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Publicado em 2019 na França, Flávia Rios descreve o livro como uma “breve e incendiária
crítica ao feminismo”, classificando o livro como um manifesto que “defende a um só tempo
que um feminismo antipatriarcal, anticolonial e anticapitalista, visando ao alargamento de seus
horizontes libertários e igualitário”
O grande diferencial deste livro é revelar as clivagens entre os diferentes tipos de feminismos.
A autora dialoga com autoras do Sul Global afim de buscar um entendimento mais complexo
de formas de dominação e exploração globais. Lembrando que, a compreensão a respeito do
que seria o Sul Global e/ou epistemologias do sul não pode ficar confinado em fronteiras
hemisféricas ou geográficas.
O feminismo decolonial se volta para os problemas gerados pelas relações coloniais e também
para as imaginações emancipatórias elaboradas neste mundo em que a questão de raça se
impôs de forma visceral.
Há ainda vários pontos de contato entre o ensaio de Vergés e o que tem se discutido no Brasil.
Flavia Rios relaciona o texto seminal de Lélia Gonzales, “Por um feminismo afro-latino-
americano”, escrito há três décadas atras.
Nesse sentido, os esforços das teóricas feministas materialistas são fundamentais, pois
reposicionam o problema da reprodução social, (localiza-se aí todo o trabalho com a
maternidade) seja no trabalho doméstico não remunerado no âmbito da família e cuidados
com parentes etc. No entanto, acrescenta-se a isso a reprodução social institucionalizada no
mercado de trabalho formal, pelo rebaixamento do status social, pela humilhação, pela
invisibilidade, pela insalubridade, pela baixa remuneração e pela precariedade dos direitos.
(p.10)
Ou seja, esse trabalho invisível, produzido majoritariamente por mulheres racializadas, é que
gera a limpeza e a organização do mundo capitalista.
O ganho mais notável do livro é demonstrar como raça, gênero e classe se constituem
mutuamente e globalmente nas grandes cidades.
Françoise Vergès escreve sobre e contra um dos berços do feminismo no Ocidente. A França,
com uma autoimagem civilizatória, republicana e universalista, é posta à prova, já que esses
ideiais abstratos são frágeis diante da concretude dos processos de racionalização, do controle
de corpos das mulheres não ocidentais e da hiperexploração capitalista. (p.11)
2. Prefácio
Nas primeiras linhas do prefácio do livro, a autora elenca dois objetivos gerais que a fizeram
escrever o livro Um Feminismo Decolonial, o primeiro: demostrar que o trabalho e limpeza é
indispensável e necessário ao funcionamento do patriarcado e do capitalismo neoliberal, no
entanto deve permanecer “invisível, marcado pelo gênero, racializados, mal pago e
subqualificado” (p.17); já o segundo: “tornar visível a dimensão colonial e racial de um
feminismo europeu convencido de ter escapado das ideologias racistas da escravatura” (p.17).
Vergès denomina este feminismo de “feminismo civilizatório” porque adotou e adaptou os
objetivos da missão civilizatória. Segundo a autora, o feminismo civilizatório ofereceu “ao
neoliberalismo e ao imperialismo uma política dos direitos das mulheres que serve aos seus
interesses” (p.17) Isto é, o direito das mulheres tornou-se, deste modo, um trunfo nas mãos de
poderosos.
A autora argumenta que a própria palavra, o próprio conceito “feminismo” foi esvaziado de
seu sentido. Logo, este livro (Um Feminismo Decolonial) é também uma reivindicação, uma
reapropriação do próprio termo “feminismo”.
Tendo também como objetivo destacar “fatos simples, concretos e tangíveis que iluminam a
estrutura profundamente racializada, estratificada e marcada pelo gênero que permite a
sociedade burguesa funcionar há séculos” (p.18)
Vergès inicia o primeiro capítulo falando a respeito da greve das mulheres racializadas que
trabalham na Gare du Nord. De acordo com a autora, apesar da vitória notável dessas
mulheres racializadas,
Feminismo civilizatório: para a autora, feminismo civilizatório é todo aquele que tomou para si
a missão de impor, em nome de uma ideologia do direito das mulheres, um pensamento único
que contribui para a perpetuação da dominação de classe, gênero e raça.
Durante muito tempo Vergès não se autodeterminava como feminista, mas sim como uma
militante anticolonial e antirracista dos direitos das mulheres. Segundo a autora, ela foi levada
a se autodeterminar feminista por duas razões: primeiro pela emergência de um feminismo
político decolonial amplo; em segundo lugar, pelo cooptação das lutas das mulheres pelo
feminismo civilizatório (p.30).
Uma trajetória anticolonial
“Os feminismos de política decolonial contribuem na luta travada durante séculos por parte da
humanidade para afirmar seu direito à existência” (p. 35).
A autora rejeita termos como “geração” e “onda” para definir o feminismo de política
decolonial. Segundo Vergés, esses termos mascaram as vias múltiplas dos movimentos das
mulheres. Para a autora, o feminismo de política decolonial é na verdade uma nova etapa do
processo de decolonização, que como sabemos é um longo processo histórico.
Além disso, essas duas fórmulas (como vai denominar Vergés), “onda e geração” contribuem
para o “apagamento do longo trabalho subterrâneo que permite às tradições esquecidas
renascerem e oculta o próprio fato de que elas foram soterradas” (p.36).
Como o feminismo de política decolonial se apoia na longa história das lutas de suas
antepassadas “mulheres autóctones durante a colonização, mulheres reduzidas a escravidão,
mulheres negras, mulheres nas lutas de libertação nacional e de internacionalismo subalterno
feminista nos anos de 1950-1970, mulheres racializadas que lutam cotidianamente nos dias de
hoje” (p.36), por isso, o feminismo de política decolonial deve rejeitar essas fórmulas.
O feminismo branco quer afastar a ideia de que a França possui uma história marcada pela
colonização, pela escravidão e pelo imperialismo. E este afastamento minimiza os laços entre
capitalismo e racismo, entre sexismo e racismo e, dessa forma preserva uma inocência
francesa. (p. 34)
Diz Vergès, “desse modo, o feminismo francês se passa por moderado diante da herança
escravocrata. É como se as mulheres por serem vítimas da dominação masculina, não tivessem
nenhuma responsabilidade em face das políticas empreendidas pelo Estado francês” (p.34).
Para Vergès, defender os feminismos de política decolonial significa não apenas arrancar a
palavra “feminismo” da oposição, mais que isso, significa “afirmar a nossa fidelidade às lutas
das mulheres do Sul Global que nos precederam” (p.35).
Para Vergès, um dos fatos mais marcantes deste século XXI é o movimento de feministas de
política decolonial. Existem, segundo Vergès, uma multiplicidade de práticas, e experiências e
teorias, no entanto, ela afirma que as mais motivadoras e originais são aquelas provenientes
de movimentos ligados à terra em que as questões são abordadas de modo transversal e
interseccional (p.36).
Isso porque esses movimentos ligados à terra denunciam o “estrupo e os feminicídios e
atrelam esse combate às lutas contra as políticas de desapropriação, contra a colonização, o
extrativismo e a destruição sistemática da vida” (p.36).
E a autora ainda faz questão de frisar que esses movimentos não podem ser considerados
como uma “nova onda” e nem tampouco de uma “nova geração”. Tais fórmulas mascaram as
vias múltiplas dos movimentos das mulheres. Para Vergès, esses movimentos são na verdade
uma nova etapa do processo de decolonização, que por sua vez é um longo processo histórico.
Vergès destaca os movimentos feministas de política decolonial constituem uma ameaça aos regimes
autoritários que acompanham o absolutismo econômico do capitalismo, ameaçam também a
dominação masculina (assustada por ter que renunciar ao poder). Além disso, esses movimentos
feministas de política decolonial desestabilizam o feminismo civilizatório que,
Para a autora, trata-se, portanto, de fazer oposição ao nacionalismo autoritário e ao neofascismo que
consideram as feministas racializadas inimigas a serem abatidas. E que a ascensão dos reacionários por
todo lado deixa claro que: “uma feminista que não luta pela igualdade de gênero, que se recusa a ver
como a integração deixa mulheres racializadas à mercê da brutalidade, da violência, do estupro e do
assassinato, acaba por ser cumplice de tudo isso” (p.38).
De acordo com Vergès, essa é a lição a ser aprendida nas eleições de 2018 no Brasil, em que Bolsonaro
foi eleito mesmo tendo declarado abertamente sua misoginia, seu racismo, seu desprezo pelos povos
indígenas etc., isso meses após o assassinato de Mariele Franco, uma vereadora negra, periférica e
lésbica (p.38).
Neste tópico, Vergès critica a suposta hegemonia europeia que, na tentativa de “humanizar” os
indivíduos, relegou à inexistência saberes científicos, estéticas e categorias inteiras de seres humanos.
Ou seja, o preço pago por sermos “humanizados” é e sempre será muito pesado.
Vergès inicia esse tópico chamando a atenção para o fato de que, entre os muitos eixos de luta de um
feminismo decolonial, é necessário sublinhar o combate à violência policial e à militarização que se
apoiam na ideia de que a proteção deve ser garantida pelo Exército, pela justiça de classe/racial e pela
polícia. Isso, segundo a autora implica em recusar o feminismo carcerário e punitivo. Vergès define o
feminismo carcerário e punitivo da seguinte forma: é aquele que se “satisfaz com uma abordagem
judicial das violências, sem questionar a morte de mulheres e homens racializados/as, uma vez que elas
são apresentadas como ‘naturais’, consideradas um fato de cultura, um acidente, uma triste
contingência em nossas democracias (p.41).
A autora também levanta a questão de que não devemos subestimar a velocidade com que o capital é
capaz de absorver certas noções para transformá-las em palavras de ordem esvaziadas de seu conteúdo
(ex. as camisetas que são vendidas nas grandes lojas de departamento com frases de ordem feministas
como “lute como uma garota” etc.) Mas então, por que o capital não seria capaz de incorporar a ideia
de decolonização, decolonialidade? Bem, como resposta para essa pergunta, Vergès afirma que o capital
é colonizador, a colônia lhe é consubstancial (ou seja, não tem como separar uma coisa da outra).
A autora faz uma distinção entre colonização e colonialismo. Apoiada na distinção feita por Peter Ekeh,
de acordo com Vergès: a colonização é um acontecimento/período; o colonialismo é processo/
movimento, um movimento social total cuja perpetuação se explica pela persistência das formações
sociais resultantes dessas sequências (p.41).
Contra o eurocentrismo
O feminismo civilizatório nasce com a colônia, pois as feministas europeias elaboraram seu discurso
sobre a opressão se comparando aos escravos (p.43).
Vergès afirma, contudo, que não se trata de emitir um juízo de valor analisando os fatos em
retrospectiva, mas sim de questionar o porquê ainda não ter sido feita uma revisão crítica da genealogia
do feminismo europeu, tendo em vista toda a cegueira em relação à luta das mulheres escravizadas,
colonizadas. Ou seja, seria necessário revisar de forma crítica a história do feminismo europeu para que
fossem reconhecidas as lutas das mulheres escravizadas que se revoltaram, fugiram e resistiram. E,
portanto, essa é uma das tarefas do feminismo decolonial: reescrever a história do feminismo desde a
colônia.
Vergès faz uma critica contundente ao fato de que o a narrativa do feminismo civilizatório se encerra no
espaço da modernidade europeia mas que nunca considera o fato de que ela (a narrativa do feminismo
civilizatório) se funda na negação do papel da escravidão e do colonialismo em sua própria formação.
A maior questão é a forma como a divisão do mundo, no qual a escravidão e o colonialismo operam
desde o século XVI (entre humanos e não-humanos) atravessa os feminismos ocidentais.
Se o feminismo permanece fundado na divisão entre homens e mulheres (uma divisão que precede a
escravidão) e não analisa como a escravidão, o colonialismo e o imperialismo agem sobre essa divisão,
ele é, então, um feminismo machista (p.44).
O feminismo desenvolvimentista
Laicidade querida
Inclusão liberal
Politizar o cuidado