com a fa-
ria ser julgada. GKAY é uma influencer na mesma mília, eu me vejo muito nela. Ela também não aceita
linha que Anitta, questiona por que fazer algumas injustiça, e o esposo dela que é muito companheiro,
coisas é tão ruim, sendo que homens fazem pior. me representa demais (Mulher, 36 anos, Ceará).
A Thais Araújo também apoia o movimento (femi-
Eu gosto muito da Karina Bacchi, como pessoa,
nista). Viralizou uma entrevista em que ela fala que
como mãe, ela conta que ganhou autoconheci-
está criando o filho dela para respeitar as mulheres,
mento, sabe do que realmente gosta, pode se posi-
criando o filho dela para ser livre. (Com elas) eu
cionar. Também gosto da Virgínia Fonseca, é uma
aprendo que eu não tenho que ser julgada por fazer
youtubber casada com um cantor famoso, veio de
coisas que um homem hétero faz, e, se eu for, eu
família pobre e foi crescendo. Ela mostra que é pos-
não tenho que me importar. Eu aprendo que tenho o
sível chegar aonde ela chegou, não foi fácil, mas ela
mesmo lugar no mundo que um homem tem, que eu
demonstra que foi por mérito próprio. (Mulher, 27
posso ser tão grande quanto, que eu tenho os mes-
anos, Distrito Federal).
mos direitos. (Mulher, 18 anos, Rio Grande do Sul).
Eu sigo a Belle Daltro, da Bahia, e a Tamile Garcia, Tal disputa de papéis também apare-
do Sergipe. Eu gosto da Tamile porque ela era uma ce na própria recepção crítica das entrevista-
mulher casada e dependia só do marido, mas com as
das em relação às influenciadoras percebidas
redes conseguiu fazer o dinheiro dela, se separou, e
conseguiu a independência dela. E da Belle eu gosto
como empoderadas. Por um lado, quando se
fala em empoderamento feminino, o dinhei-
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023
porque é uma mulher solteira, e ela não liga para o
que as pessoas pensam “ah, tu tem que casar”. Elas ro é extremamente valorizado como forma de
são mulheres negras, então elas me incentivam. emancipação dos homens. A celebração de tra-
(Mulher, 23 anos, Amazonas). jetórias de ascensão social, lidas na chave de
A Maju debate todos os assuntos, ela tem conhe- “histórias de superação”, é frequente, sobretu-
cimento, é muito bom como ela explica, conversa
do quando aquelas que ascenderam demons-
com a gente. Também sigo a @cenourinha, é uma
tram continuar “humildes” e procuram ajudar
menina que se achava feia porque tinha o rosto todo
manchado e era muito magra. Mas ela começou a outras mulheres.
se maquiar, brincar com isso, e hoje ela usa a ma- Por outro lado, também há o reconhe-
quiagem dela para levantar as meninas. Sobre ma- cimento por parte de algumas entrevistadas,
ternidade, sigo um casal LGBT+, a Nanda Costa (e a inclusive de autodenominadas conservadoras,
Lan Lahn), que tiveram duas filhas. Elas são ótimas,
de que a maioria das mulheres brasileiras não
conversam com todo o mundo. E é muito bonito ver
possui uma base material e condições sociais
a forma como elas são mães, se dedicam a isso, com
muita intensidade, amor e dedicação. Eu também que lhes possibilitem ter uma liberdade similar

9
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

àquela experimentada por mulheres famosas. não fico pedindo nada para o meu marido. Minha
Nesse sentido, há um potencial crítico consi- mãe é empoderada porque cuidou do meu irmão
com deficiência. A gente utiliza essas famosas como
derando a recepção do feminismo neoliberal e
exemplo, mas, olhando para dentro, eu acho que nós
popular por mulheres comuns, sobretudo con- somos empoderadas. (Mulher, 30 anos, São Paulo).
siderando que o contexto brasileiro possui de-
A minha mãe é uma mulher muito empoderada, ela
sigualdades sociais muito mais acentuadas em cuidou de 4 filhos sozinha. Mas a gente tinha que
comparação com aquelas presentes no Norte ficar trancadas dentro de casa, não tinha micro-on-
Global, onde tais conceitos foram formulados: das, tinha que comer comida fria, ela trazia comida
das casas de família que ela trabalhava. O primeiro
A Anitta se acha empoderada, e eu, por ser feminis- marido bebia muito, ele jogava a comida no chão,
ta, acho feio. Muita gente fala que Anitta é empo- batia na minha mãe, até o dia que ela o pegou pelo
derada porque se expõe e não tem medo. Ela não é pescoço e jogou para fora. E o segundo marido co-
empoderada, é só porque ela tem dinheiro. (Mulher, meçou a fazer a mesma coisa, e quando eu tinha 3
32 anos, Ceará). anos, ela o colocou para correr. Ela trabalhava a se-
Mulher empoderada envolve dinheiro. Ela não pede mana toda, não deixava faltar as coisas, e eu não
para alguém fazer, ela paga para fazer por ela. Uma ficava sozinha, largada. Hoje ela arrumou um com-
mulher empoderada não depende de ninguém. Qual panheiro que a sustenta e tem tudo o que sempre
foi o processo? Ela teve filho? Casamento? Ela é sol- quis da vida. Ela tem 71 anos, não aparenta. Então
teira? Qual o nível dela? Para uma mulher empode- ela é empoderada, filhos encaminhados, todos tra-
rada ter um filho estando solteira é mais difícil. Para balham. Eu sou a primeira formada da família. É um
crescer muito, uma mulher vai precisar de alguém exemplo de mulher. (Mulher, 31 anos, São Paulo).
para ajudá-la, para quando ela estiver bem, ela não
depender de ninguém. Hoje a gente fala de mulhe- Desse modo, além de seguirem influen-
res artistas, mas para mim isso não é uma mulher ciadoras famosas nas redes, as entrevistadas
empoderada. Mulher empoderada é quem batalhou, também costumam seguir influenciadoras
conquistou. Quais são os obstáculos? Tudo envolve
cujas vidas se assemelham mais àquelas da
dinheiro. (Mulher, 31 anos, São Paulo).
maioria das brasileiras. Tais influenciadoras
O contato excessivo com a exposição de costumam ser mulheres da mesma cidade ou
vidas aparentemente perfeitas eventualmente região das entrevistadas e que carregam mar-
gera sentimentos de ansiedade e baixa autoes- cadores sociais que as marginalizam de algum
tima entre mulheres comuns. Para procurar se modo: pobres, gordas, negras, periféricas, com
distanciar de modelos inalcançáveis, sustenta- deficiência, idosas, dentre outros. As ideias de
dos pela riqueza e aparência de perfeição, as autonomia, liberdade, humildade e “superação
entrevistadas também citam como modelos frente aos obstáculos” demonstrados pelas he-
mulheres empoderadas mais próximas de seu roínas comuns são muito valorizados pelas en-
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

cotidiano, as quais podem ser sintetizadas na trevistadas, pois tais atributos tendem a gerar
figura da “heroína comum”. Exemplos disso maior bem-estar em comparação com influen-
são: a mãe solteira que criou bem os filhos, ciadoras que procuram aparentar e vender per-
a mulher de origem pobre que batalhou para feição e alto status social:
se formar e fazer carreira, a avó matriarca que Em Salvador gosto de seguir Tia Vera. Ela começou
tem opiniões fortes, a mulher que venceu bar- a vender empadinhas, e, independente dos filhos te-
reiras e preconceitos. Tais modelos, por serem rem muitos seguidores, segue com humildade. Sigo
mais próximos das realidades das entrevista- também a Rebeca, que teve filho e o corpo mudou
das, facilitam sua própria percepção como mu- muito. Ela mostra o dia a dia, o corpo, mostrando
que está gorda e está feliz. São ciclos da vida, mostra
lher empoderada:
mais a realidade. (Mulher, 30 anos, Bahia)
Eu posso dizer que sou empoderada. Eu atingi o que
quero, sou mãe, sou casada, tenho meu dinheiro,

10
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

FEMINISMO EM DISPUTA: mulhe- era bem recebido e mesmo reivindicado, inclu-


res valorosas x mulheres imorais sive por mulheres que se afirmam conservado-
ras. Todas as entrevistadas que se afirmaram
conservadoras e feministas, entendem que se
É interessante notar, contudo, que, em
reconhecer feminista significa apoiar a luta
paralelo às recepções potencialmente críticas
pela valorização das mulheres na sociedade,
em relação às estruturas materiais e sociais que
ainda que discordem da postura adotada por
condicionam as “oportunidades de empodera-
feministas tidas como radicais:
mento” das mulheres, também existem poten-
ciais de interlocução com pautas de direita e Eu acho que sim, sou feminista. Porque eu estou
extrema-direita, como apontaremos a seguir. aqui para lutar com as mulheres. Temos que defen-
Quando confrontadas com a pergunta: der umas às outras. Se eu vir uma mulher apanhan-
do na casa dela, apanhando do marido, eu vou lá
“você se considera feminista?”, independente
ajudar. Vou levá-la à delegacia, fazer o que for para
da resposta dada, a maioria das entrevistadas
ajudar. Acho que eu sou sim, feminista, as mulhe-
procurava ressaltar seu distanciamento de res têm que correr atrás de tudo o que elas querem,
comportamentos tidos como autoritários e in- serviço, emprego. Tem que poder fazer tudo o que
transigentes e sua proximidade com a ideia de quiser, sem o olho machista do homem em cima.
luta pela igualdade: Porque eles são machistas. Se puder deixar tranca-
da dentro de casa eles deixam, para ter a mulher só
Eu acho que, de certa forma, eu sou feminista sim. para ele. Então eu acho que sim. (Mulher, 42 anos,
Quando há diferença por ser mulher, eu acho que Ceará).
devo lutar. Mas eu acredito que tem também o lado Não acho certo ser aquela feminista totalmente ex-
negativo. A mulher não deve ser submissa ao ho- tremista. Por exemplo, a Marielle (Franco), mas gos-
mem, mas temos que entender que há coisas que tava dela por ser mulher, negra, estar ali na frente
competem ao homem, como trabalho braçal, e as fe- de muitos homens, falando. Gosto, mas discordava
ministas às vezes são um pouco radicais. Existe um dela (Mulher, 32 anos, Ceará).
certo exagero, uma certa imposição. Deveriam ser
mais pacíficas, conversando, mostrando o porquê Nesse sentido, a exceção foi apenas uma
das questões, com trabalho, com profissionalismo.
entrevistada que disse ser “feminina” e não fe-
(Mulher, 42 anos, Ceará).
minista. Em seu entendimento, as feministas
Não tem problema nenhum uma mulher falar que
hoje seriam ativistas que expõem seus corpos
é feminista, lutar pelos direitos das mulheres. Ser
feminista não é a questão em si. Acho que talvez ter
para chocar a sociedade e que não aceitam o
uma opinião radical, de que nenhum homem presta, diálogo, “forçam a barra”. Em sua visão, as fe-
não é bem assim. A gente vê mulheres que têm ati- ministas ativistas não representam as mulhe-
tudes que são reprováveis. Não são corretas, ou não res que são mães e esposas, ideias que também
teve compaixão do outro, não olhou para outra pes- são compartilhadas pelas demais entrevistadas Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023
soa. A gente não pode seguir uma opinião de que os
que se afirmaram conservadoras:
homens têm que ser abominados da terra. (Mulher,
30 anos, Bahia). Acho que feminismo e conservadorismo são coisas
Quem se diz feminista é muito radical: ‘se não for completamente antagônicas. Eu sou feminina. A fe-
assim não tá bom’. Se Deus criou o homem e a mu- minista não me representa em nada, no diálogo, na
lher é porque precisam um do outro. Ninguém vive postura, no posicionamento político. A feminista
sozinho. Eu respeito, mas não concordo com todas nem aceita diálogo. (Mulher, 53 anos, Rio de Janeiro).
as ideias. (Mulher, 36 anos, Bahia). As mulheres que vão à rua fazendo militância, van-
dalismo, não me representam. Eu sou feminista, in-
Ainda que nem todas as entrevistadas se centivo outras. A gente pode ser feminista e ficar em
reivindiquem feministas, sobretudo por conta casa, cuidando dos filhos, ser dona do lar, a gente
da imagem das ativistas, o feminismo, compre- pode lutar também e correr atrás, incentivar outras.
endido como a luta por direitos e igualdade, Não sou aquela feminista de sair às ruas, mas a gen-
te pode reivindicar nossos direitos de outras formas.

11
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

Eu sou feminista, mas não sou ativista, e não é ge- sobre o peito e não sobre o assunto. (Mulher, 45
neralizando, porque tem muitas feministas que co- anos, Rio de Janeiro).
nheço que lutam de outras formas. Cada uma pode A Marcha das Vadias dá uma ideia ruim do que é ser
lutar pelos nossos direitos de diferentes formas. É feminista. Fica meio com esse estereótipo. Objetifi-
isso que as mulheres estão precisando, de exemplos ca a mulher. (Elaine).
(Entrevistada 5).
O que elas pregam não é feminismo. É para que?
Feministas para mim são as mulheres que defendem Para essa sexualidade exarcebada, que não acho
seus próprios valores, civis, políticos, sociais. Mas bacana, não enquadra no que penso. Feminismo é
eu sou contra feminista que vai à rua mostrando o você ser empoderada, se sustentar, ser alguém de-
peito, tirando a roupa, porque mulher tem que se cente. Sempre vejo a questão do feminismo mais
valorizar. Não pode sair mostrando tudo por aí, tem relacionada à sexualidade, isso não é feminismo. A
que ser bem reservada. As feministas querem defen- sexualidade tem que ser respeitada, mas não é isso.
der um propósito político, civil, e querem defender Feminismo é estar no poder, ser uma liderança ca-
a própria mulher também. Que a mulher tem o seu paz, ser estudada. Mas o que vejo hoje é isso: ‘femi-
valor, que a mulher não tem que aceitar tudo o que nista é sexualidade, vou ficar com todo mundo’. E
falam, que nós estamos aqui para vencer. Então não é, feminismo não é isso. Esse feminismo des-
acho que elas estão aqui para mostrar isso, sabe? Eu valorizou a mulher, e não a favoreceu. O que estão
acho que as feministas atuam para defender todas as pregando é uma coisa de sexualidade. Feminismo
mulheres, e não aceitar homem que bate em mulher, é você provar que tem capacidade. Eu sou igual a
e não aceitar homem que não gosta que mulher sai você, sou intelectual como você, feminismo é isso,
para fazer a unha, cabelo. (Mulher, 42 anos, Ceará). se portar na altura do homem. Nessas passeatas bo-
tam o peito para fora e tem criança ali. Vamos res-
A rejeição do feminismo associado pelas peitar o outro, vamos ter bom senso, pelo amor de
entrevistadas à imoralidade e à sensualidade Deus, cara. Esse feminismo perde a noção do que é
exacerbada, bem como às táticas de choque certo e errado. (Tatiana).
empregadas por ativistas durante as Marchas
Tal rejeição abre espaço para a valoriza-
das Vadias (Gomes, 2018; Rocha; Medeiros,
ção moral da mulher e de seus papéis tradicio-
2022), que realizaram protestos com seios des-
nais de mãe e esposa, sobretudo entre as mu-
nudos e performances sacrílegas, é frequente
lheres autodenominadas conservadoras:
entre a maioria das entrevistadas:
A feminista nem aceita diálogo. E os ideais, quando
Através do feminismo tivemos grandes conquistas.
você analisa a fundo, são contraditórios com a femi-
Mas o que é apresentado nas redes eu não gosto por-
nilidade São contraditórios com ser esposa, mãe. O
que eu não preciso sair à rua expondo meus seios,
negócio das feministas é ‘liberou geral, vamos tirar
pegando símbolos religiosos e enfiando (no ânus).
a roupa’, olha que loucura. É completamente contra
Acho que isso é uma falta de respeito, mas as cau-
os meus princípios. Eu não sei por que elas foram
sas que foram ganhas me representam. Deveríamos
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

por esse caminho de ‘ah vamos tirar a roupa’. Por


agir com sabedoria. A mulher sabe se posicionar
quê? Para chamar a atenção? Eu creio que o femi-
para conseguir algo, a mulher tem poder de persu-
nismo não alcançou por completo seu objetivo, co-
asão, de se unir, mostrar o que nós queremos, não
meçou de uma forma e depois meio que dispersou.
precisa de todo esse alvoroço. Eu não posso abusar
Porque, acima de tudo, a gente tem que preservar a
dos direitos que eu tenho, sair balançando os peitos
nossa imagem enquanto mulher, enquanto geradora
e achar que todo homem tem que aturar isso. São
de vida, né? (Mulher, 53 anos, Rio de Janeiro).
limites que precisam ser estabelecidos (Mulher, 27
anos, Distrito Federal). As mulheres que vão à rua fazendo militância, van-
dalismo, não me representam. Eu sou feminista, in-
Os homens olham mais uma mulher bem arruma-
centivo outras. A gente pode ser feminista e ficar em
da do que uma mulher pelada. Tudo bem usar um
casa, cuidando dos filhos, ser dona do lar, a gente
decote, mas as mulheres não precisam disso. Protes-
pode lutar também e correr atrás, incentivar outras.
to tem que saber fazer, não vou a um lugar público
Não sou aquela feminista de sair às ruas, mas a gen-
botar os peitos para fora, vamos para uma praia de
te pode reivindicar nossos direitos de outras formas.
nudismo. Tem que se dar o respeito. Vou mostrar o
Eu sou feminista, mas não sou ativista, e não é ge-
peito e resolver o problema? Todo mundo vai falar

12
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

neralizando, porque tem muitas feministas que co- ao ativismo feminista e determindas figuras
nheço que lutam de outras formas. Cada uma pode públicas, abre espaço para discursos religiosos
lutar pelos nossos direitos de diferentes formas. É
e familistas que encorajam o empoderamento
isso que as mulheres estão precisando, de exemplos
(Mulher, 44 anos, Rio Grande do Norte).
feminino valorizando moralmente as mulheres
como mães, esposas e servas de Deus a partir
Eu acho que a mulher não tem que ir para movimen-
5
to para se expor tanto assim, mostrar os seios. A gen- de uma estrutura binária de gênero.
te consegue ocupar o nosso espaço, né? Não precisa Assim, seria possível optar por ser uma
ser tão liberal. Eu acho que as feministas deveriam mulher imoral ou valorosa. Uma mulher obs-
defender as mulheres de uma maneira melhor, que cena e sem propósito ou uma mulher com uma
não as expusesse tanto. É preciso defender a famí-
missão divina. Uma mulher autoritária que
lia, o casamento, os filhos, e defender as mulheres
odeia homens ou uma mulher que os ama e se
contra o estupro também. É preciso defender a ma-
neira que a mulher se veste. Não é porque ela veste submete a esse amor. Ser uma mulher empode-
short, blusinha que quer dizer o que a mulher é, é a rada pela objetificação do próprio corpo ou ser
postura que tem por trás daquilo. A mulher tem que uma mulher empoderada pelo poder de Deus.
ser respeitada, independente da roupa que ela esteja Nesse sentido, o discurso realizado pela canto-
usando. Mas, para defender nossos ideais, não preci-
ra, pastora evangélica e influenciadora Eyshila
sa se expor tanto assim (Mulher, 49 anos, São Paulo).
Santos, seguida por 4,4 milhões de pessoas no
É possível dizer que o emprego de tais Instagram, é exemplar:
táticas de choque acabou por reforçar a ideia Eu quero dizer para você que ser mulher não te dimi-
estereotipada da feminista radical, intransi- nui em nada. Pelo contrário, você é uma ótima ideia
gente, autoritária com a adição da ideia de que de Deus. Deus olhou para o homem e disse ‘não é
a ativista feminista contemporânea é imoral. bom que esse cabra esteja só’. Eu vou fazer para ele
Na visão das entrevistadas, tais ativistas, ao uma mulher arretada. Eu vou fazer para ele uma au-
xiliadora idônea, fiel, uma solucionadora de proble-
exibirem o próprio corpo de forma exacerba-
mas que ninguém pode resolver. [...] Eu vou colocar
damente sensualizada atentam contra a mora- ao lado desse homem uma pessoa multifuncional.
lidade do espaço público, objetificando e des- Ela consegue cozinhar, falar ao telefone, balançar o
valorizando não só a si próprias mas também carrinho do bebê, ouvir a música que está tocando,
as mulheres como um todo. E aqui, é possível cantar a outra música que está tocando no vizinho e
fazer um paralelo às críticas realizadas às per- ainda ouvir o que o marido está falando no celular.
Ela é poderosa! Ela consegue fazer tudo ao mesmo
formances sensuais de cantoras como Anitta,
tempo! Deus nos fez com essas habilidades, ele não
Luísa Sonza e Ludmilla. nos fez menores, mas ele também não nos fez com a
Na visão das entrevistadas, a radicali- bandeira do feminismo na mão declarando que nós

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023


dade do feminismo está mais associada à in- somos tudo e os homens não são nada. Deus não nos
transigência gratuita e à imoralidade na esfera fez para competir com os homens, mas para andar
pública do que a um questionamento radical lado a lado com eles. Sendo submissas a eles em
amor, porque se o seu homem tem uma missão, ele
das estruturas de dominação presentes no sis-
merece que você se submeta a ela juntos nessa mes-
tema capitalista. Dessa forma, os potenciais ma missão e vocês vão caminhar para o alvo e serão
críticos presentes nas falas de algumas entre- vencedores. Não entenda isso como algo pejorativo,
vistadas sobre as condições desiguais que pro- pois ser mulher é maravilhoso. Então saia da cama
duzem o empoderamento feminino encontram da vitimização e também não assuma um posto que
pouco ou nenhum eco nos contradiscursos você não dá conta. Pois hoje em dia nos vemos mui-
to extremos. Se antigamente as mulheres se escon-
produzidos pelo ativismo feminista contempo-
râneo. Ao passo que a percepção da imorali- 5 A valorização moral das mulheres a partir de tal estrutu-
ra binária de gênero também possibilita que a extrema-di-
dade, oriunda da sensualização exarcebada e reita rejeite mulheres transgênero como “falsas mulheres”
da objetificação associada pelas entrevistadas em favor de “mulheres verdadeiras”, tanto do ponto de
vista biológico como ao celebrar performances de gênero
tidas como moralmente aceitáveis e desejáveis.

13
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

diam atrás dessa capa de fragilidade, hoje em dia mais atraentes e palatáveis ao eleitorado femi-
elas estão a levantar a bandeira do poder, e aí a gente nino, e transmitir seus valores para uma gama
ouve essa palavra empoderamento dessa forma tão
mais ampla de mulheres. Além disso, também
banal no mundo. As mulheres gritam que são em-
poderadas cantando a música da Anitta e vão postar
possibilita tanto uma disputa do campo femi-
foto no Instagram, com sovaco cabeludo, achando nista a partir de um viés conservador, como a
bonito protestar, achando lindo ser diferente. O Se- emergência do femonacionalismo e outros fe-
nhor não te chamou para sair levantando por aí uma nômenos correlatos, como as “Mulheres Em-
bandeira sem propósito, o Senhor é a tua bandeira e poderadas em Deus”. Dessa forma, grupos de
esse é o verdadeiro empoderamento que Deus disse
extrema-direita conseguem reivindicar o retor-
em Atos, capítulo 1, versículo 8. Deus te chamou
para ser mulher e esse é um Congresso de Mulheres
no aos papéis tradicionais de gênero como uma
Empoderadas e quando você sair daqui você vai sair celebração do empoderamento das mulheres.
mais forte do que entrou, pois você veio aqui para Para tanto, o ativismo de extrema-direita
ser revestida do poder do espírito santo de Deus”. procura enfatizar que o feminismo contempo-
(Pastora Eyshila Santos, em palestra no Congresso râneo teria ido longe demais em suas pautas
das Mulheres Empoderadas em Deus no dia 30 de
liberalizantes, provocando uma degradação
maio de 2019).
das mulheres como um todo. Isso possibilita
oferecer a “opção” pelo resgate do respeito e
da valorização moral das mulheres a partir da
CONSIDERAÇÕES FINAIS celebração de papéis tradicionais de gênero.
Como forma de tornar tal “opção” mais palatá-
É possível considerar que a apropriação vel e atraente, lideranças e ativistas femininas
da extrema-direita da noção de empoderamen- de extrema direita procuram promover políti-
to feminino como um novo fenômeno possibi- cas de cuidado e assistência social focadas nas
litado pela cultura posfeminista e pela influ- mulheres que optam por ficarem em casa e
ência do feminismo neoliberal e do feminismo cuidarem da família. Desse modo, a concepção
popular. A disseminação de uma cultura pos- de empoderamento feminino passa a ser male-
feminista nas últimas décadas possibilitou, ao ável e aberta a diversas finalidades políticas,
mesmo tempo, a assimilação das conquistas permitindo que atualmente, a extrema-direita
dos movimentos de mulheres durante o século e o ativismo religioso conservador avancem na
XX, como o direito à cidadania política e a par- disputa das implicações e significados do que
ticipação no mercado de trabalho, e uma nor- é uma mulher empoderada.
malização despolitizada dessas agendas, con-
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

tribuindo para impulsionar um entendimento


Recebido para publicação em 14 de julho de 2023
de que o empoderamento das mulheres seria Aceito em 27 de dezembro de 2023
mais dependente de méritos e capacidades in-
dividuais do que constrangido por estruturas
sociais desiguais. E, nesse sentido, também REFERÊNCIAS
permitiu que a noção de empoderamento pu-
BANET-WEISER, Sarah. Empowered: Popular Feminism
desse ser mobilizada por movimentos e agen- and Popular Misogyny. Durham, NC: Duke University
das antifeministas. Press. 2018.

O empoderamento feminino baseado na BANET-WEISER, S., GILL, R., & ROTTENBERG, C.


Postfeminism, popular feminism and neoliberal feminism?
valorização moral da mulher, realizada a partir Sarah Banet-Weiser, Rosalind Gill and Catherine
Rottenberg in conversation. Feminist Theory, 21(1), 3-24.
de uma estrutura binária de gênero, possibili- 2020. https://doi.org/10.1177/1464700119842555.
ta que a extrema-direita possa se apropriar de BATLIWALA, Srilatha. Taking the Power out of
Empowerment – An Experiential Account. Development
agendas em defesa das mulheres, tornando-se in Practice 17, n. 4-5, 2007, p.557-565.

14
Esther Solano, Camila Rocha, Lilian Sendretti

BETA, A. R. Commerce, piety and politics: Indonesian KEMPER, Andreas. Foundation of the Nation: How
young Muslim women’s groups as religious influencers. Political Parties and Movements are Radicalising Others
New Media & Society, 21(10), 2140-2159. 2019. https://doi. in Favour of Conservative Family Values. Friedrich-Ebert-
org/10.1177/1461444819838774 Stiftung, 83p. 2016.
COFFÉ, Hilde. Gender and the Radical Right. In: The McROBBIE, Angela. The Aftermath of Feminism: Gender,
Oxford Handbook of the Radical Right. Edited by Jens Culture and Social Change. London: Sage. 2009.
Rydgren. Oxford University Press. 2018.
MILLER-IDRISS, C.; PILKINGTON, H. Gender and the
CORNWALL, Andrea. Além do Empoderamento Light: Radical and Extreme Right. Routledge. 2019.
empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e
justiça global. Cadernos pagu, 2018. MUDE, Cass. A Extrema-direta hoje. 1º ed. Rio de Janeiro:
Eduerj, 211p. 2018.
MEDEIROS, Jonas.; FANTI, Fabíola. Recent Changes in
the Brazilian Feminist Movement: The Emergence of New PRADO, Marco Aurélio Maximo; CORREA, Sonia. Retratos
Collective Actors. In: Socio-Political Dynamics within the transnacionais e nacionais das cruzadas antigênero. Rev.
Crisis of the Left: Argentina and Brazil. London: Rowman e psicol. polít., São Paulo, v. 18, n. 43, p. 444-448. 2018.
Littlefield International, 221-242p. 2019. RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero.
FARRIS, Sara. In the name of Women’s Rights. The rise of Cadernos Pagu (11), p.89-98. 1998.
femonationalism. Duke University Press, 258p. 2017. ROTTENBERG, Catherine The Rise of Neoliberal
FRASER, N. The old is dying and the new cannot be born: Feminism. Cultural Studies, 28(3): 418-437. 2014b.
From progressive neoliberalism to Trump and beyond. CHAMPLIN, Sara; STERBENK, Yvette; KASEY, Windels;
Verso Books. 2019. POTEET, Maddison. How brand-cause fit shapes real
GILL, Rosalind. Postfeminist Media Culture: Elements of world advertising messages: a qualitative exploration of
a Sensibility. European Journal of Cultural Studies, 10(2): ‘femvertising’, International Journal of Advertising, 38:8,
147-166. 2007. 1240-1263. 2019. DOI: 10.1080/02650487.2019.1615294.
GILL, Rosalind. ‘Sexism Reloaded, Or, It’s Time to Get TEBALDI, Catherine. Tradwives and truth warrios: Gender
Angry Again!’. Feminist Media Studies, 11(1): 61-71. 2011. and nationalism in US white nationalist women’s blogs.
Gender and Language. v. 17, n.1. 2023.
GILL, Rosalind. Post-postfeminism? New Feminist
Visibilities in Postfeminist Times. Feminist Media Studies, YLÄ-ANTTILA, T.; LUHTAKALLIO, E. Contesting Gender
16(4): 610-630. 2016. Equality Politics. In: Gender and Far Right Politics in
Europe. Palgrave Macmillan, 29-47p. 2020.

Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

15
MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino ...

FAR RIGHT WOMEN: LES FEMMES D’EXTRÊME DROITE:


Female Empowerment and Traditional Moral Autonomisation des Femmes et Normes Morales
Standards Traditionnelles

Esther Solano Esther Solano


Camila Rocha Camila Rocha
Lilian Sendretti Lilian Sendretti

The aim of this article is to analyze the notion of L’objectif de cet article est d’analyser la notion
female empowerment considering contemporary d’autonomisation des femmes dans la littérature
literature to understand the actions of far-right contemporaine afin de comprendre les actions
women and their discourses towards ordinary des femmes d’extrême droite et leurs discours à
women. Based on qualitative research conducted l’égard des femmes ordinaires. Sur la base d’une
with Brazilian women who voted for Jair recherche qualitative menée auprès de femmes
Bolsonaro, we hypothesize that the massification brésiliennes ayant voté pour Jair Bolsonaro, nous
of a postfeminist culture throughout the 1990s émettons l’hypothèse que la massification d’une
and 2000s, as well as the emergence of neoliberal culture postféministe tout au long des années
feminism and popular feminism (Banet Weiser; 1990 et 2000, ainsi que l’émergence du féminisme
Gill; Rottenberg, 2020), provided new sensibilities néolibéral et du féminisme populaire (Banet Weiser
that made possible a new type of far-right female ; Gill ; Rottenberg, 2020), ont fourni de nouvelles
discourses based on the valorization of traditional sensibilités qui ont rendu possible un nouveau type
moral standards. de discours féminins d’extrême droite fondés sur la
valorisation de normes morales traditionnelles.

Keywords: Female empowerment. Far-right. Mots-clés: Autonomisation des femmes. Extrême


Neoliberal feminism. Post-feminism. droite. Féminisme néolibéral. Post-féminisme.

Esther Solano – Mestre e doutora em Ciências Sociais pela Universidad Complutense de Madrid.
Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo no curso de Relações Internacionais,
Caderno CrH, Salvador, v. 36, p. 1-16, e023040, 2023

professora da Pós-graduação América Latina e a União Europeia: uma cooperação estratégica, Instituto
Universitario de Investigación en Estudios Latinoamericanos (IELAT), Universidade de Alcalá de
Henares. Tem experiência na área de Sociologia, com o tema principal de sociologia política. Conselheira
do Instituto Vladimir Herzog. Colunista da Carta Capital.
Camila Rocha – Mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, e pesquisadora
do CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É coautora de “Feminismo em Disputa”
(Boitempo, 2022) e “Bolsonaro Paradox” (Springer, 2021), e autora de “Menos Marx Mais Mises: a nova
direita e o liberalismo no Brasil (Todavia, 2021).
Lilian Sendretti – Doutoranda em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, mestra em Ciência Política (2018) e bacharela em Ciências
Sociais (2015) pela mesma instituição. É pesquisadora do Núcleo de Instituições Políticas e Movimentos
Sociais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) desde 2015 e pesquisadora junior do
Centro de Estudos da Metrópole (CEM) desde 2021. Editora da Revista Leviathan - Cadernos de Estudos
Políticos, USP. Tem experiência na área de Ciência Política e de Teoria Política, atuando principalmente
nos seguintes temas: movimentos sociais, protestos e desobediência civil; teorias da democracia, teorias
da justiça distributiva.

16

Você também pode gostar