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INSTITUTO EDUCACIONAL DO NORTE DE MATO GROSSO (IENOMAT)

FACULDADE DE DIREITO DE ALTA FLORESTA (FADAF)


CURSO DE DIREITO

KARINA DANIELE DOS SANTOS SILVA MAXIMO DA CRUZ


TALISSIA APARECIDA DA SILVA BOSCHIROLI

MOVIMENTO FEMINISTA DECOLONIAL: UM ESTUDO SOBRE A


CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DA MULHER

ALTA FLORESTA-MT
2022
MOVIMENTO FEMINISTA DECOLONIAL: UM ESTUDO SOBRE A
CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DA MULHER

DECOLONIAL FEMINIST MOVEMENT: A STUDY ON THE HISTORICAL


CONSTRUCTION OF WOMEN'S RIGHTS

CRUZ, karina daniele dos santos silva maximo da,1


BOSCHIROLI, talissia aparecida da silva.2

RESUMO

O Movimento Feminista tem sido um dos movimentos sociais de maior eficácia no decorrer
da história. Fazendo nascer uma nova mulher, mais consciente dos seus direitos e disposta a
por eles lutar, é incontestável que o feminismo vem fazendo surgir novas possibilidades nas
relações sociais, elevando os espaços de conquista social feminina a um patamar de igualdade.
Nesse processo de (des)construção, as feministas têm desafiado as instituições sociais a
pensar e realizar reformas legais que abranjam a natureza feminina de acordo com a realidade
de opressão vivenciada. Com isso, o objetivo geral desta pesquisa é analisar o Movimento
Feminista como ação social para enfrentamento das desigualdades, sobretudo aquelas
perpassadas pelo discurso. Como objetivo específico, o trabalho se dispõe a demonstrar que o
Feminismo surge como uma linguagem transgressora que, questionando a sistemática, cria as
teorias feministas do direito e normas que disponham sobre os direitos das mulheres,
contribuindo inegavelmente para a concretização do ativismo. Para tanto, foi realizada uma
pesquisa de caráter bibliográfico, a partir levantamento teórico literário. Como resultado,
conclui-se que a linguagem feminista indica uma transformação social, impulsionando à
construção de teorias críticas que fazem refletir e operar um novo direito para além do
normativo, pensando-o a partir das relações sociais.

Palavras-Chave: Movimento Feminista. Decolonial. Discurso opressor.

ABSTRACT

The Feminist Movement has been one of the most struggling social movements throughout
history. Giving birth to a new one, more aware of their rights and the women who conquer
them they fight, it is undeniable that feminism is giving rise to new possibilities in social
relations, raising women's social spaces to a level of equality. In this process of construction,
feminists have instigated experiences as female social institutions and carrying out legal

1
2
reforms that embrace nature according to the reality of oppression. With this, the general
objective of this research is to analyze the Feminist Movement as a social action to face
inequalities, especially those permeated by discourse. As specific, the work proposes to
demonstrate that Feminism emerges as a transgressor and that it creates feminist theories
about women's rights that propose to promote activism both for, a bibliographic research was
carried out, from a literary theoretical survey . As a result, it is concluded that the feminist
language indicates a social transformation, encouraging the construction of critical theories
that reflect and operate a new law that goes beyond the normative, thinking it from the point
of view of social relations.

Keywords: Feminist Movement. decolonial Oppressive speech.

1 INTRODUÇÃO

A realidade opressora vivenciada pelas mulheres ao longo da história, diante das


várias transformações entre os séculos XIX e XX, fez as mulheres despertarem para a
necessidade de participação nos espaços públicos. A restrição feminina às vontades sexuais,
invasões à saúde reprodutiva e a desigualdade de empregos se tratavam de um uma afronta à
mulher como ser humano, como indivíduo do meio social.
A partir da constatação de seus direitos estarem sendo usurpados, as mulheres
começaram a se organizar reivindicando pelo que até então era considerado um problema
subjetivo, isolado, que só acontecia com a dona de casa, com a mulher que não queria ter filho
ou a que tinha e era discriminada pelo mercado de trabalho por ter que se dedicar ao papel de
mãe.
O que antes era tratado de forma abstrata, passou a ser refletida como questão política
e o Movimento Feminista foi instituído, sendo difundindo pelo mundo ao suscitar as mais
diversas questões que atingem negativamente o universo feminino, desde a construção do
espaço meramente privado até os temas que envolvem trabalho, espaço político e libertação
sexual no seu mais amplo sentido.
Desta maneira, com a disseminação da bandeira da luta pela igualdade de gênero, uma
nova linguagem é trazida ao meio social pelas feministas, questionando os paradigmas
culturais que demarcam as relações patriarcais que têm ocasionado violências contra à
mulher. A partir daí o Direito, sendo o sistema por meio do qual a sociedade se direciona, é
questionado e pressionado pelo Movimento Feminista no sentido de mobilização social como
ponto de provocar o ativismo a partir de reformas legais que percorram os direitos das
mulheres.
Assim, observa-se o Feminismo como um fenômeno social capaz de efetivar
mudanças no plano real. A partir da linguagem de emancipação feminina que quebra os
conceitos patriarcais enraizados, constituídos socialmente, que esferas conservadoras da
sociedade promovem ações no sentido de impor às mulheres como condenação à natureza de
ter nascido mulher, o Movimento desestabiliza a estrutura social e ecoa um novo discurso.
Nesse sentido, a presente pesquisa objetiva, portanto, apresentar o Movimento
Feminista como uma luta realizadora de conquistas que todas as mulheres só podem
experimentar porque houve quem tenha lutado por elas. Para tal, o estudo pretende esclarecer
o Feminismo como sendo protagonista do impulso de reformas s que foram importantes no
caminho para o horizonte da luta feminista: a libertação da mulher das amarras opressoras.

2 O MOVIMENTO FEMINISTA E SEUS CONTORNOS HISTÓRICOS

2.1 A perspectiva latina americana

Moghadam (2005), O feminismo latino-americano se alimenta de todos esses


diferentes tipos de feminismo. Ao mesmo tempo, foi moldado pelas condições sócio-
históricas da região, que abriram caminho para a criação de múltiplas identidades femininas
que fomentaram movimentos e demandas muito heterogêneas (em termos políticos,
socioeconômicos ou raciais), e pelas conexões entre esses diversos movimentos de mulheres e
entre esses e outras lutas. Essa diversidade e essas conexões têm permitido a articulação de
um movimento feminista latino-americano rico e heterogêneo de caráter transnacional.
Para o autor, esses três tipos de processos históricos residem na organização da ação
coletiva na região: colonialismo e neocolonialismo; as ditaduras militares e regimes
autoritários; e as crises socioeconômicas. À medida que se entrelaçam com as condições
históricas e sociais do patriarcado, eles afetaram a realidade das mulheres de diferentes
maneiras. 
Segundo Vargas (2008), as mulheres latino-americanas têm se organizado nesses
contextos, criando três linhas de ativismo O primeiro seria um Feminismo tradicional que teve
trajetória semelhante ao movimento feminista internacional. As primeiras associações eram
compostas por ativistas de classe média e alta no século XIX. 
Vargas (2008) considera que inicialmente, esses grupos reivindicaram a igualdade
principalmente nos espaços públicos e seus primeiros passos foram relacionados a um
feminismo da igualdade. Floresceu no início do século XX com as lutas pelo sufrágio
feminino, a lei do divórcio, a educação das mulheres e seu acesso a cargos públicos. Ganhou
relevância novamente com a Década das Mulheres das Nações Unidas (1975-1985), com uma
orientação cada vez maior para o feminismo radical e perspectivas intersetoriais. Quanto à sua
organização, são na sua maioria movimentos autônomos ou independentes.
Para Vargas (2008) o modelo Feminismo popular ou social esteve vinculado à defesa
dos meios de subsistência e a luta se organizou em torno dos papéis de gênero das
mulheres. Ganhou destaque durante a crise do petróleo na década de 1970 e a “década
perdida” da década de 1980. As cozinhas populares, os programas de alimentação para bebês
ou os projetos autogerenciados tiveram um grande impulso. 
Ainda para o autor, além disso, no contexto das ditaduras militares que surgiram na
região neste período, muitas mulheres (como as da associação das Mães da Plaza de Mayo)
aderiram à luta pelos direitos humanos a partir de seus papéis de gênero como mães de presos
políticos e “ desapareceram ” Uma vez em movimentos populares, como resultado das
consequências da crise econômica e da lógica patriarcal dos regimes militares e suas técnicas
de repressão contra as mulheres, essas ativistas se conectaram com a luta pelos direitos das
mulheres e a visão feminista da violência e das relações de poder.
Vargas (2008) considera que esse tipo de movimento também aumentou como
consequência de conflitos armados como os da Nicarágua ou da Colômbia. Participando de
seus papéis de gênero, essas mulheres têm criticado a violência específica que as mulheres
sofrem nesses conflitos. Para o autor, mais recentemente, movimentos semelhantes surgiram
no México e na Guatemala para denunciar a violência contra as mulheres em casos como
Ciudad Juárez e outras situações de extrema violência nas fronteiras desses países. 
Em sua maioria, são organizações como as Mães de Maio, formadas por familiares e
amigos de mulheres vítimas de violência. Graças a essas associações, o feminicídio ganhou
visibilidade na América Latina, promovendo a teorização desse conceito e sua inclusão no
código penal de alguns países
Segundo Moghadam (2005), a relevância dos movimentos populares de mulheres na
América Latina deu origem a um “feminismo social”. As reivindicações sociais coletivas têm
importante repercussão e ampla participação.
Também relacionado a este feminismo social, Moghadam (2005) cita duas outras
variedades do feminismo latino-americano: o feminismo comunitário e o feminismo
indígena. Ambos ganharam relevância nas últimas três décadas (em relação às lutas dos povos
indígenas, principalmente na década de 1990), com importantes contribuições
das mulheres xinka na Guatemala e da aymara na Bolívia, e constituem uma contribuição
particular do feminismo latino-americano
Em sua estrutura e organização, esses movimentos apresentam formas autônomas,
principalmente no caso do feminismo comunitário. Ademais, Moghadam (2005) aponta que
há um movimento de Mulheres militantes que é formado por mulheres que participaram de
organizações de esquerda como sindicatos, movimentos pela independência ou partidos
políticos). 
O autor ainda aponta que as mulheres latino-americanas tiveram uma presença
importante nos processos revolucionários em todo o continente, incluindo a Revolução
Mexicana (1910), a Revolução Cubana (1959) ou a Revolução Sandinista na Nicarágua
(1979) Em alguns casos, a falta de representação das mulheres nesses movimentos e a recusa
em incluir suas reivindicações nos processos revolucionários resultaram na criação de comitês
de mulheres nas organizações. Em alguns outros casos, mulheres militantes deixaram esses
movimentos e organizaram grupos autônomos no contexto da ascensão dos chamados
“outros” movimentos sociais formado principalmente por povos indígenas, mulheres, jovens e
camponeses. No que diz respeito à organização, esses movimentos eram em sua maioria
dirigidos.

2.2 O caso brasileiro

O marco histórico da organização das mulheres em busca de direitos a ela


negligenciado, genericamente, foi o movimento pelo direito ao voto, instaurado na Inglaterra
em 1913, e a luta pela liberdade sexual, que entrou em erupção entre as décadas de 1960 e
1970, lutas estas que foram motivadas pelo gradativo despertar das mulheres a respeito da
opressão e inferiorização que estavam submetidas.
Em meio ao cenário de transformações que foi entre o fim do século XIX e o século
XX, mulheres ativistas, que ficaram conhecidas como “sufragistas”, alicerçadas nos conceitos
iluministas de igualdade e liberdade representados por pensadores como John Locke, Jean-
Jacques Rousseau e Jeremy Bentham, passaram a se mobilizar pelo direito feminino à
participação política.
No Brasil, a luta das mulheres foi impulsionada pelas estudiosas inglesas e
americanas, que motivou a bióloga Bertha Lutz, uma das maiores militantes da defesa dos
direitos políticos femininos, a fundar a Liga Pela Emancipação Intelectual da Mulher, na
década de 1920, juntamente com a anarquista Maria Lacerda de Moura e Eugenia Moreyra, a
primeira jornalista brasileira, declarada militante da causa em seus artigos.
Oficialmente, foi no dia 24 de fevereiro de 1932, durante o governo Getúlio Vargas, a
partir do Decreto nº 21.076, o sufrágio feminino foi assegurado após intensa luta no Brasil.
Entretanto, esse decreto era limitante, isso porque estabelecia que o direito ao voto estava
restrito às mulheres casadas, com autorização dos seus respectivos maridos, e às viúvas e
solteiras com renda própria.
As restrições só vieram a ser eliminadas dois anos depois, com a Constituição da
República de 1934, quando os direitos políticos das mulheres foram firmados em alicerces
constitucionais, que só ficou definitivamente livre de qualquer restrição em 1965 pois, até
esse momento, normas infraconstitucionais restringiam o voto às mulheres com profissão
remunerada.
Toda essa luta pelo voto feminino pode ser considerada como o primeiro grande passo
atingido no horizonte das mulheres brasileiras e, como primeiro passo, ainda havia uma longa
jornada de luta com o objetivo da igualdade de gênero, buscando se livrar cada vez mais das
amarras impostas pela cultura patriarcal, em que a figura do macho detém o poder.
As ideias feministas vieram atreladas aos desejos de mudança motivados pelas
diversas frustrações das mulheres diante do modelo inferiorizado a elas desenhado pela
estrutura conservadora da sociedade. Nesse sentido, na década de 1960 entrou em erupção um
feminismo de natureza liberal nos Estados Unidos, quando as mulheres começaram a discutir
sobre a libertação feminina influenciadas pela literatura de mulheres como Betty
Friedan, que elucidou em sua obra “A Mística Feminina”, publicada em 1963, que a
mulher, ao longo da história, foi incessantemente mistificada apenas em termos de sua relação
sexual com o homem, como objeto sexual masculino, como esposa, mãe, dona de casa, e
nunca em termos humanos, como um indivíduo, como um ser humano por si só.
Diante da repercussão da obra, todos falaram sobre as mulheres e como os seus
talentos eram negligenciados, o que impulsionou a criação da Organização Nacional das
Mulheres, em 1966, fundada por Betty Friedan, que levou o movimento a se expandir
rapidamente, de modo que várias mulheres de movimentos antiguerra, universitários, de
direitos civis e libertação dos negros, identificando-se com a luta de libertação feminina,
começaram a se associar à organização, dando força ao movimento com os seus desejos de
mudança.
Foi na manifestação do movimento feminista que se argumentou que as necessidades
emocionais assim como as necessidades sexuais das mulheres deveriam ser tão importantes
quanto as dos homens. Nesse sentido, a motivação que mais impulsionou a organização
supracitada no primeiro momento foi a desigualdade nos empregos, momento em que se
buscava a emancipação feminina através da luta por creches, que possibilitaria uma maior
independência para as mulheres no mercado de trabalho já que elas teriam onde deixar seus
filhos no período de trabalho.
Com a expansão do movimento, sucederam-se concretamente as mais diversas
bandeiras de direitos das mulheres, como a reivindicação pela liberdade de orientação sexual,
saúde reprodutiva e sexualidade da mulher, trazendo os temas da legalização do aborto e
contracepção à visibilidade do meio social. Reunida à essas discussões, evidenciou-se a “fúria
feminina” quanto à maneira fantasiada de crime de paixão que o estupro era titulado e a
dificuldade em enxergá-lo como um crime comum contra as mulheres.
Com isso, o movimento feminista fomentou a luta para erguer a não normatização do
estupro como sendo justificável e possível na ideia de sua prática ser fruto do “instinto
masculino incontrolável”, pois ele expressa em sua essência a cultura brutal do “poder do
macho” e sua vontade perversa de dominar.
Diante de todo esse processo histórico de luta, constata-se o que registrou Kate Millet,
em “A política e o sexo”. Assim, conforme Dore (2014):

Há um número enorme de mulheres que está começando a despertar


de um longo sono, conhecido como cooperação de sua própria opressão e
autodegradação, que estão se juntando para recomeçar um movimento
maciço pela libertação das mulheres na América e no mundo com o fim de
estabelecer a igualdade entre os sexos, quebrar a velha máquina de política
sexual e substituí-la com uma que seja mais humana e mais civilizada para
ambos os sexos, acabando com o presente sistema de opressão. (DORE,
2014, p. 201).

Durante essa década de 1960 a sociedade brasileira também estava constituindo um


cenário de mudanças políticas, culturais, sociais econômicas e significativas. A participação
feminina no trabalho, nas universidades e na vida social crescera e o movimento hippie, a
minissaia e a pílula anticoncepcional revolucionavam o cotidiano e os costumes. (ZIRBEL,
2007).
Evidenciava-se uma nova mulher espertada para a possibilidade de mudanças e para a
busca delas. Exemplo nítido desse desejo por transformações era a expressividade das leitoras
da coluna “A arte de ser mulher”, na revista Claudia, escrita pela jornalista e feminista
Carmem da Silva que, segundo Ilze Zirbel (2007), incentivava as mulheres a desabafar os
seus desprazeres sexuais e afetivos, de modo a instigá-las a combater os seus relacionamentos
arruinados e mudar as suas vidas sob as bases feministas.
Durante o golpe civil-militar em 1964, a presença das mulheres nos grupos políticos
era considerável, de modo que o movimento feminista buscava, naquele contexto de opressão,
mas também de luta, manifestar-se como um grupo que deveria ter espaço e reconhecimento
por lutar por uma sociedade democrática e livre. Assim, evidenciou-se um momento em que
as feministas brasileiras militavam duplamente, tanto no sentido de busca pela consolidação
do movimento feminista como um movimento social, como pela redemocratização do país, de
modo a ampliar suas atividades a partir do engajamento nas causas sociais como um todo e,
ao mesmo tempo, difundindo as questões referentes à natureza feminina, combatendo a
violência contra a mulher.
Com o processo de redemocratização nos anos 1980 as questões subjetivas do
universo da mulher passaram a ganhar efervescência no Brasil, de modo que os ideais
feministas sobre sexualidade, trabalho e participação no espaço político passaram a ser
exploradas e reivindicadas de maneira mais independente pelas militantes do movimento.
Nesse sentido, a intensidade da conjuntura contemporânea do movimento feminista foi
excitada com a criação da chamada Marcha das Vadias, surgida em 2011 no Canadá e
batizado de Slutwalk, cuja manifestação se deu em resposta a um policial canadense que
afirmou que mulheres que se vestem como vadias pedem para ser estupradas. Diante desse
episódio, o movimento se disseminou no mundo inteiro evidenciando que a culpa dos
estupros é exclusivamente dos estupradores e que a forma como a mulher se veste não se trata
de um convite.
No Brasil, a primeira cidade a organizar a Marcha das Vadias foi São Paulo, no
mesmo ano da sua criação, e logo se disseminou pelo país em mais de 20 cidades no ano
seguinte, em 2012. As feministas se organizaram em levantes através das mídias alternativas
e, utilizando o próprio corpo como objeto de luta, seguiram nas marchas transgredindo a
utilização acusatória da expressão "vadia" elevando-a à condição de empoderamento
feminino, de liberdade do próprio corpo, como sugerem os slogans adotados pelo movimento:
“meu corpo, minhas regras” e, “se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias".
Nesse sentido, afirma Margareth Rago (2013):

A Marcha das Vadias traz algumas novidades no modo de expressão da


rebeldia e da contestação, caracterizando-se pela irreverência, pelo deboche
e pela ironia. Se a caricatura da antiga feminista construía uma figura séria,
sisuda e nada erotizada, essas jovens entram com outras cores, outros sons e
outros artefatos, teatralizando e carnavalizando o mundo público.
Autodenominando-se “vadias”, ironizam a cultura dominante, conservadora
e asséptica e, nesse sentido, arejam os feminismos, trazendo leveza na
maneira de lidar com certos problemas, mas estabelecendo continuidades
com as experiências passadas, mesmo que não explicitem esses vínculos
nem reflitam sobre eles. (RAGO, 2013, p. 314).

Assim, o contexto contemporâneo traz um Movimento Feminista protagonizado por


mulheres que têm como alvo o mesmo ideal: a liberdade. E, como afirma Alix Kates Shulman
no documentário She’s Beautiful When Shes Angry (DORE, 2014), essa liberdade é algo que
está sobre o horizonte do movimento, e não se pode parar de navegar em direção a ela só
porque não se conseguiu alcançá-la, e sim continuar lutando para que cada geração tenha a
oportunidade de levá-la adiante.

3 TEORIAS FEMINISTAS: PARA ALÉM DA IDEOLOGIA

Aludindo às correntes feministas que foram construídas no decorrer da atuação do


Feminismo, percebe-se um movimento que luta por um Direito visto sob uma nova
perspectiva, que se atente gradativamente para as atrocidades vivenciadas cotidianamente
pelas mulheres.
Desta maneira, quando proponha-se a expressão de o Movimento Feminista
desconstruir a “Teatralização do Discurso”, não é no sentido de desconsiderar o Direito nem o
entender limitadamente como sendo fruto da cultura que propaga a desigualdade, mas de
compreendê-lo como sendo meio pelo qual as mulheres podem desafiar a propagar uma nova
linguagem e, ainda, pressioná-lo a efetivar na realidade esse novo discurso.
Faz-se importante destacar, neste momento, que apesar de todas as mudanças
alcançadas pelo Feminismo, como alude Rabenhorst (2010):

É estranho perceber como até hoje a palavra feminismo tem sentido negativo
e não só nas nossas faculdades de direito. Suspeito que isso não decorra
simplesmente do fato do sufixo “ismo” estar presente em muitas palavras de
nossa língua como indicação de perversão ou adesão irrestrita a uma ideia. O
que assusta as pessoas é o potencial crítico do feminismo em relação ao que
é visto como evidente ou natural, e como tal indiscutível e imodificável.
“Não sou feminista, sou feminina”, dizem inclusive algumas mulheres, sem
parar para pensar no que isso realmente significa, sobretudo em termos de
identificação com um protótipo patriarcal. (RABENHORST, 2010, p.15).
Os diversos contextos de opressão vivenciados pelas mulheres ao longo da história
instituíram o “fazer pensar” o Movimento Feminista e sua amplitude de questões a partir do
campo, considerando a mutualidade de impacto existente entre o Feminismo e o Direito.
Diante disto, Dalton (1987) aduz que:

Estar engajada no pensamento jurídico feminista é ser uma feminista


que localiza tanto seu inquérito, quanto sua atividade, em relação ao
sistema jurídico." O sistema jurídico deve ser aqui entendido de
forma ampla, como incluindo as regras que constituem o corpo
formal do direito; os discursos em que essas regras estão situadas, e
através dos quais são articuladas e elaboradas; as instituições, por
meio das quais são constantemente subvertidas e modificadas em
sua implementação e administração; as instituições especificamente
de ensino através das quais a cultura jurídica é transmitida de
geração em geração, e os diversos atores cuja participação, como
advogados, clientes, agentes da lei, juízes, jurados, árbitros,
mediadores, assistentes sociais, legisladores, burocratas,
professores ou estudantes, sustenta o empreendimento. (DALTON,
1987, p. 32). (Tradução nossa)

Nessa perspectiva de se encontrar na prática de um Movimento Feminista que


questiona o Direito e ao mesmo tempo define as suas articulações em relação ao que se
discute, surgiram três teorias s feministas, pelas quais se desmembraram as mais diversas
vertentes: o Feminismo Liberal, o Feminismo Pós-Moderno e o Feminismo Radical, que se
distinguem exatamente a partir dos seus diversos apontamentos sobre a raiz que levou as
mulheres à serem submetidas à opressão, assim como articula diferentes formas de confrontar
com essas bases opressoras.
O Feminismo Liberal se baseia na ideia de que as mulheres podem combater a cultura
conservadora e a injustiça das leis de forma gradativa, conforme se conquiste uma maior
participação no espaço político e econômico. A partir disso, se ascende no meio social o fato
de que as mulheres são tão capazes quanto os homens, disseminando progressivamente na
consciência coletiva a igualdade de gênero e, consequentemente, de direitos. Ganhando
representatividade, as mulheres podem promover reformas políticas e legais capazes de
amenizar a opressão.
O Feminismo Pós-Moderno (ou Feminismo Interseccional) defende que a opressão das
mulheres está diretamente ligada à segregação sofrida por outras minorias com base em sua
orientação sexual, raça e classe social, vertente esta que acaba por se alastrar entre o
Feminismo Lésbico, o Transfeminismo e o Feminismo Negro.
Já o Feminismo Radical defende que a raiz da pressão feminina é o patriarcado, que o
homem é opressor por natureza. Sendo privilegiado na sociedade, é tido como o único
indivíduo a quem o Direito se destina, de modo que as instituições legitimam a subordinação
feminina esse único sujeito favorecido e dominante nas relações.
Conceituados brevemente os tipos de correntes feministas, o que se observa é que o
Direito é visto de diferentes formas por essas teorias, ora como meio através do qual se pode
levar uma nova linguagem à sociedade, ora como meio de opressão. Por exemplo, afirma
Rabenhorst (2010):

Na perspectiva do feminismo liberal, a história do direito está aí para


mostrar, através de inúmeros exemplos, que a linguagem dos direitos está
aberta às demandas das mulheres. As feministas radicais, em contrapartida,
lançam suspeitas sobre essa trajetória de expansão dos geração para geração,
e os vários atores cuja participação, como advogados, clientes, funcionários,
juízes, jurados, árbitros, mediadores, assistentes sociais, legisladores,
burocratas, professores e estudantes. Os direitos das mulheres e denunciam
o compromisso intrínseco do direito com valores masculinos.
(RABENHORST, 2010, p. 20):

Assim, ressalta-se a Teoria Feminista Liberal por considerar que a luta das mulheres já
protagonizou conquistas significativas até aqui, tomando por articulação pressionar a
sistemática a se pensar nas necessidades do universo feminino a partir do momento que ele
formaliza a igualdade de direitos políticos, abrange as possibilidades de violência sexual e
reconhece as mulheres como sendo um gênero perseguido pelo machismo.
Dessa forma, resta percebível, e sentido, o fato de que hoje já não mais se observa tão
latente a figura da mulher cujo destino se restringia ao casamento, aliando diretamente o
sucesso a conseguir casar-se com um “cidadão de bem”, condicionando a vida e qualquer
mérito ao “pai de família”, abrindo mão da própria liberdade e autonomia. E é certo que o ato
das lutas feministas pensarem em reformas s foi determinante para essa libertação gradativa.
As Teorias Feministas propõem pensar o campo como ciência social que tem por
obrigação analisar o fenômeno da opressão sofrida pelas mulheres e dispor sobre os direitos a
elas referentes. Conforme estabelece Sousa (2015):

A luta das mulheres é, tem de ser, uma luta que se trava no campo do direito:
luta pelo reconhecimento da igualdade e da diferença, e dos arquétipos
políticos e métodos legais através dos quais a igualdade e a diferença se irão
acomodar. Luta por um direito novo, pensado de uma perspectiva nova, que
inclui as diferenças sem as sublinhar, e que não reforça as desigualdades.
Um direito que resolva o dilema da diferença. (SOUSA, 2015, p.13).

Desse modo, a crítica feminista propõe novas possibilidades de se enxergar o Direito,


difundindo no campo o ideal da liberdade que une todas as correntes feministas. Com isso,
Rabenhorst (2010) destaca que o principal desafio que a prática intelectual feminista
estabelece no meio social é o de percebermos o direito não apenas como norma, mas além: a
partir das relações sociais.

4 FEMINISMO NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

Assim, o Movimento Feminista, com a força da luta das mulheres, vem agindo na
história como criador de um discurso que transcende os meros papéis, as normas positivadas,
subvertendo a estrutura violenta que se tem através da propagação de uma linguagem tal que
alcança o direito brasileiro. A partir disso, provoca-o a promover o ativismo na medida em
que pressiona reformas no corpo que sejam capazes de perceber a linguagem de busca pela
igualdade de gênero trazida pelo Feminismo.
Destaca-se, nessa perspectiva de ativismo, destaca-se, por exemplo, a articulação
feminista antes da Constituição de 1988 para que fosse fundado um órgão que representasse
as mulheres perante o Governo Federal, sendo, assim, instituído o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher a partir da Lei 7.353/85. Formalizou-se, no art. 1º a intenção da luta para a
criação daquele órgão, que era a finalidade de promover, em âmbito nacional, políticas que
visem eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e de
igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e
culturais do país.
Ainda, se evidencia o novo tratamento dado aos crimes de violência sexual, que a
partir da Lei 12.015/09 altera o Código Penal e a Lei 8.072/90, que trata dos crimes
hediondos, de modo que o que antes era tido como crime contra os costumes passou a ser
considerado crimes contra a dignidade sexual. Eliminando-se os “bons costumes” e
enfatizando a dignidade das pessoas, não mais se abre margem para que o enquadramento no
crime considerasse o comportamento da vítima através dos termos conservadores com
“virgem” ou “mulher honestas”, excluindo da proteção mulheres não enquadradas em uma
determinada “moralidade” (FRANCO, 2012).
A criação da Lei do Feminicídio (Lei 13.114/15), que tipifica a perseguição e morte
intencional de pessoas do sexo feminino como homicídio qualificado e o inclui no rol de
crimes hediondos também pode ser considerado como um avanço da luta feminista através do
questionamento da sistemática.
Conforme o exposto, é certo que grandes nomes alavancaram o Movimento Feminista
no Brasil e tornaram reais a possibilidade de se pensar em transformar a sociedade a partir das
bases feministas. Nesse sentido, destaque se dá às escritoras feministas como Rose Marie
Muraro (1930-2014) que, afirmando que só o impossível cria (BOFF, 2016, apud MURARO
1999) e denunciando a pressão cultural, foi a pioneira a produzir as bases feministas no Brasil.
Rose possuía um sentimento do mundo agudíssimo: sofria com os dramas globais e celebrava
os poucos avanços” (BOFF, 2016).
Outra militante feminista brasileira de relevo que engrenou em produções sobre a
violência de gênero e patriarcado foi Heleieth Safiotti (1934–2010), que estabeleceu teorias
que expandiram as possiblidades para o desenvolvimento de uma sociedade igualitária e livre.
Sendo vozes fortes e resilientes, pode-se dizer que as escritoras feministas e suas
produções realizaram a Literatura Menor proposta por Kafka e interpretada por Gilles
Deleuze e Felix Guattary (1977), que representa em sua essência uma espécie de
desterritorialização cultural no âmbito da literatura maior - as leis e os costumes. Quebrando
as amarras e fazendo expandir os territórios da linguagem, acabaram abrindo espaço para as
questões que envolvem as mulheres, minorias na amplitude dos direitos do ser humano em
sociedade.
Diante do explicitado é evidente que as mulheres, organizadas, provocaram e
provocam uma profunda mudança nas relações de gênero presentes no nosso meio social, de
modo a desafiar o Direito a respeito da ilusão prática da sua sistemática. O Movimento
Feminista dispõe-se a “fazer da língua um salto, um diálogo com “o fora” driblando os
códigos, embaralhando, dificultando, confundindo para pensar (PETRONILIO, 2012) e, com
isso, leva o campo a pensar em novas possibilidades, paradigmas legais e prestativos em seu
desempenho.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o quanto foi exposto, é evidente perceber que o Movimento Feminista
tem sido, no decorrer dos tempos, o protagonista das experiências mais libertas das mulheres.
O direito de votar e ser votada, o direito a ser reconhecida como sujeito que sofre
desigualdade - e, diante disso, tem um suporte legal que, mesmo que vagaroso, propague a
linguagem que leve à reflexão de que não é normal, em termos humanos e não sociais, que
sejamos perseguidas até a morte - o direito à saúde reprodutiva, entre outros, são fruto de uma
incessante batalha de mulheres desconstruídas que não aceitam a degradação à que estão
submetidas.
A história das conquistas das mulheres mostra através dos exemplos discorridos
durante o estudo que o Direito está aberto às demandas das mulheres, ainda que leve um
tempo para que o objeto de luta seja sentido de forma factual. Vimos que o voto foi um
emancipador feminino e a luta por ele não findou em 1932, mas em 1965 quando as mulheres
lutaram até que todas as restrições fossem eliminadas do Código Eleitoral.
Para isso, que as instituições ousem, pelo bem da humanidade, falar em Feminismo e
incentivar produções teóricas a fim de proclamar o ideal do movimento, pois acredito no meio
acadêmico, na escrita, como uma forma de erradicar o pus dos golpes da opressão,
conscientizando gradativamente o operador do direito a se notar como sujeito que pode, de
fato, fazer justiça.
É certo que somos submetidas cotidianamente a experiências de perversão e que a
lição que o Feminismo nos deixa é a de que nenhuma vitória é permanente e todos os nossos
direitos são, assim, tão bons enquanto os mantivermos. E não podem nos fazer acreditar que
não é possível mudar o mundo, porque as Feministas das décadas passadas viram isso
acontecer, e hoje nós somos possuidoras de direitos porque elas mostraram que nós somos.

REFERÊNCIAS

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