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Militância Feminina na Luta Armada Brasileira (1968-1973)

Maria Cláudia Badan Ribeiro

Falar da atuação pública das mulheres no cenário nacional brasileiro implica em entender
sua atuação nos movimentos sociais, neste caso em especial sua participação no seio da
esquerda brasileira. Nas últimas décadas do século XX as mulheres reapareceram na cena
pública como sujeitos sociais, históricos e econômicos. Em menos de trinta anos nos tornamos a
metade da população economicamente ativa mundial o que nos confere um papel cada vez mais
determinante nas estruturas políticas, sociais e econômicas. Como afirma Muraro, “a entrada da
mulher como sujeito maior na história começa a transformar a estrutura da força de trabalho dos
países, na prática, bem como a administração do Estado e do mercado econômico1. Sua
participação cada vez mais freqüente na esfera pública, estando presente nos mais diversos
movimentos, em organizações do governo, nos movimentos de luta pela reforma agrária têm
mudado o perfil de sua atuação.
Só para termos uma extensão desse fenômeno pesquisas recentes realizadas pelo IBGE
indicam que as mulheres ocupam 41% da força de trabalho. Além desse dado outra mudança
significativa apontada por Maria Cristina Bruschini tem sido o acentuado crescimento dos
arranjos familiares chefiados por mulheres2 os quais, em 2005, chegam a 30,6% do total das
famílias brasileiras residentes em domicílios particulares.
A situação enfrentada hoje pelas mulheres é fruto de toda a luta que foi empreendida nas
décadas de 1960 e 70, pelos mais variados grupos de mulheres, clubes de mães, movimento
feminino pela anistia3, etc.
Movimentos de mulheres não são recentes no Brasil, ainda que nos anos anteriores à
década de 60, eles tenham sido marcados por atuações muitas vezes episódicas, sem uma
conscientização mais profunda sobre os direitos da mulher na sociedade. Muitas vezes
acompanhando seus maridos, ou ligadas ao PCB, esses movimentos, apesar de alguns avanços,
eram muito tímidos e ainda apresentavam em sua maioria, o peso das concepções tradicionais
que tinham relação estreita com a sexualidade masculina, e que considerava a figura feminina

1
Muraro, Rose; Puppin, Andrea. Mulher, Gênero e Sociedade (org.) Rio de Janeiro: Relume
-Dumará: FAPERJ, 2001p p. 9).
2
BRUSCHINI, M. Gênero no Brasil nos últimos dez anos. In. Colóquio Internacional sobre Mercado de Trabalho
e Gênero. Fundação Carlos Chagas, São Paulo. Abril de 2007. Consultar site
[http://www.fcc.org.br/seminário.html]
3
[http://www.desaparecidospoliticos.org.br/anistia/mulheres.html]

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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como sendo o sexo frágil. Não havia um programa ou discurso específico sobre a mulher que
definia sua participação.
Campanhas como as realizadas pelas sufragistas e campanhas de mulheres pela paz
mundial, esvaziaram muitas vezes o conteúdo político de suas propostas, quando elas ainda
militavam dentro de um espaço delimitado como essencialmente feminino. A época que
antecede a entrada da mulher no mercado de trabalho está muito marcada por essa concepção,
que aos poucos e de forma bastante difícil vem sendo rompida pela sociedade atual.
É justamente nos setores radicalizados do regime ditatorial dos anos 70 que buscamos
encontrar novas formas de atuação dessas mulheres quando elas realmente assumem – não sem
ambigüidades – seu papel político, num caminho contrário à afirmação, de que “sempre foi mais
difícil converter mulheres em soldados”, concepção em que o conservadorismo social está
ancorado.
É importante destacar também como afirmou Marco Aurélio Garcia que a emergência do
feminismo no Brasil também é produto da derrota das experiências de militância revolucionária,
“na qual as mulheres tanto investiram e da qual muitas tiraram suas lições”. Como Garcia
afirma, “ não é ocasional que alguns dos grupos que mais contribuíram para a elaboração e
difusão do pensamento feminista dos anos 70/80 no Brasil-Nós Mulheres, Brasil Mulher ou o
Coletivo Feminista de Paris-tivessem uma forte participação de(ex)militantes de organizações
de esquerda”.
A emergência do feminismo na América Latina dos anos 70 coincide, com a vigência
dos regimes autoritários e foi durante esse período que se realizou a atuação das mulheres no
interior dos grupos armados.
Na origem desses grupos, e após o fim do regime militar como afirmou Elizabeth Lobo
encontravam-se misturadas “a resistência ao regime autoritário, a busca de uma nova utopia, a
experiência do exílio, as práticas políticas no masculino e a divisão entre vida privada e vida
política4”.
Foi então no bojo desse movimento/experiência de luta armada que o feminismo
construiu um diálogo (auto) crítico com o que haviam sido as esquerdas nos anos 60/70,
ajudando a encontrar respostas para sua crise. Essas foram mulheres ao contrário do que possa
parecer que se arrogaram o direito de estarem em posição de igualdade nos movimentos
políticos com os dirigentes homens, defendendo com vigor suas convicções ao contrário do que
se convencionou dizer que estavam sob a influência de seus maridos militantes, que

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Lobo, E. ANPOCS. O Gênero da representação, AEL-Textos- (Fundo Elisabeth Lobo).

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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participaram da luta política essencialmente para acompanhá-los ou de que seu engajamento


fora conseqüência de frustrações emocionais ou problemas de ordem familiar5.
Falar da história de mulheres no Brasil nesse sentido é falar também de suas lutas, de
seus avanços e de suas dificuldades. A chegada da mulher à esfera pública e aos mais diferentes
setores da sociedade, até então interditos, não se realizou sem custos.
A entrada definitiva da mulher no mercado de trabalho que se iniciou no processo de
industrialização brasileira nos primórdios do século XX e foi acompanhada já naquele momento
por inúmeros movimentos femininos − que além de exigir melhores condições de higiene e
redução da jornada de trabalho, lutaram pela conquista de reconhecimento e de
representatividade da mulher, sendo também as responsáveis pela produção de uma farta
documentação de protesto6 (jornais e revistas) −, desenvolveu-se não sem contradições em
nosso século, originando novas problemáticas, que ainda estão associadas ao pensamento
tradicional arraigado. A discussão em torno do aborto, das cotas para mulheres no legislativo7,
do assédio sexual em ambiente de trabalho8, bem como a violência doméstica9 constituem-se
ainda em assuntos que mobilizam grandes debates entre Estado e sociedade civil.
Ao abordar a experiência de militantes mulheres na luta armada, especialmente da ALN
(Ação Libertadora Nacional) – organização que se constituiu no maior grupo guerrilheiro da
época – pretendemos levantar questões que estavam presentes nesse tipo de experiência,
especialmente investigar como a participação no grupo foi influenciada e sentida por essas
mulheres. Ainda que as demandas do movimento feminista propriamente dito, não tenham se
apresentado naquela época, como parte integrante-conceitual de sua participação encontramos
nessa experiência os germes da liberação de mulheres.
Necessário se torna por isso um estudo sobre o papel da mulher na luta contra a ditadura
militar brasileira para que se possa analisar o papel de protagonista no qual se prestou pouca
atenção. Sem desconsiderar os esforços que ao longo desses anos, e em especial, após o fim da
ditadura militar, foram realizados para aprofundar ainda mais os estudos da participação
feminina nos movimentos sociais e políticos, como por exemplo, os livros Memórias do Exílio
organizado por Albertina O. Costa, ou Mulheres, Militância e Memória de Elizabeth Xavier
Pereira, A resistência da Mulher à Ditadura Militar no Brasil, de Ana Maria Colling até relatos
conseguidos pela mediação jornalística como Mulheres que foram à Luta Armada de Luiz

5
COLLING, Ana Maria. A Resistência das Mulheres à Ditadura Militar no Brasil. Record/Rosa dos
Tempos, 1997.
6
Consultar site [http://www.ifch.unicamp.br/ael/website-ael_publicacoes/cad-8/Artigo-2-p69.pdf]
7
Consultar [wícia_Rios_Garcia_06.pdf]
8
MINC, Carlos. Assédio Sexual. In. Muraro, Rose; Puppin, Andrea. Mulher, Gênero e Sociedade (org.) Rio de
Janeiro: Relume-Dumará: FAPERJ, 2001p. 67 e segs.
9
Consultar [http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-006/2006/Lei/L11340.htm].

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Maklouf, incluindo-se a pesquisa de Ruth Lima10, há muito ainda a se fazer para resgatar os
depoimentos e experiências que são mantidos em silêncio por elas próprias e cujos itinerários de
vida e luta ainda são desconhecidos pela maior parte da sociedade brasileira. Como afirmou
Maria Amélia Teles, “a constante dos relatos históricos, no entanto, têm sido a omissão ou a
diluição da presença feminina11”. Não podemos fazer uma idéia exata do que foi o regime
militar no Brasil se desconsiderarmos a presença feminina nessa luta.
A história brasileira está também recheada de exemplos de mulheres, que movidas por
“patriotismo” pegaram em armas. È notável nesse sentido a ênfase que ganharam os nomes de
Maria Quitéria ou de Anita Garibaldi, embora historicamente o conteúdo político de suas lutas
tenha sido em muito esvaziado ao longo da história12.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) também estimulou a formação de grupo de
mulheres mobilizando-as politicamente, com a diferença, entretanto, de que sua atuação
deveria estar de acordo com as diretrizes do partido. Em 1934 formou-se a União Feminina,
ligada ao PCB que pretendia acabar com a ditadura varguista e implantar um governo popular.
Colocada na clandestinidade e tendo a maior parte de suas militantes presas ou mortas o grupo
teve curta duração13.
Embora já dando passos consideráveis em direção à sua liberação, a participação das
mulheres na política brasileira, realizou-se através de muitos avanços e retrocessos. Em um
célebre texto de Elisabeth Lobo, a autora e militante enfrentava questões básicas em relação à
participação política feminina, colocando em discussão os sentidos que essa participação
adquiriu no Brasil. Para a autora, a causa da inatividade política da mulher está estreitamente
ligada à sociedade capitalista, na medida em que ela, ao assegurar a “unidade da estrutura
familiar” e a “função doméstica de reprodução feminina contribui para a sua despolitização”.
Lobo afirma ainda que esse tipo de conservadorismo acaba mobilizando-a sempre em torno de
valores domésticos, perpetuados também pela esquerda brasileira, quando a mulher aparece
como a guardiã dos valores pacíficos e numa posição defensiva que reforça ainda mais na
10
LIMA, Ruth. Nunca é tarde para saber: histórias de vida, histórias da guerrilha. Tese de Doutorado, História
Econômica (USP), 1998.
11
Teles, Maria Amélia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993,
p. 65
12
Cf. PRADO, Maria Lígia. Em busca da participação das mulheres nas lutas pela independência
política da América Latina. In. Política e Cultura. Revista Brasileira de História ANPUH, vol. 12,
(n 23/24, p. 77-90.).
13
A prática do Partido Comunista Brasileiro no cenário político nacional se caracterizou por um trabalho de
massas, e por uma forte atuação de seus militantes em diversos setores sociais com o objetivo de aumentar seu
alcance junto à sociedade. Dessa forma, foram várias as organizações camponesas, estudantis, militares e femininas
que se constituíram sob a hegemonia do PCB. No caso das organizações femininas, podemos afirmar que elas
fizeram parte da estrutura do PCB desde a sua fundação. Entre os próprios grupos que vêm a formar o partido em
1922 encontramos a Liga Comunista Feminina. Na década de 30, o trabalho do PCB junto às mulheres se
desenvolveu a partir da União Feminina do Brasil e, em 1949, foi formada a Federação das Mulheres do Brasil,
interditada em maio de 1958. Em março do ano seguinte, foi criada a Liga Feminina do Estado da Guanabara.

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mulher a rejeição de toda forma de violência. Nestes casos as mulheres, como ela diz, acabam
desempenhando um papel de apoio nas lutas políticas, e não de legítimos sujeitos políticos.
Como ela afirmou, “o apolitiscismo das mulheres, particularmente, é uma arma contra a
mulher porque neutraliza seu potencial revolucionário14”.
A partir da década de 60 o ingresso dessas mulheres na militância, especialmente
durante o período da ditadura, participando dos movimentos estudantis e integrando os grupos
armados, ganhou contornos mais definitivos que fundaram as bases de sua atuação posterior.
Ainda que de certa forma considerada a posteriori uma emancipação sui-generis15, porque
assumem um discurso e ação políticos próprios do mundo dos homens, sua participação
mostra-se de certa forma como um ganho de qualidade em relação à postura feminina na arena
política, pois, sua conduta desafiava de maneira mais incisiva o código de gênero da época.
Não havia, no entanto, ocorrido transformações capazes de nos fazer sentir a problemática da
mulher como a sentimos nos dias de hoje. A emancipação da mulher era parte da emancipação
humana universal, estava assentada na superação da sociedade capitalista e as abordagens
teóricas em relação à sua presença e ao seu papel nos movimentos socialistas e comunistas,
estavam ligadas à libertação do proletariado.
No interior da esquerda as análises sobre a opressão feminina realizadas no final do
século XIX e início do século XX, ainda se mantinham muito limitadas ou tratavam da
questão feminina de forma genérica ou consideravelmente abstrata. Nos escritos de Marx, por
exemplo, como a Ideologia Alemã, nota-se que a questão da mulher no interior do marxismo a
subsumia na análise da família e de sua evolução histórica.
Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, destacava o
processo evolutivo da propriedade privada e do contraste entre sociedades sem classes e
sociedades de classes, demonstrando que a propriedade privada destruiu a ordem tribal
igualitária dos antigos clãs para criar as famílias como unidades econômicas, com a propriedade
desigual de bens e de heranças. Para Engels a inexistência da propriedade privada tornava de
igual valor social o trabalho de homens e mulheres, dedicados à subsistência do grupo. Por isso,
a propriedade privada ao transformar as relações entre homens e mulheres dentro da família, que
passaram a trabalhar para indivíduos e não mais para a família comunal, alterou as relações
políticas e econômicas na sociedade. A mulher que antes trabalhava para a sociedade ganhou o
espaço privado e passou conseqüentemente a trabalhar para seus maridos. Sensível à questão da

14
LOBO, E. ANPOCS. O Gênero da representação, AEL-Textos- (Fundo Elisabeth Lobo).
15
GARCIA, Marco Aurélio. O gênero na militância. In Cadernos Pagu. Gênero, narrativas, memórias, v.8/9, 1997, p. 338.
Conferir páginas segs.

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exploração feminina, Engels, no entanto, associou a situação das mulheres, em escala menor, ao
grande problema decorrente da desigualdade de classes.

Em todos os trabalhos de Lênin que datam do fim do século XIX e começos do século
XX houve uma enorme atenção à análise da situação humilhante da mulher. O dirigente
comunista abordou de maneira clara o trabalho da mulher em domicílio em sua obra O
capitalismo e o trabalho da mulher, mostrando sua brutal exploração, as condições anti-
higiênicas de trabalho, a incorporação de crianças nas fábricas. Ainda no Projeto de Programa
do partido Lênin manifestou-se a favor da concessão do voto à mulher. No plano teórico, no
entanto, vinculou o problema feminino como parte de um problema social mais geral. Em a
Mulher Operária o dirigente o situou como parte integrante da luta proletária. Segundo Lênin,
um Estado operário que passe ao socialismo deverá cumprir uma dupla tarefa no que concerne à
condição da mulher. Retirá-la de um estado de inferioridade em que foi posta em relação ao
homem. Como afirmou:

(...) a mulher não obstante todas as leis continua como escrava de casa. É oprimida, é
sufocada, embrutecida, humilhada pelo pequeno trabalho doméstico que a prende à cozinha e aos
filhos e que consome suas forças num trabalho barbaramente improdutivo, mesquinho,
enervante, que embrutece e oprime16.

No entanto, a proposta de Lênin não emana de uma exigência concreta feita pela própria
mulher, mas é fruto da decisão da política geral, deriva, portanto, da decisão que outros tomam
por ela. É, portanto, orquestrada do alto. O problema feminino em Lênin fica limitado à
natureza, às funções, à realidade do partido, à específica político-organizativa, criados como
instrumento para a derrota da sociedade capitalista.

Na concepção da teórica da teórica e ativista política Alexandra Kollontai a mulher moderna é


definida como filha do sistema capitalista. Para ela o sistema capitalista obrigou a mulher a se
adaptar às novas condições criadas pela realidade e à medida que se experimentavam
transformações das condições econômicas e a evolução das relações de produção, a mulher
também experimentava uma mudança de aspecto psicológico.

Defrontando-se com o problema de adaptação a essas novas condições, uma parcela de


mulheres teve que deixar de lado todo um equipamento moral herdado de suas avós, para
percorrer um novo caminho, deixando de lado as virtudes que lhes foram incutidas durante
séculos, como a passividade, a submissão e a doçura, para colocarem-se do lado dos homens na
luta pela vida, pelo trabalho e por sua individualidade.

16
LENIN. L’emancipazione della donna. Roma, ed. Riuniti, 1970, p. 47-48

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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Consideradas por Kollontai como mulheres de “novo tipo”, essas mulheres


caracterizaram-se por dar um novo ritmo à sua vida, sendo também representantes de uma nova
época. Eram mulheres segundo a ativista que romperam dogmas que as escravizavam, lutando
também contra sentimentos atávicos que as prendiam ao passado, impedindo-as de se
libertarem. Para isso, a reeducação da psicologia da mulher, não poderia ser realizada sem luta.
O socialismo teria como tarefa, portanto, harmonizar uma nova moral sexual –bastante
diferenciada da moral sexual burguesa – com as exigências da vanguarda da humanidade, ou
seja, a conquista do poder pela classe operária.
A ideologia de um grupo para Kollontai, no entanto, e a sua conseqüente moral sexual se
elaborariam durante o próprio processo de luta contra as forças sociais oponentes, mantendo-se
de certa forma, não necessariamente dependentes exclusivamente do sucesso da revolução, mas
se daria junto dela com a mudança no nível das idéias e dos comportamentos.
Como ela afirmou:
Devemos recordar que o código da moral sexual em harmonia com as tarefas
fundamentais da classe, pode converter-se em poderoso instrumento que reforce a posição de
combate da classe operária. Por que não utilizar este instrumento no interesse da classe operária
na sua luta para o estabelecimento do regime socialista? (...) 17

A idéia era de que a vitória dos princípios e ideais socialistas no domínio da política e da
economia tinha necessariamente que ser a causadora de uma revolução nas idéias sobre a
concepção do mundo, nos sentimentos, na forma espiritual da humanidade trabalhadora. E cabia
também a essas mulheres de “novo tipo” alargarem essas conquistas na sociedade.
Nos escritos de Kollontai fica patente que o sistema capitalista engendraria uma
mudança de comportamento feminino, levando essas mulheres trabalhadoras à luta pela sua
sobrevivência e pelos seus direitos, constituindo-se numa parcela crítica do sistema.

A Mulher e a Política

Essa concepção materialista da luta feminina foi adotada em grande parte pela esquerda
brasileira. Nesse sentido, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) não deixou de levantar a
questão da participação feminina em seus quadros, embora ela fosse um prolongamento das suas
lutas de libertação. O feminismo era algo ainda muito distante no Brasil e esteve vinculado à
imagem de um movimento de cunho liberal ou ficou conhecido pela esquerda a partir do final
dos anos 1960 principalmente, como um movimento sexista e pequeno-burguês.

17
KOLLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. São Paulo: Global Editora, 1978, p. 59.

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Mesmo no interior dos grupos armados perpetuou-se um forte moralismo. Essa parcela do
movimento de esquerda instrumentalizando as reivindicações femininas para questões mais
pragmáticas e ligadas à luta imediata, não reconheceram ainda naquele período a diversidade de
experiências e vivências de seus quadros, seja na ordem do sexual ou do subjetivo, não
considerando, ou até mesmo fazendo “vista grossa” às necessidades específicas da mulher,
quanto à questão da maternidade durante a luta armada, à questão do aborto, a
homossexualidade no interior de seus grupos, entre outras questões. Assuntos esses, que seriam
debatidos posteriormente, não necessariamente ligados às concepções de esquerda, mas que
utilizaram algumas de suas definições teóricas conquistadas ao longo dos anos de luta, como
uma de suas bases.

Consideradas como propostas desviantes naquele momento, algumas dessas questões


constituíam-se para os guerrilheiros, em questionamentos de ordem secundária, que não
contribuiriam diretamente para o triunfo da revolução. Em épocas de luta ou no processo de
avanço da revolução, a classe formada pelos revolucionários não podia se deixar levar por
outros sentimentos. Durante aquelas jornadas era inoportuno desperdiçar as forças psíquicas dos
membros da coletividade.

Apesar da tônica de Carlos Marighella que em seu Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano18,


destacava como tendo igualdade de importância todas as tarefas no exército guerrilheiro e
defendendo a igualdade entre homens e mulheres nesses grupos, na prática verificava-se uma
notoriedade das mulheres em tarefas e espaços demarcadamente considerados como de
“domínio feminino” ou de menores graus de complexidade como fazer as despesas da casa,
cozinhar, realizar trabalhos de enfermagem, falsificação, levantamento de ações, espionagem,
transporte, sabotagem, informação, etc. Às mulheres foram delegados os serviços que exigiam
destreza, minuciosidade e paciência, tarefas consideradas muitas vezes como repetitivas e pouco
criativas. Sua própria condição de mulher, que geralmente era menos suspeita, levou-os a
utilizar seus atributos físicos na realização das ações, ou na sua utilização como fachada dentro
dos aparelhos, para desviar as suspeitas dos policiais. Ter uma mulher em casa, e em certos
momentos até crianças ou pessoas de mais idade, dava um aspecto de “normalidade”.

Isso não significa que a presença da mulher foi descartada da revolução. A intenção de
integrá-la à luta que vinha se desenhando foi reforçada por Che Guevara, quando o guerrilheiro
afirmou em A Guerra de Guerrilhas:

(...) O papel que pode desempenhar a mulher em todo o desenvolvimento de um processo


revolucionário é de extraordinária importância. É bom realçá-lo, pois em todos os nossos países,

18
Fonte: BNM, Anexo n°5338. Arquivo Edgard Leuenroth. Campinas-SP.

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de mentalidade colonial, há uma certa subestimação para com ela, que chega a se transformar em
uma verdadeira discriminação. A mulher é capaz de realizar os trabalhos mais difíceis, de
combater ao lado dos homens e não cria, como se pretende, conflitos de tipo sexual na tropa. Na
rígida vida de combatente, a mulher é uma companheira que traz as qualidades próprias de seu
sexo, mas que pode trabalhar o mesmo que o homem. Pode lutar, é mais fraca, mas não menos
resistente que o homem. Pode realizar toda a classe de trabalhos de combate que um homem
faça, e desempenhou, em alguns momentos de luta em Cuba, um papel relevante19.

No entanto, o documento continuava colocando a mulher nas tarefas que desempenhava


tradicionalmente, escalando-a para tarefas de menor risco como se dedicar à comunicação e
transportar até objetos e balas debaixo de suas saias.

(...) é muito gratificante ao soldado submetido às duríssimas condições de vida poder


contar com uma comida variada, com gosto de algo (um dos grandes suplícios da guerra era
comer um grude pegajoso e frio, totalmente insosso). A cozinheira pode melhorar muito a
alimentação, além disto, é mais fácil mantê-la em sua tarefa doméstica, pois um dos problemas
que se defrontaram as guerrilhas é que todos os trabalhos de índole civil são depreciados pelos
que o realizam e tratam de abandonar estas tarefas e ingressar nas forças ativamente
combatentes20.

Embora as militantes brasileiras naquele momento não possuíssem ainda um


amadurecimento político sobre esse conjunto de fatores, é inegável que a luta armada em
particular, constituiu-se por isso num aprendizado para a mulher. Como afirma Maria Amélia
Teles, “na guerrilha também se aprende o feminismo21”.
Socializadas segundo um modelo de mulher para o qual a realização pessoal estava
associada ao casamento e à maternidade, muitas mulheres das camadas médias brasileiras
também começavam a partir dos anos 1960 a tomar contato com uma nova representação de
feminilidade que se esboçava nos grandes centros urbanos. Esse novo padrão estimulava o
ingresso em cursos universitários e a profissionalização.
O ambiente “esquerdizante” que predominava entre alunos de muitas universidades
constituiu-se ainda mais para essas mulheres num novo espaço de transgressão e, se não levou
ao ingresso em organizações políticas, originou um patrimônio político valioso na medida em
que elas faziam oposição ao regime militar. A entrada em organizações políticas implicava, por
si só, uma ruptura com os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres, dado que a política
era identificada como uma atividade essencialmente masculina. Delineava-se uma postura que
colocava em xeque todo um conjunto de valores muito arraigados na sociedade como um todo.
Sem dúvida nos estragos produzidos pelo regime militar se encontrava também a
rivalidade em relação à atividade política feminina. Pesava sobre ela e sobre sua participação

19
GUEVARA, Ernesto Che. O Papel da mulher. In. A Guerra de Guerrilhas: Edições Populares, 1982, p. 78-79.
20
Idem, ibidem, p. 79-80.
21
TELES, Maria Amélia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 70.

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política/pública uma específica marginalização e opressão seculares. Com relação às mulheres


havia uma motivação a mais para serem detidas, o fato de serem mães, mulheres ou filhas em
uma luta de oposição. Foram expostas por isso, a uma série de medidas punitivas como insultos,
torturas, estupros, e os mais diversos mecanismos de anulação, em que o castigo tinha uma
função exemplar. Essa atitude repressiva potencializada adquiriu tal conotação pelo fato dessas
mulheres – em contraste com os papéis de subordinação e passividade propagados pela
sociedade pelo regime militar – terem escolhido viver como protagonistas.
Ainda que entre as militantes da luta armada tenha havido muitas semelhanças verifica-
se também muitas diferenças entre elas que correspondem essencialmente às formas da luta
armada escolhidas por seu grupo, às diferenças relacionadas às formas de participação dessas
mulheres nessas organizações e às vivências que cada uma delas experimentou durante esse
período. Cada militante incorporou da sua maneira uma bagagem de experiências próprias sob
os mais diferentes aspectos.
É importante destacarmos também em que medida a participação dessas mulheres na luta
armada teve uma influência direta sobre seus filhos e sobre a adaptação da criança naquele
cotidiano de luta. Muitas dessas crianças conviveram também com o anonimato de seus pais,
com a falta de algumas referências básicas em sua formação, (a ausência paterna e /ou materna),
convivendo também com a perda, a solidão, o medo, enfrentando situações de preconceito social
em relação à escolha de seus progenitores, e tendo muitas vezes sofrido com torturas
psicológicas, presenciado ou sofrido as torturas físicas impingidas à sua família. Deixar filhos
com parentes e amigos, serem presas grávidas e terem os rebentos na prisão, raptados ou
entregues para a adoção, como ocorreu na Argentina, além da dificuldade para amamentar e
alimentar essas crianças impôs-se como uma dificuldade a mais22.
Apesar de um suposto discurso igualitário entre homens e mulheres na execução das
tarefas revolucionárias, realizado pelos próprios dirigentes nacionais desses grupos para a
formação do padrão guerrilheiro, a defesa da condição da mulher nos jornais, manifestos e
panfletos da ALN (Ação, O Guerrilheiro, Venceremos) permaneceu mais na ordem do discurso
do que de fato foi colocada em prática. As mulheres geralmente continuavam a ser tratada como
quadros da organização, e quando eram citadas em suas páginas, destacavam-se mais por atos de
bravura do que pelo valor de sua luta diária, o que demonstrava de maneira implícita que para
ter destaque no interior da organização deveria se igualar à militância masculina.

22
Cf. nesse sentido o Documentário 15 filhos de Marta Nehring, que como Eugênio Bucci descreve é “uma confissão de algo que
se refugiava no fundo mais escuro de cada um, no esconderijo mais difícil, mais dolorido” e que “vem à tela em frases sofridas,
frases que não queriam ser pronunciadas, mas precisam”. (BUCCI, E. Sobre 15 filhos. In. TELES, J. Mortos e Desaparecidos
Políticos: reparação ou impunidade? 2ª ed. São Paulo: Humanitas. FFLCH/USP, 2001, p. 260).

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Vê-se por isso que sua história ainda que indissociável de todo o movimento de oposição
revela sem dúvida caracteres peculiares de atuação. Todas essas questões tiveram um forte
impacto nas relações entre homens e mulheres que lutavam de armas na mão e mostram que a
vivência da luta armada foi distinta para homens e mulheres, porque distinta foi sua inserção,
suas tarefas, suas expectativas, e seu envolvimento político.
Ainda que a pesquisa não seja conclusiva procuramos reconstruir a trajetória dessas
militantes a partir dos processos da Justiça Militar, depoimentos, entrevistas e a partir da
consulta a Arquivos Públicos.
As questões abordadas em nossa pesquisa remetem principalmente ao perfil de suas
militantes, aos seus posicionamentos políticos e ideológicos no interior da organização, aos seus
temas de debates mais freqüentes e a uma preliminar concepção de feminismo presente nesse
grupo armado.

BIBLIOGRAFIA

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