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O marxismo nos debates feministas, é aquele texto fantasma, o outro, que se aceita,
critica-se, mas que não se ignora, porque epistemologicamente está imbricado com seus
princípios identitários. Tanto no marxismo como no feminismo, haveria a preocupação por
questionar relações desiguais, socialmente construídas e reconstruídas em embates de
poder (no caso do feminismo, entre os sexos e pela institucionalização da supremacia
masculina). Em ambos conhecimentos ressalta-se o projeto por negação de propriedades,
expropriações e apropriações (no caso do feminismo, tanto do valor produzido pelo
trabalho das mulheres, socialmente reconhecido ou não, como de seu corpo, voz, re- e
apresentações). Compartem também, o marxismo e o feminismo, a ênfase na materialidade
existencial (para alguns feminismos, a vida cotidiana, para outros, a textual, e para outros
ainda, o cenário histórico—hoje, o capitalismo em formato neoliberal), considerando que
essa materialidade se sustenta por práticas em um real vivido e um real idealizado e
ideologizado (em instituições, no privado e no publico e na micropolitica das relações
sociais). Por outro lado, advoga-se, tanto no marxismo como no feminismo, a possibilidade
de mudanças acionadas por sujeitos, pautando-se portanto, por investimento em realizar
uma utopia humanista—vetor que anima até as versões mais domesticadas (liberais) do
feminismo, ainda que nelas se limite o horizonte da utopia a uma agenda de defesa por
diferenças, por igualdade de oportunidades e direitos, para as mulheres--direitos “sem
investimento nas condições materiais que tornariam possível o exercício dos direitos”4, ou
direitos para algumas mulheres.
Se o ‘pós feminismo’ é ainda importado de pouco uso no Brasil, o mesmo não se pode dizer da influencia do
pós estruturalismo e do pós modernismo no feminismo que tem lugar na academia. Ao contrario, correntes do
feminismo informada por tais tendências viriam ampliando sua legitimidade hoje em vários departamentos e
centros de estudos sobre gênero e mulher, assim como na mídia feminista acadêmica.
4
Carol A Stabile “Feminism and the Ends of Postmodernism” In Rosemary Hennesy e Chrys Ingraham
Materialist Feminism. A Reader in Class, Difference and Women’s Lives. Routledge, Londres. 1997 . A
autora critica a retórica dos direitos, lembrando Rosa Luxemburgo, que criticaria a defesa do direito das
nações a auto determinação por não ser, como aparentaria, uma orientação política para a questão
nacionalista, mas uma maneira de evitar a questão. Corre no mesmo sentido, falar sobre o direito ao aborto,
ou o direito à maternidade, sem referencia aos meios materiais para seu exercício.
5
O termo ‘radical’ tem sentido instável. Nos EE.UU. nos anos 70 era usado por organizações do movimento
de liberação das mulheres para se auto distinguir do que consideravam um feminismo liberal, que atuaria
associado a instituições da direita e da esquerda, como estruturas governamentais, poder parlamentar e
sindicatos, e que por extensão se associavam ao que era considerado também parte da “supremacia
3
sobre as múltiplas determinações do real. É sugestivo para tais argumentos, destacar que
Rubin inicia a defesa do caráter relacional das identidades sexuadas e nessas de construções
pautadas pela organização da sociedade, frisando que para Marx o que distinguiria um
escravo de um não escravo não seria nenhuma característica naturalizada. Por outro lado,
tal distinção dependeria do lugar das relações sociais (no caso, entre escravo e amo) na
estrutura de poder e na produção de riquezas e de cultura, em um tempo, em uma
determinada sociedade. Desta forma, com o conceito de gênero, pretende-se ampliar o
debate para as relações sociais e se sugere que, se as relações sociais são várias e se
autocondicionam, então, tanto classe como gênero, de per si, seriam referências
insuficientes para dar conta do real, inclusive do real imaginado (ideologias)—questões que
serão elaboradas posteriormente, por autoras da diáspora africana e migrantes latinas nos
EUA, ao introduzirem também as relações de raça, de etnicidade e de codificação da
sexualidade8
8
É trabalho de citação comum, dessa rica e crescente produção, nos EE.UU., a antologia organizada por
Cherrie Moraga e Gloria Anzaldua (eds.) This Bridge called my Back. Writings by Radical Women of Color.
Watertown. Persephone Press. 1983
9
Neste sentido, sugerindo aproximação à formulação marxista de que “a sociedade não consiste de
indivíduos, mas expressa a soma de relações, de relações nas quais se encontram os indivíduos” (Marx cit in
Carol A Stabile “Feminism and the Ends of Postmodernism” In Rosemary Hennessy e Chrys Ingraham
(eds.) “A Reader in Class, Difference, and Women’s Lives: Materialist Feminism” New York. Routledge.
1997
5
Na Europa e nos EEUU, no final da década dos 70, e também na América Latina,
aparecem uma serie de publicações feministas que se apoiariam em categorias do
materialismo histórico, para explicar a situação da mulher, em especial, no mercado de
trabalho capitalista, discutindo limites da teoria do valor e da dicotomia trabalho produtivo
e não produtivo. Nessa fase, ocorreu também um criativo debate sobre os conceitos de
produção e reprodução, o valor do trabalho domestico e a relação entre divisão sexual e
social do trabalho. Também muito se discutiu sobre pontos de contato e de distanciamento
com as formulações de Althusser sobre ideologia10.
Materialismo feminista é expressão que se adota para qualificar uma tendência no
feminismo, que privilegiaria os seguintes eixos de questões: 1) sobre a especificidade da
mulher em relação a categorias que se aceita como pertinentes na critica ao capitalismo,
como, classe e processos de trabalhos; e 2) sobre os nexos, formas de relacionar a
transformação do capitalismo e a emancipação de mulheres e homens, e como em tal
processo, enquadrar-se-ia uma apreciação critica sobre a família (ou seja não apenas locus
de reprodução da força de trabalho, mas também de reprodução da subordinação feminina).
Engels é citado por diversos autores daquela tendência, como relevante para, pela analise,
da reprodução, avançar além de uma linear apreciação sobre o valor econômico da mulher
como força de trabalho, associando-se sua regulação por lógica de mercado (a produção),
por processos que não necessariamente se originariam em tal lógica, ainda que por ela
sobredeterminado (a reprodução)—forma de articulação que mereceu amplo debate, sendo
porem consensual que a subordinação da mulher haveria que ser analisada historicamente,
pois cada modo de produção daria sentido tanto a produção quanto ã reprodução e suas
articulações. Segundo Engels:
De acordo com a concepção materialista, o fato determinante na história, é, em ultima
instancia, a produção e a reprodução da vida imediata. O que, também, teria um caráter
duplo: por um lado, a produção dos meios de existência, da comida, da roupa, do abrigo e
10
Juliet Mitchell seria pioneira na tentativa de historicizar o conceito de patriarcado, relacionando debates
freudianos e marxistas e recorrendo a Althusser para flexibilizar a compreensão sobre totalidade ou seja,
afastar-se do enfoque mecanicista sobre base e superestrutura, acusado, por feministas, como negativo para
analises sobre a situação da mulher, por tal enfoque enquadrado como relacionado a contradições não
essenciais e situar-se no plano da cultura, da superestrutura. Para Mithchel, o patriarcado—odenação da
subordinação da mulher, atuaria ao nível do inconsciente e não necessariamente seria atrelado a realização do
capitalismo. Hoje, outras autoras feministas que recorrem criticamente a Althusser, como Judith Butler e
Teresa de Lauretis, mais se enquadram no campo de um feminismo afinado ao deconstrucionismo e ao pós
estruturalismo. Ver sobre Mitchel In Annette Kuhn e Ann Marie Wolpe (eds) Feminism and Materialism:
Women and Modes of Production. Routledge e Kegan Paul. Londres. 1979; Judith Butler
6
das ferramentas necessárias para aquela produção; por outro lado, a produção dos seres
humanos, a propagação da espécie” 11
. Tais referencias sobre alguns discursos do feminismo materialista nos anos 70 são
curtas para o registro da diversidade dos debates, mas ilustrativas de um período de
intensivo dialogo entre o feminismo e o marxismo12. O final da década de 80 é de
retrocesso na dinâmica da produção marxista (mas já nos anos 90 tal produção se
revitaliza), o que também reverbera na relação entre o marxismo e o feminismo, no campo
de produção teórica, em distintos países. Se na literatura dos anos 70, corpus analíticos
privilegiados seriam a estrutura social, a relação entre produção e reprodução, o valor de
diversos tipos de trabalhos mais desempenhados pelas mulheres, e o conceito de
patriarcado, já na no final da década de 80, tender-se-ia a marginalizar as análises sobre
trabalho e gênero em favor de práticas culturais, dos significados do corpo, de prazeres.
Na esteira de desencantos com projetos libertários, com os retrocessos do
‘socialismo real, a estrutura social do capitalismo em classes perde intensidade de
referencia na produção feminista em favor de análises “da vida social em termos de
contingências, relações de forças locais, identidades micro territorializadas, ou discursos,
ressaltando-se disputas por representações” 13
O termo materialismo passa a ser
resignificado por varias autoras feministas no plano de um “materialismo culturalista” 14, o
que não se confundiria com o debate de feministas marxistas sobre cultura:
“Em contraste com as feministas culturalistas, as feministas socialistas, marxistas e
materialistas não consideram cultura como uma totalidade da vida social, mas como uma
das arenas da produção social e por conseqüência uma das áreas de luta feminista”15
Para alem dos limites deste texto, está a análise das tendências pós estruturalistas e
11
F Engels The Origin of the Family, Private Property and the State. Lawrence & Wishart. Londres. 1972:
p 71, citado, entre outros em: Annette Kuhn e AnnMarie Wolpe, op. cit.
12
Sobre a heterogeneidade, da produção feminista que recorreu a referencias criticas ao marxismo até
meados dos anos 80, ver, entre outros, Annette Kuhn e Ann Marie Wolpe, op. cit.; Karen V. Hansen e Ilene J.
Philipson Women, Class, and the Feminist Imagination. A Socialist-Feminist Reader. Temple University
Press, Philadelphia. 1990; Rosemary Hennesy e Chrys Ingraham Materialist Feminism. A Reader in Class,
Difference and Women’s Lives. Routledge, Londres. 1997
13
Rosemary Hennesy e Chris Ingraham, op. cit.-p. 5
14
“No materialismo culturalista rejeita-se uma analise sistêmica, anti-capitalista, e a relação entre historia da
cultura e a construção de significados em um sistema social de classes” Rosemary Hennesy e Chris Ingraham
op. cit. P 5. As autoras notam que muitas das autoras que hoje defenderiam essa corrente antes eram
identificadas como feministas socialistas, como Michelle Barret, Drucilla Cornell, Nancy Fraser, Donna
Haraway, Gayle Rubin e Iris Young.
15
Rosemary Hennesy e Chris Ingraham op. cit-p 7
7
16
E. Laclau e C. Mouffe, hoje, seriam destacados autores que postulam por critica ao marxismo, a
diversidade de sujeitos e a recusa da centralidede de uma analise baseada na classe, (considerada uma
categoria “essencialista”) advogando potencialidade na fragmentação de movimentos sociais em torno de
varias identidades, por agregações nômades, articulações tópicas, sem projetos “a priori”. Esses autores
viriam influenciando significativamente correntes feministas pós estruturalistas e pós modernistas nos EE.UU
e na América Latina, inclusive no Brasil. Para uma critica feminista marxista desses autores, ver Carol A
Stabile “Feminism and the Ends of Postmodernism” In Rosemary Hennesy e Chrys Ingraham, op.cit. Stabile
destaca como naqueles autores re-estabelece-se o idealismo, e subtilmente se descentraliza a classe—operaria
—como sujeito de transformação social, e se estabelece em seu lugar, como outra classe, os intelectuais, uma
fração de classe media (na luta discursiva, textual).
17
Carol Stabile op. cit. P 405
8
Rosemary Hennesy e Chris Ingraham, op. cit., sugerem que a recusa dessas
correntes por aquelas que investem na utopia de projetos para a humanidade, como a
feminista marxista, deveria também passar por melhor analisá-las, em seu contexto original
(países de capitalismo avançado)—e.g. a impotência diante das mudanças tecnológicas, a
importancia dos meios de comunicação na produção de sentidos, representações, a
complexidade de apreender a mecânica do capitalismo em fase de globalização, a
diversidade de pólos de contestação por identidades fragmentadas e as criticas a praticas
partidistas autoritárias-- e, complemento, melhor entender as viagens e naturalizações das
correntes ‘pós’ em países como o Brasil, açoitados econômica e culturalmente pela
formatação neoliberal do capitalismo globalizado, combinando modernidades e
tradicionalismos.
É sintomático que as correntes ‘pós’ venham encontrando mais eco no feminismo
produzido no mundo acadêmico, em ONGs de estrutura quase empresarial, sem
reverberações em movimentos sociais e organizações de base popular—tema em aberto a
ser melhor pesquisado e assumido como fronte de disputa de sentidos, de conhecimento,
um debate político ideológico ainda tímido.18
Em particular, considerando a importancia potencial dos estudos feministas e de
gênero nas universidades, e sua atual contribuição para o questionamento de viesses
sexistas nas ciências sociais, por exemplo, e o razoável acervo de estudos de casos por
outros olhares, mais atentos à cotidianeidade das mulheres e orientado para a diversidade de
situações, combinando por exemplo analises de relações sociais de gênero e aquelas
pautadas por codificações raciais, analises sobre identidades e diferenças.
Entretanto, a produção acadêmica feminista de corte marxista, hoje no Brasil, é
escassa e aquela que busca combinar gênero, raça e classe, mais abundante, caracteriza-se
por rico acervo em estudos de casos, investimento teórico especialmente sobre gênero e
raça—com lacunas sobre gênero na classe e a complexidade das teias de relações entre
gênero, classe e raça, se entendidos não somente como linguagens culturais, no plano de
acervo, ou do existente. Mas também como expressões culturais ativas, de rebelião,
singulares e não somente ‘relações sociais discursivamente construídas’, enfocadas por
18
Debate que no Brasil vem sendo assumido por Heleith Saffioti (2000 op cit.). No plano de critica ao
enfoque de políticas de identidade, ver Mary Garcia Castro “Palavras em Busca De Corpos E Terras --
Identidades, Identificações, Políticas de Identidade--Leituras À Esquerda” In Cadernos do CRH. Salvador.
UFBA. 200l, no prelo
9
19
Ver em Rosemary Hennesy e Chris Ingraham, op. cit. , referencias a um amplo elenco de autores que
contribuíram ao longo da historia para as correntes feminista marxista, feminista materialista e feminista
socialista. Cada uma dessas correntes tem especificidade própria, e de comum, um relacionamento critico com
o marxismo
10
22
Michael Hardt e Antonio Negri “Empire” Londres, Harvard University Press. 2000-p 30
23
Gayatri Spivak “In Other Words: Essays in Cultural Politics”. New York. Routledge. 1988, p l62
12
metodologia das escolas européias de corte ‘obrerista’ (Hardt e Negri, 2000: 423. Eu
destaquei.)
Angela Davis habla de la función revolucionária de las mujeres como antítesis del
‘principio de rendimiento’, en un artículo escrito desde la prisión de Palo Alto: Las
Mujeres y el Capitalismo, diciembre de 1971. Las principales condiciones que son
favorables a tal desarrollo son: reducción del tiempo de trabajo; producción de un
vestuário poco costoso y agradable; victoria posible sobre la penúria; liberación de la
moral sexual; control de los nacimientos y educación” 24.
Há autores que advogam que o feminismo, se entendido quer como movimento pela
igualdade entre homens e mulheres, quer por identidade de diferenças, seria como o
marxismo, também um conhecimento subsidiário do Iluminismo, mas que pouco teria a
ver com o marxismo revolucionário, e sim mais se associando ao liberalismo, ainda que
defendamos, feministas marxistas, de que se o feminismo é entendido como movimento
24
Herbert Marcuse “Socialismo Feminista: El Núcleo del Sueño” In Susan Sontag, Julia Kristeva, et al. El
Feminismo, Nuevos Conceptos. Bogotá. Ed. Hombre Nuevo.1977-p 220-21
13
contra a exploração e a opressão das mulheres, quer na cultura quer na economia política,
então tal projeto libertário, só teria viabilidade em uma revolução de emancipação da
humanidade 25
(o que não significa que automaticamente de uma revolução socialista se
realize a emancipação das mulheres) (Barret 26).
É longa e acidentada a relação entre o marxismo e o , ou feminismos, assumindo
contornos próprios em diferentes épocas, historia que aqui se simplifica, e que se conta com
cores próprias também, ou de um lugar, desde uma literatura contra corrente, do feminismo
marxista, defendendo, primeiro, que em alguma medida muitas das criticas feministas
clássicas ao marxismo, como a de que esse tenderia a um economicismo que não daria
conta de vetores da subordinação das mulheres, seriam melhor dirigidas contra um tipo de
marxismo, ou não marxismo, i.e., sua leitura funcionalista e vulgar.
Lembra Loreta Valadares, rebatendo as criticas feministas mais comuns, ao
marxismo, que já Engels haveria recusado a rotulação do marxismo de economicistas27.
25
Sobre emancipacionismo, na literatura feminista brasileira contemporânea, destaca-se a produção de autoras
marxistas que colaboram com a revista Presença da Mulher (da União Brasileira de Mulheres), e.g.; Loreta
Valadares, Olívia Rangel, e Clara Araújo. Por exemplo, em Ana Rocha “Editorial”. In Presença da Mulher, n
29, São Paulo 1997 lê-se:
“De fato se o foco é trabalho, e acesso a serviços de saúde e educação, o principio de igualdade segundo
necessidades, mais encontrou chão em sociedades que experimentaram o socialismo real. Em países como a
ex URSS, e hoje, em Cuba, índices como mortalidade materna, escolaridade de nível superior e atendimento
pré e pós natal, por exemplo foram, são, aí mais favoráveis as mulheres, que os vigentes em países capitalista
em igual patamar quanto a desenvolvimento econômico. Também a sobrecarga com trabalhos domésticos, a
questão da violência domestica e no trabalho (assedio sexual) foi contemplada com legislação pioneira. Por
outro lado, se o debate sobre emancipação da mulher entranha-se por relações na família, relações
interpessoais, sexualidade, subjetividade e diferenças, e extrapola a base material publica de serviços, o
terreno volta a ser mais escorregadio, o que leva a questionar mais uma vez, a propriedade de impor ao
marxismo, ou ao socialismo (e não só a suas realizações ou ao socialismo atualmente existente, ou até
recentemente, caso da URSS) ou ao nível de Estado, uma propriedade voluntarista, ou leitura positivista, em
termos de agencia suficiente para regular a complexa relações entre os sexos e perfilhação de identidades.”
26
Michelle Barret “Feminismo”. In Tom Bottomore (ed.) A Dictionary of Marxist Thought . Cambridge,
Harvard University Press. 1983. Note-se que Barret, até os anos 80 , definia-se como feminista socialista e
em trabalhos posteriores, alinha-se a postura deconstrucionista em analise de discurso. Ver naquele trabalho
de Barret, relato síntese da trajetória de tendências do feminismo
27
Loreta Valadares, autora feminista marxista, com vários trabalhos publicados no Brasil, nas revistas
“Presença da Mulher” e “Principios” observa: “E nada melhor do que Engels para responder à questão [a
critica de economicista], o que fez em 1890, em carta a Bloch, em longo e preciso esclarecimento: “(...)
segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância, determina a história é a
produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isso. Se
alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa
frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que
se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez
vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas
lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e
o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua
influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator
14
Feminismos em Disputa
Hoje, na academia, em distinto países na Europa, como nas Américas, e aí, também
no Brasil, nos chamados campos de estudos sobre a mulher, ou estudos sobre gênero, viria
Não por acaso, reinveste-se, no que nos anos 70, as feministas ‘autônomas’
consideravam heresias contra a pureza do feminismo, como a dupla militância, o estar na
academia, e estar em organizações políticas mistas, ou seja na militância em partidos e
organizações de esquerda e em núcleos ou instituições feministas.31 É uma pratica com
custos, inclusive no plano pessoal, considerando o encrostamento cultural do machismo em
camaradas e companheiros, ainda que se assuma a retórica, hoje, nas organizações de
esquerda ,de citar gênero e tolerar as cotas para as mulheres e os departamentos de
“assuntos da mulher”. Essas militantes, que insistem em uma dupla entrada, estariam
também contribuindo para renovar as organizações de esquerda, para uma pratica mais
flexível e inclusiva na modelagem de projetos para a humanidade.
Fora das academias, também ganha corpo em especial no final dos anos 80, por
exemplo, um feminismo institucionalizado, de corte liberal e social democrata, associado a
agências de governo, e do capital internacional, inclusive, estimulado por agências
internacionais de fomento de pesquisas e serviços. Agências que privilegiam projetos a
varejo, para target groups , em linha advocacional, limitada para grupos entre as mulheres,
estimulando o enfoque de políticas de identidade, ou para constituintes específicos, sem
análise crítica de sistemas, totalidades sociais.
Representantes dessa tendência (feminismo institucionalizado) vêm ganhando
também campo nas elaborações e re-elaborações dos documentos de conferências e
convenções internacionais, no âmbito das Nações Unidas—campo que, em grande medida,
é mais uma arena de representação discursiva, mas de importância simbólica e normativa,
nos limites do sistema capitalista, a não desprezar na disputa por sentidos. De fato, é ampla,
hoje a repercussão, por exemplo, da Plataforma de Ação da Conferência Mundial das
Mulheres (Beijing 1995). Inclusive em experiências mais localizadas, de base comunitária,
tal plataforma é usada nas negociações com poderes 33 .
No cenário do movimento de mulheres, um ambíguo tipo de agência viria
competindo com o sentido de movimento social do feminismo, qual seja, o modelo de
organizações não governamentais (ONGs). Em alguns casos, ONG é um novo termo para
mini empresas que comerciam com o social, ou que se constituem em organizações neo
governamentais, em que o comum seriam mulheres de classe media representarem ou
prestarem serviços especializados a outras mulheres, as de setores populares. Instauram-se
competições entre entidades, por fundos de agências nacionais e internacionais, e seleciona-
se o que se considera como “vozes legitimas no feminismo” para representar as mulheres
em foros internacionais. Por exemplo, é significativo que agencias internacionais de
financiamento, de nacionalidade norte americana, não concedam fundos a projetos de
32
Eric Hobsbawn “La Política de la Identidad y la Izquierda” In Debate Feminista. México, ano 7, vol. 14,
Octubre. 1996
33
In Miriam Abramovay e Mary G. Castro, op.cit.
17
34
Leia-se de esquerda, já que aquelas imbricadas com o governo brasileiro tem sido beneficiarias
privilegiadas. Um grande programa de financiamento para projetos para mulheres e liderança política, ou
‘empoderamento’ das mulheres, nos países do ‘terceiro mundo’, do Banco Interamericano do
Desenvolvimento—o Prolead—conta com a patronagem de Hillary Clinton, membro do partido democrata.
O programa se relaciona a uma rede denominada “Vozes Vitais nas Américas-Mulheres na Democracia”. É
sugestivo também da maleabilidade ideológica hoje do que se chama direitos das mulheres, que no discurso
da primeira dama do governo dos EUU sobre aquela rede para a América Latina, em Montevidéu, 1998,
(texto mimeografado) ela faça referencia entre dar poder às mulheres, para que elas tenham assentos em
lugares de tomada de decisão política, como o parlamento, destacando a importancia de qualidades tidas
como femininas para a “democracia” e o “apoio ao sistema de economia de mercado” (vetores
intercambiaveis no discurso da primeira dama norte americana). Mais de 1 000 mulheres de diferentes
organizações na América Latina foram escolhidas pelos organizadores (BID e Departamento de Estado dos
EEUU) como as vozes representativas do movimento de mulheres na região. Cuba não foi convidada.
35
Ainda que haja no Congresso Nacional mais de 30 projetos em tramite em defesa de direitos das mulheres
trabalhadoras. Comumente eles são rejeitados ou preteridos pela alegação da bancada situacionista, do
Governo e por seus aliados, com a desculpa de que não há recursos orçamentários. É comum inclusive nos
debates sobre previdência social, aposentadoria para a mulher, licença maternidade diretos das mulheres
trabalhadoras rurais, fazer-se referencia a um chamado “custo mulher”. Ou seja culpa-se os trabalhadores, os
velhos, os jovens, com a expressão “custo Brasil” e agora a mulher, com a expressão “custo mulher”, pela
ma administração dos recursos do Estado, e o uso do dinheiro publico para pagamento da divida externa e
apoio a banqueiros, por exemplo. E o “lucro mulher” para o Estado, para as famílias, para os homens, quem
fala, quem contabiliza tal contribuição?
36
“[Segundo] o Relatório do Desenvolvimento Humano de 1997 , editado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, o Brasil é o 60º país em desenvolvimento por gênero - IDG (esperança de vida,
alfabetização, matrícula em escola e renda entre homens e mulheres) e o 58º no ranking IPG - Índice de Poder
por Gênero (grau de participação das mulheres na força de trabalho, nos cargos de chefia, na política e em
profissões técnicas)...” Ana Rocha, “Dez Anos de ‘Presença da Mulher’”. In Presença da Mulher, São Paulo,
Ed Anita Garibaldi, n 34, agosto/set/out 1999. A mortalidade materna no Brasil é uma das mais altas na
América Latina: 200 mortes maternas para cada 100 000 crianças nascidas vivas. As principais causas de
morte entre as mulheres seriam associadas a problemas de circulação e câncer uterino que se relacionariam
a falta de diagnósticos e cura em tempo hábil. Para tal estado de coisas, colabora a má qualidade dos
serviços de saúde. A hemorragia quando da gestação , parto ou puerpério, corresponde a 18% do total de
morte materna, o que também indica má qualidade dos serviços de saúde; cerca de 10% das mortes maternas
se devem a abortos, ou sua provocação, e sua falta de atendimento pela situação de ilegalidade que cerca o
aborto. Estima-se que cerca de 1 800 000 abortos foram provocados, em situação de clandestinidade, no
Brasil, em 1996 (dados cit In Miriam Abramovay e Mary G. Castro, op.cit.).
18
desencanto com outros nortes, por exemplo—mas um culturalismo em si, que privilegia o
discurso, a fragmentação, a diferença e a indiferença, sem referencia ao cenário de
globalização, das relações sociais que na economia política cada vez mais limitam o próprio
exercício da criatividade, da subjetividade--bandeiras que correntes culturalistas acenam
contra o feminismo marxista.
Também vem crescendo, inclusive no Brasil, um feminismo relacionado à filosofia
pragmática como substituto das tendências de orientação marxista, em que o empirismo, a
atenção às experiências, seriam suficientes para substituir projetos por mudanças radicais.
São tempos em que investir no debate político ideológico, questionar a cultura do
neoliberalismo, indicando como o aparente apoliticismo e desencanto das tendências ‘pós’,
como o feminismo que se limita a reivindicar direitos, dentro da ordem, são forma de
exercício político pela ordem capitalista.
Nestes tempos, um feminismo marxismo seria mais que apostar em mais um gênero
de feminismo. Nestes tempos também não há manuais prontos sobre tal feminismo, ainda
que se conte com rica herança quer de corte marxista, quer de corte feminista marxista. Tal
feminismo é um processo em aberto, carente de agitação, debates; seu engendramento pede
criativas experiências, resgatar radicalidades do feminismo e do marxismo (ver sobre este
tema Loreta Valadares l990) e combinações de praticas, teóricas-empiricas, outro gênero
de conhecimento-áção, críticos.
Engendrar um feminismo marxista, a partir de análises das experiências de
mulheres de setores populares em movimentos e organizações de base, e re-acessando
criticamente as teorias marxista e feminista não pode ser agenda exclusiva das feministas
de esquerda, mas de todos socialistas e comunistas - inclusive, é importante que haja mais
espaço e diálogo na mídia critica marxista, nos partidos e na academia para esse
conhecimento. Nestes tempos, um feminismo marxista é mais que um gênero de
feminismo.