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Uma crítica decolonial da epistemologia crítica feminista*.

Yuderkys Espinosa-Miñoso**

Este artigo explica a produção teórica do feminismo antirracista e decolonial


como parte dos esforços para promover uma epistemologia contra-hegemônica
contra o eurocentrismo, o racismo e a colonialidade, não apenas na produção de
conhecimento nas ciências sociais e humanas em geral, mas também na
teorização feminista. A análise começa reconhecendo as contribuições anteriores
que alimentam a produção teórica do feminismo decolonial e mostra como ele
radicaliza e duplica sua crítica às estruturas teóricas e conceituais que sustentam
as verdades mais aceitas e popularizadas como o "ponto de vista das
mulheres". Por meio de exemplos concretos, mostra o tipo de erro que é
cometido, as operações por meio das quais as categorias, a metodologia e os
pontos de vista anteriormente criticados são retomados, sem nenhuma intenção
de abandoná-los ou de buscar alternativas para resolver o problema.

E esta intervenção, pretendo, a partir de minha experiência concreta como teórica feminista decolonial antirracista,
em oposição ativa ao sistema de gênero colonial moderno (Lugones, 2008) e à heterossexualidade como regime
político (Wittig, 2006 [1980]), avançar as apostas do feminismo decolonial e suas contribuições
epistemológicas.

Antes de tudo, devo dizer que, para mim, o feminismo decolonial é, antes de tudo, um compromisso
epistêmico. É um movimento que está crescendo e amadurecendo, "que afirma ser revisionista da teoria e da
proposta política do feminismo, dado o que considera ser seu viés ocidental, branco e burguês" (Espinosa,
2013a). A partir daí, é feita uma crítica às epistemologias feministas anteriores, analisando as premissas sobre as
quais foram sustentadas as grandes verdades que explicariam por que a opressão se baseia no sistema de gênero.
As feministas decoloniais recuperam as críticas que foram feitas ao pensamento feminista clássico a partir do
pensamento produzido pelas vozes marginais e subalternas das mulheres e do feminismo. Começamos
reconhecendo que o pensamento feminista clássico foi produzido por um grupo específico de mulheres,
aquelas que desfrutaram de privilégios epistêmicos por causa de suas origens raciais e de classe. O feminismo
decolonial elabora uma genealogia do pensamento produzido a partir das margens por feministas, mulheres,
lésbicas e pessoas racializadas em geral; e dialoga com o conhecimento gerado por intelectuais e ativistas
comprometidos com o desmantelamento da matriz de opressão múltipla, assumindo um ponto de vista não
eurocêntrico.
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Concordando com Aníbal Quijano quando ele anuncia que chegamos ao momento de uma revolução
epistêmica, estou convencida de que essa dupla aposta que o feminismo decolonial faz em 1) revisar os
andaimes teórico-conceituais produzidos pelo feminismo ocidental burguês branco e, ao mesmo tempo, 2)
avançar na produção de novas interpretações que expliquem o desempenho do poder a partir de posições que
assumem um ponto de vista subalterno, constitui uma contribuição fundamental para a produção de novas
epistemologias e estruturas teóricas conceituais que confrontem os andaimes da produção hegemônica da verdade
imposta pela Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos, por meio da força desde o momento em que a
Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos, por meio da força, foram criados, constitui uma contribuição
fundamental para a produção de novas epistemologias e estruturas teóricas conceituais que confrontam os
andaimes da produção hegemônica da verdade imposta pela Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos,
por meio da força, desde o momento da conquista e da colonização das Américas. Se concordarmos que a
opressão está fundamentada em um sistema de conhecimento e produção do mundo da vida, um sistema de
classificação social, dentro do qual surgiram as categorias dominantes de opressão (gênero, raça, classe), um sistema
instituído por meio da empresa colonizadora e da razão imperial a seu serviço, chegou a hora de uma ampla
desobediência epistêmica que desmorone a estrutura de compressão do mundo produzida e imposta pela
modernidade ocidental. Descobrir e abandonar a autoetnografia (Pratt, 1997) e passar, de uma vez por todas, a
produzir e tornar visível de forma ampla nossa própria interpretação do mundo, como uma tarefa prioritária para os
processos de descolonização. Uma tarefa que deve ser acompanhada por processos de recuperação das tradições de
conhecimento que, em Abya Yala, resistiram ao ataque da colonialidade, bem como daquelas que, de outras
geografias e de posições críticas, contribuíram para a produção de fraturas epistemológicas.

Um bom exemplo do que estou falando é a maneira como a própria produção de conhecimento
feminista decolonial abrange o reconhecimento do conhecimento produzido por epistemologias feministas
contra-hegemônicas anteriores e busca dar continuidade ao seu legado. O pensamento feminista decolonial
reconhece que está relacionado à tradição teórica iniciada pelo feminismo negro, de cor e do Terceiro Mundo nos
Estados Unidos, com suas contribuições para pensar sobre o entrelaçamento da opressão (classe, raça, gênero,
sexualidade), Ao mesmo tempo, propõe-se a recuperar o legado crítico das mulheres afrodescendentes e
indígenas e das feministas da América Latina que levantaram o problema de sua invisibilidade em seus
movimentos e no próprio feminismo, iniciando um trabalho de revisão do papel e da importância que tiveram na
realização e na resistência de suas comunidades. O grupo também se baseia na revisão crítica do essencialismo do
sujeito e da política de identidade do feminismo que começou a surgir das escritoras ativistas lésbicas do feminismo
de cor, que continua até hoje em um movimento alternativo aos postulados generalizados do feminismo pós-
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estruturalista e da teoria queer branca. Na mesma linha, recupera o legado de autores importantes do feminismo
pós-colonial com sua crítica à violência epistêmica, a possibilidade de essencialismo estratégico (Spivak, 1998
[1988]), o apelo à solidariedade feminista norte-sul e a crítica ao colonialismo da produção de conhecimento na
academia feminista baseada no norte (Mohanty, 2008b [2003]). Também retoma várias das críticas da corrente
feminista autônoma latino-americana, da qual várias de nós fizemos parte, incorporando uma denúncia da
dependência ideológica e econômica introduzida pelas políticas desenvolvimentistas nos países do terceiro
mundo, bem como o processo de institucionalização e tecnocratização dos movimentos sociais que impõe uma
agenda global de direitos útil aos interesses neocoloniais.

Por fim, foi fundamental para este grupo conhecer a prolífica produção da corrente crítica latino-americanista,
hoje revisitada e com novo vigor por meio do que tem sido chamado de giro des(s)colonial, a partir do qual é
realizada uma análise da modernidade ocidental como produto do processo de conquista e colonização da
América e suas implicações para as pessoas dos povos colonizados.

Para continuar, gostaria de apresentar alguns aspectos das questões que a teoria feminista antirracista e
decolonial traz para o desenvolvimento de uma epistemologia diferente em Abya Yala.

Um primeiro ponto apresentado pelo pensamento desenvolvido pelas feministas decoloniais e


antirracistas é radicalizar a crítica do universalismo na produção da teoria. As feministas decoloniais
antirracistas, dando continuidade ao legado iniciado pelas feministas negras, pelo feminismo de cor e pelas
feministas afrodescendentes na América Latina, mostram, com sua crítica à teoria clássica, como essas teorias
não servem para interpretar a realidade e a opressão das mulheres racializadas cujas origens são de territórios
colonizados. Embora a epistemologia feminista, com autoras como Evelyn Fox Keller, Donna Haraway,
Sandra Harding, para citar apenas algumas, tenha se preocupado em analisar a pretensão de objetividade e
universalidade, bem como o androcentrismo nas ciências que acabaram excluindo e ocultando o "ponto de vista das
mulheres" nos processos de produção de conhecimento, a verdade é que essa crítica mostrou seus limites ao não
conseguir articular efetivamente um programa de descolonização e desuniversificação do sujeito feminino do
feminismo. Suas contribuições para a crítica do método científico concentraram-se quase que exclusivamente na
análise da maneira pela qual o sistema androcêntrico da ciência contribuiu para silenciar o sujeito "mulher" -
assim pensando universalmente - e removê-lo da produção do conhecimento científico.

Embora várias epistemólogas feministas incorporem reflexões sobre os debates que as feministas negras e
de cor abriram, isso não levou ao desmantelamento das premissas básicas da teorização feminista hegemônica
da opressão de gênero como a categoria dominante central para explicar a subordinação das mulheres. Embora em
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algumas análises as epistemólogas feministas reconheçam os efeitos do racismo e da colonização na vida das mulheres
não brancas, e embora várias venham a reconhecer a necessidade de uma análise entrelaçada de
raça/classe/gênero/(hetero)sexualidade, sua teoria abrangente permanece intacta.

A episteme feminista clássica, produzida por mulheres burguesas brancas estabelecidas em países centrais,
não reconheceu o modo como sua prática reproduzia os mesmos problemas que criticava no modo de
produção de conhecimento das ciências. Ao mesmo tempo em que criticava o universalismo androcêntrico, ela
produziu a categoria de gênero e a aplicou universalmente a todas as sociedades e culturas, sem sequer ser capaz de
explicar a maneira como o sistema de gênero é uma construção que surge para explicar a opressão das mulheres
nas sociedades ocidentais modernas e que, portanto, seria substantiva para ela. As teorias e críticas feministas brancas
acabam produzindo conceitos e explicações que são estranhos ao desempenho histórico do racismo e da
colonialidade como importantes na opressão da maioria das mulheres, ao mesmo tempo em que reconhecem
sua importância.

Esse problema pode ser visto em formulações como as seguintes:

O cientista é um sujeito atravessado por determinações das quais é impossível se desvincular, que devem
ser reconhecidas e que estão ligadas a um sistema social mais amplo. Entre essas determinações, dirão as
feministas, está o "gênero" (ou seja, a interpretação que cada grupo social faz das diferenças sexuais, os papéis
sociais atribuídos com base nesse gênero e as relações culturalmente estabelecidas entre eles). E o desafio é
mostrar como, no produto do trabalho dessa comunidade, um produto que passou pelos controles
intersubjetivos que garantiriam sua neutralidade, o sexismo se instala como um viés muito forte (Maffia,
2007: 13).

Embora concordemos com a análise da autora sobre como o sujeito produtor do conhecimento científico
é "atravessado por determinações das quais não é possível se desvincular" - o que explicaria por que o
conhecimento científico não é objetivo -, ela prossegue apontando como as "feministas" mostrariam que o
"gênero" é uma dessas determinações. Alguns problemas que, a partir de um ponto de vista feminista antirracista
e decolonial, poderíamos observar e expor é como, por um lado, o gênero, como apontamos anteriormente,
pareceria operar como uma categoria independente inerente às questões das mulheres e, portanto, própria da análise
feminista: a crítica feminista da epistemologia tem se concentrado em como pertencer a um determinado gênero
afeta a produção de conhecimento e como o sexismo constitui um viés. Mas se já estamos alertados há algumas
décadas para a forma como o gênero nunca opera separadamente e, além disso, se estamos atentos a propostas como
a de María Lugones1 de que essa categoria não explicaria adequadamente a forma como as "mulheres" de
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povos não europeus foram subjugadas, devemos estar dispostos a aceitar a inadequação dessa categoria,
deveríamos estar dispostos a aceitar a inadequação de um uso universalista da categoria de gênero (a divisão
dicotômica do mundo em "mulheres" e "homens") ou, pelo menos, sempre (e não em certas ocasiões) aderir ao
seu uso de uma forma que seja instável e interdependente de outras categorias, como raça, classe e
localização geopolítica: Como isso torna a análise tão complexa que formulações como a de Maffía não
seriam mais possíveis?
1
María Lugones propõe que "a categoria de gênero corresponde apenas ao humano, ou seja, aos seres de
razão cuja origem é branca europeia [...] A ideia de força e maior capacidade de razão masculina e a fragilidade
das mulheres não poderiam ser aplicadas a povos não europeus, na medida em que esses povos eram todos
igualmente desprovidos de razão, beleza sublime e fragilidade" (Espinosa, 2012: 10). "Necessariamente, índios
e negros não poderiam ser homens e mulheres, mas seres sem gênero. Como bestas, eram concebidos como
sexualmente dimórficos ou ambíguos, sexualmente aberrantes e descontrolados, capazes de qualquer tarefa e
sofrimento, sem conhecimento, do lado do mal na dicotomia do bem e do mal, cavalgados pelo demônio. Como
bestas, elas eram tratadas como totalmente acessíveis sexualmente para os homens e perigosas sexualmente
para as mulheres. A 'mulher' aponta então para os europeus burgueses, reprodutores da raça e do capital"
(Lugones, 2012:130).

Por outro lado, estou interessado em mostrar algo da operação que sustenta formulações analíticas como as
ilustradas neste parágrafo e que é tão frequente nas análises às quais estamos acostumados por epistemólogas
feministas e teóricas feministas eurocêntricas. Refiro-me à maneira pela qual, ao fazer essas críticas ao
pensamento científico moderno por ocultar seu viés sexista, as pesquisadoras e teóricas feministas ocultam seu
próprio lugar privilegiado de atribuição devido à sua classe e ascendência racial. Embora epistemólogos
amplamente reconhecidos, como Sandra Harding, apontem:

[...] o melhor estudo feminista [...] insiste que o pesquisador seja colocado no mesmo plano crítico que o
objeto explícito de estudo, recuperando assim todo o processo de pesquisa para análise juntamente com os
resultados da pesquisa. Em outras palavras, as suposições, crenças e comportamentos de classe, raça, cultura e
gênero do pesquisador, ou do próprio pesquisador, devem ser colocados dentro da moldura do quadro
que ele ou ela deseja pintar (Harding, 1987: 7).

Entretanto, continuamos a nos deparar com uma prática epistemológica que convenientemente insiste em apagar
o lugar privilegiado de enunciação dos produtores de conhecimento sobre as mulheres.

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Assim, no parágrafo citado, Maffía começa dizendo que "[...] O cientista (ou a cientista) é um sujeito
atravessado por determinações das quais não é possível se desprender". A verdade é que nem ela nem a grande
maioria das epistemólogas feministas mais proeminentes aplicam a si mesmas a crítica que elas têm sido tão boas em
fazer aos homens nas ciências. Se o fizessem, muito provavelmente teriam que admitir seu ponto de vista particular
e interessado. O problema é que, um momento depois de admitirem que existem diferenças importantes entre as
mulheres, elas imediatamente voltam a recompor essa unidade necessária de gênero, que essas diferenças negariam.

Como o viés que eles pretendem mostrar é o de "gênero" (uma categoria pensada, além de dominante e
independente, como binária e dicotômica), sua crítica acaba sendo produtiva de algo que eles já haviam criticado
antes: de acordo com essa análise, a comunidade científica ou produtora de conhecimento é separada em dois
blocos internamente homogêneos: o dos homens e o das mulheres. Cada um deles estaria produzindo um ponto de
vista específico a partir da posição de gênero que incorpora. Como para as teóricas feministas branco-burguesas a
categoria superior e relevante é a de gênero, elas acabam assumindo que seu ponto de vista é o que representa o das
"mulheres" como um todo. Ao fazer isso, elas acham que estão livres para aplicar a si mesmas as críticas que já
fizeram àquelas que, do ponto de vista delas, representam uma posição de poder. Ao se basearem exclusivamente
na análise de gênero como uma categoria analítica que explicaria a subordinação de (todas) as mulheres, as teóricas
feministas deixaram de observar e criticar seu próprio privilégio dentro do grupo de mulheres e o viés de raça e
classe da teoria que constroem. Esse seria um bom exemplo do que chamei de racismo de gênero:

Uma impossibilidade para a teoria feminista de reconhecer seu lugar privilegiado de enunciação dentro
da matriz colonial moderna de gênero, uma impossibilidade que decorre de sua recusa em questionar
e abandonar esse lugar ao custo de "sacrificar", diligentemente invisibilizando, o ponto de vista das
"mulheres" em uma escala inferior de privilégio, ou seja, as empobrecidas racializadas dentro de uma
ordem heterossexual (Espinosa, 2013b).

Os efeitos desse tratamento produziram um feminismo universalista que pretende estabelecer um


conhecimento geral para todas as mulheres e se justifica em nome de todas as mulheres, embora ao mesmo
tempo proclame a necessidade de uma nova epistemologia que legitime um conhecimento situado baseado na
experiência concreta. Luiza Bairros explicará, em sua obra "Nossos feminismos revisitados", como o conceito de
experiência proposto pela epistemologia feminista para se opor ao método científico clássico, baseado na
pretensão de objetividade, acabou abrindo as portas para a "generalização", ou seja, para outra forma de
construção de universalismos, uma vez que os privilégios de raça e classe permitem maior acesso ao campo
de ideias de um grupo de mulheres cujas experiências e vozes acabam constituindo um parâmetro para as

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demais (1995: 459). Para Bairros, o ponto de vista das "mulheres" nunca pode ser pensado ou tratado a partir da
presunção de "uma identidade única, uma vez que a experiência de ser mulher é social e historicamente
determinada" (1995: 461). O interessante é que, quanto mais essa verdade é afirmada, mais nos deparamos com
a impossibilidade de a teoria feminista superar esse problema.

Assim, o importante debate aberto pelas epistemólogas feministas brancas, apesar de suas contribuições
indiscutíveis, não foi capaz de resolver os problemas destacados pelas feministas negras, lésbicas e de cor, que
compreenderam desde cedo a profunda interconexão entre as estruturas de dominação, em particular a relação entre
o olhar androcêntrico, o racismo, a modernidade e a colonialidade. Isso impediu, e ainda impede, que o feminismo, ao
problematizar a produção de conhecimento e os critérios pelos quais ele é produzido, leve em conta a
colonialidade que permeia todo o seu (próprio) trabalho.

Além do acima exposto, há outra questão com a qual o feminismo decolonial contribui e que, entre outras, me
parece ser de particular importância: trata-se de destacar o tratamento irrelevante e desonesto que a teorização
feminista hegemônica dá às "diferenças" entre as mulheres para que, no final, seja sempre possível reconstituir a
universalidade das premissas que explicariam uma opressão fundamental comum e, portanto, a ideia da unidade das
mulheres como um grupo particular além das tão faladas diferenças. Como as feministas afrodescendentes,
indígenas e não brancas em geral têm aprofundado a análise das condições históricas que dão origem a uma
organização social que sustenta estruturas hierárquicas de opressão e dominação que não se explicam apenas pelo
gênero; como temos nos aproximado de uma radicalização de nossa inquietação ao nos conscientizarmos da
maneira pela qual essas hierarquias são perpetuadas mesmo por meio de movimentos que foram apresentados e
assumidos como libertadores, como o feminismo (Espinosa, 2012: y/n), estamos enfrentando uma resistência
feroz por parte do feminismo hegemônico para desmantelar as estruturas mentais e as explicações
tendenciosas de uma estrutura analítica que efetivamente oculta a maneira pela qual a rede de poder não
funciona graças a um desempenho paralelo e homogêneo das categorias consideradas dominantes, mas
também por meio da maneira como cada categoria é atravessada e depende indistintamente das outras, de modo que
dentro de cada um dos conjuntos que são específica e homogeneamente considerados como sofrendo igualmente de
uma determinada opressão - por exemplo, o grupo de mulheres ou de pessoas racializadas - ou dentro de
cada grupo que é homogeneamente considerado como estando em uma posição de privilégio - por
exemplo, homens ou pessoas brancas - as relações de poder e dominação também são sustentadas. Quando essa
linha de pesquisa acaba por desvendar o lugar oculto de privilégio que, em detrimento da interpretação clássica de
um sistema sexo-gênero opressor, é ocupado por um grupo de mulheres, entre elas grande parte das produtoras de

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tais teorias, podemos compreender os esforços dos grandes referenciais da teoria feminista em ignorar, minorar
e, além disso, dar um tratamento específico às análises e contribuições do feminismo negro, indígena e de cor. Com
esses últimos, embora proclamem boas intenções, conseguem neutralizar seus efeitos sobre a estrutura conceitual
feminista clássica como um todo.

Para ilustrar o que estou dizendo, quero usar novamente o recurso da citação. Desta vez, trago como exemplo o
tratamento dado por Catharine Stimpson à questão das diferenças entre as mulheres em seu clássico texto "What
am I doing when I do women's studies in the nineties?". Uma vez que ela já expressou que os estudos de
mulheres e de gênero entraram em pelo menos seis grupos de problemas e no número seis (!!!) ela reconhece
como um novo problema "as profundas diferenças entre as próprias mulheres", que a teoria feminista terá que
responder, ela expressará:

No entanto, acredito que também podemos habitar o problema de estudar as diferenças entre as mulheres de tal
forma que nossas experiências de pensamento e prática social possam ser usadas para estudar as diferenças
entre todas as pessoas. De fato, chamei de "herterogeneidade" o uso dos estudos sobre as mulheres como meio
de apreender e conviver com as diferenças humanas [...] Reconhecer a diversidade e abominar o erro que a
apaga são necessidades em si mesmas (Stimpson, 1998: 138; itálico meu).

O parágrafo ilustra o problema que estamos enfrentando. Grande parte da teorização feminista que as
feministas racializadas se permitiram ouvir, além dos erros que discutimos acima, cai em outro erro importante:
elas tentam dar menos relevância às diferenças entre as mulheres, uma vez que elas tenham sido admitidas. A
menor importância consiste, por um lado, em dar um status menor de conflito e relevância ao que eles
consideram ser "outras" categorias de opressão das mulheres. O problema é duplo, pois elas continuam a
pensar nas opressões de gênero, raça e classe como compartimentadas e independentes, como se a raça e a classe
fossem de uma ordem diferente e agissem em paralelo, afetando apenas um grupo de mulheres de forma
específica e somativa. Em sua opinião, as "mulheres" continuam a constituir uma unidade de significado, além da
multiplicidade de opressão que as diferencia. A partir de sua reflexão, podemos ver como a opressão relevante para
os estudos feministas continua a ser aquela que "oprime as mulheres por serem mulheres", uma opressão primária
que não admite discussão de modo que a raça e a classe apareçam como opressões secundárias menores que não
afetam o modo como pensamos sobre a opressão primária. Assim sendo, é possível incorporar o estudo
dessas variáveis de diferença ao estudo das mulheres, como categorias específicas a serem levadas em conta,
mas elas não definem nem têm implicações gerais para a teoria feminista como um todo. O tratamento da raça e da
classe como diferenças menores entre as mulheres, ou seja, entre um grupo específico, tende a naturalizar

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essas categorias como se elas não fossem produzidas por sistemas estruturais de dominação que
acabaram definindo e organizando o mundo e a vida social em que as mulheres se encontram. É por isso que o
desafio não é alcançar um mundo idílico de reconhecimento e incorporação da diferença, uma vez que elas
expressam sistemas de dominação e exploração que colocam as mulheres em espaços antagônicos da vida
social, tornando seus interesses irreconciliáveis.

A mudança epistemológica em plena transição que as feministas de trajetórias e posições críticas e


contra-hegemônicas em Abya Yala estão vivenciando nos apresenta o desafio de contribuir para o
desenvolvimento de uma análise da colonialidade e do racismo - não mais como um fenômeno, mas como uma
episteme intrínseca à modernidade e seus projetos libertadores - e sua relação com a colonialidade de gênero. O
desafio é abandonar e questionar ativamente essa pretensão de unidade na opressão entre as mulheres. Para isso,
estamos prontas para nutrir, articular e nos comprometer com os movimentos autônomos do continente que estão
realizando processos de descolonização e restituição de genealogias perdidas que apontam para a possibilidade de
outros significados para a interpretação da vida e da vida coletiva.

Referências

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