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ELOGIOS À COLECTÂNEA —
AFRICANO QUEER

A Colectânea Africano Queer apresenta um incrível conjunto de textos que

documenta as lutas enfrentadas por africanx LGBTIQ em África e na diáspora.

Desde narrativas pessoais escritas por indivíduos, como o falecido defensor de

direitos humanos David Kato, até análises académicas e feministas aprofundadas

do discurso sobre orientação sexual e identidade de género, em contextos

tradicionais africanos. Esta publicação contém uma riqueza de conhecimento

que pode ser o início para várias discussões sobre africanx queer em todo o

mundo. Esperamos que este livro inspire mais pessoas de outras esferas da vida

a compartilharem as suas experiências LGBTI africanas.

Victor Mukasa, defensor de direitos humanos de Uganda e activista LGBTI

O Leitor Africano Queer é uma colecção de textos reveladores e fracturantes,

extraídos de todo o continente e diáspora Africana. Ekine e Abbas realizaram uma

obra enorme nesta compilação ao seleccionarem tantos colaboradores, que

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partilham corajosamente o significado do que é habitar o espaço precário, entre

os regimes heteronormativos patriarcais do passado e as possibilidades radicais,

anunciadas por tantas lutas políticas e pessoais pela liberdade sexual. Este livro

oferece testemunhos oportunos, uma sonoridade ousada e desafiadora de vozes

que subvertem o despotismo político-sexual que confia no medo normativo e no

ódio para resistir a formas radicais não conformadas de ser e de desfrutar da

sexualidade e do desejo. Primeira no género, esta colectânea oferece um

abrangente festival de materiais, incluindo prosa analítica e expressiva,

discussões teóricas, ficção erótica, periódicos, documentos e representações de

artistas visuais e performáticos, que trabalham para compartilharem as


realidades inquietantes das experiências, contradições e perspectivas políticas

da vida LGBTIQ. Esta obra é um recurso rico — um marco na auto-narração de

África por pessoas que não se calarão mais. Leitura essencial para o século XXI

Amina Mama, professora e directora, Mulheres e Estudos de Género, Universidade da

Califórnia, Davis

Há muito esperado, escrito entre esgotamentos e morte prematura, nas linhas da

frente do império e da violência de género, esta primeira colecção de queer

africanx não é uma leitura rápida ou fácil. A Colectânea – África Queer demonstra

que a urgência nunca foi desculpa para deixar alguém para trás: ao contrário dos
movimentos progressivamente simplificados do Norte global(isador), cria um

amplo espaço para assuntos impossíveis que comprometem a história única e

ampliam o movimento e as suas exigências, da transexualidade à dificuldade da


cura. Escrito por e para africanx, esta assembleia de líderes activistas

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emergentes, artistas e académicos do continente e suas diásporas assumem a

liderança na construção de comunidades sustentáveis e responsáveis, que os

não-africanx também devem aprender - ao ouvir o sinal de que os queer e

africanx trans sempre foram capazes de se auto representar.

Jin Haritaworn, PhD, transqueer do activista de cores, Universidade de York

(Toronto), autor de The Biopolitics of Mixing e coeditor da Queer Necropolítics.

Uma riqueza de vozes, uma multiplicidade de discursos, uma série de

argumentos. Queers de África, a escrever uns para os outros, teorizando-nos,

tornando-nos visíveis. Este é um livro pelo qual ansiamos.

Shailja Patel, premiada poeta e activista queniana, autora de Migritude

Lemos com demasiada frequência, sobre queers africanx vitimados em grosso

modo como receptores passivos da modernidade do Ocidente. Que grande

antídoto este livro proporciona a essa narrativa, com a sua diversidade de estilos,

histórias, memórias, teorias académicas, arte, fotografia e polémicas combativas

e petições tão ricas quanto a diversidade dos próprios africanos! Ouça a poesia,

sinta a paixão - amor, raiva, tristeza, orgulho - admire a beleza, crescer a partir
dos pontos de vista de africanx que falam directamente connosco sobre as suas

lutas para serem fiéis a si mesmos, as suas famílias, os seus amantes, as suas

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nações. Este corajoso volume deve ser uma leitura essencial para todxs activistas

de direitos humanos em toda a parte de África e na diáspora.

Marc Epprecht, autor de Hungochani, Heterosexual Africa? Sexuality and Social

Justice in Africa

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LEITOR AFRICANO QUEER
Sokari Ekine e Hakima Abbas

Tradução Diana Zeca

Edição Sílvia Jorge

Publicado por AIA - Arquivo de Identidade Angolano

Agosto de 2020

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ÍNDICE
ELOGIOS À COLECTÂNEA — AFRICANO QUEER .............................................................................................................................. 2
LEITOR AFRICANO QUEER .............................................................................................................................................................. 6
SOBRE @S COLABORADORX .......................................................................................................................................................... 9

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................................................. 20
1 - UM ENSAIO - David Kato Kisule................................................................................................................................................ 28
2 – EM IRMANDADE E SOLIDARIEDADE: TORNANDO QUEERS OS ESPAÇOS FEMINISTAS AFRICANOS - Awino Oketch ..... 34
3 – DISCURSOS PÓS-COLONIAIS SOBRE CLASSE E ACTIVISMO QUEER EM ÁFRICA - Lyn Ossome ........................................ 69
4 – DEFICIÊNCIA E DESEJO: A JORNADA DE UMA CINEASTA – HISTÓRIA DE VIDA – Shelley Barry....................................... 93
5 – MANIFESTO – DECLARAÇÃO LGBTI AFRICANA - .............................................................................................................. 100
6 – ORGULHOSAMENTE AFRICANX E TRANSGÉNEROS – RETRATOS COLABORATIVOS E HISTÓRIAS COM ACTIVISTAS
TRANS E INTERSEXO – Gabrielle Le Roux .................................................................................................................................... 104
7 – A MORDIDA DE VAMPIRO QUE ME TROUXE À VIDA – FICÇÃO – Nancy Lylac Warinda ................................................... 127
8 – CONTESTANDO NARRATIVAS DA ÁFRICA QUEER – Sokari Ekine....................................................................................... 142
9 – DECLARAÇÃO AFRICANA AO GOVERNO BRITÂNICO SOBRE CONDICIONALIDADE DA AJUDA - ..................................... 165
10 – DIRECTO AO ASSUNTO – FICÇÃO – Olamine Popoola ....................................................................................................... 170
11 – A FACE QUE EU AMO: FACES E FASES DE ZANELE MUHOLI – Raél Jero Salley................................................................ 189
12 – CASTER CORRE POR MIM – Ola Osaze ............................................................................................................................. 208
13 – PESADELO TRANSEXUAL: ACTIVISMO OU SUBJUGAÇÃO – Audrey Mbugua ................................................................. 215
14 – OS MEDIA, O TABLOIDE E O ESPECTÁCULO DA HOMOFOBIA DE UGANDA – Kenne Mwikya ...................................... 244
15 – A HISTÓRIA ÚNICA DA “HOMOFOBIA AFRICANA” É PERIGOSA PARA O ACTIVISMO LGBTI – Sibongile Ndashe ........ 264
16 – CONTANDO HISTÓRIAS – FICÇÃO – Happy Mwende Kinyili ............................................................................................... 280
17 – FACES E FASES – Zanele Muholi .......................................................................................................................................... 288
18 – REMOVIDX DUAS VEZES: INVISIBILIDADE AFRICANA NA TEORIA QUEER OCIDENTAL – Douglas Clarke ...................... 295
19 – ONGS E ACTIVISMO DE MULHERES QUEER EM NAIROBI – Kaitlin Dearham ................................................................. 314
20 – A LUTA PELOS DIREITOS INTERSEXO EM ÁFRICA – Julius Kaggwa ................................................................................... 341
21 – DECLARAÇÃO AFRICANA SOBRE ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÉNERO .................................................. 351
22 – FRONTEIRAS QUEERYING: UMA PERSPECTIVA ACTIVISTA AFRICANA – Bernedette Muthein ...................................... 355
23 – A LUTA LGBTIQ – QUEER COMO OUTRAS LUTAS EM ÁFRICA - Gathoni Blessol ........................................................... 371
24 – PEQUENO EIXO NA ENCRUZILHADA: UMA REFLEXÃO SOBRE SEXUALIDADES AFRICANAS E DIREITOS HUMANOS –
história de vida – Kagendo Murungi ............................................................................................................................................... 385
25 – A NATUREZA NÃO É RÍGIDA – POEMA – Kagendo Murungi ............................................................................................ 408
26 – SOBRE A LÓGICA PARADOXAL DAS INTERSECÇÕES: UMA LEITURA MATEMÁTICA DA REALIDADE DA
HOMOSSEXUALIDADE EM ÁFRICA – Charles Gueboguo............................................................................................................. 412
27 – OS FUNDAMENTOS DA VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA DO SENEGAL – Mouhamadou Tidiane Kassé .................................. 433
28 – QUÉNIA QUEER EM DIREITO E POLÍTICA – Keguro Macharia.......................................................................................... 451
29 – NHORONDO – MAWAZO YETU: RASTREANDO A VIDA DE VOLTA: NOSSAS REFLEXÕES – HISTÓRIA DE VIDA – Zandile
Makahamadze e Kagendo Murungi ................................................................................................................................................ 476
30 – DIGA AO SOL PARA NÃO BRILHAR – FICÇÃO – Diriye Osman........................................................................................... 500
31 – O QUE HÁ NUMA LETRA? – Valerie Mason-John ................................................................................................................ 507
32 – A ETIQUETA SE ENCAIXA? – Liesl Theron ........................................................................................................................... 519
33 – DIREITOS HUMANOS E IMPLICAÇÕES LEGAIS DO PROJECTO DE LEI DE PROIBIÇÃO DE CASAMENTO ENTRE PESSOAS
DO MESMO SEXO PARA TODOS OS CIDADÃOS NIGERIANOS, 2011 ....................................................................................... 538

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34 – DIREITOS HUMANOS E DESCONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA LÉSBICAS NEGRAS NA ÁFRICA DO SUL – Zethu
Matebeni ...................................................................................................................................................................................... 563
35 – ARQUIVO ÍNTIMO DE ZANELE MUHOLI: FOTOGRAFIA E VIDAS LÉSBICAS PÓS-APARTHEID – Kylie Thomas................ 581
36 – O RETRATO – FICÇÃO – Pamella Dlungwana ...................................................................................................................... 609
37 – VER ALÉM DOS BINÁRIOS COLONIAIS: DESFAZENDO O DISCURSO DA HOMOSSEXUALIDADE DO MALAWI – Jessie
Kabwila ......................................................................................................................................................................................... 617
38 – O CAMPO DE TREINO DE CONSTRUÇÃO DE MOVIMENTO PARA ACTIVISTAS QUEER DA ÁFRICA ORIENTAL: UM
EXPERIMENTO EM AMOR REVOLUCIONÁRIO – Jessica Horn .................................................................................................... 645
39 – O LUGAR MAIS FABULOSO DA TERRA – Um poema em muitas vozes ............................................................................... 671
40 – ONDAS CARMESINS – FICÇÃO - Hakima Abbas ............................................................................................................... 683
41 – CONVERSAS AFRICANAS SOBRE IDENTIDADE E CLASSIFICAÇÕES DO CID .................................................................. 705
42 – LEMBRA-TE DE MIM QUANDO EU ME FOR – Busisiwe Sigasa .......................................................................................... 720

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SOBRE @S COLABORADORX

Hakima Abbas tem sido activa em lutas pela justiça social em torno de questões

de autodeterminação, raça, classe, género e sexualidade há mais de 15 anos em


África e na diáspora. Cientista política por formação, trabalhou como

pesquisadora, instructora e estrategista. Hakima é editora e autora de várias

publicações sobre ajuda e desenvolvimento, União Africana, paz e segurança,

género e sexualidade. É membro do conselho e assessora de várias iniciativas

filantrópicas globais e da sociedade civil.

Shelley Barry é uma cineasta, escritora e activista sul-africana.

Gathoni Blessol é uma activista de direitos sociais e defensora de direitos

humanos, cujo foco principal são as lutas socioeconómicas nas comunidades

LGBTI-Q. Actualmente, trabalha com pessoas vivendo com deficiência e com

diversas sexualidades. Formada recentemente no Programa Pan-Africano de

Bolsas de Fahamu é membro da Sociedade Anarquista, Pasha AfriQ e MWITO,

todas no Quénia.

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Douglas Clarke é estudante de graduação no programa de justiça social e

equidades da Brock University, no Canadá. Fez o mestrado em filosofia e estuda

representações do corpo negro na cultura popular. Isso inclui teorias de género

e sexualidade, bem como racismo e a mitologização da negritude.

Kaitlin Dearham é pesquisadora feminista, antropóloga e consultora situada em

Nairobi. É gerente do programa da África Oriental da None on Record: Stories of

Queer Africa.

Pamella Dlungwana é escritora, pesquisadora e produtora de televisão.

Colaborou com artistas visuais usando os media para educar, libertar e incitar.

Pamella já publicou em revistas on-line (Poetry Potion, Itch).

Sokari Ekine é escritora feminista, blogueira e educadora, fundadora e autora

principal de Black Looks. Tem estado activa nas lutas pela justiça social há mais

de 20 anos, escreveu para várias publicações on-line e impressas, incluindo

Pambazuka News, Feminist Africa e New Internationalist sobre questões de

género, sexualidade, organização e arte e militarização em África e na diáspora.

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Charles Gueboguo é autor de dois livros que abordam a questão das prácticas do

mesmo sexo em África: La Question Homosexuelle em Afrique (Paris,

L'Harmattan, 2006) e Sida et Homosexualités em Afrique (Paris, L'Harmattan,

2009). Co-editou com Marc Epprecht a edição especial do Canadian Journal of

African Studies sobre 'Novas perspectivas sobre sexualidades em África'.

Actualmente, está matriculado em um programa de doutorado no Departamento

de Literatura Comparada da Universidade de Michigan.

Jessica Horn é uma escritora feminista, poeta e activista dos direitos das

mulheres cujo trabalho se concentra em questões de sexualidade, saúde,

violência e libertações corporais.

Jessie Kabwila é uma activista académica feminista de Malawi que possui um

doutorado em literatura comparativa pela Binghamton University, Nova York.

Dirige o departamento de inglês da Chancellor College, Universidade do Malawi,

onde ministra vários cursos de literatura. Jessie é editora da WAGADU e revisora

da Cultura, Saúde e Sexualidade.

Julius Kaggwa é o director de programa da SIPD Uganda, uma organização de

direitos humanos de base, sem fins lucrativos em Uganda, que através do

envolvimento e envolvimento comunitário fornece informações confiáveis e

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objectivas sobre questões atípicas do desenvolvimento sexual (também

conhecidas como condições intersexuais).

Mouhamadou Tidiane Kassé é jornalista Senegalense. Professor de jornalismo,

editor do Grupo de Imprensa Wal Fadjri e da edição francesa do Pambazuka

News. Trabalha como consultor na formação e networking de jornalistas. Tidiane

é especializado em media e desenvolvimento, HIV / SIDA e saúde reprodutiva

sexual.

Happy Mwende Kinyili luta para identificar, nomear e enfrentar o mal que

permeia as nossas realidades. Assim, o seu trabalho diário é construir um mundo

onde a opressão de diferentes males seja superada e uma comunidade alternativa


baseada num amor revolucionário, esperança efervescente e verdade

emancipatória.

David Kato Kisule (nascido em 1964 - falecido em 26 de Janeiro de 2011) era um

professor do Uganda e activista dos direitos LGBT, considerado pai do

movimento LGBTI de Uganda. Actuou como advogado de defesa das minorias


sexuais no Uganda (SMUG). David foi assassinado em 26 de Janeiro de 2011, pouco

depois de vencer a acção contra uma revista que publicou o seu nome e

fotografia, identificando-o como gay e pedindo que fosse executado.

12
Gabrielle Le Roux é uma artista sul-africana e activista pela justiça social. Seu

trabalho actual com activistas transgéneros concentra-se em retratos e

narrações de experiências vividas. Está enraizado na convicção de que mudamos

as nossas vidas e de outras pessoas com nossas histórias e que as pessoas que

falam em primeira mão sobre um problema o fazem com autoridade, e são as que

devem ser ouvidas com mais atenção.

Keguro Macharia ensina inglês na Universidade de Maryland, College Park. O

seu trabalho académico e popular apareceu em Wasafiri, Criticism, East African


e no the Guardian. Blogger no gukira.wordpress.com e é membro do colectivo

Concerned Kenyan Writers (CKW).

Zandile Makahamadze é escritora e activista de direitos humanos e justiça social.

Zandile representou a região da África na Associação Internacional de Lésbicas e

Gays e foi presidente de Gays e Lésbicas do Zimbabwe. A poesia e os contos de

Zandile foram publicados pela Mulheres Escritoras de Zimbabwe e transmitidos

pela Zimbabwe Broadcasting Corporation.

Valerie Mason-John, também conhecida como Queenie, é co-autora e editora


dos dois únicos livros, Making Black Waves e Talking Black, que documentam a

13
vida de lésbicas africanas e asiáticas na Grã-Bretanha. Publicou uma colecção de

poesia, peças de teatro, poemas, Brown Girl in the Ring. Seu primeiro romance,

Borrowed Body, ganhou o prémio MIND do livro do ano. Suas peças Sin Dykes e

Brown Girl in the Ring receberam elogios da crítica. Foi nomeada um dos ícones

negros gays da Grã-Bretanha, e tornou-se directora artística do London Mardi

Gras Arts Festival por cinco anos. Budista ordenada, trabalha como professora

de meditação e life coach.

Zethu Matebeni obteve um PhD na Universidade Wits, em Joanesburgo.

Actualmente, ocupa uma posição de pesquisa no Instituto de Humanidades de

África (HUMA), Universidade da Cidade do Cabo. É co-directora do documentário


Breaking Out of the Box, bem como co-curadora da exposição 'TRACKS: Sexuality

in the City', e está envolvida em projectos em curso que abordam as

interseccionalidades de raça, classe e sexualidade, género e política na África do

Sul.

Audrey Mbugua é oficial de projecto e de monitoria e avaliação da Transgender


Education and Advocacy (TEA) Kenya, uma organização de direitos humanos que

trabalha para defender os direitos humanos de pessoas transgénero e

transexuais no Quénia.

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Zanele Muholi tem-se empenhado em criar uma história visual da identidade e

política de lésbicas negras na África do Sul pós-apartheid. Recebeu vários

prémios, incluindo, em 2009, o prémio FannyAnn Eddy pelas contribuições

extraordinárias no estudo e defesa de sexualidades em África. Três livros foram

publicados sobre o trabalho de Muholi: Only Half the Picture (2006), Faces and

Fhases (2010) e Zanele Muholi: African Women Photographers # 1 (2011). O

documentário premiado de Muholi, Difficult Love (2010), foi exibido em vários

festivais de cinema na África do Sul e no exterior.

Kagendo Murungi é uma produtora de vídeo, activista e escritora queniana com

experiência em advocacia internacional de direitos sexuais e de género, bem


como em organização comunitária para capacitação política, social e cultural

com africanos LGBTGNC e pela justiça social e económica com a classe

trabalhadora e as comunidades LGBT pobres em Nova York.

Bernedette Muthien é co-fundadora e directora da Engender, África do Sul, que

trabalha nas áreas interseccionais de género e sexualidade, direitos humanos,


justiça e paz. É co-fundadora da Comissão de Economia Política Global da

Associação Internacional de Investigação sobre a Paz, é membro da Amanitare e

faz parte do conselho consultivo da revista Human Security Studies. Bernedette


publicou recentemente uma colectânea da sua poesia, Ova.

15
Kenne Mwikya é um bloguer e escritor queer que actualmente estuda direito no

Quénia.

Sibongile Ndashe é uma feminista que trabalha com a lei, mas acredita na justiça.

Actualmente, trabalha como advogada na Interights no programa de igualdade e

escreve aqui na sua qualidade pessoal.

Mia Nikasimo é escritora criativa, ensaísta, poeta e dramaturga. Actualmente,

trabalha numa novela e outras histórias intituladas Trans.

Awino Okech é uma pesquisadora que nos últimos 12 anos, tem estado envolvida

em trabalhos de desenvolvimento na África Oriental, na região dos Grandes

Lagos e na África do Sul. Os interesses de pesquisa de Awino estão nas áreas de

género e sexualidade, cultura e nacionalismo. Tem um PhD em estudos críticos

de género pela Universidade da Cidade do Cabo.

Ola Osaze é um activista nigeriano sediado em Brooklyn, transfag queer,

feminista e libertador de género de descendência Edo e Yoruba. Tem organizado

com o Projecto Audre Lorde, Queers pela Justiça Económica, Sylvia Rivera Law
Project e com Uhuru-Wazobia e Liberation for All Africans. Seus artigos foram

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publicados em blogs como o Black Public Media, o Trans Atlantic Times e

antologias como o Yellow Medicine Review: um jornal de literatura indígena, arte

e pensamento.

Diriye Osman é escritor, artista visual e editor britânico nascido na Somália. Sua

colecção de contos de fadas para crianças perdidas será publicada em Setembro

de 2013. É editor-adjunto da Revista Scarf.

Lyn Ossome está inserida no Departamento de Estudos Políticos da Universidade


Wits, em Joanesburgo. Pesquisadora feminista, tem contribuído de forma

extensiva para projectos de pesquisa e advocacia nos países da África Oriental,

Austral e no Chifre de Africa. Também exerceu funções consultivas e


orientadoras em um número de organizações da sociedade civil na África

Oriental e Austral. Seu trabalho académico, nas áreas de teoria feminista e

política, estudos agrários e de terra, teoria pós-colonial, teoria queer e política

africana, é amplamente publicado. Continua comprometida com as lutas pela

justiça social em todo o Sul global.

Olumide Popoola é uma escritora nigeriana-alemã que se apresenta

internacionalmente como autora, palestrante convidada, oradora e intérprete.

Sua novela, this is not about sadness, foi publicada em 2010 (Unrast Verlag).

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Actualmente, é candidata a doutorado em escrita criativa na Universidade de East

London e professora universitária visitante em escrita criativa. Veja

www.olumidepopoola.com.

Raél Jero Salley PhD é artista, teórico cultural e historiador. Professor sénior de

pintura e discurso na Universidade de Cape Town. O trabalho de Salley é focado

em arte contemporânea e produção visual, principalmente prácticas visuais

relacionadas à negritude, África e à diáspora africana.

Busisiwe Sigasa (23 de Dezembro de 1981 a 12 de Março de 2007) era uma jovem

que se identificava como lésbica e morava em Soweto. Em Abril de 2006, Busisiwe

foi estuprada e subsequentemente contraiu HIV. Diabética e, sem fundos


suficientes para receber todos os cuidados médicos que precisava, viveu sempre

no limite. Em 12 de Março de 2007, após cair em coma diabético, faleceu.

Liesl Theron é co-fundadora e directora do Gender DynamiX. Gender DynamiX

publicou seu primeiro livro, TRANS: Transgender Life Stories from South África,

em 2009. Autora de [In]acessíveis abrigos para pessoas LGT na Cidade do Cabo'


em Tapestry of Human Sexuality in Africa (2010). Também tem um capítulo,

'Questionário de orientação', em Reclaiming the L- Word - Sappho's Daughters

Out in Africa (2011).

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Kylie Thomas é bolsista do Programa de Humanidades Africanas da ACLS no

Centro de Pesquisa em Humanidades da Universidade de Western Cape, na

África do Sul. Seu livro sobre visualidade e luto pós-apartheid será publicado pela

Bucknell University Press em 2013.

Nancy Lylac Warinda é bacharel em ciências biomédicas pela Universidade

Egerton, Quénia. Mesmo com uma formação em ciências nerds e uma carreira

promissora, ainda tem tempo para dar asas à sua criatividade. Tem escrito e

publicado vários poemas e histórias, incluindo artigos para o Guardian, Tanzânia

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INTRODUÇÃO
Sokari Ekine e Hakima Abbas

A jornada desta obra começou em Janeiro de 2010, num momento crítico da

história queer africana. Uma mulher transgénero do Malawi, Tiwonge


Chimbalanga, de 20 anos, e seu parceiro, Steven Monjeza, de 26 anos, foram

julgados pelo crime de ofensas sexuais (gross indecency) e actos antinaturais,


puníveis até 14 anos de prisão com trabalho forçado. Os media mundiais e os

grupos de advocacia internacionais entraram num frenesim de actividades

relatando a violação dos "direitos dos gays" em África. O presidente do Malawi, o

falecido Bingu wa Mutharika, juntou-se ao coro da retórica sobre violência

transfóbica e homofóbica. Embaixadas e diplomatas do Norte global foram, por

sua vez, sacudidos para entrar em acção, alimentados pela advocacia de

organizações de lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e intersexuais (LGBTI)

20
nos seus países, e exigiram a libertação dos dois 'homens', ameaçando a retirada

de ajudas, caso seus direitos humanos não fossem respeitados.

E, com isso, todos os tópicos de discussões pendentes entre grupos crescentes

de activistas, pensadores, artistas e comunidades queer africanx vieram à tona

numa exuberante exibição do lamaçal da vida LGBTI no continente. Havia a

obliteração de identidades de género não conformes, vidas e existências trans na

insistência de referirem Tiwonge como gay, embora ela afirmasse que se

identificava como mulher. Houve a retórica da homofobia populista violenta

usada para silenciar a dissidência em toda uma nação, não apenas por uma elite
dominante formada pela nobreza política e económica, mas também situada no

poder de uma religião importada. Houve o uso da retórica da independência,

incluindo a definição do que é africano e a rejeição da imposição ocidental, para


medir a violência de africanx contra africanx (aqueles que se identificam com a

sexualidade dominante e proscrições de género contra aqueles que incorporam

definições de género e sexualidade dissidentes) com a intenção de fazer

desaparecer as identidades de género não conformes e não heterossexuais do

projectos nacional. Houve o “gay internacional”, os advogados e organizações

internacionais de lésbicas e gays – aterrando no país com pouca ou nenhuma

compreensão contextual para enquadrar as questões, mas com a firme convicção

de que estavam a salvar as vítimas perseguidas da barbarie africana, (apenas)


consultando 'grupos locais' e repreenderam os líderes africanos pelo seu fracasso

em abraçar a ideologia liberal completada com silos de direitos humanos, e os

estrangulamentos económicos neoliberais que a acompanham. Houve governos

21
e embaixadas ocidentais, que exercitaram seus músculos para resgatar a minoria

perseguida, enfatizando a contínua dependência colonial do continente e

reforçando a distorcida dinâmica de poder entre o norte e o sul global. Usando a

retirada da ajuda como uma alavanca para salvar LGBTI africanx, estes "parceiros

internacionais de desenvolvimento" criaram uma onda de pavor paradoxal diante

desta ameaça, apesar do amplo reconhecimento de que a ajuda nunca serviu aos

interesses dos povos africanos. Havia a África do Sul, a quem recorremos com

expectativa antecipada, pelo apego das nossas memórias a um partido com

valores de libertação, esperando que o partido falasse com ousadia, mas cujo

longo silêncio nos deixou de cabeça pendurada de vergonha. Houve um dos


nossos 'líderes' que foi persuadido a conceder um perdão presidencial, mas que

continuava a insistir na negação “queer” agindo com a atitude de 'vamos apanhá-

los da próxima vez'.

Havia os malauianos corajosos de todas as esferas da vida que estavam ou em

suas casas ou em frente aos media nacional para denunciar a opressão exercida

contra todos nós e visando alguns;

Malauianos que não receberam tempo de antena internacional porque sua

mensagem era muito complexa, mas que tentaram alertar a nação sobre o

iminente domínio de uma crescente regressão democrática; os mesmos


malauianos que se viram presos ou levados a se esconder apenas meses depois,

quando a dissidência do povo finalmente chegou às ruas e às universidades. Havia

o movimento LGBTI no Malawi, cujas vozes não podiam se elevar acima da


cacofonia de interesses que manifestavam a favor, sobre e contra elx, mas cujas

22
comunidades foram soterradas pelo medo. Havia os africanos em todo o mundo

se organizando, procurando uns nos outros estratégia e apoio, e fracassando no

teatro do absurdo encenado em volta das vidas africanas. Mas, tal como o

fenómeno dos políticos medíocres à procura de alguma notoriedade e

encontrando-a na apresentação da perseguição fundamentalista de uma

comunidade já temerosa parece ter-se espalhado por todo o continente, também

a resistência africana, que cresce, aprende e é reforçada em cada batalha.

Querendo dar voz a essa resistência e levar a história das múltiplas identidades

que incorporamos, nós duas editoras, Sokari Ekine, uma africana da Nigéria, e
Hakima Abbas, uma africana do Egipto, unimos forças com uma comunidade de

africanx ao redor do mundo para prestar testemunho do poder implacável das

comunidades queer em toda a África e em sua diáspora. Este livro reúne textos
académicos, análises políticas, testemunhos de vida, conversas e trabalhos

artísticos de africanx que se envolvem na luta pela libertação de LGBTIQ. A

Colectânea África Queer rompe com a homogeneização de África como o

continente homofóbico para destacar as complexidades das vidas e experiências

LGBTIQ com contribuições que exploram questões de identidade, resistência,

solidariedade, lavagem cor-de-rosa¹, política global, intersecções de luta, religião

e cultura, comunidade, sexo e amor.

Compreendendo a magnitude do que propúnhamos documentar nesta obra,

sabíamos que não poderíamos tentar fazer isso sozinhas. Assim, adoptamos os

meios para obter discussões das nossas múltiplas comunidades e possíveis


colaboradores sobre como documentar não apenas a resistência na vida

23
cotidiana e nas lutas das comunidades queer da África, mas para valorizar a

complexidade de como a libertação queer é enquadrada na África e por Africanx.

Também esperávamos que a colectivização do livro assegurasse que a publicação

respondesse às necessidades do movimento queer africano nas discussões que

ele abrangia, em vez de ser uma visão voyeurista para os 'outros' olhos. O que

descobrimos através desse processo, e na raiz da resistência queer na África, é

um avanço da luta pela libertação e autodeterminação africana desde corpo para

o colectivo.

Usamos o termo "queer" aqui e no título para denotar um quadro político em vez
de uma identidade de género ou comportamento sexual. Usamos queer para

sublinhar uma perspectiva que abraça a pluralidade sexual e de género e procura

transformar, revisar e revolucionar a ordem africana, em vez de procurar se


assimilar em estruturas opressivas hétero-patriarcais-capitalistas. Queer é a

nossa posição dissidente, que usamos aqui, conhecendo as limitações da

terminologia em relação às nossas realidades neocoloniais africanas. Os

colaboradorx ao longo deste volume expressam uma variedade de identificadores

para identificar géneros e sexualidades dissidentes. Como editoras, acreditamos

que essa diversidade fornece a essencia que nesta obra é revelada. É essa

multiplicidade que abraçamos nas perspectivas, experiências, ideias e estratégias

apresentadas neste livro.

Embora quiséssemos retratar todo o espectro do arco-íris negro neste volume,

bem como dar voz a vozes progressistas pró-queer e pró-feminista de uma

24
variedade de africanos identificados em diferentes esferas sexuais e de género,

reconhecemos que existem distintas lacunas no material

reunido aqui. Por exemplo, a ausência de envios do norte da África e a falta de

vozes da geração mais velha nas experiências documentadas produzem lacunas

na tapeçaria que esta colectânea procura documentar. Por tal, assumimos total

responsabilidade e esperamos que isso apenas estimule outros africanx a aceitar

o desafio. Esperamos que outros produzam mais do que afirmem não só a

existência de dissidência sexual e política de género em África, mas que também

reforcem a reflexão e realcem a importante da contribuição destas vozes para a


libertação do nosso continente. Ao procurar o financiamento para tornar esta

obra uma realidade, ficamos gratos por ter sido um financiador feminista

africano, O Fundo de Acção Urgente - África, o primeiro a apoiar este trabalho.


Gostaríamos, portanto, de agradecer à UAFA. A Colectânea África Queer também

foi possível com o apoio generoso da Fundação Arcus e gostaríamos

especialmente de agradecer a sua programadora internacional, Carla

Sutherland, por seu apoio à iniciativa 'Reclaim' da Fahamu, da qual a Colectânea

África Queer nasceu.

Alguns meses depois de termos iniciado o processo que culminou, três anos

depois, na Colectânea África Queer , David Kato, um professor e destacado


activista LGBTI no Uganda, foi assassinado. David, algumas semanas antes do seu

assassinato, submeteu-nos um artigo para consideração neste volume. Incluímos

o artigo de David como o primeiro no livro em memória de um soldado caído.


Dedicamos humildemente a Colectânea África Queer a todos os sobreviventes e

25
vítimas de múltiplas opressões e os resistentes que lutam todos os dias com

corpo, espírito e mente para libertar todos nós. Nós saudamos você.

Nota

1 O obscurecimento deliberado nas contínuas injustiças, geralmente entre o norte global e o sul global, por trás de uma imagem
do liberalismo identificada através de uma forma específica de 'tolerância' à homossexualidade e, em menor grau, a outras

identidades sexuais e de género.

26
27
1 - UM ENSAIO - David Kato Kisule

David Kato submeteu este pequeno ensaio aos editores do Queer African Reader um

mês antes de ser assassinado em 26 de Janeiro de 2011. David Kato era professor e

proeminente activista LGBTI em Uganda e actuou como oficial de advocacia para

Minorias Sexuais de Uganda (SMUG). Apenas algumas semanas antes de sua morte,
David ganhou um caso histórico contra um jornal popular do Uganda que publicou

fotos de 100 pessoas, incluindo David, num artigo pedindo o enforcamento de lésbicas

e gays de Uganda. Este ensaio é publicado aqui, com pouca revisão, em memória de
David Kato e de todos aqueles que caíram na luta pela igualdade LGBTI.

Neste país, é absurdo que, à medida que a comunidade LGBTI se esforça para

libertar sua comunidade para alcançar não direitos especiais, mas direitos iguais
aos de outros, deparam-se com um dilema. Tendo leis de sodomia e leis

opressivas (que há muito são revogadas em seus países de origem!), o


investimento maciço de grupos religiosos estrangeiros nas comunidades

africanas, a recente disseminação da homofobia promovendo o ódio sustentado

28
e a reprodução global da homofobia institucionalmente pelos evangélicos

americanos, piorou a situação da sobrevivência da comunidade LGBTI nesses

países.

Em nome da protecção da família tradicional, os evangélicos recentemente

propuseram a redação da lei anti-homossexualidade no parlamento de Uganda

como um projecto parlamentar que afecta não apenas a comunidade LGBTI, mas,

se aprovado, terá repercussão global para toda a comunidade.

É por isso que é necessário abordar e enfrentar esta lei como um problema global
com repercussões globais. Também é necessário usar formas vibrantes e francas

de falar sobre ela, não apenas como "expressar homofobia", mas como promover

ódio contínuo e violência. Há uma grande necessidade de suscitar debates sobre


sistemas globais que actualmente trabalham para reproduzir o autoritarismo

homofóbico em todo o mundo.

Em Uganda, à medida que a comunidade LGBTI se tornou mais visível no que diz

respeito à demanda por inclusão nas estratégias de saúde do governo, na luta

para fechar todas as lacunas da disseminação do HIV, os legisladores criaram

legislações de criminalização até de relações consensuais do mesmo sexo,

propondo uma pena de morte!

Isso fez com que muitos voltassem ao armário e ficassem mais vulneráveis ao

flagelo. Alguns foram presos, assediados, detidos e outros morreram no


processo. Muitos são expulsos de lares, casas, escolas e outros humilhados

29
(vergastados em público, estuprados) como se houvesse homofobia

institucionalizada, uma vez que isso é alimentado por agitadores políticos e os

autores continuam impunes! Lésbicas que sofrem estupro correctivo por parte

de familiares e amigos e consequetemente contraém HIV!

Tais alegações foram feitas uma vez no tribunal de Mbale, onde o falecido Brian

Pande e Wasukire Fred foram acusados de conhecimento carnal contra a ordem

da natureza e o cirurgião da polícia informou o tribunal:

Diagnosticou um deles sem DST, mas no segundo teste, diagnosticou ambos com
DST.

Encontrou uma ferida no anús num dos acusados

Encontrou uma mancha de branqueamento na face do outro

Então, com isso concluiu que os dois sujeitos fizeram sexo juntos.

Em resposta, quando o magistrado determinou a caução da fiança dos dois, um

proeminente advogado pediu que o magistrado que não lhes desse fiança, já que

dentro de uma semana toda a cidade de Mbale estaria cheia de homossexuais e,

portanto, os dois deveriam morrer. Prisão! Não é à toa que Pande morreu

semanas depois de sair da prisão de Maluku, onde nos foi recusado vê-lo.

Contradizendo os relatórios do hospital, seu atestado de óbito referia que morreu


de meningite, embora sem a certeza, e o médico da polícia disse que, pelo bom

aspecto do corpo, teria morrido de anemia!

30
É estranho que, enquanto acompanhávamos o caso Mbale e não sabíamos quem

era Fred, enquanto perguntávamos por Fred como tínhamos visto nos media,

fomos informados que a pessoa que queríamos era um homem, mas que sempre

viveu parecendo uma mulher! É de se perguntar se ele viveu na mesma

comunidade por mais de 30 anos, que mal ele tinha feito! Somente o fomento do

ódio em público por fundamentalistas religiosos e agitadores politicos acendeu

esse tipo de ódio!

A legislação criada sem a inclusão da comunidade marginalizada é

antidemocrática, o próprio projecto de lei é inconstitucional uma vez que os


defensores da discriminação, não seguiram ou respeitaram os princípios

internacionais e não seguiram a lei ugandesa.

Geralmente o estado e a situação são alarmantes e há uma grande necessidade

de lutar para dissuadir a lei, o que é complicado, uma vez que qualquer sociedade

civil a pôr a mão nesta luta é levada a promover a homossexualidade que deve ser

criminalizada de acordo com a última comunicação do ministro dos Negócios

Estrangeiros!

Graças aos esforços, coragem e luta da comunidade LGBTI em Uganda, activistas,

artistas, líderes religiosos, aliados e politicos em Uganda, África e no mundo, a lei


anti homossexualidade em Uganda não foi aprovada no momento da redação

deste documento. Graças aos esforços, coragem e luta da comunidade LGBTI em

Uganda, ativistas, artistas, líderes religiosos, aliados e formuladores de políticas

31
em Uganda, na África e no mundo, a lei anti-homossexualidade em Uganda não

foi aprovada no momento em que foi redigida. Contudo, o perigo e a ameaça

ainda paira à medida que cada vez mais países em todo o continente continuam

a ameaçar com legislações semelhantes e a incitar à violência e à perseguição

daqueles que são considerados como sendo de sexualidades não

heteronormativas e que transgridem as identidades de género.

32
2 – EM IRMANDADE E SOLIDARIEDADE: TORNANDO QUEERS OS
ESPAÇOS FEMINISTAS AFRICANOS - Awino Oketch

Este capítulo procura examinar o espaço e o lugar da organização queer dentro

dos 'principais espaços feministas africanos'. Esta é uma tarefa ambiciosa, dada

a multiplicidade de espaços, actores e agendas. As possibilidades dos 'espaços

feministas mainstream' sugerem uma multiplicidade de vanguarda ou outros

locais que operam na periferia do principal. Esta é uma posição em si mesma que
merece ser questionada, mas que não se enquadra no âmbito deste capítulo. Meu

objetivo não é criticar locais específicos de construção do movimento feminista,

mas sim oferecer uma linha teórica, traçar disjunções e reflectir sobre as
possibilidades. Este capítulo inicia uma conversa teórica que não está de modo

algum concebida para ser abrangente ou representativa da riqueza de


experiências e literatura disponível.

Para minha análise neste capítulo, baseio-me na experiência pessoal - lida aqui

como minha participação em diversos espaços, alguns denominados espaços

activistas feministas, outros como locais académicos feministas, conversas com

diversos actores com histórias em diferentes formas de organização, algumas

feministas, alguns explicitamente designados como Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Transgéneros, Intersexo (LGBTI). Uso essas conversas como pontos nos quais

várias personalidades identificadas como mulheres, feministas, lésbicas,

pesquisadoras se depararam com o significado de encontrar um espaço teórico,

34
dentro de locais activistas para dar sentido à luta¹ de viver e ocupar uma das

muitas identidades que lhes torna vulneráveis não apenas a ataques específicos

do Estado, mas também a um isolamento particular entre 'irmãs' onde a

'segurança' é construída como um componente central do espaço.

A acusação de homofobia² no movimento das mulheres³ ou nos recentes espaços

feministas autónomos em várias partes da África não é nova. Essas acusações

ficaram evidentes após a Quarta Conferência Mundial da ONU sobre as Mulheres

em Pequim, em 1995, com muitas activistas africanas a sinalizarem que assuntos

"sexuais" não eram a prioridade de mulheres africanas (Jolly 2000). O sexo e a


sexualidade só se tornaram uma prioridade na medida em que afetaram a saúde,

a mobilidade, o emprego e a herança (leia-se direitos reprodutivos e violência

contra as mulheres). Os debates sobre autonomia corporal e integridade sexual


continuam a ser locais ténues de legislação e activismo em muitos países

africanos⁴. Isso pode ser visto no desenvolvimento do discurso público e / ou

legislação sobre o aborto, que continua a atrair sentimentos de raiva de ambos o

público e os órgãos de formulação de políticas (Klugman e Budlender 2001,

Center for Reproductive Rights 2010). Além disso, o ataque de violência contra

mulheres e homens que praticam sua sexualidade de maneira diferente - contra

a heterossexualidade normativa - também reformulou discursos sobre

autonomia. A orientação sexual como um assunto de 'advocacia' tem sido citada


como possuidora de potencial de desviar a luta, como tem estado evidente

quando são feitas escolhas sobre quais questões devem ser divulgadas

35
publicamente como políticas e, acrescento, ideológicas nos lobbies dos direitos

das mulheres⁵.

A organização distinta que ocorre na maior parte da África entre o trabalho

LGBTI e os lobbies dos direitos feministas / mulheres é igualmente reveladora,

uma vez que o trabalho LGBTI historicamente se baseia no grande corpo de

trabalho que chamarei, para os propósitos deste capítulo, de teoria feminista.

Jackson faz uma distinção útil abaixo ao observar que:

Queer e feminismo convergem na medida em que ambos questionam a

inevitabilidade e a naturalidade da heterossexualidade e ambos, em certa


medida pelo menos, vinculam a divisão binária de género com a que

existe entre heterossexualidade e homossexualidade. Além disso, eles

diferem em ênfase. Os teóricos queer procuram desestabilizar a

heteronormatividade, mas são relativamente despreocupados com o que

ocorre nas relações heterossexuais. As feministas, porque estão

preocupadas com as maneiras pelas quais a heterossexualidade depende

e garante a divisão de género, estão muito mais interessadas na

institucionalização e na práctica quotidiana das relações heterossexuais


(Jackson 2005: 2).

36
Como resultado, foram feitas escolhas⁶ por indivíduos e organizações em

torno das quais a identidade política deve ser colocada em primeiro plano, com

alguns argumentando que, embora mantenham uma forte conexão com a teoria,

a ideologia e os espaços feministas, como o núcleo do ímpeto de seu trabalho

activista, sua identidade política lésbica está centrada por causa do 'silêncio', falta

de 'solidariedade' e às vezes 'homofobia' aberta nos espaços onde não deveria ser

a norma - espaços feministas e / ou movimento de mulheres (Hames 2003, Kraak

2002).

Neste capítulo, avalio se as ferramentas conceituais e ideológicas que o


feminismo oferece foram usadas de maneiras que não são homogeneizadoras

nem essencializadoras nos processos de construção de movimentos. Examino as

abordagens conceituais implementadas na construção de movimentos dentro de


espaços feministas autónomos. Ao fazer isso, interrogo quão prontx estão para

responder a um crescente movimento queer.⁷

Isso é importante por três razões. A primeira se baseia na história e na aceitação

do feminismo, por um lado, e na causa das mulheres, por outro. Onde feministas

e feminismo foram ‘guetificados’ e rotulados de várias maneiras é observado por

Adeleye-Fayemi:

É muito difícil criar e sustentar o espaço feminista em muitos países


africanos, por várias razões. O feminismo ainda é muito impopular e

ameaçador. A palavra ainda reverte a visões de mulheres brancas

37
selvagens nuas a queimarem seus sutiãs, imperialismo, dominação,

minando a cultura africana etc. As feministas são sujeitas ao ridículo e

insultos e, em alguns casos, recebem ameaças a suas vidas. Elas são

chamadas de 'frustradas', 'solteiras miseráveis', 'castradoras',

'destruidoras de laress' e muitos outros epítetos indignos (Adeleye-

Fayemi 2000: 8).

Algumas das respostas ao desafio destes rótulos foram reconhecidamente


reaccionárias em vez de proactivas. Enquanto foram úteis para perturbar uma

hegemonia epistemológica ocidental, o discurso emergente, em vez disso,

reintegrou o patriarcado e especificamente suas raízes heteronormativas8


(Mikell 1997, Oyewumi 1997, Steady 1981). Produziu também um discurso sobre o

feminismo africano que foi construído em oposição ao que o feminismo ocidental

era visto como representando. Não evoluiu necessariamente com novos

discursos que se engajassem de forma significativa com as realidades contextuais

da África. Em vez disso, tornou-se culturalmente relativo.

O resultado foi uma série de projectos destinados a escavar narrativas e histórias

para contrariar as construções dominantes de África e "mulheres africanas". O


feminismo africano definido desta forma permanece opositor e, moldado pelas

construções imperiais e reconhecidamente pelas redefinições de África, não

evolui organicamente.9

38
Realidades vividas pelas mulheres. Essa é uma tensão que, embora

constantemente reconhecida, quase nunca é resolvida na práxis.

A terceira considera o contexto actual, caracterizado por enormes reviravoltas

tanto de ganhos conceituais quanto de activistas que o feminismo ofereceu para

entender as injustiças socioeconómicas e políticas. A manipulação

desenvolvimentista e despolitizada do género como a estrutura conceitual que

deve moldar intervenções que buscam a transformação de normas de género é

frequentemente baseada em princípios de igualdade que buscam inclusão e não

transformação. 10 Isso contribuiu em parte para energias direcionadas à


remobilização de uma posição política que centra o desmantelamento do

patriarcado e do poder associado, teoricamente e na práxis. A recuperação de

espaços autónomos onde essa reflexão pode ocorrer é um factor desse amplo
contexto político. Como, portanto, essas recuperações dos últimos dias levam a

um entendimento eficaz e renovado do patriarcado e a uma desestabilização da

heteronormatividade, a fim de responder à diversidade ¹¹ e à transformação das

hierarquias de poder dentro e fora do movimento?

Pensando em movimentos

O termo "movimento" tornou-se tão acessível e pouco utilizado no

discurso actual a ponto de se tornar quase desprovido de significado ...

39
precisamos revisitar nossa definição de movimentos e ter clareza sobre

o que é e o que não é um movimento. Pois, é um tanto preocupante

quantos fenómenos diferentes são descritos como movimentos

(Batliwala 2002: 398).

As preocupações de Batliwala acima reflectem não apenas a imposição do termo

movimento em qualquer actividade que reúna uma coalizão de organizações, mas

também são indicativas de uma crescente preocupação com a ideia de criar


movimentos de pessoas por meio de intervenções programáticas de organizações

internacionais de desenvolvimento. A 'desenvolvimentização' da construção de

movimento é uma tendência crescente que merece algum interrogatório


conceitual, particularmente na medida em que esses processos em toda África

pensam activamente na noção de organização, quais modelos de organização são

críticos para seus objectivos de justiça social e para o local de ideologia nessas

agendas.¹²

Os movimentos sociais emergem como contestações populares da legalidade da

participação. Eles, portanto, aspiram redefinir e estender o espaço e os limites

das formas "aceitáveis" de envolvimento político, social e económico na


sociedade. Há uma tensão constante entre 'a legalidade da participação',

conforme definido e regulado por instituições e indivíduos poderosos, e os

desejos populares da maioria das pessoas cujo envolvimento no governo de suas


sociedades é limitado por regras de participação. Na última década, essa tensão

40
foi intensificada pela diminuição do espaço para a participação dos cidadãos por

governos e instituições supra estatais e apresentou grandes ameaças ao espaço

que os cidadãos têm para acção autónoma.

Existem várias teorias que informaram a análise em torno do desenvolvimento

dos movimentos sociais. Os teóricos da mobilização de recursos, por exemplo,

explicam a acção colectiva em termos de oportunidades estruturais, liderança,

redes ideológicas e organizacionais (McClurg Mueller e Aldon 1992: 12-16). Os

novos teóricos do movimento social oferecem 'identidades coletivas' como uma

maneira de examinar como as pessoas agem em conjunto, muitas vezes com o


objectivo de alcançar um novo tipo de presença e reconhecimento cultural,

distinto ou semiautónomo.

Estudiosos que escrevem a partir da perspectiva de 'novos movimentos sociais'

estão interessados na construção, contestação e negociação de identidades

coletivas no processo de activiade política. A identidade colectiva refere-se à

"(muitas vezes implicitamente) definição de associação, limåites e actividades

acordadas para o grupo" (Laraña et al 1994: 15). É difícil comprovar a existência de

identidade colectiva, assim como a noção de 'consciência colectiva' ou

'consciência falsa'. A própria natureza dos movimentos sociais significa que a

identidade colectiva é um 'alvo em movimento', com diferentes definições a


dominar em diferentes pontos da trajetória de um movimento.

A década de 90, ¹³ em particular, viu uma evolução dos movimentos,


especialmente em países em transição ou em processo de consolidação

41
democrática que levaram a uma mudança de lógica, dinâmica e ênfase. Segundo

Alvarez (1998), uma das mudanças significativas tem sido a modificação de uma

postura anti estatista em direcção a uma postura crítica de negociação em relação

ao estado e às arenas internacionais formais. Isso também significou uma

mudança de um tipo defensivo de autonomia e de uma dinâmica de confronto

para uma lógica de negociação (Alvarez, 1998).

As organizações não-governamentais passaram a ser consideradas o veículo de

escolha - a bala mágica - para promover estratégias de desenvolvimento (Gruhn

1997: 325). A liberalização gradual do ambiente político no qual os movimentos


sociais operavam e a introdução de género no Estado, motivada em parte por

alguns governos estaduais controlados pela oposição no início e meados da

década de 1990, resultaram na necessidade de um número crescente de


feministas para formalizar suas organizações e desenvolver maior expertise em

políticas (Hassim 2004, Salo 2005). Os termos dessa incorporação geralmente não

eram de inspiração feminista e contribuíam para um desvio em um discurso

sobre "género". Hassim observa que o impacto da institucionalização de

interesses levou à criação de um conjunto de instituições especializadas que

levaram à "consideração de género fora do domínio da política e no domínio

técnico dos desafios de formulação de políticas" (Hassim 2004: 18). Isso levantou

um conjunto peculiar de desafios, entre os quais o de que o movimento de


mulheres não constitui sujeitos, interesses e formas ideológicas evidentes.

Hassim observa que "as mulheres não se mobilizam como mulheres ou

42
simplesmente porque são mulheres"; em outras palavras, a mulher não é um

sujeito estável para mobilização (Hassim 2004: 5)

Vários teóricos apontaram que as tentativas de desagregar a identidade de

género são inúteis, pois os significados culturais de 'mulher' mudam em relação

aos inúmeros outros marcadores de identidade e em diferentes contextos

(Butler, 1990; Rubin, 1975).

A combinação de dificuldades teóricas e prácticas de definir os interesses

e a identidade política do movimento, por um lado, e a suspeita com a


qual o feminismo foi tratado ... afetaram a capacidade do movimento das

mulheres de desenvolver uma identidade política relativamente

autónoma de poder ideológico do nacionalismo (Hassim 2004: 7)

Hassim, enquanto fala especificamente ao contexto sul-africano, levanta um

conjunto de preocupações conceituais e prácticas que enquadram abordagens

para o desenvolvimento de 'movimentos de mulheres'. Essas preocupações estão

encapsuladas na distinção que faz entre objectivos inclusivos e transformadores

dos movimentos. Os primeiros estão preocupados com:

inclusão no estado de maneira fragmentada e despolitizada, buscando

incluir as mulheres nas estruturas de políticas existentes sem questionar

se as orientações gerais das políticas são apropriadas para as mulheres

43
ou como novas áreas de políticas ou legislações devem ser colocadas na

agenda (Hassim 2005).

Sustentando a abordagem inclusiva, de acordo com Hassim, está o desejo de

manter algumas condições mínimas de união entre as mulheres, por uma

relutância em adulterar as raízes estruturais da desigualdade de género. Além

disso, a influência das ideologias liberais nesse projectos contribui para

promover a percepção de que o mercado e a família estão fora do domínio da


intervenção estatal (Hassim 2004: 12).

A abordagem transformadora, por outro lado, presta atenção às maneiras pelas


quais o poder opera dentro e entre as esferas política, social e económica de

sociedades específicas. Com efeito, é um projectos político de transformação

(Hassim 2005).

Salo (2005) desafia a abordagem de Hassim acusa esta de ser dependente de

binários distintos (reformistas ou transformadores) e, portanto, deixa de

considerar a multiplicidade de espaços e desafios que os movimentos

emergentes e existentes de mulheres encontram. Salo argumenta, portanto, que


os objectivos reformistas e transformadores não são mutuamente exclusivos.

Tanto os argumentos de Hassim (2004) quanto de Salo (2005) apontam para a

complexidade inerente à mobilização de qualquer tipo, sem falar no nome de


feminista. Salo (2005) e Hassim (2004) aludem à importância de examinar como

as pessoas passam a ocupar movimentos e os significados atribuídos a espaços

44
particulares. É a tensão entre mobilização e o valor atribuído à maneira como os

espaços são ocupados que me interessa, particularmente as maneiras pelas quais

os espaços feministas em África têm procurado se unir ideologicamente à política

queer em geral e aos movimentos especificamente.

Construindo espaços feministas

Este espaço [movimento feminista] é formado por nossas amizades,

redes, vínculos, organizações e energias feministas individuais e


coletivas. Este é o espaço que usamos para mobilizar nossos princípios

feministas, onde aprimoramos nossas habilidades analíticas e onde

procuramos (e às vezes encontramos) respostas para nossas muitas


perguntas. A crença de que esse espaço é necessário para tornar nossa

vida melhor e mais fácil. Isso se manifesta em nossos processos de

autodescoberta, nossas esperanças, nossos sonhos, nossas aspirações,

nosso anseio por mais conhecimento e revelações (Adeleye – Fayemi

2000: 6).

O AFF [Fórum Feminista Africano] foi projetado como um meio para

compartilhar o pensamento e a práctica feminista africana, fornecendo

"espaços seguros" para a reflexão crítica sobre o progresso pessoal e

45
colectivo, e um trampolim para a acção. As pessoas participam do fórum

regional e iniciativas de suas irmãs na sua capacidade pessoal. Essa foi

uma estratégia intencional para permitir que indivíduos

compartilhassem e aumentassem suas crenças e compromissos

activistas além das limitações de suas posições ou papéis institucionais

(Horn 2008: 122).

A posição ideológica da campanha 1 em 9 reflecte o princípio básico do

feminismo de que o pessoal é político. Reconhecendo essa verdade

fundamental, a campanha reconhece que, a fim de erradicar a violência


sexual contra as mulheres, deve combater activamente todas as formas

de opressão, incluindo, entre outras, o racismo e o classismo, pois todas

elas impactam o acesso das mulheres à igualdade e à justiça. A campanha


reconhece que múltiplas formas de opressão, incluindo, entre outras,

sexismo, racismo, classismo e homofobia, convergem para negar às

mulheres o acesso à igualdade e à justiça. A campanha incorporará essa

consciência a moldar a maneira pela qual entendemos e reagimos à

violência sexual contra as mulheres (1 em 9 Campanha n.d.).

Os trechos acima foram extraídos de três peças que reflectem amplamente a

trajetória de diferentes processos de construção de movimentos. Todos eles

fazem isso de uma base conceitual / teórica, pensando nos contextos e gatilhos
que levaram a decisões particulares em torno de como os espaços feministas

46
seriam construídos. Adeleye-Fayemi (2000) discute o significado da construção

de um movimento feminista em África e as prioridades desse espaço. Em seu

artigo, ela analisa o amplo espectro de desafios, epistemológicos e

metodológicos, e procura reunir as diversas energias, principalmente

organizacionais, que contribuíram para a construção de um movimento de

mulheres em África. Ela enfatiza o trabalho de lobby e advocacia realizado pelas

organizações de direitos das mulheres e os ganhos delas. Ela também assume

uma posição crítica sobre feminismos transnacionais, conceituados por meio de

um exame da noção de 'irmandade' global. Adeleye-Fayemi (2000) considera as

hegemonias intelectuais e financeiras ocidentais e infere como elas levaram à


necessidade de evoluir 'feminismos locais'. As questões de classe, etnia, raça e

identidade de género não surgem como desafios centrais na sustentação de um

movimento feminista africano.

Horn, oito anos depois na sua peça, reflecte sobre a criação e deliberações no

segundo Fórum Feminista Africano (a AFF é um espaço feminista autónomo para

indivíduos que se identificam como feministas). ¹⁴ Ela examina o ethos e os

princípios orientadores da inclusão neste espaço. Ela também destaca, ainda que

brevemente, as tensões discursivas que emergem num espaço dessa natureza

que reúne diversos grupos de mulheres; estas giram amplamente em torno da

sexualidade, desde as questões do aborto até as da orientação sexual.

O terceiro trecho, derivado da Campanha 1 em 9, e representa uma tentativa

ousada de desafiar o estado (sul-africano) por meio de um agrupamento

47
deliberado de organizações (mesmo que indivíduos possam ter liderado o

trabalho) para oferecer solidariedade a acusadora (Kwezi ) durante o julgamento

por estupro de Jacob Zuma.¹⁵ A base ideológica do trabalho da campanha, sua

interpretação e seus termos de referência mais amplos são evidentes no trecho.

A Campanha 1 em 9 também se diferencia - dada a natureza "esporádica" de sua

evolução necessária ao caso e o facto de reunir organizações e indivíduos

enquanto cria espaço para trabalhar com aliadas - mantendo clareza no lugar da

liderança das mulheres e voz na campanha (consulte ww.oneinnine.org.za).

Sugiro que a Campanha 1 em 9 representa, na medida do possível, um

afastamento da inclusão e transformação binárias, por um lado, buscando


envolver-se conscientemente com a falsidade do género como uma identidade

fixa da qual a organização pode surgir e, por outro lado, reconhecendo

abertamente a realidade da homofobia como uma forma de violência contra as

mulheres e confrontando-a como uma das opressões que se cruzam.

Selecionei estes três trechos não porque são representativos de uma tendência,

mas porque oferecem, para os propósitos deste capítulo, uma narrativa que

define tanto a evolução quanto a continuidade das abordagens para construir e

sustentar movimentos feministas. Dois são de orientação pan-africana e um

nacional com aspirações sub-regionais. Todas as peças, quando lidas na íntegra,

fazem alusão aos imperativos teóricos que moldaram a evolução de cada espaço
ou onde foram desenvolvidas as ideias que moldaram espaços como o AFF. ¹⁶

Recorro especificamente aos conceitos de amizade, irmandade e solidariedade

para analisar as maneiras pelas quais eles foram conceitualmente implantados

48
na organização dos espaços feministas e / ou na mobilização de diversos actores.

Eu conto com o quadro de conhecimento feminista europeu e americano no

restante deste capítulo por duas razões principais. A primeira é informada pela

longa história da organização queer e teorização subsequente nesses contextos.

Em segundo lugar, embora os contextos possam diferir, esses estudiosos, em

momentos diferentes, foram envolvidos no mesmo conjunto de questões

políticas que este capítulo aborda, além de serem relevantes para o momento

actual de África.

Teorias sobre a amizade

A amizade era / é vista como solidariedade política; como constitutivo

dos movimentos feministas e a base da identidade colectiva. É vista como

um modo de apoio pessoal, intimidade e cuidado como produtora da

autoidentidade (Roseneil 2006: 324).

O núcleo da teoria da segunda onda do feminismo era a crença de que a

solidariedade entre as mulheres era vital. Ao contrário da posição de Beauvoir

(1968) em torno das dificuldades inerentes às mulheres que transcendem às

verdadeiras amizades, a ênfase nas amizades das mulheres baseada em

princípios de igualdade e não de desigualdade, como é evidente nas estruturas

49
heteronormativas patriarcais, foi enfatizada por Adrienne Rich (1980) e Mary Daly

(1978). “A amizade foi argumentada para oferecer ao feminismo um foco nos

aspectos agentivos, não institucionais, emocionais e prazerosos da vida social”

(Roseneil 2006: 323) . ¹⁶ Sugeria uma visão de mundo teórica diferente daquela

que atendia principalmente às estruturas de opressão de género, às arenas

institucionais através das quais a dominação e a subordinação são reproduzidas:

A afiliação e preferência homo relacional dos homens historicamente


fundam estados-nação, mas a amizade é característica e distintamente

interestelar, não regulamentada, voluntária e impulsionada pela busca

do prazer. Contrasta com as relações pessoais formais, legalmente


regulamentadas e institucionalizadas entre marido e mulher, pais e filhos

e o estado (Roseneil 2006: 323).

Importância foi colocada na amizade pelas gerações anteriores de feministas e

tornou-se a raiz ou base do feminismo como parte inerente e fundamental da

construção do movimento feminista (Roseneil 2006: 323). As lentes da amizade


permitiram um desafio à heteronormatividade e exigiram que se prestasse

atenção à transformação radical da organização da vida íntima (Roseneil 2006:

323).

50
Os estudiosos da análise da importância das amizades para o movimento

sufragista argumentam que as amizades se tornaram uma parte importante do

discurso do sufrágio porque diferiam da noção de camaradagem, que serviu de

discurso mobilizador no movimento socialista dominado por homens (Roseneil

2002, Roseneil 2006 : 327). Os atributos positivos das amizades das mulheres

foram patologizados, onde um amor apaixonado pela amiga veio a sinalizar

identidade sexual desviante. Esse desvio descritivo pode estar associado à

possibilidade de maior independência económica perante os homens e à

identificação do patriarcado como uma tentativa de reinar em laços

heterossexuais (Roseneil 2006: 327).

O surgimento de feminismos lésbicos fortes levou ao interrogatório das amizades

entre mulheres do mesmo sexo e se elas poderiam ser lidas como eróticas.
Smith-Rosenberg (1975) sugere que alguns desses relacionamentos eram

amorosos, em todos os sentidos, exceto o genital. Ela argumenta:

A questão essencial não é se essas mulheres tiveram contato genital e,

portanto, podem ser definidas como heterossexuais ou homossexuais. A

tendência do século XX de ver o amor e a sexualidade humanos dentro


de um universo dicotomizado de desvio e normalidade, genitalidade e

amor platónico, é estranha às emoções e atitudes do século XIX e distorce

fundamentalmente a natureza da interação emocional dessas mulheres.


Essas cartas são significativas porque nos forçam a colocar esse amor

51
feminino em um contexto histórico particular. Há indícios de que essas

quatro mulheres, seus maridos e famílias - todos eminentemente

respeitáveis e socialmente conservadores - consideraram esse amor

socialmente aceitável e totalmente compatível com o casamento

heterossexual. Emocional e cognitivamente, seus mundos hétero social e

homo social eram complementares (Smith-Rosenberg 1975: 8).

Rich (1980) desenvolve essa análise através de seu trabalho sobre histórias
lésbicas através de sua proposta de um continuum lésbico. Rich defendeu uma

visão das amizades entre mulheres do mesmo sexo como parte desse continuum

e, portanto, evidência de "amores" do mesmo sexo. Ela desafiou as definições


clínicas de lésbicas, defendendo uma mudança além da real experiência genital

sexual (Rich 1980: 51–3).

Sugiro que a abordagem analítica adoptada por Rich (1980) e Smith-Rosenberg

(1975), ainda que de maneira diferente, se enquadre em construções dominantes

de mulheres tão sem paixão na ênfase desses relacionamentos ou amores como

assexuais. O apagamento da sexualidade como chave da identidade lésbica, bem

como a negação da especificidade de seu trabalho (Roseneil 2006: 330).


Argumento que o continuum sugerido por Rich (1980) e Smith-Rosenberg (1975)

é aquele que permeia o discurso activista actual e se manifesta na construção de

amizades femininas - os fundamentos da 'irmã' camarada - como central em


principais espaços feminista autónomos. A ênfase no indivíduo, segurança e

52
rejuvenescimento como elementos críticos para a criação e promoção de espaços

autónomos é fundamental nesse sentido. Consequentemente, as relações entre

pessoas do mesmo sexo entre as mulheres estão situadas como parte de um

continuum heteronormativo e não como desempenhos distintos de sexualidades

de 'outras'. O apagamento da sexualidade como parte das amizades das mulheres,

por um lado, e a fusão das amizades das mulheres com as sexualidades lésbicas,

por outro, levanta um conjunto de desafios na conceitualização das identidades

queer e como a solidariedade entre os movimentos é, por sua vez, oferecida.

Construindo solidariedade

A evolução em direcção à adopção da solidariedade em oposição à 'irmandade'

foi baseada numa crítica que veio à tona na ausência de raça e classe como
analítica através de linhas na construção de movimentos (hooks 1984, Mohanty

2003). O conceito de 'solidariedade' foi argumentado como estrategicamente

mais poderoso. Académicas como hooks (1984) e Mohanty (2003) argumentaram

que a solidariedade não se baseava na assunção da mesmice da opressão e

permitia uma maior diferenciação (por exemplo, no que diz respeito à classe e

etnia) das raízes da opressão. O vínculo interno que naturalmente levaria à

solidariedade não era um fenómeno estável e pré- determinado, como elas

mantiveram, mas deveriam ser construídos em lutas políticas prácticas.

No entanto, a 'solidariedade', como é usada hoje, afirma descansar em fundações

incondicionadas. Uma abordagem essencialista da solidariedade sugere que os

53
relacionamentos são uma manifestação de algo autêntico; uma perspectiva

fundacionalista sustenta que as mulheres devem sentir solidariedade por causa

do vínculo interno entre as mulheres (hooks 1984: 59). Entendida como tal, a

solidariedade cria um sujeito pré-discursivo, mas, o mais importante, é uma

condição prévia para a acção. Em outras palavras, um grupo precisa sentir

solidariedade antes de poder agir com sucesso. Argumento que, embora útil, a

maneira pela qual a solidariedade e a irmandade são empregadas é limitada na

promoção de uma política que desafia o patriarcado de maneiras significativas.

Existem duas maneiras distintas pelas quais a solidariedade oferecida em torno


da crise de violência dirigida a pessoas identificadas como gays e lésbicas é

construída. A primeira é conduzida dentro de uma estrutura de direitos humanos

que lida com ela puramente com base num amplo espectro de direitos, que se
revogados por um estado desonesto, torna os requerentes impotentes. O

segundo conjunto de respostas são aquelas que estão dispostas a confrontar as

possibilidades desses relacionamentos como parte de um continuum

heterossexual, como uma área em que historicamente as amizades das mulheres

sempre 'se perderam', mas não ficam, onde o erótico actua como um mecanismo

para lidar com as 'limitações' dos laços primários de relacionamento

heterossexual do casamento e da família, invisibilizando e / ou 'compreendendo'

simultaneamente as relações lésbicas como extensões dos laços femininos


heterossexuais.

54
As amizades de mulheres são reconhecidas por sua capacidade de desafiar a

hétero realidade - uma realidade não dependente dos homens. Isso se baseia no

discurso de irmandade da década de 1970, em que os elos eletivos de amizade

entre mulheres se mostraram vitais na manutenção de comunidades feministas.

A desestabilização que essas amizades causaram em termos de discurso foi

afastar-se de um quadro hétero relacional. Ao contrário de desvalorizá-los, deu

primazia àqueles vínculos, eles não eram vistos como frívolos e isso por si só era

transgressivo e radical. Mostrou que cuidados e apoio poderiam ocorrer fora da

família, dentro dos espaços em que amizades e solidariedades são forjadas

(Roseneil 2006: 331). No entanto, resultou na fusão desse discurso com a


sexualidade lésbica e organização política relacionada.

As amizades homo relacionais (entre mulheres) que foram progressivamente


percebidas como um imperativo para a construção e manutenção de movimentos

feministas ocorrem dentro dos limites de uma estrutura heteronormativa, onde

os espaços feministas fornecem um alívio das restrições do casamento e das

estruturas hétero relacionais, como o estado, a universidade. e religião, que os

activistas encontram diariamente. A heteronormatividade permanece sub

problematizada e as amizades homo nacionais desenvolvidas nesses espaços

como parte da solidariedade permanecem no nível de apoio e não avançam no

sentido de desestabilizar a heteronormatividade a partir da qual se busca uma


suspensão. Os binários do homem-mulher, a heterossexualidade como

orientação sexual e não como um princípio organizacional do trabalho, economia

e poder, moldam a análise do estado, da economia e da transformação prevista.

55
Essa abordagem, como o continuum lésbico de Adrienne Rich (1980),

descentraliza a identidade sexual e subestima a centralidade da sexualidade

como parte central das relações lésbicas, deixando assim a heterossexualidade e

a heteronormatividade como estruturas analíticas e organizadoras intactas. Um

exame superficial das respostas feministas destinadas a combater e / ou

interrogar a tirania do Estado contra as 'sexualidades desviantes' vê as respostas

estatais como tácticas diversionistas que são orientadas a nos afastar das

preocupações urgentes de democratização por estados recalcitrantes e

autocráticos, por um lado ou como assuntos privados que não devem ser

'regulados' por outro (Tamale 2010, Nakaweesi e Mugisha 2009). A eficácia de tal
argumento no silenciamento de detratores não pode ser subestimada, mas suas

limitações são evidentes por três razões principais.

A primeira é que desmantela o ditado feminista do pessoal é político, além de

análises que procuraram desmantelar a dicotomia público / privado. Isso é feito

através da localização de relações entre pessoas do mesmo sexo no domínio

privado e como um espaço que não deve ser 'regulado'. Isso contraria as teorias

e experiências de violência doméstica, um dos locais de maior sucesso do

activismo feminista em todo o mundo. Em segundo lugar, limita o "desempenho"

desses relacionamentos ao domínio "privado" e não ao "público" por meio de uma

abordagem "não pergunte, não conte". Por fim, essas análises sub problematizam
a heterossexualidade - seu papel na organização da família, do trabalho e da

economia, sua função na institucionalização da heteronormatividade e através

desse estado de 'organização' de um 'estado secular aceitável'. A desestabilização

56
que as sexualidades do mesmo sexo anunciam - num contexto em que o estado,

a igreja e a governação confiam nas amizades domésticas masculinas como base

para os contractos sociais entre nações e estados - exige uma resposta contrária

violenta, que é a violência instigada pelo estado. A heterossexualidade, portanto,

actua como um meio de manter a ordem social patriarcal opressiva por meio da

família, da igreja e da "cultura" (McClintock 1995, Burton 1999, Stoler 2002).

A heteronormatividade também se torna o meio de reforçar hierarquias

particulares nas heterossexualidades. Seidman (2005: 40) observa que a

heteronormatividade 'não apenas estabelece uma hierarquia heterossexual /


homossexual, mas também cria hierarquias entre heterossexualidades',

resultando em 'formas hegemônicas e subordinadas de heterossexualidade'.

Essas distinções ignoram a recusa em colaborar com a heteronormatividade,

como Rich observa:

A história das mulheres que - como bruxas, fêmeas solitárias, resistentes

ao casamento, solteiras, viúvas autónomas e / ou lésbicas - conseguiram,

em vários níveis, não colaborar [com as normas heterossexuais]. É nesta


história, precisamente, a partir da qual as feministas têm muito a

aprender e sobre as quais há, em geral, esse silêncio abafador (Rich 1994

[1980]: 50).

57
Enqueerecendo¹⁸ espaços feministas

Os movimentos feministas têm uma longa história de tentativas de superar as

exclusões das mulheres no feminismo convencional - mulheres de cor, lésbicas,

bissexuais e transgéneros, mulheres indígenas, mulheres que não falam inglês,

mulheres do Sul global (Johnson 2005: 21–

37) Segundo Harcourt (2009), lidar com a exclusão só pode ser possível mediante

o reconhecimento de que o feminismo é construído sobre a 'política da diferença'

que pode existir ao lado da 'política da amizade'. No entanto, existem múltiplas


identidades, até conflitantes, entre os movimentos feministas (Harcourt 2009:

73). Essa abordagem leva a sério a teoria da interseccionalidade, que analisa como

diferentes categorias construídas social e culturalmente interagem, causando os


níveis complexos de desigualdades.

A interseccionalidade é uma "análise que afirma que sistemas de raça, classe

social, género, sexualidade, etnia, nação e idade formam características

mutuamente construtivas da organização social, que moldam as experiências das

mulheres negras e, por sua vez, são moldadas pelas mulheres negras" (Collins

2000: 299).

A interseccionalidade baseia-se no discurso teórico pós-moderno, em particular

sua crítica ao essencialismo e à desconstrução de sujeitos estáveis, incluindo um

sujeito feminista ('mulheres'). Isso, portanto, representa um desafio à teoria e à

58
política feminista essencialista: se "não há nada em ser" feminino "que

naturalmente ligue as mulheres" (Haraway 1991: 155), então quem devem

representar os movimentos feministas? Hooks argumenta que a solidariedade

não pode crescer por si só, mas precisa de um compromisso contínuo e

sustentado. Mohanty, escrevendo sobre o feminismo transnacional, acrescenta

que a solidariedade não deve ser vista como um fenómeno pré-determinado, mas

deve ser constituída na práctica, através do processo de trabalho conjunto.

Assim, o desafio é "construir o universal com base em detalhes / diferenças"

(Mohanty 2003: 7). Haraway (1991), Hooks (1984) e Mohanty (2003) afastam-se de

uma política do essencialismo para propor uma política de construção e


afinidade de coalizões.

A ideia de grupos de afinidade vem dos movimentos anarquistas e

operários da Espanha do final do século 19, que mais tarde lutaram contra

o fascismo durante a Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo em que o

modelo de grupos de afinidade estava era adoptado pelo movimento

antiguerra na década de 60, formavam-se pequenos grupos de mulheres

de "conscientização". A partir do final da década de 1960, houve uma

'transformação das noções feministas de intervenção política'. As


feministas estavam rompendo com "as tácticas tradicionais de lobby e,

até certo ponto (...) política de oposição de esquerda", que eram

dominadas por homens e não ofereciam espaço para as agendas das

59
mulheres. Isso foi reconhecido como o tipo de práctica e organização

política que tornaria o movimento de libertação das mulheres 'auto-

iniciante, auto-regulador e autodirecionado' (Whelehan 1995: 8).

Grupos de afinidade foram mais recentemente associados ao movimento

antiglobalização e às maneiras pelas quais os jovens se envolvem em movimentos

sociais. A direcção e o momento dos movimentos não viriam de seguir líderes ou

especialistas de confiança, mas de levar as pessoas a interagir e analisar elas


próprias a sua situação (Coote e Campbell 1982: 23). Ao contrário da identidade

baseada na solidariedade, a afinidade não precisa ser fundada em um consenso

subjacente entre os membros do grupo, mas as identidades políticas são


formadas em um acto de negar os 'elx' construídos19 (Lloyd 2005: 163). Negar os

"elx" construídos significa traçar uma fronteira política entre "nós" e "os outros"

através do acto de articulação. Novas posições de sujeito são nomeadas e

explicadas pela negação de certos "elx", por exemplo, como anti-racismo, anti-

sexismo, anti-capitalismo.

O feminismo pós-moderno, que desafia a validade da organização

principalmente com base na identidade de género, foi visto como um beco sem
saída para o feminismo político como um movimento. O género é visto como uma

construção e, portanto, desafia a existência de 'mulher' como uma categoria.

Segundo esse argumento, devido à falta de "uma experiência compartilhada de


opressão - uma identidade - demandas políticas não podem ser articuladas"

60
(Lloyd 2005: 55). No entanto, se os grupos de afinidade são um modelo que pode

ser efectivamente implantado para desestabilizar a heteronormatividade e o

género como princípios organizadores, de que tipo de identidades políticas

falamos? Wieringa (2009: 36) pergunta: resistências ou identidades de oposição

formam um melhor ponto de vista para a partir do qual organizar a política

feminista? Isso parece realmente muito provável, mas a próxima pergunta é

como passar da oposição, resistência, negação, para demandas positivas, para

uma agenda de mudança?

O desafio continua a ser como criar um modelo de grupo de afinidade que seja
sustentável e capaz de lidar com a inevitável hierarquia de profissionalização

exigida pelos financiadores, ainda que flexível e transparente e capaz de

mobilizar o entusiasmo de diversos grupos. Isso requer não apenas a mobilização


política teorizada que o modelo de afinidade permite, mas também uma nova

política feminista: idealista, porém pragmática, profissional, transparente, capaz

de construir alianças com diversos grupos e interesses estabelecidos.

O potencial de solidariedade efectiva²⁰ entre um movimento queer emergente e

os espaços feministas autónomos dominantes só pode ocorrer se as teorias

fundamentais que estruturam os espaços mudarem. Essas teorias devem ser

capazes de reconceituar o significado das amizades homo sociais e o ténue


relacionamento com identidades e sexualidades queer. A 'solidariedade'

oferecida ao crescente movimento queer em África não pode simplesmente ser

vista como a chave para a construção de pontes entre os movimentos, mas como

61
uma que desestabiliza a heteronormatividade ao desmantelar a forma como a

família, o estado e a economia reproduzem a heterossexualidade normativa. Essa

abordagem começa a separar amizades / 'experimentos' e desejos do mesmo

sexo, dando assim credibilidade à identidade sexual e política atribuída a ser

queer e separando-a de uma que coexista ordenadamente dentro de um

paradigma heteronormativo. Pelo contrário, deve ser uma que perturbe a

teorização primária nos espaços activistas feministas, que toma identidade de

género dada (homem / mulher) como uma estrutura para entender, confrontar e

desmantelar o patriarcado.

Notas

1-A luta é usada para se referir às tensões manifestas na navegação de múltiplos identificadores, alguns políticos, alguns vistos
como pessoais, outros rotulados como arriscados e em conflito. Por exemplo, onde uma lésbica ocupa um cargo público, mas
sua homossexualidade não é uma questão política, o resultado é muitas vezes um silenciar sua identidade sexual ou torná-la
pública e transformá-la em uma questão política. Na maioria dos contextos africanos, os dois não coexistem ordenadamente.

2-Isso pode significar qualquer coisa, desde um 'silêncio' sobre orientação sexual e heteronormatividade no discurso activista
feminista a referências abertas a uma outra pessoa - ou elas - ou a reticência em identificar e se envolver abertamente com
as lutas políticas LGBTI, quando convocadas. No Quénia, por exemplo, os lobbies mais vocais a favor da escolha foram
ginecologistas, e não activistas de direitos das mulheres.

3-Não me aprofundo em uma discussão sobre a existência e a viabilidade do movimento de mulheres. Isso foi discutido mais
recentemente pela AWID por meio de seu projectos de pesquisa de construção de movimento (consulte www.awid.org). Faço
a distinção entre o movimento de uma mulher e os espaços feministas com base em análises adicionais neste capítulo, que
traçam a divisão entre o movimento de uma mulher que se baseia no feminismo como sua ideologia organizadora e aqueles
que se distanciam dele.

62
4-Os activistas dos direitos das mulheres foram retardatários em debates pró-escolha e, ao negociar com o estado e outros
locais de poder, como a igreja, a escolha foi efectivamente apagada.

5-Decerto aqui a partir de conversas com mulheres queer que tiveram que negociar pela menção de direitos e escolhas sexuais
de maneira significativa nas declarações e declarações da conferência. A franqueza sobre a distração que a orientação sexual
pressagia foi oferecida porque a identidade queer deles não estava em primeiro plano como sendo política.

6-Trago aqui conversas com activistas na África Subsaariana que trabalham com organizações LGBTI ou são activistas LGBTI
auto-identificadas em vez de serem mulheres lésbicas.

7-A palavra queer aqui é semelhante à interpretação de Jolly de que ela constitui uma rejeição da distinção binária entre homo
e heterossexual e, portanto, uma conceituação de sexualidades como não essenciais e transitórias (Jolly 2000: 84).

8-'Heteronormativo' é usado aqui para se referir a instituições, estruturas de entendimento e orientações prácticas que fazem
a heterossexualidade parecer não apenas coerente, isto é, organizada como sexualidade, mas também privilegiada.

9-Trabalhos académicos mais recentes nessa área produziram análises mais diferenciadas (ver, entre outros, Bennett 2008,
Lewis 2003, Mekgwe 2008, Mupotsa 2008, Pereira 2009, Salo 2005).

10-Veja uma discussão mais completa sobre isso por Hassim (2004).

11-Uso a diversidade aqui para destacar os binários existentes que atribuem alteridade a desejos homoeróticos, por exemplo.

12-Para uma discussão mais completa sobre isso, consulte o projectos de pesquisa de construção de movimento de Batliwala
(2002) e AWID e amplos recursos sobre o assunto em www.awid.org.

13-Um factor do fim da guerra fria.

14-Embora Horn, em sua peça, seja cuidadosa ao usar linguagem não específica de género por meio da palavra 'pessoas', o
espaço tem como alvo pessoas que se identificam como mulheres, tanto biologicamente quanto em desempenho, no sentido
de que, mesmo que eram lésbicas, elas identificariam como mulheres lésbicas, em vez de homens lésbicos.

15-Em 2005, o então vice-presidente sul-africano, Jacob Zuma, foi acusado pelo estupro de Kwezi. Mais tarde, ele foi absolvido
de todas as acusações. A formação da Campanha 1 em 9 foi estimulada por este caso.

16-A contribuição de Adeleye-Fayemi para uma série de iniciativas de construção de movimentos feministas africanos pode
ser obtida em sua peça.

17-Roseneil é privilegiada aqui pela extensa análise que ela oferece sobre as teorias da amizade baseadas em uma história da
análise feminista em torno do movimento sufrágio britânico, entre outras. Infelizmente, a literatura teórica sobre mulheres e
amizades permanece limitada ao contexto do norte (veja também Roseneil 1995, Roseneil 2000, Roseneil 2002).

63
18-Queer é usado aqui para significar impacto / efeito.

19-Ver o relato sincero de Honor Ford-Smith (1997) sobre o significado de construir um movimento através da práctica de
uma organização. Suas experiências como membro fundador do Sistren - um colectivo de teatro jamaicano para mulheres -
são úteis para reflectir sobre o significado do poder de negociação, classe e financiamento.

20-Solidariedade é usada aqui para se referir às possibilidades de uma fusão de interesses ideológicos e políticos na busca da
equidade e da não discriminação com base em sexo, género, orientação sexual, credo, raça ou etnia, conforme descrito em
uma infinidade de estruturas baseadas em direitos.

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67
68
3 – DISCURSOS PÓS-COLONIAIS SOBRE CLASSE E ACTIVISMO QUEER
EM ÁFRICA - Lyn Ossome

Introdução

Actualmente, a África é confrontada com fenómenos neocoloniais do capitalismo

e do racismo globalizado (Schuhmann 2007: 122), facto que mais do que nunca

sugere a necessidade de um fortalecimento engenhoso dos movimentos em torno


de uma política apoiada por um engajamento consciente com diversos locais e

histórias de sofrimento. A mudança dos estados africanos em direcção à

democratização, a partir do período de ajuste estrutural do final da década de

1980, é historicamente importante por, entre outros fatores, o impacto que teve

na criação de visibilidade em torno do activismo queer e das lutas de classes. O

período democrático foi sublinhado por uma demanda intensificada por


liberdades, que por um lado facilitou a "saída" dos direitos de lésbicas, gays,

bissexuais, transgéneros e intersexuais (LGBTI)¹ e, por outro, desencadeou uma

onda de concorrentes fundamentalistas e afirmações moralistas que ainda

facilitam uma reacção negativa. ² Sobre isso, Neville Hoad escreve:

69
Numa relação interessante com sua circulação transnacional, os direitos

humanos de lésbicas e gays emergiram como um factor novo, mas

vulnerável, na hegemonia nacional pós-apartheid da África do Sul, onde

sua instituição provisoriamente bem-sucedida pode ser explicada pela

insistência de activistas em seu caráter nacional contra seus formatos

transnacionais. Sua temporalidade é igualmente desconcertante. Eles

surgiram no momento do transnacionalismo, embora no sul da África

esse momento também seja o momento tardio do pós-colonial. O

Zimbábue se tornou independente em 1981 e a Namíbia em 1991; A África

do Sul realizou suas primeiras eleições democráticas em 1994. Esses


direitos foram comprometidos como um legado do colonialismo e como

um meio de facilitar uma nova forma de identidade que ameaça os

valores nacionais. Eles se tornaram uma relíquia do passado colonial que

deve ser transcendida e / ou um sinal do futuro transnacional que deve

ser temido (1999: 561–2).

Uma infeliz vítima dessa abertura de espaços políticos tem sido o envolvimento

decrescente com os activistas da justiça social na análise de classes. Enquanto os

fundamentalistas religiosos se alinharam com o poder do Estado, os grupos


LGBTI foram deixados de fora no frio: a intensificação da homofobia, existente

em grande parte no contexto do liberalismo económico e do fundamentalismo

religioso na África, fala sobre esse estado de coisas. Muitas relações sociais

70
opressivas, como as do racismo e da homofobia, envolvem um falso

reconhecimento sistemático. Embora essa mudança da distribuição para o

reconhecimento tenha sido progressiva ao destacar formas de opressão até então

ignoradas, alguns observadores lamentaram o facto de que parece ter sido

associada a um abandono da preocupação com a política de classe, que tem sido

associada à política de distribuição (Philips 1999). A retirada da classe não foi

meramente ilógica, mas decididamente prematura, pois coincidiu com o

aumento das tentativas dos neoliberais de legitimar as desigualdades de classe.

Entre muitos discursos que enquadram a onda renovada de homofobia em toda


a África actualmente, existe um que se localiza amplamente dentro de duas

vertentes conservadoras do pensamento. Uma vertente é uma conversa civil que

envolve questões do próprio direito de existência de pessoas queer, e é


principalmente de contexto político. O outro, embora reconheça tacitamente

esse direito, constrói relações do mesmo sexo em torno de sua materialidade e

vincula liberdade e escolha a questões de acessibilidade: esse pensamento fala

implicitamente dos direitos sociais e económicos como a fronteira emergente da

luta pelos grupos LGBTI. Busco neste capítulo demonstrar a necessidade urgente

de colocar em primeiro plano essa última vertente e ilustrar as maneiras pelas

quais a política, embora importante, está a ser usada por activistas queer em

África para submergir uma luta abrangente pelos direitos socioeconómicos.

Podemos observar em muitos países que, em tempos de tensão socioeconómica,

direitos dos cidadãos e, especificamente, a protecção de grupos considerados

71
mais vulneráveis, como mulheres, imigrantes e outras minorias, tornam-se

bodes expiatórios em nome do patriotismo, que geralmente inclui referências a

uma tradição homogénea assumidamente compartilhada. É o abjeto 'outro'

(imigrantes, pervertidos, criminosos, HIV /SIDA, prostitutas, sem-tecto - as

classes perigosas) que é responsável por ameaçar a paz interior, em vez de, por

exemplo, noções hegemónicas de masculinidade violenta ou interesses de classe

específica (Schuhmann 2010: 100). Embora exista uma tendência a culpar apenas

os estados, os processos nacionalistas e étnicos também, dependendo de seus

objectivos, podem projectar forças hegemónicas na sociedade e, ao fazê-lo,

atrapalhar o poder do próprio Estado de proteger as minorias. As hegemonias


nacionalistas, étnicas e moralmente vinculadas (adoptando noções religiosas

fundamentalistas e puritanas ideológicas de descolonização) empregam uma

variedade de tácticas destinadas a deslocar e tornar invisíveis as vozes activas de

grupos não conformes. O efeito disso é exclui-los das lutas de classes e,

efectivamente, da participação política. ³

Em África, essas tácticas incluem o uso generalizado de mitos alienantes,

violência e discriminação directa de maneiras que desestabilizam e

comprometem directamente a participação dos membros das comunidades

LGBTI que também são membros de classes oprimidas e desfavorecidas. Além

disso, a solidariedade heterossexista tem sido usada para obscurecer as


diferenças de classe, em detrimento das pessoas pobres de todas as identidades

culturais. Essas tácticas também restringem severamente a capacidade de

acessar e estabelecer legitimamente reivindicações de direitos, mesmo em países

72
que obtiveram sucesso nominal com legislação que proíbe a discriminação, como

a África do Sul. Ilustrarei todos os três pontos, tirando exemplos de conversas e

disputas em andamento no continente.

Mitos desestabilizadores, activismo queer e

apagamento da memória

Um crescente corpo de pesquisa, activismo e arte demonstrou de maneira

abrangente a falsidade do "facto" da heterossexualidade exclusiva dos africanos.

⁴ Portanto, vale a pena interrogar as maneiras pelas quais as rotulações "elitista"


e "ocidentocêntrica" são direcionadas ao activismo e activistas queer. Destacando

essa linha de pensamento na bolsa de estudos, Amory (1997) observa que a

evitação estudada de pesquisas sobre homossexualidade e o pânico


heterossexual com relação a esse assunto são mais bem capturados pelo refrão

recorrente e insistente: 'Não há homossexualidade na África!, frequentemente

acompanhado pela acusação igualmente insidiosa de que a homossexualidade é


uma "perversão ocidental" imposta ou adoptada por populações africanas. Essa

visão de queer decorre em parte de uma cidadania heterossexual excludente que

ignora o facto de queer representa uma resistência a qualquer coisa socialmente


definida como normal e, nesse sentido, queer pode excluir algumas prácticas de

73
gays e lésbicas que têm uma 'perspectiva normativa' ou podem incluir outras

experiências que não são explicitamente sexuais (Jagose 1996: 98). É uma visão

altamente prejudicial que afasta do principal e invisibiliza reivindicações

legítimas de inclusão e diversidade económica e política por grupos queer.

Existe um processo dialéctico na aparente localização económica hegemónica de

grupos minoritários sexuais dentro dos estados. Evans observa que existem

restrições legais e morais que impedem uma variedade de grupos marginais ou

minoritários de perseguir suas crenças religiosas e culturais ou necessidades

económicas em medidas iguais. A administração do estado desses 'estrangeiros


morais', que podem ser encontrados na matriz marginal da cidadania, é exercida

em arenas sociais, políticas e económicas e resulta em discriminação formal e

informal. Esta é a zona do crepúsculo entre as construções liberais e republicanas


da cidadania, onde estão localizadas minorias religiosas, étnicas e sexuais - fora

da "comunidade moral" nacional, mas dentro da nação cívica. Para aqueles que

podem pagar, este não é um sistema completamente fechado (1993: 6). Grupos

minoritários sexuais desenvolveram, como resultado, infraestruturas

socioeconómicas da "comunidade" de graus variados de complexidade em torno

de suas identidades. Eles se organizaram para obter mais moradia, seguro,

assistência médica, paternidade, direitos conjugais e assim por diante, e gastam

uma proporção significativa de sua renda em, por exemplo, produtos gays e
estilos de vida distintos em territórios sociais e sexuais segregados ou

especificamente gays (1993: 8 ) Entre os activistas LGBTI africanx, a retirada para

enclaves semelhantes⁵ foi imposta em grande parte por alta insegurança na

74
forma de brutalização sexual, física, emocional e psicológica. No centro desse

retiro está o imperativo de sobreviver económica e social e culturalmente.

Limites morais estritos na sociedade geram comunidades limitadas pela

imoralidade e ilegalidade e que, ao negociar

suas reivindicações de cidadania, adoptam mecanismos económicos que

parecem paradoxalmente evitar a participação activa dentro de paradigmas mais

amplos de direitos políticos e sociais que representam legitimamente suas

reivindicações como cidadãos. Os movimentos populares são particularmente

vulneráveis a tendências reducionistas, resultado da "política de identidade". O


problema dos que adoptam políticas de identidade é que eles acabam

obscurecendo as questões de classe e, no processo, perdem o foco estratégico e

o potencial de alianças mais amplas. Como observa Yuval-Davis, a política de


identidade tende não apenas a homogeneizar e naturalizar categorias e

agrupamentos sociais, mas também a negar limites inconstantes de identidades

e diferenças de poder interno e conflitos de interesse (1997: 119).

Desestabilizando mitos

As lutas de classes representam um local no qual os mitos sobre a

homossexualidade são reproduzidos e retraídos. A perpetuação de noções

homogeneizadoras que abrangem todas as pessoas queer sob uma categoria

75
alienante e controversa é, nessa medida, curiosa. O mito da homossexualidade

como elitista, uma classificação prejudicial e racialmente manipulada, procura

despir a identidade sexual de suas intersecções com subjetividades de género,

raça ou etnia, e, ao fazê-lo, diminui essencialmente o leque de questões sobre as

quais os grupos minoritários sexuais podem fundamentar suas relações sexuais.

lutas. O efeito é negar aos LGBTIs pobres o apoio e a solidariedade de outros

grupos constituintes que são marginalizados economicamente da mesma forma

- por exemplo, a extensão das vulnerabilidades específicas das lésbicas como

mulheres, trabalhadores assalariados ou minorias étnicas, que podem ser

ocultadas por essa homogeneização de discursos de elitismo. A distorção


resultante é o surgimento de uma história independente de culturas que informa

instituições, sistemas e conceções ideológicas da natureza e localização de nossa

opressão como povo africano no continente e na diáspora.

É importante perguntar quem se beneficia com a produção desses mitos e

distorções. ⁶ Pode-se argumentar que as elites dominantes, com o apoio do poder

do Estado, buscam, através desse discurso divisivo, isolar uma classe de elite

minoritária, identificada pela orientação sexual, que se identifique falsamente

com as forças globais de opressão. A maioria dos grupos marginalizados

que eles visam, apesar desse tipo de moralização, é vendida na crença de lutar,
junto com o Estado, por um inimigo comum - uma força global opressora. As

pessoas queer são alvo não tanto por causa de sua identidade, como para

deliberadamente continuar o recrutamento ideológico dos sujeitos, subverter a

76
realidade das lutas compartilhadas e sustentar a opressão de classe da maioria.

Existem muitas tácticas à disposição do estado e das classes dominantes para

alcançar esse objectivo, das quais o mais dramático testemunhado actualmente é

a violência física e institucionalizada. ⁷

Violência

As formas de violência sexualizada que penetram nas sociedades derivam de uma

base estrutural que perfila aquelas que visam ao longo de linhas de classe, género,
raça e etnia. A violência sexual direcionada a indivíduos queer pode ser entendida

num sentido como uma arma política nas mãos de grupos desprivilegiados que

são também vítimas da violência estrutural num sistema económico desigual que
induz a violência entre os excluídos ou marginalizados economicamente. No

entanto, a efectividade dessa violência na realidade funciona dentro de um

sistema que sub-perfila indivíduos dentro dessas categorias: assim, a

identificação heteronormativa de indivíduos dentro de categorias raciais, étnicas

e de classe coloca pessoas queer identificadas fora das matrizes nas quais a

violência estrutural é praticada compreendida e abordada.

As feministas marxistas criticaram a violência contra as mulheres em relação à

produção e reprodução capitalistas, e sua capacidade de interromper a

77
reprodução da força de trabalho. Embora essa reprodução esteja

predominantemente atrelada aos salários, também foi demonstrado que ela

depende da conquista e do gozo de certos direitos e liberdades fundamentais.

Esse tipo de entendimento permitiu o surgimento de uma resposta holística à

opressão económica das mulheres que abrange políticas micro /

macroeconómicas, representação política e codificação legal em estatutos e

convenções nacionais, regionais e internacionais. No entanto, o sub-perfil

mencionado acima e a reprodução ideológica heteronormativa do trabalho

significam que mulheres lésbicas e bissexuais, por exemplo, continuam

circunscritas a reivindicar vitórias semelhantes pela segregação deliberada ou


falha em vincular a violência homofóbica aos padrões gerais de violência

económica na sociedade.

Uma demonstração clara desse ponto é a recente negação do status observador

à Coligação de Lésbicas Africanas (CAL) na Comissão Africana de Direitos

Humanos e dos Povos (CADHP). A comissão recusou o pedido sem apresentar

qualquer motivo. Ao ignorar os objectivos declarados da CAL, que estão

enraizados no avanço da igualdade de género, justiça social e protecção dos

direitos de indivíduos particularmente vulneráveis (CHR 2010), esta decisão

ilustra uma das maneiras pelas quais a busca de objectivos políticos

conservadores e convenientes pode servir para aprofundar a discriminação


económica contra todas as mulheres, e não apenas aquelas ostensivamente

visadas por ela, pois nesse caso como a lei calibra a reivindicação de direitos que

não sejam por meio de sua aplicação não discriminatória com base no género? A

78
definição precisa do termo "género" em si permanece não especificada nos livros

de estatutos da CADHP.

Apagamento

Outro exemplo que deve estar relacionado à violência económica é a votação em

2010 na Assembleia Geral das Nações Unidas a favor de uma emenda que retira a

orientação sexual de uma resolução anti execução. Marrocos e Mali, dois países

muçulmanos socialmente conservadores da África, introduziram no comitê de

direitos humanos da Assembleia Geral uma emenda à resolução, que é publicada

a cada dois anos, para condenar execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias


e outros assassinatos. Este voto é significativo se entendido no contexto de

escassez económica e violência. Embora o número líquido de novos conflitos

surgidos na África tenha diminuído significativamente nas últimas duas décadas,

a ameaça de guerras civis é grande nas nossas democracias instáveis e nas

economias em dificuldades, do Sudão à Costa do Marfim, do Quénia ao Zimbábue.

Movimentos populares recentes contra o desemprego, a pobreza e a corrupção

da elite dominante no norte da África mostram um quadro ainda mais profundo

das lutas de classes que ganham impulso no continente. Dentro dos contextos

económicos dos conflitos, muitos observadores observaram que pobreza e

violência andam de mãos dadas e que há uma forte relação negativa entre

79
crescimento económico e crime entre países. Os grupos minoritários sexuais

tornam-se particularmente vulneráveis ao bode expiatório e à caça às bruxas em

tempos de dificuldades económicas. ⁸ Sua exclusão explícita da resolução da

Assembleia Geral, que especifica a violência como uma função da raça,

nacionalidade, etnia, religião, idioma, status de refugiado / indígena, nega

estrutura à ampla natureza da violência homofóbica. Além disso, a substituição

da especificação de discriminação com base em 'orientação sexual' pela frase

mais generalizada 'razões discriminatórias em qualquer base' é demonstrativa de

um apagamento deliberado e obscurecimento do nexo existente entre violência,

identidade sexual e classe. No caso de choques económicos, como destacado


acima, também pode eliminar a violência homofóbica de seus contextos

económicos e sociais, restringindo a resistência a um campo de batalha político

(de direitos) e isolando-a de suas raízes económicas e validade como questão de

classe.

Liberalismo económico e fundamentalismos

Hoje, mais do que nunca, é reconhecida a realidade de que os indivíduos ocupam

múltiplas identidades que podem mudar, se fundir ou emergir, assim como a

necessidade de mapear as lutas de classes dentro dessa realidade complexa.

Indiscutivelmente, o mais controverso deles é a sexualidade, cujo cerne está no

princípio da escolha, que por sua vez se baseia no princípio da liberdade. Como

80
tal, qualquer limitação na escolha é um ataque à ideia de liberdade. No nexo entre

liberdade e escolha, presume-se a capacidade dos indivíduos de acessar,

expressar e gozar de direitos, os mais básicos relacionados a questões de

sobrevivência. Actualmente, essa capacidade é limitada para muitas populações

da classe trabalhadora na África, desprovidas de políticas económicas

neoliberais. Um resultado desse estado de coisas é o aumento de

fundamentalismos culturais e religiosos que se manifestam em exclusão, falsa

compartimentação, separação e silenciamento de opressões.

Para os grupos LGBTI, esse silenciamento foi incluído na luta clássica entre
movimentos sociais progressistas e hegemonias nacionalistas, especialmente

partidos políticos conservadores e elites dominantes, para controlar o apoio

popular e reter o poder diante dos desafios económicos e sociais globais. Os


movimentos sociais existem primariamente como contrapeso aos excessos

burocráticos: como voz alternativa, apelam a uma maioria consciente que é

marginalizada económica, política, social e culturalmente por indivíduos,

instituições e processos dominantes na sociedade. No entanto, ao mesmo tempo,

os movimentos sociais respondem e articulam suas demandas por meios que são

(necessariamente) táticos e podem ser excludentes, se forem convenientes.

Enquanto grupos constantemente vigilantes de mudanças nas prioridades

globais, em conversas incessantes e interrogações de prerrogativas nacionais


para o desenvolvimento e em busca perpétua de apelo em massa, os movimentos

sociais tendem a evitar, embora de forma tácita, os temas e as disputas que

possam comprometer seu amplo alcance crítico e diluir sua eficácia.

81
Inevitavelmente também, as questões temáticas que definem as lutas

provavelmente serão influenciadas por noções hegemônicas de 'bom' ou 'mau',

pois reagem instintivamente em oposição ao mainstream.

Portanto, não é de surpreender que, num momento em que a África e africanx

sejam atacados por vários meios de comunicação com a 'não africanidade' da

homossexualidade, uma reivindicação altamente politizada sancionada e agitada

por estados apáticos, a reacção mais visível dos movimentos sociais tenha sido

réplicas fracas no mesmo fôlego politizado e, no processo, submergindo questões

centrais de dificuldades económicas, meios de subsistência e sobrevivência em


torno das quais esses discursos polarizadores são estruturados. Simplificando,

os estados e as sociedades precisam que os movimentos sociais se identifiquem

entre si, cordeiros de sacrifício diversificados, e África testemunhou um número


no passado: asiáticos no Uganda de Idi Amin, estrangeiros na África do Sul,

albinos na Tanzânia, bruxas no Quénia, Moçambique, Tanzânia e Uganda.

A diferença sempre foi empregada para desviar a raiva da sociedade quando as

economias não favoreciam a maioria e, à medida que os governos africanos se

inclinam cada vez mais para as mesmas políticas económicas baseadas no

mercado que privaram muitas populações no passado, a fabricação de 'diferença'

e a perpetuação de que o fundamentalismo deve continuar, com os movimentos


sociais - a menos que estejam dispostos a mudar de tática - permanecendo no

centro desse acto de equilíbrio (Jagose 1996: 94-5). Paradoxalmente, apesar da

aparência de reacção, actualmente o activismo queer experimenta um impulso

82
ressurgente no continente: os debates de visibilidade no meio académico e, para

o público em geral, a curiosidade em torno do assunto são recursos que podem

ser mais uma vez aproveitados para perseguir o objectivo da justiça social e

económica.

Transcendendo diferenças; reorientando as lutas de classe

Qual é a importância de sustentar essa conversa? O que está em jogo? De uma

perspectiva política, o impacto do activismo queer na evolução pós-libertação em

África e na diáspora é uma área que recebeu pouca atenção nos discursos pós-

coloniais. Sua contribuição para estudos relacionados a género e sexualidade,


bem como violência e representação, permanece sub-teorizada ou totalmente

ignorada no continente.

Uma contribuição significativa está relacionada ao aumento do HIV /SIDA e seus

vínculos com o Haiti e a África. Na descoberta precoce da epidemia, o bode

expiatório de haitianx e, posteriormente, de africanx trouxe certa consciência e

sensibilidade da diáspora a pelo menos um encontro com a doença - a geminação

veio do activismo anti-racista e gay (Walcott 2007: 30). Desde o início dos anos

90, as pressões multidirecionais que a epidemia do SIDA impunha sobre

categorias de identificação, poder e conhecimento exigiam e alimentavam novas

formas de organização política, educação e teorização, que eram amplamente

83
produzidas sob a rubrica da teoria queer. Notavelmente, essa contribuição

abrangeu a política de coligação de grande parte do activismo de SIDA que

repensou a identidade em termos de afinidade e não de essência (Saalfield e

Navarro 1991) e, portanto, incluiu não apenas lésbicas e gays, mas também

bissexuais, transexuais, profissionais do sexo, pessoas com SIDA ( PWAs),

profissionais de saúde e pais e amigos de gays. Esta epidemia também exigiu

repensar os entendimentos tradicionais do funcionamento do poder nas lutas

cruzadas sobre epidemiologia, pesquisa científica, saúde pública e políticas de

imigração (Halperin 1995: 28).

Em África, como em muitos países pobres de outros continentes, o impacto da

pandemia da SIDA foi sentido de maneira mais profunda no ponto em que rompe

as bases económicas das famílias e comunidades, mas também de maneira que


rompe as dominantes relações sociais e científicas e respostas ao tratamento. A

realidade dos homens que fazem sexo com homens (HSH) ganhou

reconhecimento firme como crucial para as campanhas de tratamento de HIV /

SIDA em muitos países africanos. A moeda do fenómeno HSH está no facto de a

grande parte da classe média demográfica afectar, juntamente com os impactos

potencialmente devastadores na força de trabalho da economia em

desenvolvimento. Como tal, ocorreram mudanças positivas e importantes nas

políticas de emprego que agora reconhecem o HIV como base de discriminação,


apesar das tentativas de separatismo e apagamento. Marc Epprecht (2006) nos

exorta a considerar se, mesmo que a práctica homossexual não seja comum ou

reconhecida como tal, homofobia, transfobia, heterossexismo e outros discursos

84
de "invisibilização" podem ser influências culturais significativas na população

majoritária. Nesse caso, as intervenções destinadas à maioria da população hoje

em dia (para o empoderamento das mulheres e a saúde sexual, principalmente)

não podem, argumenta, se dar ao luxo de ignorar ideias provenientes de quadros

de conhecimento e activismo queer.

Um passado africano altamente moralizado, uma sociedade não marcada pela

decadência, é imaginada e montada como palco para projectos descolonizadores

que são investidos em movimentos como o pan-africanismo e o feminismo

africano, ambos culpados de uma política de identidade específica que, na


normalização da heterossexualidade, exclui certos sujeitos em nome da

representação. É necessário reiniciar uma conversa mais honesta dentro dos

movimentos e entre activistas e, em particular, transcender as diferenças que


polarizam, enfraquecem e comprometem o activismo destinado a criar uma

sociedade mais justa. Carregar a voz de grupos LGBTI de maneira eficaz nas lutas

de classes exige que seu activismo seja visto como enraizado em diferentes locais

de luta que não devem ser vistos como contraditórios entre si e, como argumenta

Judith Butler (1993), não precisa ser reconciliada uns com os outros. Isso, por

exemplo, significa envolver-se com as posições adoptadas por activistas queer

que participam de movimentos femininos (como feministas), como trabalhadoras

de sindicatos e em outras plataformas de justiça social e económica, as quais


podem ser realizadas ao mesmo tempo, como interseccionais e às vezes

confluentes. Isso não é para afastar a diferença, mas para reconhecer e

desenvolver a diversidade. Nira Yuval-Davis (1997: 131) nos exorta a uma "política

85
transversal", na qual a unidade e a homogeneidade percebidas são substituídas

por diálogos que reconhecem o posicionamento específico daqueles que neles

participam, bem como o "conhecimento inacabado" que cada um desses

posicionamentos situados pode oferecer. A política transversal, no entanto, não

pressupõe que o diálogo seja livre de fronteiras e que cada conflito de interesses

seja reconciliável. Os limites de um diálogo transversal são determinados pela

mensagem, e não pelo mensageiro.

Enquanto o estágio político permanece abstraído (por estruturas de poder) para

a maioria de africanx, o estágio socioeconómico do pão com manteiga é aquele


que é imediatamente acessível à maioria, no qual são mapeadas a vida cotidiana

e as lutas pela sobrevivência e dramatizado de maneiras notavelmente

semelhantes entre fronteiras étnicas, sexualizadas ou racializadas. Há uma maior


probabilidade de alcançar a unidade neste último estágio; portanto, não é de

surpreender que seja mais crucial que os poderes hegemónicos procurem

eliminar esse estágio como base para a campanha unitária, como já é

testemunhado pelas tentativas de acabar com os direitos LGBTI e nossa

participação em supra-organismos como a União Africana e a ONU e em nível

nacional por meio de processos legislativos, como as tentativas em Uganda desde

2009 de legislar de maneira extrema contra a homossexualidade. É igualmente

crucial, portanto, que activistas reconheçam a moeda desse estágio


socioeconómico e trabalhem para consolidá-lo como uma base essencial para as

lutas de classes.

86
Conclusão

Amory (1997) observa que nossas análises precisam ser informadas pela

conscientização das causas múltiplas e interseccionais da perseguição e opressão

políticas: género, raça, etnia, classe, religião, assim como sexualidade.

Precisamos trabalhar para formar alianças com outros estudiosos e grupos que

compartilham esses objectivos. Também é importante lembrar que,

historicamente, o fracasso em vincular as questões da luta como um continuum

enfraqueceu a solidariedade e atrasou a progressão e é uma fonte fértil de

divisões internas. Fazer escolhas sobre sexualidades transcende classe, raça e


geografia, e não deve formar a base sobre a qual as lutas continentais pela

igualdade continuam sofrendo reveses. Qualquer ressurgimento da homofobia

está fadado a reorientar o activismo queer sobre o pessoal e o político, o que,


embora importante, também pode ser autodestrutivo, na medida em que isso

pode impedir o envolvimento necessário do activismo queer com questões de

classe que se cruzam e, além disso, impediria activismo queer de ganhar voz
firme para desafiar discursos patriarcais, sexistas e heteronormativos na

sociedade. Os perigos de se retratar na política de identidade num momento em

que um aprofundamento dos problemas sociais e económicos no continente


compele fortes alianças pela justiça social não podem ser ignorados. Não é

irônico que a actual política de alteridade na África pós-colonial esteja tão

87
profundamente inserida num discurso de classe e sexualidade: muitos aspectos

da vida cotidiana na África mantem a conexão da sexualidade com questões de

economia política. No final, a ideia de que o activismo queer pode de facto

recuperar a análise de classe na África não é exagerada.

Notas

1-Os processos de democratização em diferentes países africanos forneceram o contexto no qual os direitos dos gays surgiram
formalmente. Por exemplo, a transição democrática da África do Sul forneceu uma oportunidade e estrutura políticas passíveis
de mobilização gay (Cock 2003; Croucher 2002). Essa emergência, no entanto, não foi marcada por processos puramente
positivos: o momento de 'Stonewall' do Zimbábue aconteceu após a proibição de Robert Mugabe de gays e lésbicas do
Zimbábue (GALZ) da Feira Internacional do Livro do Zimbábue, em Harare, em Julho de 1995; e no Segundo Congresso das
Mulheres da SWAPO, em 6 de Dezembro de 1996, o Presidente Sam Nujoma reafirmou essa posição quando prometeu
"arrancar" a homossexualidade da sociedade namibiana.

2-Como observa Mukhopadhyay, a promessa universalista do liberalismo, ao mesmo tempo em que alimenta lutas por direitos
iguais, também tem sido a razão para limitar os direitos a garantias formais, porque o liberalismo não reconhece diferenças e
desigualdades (em termos de recursos e poder) entre pessoas decorrentes de essas diferenças. Dentro da estrutura liberal,
um indivíduo é concebido como o sujeito humano que não possui status de género, classe, casta, raça, etnia ou comunidade
(2007: 270). Mesmo quando essa noção é estendida para incluir identidades, os discursos liberais são facilmente manipulados
pelos grupos hegemónicos da sociedade que têm acesso real a recursos e poder. Isso é visto em termos práticos nos países
africanos onde a identidade sexual é sacrificada no altar de identidades religiosas ou étnicas conservadoras que estão sendo
manipuladas positivamente para a milhagem política e económica.

3-Na perspectiva da diversidade política e da democracia representativa, a invisibilidade dos grupos LGBTI em locais formais
de luta de classes deslegitima suas reivindicações por igualdade substantiva.

4-Conforme observado em Epprecht (2006: 188), Moodie (1994), Harries (1994), Gevisser e

Cameron (1994), Murray e Roscoe (1998), Kendall (1999), Lockhart (2002), Njinje e Alberton (2002). ), Epprecht (2004), GALZ
(2002) e Morgan e Wieringa (2005), por exemplo, documentam minuciosamente a presença de diversas expressões da
sexualidade entre pessoas do mesmo sexo na África - nas sociedades tradicionais, nas instituições coloniais e nos ambientes
actuais. Uma rede pan-africana crescente de associações LGBTI também atesta diversas culturas e prácticas indígenas, do

88
mesmo sexo e bissexuais na África. Uma série de imagens escritas ou produzidas por africanos em ficção, teatro e cinema
desestabiliza ainda mais o estereótipo do heterossexual africano "puro".

5-Esse retiro incluiu períodos prolongados de exílio de activistas de seus países de origem, residência em refúgios isolados e
a necessidade de garantir conjuntos residenciais. Muitos são roubados dos meios diários de sobrevivência económica e, como
resultado, dependem inteiramente de doações e boa vontade. Essa remoção forçada de uma força de trabalho activa do
trabalho assalariado pode distorcer os números do desemprego e enfraquecer as lutas de classe.

6-Aludindo a essa pergunta, Mark Gevisser (2011) afirma que 'como muitos africanos ficam cada vez mais desconfortáveis com
a dependência de seus países do Ocidente, eles procuram encontrar um lugar para se orgulhar: eles podem ser pobres, mas
pelo menos têm valores! Em todos os indicadores globais de bem-estar do mundo, eles podem pelo menos liderar um:
moralidade. Com estados ineficazes e economias moribundas, que melhor maneira de manter o apoio popular do que através
do bode expiatório de uma minoria impopular em nome de uma batalha contra a decadência ocidental?

7-A violência deve ser entendida aqui ao longo de um continuum que começa com o isolamento, estigmatização e
discriminação aberta contra homossexuais, geralmente no final manifestando brutalidade física e até assassinato.

8-Miguel (2005), em seu estudo sobre assassinatos de bruxas na Tanzânia, Oster (2004), analisando julgamentos de bruxaria
na Europa, e o estudo de Berman, de 2003, de milícias religiosas radicais, usam achados empíricos para demonstrar o poder
da economia em racionalizar fenómenos que foram previamente entendidos quase exclusivamente através de uma lente
sociocultural.

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91
92
4 – DEFICIÊNCIA E DESEJO: A JORNADA DE UMA CINEASTA –
HISTÓRIA DE VIDA – Shelley Barry

Em 1996, aos 24 anos, me encontrei no hospital, com paredes vazias e sonhos

desfeitos a colorirem meus dias. Minha parceira na época, Janine Clayton, e eu

fomos vitimas de um tiroteio entre organizações rivais de taxistas na Cidade do


Cabo, África do Sul. O motorista do táxi em que estávamos morreu e minha

coluna foi lesionada por uma bala. Meu corpo me disse isso muito antes dos

médicos terem coragem de admiti-lo. Fiquei paralisada do peito para baixo.


Durante aquelas intermináveis tardes com pouco mais do que minha mente para

me entreter, eu contemplava a extensão da minha perda. Talvez o que mais me

impressionou na época foi a minha convicção de que nunca mais seria desejada
ou amada. Eu senti que meu corpo havia se tornado uma mercadoria danificada,

minha sexualidade apagada.

Com o passar do tempo, comecei a desconstruir as minhas percepções, a analisar

suas origens. Reconheci que minha imagem mental de uma pessoa com

deficiência era a de alguém que precisava de cuidados, alguém de quem se sente

pena, alguém que certamente não tinha nenhuma reivindicação real de amor ou

qualquer tipo de vida satisfatória. A base de minhas crenças foi amplamente


informada pelo consenso da sociedade sobre pessoas com deficiência... essas

93
eram pessoas que eram invisíveis, a menos que fossem mendigas na rua ou

pacientes no hospital. Essa invisibilidade foi enraizada pela media.

Minha consciência política cresceu dentro do movimento de direitos de pessoas

que vivem com deficiência. Comecei a reconhecer que era a sociedade que

colocara meu corpo em uma caixa com um rótulo e o colocava numa prateleira

empoeirada. Eu tinha um corpo diferente, sim, não danificado. O processo de

recuperar meu corpo foi uma experiência excepcionalmente poderosa e

libertadora. Eu entendi o desejo e a sensualidade de uma perspectiva

completamente diferente. Percebi que a paixão é algo a que todos podem ter
acesso (não é reservada para jovens e pessoas saudáveis), e que pode inundar

todos os aspectos das nossas vidas. Reconheci a importância do amor próprio em

vez de exigir afirmação dos outros para me amar.

Eu senti orgulho. Até me atrevi a sentir-me bonita. Eu andei sobre minhas rodas,

sentindo que tinha todo o direito de estar no mundo, tanto quanto qualquer outra

pessoa. E comecei a viver com uma paixão e fervor que mudaram

fundamentalmente o curso da minha vida.

Minhas explorações espirituais da filosofia oriental também voltaram para mim

com mais força e poder. Eu sempre fiz uma distinção entre o corpo e o espírito,
e aquele período deu mais clareza a essa crença. Para mim, o corpo abriga o

espírito e é apenas um veículo. Isso não significa que não se honra o corpo - muito

pelo contrário!

94
Eu realmente acredito no poder de uma mente positiva - algo que todos podemos

ter acesso e que começa com a consciência de seus pensamentos. Nossos

pensamentos são energia, e a energia se manifesta. É incrível o quanto o

pensamento determina o resultado! No ano passado, finalmente mergulhei e me

tornei uma budista comprometida.

Depois de anos no movimento dos direitos das pessoas com deficiência, voltei

aos meus sonhos de me tornar cineasta. Tive a sorte de receber uma bolsa de

estudos para a escola de cinema da Fundação Ford. Aos 32 anos, tornei-me

estudante em período integral novamente. Na minha primeira aula de redação


na Temple University, na Filadélfia, meu professor nos disse: ‘Escreva a cerca de

algo porque você precisa escrever sobre. Escreva a partir da sua alma. 'Meu

primeiro filme nasceu com essa honestidade. Whole - A Trinity of Being, um


poema-documentário visual de três curtas-metragens, que explora minha

jornada espiritual de abraçar e celebrar meu corpo. O primeiro segmento, 'Pin

Pricks', conta a história de como o tecido da minha vida foi dilacerado e as

revelações que me levaram além dessa perda: 'Escolhi não usar aquela peça de

amargura tão facilmente ajustada ao corpo ferido.

O segmento seguinte lida com a minha segunda deficiência - minha dependência

de um tubo que se encaixa em um buraco na minha garganta, permitindo que eu


respire e fale. No filme, eu declaro: ‘Eu celebro este buraco. A respiração e a fala

que ela dá são a minha força vital. Decorei com joias, diferentes contas e

95
bugigangas artesanais, porque as cicatrizes também devem ser coroadas. Mesmo

que não sejam fixes, bonitas ou até difíceis de ver às vezes.

Para mim, o poder deste filme veio da vulnerabilidade envolvida em mostrar

abertamente, na tela, a ferida aberta na minha garganta. Sempre foi muito difícil

para mim olhar para aquilo. Ao fazer um filme sobre o assunto, esperava

incentivar outras mulheres a se sentirem bonitas, com cicatrizes e tudo. Nossas

cicatrizes são frequentemente impostas a nós, mas carregamos sua vergonha.

Somos guerreiras porque sobrevivemos a essas cicatrizes e vivemos para contar

as suas e as nossas histórias. Adorno minha cicatriz não para escondê-la, mas
para protegê-la e celebrá-la. Isso também contém lições vitais para as chamadas

mulheres fisicamente aptas - muitas têm cicatrizes de cesariana, cicatrizes de

mastectomia e outras lesões, mas são ensinadas a ter vergonha delas e a escondê-
las.

O último filme da trilogia é uma sequência de imagens, instantâneos da vida em

cadeira de rodas

- não os tradicionais, mas aqueles que ousam reivindicar um forte senso de

sexualidade e desejo. Uma das cenas mais difíceis que fiz foi uma foto da minha

cadeira de rodas ao meu lado no banho, cortando uma foto das minhas mãos
viajando pelo meu corpo, em um gesto de masturbação. Fazer esta cena não foi

de todo injustificada. Tomei uma decisão política de apresentar uma foto de uma

mulher com deficiência que tem um relacionamento sexual activo consigo


mesma. Isso ocorre porque a noção de que mulheres com deficiência podem

96
reivindicar sua sexualidade ou ser sexualmente activas está quase inexistente,

senão um verdadeiro tabu, em todas as esferas da arte, media e sociedade em

geral. As mulheres negras com deficiência são as mais invisíveis de todas a esse

respeito. Nossas culturas nos ensinam a esconder nossa sexualidade, a não

reivindicar nossos corpos, a esperar humildemente que um homem nos queira o

suficiente. A menos que comecemos a desafiar essas percepções, inserindo-nos

nessa ausência, neste espaço em branco, o status quo continuará.

Em outra cena, descrevo minha parceira e eu num abraço amoroso. Isso foi difícil

de fazer, porque significava expor minha vida e minhas relações pessoais e na


tela a uma audiência de estranhos. No entanto, a necessidade superou em muito

a dificuldade. Eu senti que era importante mostrar que não devemos apenas

reivindicar abertamente a amar a nós mesmos, mas reivindicar o prazer de ser


amados e amar os outros - de maneiras sensuais, íntimas e divertidas.

O filme termina com uma declaração de descoberta: Eu conheço essa dança do

viver. Esta dança não é com os pés. Esta dança é com o coração. E quando eu

danço com o coração, a música vem através de mim. A música sou eu. E então

tudo o que eu sou é a dança.’

Faz dois anos desde que fiz o primeiro filme. Até o momento, ganhou quatro
prémios internacionais de cinema, para minha surpresa! Meu trabalho continuou

focado em repensar os media para dar visibilidade as pessoas com deficiência,

não apenas como seres sexuais, mas como pessoas na plenitude da experiência
humana. Estou a fazer malabarismos com vários estágios de pós-produção em

97
outros filmes e espero enviá-los ao mundo nos próximos meses. Também

trabalho na estética cinematográfica de gravar filmes a partir de uma cadeira de

rodas. A menos que nós, como pessoas com deficiência, mulheres, negros,

lésbicas, nos tornemos criadores de nossas próprias imagens, nossas vidas serão

constantemente retratadas com base em suposições que outros sustentam sobre

quem somos, como vivemos e como nós amamos.

Este artigo foi publicado pela primeira vez na Feminist Africa (2006, 6)

98
99
5 – MANIFESTO – DECLARAÇÃO LGBTI AFRICANA -

Abril 18, 2010, Nairobi, Kenya

Como africanx, todos temos um potencial infinito. Defendemos uma revolução

africana que engloba a demanda por uma re-imaginação de nossas vidas fora das

categorias neocoloniais de identidade e poder. Durante séculos, enfrentamos o

controle através de estruturas, sistemas e indivíduos que desaparecem da nossa

existência como pessoas com agência, coragem, criatividade e autoridade

económica e política.

Como africanos, defendemos a celebração de nossas complexidades e estamos

comprometidos com formas de ser que permitem a autodeterminação em todos

os níveis de nossas vidas sexuais, sociais, políticas e económicas. As

possibilidades são infinitas. Precisamos de justiça económica; precisamos


reivindicar e redistribuir poder; precisamos erradicar a violência; precisamos

redistribuir a terra; precisamos de justiça de género; precisamos de justiça

ambiental; precisamos de justiça erótica; precisamos de justiça racial e étnica;


precisamos de acesso legítimo a instituições, serviços e espaços afirmativos e

recetivos; No geral, precisamos de libertação total.

100
Estamos especificamente comprometidos com a transformação da política da

sexualidade em nossos contextos. Enquanto as pessoas LGBTI africanas são

oprimidas, toda a África é oprimida.

Essa visão exige que nos comprometamos a:

Recuperar e compartilhar nossas histórias (passadas e presentes), nossas

realidades vividas, nossas contribuições para a sociedade e nossas


esperanças para o futuro.

Fortalecer a nós mesmos e nossas organizações, aprofundando nossos

vínculos e compreensão de nossas comunidades, construindo alianças de


princípios e contribuindo activamente para a revolução.

Desafiar todos os sistemas e prácticas legais que actualmente criminalizam

ou procuram reforçar a criminalização de pessoas, organizações, criação de

conhecimento, autoexpressão sexual e construção de movimentos LGBTI.

Desafiar o apoio do estado a normas opressivas sexuais, de género,


discriminatórias, estruturas legais e políticas e sistemas culturais.

101
Fortalecer os laços de respeito, cooperação, paixão e solidariedade entre as

pessoas LGBTI, nas nossas complexidades, diferenças e contextos diversos.

Isso inclui respeitar e celebrar nossas múltiplas maneiras de ser,

autoexpressão e idiomas.

Contribuir para o reconhecimento social e político de que a sexualidade, o

prazer e o erótico fazem parte de nossa humanidade comum.

Colocar-nos proactivamente em todos os movimentos que apoiam nossa


visão.

http://www.blacklooks.org/2011/05/african-lgbti-manifestodeclaration

102
103
6 – ORGULHOSAMENTE AFRICANX E TRANSGÉNEROS – RETRATOS
COLABORATIVOS E HISTÓRIAS COM ACTIVISTAS TRANS E INTERSEXO
– Gabrielle Le Roux

A exposição 'Orgulhosamente africanx e transgéneros' é uma intervenção criativa

para a justiça social na forma de retratos e histórias de dez activistas africanx


transgéneros que colaboraram para serem retratados dessa maneira porque

querem que seus rostos sejam vistos e suas vozes ouvidas em todo o mundo.

Transgéneros africanx são silenciados há muito tempo. Fomos invisíveis

como se não existíssemos. Hoje, muitx de nós falamos, mostramos nossas

caras, escrevemos e nos expressamos abertamente.

Esta exposição é uma extensão disso. Os retratos são nossas imagens e

falam nossas palavras, contam nossas histórias, expressam nossos

sentimentos, exibem nosso orgulho, até nossos medos, são nossa

história, são hoje e a história da luta transgénero africana no futuro. São


força, esperança e orgulho para gerações depois de nós.

Eu me senti perdido por um longo tempo. Eu pensei que não havia mais
pessoas como eu. Eu pensei que era anormal, um estranho e isso me

deixou impotente. Minha sobrinha ou sobrinho transgénero, neto ou

filho de amigos não se sentirá perdido. Eles olharão para o meu retrato e
ganharão poder, esperança, paz de espírito e orgulho. Eles saberão que

104
outro transgénero já existia antes e que não há problema em não estar

em conformidade com o sexo.

Quando o mundo vir nossos retratos, eles saberão que a África tem

pessoas trans e que há uma luta contra injustiças em nosso continente.

Assim, escreve Victor Mukasa, expressando a visão e a intenção da exposição,

tanto como a pessoa com quem concebi esse projectos por vários anos, como

também como uma das pessoas retratadas. Victor é um defensor de direitos

humanos de LGBTI de Uganda, respeitado internacionalmente, cuja posição em


2008 na Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas

(IGLHRC) tornou possível esse projectos. Ele agora trabalha como consultor

independente.

Em Dezembro de 2008, o primeiro encontro de pessoas transexuais

exclusivamente africanas ocorreu na Cidade do Cabo, organizado pelo IGLHRC e

Gender Dynamix, iniciado por Victor Mukasa. Foi um evento histórico e muito

significativo, oferecendo espaço para as pessoas compartilharem suas

experiências e idiomas específicos sobre o significado e as consequências de

serem não-conformes ao género nos seus países. Como parte do workshop de

identidade de género, Victor e eu apresentamos a possibilidade da exposição e


convidamos participantes para fazer parte. Cada pessoa que queria compartilhar

sua experiência dessa maneira sentou-se para eu lhe desenhar a partir da vida e

colaborou escrevendo o que queria dizer sobre si directamente nos seus retratos.
Mais tarde, escreveram textos sobre si, e a exposição continua a ser um trabalho

105
em andamento, pois esses textos mudam periodicamente. Os participantes

vieram do Zimbábue, Uganda, Quénia, África do Sul, Namíbia, Burundi e

Botsuana.

Na ausência de apoio institucional, os retratos e as histórias não foram exibidos

por um ano, mas todx colaboradorx achavam que deveriam ser, e uma a uma as

portas começaram a abrir-se para que o trabalho fosse visto. O interesse

internacional é considerável. Existem planos em andamento para mostrá-lo de

forma mais ampla no continente.

Flavrina, Burundi

Tenho 30 anos, nasci em 7 de Abril de 1982.

Eu tive três irmãos e uma irmã. Meu pai era político. Minha mãe não era rica, mas

gostava de ver todo mundo a disfrutar do pouco que ela tinha, me ensinou a
compartilhar tudo.

Ela dizia: 'Eu não sei se você é minha filha ou meu filho, mas eu te amo'. Eu estava

sempre com minha mãe. Quando cometia um erro, ela queria me proteger e não

acreditava em me bater. Ela morreu quando eu tinha 7 anos e meu pai quando eu

tinha 12 anos.

A vida é difícil para mim como refugiada transgénero na África do Sul. Eu moro

aqui há quatro anos e passei por muita coisa. Vim para a África do Sul para o

Workshop Estratégico de Identidade de Género em 2008, a primeira reunião de

106
activistas trans africanx. Enquanto estava aqui, recebi uma mensagem de que não

era seguro ir para casa.

Quero voltar ao Burundi e continuar meu trabalho como activista LGBTI; não

conheço outros activistas transgéneros lá, mas não posso viajar até que meus

documentos sejam resolvidos.

No momento, estou a trabalhar no meu inglês. Estou envolvida aqui como

activista pelos direitos das pessoas trans, refugiadas, profissionais do sexo e

pessoas HIV positivas. Faço parte das organizações SWEAT e PASSOP. Trabalho
a meio período como varredora de rua e meio período como profissional do sexo.

Tenho sonhos para o meu futuro e a contribuição que posso dar.

Eu sou uma criança de Deus. Dieu est grand et m'aime comme je suis. Deus é
grande e ele me ama como eu sou. J'aime les transcomme moi. Je les sens

dans mon corp e mon coeur. Eu amo os transexuais como eu, eu os sinto no

meu corpo e coração. Imana ninkuru kandi irankunda kandi ndumwana

wimana.

Texto do retrato

107
Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Flavrina. Cidade do Cabo, 2008

108
Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Julius Kaggwa. Cidade do Cabo, 2008

109
Julius Kaggwa, Uganda

Sou o fundador e director da Iniciativa de Apoio a Pessoas com Desenvolvimento

Sexual Atípico, SIPD, que é uma organização de base sem fins lucrativos de

direitos humanos no Uganda. Através do envolvimento e engajamento da

comunidade, apoiamos os ugandenses intersexo. Também fornecemos

informações confiáveis e objectivas sobre a situação das pessoas com condições

intersexo e características não conformes de género no Uganda. O SIPD trata

particularmente dos direitos humanos, saúde sexual e apoio social de crianças e

pessoas intersexo. Nosso site é www.sipd.webs.com.

Minha decisão de me envolver activamente no activismo me levou a enfrentar


algumas experiências extremamente dolorosas - directamente dentro da

comunidade LGBT. Passei por um momento muito difícil e tive que tirar um

tempo da esfera pública e me recuperar.

Das lutas da minha vida, nunca esqueci o amor de Deus e dos meus pais que me

trouxeram a este mundo.

Eu acredito em direitos para todos. Eu me identifico como homem, mas não sou

uma ameaça para as mulheres e meu respeito sempre estará lá, porque todo ser

humano tem direitos iguais. Eu nunca estaria neste mundo se não fosse por uma

mulher que escolheu me receber.

Eu luto e sofro porque minha cultura espera o oposto de mim, mas isso não

significa que deixarei de ser um africano. Ainda sou negro com ancestrais negros

e tenho orgulho de ser africano.

110
Julius Kaggwa ganhou o primeiro prémio dos direitos humanos em 2010 por seu

trabalho contra o projectos de lei contra a homossexualidade no Uganda

Eu sou intersexo. Eu sou transexual. Eu sou um homem. Sou ugandense e

tenho orgulho de quem eu sou. Foi uma jornada difícil, mas não me arrependo

de seguir, porque só posso ser quem sou. Uma criação única. "

Texto do retrato

111
Madam Jholerina Brina Timbo, Namíbia

Sou uma mulher trans de Windhoek, Namíbia. Eu tenho 23 anos.

Um caminho muito longo que percorro desde tenra idade de 12 anos. Transfobia,

abuso verbal e agressão que sofri por ser quem sou. Muitos acreditam e pensam

que ser transgénero é uma abominação e uma desgraça para a nação.

Encontrar o meu verdadeiro eu e me entender foi uma batalha que pensei que

nunca iria terminar. Com a ajuda do Rainbow Project, quando eu estava

deprimida, estressada e a lutar com minha aparência física e tudo mais, que eu

poderia passar sobre me aceitar como uma mulher trans. Muitos amigos eu perdi
quando alcancei esse ponto. Sempre tentando me encaixar, mas nunca me

encaixei em nenhum grupo ou pessoa.

Claramente, quando perdemos o direito de ser diferentes, perdemos o privilégio

de sermos livres.

Eu gostaria que estivéssemos unidos de forma única na luta contra as violações

dos direitos humanos que ocorrem neste mundo. Discriminação, estigma e abuso

não estão apenas em África, mas também no mundo desenvolvido.

No meu país, a Namíbia ser LGBTI é um crime se você for pego em flagrante. Eu

odeio a maneira como as pessoas olham para mim e riem. É porque não existem

leis para me proteger para ser quem e o que eu sou ...

112
Eu creio que, como seres humanos, devemos falar pelo bem maior do mundo.

Mas para mim como mulher trans na Namíbia, e não tendo todos os direitos como

todos os outros, não é fácil.

Longa vida aos movimentos.

Eu sou uma mulher africana. Para me entender, me conheça. Esta é quem eu

sou e o que sou. Eu sou a Cleópatra dos dias de hoje. Coragem não é a ausência
de medo, mas o julgamento de que outra coisa é mais importante que o medo.

Beleza africana que eu sou.

Texto do retrato

113
Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Madame Jholerina Brina Timbo. Cidade do

Cabo, 2008

114
115
Silva Skinny Dux Eiseb, Namíbia

Eu amo meu nome

Moro na Namíbia desde que nasci. Me vejo como um homem trans. Fundei o

movimento Transgénero na Namíbia, TAMON, Movimento Trans Activista da

Namíbia. Moro num dos municípios, chamados Dolam em Windhoek. Sou

activista há mais de dez anos no movimento LGBTI e sou feminista.

Ser uma pessoa trans na Namíbia não é uma coisa fácil. Precisas ter um coração

corajoso para sair pelas ruas, estás exposto a muitos ataques físicos e verbais, se

não fores forte o suficiente para se defender. É errado ser diferente aos olhos
dessas pessoas do que o habitual: um homem tem que parecer assim e uma

mulher assim. É por isso que algumas pessoas trans são vítimas de estupro

correctivo, porque querem ver se você é um homem de verdade, você tem que
lutar para provar que é homem o suficiente. Mulheres trans são espancadas

porque um "homem" não deve se comportar dessa maneira.

Deixar meu retrato ser desenhado é deixar o mundo lá fora saber que estamos lá

e existimos e que tenho orgulho de quem eu sou. A exposição não só me

beneficiará como pessoa, mas também como toda a comunidade trans, como uma

maneira de destacar questões que normalmente ficam em segundo plano quando

as pessoas falam sobre direitos humanos. Se o retrato da minha realidade e de

outros na minha situação se espalhar pelo mundo, isso poderá criar um terreno

comum para uma luta comum.

116
'Sou especial porque sou dois em um. Não quero ou preciso estar numa caixa

porque Silva é precioso à sua maneira. Foi uma batalha para mim aceitar

quem eu sou, mas já passei desse espaço e aceitei quem eu sou. Silva. Especial.

Eu amo quem eu sou, porque sou único.

Texto do retrato

Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Silva Skinny Dux Eiseb. Cidade do Cabo,

2008

117
Skipper Mogapi, Botswana

Sou activista do Botswana, que luta pelos direitos dos gays desde 2004. Eu me

identifico como homem trans e trabalho como coordenador da Lésbicas, Gays e

Bissexuais do Botswana [LeGaBiBo] desde 2006.

No momento, ocupo duas posições: coordenador do movimento LGBTI e

coordenador assistente do programa de Iniciativas de Prevenção e Pesquisa para

Minorias Sexuais [PRISM], de 2007 até hoje.

Meu interesse pelos direitos LGBT começou em 2004, quando a Behind the Mask

estava a pesquisar direitos e movimentos LGBTI e eu fui uma vítima da média -


minha orientação sexual foi divulgada nos jornais.

Existem muitos desafios que eu enfrento como pessoa trans no Botswana, como
ter ser olhado o tempo todo e pedirem para se identificar em qualquer lugar que

você vá, por exemplo, ao usar banheiros públicos ou ao entrar numa boate. Na

escola, tive um problema com o vestido: identificava-me como homem e era

esperavam que usasse um vestido o tempo todo.

Também é difícil conseguir um emprego. Embora meus documentos mostrem

que sou mulher, minha aparência física mostra que sou homem. O mais difícil é

que, desde que comecei a tomar testosterona em 2009, sempre que viajo, a polícia

e os agentes de imigração precisam questionar meu passaporte ou carteira de

identidade.

118
Homem negro africano é quem eu sou ... o homem que ninguém vê. Alegre

estava minha mãe no dia em que nasci, feliz por ter dado à luz uma menina.

Mal ela sabia que eu sou trans.

Texto do retrato

119
Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Skipper Mogapi. Cidade do Cabo, 2008

120
Retrato de Gabrielle Le Roux, texto de Victor Mukasa. Cidade do Cabo, 2008

121
Victor Mukasa, Uganda

Eu sou uma pessoa transgénero. Sim, PESSOA! Transgresso as normas

tradicionais de género. Não para ser teimoso, mas esse sou eu. Não é de minha

própria autoria. Eu nasci dessa forma. Minha infância, como meus pais me

contaram, e pelo que me lembro, foi assim. As pessoas em todo lugar que eu ia,

diziam que eu era um menino. De facto, muitos se dirigiram a mim como menino.

Até hoje, ainda sou o mesmo. Eu me visto como meninos e / ou homens

tradicionalmente se vestem. Também está na minha expressão. Esse sou eu. Eu

sou uma pessoa transgénero com orgulho.

Minha experiência como pessoa transgénero em Uganda não é uma história


agradável. Em resumo, uma pessoa transgénero em Uganda é constantemente

vitima de ridículo, zombaria e abuso. Para a maioria dos ugandenses, qualquer

pessoa que se expresse como o sexo oposto é homossexual e, portanto, expõe as


pessoas transgénero a maus-tratos. Todas as pessoas trans são vistas como

homossexuais óbvios. Portanto, além de toda a transfobia, há homofobia, mesmo

que você não seja gay.

A exibição dos retratos dos africanx transgénero significa a necessidade de

proteger, respeitar e promover os direitos humanos das pessoas transgénero,

não apenas na África, mas em todos os cantos do mundo.

‘Victor, o vitorioso. Eu sou o Victor. Orgulhoso de quem eu sou. Uma criação

de Deus. Deus me criou com um propósito claro e eu cumpro isso todos os

dias. Minha identidade trans é o meu orgulho. O retrato de um trans

122
africano tem sido um sonho. África Trans aqui vamos nós. Eu represento

diversidade. Deus me deu dois pares de olhos através dessa identificação.

Meu sonho de um movimento trans orgulhoso tornou-se realidade. Isto é

para meus filhos e seus filhos geração após geração. Eu nunca fui um mito.

Texto do retrato

123
Onde a exposição foi exibida:

A exposição foi vista pela primeira vez nas paredes da oficina na Cidade do Cabo,

quando foi criada em Dezembro de 2008. Desde então, 'Orgulhosamente africanx

& transgénero' foi exibida publicamente (na forma de gravuras) em:

• Amnistia Internacional em Amsterdão, Fevereiro de 2010.

• Congresso Internacional sobre Identidade de Género e Direitos Humanos

em Barcelona, onde seis das dez pessoas nos retratos estavam presentes. A

exposição forneceu uma plataforma especial para activistas africanx

naquele encontro histórico global de activistas trans.

• Istanbul Pride 2010, a convite da Amnistia da Turquia.

• Exposição conjunta com a fotógrafa sul-africana Zanele Muholi, 'Faces and


Phases', IHLIA, Arquivo Internacional de Gays e Lésbicas, na Oba, biblioteca

central de Amsterdão, de Julho a Outubro de 2010.

• Transgender Europe, 3rd Council, em Malmo, Suécia, Outubro de 2010.

• Madri, durante a Stop Trans Patologisation March, Outubro de 2010.

• Conferência da Semana Pembe Hayat Trans Remembrance Week em

Ancara, Turquia, Novembro de 2010.

• Conferência Africana de Sexualidades do Mesmo Sexo e Diversidade de

Género, Pretória, África do Sul, Fevereiro de 2011.

124
• Athens Pride, Atenas, Grécia, Julho de 2011.

• Associação TRIQ Trans Inter Queer, Berlim, Alemanha, Setembro de 2011.

• Este Festival Mundial de Cinema Humano, Schikaneder, Viena, Novembro-

Dezembro de 2011.

• Café Munck, Hamburgo, Fevereiro de 2012

Para ver a exposição on-line, visite:

http://www.blacklooks.org/2010/02/proudly-african- transgender/

125
126
7 – A MORDIDA DE VAMPIRO QUE ME TROUXE À VIDA – FICÇÃO –
Nancy Lylac Warinda

Gostamos de pensar que os vampiros não existem e, se existirem, devem ser

derrotados, perfurados no coração com uma estaca de madeira. Bem, eu gosto

de vampiros. Eu gosto do rosto furtivo, sombrio e misterioso. Para mim,


prometem uma aventura insondável e quem não gosta de aventura? Estou

obcecada com a busca de emoção. Culpe aos problemas com o papá ou por ficar

na frente da TV durante horas. Não importa, sou só eu.

Eu tive uma daquelas semanas longas sem graça, mas o fim-de-semana tão

esperado finalmente chegou. Minha amiga Debby me convidou para uma festa de
casamento em um dos clubes mais populares da rua Lang'ata. Naturalmente,

senti-me obrigada e determinada a ter uma noite muito selvagem.

Possas, eu mereci. Fazia meses desde que eu terminei com meu namorado Fred.

Um exuberante, bonito e orgulhoso homem Jaluo de Rapogi, ele era um pouco

duro por causa de seu passado empobrecido, mas tinha um cérebro de Einstein
e uma ambição feroz que o fez rapidamente subir na empresa no ano em que

namoramos.

Namoramos durante a porra de um ano inteiro. Esse foi o período mais longo de

relacionamento que tive. Ele desenvolveu gostos requintados, que eu não me

127
importei. Até que aquelas moças colossalmente irritantes e oportunistas de

Nairobi começaram a circular à volta dele como hienas desnutridas e famintas.

Sempre que ele me levava para sair, ele insistia em comer a sua carne salteada

com um Bordeaux Medoc tinto e o seu frango com um Chianti non-riserva ou um

Côtes du Rhône. Ele adorava seu fondue clássico com o Sauvignon Blanc da Nova

Zelândia. Ele era muito pretendido e deixou que isso o afectasse.

Optei por me afastar do relacionamento. Simplesmente não conseguia me ver a

pedir e a competir por sua atenção.

Ahh! Mas ele era exuberante, um deleite nos olhos de muitas mulheres.

Eu nunca poderia namorar alguém que não fosse exuberante. Na verdade, a

minha amiga gozava comigo porque que só namorava homens bonitos. Mesmo

assim, nunca fui verdadeiramente feliz. Eles aborreciam-me muito rapidamente


ao longo do relacionamento e sempre sentia que faltava algo, algo que eu nunca

conseguia entender.

Ia encontrar-me com a Debby no clube. Coloquei meu vestido curto com fivela

branca e gola- em-v e um par de botas de camurça, um casaco preto, penteei

meu cabelo e coloquei o meu spray Chloe para me manter fresca, estava sexy e

pronta para me divertir.

Incríveis misturas do DJ lotaram o ar, eram do tipo que te levam a mexer o corpo.

A multidão do pós-festa estava viva e extasiada. Todo mundo estava pedrado.

“Makaratasi vinoma é o fim!”

128
¹, como diz a minha boa amiga Debby.

Dançamos como se não houvesse amanhã, até que eu não me aguentei mais.

Passei pelos foliões para o meu lugar tentei respirar e pedir uma bebida. Sentei-

me por alguns minutos quando uma moça veio à minha mesa, apresentou-se

como Verónica. Imediatamente soou-me familiar.

Certa vez, a Debby descreveu uma moça com quem ela trabalhava que se

encaixava na descrição como uma luva. Ela tinha cachos longos bonitos que

chegavam ao meio das costas e que lhe

ficavam bem. Os olhos dela eram sexualmente pequenos e esfumaçados. Ela

usava um perfume clássico da CK, uma camisa xadrez, um casaco preto cortado
e calça caqui. Ela parecia tão interessante quanto àquela propaganda da Smirnoff

vodka com água e gelo por toda parte.

Ela provocou uma série interessante de pensamentos na minha cabeça. Meu

radar selvagem ficou vermelho escarlate. Ela era alta, magra, com um corpo

atlético que eu, surpreendentemente, achei absolutamente sensual. Ela tinha um

comportamento alfa masculino marcante. Eu tinha de me lembrar que ela era

uma moça.

Eu sempre fui atraída por homens, mas eu estava fixada a ela, na perspectiva de

captar sua atenção, mesmo que apenas durante a noite. Ela me pediu para tomar
doses de tequila com ela e eu fiquei imensamente emocionada.

129
Algo nela era incalculavelmente intrigante. Não sei se é o mistério que cercava

tais arranjos que me atraiu, ou apenas minha determinação em me divertir. Eu

olhava para ela enquanto ela tomava doses de tequila. Havia um brilho de

travessura nos olhos dela e eu tinha certeza de que isso refletia nos meus.

Voltamos aos nossos lugares e vimos que os nossos amigos finalmente

abandonaram a pista de dança. Todo mundo estava falando alto demais, como se

os níveis elevados de álcool nos seus sistemas os tivessem deixado surdos de

repente.

A Debby estava no seu espírito habitual de agitadora, pedindo às pessoas que


bebessem um pouco mais. A Debby e eu éramos amigas há muitos anos. Ela era

ótima companhia. Uma pessoa inteligente, bonita, espirituosa, engraçada,

amorosa e feliz. Tinha uma alma gentil e um espírito fabulosamente livre.

Naquela noite, usava um vestido branco e rosa de cetim florido que revelava suas

curvas generosas e enfatizava sua forma africana de ampulheta, tinha brincos

largos e um cachecol rosa que se estendia por cima do ombro para cobrir

parcialmente a parte superior das costas exposta e que caia até as nádegas

voluptuosas.

Fez com que um de seus colegas, que aparentemente tinha algum interesse em
mim, sentasse ao meu lado. Ela obviamente estava alheia às tendências sensuais

entre eu e Verónica. Todo mundo que trabalhou com ela sabia que ela era gay e,

claro, eu não. Conversei um pouco com o moço, o que parecia ser uma

130
experiência tão árdua porque pensava só na Verónica. O moço tentou muito

chamar minha atenção, sem sucesso.

O que ela estava pensando? O que ela me fazia pensar? Com quem ela estava indo

para casa? O que ela ia fazer com ela? Desculpei-me e, em passos instáveis, fui à

casa de banho.

Eu não sabia onde ficava, então tive que pedir orientações a um garçom – é só

subir algumas escadas e contornando cantos com luz escura. Fiquei surpresa em

localizar no labirinto nebuloso, com álcool rodopiando no meu cérebro.

Quando saí da casa de banho, não me lembrava de onde tinha vindo, mas

continuei tentando parecer mais sóbria do que estava. Quando dei por mim eu
estava na varanda e - infelizmente! - lá estava ela, fumando seu cigarro SM. Era

quase como se alguma força invisível estivesse a me levar em sua direcção. Ela

parecia gostosa, feroz e sediciosa. E o olhar que ela me deu fez meu interior

derreter. Meus joelhos ficaram proverbialmente trémulos ou foi que eu estava

cambaleando bêbada? Ao menos consegui dizer 'acho que estou perdida'.

Ela perguntou: "Tens a certeza de que não estavas a minha procura?" E, na

verdade, eu não tinha certeza.

"Posso juntar-me a ti?" Ignorei a pergunta dela. “Fumas?”

“Às vezes.” "Divertindo-se?"

"Não com aquele moço."

"Fica comigo que iremos nos divertir."

131
Ela pegou a minha mão e levou-me à pista de dança. Dançamos de uma maneira

subtil e sensual, com cuidado para não despertar o interesse indevido de homens

cobiçosos que tentavam fazer um trio. Tomamos mais algumas doses de tequila

e estava na hora de voltar para casa.

Debby convenientemente desapareceu com o acompanhante dela.

No estacionamento, Verónica me abraçou porque eu estava a dar indicações de

que estava com frio. Então ela me parou e me apertou em um abraço caloroso.

Ela olhou para o meu rosto por uns dez segundos e levantou meu queixo em um
beijo. Primeiro suave e doce, depois profundo com desejo furioso.

Eu a queria e ela também me queria.

"Vens para casa comigo?" Ela sussurrou no meu ouvido. “Uh, uh, eu não ...”, veio

a resposta fraca.

Eu estava a olhar para a Debby, que parecia bastante ocupada com seu parceiro.

"Somos adultas, podemos fazer o que quisermos." É como se ela tivesse lido

minha mente e sentido a minha preocupação. "Eu vou cuidar de ti menina, não te

vais arrepender."

Eu não precisava de mais insistência, precisava dela e precisava ver como essa
merda iria acabar.

Entramos no táxi e sentamos convenientemente atrás. Ela deu instruções ao


motorista enquanto se aconchegava ao meu lado. Mal podíamos esperar para

132
chegar a um lugar mais privado. Tentamos ser discretas, mas aposto que o

motorista sabia que o silêncio atrás significava que coisas estavam a acontecer.

Ele se mexia nervosamente no banco do motorista e tossia desnecessariamente

para cobrir seu constrangimento. Ele fez sons de clique e encobriu-o com um

pequeno assobio de uma música esquisita. A certa altura, pensei que ele iria parar

o carro com força e mandar-nos sair.

Ele não fez. Acho que a homofobia dele terminou quando recebeu o dinheiro. Nós

não demos a mínima. Que crime estávamos a cometer?

Verónica colocou a mão debaixo da minha cabeça e deixou seus lábios

provocadoramente roçarem os meus. Ela beijou minha bochecha esquerda,


mordeu meu lóbulo da orelha e soprou suavemente sobre ele.

Freneticamente de volta à minha boca, como uma investida sedenta de amor.

Ela mergulhou para beijar minha clavícula com beijos molhados enquanto a outra

mão procurava por mim, movendo-se para baixo do meu vestido para tapar meu

peito, enchendo sua palma com ele.

Eu quase gritei quando seu dedo frio encontrou seu caminho dentro de mim. Em

vez disso, o que saiu foi um trago estranho e abafado. Coloquei meus braços em

volta do pescoço dela e a afoguei em beijos longos e desesperados, como se


alguém terminasse uma era de privação.

"Querida, temos de parar", ela sussurrou, afastando-se do meu abraço. "Caso


contrário, não chegaremos em casa".

133
“Ah...claro!” Eu cedi e acariciei suavemente a parte interna do braço dela, numa

tentativa de prolongar o momento. "Quanto tempo até chegarmos lá?"

"Não muito, querida ... não muito."

Poucos minutos depois, chegamos à casa dela. Ela pagou apressadamente o

taxista e nós praticamente corremos pelo portão dela, passando pela varanda da

frente até a porta. Ela mexeu na bolsa para procurar as chaves enquanto eu

olhava nervosamente.

Subimos rapidamente as escadas e entramos no quarto dela. “Bem-vinda a minha

humilde residência.”

"Obrigada."

E isso foi mais do que dissemos naquela noite.

Ela bateu a porta atrás de mim e esmagou sua boca na minha.

Sua língua, rápida e suave na minha boca, abrindo, invadindo e espalhando o

sabor do desejo. Quando ela se mudou para minha garganta, eu estava engolindo

ar. Senti-me tonta, encantada,

como se meu corpo estivesse sendo transportado para um universo paralelo.

Passei meus dedos pelos cabelos ordenadamente presos e movi a cabeça para

trás para que eu pudesse alcançar seus lábios. Minha língua brincava com a dela,
disparando, dobrando, mudando e lambendo, exigindo uma realização que eu

nunca soube que existia em mim.

134
Ela pressionou-se contra mim, passou os dedos pelas minhas costas e agarrou

minha bunda, puxando-a para cima, batendo-a para deixar uma dor perversa

entre minhas coxas. Instintivamente comecei a desabotoar a blusa dela e deslizei

minha mão para acariciar seus seios adoráveis.

Eles eram pequenos, em forma de pera e firmes. Seus mamilos erectos, expondo

seu desejo.

Ela empurrou-me à sua cama e me atacou como um leão faminto. Ela arrancou o

meu casaco e atirou na cama.

Ela desfez as alças do meu vestido e deixou-o deslizar para o chão. Tirei a blusa

dela. Ela não estava usando sutiã.

A visão diante de mim era surpreendentemente de tirar o fôlego.

Ela desfez a alça do meu sutiã e gentilmente acariciou meus seios. Nossos olhos

travaram em transe, atraindo-nos um ao outro.

A boca dela estava em mim de novo, frenética, procurando, encontrando. Nossos

corpos se colaram, absorvendo um ao outro como se pretendêssemos entrar um

no outro. Trancado na busca do prazer, língua encontrando a língua, seios

pressionando os seios, barriga contra barriga. Subindo e descendo da graça

juntas. Eu levantei meus joelhos para receber sua coxa que pressionava meu
clítoris.

135
Ela se moveu impiedosamente, provocando uma resposta selvagem. Eu senti

como se estivesse flutuando no oceano ou a dançar num prado com uma brisa

doce de verão roçando minhas bochechas.

Os murmúrios guturais escaparam de algum lugar em mim enquanto eu

fervorosamente puxava sua coxa. Minhas mãos se moveram para cima e para

baixo em seu corpo esbelto. Segurando um peito aqui, acariciando uma coxa ali,

acariciando suas costas, barriga, bunda, virilha, finalmente dando um mergulho

nela. Ela lançou um “Oh, Deus!”, Enquanto estremecia na minha mão.

Nós nos movemos num ritmo aprendido.

O calor inundou meu corpete inteiro, revestindo minha pele de suor. Ela sentiu
que eu estava aproximando-me do penhasco quando minha respiração ficou

húmida, rápida e intensa.

Uma enorme mordida surpresa no meu pescoço imitando a mordida de um

vampiro disparou em uma multiplicidade de dor e prazer, bombardeando em um

ataque atroz ao meu sistema, deixando- me num oásis de pura felicidade.

Minha emancipação apenas a excitou mais e ela estava determinada a prolongar

minha felicidade.

Ela desceu, a boca e os dentes levando-me para uma zona onde coisas normais
não acontecem com muita frequência. Ela estava a deixar-me absolutamente

louca e eu nem sabia como poderia retribuir o favor.

136
Deslizei mais meus dedos profundamente dentro dela e acompanhei seu ritmo

com o meu toque, acariciando intermitentemente seu clítoris com a outra mão.

Seus movimentos aumentaram em ritmo.

Eu podia sentir seu aroma penetrante quando a temperatura corporal dela

aumentou um pouco. Sua respiração ficou rápida e seu coração começou a

acelerar. Por fim, ouvi-a gritar um grito severo ao seu Deus novamente.

Deitamos na cama, exaustas, gratas uma à outra pelos momentos mágicos.


Verónica foi a primeira a falar.

“Pochas, moça! Isso foi demais!” ela disse com uma voz rouca e sensual que me
fez querer beijá- la várias vezes.

"Realmente foi ... então ... fazes isso com frequência?" “Fazer o quê?”

‘Encontrar moças em bares. Levá-las para casa e fodê-las sem piedade?

“Isso é tão bruto e grosseiramente incorreto. Eu não faço. Honestamente, és a

primeira moça com quem estou há muito, muito tempo.” Ela divulgou, “Perdi

minha namorada num acidente de carro nessa época do ano passado.”

“Sinto muito, querida. Deve ter sido um pesadelo.”

“Ainda é surreal para mim. Levei muito tempo para aceitar sua morte repentina.

Ela era tudo para mim, minha melhor amiga, minha confidente, minha amante,
minha alma gémea. A mulher que seria minha esposa, minha para sempre. Eu até

a apresentei à minha mãe.”

137
"Realmente, como foi isso?"

“Minha mãe estava em choque. Apesar de eu tê-la dito que gosto de mulheres.

Ela nunca aceitou. Ela criou um plano para me fazer mudar de ideia. Primeiro, eu

tive de ser benzida pelo pastor dela, para remover os demónios na minha cabeça

que estavam mentindo para mim, me convencendo de que eu era um menino.

Então eu fui ver um psicólogo para me ajudar a lidar com a mudança. Se isso não

funcionasse, ela contaria com a ajuda de um poderoso curandeiro. Fazer uma

poção de amor que me fará apaixonar por sua escolha de homem. Eu não a culpo.

Ela fez o possível para me criar sozinha. Ela não entendeu como eu me tornei
lésbica sob sua cuidadosa vigilância.”

"Deves tê-la amado em pedaços, essa moça."

“Sim, amei. Às vezes acho que ainda sinto a presença dela, o cheiro seu perfume

e a dor começa de novo. Eu quero ser honesta contigo. És uma boa moça, mas

espero que entendas que não posso apressar-me em nada sério, não agora.”

As palavras dela rasgaram-me por dentro. Senti uma facada aguda a percorrer

todo o meu corpo em uma fração de segundos.

Eu precisava de mais dela. Ela precisava de mim menos.

“Precisas de tempo, eu sei”, eu disse, quase em um sussurro. Ela me ouviu e me


abraçou. “É tudo o que peço. És do tipo que eu amaria em pedaços.”

Abraçamo-nos. Deitei minha cabeça entre os seios dela e lentamente viajei nos
meus próprios pensamentos.

138
O que tudo isso significa para mim? Quero dizer, o que diabos tudo isso significa?

A experiência que tive com essa mulher foi como o nirvana. Não apenas no

sentido físico, mas em um nível emocional profundo. O desejo que senti por ela

enquanto estávamos lá era diferente de tudo que eu já havia experimentado.

Ela era linda, adorável, alguém para se contemplar. Macia, mas áspera. Eu podia

dizer pela sua forma de fazer amor que ela era uma pessoa incrível. Eu acabava

de conhecê-la, mas queria conhecê-la mais. Este não seria um dos meus

pequenos experimentos. Aqueles que fazem parte da lista de coisas a fazer antes

de eu morrer. Eu precisava de mais dessa merda. Eu precisava muito e ela era


realmente linda.

Mas o que isso me fez? Lésbica? Bissexual? Eu nunca gostei desses termos. Eles
não soam bem. Para mim, sempre foram usados num tom negativo, sempre

depreciativo. Pessoas perversas e sem Deus, sem educação adequada. A mulher

foi feita para o homem. Mas como isso pode existir? O que isso significava? O que

eu era? Todos os homens com quem eu namorei tinham que ser extremamente

bonitos, quase bonitos, bonitos como uma mulher. Sempre foi importante para

mim gostar do que vejo. Aqui estava eu, gostando do que vi em alguém como eu.

Ainda assim, eu não acho que gostaria de ser chamada por esses nomes. Onde é
que alguém entra em definir quem eu sou com base em quem levo à cama? Quem

é que tornou tão importante definir pessoas?

Isso de definir quem eu era, tinha que estar ligada à minha vida sexual? Não era

irrelevante para a minha personalidade, o que fez com que eu fosse eu?

139
Para mim, a sexualidade era pessoal, não uma personalidade. A sexualidade é

fluida e flexível, mas, como é, um grande canal de poder usado para manipular e

controlar as pessoas.

Ninguém gosta de ser controlado.

Eu sabia que era muito mais, muito mais do que a caixa usada para definir gays,

bissexuais e lésbicas na nossa sociedade. Quando se tratasse disso, eu não ia

deixar ninguém me por para baixo.

Eu senti como se um novo amanhecer tivesse começado na minha vida, um

amanhecer de possibilidades e aventuras ilimitadas. Eu estava determinada a

explorar essa época ao máximo. Levada a ser tudo o que posso ser, tudo por causa
dela, a incrivelmente linda Verónica.

Quando ela me deixou em casa, perguntei-me se a veria novamente, a sentiria e


a abraçaria. Meu coração afundou quando ela não pediu meu número e apenas se

despediu de mim.

Nota

1 “Makaratasi vinoma o fim!” – calão de Nairobi usada para enfatizar o estado de embriaguez.

140
141
8 – CONTESTANDO NARRATIVAS DA ÁFRICA QUEER – Sokari Ekine

Duas narrativas distintas, ainda que interligadas, dominam as discussões sobre

as sexualidades queer africanas: uma afirma que as sexualidades queer são "não

africanas" e a outra trata a África como um local de homofobia obsessiva. A

primeira decorre de uma mistura de fundamentalismos religiosos, que insistem

em interpretações literais estritas de textos religiosos, e de uma posição

culturalmente essencialista que ´patologiza´ e nega a existência de ´queerness´ no

continente. Esses fundamentalistas argumentam que as sexualidades queer

ameaçam as normas sociais e culturais africanas e afirmam que as iniciativas

pró-queer na África por países e ONGs ocidentais são imperialistas. A segunda

narrativa sobre 'homofobia africana' está enraizada em discursos coloniais de


sexualidade africana desviante e peculiar e numa agenda global contemporânea

'neoliberal' LGBT1, que busca universalizar normas sexuais e expressões de

género euro- americanas brancas (Hoad 2007: xii, Massad 2007, Atluri 2009). As
tensões colocadas por essas duas narrativas representam um sério desafio

estratégico para as políticas africanas queer anticolonialistas capturadas em

vários pontos entre as meta-narrativas do imperialismo LGBT e o


fundamentalismo religioso homofóbico, por um lado, e as construções

contemporâneas indígenas de sexualidade e género, do outro.

142
O pânico moral contra a homossexualidade em todo o continente é sistémico e

indicativo de uma campanha instrumentalizada e bem organizada, que expõe a

relação acolhedora entre os fundamentalismos religiosos e culturais afirmados

por vigorosas agendas políticas nacionalistas. Nigéria, Uganda e, em menor grau,

o Malawi estiveram no centro desse movimento anti-queer, impulsionando

repetidamente a homofobia do estado através de legislações recorrentes. No

Uganda, uma lei anti homossexualidade foi apresentada pela primeira vez em

2009 e, desde então, foi reintroduzida repetidamente, sendo a última

reencarnação em 7 de Fevereiro de 2012. Os políticos da África Ocidental devem

estar sob o relógio 'Uganda antigay', pois, no espaço de alguns dias, políticos de
dois outros países divulgaram declarações contra o casamento entre pessoas do

mesmo sexo. A primeira foi feita pelo presidente Yahya Jammeh, da Gâmbia,

durante a posse de um ministro. É difícil ver isso como uma coincidência, pois

não parece haver nenhuma outra razão contextual pela qual a declaração bem

ensaiada foi feita no momento:

Não está na Bíblia ou no Alcorão. É uma abominação. Eu lhes digo isso,

porque a nova onda do mal que eles querem nos impor não será aceite

neste país ...

Enquanto eu for presidente, não o aceitarei no meu governo e neste país.

Sabemos o que são direitos humanos. Seres humanos do mesmo sexo não
podem se casar ou namorar - não somos da evolução, mas somos da

143
criação e conhecemos o início da criação - que foram Adão e Eva (Jollof

News, 2012).

A segunda veio da Libéria quando, no início de Fevereiro de 2012, a Rep Clarence

K. Massaquoi apresentou um projecto de lei que criminalizaria o casamento entre

pessoas do mesmo sexo (Libéria Times 2012). Isto foi seguido por uma emenda

preparada pela senadora Jewel Taylor, ex- primeira dama e ex-esposa de Charles

Taylor. A emenda à Lei de Relações Domésticas tornaria o casamento


homossexual um crime. A Nigéria também apresentou uma série de projetos de

lei sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo / mesmo sexo (2006, 2009) e,

em Novembro de 2011, o Projecto de Lei de Proibição de Casamento entre Pessoas


do Mesmo Sexo foi aprovado pelo Senado. No momento da redação, o projecto

ainda não tinha sido assinado pelo presidente.

Mas nem todos escolheram ataques tão inequívocos contra as pessoas LGBTI. A

valorização e afirmação do casamento heterossexual e da 'família' no projecto

nacional (bem como no continental como pode ser visto nos instrumentos da

União Africana) são difundidas em países ao longo do continente.

Todos os três países, Nigéria, Uganda e Libéria, possuem leis que criminalizam a

homossexualidade que datam do domínio colonial britânico. Portanto, as

perguntas não são apenas por que essas leis permanecem, mas por que elas estão
a ser expandidas e por que agora? A recusa da morte das leis nigerianas e

ugandeses, o potencial de imitação da legislação em outros países, o furor

144
internacional a seu redor e as diferentes respostas queer apresentam uma

oportunidade para examinar esses paradoxos e relações de poder nacionais e

internacionais.

A retórica sobre a homossexualidade ser 'não africana' se baseia na noção

essencialista de uma 'africanidade autêntica', baseada na crença de que há algo

intrínseco à África chamado 'cultura africana e tradições africanas'. Mas é mais

do que apenas uma definição do autêntico; é o poder de determinar quem conta

como humano e que vidas contam como vidas (Macharia 2010). Essa posição

essencialista é problemática por vários motivos. Como Dosekun argumenta:

Uma posição anti essencialista sustenta que Africa, logo Africanismo ou

africanidade são construções históricas e, portanto, contingentes. Isso

significa que não podemos falar de maneira significativa de uma África

essencial ou de coisas essencialmente africanas ou não africanas; nesse

caso, uma consciência e práctica como o feminismo não pode ser

descartada como não africana nesses termos. Este argumento anti

essencialista não implica que não exista algo como África. Não nega as

muitas condições históricas, materiais e culturais compartilhadas em


toda a África, que são de muitas maneiras exclusivas para o continente e

que, de várias maneiras, moldam nossas identidades como africanx.

Nega, antes, que essas condições sejam inerentes, naturais ou fixas


(Dosekun 2007).

145
Dosekun lembra-nos, de maneira útil, da ligação entre nomear e reivindicar

cultura e tradições nas estruturas kyriarchal² de poder e desigualdade. Em vez

de patriarcado, que se preocupa com a dominação dos homens sobre as

mulheres, o kyriarchy permite uma relação de poder mais complicada, baseada

em múltiplas estruturas de dominação que se cruzam, como raça, etnia, classe,

orientação sexual e género (Fernandez Factora-Borchers 2008).

A invocação de uma cultura africana nostálgica como base para a posição de


'homossexualidade não é africana' é frequentemente contrariada pelo argumento

de que essa narrativa se originou com a imposição de códigos penais coloniais,

principalmente pelos britânicos. No entanto, isso não explica a legislação


semelhante nos países francófonos e lusófonos. Não é minha intenção nesta

colecção focar no passado, mas, como Clarke, Muthien e Ndashe apontam mais

adiante neste livro, a referência às origens históricas da homofobia na África tem

limitado a utilidade como argumento para mudar leis e efectuar mudanças

sociais.

Uma análise adicional pode ser encontrada numa leitura do que Jacqui Alexander

chama de 'recolonização heteropatriarcal' (Alexander 1997: 66), a continuidade


entre a 'herança heterossexual branca e o heteropatriarcado negro'. O foco de

Alexander são as Bahamas e os estados do Caribe em geral; no entanto, ela

fornece uma excelente estrutura para localizar a homofobia contemporânea nos


estados africanos. A luta para se libertar do colonialismo foi em grande parte um

146
projecto político, que envolveu um mínimo de perturbações nos interesses

económicos ocidentais ou estruturas heteropatriarcais. De facto, os movimentos

nacionalistas usaram as mesmas masculinidades coloniais e militarizadas como

base para a libertação e o pós- colonialismo, mantendo assim o não status das

mulheres africanas.

O projecto de heterossexualização da construção da nação é ainda mais facilitado

por meio de legislação ou re-legislação (Nigéria - projecto de lei do casamento

entre pessoas do mesmo sexo, Uganda - projecto de lei anti homossexualidade).

A heterossexualidade é consolidada como a única base aceitável para a cidadania


e o estabelecimento / restabelecimento da ordem e a prevenção / término do caos

causado pelo desvio sexual / social da imposição queer. Assim, a legislação

renovada se baseia na "missão civilizadora" do colonialismo, reforçando a


heterossexualidade como ordem natural, existindo sem complicações ou

contradições (Alexander 1997, Hoad 2007, Atluri 2009). Para citar Alexander:

Presumivelmente, a lei esvaziou a sociedade, esvaziou a

heterossexualidade do caótico, do desordenado e do criminoso. Agora,

ambas, a lei e a heterossexualidade foram higienizadas para funcionar


como repositório da ordem, retornando cada uma a uma posição moral

comum. Assim articulada, a lei presumivelmente teria cumprido sua

missão civilizadora, funcionando silenciosamente, como os primeiros

147
mandatos britânicos haviam encomendado, enquanto construía e

defendia suas próprias hierarquias (Alexander 1997: 82).

A linguagem escolhida pelos líderes religiosos e políticos africanos para justificar

a heterossexualidade como a única ordem aceitável é semelhante à usada em

outras partes do mundo: valores familiares, culturais e tradicionais, sexo baseado

apenas na procriação dentro da santidade do casamento e inúmeras referências

de textos religiosos. Por exemplo, como o Exmo. Samson Osagie, senador


nigeriano, declarou:

Só é apropriado que, como africanos, defendamos nossos queridos

valores tradicionais. É bíblico que os casamentos são reconhecidos entre


um homem e uma mulher. Isso prejudica nosso valor quando começamos

a tolerar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para mim, acredito

que este seja um projecto de lei popular e contará com o apoio da maioria

dos membros da Câmara (Vanguard Nigeria 2011).

Após a aprovação do projecto de lei de proibição de casamento entre pessoas do


mesmo sexo na Nigéria pelo Senado em Novembro de 2011, houve uma mudança

na linguagem da moralidade para incluir direitos e leis nacionais soberanas,

possivelmente como resposta a declarações do primeiro-ministro britânico,

148
David Cameron , vinculando a ajuda ao desenvolvimento com os direitos 'LGBT'

(BBC, Andrew Marr Show, 2011) (Dowden 2011) e a declaração de Hillary Clinton

sobre a impor 'direitos gays' globalmente (Clinton 2011) .³ Tanto Cameron quanto

Clinton sugeriram que nos países que perseguissem pessoas LGBTI, o dinheiro

seria concedido directamente às ONGs escolhidas - presumivelmente àquelas

que prometem se tornar amigáveis a LGBTI. Em resposta à condicionalidade da

ajuda, o Presidente do Senado da Nigéria, David Mark, declarou:

Se houver algum país que queira parar de dar ajuda porque não

aprovaremos a conta no casamento entre pessoas do mesmo sexo; esse

país pode ir em frente. Somos uma nação soberana e temos o direito de


decidir por nós mesmos, porque nenhum país pode interferir na maneira

como administramos nosso país (AllAfrica.com 2011).

A sociedade civil nigeriana e os activistas de direitos humanos responderam ao

projecto de lei em uma declaração dirigida ao presidente e à casa, apresentando

uma análise das 'graves implicações' para todos os nigerianos,


independentemente de sua orientação sexual e identidade de género:

Vale a pena notar para todos os cidadãos nigerianos que o projecto de lei
proposto visa:

149
proibir qualquer forma de coabitação de facto entre dois indivíduos do mesmo

sexo ou gestos que conotem directa ou indirectamente relacionamento do

mesmo sexo. Se esse projecto se tornar lei, homem e homem e mulher e mulher

de mãos dadas, tocando-se, trocando gestos ou olhares, abraços ou qualquer

demonstração de afecto serão evidências de condenação e 10 anos de prisão.

O projecto também visa:

restringir o direito à liberdade de expressão;

restringir o direito à liberdade de associação;

restringir o direito à liberdade de pensamento, incluindo a liberdade de


consciência e religião (NSSMB 2006).

Diante disso, ambas as declarações norte americanas, em menor grau, e as


declarações britânicas têm um apoio substancial de activistas britânicos,

americanos e africanos. Da mesma forma, as declarações dos países africanos

sobre a soberania e o direito de determinar suas próprias leis têm algum peso do

ponto de vista imperialista. No entanto, abaixo da superfície da retórica dos

líderes ocidentais e africanos, existe uma relação desigual e, às vezes, precária. É

uma que está baseada no colonialismo, racismo, exploração económica e na

dependência da dívida e de um consenso neoliberal baseado em imperativos

económicos, nenhum dos quais permite contradições normativas. Esse consenso


está repleto de suposições de que os africanos LGBTI vivem em silos, não como

africanos completos, mas fora das realidades políticas e económicas nacionais e

internacionais. A implicação aqui é que, como africanos incompletos, as pessoas

150
LGBTI não são afectadas pelas políticas de ajuste estrutural do mercado livre.

Também não são afectados pela crescente militarização impulsionada pela

'guerra ao terror' dos EUA, que é exemplificada pela presença militar dos EUA,

particularmente através da Africom, ou pelas acções de organizações terroristas

como o Exército de Resistência do Senhor em Uganda ou Boko Haram na Nigéria.

As semelhanças entre os impactos da Lei Patriota dos EUA, para os muçulmanos

americanos em particular e as pessoas de cor em geral, e a lei nigeriana do

casamento entre pessoas do mesmo sexo sobre liberdades pessoais, censura e

liberdade de expressão são maiores do que a maioria das pessoas gostaria de


considerar. Por exemplo, ambas exigem maior vigilância estatal apoiada pela

vigília do cidadão para alcançar os resultados pretendidos. Muçulmanos e queers

são vistos como ameaças aos valores percebidos religiosos e culturais por um
acordo imperativo judaico-cristão, heteronormativo, implicitamente branco. No

entanto, assim como os EUA administram uma relação materialmente produtiva

com, por exemplo, Arábia Saudita e Bahrein, ao mesmo tempo em que facilitam

uma crescente islamofobia interna, e certamente não se atrevem a desafiar

nenhum desses países em seus direitos humanos (e particularmente nos direitos

LGBTI), também os países africanos podem manter relações semelhantes com o

Ocidente, enquanto restringem os direitos dos cidadãos quando ambos são

obrigados por imperativos económicos. Curiosamente, a declaração da sociedade


civil nigeriana que critica o projecto de lei nigeriano fez referência ao potencial

impacto negativo que teria na economia da Nigéria:

151
Com este projecto, a Nigéria e os nigerianos demonstram ser indignos de

confiança e incapazes de defender e domesticar tratados e convenções

internacionais que assinaram e ratificaram. Do ponto de vista dos

investidores estrangeiros, a incapacidade de manter acordos

internacionais levanta a questão de saber se seu investimento e seu

pessoal podem estar seguros nas mãos de um parceiro não confiável. No

momento em que o país está buscando atrair investimentos estrangeiros

directos, esse projecto de lei também representa uma ameaça para a

economia (Nigerian Human Rights Defenders 2011).

Um argumento comum usado para explicar a introdução de projectos de lei anti-


homossexualidade é que eles são diversionários, uma maneira de distrair a

população de necessidades mais urgentes, como a remoção de subsídios aos

combustíveis, o alto desemprego, a corrupção ou o combate ao terrorismo.

Embora seja verdade que em muitos países africanos o fervor religioso anti

LGBTI e a homofobia do estado tenham sido uma força unificadora, é difícil

imaginar que despertar o ódio ao povo queer irá, a longo prazo, desviar as

pessoas desses tipos de questões. Por exemplo, o Movimento de Ocupação da

Nigéria, de Janeiro de 2012, focado na remoção de subsídios aos combustíveis e


corrupção política, ocorreu apesar dessas distracções. Além disso, houve críticas

consideráveis na grande media e media social na Nigéria após a aprovação do

projecto de lei no Senado. Estas continuam a ser vozes minoritárias, mas as vozes
estão a aumentar em número e a tornar-se mais audíveis.

152
Nesse momento, a transformação de africanx LGBTI de desviantes não africanx

para uma minoria legítima permanece ilusória. Na África do Sul, o trabalho árduo

de activistas LGBTI como Simon Nkoli, Bev Ditsie, Edwin Cameron e Zackie

Achmat, para citar alguns, garantiu que a constituição de 1994 desse protecção

total às pessoas LGBTI. Apesar disso, permanece um alto nível de homofobia e

crimes de ódio associados, particularmente contra lésbicas negras da classe

trabalhadora e pessoas trans, destacando a interconectividade de opressões. Nos

últimos 10 anos, muitos outros países africanos testemunharam a transformação

de africanx LGBTI fora de armários não vistos para cabines de vidro quebrado

visíveis e a substituição de silêncios por um engajamento activo e assertivo com


o estado, sociedade civil, comunidades queer e ONGs internacionais.

Paralelamente à crescente visibilidade e ao activismo que a acompanha, tem

havido uma presença e intervenção crescentes por aquilo que Massad chama de

'Internacional Gay' (2007)

– ‘LGBTs’, ONGs e activistas brancx, que residem no norte, com um interesse

quase obsessivo em pesquisar a homofobia em todo o Sul global. A noção de uma

'homossexualidade compartilhada' (Hoad 2007, Massad 2007) é estabelecida por

esses grupos, ao mesmo tempo em que mostra a homofobia africana como um

fenómeno geográfico único, desconectado das histórias locais e globais e

essencialmente inerente.

Algumas secções da Internacional Gay adoptam uma visão diferente e procuram

fornecer um relato histórico de 'homossexualidade' ou intimidades do mesmo


sexo. O objectivo declarado é combater a narrativa competitiva de

153
'homossexualidade como não africana', colocando a culpa pela homofobia, pelo

menos em alguns países, nas leis coloniais que criminalizam a homossexualidade

masculina. Nem sempre é claro se essa busca por 'prova antropológica' de utopias

sexuais pré- coloniais é para o benefício de nós africanx ou uma justificativa para

seu próprio envolvimento em salvar a África de seus legados coloniais (Tatchell

2010). De qualquer maneira, essas duas narrativas obscurecem a diversidade e a

especificidade contextual das formações queer africanas, passadas e presentes,

que são moldadas por múltiplos factores - religião, etnia, nacionalismo, culturas

populares globalizadas e indígenas e conexões da diáspora (Macharia 2010).

Em resposta a esses esforços legislativos anti-queer, as ONGs e governos

ocidentais adoptaram uma forte abordagem de intervenção. Isso culminou em

declarações dos governos britânico e norte-americano sobre a retirada da ajuda


para os países do Sul global que continuam a perseguir pessoas LGBTI. Após o

anúncio do primeiro-ministro britânico David Cameron mencionado

anteriormente, mais de 100 organizações e activistas africanx de justiça social

emitiram uma declaração pública expressando sua 'preocupação com o uso da

condicionalidade da ajuda como um incentivo para aumentar a protecção dos

direitos das pessoas LGBTI no continente'. Em particular, @s activistas pediram

um repensar completo dos métodos actuais de envolvimento com a África,

incluindo o primado da consulta com os afectados:

154
A imposição de sanções de doadores pode ser uma maneira de procurar

melhorar a situação dos direitos humanos num país, mas não resulta, por

si só, na protecção aprimorada dos direitos das pessoas LGBTI. As

sanções dos doadores são, por natureza, coercitivas e reforçam a

dinâmica desproporcional do poder entre os países doadores e os

beneficiários. Costumam basear-se em suposições sobre sexualidades

africanas e nas necessidades das pessoas LGBTI africanas.

Desconsideram a agência dos movimentos da sociedade civil africana e a

liderança política. Também tendem, como foi evidenciado no Malawi, a

exacerbar o ambiente de intolerância no qual a liderança política usam


as pessoas LGBTI como bode expiatório por sanções de doadores, na

tentativa de manter e reforçar a soberania nacional do estado (African

Social Justice Activists 2011).

A declaração também apontou que o fundamento legal para a perseguição de

pessoas LGBTI em toda a Commonwealth foi estabelecido pelo Império Britânico,

e as antigas formas de se envolver com o continente devem ser abordadas pelos

afectados, não simplesmente impostas por intervenções dos mesmos poderes.

No entanto, nem todos concordam com a condicionalidade da ajuda e um


pequeno número de organizações e activistas não apoiaram a declaração.

Activistas de Uganda de Minorias Sexuais de Uganda (SMUG) e Quebra-Gelo, que

estiveram na vanguarda de desafiar a homofobia patrocinada pelo estado em sua


terra natal, optaram por não assinar. Mesmo entre os que defendem a

155
condicionalidade da ajuda, há uma insistência na consulta e uma abordagem

específica do país, conforme explicado por David Kuria, do Quénia Gay (um dos

signatários da declaração):

Em vez de supor que podemos ter uma abordagem "pan-africanista",

devemos, em vez disso, questionar quais desafios e oportunidades isso

nos apresenta como país. A declaração do Quénia Gay sobre a ajuda

observou que cada país teve uma narrativa de ajuda diferente e, portanto,
não podia falar de um 'africano', mas de uma resposta queniana

contextualizada (Kuria 2011).

Os perigos da abordagem da condicionalidade da ajuda ficaram claros com a


reacção em torno da prisão de 2010 do casal malauiano Tiwonge Chimbalanga e

Steven Monjeza. O casal foi condenado a 14 anos por "actos não naturais e

indecência grosseira" (Mapondera e Smith 2010), mas depois recebeu um perdão

presidencial. A natureza de alto perfil do caso levou a uma considerável reacção

negatva contra a comunidade LGBTI do Malawi. Numa entrevista, activistas


LGBTI do Malawi comentaram que antes do caso Chimbalanga / Monjeza, a vida

era mais fácil:

"Era mais fácil [antes]", diz Thandeka. "As coisas estão difíceis agora."

156
"Algum tempo atrás, era possível dançar, puderias talvez beijar, mas agora não ",

diz Amanda. Todos os homens têm namoradas ou esposas para cobrir o facto de

serem gays (IN Toronto 2012).

As reservas sobre intervenções internacionais permanecem fortes,

principalmente em vista da falta de consulta e das acções que resultam em minar

e até colocar em perigo activistas e condições locais. Até o espaço para escrever

e criticar publicamente intervenções unilaterais de poderosos activistas

ocidentais corre o risco de casos de difamação e retirada de publicações. Lidar

com personalidades inexpugnáveis, cuja celebridade repousa em uma história de


luta que às vezes tem consequências mais terríveis para os 'ajudados' do que os

'ajudantes', continua uma batalha. O complexo de branco salvador está vivo e

saudável e prospera na apropriação das lutas de outras pessoas.

As intervenções ocidentais que buscam impor uma narrativa ocidental à luta

queer africana fazem parte de uma história ininterrupta de suprimir as

necessidades e experiências de africanx que datam da colonização. A luta

africana não se dirige apenas à mudança da legislação existente; é uma luta em

que procuramos reafirmar nossa própria narrativa e recuperar nossa

humanidade. A Internacional Gay, como parte de uma agenda neoliberal geral, é

um obstáculo para definir e controlar as estratégias e os resultados de uma luta


queer africana, baseada em lutas interseccionais e na construção de movimentos.

Também procura se colocar no centro de nossa luta, ignorando a resistência local

e o movimento geral de libertação e compromisso com a justiça.

157
A universalização dos 'direitos dos gays' foi formalizada oficialmente por Hillary

Clinton em seu discurso do Dia dos Direitos Humanos de 2011, no qual jurou que

os EUA procurariam activamente garantir que os direitos LGBT existissem em

todo o mundo (Clinton 2011). Observe que ela usa a sigla LGBT e a palavra "gay"

em vez do LGBTI ou LGBTIQ mais inclusivo usado pela maioria de africanx. Ela

parece não ter ouvido falar de pessoas intersexuais e de seus direitos nessa luta.

Embora Clinton tenha reconhecido que o registo dos EUA sobre os direitos

"LGBT" estava longe de ser perfeito, sua declaração continha uma série de

omissões flagrantes, principalmente como os EUA pretendiam fazer valer os


direitos globais "LGBT". Haveria sanções, retirada de ajuda, recusa em vender

equipamento militar ou assassinatos direccionados? A falta de clareza reduz a

posição de Clinton às águas turvas da diplomacia internacional e fala dupla. Tome


esta declaração do embaixador dos EUA na Libéria, que foi feita após a introdução

de duas leis anti- homossexualidade no país:

Ela afirmou, no entanto, que a questão dos direitos dos gays na Libéria estava

sendo cercada pelo que ela chamou de "equívocos".

"Nossas políticas sobre direitos dos gays são de domínio público", disse

ela. "Acho que o problema que surgiu na Libéria é o equívoco de que a

ajuda dos Estados Unidos está ligada às acções da Libéria nessas áreas, e
esse não é o caso", disse ela.

158
Ela disse ao Daily Observer que ficou surpresa ao saber que os direitos

dos gays na Libéria eram um problema.

‘Não sei se isso é um problema aqui na Libéria; embora eu leia sobre isso

na imprensa o tempo todo, fiquei surpreso ao saber que esse é um

problema na Libéria (Binda 2012).

Considerando que a maioria dos países africanos são aliados dos EUA e são de
uma estratégica importância militar, é difícil imaginar que o policiamento e a

execução sejam outra coisa senão selectiva. Como é habitual para diplomatas dos

EUA, Clinton parecia não ver a ironia na declaração

de que os EUA agora policiariam o mundo num conjunto de direitos, enquanto se

envolviam em inúmeras violações de direitos humanos em casa e no exterior.

Clinton também convenientemente ignorou o crescente movimento evangélico

antigay nos EUA e seus laços com movimentos semelhantes em África. No

entanto, a verdadeira preocupação para as pessoas LGBTI africanas envolvidas

na construção de movimentos sociais progressivos é que tipo de mundo os

direitos 'LGBT’ de Clinton invocam. Quanto comprometerá a justiça social e

económica e a democracia de base nos nossos respetivos países? Enquadrar a

narrativa em termos de direitos cria tensões com outras sociedades civis e


movimentos sociais. Africanx queers não são apenas queers, são pessoas que

vivem suas vidas da mesma maneira que todos os outros e, como tal, nossa luta

precisa se alinhar a outros movimentos de justiça social, como os de e para as

159
mulheres rurais, moradores de casas precária, mudanças climáticas, direitos à

terra e assim por diante.

Esses pronunciamentos ignoram convenientemente a história ocidental do

racismo, colonialismo e homofobia e até mesmo aqueles que reconhecem a

culpabilidade colonial nas leis homofóbicas o fazem com a ideia de que versões

europeias e americanas de narrativas e activismo sexuais são o padrão que todos

devemos seguir (El-Tayeb 2011).

Aqueles de nós que vivem na diáspora estão bem cientes de que as declarações
de Cameron e Clinton são contraditórias às configurações raciais de cidadania

vividas na Europa e na América, onde até o nascimento é insuficiente como um

marcador de pertencimento. A única maneira de queers africanx serem activistas


significativos na diáspora é se estiverem a trabalhar como advogadx

internacionalistas certificados. No momento em que alguém não está disposto a

se tornar um "colaborador" na agenda internacionalista, desafiando assim a

legitimidade do Ocidente como salvador, nossas vozes são silenciadas ao nos

lançar como africanos não autênticos. Para ser autêntico, é preciso viver no

continente e se enquadrar como vítima. A experiência de Kagendo Murungi,

narrada neste volume (ver Capítulo 21), de trabalhar com a Comissão

Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC) em Nova York


fornece alguns excelentes exemplos de como as vozes de africanx na diáspora são

descartadas.

160
Os estados africanos reivindicam soberania, mas ao mesmo tempo empregam

um fascismo cultural e religioso elevado para alimentar a homofobia do estado.

Mesmo aqui, há uma complexidade no relacionamento entre alguns estados

africanos e instituições religiosas sobre onde está o poder na determinação da

agenda moral e quem é aceito como cidadão. Outra tensão deriva do

imperialismo LGBT que agora se transformou em um complexo industrial

lucrativo de ONG / doador construído com a premissa de salvar africanx da

própria África. À medida que essas tensões conflituantes se pressionam, elas

tornam-se internamente divisivas à medida que vários activistas lutam para ser

ouvidos. Mesmo com pessoas LGBTI africanas tornando-se o local de luta entre
narrativas concorrentes, mas relacionadas, e à medida que as tensões associadas

se pressionam de maneiras divisórias internamente, é essencial que elas se

envolvam nos seus próprios termos, com o nacional e o internacional, e

continuem a explorar os desafios de uma política transformadora.

Notas

Nota sobre terminologia: o termo LGBTI (lésbica, gay, bissexual, transexual e intersexual) é o acrónimo de uso geral pelos
africanos. Eu uso "queer" como uma terminologia mais ampla e

inclusiva. Outros termos - LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais), 'homossexualidade', 'gay' - são usados apenas em
referência à fala directa.

Da palavra grega kyrios, que significa "senhor" ou "mestre".

Nesse discurso no Dia dos Direitos Humanos de 2011, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, pediu o fim mundial da
criminalização das pessoas LGBT.

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163
164
9 – DECLARAÇÃO AFRICANA AO GOVERNO BRITÂNICO SOBRE
CONDICIONALIDADE DA AJUDA -

Nós, activistas africanx abaixo assinados, de justiça social trabalhando para

avançar sociedades que afirmam as diferenças, escolha e agência das pessoas em

toda a África, expressamos as seguintes preocupações sobre o uso da


condicionalidade da ajuda como um incentivo para aumentar a protecção dos

direitos das pessoas LGBTI no continente.

Foi amplamente divulgado, no início deste mês, que o governo britânico ameaçou

cortar a ajuda a governos de "países que perseguem homossexuais", a menos que

parem de punir pessoas em relações com pessoas do mesmo sexo. Essas ameaças
seguem decisões semelhantes que foram tomadas por vários outros países

doadores contra países como Uganda e Malawi. Embora a intenção possa muito

bem ser proteger os direitos das pessoas LGBTI no continente, a decisão de


cortar a ajuda desconsidera o papel de pessoas LGBTI e de um movimento mais

amplo de justiça social no continente e cria o risco real de uma reacção negativa

séria contra as pessoas LGBTI.

Um movimento vibrante de justiça social na sociedade civil africana está a


trabalhar para garantir a visibilidade e o gozo de direitos pelas pessoas LGBTI.

Esse movimento é formado por pessoas de todas as esferas da vida, identificadas

e não identificadas como parte da comunidade LGBTI. Tem estado a trabalhar

165
através de várias estratégias para introduzir questões LGBTI em questões mais

amplas da sociedade civil, mudar o discurso da sexualidade de pessoas do mesmo

sexo do debate sobre moralidade para um debate sobre direitos humanos e

construir relações com os governos para uma maior protecção das pessoas

LGBTI. Esses objectivos não podem ser alcançados quando os países doadores

ameaçam reter a ajuda.

A imposição de sanções de doadores pode ser uma maneira de procurar melhorar

a situação dos direitos humanos num país, mas não resulta, por si só, na

protecção aprimorada dos direitos das pessoas LGBTI. As sanções dos doadores
são, por natureza, coercitivas e reforçam a dinâmica desproporcional do poder

entre os países doadores e os beneficiários. Costumam basear-se em suposições

sobre sexualidades africanas e nas necessidades das pessoas LGBTI africanas.


Desconsideram a agência dos movimentos da sociedade civil e liderança política

africana. Eles também tendem, como foi evidenciado no Malawi, a exacerbar o

ambiente de intolerância no qual a liderança política usa as pessoas LGBTI como

bode expiatório por sanções de doadores, na tentativa de manter e reforçar a

soberania do estado nacional.

Além disso, as sanções sustentam a divisão entre LGBTI e o movimento mais

amplo da sociedade civil. Em um contexto de violações gerais dos direitos


humanos, onde as mulheres são quase vulneráveis, ou onde a saúde e a segurança

alimentar não são garantidas para ninguém, destacar as questões LGBTI enfatiza

a ideia de que os direitos LGBTI são direitos especiais e hierarquicamente mais


importantes do que outros direitos. Também apoia a noção comum de que a

166
homossexualidade é 'não-africana' e uma 'ideia' patrocinada pelo Ocidente que

países como o Reino Unido só agirão quando 'seus interesses' estiverem

ameaçados.

Uma resposta eficaz às violações dos direitos das pessoas LGBTI deve ser mais

subtil do que a mera imposição de sanções de doadores. A história do

colonialismo e da sexualidade não pode ser negligenciada quando se busca

soluções para esse problema. O legado colonial do Império Britânico, na forma

de leis que criminalizam o sexo entre pessoas do mesmo sexo, continua a servir

como base legal para a perseguição de pessoas LGBTI em toda a Commonwealth.


Na busca de soluções para as violações multifacetadas que as pessoas LGBTI

enfrentam em toda a África, antigas abordagens e maneiras de engajar com o

nosso continente precisam ser interrompidas. Novas formas de engajamento que


têm a protecção dos direitos humanos em sua essência precisam reconhecer a

importância de consultar os afectados.

Além disso, os cortes de ajuda também afetam as pessoas LGBTI. A ajuda recebida

dos países doadores é frequentemente usada para financiar educação, saúde e

desenvolvimento mais amplo. As pessoas LGBTI fazem parte do tecido social e,

portanto, fazem parte da população que se beneficia do financiamento. Um corte

na ajuda terá um impacto em todos, e mais ainda nas populações que já são
vulneráveis e cujo acesso à saúde e outros serviços já são limitados, como as

pessoas LGBTI.

167
Para abordar adequadamente os direitos humanos das pessoas LGBTI na África,

os activistas abaixo assinados da justiça social pedem ao governo britânico que:

Revise sua decisão de cortar a ajuda a países que não protegem os direitos LGBTI;

Expanda sua ajuda a programas LGBTI liderados e baseados na comunidade que

visam promover o diálogo e a tolerância;

• Apoie mecanismos nacionais e regionais de direitos humanos para

garantir a inclusão das questões LGBTI em seus mandatos de


protecção e promoção;

• Apoiar o entrincheiramento de questões LGBTI em questões mais


amplas de justiça social por meio do financiamento de Projectos

liderados pela comunidade e de propriedade nacional.

http://bit.ly/SVB0rr

168
169
10 – DIRECTO AO ASSUNTO – FICÇÃO – Olamine Popoola

Podes pensar que eu deveria ter ido directo ao portão de chegada. Eu não deveria

ter ficado lá, negando o calor abrasador, as boas-vindas que certamente me

atingiriam como um colapso. Só porque havia uma terra ainda não climatizada

em que eu poderia me esconder por agora e mais tarde preenchê-la com as

reflexões filosóficas de alguém de 30 e poucos anos. Essa faixa etária é notória

pelas reflexões e, até os 50 anos, é preciso esperar e suportar a nova sabedoria

encontrada. Especialmente alguém deve residir nesse ponto (temporariamente)

em outra faixa etária. Tudo isso para que suas frágeis vidas interiores emocionais

pudessem lidar com a transitoriedade e com o facto de que alguém acaba

perecendo.

Qual é a pressa, podes dizer? Qual é a pressa de fazer as coisas, avançar, amarrar

pontas soltas? De trazer isso para um bom pacote que a partir de agora possa ser
transportado para lugares pacientes, onde pessoas gentis o desdobrarão e

desembrulharão com cuidado? Qual é a pressa? Bem, idade. Envelhecimento. A

carga invariável do infinito e a pergunta mais quente que Julho (em algum país
realmente quente): nós prevaleceremos (ou seja, permaneceremos além da

morte)?

Mas ainda não estamos lá, nem longe. Continuas a interromper antes que

tenhamos a chance de coerência. Dirias, siga em frente, imediatamente. Não

170
hesite em absorver tudo. Só para encarar os grupos de pessoas que passavam por

mim, fazendo fila animadamente sob a janela de vidro levemente elevada.

Completou a caixa dentro da qual estavam sentados dois homens suados.

Receber, inspecionar e depois emitir uniformes beges: controle de passaporte. A

comoção foi alta e poderosa. Eu preciso de descanso e se ficares quieto eu

realmente terei um. Encontrei um banco na parede, alinhando a visão inchada

dos viajantes. Famílias inteiras retornando de vidas bem- sucedidas no exterior,

pessoas de negócios que aproveitaram oportunidades de compras depois de

qualquer que fosse sua linha de fortuna que os levara para ocidente; estudantes

de licença; outras pessoas de negócios de outras margens que procuram atracar


nos portos férteis dessa complicação. Pesquisadores. Conhecedores.

Repatriados. Alguns fugitivos (até onde eu poderia dizer).

Eu teria fumado se não estivesse no aeroporto e não fosse menor de idade.

Juntamente com a fumaça tóxica, eu inalaria as cenas de reuniões elaboradas e

despedidas recentes. As perdas e ganhos e as expectativas eufóricas do que estava

para acontecer além do estado de imigração. Mas eu não fumei; afinal estávamos

no aeroporto.

Eu também logo pegaria os pedaços que havia deixado para trás ou entrelaçaria

novas memórias com as minhas verdades estabelecidas e testadas. Não havia


necessidade de adiar, eu posso ouvir- te a dizeres isso. Avance no futuro. Aqueles

que o fazem, encontram seu destino cedo.

171
Eu estava a inclinar para a frente no banco em que sentava com as pernas

afastadas, os cotovelos firmemente plantados nas coxas, exactamente onde os

joelhos começaram, mãos soltas, balançando e totalmente indiferente. Nesta

posição, toda observação era uma questão de olhar para cima, e casualmente

virar minha cabeça e seguir o drama. A menininha com quem eu brincava

durante o voo lotado, ou melhor, ela brincou comigo, me procurou, subindo e

descendo o corredor onde a classe executiva começava constantemente girando

a cabeça coroada de bola de pelúcia. Seu cabelo se dividia em quadrados

arrumados, unidos por dados e bolas coloridas que emitiam um leve som de

clique cada vez que ela chegava à cortina e seus olhos olhavam para trás. Eu
estava

- e tinha certeza de que era eu que ela estava procurando - a seguindo? Suas
covinhas me alcançando sem palavras, ela já sabia o valor de sua fofura e o

impacto que um sorriso daria a alguém, não apenas a alguém jovem como eu. Eu

não pude evitar. Arremessei meu braço quando ela estava a voltar e, com uma

risada estridente, ela correu na sua direcção, depois caiu nela, uma e outra vez.

A mãe dela, que estava sentada três cadeiras atrás de mim em um dos corredores

do meio, não estava muito feliz com isso. Eu não era do tipo que instigava

ansiedades, mas também não estava induzindo nenhuma confiança nas


habilidades avançadas de cuidar de bebés. Depois de meia hora de conversa e

brincadeiras entre mim e a pequena, a mãe estava a dormir. Fora como um

cachorro, com a cabeça apoiada no ombro do vizinho direito. Daquele jeito ela
estava produzindo uma imagem falsa de felicidade conjugal com ele, e, ele - de

172
tempos em tempos - olhava para a mulher que estava desmaiada em seu braço

como se nalgum momento no passado ele se ajoelhara e pedira a mão dela (ou

qualquer outra coisa igualmente apropriada). Ela não se mexeu, permaneceu com

a boca aberta, os pés esticados, agora que finalmente estavam fora dos sapatos.

Eu havia resistido ao teste e a mãe da criança acabou cedendo ao zumbido fraco,

que todos os aviões parecem emitir como respirações sem esforço - com ar

condicionado e altitude congelada no anonimato mecânico - e isso daria um sono

leve, acima das nuvens, como se costuma dizer.

Eu nunca soube o nome dela porque sua mãe não acordou novamente até que os
filmes estivessem sendo repetidos pela terceira vez e a fralda da menina estivesse

cheia e chorando muito. Meu poder de cócegas - e a atraccão geral - diminuíram

instantaneamente. A mãe parecia atónita e demorou um momento para voltar de


onde seus sonhos a levaram para o tubo largo que navegava no céu noturno. Ela

afagou o cabelo da filha distraidamente, passando o braço em volta do pescoço

pequeno para consolá-la, mas quando a borda da cadeira provou estar no

caminho ela puxou o corpo pequeno num movimento confiante. A filha terminou

no colo e, com a outra mão, procurou os sapatos para ajudar os pés inchados a

voltar ao couro azul.

“Ok, ok”, ela a silenciou e elas foram para o minúsculo cubículo de banheiro.
Quando voltaram, a menina trocada e com sono, o capitão anunciou a chegada

iminente a Lagos.

173
Eles estavam a aproximar-se da janela de vidro. O buba real azul e o iro da mãe

foram finalizados com um gele de tangerina e sapatos e bolsa a combinar em azul

cobalto. Ela entregou o passaporte a um dos pares atrás da janela de vidro.

Acenei, mas a menininha não me viu. Eu deveria ter ido despedir-me, podes

dizer, mas para quê? Eles passaram para o outro lado. Que bem faria para

prolongar esse encontro casual como se tivesse mais significado do que poderia

ter?

Eles chegaram. Eu, no entanto, permaneci firmemente no limbo.

Ele sabia que eu estava a chegar. Ele provavelmente estava no meio do limite

aglomerado agitado deste lado de espera, a minha procura. Imaginando como eu

tinha encontrado uma roupa semelhante de saia e blusa a combinar e, se não uma
bolsa, uma bagagem adequadamente feminina. Não ria. Ele estaria do outro lado,

com os olhos fundos, teimosos demais para aceitar como óculos versus orgulho

facilitariam seus dias. Ele estaria lá, mais baixo que eu, atarracado, mas apenas

com uma barriga pequena, como eu tinha visto na foto que Ada havia enviado por

e-mail. Com cabelos prateados que lentamente se afastavam da testa, deixando

lagos crescentes entre os lados abundantes.

Não te lembras de Ada, certo? Isso é porque estás sempre à sua frente de ti
mesma. Aqueles que esperam às vezes podem ter a história toda. Tu decides.

A fila estava a ficar mais curta e eu estava a atrair atenção. Não diz que me
avisaste. Diga que entendes. Pelo menos fingir. Essa é uma opção.

174
Não foram apenas os seguranças que já haviam me dito algumas vezes: “Sr. Não

se para aqui. Vá lá e mostre seu passaporte.”

Desculpei-me, apontando para o meu rosto de onde o suor estava derramando

generosamente.

“Desculpa. Não quis causar um problema. Só um momento, se eu puder. Por

favor. É a minha circulação. Estou com tonturas. Só um momento para

descansar.”

Eles me deixaram lá quando tirei a garrafa de plástico da água da mochila. Não

há necessidade de chamar alguém. Apenas um momento para vir e relaxar. Era

tudo o que eu queria. O segurança que estava na minha frente com o seu
uniforme impecavelmente passado, pernas afastadas, braços cruzados e

polegares enganchados em seu cinto, elevando-se sobre a minha estrutura

afundada, estava agora apontando para mim. Ele estava parado ao lado da caixa

do passaporte, conversando com um homem que havia chegado recentemente.

Era uma figura alta e magra e sem fôlego, e instantaneamente pensei que ele

deveria ser o supervisor. Parecia ter saído de um escritório secreto no interior

do aeroporto, bem construído e reformado. Houve um incêndio grave, meu

vizinho no banco de voo havia me informado antes que eu fosse absorvida pela
menina e o ignorasse. Eu não estava interessada em conversar, meu estômago

estava tenso demais para inspirar e soltar palavras de maneira regular; e ele era

um estudante de engenharia do primeiro ano. Eu não saberia o que perguntar.

175
O segurança afastou-se da caixa com os funcionários da imigração, vindo em

minha direcção a passos largos.

A última vez que conversamos foi por telefone. Eu tinha falado. Meu pai ficou

quieto. Eu não sabia se ele estava no fim da linha, mas o desejo de dizer o que eu

fiz me tinha consumido. Montando uma onda, uma perfeita. No topo - o ponto

mais alto - eu estava a exalar sentimentos que não eram da conta de ninguém.

Estabelecer argumentos realmente - profiláticos - por toda a força baixa e

uniforme que chegava à costa, de forma e inevitável. Eu pensei que eles estariam

lá juntos, os pontos que eu coloquei, como ondas a subir em direcção à praia,


onde havia entendimento. Para se encontrar com múltiplas possibilidades, que

na minha excitação febril eram todas positivas. Eu não tinha levado em

consideração que isso também significava que alguém poderia ocupar lugares
diferentes, em diferentes baías, assim como nós dois ainda estamos lutando com

a questão de com que idade aprendemos a sentar com o desamparo.

O que eu também tinha calculado mal era que praia era sinónimo de feriado,

portanto irreal e impermanente. O material dos sonhos que deslizou pela

consciência e foi melhor observado através de suas lacunas, mas não levado para

o campo real. Eu não tinha certeza se ele escutou até que sua voz ecoou em seu

timbre inconfundivelmente gutural dentro do meu ouvido.

“Já me fiz claro no meu e-mail. Não?”

Eu pesquisei isso. Isso. O que aconteceu quando minhas esperanças entraram em

colapso. A maneira como a água chega quando algo está no caminho. Diz que:

176
difração refere-se a vários fenómenos que ocorrem quando uma onda encontra

um obstáculo, a aparente flexão de ondas em torno de uma barreira. Também

ocorre com a matéria.

Então eu também bati. Eu caí completamente. Não era um pequeno obstáculo,

era enorme. Tudo.

Eu me pergunto o que terias sugerido? Com suas ideias seguras sobre a

simplicidade de tudo isso.

“Qual é o pior que pode acontecer?”

Nada era pior do que isto. "Eu já me fiz claro."

Agora, olhando novamente, posso ver que não era difração. Eu estava

literalmente machucado. O supervisor chegou ao meu lado.

“Estás bem? Se precisares de atenção médica ...?”

“Não, não, eu estou bem. Sinto muito por incomodar. Só estou a descansar a

espera do fim da fila.”

"Bem, como verás", ele continuou educadamente, estendendo o dedo indicador e

o dedo médio para o local em que apenas alguns minutos atrás, havia uma fila na
frente da cabine, “já é fim da fila. Precisas mostrar seu passaporte para o

funcionário ali.”

"Sim", saiu da minha boca com cautela, “é claro”.

177
A última vez que estive aqui, tinha apenas alguns anos a mais do que a menina

com quem havia brincado antes. Uma aeromoça amigável pegou minha mão

minúscula e me trouxe do balcão de check-in para a aeronave. Não havia

ninguém para segurar minhas mãos húmidas agora. Abri a garrafa de plástico

que ainda estava a segurar e dei um gole profundo. Então eu carreguei a mochila

com força repentina. O oficial pareceu satisfeito. Suas mãos prontas, prontas

para me agarrar pelo lado, se meu corpo falhar, afinal.

Surpreendentemente, tudo correu muito rápido, mas devo dizer-lhe que havia

um olhar suspeito: um olhar longo que viajou da minha cabeça raspada (número
1) à minha camiseta de grandes dimensões e às calças largas de três quartos.

Outra inspeção completa do passaporte vermelho.

"Kara Funmilayo?" “Sim.”

“Tens a certeza? Kara?”

Ele estava lá do outro lado, ele estaria. Como naquela época em que eu era o amor

do pessoal da aeronave. Quando a aeromoça me levou para o controle de

passaporte, ele estava a espera bem aqui, bem neste lugar - ou, na verdade, não

tenho certeza de onde estava, foi antes do incêndio, mas figurativamente falando,
era esse lugar exato. Ele havia me passado pela segurança sem filas, sem muito

escrutínio devido à ajuda de um militar uniformizado bege, um amigo que era

generoso com o pai e comigo. Em troca, o pai foi generoso com ele.

“Não é Iorubá. Inglês.” “Ah ok. Funmilayo?”

178
Esta última pergunta. Uma que não esperava uma resposta. Não de mim. Como

eu disse, tudo foi rápido. Ele mostrou ao seu camarada meu passaporte e,

enquanto conversavam em voz baixa, debatendo. De repente, ele acenou com a

cabeça vivamente e carimbou. Outro olhar persistente, mas não mais

sussurrando. Libertaram-me. Esvaziaram-me na área deserta de retirada de

bagagem, onde apenas algumas bagagens ficaram no carrossel. A minha se

destacou. Uma nova mochila esportiva, não diferente do gele da dama de manto

azul, só que mais brilhante, um tipo muito mais brilhante de cor de abóbora com

costuras de couro branco e suspeitamente pequena ao lado do conjunto de quatro

caixas idênticas de tróleis com roupas. Eu não estava com pressa.

Podes interromper e mencionar que eu ainda não tinha estado tão longe. Que eu

tinha e andado vagueado de todas as maneiras possíveis. Explorado cada detalhe


de uma maneira trabalhosa. Eu, é claro, teria que rejeitar sua interferência, negar

qualquer motivo para discussões, pois certamente os detalhes são uma questão

de consideração e dificilmente elaborei muitos. Talvez não seja suficiente? Mas

sabiamente, desta vez, vou manter minha paz, juntar-me à observação, contigo.

Procurando. Sabendo. Retornando. Eu estava em fuga??

A mochila cabia nas minhas costas como uma peça extra de roupa, como se

pertencesse. O meu tinha sido o último voo internacional e sua chegada duas
horas antes trouxe um fluxo constante de boas dicas dos alegres retornados e

viajantes. Os manipuladores de bagagem puderam ver que eu não era uma

perspectiva promissora. Minha chegada tardia já havia confirmado isso, minha


tenra idade era outra pista. A falta de urgência no meu ritmo deu-me conta da

179
minha relutância: eu não empreendia, nem gastava generosamente, mas, embora

mal tivesse passado da adolescência, alguém com bagagem. Outros tipos de

cargas. Um andarilho perdido.

“Sr. Não precisa de táxi? Hotel? Transporte? Instruções?”

Eles tentaram, no entanto, embora com pouca convicção ou esforço, mas minha

cabeça trémula apenas confirmou suas suspeitas. Eles pensaram que sim.

É claro que seu e-mail deixou tudo muito claro. Especialmente a questão da
direcção e qual minha vida seguiu. Que decisão eu tomei e que tomei sem

consultar a ele sobre o assunto. O assunto. Como se alguém pudesse palpá-lo,

como se houvesse algo assim; desmembrá-lo, encontrar nele elementos de fluxo


livre e vinculativos aos quais se poderia designar certa importância. Mais a um

do que outros. Uma questão de decisão. Como se alguém pudesse trocá-los por

outra ordem e produzir um assunto completamente diferente - ou mais

precisamente, forma. Que eles se organizam numa direcção refutável àquela em

que eu tanto insisti independentemente. Que, para encerrar o assunto, se opôs,

em primeira instância, a direções que deveriam ser inerentes e dadas. Embora a

matéria pudesse mudar, essa em particular foi inerentemente feita para

permanência.

A mochila estava boa na minha mão. A alça de couro macio na minha palma

impediu que escorregasse. Na verdade, absorveu um pouco da humidade das


minhas mãos húmidas, absorvendo minhas ansiedades, o que só poderia

180
significar que as coisas estavam a melhorar. Minha confiança se impulsionou

para a acção. Mais uma porta, mais uma parede para atravessar.

Finalmente, com convicção, caminhei, avançando, congratulei-me

silenciosamente por ter escolhido os três quartos, apesar de ter sido

desconfortável quando o vento húmido levantou as pernas um pouco por dentro

quando saí de Londres horas atrás. Houve um baque quase monótono, a maneira

como o calor me recebia e eu parei abruptamente. A passeio estava vazia.

Ninguém estava lá. Ele não veio.

Porquê repassar isso, perguntas? Porquê voltar?

O suor escorria novamente pelo comprimento do meu torso, desta vez não mais
em antecipação, mas com a ajuda da humidade, com pleno conhecimento do

assunto.

Sua palavra havia dito: “Obviamente, seu tempo na Europa afastou-te do nosso

modo de vida. Embora ainda não sejas considerada uma mulher, mostraste que

é capaz de resolver assuntos com suas próprias mãos.”

Eu tinha quebrado a forma, reivindicado na necessidade juvenil de um nome que

não era africano nem que pudesse sustentar o dele, e ele, portanto, me libertou

para o meu destino escolhido.

Rapazes ajudavam os passageiros de outros voos a transportar malas pesadas nos

seus táxis. Um homem grande com dois celulares, um na orelha, e outro

181
gesticulando enquanto dois carregadores colocavam uma mala enorme na

bagageira de um Peugeot enferrujado.

“Não, eu esperava por si no momento em que lhe disse para vir aqui. Você vem e

espera, entendeu? Não preciso de desculpas agora, estou de pé no aeroporto, sem

motorista, sem meu próprio carro. É inaceitável.”

Meus pés estavam pesados e não havia possibilidade de me mover, nem um

centímetro. “Mas onde estás? Você deve esperar. Senhora não sabia que eu

chegava neste momento. Você sabia!”

Quatro caixas grandes, com o mesmo invólucro e tamanho descendente, foram

guardadas no porta-malas e no banco de trás. O homem grande e escuro, de calça


bege e camisa polo xadrez marrom e bege a combinar, se jogou no banco de trás,

ao lado dos dois menores da bagagem quádruplos. O motorista fez um

agradecimento ao seu ajudante e o homem estava a gritar no telefone, a porta

ainda aberta.

Estás quieto agora? Aqui é onde eu poderia precisar de uma intervenção sábia,

uma de suas ajudas seguras. Eu liguei. Como disseste, o que pode dar de errado.

“Não fui claro? Em vista da tua decisão, não se considere mais parte desta

família.”

Liberaram-me. Eu não estava voltando, não estavam a minha procura - eu sabia

- e definitivamente não estava a fugir. Ninguém estava aqui para me pegar, do

que eu poderia estar a fugir? As ondas quebraram em uma magnitude de

182
possibilidades. Eles não tinham espaço para todos os assuntos. Esse não. Tia Ada

havia ligado e dito: “Se acalme e tenha uma criança. Ninguém perguntará depois.

És tão jovem. Seu pai lhe negligenciou quando mais precisavas dele. Não lhe dê

as costas agora. Vá e tenha uma criança.” Eu não tinha virado as costas, na

verdade, aqui estava eu enfrentando todos, embora não tivesse trazido uma

criança, simplesmente porque não tinha feito uma.

O homem de bege saiu do carro novamente, agora segurando cada um de seus

telefones nos dois ouvidos diante de sua voz e rosto acalmados como o mar

agitado faria quando a tempestade passava pela costa.

“Certo, vou esperar.”

Ele desligou e depois falou baixinho com o proprietário do táxi, entregando-lhe

uma quantidade generosa de nairas pelo tempo perdido. Coloquei a sacola na

praça empoeirada de cimento. Um carro grande parou. As janelas escuras não me

permitiram ver quem estava lá dentro, e o homem grande estava bloqueando a

vista quando ele quase arrancou a porta das dobradiças tão ansiosamente foi sua

abertura. Alôs alegres foram trocados e ele se inclinou ainda mais para dentro.

Um jovem piloto de camisa de basquete azul cobalto e laranja XXL pulou do banco

da frente e pegou as malas de espera. O homem de bege estava finalmente


sorrindo. Em seu alívio, ele havia esquecido a longa espera, a raiva confusa e a

descrença anterior por ter ficado no aeroporto. Ele jogou sentimentos leves,

esquecida foi a desaprovação, sua mão pesada em toque amigável no ombro do


jovem. Então ele ajudou a guardar as sacolas.

183
Ele não veio porque eu não era mais filha dele. Eu escolhi cuidadosamente,

procurei as palavras que o fariam entender, perguntei a amigos e parentes,

mentores mais velhos. Depois de ouvir tudo e considerar o que disseste, eu tinha

escolhido o que pensava que seria facilmente entendido. Quando liguei, após a

troca de e-mails e disse que chegaria em duas semanas, ele ficou quieto.

"Eu já reservei o voo, chegarei no dia 19, o último voo de Heathrow".

"Não fui claro?" Depois de um longo silêncio, ele acrescentou secamente: "E o seu

lesbianismo?"

O homem de bege abriu a porta dos fundos novamente e entrou. Então ele se

virou para mim. "Aonde vais, filho?", Ele disse. Eu balancei minha cabeça.
Lágrimas rolavam pelo meu rosto.

Ele deixou a porta inclinada e caminhou até mim. “Estás aqui há um tempo.
Ninguém vem buscá-lo?”

Eu não disse nada. Eu não conseguia falar. Ele não veio. A magnitude deve ter

sido óbvia. Ondas esmagando dentro de mim, difratando todo o assunto.

“Onde precisas ir?”

Na minha mão estava o endereço que eu tinha memorizado mais para mostrar e
surpreendê-lo do que por necessidade. Havia vários pedaços de papel porque

todo mundo sabe com que facilidade eu esqueço e perco as coisas e minhas

instruções foram claras: mantenha-os em locais separados. No caso de. Eu os


tinha todos reunidos em uma pilha, com toda a certeza.

184
“Isso está fora de Ikorodu. Vamos deixá-lo no caminho.” Ele colocou a bolsa no

ombro e me puxou pela manga. "Sente-se nos fundos, com minha esposa."

Ele próprio escolheu o assento ao lado do motorista. Estava tão frio depois do ar

húmido da noite, o ar-condicionado zumbindo um pouco, a porta zumbindo para

nos lembrar que ainda estava aberta. Eu espirrei. Desajeitadamente, caí no

assento, murmurando “Boa noite, mãe” enquanto tentava desbotar o couro para

não incomodar ninguém. Minha camiseta húmida grudou na minha pele como

um pirolito já lambido apanhado no chão, pegajoso e levemente sujo.

"Olá", ela respondeu de maneira confortável, um toque de alguém que tinha visto

o mundo e se mudado para ele como se fosse apenas o quintal de uma de suas

casas. Um sorriso generoso mostrou seu bom conjunto de dentes. Foi


encorajador e sugeriu que pegassem estranhos toda hora, mas é claro que o

marido explicava. Ele olhava para mim pelo espelho retrovisor e se virou para

iniciar uma conversa, não interrogativa, mas curiosa o suficiente para ter certeza

de que eu sabia que ele apenas pensava que eu era decente.

“Directo de Londres? Isso é engraçado…”

Eu olhei para ele e depois para sua esposa. Ela estava segurando a menininha do
avião, que dormia profundamente, e agora eu vi que ela estava usando a roupa

azul, o gele laranja colocado no encosto. Qual era a probabilidade? Mais uma vez,

eu esperava que comentasses sobre isso. O momento, a coincidência. Duas vezes


nas proximidades, uma combinação de azul e laranja. Eu no carro de um

185
desconhecido. Tudo se encaixa tão perfeitamente, quase nada no meio da

coerência.

"Minha esposa também ...", ele olhou no espelho para o meu rosto e parou no meio

da frase. Meu cabelo curto parecia mais curto e assustadoramente exposto.

Paramos e o motorista entregou o dinheiro que o homem de bege lhe dera ao

colecionador na pequena cabana de cimento do lado de fora. O carro se arrastou

sobre as reduções irregulares de velocidade e depois acelerou, subitamente

liberado do tráfego e da parada da estrada. Cenas noturnas passaram e os olhos

do marido mantiveram um olhar firme, tentando descobrir como me aproximar.


A questão da cena de boas- vindas perdida, a ponta solta que minha aparência

estava oferecendo, as lágrimas que secaram em minhas bochechas.

“Não estamos longe. Alguém estará lá? Eles sabem que vens?” Ele fez uma pausa.

"Eu não pretendo ser ... quer dizer, por favor, não receba de forma errada. És um

rapaz? Ou uma rapariga?”

Do outro lado, o motorista anunciou suavemente, para não perturbar e perder o

interesse pela segunda vez esta noite, que estávamos entrando na pequena rua

que levava ao endereço no meu pedaço de papel. O marido virou-se para mim
novamente.

"Eles sabem que vens?"

Era isso. Um retorno. Algo desconhecido. Uma missão. Eu tinha chegado.

186
É a forma que faz das coisas o que são. A mudança ocorre porque o mesmo

assunto pode ser organizado de maneiras diferentes.1 Tudo era o mesmo. Tudo

era diferente. Eu assenti.

Pois o cerne do assunto está sempre em outro lugar que não deveria estar.2 "Sim,

eles sabem que eu vim."

Para permitir que surja, as pessoas o abordam indirectamente adiando até que

amadureça, deixando que chegue quando tiver que chegar. Não há captura,

empurrão, direcção ou quebra, não há necessidade de uma progressão linear que


dê a ilusão reconfortante de que se sabe para onde vai. Tempo e espaço não são

algo totalmente exterior a si mesmo. ³

Ele sabia que eu estava vindo.

Notas

Banach, David (2006) ‘Some main points of Aristotle’s thought’,


http://www.anselm.edu/homepage/dbanach/arist.htm, accessed 7 November 2012.

Trinh, T.M. (1989) Women, Native, Other. Writing Postcoloniality and Feminism, Bloomington and Indianapolis, Indiana
University Press: 1.

3 Trinh (1989): 1

187
188
11 – A FACE QUE EU AMO: FACES E FASES DE ZANELE MUHOLI – Raél
Jero Salley

Este ensaio analisa 'Faces e Fases' de Zanele Muholi, um projecto iniciado em

2006 e ainda em curso. *NDT2 Muholi é uma fotógrafa contemporânea, artista e

activista que trabalha na África do Sul, cujo trabalho responde activamente a


perguntas sobre o individuo e integração social contemporânea na África Austral

hoje. O trabalho de Muholi imagina a vida contemporânea com uma mistura de

reverência, emoção e visão romântica. Seus trabalhos também desafiam o


discurso convencional sobre negritude, sexualidade, género e classe. 'Faces e

Fases' é um projecto elegante e tecnicamente realizado, que visa empoderar as

colaboradoras de Muholi e oferecer a pessoas de fora uma forma inovadora de


ver, que envolve criticamente a visualidade contemporânea na África Austral.1 As

imagens discutidas aqui são de uma fase deste projecto em 2011.

O trabalho de Muholi é exepecional na forma como impulsiona novas direcções

e agendas, pois, através de sua fotografia, ela confronta a violência sobre o corpo

feminino e as vidas e abusos sofridos por lésbicas negras nos municípios da

África do Sul. A obra de Muholi inclui imagens que revelam crimes de ódio e

opressão direcionados às comunidades de lésbicas / gays / bissexuais

/ transexuais / intersexuais (LGBTI), enquanto outras imagens destacam prazeres

e intimidades dentro dessas comunidades.

189
Meu objectivo não é falar por Muholi ou suas colaboradoras. Em vez disso, meu

investimento é apoiar o potencial transformador do trabalho de Muholi e explicar

seu impacto na visualidade contemporânea.

Minha discussão está organizada em três secções temáticas: documentos;

imagens, ícones e índices; retratos e valores.

Meu ponto principal é que, embora as expressões visuais de Muholi sejam

frequentemente descritas de acordo com os termos críticos disponíveis (negras

e lésbicas), esse projecto é voltado não para a integração em estruturas


dominantes, mas para transformar o tecido cultural básico das hierarquias que

permitem que experiências quotidianas de opressão persistam e operem com

eficiência.2 "Faces e Fases" oferece uma ocasião para um envolvimento crítico


com "um regime de visibilidade" dentro do qual a marginalidade negra queer

alcança coerência. Como resultado, o projecto oferece um momento para um

exame detalhado e atento, com potencial para reconfigurar as relações

socioculturais actualmente exploradoras e produzir novas arenas de expressão.3

Veja, por exemplo, Mbali, que fica ao lado, perto de uma parede, com a cabeça

loira quase raspada inclinada e o braço esquerdo cruzado atrás das costas. Mbali

nos confronta com um olhar confiante e uma pose aberta de três quartos. O
arranjo exibe orgulhosamente sua camiseta, estampada com o símbolo icónico

da supermulher.

190
Mbali Zulu,

KwaThema, Springs,

Johannesburg, 2010. Impressão

em gelatina de prata

Tamanho da imagem: 76.5 x

50.5cm

A interação de Muholi com Mbali vem

após a violência - um crime de ódio

em 2008, no qual (Eudy Simelane)

membro da comunidade foi


assassinada. O retrato de Mbali é

feito com esse evento em mente.

Muholi descreve a imagem como


uma comemoração, registo histórico

e memorável dos papéis que as mulheres corajosas desempenham diante da dor

e do sofrimento. A escolha de Mbali de usar um ícone de heroísmo comunica um


desafio, resiliência e destemor diante de violência, estigma e homofobia.

Muholi insiste num estilo documental de criação de imagem, para seu 'activismo
visual'. Pretende produzir um arquivo histórico de imagens para e de lésbicas

negras, bissexuais, transexuais e queers. Fala com força quando explica: "Trata-
se de observar e agir, de tirar fotos dela e de outras mulheres para curar seu

passado" .4

191
Essa observação e acção são importantes para aqueles que vivem na África do Sul,

onde a homofobia é generalizada e os crimes de ódio são regularmente

cometidos. Enquanto as imagens circulam entre o público que serve de assunto,

elas também atingem um público mais amplo, a fim de apresentar performances

visuais localmente específicas e culturalmente legíveis como alternativas às

conceções actuais de identidade.

Documentos visuais

Uma história da criação de imagens


fotográficas a preto preocupa-se em

abrir os significados aparentemente

fixos das imagens, e um dos principais

sites é a fotografia documental, uma forma que carrega uma reivindicação da

192
verdade, a mensagem de 'é assim que realmente foi'. Jennifer Blessing sugere que

a constante (auto) documentação é uma tentativa de "consertar a identidade,

sustentar uma imagem espelhada do eu, ser quem tu queres ser, ser" real ", mas,

acima de tudo, ser certeza de que tu existes ". Mas a forma documental também

pode ser vista em uma estrutura política mais ampla. Para fotógrafx negrx, o uso

da estética documental é potencialmente uma tentativa de reposicionar centros

de conhecimento garantidos, certezas do realismo e luta para contestar imagens

negativas por positivas.5 Essas imagens demonstram interesse em tornar público

o privado e sugerem um álbum de família, uma comunidade e uma luta com a

qual o espectador é convidado a ter empatia.

Betesta oferece um exemplo de Muholi documentando família, comunidade e

luta. Betesta é uma pessoa transgénero do Botsuana, país com o único grupo de
apoio a transgénero do continente, chamado Rainbow Identity Association (RIA),

fundada por Skipper Mogapi, que também é referência em 'Faces and Phases'

(2010). No entanto, Betesta ainda enfrenta o isolamento, uma experiência que

Muholi descreve como um processo contínuo de 'sair'. Betesta enfrenta o desafio

de existir fora de uma identidade sexual fixa e definida e, assim, desafia os

espectadores que exigem tal definição. Como Jean Genet escreve: "Mudar de sexo

não consiste apenas em sujeitar o corpo a alguns ajustes cirúrgicos: significa

ensinar o mundo inteiro, forçando, uma mudança [ou reinvenção] da sintaxe" .6


A noção de Genet de um fundamento a mudança de sintaxe implica uma

significação subjacente além do transexualismo, que aponta para a possível

193
abolição de uma 'realidade' fixa (e, por extensão, a possibilidade de

documentação) do sexo completamente.⁷

O ponto é que "Faces e Fases" envolve a forma fotográfica do documentário contra

polaridades e limites fixos. Sem um sujeito lésbico ou transgénero "real" ou

essencial com o qual para fundamentar a significação, somos confrontados com

visualidade inacabada, distinções continuamente contingentes e sem garantia.8

Como Baudrillard teoriza: onde os polos não podem ser mantidos, entra-se em

"manipulação absoluta" e critica potenciais formas de 'nova autenticidade'. As

fotos de Muholi de sul-africanx deliciam a documentação do que é rotulado como


incomum e possivelmente afirmam a "realidade" do nunca visto ou do

inimaginável, permitindo, provocando mesmo, os espectadores olharem para

trás e ponderarem.

Esse encontro visual crítico nos leva a perguntar: que tipo de aparência é essa e

como funciona?

Imagens, ícones e índices

Meu argumento é que 'Faces e Fases' provoca uma maneira de olhar que

potencialmente reconfigura as relações socioculturais por meio do movimento

de imagens, ícones e índices.

Veja Pinky Zulu, por exemplo. Aqui somos confrontados com uma imagem - uma

semelhança, figura, ou forma que aparece no ou através do suporte material do

194
meio (neste caso, a fotografia), que forma o conjunto de prácticas materiais que

aproximam a imagem e o objecto e produzem a figura que, neste caso, inclui o

sujeito figurativo e o texto simbólico. Como conjuntos complexos de elementos

virtuais, materiais e simbólicos, a imagem se comunica e produz significado.

As fotografias, observa Christian Metz, são imagens que oferecem sinais

indexados e icónicos. Um índice geralmente se refere a uma lista, um catálogo

sistemático, um indicador ou uma maneira de expressar um relacionamento ou

valor. Considere isso no contexto da práctica de Muholi, que surge de seus

encontros como activista no nexo da política cultural africana negra e em


múltiplas dimensões de classe, género, sexualidade e etnia na África do Sul.

O índice refere-se a um processo de significação no qual o significante está


vinculado ao referente não por convenção social, não por similaridade, mas pela

conexão real no mundo. Pinky Zulu estava lá em 2010, posando para produzir a

imagem fotográfica na África do Sul, que a fundamenta em um espaço e tempo

específicos.

195
Pinky Zulu,

Constitution Hill, Joanesburgo,

2010. Impressão em gelatina

de prata Tamanho da

imagem: 76.5 x 50.5cm

O objectivo declarado de Muholi é fornecer alternativas visuais "positivas" à

marginalidade lésbica negra, que envolve uma estratégia cultural que responde

a imagens muito icónicas.

O ícone é uma imagem, representação, símbolo, alguém ou algo famoso ou com

status maior do que a vida. Os ícones são frequentemente percebidos como

representando conceitos, emoções e significados universais. A função crucial de

um ícone é trazer à tona uma noção de efeito público e colectivo no estado-nação.

196
De facto, um ícone fotográfico pode ser uma forma de arte pública que gera acção

cívica. O ícone é uma forma esteticamente familiar que tem a capacidade de

projetar um 'cenário emocional' para gerenciar uma crise básica, um sinal

relacional que produz respostas afectivas, invocando códigos, significados e

valores normativos. Enquanto o índice se baseia no espaço, no tempo e no mundo

material por conexão física directa, o ícone é uma mera relação entre o signo e a

coisa significada.

Embora as imagens de Muholi possam ser indexadas, quero argumentar que

uma ênfase repetitiva em narrativas incompletas de sujeitos e comunidades


lésbicas negras pode enfatizar o que Nicole Fleetwood identifica como não-

iconicidade - um contraponto a representações demasiado deterministas da

experiência vivida. Muholi sugere o mesmo ao provocar o espectador com


perguntas complexas e abertas:

Como é que uma lésbica africana se parece? Existe uma estética lésbica

ou expressamos o nosso género, racializado e classificado de forma rica

e diversificada? Será esta lésbica mais "autêntica" do que aquela lésbica

porque usa uma gravata e a outra não? É um homem ou uma mulher?


Será isto um transman? Consegue identificar uma sobrevivente de

violação pela roupa que ela usa?⁹

197
Ao afirmar a não-iconicidade, "Faces e Fases" enfatiza aspectos indexais

específicos e particulares da fotografia, que reformulam o tipo de relações que

podemos formar com os objetos fotográficos. Essas imagens não-icónicas

criticam narrativas incompletas da, para e sobre a existência de lésbicas negras,

e desenvolvem arquivos, comunidades e histórias como contraponto a

representações inacabadas, problemáticas e perturbadoras.10

As características distintivas do trabalho de Muholi incluem seu relacionamento

com os súbditos, bem como a autoapresentação. Esses retratos são íntimos. Eles

saem do tempo passado juntos.11 Mas eles também são públicos e tiveram
impacto nacional e internacional.

Como nosso interesse é pelas maneiras pelas quais esse projecto é voltado não
para a integração em estruturas dominantes, mas para transformar o tecido

cultural básico, devemos indagar: "Qual o papel do retrato em relação à

comunidade, nação e valor?"

Retratos e valores

198
O retrato tem sido um símbolo de altas qualidades humanas desde os tempos

antigos. Enquanto os retratos transmitem a semelhança de um indivíduo, eles

também demonstram a imaginação do artista e um papel social percebido para

quem senta de maneiras que elevam o assunto acima das convenções do

momento. As convenções históricas do retrato são importantes para o trabalho

de Muholi, uma vez que nos lembram as características tradicionais do retrato:

exibe qualidades públicas e pessoais, uma dualidade de semelhança e tipo, e

estilização e individualidade.

Ziyanda, Cape Town,


2010. Silver Impressão
em gelatina prateada

Tamanho da imagem 86.5 x


60.5cm

Geralmente, um retrato é definido como uma obra de arte que representa um

indivíduo único. Mas essa definição simples não é suficiente porque um retrato é

complexo e contraditório. Embora possa estar preocupado com a semelhança

199
física na aparência, também pode sugerir algo sobre a posição interna ou a vida,

o carácter ou as virtudes do sujeito.

Três factores são úteis para considerar as complexidades dos retratos, escreve

Shearer West. Primeiro, os retratos podem mostrar aspectos específicos e

distintivos de quem se retrata, bem como qualidades genéricas valorizadas no

contexto ou meio dest@. Segundo, embora todos os retratos

representem o corpo e o rosto, eles também se referem à alma, carácter ou

virtudes de quem se retrata. Terceiro, todos os retratos envolvem uma série de


negociações (geralmente) entre o artista e a pessoa retratada, e o impacto dessas

negociações e o ponto de vista do fotógrafo moldam a imagem.

Eu acrescentaria que os retratos têm qualidades do objecto de representação

(iconicidade), referem-se ao acto de sentar (índice) e contêm gestos, expressões

e adereços que podem ser lidos com o conhecimento das convenções sociais

(simbolismo). É o valor de índice que parece nos transportar para um momento

real no passado, quando o artista e a pessoa retratada se encontraram em tempo

e lugar reais.

Em 'Faces e Fases', as imagens são tanto sobre o indivíduo como sobre uma
presença colectiva ou comunitária. Os participantes não se vêem emoldurados

como os outros, mas sim infiltrados no status quo, trazendo a sua comunidade

(ou nação) para a linha da frente. A este ponto, Simon Njami escreve:

200
Dominar sua própria imagem significa trazer ao mundo vozes e cores que

iludem a globalização e uniformização, significa recusar-se a ser apenas

o fruto do olhar do outro. Significa assumir, em uma espécie de

contradição silenciosa, sua própria visão de si mesmo, seguindo seus

códigos culturais e estéticos.12

Como argumentou Benedict Anderson, uma nação moderna não é um facto

natural: sua origem, história e destino são objetos de mitos, feitos e não dados,
mas "comunidades imaginadas" sempre negam seu carácter artificial e

construído, construções produzidas a partir de imagens e discursos sobre o

visível e o que pode ser dito.

Considere essas observações juntamente com a decisão de Muholi de "capturar

imagens de sua comunidade, a fim de contribuir para uma história homossexual

sul-africana mais democrática e representativa".13 Muholi condena a redução e

sensacionalização de muitos estágios complexos, papéis e fases dentro de uma

comunidade de lésbicas negras, portanto, no retrato fotográfico de 'Faces e Fases'

apoia a construção da nação.

O projecto também apresenta a semelhança como um conceito instável, uma

ideia para 'ser equilibrada contra as limitações da representação, que só podem

oferecer uma visão parcial, abstraída, genérica ou idealizada de qualquer


assistente' .14 Se um retrato foi ou não realmente com base em uma sessão, a

transacção entre artista e retratada é evocada na imaginação do espectador.15

201
Esses retratos, então, apresentam paradoxalmente a fotografia como o objecto

que olhamos, mas também se referem à sessão fotográfica, uma transacção entre

pessoa retratada e o fotógrafo - o que é sempre invisível para o espectador. Como

escreve Barthes, "[a fotografia] não é o que vemos" .16 O retrato fotográfico

redobra essa instabilidade porque, como imagem indexada, parece congelar um

momento no tempo e auxiliar a memória, mas também falsifica a experiência ou

fornece miticamente uma icónica 'linguagem [visual] natural e universal'

Observando as imagens em "Faces e Fases", o espectador é confrontado com

perguntas: Será o que não se vê o que molda as experiências lésbicas negras da


vida política e ética? É uma presença preocupante de exclusão? Seria esse é um

método eficaz para formar um sentimento de pertencimento, parentesco ou

nação na representação visual? Olhando para os retratos de "Faces e Fases" de


Muholi no contexto de retratos, valores comunitários e nacionais, encontramos

imagens enigmáticas que desafiam qualquer fio de explicação.

Novas narrativas

'Faces e Fases' é um grupo de imagens sociais que exalam uma auto-iluminação


exibicionista. Aparecem sem dúvidas ou sentimentalismos, e parecem oferecer

um sonho de controlo total e um comportamento de mestria. As imagens ou

'falam connosco', às vezes literalmente, às vezes figurativamente; ou olham para

nós silenciosamente.18 Porque as imagens têm este tipo de força social e

202
psicológica, falamos como se tivessem sentimento, vontade, e desejo. O que tenho

tentado fazer é reflectir sobre como este poder é constituído e realizado neste

contexto.

No processo, afastei-me de uma análise das políticas de representação e, em

direcção a uma crescente preocupação com a forma como a própria subjetividade

pode ser constituída através do discurso visual, como a subjetividade é realizada

através das tecnologias visuais.19 Isso faz parte de um esforço para resistir a

narrativas sobre determinadas da identidade negra ou lésbica em favor de

observar como essas imagens resistem aos rótulos impostos, vinculando o sujeito
visual a nós como agentes da visão e objetos do discurso que impactam a

produção da visualidade.

Quando digo visual, quero dizer o campo social do visual, os processos

quotidianos de olhar para os outros e ser olhado. É esse campo complexo de

reciprocidade visual que é activamente constitutivo da realidade social. As

figuras de Muholi não são assuntos 'capturados' no filme; pelo contrário, são

assuntos que capturam e nos trazem a um mundo onde executar é controlar.

Essas imagens não icónicas se recusam a projetar um "cenário emocional"

prescrito para gerenciar crises, em favor de uma apresentação visual que diminui

o peso do visual das lésbicas negras para tal. ‘É um afastamento da singularidade


e importância das instanciações da escuridão para resolver o que não pode ser

resolvido. Em vez de invocar códigos, significados e valores normativos, essas

imagens se abrem para amar sem 'hipervisibilidade' ou se transformar em ídolos,

203
isto é, sujeitos de 'abominação e adoração'. Essas 'faces' podem exigir amor, mas

não precisam dele ou o devolvem.

Falar da 'a face que eu amo' em 'Faces e Fases' de Muholi é uma maneira de se

relacionar com um objecto (libidinal), uma imagem. Alguns rostos oferecem uma

imagem de seriedade, outros começam a sorrir, outros aparecem com um

espírito de prazer e brincadeira. Em todos esses modos variados de

autoapresentação, vejo no trabalho de retratos de Muholi um esforço para

apresentar - em seus próprios termos - uma infinidade de assuntos visuais que

foram excluídos da sociedade sul-africana dominante e da memória pública,


tanto durante o apartheid quanto hoje. Nesse sentido, 'Faces e Fases' negoceia

ligações complexas que afectam o sujeito e o objecto do racismo, sexismo e

preconceito de género por meio de retratos que mostram indivíduos ocupando


múltiplas posições e enunciações.20

Conclusão

Meu argumento foi sugerir um caminho para essas fotografias que não as reduza

a críticas sociais, categoria excessiva ou mercadoria viável. Isso é importante


porque eu não leio essas fotos como ridicularizando a suposta homogeneidade

da nação (da África do Sul), da comunidade (negra, lésbica ou trans) ou mesmo

da plateia (homo ou heterossexual). Em vez disso, 'Faces e Fases' revela

activamente como o fenómeno da 'lésbica negra' é actualmente capaz de se tornar

204
visível de maneiras que possibilitam (e / ou forçam) uma nova visão das

concepções dominantes existentes do mundo. Isso inclui uma reformulação dos

mecanismos visuais, um tipo de reinvenção que ocorre através da consideração

crítica das necessidades e interesses dos humanos que aparecem em "Faces e

Fases".

Notas

N. Fleetwood (2011) Troubling Vision, Chicago, University of Chicago Press: 37.

Cohen, Cathy (2005) ‘Punks, bulldaggers, and welfare queens: the radical potential of queer politics?’, Black Queer Studies: 21–
51.

Para uma discussão mais aprofundada sobre como ver e ver como ele opera na cultura visual contemporânea, consulte Marita
Sturken e Lisa Cartwright (2001) Práticas de olhar: uma introdução à cultura visual, Oxford, Oxford University Press.

Correspondência pessoal entre o autor e Zanele Muholi, Cape Town, Outubro de 2010.

Blessing, Jennifer (ed) (1997) Rrose Is a Rrose Is a Rrose: Gender Performance in Photography, New York, Guggenheim
Museum: 96.

D. Bailey and S. Hall (2003) ‘The vertigo of displacement’, in Liz Wells (ed) The Photography Reader, New York, Routledge: 381.

Genet, as quoted in Sarah Wilson, ‘Femininities-masquerades’, in Blessing (1997: 148 and178)

Esse tipo de reviravolta é semelhante à deturnement desenvolvida na década de 1950 pelos artistas da Internacional
Situacionista. Em geral, pode ser definido como uma variação de um trabalho visual anterior, no qual o recém-criado tem um
significado antagônico ou antitético ao original. O trabalho original que é "adiado" deve ser um pouco familiar para o público-
alvo, para que ele possa apreciar a oposição da nova mensagem. Veja http://en.wikipedia.org/wiki/Détournement e

http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/usersguide.html.

R. Salley (2009) ‘Unfinished visuality: contemporary art and black diaspora 1964–2008’, PhD thesis, University of Chicago.

Z. Muholi (2010) ‘Faces and Phases’, Cape Town, Michael Stevenson Gallery. 11 Fleetwood (2011: 42).

205
Paralelos podem ser encontrados nas fotografias de Nan Goldin do início dos anos 1970, por exemplo. Goldin fotografou drag
queens e transexuais no pré-operatório. As rainhas drag foram alvo de muitos fotógrafos do século XX, incluindo Brassaï,
Lisette Model, Weegee e Diane Arbus. Veja 'Queer reality' em Blessing (1997).

S. Njami (2010) A Useful Dream: African Photography 1960–2010, Silvana Editoriale Brussels, Brussels, BoZar Books, Centre
for Fine Arts: 12.

Z. Muholi, artist statement, ‘Faces and Phases I’.

S. West (2004) Portraiture, Oxford, Oxford University Press: 24. 15 West (2004: 41).

R. Barthes (1980) Camera Lucida: Reflections on Photography: 6 as quoted by.J.T. Mitchell (2005) What Do Pictures Want? The
Lives and Loves of Images, Chicago, University of Chicago Press: 274.

L. Wells, ‘General introduction’, in Wells (2003: 5); Mitchell (2005: 273). 18 Para discussões das vidas (e amores) de imagens, veja
Mitchell (2005): 30. 19 Fleetwood (2007: 12) emprega esta linguagem suscinta.

20 Mitchell (2005: 47).

206
207
12 – CASTER CORRE POR MIM – Ola Osaze

Na África do Sul, a milhares de quilómetros de distância da cidade de Nova York,

Caster Semenya vive e respira. Talvez ela já esteja a treinar para a próxima

corrida, a imaginar uma vitória que não seja ofuscada por perguntas sobre seu

sexo. Ela emergiu duma obscuridade relativa para quebrar o recorde mundial e
ganhar a medalha de ouro na final feminina dos 800 metros em Berlim em 2009.

A vitória dela foi tão surpreendente que todos os rumores sobre seu sexo foram
subitamente ampliados. Algumas outras corredoras, que pensavam que o título

era delas por direito, resmungaram publicamente. A Associação Internacional

das Federações de Atletismo (IAAF) interveio, recusando-se a acreditar que


alguém tão jovem, nova e, alguns argumentariam, tão negra e pobre, poderia

vencer. Eles fizeram o inimaginável: forçaram Semenya a passar por uma bateria

de “testes de género”. A maioria das pessoas de corpo feminino temem aquela

visita anual ao ginecologista. Muitas estremecem com o pensamento de deitar na

mesa de exame, de pernas separadas, com um indivíduo clinicamente treinado

para analisar o que há entre elas. O que Caster passou nas mãos de supostos

especialistas em género, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e

especialistas em medicina interna faz com que o exame de rotina de Papanicolau

pareça um passeio agradável e pacífico numa costa arenosa.

208
Para mim, como um nigeriano que desafia a categorização de género, a história

de Semenya é familiar demais. Decidi entrevistar outros africanos da cidade de

Nova York que, de uma forma ou de outra, também são “fora da lei” do género.

Eu queria assimilar quais os aspectos da história de Caster que eles fortemente

se identificavam, sua análise de como Caster foi tratada e o que o mundo inteiro

poderia aprender a partir deste momento. Perguntei a NCK, um homem africano

que queria manter o anonimato, por que havia tanto furor nas expressões de

género de Semenya. ‘[Não é] apenas como ela se atreve a se colocar na arena da

mulher, mas como ousa sair dessa armadilha [da pobreza] e correr a corrida,

cruzar a linha de chegada, usar a medalha [de ouro] e a bandeira da Sul- Africana’.
Ele conectou as experiências da atleta ao legado do colonialismo em África,

afirmando que é da mesma forma que rótulos como ‘coloured’ (mulato) e ‘indian’

foram usados para impor e defender o apartheid na África do Sul. Palavras não

são para impor limitações, explica ele, mas palavras e frases como ‘masculina’ ou

‘hermafrodita’ foram usadas por outros atletas, funcionários da IAAF e jornalistas

populares para desumanizar Caster, apesar de sua vitória.

Kagendo Murungi, uma queniana que se identifica como não-conforme ao

género como um acto de resistência contra o sistema de dois géneros da

sociedade, argumenta que os sucessos das mulheres africanas são

constantemente desvalorizados por causa dos estereótipos racistas e sexistas


generalizados. ‘Há uma longa história dos aspectos mais particulares de nossas

anatomias físicas sendo exibidas em todo o mundo para o prazer da elite

europeia. O espectáculo e a indignação de Saartjie Baartman, a “Vênus

209
Hotentote”, pode ser o exemplo mais conhecido desse fenómeno’, declara. Da

mesma forma, Yvonne Fly Onakeme Etaghene, uma poeta auto identificada

nigeriana, argumenta: ‘Se Caster pode ser alguém que não se encaixa num papel

social prescrito por género, isso significa que as demarcações de nossos sexos

não são reais’.

Oficiais da IAAF exigiram que Caster essencialmente provasse que ela é uma

mulher “tradicional”. ‘Bem, o que é uma mulher tradicional? O que são os corpos

das mulheres tradicionais? ‘, Pergunta a NCK. “Eles tentam dizer que este é um

corpo que podemos excluir do corpus de corpos rotulados como mulheres, em


vez de examinar o rótulo de mulher, e ver que a experiência é muito maior e que

essa pessoa transcendeu todos os aspectos. Transcender, no caso de Caster,

envolveu ser uma atleta nata, recusando-se a obedecer às normas de género em


termos de como se vestir ou agir, treinando sem parar e desenvolvendo um corpo

musculoso que muitos, independentemente de género, disputam para ter. (A

construção muscular de Linda Hamilton no Terminator 2 foi a única razão pela

qual eu fui à academia nos anos 90.) Mulheres masculinas não são novidade,

então por que Caster e pessoas não conformes de género em geral são

demonizadas pela sociedade dominante? Etaghene culpa a incapacidade das

pessoas de aceitar expressões de género que estão fora do sistema socialmente

prescrito de dois géneros, aplicado em practicamente todas as esferas da vida.


“As pessoas não sabem como lidar com corpos atléticos, a menos que estejam

apegadas a pessoas que têm pénis. [Eles] não são capazes de lidar com as

maneiras pelas quais as mulheres podem ser e são masculinas.

210
Etaghene uma pessoa não conforme de género, argumenta, que é uma parte vital

da tapeçaria das experiências e expressões africanas. ‘Se você olhar para as

culturas africanas e outras desde o início dos tempos, sempre houve mulheres

masculinas e homens femininos, e pessoas que atravessaram o espectro de

género, seja numa cerimónia espiritual ou em alguém que é biologicamente

mulher possuída por um espírito masculino, a agir de uma maneira que é

[percebida como] masculina. Isso é revolucionário em termos de género.’ A poeta

esportiva de pele escura “fro-hawk”tem sido frequentemente difamada por sua

identidade. Posso relacionar com as pessoas que te estão a cutucar e a fazer de ti

um espectáculo. Seja sobre o que eu tenho a dizer, ou como eu pareço, ou sendo


uma lésbica masculina nigeriana, as pessoas fazem disso um espectáculo como:

“Oh meu Deus, você é uma sapatona nigeriana, só há uma de você e você é tão

esquisita” Etaghene usa a arte como uma maneira de curar essas experiências.

‘Trata-se de permanecer no chão e focada e saber que sou minha própria

normalidade. Eu não sou deixada no centro. Eu sou meu próprio centro. Eu não

vejo, por exemplo, a feminilidade branca heterossexual como quem eu deveria

ser.

‘O que tem sido encorajador é como os sul-africanos, sentindo os fundamentos

racistas e sexistas das acções da IAAF, defenderam resolutamente sua’ menina

de casa ‘. Etaghene, Murungi e NCK acham que isso representa a oportunidade


perfeita para aumentar a visibilidade e um diálogo respeitoso sobre a

interconexão de mulheres africanas e experiências lésbicas, gays, bissexuais, não

conformes de género, transgéneros e intersex. “Se nada mais, pelo menos, talvez

211
a imprensa dominante relate sobre pessoas intersexuais e deixe [o termo

ofensivo] “hermafrodita” no passado onde pertence”, acrescenta Murungi. Da

mesma forma, Etaghene sente esperança de que mais pessoas apoiem

ardentemente os direitos intersexo, colocando assim as questões intersexo numa

escala mais global. Além disso, de acordo com Murungi, o retrato de Caster

“irresponsável, desactualizado, racista, sexista, transfóbico e exotificante” da

media dominante tem sido repetidamente desafiado por uma avalanche de

jornalistas de bricolage e entusiastas de redes sociais.

As pessoas postaram mensagens afirmativas em sites como Caster Runs For Me


e For Caster Semenya. Outros enviaram vídeos no YouTube, expressando sua

solidariedade de várias maneiras. Por exemplo, uma peça de desenho animado

de um minuto, também intitulada ‘Caster corre por mim’, da artista turca alemã
queer Beldan Sezen exorta as pessoas a questionar papéis de género e a desafiar

qualquer tentativa de policiar expressões de género. No caso de Etaghene, a

solidariedade foi expressa através da criação de um poema de amor para

homenagear Semenya como sobrevivente. Em um trecho de seu poema, ‘Caster

Semenya: louvando seu nome’, a poeta olha para o passado e profetiza sobre o

futuro:

mas dói ser um visionário às vezes, ser brilhante,

ser excelente

às vezes dói de formas que nunca poderíamos ter imaginado.

os pioneiros são muitas vezes vaiados incompreendidos e demonizados

212
- de Jesus a Tupac

Audre Lorde para você, Caster

alguém é diferente ou excepcional

sente o impacto da dor e das críticas inesperadas que os filhos de seus críticos

elogiem teu nome, vistam camisetes com o teu rosto,

têm cartazes teus nas paredes para os inspirar a serem grandes. 1

Nota

1 O restante do poema de Etaghene pode ser encontrado em seu blog, a dyke of a certain calibre:

http://www.myloveisaverb.com.

213
214
13 – PESADELO TRANSEXUAL: ACTIVISMO OU SUBJUGAÇÃO – Audrey
Mbugua

Com o advento do activismo LGBT, foram levantadas preocupações sobre a

transfobia entre homossexuais. O objectivo principal deste capítulo é explicar a

base dessa transfobia, fornecer exemplos de transfobia entre homossexuais e

oferecer recomendações sobre como lidar com a transfobia e a marginalização

de transexuais por alguns homossexuais. Porém, antes de fazer isso, preciso

emitir um aviso: alguns homossexuais podem achar que o capítulo é deficiente

do respeito a que estão acostumados por parte de activistas de direitos humanos.

Estávamos acostumados ao privilégio desproporcional de gays e lésbicas, o que

significa que é uma abominação criticar os homossexuais quando eles estão

errados. Por quê? Porque não se faz isso. Não se magoa os sentimentos de

homossexuais. Por quê? Porque não fazes‼! Não sairei do curso para ofender

por causa disso, mas também não vou adoçar as palavras deste capítulo.

Quando falo de pessoas transgéneros ou transexuais, estarei me referindo a

pessoas que experimentam um desconforto prolongado e persistente com seu

sexo atribuído e buscam assistência médica e jurídica para a transição de um sexo

para outro. Note que eu não vou falar de drag queens e kings, homens

trabalhadores do sexo que andam por aí vestidos com certas roupas para chamar

215
a atenção dos clientes e eu definitivamente não vou falar de shemale porno

actores, travestis e efeminados gays e lésbicas camioneiras.

Abusos e violência por alguns gays e lésbicas

Reserve um momento e reflicta sobre estas palavras:

Um transexual é um homem gay com deficiência mental e um fetiche por

amputação. Eu, como gay e orgulhoso, estou com nojo de que essas

pessoas tenham direitos legais para induzir outras pessoas a acreditar

que são o que não são. Os gays não fingem ter uma 'condição médica'. Se

desejas tratar um transexual, trate-o com terapia intensa para superar a


autoaversão à homossexualidade.1

É extraordinário que tal afirmação possa ser feita por um homossexual. No início

de Junho de 2011, escrevi o seguinte parágrafo falso para um pequeno teste


(lembre-se, o parágrafo é hipotético

– não é verdade):

216
Um homossexual é um gambá mental e sexualmente deficiente com um

fetiche por sodomia. Eu, como uma transexual exagerada e orgulhosa,

estou com nojo de que essas pessoas tenham direitos legais para induzir

outras pessoas a acreditar que são o que não são. Pessoas trans não

fingem ser sexualmente deficientes. Se desejas tratar um homossexual,

trate-o com terapia intensa para superar sua orientação não natural.

Em seguida, aproximei-me de um amigo gay meu, disse-lhe que o conheci por

um determinado site e perguntei o que ele achava dele. Ele disse que era odioso,
falso, estúpido e baseado em preconceito.

Eu então mostrei a ele o primeiro parágrafo de um homem gay insultando


pessoas transexuais e perguntei o que ele pensava disso. Qualquer um pensaria

que a reacção seria a mesma do parágrafo hipotético que ataca os homossexuais.

Mas, para minha surpresa, esse jovem recuou e disse que as

pessoas não estavam cientes dos problemas transexuais porque não havia

informações e recursos suficientes então as pessoas acabam por “entender mal”.

Consegui obter sentimentos semelhantes de outras pessoas e vale a pena ler


algumas:

Sou lésbica. Eu não gosto de transexuais. Meu problema é o seguinte: existem


pessoas por aí nascidas sem pés, braços, pernas, etc. e, no entanto, elas de alguma

217
forma chegam a um acordo com o corpo em que nasceram. Afirmar que precisas

de cirurgia ou que de alguma forma tenhas nascido no corpo errado … bem,

merda, não estamos todos?! Eu acho que remover o seu pénis e inserir a carne

referida dentro do seu corpo, ou o contrário, é uma maneira barata e preguiçosa

de contornar os problemas que realmente atormentam seu coração. Na Índia, os

homens geralmente recorrem a castração como uma maneira de alcançar a

iluminação mais rapidamente, embora eu tenha visto recentemente um vídeo em

que os homens disseram que fazem isso porque se sentem como mulheres … o

que eu novamente acho uma porcaria … estou tão cansada de pessoas

psicologicamente doentes que usam travestis, terceiros géneros e plataformas de


transgéneros para realizar sua própria fantasia, enquanto o resto de nós precisa

sofrer.2

Eu sou gay e odeio pessoas trans. Provavelmente porque assisti a um

documentário sobre pessoas gays, que resultou em que nascemos naturalmente

gays, através da quantidade de exposição à testosterona no útero. Mas não vejo

como as pessoas trans podem ser naturais. Acho nojento que pessoas trans

queiram mudar de género. Ou que um homem se vestiria como mulher,

seriamente e não para entretenimento. 3

Acho que há muito mais pessoas na comunidade GL que não gostam de Travecos
porque os consideram egoístas, indecisos, excessivamente sexualmente fluidos e

basicamente pessoas sujas, confusas e dramáticas. Para destruir suas famílias e

grande parte dos seus amigos exige um certo nível de auto-absorção. É preciso
outro nível para optar por não ser de um género ou outro, mas no meio e depois

218
ter um relacionamento em que o parceiro normal precisa estar constantemente

apoiando o parceiro TG, tendo um nível ainda maior de auto-inclusão. Além

disso, todas as pessoas trans que conheço tiveram que fazer uma grande

produção dramática de todas as escolhas que fizeram, para começar fazer drag,

para não começar a drag, para não se identificar como gay, para se identificar

como lésbica, isso realmente não acontece. Não importa o que eles escolham, tem

que ser algo grandioso. É ridículo pedir a toda a comunidade gay que participe e

se submeta a esse nível de drama, porque, em comparação à cirurgia de

redesignação de género, nosso drama (independentemente de quão legítimo) é

diminuído… 4

Existem várias razões pelas quais alguns homossexuais odeiam e marginalizam

transexuais: Primeiro, alguns homossexuais oprimem e marginalizam


transexuais porque estão desesperados para parecer "normais" aos olhos de

heterossexuais. É a maneira deles de dizer: ‘Hei, olha para mim! Não pareço um

heterossexual? Mas olhe para aquela coisa que finge ser algo que não é. É uma

aberração. Vamos fazer algo para que esteja em conformidade com nossas

normas de género ‘. Em um acto de desespero, infligem dor a outras minorias.

Veja os seguintes trechos de pessoas trans:

No início desta manhã, fui confundida por um homem gay numa viagem

de autocarro. Ignorei a afronta, mas ele continuou a chatear virando-se


para amiga. Quando eu estava prestes a descer, ele me seguiu e

219
deliberadamente balançou sua bolsa, atingindo meu traseiro e se

desculpou … mesmo depois de se desculpar, voltou-se para sua amiga

rindo alto e disse: ‘Eu não te disse que ele é um homem? ‘… um homem

gay ou qualquer outro homem que apalpa uma mulher transexual para

obter a amizade de uma mulher heterossexual sofre primeiro de

transfobia, mas também de homofobia internalizada.5

As pessoas trans geralmente usam o argumento de que não têm mais para onde
ir, mas não ter para onde ir não significa que precises de ir a algum lugar.

Especialmente se esse algures for um grupo de direitos civis que está tentando

ganhar respeito, e não desdém.6

Segundo, alguns homossexuais isolam os transexuais porque @s consideram

como riscos de segurança. Este é um cenário que eu já vi entre alguns gays da

África, incluindo Quénia. Não gostam de ser vistos se associando a transexuais

em público. E não apenas todos os transexuais, mas mulheres transexuais que

não se misturam como mulheres que são abertas sobre sua identidade. Isso é

comum em partes hostis do Quénia.

Consta que, a população em geral está convencida que estas mulheres

transexuais são gays e, para ser mais preciso, que "são os traseiros" (a "esposa"

num casal homossexual masculino) e se você for visto com um, então você é a
“concha do casal” (o marido). Por isso, a maioria dos homens homossexuais não

querem ser vistos com estes 'rabos', porque eles os denunciam (como os gays o

220
dizem). Assim, são marginalizá-los e perseguidos das organizações ou eventos

LGBT para evitar ataques da população.

Terceiro, alguns gays e lésbicas são muito ciumentos. Acham que competimos

por atenção, beleza e direitos. É por isso que alguns sempre querem nos

derrubar. Uma vez saí na companhia de algumas amigas lésbicas e estava a falar

com esta rapariga do grupo e, do nada, uma das minhas amigas lésbicas estava a

dizer ao grupo que eu era um homem. E, usando tal disparate, ela levou a

rapariga. Vejam o seguinte:

Na adolescência, eu era amiga de Phil, um rapaz gay … não era feliz por
ser homem, então decidi mudar de sexo … Os homens me olhavam e Phil

ODIAVA toda a atenção que eu recebia … Phil entrou em minha nova casa,

parecendo ciumento … Eu não estava recebendo boas vibrações dessa

rainha … Alguém ligou para o emprego de Deshaun (seu namorado) e

disse que ele estava vivendo com um homem com peitos e um pau.

Deshaun e eu pensamos que Phil estava por trás disso.

Eu passava lindamente e naquela época as pessoas não sabiam muito


sobre questões trans. Fiquei amigo de Tony e Melvin, duas rainhas

ciumentas. Deus, eles tinham inveja de mim. Eles cortaram os pneus do

meu carro. Pulverizaram tinta prateada em todo o meu automóvel.


Jogaram ovos na minha porta. Juro por Deus, não fiz nada com eles. Meu

único crime era ser uma mulher trans atraente, que tinha um homem ao

221
meu lado … eu podia ficar aqui por horas e compartilhar inúmeras

histórias sobre coisas que os gays fizeram para tentar estragar minha

vida. 7

Às vezes, seus ataques a transexuais são baseados em conceitos erróneos. Alguns

homossexuais pensam que os transexuais querem ser assimilados em sua

comunidade. E, em vez de olhar

objectivamente e direccionar sua raiva para os colegas homossexuais que são os

culpados por isso, eles insultam transexuais. Por exemplo:

Eu sou uma mulher bissexual e acho que não temos credibilidade como
pessoas “mentalmente” estáveis, porque somos agrupadas com pessoas

que, na minha opinião, se mutilam. Se essa descrição for muito dura, eu

os agruparia com pessoas que gostam de cirurgia plástica … que estão

sempre insatisfeitas com quem são fisicamente. Mas me disseram a meus

amigos e li muitos artigos de pessoas trans que a escolha deles de mudar

de corpo e aparência não tem nada a ver com a sexualidade … Então, por

que eles estão reunidos com gays e lésbicas em todas as discussões,

desfiles, política e o que mais houver quando gays e lésbicas estão


lutando por seus direitos civis. Acho que transexuais NÃO têm lugar na

“comunidade” de gays e lésbicas.8 Sim, elx deveriam estar na secção de

222
beleza sangrenta, se é que alguma coisa, tudo que elx cuidam é a

aparência. Temos problemas reais, não apenas imagem.9

Sentimentos semelhantes – de homossexuais – podem ser encontrados em

outros sites:

Eu acho que o tratamento apropriado é ensinar as pessoas a se amarem

como elas são, e não a terapia hormonal irreversível ou realizar trabalhos


de machadinha na genitália de alguém.10

Eu me encolho ao povo ‘T’ sendo amontoada de gays e lésbicas. Quero


dizer todo o poder da palavra para eles, mas sinto que esse distúrbio

dismórfico sexual, ou o que quer que seja chamado, é apenas isso, um

distúrbio. Eu acho que as pessoas trans simplesmente se odeiam por


serem gays, sabendo ou não. Nunca conheci uma pessoa trans que não

fosse um acidente de carro completo em busca de atenção infinita. Eu

acho que isso arrasta o movimento dos direitos dos gays a ser apegado

ao circo trans sempre pronto para fotos.11

Concordo um pouco que as pessoas trans, particularmente as FTMs,

estão bastante confusas, que não estão só doentes mas iludidas. As

pessoas trans devem ter sua própria comunidade, suas próprias


organizações, seu próprio fundo de defesa legal.12

Não (o transexualismo) é uma aberração ou abominação completa.13

223
Não tenho nenhum problema com gays, lésbicas ou transexuais, mas

pessoalmente acredito que exista algo mentalmente errado com

transexuais. Eu não uso isso contra eles. Não podes deixar de ser gay, mas

PODES ajudar a mudar de sexo.14

Há um número de pessoas trans que tem algo a dizer sobre reunir transexuais

com homossexuais:

TU ÉS UM ***** HIPÓCRITA PRECONCEITUOSO IGNORANTE.

ACHAS QUE EU QUERO ESTAR NO MESMO GRUPO QUE VOCÊS B*CHAS

E LAMBE CONAS??? NÃO ‼‼‼! 15

[A]bsolutamente nenhum transexual nasce assim com uma condição que

as pessoas gays clinicamente tratáveis têm apenas uma sexualidade

distorcida e não fazem a escolha correta na preferência de género por

seu sexo. Não deveríamos estar no grupo deles de forma alguma, mas

agora transexuais que são um grupo de drag queens e outras mulheres

desviantes sexuais pertencem aos grupos gays.16 Não foi nossa escolha

ser ‘amontoadx’ com os GLB. O problema é que GRAÇAS aos GAYS

AFEMINAD@S vestindo roupas, fazendo drag, feminizando seus corpos

para o trabalho sexual, etc., o público em geral passou a considerar

224
qualquer pessoa que apresente uma expressão atípica de género como

gay ou lésbica. SEU PRÓPRIO GRUPO criou esse problema.17

Esses três estavam respondendo aos ataques transfóbicos acima. Outro observou

que:

Sou uma mulher transexual que não busca nada da comunidade LGB nem

dá nada à comunidade. No que me diz respeito, se todas as pessoas LGB

desaparecerem da face da terra amanhã, isso não afectaria nem um


pouco a minha transexualidade… não tenho nada contra as pessoas LGB,

mas a condição delas não tem nada a ver com a minha condição.

Francamente, não me importo com o que essas “comunidades” fazem. No


que me diz respeito, seria melhor olhar para o meu exemplo em busca de

orientação e apoio, do que eu olharia para o deles. Como é que

comunidades cheias de pessoas como essa vão me beneficiar? ¹⁸

É necessário perdoar a linguagem imoderada de meus colegas, mas, dada a

provocação e acusação de invadir a comunidade homossexual e a transfobia, é


necessário entender que a mensagem não é nada clara; transexuais não são

homossexuais, não estamos interessadx em ser homossexuais ou pessoas que nos

percebem como homossexuais, temos orgulho de nós mesmos e de nossas

225
realizações. Não temos negócios no movimento LGB, sabemos quem somos e

temos orgulho de nós mesmos. Além disso, eu me pergunto o que os transexuais

ganhariam por fazer parte da comunidade LGB; principalmente, perdemos

porque as pessoas nos atacam e discriminam, pensando que estão a atacar

homossexuais.

Existem pessoas trans que atacam minha lógica e recorrem a não-problemas. Por

exemplo, alguns afirmam que existem mulheres trans lésbicas e homens trans

que são gays. (A propósito, por que não dizer que existem pessoas trans que são

motoristas, banqueiros, advogados e assim por diante?). Eu me pergunto qual a


relevância dessas declarações para a génese da transfobia na comunidade gay.

Outros culparão tudo isso pela ignorância do conceito de transexual na

comunidade gay. Mas se adoptarmos esse tipo de pensamento, o que impedirá


todas as pessoas cis sexuais de atacar e matar pessoas trans e culpar a

ignorância? A ignorância não é uma defesa. Tenho certeza de que a maioria dos

gays que são transfóbicos não sabem muito sobre transposons? Eles andam por

aí insultando transposons ou lançando discursos de ódio contra transposons?19

Em tempos difíceis, nossas mentes podem ter o hábito de mentir para nós

mesmos antes de sairmos para o mundo mentindo para os outros. Não

precisamos enterrar a cabeça na areia; o problema não é ignorância. E é com isso

em mente que me refiro ao tópico da homossexualização de pessoas trans e do


roubo de vidas trans para servir a agenda homossexual.

226
Gaysificar /lesbificar e gayjacking vidas trans

Gaysificar/lesbificar é o processo de homossexuais transformarem pessoas trans

em homossexuais. O Gayjacking é o processo de usar questões e lutas transexuais

para promover a agenda de gays / homossexuais.

Examine este sonho de um activista gay:

Meu sonho é que um dia nenhuma pessoa LGBT terá que escolher entre

ser abertamente gay - ou ser morto.20

Em seguida, considere a seguinte declaração:

A comunidade gay, ou LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), é

um agrupamento livremente definido de pessoas, organizações e

subculturas LGBT e LGBT apoiantes, unidos por uma cultura comum e

movimentos de direitos civis.21

Agrupar pessoas trans sob o rótulo gay é uma práctica comum entre alguns

homossexuais e seus aliados. Baseia-se no ridículo pressuposto de que a

227
comunidade LGBT é a comunidade gay / homossexual. Essa práctica é prejudicial

para as pessoas trans pelos seguintes motivos:

Primeiro, as organizações LGBT acabam negligenciando a comunidade trans e

seus problemas. A luta gay inclui a descriminalização da homossexualidade,

casamentos e orgasmos do mesmo sexo, homens que fazem sexo com outros

homens (HSH) e HIV, preservativos, protecção oral e lubrificantes.

As questões dos transexuais incluem terapia hormonal, cirurgia de redesignação

sexual, eletrólise e alterações de nomes e marcadores sexuais na identificação e


documentos académicos, entre outros

Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Combinacão 23.9 23.6 16.8 18.4 Hijra e 49.2 3.9 29.6 42.2
de
transgéneros

HSH, hijra &


transgéneros
HSH 9.6 6.0 7.6 8.4

Quadro 11.1 Prevalência do HIV em Bombaim

228
Existem inúmeras organizações que pretendem trabalhar com questões de

transgénero e elas não o fazem. No entanto, os doadores não os questionam –

mas se fosse uma organização convencional canalizando fundos destinados a

homossexuais a pacientes com câncer, haveria uma tempestade. Mas

homossexuais podem se safar por causa dos privilégios desproporcionais de que

gozam. De todos os funcionários doadores que trabalham com as comunidades

LGBTI que conheci, apenas um é transexual. O resto são homens e mulheres

homossexuais e, é claro, a maioria não parece gostar da ideia de pessoas como

Audrey questionando ideologias imperialistas entre algumas pessoas

homossexuais. Gays e lésbicas ficam com a parte do leão, enquanto transexuais


comem as sobras na periferia. Esse animus é péssimo como o inferno.

Precisamos parar de cuidar de homossexuais e começar a tratá-los como todo

mundo.

Os efeitos sérios podem ser vistos na desagregação dos dados sobre a prevalência

do HIV entre mulheres trans, de HSH onde alguns ‘especialistas’ as colocaram,

em sua infinita sabedoria e com o incentivo de alguns homossexuais (veja a

Tabela 11.1). Os dados foram fornecidos pela Sociedade Distrital de SIDA de

Mumbai.22

De 2000 a 2003, as intervenções médicas e sociais para conter novas infecções


por HIV foram realizadas sob a perspectiva homossexual. Porém, com a

desagregação dos dados de 2004 a 2007,

229
começamos a ter uma visão melhor da magnitude do problema do HIV entre

mulheres trans e podemos ver que as intervenções que antes eram canalizadas

(através de lentes homossexuais) eram contraproducentes para mulheres trans.

Dados semelhantes e tendências são fornecidos no documento de referência. Há

um ano, iniciei uma campanha para desagregar os dados de mulheres trans de

HSH e homens homossexuais e toda a resistência que eu enfrento vem de

homossexuais. Não sei o que eles perderão se as mulheres trans não fizerem

parte de suas campanhas para HSH; eles são tão arrogantes e brutais que é

necessário se preocupar com o facto de serem as mesmas pessoas que forçam as

mulheres trans a aceitar sua ajuda.

Segundo, gaysificar transexuais coloca riscos de segurança para transexuais. As

pessoas homofóbicas acabam violando os direitos das pessoas trans porque


foram levadas a acreditar que são gays. Funcionários do governo acabam

negando aos transexuais seus direitos, porque eles não querem que eles

‘promovam a homossexualidade’. Não estou a insinuar que é bom discriminar

gays e lésbicas e errado discriminar pessoas trans. Mas é errado transformar

pessoas transexuais em cordeiros de sacrifício ou um escudo para gays e lésbicas.

Prefiro ser confrontado por um “crime” do qual sou culpado do que pelos

“crimes” de outros.

Por fim, a gaysificação de pessoas trans é uma fraude intelectual. Isso é feito para

confundir as pessoas e é malicioso. É uma marca de auto-estigma no meio de

alguns homossexuais.

230
Às vezes, sinto um certo nível de desespero entre alguns homossexuais quando

confrontados pelas campanhas anti-gaysificação que transexuais estão fazem.

Por exemplo, alguns LGBs se apressam em se defender, usando o cliché, “mas

existem pessoas trans que são gays”. (Por que a obsessão por sexo e trans; por

que não dizer que existem trans que são médicos, engenheiros, modelos e

contadores?) É ainda mais esquisito: para alguns deles, um homem trans que é

atraído por homens é gay e os que namora mulheres são lésbicas masculinas. As

mulheres trans que namoram homens são gays, enquanto as que namoram

mulheres são lésbicas – da pra ver como podem ser astutos. Alguns de nós

crescemos aderindo a esse modelo até nos conhecermos melhor. A educação é


libertadora. Se já interagiste com uma secção da comunidade homossexual,

descobres que não há pessoas trans heterossexuais. Sempre distorcem as coisas

para que sejamos parte deles.

Em Março de 2011, inventei um sistema conhecido como nomenclatura

transexual sobre orientação sexual (TNOSO): 23 todas as pessoas transexuais

atraídas por homens são T5.000, as atraídas por mulheres são T7.000, as atraídas

por todos são TATA (Transexuais Atraídos por Todos) e as atraídas por ninguém

são T0. O sistema recebeu apoio notável de algumas pessoas trans, mas a maioria

dos homossexuais abusou de mim por isso (como se isso fosse mudar alguma

coisa). Eles acusaram-me de usar propaganda e ficção científica para quebrar o


movimento gay: triste. Depois, há transexuais que sentiram que havia uma

possibilidade de doadores e gays pensarem em todos nós como traidores

homofóbicos. Eu realmente simpatizo com esse facto – o desejo deles de serem

231
vistos como bons transexuais ou de se encaixar na caricatura ideal (para

mulheres trans) de uma mulher é incompatível com os princípios secretos dos

transexuais. É mau o suficiente acreditar nas mentiras de outras pessoas, mas

um passo em falso sério para começar a acreditar nas suas próprias mentiras.

E, não posso esquecer de lembrar alguns homossexuais do seguinte. Dizes às

pessoas que suas actividades no quarto são assuntos particulares. Dizes à igreja

e ao estado para pararem de cutucar o nariz nos seus assuntos particulares. No

entanto, mudas a tua música quando se trata de pessoas trans; assumes que tens

o direito de saber como transexuais fazem sexo, com quem, quando, por que e
qual rótulo é apropriado para eles. Exorto transexuais a retaliarem contra

homossexuais opressivos; não ser mais babá de algumas pessoas que pensam que

o mundo lhes deve um pedido de desculpas e atenção especial porque são gays.

É necessário aprofundar o assunto sobre por que alguns gays forçam seus rótulos

a outros. Afirmo que essas pessoas não têm orgulho de quem são; eles

reconhecem o facto de serem pecadores e sofrerão tormento na terra e no céu.

Esses indivíduos ficam assustados e tolamente decidem fazer com que outras

pessoas sejam alvos de seu tormento. O raciocínio deles é que é reconfortante

saber que tu não és o único que está sofrendo, há milhões de outros em sua

situação e eles estão lidando bem. O mantra é: pessoas transexuais nunca serão
felizes se a comunidade homossexual estiver infeliz.

Falta de representação e desinformação

232
Há algum tempo, no mundo da saúde mental, a homossexualidade era

classificada como um distúrbio mental. Foi em 1973 que a homossexualidade foi

removida do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da

Associação Psiquiátrica Americana, Edição II (DSM-II). Agora vemos gays e

lésbicas pressionando para que os transtornos de identidade de género sejam

eliminados do DSM-V. A Associação Internacional de Lésbicas e Gays é uma

instituição zelosa sobre o assunto. Exigem:

A remoção do Transtorno de Identidade de Género (GID) do Manual


Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação

Americana de Psiquiatria (DSM-IV) e da Classificação Internacional de

Doenças (CID-10), relacionados à Organização Mundial de Saúde 24

E para finalizar:

Acesso gratuito a tratamentos hormonais e cirurgia (sem atendimento

psiquiátrico. Esta campanha é contrária ao estigma que desqualifica a

identidade de género no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais da Associação Americana de Psiquiatria e na Classificação

Internacional de Doenças.25

233
Então, o pobre rapaz de nossa aldeia ri de mim porque leu o Texto do Manual de

Diagnóstico e Estatística Edição Revisada IV (DSM-IV TR) e me estigmatizou? O

policia que estava me assediando na rua outro dia o fez porque é um leitor regular

do DSM-IV TR e conhece o GID?

Certa vez, conheci três homossexuais que apoiaram a ideia de expulsar o GID do

TR do DSM-IV e pude simpatizar com os argumentos deles: ‘O transexualismo

não é uma condição médica e não deveria estar no DSM … Audrey, sabias que a

homossexualidade também era classificada como um distúrbio mental até ter

sido cancelada em 1973? ” Eles continuaram. Essas pessoas pensam nas


consequências da exclusão do GID do DSM-V? Transexuais precisam de atenção

médica relacionada ao transexualismo e os médicos precisam ser treinados sobre

como gerir o transexualismo. Isso perde-se depois de expurgá-lo do DSM-V e


transexuais e pessoas nascidas no futuro, nunca poderão ter acesso aos serviços

médicos relacionados às suas transições sexuais. Não podemos nos dar ao luxo

de discutir sobre o assunto. Pessoas sem sentido precisam levar suas ideias

malucas de onde vieram.

Mas, alguns gays e lésbicas são motivados por razões egoístas:

O ‘GID’ (DSM-IV) veio como um potencial agente repressivo e perigoso

opressivo para lésbicas e gays. Como muitas lésbicas e gays não estão em
conformidade com o paradigma cultural de género bipolar

heterossexual, elas foram e podem continuar sendo oprimidas pela APA

234
… centenas de jovens LGBT estão confinados em instituições

psiquiátricas e sujeitos a ‘tratamento’ para mudar sua orientação sexual

… A classificação do ‘Transtorno de Identidade de Género’ como uma

doença apresenta um grande obstáculo ao acesso aos cuidados de

saúde.26

Isso é um absurdo total. Se gays e lésbicas são forçados por médicos a mudar sua

orientação sexual, eles podem processar esses médicos ou seus hospitais em vez
de puxar o tapete para debaixo dos pés dos transexuais – o DSM-IV é uma

ferramenta de diagnóstico para desordens de identidade de género e não

homossexualidade / orientação sexual. Acabar com isso compromete o acesso a


serviços médicos para transexuais.

Além disso, alguns gays e lésbicas precisam parar de fazer declarações falsas. Eu

ouvi e li artigos de homossexuais e seus aliados dizendo ao mundo que as pessoas

LGBTI na África são criminalizadas.27, 28, 29 A homossexualidade é criminalizada,

o transexualismo e a intersexualidade não. O hábito de tornar as pessoas alvos de

ódio e discriminação contra gays é inaceitável. Se alguém é criminalizado, não

deve implicar outros.

A situação chega a um nível crítico. Existem esses homossexuais que se

apresentam em oficinas e reuniões como ‘pessoas LGBTI’. Quando tu sondas, eles


dizem que querem dizer que são gays. Esse fenómeno é chamado de ‘gayflage’

(da ‘camuflagem’) e precisa ser cortado pela raiz. É nojento e uma excelente

235
forma de traição. Consegui conversar com duas pessoas transexuais do Quénia

sobre todos esses comportamentos inaceitáveis de alguns gays e lésbicas:

TXCRD

Qual é a tua opinião sobre pessoas trans serem forçadas a trabalhar com gays e

lésbicas? Transexuais devem ser um grupo independente. É muito importante

que transexuais tenham sua própria voz na sociedade e não homossexuais

falando em nosso nome e empurrando como se lhes pertencêssemos.

Já tiveste os teus direitos violados por algum homossexual? Sim, abusando-me a

ponto de me chamar de homem, outro disse, junto com meus amigos trans, que

iríamos ao inferno, eles ameaçaram e roubaram-me. Acho que a maioria é assim.

O que achas dos homossexuais? A maioria é muito má.

Gostas de ser amontoad@ ou associad@ a homossexuais? Não gosto de estar no

mesmo grupo com eles e não gosto que me associem a eles. Não gosto da maneira

como as pessoas falam sobre homossexuais e supõe-se que eu esteja lá. Além
disso, eles não conseguem responder pelos abusos cometidos.

O que achas que deveria ser feito sobre o activismo LGBT? Os problemas de
transexuais devem ser independentes, mas não me importo com o que os outros

fazem, porque eles se empurram para transexuais.

236
TRT101

O que achas de homossexuais? A maioria são pessoas más. O comportamento deles

é mau e ímpio.

Gostas de ser associad@ a homossexuais? Não. Não vejo por que sempre devem

me pressionar a me associar a homossexuais. Eu deveria poder exercer minha

liberdade de associação.

Já tiveste alguns homossexuais abusando de seus direitos? Sim, alguém tentou fazer

de mim uma escrava sexual além de roubar meus 8.000 Ksh.

Gostas de homossexuais alegando que trabalham com direitos de transexuais? Não.

Isso me deixa desconfortável e sinto-me horrível. A maioria não faz a coisa certa
e sofremos por esses erros.

O que recomenda em relação ao activismo LGBT? Homossexuais devem trabalhar

nos seus problemas e transexuais nos nossos. Podemos trabalhar juntos quando

for acordado, mas eles não devem nos forçar a trabalhar com eles.

Conclusão

237
A transfobia é uma realidade entre alguns homossexuais. Assume a forma de

abuso verbal, discriminação, exclusão e discurso de ódio. É profunda e pode ser

aberta ou secreta, mas tem efeitos debilitantes na comunidade transexual.

Homossexuais são protegidos por um muro anormalmente espesso de respeito –

respeito não merecido. Isso significa que não se deve criticar homossexuais

porque alguns assumem que têm direito a privilégios e direitos especiais. Se

houver evidência para provar que eles estão errados, é para que essa evidência

seja atirada ao lixo, não eles.

Transexuais não querem estar no mesmo grupo com homossexuais. Essa

associação é normalmente contraproducente devido à confusão que causa na

sociedade em geral. Além disso, as questões de pessoas transexuais são ignoradas


pelas organizações LGBT a favor da agenda homossexual. Transexuais exigem

espaço para expressar seus próprios problemas, independentemente do

movimento pelos direitos dos gays.

Alguns homossexuais querem que a comunidade LGBT seja descompactada para

que se torne a comunidade LGB. Transexuais expressaram desejos semelhantes

devido aos problemas envolvidos no trabalho com a maioria dos homossexuais.

Parece que todos em qualquer nível de ignorância sobre transexuais têm o direito
inerente de dar a opinião de seus ‘especialistas’ sobre transexuais e

transexualismo. Alguns homossexuais se enquadram nessa categoria. Eles

sentem que, só porque são homossexuais, estão sempre certos e são qualificados
o suficiente para dar uma opinião sobre transexuais e a transexualidade.

238
Recomendações

Transexuais precisam ter cuidado com as pessoas, grupos e organizações com

que se associam. Precisam ser capazes de conhecer pessoas construtivas e devem

perceber que têm liberdade de associação. Não devem ser ditados sobre com

quem devem trabalhar. Não há razão para nós, transexuais, trabalharmos com

outras pessoas simplesmente porque essas outras pessoas são homossexuais.

Os desejos de transexuais e homossexuais que desejam se separar da

comunidade LGBT devem ser respeitados. As questões de transexuais são

totalmente diferentes das de homossexuais, e a divisão da comunidade LGBT

aumentará o foco nas questões transexuais.

Transexuais precisam ser assertivos. A maioria de transexuais têm medo de

criticar os homossexuais; eles têm medo de serem acusados de homofobia.

Homossexuais (e seus aliados) que têm o hábito de pular descuidadamente em

questões transgénero e fingir ser especialistas nesse campo precisam parar de

fazê-lo. Enquanto alguns homossexuais têm algo que vale a pena oferecer, a
maioria dos homossexuais, inadvertidamente ou intencionalmente, cria

problemas para transexuais devido à desinformação que eles espalham sobre

transexuais. Alguns homossexuais impõem um complexo de superioridade sobre


transexuais, neutralizam as pessoas trans, desencaminhando-as para se

239
envolverem em comportamento sexual destrutivo, abuso de substâncias e

incentivam-nos a nos divorciarmos da fraternidade da saúde e de nossas

famílias.

Transexuais precisam fazer esforços conjuntos para educar a sociedade em geral

sobre questões trans. Precisam fazer a sociedade mainstream entender que

transexuais não são homossexuais e não estão relacionados, e que os problemas

(por exemplo, legais) de transexuais são diferentes dos homossexuais. Em

conexão com isso, eu aconselharia a sociedade em geral a tomar o que a

comunidade homossexual diz com uma pitada de sal.

Dedicado à raça transexual em todo o universo.

Notas

‘Is a “transsexual” a woman or a cross dressing eunuch?’, CrossDressingQuestions.com,


http://crossdressingquestions.com/is-atranssexual-a-woman-or-a-cross-dressing-eunuch.html, accessed 1

June 2011.

Nathan Tabak (2010) ‘Transgender rights are gay rights’, Change.org,

http://news.change.org/stories/transgender-rights-are-gay-rights, accessed 1 June 2011.

‘I hate transgendered people, please convince me not to’, http://

au.answers.yahoo.com/question/index?qid=20080830200855AAB9Zeu, accessed 13 June 2011.

‘Why do gay/lesbian dislike transgendered people?’, http://www. Answerbag.com/q_view/913328,

accessed 13 June 2011.

Mia Nikasimo (2010) ‘Transgender people face hate speech from lesbian and gay people’, Black Looks,
http://www.blacklooks.org/2010/10/ transgender-community-face-hate-speech-from- lesbian-and-gay-
people/, accessed 13 June 2011.

240
‘Do you think transgender should be lumped in with gays and lesbians?’, Yahoo Answers,
http://answers.yahoo.com/question/index?qid=201010141 21109AAJH3MA, accessed 13 June 2011.

Pamela Hayes (2011) ‘Why do some gay men hate transsexuals?’, Transgriot,
http://transgriot.blogspot.com/2011/01/pams-ponderings-whydo-some-gay-men.html, accessed 13 June 2011.

‘Do you think transgender should be lumped in with gays and lesbians?’, Yahoo Answers, accessed 15 June

2011.

Ibid.

‘Chaz Bono is no longer gay. Well, then it’s time for the old heave-ho’, (2010) The data lounge,
http://www.datalounge.com/cgi- bin/iowa/ajax. Html?t=9212259#page:showThread,9212259, accessed 15 June

2011.

Ibid.

Ibid.

‘Do you think transsexualism or transgendered is a sexual orientation?’, Yahoo Answers,

http://answers.yahoo.com/question/index?qid=200811281 23203AAYICtM, accessed 15 June 2011.

‘Do you think transgender should be lumped in with gays and lesbians?’, Yahoo Answers, accessed 15 June 2011.

Ibid.

Ibid.

Ibid.

‘LGB People, what are your views on transgender individuals?’, Yahoo Answers,

http://answers.yahoo.com/question/index?qid=20101201123307 AA2TITq, accessed 15 June 2011.

A transposon is a chromosomal segment that can undergo transposition (Oxford English Dictionary).

R. Hofmann and R.O. Gutierrez (2011) ‘Fearing no evil’, http://www.poz.

Com/articles/David_Kuria_HIV_2591_20107.shtml, accessed 16 June 2011.

Wikipedia, ‘Gay community’, http://en.wikipedia.org/wiki/Gay_ community, accessed 16 June 2011.

241
A.L. Guevara (n.d.) ‘The hidden HIV epidemic. Transgender women in Latin America and Asia’, International
HIV/AIDS Alliance, http://www.
Msmgf.org/files/msmgf//Latin%20America/ART_EN_010808_HID.pdf, accessed 16 June 2011.

‘Transsexual nomenclature on sexual orientation’, TransgenderKenya, http://www.transgenderkenya.com,

accessed 16 June 2011.

‘Groundwork for the campaign against the pathologizing of gender identity. Stop trans pathologizing’ (2012)
International Lesbian and Gay Association,
http://trans.ilga.org/trans/welcome_to_the_ilga_trans_secretariat/library/articles/groundwork_
for_the_campaign_against_the_pathologizing_of_gender_identity_stop_ trans_pathologizing_2012, accessed

17 June 2011.

Ibid.

Tere Prasse, ‘Genderevolution sidebars’, http://womynweb.net/gendersb. Htm, accessed 17 June 2011.

‘African LGBTI Manifesto/Declaration’ (2010) http://www.priorityafrica. Org/African_LGBTI_Manifesto-

FINAL.pdf, accessed 17 June 2011.

‘MCC call to action: save LGBT lives in Uganda’, http://mccchurch. Org/2011/05/10/mcc-call- to-action-save-

lgbt-lives-in-uganda/, accessed 17 June 2011.

Kiwianglo (2011) ‘Ugandan bishop addresses U.N. on tolerance for LGBT community’,
http://kiwianglo.wordpress.com/2011/04/11/nigerian-bishopaddresses-u-n-on-tolerance-for-lgbt-

community/, accessed 17 June 2011.

242
243
14 – OS MEDIA, O TABLOIDE E O ESPECTÁCULO DA HOMOFOBIA DE
UGANDA – Kenne Mwikya

Introdução

A 9 de Outubro de 2010, a Rolling Stone 1 , um tabloide de Uganda, divulgou 100

supostos “homossexuais”. Imprimiu seus nomes, fotografias, moradas e outras


informações de contacto – com um título na primeira página que dizia

‘enforquem-nos’. Alegou ainda que gays e lésbicas e pessoas não-conformes

bissexuais e de género planejavam recrutar um milhão de crianças. No final


daquela semana, o tabloide teve grande visibilidade nas notícias do mundo e foi

destaque numa série de publicações, incluindo o Guardian e o New York Times.2

As notícias da Rolling Stone se espalharam rapidamente. Cópias em PDF da

edição circulavam com comentários de retórica feroz anti-homofobia que

dominava os espaços em que o tabloide ganhou relevância. Foi assim que a

invasão da Rolling Stone Uganda aconteceu. Chamo isso de ‘intrusão’ porque o

fluxo de comentários – a maioria contra as exposições – pulou uma fase

importante, ou seja, os detalhes das publicações e a análise de sua relevância, que

por sua vez poderia ter limitado seu poder.3

244
Neste capítulo, examino a relação entre os media e a comunidade queer na África

Oriental, concentrando-me em Uganda, que ganhou notoriedade internacional

pela introdução de um projectos de lei contra a homossexualidade no parlamento

e o espectáculo da media que causou e, tanto quanto a reintrodução do projectos

de lei no parlamento continua a causar enquanto escrevo este capítulo.4 Eu vejo

como os tabloides pressionam em Uganda, as organizações regionais e os media

internacional e, em particular, os blogs pró-queer, abordaram a crise dos direitos

queer (essencialmente direitos humanos) no país. Argumento que essa cobertura

evita rumores cruciais sobre a crise por parte dos intelectuais preocupados e

nega ao país oportunidades de atenuar a crise. ⁵ Proponho uma reflexão crítica e


repensar a relação entre os media e a comunidade queer por activistas,

intelectuais e espectadores queer africanx.

Contexto

Não foi a primeira vez que Uganda testemunhou manifestações em massa por
tabloides de má reputação. Outro tabloide, Red Pepper, começou a publicar os

nomes, identificando características, locais de trabalho, residências e

informações de contacto de activistas e outros queers 'fora' desde 2007. Esses


eventos foram desencadeados por uma conferência organizada por evangélicos

americanos e com a participação de jornalistas, policiais, membros do

parlamento e do governo e outras partes interessadas que fizeram a convocação

245
contra queers no país. Foi, devo observar, a primeira vez que um tabloide foi

transformado por seus leitores pró e anti-LGBTI em algum tipo de potência na

qual ideias, debates e conversas poderiam se agrupar.

Em Uganda, onde um projectos de lei contra a homossexualidade foi apresentado

no parlamento pelo deputado David Bahati em Outubro de 2009, as alegações e

saídas foram bizarras e assustadoras. ⁶ As alegações encontraram uma população

pronta, que foi inundada pela retórica anti-LGBTI de políticos e líderes religiosos

que culparam as pessoas LGBTI pelos problemas sociais do país. Pior ainda,

apenas um pequeno e subfinanciado grupo de activistas de minorias sexuais


existia em Uganda, uma rede de activistas que não conseguia acompanhar as

capacidades logísticas e financeiras de instituições religiosas e governamentais

que apoiam medidas anti-LGBTI no país. Nesse contexto, a Rolling Stone e seus
antecessores ameaçavam os queers em dois aspectos cruciais. Primeiro, a

normalização da media tabloide como um repositório viável para o discurso de

‘coleccionar’ legitimava a necessidade de abrir o discurso. Em segundo lugar, no

entanto, o próprio tabloide, com seu material severamente tendencioso,

incentivou os leitores a se concentrarem não na qualidade das reportagens e no

facto das publicações, mas nos homossexuais que vivem em Uganda. Isso

significava que, em vez de perguntar se era ético “eliminar” as pessoas LGBTI, o

discurso girava em torno de como as informações fornecidas pela Rolling Stone


devem ser adoptadas. Essas duas situações agiram em conjunto para produzir

um cenário em que discurso, debate e conversa foram baseados em informações

246
tendenciosas e inquestionáveis, sobre as quais o público (que consumia essas

informações de maneira fácil e regular) era incentivado a agir.

Nos poucos dias que se seguiram, a Rolling Stone havia se tornado um “jornal”

em vez de um tabloide de alta reputação e gramática horrível. Giles Muhame, o

homem por trás do jornal obscuro, era considerado um “jornalista” .⁷ Essa

redefinição do jornal e de seu editor se tornou uma das muitas acções da media

liberal ocidental e, posteriormente, de blogs pró-LGBTI e agências de notícias

africanas, que estavam entusiasmados por levar uma história tão controversa e

obter notícias de agências ocidentais, em vez de realizar sua própria investigação.


A redefinição da Rolling Stone do Uganda criou uma imagem imprecisa do

tabloide como a institucionalização do fanatismo e homofobia anti-LGBTI no

Uganda e, de facto, na África. Pode-se dizer que o poder da Rolling Stone está em
seu ‘tabloide’ e em nossa credulidade em ‘condenar’ algo que teve um público de

cerca de 3.000 pessoas.

Os proponentes do conceito de algum tipo de ‘agenda gay’ sempre insistiram que

o activismo das minorias sexuais foi secretamente e abertamente apoiado pela

media cada vez mais liberalizada.⁸ Por outro lado – e vejo isso num país como o

Quénia, onde temos muitas pessoas apoiando as pessoas LGBTI⁹ – activistas e

blogueiros insistiram que é bom que os media façam um retrato sobre queers,
sejam eles favoráveis ou desfavoráveis, com base na visão pragmática de que

‘publicidade é publicidade’. Isso significa que nossa capacidade ou vontade de se

envolver com reportagens altamente preconceituosas e tendenciosas sobre


homossexuais na África está directamente relacionada ao facto de apreciarmos

247
ou não o facto de que algum ‘progresso’ está sendo feito na tentativa de estimular

o discurso sobre a variação sexual e de género por parte de tais comunicados.

Portanto, o policiamento da homofobia, transfobia e preconceito nas reportagens

da media é escasso. Como o debate pode ter várias maneiras, fins e meios que

não ajudam directamente um discurso mais tolerante sobre homossexualidade

ou não conformidade de género, os activistas parecem estar envolvidos na maior

parte do tempo num relacionamento severamente desigual comos media, em

detrimento de activistas em si e pessoas queer de todo o continente.

De facto, seria indelicado não salientar que temos tido muitos textos de opinião
nos nossos jornais, reportagens e entrevistas na televisão e na rádio que

realçaram a "situação dos gays e lésbicas", especialmente quando se trata de

saúde e direitos básicos (tais como a descriminalização das relações privadas e


consensuais entre pessoas do mesmo sexo, leis anti-discriminação e legislação

sobre crimes de ódio). Contudo, tais esforços têm-se baseado na desinformação

e na percepção generalizada de que os homossexuais precisam de 'apoio' -

geralmente traduzido como pena.

Tais suposições não foram totalmente claras. Os jornais, a televisão e rádio ainda

carregam notícias e análises tendenciosas e desequilibradas, por vezes

deslizando para o estatuto de tabloide com mentiras ou informações érroneas


sobre activistas queer, estereótipos e subculturas que emergem de um discurso

tenso sobre identidade sexual, a ameaça de estrangeiros e grupos locais

fundamentalistas e o apagamento que às vezes magoa, mas também ajuda na


existência subtil, senão fechada, da maioria das pessoas LGBTI.

248
Esse tipo de discurso duplo trai o facto de que os media apenas usa a

homossexualidade para obter um amplo número de leitores. Assim, o duplo

retrato de compaixão e desprezo ou indiferença mal direcionados anuncia um

futuro turbulento sobre como as reportagens da media serão interpretadas e

debatidas pelo público. Deve-se notar que o jornalismo, assim como outras

profissões na África, ainda está profundamente enraizado no heteropatriarcado,

ainda ligado à doutrina religiosa e ainda governado, mais ou menos, pelo lucro,

pela censura do governo e pela retórica política da época.

Assim, pode-se dizer que a cobertura da media sobre questões queer tende a ser
incrivelmente complexa em espaços locais, translocais e glocais, habitando

formas diferentes, seguindo métodos diferentes e visualizando fins divergentes.

As circunstâncias em que a Rolling Stone operava não eram únicas, pois suas

publicações foram precedidas por Red Pepper. A única diferença com a Rolling

Stone foi a grande atenção da media que recebeu e a análise abafada inundada

por essa cobertura. Ambos os tabloides prosperaram em eventos que moldaram

a vida de queers no Uganda para pior, a saber, a normalização do sentimento

anti-LGBTI por evangélicos dos EUA e líderes religiosos e políticos locais, e a lei

anti- homossexualidade apresentada ao parlamento pelo deputado David Bahati.

Alguém poderia pensar que este seria um bom momento para pensar sobre a
coincidência entre o que estava sendo publicado pela Rolling Stone e outros

tabloides e o crescente sentimento anti-LGBTI no Uganda, a introdução do

projectos de lei contra a homossexualidade no parlamento de Uganda e sua

249
subsequente participação no debate cultural, político e ideológico nacional e

internacional. Nada disso aconteceu.

Desde a introdução do projectos de lei, a atenção internacional sobre o

tratamento do país pelas pessoas LGBTI passou do quadro mais amplo de direitos

humanos e liberdades sexuais para o combate ao projectos de lei

independentemente de outros abusos dos direitos humanos. A partir dessa

separação e da subsequente oposição entre combater a lei anti-

homossexualidade e questões maiores de violações dos direitos humanos no

Uganda, pode-se deduzir que a legitimação dos direitos LGBTI foi o resultado
pretendido depois que a lei foi derrotada – uma grande aposta. Duvido que a

atenção da media na questão da Rolling Stone tenha durado tanto tempo se a lei

não fosse tão ameaçadora ou, e isso é mais revelador, se os factores ocidentais
nessa equação, que são os evangélicos de extrema direita dos EUA e a mudança

de guerras culturais do Ocidente até os campos férteis de fervor religioso da

África estavam ausentes.

Os eventos em torno do Uganda queer ou ‘homofóbico’ seguiram um padrão

quase cíclico de eventos e reacções desde a conferência evangélica dos EUA, as

publicações de Red Pepper, a introdução da lei anti-homossexualidade, os

publicações de Rolling Stone, a morte de Janeiro de 2011 do activista David Kato


e a luta que cercou o aparente fim do projectos de lei contra a homossexualidade

no parlamento de Uganda em Maio de 2011 e a reintrodução do projectos de lei

em 2012. Para as pessoas com uma preocupação genuína com o que acontece em
Uganda, a intimidação de activistas e a normalização da retórica anti-queer, que

250
são sintomas da desumanização das pessoas LGBTI, a cacofonia não faz sentido.

O pensamento e a análise intelectuais foram escassos e foram abafados pelo

barulho de blogs e sites de notícias, concluindo sumariamente que Uganda é

homofóbico.

Os meios de comunicação social em África não se safam, uma vez que, sob um

exame minucioso, há pouca cobertura da crise queer e dos direitos humanos no

Uganda. Em vez disso, vemos uma auto-censura geral, ou suposta censura por

parte dos governos, sobre questões que afectam queers no continente e uma

confiança excessiva nos meios de comunicação ocidentais para notícias e


reportagens sobre assuntos africanos. Isto preparou o caminho para que os sites

de notícias ocidentais tratassem as reportagens sobre África queer com um

fervor autoritário que se concentrava no pragmatismo e desenhava um quadro


que evocaria respostas apaixonadas sobre a forma como a África é 'homofóbica'.

No final, a cobertura do espectáculo da homofobia no Uganda acabou, aos olhos

da maioria dos africanos que assistiam à história, por ser um exemplo de

governos ocidentais que utilizavam os seus meios de comunicação social para os

criticar excessivamente e impor-lhes crenças "estrangeiras". Uma tal articulação

é falaciosa, mas num continente onde os maiores propagadores da ideologia são

a igreja e o governo, isto fazia sentido

As agências de notícias africanas também mostraram grande irresponsabilidade

na cobertura de queers em seu próprio continente. O sistema para abordar

conceitos como equilíbrio na cobertura da África queer é falho; portanto,os


media na África acabou considerando a cobertura de pessoas LGBTI, suas

251
histórias e seu impacto, percebido ou não, na sociedade como algo formal. Isso é

evidenciado pelo facto de que, embora os media publiquem diversas histórias que

são pró-queer e ‘socialmente conservadoras’, se não prejudiciais, o debate sobre

a homossexualidade foi impedido pelo consenso fácil demais de uma postura

anti-LGBTI. A bola está na quadra da media para produzir material que gere

debate, conversa e discurso genuínos e veja se o fim será a conclusão usual de

que a homossexualidade é errada e não africana. A Rolling Stone de Uganda traiu

as semelhanças com as quais as agências de notícias da África, as agências de

notícias ocidentais e os blogs pró-homossexuais lidaram com as notícias, e a

maneira como essas reportagens acabaram servindo apenas as necessidades de


suas bases de consumidores. O tom em que essas diferentes máquinas de media

carregavam suas histórias era consistente com seus principais leitores. A Rolling

Stone atendeu amplamente às necessidades dos ugandenses que queriam

“saber”, mas não podiam pagar um jornal como o Daily Monitor ou o New Vision

– os dois principais jornais de Uganda. Por outro lado, um artigo como o

Guardian (Londres), conhecido por seus extensos relatórios sobre a África queer,

atende a um público que está – e aqui estou especulando – interessado no

‘internacionalismo dos queers. 10 Relatórios por uma rede como a BBC

dificilmente estava destinada a ser um ponto de encontro viável para debates,

conversas e análises na África, dadas as diferenças entre um país que está

debatendo os direitos do casamento entre pessoas do mesmo sexo e um


continente ainda lutando para se livrar das garras da repressão das minorias

sexuais. Muito pode ser dito sobre a Rolling Stone. Mesmo em Uganda, houve um

252
momento em que a Rolling Stone acabou de debater com o entusiasmo de uma

anedota do passado, perdendo força com seus principais leitores. Coloco esses

extremos um contra o outro para apontar as semelhanças entre relatar

empreendimentos em todo o amplo espectro entre um tabloide em Kampala

‘backwater’ e um jornal como o Guardian, em Londres.

Quero destacar a ‘espectacularização’ tanto pelas agências de notícias ocidentais

quanto pela Rolling Stone e seu antecessor, Red Pepper. Enquanto a Rolling Stone

se concentrava nas acusações de que homossexuais recrutavam crianças, os

blogs homossexuais ampliavam seu poder. Enquanto isso, Giles Muhame foi
institucionalizado e convidado para entrevistas, onde demonstrou seu domínio

do inglês. As repercussões desse retrato ainda estão connosco hoje, no

comentário de Muhame depois de receber notícias da morte do activista David


Kato: o trabalho do governo era matar os queer e não o público.11

Outro exemplo de espectacularização é um documentário de Scott Mills, da BBC,

que considera Uganda o “pior lugar para ser gay” – não importa que essa

demonstração não mude a percepção de como abordar o activismo queer na

África e siga o caminho trilhado. Da “África é homofóbica”

.¹² Tais reportagens são voltadas exclusivamente para uma audiência ocidental
interessada em se isolar do resto do mundo. Dessa maneira, convenientemente

ignora sua própria homofobia e transfobia, incluindo bullying, espancamentos e

até assassinatos, além de racismo e islamofobia, e usa sumariamente suas


descobertas como evidência para sugerir a viabilidade de um conceito como

253
‘homofobia africana’. Uganda é o novo Irã, um estado africano atrasado que

aterroriza queers que, curiosamente, são salvos de serem associados à homofobia

encontrada nos espaços em que habitam. A media heroica do Ocidente se impôs

como líder em ‘ajudar’, ou mais activamente que descreve ‘expor’, activismo

queer no continente, não como realmente é, mas como eles querem que seja. O

activismo e o pensamento intelectual em torno de Uganda, queer, foram

empurrados para trás, como lendo os media, você pensaria que o activismo em

Uganda é inexistente ou totalmente desorganizado e frenético, com seu objectivo

final de derrotar a lei anti-homossexualidade.

No entanto, algumas críticas também devem ser feitas contra as estratégias que

os activistas usam em seu trabalho para acabar com a repressão sancionada pelo

Estado contra minorias queer em seus países. Deve-se suspeitar da totalidade


com a qual os paradigmas ocidentais são usados no activismo na África, uma vez

que a viabilidade de tais estratégias na África está em questão e que, mesmo nos

espaços em que foram empregados anteriormente, os resultados foram amplos

e nem sempre positivos.13 Com essa ‘maneira de fazer as coisas’ profundamente

enraizada nos paradigmas do activismo ocidental, a interferência das agências de

notícias ocidentais não era vista apenas como apropriada pela media ocidental,

mas também como uma extensão de uma globalização dos direitos queer nos

quais o Ocidente era o modelo. Mas as tensões entre as aspirações do Ocidente e


as necessidades de lugares como a África e o Oriente Médio não podem ser

cobertas pelo internacionalismo. Seus caminhos são marcadamente diferentes,

assim como as necessidades e desafios imediatos que ocorrem em países como

254
Quénia e Uganda, em oposição aos EUA e à Grã-Bretanha. Essas tensões não

tratam da normalização da `` homossexualidade não é africana ‘’ e ignoram

descaradamente e muitas vezes ameaçam as tentativas de ligação de

organizações religiosas preocupadas com a crescente interpretação da

moralidade como algo institucional, e não um aspecto pessoal e cultivado da

natureza humana. O internacionalismo gay exige que os jogadores tenham “algo”

que é “bom” para levar para a mesa. O internacionalismo queer não é tão

obrigatório quanto é considerado, nem tão benéfico quanto é retratado como no

combate à homo / transfobia em um espaço localizado como o Uganda. As acções

do internacionalismo queer apenas engendram a crença desenfreada de que o


activismo LGBTI, assim como a homossexualidade, é uma importação ocidental

e uma imposição à soberania do povo. São questões que o internacionalismo, na

sua falta de sinceridade, não pode abordar de maneira inclusiva ou conclusiva.

A “cooperação” activista-media na África é um assunto agridoce, com os media

assumindo o controle. Assim, objectividade e preconceito, assim como os termos

de qualquer debate, são monitorados de perto e policiados pela media, que os

coloca em primeiro lugar. Um exemplo é um artigo que apareceu no Daily Nation

que deturpou completamente David Kato e seu amplo trabalho como activista e

pioneiro na luta pelos direitos das minorias sexuais na África Oriental. O artigo

se esforçou para fingir um senso de equilíbrio, imprimindo mentiras e não


citando fontes e, no final, Kato foi retratado como uma pessoa promíscua,

seropositiva e arrogante – coisas que, mesmo que fossem verdadeiras, seriam

completamente irrelevante para seu trabalho como activista.14 O artigo recebeu

255
um grande número de comentários condenando Kato e todos os queers, com

fanáticos religiosos reforçando estereótipos LGBTI e um acordo geral de que sua

morte foi uma coisa boa. Assim, as pessoas que nada sabiam sobre David Kato ou

seu trabalho foram "convidadas" a expressar seu ódio e ignorância pelas questões

LGBTI. O mesmo pode ser dito sobre as reacções dos ugandenses que saudaram

os desfiles de Red Pepper, Rolling Stone e as postagens do blog e os relatos da

media ocidental sobre o espetáculo da homofobia.

Em Novembro de 2010, um grupo de activistas LGBTI – Kasha Jacqueline, David

Kato e Pepe Julian Onziema – solicitou ao Supremo Tribunal de Uganda que


interrompesse outros eventos da Rolling Stone.15 Suas acções mostram como sua

resiliência à repressão à variação sexual e de género em Uganda accionou

activistas. São pessoas extremamente corajosas que permaneceram em seus


países e continuam seu trabalho como activistas. Apenas algumas semanas

depois que um juiz decidiu em favor dos requerentes da petição, David Kato foi

morto fora de sua casa em circunstâncias pouco claras. O projecto de lei contra

a homossexualidade foi arquivado e alguns meses depois, em meados de Maio de

2011, gerou-se a confusão sobre se seria apresentado no parlamento.16

Onde é que isto situa os bloguistas, comentadores e intelectuais africanos

progressistas?

O espetáculo de homofobia em Uganda é um alerta para um pensamento mais

aprofundado, comentários, críticas e organização. Como guardiões de nossas


próprias narrativas e as pessoas chamadas a salvaguardar nossas próprias

256
culturas e crenças, é hora de reconsiderar seriamente nossa relação

quadriculada como media e exigir mais objectividade: equilíbrio ou fracasso! Um

novo colectivo no qual grupos activistas cooperam com blogueiros,

comentaristas e pensadores não afiliados, mas mesmo assim apoiadores, deve

ser forjado. Num país como o Quénia, a Rolling Stone poderia ter sido criticada

por ser altamente abusiva da ética e das melhores prácticas jornalísticas, mas, no

entanto, vista como relevante. Essas são as regras de engajamento que os grupos

activistas LGBTI devem reconfigurar. Cooperação como os media deve ter como

objectivo produzir conteúdo que sirva ao público dizendo a verdade, objectivo e

contando histórias de grupos vulneráveis, e não como uma boa oportunidade de


apresentar uma reportagem com o objectivo de despertar interesse. A

preocupação levantada sobre o comentário de histórias queer por agências de

notícias ocidentais, especialmente os blogs pró-queer, é um sintoma de nossa

dependência do pensamento ocidental e dos modos de activismo como um

paradigma eficaz o suficiente para trabalhar em lugares como Uganda e a

ineficácia de internacionalismo queer e imperialismo baseado em direitos

impostos nos países, nos governos e nas sociedades.

Testemunhando a transfiguração da Rolling Stone de Uganda de um jornaleco

para um bastião da opressão queer na África, o seguinte deve ser perguntado:

• Como as ansiedades transnacionais / internacionais sobre orientação


sexual afectaram o relato do espectáculo de homofobia em Uganda?

257
• Como abordar a interferência dos meios de comunicação social ocidentais

nos assuntos africanos queer, agências que comentam com imperialismo e

com os seus próprios interessens em mente?

• Como é que os grupos e indivíduos ocidentais que têm como objectivo

fornecer aos queer Ugandenses o tão necessário apoio o devem fazer?

• Como abordamos as ansiedades dos paradigmas estrangeiros ao abordar o

activismo? Serão as suas histórias as nossas histórias? Até que ponto nos

vemos nas histórias que eles contam sobre nós?

• O que deve ser feito sobre os relatos tendenciosos de queers em África, ou

isso é apenas um excesso do mainstream não-queer na manipulação de


território desconhecido em livros de leis e sanções sociais?

Essas perguntas são apenas algumas que devem ser feitas e respondidas

analiticamente para pavimentar o caminho para uma nova estrutura activista dos

direitos queer que não apenas responda às necessidades de pessoas não

conformes gays, lésbicas, bissexuais e de género africanas, mas que seja capaz de

influenciar decisões nas próximas décadas ou séculos.

A poeira baixou, o suposto assassino de David Kato foi condenado a 30 anos de


prisão pelo crime e o legado de David foi solidificado, provisoriamente, com a

criação de um Prêmio de Visão e Voz com seu nome.17 Mas, no momento de

termino este artigo, o projectos de lei contra a homossexualidade havia sido

258
reintroduzido no parlamento duas vezes, em 2011 e 2012, com a pena de morte

sendo aplicada. Foi retirado da versão de 2012.18 O governo de Uganda continua

a assediar activistas de direitos sexuais, violando suas liberdades fundamentais e

ameaçando prender por motivos dúbios ou inexistentes.19 Com esse

ressurgimento, o espectáculo de homofobia de Uganda deve ser testado em que

ponto e em que medida informou e influenciou o debate sobre os direitos das

minorias sexuais no Uganda e na África. Parece que falhou nesse teste.

Só poderíamos esperar que todos os participantes envolvidos aprendessem com

a espetacularização e que, se não aprendessem, houvesse pessoas dispostas a


expor constante e incessantemente as falhas do espetáculo. Só podemos esperar

que o público da África Oriental, da África e do mundo não participe de mais uma

rodada de informação e entretenimento à custa de questões reais de direitos


humanos em Uganda e no resto da África.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Keguro Macharia e Sokari Ekine pelo feedback geral e

pelo sustento intelectual, político e emocional, pela edição e correção de aspectos


deste trabalho.

Notas

Para mais informações, consulte Wikipedia entry on Rolling Stone (Uganda),


http://en.wikipedia.org/wiki/Rolling_Stone_%28Uganda%29, acessado em 12 de Março 2011.

259
X. Rice (2010) ‘Ugandan paper calls for gay people to be hanged’, Guardian, 21 October,
http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/21/ ugandan-paper-gay-people-hanged, accessed 19 November 2012; J. Gettleman
(2011) ‘Ugandan who spoke up for gays is beaten to death’, New York Times, 27 January,
http://www.nytimes.com/2011/01/28/world/ africa/28uganda.html?_r=1, acessado em 12 de Março de 2011.

Por exemplo, ‘Slouching into Kampala: O abraço mortal do ódio de Box Turtle Bulletin’
(www.boxturtlebulletin.com/slouching-towardkampala.htm, acessado em 12 de Março de 2011), uma linha do tempo dos
eventos que antecederam a introdução da anti-homossexualidade , concentra-se demais nas influências ocidentais que podem
ter desencadeado debates e conversas sobre o projectos dentro da classe política e administrativa de Uganda e só tem um
interesse casual nas forças internas que realmente entraram no projectos de lei possível no parlamento. Mas, embora
certamente tendencioso nesse aspecto, ainda é um site útil se alguém quiser se apossar de sites de notícias e blogs relevantes
que cobriram e ainda cobrem a história em Uganda. Outra página no site do Box Turtle Bulletin, no Ugandan Rolling Stone
(www.boxturtlebulletin.com/rolling-stone- uganda.htm, acessado em 12 de Março de 2011), também foi útil na coleta de
informações abrangentes não apenas sobre a atitude empregada por vários blogs e sites de notícias sobre o Uganda, mas
também sobre a qualidade da informação.

C. Ni Chonghaile (2012) ‘Projecto de lei anti-gay de Uganda ressuscitou no parlamento’, 8 de Fevereiro,


http://www.guardian.co.uk/world/2012/feb/08/uganda-gaydeath-sentence-bill, acessado 19 de Novembro de 2012.

Veja Keguro Macharia (2010) ‘Homofobia na África não é uma história única’, 26 de Maio de
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/may/26/ homophobia-africa-not-single-story, acessado em 19 de Novembro
de 2012; e “Explicando a homofobia africana?” (2010) 24 de Maio, http: // gukira. Wordpress.com/2010/05/24/explaining-
african-homophobia/, acessado em 19 de Novembro de 2012. Ambos são uma resposta à afirmação de Madeleine Bunting (2010)
de ‘homofobia africana’, ‘homofobia africana tem raízes complexas’, 21 de Maio de
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/may/21/ complex-roots-africa-homophobia, acessado em 19 de Novembro
de 2012, uma noção baseada em grande parte nos aspectos anedóticos e outros da homofobia encontrados em todos os
contextos culturais . Keguro desafia estudiosos do Ocidente a realmente se envolverem com trabalhos académicos e coletivos
activistas que acumularam uma riqueza de conhecimentos sobre sexualidades africanas, informações que contestariam
qualquer concepção de uma “homofobia africana” excepcional. Os desafios de Keguro podem ser empregados muitas vezes
quando se trata do espetáculo de homofobia em Uganda.

Uma cópia do Projecto de Lei da Homossexualidade, Uganda 2009 pode ser encontrada no site da Warren Throckmorton,
http://wthrockmorton.com/wp-content/ uploads / 2009/10 / anti- homosexuality-bill-2009.pdf, acessado em 19 de Novembro
, 2012. Mais informações sobre o projectos, sua publicação e subsequente controvérsia internacionalmente podem ser
encontradas na entrada da Wikipedia, ‘Projecto de lei anti-homossexualidade de Uganda’,
http://en.wikipedia.org/wiki/Uganda_AntiHomosexuality_Bill, acessado em 19 de Novembro de 2012.

Exemplos de que a Rolling Stone de Uganda está sendo chamada de jornal erroneamente incluem a Rolling Stone, EUA (o
impostor ‘Rolling Stone’ africano espalha a agenda do ódio ‘’, http://rollingstone.com/politics/news/africanrolling-stone-

260
impostor-spreads-hate -agenda) e no Reino Unido, Simon Akam (2010) ‘Clamor como jornal ugandense nomeia “principais
homossexuais”’, Independent, 22 de Outubro, www.independent.co.uk/news/world/africa/ clamor por ugandense- paper-
names-top-homosexuals-2113348.html, acessado em 12 de Março de 2011.

O que agora é chamado de ‘agenda gay’ é uma noção profundamente enraizada no americanismo, na medida em que as
modalidades de seu argumento não podem reter água em uma região como a África Oriental, onde as organizações de direitos
LGBTIQ não têm capacidade logística nem financeira para realizar as enormes campanhas ideológicas que essa noção pode
exigir da comunidade LGBTI. No entanto, embora os argumentos sejam inconstantes e, às vezes, baseados em falsidades, eles
continuam sendo usados em todo o mundo para justificar a criminalização de queers, a supressão dos direitos LGBTIQ e a
consequente bastardização do activismo dos direitos queer.

Denis Nzioka (2011) ‘Gays in Kenya causing quiet revolution’, 26 de Janeiro,www.gaykenya.com,


http://www.gaykenya.com/3881.html, acessado em 12 de Março de 2011.

Para um resumo disso, leia “O internacionalismo queer da África”, de Keguro Macharia, The New Black Magazine, http: //
www. Thenewblackmagazine.com/view.aspx?index=2527, acessado em 12 de Março de 2011.

X. Rice (2011) ‘O papel de “enforcá-los” em Uganda não se arrepende após a morte de David Kato ”, Guardian, 27 de Janeiro de
http://www.guardian.co.uk/world/2011/jan/27/ uganda-paper -david- kato-death, acessado em 12 de Março de 2011.

Vídeo de Scott Mills para a BBC, “O pior lugar para ser gay”, http://www.bbc.
Co.uk/iplayer/episode/b00yrt1c/The_Worlds_Worst_Place_to_Be_Gay/, acessado em 12 de Março de 2011.

Keguro Macharia, ‘Estratégias Global para o activismo LGBTI’, www.gaykenya. Com / news / 3769.html, acessado em 12 de
Março de 2011.

E. Rukundo (2011) ‘Nairobi: Ativista gay aos olhos de seus amigos e inimigos’, Daily Nation, 6 de Fevereiro,
http://www.nation.co.ke/Features/DN2/ Gay% 20ativist% 20in% 20the % 20eyes% 20of% 20his% 20friends% 20and% 20 foes%
20 / - / 957860/1102396 / - / item / 0 / - / t11skl / - / index.html, acessado em 12 de Março de 2011. Um artigo semelhante foi
publicado no Uganda Monitor diário no mesmo dia.

Juiz ordena que jornal ugandense pare de publicar listas gays ‘, CNN, http: //
edition.cnn.com/2010/WORLD/africa/11/02/uganda.gay.list/?hpt=T2.

É difícil dizer o que exatamente aconteceu. Os detalhes sobre a dita “morte” do projectos de lei anti- homossexualidade de
Uganda e se a classe política de Uganda seguirá um projectos semelhante na nova sessão do parlamento ainda permanecem
incompletos. Pink News (2011) ‘Confusão sobre o projectos de lei anti-homossexualidade do Uganda’, 5 de Maio,
http://www.pinknews.com/2011/05/11/ confusion-over-ugandas-anti-homosexuality-bill, acessado em 2 de Junho de
2011.

261
J. Mayamba (2011) ‘Assassino de activistas gays condenado a 30 anos’, Daily Monitor, 10 de Novembro,
http://www.monitor.co.ug/News/ National / - / 688334/1270664 / - / bgvjh8z / - / index.html, acessado em 19 de Novembro de
2012. O David Kato Vision and Voice Award reconhece ‘um indivíduo que demonstra coragem e liderança excepcional na defesa
dos direitos sexuais das pessoas LGBTI’. O destinatário inaugural deste prémio foi o activista gay jamaicano Maurice
Tomlinson (http: // www. Visionandvoiceaward.com, acessado em 20 de Fevereiro de 2012.

Sokari Ekine (2012) ‘Uganda aprovará uma lei anti-homossexualidade este ano, diz o palestrante’, Guardian, 26 de Novembro,
http://www.guardian. Co.uk/world/2012/nov/26/uganda-anti- homosexuality-bill, acessado em 16 de Dezembro de 2012.

(2012) ‘Ministro ugandense encerra a conferência sobre direitos dos gays’, Guardian, 15 de Fevereiro,
http://guardian.co.uk./2012/feb/15/ugandan-minister-gayrights- conference?newsfeed=true, acessado em 20 de Fevereiro

de 2012.

262
263
15 – A HISTÓRIA ÚNICA DA “HOMOFOBIA AFRICANA” É PERIGOSA
PARA O ACTIVISMO LGBTI – Sibongile Ndashe

À medida que o crescente movimento pelos direitos de lésbicas, gays, transexuais

e intersexuais (LGBTI) cresce, pleiteando reivindicações em espaços públicos e

se tornando mais visível, a próxima fase exige que seja dada atenção à mensagem
que ajuda a impulsionar o movimento. Deixa de ser suficiente para contar o

número de declarações e palavras de apoio que o movimento recebe. O ponto de

partida sempre foi que os direitos LGBTI são direitos humanos e, com sorte, esse
também é o ponto final. Essa fase actual do activismo deve responder ao contexto

social, explicar o que o movimento queer pede, e identificar aliados e refinar

actividades e estratégias para responder aos desafios e oportunidades


enfrentados pelo movimento. O que antes não era claro precisa ser esclarecido e

estratégias inquestionáveis precisam ser questionadas. A construção do

movimento continua a ser parte integrante desse processo. Concentrar-me-ei


num aspecto da construção de movimentos: as oportunidades e os desafios de

construir e manter relacionamentos com outros movimentos, locais, regionais e


internacionais.

Diferentes países do continente estão em diferentes fases do activismo. Em


alguns países, não há movimentos e a cultura “não pergunte, não conte” continua

a ser a única forma de activismo: as pessoas sabem que existem pessoas LGBTI

264
nas comunidades, mas não há discussão a ser feita. Existem países em que houve

movimentos que permaneceram estácticos, pois não foi possível expandir os

círculos do activismo. Existem países em que o movimento foi capaz de se

entrincheirar em sociedade civil. O ditado ‘África é um continente, não um país’

é tornado mais importante, onde uma única história continua permeando o

activismo LGBTI no continente, ou seja, que o activismo não existe e que existe

apenas homofobia. Outros comentaristas criticaram eloquentemente a única

história contada sobre o relacionamento da sociedade civil africana com o

movimento LGBTI no continente. 1

A história única é realmente uma história perigosa que facilita a imposição de

soluções prontas no mar do “nada”; torna mais fácil minar os processos locais

porque ‘eles não acontecem’; e torna mais fácil absorver indivíduos e chamá-los
de movimentos locais, a fim de ganhar uma posição em um país. Isso dá às vozes

não africanas a cobertura para perseguir suas próprias agendas e reforça

elementos homofóbicos na sociedade quando argumentam que a

homossexualidade faz parte de uma agenda ocidental. Mesmo com as melhores

intenções, as intervenções estrangeiras muitas vezes não compreendem a

dinâmica e a política local e podem causar muito mais mal do que bem. Mais

fundamentalmente, a tentativa de liderança estrangeira da luta do movimento

em África subordina os interesses da comunidade local aos de actores externos,


reforçando as divisões raciais entrincheiradas dentro do movimento global e

afogando vozes progressivas e desenvolvimentos positivos.

265
A busca por homofóbicos, num contexto em que se sabe que a homofobia existe,

não faz sentido, a menos que, é claro, o único ponto seja reunir evidências de

homofobia e nomear e envergonhar aqueles que foram “expulsos” como

homofóbicos. Esse fascínio pela rejeição de homofóbicos permitiu silenciar vozes

progressivas. Também nega a oportunidade de ser ouvida àqueles que mudaram,

voluntariamente ou não, estão indecisos, começando a se manifestar ou a dizer

coisas que são progressivas.

Por exemplo, ao falar sobre como a homofobia é tolerada pelo estado na África

do Sul, é frequentemente citado um incidente sobre o actual presidente Jacob


Zuma. Ele falava com líderes tradicionais de maneiras que se qualificam como

incitamento à violência, afirmando que, quando ele era mais jovem, nenhum gay

teria ficado na sua frente.2 Zuma foi condenado de maneira correta e directa por
essas declarações. Na época, ele havia sido demitido como vice-presidente do

país, mas ainda era vice-presidente do ANC. Poucos dias depois que essa

declaração se tornou notícia nacional e internacional, Zuma emitiu um pedido de

desculpas não qualificado.3 Nas narrativas subsequentes da história, o pedido de

desculpas continua a ser apagado, pois é inconveniente para a narrativa única de

como os líderes políticos africanos não são reformados. Em outro incidente,

quando Zuma foi forçado a dizer algo sobre a condenação e sentença de Tiwonge

e Steve no Malawi pela Aliança Democrática, ele afirmou erroneamente que a


África do Sul já havia condenado o incidente.4 Nenhuma informação sobre a

alegada declaração de condenação da convicção poderia ser encontrada. No

entanto, o efeito foi que o presidente da África do Sul condenou a condenação no

266
parlamento sul-africano, o que é um passo positivo para o país tomar. Apesar das

contradições inerentes à “política” das relações internacionais da África do Sul

de não comentar os assuntos internos de outros países da região, a condenação,

que foi claramente emitida pela primeira vez no parlamento quando Zuma foi

pressionado, foi tornada imaterial por uma única história.

Da mesma forma, quando o primeiro-ministro do Zimbabué disse que havia

mulheres suficientes para homens no Zimbabué e ele não conseguia entender

por que os homens queriam respirar nos ouvidos um do outro,5 ele foi

vigorosamente condenado por essa declaração. Quando seu partido, o MDC,


rapidamente se moveu para emitir uma declaração, distanciando a organização

da declaração6, a única história não permitiria que a retração permanecesse. Isso

apesar do facto de que, sem dúvida, o maior partido do país adotou efectivamente
uma postura de defesa dos direitos LGBTI.

Da mesma forma, o primeiro-ministro queniano, Raila Odinga, referiu-se

erroneamente à constituição queniana como proibindo relações entre pessoas do

mesmo sexo.7 A constituição queniana não fala sobre esse assunto. Dias depois

dessa declaração, depois que ele foi condenado, ele alegou que havia sido mal-

interpretado. Embora ele não tenha se retirado da declaração, deixou claro que

não queria mais ficar vinculado a ela, pelo menos em público.

Nos três casos, o perigo representado pelas declarações iniciais não pode ser

exagerado. As declarações eram odiosas e desonestas. Todos conversavam com


grupos constituintes que julgavam mais favoráveis à homofobia. Nada no passado

267
deles poderia ter preparado seus defensores progressistas para as declarações.

Não se pode dizer que Zuma estava a testar águas; foi isso que fez sua primeira

declaração mais chocante. Tsvangirai e Odinga foram retratados na media como

progressivos defensores da democracia e dos direitos humanos, e suas

declarações foram chocantes porque pareciam ser uma negação da

aplicabilidade dos direitos humanos à comunidade LGBTI. No entanto, as

retrações e correções mostram claramente que existem forças sociais dentro e

fora desses três países que têm o poder de controlar, mitigar e negar a homofobia

de políticos individuais. Quem pode se beneficiar quando as narrativas apagam

as consequências e as retrações que ocorreram após as declarações?

Enquanto essas e outras lideranças políticas permaneceram firmemente no

centro das atenções, vozes progressivas e outros desenvolvimentos positivos


continuam sendo apagados. Em Uganda, o líder da oposição e candidato a

presidente, Kizza Besigye, declarou publicamente sua oposição ao projecto de lei

anti-homossexualidade e defendeu a descriminalização da homossexualidade.⁸

Ele baseou sua objeção principalmente no direito à privacidade, como

significando o estado não tem interesse no que as pessoas fazem a portas

fechadas, embora ele também tenha argumentado que prender e processar

membros da comunidade LGBTI era um desperdício de fundos públicos.

Da mesma forma, no Malawi, semanas após a legislatura ter votado a inclusão da

conduta lésbica entre pessoas do mesmo sexo sob as disposições do código penal,

que proíbe relações entre pessoas do mesmo sexo, o ministro da Justiça e

268
Assuntos Constitucionais, Dr. George Chaponda, afirmou que o Malawi não

mudaria as leis para descriminalizar a homossexualidade depois que a Alemanha

cortou sua ajuda financeira ao país em resposta ao seu fracasso9. Ele também

argumentou, no entanto, que, embora a homossexualidade permanecesse contra

a lei, o Malawi tinha leis de privacidade que protegiam as pessoas da intrusão da

Estado e disse que os homossexuais geralmente não seriam processados. Embora

essa não seja a solução perfeita, o uso de leis de privacidade pode ser a melhor

estratégia de curto prazo no Malawi para proteger os direitos das pessoas LGBTI.

E, no entanto, essas afirmações são ignoradas pela única narrativa da história.

A partir desses exemplos, pode-se ver que a homofobia permanece forte no

continente – disso não há dúvida -, mas também que há grupos de pressão nas

sociedades africanas, nos partidos políticos e nos parlamentos nacionais, bem


como nos governos, que são preparados para assumir a homofobia e pressionar

os governos a respeitar os direitos das pessoas LGBTI.

A África deve-se mobilizar rapidamente. Já!

Em outras partes do mundo, houve processos variados, complexos e

prolongados, visando à realização dos direitos das pessoas LGBTI. Embora não

exista uma fórmula ou roteiro que possa ser cortado, colado e considerado útil

para todos, algumas das estratégias sugeridas para alguns países parecem se

269
opor a um desenvolvimento gradual e incremental do movimento. As estratégias

propostas para o movimento africano variaram, mas o que elas têm em comum é

a ideia de que a construção de movimentos é excedente às exigências e que existe

uma maneira rápida de remediar a indignidade, estigma, violência e ódio contra

as pessoas LGBTI. É até sugerido que a resposta sobre como lidar com as várias

formas de violação dos direitos das pessoas LGBTI pode ser encontrada em salas

de tribunal e que a solução pode ser tão simples quanto encontrar um advogado,

um cliente, redigir um breve e levar os tribunais à justiça. Declarar

inconstitucionais as leis que criminalizam a intimidade entre pessoas do mesmo

sexo. Um movimento crescente e cauteloso está sendo cada vez mais solicitado
para ser mais assertivo e agressivo na reivindicação de direitos. Aqueles que

argumentam o contrário são acusados de se contentar com o status quo ou de

simples covardia. Faz parte da história única propor uma solução única para

‘África’, independentemente dos níveis de preparação nos países para realizar

acções e negar os contextos específicos de cada país. O potencial impacto

negativo dessa estratégia em países que não estão prontos é enorme. É bem

possível que decisões legais sejam tomadas nos níveis nacional e regional que a

criminalização da homossexualidade seja constitucional e esteja em

conformidade com o Estatuto Africano. Isso pode ter um efeito reforçador na

criminalização em todo o continente e prejudicar os países onde as estratégias

locais estão tendo algum sucesso na mudança de atitudes. Isso é um acréscimo


ao efeito potencialmente catastrófico sobre os indivíduos escolhidos para

apresentar casos nesses países.

270
Recebam sanções!

Foi apenas uma questão de tempo até os países africanos começarem a se opor a

serem intimidados pelos países ocidentais para mudar sua posição sobre a

homossexualidade. Politicamente, com a homofobia, a narrativa dominante no

continente, essa é uma venda fácil para os políticos.

A moeda chamada “retenção de ajuda financeira” foi claramente ultrapassada. A

retenção da ajuda em nome de uma minoria é uma espada de dois gumes

perigosa, pois muitas vezes leva a outros sofrimentos de outros grupos

desfavorecidos, os beneficiários da ajuda, e pode levar a um isolamento ainda


maior da minoria.

Quando o Malawi rejeitou a ajuda financeira dos alemães devido à sua condição
de descriminalizar a homossexualidade, o perdedor foi, é claro, as múltiplas

causas que a ajuda financeira apoiou. Politicamente, o perdedor era a Alemanha

por ser um valentão e não se importar com os direitos humanos, mas por insistir

em “impor valores ocidentais”. Era fácil para o Malawi manter a cabeça erguida

e dizer: ‘Esse dinheiro é uma ameaça à nossa soberania e mina nossa autonomia

política, os valores sociais e culturais que possuímos’. Independentemente de

como essa mudança ocorreu, como isso ajudar os movimentos LGBTI locais a se

entrincheirarem nos movimentos da sociedade civil local que precisam de

271
financiamento de doadores para realizar uma série de outras actividades e

prestar serviços a outras causas? Como essa acção permite que os movimentos

locais continuem a dialogar com seus governos quando ‘seus problemas’

custaram tanto ao país em ajuda externa? A história única desconsidera os

processos e o contexto local e finge que o movimento LGBTI é insular e pode

funcionar sem laços locais.

Amigos sinceros

Cada vez mais, há uma visão de que a luta pelos "direitos dos gays" é mais do que

apenas uma luta pelos direitos humanos. O envolvimento ocidental é facilmente


denunciado como outra forma de colonialismo e algo que deveria ser rejeitado

por uma questão de princípio. Existem várias maneiras pelas quais o sentimento

é expresso, mas há uma visão de que o Ocidente se preocupa mais com os direitos

dos homossexuais do que com outros direitos humanos, da mesma maneira que

sempre pareceu se importar com os direitos humanos das pessoas cujos países

têm petróleo. Em Janeiro de 2011, quando David Kato10 foi assassinado,

organizações e governos internacionais estavam se cotovelando no pódio para

denunciar o assassinato. A resposta das autoridades ugandesas foi de

imediatamente negar que a homofobia tivesse algum papel a desempenhar no

assassinato de Kato. Outros perguntaram onde estava essa demonstração de

indignação da comunidade internacional quando as pessoas foram massacradas

272
nas ruas. Se eram as minorias com as quais o Ocidente se importava, onde eles

estavam quando o povo Batwa continuou sendo caçado no Congo, o povo Basarwa

enfrentou violações dos direitos humanos em Botsuana e os albinos em algumas

partes da África Oriental foram assassinados? Onde estava o apoio e a atenção da

media quando tudo isso aconteceu?

A grande distinção entre discriminação contra minorias sexuais e a

discriminação a que outros grupos estão sujeitos é que a lei serve para autorizar,

normalizar e legitimar a discriminação criminalizando a conduta sexual de

minorias sexuais. Em quase todos os casos, os governos terão o prazer de


respeitar as leis e justificar sua existência. As outras formas de discriminação

geralmente são questões que os próprios governos sentem que não têm solução

e adoptaram medidas para proibir a discriminação nessa base. Se os governos


forem os autores das violações, eles ainda não os admitirão facilmente. No

máximo, os governos geralmente buscam absolver o mecanismo estatal e

demonstrar como estão cumprindo os padrões internacionais de direitos

humanos, iniciando investigações para processar aqueles que estavam

envolvidos. Enquanto o envolvimento ocidental for visto como um instigador ou

único defensor do movimento LGBTI, o crescimento do movimento e seu

entrincheiramento na sociedade civil permanecerão indescritíveis e a autonomia

dos movimentos permanecerá em questão.

Da mesma forma, campanhas bem-intencionadas da Internet, destinadas a

promover o activismo LGBTI, podem alcançar o oposto. Em Dezembro de 2010,

273
os Codirectores da Aids-Free World embarcaram em uma campanha de cartas

para se manifestar contra a homofobia. Inicialmente, parecia que eles estavam

escrevendo para instituições. Eles escreveram para a União Africana, a

Commonwealth e as Nações Unidas. Houve correspondência entre Paula

Donovan e Bernice Sam, Diretora Regional de Mulheres em Direito e

Desenvolvimento na África (WILDAF).11 Os factos, amplamente retirados da

correspondência entre os dois, referem-se a um comentário de Bernice Sam

durante o Processo de revisão da constituição ganense. Dizem que Sam disse:

‘Acreditamos que é hora de nossa constituição definir claramente o casamento,

porque não podemos esconder o facto de que esses tipos de união podem nos
alcançar no futuro. É a hora de dizer que não queremos casamentos entre

pessoas do mesmo sexo.

Há muitas coisas preocupantes na correspondência, incluindo o tom, o idioma e

o conteúdo. Concentrar-me-ei em dois, o contexto e a questão. Gana não tem um

grande movimento LGBTI; o Centro de Educação Popular e Direitos Humanos

(Gana) (CEPERGH) e outros estão trabalhando para a construção desse

movimento. A questão da descriminalização não foi debatida publicamente.

Durante o ano passado, houve marchas organizadas por organizações cristãs e

muçulmanas contra a homossexualidade. Algumas figuras públicas, como a

advogada de direitos humanos Nana Oyeh Lithur, estão dispostas a associar-se


publicamente à situação difícil das relações entre pessoas do mesmo sexo.

Desnecessário dizer que, nesta fase, os casamentos entre pessoas do mesmo

sexo, embora necessários para a plena igualdade, ainda não estão na agenda.

274
Bernice Sam é uma respeitada defensora dos direitos das mulheres, não apenas

em Gana, mas também na África Ocidental e em outras partes do continente. O

nascente movimento LGBTI está buscando expandir círculos de activismo com

outras organizações tradicionais de direitos humanos. Em muitas partes do

mundo, o movimento de mulheres tem sido um defensor tradicional e continua

sendo um aliado do movimento LGBTI em muitas partes do continente.

Como a flagelação pública de Bernice Sam e o desejo de denunciar a homofobia

são úteis para alguém? Qual activista pediu casamento homossexual no Gana?

Quem, em Gana, estava preparado para entrar em um debate sobre casamentos


entre pessoas do mesmo sexo? Os casamentos homossexuais continuam a ser

controversos em todo o mundo. Um grande refrão de muitos oponentes à

descriminalização é: ‘Se descriminalizarmos eles vão querer se casar e adoptar


filhos’. Os advogados e activistas disseram de forma consistente: ‘Não é disso que

estamos falando agora. Vamos atravessar essa ponte quando chegarmos a ela. ‘A

campanha de amor igual do Reino Unido e a batalha quase terminada dos EUA

em casamentos do mesmo sexo não podem ser transplantadas para o Gana. É

uma intervenção prematura e não contextual. Isso obriga aos activistas locais a

responderem e entrar em batalhas que não são de sua autoria e a colocar

questões na agenda onde não há capacidade de lidar com eles.

Conclusão

275
A situação em África em relação aos direitos das pessoas LGBTI é diversa e

complicada pela política nacional e local, pela história e pelas normas sociais.

Embora a homofobia seja particularmente forte na parte de África falante de

língua inglesa, em parte como consequência das leis coloniais, também existe na

África de língua francesa. Algumas organizações da sociedade civil e partidos

políticos da oposição começaram a apoiar o movimento, enquanto outros

continuam populistas sobre o assunto. Os países onde o governo se sente menos

legítimo são frequentemente os mais fortes em sua retórica homofóbica,

tornando as críticas externas potencialmente contraproducentes. Cada país

precisará desenvolver sua própria estratégia para realizar os direitos das pessoas
LGBTI, e a história única milita contra isso, criando a impressão de que há uma

resposta simples, geralmente legalista, ao que são claramente violações dos

direitos humanos.

Será importante que os movimentos locais interajam com aliados regionais e

internacionais em sua luta pelos direitos LGBTI. Colaborações locais, regionais e

internacionais têm sido capazes de ajudar os movimentos a desenvolver

estratégias eficazes. No entanto, será crucial que os movimentos locais

mantenham a propriedade de suas lutas e que os movimentos regionais e

internacionais sirvam para complementar e ajudar. Nesse sentido, é importante

fazer perguntas sobre relacionamentos com organizações da sociedade civil não


nacionais. Essas relações são sobre iniciar acções ou apoiar movimentos locais?

O que as ONGs internacionais podem fazer em países onde não há movimentos

ativos da sociedade civil? O que acontece se os processos não forem ancorados,

276
pertencentes ou suportados por grupos locais? Como os movimentos LGBTI

locais e internacionais interagem com as organizações da sociedade civil locais

hostis / neutras? Como os políticos locais progressistas ou neutros são usados

para desenvolver mudanças positivas? A narrativa única do homofóbico africano

não permite que essas perguntas sejam feitas e respondidas com honestidade nos

diversos países do continente e, portanto, actua como uma barreira ao

desenvolvimento de estratégias nacionais eficazes.

Agradecimentos

Um agradecimento especial aos meus amigos Solomon Sacco, que forneceram


feedback e insights críticos e ajudaram imensamente a esclarecer e moldar

algumas das ideias, e a Joel Nana, que está sempre disponível no outro lado da

linha para discutir, compartilhar factos e ideias, forneça informações e desafie

algumas ideias. Todos os erros são inteiramente meus.

Notas

Keguro Macharia (2010) ‘Homofobia na África não é uma história única’, Guardian, 26 de Maio de
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/ mai / 26 / homophobia-africa-not-single- matéria, acessada em 18 de
Junho de 2011

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of-homosexuals-1.295239 , acessado em 18 de Junho de 2011.

277
News24 (2006) ‘Zuma sorry for’ gay ‘comments’ ‘, 28 de Setembro, http:
// www.news24.com/SouthAfrica/Archives/ZumaFiles/Zuma-sorry-for-gayremarks-20060928, acessado em 18 de Junho
de 2011; BBC (2006) ‘Zuma pede desculpas por comentários sobre gays’, 28 de Setembro,
http://news.bbc.co.uk/2/hi/5389378.stm, acessado em 18 de Junho de 2011.

Brendan Boyle (2010) ‘Zuma slam Malawi Times Live, 27 de Maio,


http://www.timeslive.co.za/local/article474052.ece/Zumaslams-Malawi-imprisonment-of-gays, acessado em 18 de Junho de
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Zimbabwe (2010) ‘Mugabe, Tsvangirai slam homosexuals’, 26 de Março de http://www.newzimbabwe.com/news-2109-


Mugabe,+Tsvangirai+ slam + homosexuals / news.aspx, acessado em 18 de Junho de 2011.

Sithandekile Mhlanga (2010) ‘Zimbábue Comentários do primeiro-ministro Tsvangirai sobre a opinião pessoal dos direitos
dos gays – porta-voz, Voice of America (VOA), 26 de Março, http://www.voanews.com/zimbabwe/news/ Zimbabwe-
Tsvangirai-Disse-para-concordar-com- Mugabe -on-Gay-Rights26Mar10-89284972.html, acessado em 18 de Junho de 2011;
Blessing- Miles Tendi (2010) ‘African myths about homosexuality’, Guardian, 23 de Março,
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/mar/23/homophobiaafrica-gay-rights, acessado em 18 de Junho de 2011;
Zimbabwe Reporter (2010) ‘MDC no controle de danos sobre comentários gays de PM’, 26 de Março, http: //
zimbabwereporter.com/politics/816.html, acessado em 18 de Junho de 2011.

Bernard Momanyi (2010) ‘Prisão de gays, Kenyan PM orders ‘, Capital News, 28 de Novembro,
http://www.capitalfm.co.ke/news/Kenyanews/Arrest-gays,Kenyan-PM-orders-10670.html, acessado em 18 de Junho de 2011.

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em 18 de Junho de 2011

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acessado em 18 de Junho de 2011.

278
279
16 – CONTANDO HISTÓRIAS – FICÇÃO – Happy Mwende Kinyili

Ébano brilhante. Eu sempre penso em Ébano brilhante quando olho para o rosto

dele. Características finas e esbeltas formam esse jovem rapaz. A elegância

ressalta todos os seus movimentos. Eu o observo falar enquanto as palavras me

escapam e, em vez disso, leio seu rosto para ouvir seu coração se partir. Ele se

recolhe e procura desesperadamente por alguma resolução, alguma maneira de

se confortar quando seu coração se quebra com ódio e amargura. Eu choro.

Seus olhos ansiosos olham profundamente nos meus enquanto ela escuta minhas

palavras. Ela quer que sua audição mude o mundo – seu mundo. Ela se move

comigo, balança ao ritmo das minhas palavras – cada staccato é um selo de

esperança. O sol é envergonhado por seu esplendor, a esperança respira nela. Ela
corre para o mundo, pronta para contar uma história diferente. O mundo a

expulsa – sua interpretação é falsa, a palavra é clara, ela está errada e ela é

pecado. A luz é brutalmente apagada. Ela quebra. E quebra, de novo. Seus olhos
tinham buracos de ódio em seu ser. Eu choro.

Entro na igreja no domingo de manhã. Jovens, progressistas são reunidos aos


milhares, cantando canções de louvor e adoração. Eles buscam por divindade,

deísmo, santidade – eles buscam por Deus. Seu fogo queima dentro de mim …

280
queimo dentro de mim com seu fogo. Levante os olhos e veja a glória do Senhor

na terra, levante-se! Levantando mãos santas em adoração. Curve-se e adore-o,

entre consumindo fogo, doce perfume este é um terreno sagrado. Alguns

ajoelhados, outros prostrados diante de seu Deus.

O pastor caminha para o púlpito. O sermão começa. Eu assisto rostos na

congregação. A maioria concorda com a cabeça, ansiosamente em consentimento

com o pastor. Aleluias e louvores a Deus são ouvidos na congregação. No entanto,

no meio deles, ignorados e condenados rostos caem e uma lágrima quebra o

porão tênue e desliza por seus rostos. As palavras do pastor, embora tenham a
intenção de libertar, prendem muitas almas. Eles olham de entre as barras da

prisão para a opção apresentada – Você é um pecador, mas como somos todos

pecadores, não podemos condená-lo. O que fazemos é orar por sua redenção.
Deixe Deus redimir sua alma. Eu choro.

Encontro o jovem Ébano brilhante, parado na praia, olhando para a água. Nós

falamos. Ele me fala de seu amor por homens. Como a cada dia ele acorda e reza

para vencer esse amor. Ele jejua a cada dois meses, acreditando que este será o

jejum pelo qual seu amor por homens será vencido. Ele ora por redenção. Por

que Deus não ouve seu pedido? Quando Deus lhe trará cura e redenção para se

afastar de sua cruz? Quando ele desejará uma mulher como ele deseja um
homem?

Eu conto-lhe a minha história.

281
Eu andei nesta terra por 33 anos ímpares. Na minha vida, procurei o bem na

humanidade e muitas vezes encontrei o bem na humanidade. Busquei o divino

na humanidade e isso também encontrei no meu povo. Infelizmente, enquanto

andava pela terra, ficou claro para mim que a busca pela divindade nos céus

afastara meu povo do divino que buscavam. E assim, eu segui um caminho

diferente e ensinei quem quisesse ouvir. Os líderes na busca pela divindade

declararam que eu era Belzebu1 porque meus caminhos eram diferentes dos

deles. Os líderes religiosos de minha época me rejeitavam porque eu me

banqueteava com cobradores de impostos e damas da noite, e eu tinha mulheres

activas no meu ministério na Terra. Aqueles a quem os líderes chamavam de mais


baixos em seu tempo, eu amei e segurei perto do meu coração. Lembro-me da

vez em que jantei na casa do fariseu Simon, e uma mulher que foi condenada

como pecadora veio até mim e lavou meus pés com suas lágrimas e óleo precioso

e secou meus pés com seus cabelos. Simon, em sua contínua condenação à

mulher, pensou que eu, como santo professor, não deveria deixá-la tocar meus

pés. Foi triste ver que Simon não conseguia entender o amor que ela derramou

para mim e o amor que eu, por sua vez, derramei para ela. Simão não viu o divino

nela.2

Da mesma forma, ao observar o mundo hoje, vejo que há aqueles que receberam

status e são considerados dignos. Eles olham para você, Ébano brilhante, e veem
seu amor por outros homens como aquilo que não é digno. Eles chamam seu

amor de pecado e declaram que por causa do seu amor, eles não podem te amar

na totalidade. Eles declaram que você é menos importante, menos valioso, menos

282
digno de ser meu filho. No entanto, ao ensinar em suas mega igrejas e púlpitos

poderosos, eles esquecem o que eu ensinei quando andei nesta terra. Aqueles que

amavam indiscriminadamente, eu chamaria ao meu lado. Aqueles que viram o

divino em toda a humanidade, eu chamaria ao meu lado. Eles continuam

esquecendo meus ensinamentos: ‘Em verdade, eu lhe digo, o mesmo que fizeste

com um desses que são membros da minha família, fizeste comigo’. 3

A acusação era simples: “Ame o seu próximo como a si mesmo” .4 No entanto, os

professores de hoje declaram que é por esse mesmo amor que eles o evitam e o

declaram pecador. Eles afirmam que não podem amar você sem gritar e condenar
o ‘pecado’ que você vive, o ‘pecado’ de amar outro homem. No entanto, meu

discípulo Paulo ensinou-lhes amor e não deixou espaço para ambiguidade. Paulo

ensinou o amor como paciente e gentil, o amor que não inveja, se vangloria e não
é arrogante. O amor é aquilo que não insiste no seu próprio caminho. Não se

alegra em agir mal, mas se alegra em verdade. O amor suporta todas as coisas;

acredita, espera e persevera em todas as coisas.5 Apesar dessas palavras, os

professores de hoje são gongos barulhentos e címbalos estridentes – pois falam

sem amor.6

Ébano brilhante olhou para mim quando concluí minha história. Sua descrença,

explicou ele, foi porque, embora eu tivesse mudado o foco para o amor, ainda
permaneci em silêncio sobre os ensinamentos da Bíblia usados para condenar

seu amor por outros homens. Apesar da mensagem de amor que compartilhei,

essa mensagem não silenciou esses ensinamentos. Deus não considerou que
essas mensagens matariam e destruiriam pessoas como ele ao serem incluídas

283
nos ensinamentos de Deus? O Ébano brilhante virou-se e disse: 'O amor de que

você fala é retido de mim e dos meus'.

O meu coração partiu-se. O ódio tinha chovido sobre o Ébano Brilhante e tinha

afastado a possibilidade de ele aceitar o amor divino. Para Shining ebony,

continuei a minha história.

Minha história, a história que você lê na Bíblia, é sobre amor divino. Pessoas,

como você, Ébano brilhante, falando de seu momento histórico e da realidade

cultural, anotaram sua experiência divina, e os ensinamentos foram então


compartilhados com milhões de pessoas no tempo e no espaço. Escreveram

sobre guerra e adoração, nos falam sobre o nascimento de seus entes queridos e

sua morte inevitável.

Tentam entender o mundo e escrevem sobre sua busca pela certeza. No entanto,

o que une suas histórias é sua experiência com o amor divino – o dar e receber

do amor divino.

Em nosso momento histórico, lutamos para entender essas histórias e dar-lhes

uma importância apropriada nas nossas vidas diárias. Descobrimos que não

podemos viver as histórias exatamente como eles viviam, e os exemplos


oferecidos conflitam entre si ou com nosso senso inato de retidão. Infelizmente,

muitas vezes nos voltamos para esses conflitos para abater aqueles que foram

mantidos ao longo da história e avançar uma agenda que não carrega amor
divino. Em toda a história e em diferentes lugares do mundo, mulheres, negros,

pessoas economicamente oprimidas, homossexuais – qualquer pessoa cuja

284
experiência de amor divino não se encaixasse com aqueles que detinham o poder

naquele momento da história – eram condenados e declarados pecadores e

membros menos valiosos da sociedade. Os ensinamentos da Bíblia foram usados

e continuam a ser usados para condená-los e negar-lhes uma experiência de

amor divino sancionado.

Ébano brilhante, minha mensagem para você não é para explicar por que os

ensinamentos da Bíblia foram usados à medida que continuam sendo usados –

para negar aos outros a experiência do amor divino. Antes, ensino sobre amor –

o amor que levou minha caminhada nesta terra a encontrar o divino em toda a
humanidade e a compartilhar minha experiência de divindade com toda a

humanidade. Minha vida era oferecer esperança àqueles que a sociedade

declarou sem esperança e ensinar amor divino por meio de minhas acções. Pois
dei a minha vida por toda a humanidade, por causa do meu amor por toda a

humanidade, e é esse amor que continuo compartilhando com todas as pessoas,

para que todas as pessoas possam amar como eu as amei.

Notas

1 Mateus 12:24.

2 Lucas 7:36–50.

Mateus 25:40.

Mateus 22:39.

1Coríntios 13:4–7.

285
1Corintios 13:1.

286
287
17 – FACES E FASES – Zanele Muholi

Decidi capturar as imagens positivas da minha comunidade, a fim de contribuir

para uma história mais democrática e representativa de lésbicas, gays,

bissexuais, trans e intersexuais (LGBTI) na África do Sul. Iniciei uma jornada de


activismo visual para garantir que haja visibilidade LGBTI negra, para mostrar

nossa existência e resistência em nossa sociedade democrática, para apresentar

uma imagem positiva de (especialmente) lésbicas negras e pessoas trans. A


primeira fase de ‘Faces and Fases’ começou em 2006 e a série, que está em

andamento, está agora em sua terceira fase.

Além da definição do dicionário sobre o que é uma “face” (a frente da cabeça, da

testa ao queixo), a face também expressa a pessoa. Para mim, ‘Faces’ significa eu,
fotógrafa e trabalhadora comunitária, estando cara-a-cara com muitas lésbicas

e pessoas trans com quem interagi de diferentes municípios de Gauteng, como

Alexandra, Soweto, Vosloorus, Katlehong, Kagiso.

As pessoas nesta série de fotografias ocupam posições diferentes e

desempenham diversos papéis na comunidade negra LGBTI: jogadoras de

futebol, atrizes, académicas, activistas culturais, advogadas, dançarinas,

cineastas, activistas de direitos humanos / género. No entanto, cada vez que

somos representadas por pessoas de fora, somos apenas vistas como vítimas de

estupro e homofobia. Nossas vidas são sempre sensacionalistas, raramente

288
compreendidas. Essa é a razão das ‘Fases’: nossas vidas não são apenas o que

fazem as manchetes dos jornais toda vez que uma de nós é atacada. Passamos por

muitos estágios, expressamos muitas identidades que se desdobram em paralelo

em nossa existência.

Do ponto de vista de quem está dentro, esse projecto pretende ser uma

comemoração e uma celebração da vida de lésbicas e trans negras que conheci

em minhas viagens pelos municípios. Vidas e narrativas são contadas com dor e

alegria, pois algumas dessas as mulheres passavam por dificuldades nas suas
vidas. Suas histórias me causaram noites sem dormir, pois eu não sabia como

lidar com as necessidades urgentes que me contaram. Muitas delas foram

violadas; Eu não queria que a câmera fosse mais uma violação; antes, eu queria
estabelecer relacionamentos com elas com base na compreensão mútua do que

significa ser mulher, lésbica e negra na África do Sul hoje.

Eu chamo esse método de nascimento do activismo visual: decidi usá-lo para

marcar nossa resistência e existência como lésbicas negras e pessoas de género


em nosso país, porque é importante colocar uma cara em cada questão.

‘Faces e Fases: II – Siyafana’, que significa ‘somos iguais’ – considera as


semelhanças e diferenças dentro de nossa raça ‘negra’. Nosso criador pode ter

formado cada uma de nós de maneira diferente, mas aos seus olhos somos da

mesma espécie. No entanto, existem aparentes diferenças e nuances que nos


diferenciam de nossos vizinhos. É essa negociação de igualdade e diferença que

289
me levou a continuar com o meu projecto ‘Faces and Fases’, onde tirei fotografias

de pessoas diferentes em vários países. Isso foi

Asanda Fanti, Estocolmo, Suécia, 2011 Skye Chirape, Brighton, Reino

Unido, 2010

uma maneira de responder, por frustração, às contínuas violações, estupros e

assassinatos de mulheres (especialmente queers) na África por causa de nossas

sexualidades e etnias. Eu iniciei o projecto Siyafana no auge dos ataques

xenofóbicos e homofóbicos na África do Sul que levaram ao deslocamento em

massa de pessoas no meu país. Muitas morreram, mulheres foram estupradas,

até bebés pequenos se tornaram vítimas de crimes de ódio, independentemente

da constituição que estipula igualdade e democracia para todos. Longe de casa

na época, fui acolhida e acolhida por queers enquanto residia em Toronto,

290
Canadá (o que não acontece com todos). Não sei que tratamento meu falecido pai

do Malawi experimentou nas mãos do regime passado quando ele e seus

companheiros migraram para a África do Sul na década de 1950 em busca de

pastos mais verdes. No entanto, a realidade não era mais verde para esses

“outros”. Muitas vezes, ficavam desabrigados sem comida e emprego depois que

suas casas fossem queimadas.

Os destaques desta série são seres humanos bonitos, jovens e amadurecidos de

vários lugares, de Toronto a Londres, Joanesburgo e Cidade do Cabo. Não se pode


distinguir quem é de onde ou como cada pessoa se define.

‘TK’ Tekanyo, Gabarone, Botswana, 2010 Kasha N. Jacqueline, Toronto,

Canadá, 2009

291
Funeka Soldaat, Makhaza, Khayelitsha, Tlhalefo‘Zeal’Ntseane,Mafikeng, North

West, 2011

Cape Town, 2010

De mulheres para homens trans para o que quer que seja – as pessoas são

pessoas. Os seres humanos merecem ser tratados com amor e respeito, todos e

cada um de nós. Meu objectivo era capturar as complexidades subtis que

desafiam nossos preconceitos devido à ignorância e ao ódio. Embora falemos

idiomas diferentes, ao mesmo tempo existem pontos comuns em nossas

múltiplas identidades – negros / queer / mulheres etc.

As fotos aqui são de 'Faces e Fases: III', que foi lançado na Documenta 13 de 2012

em Kassel, Alemanha, e é esse facto que é o meu ponto de partida para a terceira

série. A pergunta que faço e gostaria que outros considerassem é: 'O que significa

292
ter uma exposição itinerante que foi exibida pela primeira vez na Documenta? A

Documenta é um espaço específico e altamente selectivo que se reúne a cada

cinco anos. O que significa exibir arte lésbica negra e queer num espaço tão

branco no auge dos crimes de ódio que ocorrem na África do Sul? Observe que

nenhum dos retratos está sorrindo. Agora, há uma intensidade, um penetração

de postura e de olhos. Há quase uma acusação

– Onde estás? O que tens feito? Olhas, mas está sempre em silêncio – nada além

de um olhar!

293
294
18 – REMOVIDX DUAS VEZES: INVISIBILIDADE AFRICANA NA TEORIA
QUEER OCIDENTAL – Douglas Clarke

A teoria queer ocidental se estabeleceu como líder no campo. Ou seja, a teoria

queer que sai da academia dos EUA e, em menor medida do Canadá, é o que

geralmente se pensa ser a teoria mais bem desenvolvida sobre o assunto de


desejo pelo mesmo sexo, homossexualidade e estilos de vida queer. Ela procura

abalar os fundamentos do que é comum aceite como sexualidade “normal” e

procura maneiras de criar aceitação, história e propriedade intelectual para


homossexuais de todas as idades, classes e origens (Fuss 1991, Seidman 1996,

Hawley 2001). No entanto, existe uma distinta falta de consideração pela cultura

africana que deseja o mesmo sexo. É como se a teoria queer ocidental tentasse
apagar a homossexualidade africana e centrada em Africa. Este ensaio procura

abordar esse duplo apagamento questionando a práctica e os motivos da teoria

queer ocidental e como ela se aplica ao que chamarei de ‘questão africana’. Para
uma teoria que busca interromper o poder e a norma cultural, a teoria queer

ocidental está firmemente enraizada nas noções históricas e populares do


Ocidente sobre o que é ser africano e afro- homossexual.

Uma observação sobre a linguagem: como discutirei a partir de um ponto de vista


teórico, irei referir-me à homossexualidade africana ou à afro-

homossexualidade como termos para cobrir a ampla extensão dos 54 países da

295
África. De maneira alguma minha linguagem pan-africanista procura

homogeneizar o povo ou a soberania dos países do continente. A amplitude dos

meus traços linguísticos serve apenas como contrapartida ao idioma e ao

conteúdo da actual e popular teoria queer ocidental, que frequentemente trata a

África como um país e não como um continente multidimensional. É uma

realidade do discurso teórico que o autor deve usar uma linguagem que cubra

uma ampla extensão de assuntos, mesmo que pareça prejudicar distinções e

subjetividades mais refinadas. Com esse pedido de desculpas e explicação em

mente, passo a definir mais dos meus termos na esperança de criar o exemplo

mais claro da literatura teórica que pode ser produzida neste momento.

Essa redação é uma crítica da teoria queer que sai do discurso académico

ocidental, que é, nos limites desta peça, para ser entendida como a escrita,
discurso e diálogo sobre cultura queer, homossexualidade, desejo do mesmo sexo

ou qualquer outra faceta da sexualidade não normativa sendo produzida em

instituições académicas nos EUA e no Canadá. Isso não desqualifica ou retifica a

teoria racista e “cega” de qualquer outro país. É usado apenas para definir os

termos que serão usados ao longo deste ensaio. Além disso, este ensaio tratará

de ‘africanidade’, um termo criado para demarcar seu assunto de afro-

americanos ou de norte-americanos ‘negros’. De nenhuma forma esse termo

significa encapsular uma essência ou natureza essencial de todx africanx.


Finalmente, este ensaio utilizará uma série de termos para lidar com a

homossexualidade e comportamento queer. Para ser honesto, acho que é

importante afirmar categoricamente que, embora a teoria queer ocidental tenha

296
repartido queerness em várias categorias (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,

intersexuais, etc.), seria difícil num ensaio desse tamanho explicar todas as

categorias toda vez que uma é usada. Por esse motivo, muitas vezes me referirei

à homossexualidade ou queer como um termo genérico destinado a representar

a sexualidade de todos aqueles que não se consideram parte da maioria popular

da heterossexualidade. Tendo estabelecido todos os meus termos, volto minha

atenção agora para algumas maneiras pelas quais a África já contribuiu para os

estudos queer como um campo.

Primeiro, deve-se afirmar que África deu ao mundo uma forma de teoria queer
que permanece em grande parte invisível ou “não dita”, como Epprecht (1998)

descreveu. Sem surpresa, a África tem uma longa história de homossexualidade

e relações queer. Muitos desses relacionamentos queer permaneceram calados,


pois violaram um acordo não tão secreto e não dito de silêncio entre africanx

“educados”. É transfobia, um medo não de relacionamentos entre pessoas do

mesmo sexo, mas da falta de discrição (Epprecht 2005: 253)

O que se pode ler nessa transfobia é uma tolerância à actividade homossexual,

embora não seja um respeito por ela (Epprecht 1998: 636). O que quero dizer com

tolerância é apenas isso, uma atitude permissiva que existe enquanto essas

actividades não se tornarem conhecimento público. Epprecht vai mais longe ao


dizer que, especialmente no Zimbabué, houve a atitude de fechar os olhos para

“actos homossexuais discretos, excêntricos ou” acidentais “, desde que

mantivessem a compensação e ficções sociais adequadas” (Epprecht 1998: 645).


Então, por que eu trago isso à tona? Certamente não estou defendo relações

297
homossexuais secretas ou tratamento ilícito daqueles a quem a sociedade

“acredita” que poderiam ser “gays”, mas o importante é reconhecer que a África

tem um modelo de teoria queer que é amplamente inexplorado no mundo

ocidental. Se o leitor cauteloso aceita Epprecht em sua palavra, podemos ver que

a África, muito antes do Ocidente, tinha uma política para tolerar a actividade

homossexual, desde que fosse mantida a portas fechadas. Não há dúvida que todo

mundo quer uma teoria que seja mais progressiva, permitindo que a

homossexualidade seja mais do que tolerada, mesmo em público, mas não se

pode negar que África dá ao Ocidente um bom ponto de partida para pular.

Permitir que as pessoas façam suas próprias escolhas sexuais não destrói a
sociedade nem a arruína, mas permite que avanços ocorram. A África, apesar de

todo o debate e apagamento que aconteceu, tem vários grupos fortes de

advocacia queer que surgiram desde a década de 1980, incluindo os concursos da

Rainha Jacaranda (rainhas negras) e GALZ (gays e lésbicas do Zimbábue). Tendo

esboçado brevemente alguns dos avanços que a África fez (socialmente e para a

teoria queer), posso continuar com o tópico principal em questão, como o

Ocidente tentou apagar e embasar queers africanx.

A sexualidade africana, como estudo, é um tópico difícil de definir; tem uma

longa história de especulação teórica e está repleta de muitas questões racistas.

Sexualidade africana foi objecto de pesquisa antropológica que buscou


determinar as prácticas sexuais africanas e outras “primitivas” (Lyons e Lyons

2004: 5, Epprecht 2008: 34); foi submetida a quadros de estudos que supre-

estimularam o homem negro (Fanon 1967: 159–60, Lyons e Lyons 2004: 131) e, mais

298
recentemente, foi sujeita a um tipo de apagamento, uma negação da sexualidade

para aqueles que habitam culturas de África que desejam o mesmo sexo (Spurlin

2001: 185; Johnson 2005: 127). África é marginalizada na teoria queer ocidental, o

que significa que africanx queer não são representados na literatura principal ou

nos quadros teóricos que tratam da sexualidade. Embora a sociologia lésbica e

gay ainda não seja tão comum ou amplamente distribuída como deveria ser (Stein

e Plummer 1994: 178), os estudos queer africanos são ainda menos. Por não ter

uma voz reconhecida na literatura emergente, a sexualidade africana está a ser

empurrada pelas margens para a obscuridade. Os efeitos disso são devastadores;

identidades inteiras sem serem aceitas ou contribuindo para o cânone


esmagadoramente branco e norte-americano da teoria queer. Isso também

dificulta o trabalho do pesquisador. Ao reunir as informações necessárias para

este ensaio, descobri que havia uma lacuna considerável em fontes que tratavam

explicitamente do apagamento da identidade queer africana na teoria queer.

Havia muitas fontes que lidavam com políticas sexuais afro-americanas,

estereótipos sexuais negros e a história dos estigmas sexuais afro-americanos

(Collins 2005, Russell 2008), mas não muito sobre a teoria queer africana. Parecia

que a própria literatura condenava o homossexual africano às margens. O que

ficou bastante claro foi que o Ocidente certamente estava em uma posição de

controle quando se tratava da disseminação da teoria queer académica; além

disso, era a América do Norte branca e académica que estava no controle. Muitas
fontes tratavam de sexualidade, queer, homossexualidade e categorias de género,

mas poucas prestavam muita atenção às intersecções de raça e identidades

299
transculturais. Este ensaio espera trazer à luz o que falta e fazer uma distinção

nítida entre como o Ocidente usou a teoria queer e como a África pode criar suas

próprias teorias queer únicas.

Em grande medida, a teoria queer ocidental ignorou os aspectos multiétnicos da

criação de identidade. A teoria queer não apenas não deu uma olhada nas

dimensões multiculturais da sexualidade, como também evitou um olhar atento

à dimensão multicultural de seu próprio estudo. Focalizando tão de perto a

sexualidade, a teoria queer ocidental negligenciou a raça e essencialmente ‘lavou’

a figura do homossexual (Sullivan 2003: 66). Isso significa que a maior parte da
teoria queer que foi escrita com o homossexual branco em mente. Na melhor das

hipóteses, existe um tratamento superficial das representações transculturais e

expressões de desejo do mesmo sexo (Spurlin 2001: 185), que frequentemente


inventam o homossexual negro através do olhar centrado no euro-americano. O

conceito de superioridade posicional de Said (2003 [1978]) ajuda a esclarecer

como a teoria queer tornou invisível o homossexual negro. ‘Superioridade

posicional (…) coloca o ocidental em toda uma série de … relações com o Oriente

sem nunca lhe perder a vantagem’ (Said 2003 [1978]: 7). Substitua “África” pelo

“Oriente” e o significado é funcionalmente equivalente nesta discussão. Para o

Ocidente, a vantagem é significativa; é uma mentalidade ‘nós’ contra ‘eles’ que

existe em muitas representações populares de estrangeiros. Perder a mão


superior significaria simplesmente que o Ocidente não tinha a resposta certa ou,

mais especificamente, significaria que o Ocidente não tinha a única resposta. Ao

expressar as coisas em termos de posição (vantagem), Said chamou a atenção

300
para o modo como o Ocidente lida com questões transculturais. A superioridade

é invocada quando o Ocidente é capaz de dar uma resposta adequada a suas

próprias perguntas, com pouca consideração àquelas que ficam fora dos

parâmetros construídos. A superioridade posicional nada mais é do que uma

afirmação que reivindica validade em todas as circunstâncias possíveis sem

realmente testar as circunstâncias que não são suas.

O Ocidente se estabeleceu como a autoridade no conhecimento sobre a

experiência homossexual. Quem não faz parte do Ocidente só pode se beneficiar

da imposição dessa estrutura. A África não pode seguir seu próprio caminho sem
apelar para o conhecimento (e, portanto, o poder) do Ocidente. Duas opções estão

diante do homossexual africano: desconsiderar sua identidade e adoptar um

estilo ocidental ou encaixar-se em categorias pré-organizadas de fabricação


ocidental. Ambas as opções parecem inautênticas, desactualizadas e

principalmente racistas. Por que a África deve novamente adoptar um modelo

ocidental em vez de criar um modelo próprio? O que há na homossexualidade

branca que os negros africanos compartilham a tal ponto que precisam adoptar

as teorias ocidentais para entender melhor a si mesmas? E o que é o Ocidente

que o diferencia do resto do mundo quando se trata de entender as múltiplas

identidades que vêm junto com o facto de ser homossexual? Todas essas

perguntas clamam por atenção e respostas que ainda devem ser vistas no mundo
ocidental. O que é necessário é uma descolonização da teoria que está a ser

criada, permitindo que novas intersecções sejam produzidas.

301
Frantz Fanon, psicanalista e intelectual negro, escreveu extensivamente sobre

como descolonizar um país, tanto intelectualmente quanto fisicamente. Fanon

passou a vida a buscar entender a relação entre o colonizador e o colonizado,

especialmente em relação à vida mental. Ele estava interessado na subjetividade

do corpo negro que existia no mundo da supremacia branca (Cherki 2006: 26).

Trabalhando a partir de uma perspectiva amplamente psicanalítica, Fanon

questionou o colonialismo e seu legado e o impacto que teve sobre indivíduos que

viviam dentro de seus limites (Gendzier 1976: 502). Suas teorias se mostraram

importantes para muitos estudiosos e continuam a ter influência nos estudos

pós-coloniais. São as teorias anticoloniais e descolonizadoras que este ensaio se


adaptará ao tópico actual da teoria queer.

Para Fanon, o mundo colonizado foi dividido em dois: os colonizadores e os


colonizados. O mundo do colonizador era compartimentado, frio e estéril e era o

local de ‘sermonizadores, conselheiros e confundidores’ ‘(Fanon 2004: 4). Esses

criadores de confusão começaram a oprimir, ao espalhar a retórica dos

colonizadores. O trabalho deles é subjugar os colonizados e alimentá-los com a

“verdade”, como os colonizadores veem. A outra metade do mundo colonizado é

entregue aos colonizados que andam sem sapatos, em barracos e de joelhos

(Fanon 2004: 4-5). Este é um mundo que é alimentado de informações para se

manter calado e obediente. O que Fanon descreveu aqui é nada menos que a
situação da teoria queer ocidental. Os académicos ocidentais brancos são os

colonizadores, alimentando as informações “colonizadas” (africanas) que eles

dizem serem verdadeiras e que impõem como regra às identidades colonizadas.

302
Onde isso deixa as identidades de afro-homossexuais? Apagadas, estereotipadas

e “demonizadas” (Nagel 2000: 123). Talvez ainda pior do que isso, deixa as

identidades divididas. A África está dividida entre as palavras do colonizador, que

oferecem uma perspectiva ocidental dominante sobre sua identidade, e uma

abordagem exclusivamente centrada na África para a homossexualidade,

conforme é construída na cultura africana.

A contínua subjetivação da identidade africana à teoria queer ocidental cria a

dupla consciência de Dubois.E.B. Dubois foi um sociólogo americano que

procurava entender a consciência do afro-americano que se sentia negro e


cidadão. O negro tentou encontrar um lugar na sociedade americana racista, o

que levou a dois conflitos inconciliáveis, duas ideias em guerra num corpo escuro

‘(Dubois 1903 [1999]: 11). Como alguém poderia ser negro e cidadão se a cidadania
exigia que não fosses negro? Esse é o problema que Dubois procurou desvendar

ao longo de sua vida. Da mesma forma, este ensaio pergunta como africanx

podem permitir que a teoria queer ocidental fale por elx. Moore, teorizando tanto

em Dubois quanto em Fanon, diz que isso muitas vezes leva o corpo negro à

brancura, a um desejo de aceitar a brancura (Moore 2005: 758) ou, neste ensaio, a

aceitar a “ocidentalidade” na esperança de coletar as duas metades da dupla

consciência. Deixar a identidade africana dividida é deixá-la histórica e

susceptível à imposição de ideias ocidentais. O que é necessário é uma


consciência inteira capaz de entender sua própria história, identidade e futuro

(Moore 2005: 761).

303
A única maneira de reconciliar as duas metades dessa divisão é através da

descolonização. Deve haver uma escolha entre as duas ideias em conflito.

Voltando a Fanon, que afirma: ‘descolonização é sempre um evento violento’

(Fanon 2004: 1), é através dessa violência que os colonizados são capazes de lutar

por sua história e vencer as ideias do colonizador. No entanto, este não é o tipo

de violência que usa armas ou facas; antes, é uma violência descolonizadora que

humaniza e devolve a identidade aos colonizados. Para Fanon, os colonizados têm

direito à autodeterminação, autodefinição e descolonização (Rabaka 2009: 168).

Se os colonizadores impõem violentamente suas ideias a partir de cima, então os

colonizados têm o direito de retornar essa violência para recuperar o que foi
apagado pela imposição. Essa violência é do tipo que une a consciência dividida

e devolve o poder àqueles que foram marginalizados e apagados. Através do uso

da violência descolonizadora, os colonizados aprendem a determinar o que é

melhor para eles e como criar sua própria identidade, que é exactamente o

oposto do apagamento.

Pode parecer que este ensaio se tornou violento, que agora se baseia na

linguagem da luta e da destruição, mas não é esse o caso. O que é proposto é uma

descolonização do pensamento, uma remoção da imposição da maneira de

pensar ocidental, que permitiria à África recuperar (ou criar) um sistema de

teoria que seria baseado na história africana, na cultura africana e nas


identidades africanas. Essa nova teoria queer seria africana desde o início, não

baseada em modelos euro- americanos que são debatidos nas tradições

académicas ocidentais. Este ensaio não é capaz de dar à África a resposta, visto

304
que está a ser escrito por um ocidental, mas posso dar um modelo e ferramentas

que guiarão a criação de uma teoria pan-africana. O modelo e as ferramentas a

seguir são “sugestões educadas” que descrevem uma estrutura teórica que pode

ser útil para recuperar as identidades homossexuais africanas.

A descolonização epistémica é tão violenta quanto a descolonização física,

excepto que lida com questões de teoria, identidade e pensamento. É uma

rejeição do que está a ser implantado pelos ‘sermonizadores’ de Fanon. O que é

necessário para combater essa imposição é a convicção de aplicar uma teoria

alternativa que neutraliza o sistema imposto. Na “questão africana”, é necessária


uma teoria que permita à África criar uma estrutura que repele a teoria queer

ocidental, que adopta o espírito da teoria queer em geral, mas não segue

obstinadamente o que foi escrito. Não se pode esquecer que o que o Ocidente
estabeleceu apagou efectivamente a identidade africana. O que as pessoas

africanas precisam é recuperar essa identidade e avançar com algo que celebre o

que eles podem trazer para a mesa. Uma maneira de fazer isso é assumir a

responsabilidade por sua sexualidade.

Joyce Trebilcot, filósofa e teórica feminista, aborda o tema da responsabilidade e

como se aplica à sexualidade. Trebilcot diz que a primeira coisa a perceber sobre

assumir a responsabilidade por uma situação é que não é o mesmo que assumir
a responsabilidade pela causa dessa situação (Trebilcot 1984: 421). Alguém pode

se encarregar de limpar o leite derramado sem realmente o ter derramado. Do

mesmo modo, ela diz que um indivíduo pode assumir a responsabilidade por sua
sexualidade agora, sem ter que explicar o que tem sido e o que será no futuro

305
(Trebilcot 1984: 421). O que pode ser extraído disso para a discussão actual é a

necessidade de os africanos “abandonarem” o que foi teorizado anteriormente

sobre suas identidades queer e começarem de novo a partir de sua própria

perspectiva. Isso não quer dizer que alguém deva esquecer o que foi teorizado no

passado. Relatos ilusórios que consideram a África limitada e unilinear e que

reforçam suposições racistas básicas sempre farão parte e prejudicarão a história

africana (Pincheon 2000: 40). O que digo é que a África pode assumir a

responsabilidade por essa história, sem assumir a responsabilidade por causá-

la. É sem dúvidas mais fácil dizer do que fazer, mas com isso realizado, seguir em

frente se torna muito mais gratificante. Trebilcot continua: ‘Assumir a


responsabilidade pela sexualidade, concebida de maneira ampla, é assumir toda

a gama de fenómenos eróticos / sexuais / de género que são aspectos de nossas

acções, atitudes, pensamentos, desejos, estilo e assim por diante. ‘(Trebilcot 1984:

422). Para adicionar a esta lista, eu diria que isso também significa assumir a

responsabilidade de ser ouvido e remover-se das margens. Se a sexualidade é

algo que pode ser responsabilizada e um indivíduo pode ser responsável por

todos os fenómenos que a acompanham, então pode ser epitermicamente

descolonizado pela teorização contrária às ideias impostas. Ao reconhecer a

situação e se recusar a assumir a responsabilidade por sua criação, os

colonizados são capazes de se livrar do peso de responder às ideias coloniais

impostas. Quando essas ideias são descartadas, colonizados são capazes de


assumir a responsabilidade por sua sexualidade actual, desprovida de imposições

e obstáculos, dando-lhes a oportunidade de criar algo que seja mais adequado

306
para toda a gama de suas prácticas sexuais específicas e desejos. Assumir a

responsabilidade, então, é uma dessas maneiras de reunir uma consciência

bifurcada, reparando a história e avançando no conhecimento de uma

descolonização epistémica humanizadora.

Um último ponto deve ser feito aqui. Este capítulo está perigosamente próximo

de reforçar o problema binário sem ainda o ter mencionado. O problema binário

existe quando as teorias tentam ordenadamente empacotar seu assunto;

portanto, temos preto / branco, ocidente / oriente e gay / hétero colocados em

oposição, sem apreciar o cruzamento que realmente ocorre. Eu gostaria de pegar


a parte restante desta peça para lidar com esse perigo. Binários são coisas

desastrosas; ao usá-los, um teórico é capaz de apresentar um ponto forte na

superfície, mas que não se mantém sob escrutínio. Eles mantêm dentro deles
semelhanças tácitas que são apagadas ou ignoradas no interesse de vencer uma

discussão. Por exemplo, a afirmação ‘gays não são heterossexuais’ parece válida

e forte, mas como alguém pode entender o que é ser hétero ou gay se o outro não

existe e compartilhar algumas semelhanças. As semelhanças incluem a noção de

que tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade devem existir em

relação a um corpo, informam algo chamado “sexualidade” e são as duas

categorias usadas para classificar parceiros sexuais. O que vimos até agora neste

ensaio é que existe uma profunda divisão entre a teoria queer do Ocidente e a
teoria emergente da África, mas isso não quer dizer que elas sejam exclusivas e

limitadas apenas por suas próprias fronteiras. Diana Fuss argumenta que os

binários tratam de acoplar o que está dentro e o que está fora (Fuss 1991: 1), o que

307
significa que sempre há aqueles que inclui (dentro) e aqueles que exclui. Além

disso, pode significar que existem aqueles que são capazes de executar a referida

práctica (dentro) e aqueles que não podem (fora). No campo dos estudos da

sexualidade, esse binário é frequentemente invocado quando se fala sobre

aqueles que fazem as teorias. Aqueles que constroem as teorias costumam

distinguir quem é incluído nas suas propostas e os que são excluídos. Ao falar

sobre a teoria queer, como vimos, queer brancx tendem a ser os assuntos

dominantes da teoria queer ocidental, que imediatamente exclui africanx para os

limites externos ou marginais. Esse discurso também remonta à ideia de

posicional idade de Said, onde vimos a África como um continente fora de


qualquer teoria que lida com o mundo “ocidental”. Então, o que diferencia esse

ensaio? Este ensaio não chamou o conhecimento do colonial ocidental? Isso deve

significar que eu argumentei que a África esteja do lado de dentro agora e o resto

do Ocidente deveria ser movido para as margens. Espero muito que não seja o

caso.

Fuss continua a dizer que a figura de dentro / fora não pode ser totalmente

removida, mas isso não significa que ela deva sempre representar lados

diametralmente opostos. Ela diz ainda que qualquer termo dado sempre depende

do que é exterior a ele (Fuss, 1991: 1). Isso significa simplesmente que, se não

temos algo do lado de fora, não podemos saber o que está ‘dentro’. Este capítulo
agora tentará defender este raciocínio. Quando se trata da teoria queer ocidental

versus africana, é inegável que o Ocidente tentou fazer teorias que abranjam

todas as culturas queer, sem excepção. Essas teorias acabam por fracassar

308
porque não levam em conta as diferenças culturais que existem em comunidades

multiculturais ou em países interculturais. A teoria queer ocidental também não

leva em conta a questão de impor ideias aos pensadores sem lhes dar a

capacidade de falar por si. Em conjunto, essas questões colocam o Ocidente na

posição “interna”, tendo conhecimento “interno” e compreensão “interna”. No

entanto, não haveria ímpeto, nenhuma razão para “assumir a responsabilidade

pela sexualidade” se esse posicionamento não acontecesse no contexto da África,

sendo considerado “fora”. Estar posicionado do lado de fora certamente pode ser

lido como algo mau, sem ter discernimento e não estar a par das negociações

importantes que ocorrem no coração de qualquer assunto. No entanto, todo


interior deve ter um exterior que o limite, que lhe dê um significado. Se não

houvesse um exterior, nunca poderia haver um interior, seria apenas estendido

ao infinito. Portanto, posso dizer que, sem o Ocidente a posicionar a África do

lado de fora, o Ocidente nunca chegaria ao conhecimento de que o que estão a

fazer é impor suas ideias coloniais a outros pensadores. A África, de certa forma,

determina o Ocidente. Eu peguei a noção de dentro / fora e a virei um pouco de

cabeça para baixo. Muitos estudiosos argumentam que, enquanto a linguagem da

posição existir, não haverá verdadeira justiça na representação. Não que esses

estudiosos estejam errados. O que quero dizer é que, neste ensaio, neste

momento e tratando deste assunto, não quero estabelecer uma dicotomia estrita

da África contra o Ocidente. Em vez disso, quero dizer que o interior determina
o exterior tanto quanto o exterior determina o interior. Existem passagens de

fronteira que existem tanto em nível teórico quanto prático. Portanto, o que eu

309
quero chamar atenção é o apagamento que esse posicionamento já causou. Não

se trata da África voltar a dominar a tradição académica ocidental, mas de uma

discussão sobre como africanx podem descolonizar seus pensamentos e reagir

com suas próprias teorias e identidades.

Concluindo, gostaria de dizer que este não foi um ensaio fácil de escrever. Eu tive

que me equilibrar numa fina linha de estudo pós-colonial que leva a caminhos

tortuosos. Desvie-se demais para um lado e parece que culpo a teoria ocidental

por todas as falhas da teoria queer da África, desvie-se demais para o outro e

parece que posiciono a África acima do Ocidente. Espero não ter feito nenhuma
dessas coisas. Quando iniciei este projecto, tentei mostrar como a teoria

ocidental queer tem sido dominante, quão amplamente disseminada é e quão

persuasivos são seus argumentos. Também procurei mostrar que ser tão
formidável pode levar a muitos problemas, o principal para mim é que estava a

apagar a África e queers africanx. Com a conclusão desta peça eu sei que

continuarei a trabalhar diligentemente para que africanx tomem as rédeas de sua

própria sexualidade e se tornem administradores responsáveis por sua própria

tradição académica. Sei que a África está a recuperar-se lentamente e a provocar

ondas na comunidade académica e sou grato por ter me dado a oportunidade de

dar minha voz. Através da descolonização do pensamento, a África tem a chance

de se libertar das margens e se plantar firmemente como uma força teórica a ser
reconhecida. A descolonização pode ser um assunto violento, mas também é

necessário. Espero que a teoria queer africana seja o próximo tópico discutido

nas universidades ocidentais, não porque eu pense que o Ocidente possa fazer

310
isso melhor, mas porque a África terá feito tal contribuição que não poderá mais

ser ignorada.

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312
313
19 – ONGS E ACTIVISMO DE MULHERES QUEER EM NAIROBI – Kaitlin
Dearham

Introdução

Na última década, a ascensão do movimento queer na África levou à formação de

organizações não-governamentais (ONGs) em todo o continente. No Quénia,


algumas das primeiras ONGs que trabalham para tratar de questões de lésbicas,

gays, bissexuais, transexuais e intersexuais (LGBTI) foram estabelecidas em

Nairobi. Essas organizações operam em nível local, enquanto recorrem a


paradigmas desenvolvidos por movimentos e lutas transnacionais queer. Este

capítulo é um exame dos métodos e estruturas empregados no movimento de


mulheres queer em Nairobi através do estudo de caso de um grupo de mulheres

LBTI chamado Minority Women in Action (MWA). Discutirei o fenómeno da

‘ONGnização’, que é o processo de institucionalização e profissionalização das

ONGs. A ONG, bem como a forte dependência de uma estrutura de direitos

humanos, limita a capacidade da MWA de atender às necessidades de mulheres

queer em Nairobi. No entanto, a MWA conseguiu criar uma forte rede de

mulheres queer que se apoiam e se envolvem em várias formas de activismo.

314
Esta redacção é baseada em pesquisa qualitativa realizada para um projecto

maior sobre o tema da organização e construção de identidade de mulheres

queer em Nairobi. O trabalho de campo foi realizado em Nairobi entre Maio e

Agosto de 2010. Ao longo de minha pesquisa, trabalhei principalmente com a

MWA, que é membro da Coalizão de Gays e Lésbicas do Quénia (GALCK). No

momento da pesquisa, a organização era gerida exclusivamente por voluntários,

na maioria quenianos. A pesquisa foi realizada por meio de observação

participante1 e entrevistas aprofundadas com 21 mulheres queer entre 20 e 40

anos. A maioria dos participantes da entrevista era membro da MWA ou de outras

organizações baseadas no GALCK, particularmente Artists for Recognition and


Acceptance (AFRA), um grupo de mulheres artistas queer e o Gender Education

and Advocacy Programme (GEAP), um grupo de direitos dos transexuais. Alguns

entrevistados trabalharam para organizações que colaboram com ou financiam

organizações LGBTI. Todos os participantes da pesquisa receberam um

pseudónimo para proteger sua privacidade.

O cenário da organização no Quénia mudou desde que essa pesquisa foi

realizada. Mais organizações foram criadas, algumas orientadas à advocacia e

outras sociais. À medida que mais grupos são estabelecidos, profissionais do sexo

e transexuais se tornam mais vocais e visíveis. Há também mais espaços seguros

para mulheres queer agora do que em 2010. Nos últimos dois anos, a GALCK
passou por problemas de gestão e financeiros que dificultaram a sua relação com

a comunidade LGBTI.

315
Dada a proliferação de grupos focados em direitos humanos, questões de

responsabilidade, transparência e opressão dentro do movimento permanecem

tão relevantes como sempre.

Terminologia

A grande maioria das mulheres que participaram desta pesquisa se identifica

como lésbica. No entanto, a maioria possuía outras identidades – como gay,

sapatona, queer, bissexual ou trans – ao lado do rótulo de lésbica. Algumas

mulheres recusaram completamente os rótulos.

Muitas mulheres observaram que o ‘queer’ não era amplamente usado no Quénia

porque a maioria das pessoas não foi exposta ao termo. Em termos gerais,

“queer” refere-se a pessoas cuja sexualidade ou identidade de género fica de fora


dos limites da heterossexualidade. Também é usado para se referir a um

movimento que busca desconstruir a heteronormatividade obrigatória2 e papéis

estáveis de sexo / género. A qualidade flexível e maleável do termo “queer” é uma


de suas características mais importantes.

Ao discutir participantes específicos da pesquisa, vou me referir a eles usando a


terminologia de sua própria preferência. Entretanto, ao se referir aos

participantes da pesquisa ou à comunidade como grupo, usarei “queer” em vez

316
de LGBTI, para reconhecer a presença de mulheres que não se identificam com

nenhuma das identidades abrangidas por LGBTI. Na discussão de organizações

que trabalham com questões queer, continuarei a usar o acrónimo LGBTI, já que

as organizações visam especificamente as pessoas ‘LGBTI’ e empregam uma

compreensão mais estática da sexualidade.

ONGs de LGBTI no Quénia

O Quénia tem uma comunidade queer em expansão, que está se tornando mais

visivelmente organizada e pressionando pelos direitos humanos. Ocholla escreve

que, nos anos 60, os gays se reuniam em banheiros públicos e em salões de chá
no centro de Nairobi (Ocholla 2011: 94). As evidências de um movimento político

organizado surgiram pela primeira vez em 1997, com a formação de Ishtar MSM.

Esta organização foi originalmente formada para atender às necessidades dos

profissionais do sexo masculinos; desde então, expandiu-se para trabalhar pelos

direitos à saúde de todos os homens que fazem sexo com homens, bem como de

mulheres trans (Kuria 2009: 2). Várias outras organizações LGBTI se formaram

após Ishtar. Enquanto alguns se concentram na saúde, outros pretendem fazer

alterações em algumas das leis referentes à sexualidade no Quénia.3 Outros têm

o mandato de educar o público ou de proporcionar espaços sociais seguros para

os quenianos LGBTI. Em 2006, a Coalizão de Gays e Lésbicas do Quénia se

formou. O GALCK é uma coalizão de seis dos principais grupos de direitos LGBTI

317
do Quénia e trabalha para apoiar suas metas e objectivos (Kuria 2009: 5). Cinco

desses grupos, incluindo a MWA, compartilham espaço de escritório em Nairobi.

A Minority Women in Action foi formada em 2006, logo após a formação da

GALCK. Várias

mulheres que haviam participado dos primeiros esforços de organização

começaram a se reunir para discutir a possibilidade de formar um grupo

especificamente para mulheres. Faith, um dos cofundadores da MWA, explicou

os objectivos originais da organização:

O objectivo era basicamente lutar por nossos direitos. Essencialmente,

para nos fortalecer, desenvolver nossa capacidade…de advogar para

outras organizações e indivíduos, para que eles entendam de onde


viemos…e também para lidar com questões de saúde sexual e

reprodutiva, o que ninguém realmente havia feito antes. E então, é claro,

para se divertir.

Os fundadores viram a necessidade de criar uma organização especificamente

para mulheres, pois as mulheres queer estavam sub-representadas nas


organizações LGBTI existentes. Muitas mulheres viram isso como uma indicação

de um problema maior de hierarquia de género na sociedade queniana e a

resultante relativa falta de mulheres nas esferas pública e política. Nos

318
comentários a seguir, os entrevistados especulam sobre o motivo do domínio dos

homens na organização LGBTI:

Mary: Basicamente, é uma cultura patriarcal, para que as pessoas não

vejam muito as mulheres. Talvez não estamos acostumados a ser vistos.

Talvez seja uma coisa cultural.

Jake: É o mundo de um homem … Para o homem gay, quando ele nasceu,


foi dito: ‘És um homem, este é o teu mundo, tu controlas.’ Quando uma

mulher nasce, ela é informada: ‘Tu tens de ser uma boa esposa … ou mãe.

Teu lugar será … servir seu marido. ‘Mas, para o homem´, é do tipo ` tu
tens de administrar este país ‘. É por isso que acho que há mais homens

gays no GALCK do que lésbicas.

Rose: Mesmo nas principais organizações de direitos humanos, as

mulheres tiveram que lutar muito por seu lugar. Portanto, realmente não

é diferente nas organizações LGBTI … é apenas um sistema patriarcal. É

um sistema em que os mais dominantes têm voz … e acontece que na

maioria das vezes as mulheres são marginalizadas. Eu esperava que fosse


diferente, porque os gays também sofrem de opressão patriarcal. Mas

acontece que não é diferente na comunidade LGBTI … Mesmo nas

organizações de mulheres, há uma tendência de marginalizar as questões


trans e intersexuais.

319
Os entrevistados identificaram a reprodução da hierarquia de género nas

organizações LGBTI como o principal motivo da necessidade de criar uma

organização de mulheres queer. Outro motivo apontado para a falta de vozes das

mulheres nas organizações LGBTI foi o facto de existirem mais homens queer

dispostos a ser abertos sobre sua sexualidade do que as mulheres. Isso está

relacionado à marginalização económica das mulheres, bem como às pressões

sociais sobre as mulheres para se casar e ter filhos em uma idade relativamente

jovem em comparação aos homens. Finalmente, a tendência das organizações


LGBTI de se concentrarem fortemente nos homens que fazem sexo com homens

(HSH) e HIV / SIDA foi identificada como um factor adicional que precipita a

formação de uma organização de mulheres homossexuais. Embora o HIV / SIDA


seja uma preocupação relevante de saúde para mulheres queer, programas e

oficinas geralmente se concentram mais nesse assunto do que nelas. A formação

de uma organização de mulheres queer significava que as mulheres podiam se

concentrar nos problemas que as preocupavam.

Desde o início, a MWA foi formalmente organizada, desenvolvendo uma

estrutura de liderança, um plano estratégico e uma constituição em um ano. O

comité director é o principal órgão de tomada de decisão da organização. É eleito


anualmente dentre os membros da MWA e é composto por oito oficiais com

várias funções financeiras, administrativas e de programação. O comité director

comunica sugestões e ideias ao restante dos membros e é responsável pela


organização de actividades, eventos, workshops e seminários.

320
ONGnização

Embora o desenvolvimento de ONGs LGBTI orientadas para os direitos seja

relativamente novo no Quénia e no continente, outros movimentos sociais

também empregaram o modelo das ONGs como uma forma de mobilização

política. O movimento feminista viu uma explosão de ONGs de direitos das

mulheres nas décadas de 1980 e 1990. A subsequente “ONG” do movimento foi

criticada por estudiosos e activistas (Alvarez 1998 e 1999, Armstrong 2004,

INCITE! 2007). As organizações que se formaram através do movimento feminista

e, mais tarde, o movimento queer, são frequentemente hierárquicas e altamente

burocráticas. Os doadores, preocupados com a responsabilidade financeira,

empurram as organizações para estruturas formais profissionalizadas e fáceis de


monitorar (Alvarez 2009: 177). Como as ONGs geralmente dependem de

financiamento externo e os doadores gostam de financiar projectos que têm

impactos demonstráveis como um “retorno” de seu “investimento”, as ONGs


geralmente priorizam projetos de curto prazo com resultados quantificáveis. Isso

significa que as organizações são frequentemente governadas por prácticas

semelhantes às dos negócios corporativos (Alvarez 2009: 177).

Armstrong (2004) salienta que, embora essas prácticas garantam que as ONGs

prestem contas aos seus doadores, nem as ONGs nem os doadores devem prestar
contas à comunidade local de maneira confiável. Estruturas hierárquicas e ênfase

no profissionalismo, que incentiva a liderança da elite, significa que é fácil para

321
as ONGs ficarem alienadas das pessoas no nível de base (Armstrong 2004: 40).

Nesse sentido, os membros da comunidade mais marginalizados são

frequentemente excluídos sem querer. A necessidade de as ONGs falarem um

idioma que agrada aos doadores significa que frequentemente empregam um

léxico de desenvolvimento internacional que pode não ressoar nos contextos

locais. Nesta secção, examinarei os efeitos da ONG na organização de mulheres

queer em Nairobi por meio de uma discussão sobre o uso da estrutura de direitos

humanos e questões de classe.

Direitos humanos

A adopção da estrutura de direitos humanos pelas organizações LGBTI reflecte

um padrão mais amplo de abordagens e prácticas de espelhamento adoptadas


pelas ONGs “principais”. A MWA trabalha dentro da estrutura de direitos

humanos, trabalhando para garantir os direitos das mulheres LBTI no Quénia e

educando seus membros sobre os princípios de direitos humanos. No entanto, as

mulheres queer em Nairobi estão divididas na aplicabilidade e eficácia da

estrutura de direitos humanos. Alguns argumentam que esse é o meio mais eficaz

de abordar questões queer. Outros são mais céticos sobre seu uso neste contexto,

questionando sua eficácia, mesmo quando o empregam pragmaticamente em

suas próprias organizações.

No contexto africano, os argumentos morais ou culturais são frequentemente

usados para combater os argumentos de direitos humanos (ver Cobbah 1987, Njoh

322
2006). Cobbah escreve que as instituições de direitos humanos se envolveram

historicamente no imperialismo cultural, destacando o facto de que, quando a

Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada pelas Nações Unidas em

Dezembro de 1948, a ONU era dominada pelos países ocidentais e a maior parte

da África Subsaariana era ainda sob controlo colonial (Cobbah 1987: 316). Apesar

disso, muitos argumentam que a estrutura de direitos humanos não tem origem

ocidental. Rose, uma das cofundadoras da MWA, explicou:

Direitos humanos, a própria palavra, é ocidental. Mas … é dizer que nunca houve

preocupações com direitos humanos na África antes do colonialismo?


Honestamente, eu não acredito que … talvez as palavras usadas hoje em dia ou

outros aspectos superficiais sejam ocidentais, mas o conceito de direitos

humanos, dignidade humana, tratar as pessoas com dignidade, um senso de


justiça, estavam lá. Não obstante, é muito fácil para os homofóbicos descartar a

natureza queer como ocidental, principalmente quando ela é defendida

principalmente pelo uso de um arcabouço teórico que é amplamente

considerado um alienígena.

Isso não quer dizer que a estrutura de direitos humanos deva ser abandonada

inteiramente. Essa estrutura pode ser útil quando se trata de advogar mudanças

nas políticas e na legislação, pois elas frequentemente empregam linguagem


baseada em direitos. No entanto, é importante que activistas homossexuais sejam

capazes de aprimorar nossos argumentos para públicos específicos. Como

Khadija, que trabalha para uma organização de justiça social, observou: ‘Eu acho
que quando estamos conversando com esse tipo de público (popular), a

323
linguagem dos direitos humanos é limitadora, pois parece muito imperialista.

Parece muito orientado por doadores.’

Khadija também apontou as limitações de empregar uma abordagem

exclusivamente orientada a políticas, uma vez que incentiva as organizações a se

envolverem constantemente com instituições estatais. Desafiar a política estatal

homofóbica é um trabalho importante e necessário, mas às vezes é feito para

negligenciar as comunidades nas quais os africanos ainda vivem e negociam suas

interacções quotidianas. Isso significa que uma mudança na legislação, embora

seja sempre bem-vinda e vitoriosa, nem sempre reflecte a realidade no terreno.


A persistência de violações dos direitos humanos em relação à sexualidade,

apesar do amplo endosso por parte de tratados e convenções em defesa dos

direitos sexuais, demonstra as limitações desses instrumentos; isto é, a


desconexão entre leis internacionais e nacionais e a experiência de vida local.

A percepção dos direitos humanos como ocidentais e orientados por doadores

também pode alienar activistas queer de suas comunidades maiores. Njoki, poeta

e compositor lésbico e cofundador da AFRA, explicou:

Parece que nós, como gays, estamos nos isolando do resto da

comunidade. As pessoas heterossexuais sentem que estamos lutando por

direitos especiais. Quando tu falas sobre os direitos LGBTI, eles sentem


que estamos defendendo direitos especiais mais pronunciados que os

deles. Essa percepção de que os quenianos queers querem ser ‘especiais’

324
ou ‘diferentes’ de outros quenianos serve para reforçar o argumento

cultural de que a natureza queer é diferente e que não tem lugar nas

comunidades africanas. Leah, que é membro da MWA e trabalha para

uma organização de financiamento de direitos sexuais, também

enfatizou esse perigo, explicando como a estrutura de direitos humanos

não ressoa necessariamente com os activistas, mas que eles continuam a

usá-la de forma pragmática, porque é facilmente compreendida pelos

doadores internacionais. Leah alertou contra o emprego de abordagens

inadequadas para obter fundos, apontando que as relações com os

financiadores são facilmente perdidas à medida que as tendências


políticas mudam. Ela explicou: “No momento, acho que as minorias

sexuais são como o sabor do mês, então todo mundo quer trabalhar com

elas. Mas o que tu fazes quando não somos o sabor do mês, o que

acontece?”

Questões de Classe

A profissionalização e institucionalização das ONGs, bem como a ênfase no

trabalho orientado a políticas, geralmente criam divisões de classe nas

organizações. No caso da MWA, embora sejam feitos esforços para atender às

necessidades de todos os membros, muitos dos membros de baixa renda acham

que a programação não aborda sua realidade e seus desafios. Mulheres queer de

áreas de baixa renda sofrem mais violência e agressão sexual do que mulheres

325
que vivem em bairros de classe média. Embora a violência e o estupro não sejam

exclusivos dos bairros de baixa renda, as mulheres economicamente oprimidas

são afectadas desproporcionalmente. Nas entrevistas, isso foi parcialmente

atribuído à diferença nas condições de vida e ao aumento da dependência da

família para a sobrevivência. As mulheres que dividiam um quarto com membros

da família ou que viviam extremamente próximas aos vizinhos descobriram que

seu comportamento era facilmente policiado.

Esse policiamento assumiu a forma de assédio verbal, violência física e estupro.

Reverie, lésbica de um subúrbio de alta densidade e baixa renda de Nairobi,


explicou o impacto das condições de vida em sua propriedade.

No gueto a lei não é realmente aplicada e as pessoas não sabem sobre

questões legais. Eles tomam a lei em suas próprias mãos, se acharem que

deveriam espanca-la, eles fazem exactamente isso. Se eles acham que

deveriam estupra-la, é exactamente isso que farão

E não farás nada a esse respeito. Porque o sistema jurídico realmente não

se importa com o que acontece contigo.

Fora do gueto, acho que é diferente. As pessoas sabem, mas tu vives nesse

contexto em que outras pessoas realmente não se importam com que


acontece contigo... Somos uma [grande] população que vive no gueto. E

326
as pessoas, a maneira como tu vives, os pequenos espaços: é muito fácil

para as pessoas se meterem na tua vida.

Quando se trata de segurança, é mais difícil para mulheres de áreas de baixa

renda se envolverem em prácticas de gerenciamento de riscos quando suas

próprias condições de vida aumentam a probabilidade de serem 'punidas' por

causa de sua sexualidade. No entanto, as discussões das ONG sobre segurança

das mulheres queer frequentemente não levam em consideração as diferenças


de classe.

Jake, outra lésbica de um bairro de baixa renda, descreveu os desafios das


mulheres queer nessas áreas dizendo: ‘Nos guetos encontras pessoas queer e elas

são analfabetas. Eles não têm habilidades. É sabido a vida quotidiana é uma luta

para eles. Como não tens formação académica, não tem nada. A única opção é

casar, porque para casar não precisa de aulas. ”Val, membro do comité de

direcção da MWA, também discutiu as maneiras pelas quais a falta de educação

formal e a visibilidade visível podem dificultar as relações homossexuais.

Mulheres para conseguir emprego. Ela explicou:

Somos todos queer e todos temos os mesmos problemas. Talvez um


pouco mais do que outros [porque] também haja uma enorme lacuna no

status financeiro. Acreditas mesmo que muitas dessas jovens estão a

327
lutar. Os Toms realmente não podem usar vestido ou vestido... e sair para

uma entrevista porque sentem que não estão sendo quem são. Quem eles

precisam ser. E o que acontece é que os anos passam e tu não tens um

histórico de emprego. E te encontras no mesmo lugar em que estava com

vinte anos. Mas não é culpa sua ... a vida é uma merda.

Os poucos de nós que conseguiram um pouquinho, podemos não estar

fazendo o suficiente para elevar os que realmente não estão conseguindo

... é preciso muito sacrifício para ajudar a quem está deprimido. Mas,

novamente, se tu perguntas como começar ... Sabe, quando eu tinha vinte


anos eu estava na faculdade e, para mim, a escola era uma prioridade. Vá

para a escola, arrume um emprego. Mas outras pessoas não têm essas

oportunidades, e acho que é isso que falta. Eu digo, não sei como
preencher essa lacuna. Eu certamente não sei.

Embora Val seja uma lésbica não-conforme, ela conseguiu superar as

dificuldades associadas a não ser “suficientemente feminina” por causa de sua

formação educacional e das oportunidades que isso lhe proporcionou. Seu

comentário sobre a impossibilidade de encontrar trabalho para Toms4 foi uma


queixa comum entre mulheres de baixa renda e não conformes ao género, que

acabavam frequentemente desempregadas ou trabalhando no sector informal.

Mulheres queer em áreas de baixa renda geralmente dependem mais da família

para obter apoio financeiro e podem ficar presas em relacionamentos e

328
casamentos heterossexuais para sobreviver. Pode ser difícil para essas mulheres

participar de oficinas de estilo ONG e outras actividades por várias razões. Tais

actividades, que são frequentemente conduzidas em inglês, podem ser

inacessíveis para aqueles com pouca educação formal; para as mulheres que

vivem com ou são casadas com homens, pode ser difícil justificar a necessidade

de participar de uma reunião; e reuniões e outras actividades costumam ser

realizadas no centro ou em bairros de classe média, o que pode dificultar o acesso

das mulheres de menor renda devido ao tempo de viagem (como bairros de baixa

renda e assentamentos informais estão localizados principalmente aos arredores

de Nairobi). O reembolso de tarifas, no entanto, normalmente é fornecido para


mulheres que participam dos workshops e actividades da MWA. Alice, ex-

membro do comité, especulou que “Seria bom se eles pudessem falar mais com

as mulheres, especialmente nas bases. Porque geralmente as reuniões que

realizamos são de classe alta, ou seja, meio que reuniões na cidade. E realmente

existem muitas mulheres por aí que não foram alcançadas.’

Algumas mulheres, tanto da base de membros quanto do comité-

director, mencionaram a natureza hierárquica da organização como uma

pedra de tropeço para abordar questões de classe. Mas o maior


impedimento parecia ser a falta de comunicação e diálogo sobre as

diferenças de classe dentro da organização. Naomi, membro do comité-

director, destacou a comunicação como chave: Eu sinto que o que


precisamos é ter essas conversas e precisamos de tê-las com mais

329
frequência. Ninguém está falando sobre isso … sinto que se tivéssemos

mais diálogo, poderíamos construir pontes, [quebrar] conceitos

erróneos, noções preconcebidas que temos sobre o outro. Para que

possamos nos reunir e ter um grupo mais coeso.

Naomi mencionou que as pessoas foram “colocadas em suas posições” e que era

necessária educação política e de classe para resolver o problema. Rose também

falou sobre a importância do diálogo e da educação para abordar a questão da


classe:

Para lidar com as diferenças de classe, que são tão inerentes às pessoas,

será necessária a ressocialização. Será necessário reeducar as pessoas


em algumas das coisas que elas dão como certa. Do mesmo modo, temos

que reeducar as pessoas no patriarcado, nas mulheres, na

homossexualidade, no transexualismo, nas pessoas intersexuais…

reexaminar nossos conceitos, o que é muito difícil.

Aqui, Rose está traçando um paralelo importante entre classe e outras opressões
estruturais. Muitos participantes da entrevista expressaram um desejo comum

de abordar esta questão - a disposição

330
está certamente presente. No entanto, é um desafio para uma organização que

prioriza o profissionalismo encontrar um lugar para mulheres de baixa renda na

estrutura de liderança. A luta para incluir pessoas de diversas origens

económicas nos processos de tomada de decisão e liderança das organizações é

comum no mundo das ONGs.

Sucessos

A MWA obteve grandes ganhos, apesar da dificuldade de trabalhar em um

ambiente de ONG. As mulheres envolvidas na criação da MWA e as que estão


actualmente envolvidas na organização são muito dedicadas ao seu trabalho.

Muitos dedicam longas horas de trabalho não remunerado e contribuem com

seus próprios recursos para criar uma sociedade mais igualitária e segura para
os quenianos queer. Nesta secção, discutirei sucessos organizacionais na criação

de visibilidade e no incentivo à mobilização queer.

Visibilidade

MWA e GALCK têm um grande impacto em conscientizar o público de que


existem pessoas queers no Quénia. O facto de que essas organizações foram

formadas e são dirigidas pelos quenianos ajuda a desconstruir o mito de que a

queereza é "não africana". A visibilidade da MWA e da GALCK e o trabalho


persistente de advocacia ajudaram questões queer tornaram-se parte da

331
consciência pública e do diálogo, o que é uma grande mudança em relação a cinco

anos atrás. Rose descreveu o impacto da participação da GALCK no Fórum Social

Mundial em 2007:

Tínhamos uma barraca, nem mesmo uma mesa. E chamamos de Q-spot.

Tínhamos poemas de pessoas, mostrávamos as obras de arte da

comunidade. Houve sessões, outras organizações de toda a África

também participaram, houve workshops. E tínhamos uma mesa


permanente onde havia pessoas conversando sobre questões LGBTI. Os

membros do público podem vir, fazer perguntas, teremos conversas. E

foi realmente muito bom, porque temos muita media com isso. Pelo
menos isso ajudou a acabar com o mito de que as pessoas LGBTI não

existem no Quénia, para as pessoas em negação.

Essa foi uma das primeiras vezes que queers apareceram publicamente como um

grupo em Nairobi, falando por si mesmas.

Lugares Seguros

O escritório da GALCK, e outros espaços que a MWA ocupa para eventos, são

alguns dos poucos lugares onde as mulheres queers se sentem capazes de relaxar

e não precisam se monitorar por medo de revelar sua sexualidade. Esses espaços

332
de segurança formal para LGBTI complementam os espaços informais de

segurança queer que as mulheres queer desenvolvem para si mesmas fora das

organizações por meio de relacionamentos e redes pessoais. Os participantes da

pesquisa concordaram por unanimidade que encontrar um espaço social e / ou

activista no qual eles poderiam “ser eles mesmos” era um enorme alívio. Sam,

membro da AFRA, descreveu a primeira vez que ela foi ao centro da GALCK: ‘Foi

realmente incrível … porque anteriormente costumava a esconder-me … mas

quando conheci o primeiro grupo de lésbicas e bissexuais, fiquei tão

impressionado. Eu senti como se tivesse uma família aqui. Já não preciso

esconder-me mais.’ Muitos participantes descreveram seus primeiros encontros


com a MWA ou outras organizações GALCK como “conhecer a família” ou,

finalmente, encontrar um lugar onde se encaixavam ou pertenciam. Ruth, que

está no comité-direcção da MWA, descreveu como estar na presença de outras

pessoas queers teve o efeito de normalizar sua sexualidade: ‘Eu podia ver as

pessoas, elas são felizes … estão se comportando como nada grande, como

qualquer outra pessoa normal. ‘Estar em um espaço dominado por pessoas

queers foi um passo importante para muitos queers de Nairobi, que podem ter

sentido isolados e alienados, mesmo que já conhecessem uma ou duas pessoas

queers. Faith explicou que, quando a MWA estava se formando, havia muita

excitação … acho que antes dessa época, lésbicas … estavam espalhadas. Mas isso

basicamente reuniu todas as lésbicas, pelo menos o pequeno círculo que


conhecia em Nairobi.’

333
Mobilização

A MWA e outras organizações GALCK conseguiram mobilizar o movimento queer

no Quénia, criando vínculos com outras organizações queer e aliadas,

incentivando a criação de novas organizações LGBTI em outras partes do país e

inspirando os quenianos queer a se envolverem em activismo fora dos contextos

organizacionais. Como um dos primeiros, e certamente um dos grupos mais

visíveis, trabalhando pelos direitos LGBTI no Quénia, o GALCK tem sido um

exemplo positivo e, em alguns casos, um catalisador para outros que podem

querer iniciar organizações queer ou fazer trabalhos queer no Quénia. Alguns

desses grupos decidiram empregar abordagens mais radicais em seu activismo.

Mesmo para aqueles que decidiram não se envolver em activismo por meio da

MWA ou de outras organizações formais, a MWA tem sido um ponto de conexão

útil com outras mulheres queer. Aqueles que decidiram não participar da
organização, em grande parte por causa de preocupações estruturais, continuam

a se envolver em activismo queer de vários tipos. Isso pode ser formal

(trabalhando com outra ONG) ou informal (mantendo redes de apoio emocional

e financeiro com outras mulheres ou articulando suas lutas através do

engajamento da arte ou da media). Nesse sentido, o envolvimento com a MWA

tem sido um ponto de partida de activismo para muitos.

334
Coalizão

O facto de várias ONGs quenianas de direitos LGBTI se unirem como um grupo

de coalizão as protege de algumas das armadilhas da ONG. Embora as

organizações membros da GALCK estejam competindo, até certo ponto, por

financiamento, elas frequentemente se reúnem para realizar eventos como uma

coalizão. O facto de várias organizações compartilharem espaço de escritório

significa que é fácil para seus membros trocar ideias e colaborar em projetos. A

coalizão ajuda a manter a construção de movimentos e a diversidade,

incentivando suas organizações membros a trabalharem juntas. Isso ecoa a

observação de Tsikata (2009) de que a formação de grupos de coalizão entre os

movimentos de mulheres no Gana permitiu que activistas transcendessem


alguns dos problemas da ONG, juntando-se em questões de interesse comum.

Fortalecendo o movimento

Em sua análise das ONG feministas em Israel, Hanna Herzog afirma que “a força

do movimento vem de sua vontade de se autocrítica, bem como de sua

diversidade” (2008: 274). Dessa forma, as organizações de mulheres conseguiram


permanecer eficazes e fiéis às suas raízes feministas, apesar da ONG. Eu acredito

que esse sentimento é igualmente aplicável ao movimento queer. As ONG de

mulheres queer devem se envolver em autocrítica por meio de um exame de seus

335
programas e estrutura, verificando se estão servindo a sua base de membros e

estando abertos à discussão e debate. É importante que os membros estejam

dispostos a falar e trabalhar para corrigir o que eles consideram problemático

dentro da organização.

No contexto africano, é particularmente importante que o movimento queer não

se destrua. No Quénia, assim como em outros lugares do continente, o discurso

homofóbico geralmente assume uma tendência cultural, condenando a queereza

como “não africana”. Duas maneiras pelas quais a ONGnização de movimentos

queer reforça esse discurso são incentivando as ONGs a se especializarem ao


ponto de isolar-se e incentivando o uso da estrutura de direitos humanos, que,

como afirmado anteriormente, é frequentemente percebida como ocidental e

depende principalmente do engajamento com o estado em detrimento do foco


nas comunidades. Para evitar o isolamento, é fundamental chegar fora da

comunidade queer e desenvolver fortes alianças. Isso significa não apenas

trabalhar com outras organizações que lidam com questões queer, como já está

acontecendo, mas também estar presente como africanos queer em outros

movimentos progressistas. Obviamente, o desafio por trás desse tipo de

engajamento é garantir a segurança, já que mesmo os chamados espaços políticos

progressistas não são necessariamente seguros o suficiente para quenianos

queer para serem abertos sobre sua sexualidade. Um exemplo de construção de


coalizão em Nairobi foi a campanha Warembo Ni Yes, 5 na qual mulheres de

diversas origens se mobilizaram para pressionar pela adopção da nova

constituição queniana. Essa campanha reuniu mulheres de movimentos

336
trabalhistas, feministas, queer e profissionais do sexo, de diversas origens

económicas. Através da construção de coligações e do aprendizado de outros

movimentos progressistas, as ONGs queer também podem desenvolver novas

maneiras de abordar seu activismo, para complementar a abordagem de direitos

humanos. Enquanto reflectia sobre esse assunto, Naomi disse:

Eu sinto que precisamos de ter essas conversas e precisamos de tê-las

com mais frequência. Ninguém está falando sobre isso... Sinto que se

tivéssemos mais diálogo, poderíamos construir pontes, [quebrar]

conceitos erróneos, noções preconcebidas que temos sobre o outro. Para


que possamos nos reunir e ter um grupo mais coeso.

Ela continuou explicando que temos muito conhecimento no Quénia e na África

como um todo, que poderia ser usado para criar uma nova estrutura para o

activismo. Em outras palavras, devemos usar o conhecimento e as tradições de

nossas próprias comunidades para informar nosso activismo, em vez de confiar

no que pode ter sido eficaz em outras partes do mundo. A MWA fez um trabalho

importante e inovador no estabelecimento de um movimento de mulheres queer

no Quénia. No entanto, é fundamental reconhecer as limitações do modelo de


ONG dominante e garantir que a criação de organizações não signifique a

exclusão de algumas mulheres queer. Diálogo, auto-reflexão e construção

progressiva de alianças são ferramentas importantes na criação de um forte


movimento queer em África.

337
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todas as irmãs que participaram de minha pesquisa por

compartilharem suas vidas e histórias tão generosamente comigo. Um

agradecimento especial às mulheres da Minority Women in Action, que me

receberam e me apresentaram à comunidade. Gostaria também de agradecer ao

Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC), que

forneceu apoio financeiro para este projecto.

Notas

A observação participante é um método de pesquisa antropológica que envolve a participação no quotidiano e nas actividades,
além de observar e coletar dados relacionados a essas actividades. Durante a observação participante, observei as interações
dos grupos e como as crenças e valores foram expressos em um ambiente relativamente natural e informal.

Heteronormatividade é um conjunto de suposições sobre papéis sexuais e de género que legitima homofobia e transfobia. A
heteronormatividade supõe que as pessoas se enquadram em apenas um dos dois sexos (masculino ou feminino) e sexos
(homens ou mulheres), que têm certos papéis na vida. Presume-se que a heterossexualidade seja a única orientação sexual
natural, o que significa que apenas as relações sexuais e conjugais entre um homem e uma mulher são aceitáveis. Presume-
se que sexo e género se correlacionem naturalmente, o que significa que pessoas trans e intersexuais são excluídas de
estruturas heteronormativas.

As secções 162 a 165 do código penal são comumente interpretadas como significando que actos sexuais entre pessoas do
mesmo sexo são ilegais no Quénia. A lei é muito ambígua, referindo-se a “ofensas não naturais”, “conhecimento carnal contra
a ordem da natureza” e “actos de indecência grosseira” (Kenya Law Reports: 2010). Essas leis foram estabelecidas pelo governo
britânico durante os tempos coloniais e permaneceram no código penal do Quénia desde então.

“Tom” é uma forma abreviada de “tommy”, um termo para uma mulher queer ambígua andrógina, juvenil ou de género
derivada do termo “tomboy”

338
http://www.waremboniyes.org, acesso em 15 de Março de 2010.

Referências

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Quénia

Alvarez, Sonia E. (1998) Os feminismos latino-americanos “se tornam globais” : tendências da década de 1990 e desafios para
o novo milênio ‘, em Alvarez, SE, Dagnino, E. E Escobar, AE (eds) Culturas de política / Política de culturas: repensando os
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Alvarez, Sonia E. (1999) ‘Advogando o feminismo: a ONG feminista latino-americana “boom” ”, International Feminist Journal
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Alvarez, Sonia E. (2009)’ Além da ONGização? Reflections from Latin America ‘, Sociedade para o Desenvolvimento
Internacional, 5 (2): 175–84

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Herzog, Hanna (2008) ‘Re / visionando o movimento feminista em Israel’, Journal of Citizenship Studies, 2 (3): 265 –82

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http://galck.org/index.php?option=com_content&view=a rticle&id=17:history&catid=9:activism&Itemid=9, accessed 7 May
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Njoh, Ambe (2006) Tradition, Culture and Development in Africa: Historical Lessons for Modern Development Planning,
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Ocholla, Akinyi (2011) ‘The Kenyan LGBTI social movement – context, volunteerism and approaches to campaigning’, Journal
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Tsikata, Dzodzi (2009) ‘Women’s organizing in Ghana since the 1990s: from individual organizations to three coalitions’,
Development, 52(2): 185–92

339
340
20 – A LUTA PELOS DIREITOS INTERSEXO EM ÁFRICA – Julius Kaggwa

Ser intersexo é uma jornada ao longo do meio-termo indeterminado entre

homem e mulher; essa variação ou diversidade no desenvolvimento do sexo e

género ainda é muito controversa na África. Este capítulo destaca os preconceitos

sociais, culturais e religiosos extremos que cercam esse terreno controverso na

África, bem como a correlação entre género e sexualidade de uma perspectiva

africana.

Os desafios e as oportunidades em torno do sexo, identidade de género e

sexualidade em África estão fortemente ligados à família, e são frequentemente

baseados em cultura e ideologias díspares. Enquanto muitos indivíduos usaram

ideologias conservadoras para se opor à diversidade de género e sexual na África,

as vozes emergentes dos direitos sexuais enfatizaram valores comuns de

democracia, saúde e dignidade humana para promovê-los. Meu capítulo explora


as lutas envolvidas em desafiar a dicotomia tradicional de sexo binário e género

na África e como a cultura, incluindo a religião, tem sido usada para avançar uma

agenda repressiva, além de actuar como uma barreira ao avanço da liberdade de


género e expressão sexual em África.

É um facto estabelecido que a sexualidade é parte integrante da experiência


humana. No entanto, na maioria das partes da África, a sexualidade ainda é de

género e é discutida apenas em termos de procriação e controle de doenças. Esta

341
é uma das razões pelas quais a maioria dos programas de saúde sexual na África

se concentra na mudança de comportamento e atitude, especialmente na área de

actividade e expressão sexual. Infelizmente, porém, os ditames culturais na

forma de crenças religiosas fundamentalistas e pontos de vista sociais

significaram que essas intervenções e mensagens também são de género e

exclusivas das expressões e relações sexuais convencionais. A convenção é que

se é homem ou mulher e que homem e mulher, por sua vez, se envolverão em

sexo heterossexual monogâmico – que é a actividade sexual entre uma mulher e

um homem. Não abrange identidades sexuais atípicas e relações sexuais

alternativas, como actividade sexual entre pessoas de género e sexualmente


variantes.

A África é vasta e diversificada em seu conteúdo cultural e, no entanto, existem


pontos em comum em atitudes em relação à sexualidade humana e à diversidade

de género em quase todos os nossos países. A variação de género e sexualidade é

desaprovada e considerada tabu na cultura africana dominante. A maioria das

famílias africanas – geralmente com composição ampliada – não se envolve

abertamente em discussões sobre sexo e sexualidade. Além disso,

desenvolvimento sexual, actividade e expressão são geralmente envoltos em

extremo segredo. Por exemplo, na minha tribo de Baganda, em Uganda, o sexo

não pode ser chamado de ‘sexo’ sem rodeios. É aludido em termos proverbiais,
como “apontar outro para o reino do diabo” (okutunuza omuntu mumbuga za

sitani) ou sob uma luz mais positiva “uma conversa privada de adulto” (akaboozi

kekikulu). É, portanto, a partir dessa premissa cultural fixa que argumentos em

342
torno do desenvolvimento sexual, género, diversidade sexual, actividade sexual

e escolha são considerados “não africanos” e indesejáveis.

Em muitos países da África, o discurso dominante de género assume formas

estritamente binárias de mulher e homem. Qualquer coisa fora disso é aberrante.

No entanto, mesmo dentro dessa dicotomia binária, o homem continua sendo o

género mais privilegiado. Isso também é visto nas intervenções de HIV, onde as

mulheres grávidas são submetidas a testes obrigatórios de HIV, mas não os pais

expectantes, onde as profissionais do sexo são culpadas por alimentar a

pandemia e não os homens que compram seus serviços, onde é mais aceitável a
mutilação genital ser feita em crianças intersexo para torná-las meninas, em vez

de deixá-las como meninos supostamente “disfuncionais”, onde há um estupro

mais brutal das mulheres, independentemente de essas mulheres serem


intersexo ou não.

Em muitos países africanos, enormes recursos foram gastos e ainda são gastos

para estabelecer programas de prevenção e tratamento do HIV e da malária e

tratar da justiça social e dos problemas económicos. No entanto, a variação de

género e sexual ainda é um determinante social essencial das desigualdades no

acesso a esses programas. Mesmo após a programação do HIV entre homens que

fazem sexo com homens (HSH) e mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM),
uma subcultura que pressupõe que apenas o sexo gay ou anal existe além do sexo

hétero a exclusão da miríade de identidades nas quais a expressão sexual e de

género assume muitas outras formas. Por exemplo, as pessoas intersexo em


África geralmente se acham carentes. E quando estão doentes, não conseguem

343
ter acesso livremente os serviços de saúde. Como resultado, se automedicam

tanto para doenças como para medicamentos hormonais, com medicamentos

vendidos sem receita e frequentemente expirados. Muitas vezes, eles até

compartilham agulhas. Esse é um dos desafios que as pessoas intersexo

compartilham com colegas transgénero africanx. Frequentemente, não serão

capazes de determinar seu status seropositivo e, ainda assim, devido à

necessidade premente de sobreviver, buscam um meio de vida através do

trabalho sexual (geralmente sem protecção alguma). Mesmo nesta indústria,

sofrem discriminação.

Culturalmente e politicamente, a não conformidade com categorias e papéis

prescritos para sexo e género é considerada imoral e é veementemente

desencorajada e criminalizada na maioria dos países africanos. Isso impede


muitas pessoas de ter acesso justiça e serviços sociais e, na pior das hipóteses, as

torna rebeldes ou criminosas. As mulheres intersexo, lésbicas e transexuais, por

exemplo, abstêm-se de procurar serviços de saúde sexual e reprodutiva por

medo de serem assediadas, ostracizadas e discriminadas. A actividade

sexualmente arriscada resultante da falta de informações e intervenções

apropriadas para essa população alimentou a incidência de crimes de ódio,

infeções sexualmente transmissíveis, HIV e SIDA entre essas populações na

maior parte de África.

Em muitos casos, o fundamentalismo religioso e cultural é evidente na maneira

como os políticos e médicos são cépticos e desprezam as políticas corporais de


pessoas não conformes com o género, na medida em que criam todas as formas

344
possíveis de excluir essas populações da sociedade como rejeições culturais e

sociais e criminosos. Um caso em questão é o projecto de lei contra a

homossexualidade, apresentado em Uganda pelo membro do parlamento David

Bahati em Outubro de 2009.

Exemplos extraídos de disposições do projecto incluem a maneira ampla como a

homossexualidade é definida para incluir 'tocar outra pessoa com a intenção de

cometer o acto da homossexualidade'. Esta é uma disposição altamente propensa

a abusos e que coloca todos os cidadãos de todos os sexos em Uganda em risco.

Tal disposição tornaria muito fácil para uma pessoa caçar bruxas ou apresentar
acusações falsas à vontade contra outra, simplesmente para causar escândalo.

Além disso, se o trabalho de alguém estiver relacionado de alguma forma a


serviços de saúde sexual e reprodutiva, activismo por direitos humanos,

advocacia, educação e treinamento, pesquisa, capacitação e áreas afins, o

projecto de lei contra a homossexualidade representa uma ameaça séria na sua

provisão sobre a ‘promoção “da homossexualidade. O projecto visa silenciar

activistas de direitos humanos, sociedade civil, media e qualquer pessoa que se

envolva com questões relacionadas a direitos sexuais e reprodutivos. Como a

sexualidade é uma parte dinâmica e integral da experiência humana,

independentemente de qual género ou sexo nos identificamos, legislação como a


lei anti-homossexualidade torna todos nós possíveis vítimas e criminosos.

Este projectos mostra como a sociedade e os políticos usam argumentos


religiosos para estabelecer categorias para as pessoas quando projectam cultura

345
e políticas que revelam preconceitos baseados em homofobia, racismo,

sectarismo e assim por diante. Também nos informa que a cultura como a

conhecemos está em constante evolução e pode ser o veículo que impede ou

promove mudanças sociais e económicas positivas. No caso deste projecto de lei,

inegavelmente tudo está sendo feito para negar direitos de saúde sexual e

reprodutiva a cidadãos ugandeses que são considerados não-conformes aos

ditames culturais de qual deveria ser a classificação ‘normal’ de género e sexo.

Nesse sentido, as pessoas intersexo são erroneamente consideradas como tendo

dois órgãos sexuais ou a capacidade de ter relações sexuais com homens e

mulheres, retratando-as como gays ou bissexuais. Além disso, algumas pessoas


intersexo que optarem por mudar de um sexo de melhor palpite atribuído ao

nascimento farão uma jornada semelhante em alguns aspectos à de uma pessoa

transexual e, muitas vezes, enfrentam preconceitos e exclusões semelhantes.

Na maioria das sociedades africanas, as crianças nascidas com essas variações

são frequentemente mortas logo após o nascimento ou, se não, são mantidas

escondidas da vida social e comunitária. Nossos esforços de engajamento da

media e da comunidade em torno da saúde e direitos intersexuais nos últimos

dois anos romperam lentamente essa barreira e provocaram um diálogo

construtivo sobre identidades sexuais e de género mais amplas. É importante

notar que as instituições familiares em toda a África estão passando por


transformações significativas, especialmente em termos de diálogo sobre a

correlação entre género e sexualidade, bem como a importância atribuída aos

papéis sexuais e de género. Houve publicidade crescente e evidências de que

346
muitos africanos, de todas as esferas da vida, têm corpos que não estão em

conformidade com corpos ‘masculinos ou femininos’ normativos ‘, alguns dos

quais praticam e se expressam por meio de expressões exploratórias de género

e actividade sexual. Não podemos nos dar ao luxo de fugir do facto de que muitas

pessoas ocupam o meio termo cinza entre homem e mulher. O assunto do debate

é geralmente se a sexualidade, a actividade sexual e as classificações sexuais

variantes devem ser de género; se essas pessoas – cujo sexo é indeterminado no

nascimento ou na puberdade – têm direito à vida, informação, saúde e dignidades

apropriadas em suas identidades e expressões de género escolhidas, forçadas ou

intrínsecas.

No caso de Uganda, a realidade intersexo desafia a cultura extremista religiosa e

moralista que nega as minorias sexuais e os sexos não conformes, acesso e gozo
de saúde e direitos sexuais. Essas realidades vividas incluem (todos os nomes

foram alterados):

• Musa, um menino de 16 anos que vive com a mãe e foi diagnosticado com

testículos hipospádicos bebê; foi operado quando criança, mas a cirurgia

não teve sucesso.

• Mary, uma mulher de 22 anos que possui órgãos genitais ambíguos onde

um pênis masculino se desenvolveu dentro de sua vagina; ela atribui seu


fracasso em encontrar um parceiro para essa condição intersexo.

347
• John, um jovem de 20 anos que mora com a madrasta que passou por

cirurgia correctiva mais de duas vezes, mas que ainda não consegue

encontrar os fundos para remover o útero subdesenvolvido, fechar a vagina

e liberar o pênis.

• Jane, uma criança de quatro meses e meio que nasceu com genitais

ambíguos, cujos médicos haviam relatado hipospadia e malformação

genital; era escondida por sua mãe e mais tarde foi encontrada morta em

circunstâncias misteriosas.

• Ivan, um homem de 23 anos que esteva perto do suicídio porque os seus

seios se tinham desenvolvido como os de uma mulher; estava a escondê-

los com bandas de forma semelhante feito por pessoas transexuais


femininas a masculinas.

Questões sociais e culturais, assim como a ciência, sempre evoluem – mesmo na

África. Sabemos que a mudança e a capacidade de se adaptar a ela são os

ingredientes de uma sociedade dinâmica e progressiva. E qualquer sociedade

pode resolver se adaptar a todas as mudanças necessárias dentro de seus moldes


sociais e culturais, a fim de garantir que todas as liberdades de seu povo sejam

protegidas. Na era da busca por melhores prácticas em defesa dos direitos

humanos, é urgente que a África aprecie as diferenças no desenvolvimento do


sexo, identidades de género e direitos humanos relacionados. O desafio crítico é

348
como formular estratégias relevantes para alcançar isso em nossos contextos

culturais como africanos.

O aspecto crítico sobre o qual precisamos nos educar como africanos é que,

embora precisemos de identidades para fins de organização, intersexo em si não

é uma identidade e uma pessoa intersexo geralmente se vê assumir outras

identidades quando se trata de género, sexualidade. Orientação e escolha.

Também devemos reconhecer que atitudes desumanas da sociedade, sob o

disfarce conveniente de ‘ditames culturais’ em relação a crianças e pessoas

intersexuais, são claramente uma questão de violência baseada em sexo e género.

Como estratégia de mitigação, o movimento intersexual em Uganda e na região

da África Oriental está focado em criar maior visibilidade e amplificar vozes em


torno de questões intersexuais e direitos humanos e sexuais relacionados por

meio de educação pública e participação da media e da comunidade.

349
350
21 – DECLARAÇÃO AFRICANA SOBRE ORIENTAÇÃO SEXUAL E
IDENTIDADE DE GÉNERO

07/03/2012

Conselho de Direitos Humanos 19 Sessão-Genebra

Nós, activistas africanx, falamos em nome das pessoas em todo o continente que

enfrentam continuamente perseguição e violência com base em sua orientação

sexual e identidade de género. Também falamos em solidariedade aos


sentimentos das mulheres que vivem de acordo com as leis muçulmanas em sua

carta dirigida ao Presidente do Conselho de Direitos Humanos.

Recebemos com alegria o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para

os Direitos Humanos, Navi Pillay, que destaca o estado deplorável dos direitos

humanos para as pessoas LGBTI.

Louvamos a liderança da África do Sul na abertura do diálogo em torno dos

direitos humanos de pessoas com sexualidades e identidades não conformes.


Instigamos os Estados Membros a aproveitar esta oportunidade para iniciar um

diálogo construtivo sobre esta importante questão.

351
O continente africano levantou-se e continua se erguendo contra estruturas

opressivas como colonialismo, apartheid, despotismo e ditaduras. No entanto, as

pessoas LGBTI continuam a sofrer opressão e violência derivadas de:

1. Leis coloniais arcaicas e bárbaras contra o sexo consensual dos adultos;

2. Ideias coloniais vitorianas de moralidade disfarçadas de valores

tradicionais africanos;

3. Noções patriarcais de género e expressão de género;

4. Fundamentalismos religiosos;

5. Construções sociais fortemente defendidas que contradizem os valores


africanos do Ubuntu, aceitação, paz e coexistência compartilhada.

As pessoas LGBTI em África enfrentam continuamente estigma e discriminação,

assédio e prisões arbitrárias, alienação da família e da fé, falta de acesso a

serviços sociais, incluindo saúde, justiça, moradia, educação e meios de

subsistência dignos. Tudo isso, apesar de os estados africanos serem signatários


da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana dos Direitos

Humanos e dos Povos, particularmente os Artigos 2 e 3, e os valores da UA de

igualdade e não discriminação.

352
Nós, como activistas LGBTI africanx, não solicitamos direitos novos ou especiais,

exortamos-te, como nossos estados africanos, a cumprir suas obrigações sob

instrumentos internacionais e regionais e suas próprias constituições nacionais;

todos reconhecem igualdade e não discriminação para todas as pessoas.

Apelamos aos nossos estados africanos para que ponham fim à violência e

discriminação contra cidadãos LGBTI, abolam todas as leis discriminatórias

existentes. Apelamos aos estados actualmente considerando a possibilidade de

cessar tais leis. Conclamamos todos os estados africanos a criar ambientes legais

e sociais propícios ao gozo igual de todos os direitos de todos os cidadãos.

http://bit.ly/UvZzMj

353
354
22 – FRONTEIRAS
QUEERYING: UMA
PERSPECTIVA ACTIVISTA
AFRICANA – Bernedette
Muthein

mijo planetário? neutrão?

Anseio flutuar com os patos em ondas Sou uma ravina infinitiva

ao ar livre Eu sou um rio infinito

beliscar arrancar em todos os lugares cheio de barrancos, corroendo meu tecido cicatricial
nem aqui nem ali
lambendo as crateras de todos os lados, nações habitam
Não estou entre ninguém Beijo-a, fodo- meu ser
o e desejo apenas um sonho
enquanto eu humedeço por sua maestria cutucando suas
banda desenhada canções de chuveiro pernas abertas vulneráveis ciente de toda a nossa
inocência
através de tempestades elétricas sem
madeira feita de nada além de ar

+ / - sou carregada sem lados

355
Qualquer campo de estudo só tem relevância se pessoas reais, e especificamente

comunidades de pessoas, puderem usá-lo de maneiras concretas. Portanto,

teorizar inteiramente por causa da teoria, por mais intelectualmente estimulante

que parece para alguns de nós, não tem absolutamente nenhuma relevância para

as realidades cotidianas e vividas das pessoas de base (ou “comuns”). Deve-se, no

entanto, seguir cautelosamente essa visão dualística, uma visão derivada da

experiência vivida em ambientes activistas e académicos (raramente se

cruzando). Às vezes, pessoas “comuns” não são vistas como “teóricas” sobre suas

“experiências” e os teóricos parecem irremediavelmente desprovidos de serem

experienciais – falando fluentemente, uma experiência é teórica tanto quanto a


teórica é muito experiencial. Elas não devem ser colocadas em bases opostas.

Simultaneamente, e especialmente para evitar teorias e experiências

dicotomizastes, a experiência inextricável – a dança da teoria não é

frequentemente lenta e próxima, mas sim frouxa e irregular, e frequentemente

exploradora, em vez de co-criadora. Daí meu próprio compromisso apaixonado

com metodologias de pesquisa participativas e baseadas em acções que buscam

troca de habilidades mútuas.

No contexto africano mais amplo, e particularmente na África do Sul, quase 20

anos em democracia, a transformação sistémica é de importância crítica.

Questões relacionadas a como transformar uma sociedade desigual, injusta e de


violência sistémica em sociedades de reconciliação, diversidade, justiça e não-

violência são questões mais pertinentes para muitos de nós. A violência é uma

356
realidade vivida diariamente para pessoas não heteronormativas em todo o

mundo, especialmente na África, mas ainda mais perto de casa na África do Sul,

em particular. Aqui, como é o caso em todos os lugares, as lésbicas estão sujeitas

ao que esse autor chama de ‘estupro curativo’, o estupro de mulheres percebidas

como lésbicas pelos homens, ostensivamente como uma ‘cura’ para / de suas

sexualidades (aberrantes). Outros homens também, ainda mais ironicamente,

sujeitam alguns gays a esse ‘estupro curativo’. Portanto, teorizar sobre não-

heteronormatividade, e o lesbianismo em particular, não pode ser divorciado da

normalidade do estupro ‘curativo’ para muitas lésbicas em todo o mundo, e na

África do Sul especificamente.

Outras questões a serem consideradas incluem: quão relevante é um campo de

estudos sobre lésbicas para pessoas comuns, o que é uma lésbica e quem define
o lesbianismo. A palavra ‘lésbica’, como a maioria dos conceitos incluídos na sopa

arco-íris ou alfabética de letras LGBTQI, foi cunhada e desenvolvida fora das

realidades africanas. Na África do Sul, os falantes de Nguni há muito tempo

(erroneamente) se referem aos homossexuais como stabane ou “hermafrodita”

(intersexuais). Os habitantes originais da África Austral, os Khoe-San, não são

heteronormativos, e os sexos e as sexualidades são vistas como fluidas e

dinâmicas, e não como binários e estáticos. Essa fluidez se aplica à maioria dos

povos indígenas antigos em todo o mundo, desde o berdache dos nativos


americanos até as hijras indianas. Isso inclui pessoas geralmente chamadas de

‘terceiro sexo’, transgéneros, intersex e / ou qualquer outra coisa que não são as

357
dicotomias estereotipadas masculino-feminino. As definições geralmente

funcionam em termos negativos, que definem o eu em relação (e geralmente em

oposição) a um Outro. Portanto, homossexual significa não heterossexual, e

lésbica significa mulher não heterossexual, ou homossexual. No entanto,

empregar uma definição linear de lésbica pode excluir as infinitas variedades de

opções de sexualidade que estão “entre” e variam ao longo do tempo e com as

circunstâncias.

Então, como se deve definir lésbica? Muitas pessoas com quem associo definem

lésbica como o equivalente a homossexual gay, ou seja, o oposto de heterossexual.


Embora a construção queer abraça aqueles que não são heteronormativos e

inclua os fluidos intermediários, o constructo lésbico não me inclui

necessariamente, porque eu me defino como para além dos binários, como


intermediário e fluido, dinâmico e variável. Talvez alguns possam me chamar de

bissexual, mas esse termo também subscreve uma noção de polaridade – de que

eu sou os dois pólos – quando, na verdade, mudo e mudo de posição, não em um

contínuo linear estático, mas em uma elipse infinitamente espiralada que, não

ironicamente , é ovóide, simbólico do poder reprodutivo feminino. A lésbica é

definida como orientação ou como preferência? Somos vítimas da biologia ou de

agentes activos de escolha?

Embora eu respeite as pessoas que se identificam como lésbicas, todos

conhecemos lésbicas que dormem com homens e lésbicas que, mesmo que não

as usem, desfrutam de fantasias sexuais masculinas. O mesmo se aplica às

358
mulheres que se identificam como heterossexuais e, muitas vezes

silenciosamente, mentalmente ou realmente, se envolvem sexualmente com

outras mulheres. Muitas mulheres africanas fora da África do Sul que podem se

identificar como lésbicas em outros lugares são casadas e / ou praticam sua

mesma sexualidade em silêncio, devido à violência da homofobia patriarcal pós-

colonial. Por exemplo, a casa de uma importante activista africana de género foi

bombardeada pelo menos uma vez, porque ela trabalhou amplamente em

sexualidades e activismos lésbicos, aparentemente fora da visão do público em

geral. Uma de suas tarefas foi estabelecer redes nacionais discretas para homens

e mulheres gays. É esse activismo clandestino das sexualidades que resultou


directamente aos ataques a ela e que merece tanta cautela da parte dela. Outro

exemplo foram os ataques contra a co-fundadora da Intersex South Africa, Sally

Gross, que exigia medidas de segurança pessoal semelhantes. Actos pessoais de

violências contra activistas não heteronormativos estão intimamente ligados às

violações societárias genéricas contra aqueles percebidos como não

heterossexuais, incluindo o estupro ‘curativo’ de mulheres percebidas como

lésbicas, que é tão predominante que as organizações queer na África do Sul têm

projetos inteiros dedicados, especificamente, a essa forma de violência de

género.

São precisamente os imperativos do heteropatriarcado, que mantêm as lésbicas


e suas irmãs heterossexuais nas caixas frágeis de sua sexualidade binária. Quão

mais simples é encontrar segurança em uma identidade homogénea, mesmo que

359
todas as identidades sejam mais complexas após uma investigação mais

aprofundada. Por exemplo, a arque-antropologia mostra que os seres humanos

sempre migraram através dos continentes ao longo do tempo e, portanto, a ideia

de uma raça ou nacionalidade homogénea é falha na melhor das hipóteses. Todos

somos hibridizados, sem nenhuma certeza definitiva sobre as origens. A única

coisa de que podemos realmente ter certeza, nesta fase, é que todos nascemos

humanos, mesmo que algumas tradições espirituais antigas, como Hinduísmo e

Jainismo, se refiram à reencarnação entre espécies.

Se assumirmos que a sexualidade, como qualquer outra identidade, muda


constantemente na circunferência infinita de um ovóide infinito, a sexualidade

nunca pode ser realmente fixa, não é pré-determinada e primordial, não nos

mantém reféns fisiologicamente. Afinal, o próprio campo da fisiologia evidência


que os cromossomas e os hormônios são por natureza fluidos, e ambos

‘masculino’ e ‘feminino’ existem em todos os seres humanos. Portanto, os

géneros polares estáticos de homem e mulher não são cientificamente precisos

e servem apenas aos interesses do heteropatriarcado, para dividir e governar, de

maneira semelhante à que a ciência tem sido usada para dividir e conquistar

durante eras coloniais e sob o apartheid na África do Sul. Como Stephen

Batchelor coloca:

As coisas não são tão claras quanto parecem. Eles não são circunscritos
nem separados um do outro por linhas. Linhas são desenhadas na mente.

360
Não há linhas na natureza … [Tudo surge] de uma matriz de condições e,

por sua vez, torna-se parte de outra matriz de condições a partir de qual

algo mais emerge (Batchelor 1997: 76).

Existe uma construção como uma lésbica africana? A ideia de um africano em um

mundo globalizado é possível? Não se pode esquecer das 54 fronteiras nacionais

(coloniais) reconhecidas pela ONU que cortam grupos étnicos indígenas como os

Dagara, que vivem em Burkina Faso e Gana, assim como os Khoe-San, que
continuam morando na Namíbia, Angola, Botsuana e África do Sul. Como

continente, a África tem sem dúvida os mais diversos legados culturais e

históricos do mundo, com até 3.000 idiomas ainda falados.

A África inclui a gama de esposas lésbicas-bissexuais mineiras do Lesoto no

trabalho de Cheryl Stobie e os escritos de Ifi Amadiume (1988, 1998, 2002) de

casamentos de mulher para mulher em sua Nigéria natal. Stobie (2003) critica o

livro Boy-Wives and Female Husbands: Studies of African Homosexualities, que

oferece uma variedade de textos do século XVIII ao final do século XX, e examina

um número considerável de culturas subsaarianas, fornecendo ampla evidência

de prácticas de homossexualidade por indígenas em um longo período. Há muito


material fascinante, incluindo traduções de relatos etnográficos dos tempos pré-

coloniais e coloniais, registros judiciais de ‘crime’ homossexual masculino no

início do Zimbábue colonial, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o


conceito de ‘lésbicas masculinas’ em Hausa (África Ocidental), comportamento

361
sexual de adolescentes do mesmo sexo, travestis, reversão de papéis e mulheres

que amam mulheres no Lesoto. Também é interessante um apêndice com uma

lista de 50 culturas africanas com padrões do mesmo sexo, a maioria das quais

com termos locais para prácticas ou papéis sexuais entre pessoas do mesmo sexo,

e há evidências de relações eróticas entre pessoas do mesmo sexo entre esposas

e entre mulheres casadas (heterossexualmente) no Lesoto.

Falando de seu povo nativo de Dagara em Burkina Faso, Malidoma Somé afirma

que género tem muito pouco a ver com anatomia:

É puramente energético. Toda a noção de ‘gay’ não existe no mundo


indígena. Isso não significa que não há pessoas que se sintam dessa

maneira nessa cultura, o que as levou a serem chamadas de ‘gays’ … Os

grandes astrólogos do Dogon são gays … Por que em qualquer outro lugar

do mundo, os gays são uma bênção e no mundo moderno eles são uma

maldição? É auto-evidente. O mundo moderno foi construído pelo

cristianismo. Eles tiraram os deuses da terra e os enviaram para o céu,

onde quer que seja … (Somé 1993)

Sobonfu Somé reflecte sobre a normalidade das intimidades sexuais e espirituais


das mulheres de

362
Dagara:

A sexualidade, incluindo a sexualidade de mulher para mulher, está tão

integrada na vida espiritual dos Dagara que seu povo não tem nenhuma

palavra para especificar ‘lésbica’ ou mesmo ‘sexo’ … Como muitos outros

africanos, as mulheres de Dagara não dormem com seus homens. As

mulheres precisam dormir juntas, estar juntas para se fortalecerem …

então, se elas se encontrarem com homens, não haverá desequilíbrio …


Temos um pai feminino que nos dá energia masculina. Ela parece um

homem. Tudo o que sentimos ou experimentamos com o qual não

lidamos é demonstrado. O ritual de grupo dessas mulheres equilibra sua


energia masculina / feminina. É assim que não somos completamente

homens ou mulheres (Somé 1994).

Alicia Banks (2005) cita um artigo intitulado ‘Inside gay africa’ para descrever

como os Watusi ainda têm uma reputação de bissexualidade. Nas cidades da

África Oriental, as mulheres Zande arriscavam a execução ao darem prazer entre


si, às vezes com pénis feitos a partir de raízes, e no Zaire a homossexualidade

tinha um elemento místico, enquanto a bissexualidade também é bastante

comum entre as tribos Bajun da África Oriental. Portanto, embora a palavra


lésbica possa ter origens gregas antigas, as prácticas que ela descreve são

363
certamente universais e definitivamente incluem a África. No entanto, o que fica

claro em muitas das citações acima é que as sexualidades não são

necessariamente divorciadas de espiritualidades ou outros aspectos da vida e do

ser humano, bem como o facto de que as sexualidades sempre foram fluidas,

especialmente na África pré-colonial e em muitas outras sociedades indígenas

antigas.

Em vez de um foco estreito no lesbianismo e nos estudos sobre lésbicas, pode

servir melhor à África se re-historicizar e reivindicarmos as fluidez pré-coloniais

como pelo menos uma maneira de ir além do estrangulamento, do binário,


opressões coloniais e violências. Nesse sentido, os estudos queer oferecem, de

maneira geral, uma recepção mais confortável, em vez de uma casa, porque

oferecem maior inclusão, mesmo que sofram as mesmas doenças de poder e


exclusão que qualquer outro campo de estudo. Nunca se deve esquecer a ironia

da definição pré-colonial em relação à colonial. Como a icónica estudiosa

feminista africana, Ifi Amadiume, coloca:

Pluralismo e oposição não são importações coloniais. No entanto, existe

uma grande discordância sobre como nomear a sociedade na África antes

do encontro colonial. Infelizmente, os escritores de hibridismo

desencadearam ataques tão virulentos contra a ideia de uma autêntica


tradição africana que muitos cederam e evitaram a noção de tradição na

África, preferindo usar conceitos como transição e modernidade. Eles

supõem que tudo o que era pré-colonial está morto e enterrado. Estou

364
reivindicando o conceito de tradicional na África como significando

culturas africanas pré-coloniais, mas admito um problema com um

intervalo de tempo rígido ou algo estático. Argumento que o tradicional

também pode estar no presente, e o tradicional pode ser dinâmico. É por

isso que introduzo uma justaposição de noções de parentesco colectivo e

oposição (Amadiume 2002: 7, grifo nosso).

As lutas pelos direitos básicos das lésbicas ainda estão longe de serem realizadas
globalmente, inclusive na África do Sul, onde a noção de estupro ‘curativo’

ganhou notoriedade no país depois que a África do Sul entrou no Guinness Book

of Records por suas altas estatísticas de estupro em 1999. Violência baseada no


género em serve como um lembrete preciso de que o heteropatriarcado deve ser

nosso foco e que os estudos sobre sexualidade e activismos precisam incluir toda

a gama de sexualidades que sempre foram praticadas. Até esse momento,

lésbicas e gays que rotineiramente discriminam pessoas mais sexualmente

fluidas, perpetuam exactamente a mesma cultura e outras violências como a

heteronormatividade nas sociedades modernas.

Precisamos levantar questões críticas sobre como as identidades que escolhemos


ou nos envolvemos nos ajudam a viver na práctica. Quão relevante é o estudo da

identidade para a vida quotidiana das pessoas queer comuns e, de facto, para as

lutas contra o heteropatriarcado; como os estudos queer ajudam as pessoas a


realizarem sua saúde e liberdade sexual completa? A homofobia fica ao lado de

365
outros sistemas de opressão, como racismo e sexismo, e precisa ser analisada e

combatida nesses contextos intersectoriais.

Adoptar e viver qualquer identidade e estilo de vida além da heteronormatividade

é uma subversão do heteropatriarcado e, portanto, contribui para transformar a

sociedade. Se as identidades e estilos de vida de alguém tentam transcender os

binários do status quo, pode ser ainda mais revolucionário, mesmo que seja mais

desafiador, sustentar a oposição e a coerção de ambas as polaridades percebidas.

Em sua composição germinal, “As ferramentas do mestre nunca desmontam a


casa do mestre”, escreveu a falecida Audre Lorde:

Aquelas de nós que estão fora do círculo da definição desta sociedade de

mulheres aceitáveis; aquelas de nós que foram forjadas nos cadinhos da


diferença; aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, são negras,

são mais velhas, sabem que a sobrevivência não é uma habilidade

académica[ênfase original]. É aprender a ficar sozinha, impopular e às

vezes desprezada, e como fazer uma causa comum com os outros

identificados fora das estruturas, a fim de definir e buscar um mundo em


que todos possamos florescer … Em um mundo de possibilidades para

nós todas, nossas visões pessoais ajudam a estabelecer as bases para a

acção política. O fracasso das feministas académicas em reconhecer a


diferença como uma força crucial é um fracasso em alcançar além da

366
primeira lição patriarcal. Dividir e conquistar, em nosso mundo, deve

tornar-se definir e capacitar (Lorde 1981 [1979]: 99–100, grifo nosso).

Ao caminhar na conversa transformadora, que essa activista queer fluida e

intermediária, que se identifica como polimorficamente perverso por seus

potenciais ironicamente subversivos e transformadores, deixa-te satisfeito com

o momento, plenamente consciente de que qualquer autenticidade é apenas um

ideal…

IQ Fotografia perfeita

Estás no centro há uma impressão digital em um

rosto sem pupila e linhas de


de sua guerra contra o conflito
identidade circulando a moldura
e, no entanto, o silêncio de um
em tons de cinza
alfabeto inteiro em torno de uma

letra grega com algumas amostras de pêssego

fecha a espiral infinita da a vida é um estalar de dedos

balcanização decapitando

367
esse (in) voluntário ar de bastardo

suprimento

em 31 de Agosto de 2003, conferência Women in Black, Itália, para Lepa Mladjenovic

Agradecimentos

Agradecemos a Engender por apoiar a redação deste capítulo:


http://www.engender.org.za.

Bibliografia

Amadiume, Ifi (1988) Male Daughters and Female Husbands: Gender and Sex in an African Society, London, Zed Press

Amadiume, Ifi (1998) Reinventing Africa: Matriarchy, Religion and Culture, London, Zed Books Amadiume, Ifi (2002) ‘Bodies,
choices, globalizing neo-colonial enchantments: African matriarchs and mammy water’, Meridian, 2(2): 41–66

Banks, Alicia (2005) ‘Gay racism: white lies/black slander’, in Fito, feminist e-zine, http://www.engender.org.za/publications/
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Batchelor, Stephen (1997) Buddhism Without Beliefs, New York, Riverhead

Lorde, Audre (1981 [1979]) ‘The master’s tools will never dismantle the master’s house’, in Moraga, C. And Anzaldúa, G., This
Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color, Watertown, MA, Persephone Press: 98–101

Muthien, Bernedette (2003) ‘Why are you not married yet?! Heteronormativity in the African women’s movement’, Women’s
Global Network for Reproductive Rights Newsletter 79, http://www.wgnrr.org (in English, Spanish and French), 17 December
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Muthien, Bernedette (2005) ‘Playing on the pavements of identities’, in van Zyl, M. And Steyn, M., Performing Queer, Cape
Town, Kwela Books

Ochs, R. And Rowley, S.E. (eds) (2005) Getting Bi: Voices of Bisexuals Around the World, Boston, MA, Bisexual Resource Center

Stobie, Cheryl (2003) ‘Reading bisexualities from a South African perspective’, The Journal of Bisexuality, 3(1): 33–52

Somé, Malidoma (1993) ‘Gays: guardians of the gates’, http://www.oocities.


Org/ambwww/GAYS-IN-AFRICA.htm, accessed 17 December 2012

Somé, Sobonfu (1994) ‘The lesbian spirit’, Girlfriends Magazine, http://www.


Oocities.org/ambwww/GAYS-IN-AFRICA.htm, accessed 17 December 2012

369
370
23 – A LUTA LGBTIQ – QUEER COMO OUTRAS LUTAS EM ÁFRICA -
Gathoni Blessol

Muito foi escrito sobre lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersex-queer

(LGBTI-Q) africanx lutando para alcançar a igualdade e liberdade, idealmente

permitindo a aceitação e inclusão pelas sociedades africanas religiosas,


culturalmente diversas e tradicionais. O que ambas, a nossa comunidade LGBTI-

Q e a sociedade africana em geral tendem a esquecer é que pessoas LGBTI- Q não

são alienígenas do espaço ou do Ocidente - como é afirmado -, mas são uma


representação das nossas comunidades africanas; apenas os conceitos,

definições e ideologias que moldam a nossa luta por reconhecimento são

estrangeiras e estranhas.

O que isto implica é que as comunidades LGBTI-Q são completamente africanas,

são religiosas, fazem parte da rica diversidade cultural e são pessoas tradicionais
e não tradicionais. São filhas e filhos, irmãos e irmãs, mães e pais, amigos e

familiares, vizinhos e até avós de nossas comunidades africanas.

Enquanto estava no Fórum Social Mundial de 2011 em Dakar, Senegal, participei

de uma das sessões 'Queering Africa'. Aqui, foi introduzido a um conceito que me
deixou ansioso para reflectir e redefinir minhas lutas pessoais. A oradora era de

longe a queer e defensora dos direitos humanos mais poderosa que eu já tinha

visto ou ouvido. Ela também foi membro e activista do movimento democrático

371
de esquerda na África do Sul. Lembro que minhas contradições eram com o facto

dela, considerando sua sexualidade, ter chegado a tal radicalismo político.

Como ela conseguiu falar tão eloquentemente sobre outras lutas em seu país?

Além do facto de que a constituição sul-africana defende os direitos das minorias

sexuais, como ela ganhou o respeito, coração e confiança de pessoas de outros

movimentos?

Aproveitei a oportunidade para discutir com ela minhas perguntas sobre seu

trabalho como activista em movimentos sociais. Ela me disse que enquanto sua
sexualidade ainda permanecia uma parte muito importante da vida dela, havia

muito mais nela como pessoa e como activista do que sua sexualidade. Havia a

mulher que é africana e parte de um povo que é oprimido nesta sociedade


patriarcal, sexista, racista, de classe e capitalista que coloca o dólar acima a vida

humana. Enquanto sua raça, género e orientação sexual - que haviam constituído

a base de suas opressões - permaneceram importantes para sua luta, sua política

foi além de suas identidades.

Ela continuou dizendo que o que a comunidade LGBTI-Q precisava era da

presença de um movimento queer politicamente consciente em toda África, um

movimento alinhado com outras lutas para acabar com o capitalismo, as


injustiças sociais, económicas e políticas, e as explorações e opressões que o

acompanham.

Essa activista era tão poderosa que mudou não só a mim, mas também todo o

público. Ela era uma líder em todos os aspectos e alguém que eu queria imitar no

372
futuro. De facto, pela primeira vez na época, considerava que precisava de

educação em todas as formas de humanidade.

Outra coisa que ela disse que permanece uma triste verdade é que a luta LGBTI-

Q é uma das mais solitárias de África. É extremamente difícil exigir solidariedade,

e isso é agravado pelas muitas divisões no movimento sobre variações de poder,

cultura, tradição e política.

Neste capítulo, tento relacionar minha compreensão de algumas das variações

discutidas nas sessões para o contexto que temos em África e em Quénia, por
exemplo, a luta pelo poder entre os extremistas / fascistas religiosos e liberais.

Os extremistas religiosos na África, cujo reino dos céus foi concedido a eles por
causa de sua 'justiça', são os seguidores dos ministérios evangélicos do Ocidente

em testemunhos, fala e normas, às vezes até com sotaque e língua espiritual. A

ironia não está perdida. A maioria das prácticas religiosas que temos aqui no

Quénia são influenciadas pela noção de espiritualidade e religião do Ocidente,

que é baseada no que é masculino, branco, 'próspero' e o seu Deus - que é um

homem caucasiano. Nossos líderes religiosos africanos nos pregam essas

doutrinas nos sotaques do EUA, usando línguas espirituais estranhas -

'shammah, nisi e eloi - nenhumas das quais são palavras africanas para se referir
a Deus.

Nossas igrejas foram acusadas de receber grandes quantidades de financiamento


de seus 'irmãos e irmãs' religiosos nos Estados Unidos para apoiá-los em sua

perseguição (mesmo promovendo a pena de morte) de pessoas LGBTI-Q. Por

373
favor, note que tudo isso é feito em nome do Senhor, como meus companheiros

e eu claramente testemunhamos enquanto participávamos do enterro de David

Kato, que foi assassinado em sua própria casa em 2011. No enterro, um padre,

sem vergonha, contestou a vida nobre que David teve aqui na terra e os esforços

que ele colocou na luta, afirmando que até os animais 'sabem' com quem eles

deveriam 'acasalar / dormir'. Aquele 'homem de Deus', por quaisquer que sejam

as razões, seja sua loucura religiosa ou "justiça", não tinha o direito de

desrespeitar o leito de morte de outro.

Eu me senti enganada pela religião e pelos poucos homens loucos que


espalharam o evangelho, apresentando a imagem de um criador que é mais

odioso e vingativo, que o Deus santo e amoroso que pregam. Os seus duplos

padrões são óbvios: os líderes religiosos pregam fortemente contra a


homossexualidade como uma questão de moralidade enquanto eles toleram

assassinos, estupradores e opressores capitalistas, glorificando-os e entregando

suas almas imundas ao Senhor para descansar em paz eterna. Além disso, o papel

da igreja em conflitos e guerras não é um segredo; o discurso de ódio no

genocídio de Ruanda, o fornecimento de armas na guerra civil do Burundi ou na

pregação partidária antes da eleição de Dezembro de 2007 no Quénia que

alimentou o surto de violência brutal pós-eleitoral são apenas alguns exemplos.

A observação no meu país, Quénia, desses mesmos religiosos extremistas é que

eles experimentaram uma perda de poder estatal depois que o povo votou em

uma constituição em 2011 que melhorou a integração adequada dos tribunais


Kadhi existentes de nossos irmãos e irmãs muçulmanos/as em nosso sistema

374
judicial. Em segundo lugar, a nova Constituição afirma claramente que Quénia é

um Estado secular, o que significa a separação do estado da igreja.

Assim, de que outra forma eles podem recuperar outro poder que não seja

ditando que é moralmente correto, e qual é a questão mais adequada do que

homossexualidade, que já é desprezada pela sociedade?

Os rivais dos extremistas religiosos são os "liberais", os da esquerda que

levantariam questões sobre a universalidade das normas e o sistema capitalista

opressivo, aqueles que são apoiados pelos colonialistas rosa, feministas de


cupcakes e intervencionistas "visionários”. Eles são a burguesia da classe media

e alta que vêm à África para 'salvar' o povo africano 'pobre'. Eles são os estudantes

universitários que se voluntariam após a formatura para 'ajudar' e mais tarde


retornam como membros do conselho e CEOs de ONGs e, especialmente,

organizações doadoras com todas as respostas e visões perfeitas. E, como

aprendemos até agora, a ajuda tem um preço, não importa quão pouco, com o

tempo o continente viu o nascimento de incontáveis ONGs que inviabilizam os

processos de qualquer movimento progressivo e mudança em África. Eles

começam como grandes organizações e acabam como fábricas de petições

burocráticas. Não estou a insinuar que todas as ONGs têm más intenções, mas

como Issa Shivji afirma em seu livro Silences in NGOs Discourse : 'Não julgamos
o resultado de um processo pelas intenções de seus autores. Nosso objectivo é

analisar os efeitos objectivos de acções, independentemente de suas intenções. ‘1

375
O resultado final desse ideal catastrófico, como na maioria das lutas, houve um

aumento do activismo LGBTI-Q motivado por doadores e organizações

'visionárias', não prácticas, capitalistas e comercializadas - principalmente

marginalizando as lutas, realidades, conceitos e soluções das bases. Nossa

organização LGBTI-Q tornou-se, em grande parte, estruturada

hierarquicamente, mandada pelo doador e limitada em activismo. Isso deixou

muito poucos espaços LGBTI-Q conscientes que são progressivamente analíticos

e radicais, ou com a capacidade de aumentar a conscientização nas suas

comunidades sobre questões que nos afectam como africanx, como os múltiplos

níveis de opressão que vem das nossas realidades socioeconómicas ou


sociopolíticas, primeiro como povo africano e depois queer.

Por sua vez, isso limitou nosso pensamento ao que os doadores 'querem' e qual a
melhor forma de obter financiamento, e não como incorporar nossas lutas com

os outros movimentos de direitos sociais ao lado de quais nós vivemos e

trabalhamos. Como resultado, o quadro burguês deu nascimento a alguns

'libertadores' da comunidade LGBTI, que novamente são escolhidos pelos

doadores. Eles se tornaram a face pública da luta e são guardas de portões bem

financiados. Isso levou a novas divisões em torno do status económico e classe,

de modo à que uma pessoa estranha não possa se relacionar com outro sem

considerar o quão bem eles são conhecidos e a profundidade de seus bolsos.


Outra consequência foi a falta de um movimento queer forte, orientado pela

paixão, que adere ao seu próprio constituinte de base localizados em África. Tudo

376
isso é composto pela loucura religiosa que leva à violação bruta e fatal dos direitos

humanos da comunidade LGBTI-Q africana.

As contradições na maneira como o movimento LGBTI-Q tem se desenvolvido

até agora contribuíram para as percepções da sociedade heteronormativa que a

homossexualidade é uma coisa ocidental ou, como diria um camarada meu, 'algo

que alguém escolheu à caminho da vida na cidade. Outra crença, é uma que ouvi

quando voltava do Fórum Social Mundial, é que se tornar gay acontece quando

alguém está a subir a escada e quer obter dinheiro. No caso das mulheres, elas se

tornam feministas e depois lésbicas, para evitar as responsabilidades de ter


filhos. Eu achei essas afirmações como irritantemente engraçadas.

No entanto, se o movimento LGBTI-Q pudesse reanalisar evidências históricas


das prácticas e expressões sexuais africanas incrivelmente diversificadas e

complexas, teriam algo para refutar esses conceitos erróneos e aumentar sua

luta. Eu acredito que é um passo crucial em qualquer luta para que as pessoas

obtenham uma compreensão de onde elas são, onde eles estão e para onde eles

estão indo. De facto, quando começas a procurar material sobre

homossexualidade ou identidade sexual em geral nas antigas culturas africanas,

é incrível quantos estudos e histórias revelados existem que contradizem

completamente as noções rígidas de sexualidade que denominam como


'africana'. Esses estudos fornecem evidência histórica da homossexualidade na

África pré-colonial encontrada na linguagem, nomeação, desenhos e prácticas

religiosas que alcançam do norte ao sul, do oeste para o leste.’² Para citar apenas
alguns, pode-se chamar a atenção para os Qemant da Etiópia central, onde as

377
relações homossexuais entre os pastores eram comuns, ou os Maale no sul da

Etiópia, onde os homens (ashtime) realizavam tarefas femininas e mantinham

relações sexuais com homens. Da mesma forma, os Meru do Quénia, abraçavam

homens (mugawe) que se vestiam de mulher e às vezes se casavam com outros

homens. Além disso, entre os Kikuyu no Quénia, o casamento mulher-mulher

eram bastante comuns. Alguns estudiosos argumentam que estas eram mais

prácticas do que relações sexuais; no entanto, o facto permanece que existiam e

ainda existem. Os Hausa chamados travestis homossexuais yan daudu. Os Nzema

do Gana praticavam casamentos ( Agyale ) entre dois homens que se

apaixonassem.

A língua Kirundi do Burundi possui pelo menos cinco palavras para sexualidade

masculino- masculino. Em Angola, casamentos entre dois homens eram


honrados e valorizados e os homens que se comportavam como mulheres eram

chamados de chibados. Entre os Zande do Sudão, o sexo entre duas mulheres é

chamado adandara. E assim por diante eu posso continuar! Isso e muito mais

mostra que a homossexualidade existia muito antes da chegada do cristianismo

para este continente - só que não estava entre colchetes, como está nas siglas

usamos hoje em dia - e isso desafia a teoria de que a homossexualidade não é

africana.

A falta de conhecimento de nossa história é um grande revés, não apenas no

movimento LGBTI- Q, que está a ser combatido com muito fervor, tanto da

esquerda, direita e centro, mas em qualquer movimento. A história africana foi


amplamente pesquisada para nós, por académicos, ocidentais causando falta de

378
documentação suficiente e adequada, por exemplo, os ditados ridículos que

recitamos na pré-escola deliberadamente e erradamente nos disse que o Dr.

Livingstone terminou o tráfico de escravos na África e o Dr. Krapf descobriu o

Monte Quénia quando, de facto , nossos ancestrais haviam vivido naquelas terras

vendo a mesma montanha e tinham chamado Monte Kirinyaga. No entanto,

fomos ditos que um homem branco havia descoberto. Ironicamente, continua a

ser referido como o Monte Quénia, mesmo depois de atingir nossa 'in-

dependência'.

Outro mal-entendido surge quando as palavras "africano", 'constituição' e


'cristianismo' se enquadram na mesma frase em um argumento contra a

homossexualidade. O cristianismo não é africano porque entrou na África junto

com o Islão, como um ardil para a missão 'civilizadora' e a colonização no século


XVIII. As constituições dos países africanos também surgiram após a colonização

e foram apresentadas como instrumentos britânicos ou franceses para vincular

suas colónias, incluindo o Quénia. Nossa história foi ditada e alimentada a nós

pelos colonialistas para justificar seus actos desumanos, e após a independência,

eles nos apresentaram alguns de seus fantoches para imitarmos e celebrarmos

como nossos heróis enquanto eles reforçavam o capitalismo em nome da

globalização para o continente. Isto deixou muitas lutas, incluindo a LGBTI-Q,

sem um discurso que é prático e orientado para África.

As várias lutas combatem contra o mesmo sistema opressivo de que fazem parte

consciente ou inconscientemente. Um exemplo é encontrado dentro de nossos


espaços de advocacia de direitos LGBTI-Q, onde ignoramos a classe opressora,

379
hierárquica e burocrática e acabamos estreitando nossas lutas apenas para a

libertação sexual para alguns. Uma leitura de história e política LGBTI- Q em toda

a sua complexidade permite-nos reconhecer a realidade de que há mais nessa

luta do que se encontra à olho nu. Uma exploração mais complexa da história e a

política LGBTI-Q de África, juntamente com o colonialismo, irão nos levar a uma

compreensão da relação entre a opressão de negros em geral, das mulheres e

pessoas LGBTI-Q em particular. Isso, por sua vez, deixará nossa luta aberta para

ser estudada, analisada, criticada e talvez aceite como um dos mais antigos

costumes na história africana.

O estado e seus líderes políticos são outro obstáculo para essas lutas. Os políticos

tendem a usar a comunidade LGBTI-Q para quilometragem política ou para

ocultar os problemas reais que afetam os nossos países. Um exemplo perfeito foi
a confusão parlamentar no Quénia no final de 2010, quando os documentos do

caso quem assassinou Robert Ouko ressurgiram. Então Luis Ocampo³ do

Tribunal Penal Internacional (ICC) divulgou a lista dos suspeitos de ser

responsáveis pela violência pós-eleitoral, que trouxe caos entre os

parlamentares. Isto foi seguido por um 'apontar de dedo ‘, em uma espectacular

demonstração política de acusações, negações, retórica e propaganda. Eu não

podia me dar ao luxo de perder as notícias; foi como assistir a uma série de

drama.

Divertidamente, à medida que o suspense e a dúvida aumentavam entre a

população queniana, o primeiro ministro (PM), enquanto no bairro pobre de


Kibera, ordenou a prisão de gays no Quénia. Isso imediatamente deu ao povo

380
queniano algo em que pensar além da violência pós- eleitoral. Enquanto a elite

política do Quénia descobriu maneiras de arrecadar fundos para impedir os seus

companheiros de ir para o (ICC), a população queniana estava ocupada em

prender e espancar pessoas na comunidade homossexual, como o primeiro-

ministro havia aconselhado. Mas quando os quenianos não estavam mais

distraídos por essa retórica e se recusaram a ser dissuadidos pela questão do ICC,

o jogo sujo da política foi aplicado. O PM reivindicou na frente da comunidade

internacional e Ocampo que ele fora mal citado e que ele reconheceu os direitos

dos 'gays' – o que quer que isso significasse. Ele em seguida, repetiu virtualmente

a mesma tagarelice durante o enterro de Kirima ⁴, que foi depois da saga do


WikiLeaks⁵.

A luta queer também se situa no meio da realidade socioeconómica e cultural da


vida cotidiana das pessoas, uma realidade que dita como as pessoas LGBTI-Q

interagem e sobrevivem no mundo em torno delas. A sociedade interpretou vidas

e lutas LGBTI-Q como nada mais que desvio ou desorientação sexual, como se

essas pessoas não fossem seres sociais, políticos e culturais como todo mundo e

não tem direito de reivindicar. É sobre esta questão de direitos que os debates

sobre orientação sexual e identidade de género focam. É uma mentalidade

normativa provocada pelo patriarcado, sexismo, capitalismo, mais os papéis de

género atribuídos ao nascimento, que ignora as pessoas intersex que vivem entre
nós. Como um resultado, a atribuição de género se torna problemática para a

sociedade, embora não necessariamente os próprios indivíduos.

381
Precisamos descolonizar nossas mentes do imperialismo e capitalismo para se

tornar uma sociedade consciente e diversificada e que reconhece que a

homossexualidade é humana, como é Africana. A descolonização cria iniciativas

socialmente progressivas e espaços que não agrupam e classificam os problemas

em normas. Precisamos considerar diferentes formas de engajamento e

educação para mostrar ao nosso povo que a África tem uma base e riqueza na

humanidade que é abrangente, longe da manipulação política, social e

económica, e do roubo que tem tomado lugar.

A visão positiva é que pessoas e culturas nunca são fixas, mas, ao contrário, estão
em constante mudança ao longo do tempo. Por exemplo, duas décadas atrás, era

visto como errado em qualquer contexto obter um divórcio ou para as mulheres

usarem calças. Nossas sociedades podem mudar ao longo do tempo, sabendo que
as lutas sociais, económicas e políticas se interseptam. Todas essas questões

parecem familiares em todas as lutas, mas há um vazio, aguardando a acção

acontecer.

Enquanto discutimos mudanças nas sessões do Fórum Social Mundial, nossos

irmãos e irmãs do Egipto e Tunísia se uniram e foram fazendo essa mudança.

Eles fizeram sua história, redefiniram o "normal" que Mubarak era intocável, e

revolucionaram sua população. Saí do Fórum Social Mundial com apenas um


conceito. Nós precisamos recuperar nossas próprias histórias, descolonizar as

mentes de nossas pessoas, construir nossas próprias sociedades e com nossas

próprias regras, que são de África para África. Com solidariedade, camaradagem
e unidade, coloquemos todas as nossas diferenças e políticas pessoais de lado e

382
lutemos contra isso que nos oprime, ao ter uma onda de movimentos (aquela que

já está vibrando na África) que trará essa mudança. Que, para mim é o novo

mundo que eu espero ver.

Notas

Issa Shivji (2007: 2) Silêncios no discurso das ONGs: o papel e o futuro das ONGs na África, Nairobi e Oxford, Pambazuka Press.

Um excelente começo para o tópico é Steven O. Murray (2009) 'Homossexualidade na África Subsaariana “tradicional” e na
África do Sul contemporânea”, em Leitor do Grupo de Estudo para Sete Irmãs, Volume 1.

Luis Moreno Ocampo foi o promotor no Tribunal Penal Internacional Tribunal (até Junho de 2012) que preparou o caso contra
a suposta principal causa autores da violência ocorrida em 2007- 2008 após a contestação as Eleições no Quénia. Quatro dos
seis suspeitos enfrentaram julgamentos em andamento enquanto eu escrevo.

O falecido Kirima era um infame empresário que foi assassinado em o caminho de casa uma noite.

O WikiLeaks é uma plataforma / fórum da Internet que expôs muita sombra relações entre políticos e Estados Unidos.

383
384
24 – PEQUENO EIXO NA ENCRUZILHADA: UMA REFLEXÃO SOBRE
SEXUALIDADES AFRICANAS E DIREITOS HUMANOS – história de vida –
Kagendo Murungi

Sou uma africana defensora de direitos humanos que se envolveu com o trabalho

formal em direitos humanos em 1996, recém-formada e que precisa de um visto


de trabalho. Anos antes, quando me formei em estudos femininos, fui exposta a

análises intersectoriais e expressões criativas de feministas lésbicas de cor.

Como feminista, comecei a me perguntar se os princípios de direitos humanos

eram aplicados à vida de africanos continentais que amavam pessoas do mesmo

género e enfrentavam perseguição por isso. Eu queria saber onde esse trabalho

era realizado, se fazia parte do movimento feminista e como me envolver.

Durante meu primeiro semestre na faculdade, quando eu passeava pela livraria


uma manhã, atraí-me pela laranja brilhante de Zami,2 e a coloquei no carrinho

depois de olhar brevemente para a contracapa. Lembro-me de me impressionar

com a baixa e larga pilha de laranja e maravilhar-me com a visibilidade


abundante de uma publicação de uma lésbica negra. Minha pesquisa começou

naquela época.

Como jovem estudante feminista imigrante africana que atingiu a maioridade no

final dos anos 80 e início dos anos 90, fui exposta a inovações pragmáticas na

aplicação de estruturas de direitos a injustiças, violações e desequilíbrios

385
localizados e transnacionais através do meu campus e comunidade anti-

apartheid, anti-trabalho heterossexista, anti-racista e feminista.

A primeira imagem de um africano continental abertamente gay que eu já vi foi

do sorridente Simon Nkoli, o antiapartheid sul-africano pioneiro, activista pró-

direitos dos gays que trabalha contra o HIV / AIDS. O meu primeiro encontro com

as ramificações de apoiar visivelmente os direitos humanos de todas as mulheres

sem levar em consideração sua orientação sexual foi em 1995, durante a Quarta

Conferência Mundial da ONU sobre Mulheres, em Pequim. Pela minha

participação na marcha dos direitos humanos das lésbicas, fui enquadrada num
artigo curto, mas altamente sensacionalista, num diário nacional do Quénia

quando jovem, estudando no exterior e cercada por um mar de mulheres brancas

que balançavam os braços (leia-se: impressionável, muito longe de casa por


muito tempo, caiada de branco, ocidentalizada, simbolizada por uma agenda

colonial estrangeira e confusa). Quando recebi uma cópia do artigo de meu pai,

fiquei muito paralisada pelo meu próprio medo das consequências para

realmente considerar como deveria ter sido a experiência de choque,

preocupação, ansiedade e preocupação de meus pais na época.

Desejei então ter emergido num movimento pan-africano, democrático, de

libertação pós- colonial amplamente reconhecido e obviamente legítimo.


Chegaria a entender mais sobre a arena actual e minha posição relativa nela nos

meses e anos seguintes, através do meu trabalho com organizações de direitos

humanos para documentar as experiências vividas pelo povo LGBTI em África


continental e defender em seu nome.

386
Em retrospetiva, eu me perguntei como poderia, de alguma forma, estar mais

preparada para a completa condenação e estigma de lidar com a orientação

sexual, de qualquer forma pública, como uma africana continental. Existem

poucas descrições em primeira pessoa da vida africana nas transições entre

isolamento, vergonha, ridículo, ameaças, chantagem, violência, ódio próprio,

coragem, esperança, medo, activismo e amor. Eu ainda procuro um sentimento

tangível de experiências africanas de amor do mesmo sexo. Quero ver relatos

detalhados, dos próprios africanos, de suas experiências bem-sucedidas na

navegação de papéis pessoais e responsabilidades da comunidade. Quero ver

como pessoas como eu fizeram a jornada desses espaços para a totalidade.

Em meados dos anos 90, o tema da homossexualidade foi introduzido no domínio

público nos países africanos em um nível sem precedentes. No mês anterior à


Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, o Presidente Mugabe, do

Zimbábue, tornou-se o primeiro chefe de estado africano a denunciar e

ostracizar publicamente homossexuais africanx, com tanta veemência que lhe

causava infâmia. Soube que o presidente do Quénia Moi havia respondido à

media internacional em torno da defesa de Pequim pelos direitos das lésbicas

como direitos das mulheres, ridicularizando o movimento dos direitos das

mulheres, questionando sua agenda e menosprezando seus grandes avanços e

realizações concretas, especialmente na década desde a Terceira Conferência


Mundial sobre Mulheres em Nairobi, em 1985. Lamentei mais tarde notícias sobre

comunidades e agrupamentos periféricos e estigmatizados em vários países

africanos que foram levados ainda mais para o subterrâneo. Enquanto isso, a

387
grande maioria de defensoras dos direitos das mulheres africanas mantinha

obscurecida qualquer possível proximidade analítica a esses problemas, por

medo de ter suas lutas legítimas como mulheres heterossexuais minadas pela

associação com questões lésbicas. A temporada aberta para os africanos LGBTI

estava oficialmente em andamento.

A criação de activista

Após a intensidade emocional e política da conferência de mulheres em Pequim,

decidi me envolver com a substância do que estava politicamente em jogo numa

questão que havia impactado minha vida tão dramaticamente. Aceitei a oferta de
um emprego de período integral na Comissão Internacional de Direitos Humanos

de Gays e Lésbicas (IGLHRC), onde ajudaria a criar um programa regional,

incluindo um foco em África. Eu praticamente saí da sala de aula para a vasta

arena dos direitos humanos internacionais. Decidi absorver o máximo de

conhecimento possível sobre protocolos, convenções e mecanismos

internacionais de direitos humanos; órgãos regionais de direitos humanos;

constituições nacionais relevantes e códigos penais; organizações não-

governamentais aliadas; e meios de comunicação úteis para o trabalho.

Meu primeiro ciclo de envolvimento no trabalho pelos direitos humanos

relacionados à sexualidade a partir de uma base nos EUA, me expôs aos rigores

diários de legitimar os direitos humanos das ‘minorias sexuais’ em regiões do

388
mundo em que o amplo apoio a ainda é recém- nascido. Fui transformada

pessoalmente e politicamente através do meu trabalho ao lado de organizadores

comprometidos, nos quais nos apoiamos e no desafiamos de inúmeras maneiras

para expandir nossas abordagens para a realização dos direitos humanos

relacionados à sexualidade. A substância do meu trabalho diário incluía

monitorar, confirmar e disseminar informações sobre violações dos direitos

humanos; escrever alertas de acção e comunicados de imprensa; ligação com

organizações governamentais, não-governamentais e intergovernamentais; e

solicitar informações de media, formuladores de políticas, colegas e apoiantes.

Tive a sorte de ter sido exposta, durante meus anos de faculdade, à importância

de uma perspectiva de género sobre direitos humanos e sua principal

preocupação com a invisibilidade das experiências das mulheres na aplicação e


desenvolvimento da lei principal de direitos humanos e mecanismos

relacionados das Nações Unidas. No desenvolvimento histórico dos paradigmas

de direitos humanos, as mulheres nunca foram conceituadas como sujeitos

legais. Os sujeitos apropriados da lei de direitos humanos haviam sido cidadãos

brancos, homens e proprietários de terras, de nações ocidentais política e

economicamente independentes, aos quais somente as presunções de

universalidade e indivisibilidade de direitos poderiam ser aplicadas. A maioria

das normas substantivas do direito internacional dos direitos humanos foi


definida em relação às experiências de homens individuais e foi declarada em

termos de violações discretas dos direitos no domínio público.

389
Para abordar a igualdade de status das mulheres, os advogados começaram a

realizar mudanças conceituais para abordar de forma explícita e sistemática as

respetivas realidades socialmente construídas de mulheres e homens. O impacto

de papéis de género culturalmente específicos, particularmente na esfera

privada, começou a ser reconhecido como um impedimento ao pleno gozo dos

direitos humanos das mulheres, como condição de seu status igual na sociedade.

O direito de todas as mulheres de fazer escolhas sexuais individuais e de

conceber filhos independentemente do estado civil, sem a ameaça ou realidade

da exposição à violência na esfera doméstica, era essencial para o pleno gozo dos

direitos à integridade e saúde corporais.

Meu envolvimento no trabalho me ensinou que esses direitos tinham implicações

diretas na aplicação das leis e prácticas internacionais de direitos humanos à


eliminação da discriminação e injustiça relacionadas à sexualidade. Aprendi que

as questões de violência contra as mulheres e a liberdade reprodutiva das

mulheres estavam inextricavelmente ligadas a questões de direitos humanos

relacionadas à sexualidade, justiça e liberdade. O facto de chefes de Estado

africanos terem frequentemente enviado mensagens inflamatórias anti

homossexuais e fundamentalmente antifeministas aos grupos de mulheres locais

não foi uma simples coincidência. A deterioração das condições socioeconómicas

nos estados-nação africanos transformou africanx LGBTI em bodes expiatórios


fáceis, diante de expansões em sociedade civil, movimentos crescentes pelos

direitos das mulheres, reforma constitucional, educação e prevenção do HIV /

390
SIDA, acesso a medicamentos e tratamentos acessíveis, direitos à terra após a

independência e movimentos contra a fome e a favor da democracia.

Aprendi também que o sucesso do trabalho sobre os direitos sexuais africanos

deve reflectir-se num reconhecimento prático multicêntrico das questões e

estruturas que precisam ser abordadas. Isso, deve resultar numa constante

transformação estrutural dos locais a partir dos quais o trabalho é realizado à

medida que novas análises emergem do próprio trabalho. Diante da seca global

de publicações escritas em África sobre desejo, amor, relacionamentos e

comunidades do mesmo sexo, a aplicação de estruturas de direitos humanos às


condições dos africanos LGBTI em estados africanos independentes exigiu

vínculos com os movimentos das mulheres africanas. Minha compreensão

experimental da necessidade de aplicações mais responsáveis e efetivas da lei e


práctica de direitos humanos para a vida e os direitos das pessoas africanas que

amam alguém do mesmo sexo, me convenceu da necessidade urgente de

documentação multimedia das melhores prácticas, ou de estratégias indígenas e

diaspórias bem-sucedidas.

Trabalhar como imigrante africana em direitos de lésbicas e gays africanx de uma

organização sediada nos EUA no contexto de desigualdades económicas

globalizadas, noções patriarcais predominantes de estado e cidadania indígena e


os fundamentalismos ressurgentes actuais foram uma experiência repleta de

muito paradoxo. Por alguma medida de autoprotecção da época, eu me adaptei

utilizando um pseudónimo para meu trabalho profissional e buscando asilo


político. Trabalhar para a implementação de estruturas de direitos humanos

391
como uma mulher imigrante africana móvel, de localização múltipla,

atravessando fronteiras nacionais e lidando constantemente com burocracias de

imigração enquanto falava e agia em locais de mudança, era puramente

desgastante e surreal. Eu fui aleatoriamente confrontada com telefonemas e

emails estranhos, assediadores e ameaçadores, juntamente com a constante

ameaça de chantagem. Essas tensões e perigos da negociação, justapostos ao

apagamento e superexposição de um discurso obscuro, finalmente me levaram a

fazer uma pausa.

Eu precisava de tempo para reflectir sobre minhas experiências pessoais e


políticas como agente de direitos humanos. Ansiava por canais através dos quais

reivindicaria mais criativamente o meu legado pan-africano. Ansiava por uma

exploração mais profunda das novas dimensões do meu caminho de vida.


Busquei uma base mais sólida nas responsabilidades prácticas diárias para minha

saúde e para meus entes queridos. Deixei meu emprego em direitos humanos e

comecei a procurar maneiras de equilibrar meu compromisso com o trabalho

político criativo pela justiça socioeconómica.

Com o tempo e o apoio paciente de amigos e familiares, comecei a entender que

meus esforços isolados para lidar com as pressões de minhas experiências,

fragmentando-me na práctica e na aparência, foram baseados na ilusão. Usar


minha imagem num só lugar, mas não meu nome; falar meu nome num site, mas

não minhas experiências; partilhar minha experiência pessoal em algum lugar,

mas não minha análise completa em nenhum lugar – nada disso havia
funcionado. Essas identidades parciais e narrativas fragmentadas não me

392
protegeram. Eu permaneci à deriva num discurso hegemónico sobre meus

direitos, despreparada ainda para contribuir coerentemente para alterá-lo.

Quando parei de trabalhar para a realização dos direitos humanos civis e

políticos baseados em identidade, foi porque esse trabalho diário falhava em me

sustentar de maneiras básicas. Eu precisava da proximidade de pessoas que

compartilhavam mais aspectos da minha experiência diária. Assim, mudei-me

para o nordeste dos EUA, com sua abundância de comunidades imigrantes

africanas de primeira geração. Eu precisava muito de apoio social e cultural de

infraestrutura para todo o meu ser negra africana.

No centro de Manhattan e Brooklyn, entrei em contacto com um grupo de artistas

performativos pan-africanos que se expressavam criativamente em questões de

género, sexualidade e nacionalidade. Eles me acolheram generosamente, e eu me


juntei a eles em ensaios e discussões, principalmente como um voyeur inquisitivo

em aspectos de minha própria vida. Participei de reuniões sociais de amigos pan-

africanos de inúmeras sexualidades e realidades de género, onde assistimos e

criticamos as dimensões da sexualidade e de género e os dispositivos estilísticos

nas representações cinematográficas dos africanos; poesia executada; histórias

compartilhadas; flertou; dançou; riu; comeu; e criou comunidade. Lá, tão longe

de ‘casa’, muitos de nós incapazes de viajar por longos períodos devido a status

de imigração flutuante, bravamente reunimos nossas psiques, contemplamos a


totalidade e criamos uma família. Testemunhando a necessidade colectiva básica

da minha comunidade de segurança, confiança, amizade, autoexpressão criativa

e autonomia económica, e nossas alegações individuais com essa necessidade,

393
reafirmaram meu senso de direitos humanos sociais e culturais como primário e

indivisível dos direitos civis e políticos neste país e em nossos países de origem.

Esse grupo de artistas-activistas do nordeste havia feito iniciativas translocais

bem-sucedidas (ou seja, iniciativas entre localidades e não além das fronteiras

nacionais), que continuam a ser apoiadas por trabalho voluntário e pelas

generosas doações de nossas redes translocais, juntamente com a assistência de

organizações internacionais progressistas, filantrópicas e de direitos humanos.

Conseguimos mobilizar fundos crescentes em apoio a dissidentes políticos e

sexuais africanx deslocados devido ao seu trabalho em direitos humanos


relacionados à sexualidade. Esses homens e mulheres de coragem e habilidades

são sobreviventes de assédio, detenção, tortura e estupro. A importância de nossa

agência autónoma – nossas escolhas individuais e coletivas como comunidades


africanas – é evidente, uma vez que nossos companheiros geralmente não têm

outro recurso imediato à justiça, mesmo quando seus casos já estão bem

documentados por organizações de direitos humanos (cujas missões, no entanto,

não inclui a liberação sistemática de fundos de emergência para dissidentes

sexuais e políticos em necessidade).

Ligando o passado ao futuro

Os discursos de direitos humanos implantados em resposta às condições actuais

de pessoas africanas totalmente sexuais3 obscurecem com muita facilidade a

394
acção desses mesmos assuntos. A visibilidade descontextualizada dos africanos

LGBTI, na ausência de esforços educacionais autónomos e sustentados, limita

nosso potencial de organização local e translocal. Embora continuemos expostos

a todo tipo de policiamento pessoal, incluindo a constante ameaça e realidade da

exposição a chantagens, não podemos nos dar ao luxo de ter nossas histórias e

iniciativas corajosas de vida apagadas, marginalizadas ou subsumidas pelas

agendas bem- intencionadas de outras pessoas. Devemos permanecer vigilantes

conscientes de nossa relação histórica com movimentos, tanto nos EUA quanto

em nossos países de origem, que tiveram visões mais amplas de transformação

social.

Nosso legado histórico como povo africano totalmente sexual inclui vitórias

sobre escravidão, colonização e apartheid; e séculos de experiência em


organização multifacetada para acções sociais fundamentais, transformação

económica e política e liberdade para todos. Nossas abordagens conceituais para

a organização partem das estratégias multilíngues, interdependentes,

intertextuais e intersectoriais dos movimentos feministas pan-africanos, negros

e do Terceiro Mundo. É essencial que nossos aliados progressistas baseados nos

EUA se contextualizem em relação à história deste país de guerra genocida contra

povos indígenas e escravização de africanos, e reconheçam a centralidade da

ideologia da supremacia branca para a manutenção do privilégio estrutural


branco e a expansão capitalista dos EUA.

Embora as principais publicações actuais de LGBTI e direitos humanos possam


fornecer algumas perspectivas interessantes e até úteis sobre nossas vidas e

395
organização, elas também sustentam casualmente os privilégios estruturais de

homens brancos. Esses supostos defensores de nossa existência e direitos

revelam seu cinismo e miopia quando aplicam embalagens paternalistas a

experiências totalmente sexuais africanas, sem a consideração explícita e

sistemática de nossa complexa agência autónoma em circunstâncias perigosas. A

sobrevivência de africanx totalmente sexuais que trabalham sob condições de

risco de vida em coalizões frágeis exige urgentemente o reconhecimento,

demonstrado de nossos aliados de que a erradicação da supremacia branca e da

supremacia masculina anda de mãos dadas com a erradicação da supremacia

heterossexual.

Nossas realidades materiais diárias e economias políticas como migrantes,

juntamente com nossas convicções ideológicas e alianças políticas como


africanos, influenciam nossa linguagem social, expressão cultural e parâmetros

pragmáticos como agentes de mudança. Em Setembro de 1999, uma coalizão

tricontinental de pessoas africanas, negras e migrantes LGBTI realizou uma

intervenção cultural oportuna na primeira Conferência da Associação

Internacional de Lésbicas e Gays (ILGA), com sede na África, em Joanesburgo,

África do Sul. Com o apoio da Astraea Fundo Internacional para Minorias Sexuais

(para quem trabalhei como consultora de programa no ano seguinte), membros

da nossa rede LGBTI africana com sede em Nova York, a Organização Gay e
Lésbica da Witwatersrand (GLOW), com sede em Joanesburgo e o grupo LGBTI

de migrantes negros e com sede em Amsterdão, ‘Strange Fruit The Real’,

planejou e criou uma zona franca cultural chamada ‘Unifying Links’, que serviu

396
como um local de compensação para as experiências e necessidades das

feministas lésbicas de cor presentes na conferência.

Um grupo nosso, na esperança de inspirar a auto-expressão entre lésbicas

globais de cor e nossos amigos e aliados, elaborou e divulgou uma lista de

objectivos e estratégias para nossa intervenção multimedia e solicitou a

participação de nossos aliados. Nossa agenda explicitamente anti-racista e pró-

feminista priorizou o auto-empoderamento, a visibilidade, a participação

autónoma e igual em nossos próprios termos, a criação de espaço para

networking e a autorrepresentação cultural criativa, o monitoramento e a


documentação da própria conferência e a boa e antiga diversão. Para isso,

garantimos e decorámos uma sala no hotel da conferência, na qual exibimos

vídeos produzidos independentemente, refletindo nossas diversas comunidades,


mantemos mesas e espaços nas paredes onde os aliados podiam exibir seus

materiais organizacionais e trabalhos criativos e mantivemos um diálogo crítico

sobre as questões que surgiam. Na conferência, bem como questões cruciais para

a organização local e translocal de feministas lésbicas de cor.

Africanizando os direitos sexuais

Como sabemos, muitos estados africanos permaneceram colónias de países

europeus durante a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e

só se tornaram parte dela depois de obter independência durante o último meio

397
século. Este é o contexto do debate em andamento sobre questões de

universalidade versus relactivismo cultural na aplicação de estruturas de direitos

humanos. As mudanças económicas globais da expansão do capitalismo nos

estados africanos pós- coloniais os mantêm em relações políticas desiguais com

os países industrializados ocidentais, complicando ainda mais a aplicação das

estruturas de direitos humanos. Essas complexidades, aplicadas à realização dos

direitos humanos relacionados à sexualidade, exigem que utilizemos abordagens

interdisciplinares que explorem conscientemente as múltiplas dimensões da

opressão social. Tais abordagens nos permitem levantar as seguintes questões

(entre outras):

• Como podemos trabalhar em colaboração a partir de uma base nos EUA

com organizações e indivíduos indígenas de base comunitária, sem usurpar

seu território e revitimá-los?

• Como podemos utilizar a estrutura de direitos humanos e sua dependência

na identificação de indivíduos e grupos vitimados (neste caso, lésbicas,

gays, bissexuais e transgéneros) enquanto mantemos nossa crítica às

sexualidades baseadas em identidade e à própria estrutura de direitos


humanos?

• Como podemos promover a equidade geográfica e a autonomia,


contribuindo para uma maior redistribuição de recursos económicos?

398
• Como podemos centralizar questões de violência racista, xenofobia,

brutalidade policial, reacção anti-imigrante e perfil racial, que têm impacto

em nossas vidas diárias, como parte de uma troca de informações

bidirecional?

• Como podemos sustentar redes autónomas e grupos de direitos

prossexuais e pessoas LGBTI de cor à medida que mantemos nosso

emprego em instituições com várias agendas?

• Como acessamos vários sites e canais de comunicação para documentar e


divulgar nossas experiências e análises vividas?

As questões de direitos humanos em assuntos ligados à sexualidade africanas

devem estar relacionadas a políticas prácticas, eficazes de libertação anti-racista


e anti-imperialista. Isso requer esforço consciente. Um exemplo de sucesso em

tais esforços foi a aplicação de análises feministas a questões de agência e poder

das mulheres na violência relacionada à sexualidade e ao género, resultando na

transformação da linguagem por movimentos contra assédio e agressão sexual.

O movimento de mulheres agredidas, em particular, conseguiu mudar a


terminologia de ‘vítima’ para ‘sobrevivente’ ao se referir a mulheres que foram

submetidas a violência e abuso. As análises do movimento feminista e dos direitos

civis negros também iluminaram as limitações discursivas e o impacto psíquico


colectivo adverso de se referir aos afro-americanos como um “grupo

minoritário” e não como membros “sub-representado”, “com poucos recursos”

399
e “super-explorado” de comunidades. Esse tipo de mudança discursiva

necessariamente desassocia as condições de injustiça social, económica e política

da participação em grupos étnicos específicos ou de habitantes de localizações

geográficas específicas.

A aplicação da igualdade racial e o empoderamento discursivo de africanx

nativos, juntamente com medidas substantivas para garantir a equidade de

género, são indissociáveis das abordagens dos direitos humanos à liberdade

sexual. Apenas essas múltiplas abordagens podem esperar começar a superar os

obstáculos conservadores de restrições culturais, religiosas e políticas aos


direitos relacionados à sexualidade. Os direitos humanos relacionados à

sexualidade não são meramente uma questão de identidade sexual. As prácticas

de direitos humanos relacionadas à sexualidade, que exigem uma associação


pública com orientação sexual ou associação a um ‘grupo minoritário sexual’,

devem, portanto, ser problematizadas. Não fazer isso, arrisca a perda de variadas

dimensões sociais, culturais e económicas ao enfrentar desafios para a realização

geral de direitos básicos e liberdades fundamentais.

A fim de mobilizar respostas oportunas às caça às bruxas anti homossexual em

nossos países de origem, trabalhadores africanos de direitos humanos

totalmente sexuais com sede nos EUA descobriram que é estrategicamente útil
desenvolver laços com organizadores de todos os sexos no continente africano e

aliados heterossexuais em todo o mundo. Há uma demanda crescente por

assistência rápida e coordenada ao reassentamento para dissidentes políticos


ativos no trabalho de direitos humanos relacionados à sexualidade, que fogem de

400
seus países de origem. Integrante disso é a necessidade do estabelecimento e

expansão de fundos de emergência para dissidentes sexuais e políticos e para

organizadores indígenas na área de direitos sexuais.

Se pretendemos desistigmatizar a advocacia dos direitos humanos de africanx

LGBTI, devemos primeiro reconhecer que qualquer pessoa africana que o faz

publicamente, é imediatamente marcada como homossexual e directamente

sujeito à estigmatização social. Isso certamente é verdade para africanx em

África, mas também para nós na diáspora. Meu mandato de três anos como

especialista regional da África / Oriente Médio / Caribe no IGLHRC fez de mim a


única ‘lésbica queniana’ facilmente associada aos direitos de lésbicas e gays por

meio de pesquisas na Internet, o que contribuiu significativamente para minha

coação na época. Claramente, isso não é útil para sustentar um movimento


efectivo de direitos humanos relacionado à sexualidade. Garantir a autonomia

africana na autoidentificação é, portanto, crucial para este trabalho e requer a

ampla implementação de padrões de segurança e protecção da

confidencialidade. Esses padrões devem incluir liberdade na seleção de

identidades públicas, incluindo o uso de codinomes como prerrogativas básicas

de segurança.

O trabalho de defesa dos direitos humanos centrado nas pessoas que protegem a
liberdade de expressão deve permitir e incentivar os profissionais a estruturar e

promover seu trabalho como bem entenderem. Por exemplo, quando voltei ao

IGLHRC como oficial de programa para a África e o sudoeste da Ásia, decidi me


identificar por meio de uma rede teórica (a África do Sudoeste Asiático) para fins

401
de identificação com um objectivo colectivo, e não individual. Também escolhi

me identificar como uma feminista africana como sendo mais práctica e

estratégica do que a identificação pública em termos de identidade sexual num

contexto limitador de direitos. Meu trabalho no IGLHRC evoluiu principalmente

para iniciar parcerias de projetos de pesquisa aplicada direcionados localmente

para combater a violência contra as mulheres (‘estupro curativo’) e entre

mulheres (violência doméstica), além de promover os direitos humanos e o

‘crescimento pessoal’ para mulheres de várias sexualidades em África. Para me

identificar mais fortemente com as mulheres africanas e activistas dos direitos

de género, também consegui alterar meu título profissional para “oficial do


programa de África”. O trabalho das mulheres pela justiça de género é uma boa

tradição africana para me aliar como mulher africana a trabalhar numa

organização de direitos humanos de gays e lésbicas sediada nos EUA.

As redes de acção têm funcionado efectivamente como ferramentas para a

organização feminista pós-colonial do Terceiro Mundo há algumas décadas. As

redes translocais regionais e baseadas em questões fortalecem o trabalho

colaborativo, ao mesmo tempo em que apoiam a autonomia dos respetivos

grupos constituintes envolvidos. Ajudam a mobilizar a vontade política e recursos

económicos em assuntos urgentes; agilizar as comunicações; e oferecer

oportunidades de apoio social, cultural e analítico, entre outras coisas. No


trabalho sobre questões de direitos humanos relacionadas à sexualidade

africana, as redes de acção identificadas por região oferecem plataformas

discursivas e de segurança prácticas para promover a identificação pública com

402
questões contenciosas. Os grupos políticos que trabalham nessas questões são

desafiados a aumentar a criatividade, a fim de impedir a imposição de rótulos de

identidade sexual perigosos que podem marcar assuntos específicos por

discriminação e mobilidade restrita. Estratégias comunitárias de acção, como

identificação e vínculos com redes regionais e baseadas em questões, oferecem

as vantagens da visibilidade despersonalizada e de bases mais amplas para

advogar pela justiça.

Precisamos realizar pesquisas básicas de avaliação de necessidades em

comunidades totalmente sexuais africanas indígenas e diaspórias. Enquanto isso,


outras necessidades documentadas incluem financiamento, suporte técnico,

estratégias para superar barreiras linguísticas, desenvolvimento de liderança,

treinamentos em direitos humanos, publicações sobre experiências


semelhantes, produção e distribuição de multimedia locais para palestrantes e

performantes, desenvolvimento e promoção de padrões para a protecção da

propriedade intelectual, diálogos sul- sul e Diálogos ‘Terceiro Mundo com–

Terceiro Mundo sem’.4

Trazer tudo de volta para casa

Minha metodologia política está enraizada nos princípios feministas do Terceiro

Mundo Negro e dos EUA e em estratégias feministas pan-africanas para o

trabalho translocal de direitos humanos. Meu espírito foi sustentado através de

403
expressões criativas de organização comunitária e auto-expressão em meus

bairros locais. Estar envolvida em aspectos de distribuição e produção de vídeo,

além de escrever e executar poesias, me proporcionou os locais necessários para

a interface da comunidade e a inspiração fundamentada. Se os direitos humanos

relacionados à sexualidade devem ser realizados de maneira equitativa por

africanx no continente e na diáspora, a agência cultural é uma necessidade

básica, juntamente com o conhecimento documentado autonomamente e o apoio

material sustentado às iniciativas de construção da comunidade.

Minhas experiências me ensinaram que os esforços para vincular questões de


direitos humanos às nossas realidades comunitárias, como seres humanos são

sobre processos e percepção. Nossos processos familiares impactam as

percepções da comunidade e vice-versa. Devemos sempre permanecer


criticamente conscientes de nossas posições subjetivas complexas e às vezes

contraditórias na defesa dos direitos humanos. Os defensores dos direitos

humanos são um corpo diversificado de assuntos, com perspectivas variadas

baseadas em suas realidades comunitárias. No desenvolvimento de metodologia

apropriada, estratégias efetivas de direitos humanos devem abordar tanto as

necessidades experimentais dos sujeitos em consideração quanto o conteúdo de

direitos específicos. À medida que novas estratégias são desenvolvidas e

implementadas, o clima actual de volatilidade na arena de direitos humanos de


africanos relacionados à sexualidade exige sensibilidade particular à inclusão de

africanx totalmente sexuais em posições de tomada de decisão. Dessa maneira,

os benefícios da análise profunda do conhecimento aplicado conscientemente,

404
juntamente com os da produção e distribuição de conteúdo, podem ser aplicados

aos conceitos e discursos de direitos expandidos.

Confrontar o estigma, o silêncio e a negação relacionados à homossexualidade

africana me desafiou a trabalhar para reverter os resultados de identificações

externas negativas, autodefinições incompletas, atitudes fossilizadas e histórias

estácticas, nomeando o que está conectado e o que é importante para mim. Voltei

ao trabalho formal de direitos humanos após três anos de trabalho criativo para

os direitos humanos pan-africanos económicos, sociais e culturais numa

variedade de localizações geográficas. Sou abençoada com um renovado senso de


esperança, uma visão mais clara de alguns próximos passos a serem

implementados, o apoio de amigos próximos e novos rituais diários para o

autocuidado.

Notas

De uma letra de Bob Marley:

Why boasteth thyself, oh evil men, Playing smart and not being clever?

I say you’re working iniquity to achieve vanity, yeah, But the goodness of JAH JAH endureth forever.

If you are the big tree, We are the small axe.

Sharpened to cut you down, Ready to cut you down.

Para o texto completo, consulte http://www.bobmarley.com/songs/songs. Cgi?smallaxe.

Audre Lorde (1983) Zami: A New Spelling of My Name, Santa Cruz, CA, Crossing Press.

405
All-sexual 'é um termo usado na rede do Fórum Caribenho de Lésbicas, AllSexuals & Gays (C-FLAG) para indicar que
considera o comportamento all-sexual como parte de um continuum sexual no qual classificações como' gay lésbicas 'e'
bissexuais 'geralmente não podem ser aplicadas rigidamente. Os termos "homens que fazem sexo com homens" e "mulheres
que fazem sexo com mulheres" são tentativas de contornar essas classificações rígidas. O termo 'allsexual' refere-se não
apenas a características biológicas e sexuais, mas também a atitudes sociais relacionadas a elas. 'All-sexuals' refere-se,
portanto, a pessoas que amam os mesmos géneros cujas acções não violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou
seja, cujas acções não são abusivas para menores e outras pessoas que estão em circunstâncias dependentes ou com
capacidade reduzida ou violar os direitos ou a dignidade pessoal de qualquer pessoa. Veja
http://www.jflag.org/misc/allsexual.htm.

O Third World Within (TWW) é uma rede de pessoas de organizações de cor da cidade de Nova York. Seu objectivo é destacar
questões 'domésticas' resultantes do racismo e da reestruturação económica dos EUA, educar e mobilizar comunidades de cor
em torno dessas questões e trabalhar em solidariedade com activistas, organizadores e comunidades do Terceiro Mundo e do
mundo para exigir responsabilidade. do governo dos EUA e instituições internacionais por seu papel no desenvolvimento e
manutenção de políticas e instituições destrutivas para as comunidades do Terceiro Mundo e do Terceiro Mundo nos EUA.

406
407
25 – A NATUREZA NÃO É RÍGIDA
– POEMA – Kagendo Murungi

Abrangendo o mundo
Eu era um homem
Da África para a Ásia;
Agora eu sou uma mulher
Da Europa para a Utopia
Eu era uma mulher
Onde quer que você vá
Agora sou um homem
Na identidade de género
Fui visto como ambos
Não há absolutos
Eu não sou nem um nem outro...
Na identidade de género
Você é um homem, diz uma multidão
Existem apenas parentes
Você é uma mulher, diz uma multidão
Forçando absolutos
Eu sou uma mulher, eu insisto
Desiquilibrando
Eu não sou um homem, mas alguns
Da natureza - um casamento gradual insistem
de
Agora eu sou ambos
ambos
Agora também não sou eu
Traz equilíbrio
Eu sou todo mundo

Eu não sou todo mundo


isto é...
Eu estou na cúspide

408
É natural desde o nascimento, De ambos e de nenhum dos dois

foi-me dito E assim quando você

Sem sentido; apenas três Digamos que você sabe tudo

ou quatro anos Tudo o que você sabe é

Género de identidade de fronteira é VOCÊS MESMOS


isso –
VOCÊS MESMOS
Um deles é queer +
É conhecer todos vocês
transgénero
Saber quando você diz que você
Você luta em guerras se
Assim e nenhum dos dois e de
assim tiver que ser e soma tudo isso
Eu estou na cúspide
num laço.
Todo mundo não sou eu
Todos sou eu
Equilibrium traz
Ou não sou eu
Um casamento gradual para ambos –
Agora eu sou ambos
da natureza
Homem eu não sou
Equilibra transtornos
Sou Mulher
Absolutos forçados
Ou não sou eu
Os parentes apenas aparecem
Agora sou ambos
Identidade de género em
Sou mulher
Absolutos não existe
Homem eu não sou
Identidade de género em
Apenas quatro ou três anos de idade
Ir você para qualquer lugar

409
Incomódo; disseram-me (...) Utopia para a Europa de

de Parto natural nasci Ásia para a África de

Então você me disse tudo isso soma um

Homem eu não sou Nó se guerras tiverem de

Mulher és ser combatidas para ser você

Mulher eu não sou Transgénero + género

Homem és São um - este é o género

Mulher eu sou Fronteira de identidade

Homem és

Mulher eu sou É isto

porque

A natureza não é rígida

410
411
26 – SOBRE A LÓGICA PARADOXAL DAS INTERSECÇÕES: UMA LEITURA
MATEMÁTICA DA REALIDADE DA HOMOSSEXUALIDADE EM ÁFRICA –
Charles Gueboguo

Introdução

Amigos académicos se perguntam por que eu ‘me preocupo’ em discutir com


anti-homossexuais e reaccionários, em vez de apenas focar minha atenção, como

um estudioso africano, em ‘apoiar pessoas razoáveis para ajudar os dinossauros

a morrer mais rapidamente’, particularmente quando tantos excelentes

estudiosos já demonstraram abundantemente as ‘evidências’ que irei discutir,

que agora também são completamente aceitas pelo UNAIDS, todos os principais

doadores e até muitos governos africanos por meio, por exemplo, de seus planos

estratégicos nacionais de AIDS ou de seus relatórios de direitos humanos.1

Eu argumentaria que, como construcionista, não considero garantidos factos

sociais e não os vejo como estáticos. Eu tenho em mente que eles são dinâmicos

em sua essência, ou seja, toda vez que, como observador, você tenta abordar
‘homossexualidades’ na África, sempre terá algo novo para descobrir. Isso é

verdade para todos os factos sociais. Deveríamos assumir que, porque o

neocolonialismo, a corrupção ou a democracia, por exemplo, já foram abordados


por estudiosos conhecidos e de uma maneira muito rigorosa, tudo foi dito? E o

412
facto de a ciência ser percebida como um processo cumulativo de descoberta

(Bourdieu 2001)? O facto de as sexualidades do mesmo sexo terem sido bem

abordadas por estudiosos não africanos não é uma desculpa para parar de tentar

“repensar” as realidades sociais que ainda trazem tragédias para a vida cotidiana

de indivíduos em África devido à sua orientação sexual: morte, estupro,

chantagem, extorsões (Thoreson e Cook 2011). Mas, como veremos mais adiante,

a questão que sublinho aqui é outra maneira de formular os binários agora

internos entre o que deveria ou não ser dito sobre as homossexualidades em

África. Quem realmente tem legitimidade para argumentar quem pode ou não

falar sobre homossexualidade? Cientificamente falando, minha resposta é


ninguém.

Sugiro, portanto, que a situação dramática em curso das pessoas no continente


que amam o mesmo sexo que elas mesmas possa ser tratada de maneiras

diferentes, e a minha é uma posição teórica assumida. Isso ocorre porque,

embora a homossexualidade tenha sido abordada por estudiosos da África,

inclusive eu, ainda perdemos a resposta de por que a vida quotidiana das pessoas

está piorando. Minha hipótese é que ainda precisamos desafiar e acrescentar

teoria, não no sentido grego da teoria, que é pura e simples contemplação, mas

no sentido de uma posição filosófica. A intenção é abordar e desafiar a visão de

senso comum sobre as sexualidades do mesmo sexo em todo o continente de que


as questões da homossexualidade são vistas como secundárias para serem

abordadas cientificamente. Enquanto isso, meu objectivo é tentar reabrir o

campo de possíveis interpretações.

413
Dito isto, gostaria de continuar discutindo neste artigo as fronteiras, notadas em

alguns discursos sociais comuns no continente, da hierarquia binária que se

mantém entre objectos sociais considerados dignos e aqueles que são

considerados por algumas pessoas como indignos, principalmente quando estes

são consignados, junto com seus agentes sociais relevantes, às margens da

sociedade. As ‘homossexualidades’ em África à la Murray e Roscoe (1998), que às

vezes parecem consideradas indignas, são, com algumas excepções,

frequentemente enviadas para as margens.2 Esse acto de levar essa realidade às

margens das fronteiras sociais aceitas é o movimento que cria uma sensação

inicial de vazio.

Aqui, aparentemente, a homossexualidade não existe na África: de acordo com

alguns indivíduos anti-homossexuais intelectualmente desacreditados, ela foi


importada de outros lugares, muitas vezes do Ocidente; aparentemente existe

como algo de importância secundária que os media internacional principalmente

exploram para seus próprios fins; 3 e, finalmente, a homossexualidade é apenas

uma não-identidade, uma manifestação da “bissexualidade”, cujo único objectivo

parece ser o de fortalecer a posição da ordem falo- e heterocêntrica dominante.

Isso quer dizer que a raiz desse vazio pode ser encontrada em algum discurso do

senso comum em um espaço social. A economia desse espaço social é


caracterizada por uma política de confinamento, contenciosidade e abstracção,

que permanece a natureza do espaço social performativo da heterossexualidade

compulsória (Butler, 2005). O símbolo deste espaço é o falo erecto. De facto, no


discurso político dominante no continente, um lugar diferenciado é reservado ao

414
pénis nas formas em que a vida, o poder e o prazer são simbolizados, como

demonstrado por Mbembé (2010). Uma influência não insignificante é concedida

ao trabalho do falo. Enquanto todo observador pode perceber que essa situação

não é diferente de outras partes do mundo, o autor continua explicando como

antes, durante e após a colonização, o poder em África procurava usar a face da

virilidade. Ainda mais, a formulação, implementação e compreensão do poder

funcionou amplamente de acordo com a ideia de uma erecção infinita. A

comunidade política que opera neste espaço sempre quis, acima de tudo, o

equivalente a uma sociedade masculina, e isso ‘sempre’ foi representado por um

pénis ereto.4 Daí a hipótese de que toda a psicologia do poder em África poderia
ter sido organizada em torno do fenómeno do inchaço do órgão viril. Da mesma

forma, todo o discurso criativo (poiesis) que produz homossexuais na esfera

social continua refletindo a maneira pela qual os sistemas sociais representam

homossexuais e, consequentemente, também as estruturas que impossibilitam

sua própria erecção como uma entidade não confinada às margens do que é

falável.

É esse habitus (um sistema de disposições adquiridas a longo prazo) que, em

geral, quando traduzido em um ethos de evasão, tem suas raízes na negação

social quase total – portanto parcialmente falável – de um espaço viável para a

homossexualidade na sociedade de África. A estrutura dessa posição não pode


ser vista isoladamente da política predominante de confinamento. Para Ekotto

(2010: 183), essa noção se traduz na impossibilidade de um sujeito se sentir livre

para participar do jogo da interação social sem se sentir constrangido pela raça,

415
género ou orientação sexual de outra pessoa apoiada por um modo dominante

de interação. O modo dominante pode ser entendido como forças externas que

são opressivas e que não permitem que o sujeito seja o mestre de seu próprio

destino. Eu chamo esse sistema simbólico de dominação, que usa, entre outras

coisas, o confinamento como sua teleologia da sujeição, o falo.

Além disso, o desempenho do habitus, que determina a direcção das trajectórias

individuais, sugere que a origem da homossexualidade se encontra em um espaço

pertencente ao outro e também coloca sua existência nas margens do corpo

socializado – diferente da incorporação normativa de um sujeito na forma de um


ethos e um habitus. Aqui, o corpo socializado expressa a ideia de um grupo social

em um processo de sistematização normativa, projectando a ilusão de um todo

coerente (hólon) como um facto ‘abjecto’. Nessa área, os tabus criam fronteiras
dentro de um espaço social (Kristeva, citado por Butler 2005: 254), ao mesmo

tempo em que criam a base para a formação do vazio, embora seu ponto de

partida esteja no cerne da sociação ( sociedade no processo de formação) (Javeau

2003). Os tabus sempre serão empurrados para as margens. O vazio é a matriz

que carrega todas as proibições, coisas indizíveis: em suma, objectos socialmente

“indignos”. São objectos que, no que Derrida chamou de cultura falocêntrica, são

excluídos do espectro da inteligibilidade e do que é politicamente visível e

objectivável (seguir o significado latino de objectare: lançar na frente de si


mesmo, para observar).

Com base na lógica matemática, gostaria de mostrar como os factos sociais


“indignos” podem ser encontrados, paradoxalmente, como intersecção com os

416
factos sociais “dignos”. Em seu desempenho, a intersecção de factos ‘dignos’ e

‘indignos’ dentro do corpo social pode fazer com que factos ‘indignos’ apareçam

como elementos recessivos. É o caso da realidade homossexual em África. Uma

demonstração da lógica dessa recessividade nos permitirá propor a hipótese de

que factos “indignos” não são dominantes, mas existem. Como tal, esses factos

também são dignos de serem vistos como factos faláveis, para serem analisados

e discutidos em geral, como pode ser visto neste volume. Portanto, não se trata

de um mito, uma invenção ou a construção de uma realidade que aparentemente

não existe, para alguns extremistas mal informados, no continente, 5 ou que

supostamente foi importada de outro lugar, das margens opostas do Atlântico.

. Esse é o argumento conceitual falacioso que, em todo o continente hoje em dia,

produz os efeitos de estigmatização, discriminação, intolerância, estupro,


agressão física e verbal e até assassinato cometido contra pessoas que alegam

pertencer ou são suspeitas de pertencer a essa categoria de “párias” (Gueboguo

e Epprecht 2011).

Quer concordemos ou não, é necessário recordar o facto de que homossexuais

existem em África e que eles podem, nessa base, ser um marcador que revela algo

sobre uma área da realidade social. Apoiarei meu argumento com uma

abordagem usada na teoria recessiva aplicada ao campo da lógica matemática,


que destacará o paradoxo que pode emergir da interseccionalidade. Isso

envolverá a análise da intersecção que ocorre onde há uma manifestação de

elementos recessivos, suportados pela lógica matemática (Nyeck 2010).

417
Nyeck e “interseccionalidade”

Em sua análise da chantagem colonial, Nyeck levanta a questão de saber como

determinar a relação causal entre vários assuntos que coincidem em África e a

abordagem metodológica apropriada a ser usada. Em resposta, ela propõe que

seja formalizado um discurso que se baseia na interseccionalidade como seu

arcabouço teórico. Da interseccionalidade, ela sugere que “o entendimento de

que questões sociopolíticas às vezes se entrelaçam de uma maneira que dificulta

a diferenciação ajudou a cobrir importantes fundamentos do estudo da

sexualidade e da política”. Mais adiante, em sua análise, ela mostra como a


interseccionalidade, se é o único arcabouço teórico usado, nem sempre é

suficiente como forma de extrair o diálogo e a solidariedade que possam existir

entre e além das categorias que se cruzam, especialmente quando a área de


intersecção é um espaço social que envolve hipérbole e controvérsia, como já

destacamos acima.

Consequentemente, ela se baseia na lógica matemática para demonstrar como

essas categorias interagem e, ao fazê-lo, chama a atenção para sua natureza

paradoxal. Seu objectivo é mostrar a relação não visível que existe entre as

categorias de homofobia, instituições (estaduais) e Camarões (como um espaço

de disputa). Ao fazê-lo, chama a atenção para a equivalência, o estado de inclusão

e a interseccionalidade, tudo do ponto de vista matemático. Usando tal

418
abordagem, ela discute o paradoxo necessário em torno dessa

interseccionalidade. Ela afirma que:

Embora o colonialismo e a homossexualidade possam se cruzar como

categorias discursivas distintas no que chamo de “chantagem colonial”,

para se opor aos movimentos de direitos dos gays em África, o resultado

de sua intersecção é uma falácia etimológica porque está vazia. Esse vazio,

eu argumento, é paradoxal e contra-intuitivo de pelo menos duas


maneiras. Primeiro, o resultado vazio é paradoxal, porque

involuntariamente e necessariamente derrota o objectivo do uso

estratégico da chantagem colonial como base para a resistência geral


contra o activismo queer doméstico em África. Segundo, esse resultado é

contra-intuitivo, porque não sugere suficientemente que apenas a

homofobia se esconde por trás desse vazio (Nyeck 2010).

Aqui, adoptarei seu método de análise e o adaptarei introduzindo elementos de

linguística e psicanálise, na tentativa de extrair qualquer interesse científico que


possa haver para pesquisadores que estudam homossexualidades na África.

Usando a lógica matemática, meu objectivo é investigar a relação entre as

palavras francesas homosexualité (homossexualidade), chercheur (pesquisador)


e Afrique (África).

419
‘Homosexualité, chercheur e Afrique’: lógica matemática,

interseccionalidade e paradoxo

Vamos considerar os conjuntos que seguem, A e C, que representam o conjunto

de letras (x) que compõem as palavras homosexualité (homossexualidade),

chercheur (pesquisador) e Afrique (África), onde x pode aparecer apenas uma vez.

A definição distensional e extensional é, portanto, a seguinte:

H= {homsexualit};

A = {afrique};

C = {cheru}.

Aqui, cada elemento x é a menor unidade distinta e significativa da linguagem,


ou o que Saussure chama de fonema. Os fonemas são os elementos distintos que

percebemos que, quando isolados, não definem absolutamente nada, a menos

que os coloquemos um ao lado do outro, em relação a outros fonemas. Do ponto


de vista social, cada elemento x se refere à manifestação de uma realidade social

específica, enquanto do ponto de vista psicológico, ao rótulo da individualidade:

o que chamamos de ‘eu’ (le je). Como tal, o ‘eu’ não tem conteúdo (Dubet 1994). O
‘eu’ posso aguentar sem o ‘eu’ (le moi) (Chébaux 1999), que se manifesta, entre

outras coisas, no desejo de prazer (gozo). Mas, na verdade, o ‘eu’ se combina com

o ‘eu’ e se torna uma parte fixa e integral da estrutura que nos dá ‘nós’ (le nous).
O “eu” é o controle interno das funções esperadas atribuídas a um agente social,

420
até a morte dele. O ‘eu’ (ou ego) é um produto das demandas normativas

internalizadoras do superego, e o ‘nós’ é uma síntese disso, uma maneira de se

relacionar com a interação estruturada adquirida desde a primeira infância

(Dubet 1994: 129). . É possível que haja falhas variáveis na promulgação disso em

relação às avaliações normativas feitas pelos ‘nós’, uma vez que o ‘eu’ pode

realmente decidir ser empurrado para as margens dos padrões normativos. Se o

‘eu’ consegue obter prazer dentro do receptáculo do mundo estruturado e

normalizado, ainda resta a este nível uma ilusão de ser o que parece ser o caso

(Chébaux 1999: 131), ou melhor, o que é projectado como sendo o caso. É por isso

que, de acordo com Goffman (1974), o ‘eu’ permanece a estrutura interpretativa


usada no espaço ocupado pelo indivíduo dentro do ‘nós’, se seguirmos os

comportamentos expressos por esse indivíduo. Nesse caso, não pode haver ‘eu’

sem o ‘nós’ (Mead 1963 [1934]), e não ‘nós’ sem que haja oposição a ‘eles’ (eux): ‘a

forma elementar dessa relação se opõe o grupo interno, existindo apenas na

afirmação constante de sua diferença e sua distância do grupo externo6 (Hoggart

1970 [1957], citado por Dubet 1994: 114).

Como tal, o grupo aparece como um ‘eu’ autónomo, que chamamos de sociedade.

Essa sociedade tem uma identidade, um apelido que pode ser usado,

regulamentos que podem aparecer como sinais de trânsito, como luzes verdes e

luzes vermelhas. Em resumo, o que temos é todo um sistema de organização


(Touraine 1975: 605). Consequentemente, a ideia de que o ‘eu’ é parte integrante

do ‘nós’ ao mesmo tempo em que falta o conceito de oposição a ‘eles’ é uma visão

utópica. O prazer (no sentido homossexual), que é uma manifestação da extensão

421
do ‘eu’ (Chébaux 1999: 125), só pode ser entendido no contexto dessa relação

discursiva com o ‘eu’, que pode se tornar uma relação patológica se, por sua vez,

o ‘eu’ for considerado sem referência aos ‘nós’ (Elias 1973 [1932]).

Se concordarmos, portanto, com o facto de que cada fonema não é fonético, mas

uma representação práctica de uma área da realidade (ou individualidade) que

molda o conjunto de cada conjunto separado e, portanto, cai sob o título de

sociação (na leitura de Javeau do ), neste caso

= A = C se e somente se cada conjunto compartilhar o mesmo fonema que outro


conjunto. No caso em questão, não há relação de igualdade entre esses conjuntos:

≠ A ≠ C.

Ao aplicar sua análise de chantagem ao “discurso homofóbico em África”, Nyeck

postula que, se conjuntos de cartas não são equivalentes em sua natureza física,
eles ainda podem ter algo em comum. Eles podem, por exemplo, ter o mesmo

número de variáveis. Isso não pode ser verificado neste caso específico.

No entanto, pode-se ver como, em francês, a variável Afrique (África), quando

apresentada, não perde nenhum de seus atributos particulares, ao contrário do

que acontece com homosexualité (homossexualidade) e chercheur (pesquisador).

Isso nos permite postular que a África permanece um todo (isto é, não

homogéneo), que é construído como um espaço contencioso dentro do qual as


outras variáveis interagem e lhe dão significado. As variáveis, portanto,

desempenham seu papel dentro da matriz da África, embora ainda não sejam

iguais à África. No entanto, proponho que eles possam ter algo em comum se

422
considerarmos o número cardinal relacionado aos seus conjuntos que se cruzam.

Mas também argumento que cada variável carrega um elemento de seu

significado na forma de um fonema extraído da raiz Afrique (África). Então,

dissemos que um fonema não tem significado, excepto quando é colocado em

relação a outros fonemas, e nunca se é tomado isoladamente. Nesse caso, não

existe um “eu” sem referência a “nós”.

Como tal, se R se refere a uma relação como a seguir:

RARC

Isso implica que:

∩ A ∩ C ≠ Ø.

Em outras palavras, está em relação (R) com A e C se sua intersecção não estiver
vazia, o que significa que eles não compartilham um fonema comum. Todas as

combinações possíveis nas intersecções de elementos nesses conjuntos mostram

que elas estão relacionadas:

∩ A = {a, e, i, u}; ∩ C = {e, u};

C ∩ A = {e, u}.

Esses conjuntos estão em relação um ao outro. Podemos até ver como

(homosexualité) mantém uma forte relação com A (Afrique) se contarmos o

número cardinal que eles têm em comum, que é 4, em oposição às duas outras
intersecções que têm apenas 2 em comum. A noção de que a origem da

423
homossexualidade não é africana é, portanto, demolida. Esta conclusão

matemática está ao lado de conclusões tiradas de trabalhos fora do campo da

matemática (ver Murray e Roscoe 1998; Epprecht 2004, 2008; Gueboguo 2006,

2009).

A fraca proporção de relações entre (homosexualité) e C (chercheur) é

significativa, pois, entre outras coisas, revela uma lógica social que coloca facto s

que são dignos ou indignos de atenção científica em uma hierarquia binária.

Como tal, no campo das possibilidades de falar e coisas construídas como facto s

sociais em África, parece existir uma hierarquia binária entre questões do


momento e questões de urgência em um determinado momento no tempo. As

questões do momento incluem o conjunto de crises que minam as sociedades

africanas como um todo, nomeadamente nos campos de guerra, desastres


naturais, desastres de saúde, governança e democracia (Gueboguo 2009: 171). Em

linguagem comum, assuntos de urgência se referem a um desejo de se reconectar

com a herança cultural “africana” (especialmente na maneira como isso é

observado por certos membros da diáspora africana), a fim de se equipar melhor

contra os desafios de um mundo globalizado. Esses são objectos que, por sua

natureza ilusória “utilitária”, parecem ser dignos de interesse.

A relação dialógica estabelecida entre esses objectos não oferece possibilidades


para o que é consignado às margens do que é socialmente objectivável e falável.

Quando confrontados com urgências utilitárias, há um processo de

confinamento político, portanto, preocupado em relacionar eventos actuais que


são socialmente aceitáveis. Ao comentar a submissão de intelectuais livres que

424
estão ansiosos para apresentar trabalhos sobre assuntos impostos no momento,

Bourdieu não pode deixar de afirmar que essa situação continha “algo bastante

patético” 7 (2002: 70). O que podemos ver aqui é a violência simbólica e a

internalização da dominação masculina (Bourdieu 1998). O que não é dito na ânsia

desses intelectuais está confinado à ilusão, ou ao interesse em dominar o tempo

específico de uma pessoa, o que torna inevitável que alguém encontre história

em construção. Enquanto isso, a realidade homossexual é percebida como não

fazendo parte disso.

Como tal, a quase total negação social aparentemente8 da realidade homossexual


em África dá origem ao confinamento do fenómeno dentro de um espaço

quaternário – para usar a terminologia paleontológica – e sendo forçado aos

limites como algo indigno, como mancha ou defeito. Dentro da hierarquia binária
existente entre diferentes prioridades, entre assuntos urgentes e assuntos

urgentes do momento, interessar-se pela realidade homossexual é visto como

digressivo e parece trazer consigo uma sensação de perigo. Em sua crítica a

Douglas em relação a essa mancha ou defeito, Butler (2005 [1990]: 253) destaca

que os sistemas sociais podem ser vulneráveis nas margens. Por sua vez, as

margens da sociedade são consideradas perigosas. O que temos aqui é um

argumento escorregadio, onde rachaduras no corpo socializado nos levam a

temer o caos nas formações sociais que já estão em crise. Esse medo é
apresentado como sendo mais justificado do que a práctica da homossexualidade

que, pertencente à esfera privada, nos levaria a pensar que a homossexualidade

teria falhado em se tornar parte da história em formação. A verdadeira história é

425
a única versão que podemos ouvir, e a única versão que oferece soluções para a

construção de estados-nação (Hayes 2000, Epprecht 2008) e para a resistência

há muito estabelecida ao domínio estrangeiro (Iliffe 2009 [1995]) , de acordo com

a propaganda oficial.

Essa construção de estados-nação e essa resistência começaram com dificuldade

após a independência ter sido concedida em todo o continente (Ela, 1998). É por

isso que, durante décadas, as únicas contribuições legítimas e faláveis para a

pesquisa no continente tenderam a se concentrar apenas em tópicos centrais

como parentesco, economia, conservação, género, racismo, colonização, pós-


colonização, guerra, fome, ditadura, genocídio, a maneira animalesca em que o

poder é desempenhado (Oloruntoba-Oju 2006). A relação binária mantida entre

objectos indignos e dignos de pesquisa nessa área torna-se, portanto, um campo


de batalha geral, onde a luta pela supremacia sobre o significado é sempre

incluída no acto de repetição (Cixous, como citado por Moi 1985: 105) na pesquisa

científica. A hierarquia de prioridades em questão é mantida apenas dentro dessa

relação de luta, ao mesmo tempo em que essa relação de oposição é produzida.

De facto , a diferença binária existe apenas na relação que coloca objectos dignos

– que podem ser encontrados dentro do corpo socializado – e objectos indignos

– que também estão situados dentro deste corpo – em oposição um ao outro, daí

o paradoxo que surge. Dessa maneira, no ponto de intersecção entre essas forças
conflituantes e esses interesses, ‘a subjetividade queer africana deve emergir

como um conjunto vazio depois que os poderes que se cruzam em seu processo

perdem a aparência de prioridade’ (sic) (Nyeck 2010).

426
Bourdieu (2002 [1984]: 197) não vê isso de maneira diferente quando enfatiza que

um dos meios pelos quais a censura social é exercida pode ser encontrado

especificamente nessa hierarquia de objectos, ou onde tais objectos são

considerados dignos ou indignos de sendo estudado. Consequentemente, os

agentes sociais se encontrarão passando a vida se classificando apropriando

objectos que já são classificados. No entanto, eles também classificam outros que

também se classificam através dos objectos reapropriados que classificam (91–2).

Essa lógica também pode ser usada para explicar, entre outras coisas, como, de

acordo com o que foi demonstrado, a relação entre chercheur (C), Afrique (A) e
homossexualidade () pode ser tão fraca. Mas também poderíamos recorrer à

variável explicativa da organização social para reforçar nossa posição, ou mesmo

a vontade política das autoridades governamentais encontradas no continente.


Isso envolve discutir as ideias que os políticos têm em relação ao papel dos

pesquisadores no continente, tanto em termos do lugar (dentro do espaço

geográfico e político) quanto dos domínios (que também são motivados

politicamente) que ocupam. Mas vamos primeiro avaliar o resultado da interação

entre os três conjuntos, Afrique (A), homossexualité (H) e chercheur (C), que

resulta em: ∩ C ∩ A = {e, u}.

Aqui, podemos ver que existe uma relação e envolve a mesma fraca relação de
equivalência que a relação (R) encontrada em: HRC e CR A. Isso nos permite

postular que os fonemas pertencentes a (homossexualité) ocorrem como factores

recessivos no conjunto maior A (Afrique) e, consequentemente, pode ser uma


preocupação para C (chercheur ou pesquisadores na África). A natureza recessiva

427
de um fonema como um facto social que opera dentro de um espaço contencioso

não significa, portanto, que ele não exista ou não possa justificar sua entrega às

margens do macrocosmo da sociedade.

Seguindo Dubet (1994: 75), e usando a análise sociológica, pode-se dizer que o que

é estrangeiro (ou aqui, recessivo) não é o que pertencer a outra cultura, apesar

do foco nas representações compartilhadas. É, de facto, o cerne da sociedade e

também separado deste processo devido à sua própria individualidade. Como já

foi mencionado, um fonema não tem significado quando tomado isoladamente.

Por extensão, categorias situacionais que são empurradas para as margens, fora
de um espaço contencioso, podem ser encontradas no mundo social, assim como

todas as outras categorias (Bourdieu 2002 [1984]: 12). Por que esse é o caso?

Devido ao seguinte:

∩ C ∩ A ≠ Ø.

Conclusão

Conseguimos definir a seguinte relação (R) entre os conjuntos em mãos: R C e C

R A se a intersecção não estiver vazia. E, de acordo com a teoria matemática, uma

relação é uma relação de equivalência se é reflexiva, simétrica e transitiva.

Uma relação é reflexiva se cada elemento estiver relacionado a si mesmo, como

é o caso a seguir: A ∩ A = A;

428
∩ =;

C ∩ C = C.

É simétrico se o facto de A R implicar necessariamente que R A.

Finalmente, é transitivo se ARH e HRC e, portanto, AR C. Para colocar de uma

maneira menos abstracta, isso significa que podemos pegar cada fonema

marcado como um elemento que faz parte da realidade social ou como um

elemento que é representativo da relação de equivalência (R) que acabamos de


demonstrar. Isso quer dizer que estudar uma única categoria é igual a estudar

todas as outras realidades categóricas na área da sociedade, ou sociedade no

processo de formação. Daí o uso do termo representante para cada instância do


elemento x, que operacionalmente nos referimos aqui como fonema.

Em outras palavras, escrever sobre e discutir homossexualidades em África tem


valor em representar uma área da realidade social da mesma maneira que

escrever sobre e discutir pós- colonização, democracia, governança, guerra,

problemas sociais e doenças. A hierarquia binária acima mencionada, portanto,

não tem mais razão de existir. Por sua vez, problemas urgentes e questões

urgentes da época se esvaziam, se seu objectivo é apenas colocar um cordão


sanitário em torno da questão da homossexualidade – ou qualquer outro facto

categórico na sociedade que seja considerado de importância secundária. A

preocupação agora é saber como a questão da homossexualidade em África pode


emergir de seu isolamento, a fim de operar ao lado e interagir com outras

questões sociais de uma maneira pragmática e, portanto, concreta. Aqui, ele pode

429
fornecer respostas para toda a tendência à globalização e, assim, às mudanças

sociais generalizadas que estão ocorrendo.

Notas

1 Veja, por exemplo, como o relatório da Comissão de Direitos Humanos do Quénia (2011) é apresentado como um grande
avanço, de acordo com meu amigo Marc Epprecht. Ele argumenta que abordagens de direitos humanos em geral e
questões de AIDS em particular agora são usadas como pontos de entrada para abordar a realidade das
homossexualidades onde são proibidas por leis e normas sociais.

2 Marc Epprecht fez uma observação muito pertinente aqui, ao dizer que às vezes exagero meu argumento, porque no fluxo
do debate, apesar de não considerar os factos sociais como garantidos, eu assumia que todos deveriam saber que alguns
factos são evidentes, por exemplo que a África do Sul é conhecida, desde 1996, como o primeiro país da África a abordar
o princípio da não discriminação em sua constituição. Aqui tentarei corrigir essa posição, acrescentando que há muitos
outros que já fizeram o mesmo: Cabo Verde é o segundo país do continente a descriminalizar as relações entre pessoas
do mesmo sexo em 2004. Participei da reunião da ONU em Dezembro de 2008 em Nova York, onde Gabão, República
Centro-Africana, Ruanda e Serra Leoa estavam entre os países que assinaram ou sinalizaram sua intenção de apoiar a
resolução da Assembleia Geral da ONU de incluir orientação sexual na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O
tribunal de Botwsana está discutindo o mesmo que eu escrevo.

3 Embora isso possa ser verdade até certo ponto, não estou negando que exista um verdadeiro senso de solidariedade por
grupos LGBTI no Ocidente, com o apoio de governos e organizações ocidentais como ILGA, IGLHRC, o capítulo LGBTI da
Anistia Internacional, Human Rights Watch ou amfAR, a Fundação para a Pesquisa sobre AIDS.

4 Em comunicações privadas com Marc Epprecht, ele respondeu sutilmente a esse ponto dizendo que, quando pensa no
Zimbábue, um de seus campos de trabalho, o político no nível da vila e do chefe é circular e plano, permitindo debates e
discussões livres. Ele acrescentou que, se olhar para os prédios do parlamento em todo o continente, eles geralmente são
arredondados e parecidos com seios. Comparados aos bancos, eles não parecem muito fálicos. Então, o debate está aberto:
esta é a minha opinião.

5 Marc Epprecht (1998, 2006, 2008, entre outros), em quase todas as suas pesquisas no Zimbábue, afirmou que se você for
às aldeias, as pessoas dirão, é claro que sabemos que ‘homossexualidade’ sempre esteve aqui. As mesmas afirmações são
registradas por Murray e Roscoe (1998).

6 Citação traduzida do francês.

430
7 Citação traduzida do francês.

8 Pode-se ver novamente o paradoxo porque, como foi observado, existem associações de pessoas que amam o mesmo sexo
na maioria dos países africanos com graus variados de aceitação (Gueboguo 2008, 2010). E de acordo com os Relatórios
de Direitos Humanos do Departamento de Estado dos Estados Unidos em 2009 (USDS 2010), por exemplo no Gabão,
‘Discriminação e violência ocasionadas por conduta homossexual e transgénero não eram um problema’ ou na Mauritânia
(onde, apesar de uma sentença de morte em potencial ) não havia ‘evidência de violência social ou discriminação
sistemática do governo com base na orientação sexual e não houve processos criminais durante o ano’. Esses pontos são
feitos para reconhecer e reconhecer a situação não determinística que é desenhada por alguns extremistas em algumas
sociedades. Isso ajuda a evitar uma generalização excessiva que poderia ser informada apenas pelo pior cenário, enquanto
há algumas mudanças perceptíveis em um determinado nível social em alguns lugares da África.

431
432
27 – OS FUNDAMENTOS DA VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA DO SENEGAL –
Mouhamadou Tidiane Kassé

Em Fevereiro de 2008, um vento de homofobia varreu o Senegal. Continua a

varrer o país, com períodos de exacerbação e momentos de calma. O fluxo e

refluxo são alimentados por informações e comentários sobre a


homossexualidade, publicados periodicamente na imprensa local. Num país que

é 95% muçulmano e 4% católico, a desaprovação popular permanece baseada em

crenças religiosas, mas também é baseada em estruturas culturais e sociais que


impõem uma ordem moral estrita em certas áreas da vida social. Considerada

uma práctica “contra a natureza”, a homossexualidade acarreta multas que

variam de um a cinco anos de prisão, além de 100.000 francos (cerca de € 150) a


1.500.000 francos (cerca de € 2.200) em multas.

A homossexualidade tem sido tacitamente tolerada no Senegal. A secção 319 do


código penal, que condena as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, foi

introduzida em 1962, mas raramente foi aplicada. Homens que fazem sexo com

homens (HSH) 1 viveram abertamente, ocupando papéis sociais onde sua

identidade como homossexuais foi totalmente expressa. Eles cederam às

“grandes damas” da sociedade senegalesa; alguns deles até se tornaram estrelas


do jet set e reuniões sociais em Dakar. Além dessas cerimónias, a presença deles

também era vista como um sinal de sofisticação nas celebrações familiares

433
(batismos, casamentos etc.). Eles até foram notados em círculos políticos, onde

sua capacidade de mobilizar e entreter os membros da comunidade reforçou as

habilidades das mulheres nessas áreas.

A esse respeito, o sociólogo Cheikh Niang observa que durante o período colonial

‘gorjigen’ (homme-femme ou homem-mulher, um termo que se refere ao

homossexual em Wolof) desempenhou papéis políticos ao lado de mulheres nas

cidades anteriormente chamadas de Four Commune do Senegal (Dakar, Saint-

Louis, Gorée e Rufisque). Os dois principais líderes políticos do período pré-

independência, Lamine Guèye e Léopold Sédar Senghor, tiveram o apoio de


líderes femininas (dirijanké, ou senhora) que, entre 1950 e 1960, se cercaram de

gorjigen. Várias fontes orais relatam que o gorjigen de Saint-Louis desempenhou

um papel de liderança na vitória eleitoral de Senghor e encenou sua entrada


triunfante em Saint-Louis após sua campanha eleitoral de 1950 (Niang 2010).

A violência homofóbica registrada no Senegal desde 2008, portanto, contrasta

com as atitudes que até então prevaleciam, tanto em sua manifestação real

quanto em sua escala. Circunstancial, episódico e isolado, o fenómeno atingiu um

grau e uma forma nunca antes experimentados. Houve uma caçada sistemática

aos homossexuais, na forma de assédio, apedrejamento e linchamento. Os media

têm relatado regularmente esses incidentes. Em um caso, o corpo enterrado de


uma pessoa supostamente homossexual foi desenterrado e arrastado para fora

de um cemitério muçulmano. O debate ocupa a imprensa há semanas, incluindo,

em seus extremos, pedidos de assassinato. Observou-se que algumas das

434
posições mais rígidas adoptadas foram de círculos religiosos muçulmanos,

especialmente do Colectivo de Associações Islâmicas do Senegal (CAIS).

A caça aos homossexuais começou após a publicação pela Ícone, uma revista

local, de fotos mostrando um casamento gay. Antes do show de indignação ter

invadido a imprensa, as pessoas identificadas nas imagens foram presas pela

polícia em 4 de Fevereiro de 2008. Com esse casamento, senegaleses comuns

descobriram um lado pouco conhecido da homossexualidade. As representações

comuns estavam limitadas à imagem de pessoas efeminadas em suas atitudes e

com círculos próximos de amigas. Esse ‘casamento’ foi visto como um ataque a
uma instituição sagrada e revelou a muitos que a homossexualidade não é uma

atitude, mas também uma orientação sexual. “De facto, para os senegaleses, (…)

o termo Gorjigen, diferentemente da palavra homossexualidade, refere-se


explicitamente às relações de género, não ao sexo” (Niang 2010).

Percebida como uma tendência e não como uma orientação sexual efeminada, a

homossexualidade tem sido tolerada na sociedade senegalesa. Sinais e actos de

hostilidade contra homossexuais eram evidentes às vezes, mas nunca atingiram

a violência generalizada vista desde Fevereiro de 2008. Crowder (1959), citado em

um estudo de uma equipe da Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar (Niang et

al 2003) sugere que essa tolerância é percetível desde o período colonial: ‘Os
anciãos e os muçulmanos fiéis condenam os homens por isso, mas é típico da

tolerância africana que eles fiquem muito sozinho (Crowder, 1959). Essa

tolerância, às vezes uma indiferença à homossexualidade, não é mais a norma.

435
Vários eventos ocorreram desde 2008 para fortalecer a radicalização contra a

homossexualidade. Em Dezembro de 2008, nove pessoas foram presas pela

polícia por supostos actos homossexuais. O caso continuará por um longo tempo.

As prisões de Fevereiro de 2008 não resultaram em processo; os cinco réus foram

libertados da custódia da polícia e o assunto foi autorizado a prosseguir. Desta

vez, o caso terminou em tribunal. No final do julgamento, o tribunal pronunciou

sentenças de oito anos de prisão. Essa pena vai além das disposições penais

contra a homossexualidade e reflecte um clima de homofobia desenfreada e os

sentimentos de um juiz indignado com os comentários dos acusados. Antes do

tribunal, alguns dos réus reconheceram abertamente sua orientação e prácticas


sexuais. A atitude deles era vista como um desafio, ou mesmo um insulto.2 Antes

disso, os julgamentos pela homossexualidade haviam dado lugar a negação,

arrependimentos e lágrimas.

O silêncio das autoridades

Esse julgamento recebeu condenação internacional, tanto do governo francês

quanto de organizações que defendem os direitos humanos. Localmente, uma

declaração conjunta foi emitida pela Assembleia Africana de Defesa dos Direitos

Humanos (RADDHO), Federação Internacional de Direitos Humanos, União

Inter-Africana de Direitos Humanos e Amnistia Internacional Senegal para dizer

‘não à homofobia, sim à tolerância’. O texto pedia a obrigação do Estado de

436
‘garantir o respeito pela integridade física e moral das pessoas envolvidas e, de

maneira mais geral, condenar de maneira mais forte os actos homofóbicos que

provavelmente prejudicariam a integridade física e moral dos homossexuais’.

Referindo-se ao artigo 7, parágrafo 2 da constituição do Senegal, as organizações

também argumentaram que ‘todos têm direito à vida, liberdade, segurança e

desenvolvimento livre de sua pessoa’. Esta disposição é vista como

potencialmente abrangendo a orientação sexual dos indivíduos.

Esses eventos passaram sem nenhuma reacção do governo senegalês, levando à

criação de um clima de impunidade devido a ataques contra homossexuais. A


esse respeito, Codou Bop aponta para uma fraqueza política criada pela crise

económica, onde os movimentos populares são indicativos de uma desconfiança

popular em relação às autoridades (Bop 2009). Lembretes ao governo de que,


além das leis e disposições constitucionais já em vigor, eles também eram

signatários de convenções internacionais, causaram-lhes grande embaraço. Mas,

diante da pressão do público, ainda não assumiram posições alinhadas com os

compromissos internacionais que assumiram.

A violência contra homossexuais foi acompanhada de ataques ferozes contra

qualquer retórica ou atitude que proporcionasse uma visão alternativa da

homossexualidade. Quando as cinco pessoas presas em Fevereiro de 2008 foram


libertadas, a opinião pública era que um lobby homossexual estava situado no

coração do poder. A reacção do exterior foi denunciada como uma guerra

ocidental “imoral” contra os valores religiosos e morais. A homossexualidade


também tem sido associada à disseminação da SIDA em um país onde esse grupo

437
tem uma prevalência muito alta de infeção pelo HIV – uma taxa de infecção de

21,5%, em comparação com 0,7% na população em geral.

Essas atitudes de rejeição e negação se recusam teimosamente a reconhecer o

facto de que a homossexualidade é uma realidade enraizada no Senegal, mesmo

que o facto seja particularmente evidente em certos sectores e não falte

referências a ele. Em 2002, uma equipe de pesquisadores da Université Cheikh

Anta Diop realizou um estudo que atesta a importância da homossexualidade no

Senegal e sua frequência entre grupos socioeconómicos e etnias (Niang et al

2003).

Antes da onda de homofobia, os homossexuais estavam entre os actores

envolvidos na luta contra o HIV / SIDA. Decidiu-se que a situação actual tornava
inseguro continuar suas estratégias para responder à epidemia e consolidar os

resultados alcançados pelo Senegal nessa área. Para escapar da violência, os

homossexuais HIV positivos deixaram de ir a estabelecimentos de saúde onde

poderiam ter recebido medicamentos antirretrovirais. Os grupos que animaram

a rede de conscientização e prevenção da epidemia de HIV suspenderam suas

actividades. As redes através das quais as organizações gays que lutam contra a

SIDA organizaram sua resposta à epidemia também desmoronaram; seus

membros deixaram escapar actos de pessoas furiosas ou operações policiais.


Além disso, as nove pessoas condenadas em Janeiro de 2009 argumentaram que

foram presas durante a realização de sessões de treinamento na luta contra a

SIDA.

438
O risco de perder as redes de associações para homossexuais é considerado sério,

pois os HSH são um grupo-ponte na transmissão do HIV. Diante da homofobia,

muitos se casam e mantêm relações heterossexuais para ocultar sua orientação

pelo mesmo sexo. Além disso, mais e mais jovens tendem a se envolver em

prácticas homossexuais para obter lucro financeiro – uma forma disfarçada de

prostituição – enquanto mantêm suas actividades heterossexuais.

Imediatamente após as prisões em Dezembro de 2008, vários líderes de ONGs,

pesquisadores e outros envolvidos na luta contra a AIDS estabeleceram um

comité informal de crise. Sua primeira acção foi implorar pela libertação dos
nove prisioneiros. Posteriormente, eles se engajaram em uma acção mais

sustentada para pôr fim à ‘perseguição de HSH no Senegal e à promoção de um

maior respeito por sua dignidade’. Sua estratégia para promover um ambiente
de tolerância à homossexualidade baseia-se na construção de alianças com

líderes cristãos e moderados muçulmanos, jornalistas, representantes de

autoridades públicas, políticos e intelectuais. Além disso, eles conduzem

programas de treinamento para reforçar as habilidades das pessoas envolvidas

em advocacia.

Homossexualidade e SIDA

A abordagem adoptada pelo comité de crise não é enquadrar o debate sobre

homossexualidade em termos de direitos humanos ou defender a

439
descriminalização da homossexualidade. A ênfase, ao contrário, está nas

questões de saúde pública: a salvaguarda das realizações da luta contra o SIDA;

respeito ao direito à saúde; e garantir apoio aos homossexuais por meio do acesso

a serviços de tratamento e prevenção. É nessa dimensão da saúde pública que o

comité busca promover discursos religiosos e culturais de tolerância e não-

violência.

Os MSM são treinados para capacitá-los a lidar com a advocacia. Os jornalistas

também têm como objectivo informá-los sobre a realidade da homossexualidade

no Senegal, permitir que reflitam as questões relacionadas ao combate à SIDA e


fornecer parâmetros para análises que fortaleçam sua abordagem ao problema.

Os prestadores de serviços de saúde são outro grupo que precisa ser abordado,

para garantir melhor gerenciamento dos MSM na prevenção e tratamento do


HIV/SIDA. Da mesma forma, os serviços policiais acusados de atitudes violentas

contra o grupo e membros do sistema judiciário também são alvo.

A abordagem da questão da homossexualidade através da luta contra o SIDA pode

ser explicada pelo facto de que a visibilidade desse grupo foi favorecida nos

últimos anos pelo envolvimento na defesa e prevenção dessa epidemia.

Anteriormente, agrupados em redes informais, no início dos anos 2000 eles

começaram a se organizar melhor para actuar como parceiros de organizações


envolvidas na resposta ao SIDA. Desse movimento associativo, surgiu uma

tendência em que muitos dos envolvidos reconhecem abertamente sua

orientação sexual. Um estudo realizado por Poteat et al (2011) sobre o impacto da


repressão contra a comunidade gay relatou que eles aspiram ao pleno

440
reconhecimento de seus direitos e a mais respeito à sua privacidade. Mas há uma

tendência potencialmente perigosa emergente, na qual membros proeminentes

da comunidade se opõem, no momento, a essas aspirações.3

Durante a Conferência Internacional sobre SIDA e DTS’s na África (ICASA),

realizada em Novembro e Dezembro de 2008 em Dakar, o anúncio de uma

marcha proposta para exigir um melhor tratamento da homossexualidade no

contexto da luta contra a epidemia, provocou indignação e até ameaças de alguns

círculos religiosos. A marcha não ocorreu, mas a cristalização do sentimento

homofóbico foi exacerbada pela violência aberta que eclodiu após a prisão das
nove pessoas em Dezembro que, após serem condenadas a oito anos de prisão,

levaram a uma caça aberta a homossexuais.

A coincidência de tempo entre a organização do ICASA e as prisões reforçou a

ideia de que a homossexualidade no Senegal era incentivada por posturas e

influências externas. Essa percepção levou o comité de crise a promover

reflexões e reacções locais contra a homofobia e a restringir as actividades de

organizações estrangeiras. Em Fevereiro de 2010, uma delegação da Comissão

Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC), que veio ao

Senegal para o lançamento do relatório da organização sobre violência

homofóbica, foi convencida a não divulgar o relatório publicamente. HSH que


testemunharam no relatório após a violência de 2008 e 2009 compartilhou essa

opinião, temendo que novas condenações de estrangeiros possam reviver a

hostilidade em relação à sua comunidade. A divulgação pública de um relatório

441
da Human Rights Watch agendado para Novembro de 2010 no Senegal também

foi cancelado pelos mesmos motivos.

Os responsáveis pelas duas organizações se uniram a essa posição após uma

reunião com o comité de crise. Eles poderiam, no entanto, ter se encontrado com

as autoridades senegalesas para apresentá-los com seus relatórios e realizado

reuniões com organizações de defesa dos direitos humanos, bem como grupos

responsáveis pela luta contra o SIDA. Os relatórios que eles compilaram, que

incluem testemunhos de HSH sobre suas experiências com a violência e seu

impacto multifacetado, tornaram-se ferramentas úteis para treinamento e


advocacia.

Homossexualidade e media

Desde o início da violência em 2008 e 2009, as coisas se acalmaram. As mesmas

causas nem sempre produzem os mesmos efeitos. Duas pessoas foram presas,

julgadas e condenadas em Junho de 2010 por ‘actos contra a natureza entre duas

pessoas do mesmo sexo’, mas a sentença foi de apenas três meses de prisão para

ambos os réus, muito diferente da sentença de 10 anos estabelecida por um juiz

um ano antes (HRW 2010).

As actas do julgamento publicadas na media não deram origem à expressão de

homofobia por jornalistas ou em debates públicos na media de massa. Os círculos

442
religiosos radicais não inflamaram a questão, facto que passou praticamente

despercebido. Eles haviam desempenhado um papel importante no

desencadeamento da violência dos últimos anos, facto que levou Codou Bop a

considerar, meditações políticas relacionadas. Para ela, os grupos islâmicos

fundamentalistas tinham interesse em disseminar esse discurso em

consideração às eleições locais em Março de 2009, como forma de consolidar sua

posição política, aproveitando um fenómeno que focava a atenção da media neles

e ganhava ampla cobertura da imprensa (Bop 2008).

Em seus relatórios, o IGLHRC e a Human Rights Watch (HRW), como Cheikh


Niang em seu estudo sobre o processamento de informações sobre

homossexualidade, acusaram a imprensa de alimentar a violência desencadeada

pela homofobia entre 2008 e 2009. Artigos e transmissões contribuíram para


isso, transmitindo e exacerbando sentimentos homofóbicos por meio de seus

comentários. Mas a análise é truncada, pois considera o papel da media

isoladamente de outros determinantes sociopolíticos. Esta não é a primeira vez

que a questão da homossexualidade é discutida na imprensa senegalesa, mas uma

explosão de violência nunca foi presenciada antes.

Em 1999, um desfile de supermodelos de travestis gays, realizado na estação

turística de Saly Portudal, foi manchete nos jornais, apoiado em fotografias, sem
provocar ataques físicos contra homossexuais. Em 2003, um processo entre um

homossexual e um famoso empresário de grande renome, em meio a acusações

de chantagem e infidelidade, mobilizou os media e atraiu multidões para vários


dias de audiências, com forte presença da comunidade gay, que veio apoiar por

443
conta própria, sem nenhuma reacção violenta das pessoas. Da mesma forma, em

Junho de 2002, o jornal Frasques publicou uma edição especial sobre

homossexualidade, com depoimentos e fotos de pessoas que foram abertas sobre

sua orientação sexual.

Também se pode voltar à edição de 16 de Setembro de 1991 do jornal Le Soleil, na

qual um artigo intitulado ‘Homossexuais: o direito de ser diferente?’ Tentou

considerar o debate. Em seu testemunho anónimo, três homens afirmaram sua

diferença (‘atraídos por homens’), a dificuldade que experimentaram em viver

com essa orientação sexual (‘deixe-nos em paz…!’), mas também a determinação


deles em existir (‘eu sempre fui esquisito … ‘).

Na edição de 10 de Abril de 1995 da Le Témoin, um artigo intitulado ‘No mundo


dos homossexuais’ foi publicado com uma foto de primeira página de um famoso

homossexual que descreveu sua experiência e falou da homossexualidade como

uma práctica de ‘homens como todos os outros’ e às vezes os da “sociedade de

classe alta”. O jornal escreveu:

Socialmente, eles (homossexuais) não fazem nenhum esforço para


animar grupos de drianke (damas), para servi-los desinteressadamente,

sem olhar para o próprio futuro. Quando ganham a vida, geralmente são

encontrados a administrar “clandos” obscuros, onde desajustados


passam a beber álcool quase sem nada, enquanto executivos com

gravatas desatadas e jaquetas descartadas se divertem tocando ralé,

444
longe de seus círculos habituais, onde estão sujeitos a requisitos para

mostrar contenção.

A homossexualidade é amplamente percebida no Senegal por meio de uma

caricatura para gerar, de acordo com percepções, desprezo, rejeição, indignação

ou tolerância.

A violência homofóbica em 2008 e 2009, embora alimentada por crenças


religiosas, caracteriza uma certa ortodoxia social, manifestada como uma forma

de violência contra um estado considerado responsável por todas as formas de

distúrbios associados a crises socioeconómicas. Os mesmos ressentimentos


permanecem e as autoridades senegalesas estão lutando para se definir em torno

de uma questão que os embaraça. Em Março de 2011, um membro da maioria

presidencial, o vice-presidente da Assembleia Nacional, apresentou uma

pergunta oral convidando o governo a explicar as informações publicadas por um

jornal local, L’Office, que observou a ratificação pelo Senegal da Convenção de

Genebra que descriminalizou as prácticas homossexuais. Na sua pergunta, ele

declarou:

Apesar da negação por parte do ministro Coumba Gaye (ministro dos


Direitos Humanos), essas informações, insuficientemente divulgadas,

continuam a causar ondas, a ponto de inspirar conversas durante as

orações de sexta-feira nas mesquitas. Esta situação criou uma agitação

445
no país; peço ao governo que venha à Assembleia Nacional, para contar

aos seus membros e ao povo do Senegal, a verdade sobre este caso.

As informações eram infundadas (BlogMensGo n.d., Siberfeld 2011), mas o

alvoroço que causou é um testemunho da força das condenações que alimentam

a homofobia no Senegal. Os ataques físicos cessaram, mas o sentimento de

violência permanece latente. Os MSM estão determinados a silenciar qualquer

evento que os torne visíveis ao público e à media. Eles receberam a


responsabilidade de não perturbar uma sociedade que não os aceita, para não se

arriscar e não expor as organizações locais que conduzem advocacia, além de

restaurar e consolidar um ambiente de tolerância. 4

Homossexualidade e Direitos Humanos

Entre as associações homossexuais, houve algum interesse em adoptar uma

abordagem de direitos humanos. Mas, seja como expressão de resistência ou

reivindicação de direitos humanos, essas reacções são raras e até silenciadas

pelos membros da própria comunidade. É mais através da mudança social

evolutiva, na esperança de chegar progressivamente a uma sociedade mais

aberta, que eles esperam encontrar maior tolerância social e reconhecimento de

seus direitos.

446
De facto, embora o Senegal tenha assinado convenções e cartas constitutivas das

normas internacionais de respeito aos direitos humanos, os textos legais do país

continuam abrigando disposições legais que, mesmo além da criminalização da

homossexualidade, tornam ilusória a possibilidade de protecção legal para os

direitos humanos das minorias sexuais. Um clima de medo destrói a busca aberta

pela promoção e protecção de direitos.

Entre os HSH, há muitas evidências do “perigo” de procurar ajuda das forças de

segurança e da lei. Sua experiência indica que os apelos à protecção só abrem as

portas para mais violências. Um relata:

Eles [a polícia] estavam nos espancando de manhã, meio-dia e noite. Não

tínhamos o direito de aconselhar e não podíamos fazer telefonemas. A

polícia estava constantemente nos dizendo que não tínhamos direitos

porque somos impuros e amaldiçoados, e que não podíamos compartilhar

nada com os outros, nem mesmo os banheiros.

Outro testemunho fala das condições de interrogatório da polícia: ‘A polícia

pegou nossos telefones e anotou o número de nossos entes queridos. Um deles

ligou para minha mãe e disse: “Você sabe o que? Seu filho é gay! Antes de desligar
“(HRW 2010).

447
A cena gay senegalesa ainda é marcada pela falta de conhecimento e

compreensão da lei relacionada à orientação sexual. A hostilidade evidente

observada entre o judiciário agrava o problema de reparação legal para a

comunidade HSH.

Todos esses factores restringem o envolvimento que os homossexuais podem ter

nas poucas iniciativas adoptadas para promover a tolerância em relação a eles ou

envolvê-los em debates sociais sobre os direitos das minorias sexuais.

Notas

Homens que fazem sexo com homens (HSH) são mais comumente usados do que o equivalente francês, ‘hommes ayant des
relações sexuelles avec d’autres hommes’ (HSH), e foram usados no texto original para descrever homossexuais.

Evidência obtida de um membro do comité de crise que foi estabelecido para advogar a libertação de HSH condenados. Após
várias semanas de detenção, eles foram libertados depois que o Tribunal de Cassação anulou o veredicto devido a
irregularidades.

Esta opinião foi afirmada ao autor pelo líder de uma das principais associações de HSH no Senegal.

Em 23 de Março de 2011, os signatários da convenção eram 85, com o Senegal entre eles. Outros países africanos que assinaram
incluem África do Sul, República Centro-Africana e Serra Leoa.

Referências

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homosexualité’, Gayromandie, http://www.gayromandie.ch/Prison-ferme- pour-homosexualite-au.html, accessed 5
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Bop, C. (2008) ‘Sénégal: “homophobie et manipulation politique de l’Islam”’, Women Living Under Muslim Laws,
http://www.wluml.org/fr/node/4514, accessed 5 December 2012

448
Comité de crise (2012) ‘De l’orientation en temps de crise au plaidoyer à long terme: promouvoir la tolérance et le respect des
droits des groupes vulnérables au Sénégal’, Dakar, Comité de crise

Crowder, M. (1959) Pagans and Politicians, London, Hutchison

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Senegal’,HRW, 30 November, http://www.hrw.org/en/reports/2010/11/30/craindre-pour-sa-vie-0, accessed 5
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L’Office (2011) 23 March

Niang, Cheikh (2010) ‘Content analysis of the Senegalese media on the treatment of the issue of homosexuality and
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Niang, C.I., Tapsoba, P., Weiss, E., Diagne, M., Niang., Moreau, A.M., Gomis, D., Wade, A.S., Seck, K. and Castle, C. (2003) ‘“It’s
raining stones”: stigma, violence and HIV vulnerability among men who have sex with men in Dakar, Senegal’, Culture, Health
and Sexuality, 5(6): 499– 512

Poteat, T., Diouf, D., Drame, F.M., Ndaw, N., Traore, C., Dhaliwal, M., Beyrer, C. and Baral, S. (2011) HIV Risk among MSM in
Senegal: A Qualitative Rapid Assessment of the Impact of Enforcing Laws that Criminalize Same Sex Practices

Siberfeld, Judith (2011) ‘Dépénalisation de l’homosexualité: 85 pays signent une declaration à l’ONU’, Yagg,
http://yagg.com/2011/03/22/depenalisation-de-lhomosexualite-

449
450
28 – QUÉNIA QUEER EM DIREITO E POLÍTICA – Keguro Macharia

Em 28 de Novembro de 2010, Raila Odinga, primeiro-ministro do Quénia, disse:

“Se os [casais] homossexuais forem encontrados deveriam ser presos e levados

às autoridades relevantes” .1 Cinco anos antes, essa declaração teria provocado o

silêncio ou a aprovação da maioria. Desta vez, no entanto, os principais jornais

publicaram artigos contestando a declaração de Raila.2 O professor Makau

Mutua, pesquisador jurídico e presidente da Comissão de Direitos Humanos do

Quénia, argumentou: “a [nova] Constituição protege os direitos dos gays”. Makau

baseou essa afirmação em dois elementos da constituição: garante direitos iguais

e não proíbe explicitamente o casamento gay.3 É muito cedo para dizer se a

confiança de Makau é justificada. Assim como os EUA e a Índia, os direitos das


minorias sexuais provavelmente terão que ser debatidos nos tribunais do

Quénia.4

Neste artigo, ofereço uma narrativa sobre o estado dos direitos das minorias

sexuais do Quénia examinando três promessas de lei e política entrelaçadas: a

Lei de Ofensas Sexuais (2006), a Política Nacional de Cultura e Património (2009)


e a constituição recentemente promulgada ( 2010). Ao examinar esses

documentos e os debates que os cercam, acompanho como o queniano é definido

em relação à sexualidade. Argumento que precisamos entender os direitos das


minorias sexuais em relação aos direitos da maioria sexual. Qualquer tentativa

451
de argumentar em favor do primeiro sem considerar o segundo corre o risco de

perder sua constituição mútua. Eu construo o argumento perspicaz do teórico

cultural Neville Hoad de que ‘homossexualidade’ é ‘um dos muitos conteúdos,

fantasias ou significados imaginários (às vezes negativos, às vezes não) que

circulam na produção de soberanias e identidades africanas em suas

representações pelos africanos e outros ”5. Examino como a figura do“

homossexual ”circula nas discussões e documentos jurídicos e culturais em

Quénia.

Lei de Ofensas Sexuais (2006)

Em 2006, o Parlamento do Quénia promulgou a Lei de Ofensas Sexuais.

Representou o activismo sustentado ao longo de mais de uma década por uma

coalizão de organizações, incluindo a Federação de Mulheres Advogadas do

Quénia (FIDA), a Coalizão sobre Violência contra as Mulheres (COVAW), a

Documentação Consultiva para os Direitos da Criança e o Centro Legal (The

CRADLE) e o Center for Rights Education and Awareness (CREAW). 6 O Projecto

de Lei de Ofensas Sexuais foi divulgado pela primeira vez em Dezembro de 2004,

quando estava sendo conduzido ao processo parlamentar pela deputada Njoki

Ndung’u. Antes de assumir um cargo público, Ndung’u, que possui pós-

graduação em direitos humanos e liberdades civis, havia trabalhado no sector

público, como consultar de estado no escritório da Procuradoria Geral da

452
República e no sector privado, incluindo uma passagem como política analista da

Organização da Unidade Africana. Ela também era um membro activo da

sociedade civil do Quénia, como ex- membro da FIDA e activista dos direitos das

mulheres.

O projecto criou o que Michel Foucault chama de “explosão” de discurso em

torno da sexualidade.7 Foi a primeira vez que o sexo e a sexualidade foram

discutidos de maneira tão aberta e extensiva no parlamento, na grande media e

em fóruns on-line. Os quenianos discutiram namoro e casamento, ritual

tradicional e violência de género, consentimento e coerção.8 Enquanto os


quenianos debatiam as linhas (muitas vezes ténues) entre intimidades bem-

vindas, aceitáveis e criminais, eles definiram (e defenderam) o que constituía

corpos normais de género e intimidades sexuais. Nesta secção, detalho como os


debates em torno do projecto de lei estabeleceram a família como alvo de ofensas

sexuais e traço as implicações dessa estratégia para o activismo das minorias

sexuais.

No início de 2005, Ndung’u descreveu o escopo abrangente do projecto quando

argumentou: “não são apenas meninas e mulheres que podem ser vítimas; a lei

deve reconhecer que meninos e homens também são abusados ‘.9 Ao especificar

que’ meninos e homens ‘também eram sexualmente vulneráveis, Ndung


estendeu a província do projecto de lei para proteger uma ampla gama de

pessoas, incluindo profissionais do sexo e minorias sexuais. Certamente, alguns

quenianos interpretaram a conta dessa maneira. Por exemplo, a Conferência


Episcopal do Quénia, uma associação de igrejas católicas, apoiou o projecto,

453
argumentando: ‘Existem muitos corpos partidos, corações partidos e mentes

quebradas de crianças, mulheres e homens espalhados pela paisagem do Quénia,

todos feridos, brutalizados e muitas vezes mortos pela violência sexual. ‘No

entanto, a conferência acrescentou:’ Actualmente, aborto, prostituição e

homossexualidade são ilegais. Os bispos católicos gostariam de ter certeza de que

este projecto de lei não revoga as leis existentes sobre esses assuntos de tal

maneira que esses males sejam introduzidos pela porta dos fundos ou por

padrão.’ 10 A conferência temia que o projecto de lei protegesse figuras sexuais

marginais, prostitutas e homossexuais e actos contrários à doutrina católica,

como o aborto. Da mesma forma, o Conselho de Imãs e Pregadores do Quénia


(CIPK) desconfiou de medidas que legalizariam a homossexualidade.11 Esses

grupos queriam que o parlamento definisse os segmentos da população que vale

a pena defender.

Além dos líderes religiosos, outros grupos socialmente conservadores tentaram

restringir o escopo do projecto e argumentaram que ele deveria reflectir os

valores quenianos. Notavelmente, Wanjiru Muiruri, um membro do Kenya

Parents Caucus, afirmou que ‘activistas progressistas de direitos humanos’

provavelmente viam o Quénia como ‘um anátema, um pária, por aderir

obstinadamente ao que consideram leis tradicionais e opressivas que são

discriminatórias contra os gays, e la di da ‘. No entanto, as leis que


potencialmente protegiam figuras sexuais marginalmente ‘minariam o tecido

moral da sociedade e prejudicariam a instituição da família no Quénia’ .12 Muiruri

associou prácticas e instituições sexuais à identidade nacional, sugerindo que o

454
Projecto de Lei de Ofensas Sexuais tinha como objectivo definir e formas

impróprias de intimidade, pois tratava-se de definir formas apropriadas e

impróprias de pertencimento nacional. Ela defendeu o que os teóricos queer

Lauren Berlant e Michael Warner descrevem como ‘heterossexualidade

nacional’: ‘A heterossexualidade nacional é o mecanismo pelo qual uma cultura

nacional central pode ser imaginada como um espaço higienizado de sentimento

sentimental e comportamento imaculado, um espaço de pura cidadania. Um

modelo familiar de sociedade desloca o reconhecimento de desigualdades

sistémicas. 13 Muiruri apaga as ‘desigualdades sistémicas’ quando ela afirma

implicitamente que os ‘direitos humanos progressivos’ correm o risco de


prejudicar a instituição da família no Quénia ‘. Em seu modelo de jogo de soma

zero, o activismo de direitos humanos não pode coexistir com a

‘heterossexualidade nacional’. Em retrospecto, o argumento implícito de Muiruri

de que o projecto deveria proteger ‘a família’ sinalizou uma grande mudança na

estratégia em torno de obter a conta aprovada. Em 1 de Abril de 2006, um artigo

do Daily Nation capturou essa reorientação em torno da família:

As senhoras que se conheceram nesta semana sob os auspícios da

Associação Parlamentar das Mulheres do Quénia receberam uma


mensagem poderosa para seus colegas do sexo masculino: apoie-nos

nesta luta contra predadores sexuais depravados, pois se eles podem

continuar, são suas filhas como assim como as nossas, suas irmãs e mães,

455
assim como as nossas e, cada vez mais, até seus filhinhos, que serão as

próximas vítimas.

Os relatórios do Daily Nation concordaram com os parlamentares e concluíram

o artigo: “Aquelas bestas que caçam nossas filhas, irmãs, mães e esposas devem

pagar muito.” Os activistas da sociedade civil enviaram mensagens SMS aos

parlamentares do sexo masculino que liam “ Faça a coisa certa apoiando o

projecto de lei. Você está apoiando sua esposa, mãe, filha e irmã.’ 15

Essa ênfase retórica em “esposa, mãe” e assim por diante mudou o local da
vulnerabilidade: os crimes sexuais não eram mais o que eram cometidos contra

meninas e mulheres potencialmente anónimas e homens e meninos; eles foram

cometidos contra a instituição da “família”. Ao aprovar a lei, os legisladores


afirmariam sua lealdade e devoção à “família”. Como o teórico estranho Lee

Edelman perguntou, quem ousaria ser contra a família? 16 Os parlamentares não

estavam mais sendo solicitados a proteger toda e qualquer pessoa que tivesse

sofrido abuso sexual, incluindo prostitutas e minorias sexuais; em vez disso, eles

foram convidados a defender seus parentes.

No entanto, esse foco na defesa da família era oneroso: os legisladores do sexo

masculino que se opunham a disposições sobre assédio sexual, estupro conjugal


e excisão genital feminina argumentavam, de maneira dissimulada, que essas

disposições (e similares) ameaçavam prácticas de namoro e vitalidade conjugal.

Como, questionaram alguns deputados, seria possível distinguir entre namoro e


assédio sexual? Esta questão expõe as contradições inerentes ao projecto de lei:

456
os legisladores procuraram proteger as condições que possibilitavam a

heteronormatividade, incluindo a formação de papéis de género apropriados, e

alguns reivindicaram apropriadamente africanos, protegendo simultaneamente

o casamento e a família dos agressores sexuais. Além disso, prácticas

"tradicionais", como a excisão genital feminina, poderiam ser defendidas porque,

como alguns deputados argumentaram, elas ajudaram a policiar o género; Ao

abraçar estrategicamente o relactivismo cultural, os defensores da excisão

argumentaram que isso tornava as mulheres casáveis. Desde que as prácticas de

género e os rituais de namoro pudessem ser ligados à criação de casamentos e à

defesa de famílias, eles recebiam um passe.

O projecto de lei também não pode ser percebido como um ataque às prácticas

sexuais e de género que ocorreram no casamento. Este último argumento veio à


tona nos debates sobre estupro conjugal. Embora as disposições contra o estupro

conjugal estivessem no esboço inicial do projecto, disponível em Dezembro de

2004, o debate sobre estupro conjugal ganhou intensidade na última parte de

Abril e até Maio de 2006 – o parlamento aprovou o projecto na última semana de

Maio de 2006. O estupro conjugal ganhou intensidade como um problema,

quanto mais o projecto se concentrasse em proteger as instituições do casamento

e da família. Então o ministro assistente de saúde, Enoch Kibunguchy, alegou:

‘Esse projecto quebrará as famílias porque diz que alguém pode estuprar sua
esposa’ .17 Outros parlamentares argumentaram que ‘não havia como ocorrer

uma relação não consensual entre cônjuges amorosos’ 18. Em uma ironia trágica

é absurda, o projecto de lei para proteger contra ofensas sexuais fora

457
transformado em um que protegesse a família. Enquanto a família

heteronormativa fosse a unidade considerada vulnerável, ela não poderia,

simultaneamente, ser um local no qual ocorressem ofensas sexuais. Discussões

sobre estupro conjugal sugeriram que o objectivo final do projecto era proteger

a sexualidade queniana realizada em uma família patriarcal e heteronormativa.

Os defensores de cláusulas contra assédio sexual e estupro conjugal afirmaram

que seu maior oponente em tais debates era a cultura, que estava sendo usada

como desculpa pelos homens ligados à tradição para não mudar a lei. Essa

explicação é apenas parte da história. Como o projecto de lei contractou em


escopo, ao tentar proteger todas as mulheres e meninas, homens e meninos que

eram sexualmente vulneráveis à defesa da família heterossexual, tornou-se

praticamente impossível incluir disposições que pudessem impedir a formação


da família heterossexual ou que poderiam expor rachaduras na fachada da

família. Os limites heteronormativos impostos à Lei de Ofensas Sexuais tornaram

impossível criminalizar actos que ocorrem no espaço sagrado do leito do

casamento heterossexual. Protegendo a família contra invasores externos –

estupradores, prostitutas e homossexuais estranhos – os legisladores não

podiam proteger a família dos perigos internos à sua estrutura. Tampouco

poderiam proteger os locais de sua formação – o assédio sexual continua sendo

uma ameaça real, assim como outras formas de violência sexual e de género
projectadas para criar corpos e relacionamentos normativos.

458
Da lei à política: a família

Em Agosto de 2008, o Ministério de Estado da Cultura e do Património do Quénia

divulgou um rascunho de uma política recém-formulada sobre cultura e

património. Embora não tenha sido explicitamente declarado, a política foi

claramente uma resposta ao caos da violência pós- eleitoral que abalou o país em

Janeiro e Fevereiro de 2008. A política oficial foi lançada em 2009. Conforme a

‘Visão geral’ das políticas, ‘ As políticas que visam a inclusão e participação de

todos os cidadãos são garantias de coesão social e um pré-requisito para a paz

‘.19 Em termos gerais, a política tem um duplo mandato: tenta forjar unidades
dentro das já diversas comunidades do Quénia e procura controlar significados

de contacto com países, prácticas e ideologias que são ostensivamente estranhas

ao Quénia. É uma proposta, então, que imagina e tenta produzir o Quénia como
uma forma de intimidade que enfrenta ameaças internas e externas.

A fundação da sociedade queniana sempre foi a família como a menor unidade

da sociedade e das relações de parentesco. No entanto, com o advento da cultura

moderna, adoptamos conceitos contemporâneos de família criados por

casamentos entre quenianos e outros nacionais.

Declarações políticas

459
O governo trabalhará em conjunto com outras instituições para fortalecer as

relações familiares e de parentesco como base para uma nação unificada.

O Governo fornecerá fácil acesso às famílias, desenvolvendo instalações culturais

em nível local, ou seja, centros culturais comunitários, bibliotecas, instalações

para artes cénicas e visuais em benefício de pequenas comunidades rurais,

aumentando instalações para educação artística de crianças pequenas, no nível

da escola primária.20

O capítulo 4 é breve, com pouco mais de 100 palavras. Como as declarações


breves e declarativas usadas para emitir ordens nas forças armadas, essa

brevidade não apenas assume, mas constrói a intimidade queniana como uma

questão já decidida. A brevidade, nesse caso, funciona como uma estratégia de


exclusão – essa afirmação não incentiva nem aceita o diálogo. A cultura e o

património estão ancorados em uma forma sexual muito específica e não pode

haver debate legítimo sobre a forma da heterossexualidade nacional.

Ao afirmar que a ‘fundação da sociedade queniana sempre foi a família’ (ênfase

minha), este documento reescreve e apaga as histórias urbanas de prostituição

do Quénia, histórias baseadas em classes incorporadas nos sindicatos muito

importantes do país, coalizões multiétnicas que funcionam fora do país.


Estruturas baseadas em parentesco e as violentas histórias do colonialismo que

forjaram as unidades de grupos díspares.21 Posicionando essa base íntima muito

específica, a família heterossexual como a forma central pela qual a ‘sociedade

460
queniana’ emergiu apaga as formas inovadoras e criativas de afiliação. Que foram

fundamentais para criar e construir o Quénia.

Sempre também apaga os marcadores temporais do surgimento do Quénia como

nação. Agora, se escolhemos privilegiar o colonialismo ou não, é uma questão de

debate legítimo. Não precisamos ancorar o desenvolvimento e o surgimento da

“sociedade queniana” em 1885, 1952 ou 1963.22 As formas adoptadas por esta nação

se desenvolveram muito mais desigualmente, em curtas e longas explosões, e

pode ser que em 1922, quando o activista trabalhista Harry Thuku estivesse preso,

é mais significativo para o surgimento de alianças étnicas do que em 1920, quando


a África Oriental britânica foi renomeada Quénia. No entanto, ao postular ‘a

família’ como aquilo que funciona ao longo do tempo, como o fundamento sobre

o qual a própria temporalidade repousa, e também resiste à temporalidade, este


documento não escreve as histórias muito urgentes que precisamos entender e

disseminar se quisermos abraçar nossas ricas histórias multiétnicas, multi-

políticas, multi-culturais e multi-culturais.

Argumentando que a família moderna – que permanece indefinida – surge por

meio de “casamentos entre quenianos e outros nacionais”, essa política se baseia

em duas suposições. Primeiro, pressupõe que os casamentos entre nacionais

quenianos não redefinem o casamento, a família ou o queniano de qualquer


maneira. Etnia, raça, religião e classe não têm especificidade íntima. Um

casamento entre, digamos, um Gikuyu e um índio, ou um Luo e um Kamba, não

levanta questões; os casamentos entre gerações são igualmente sem problemas,


não levantando novas questões ou paradigmas. Essas alegações simplesmente

461
não são confirmadas pela história do Quénia.23 Ideias importantes sobre o que

significa ser queniano estão ancoradas em nossas histórias de negociações

íntimas. Estamos constantemente criando e recriando a nós mesmos e ao Quénia

através de nossas formas de afiliações e filiações íntimas. Nossas vidas íntimas

inovadoras oferecem paradigmas de como a cultura e o património são

constantemente dinâmicos e em evolução. Posicionar os casamentos

intranacionais como instituições estáticas, pré ou anti-modernas, rouba

quenianos de paradigmas valiosos.

A segunda suposição principal desta afirmação é que o casamento heterossexual


oferece acesso à modernidade íntima. Como estudos recentes demonstram,

formas de intimidade são cada vez mais aduzidas como evidência da

modernidade. Os estados que adoptam os direitos queer, por exemplo, são


considerados mais modernos, enquanto os que ainda criminalizam os direitos

queer são considerados primitivos.24 Consequentemente, ao enquadrar formas

de intimidade como portais da modernidade, esse documento de política se

integra aos paradigmas existentes. No entanto, essa política queniana limita a

modernidade íntima à modernidade heterossexual, recusando a possibilidade de

que as intimidades modernas existam em arranjos bastante distintos da

heterossexualidade casada. A heterossexualidade casada é definida em termos de

cultura e herança, enquanto tudo o mais, maternidade solteira, abstinência,


promiscuidade, desejos e prácticas queer, são implicitamente marcados como

cultural, moderno, tradicional, que nada contribui para a história. Presente e

462
para o futuro. Tudo isso dentro de aproximadamente 40 palavras no parágrafo

introdutório.

É contra esse pano de fundo histórico que as declarações de política são definidas

e cada uma merece atenção cuidadosa.

O governo trabalhará em conjunto com outras instituições para fortalecer as

relações familiares e de parentesco como base para uma nação unificada.

Essa formulação opõe implicitamente aqueles que querem “fortalecer as relações


familiares e de parentesco” com os outros sem nome que procuram destruí-los.

De facto, esta declaração de política baseia-se e reforça a Lei de Ofensas Sexuais,

privilegiando a unidade familiar heterossexual como um objecto de vigilância e


protecção do Estado.

Certamente, essa afirmação em apoio à família é importante, especialmente se


quisermos perceber as ricas possibilidades do que significa ser multiétnico e

multirracial. De facto, é vital um esforço conjunto do governo para apoiar a

integração nacional por meios íntimos, especialmente após a turbulenta

violência pós-eleitoral, que rompeu vínculos íntimos.

Precisamos construir um espaço nacional no qual as reivindicações de etnia não

tenham o poder de romper vínculos íntimos, um espaço nacional em que os

vínculos íntimos tenham o poder de redefinir políticas de base étnica.

No entanto, se queremos conceder aos apegos íntimos um papel fundamental na

criação e sustentação da nação, parece estratégico e lógico que nosso objectivo

463
nacional seja o de multiplicar as possibilidades de apego íntimo, reconhecer o

alcance e a diversidade dos íntimos. Arranjos que ocupamos e criamos. Não

estamos todos casando com heterossexuais, e ancorar o

país nessa base arrisca alienar os muitos jovens solteiros, mas ainda intimamente

ligados; as mulheres e homens que prestam serviços íntimos; aqueles de nós que

permanecem abstinentes ou celibatários; e aqueles de nós que experimentam

género e sexualidade de várias maneiras.

Precisamos perceber o potencial da variedade e diversidade de arranjos íntimos


que ocupamos, não excluir suas possibilidades de produzir coesão nacional ou o

que Walt Whitman chama de “adesão “.25

Diferentemente da primeira declaração de política, que é relativamente clara, a

segunda é ilegível, obscura e até ilógica. Diz:

O Governo fornecerá fácil acesso às famílias, desenvolvendo instalações

culturais em nível local, ou seja, centros culturais comunitários,

bibliotecas, instalações para artes cénicas e visuais para o benefício de

pequenas comunidades rurais, aumentando as instalações para a

educação artística de crianças pequenas, no nível da escola primária

Em um nível puramente sintáctico, a sentença carece de um predicado claro.


Para quem o governo ‘fornecerá acesso fácil às famílias’ e com que finalidade? 26

464
No entanto, descartar a sentença com base em sua idiossincrasia sintáctica corre

o risco de perder o que sugere, por mais desajeitado que seja.

Resumidamente, parece que as “instalações culturais” contêm famílias – é onde

as encontramos, onde são construídas e onde circulam. O objectivo das

instalações culturais é, portanto, “conter”, no sentido de restringir e selar, ideias

sobre o que são as famílias. É a partir de ‘cultura’, criada em ‘centros culturais,

bibliotecas, instalações para artes cénicas e visuais’, que recebemos ‘acesso fácil’

às famílias. Em suma, essas instituições culturais, criadas ou apoiadas pelo

Ministério da Cultura e Património, têm como mandato primário a criação de


espaços íntimos de vinculação. Eles nos ensinam como é a intimidade apropriada,

como as famílias funcionam. Os espaços e instituições culturais não são,

portanto, projectados para inovar novos arranjos sociais e íntimos, nem devem
desafiar nossas ideias pré-concebidas sobre intimidade adequada.

O que parece especialmente impressionante nessa lista de instalações culturais

é como elas gerenciam e circulam o conhecimento: das artes cénicas, incluindo

o teatro comunitário local, às bibliotecas que armazenam e disseminam

conhecimento, às artes visuais, a ‘cultura’ deve fornecer acesso às famílias “.

Obras artísticas, culturais e literárias (no sentido amplo da escrita) devem

sempre fornecer ‘acesso fácil’ à família e ser, para usar um americanismo,


‘familiar’. Se inadvertidamente, esta secção reconhece a relação entre a

imaginação e a inovação íntima: actos e arranjos íntimos podem ser criados,

modelados e remodelados. Por outro lado, a cultura patrocinada pelo governo


procura prender imaginações indisciplinadas que possam fomentar inclinações

465
queer. Representações artísticas e literárias que desafiam a forma e a função da

família estritamente definida são, presumivelmente, culturais e piores, desafios

para a produção de uma ‘nação unificada’. É importante perceber o que está em

jogo aqui: nada menos que a unidade da nação. Aqueles que criticam essa política

são, consequentemente, não apenas “contra a família”, são contra uma “nação

unificada”.

O escopo desta declaração é incrível, pois esses espaços culturais específicos,

bibliotecas, centros culturais e museus têm oferecido refúgio e consolo a muitas

pessoas isoladas queer e questionadoras. Nós procuramos por nós mesmos nas
páginas de livros de medicina, livros de psiquiatria, dicionários, enciclopédias;

nos reconhecemos em Radclyffe Hall, James Baldwin, Oscar Wilde, Shakespeare;

nos sentimos intimamente conectados enquanto assistíamos a peças de teatro,


filmes, balés; aprendemos como nos chamar, como nomear e renomear a nós

mesmos, como ocupar o mundo como parte dele, mesmo quando isolado.

Identificar espaços como heterocages, espaços de contenção, é apagar a

possibilidade, ampliar a solidão, consagrar a impossibilidade como condição de

queerness.

É especialmente digno de nota que dois grupos são mencionados: comunidades

rurais e crianças pequenas, presumivelmente aqueles que não foram


corrompidos pelos efeitos degradantes da modernidade urbana, aqueles que não

foram infectados por uma alteridade íntima. Conforme construídas, as

comunidades rurais e as crianças pequenas carregam o fardo da memória íntima.


As comunidades rurais são especialmente importantes porque continuam a ser

466
consideradas guardiãs da tradição, na memória, se não necessariamente na

práctica. Neste documento, ‘comunidades rurais’ são implicitamente

diferenciadas daquelas que se casam com ‘estrangeiros’ e, assim, inovam as

formas modernas da família heterossexual. As comunidades rurais tornam-se

museus íntimos, dedicados a manter formas “tradicionais” de intimidade que,

neste documento, são roubadas de sua diversidade e heterogeneidade.

Ao se apressar para proteger as “comunidades rurais” das perturbações íntimas

da modernidade, essa política apaga os históricos de inovação íntima e erótica

que são uma parte rica da herança multiétnica do Quénia. Longe estão as
prácticas de flexão de género nas quais as mulheres biológicas funcionavam

como homens culturais; são apagados os casamentos mulher-mulher praticados

em vários grupos; silenciadas são as prácticas de compartilhamento de parceiros


dentro dos grupos etários; censuradas são as relações intergeracionais que são

centrais para os rituais de crescimento.27 Volto mais uma vez à brevidade deste

capítulo, que pressupõe que as histórias íntimas do Quénia não precisam de

elaboração nem consideração, que termos como ‘família’ e ‘parentesco’ ‘esgotar

como vivemos e construímos nossas vidas íntimas. Esse silêncio torna cultural o

que deve ser profundamente cultural, histórico o que fornece textura à história,

específico o que permite a especificidade multiétnica.

Ao justapor comunidades rurais e crianças pequenas, essa declaração de política

alinha implicitamente as duas, infantilizando comunidades rurais e

desurbanizando crianças pequenas. Ambos os grupos, sugere este documento,

467
devem ser protegidos para que, por sua vez, possam nos proteger, modelando

para nós como os arranjos íntimos heterossexuais adequados devem funcionar.

Apesar e devido à sua brevidade, este capítulo merece a atenção de activistas de

género e sexual. Este capítulo e a política que ele contém não são leis. No entanto,

adoptado como política oficial do governo, este capítulo poderia ser organizado

na criação de leis repressivas. Os eleitorados anti-feministas e anti-queer podem

recorrer a essa definição oficial de cultura e património íntimos para advogar leis

repressivas e punitivas.

Combinando lei e política

Nesta secção final, volto à afirmação confiante de Makau Mutua de que a

constituição recém- promulgada protege os direitos dos homossexuais e a

reavalia à luz da história recente que descrevi até agora. Para recapitular

brevemente meu argumento: desde que o debate começou a sério sobre a Lei de

Ofensas Sexuais em 2005, os quenianos aprovaram uma série de leis e políticas

que casam com nacionalidade pertencente à heterossexualidade e prometem

proteger a família heteronormativa; a heterossexualidade nacional tem sido cada

vez mais protegida por lei e promovida por políticas. O casamento heterossexual

e as famílias heteronormativas foram tão suturadas à nação que um ataque a um

ou a ambos é considerado um ataque ao Quénia.

468
Simultaneamente, lei e política definiram implicitamente formas não normativas

de expressão de género e práctica sexual como ameaças à família, como aquelas

contra as quais a família deve ser defendida.28

Em 2007, no ano seguinte à aprovação da Lei de Ofensas Sexuais, Amos Wako,

então procurador-geral do Quénia, introduziu uma lei de casamento no

parlamento.29 Oficialmente, como Judy Thongori, advogada da família, explicou,

a lei ajudaria a harmonizar os retalhos do Quénia. De leis que reconheciam

múltiplas formas de casamento, incluindo religiosas, civis e costumeiras.30 Não

oficialmente, o projecto responde às ansiedades provocadas pelos debates em


torno do escopo da Lei de Ofensas Sexuais e é uma resposta nacional ao activismo

internacional sobre o casamento gay.

Essa capacidade não-oficial é explicitada na definição de casamento na cláusula

2.3: “Casamento significa a união voluntária de um homem e uma mulher com a

intenção de durar a vida inteira.” Nem uma vez na factura inteira é casamento do

mesmo sexo ou qualquer outro variação estranha mencionada. Mutua

argumentou que a ausência de proibição sugere implicitamente aprovação:

‘Como qualquer estudante médio de direito do primeiro ano sabe, uma liberdade

ou liberdade que não é proibida é permitida’ .31 No entanto, uma entrevista

realizada com Njoki Ndung’u logo após as ofensas sexuais a lei foi promulgada
oferece algumas ideias sobre a relação entre os não- ditos e os não-autorizados:

“Houve reivindicações de alguns sectores religiosos conservadores de que o

projecto de lei procurava legalizar as relações entre pessoas do mesmo sexo e o


aborto.

469
Isso me surpreendeu porque, conhecendo a sensibilidade desses tópicos no

Quénia, eu me esforçava para garantir que o projecto de lei não parecesse

abordar essas questões. ”32 Para Ndung’u, o não dito é parte do que o estudioso

haitiano Michel- Rolph Trouillot chama de “o impensável” .33 O que não é

permitido nem proibido é apagado como uma possibilidade histórica.

Ainda mais revelador, o idioma e a intenção da conta do casamento foram

incorporados à nova constituição. A Secção 45.1, no capítulo 4, sobre a Declaração

de Direitos, diz: ‘A família é a unidade natural e fundamental da sociedade e a

base necessária da ordem social, e gozará do reconhecimento e protecção do


Estado.’ A secção 45.2 continua, “Todo adulto tem o direito de se casar com uma

pessoa do sexo oposto, com base no consentimento livre das partes.” A

justaposição dessas duas Secções delimita o que queremos dizer com família,
sexo e género. No rascunho da constituição, ‘família’ não é uma metáfora para as

relações de cuidado entre indivíduos, mas é uma instituição heterossexualmente

reprodutiva, garantida pelo sangue. A constituição não reconhece relações de

parentesco fictícias baseadas na classe e em outras afinidades. Segundo, esta

secção reconhece apenas duas configurações corporais e de género: os adultos

vêm em pares binários, o ‘homem’ e a ‘mulher’ mencionados explicitamente na

conta do casamento.

O génio dessa lei é que ela torna, em termos afirmativos e positivos, o que outras

formas de legislação em outras partes da África, Nigéria e Uganda, por exemplo,

tentaram apresentar em termos negativos. Não proíbe o casamento gay. Promove


o casamento heterossexual. No entanto, essa legislação afirmativa ecoa, em

470
espírito, a legislação negativa que provocou polémica em todo o mundo. Observe,

não diz: o Quénia proíbe o casamento homossexual. Tampouco diz: O Quénia

reconhece apenas a humanidade de seres humanos de género e genitalização

apropriados. Em vez disso, afirma a importância da família e do casamento e

promete proteger essas instituições.

Mas contra quem eles devem ser protegidos?

Somente quando fazemos essa pergunta é que entendemos o quanto essas duas

cláusulas se assemelham à legislação anti-gay proposta no Uganda. A família


heterossexualmente reprodutiva deve ser protegida contra homossexuais,

contra homens que dormem com homens e mulheres que dormem com

mulheres e contra indivíduos que praticam sexo e sexo entre homens e mulheres
que perturbam o puro binário de género que ancora a nação.

Meu objectivo neste ensaio foi começar a traçar como a vida íntima é estruturada

nas leis e políticas do Quénia. Ao fazer isso, concentrei-me não nas leis e políticas

que são explicitamente anti-homossexuais – sejam anti-homossexuais ou anti-

trans -, mas nas leis e políticas que, embora pareçam indiferentes aos corpos,

desejos e prácticas homossexuais , na verdade, confiam nesses corpos, desejos e

prácticas para ancorar seu próprio ser normativo.

Notas

1Lucas Barasa (2010) ‘Kenya PM orders gays’ arrest’, Daily Nation, 28 November, acessado em 1 de Janeiro de 2011.

471
2Veja Macharia Gaitho (2010) ‘Sr. PM, a Declaração de Direitos pelos quais você lutou tanto para cobrir os quenianos gays
também, Daily Nation, 29 de Novembro, acessado em 1º de Janeiro de 2011; Lukoye Atwoli (2010) 'Homofobia serve apenas para
espalhar a homossexualidade', Daily Nation, 4 de Dezembro, acessado em 1 de Janeiro de 2011; Rasna Warah (2010) 'Raila deve
aos quenianos um pedido de desculpas, não negação, pela declaração contra os gays', Daily Nation, 5 de Dezembro, acessado
em 1 de Janeiro de 2011.

Makau Mutua (2010) 'Por que a nova constituição do Quénia protege os gays', Daily Nation, 11 de Dezembro, acessado em 1 de
Janeiro de 2011.

A decisão na Índia merece um exame minucioso dos activistas queer africanos. O texto completo está disponível em
http://www.sacw.net/article985.html.

Neville Hoad (2007) Intimidades africanas: raça, homossexualidade e globalização, Minneapolis, Universidade de Minnesota
Press: xvi.

Para uma história do processo de elaboração de contas, ver Onyango-Ouma, Njoki Ndung'u, Nancy Baraza e Harriet Birungi
(2009) A Lei sobre as ofensas sexuais no Quénia, 2006: Bastidores, Nairobi, Kwani Trust .

Michel Foucault (1978) História da Sexualidade, trad. Robert Hurley, Nova York, Vintage: 17. Uma cópia da fatura final pode ser
encontrada em http://www.mzalendo.com/Bills.Details.php?ID=1.

Veja, por exemplo, a postagem do blog e a discussão subsequente do blog 'O que uma mulher africana pensa', em
http://wherehermadnessresides.blogspot.com/2006/05/sexual-offences- bill.html; Owino Opondo (2005) 'MPs apóiam novas
penalidades duras para estupradores', Daily Nation, 28 de Abril; Emman Omari (2005) "Apreensão dos parlamentares votam
no projectos de lei de castração", Daily Nation, 28 de Abril; Ory Okolloh (2005) 'Estupro: concentre-se nas necessidades da
vítima', Daily Nation, 9 de Maio; Rosemarie M. Onyando (2006) values Valores culturais, meu pé! Isso é estupro, Daily Nation,
28 de Abril; Odhiambo Orlale (2006) "Os membros deixam de lado o medo de discutir o tabu", Daily Nation, 30 de Abril; Billow
A. Kerrow (2006) "O Islã está bastante à vontade com a lei do sexo", Daily Nation, 4 de Maio; Emmo Opoti (2006) 'Projecto de
lei sexual não para de estuprar; jogue fora, Daily Nation, 9 de Maio; Chris Foot (2006) 'Lei do sexo injusta e sem sentido', Daily
Nation, 9 de Maio; Oyunga Pala (2006) "Por que devemos aceitar este projectos", Daily Nation, 13 de Maio; Alexander Eichener
(2006) 'Uma ofensa contra a humanidade', KenyaImagine, 30 de Novembro. Todos acessados em 10 de Junho de 2010.

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472
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Ver Luise White (1990) Os confortos do lar: prostituição no colonial Nairobi, Chicago: University of Chicago Press e Tabitha
Kanogo (2005) African Africanhoodhood no colonial Quénia, Oxford, James Currey.

de 1885 foi a data da Conferência de Berlim, a infame corrida pela África; 1952 foi o começo "oficial" da luta nacionalista do
Quénia, na qual os Mau Mau assumiram um papel fundamental; e em 1963, o Quénia conquistou a independência dos britânicos

Na história pós-independência do Quénia, o caso mais famoso sobre as complicações do casamento interétnico foi o
apresentado entre a viúva de S.M. Otieno, Wambui Otieno e seus membros do clã. Veja Patricia Stamp (1991) 'Enterrar Otieno:
a política de género e etnia no Quénia', Signs 16 (4): 808-45; April Gordon (1995) 'Género, etnia e classe no Quénia: Enterrando
Otieno 'revisitado', Signs 20 (4): 883–912; David Cohen e E.S. Atieno Odhiambo (1992) Enterrando S.M .: A Política do
Conhecimento e a Sociologia do Poder na África, Londres, James Currey. Mais recentemente, Wambui Otieno também tem
sido foco de controvérsia por se casar com um homem vários anos mais novo. Veja Grace A. Musila (2005) 'Idade, sexo e poder
no Quénia moderno: um conto de dois casamentos', Social Identities, 11 (2): 113–29.

Neville Hoad (2000) "Desenvolvimento detido ou a estranheza dos selvagens: resistindo às narrativas evolutivas da diferença",
Postcolonial Studies, 3 (3): 133–58; e Cindy Patton (2002) 'Bombardeiros furtivos do desejo: a globalização da' alteridade 'nas
democracias emergentes', em Arnaldo Cruz-Malavé e Martin F. Manalansan IV (eds) Globalizações Queer: cidadania e vida
após a morte do colonialismo, Nova York, New York University Press: 195-218.

473
Aqui, afasto-me da crítica queer padrão de que o Estado deveria sair do negócio de legislar sobre a intimidade. Embora
reconheça os muitos problemas da intimidade sancionada pelo Estado, também desconfio de abordagens que alienam o
estado, abordagens que podem não ser apropriadas ou possíveis em um espaço como o Quénia

Para ser justa, a frase pode ser completa e coerente, mas minha descrença com seu heterocentrismo nu me obriga a lê-la
como incoerente. Isso é chamado apropriadamente de leitura "interessada".

Ver Wairimu Ngaruiya Njambi e William E. O'Brien (2000) 'Revisitando o' casamento mulher-mulher: notas sobre mulheres
Gikuyu', NWSA Journal, 12 (1): 1–23.

Mesmo categorias não baseadas em identidade, como homens que fazem sexo com homens (HSH), ameaçam a família, como
Andil Gosine (2009) explica em 'Monstro, útero, HSH: o trabalho do sexo no desenvolvimento internacional', Desenvolvimento
52 (1): 30:

As transgressões do HSH são muitas. Ele quebra os códigos legais que proíbem a sodomia e a homossexualidade, prejudica a
instituição do casamento heterossexual através de sua participação em actos sexuais que a prejudicam (já que muitos, se não
a maioria dos HSH, são homens casados), e ele interrompe as estruturas hetero: homossexuais, por sua recusa. executar ou
se apegar a uma identidade sexual fixa. Essas prácticas são todos os requisitos das formas dominantes euro-americanas de
regulação sexual. De facto, o que é particularmente interessante sobre o trabalho de desenvolvimento realizado em nome da
protecção dos HSH (ou da sociedade) é sua ênfase na protecção de características-chave das prácticas euro-americanas de
regulação sexual: o casal heterossexual, declaração pública e reificação da identidade e mediação estatal da práctica sexual.

Um rascunho da factura está disponível em http://wwww.mzalendo.com/Bills.Details.php?ID=40.

Caroline Njung’e (2009) 'Casamentos no Quénia enfrentam uma reforma drástica', Daily Nation, 1º de Maio, acessado em 7 de
Janeiro de 2010.

31 Mutua (2010).

Assuntos de saúde reprodutiva (2007) ‘Legislação contra a violência sexual no Quénia: uma entrevista com o Exmo. Njoki
Ndungu, 15 (29): 150.

Michel-Rolph Trouillot (1995) Silenciando o passado: poder e produção da história, Boston, MA, Beacon Press: 70-107

474
475
29 – NHORONDO – MAWAZO YETU: RASTREANDO A VIDA DE VOLTA:
NOSSAS REFLEXÕES – HISTÓRIA DE VIDA – Zandile Makahamadze e
Kagendo Murungi

Nós somos velhas amigas. Nos encontramos na primeira conferência da

Associação Internacional de Lésbicas e Gays da África (ILGA) em 1999, em


Joanesburgo, África do Sul. Viemos de diferentes origens, mas no final temos o

mesmo objectivo; nossos futuros se entrelaçaram à medida que construímos o

que se tornou uma amizade familiar que sustenta a vida. Nossa história começa

no ponto de nosso encontro, com as questões e circunstâncias que nos levaram a

estar em Joanesburgo em Setembro de 1999.

Zandile Makahamadze é ex-presidente e advogada do envolvimento e programas

de mulheres em gays e lésbicas do Zimbábue (GALZ), e Kagendo Murungi é a


oficial fundadora do programa da África na Comissão Internacional de Direitos

Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC). É nossa esperança que nossas lições

compartilhadas nos últimos 15 anos como activistas africanx lésbicas, gays,


bissexuais, transgéneros e não conformes com o género (LGBTGNC) aumentem

a visibilidade do activismo baseado nos EUA e de momentos formativos

específicos na organização do continente. Também buscamos um senso de


unidade fundamentado com colegas activistas e iniciativas na África e somos

inspiradas a participar da criação de recursos para o desenvolvimento

sustentado de movimentos versáteis.

476
A metade dos anos 90 marcou nossa entrada no campo do activismo pela justiça

social para a libertação africana de LGBTGNC. Nossos pontos de entrada eram

diferentes, tendo Zandile baseada em Harare, Zimbábue e Kagendo em Nova

York, EUA. Zandile se envolveu com a GALZ através do processo de explorar sua

sexualidade e foi activa com a organização de 1997 a 2002. Kagendo, após

ingressar no contingente do IGLHRC na Quarta Conferência Mundial da ONU

sobre Mulheres em Pequim, China, foi uma das organizadoras de actividades

diárias na barraca lésbica no fórum das ONGs em Huairou, China e,

posteriormente, Trabalhou no IGLHRC, onde actuou alternadamente como

membro da equipe e consultora entre 1996 e 2003.

Zandile actuou como membro do conselho e representante regional da África na

ILGA de 1999 a 2002, enquanto Kagendo actuou no Painel de Doações


Internacionais da Astraea Lesbian Foundation for Justice entre 1996 e 2001.

Ambas temos um histórico de envolvimento em Uhuru- Wazobia, uma

organização LGBT africana sediada em Nova York, da qual Kagendo era membro

fundadora, e com Liberation for All Africanos (L4AA), um comitê ad hoc de

pessoas e aliadas africanas LGBTGNC em Nova York.

Trabalhos passados

Kagendo: Por que se juntou à GALZ e qual foi o impacto de sua participação como

lésbica negra? Zandile: Onde eu cresci, você era mulher ou homem e tinha que

477
se casar com o sexo oposto. Como não me encaixava nessas categorias, sempre

fiquei curiosa e queria descobrir mais sobre mim. Descobri a GALZ em 1995, por

coincidência na Feira Nacional do Livro do Zimbábue. O presidente Mugabe havia

se referido aos homossexuais como “inferior aos cães e porcos” e pediu que eles

fossem banidos da feira. As circunstâncias me proibiram de ingressar na GALZ

até 1997. Eu estava numa situação muito violenta, morando com o pai dos meus

dois filhos que me estuprou e me engravidou com meu primeiro filho aos 14 anos.

Ninguém podia cuidar de mim e esse homem me forçou a morar com ele. Eu

estava lidando com muitos traumas por ter sido estuprada e abusada mental,

física e psicologicamente. Em 1995, as escritoras do Zimbábue me ofereceram um


emprego de período integral, o que me ajudou financeiramente a sair da minha

situação e, dois anos depois, eu estava envolvida com o GALZ. Entrei porque

procurava pessoas que se identificassem como eu em termos de sexualidade.

Foi muito emocionante, porque era isso que eu procurava. Fiz a diferença para

outras mulheres, tornando o local mais acolhedor, reconfortante e agradável.

Mas não foi fácil, porque GALZ tinha suas próprias maneiras de operar;

realmente não recebia lésbicas negras ou mulheres em geral. Tinha seus próprios

julgamentos, que se mostraram estressantes quando me envolvi mais com a

organização. Eu me consolava dizendo: ‘Estou aqui agora, não pode ficar pior’. Eu

sabia o que queria e ia conseguir, apesar de não ter apoio. Keith Goddard, chefe
da GALZ, era um homem branco e talvez fosse difícil para ele abraçar lésbicas

porque suas opiniões eram como a maioria dos homens heterossexuais.

478
Antes do IGLHRC, você trabalhou com alguma organização de lésbicas, gays,

bissexuais e transgéneros (LGBT)?

Kagendo: Na Universidade Rutgers, eu era membro de organizações estudantis

como o Women of Color Collective, com Cheryl Clarke como nossa orientadora

e membro da equipe de estudantes do Centro para Liderança Global das

Mulheres. Também fui abençoada por ter Abena Busia como minha orientadora

de tese. Essas professoras me expuseram à teoria feminista negra e africana, às

escritoras africanas, à poesia lésbica e à organização global dos direitos de

género, então eu tinha uma forte identidade como feminista africana.

Minha tese de graduação foi sobre representações de lésbicas africanas na

literatura por mulheres escritoras africanas. Lutei para encontrar evidências de


lésbicas africanas e o primeiro africano gay documentado que encontrei foi

Simon Nkoli, num boletim do IGLHRC. Também consegui encontrar uma

declaração de uma lésbica africana de Moçambique que testemunhou perante a

ONU no final dos anos 80.

Em 1995, quando fui para a Quarta Conferência Mundial da ONU sobre Mulheres

em Pequim, como parte do contingente da IGLHRC, fiquei ainda mais politizada

sobre questões lésbicas africanas, quando uma coalizão de organizações lésbicas


de todo o mundo pressionou a ONU a reconhecer a discriminação no mundo.

Base da orientação sexual dentro da plataforma da conferência para acção. Em

seguida, assumi uma posição no IGLHRC e comecei a aprender como aplicar uma
abordagem de direitos humanos à libertação de LGBT no continente.

479
Você trouxe estratégias específicas para a GALZ e teve apoio de algum aliado

regional ou internacional?

Zandile: As estratégias que implementei foram de minhas experiências de vida.

Parte disso também foi o conhecimento que adquiri na GALZ durante meus

primeiros dias como membro executiva, além de vice-presidente e, em seguida,

presidente.

Eu participei da minha primeira conferência da ILGA na África do Sul em 1999, e

fui indicada como membro do conselho para representar a região africana. Esta
foi a minha primeira exposição a workshops internacionais de lésbicas e

bissexuais. Adquiri mais conhecimento e ideias sobre estratégias para o

envolvimento das mulheres. Também aprendi maneiras de fazer lobby com


alianças internacionais para encontrar apoio no Zimbábue porque nossa

plataforma como GALZ não estava funcionando. Queríamos entrar em contato

com outras organizações e trabalhar juntos.

Algumas organizações começaram a nos informar sobre as manifestações

públicas que realizavam. Meu trabalho resultou no aumento da participação e

inclusão de programas femininos na GALZ. Que desafios você enfrentou em seu

trabalho para estabelecer o programa IGLHRC África como africana localizada


fora do continente?

Kagendo: Ao fundar o programa da África, eu havia herdado algumas pastas


contendo materiais principalmente de organizações LGBT do sul da África e

cartas de lésbicas e gays africanx ao redor do continente. Muitos grupos LGBT

480
fora da África Austral foram organizados como organizações de HIV / SIDA e até

organizações de ‘gays e lésbicas’ pareciam predominantemente gays. Nenhuma

rede continental real existia ainda, então eu tive que construir pontes.

Como os escritos mais visíveis sobre a homossexualidade africana na época eram

textos antropológicos de homens brancos, comecei a recolher esses escritos

juntamente com escritos da Sister Namíbia e de outros colegas da África e criei

uma bibliografia para pesquisas sobre questões de homossexualidade e direitos

LGBT na África, que distribuímos para bibliotecas universitárias e aliados LGBT

nos EUA.

Priorizei entrar em contacto com organizações de mulheres africanas, HIV /

AIDS, direitos humanos e desenvolvimento em toda a África, em um esforço para


criar apoio para questões africanas LGBT, mesmo que muitas vezes suas

respostas me fizessem sentir um espetáculo, quando elas responderam.

Por que você se mudou para os EUA e isso mudou sua relação com a organização

no Zimbábue e com organizações internacionais LGBT?

Zandile: Minha vida foi ameaçada porque eu estava muito envolvida na defesa

dos direitos das mulheres lésbicas / bissexuais. Não percebendo o quanto eu


estava colocando em risco a mim e a minha família, participei de eventos como

Presidente da GALZ e fiz discursos públicos aos quais não-gays compareceram.

Muitas pessoas sabiam do meu envolvimento directo e queriam me silenciar. Eu


confiava no transporte público, então eles me seguiram em todos os lugares,

gritando palavrões, me dizendo para deixar o GALZ ou então eles se tornariam

481
físicos. Estranhos ligaram no meu telefone, abusando verbalmente de todas essas

ameaças. Tive que mudar de residência três vezes para evitar assédio. Quando

minha casa foi atacada, decidi imediatamente deixar o país. Eu fazia esse trabalho

como indivíduo, mas minha família também pagavam o preço. Eu não queria que

eles continuassem pagando o preço, então fui embora.

Eu estava morava em Waterfalls com minha namorada quando fomos atacadas e

fomos à polícia registrar uma denúncia. Os oficiais se recusaram a aceitar nosso

relatório; disseram que sabiam que éramos lésbicas e disseram que já sabiam

onde morávamos. Eles nos acusaram de causar esses ataques e disseram que não
desperdiçariam seus recursos, deixando-nos fazer uma denúncia. Perguntei a

eles como estávamos causando esses ataques, e eles disseram que era por causa

de como vivíamos nossas vidas. Eles também disseram que se vivêssemos como
todo mundo, o que quer que estivesse acontecendo pararia. Eles perguntaram

por que estávamos dormindo com mulheres e também disseram que não iriam

nos proteger já que instigávamos esses ataques.

Sem protecção, tornou-se impossível permanecer num país inseguro; finalmente

visitei minha irmã e seu marido e contei a eles sobre minha decisão de deixar o

Zimbábue. Perguntei se eles poderiam cuidar dos meus filhos, já que eu não

poderia partir com eles. Eles concordaram e tomaram providências para que
continuassem os estudos. Renunciei ao meu emprego e fui para a conferência da

ILGA na Holanda em 2002. Fiquei com o coração partido porque minha família

estava separada e sabia que levaria tempo para nos reunirmos.

482
Minha decisão também afetou meu relacionamento com a GALZ. Eu ainda estava

disposta a trabalhar com a organização como um membro activo fora do

continente. Eu propus várias maneiras para Keith, que havia concordado

originalmente, mas de repente ele mudou de ideia. Fiquei chocada porque não

sabia como a mudança aconteceu. Quando entrei em contato com outros

membros da GALZ, eles não responderam. Percebi então que eles não queriam

ter nada a ver comigo e fiquei magoada. Eu me senti tão abandonado por esta

organização e tudo o que eu tinha feito por ela.

Como representante regional africana, escrevi uma carta de demissão para a


ILGA. O secretário geral, Kursad Kahramanoglu, foi muito favorável e me disse

que não precisava renunciar. Eu disse a ele que precisava me afastar e me

concentrar em reconstruir minha vida e depois voltar mais tarde. Entrei em


contato com várias organizações nos EUA, mas percebi que suas políticas eram

mais avançadas que as minhas. Eles estavam no estágio de lobby do governo,

enquanto eu ainda estava lutando para ser reconhecida pelo governo do

Zimbábue. Eu decidi me concentrar, com minha vida, e sem certas preocupações.

Você encontrou dificuldades devido à sua identidade africana ao trabalhar como

funcionária de uma organização internacional de direitos humanos LGBT?

Kagendo: Foi incompreensível gerir todas as contradições que eu enfrentei. No

contexto da defesa dos direitos humanos, as pessoas cujos direitos estão sendo

defendidos são consideradas como provedores de conteúdo (vítimas africanas


LGBT) e os advogados são os produtores autorizados de conhecimento desse

483
conteúdo (brancos e / ou cidadãos do sexo masculino dos EUA ou Europa). Nesse

paradigma, ser defensora dos direitos humanos dos imigrantes africanos é auto-

contraditório.

Como funcionária de uma organização sem fins lucrativos nos EUA, fui

compensada pelo meu trabalho de movimento. Não sabia como seria difícil gerar

recursos para manter um relacionamento tangível e contínuo com a organização

LGBT na África como uma africana nos EUA que trabalha fora do complexo

industrial sem fins lucrativos.1

Como você vê seu papel no LGBT africano movimento como africana nos EUA?

Zandile: Aos olhos deles, não existimos, mas podemos desempenhar um papel
muito importante quando se trata de questões LGBT africanas. Lembro que em

2007 fomos ao consulado sul- africano em Nova York para protestar contra o

estupro e assassinato de duas lésbicas sul-africanas em Soweto por causa de sua

orientação sexual. Tivemos que protestar sobre o quão errado era que essas

mulheres haviam sido torturadas e mortas e, no entanto, a África do Sul é o único

país africano que legaliza casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Eu gostaria

de fazer algo mais do que apenas reagir ao que está a acontecer. Quais foram

suas experiências como imigrante na defesa internacional dos direitos humanos?

Kagendo: Como imigrante, a construção de movimentos era central em tudo o

que eu fazia. Houve momentos em que isso se chocou com a defesa dos direitos
humanos, na medida em que privilegia os governos, órgãos regionais e

internacionais de lobby. Embora a legislação de protecção seja crítica, continuei

484
testemunhando lobistas LGBT do continente enfrentando tremendas

repercussões, incluindo ser assassinados isoladamente ao retornar às

comunidades locais.

Não tenho dúvidas de que minha abordagem de construção de movimento como

imigrante africana nos EUA naquele tempo ajudou a direcionar recursos críticos

para activistas e organizações na África e apoiou o crescimento de redes

regionais. Meu trabalho no IGLHRC, juntamente com a minha localização nos

EUA, levou ao meu mandato no painel de doações internacionais da Astraea

Lesbian Foundation for Justice.

Reflexões actuais

Kagendo: Com base na sua história, por que é importante você ter sido incluída

em uma publicação continental queer como essa e qual você acha que será o

impacto da sua visibilidade?

Zandile: As autoridades superiores da África não reconhecem nossa existência

como pessoas LGBT; portanto, se ouvirem nossos pontos de vista, aprofundarão


a história e perceberão que sempre existimos em África. A publicação será

autêntica à nossa existência. Também fortalece aqueles que estão passando por

lutas semelhantes.

485
Como africanx, é importante para o nosso trabalho, mas também dá esperança a

muitos activistas. Não podemos mais ficar no armário, nem podemos calar sobre

essas injustiças. Não podemos deixar que as pessoas nos abusem. Eles precisam

saber que temos o direito de ser. O que você acha que deve ser priorizado na

defesa de mudanças na região africana?

Kagendo: A produção cultural é crítica porque, como os africanx, parte do

processo de colonização foi a tentativa de destruição e apagamento de nossas

culturas. Parte do que foi tornado invisível é a legitimidade de diferentes

estruturas familiares e sexualidades dentro de nossas tradições. Como fanáticos


e oportunistas usam a “cultura” para apagar nossa existência, parte da

descolonização da “cultura” significa criar nossa própria cultura dinâmica

participando de produções como esta publicação, que documentam vozes


africanas contemporâneas sobre género, sexualidade e libertação. Reunir mais

exemplos de experiências e análises africanas documentadas é muito

importante. É essencial criar canais para os activistas africanx LGBT

compartilharem análises e estratégias sem a intrusão de nenhuma "experiência"

externa em nossas vidas.

Você teve alguma ajuda quando procurou asilo e quais foram suas principais

fontes de apoio como imigrante?

Zandile: Consegui muito apoio e sou muito grata por ter recebido seu apoio

pessoal durante todo esse processo. Após a minha chegada, fui ajudada por um
casal em San Diego com hospedagem e alimentação. Tentei procurar asilo lá, mas

486
não consegui encontrar um advogado para me ajudar. Você, Kele e Nguru Karugu,

de Uhuru-Wazobia, um grupo LGBT africano de Nova York, me enviou algum

dinheiro, o que me permitiu mudar para Chicago, onde outro membro de Uhuru-

Wazobia tentou me ajudar a procurar asilo, mas não obteve êxito. Você também

solicitou que uma pessoa da equipe do projectos de asilo da IGLHRC me enviasse

um pacote de informações sobre asilo no Zimbábue. Alguns membros de Uhuru-

Wazobia me escreveram cartas de encorajamento, incluindo Kelebohile

Nkhereanye, que costumava me ligar e enviar mensagens. Entrei em contato com

Pradeep Singla, da Força-Tarefa para Direitos de Imigração de Lésbicas e Gays,

que me encaminhou à minha advogada Heather Bertz, do Projecto de Advocacia


para Lésbicas e Gays. Entrei em contato com Anjana Suvarnananda, da Astraea

Foundation, que me indicou sua amiga em Connecticut, que estava se

divorciando e precisava de alguém para cuidar de seu filho de 18 meses. Depois

de três semanas, mudei-me para Connecticut para cuidar dele e iniciei meu

processo de asilo. Eu sempre aprecio Heather por me defender, assim como por

todos aqueles que me ajudaram. Minha família tem sido uma grande fonte de

apoio durante minhas lutas e minha irmã mais velha sempre foi minha fonte de

inspiração. Ela e meu amigo da Bélgica me ajudaram a comprar uma passagem

para os EUA. Minha irmã, seu marido, sua família e meus filhos me ajudaram a

ficar mais forte. Eles me incentivaram a acreditar em mim mesma.

Que preço você pagou trabalhando como activista africana LGBT em ambientes

isolados e possivelmente hostis?

487
Kagendo: Havia muitos sacrifícios relacionados à necessidade de ser adaptável e

criativa, a fim de equilibrar o pessoal com a política no clima em rápida mudança

e altamente carregado de luta pelos direitos LGBT na África.

Como feminista, era importante que minhas experiências, juntamente com as

necessidades documentadas e a crescente base de conhecimentos dos africanos

LGBT, informassem as orientações e estratégias em meu trabalho. Em um ponto,

achei estrategicamente necessário usar um alias no meu trabalho. Esse tipo de

autonomia em nossa autoidentificação é essencial para nosso próprio senso de

protecção e paz de espírito como activistas africanx LGBT e deve ser um padrão
em pesquisa, documentação e advocacia sobre essas questões.

Em outro momento, optei por me identificar pelo meu primeiro nome sem meu
sobrenome para simbolizar que eu assumia a responsabilidade de minha

visibilidade sem implicar minha família. Enfrentei a aparência de ser uma

activista africana lésbica solitária ao reivindicar a Rede da África do Sudoeste

Asiático (ASWAN), que apareceu nos meus cartões de visita, juntamente com o

meu primeiro nome, para uma visibilidade estratégica identificada pela

comunidade. Eu acho que também estava lutando com um sentimento cansativo

de batalha e buscando maneiras de me envolver com meus colegas de trabalho e

com o movimento mais amplo sobre quais experiências e conhecimentos


informam legitimamente as estratégias que escolhemos em nosso trabalho.

Tem sido activa desde que está nos EUA e podes compartilhar exemplos de
vitórias e desafios em seu trabalho?

488
Zandile: Consegui defender o meu caso de asilo, concedido um ano após a minha

chegada. Você e eu participamos de Uhuru-Wazobia; não durou muito porque eu

estava interessada em activismo e o espaço era para redes sociais. Também

formamos o Liberation 4 All African e elaboramos um plano de acção para

protestar contra os estupros e assassinatos em curso de lésbicas sul-africanas.

Conseguimos advogar que o consulado sul-africano em Nova York recebesse

nossa carta de queixas, na qual pedimos ao governo para intervir e levar os

culpados à justiça. Muitas pessoas e algumas organizações surgiram com força

total em nosso apoio.

Qual é o papel que outras pessoas tiveram em ajudar a equilibrar seu lugar no

movimento?

Kagendo: Formamos o Uhuru-Wazobia, um grupo de apoio e advocacia LGBT da

África continental, em Nova York em 1995, e eu fui capaz de buscar refúgio e

consolo lá enquanto construía comunidade. O grupo era formado principalmente

por homens gays, um pequeno grupo de lésbicas e algumas pessoas não

conformes e transgéneros. O conflito ideológico interno recorrente ocorreu

entre aqueles que queriam ser mais ativos politicamente e aqueles que queriam

continuar sendo um espaço de apoio social. Minhas relações mais fundamentadas

foram com as feministas do grupo, que ajudaram a sustentar e desenvolver


minha análise política, os poucos homens que entenderam a necessidade de se

organizar para a equidade de género e meus fabulosos transgéneros e pessoas

não conformes que continuavam forçando os limites e redefinindo género.

489
Um grupo de pessoas não conformes com o género formou o L4AA, um comitê

ad hoc para tratar de uma série de estupros e assassinatos de lésbicas na África

do Sul em 2007. O comitê expandiu- se para incluir Nenhum Registro, Menos

SIDA Lesoto da e IGLHRC. A L4AA coorganizou uma manifestação fora do

consulado sul-africano em Nova York com o Projecto Audre Lorde e um grande

grupo de activistas treinados em cores.

Por que acha que é tão difícil se qualificar para o financiamento como activista

africana queer nos EUA e como você acha que isso afeta nossa capacidade de

trabalhar em relação ao continente?

Zandile: É difícil por causa dos padrões estabelecidos pelos financiadores. Eles

precisam entender que não temos mais para onde ir para financiamento, estamos
aqui e também somos africanx. Devemos nos qualificar para algo para podermos

advogar. Nossos fundos limitados devem ser considerados de alta prioridade,

porque queremos lutar pelos mesmos problemas pelos quais lutamos na África.

Há uma limitação ao que pode ser feito sem financiamento. Financeiramente, não

temos nada, não podemos continuar eliminando nossas necessidades básicas.

Para que nosso trabalho seja bem-sucedido, devemos fazê-lo com o coração

aberto, não com reservas. Por exemplo, a legislação anti-gay em Uganda e toda a

homofobia patrocinada pelo estado em todo o continente precisam ser


contestadas. Não temos recursos para protestar contra essas injustiças, mas todo

problema precisa de voz. A voz se torna mais forte quando vem de todos os cantos

do mundo.

490
Você sente que concorda com as actuais lutas africanas LGBT em oposição às

lutas nos EUA? Como você advoga nos dois movimentos?

Kagendo: Além de todas as semelhanças gerais de andar no mundo como

africanx, estamos finalmente lutando pela mesma coisa: desestigmatizar nossa

existência e popularizar nossa luta em nossas comunidades em prol da igualdade,

justiça e paz. Estamos trabalhando para criar recursos autónomos para a

mudança, desenvolver novas ideologias e nos capacitar. Sinto que, embora

tenhamos semelhanças, ainda não comparamos notas. Nossos desafios

cotidianos podem ser diferentes, dependendo das posições individuais de classe,


por exemplo, mas os desafios filosóficos e ideológicos que enfrentamos são os

mesmos. Eu acho que o grande obstáculo é que não tivemos a chance de revelar

a substância real de nós mesmos e trocar ideias directamente para descobrir o


quanto compartilhamos em comum, identificar e entender o que é realmente

diferente e descobrir todo um novo todo conjunto de recursos com os quais

avançar conjuntamente.

Quando penso em como advogo em ambos os movimentos, a principal maneira

que sempre defendi é encontrar maneiras diferentes de ser visível, tornar a

orientação sexual visível, tornar a identidade de género visível, advogar pelo

direito à dissidência, ao direito defender, o direito de se autodeterminar e


continuar a lutar com unhas e dentes por conexões diretas entre africanos na

diáspora e africanos no continente.

491
Ferramentas prácticas

Kagendo: Em sua opinião, qual é a ligação entre práctica espiritual e mudança

social?

Zandile: Os dois se entrelaçam porque a práctica espiritual defende mudanças

sociais. A espiritualidade sempre considera o bem-estar dos outros e também se

torna uma pessoa melhor. A sociedade se estabeleceu para garantir que tenha a

palavra final; castiga aqueles que não cumprem suas ‘normas’ sociais. Essa

abordagem afeta qualquer pessoa que não se enquadre em suas categorias de


normal. É por isso que defendemos a mudança para que a sociedade mude seus

caminhos.

Eu me sustento como um ser espiritual, seguindo as crenças cristãs com as quais

fui criada. Eu leio a Bíblia e oro. Eu também tento viver em harmonia comigo

mesma e com o meu redor. Espero que um dia todos nós nos abracemos e não

julguemos.

Como você se manteve fundamentada e focada em suas iniciativas como

defensora dos direitos humanos e da justiça social?

Kagendo: Eu percebi em uma conversa com um dos meus professores

espirituais, um monge budista de Uganda chamado Bhante Buddharakkhita, que

por muitos anos eu não estava respirando. Ao trabalhar com direitos humanos,

você precisa reagir a tanta energia negativa todos os dias.

492
Quando comecei a fazer esse trabalho, meu autocuidado estava desequilibrado

com o meu trabalho, já que eu trabalhava às vezes por 16 horas por dia, porque

estava sobrecarregada pelo grande volume, violência e urgência dos casos e pelo

conhecimento de que minha comunidade estava sob ataque. Percebi que tinha

que trabalhar um dia de oito a nove horas e criar relaxamento e movimento em

minha agenda semanal, ou continuava me queimando em intervalos mais curtos.

O que realmente me impressionou quando comecei a meditar é que você não

pode advogar pela justiça de outra pessoa quando não tem paz em sua própria

mente. Portanto, a meditação e o estudo do Dhamma fazem parte da minha


práctica de permanecer atenta, concentrada e fundamentada, e contar histórias

também faz parte.

Como você se recuperou da crise pessoal e política nos últimos 15 anos e

encontrou redes de apoio para si mesma no Zimbábue e nos EUA?

Zandile: Eu me curei reconhecendo que fiz o meu melhor para criar mudanças

no movimento LGBT do Zimbábue e também compartilhando minhas lutas com

a família e os amigos. Escrevi contos e desenhei esboços auto-expressivos sobre

essas lutas. Consegui aconselhamento durante o processo de asilo, o que foi um

grande passo em frente. Os conselheiros me ajudaram a substituir o


comportamento desadaptado por novos hábitos. Eu trabalhei em rede e recebi

apoio de outras pessoas, principalmente de você, Kagendo e Kele. Vocês

restauraram minha fé no movimento e me fizeram perceber que há outras coisas


para focar em vez de ficar com raiva. Minha irmã visitou para me fortalecer; eu

493
principalmente liguei e enviei um email para ela falar sobre a minha crise. Ela me

ensinou a meditar e fazer longas caminhadas por motivos de saúde. Minha família

era a ferramenta mais poderosa; eles me ajudaram a aceitar as minhas lutas.

Minha parceira Davita e as crianças me amam, e esse é o creme que encobre.

Ainda estou trabalhando em maneiras melhores e mais saudáveis de promover

meu activismo.

Como você cresceu como defensora da mudança, considerando suas

experiências e realizações nos últimos 15 anos?

Kagendo: Possivelmente, a principal coisa que aprendi é um verdadeiro senso de

responsabilidade para comigo mesma, minha família (nascimento e escolhida),

país e continente e como cidadã do mundo. Há um sentido em que meu


desenvolvimento pessoal ocorreu ao lado do crescimento do movimento africano

LGBT, de modo que a maioridade do movimento marcou diferentes estágios da

minha vida adulta. Através do meu relacionamento em mudança com a advocacia,

tornei-me cada vez mais pró-activa de maneiras estruturalmente sustentadas,

mudando a estrutura ou construindo uma estrutura totalmente diferente.

Aprendi a aplicar sempre minha experiência vivida em minhas abordagens ao

trabalho, e que utilizar as mesmas técnicas sem tentar novas ideias não mudará

fundamentalmente o movimento da maneira que queremos. Aprendi que


precisava continuar a encontrar maneiras de trazer minhas próprias

experiências para o trabalho e me tornar visível na libertação africana: meu

movimento e minha paixão.

494
Aprendi que é importante desapegar-se para recuperar a perspectiva quando a

amargura ou a frustração se enraízam, porque essa raiva internalizada se torna

facilmente autodestrutiva, alimentando o isolamento e o medo. Um dos meus

professores espirituais, um sangoma chamado Prudence Mabele, sempre me

lembra que não é uma questão de pessoas más versus pessoas boas, mas sim de

energia negativa versus energia positiva, as quais podem ser acessadas por

qualquer pessoa.

Outro de meus professores, Jacqui Alexander, me ensinou que, se a supressão de

nossa espiritualidade estava envolvida no processo de nossa colonização e


escravização como povo africano, a espiritualidade também deveria fazer parte

de nossos movimentos de libertação.

Se você estiver respirando, consciente e atenta o suficiente, poderá escolher qual

energia direcionar em resposta a qualquer coisa externa que ocorra. Aprendi que

é importante afastar-se da intensidade do trabalho e passar tempo com amigos

de confiança, descansar o suficiente, meditar, fazer longas caminhadas na praia,

nadar, dançar e criar arte. Tenho que lembrar que sou filha, irmã, prima, tia e

avó e preciso dar energia para entender meu papel e responsabilidades como

uma pessoa inteira.

Você já teve acesso a espaços e recursos para desenvolver seu activismo e

aprendizado como activista africana queer nos EUA?

Zandile: tive que encontrar ajuda por conta própria, principalmente de amigos e

familiares. Minhas amigas Lauren e Carol me informaram sobre os programas

495
educacionais em que adquiri o diploma do ensino médio e consegui uma bolsa

do governo para o programa de graduação de associada. Eu vou me formar no

final deste ano. Eu ainda estou trabalhando em publicação internacional.

Que mecanismo você usou para lidar com o isolamento e a falta de acesso aos

recursos?

Kagendo: uma das maiores maneiras de lidar com o isolamento é encontrar

ferramentas para superar meu próprio sentimento de medo quando ele surgir,

um medo que me impediria de continuar pressionando eu e outros africanx a


lutar pela igualdade. Em momentos diferentes, você se cansa de pressionar sem

parar e receber o mesmo tipo de reacção ignorante, sabendo que é proveniente

do estado, da media, de instituições religiosas e até de sua própria família. Então,


me comprometi a usar o vídeo para documentar minha existência e a de todas as

minhas comunidades.

Quanto aos recursos inacessíveis, acho que fomos realmente criativos como uma

comunidade ao longo dos anos, desde empréstimos pessoais a e de amigos como

você, festas de angariação de fundos e um sofá para dormir quando surgir a

necessidade. Essas expressões dos recursos que geramos de nosso próprio

trabalho sempre me desafiam a repensar a definição de recursos de movimento,


porque o dinheiro em si é apenas outra forma de energia que é trocada. Essa

conversa com você está me abrindo para a quantidade de recursos críticos que o

trabalho que fazemos agora ao entrevistarmos é para mim.

496
Quando você olha para trás, há algo que você poderia ter feito de maneira

diferente?

Zandile: Talvez eu pudesse ter tentado destacar de maneira diferente a

importância das questões de lésbicas e bissexuais para homens gays no

Zimbábue. Eu poderia ter solicitado oficinas sensíveis ao género; poderia ter sido

mais fácil conscientizar dessa maneira do que quando todo mundo está te

criticando.

Eu gostaria de ter melhores maneiras de me comunicar com a região africana e


de estar mais conectada com eles no Zimbábue. Provavelmente eles poderiam ter

tido melhores resultados de suas dificuldades; mas por causa de fundos e

recursos limitados, era muito difícil comunicar com eles.

Eu também gostaria de ter tido mais informações sobre o processo de asilo antes

de vir aqui; teria sido menos estressante para mim.

Quando você olha para trás, há algo que você gostaria de ter feito de maneira

diferente?

Kagendo: realmente tenho pensado sobre isso e percebo que faria tudo de novo

porque esse trabalho me fez ser quem eu sou. Ele transformou minha vida através

de intensa alegria, tremenda dor e busca interminável da alma. Eu o acolho como

parte do meu destino e compreendo as experiências deste trabalho no contexto


de todos os eventos da minha vida desde que nasci.

497
Antes de entrar para a defesa internacional dos direitos humanos LGBT, eu

estudava a produção de documentários sociais. Não é um arrependimento, mas

eu gostaria de ter encontrado uma maneira de manter essa práctica em minha

vida durante esse período. Manter um diário em vídeo de minhas experiências

teria sido catártico, e vê-lo poderia ter alimentado um melhor equilíbrio entre

meu trabalho e minha vida criativa e me manteria em contato com um meio que

eu amo.

Nota

Para uma definição do “complexo industrial sem fins lucrativos”, consulte http: // www Incite- national.org/index.php?s=100.

498
499
30 – DIGA AO SOL PARA NÃO BRILHAR – FICÇÃO – Diriye Osman

Era Eid e eu não tinha ninguém com quem celebrar. Eu precisava de um sinal

para me indicar leste ou oeste. A placa veio como um folheto através da minha

caixa de correio. Foi um convite para a oração do Eid na mesquita de Peckham. A

placa apontava para o sul, então eu fui para lá.

Na mesquita, todos estavam no seu melhor no Eid. Os homens asiáticos e somalis

usavam seus melhores khamiises em cinza e branco. Os homens nigerianos

estavam vestidos com sapeurs – camisas da cor de flamingos, sapatos feitos de

couro de crocodilo. As mulheres asiáticas e somalis usavam suas melhores garbas

e jilbabs em cinza e preto. As mulheres nigerianas estavam vestidas como rainhas

da beleza – vestem a cor de Fanta, sapatos de salto alto. As crianças corriam com

carrapatos Nike e pulavam Pumas nas costas.

Fui às torneiras do lado de fora para realizar a ablução. Um rapaz asiático num

khamii cinza- pomba me guiou.

‘Vá assim’, ele disse, lavando as mãos e os pulsos três vezes. Notei que ele tinha

marcas de mordida nos pulsos marrom-caramelo. Eu o copiei.

“Vá assim”, ele disse, lavando a boca três vezes. Notei que seu lábio inferior estava

roxo e gordo como uma ameixa. Eu o copiei.

500
“Vá assim”, ele disse, colocando água no nariz e soprando três vezes. Notei que

seu nariz tinha um corte da cor de pastrami na ponte. Eu o copiei.

Após a ablução, era hora de orar. “Vá”, disse o garoto. Então eu fui.

Coloquei meus sapatos na porta. A mesquita cheirava a pés, colônia e chamuças.

O tapete parecia musgo e as paredes eram brancas. Um lustre lascado estava

pendurado no tecto. Os homens sentaram-se perto do pódio do imã. Havia uma

partição para as mulheres na parte de trás. Agachei- me ao lado de um homem

com cachos jheri. Ele tinha seis dedos no pé esquerdo. Quando ele torceu os
dedos, o sexto não se mexeu.

“Eid Mubarak, meu irmão”, disse ele. “Eid Mubarak”, eu disse.

“Espero que você encontre paz”, disse ele, sentindo minha tristeza.

“Espero que sim”, eu disse. Eu me perguntei se o sexto dedo dele lhe dava um

sexto sentido.

O imã chamou: ah Allahu Akbar! Allahu Akbar! Todos se levantaram e levaram as

mãos aos ouvidos. Mesmo que as costas do imã estivessem viradas para mim,

reconheci sua voz instantaneamente. Foi Libaan. Ele usava um khamiis branco

como ovo e um boné de caveira. Seu barítono ainda estava tão liso quanto a água.

Quando ele disse, ‘Allahu Akbar’, mais uma vez, lembrei-me da primeira vez que

nos conhecemos. Ele veio da Somália para passar o verão conosco em Nairóbi. Eu

tinha 14 anos, ele tinha 18.

501
O alto-falante estalou quando ele agora recitava Sura Al-Fatiha. Sua voz

mergulhou e mergulhou como uma pipa pelas sílabas árabes.

Lembrei-me dele se elevando-se sobre mim. Sua pele estava escura como Oreos.

Ele tinha dois dentes de ouro. Ele me apresentou os cigarros. Eu engasgava com

a fumaça e ele dizia: ‘Você vai chegar lá, garoto’. Agora eu fumo 20 por dia.

Depois de Al-Fatiha, ele recitou Surah Lahab.

Lembrei-me de dar a ele minha cama e dormir no chão. Ficávamos acordados até
tarde e ele me falava sobre ser um pastor de gado na Somália. Contei a ele sobre

minha escola em Nairóbi e como todo mundo me chamou de refugiado. ‘Da

próxima vez’, ele disse, ‘eu irei à sua escola e espancarei eles’.

Quando ele disse: ‘Allahu Akbar!’, todos nos curvamos.

Lembrei-me da primeira vez que o vi nu. Ele dormia e seu lençol havia

escorregado, revelando suas nádegas. Meu coração bateu forte. Eu me inclinei

mais perto. Eu queria tocá-lo, mas estava aterrorizado. Sentei-me ao lado dele

na cama e ele não acordou. Toquei suas nádegas com dedos trêmulos e saí a

correr do quarto. Quando voltei, ele ainda estava dormindo. Apertei suas nádegas

gentilmente e saí a correr do quarto. Quando voltei, ele ainda estava dormindo.

Tentei tocá-lo, mas ele pulou e disse: ‘Pelo amor de Deus! Estou a tentar dormir

um pouco! Corri para fora do quarto.

Meu rosto esquentou agora quando ele se levantou e disse: ‘Alá ouve aqueles que

o louvam’. Eu disse: ‘Louvado seja o senhor, nosso Senhor’, em tom baixo.

502
Eu tinha medo que ele contasse aos meus pais. Mas, em vez disso, no dia seguinte,

ele me ofereceu um Malboro. Saímos pelos fundos da casa e fumamos em

silêncio. Quando terminamos, ele mexeu meu cabelo e sorriu com um sorriso de

dentes dourados que dizia: ‘Não vamos mencionar isso’. Eu não conseguia olhar

nos olhos dele.

Agora ele explodiu ‘Allahu Akbar’ e toda a congregação se prostrou. Ele disse

‘Allahu Akbar’ novamente e nos prostramos mais uma vez.

Em vez de ir para a cama naquela noite, Libaan se sentou no meu colchão e enfiou
a mão por baixo do meu cobertor. Sua mão agarrou meu pênis. Eu estava duro.

Seus movimentos eram lentos, deliberados. Suas mãos estavam macias como

leitelho. Ele cheirava a cigarro e chiclete de cereja. Ele me acariciou até minhas
coxas ficarem húmidas, garganta seca. Quando me vim, ele limpou as mãos na

calça e se arrastou de volta para a cama. Eu fui dormir, satisfeito, assustado e

esperançoso.

Libaan chamou ‘Allahu Akbar’ e começou a recitar Sura Al-Fatiha.

No dia seguinte, jogamos futebol com as crianças do bairro. Libaan continuou a

me passar a bola. Toda vez que fazia isso, ele sorria com um sorriso de dentes de
ouro que dizia: ‘Nada aconteceu’. Ele tentava evitar uma vida de complicações.

Mas à noite, ele colocava suas mãos, lábios, língua dentro do meu mundo de

complicações. Dávamos golpes até chegar a hora das orações da manhã. E então
continuávamos o dia, imaginando se a noite anterior havia acontecido.

503
Quando a oração terminou, Libaan olhou para a direita e disse: ‘Asalamu aleykum

wa Rahmatullah’, depois para a esquerda e fez o mesmo. Nós seguimos o

exemplo.

Na noite anterior ao seu retorno à Somália, deitamos juntos no meu colchão sujo.

Eu pressionei sua palma nos meus lábios. Ele beijou minha clavícula. Estávamos

desesperados para prolongar o momento. Na sala iluminada pela lua, pude vê-lo

sorrir com um sorriso de dentes dourados que dizia: “Nada importa.” Quando

chegou a hora da oração da manhã, ele sussurrou em meu ouvido: ‘Diga ao sol

para não brilhar.’ Eu sussurrei ‘Direi se você prometer ficar.’ Ele embarcou num
avião para a Somália no dia seguinte.

Agora ele se virou e deu uma palestra, mas eu não estava a ouvir. Tudo o que notei
foi sua barriga, redonda como uma bola de basquete. Tudo o que notei foram suas

bochechas, que caíam como as mandíbulas de um bulldog. Ele ainda tinha dois

dentes de ouro, mas o resto era preto. Sua barba tinha sido usada como hena até

parecer um arbusto em chamas.

‘Que Deus abençoe você e sua família neste dia feliz’, ele disse. ‘Que você

encontre paz, conforto e um sentimento de satisfação. Amin.

‘Amin’, disse a congregação antes de se levantar e se dirigir à porta. Enquanto as

pessoas se filtravam, senti vontade de falar com Libaan. Eu queria dizer a ele que

certa vez namorei um irlandês chamado Simon.

504
Eu queria dizer a ele que eu via o rosto dele sempre que fazia amor com Simon.

Eu queria dizer a ele que meus pais me deserdaram quando eu saí do armário.

Eu queria vomitar essas palavras.

Mas antes que eu pudesse, uma mulher de jilbab de tinta preta e um menino

vestido de khamiis foram até Libaan. Ele abraçou a mulher e levantou o garoto

sobre seus ombros. Foi quando ele me viu. Ele tentou sorrir com um sorriso de

dentes de ouro que dizia muitas coisas: “Não aqui, agora não”, “desculpe”, “estou

com medo”. Mas antes que ele pudesse fazê-lo, antes que pudesse partir meu

coração, milhões de vezes, fiz o que sabia melhor.

Eu corri.

505
506
31 – O QUE HÁ NUMA LETRA? – Valerie Mason-John

Usar rótulos ocidentais para identificar uma sensibilidade queer é problemático

quando tentamos colocar os mesmos rótulos no continente africano. Você não

pode olhar através de uma lente eurocêntrica para África e começar a comparar.

Por exemplo, as relações entre pessoas do mesmo sexo em África geralmente

parecem diferentes na aparência na América do Norte ou na Europa.

A maioria de africanx não tem o luxo de deixar uma cultura heterossexual e se

estabelecer em casa como dois homens ou duas mulheres vivendo abertamente

juntx numa relação do mesmo sexo. O que podemos considerar bissexualidade

pode parecer diferente nos países africanos. É comum que mulheres ou homens

permaneçam em uma unidade heterossexual enquanto estão noutra do mesmo

sexo, não porque necessariamente querem, mas porque, se se instalassem em

casa com seu amante, poderiam ser atacadx, na pior das hipóteses, ou perder
toda a subsistência financeira.

Mas também é importante reconhecer que existem homens e mulheres africanx

que criaram suas comunidades do mesmo sexo e vivem com seus parceiros
discretamente. Ironicamente, enquanto muitos de nós no Ocidente têm a opção

507
de estar fora ou dentro do armário, é o mesmo Ocidente, especificamente a

Inglaterra, que introduziu leis homofóbicas em muitos de nossos países

africanos. O casal do Malauí que deu uma festa em Dezembro de 2010 para

comemorar seu noivado estava sob ameaça de 14 anos de prisão devido a uma lei

britânica arcaica sobre actos não naturais – “gross indecency”.

A homossexualidade é ilegal em pelo menos 37 países no continente africano. No

Uganda¹, parlamentares estão a tentar introduzir uma lei anti homossexualidade

que costuma ser chamada de “Lei da Matança dos Gays”. Se aprovado, esse

projecto significará que alguém considerado culpado de homossexualidade


agravada receberá a a pena de morte, e qualquer outro crime de

homossexualidade significará prisão perpétua. Portanto, é impossível discutir

questões lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo no mesmo contexto


que no Ocidente.

A preocupação imediata em muitos países africanos é frequentemente sobre a

sobrevivência, como alguém pode sobreviver num clima tão hostil. A

preocupação imediata para nós no Ocidente é o casamento entre pessoas do

mesmo sexo e os direitos transgénero. Em países como Austrália, Estados

Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Dinamarca e alguns outros, onde há

alguma tolerância às relações entre pessoas do mesmo sexo, os rótulos têm sido
uma parte definidora dessa cultura. Esses rótulos explícitos, acredito, foram o

resultado de muitas pessoas terem a oportunidade e a coragem de sair

508
completamente do armário. Essas pessoas podem exibir uma faixa, estar na

televisão, falar na rádio e gritar em voz alta sobre qual é sua sexualidade ou

género e não temer por suas vidas. Este não é o caso na África. Aqueles que saem

do armário geralmente colocam em risco sua vida e sua família.

Sou uma segunda geração africana nascida na Inglaterra. Embora tenha visitado

meu país, a Serra Leoa e apreciado a comunidade queer subterrânea, mal posso

falar sobre isso. Chamo de queer, mas na verdade chamam de comunidade gay,

e há muito mais homens fora do armário do que mulheres.

Eu cresci com rótulos a vida toda. O primeiro que me lembro foi órfã, o segundo,

wog (preto), o terceiro, nigger (negro), quarto, racum, e depois ficou meio

borrado. O primeiro rótulo queer colocado em mim foi quando eu tinha sete
anos. Eu fui chamada de Tom Boy, e adorei, estava orgulhosa disso. Isso

significava que eu poderia fazer algo tão bom ou até melhor do que alguns

meninos. Eu era uma guarda-redes melhor do que a maioria dos rapazes da

minha idade, e podia subir em árvores tão altas quanto qualquer rapaz e fazer

alguns daqueles jogos ousados que eles faziam. Eu podia andar de mãos dadas e

de braços dados com minhas amigas.

Desde os oito anos de idade, eu sabia claramente que nunca queria um homem
perto de mim. Eu não sabia o que significava. Mas depois que um homem negro

tentou enfiar o pênis dentro de mim, eu sabia que não o queria perto de mim

novamente. É claro que eu tive namorados na adolescência, mas nunca fiz sexo

509
com eles. Eu não estava interessada. Eu estava me divertindo muito com meus

amigos.

Quando eu tinha 13 anos, me apaixonei por uma garota que estava sentada na

minha frente na escola. Orei a Deus para me impedir de pensar maus

pensamentos. Em algum lugar, eu aprendi que isso era mau, mas também

aprendi que se um rapaz te beijasse e tocasse seus seios ao mesmo tempo, você

poderia engravidar. Então, eu tinha muito o que reaprender.

Eu me apaixonei pela primeira vez aos18 anos por uma mulher casada. Entrei
num relacionamento com ela enquanto ela permanecia no seu casamento. Eu

morava na casa conjugal, com a filha deles, e era nesse ponto que eu precisava

começar a explorar.

Minha melhor amiga assistiu e me levou para o meu primeiro clube de lésbicas.

Era o jeito dela de me dizer o que eu era. Mas quando entrei na livraria Gay’s the

Word em Londres e vi a palavra lésbica nas prateleiras, senti repulsa. Era como

se alguém estivesse dizendo que eu tinha uma doença. A palavra parecia tão

clínica em todos os livros que me encaravam. Eu tinha aversão à palavra e não

conseguia me identificar. E por que eu deveria? A palavra lésbica deriva de um

deus patrono chamado Lesbos, uma ilha grega inteira recebeu o nome dele. É
certo que foi aqui que Sappho nasceu, mas o facto é que somos lésbicas porque

Sappho era uma lésbica de Lesbos, assim como todos os outros habitantes de

510
Lesvos que são Lesvians (o V é pronunciado como B em inglês). E então meu

intestino estava certo; Não quero ter o nome de um homem.

Eu fui para a Universidade de Leeds em meados dos anos 80, e isso abriu uma

porta para o separatismo, o feminismo e a política de esquerda. Logo me tornei

uma dyke – gostei desse termo. Isso ressoou, e mais tarde eu aprendi que dyke

derivava da palavra americana ‘bulldyke’, e que a palavra provavelmente vinha da

cultura afro-americana porque a palavra apareceu em canções de blues dos anos

30, por exemplo, a gravação da canção de Bessie Jackson em 1935 ‘ BD Blues ‘.

Para mim, a palavra dyke significava que eu estava na frente e na sua cara sobre

a minha política sexual, e não iria comprometer e usar roupas de butch

(masculina). Eu poderia ser tão femme (feminina) quanto eu queria e ainda ser
uma dyke. Havia muitas de nós, e é claro que confundia a comunidade

heterossexual, bem como algumas comunidades lésbicas e gays. Como

poderíamos querer dormir com mulheres e usar vestidos ou roupas

extravagantes? Nós devemos ser bissexuais.

Curiosamente, lésbicas brancas cunharam o termo ‘lesbian chic’ em meados dos

anos 90, mas eu fui chic nos anos 80. Muitas lésbicas negras sempre foram chics;

eles não conheciam outra coisa, porque nas comunidades negras do Reino Unido
você tinha que estar bem nas ruas, fosse você butch, femme ou mesmo

heterossexual.

511
A comunidade lésbica e gay negra em Londres era definitivamente mais diferente

da comunidade lésbica e gay branca predominante nas décadas de 1980 e 1990.

Ouvimos reggae, ragga, lovers e dub. Nós nos vestíamos bem e raramente mal, e

criamos nossos próprios clubes, que eram negros apenas. Algunx de nós

cansaram de ser recusadx a entrar em clubes gays e não queriam passar a noite

inteira a ouvir música branca.

O movimento separatista lésbico também causou uma divisão entre mulheres

negras e brancas. A chamada para ‘recolher’ todos os homens não foi bem-vinda

pela comunidade de lésbicas negras. Nossos irmãos e pais negros já eram


regularmente incomodados nas ruas pela polícia. Travar um toque de recolher

contra todos os homens exacerbaria o racismo contra os negros nas ruas. Seria

inevitável que os homens negros fossem destacados se um toque de recolher


fosse introduzido.

No entanto, enquanto estava na universidade, fui uma separatista por um tempo,

vivi com mulheres e só socializei com mulheres. No centro da minha vida havia

uma política separatista lésbica. Então o separatismo das lésbicas negras me

confrontou, e eu me senti despedaçada. Eu já tinha deixado ir grandes amigos do

sexo masculino, e agora eu tinha que deixar ir mulheres brancas. Acho que isso

foi muito limitante para mim, porque eu havia sido colocado de maneira trans-
racial em lares adotivos e orfanatos e crescido com cuidadores brancos.

512
Depois que deixei a universidade e me mudei para Londres, fiquei mais imersa

na cena das mulheres negras e comecei a pensar na minha identidade de dyke

dentro de um contexto negro britânico. Em 1982, a falecida Audre Lorde escreveu

sua autobiografia Zami: A New Spelling of My Name. Algumas mulheres negras

britânicas abandonaram os rótulos de lésbicas, dyke, butch ou femme e

adoptaram o novo rótulo ‘zami’. Audre Lorde finalmente deu um nome as afro-

caribeanas por sua sexualidade. Naquela época, eu me passava como Caribeana

devido ao estigma de ser africana do continente, mas zami realmente não

funcionou para mim. Eu gostei, mas fiquei feliz com meu rótulo de dyke.

Logo percebi o quanto estava apegado aos rótulos: preta, mulher, dyke e

feminista. Minha vida inteira se concentrou nesses rótulos. Eles eram fixos e

ditavam como eu me sentia, o que pensava, o que comia e com quem socializava.
Havia um pensamento policial na comunidade e, para ser dyke, eu tinha que ser

vegetariana e ter políticas de esquerda. Para ser uma dyke negra, eu tive que

parar de socializar com o inimigo – pessoas brancas – e apenas ter amantes

negras. Então fiquei ciente de como minha vida estava se limitando.

No final dos anos 90, fui exposta à política queer. “Queer” foi inicialmente

recuperado por lésbicas e gays predominantemente brancos como uma

autodefinição. A ‘política queer’, que foi tipificada por grupos activistas como
ACT UP e Queer Nation, se desenvolveu com raiva contra a estratégia de

513
assimilação gay na sociedade em geral, que ainda não havia conquistado direitos

básicos.

O início dos anos 90 testemunhou uma onda de políticas queer no Reino Unido,

com homens e mulheres se organizando juntx. O separatismo começava a perder

sua atração entre as gerações mais jovens, e uma nova identidade lésbica e gay

estava a ser formada. Eu deveria ser libertada. Eu poderia sair, colocar um

vibrador na minha calça e sair cruzando gays durante a noite e ter um ‘sexo

atrevido’. E eu ainda podia ter minha política lésbica e não ser classificada como

bissexual. “Bissexual” era uma palavra suja entre a comunidade lésbica, e você a
ocultava ou suprimia com medo de ser banida da comunidade.

A política queer talvez tenha sido o fim da polícia lésbica, daqueles académicos
que escreveram artigos sobre como as lésbicas deveriam fazer sexo e que

declararam que o sexo penetrante imitava a heterossexualidade. Queer foi o

começo de uma nova identidade lésbica dentro das comunidades brancas da qual

muitas de nós lésbicas negras fazíamos parte. A política queer foi libertadora para

muitx e não surpreende que no Reino Unido tenhamos começado a ver toda uma

cultura de resistência.

A cultura drag foi divertida. Eu poderia me vestir, participar de uma oficina de


Diane Torr2 e aprender a imitar ou personificar um homem. Então, tudo ficou

sério e alguns de meus amores e parceirx estavam a dar um passo adiante:

514
podiam tomar hormônios e experimentar ser homem. Alguns transitaram

alegremente, enquanto outrx flertaram com a ideia.

Termos como lésbica e dyke começaram a cair na pauta. Eles eram restritivos e

a comunidade estava a começar a discutir género. A comunidade de lésbicas e

gays incluía homens trans e mulheres trans, e as pessoas ainda queriam

socializar e fazer política juntx. O separatismo tornava- se algo do passado, e

algunx de nós namoravam com homens trans. Como isso nos definiu? Em qual

categoria isso nos colocou? Quando seus amigos ou amantes se tornam homens,

você precisa criar um mundo onde todos possam existir felizes. As mulheres e os
homens que estavam em transição começaram a criar os espaços para todx nós

coexistirmos. Queer parecia o rótulo mais apropriado para todx nós.

A geração mais jovem, crianças na adolescência, está felizmente a identificar-se

como queer. Adolescentes com quem trabalho me dizem que queer significa

diferente. Você pode ser lésbica, gay, bi, tri, trans e het e ser queer. Eu sinto que

o bicho deu um círculo completo. Quando criança, nas décadas de 1960 e 1970,

queer significava diferente, estranho. Era uma palavra usada por adultos para

descrever pessoas que não viviam vidas convencionais. Então, eu estava muito

ciente de queer quando criança. As duas mulheres idosas que moravam juntas há

anos, o homem que era solteiro a vida inteira, o homem que era afeminado eram
todx queer, incluindo a famosa Dame Edna Everage.3

515
Comecei a me identificar como budista em meados dos anos 90, mas logo percebi

que tinha acabado de deixar um monte de rótulos e me apegara a outro. Eu não

queria ser definida por um rótulo. Eu não era um pacote que poderia ser colocado

numa prateleira e vendido. Eu só queria ser eu. Quando alguém pergunta se ele

é gay, essa pessoa é trans, essa pessoa é queer ou é intersexo, esses rótulos e as

respostas a essas perguntas me dizem muito pouco, porque dentro delas há

muita fluidez e flexibilidade. O que ele quer dizer ou ela? Não são fixos, mas

tentamos fixá-los, e eu queria me desfixar.

Até agora, o mais fluido dos rótulos era queer, acho que porque abrange todas as
identidades sexuais. Mas, claro, há o risco de esquecer aqueles de nós que são

oprimidos dentro do rótulo queer. Então, queer senta-se confortavelmente

comigo por enquanto em termos de definição de um estilo de vida – mas eu sou


mais do que um estilo de vida ou, de facto, uma sexualidade.

Nenhum rótulo funciona para mim. E isso importa? Para quem nos definimos?

As autoridades? O censo? Por que os rótulos são tão importantes? Uma vez eu

estava na categoria de gays e lésbicas, depois mudou para lésbicas e gays, depois

lésbicas, gays, bissexuais, depois tornou-se lésbicas, gays, bissexuais,

transgéneros e hoje é lésbica, gay, bissexual, transgéneros e queer. Etiquetas

como zami, mati, que saíram da cultura afro-caribenha, nunca entraram na lista
principal. Mas, para algumas mulheres negras, elas foram primeiro lésbicas,

dykes, mulheristas, mulheres apaixonadas por mulheres, zami, mati, afrekeke. A

516
geração negra mais jovem parecia ter abraçado a etiqueta queer, e o

envelhecimento politizado também. Mas é claro que alguns ainda estão

segurando os rótulos antigos.

Em 50 anos, as letras SD e serão adicionadas à lista principal? O que há nessas

letras? Desviante sexual e heterossexual. Não tenho certeza se vou viver o tempo

suficiente para descobrir, mas se o fizer, definitivamente ficarei curiosa com o

que está numa letra.

Notas

theGrio (2010) 'Pastor anti-gay de Uganda transmite pornografia gay na igreja', 18 de Fevereiro,
http://www.thegrio.com/news/ugandan-anti-gay-pastor-airsgay-porn-in-church. php, acessado em 10 de Dezembro de
2012.

Diane Torr é conhecida por suas oficinas de homem por um dia. Ela é educadora, especialista em drag king e imitador
masculino.

Dame Edna Everage é um personagem de TV criado e interpretado pelo comediante australiano Barry Humphries.

517
518
32 – A ETIQUETA SE ENCAIXA? – Liesl Theron

Introdução ao cisgénero

Eu gostaria de começar introduzindo “cisgender”. Definir cisgénero é atribuir o


termo às pessoas que estão em conformidade ou concordam com o género

atribuído a elas pela sociedade, combinando sua identidade de género com o sexo

no nascimento. O termo cisgénero é mais conhecido e usado na comunidade de

transgéneros.

Trans aos olhos de académicos, feministas e outros

Pessoas trans, não-conformistas e transgéneros enfrentam opressão da maneira

mais tangível, estando nas periferias de nossa sociedade de género. Vivendo em

uma luta invariável para validar sua existência, e muitas vezes

519
sendo rejeitados por seus entes queridos, as pessoas trans sempre enfrentam

marginalização. Algumas feministas criticam pessoas transexuais onde, por um

lado, transexuais femininos-masculinos (FTM) são retratados como buscando

escapar à opressão e obter privilégios (masculinos), e por outro lado, onde

transexuais masculinos-femininos (MTF) nunca são totalmente aceitas na

feminilidade – como a apropriação da feminilidade é apenas um acto. Essas

noções decorrem da abordagem de que uma experiência ou identidade de género

só pode ser alocada para um determinado sexo (Butler 2004: 9). Butler continua

dizendo que esse tipo de pensamento feminista ignora os riscos, a discriminação

e a humilhação que as pessoas trans sofrem no seu dia-a-dia, desde assédio


público, falta de acesso a serviços e oportunidades, perda de emprego e muito

mais. Formas severas de discriminação, como violência e crimes de ódio.

‘Thinking Sex’ (Rubin 1999 [1984]) é frequentemente visto como um dos textos

fundamentais em estudos queer, pois Rubin integra a política de organização do

sexo e identidades e comportamentos sexuais na sociedade com os sistemas

hierárquicos de prácticas aceitas. Esse sistema de valores de aprovação do

comportamento sexual ao ‘classificar’ a actividade sexual em grupos, classes ou

hierarquias, seja por sectores: conservador, religioso liberal, feminista secular ou

patriarcal, se encontra sob o olhar crítico das lentes interrogativas de Rubin. Na

teoria de Rubin, cinco formações ideológicas são usadas pelas sociedades para
regular o sexo e os corpos, além do essencialismo sexual. Intrinsecamente, o

transexualismo e o travestismo são encontrados nas extremidades de todos esses

520
modelos, além das margens da inclusão. Rubin argumenta que o pensamento

feminista sobre sexo é profundamente polarizado e resultou em muitas lutas

entre subgrupos dentro do amplo debate feminista. A libertação sexual foi e

sempre será reivindicada como uma meta feminista.

À mesma luz, Wilchins argumenta (2004: 125) que o feminismo como um

‘movimento fundado para combater a marginalização e o apagamento das

mulheres – acaba na posição paradoxal de instalar suas próprias margens e

rasuras’. Vários indivíduos buscaram abrigo e apoio do movimento de mulheres

e feministas, apenas para descobrir mais tarde que sua identidade como pedra
masculina, homens e mulheres transexuais, travestis, intersex, jovens

homossexuais e muitas outras maneiras de se identificar são os motivos para sua

exclusão (Wilchins 2004: 125). Foram encontradas semelhanças de antagonismo


em relação às pessoas trans em espaços recentes queer, LGBTI, mulheres e

feministas na África do Sul e na região. Matebeni (2009) concorda com esta visão

no seu relato da política feminista evidente durante um seminário de liderança

feminista realizado pela Coalizão de Lésbicas Africanas (CAL) em 2008 em

Moçambique. Homens trans e pessoas masculinamente identificadas presentes

no encontro alegaram que se uniram sem cessar à luta pelos direitos das

mulheres e pela visibilidade LGBT e lutaram continuamente pelos problemas de

marginalizadx, mas não receberam apoio ou reconhecimento das feministas.


Tornou- se aparente que o feminismo africano precisa revisitar sua maneira de

trabalhar e oferecer novas soluções para os movimentos e feminismos das

521
mulheres no nosso continente. “Uma clara saída do encontro é que a noção de

feminismo ainda é problemática e controversa” (Matebeni 2009: 8).

Durante eventos como o instituto CAL, workshops e discussões informais, é fácil

cair na armadilha de impor às pessoas trans como elas devem ser definidas. Sem

qualquer conhecimento ou experiência de suas vidas, ousamos estabelecer os

limites de sua transição (Cook-Daniels, 1998: 1). A perda de comunidade é uma

preocupação real, tanto para a pessoa em transição quanto para o parceiro

(Cook-Daniels, 1998: 1), que no caso de pessoas trans identificando como homens

é frequentemente uma díade de orientação mista, onde a orientação da FTM é


heterossexual e sua parceira definida como lésbica (Brown 2009: 3).

Perigos da homonormatividade

A heteronormatividade reforça a ideologia do sistema binário, onde um dos dois

opostos é a única possibilidade de formação de identidade. Homens / mulheres,

heterossexuais / homossexuais estão inseridos nessa sociedade. Além disso,

baseia-se no pressuposto de que a heterossexualidade é a única opção desejável

(Steyn e van Zyl 2009: 3). Com esse credo, segue o comportamento apropriado

dos corpos ‘presos’ nele, vivendo sua vida cotidiana neste mundo. Em Agosto de

2007, uma mulher em Umlazi, KwaZulu Natal, foi despida e seu barraco

522
incendiado, para ‘puni-la’ por não obedecer às rígidas normas de género e às

expectativas da mulher – ela usava calças. Ela não era lésbica, nem trans. Muito

pouco foi dito e escrito por organizações de mulheres, organizações LGBT e

feministas sobre isso. Também não recebeu muita cobertura da media. Este

incidente ocorreu logo após o assassinato de Salomé e Sizakele, duas lésbicas que

foram torturadas, estupradas e assassinadas porque ousaram transgredir a

norma de sexualidade esperada. Os corpos das mulheres são o local de controle

heteronormativo e a ‘natureza’ ou ‘natural’ se torna a ferramenta para organizar

a normatividade (Steyn e van Zyl 2009: 3-5). Grupos vulneráveis e minoritários

estão recebendo o poder invisível do patriarcado.

O perigo da heteronormatividade para grupos e minorias vulneráveis é evidente

tanto quanto eu quero argumentar que a homonormatividade deixa uma ameaça


directa a pessoas não conformes, transgénero, intersexo e transexuais. O

fenómeno “agir de maneira directa” é uma das maneiras de excluir pessoas

transgénero e transexuais; muitas pessoas trans sucumbem à pressão para agir

como hétero, resultando em ódio próprio e, eventualmente, internalizando a

fobia de género (Wilchins 2004: 17) entre gays e lésbicas. A expressão clássica de

algumas pessoas gays e lésbicas que não querem se associar a eventos queer,

como marchas ou festivais de Pride devido às ‘rainhas do drag que estão “acima

do topo” e nos farão parecer todos com essa síndrome”, apenas mostra como a
transfobia incorporada é encontrada nas comunidades de gays e lésbicas. O

desânimo vindo de uma mulher butch ou dyke em direcção a uma FTM se traduz

523
na mesma transfobia interna que se revela como uma observação zombeteira de

que homens trans estão traindo a feminilidade e que levarão à falsa impressão de

que ‘todas as lésbicas querem ser homens’. As pessoas trans são frequentemente

excluídas das actividades e programas executados pelas organizações LGBT, que

seguem convenientemente a tendência de relatar sobre a diversidade de seu

círculo eleitoral aos doadores de uma maneira politicamente correta, sem

entender as questões trans entre seus funcionários e voluntários (Wilchins 2004:

29; Smit 2006: 286, 287). Namaste argumenta (2005: 51–54) que transexuais e

transgéneros são silenciados nas comunidades de gays e lésbicas, a menos que

concordem com as ideologias ou promovam agendas de gays e lésbicas.

A falta de programas de serviços de transporte nas organizações LGBTI é

equilibrada pela (finalmente) nova tendência entre os doadores: o aguardado


financiamento de transgéneros. Nos últimos dois ou três anos, mais e mais (dos

limitados doadores LGBTI) perceberam e decidiram explicitamente financiar

organizações, programas e iniciativas transgéneros. Isso levou as organizações

mais oportunistas a buscarem fundos muito necessários, desenvolvendo novos

projetos e programas transgéneros num período muito curto. Isso é louvável. No

entanto, ainda é necessário ponderar o impacto de programas aleatórios ad hoc

para constituintes transgéneros justapostos contra nenhuma programação.

Naturalmente, não se quer criticar o entusiasmo recém-descoberto por


programas de transgéneros nas organizações LGB (TI), mas é preciso se

perguntar o quanto eles podem ser bons se forem (apenas) motivados

524
financeiramente. Esses programas serão desenvolvidos, implementados e

gerenciados por pessoas trans? As pessoas trans receberão habilidades,

treinamento e orientação sobre como executar esses programas? Existem

funcionários transgéneros da alta gerência empregados nessas organizações LGB

(TI)? Eles têm membros trans da directoria?

Procurando modelos transgéneros, quando não há

Ao longo dos anos, lésbicas e gays em todo o mundo foram acusados de

reivindicar modelos e personalidades trans em sua história. Não é diferente na

África do Sul. Num dos trabalhos anteriores sobre o assunto, Defiant Desire: Gay
and Lesbian Lives in South Africa (Gevisser e Cameron 1994), lemos sobre a

história de Gertie Williams, que remonta a 1955. O capítulo foi escrito usando

trechos de jornais históricos e recortes de revistas. Nesses Williams, relatou um

forte desejo de ser visto como homem, mencionou orar a Deus todas as noites

para ser misericordiosamente transformado em homem, a fim de evitar o risco

de uma operação, e disse que nenhuma dor seria um preço muito alto. Williams

também abandonou vestidos e maquiagem, declarando aos membros da família

que não teria mais utilidade para eles: ‘eu queria ser homem, e nada me

impediria’ (Chetty 1994: 131). Embora esse material tenha sido citado

525
directamente no Golden City Post de 1956, quando o idioma actual em torno do

transgenerismo não havia surgido, os autores em 1994 não pensaram em

acrescentar notas de rodapé, reconhecendo a possibilidade de uma identidade

trans. É por isso que Smit (2006: 283) mencionou com retidão: ‘grande parte da

história trans da África do Sul teria que ser recuperada …’.

Em Dezembro de 2006, a África do Sul se tornou o quinto país do mundo, e o

primeiro do continente, a permitir que pessoas do mesmo sexo se casassem. Foi

uma grande conquista para o activismo LGBT e direitos iguais para homossexuais

na África do Sul. Por mais que isso tenha sido celebrado, inclusive entre os sul-
africanos transgéneros e seus parceiros, o novo Projecto de Lei da União Civil e

sua implementação em relação à antiga Lei do Casamento de 1961 não previam

um número de transexuais. Casais trans, em qualquer combinação de sua


orientação sexual, agora podiam se casar, independentemente de se definirem

como do mesmo sexo ou heterossexuais. O problema envolveu casais que

anteriormente eram casados sob a Lei do Casamento como casais heterossexuais,

onde um parceiro havia decidido fazer a transição. Independentemente da

quantidade de amor que as duas pessoas declararam uma para a outra e sua

intenção de permanecerem juntas, elas foram forçadas a se divorciar para que o

parceiro trans registrasse novamente sua documentação no Departamento de

Assuntos Internos. Isso provou ser uma experiência muito traumática, como
Christelle explicou: ‘toda a dignidade com que seu relacionamento é concedido é

retirada (Judge et al 2008: 337).

526
O género e a identidade de género das pessoas trans e de seus parceiros são

frequentemente pronunciados como tendo múltiplas dimensões (Lenning 2008:

86, 87), que às vezes é confuso, complexo e precisa de tempo para se analisar.

Além de tempo para se ajustar, as duas partes no relacionamento precisam

negociar e descobrir com o que estão dispostas a se comprometer e o que não

será aceitável (Lev 2004: 289).

Também é importante reconhecer que os relacionamentos em que um parceiro

surge como trans são desafiados com incerteza (de ambos os parceiros) em vários

níveis. Keketso confirmou isso (Theron 2009: 156) quando reconheceu sua
confusão quando, como mulher heterossexual, foi atraída pela primeira vez ao

parceiro. Era difícil para ela dizer que era lésbica, que não conseguia entender o

assunto até que, depois de um tempo, soube que ele era trans e estava prestes a
fazer a transição para o sexo masculino. As coisas começaram a se encaixar para

ela.

A orientação sexual não é apenas uma preocupação para os parceiros

heterossexuais de pessoas trans de identificação masculina; as lésbicas também

examinam sua orientação (Cook-Daniels 1998, Mason 2006, Lenning 2008, Brown

2009). Redefinir ou questionar a orientação sexual de alguém é complexo.

Algumas lésbicas estão bem estabelecidas e “fora” em suas comunidades e são


desafiadas por muitos preconceitos, com um senso de perda de comunidade que

a acompanha (Cook-Daniels 1998, Lev 2004, Brown 2004, Brown 2009, Theron

527
2009). À medida que a transição da parceira trans de identificação masculina

progride e ele se torna bem ajustado na sociedade como homem, desafia e

estigmatiza a parceira lésbica que deseja continuar reivindicando sua identidade

lésbica. Uma lésbica observou que estar com um FTM mudou sua identidade de

lésbica para parceira de um FTM (Cook-Daniels 1998). Dois anos após o término

do relacionamento (com um homem trans), ainda havia activistas e amigas

lésbicas que não a aceitavam como lésbica. Mesmo depois que ela começou a

namorar a actual parceira, que é lésbica, “tínhamos muitas perguntas para

explicar que ela não era trans e verificar se eu sou lésbica” (Theron 2009: 160). É

um desafio constante para as parceiras lésbicas não perderem sua própria


identidade como lésbicas, enquanto não exibirem parceirx como trans. Esse

desafio requer sensibilização e treinamento contínuos dentro da comunidade

lésbica e além. ‘Não consigo descobrir como estar’ fora ‘sem comprometer seu

direito de sair / não sair quando ele quiser, porque ele passa a maior parte do

tempo agora’ (Cook-Daniels 1998). Kayt relata um desafio semelhante (Cameron

1996: 106) ao sair com amigas lésbicas, que podem acabar perguntando se está

vendo alguém. É difícil falar de forma enigmática, evitando pronomes, e as

amigas não esperam uma grande sessão educacional numa saída social à noite. E

parece complexo demais para ela, ser lésbica dizer que está com um ‘ele’.

Em muitos casos, a parceira lésbica não era apenas lésbica na sua comunidade,
mas também era conhecida por ser activa como voluntária ou activista. Ter que

mudar uma identidade em sua totalidade não apenas apaga uma história de seu

528
activismo e participação da comunidade, mas também pode levar a emoções

devastadoras, como a depressão (CookDaniels 1998: 1).

Tornando-se parceirx de uma pessoa trans

Em 2009, fiz minhas honras de pesquisa com foco nas parceiras cisgénero

femininas de pessoas trans com identificação masculina. Um dos focos principais

desta pesquisa foi determinar se a orientação sexual da parceira cisgénero de

uma pessoa trans de identificação masculina, ou sua compreensão, havia

mudado. Não vou me aprofundar aqui nos detalhes subtis dos resultados da
pesquisa, mas, em vez disso, vou esclarecer os meandros do que as parceiras

cisgénero experimentaram observando suas respostas quando perguntadas

sobre como elas se definiram antes de entrarem no relacionamento com seus


parceiros de identificação masculina.

Entrevistei oito parceiras cisgénero de pessoas trans identificando homens de

diferentes etnias, grupos de idiomas e origens culturais e de classe. Quatro

mulheres eram negras, das quais duas eram Xhosa, uma Zulu e uma Tsonga. Das

quatro mulheres brancas, três eram de uma educação inglesa e uma era

africâner. Tinham entre 25 e 53 anos no momento da entrevista. Embora apenas

um parceiro tenha indicado que prefere um pseudônimo, decidi atribuir

pseudônimos a todas as mulheres e seus parceiros trans.

529
Três parceiros usaram várias maneiras de se descrever em um continuum

bissexual. Das duas mulheres heterossexuais, uma disse que era “heterossexual

com um passado” e 2 parceirx se descreveram como lésbicas. Dois dos casais

eram casados, um com a parceira lésbica e outro com a parceira bissexual. O

casal em que o parceiro cisgénero era bissexual era casado de acordo com a

antiga Lei do Casamento, enquanto o outro casal utilizava a união civil.

O rótulo se encaixa? LGBTIQD

A orientação sexual de uma pessoa é entendida para prever o sexo pelo qual uma

pessoa se sentirá atraída. Tornar-se parceiro de uma pessoa transgénero


complica radicalmente a experiência do parceiro cisgénero de sua orientação

sexual, porque estar numa relação cisgénero-trans desafia as normas de género

e as expectativas de identidade sexual, esvaziando os espaços heterossexuais e

homossexuais.

Embora o grupo de parceiros cisgénero de pessoas trans masculinas que

entrevistei fosse todo do sexo feminino, eles representavam toda uma série de

orientações sexuais. A orientação e a identidade sexual são complexas e as

pessoas às vezes se referem a si mesmas fora das categorizações de lésbicas,

bissexuais ou heterossexuais oferecidas pelos principais discursos sobre

530
orientação sexual. Torna-se aparente que as definições ou rótulos aceitos e

usados pelo meio académico e pelo sector LGBTI organizado não são

necessariamente as descrições que as pessoas usam quando se identificam,

mesmo quando esse idioma está disponível para eles. Os indivíduos também

encontram maneiras diferentes de manobrar a orientação ou identidade sexual

em torno de experiências de bissexualidade.

No material da entrevista, reivindicar rótulos que identificassem em termos de

orientação sexual e, portanto, a escolha do parceiro, provou ser um processo

contínuo de manobras e autonegociarão. Para alguns entrevistados,


especialmente aqueles com uma mentalidade mais política, tornou-se um

processo em camadas mesmo antes do relacionamento com uma pessoa trans.

Os entrevistados tinham maneiras muito diversas e complicadas de pensar sobre

sua orientação sexual. Nenhum dos entrevistados descreveu uma mudança em

seu próprio senso de orientação sexual, mas sua compreensão de que género

pode abranger e a média evoluiu durante o relacionamento com os parceiros. Os

resultados da pesquisa também mostram como a percepção da orientação sexual

se preocupa com as normas sexuais, com base nas realidades corporais. Embora

persistam fortes argumentos de que o género é uma construção social, as

negociações da maioria das parceiras cisgénero na navegação de sua orientação


sexual dependiam de (sua compreensão) da composição corporal de seus

parceiros trans.

531
A noção de ser bissexual baseia-se no pressuposto de que existe um binário de

dois sexos na orientação sexual. Busi refletiu sobre sua bissexualidade

exatamente dessa maneira. No entanto, antes de estar num relacionamento com

seu parceiro trans, Busi construiu sua própria noção de bissexualidade:

Cheguei à conclusão de que o que havia me atraído para os meus parceiros

anteriores não tinha sido primeiro o género deles ou o que quer que fosse,

era a essência. Eu tinha sido atraído por um traço de personalidade ou


uma coisa ou outra e então … como fizemos sexo, mas o sexo geralmente

vem depois da atracção.

A partir dessa pesquisa, previ encontrar pelo menos algumas parceiras cisgénero
que compartilham uma mudança, insignificante ou mais obviamente experiente,

em sua orientação sexual. Conspicuamente, no entanto, no momento da

entrevista, ninguém expressou qualquer diferença em relação à maneira como

identificaram sua orientação sexual antes de conhecerem seus parceiros trans.

Como mencionado acima, alguns desafios e (auto) negociações ocorreram, o que


os levou ao ponto de perceber que, embora sua compreensão da orientação

sexual tivesse se ampliado, de facto não haviam mudado sua própria orientação

sexual. Surpreendentemente, a maioria delas havia, no entanto, expressado

532
alguma mudança na maneira como geralmente via orientação sexual, género e

identidade de género. Isso se manifestou de maneiras diferentes para diferentes

parceiras cisgénero femininos. Como Lebogang ficou confusa com o facto de ter

começado a namorar uma pessoa do sexo feminino, enquanto se recusava a se

ver a qualquer momento como lésbica, ela passou por algumas mudanças na

compreensão de género ao perceber que, embora seu parceiro fosse

(actualmente) de corpo feminino, ele estava passando para masculino. Ela

conseguiu se comparar, como uma mulher heterossexual que estava num

relacionamento com uma pessoa do sexo feminino, com uma lésbica através das

lentes de corpo físico e sexo biológico. Quando ela percebeu que ele ‘não era mais
uma lésbica’, ocorreu uma mudança em seu entendimento sobre a construção de

identidades transgéneros, que também removeram, para seu alívio, sua própria

identidade como lésbica.

Amanda também pensou no efeito da transição em sua identidade sexual e

expressou sua orientação sexual com base no corpo de seu parceiro: ‘Quero

dizer, porque ele iria fazer uma cirurgia se fosse viável … e isso me levaria a voltar

a estar com um homem?’

Susan confundiu identidade de género e orientação sexual quando perguntei a

ela na entrevista sobre qualquer mudança na sua própria orientação sexual. Ela
não sofreu nenhuma mudança na maneira como via o género (papéis ou

identidade) ou em sua própria expressão (ou papéis):

533
Eu nunca vi a principal linha entre homem e mulher. Não há diferença para mim.

Se você é inútil no encanamento, é inútil no encanamento. Isso não faz de você

um homem não. Sou uma péssima cozinheira, mas isso não me torna ainda

menos mulher. Portanto, o género como tal não mudou para mim de forma

alguma.

Busi também expressou um entendimento diferente sobre ser bissexual. Sua

identidade não mudou, mas ela ganhou muito mais conhecimento de todo o

caleidoscópio de género / e orientações, o que ampliou sua mente. Onde ela

descreveu anteriormente a bissexualidade com base em apenas duas opções de


sexo disponíveis, ela subsequentemente sentiu que a bissexualidade era uma

descrição que não englobava completamente todas as variedades entre as

pessoas que estavam “disponíveis” para se apaixonar. Ela observa: “Realmente


mudou muito, sabe, a geografia da minha orientação sexual”.

Em muitas ocasiões diferentes, Nosizwe falou sobre o crescente acrônimo

LGBTIQ e concluiu que, na opinião percebida de outras lésbicas, ela pode

precisar adicionar a letra ‘D’ – para decepção.

Conclusão

534
Usei duas lentes para observar a bem conhecida sopa do alfabeto LGBTI. Com a

primeira lente, examinei a maneira como feministas, académicas e LGB olham

para T. A segunda lente ampliou como as parceiras cisgénero femininas de

pessoas trans que se identificam como masculinos tentavam identificar sua

orientação sexual antes de iniciarem seus relacionamentos com seus parceiros

trans. Esses dois pontos de vista levantam sérias questões sobre se o rótulo

LGBTIQ é útil e até que ponto o acrônimo será estendido antes de atingir seu

prazo de validade.

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536
537
33 – DIREITOS HUMANOS E IMPLICAÇÕES LEGAIS DO PROJECTO DE
LEI DE PROIBIÇÃO DE CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO
PARA TODOS OS CIDADÃOS NIGERIANOS, 2011

Um comunicado para Sua Excelência, o Presidente da República Federal da

Nigéria e o Senado e a Câmara dos Representantes da República Federal da

Nigéria

Uma análise preparada por organizações da sociedade civil da Nigéria, organizações

de direitos humanos, grupos feministas e de direitos das mulheres, assistentes sociais

de saúde, activistas da justiça social e económica e ONGs

Esta é a terceira vez que um projecto de lei que proíbe o casamento entre pessoas

do mesmo sexo é apresentado pelo parlamento nigeriano. A lei proposta é

intitulada "Projecto de Lei de Proibição de Casamento entre Pessoas do Mesmo

Sexo, 2011", no entanto, vai muito além do título criminalizar todas as pessoas,

indivíduos e grupos nigerianos que possam ser suspeitos de qualquer vestígio,

exposição, associação e ou característica de relacionamento, amizade, associação

ou gesto do mesmo sexo.

538
É muito importante que, quando os membros do parlamento propuserem

projetos de lei, todos os nigerianos os analisem de perto para ver quais

implicações teriam para cada nigeriano, independentemente de género, sexo,

religião, credo, cultura, sexualidade, tradição, origem, grupo étnico. e opinião

política. Frequentemente, quando leis são introduzidas, a maioria dos nigerianos

não entende suas disposições e implicações para sua vida cotidiana como

cidadãos da Nigéria. As organizações da sociedade civil na Nigéria têm o dever de

informar e educar os cidadãos, bem como os legisladores, sobre implicações

opressivas e perigosas na legislação em potencial.

A proposta de lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo de 2011 foi aprovada

pelo Senado na 3ª leitura em 29 de Novembro de 2011. Também passou por uma

primeira leitura na Câmara dos Deputados em 7 de Dezembro de 2011. Essa


análise busca analisar e destacar suas graves implicações no quotidiano de todos

os nigerianos.

Com este projectos, a Nigéria e os nigerianos demonstram ser indignos de

confiança e incapazes de defender e domesticar tratados e convenções

internacionais que assinaram e ractificaram. Do ponto de vista dos investidores

estrangeiros, a incapacidade de manter acordos internacionais levanta a questão

de saber se seu investimento e seu pessoal podem estar seguros nas mãos de um
parceiro não confiável. No momento em que o país está busca atrair

investimentos estrangeiros directos, esse projecto de lei também representa uma

ameaça à economia.

539
De acordo com o relatório de 2010 da UNGASS (Assembleia Geral das Nações

Unidas) sobre a Nigéria, 3,6% da população é composta por pessoas vivendo com

HIV / SIDA - ou seja, mais de 5,5 milhões de pessoas. A maior parte do apoio para

coibir a disseminação do vírus e apoiar aqueles já infetados ou afectados é

proveniente de doadores internacionais. Muitas pessoas que vivem com HIV /

SIDA são heterossexuais e se as organizações voltadas para ajudá-los forem

barradas, como neste projecto de lei, isso terá um efeito catastrófico em

interromper a taxa de novas infeções e ajudar as pessoas já infetadas.

Vale a pena notar para todos os cidadãos nigerianos que o projecto de lei visa:

a) proibir qualquer forma de coabitação de facto entre dois indivíduos do

mesmo sexo ou gestos que conotem directa ou indirectamente o mesmo

relacionamento sexual. Se esta proposta se tornar lei, homem-homem e

mulher-mulher dando as mãos, tocando-se, fazendo gestos nos olhos,

abraços ou qualquer demonstração de afecto serão evidências de

condenação e 10 anos de prisão.

O projecto de lei também visa:

b) restringir o direito à liberdade de expressão;

c) restringir o direito à liberdade de associação;

d) restringir o direito à liberdade de pensamento, incluindo a liberdade de


consciência e religião;

540
e) tem como alvo defensores dos direitos humanos que se manifestam a favor

dos direitos humanos de indivíduos e comunidades, bem como defensores

da sexualidade, direitos reprodutivos e direito à saúde;

f) e, por fim, tem como alvo os direitos e a segurança das pessoas que se

identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros ou que

simplesmente não se encaixam em papéis e estereótipos conservadores de

género, assim como em qualquer pessoa que seja relacionada a eles ou que

simpatize com eles. eles;

g) promover amplo controle social, intrusivo à privacidade individual.

h) Finalmente, tem como alvo qualquer defesa e representação legal para


pessoas ou grupos envolvidos em qualquer caso real ou percebido

relacionado ao mesmo sexo.

Assim, se a legislação proposta for aprovada em lei, a Nigéria violaria muitas de

suas obrigações sob nossa própria constituição, nossas próprias leis e a lei

internacional de direitos humanos.

As violações do direito internacional dos direitos humanos que resultariam do

projecto de lei incluem o artigo 22 (liberdade de associação), o artigo 19 (direito à

liberdade de opinião e expressão) do PIDCP (Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos). Da mesma forma, violariam os artigos 9 (liberdade de


expressão), 10 (direito de livre associação), 11 (direito de reunião), 12 (direito de

residência) e 8 (direito de residência) e 8 (direito de que a causa de alguém seja

541
ouvida e defesa - inclusive pelo advogado de sua escolha) da Carta Africana dos

Direitos Humanos e dos Povos (CADHP). Desde que a CADHP foi adoptada pela

lei nigeriana em 1983, as disposições deste projecto de lei também violam nossas

próprias leis nacionais.

A principal preocupação de todos os nigerianos é que as Secções 5 e 7 da cópia

revisada e final do projecto vão muito além de seu escopo para atacar a liberdade

de reunião e expressão, entre outros direitos. O projecto, como actualmente

revisado, tem grande probabilidade de incentivar a discriminação contra todos

os indivíduos, independentemente de sua sexualidade, e de facto constitui um


incentivo à violência, maus-tratos e tortura.

Secções específicas para preocupação de todos os nigerianos

SECÇÃO 4 (2) do Projecto de Lei proposto

Numa sociedade muito táctil como a nossa, onde pessoas do mesmo sexo

frequentemente se abraçam, abraçam a cintura um do outro, se abraçam

calorosamente, será difícil, se não impossível, saber quando essas acções são uma

demonstração de relações amorosas ou expressões de intimidade e afeição


humanas desprovidas de qualquer intenção sexual. Esta disposição do projecto

abre a possibilidade de acusações de caça às bruxas e vingativas que podem

impactar todos os nigerianos e criar um clima de medo e repressão.

542
SECÇÃO 5 do projecto de lei proposto

A proibição de "clubes, sociedades e organizações gays" e de qualquer pessoa

envolvida não apenas no registro, mas também no sustento e nas reuniões, no

registro, na participação mesmo em particulares, directa ou indirectamente, e na

proibição adicional de publicidade, procissão e “Exibição pública de

relacionamento amoroso do mesmo sexo” pode afectar potencialmente qualquer

pessoa e grupo; por exemplo:

a) Qualquer grupo de direitos das mulheres muçulmanas ou cristãs que

ensina o Alcorão ou a Bíblia pode ser alvo de um "grupo de lésbicas" e


perseguido por quem não aprecia as mulheres que entendem por si

mesmas o potencial libertador em textos religiosos. Em geral, qualquer

grupo de direitos das mulheres pode ser facilmente alvo daqueles que não

apoiam o empoderamento das mulheres.

b) Qualquer membro de qualquer organização do mesmo género, mesmo

estudantes de escolas e clubes do mesmo género (como escoteiros ou guias

de meninas), pode ser alvo de qualquer pessoa que tenha ressentimento


contra os membros do grupo ou que se oponha aos objectivos do grupo.

c) Qualquer pessoa que não se enquadre no entendimento conservador das


normas tradicionais ou sociais de sua comunidade, como uma pessoa

543
solteira na faixa dos 30 ou 40 anos de idade, ou mesmo uma mulher que

esteja de calça branca, pode ser facilmente acusada de ser gay ou lésbica.

d) A Secção 5 também poderia ser uma ferramenta poderosa nas mãos de

políticos e aspirantes inescrupulosos contra seus oponentes políticos e,

assim, minar o processo eleitoral e o desenvolvimento democrático do país.

Por exemplo, qualquer político ou candidato pode ser maliciosamente

acusado de apoiar privadamente relacionamentos amorosos do mesmo

sexo ou sociedades gays ou de ser gay. E provado ou não em tribunal,

mesmo sendo acusado de acordo com a lei provavelmente arruinaria a


carreira política dessa pessoa.

e) Qualquer jornalista, jornal, rádio ou estação de televisão que relate


informações objectivas relacionadas a questões gays pode ser facilmente

acusado de promover a publicidade de relações amorosas do mesmo sexo.

O projecto poderia ser facilmente usado como uma ferramenta de censura

para fins políticos.

f) Quaisquer direitos humanos, direitos civis, direitos das mulheres ou

grupos de defesa da saúde, incluindo aqueles que trabalham na prevenção

do HIV / AIDS, podem ser acusados de apoiar indirectamente


relacionamentos amorosos do mesmo sexo apenas aplicando padrões

internacionais de direitos humanos e saúde. Grupos que realizam trabalhos

controversos sobre qualquer assunto podem ser atacados com a desculpa


de que também apoiam os direitos dos gays ou promovem relações sexuais

544
entre pessoas do mesmo sexo. Essa lei pode afetar potencialmente uma

grande variedade de activistas da sociedade civil e / ou organizações no

país.

g) Se esse projecto se tornasse lei, ninguém poderia defender a implicação dos

direitos humanos da própria lei sem ser considerado culpado por apoiar

indirectamente relacionamentos amorosos do mesmo sexo. Isso seria uma

contradição inerente a um sistema democrático.

h) De acordo com a lei proposta, nenhum advogado ou para legal poderá


oferecer representação ou apoio jurídico e, de facto, tal advogado ou

pessoal do para legal poderá ser criminalizado por representação, defesa

ou apoio de qualquer caso considerado relacionado ao mesmo sexo.

SECÇÃO 7 do projecto de lei proposto

Em vez de simplesmente definir o casamento como um acto entre um homem e

uma mulher, a ampla inclusão da Secção sete de duas pessoas do mesmo sexo

vivendo juntas permite que alguém seja alvo, mesmo quando não tem nenhum

relacionamento sexual.

a) Muitas pessoas na Nigéria compartilham suas moradias por razões

económicas. Se dois colegas de quarto forem do mesmo sexo, poderão ser


acusados por qualquer pessoa com quem tenham uma disputa pessoal ou

545
pública de “viver juntos como marido e mulher” e serem processados sob a

lei.

b) Seus parentes, amigos ou visitantes podem ser acusados de apoiar

indirectamente em privado um relacionamento amoroso do mesmo sexo

apenas visitando-os.

SECÇÕES 1 (3) e Secção 2 (2)

A Secção 1 (3) e 2 (2) afirma que, mesmo que existam casamentos do mesmo sexo
ou uniões civis válidas celebradas fora da Nigéria, eles não serão reconhecidos na

Nigéria. Isso pode ser direcionado a não-nigerianos - desencorajaria claramente

os parceiros do mesmo sexo de visitar ou trabalhar na Nigéria (ou investir na


Nigéria). Mas também há nigerianos vivendo na diáspora que são casados com

parceiros do mesmo sexo ou planejam fazê-lo. Muitos nigerianos talentosos

vivem abertamente na diáspora como gays, lésbicas, bissexuais e transexuais.

Eles contribuem positivamente para o desenvolvimento de seu país de

residência, mas têm medo de vir e contribuir para o desenvolvimento de nossa

pátria por causa do medo de vitimização. Os LGBTIs nigerianos que vivem na

diáspora não querem se isolar de casa, família e amigos de infância - esse

projecto praticamente garantiria isso.

Além disso, a criminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo forçará

muitas lésbicas, gays bissexuais e intersexuais nigerianos (LGBTI) a deixar o país


e se tornar refugiados e requerentes de asilo em outros países. Isso também

afecta a Nigéria, contribuindo para a fuga de cérebros.

546
Em resumo, as implicações e efeitos do projecto de lei vão muito além da

proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (que é discriminatório por

si só) e resultarão em violações generalizadas dos direitos humanos, censura,

impedimentos ao processo aberto e democrático, medo, repressão e o

rompimento dos relacionamentos familiares, bem como a perda de indivíduos

talentosos e patrióticos - para todos os cidadãos nigerianos, independentemente

de sua sexualidade. De facto, embora este projecto de lei ainda seja apenas

potencialmente lei, há relatos crescentes de pessoas sendo assediadas,

intimidadas, discriminadas e agredidas fisicamente, com base em sua

sexualidade real ou percebida.

Em reconhecimento disso, fazemos um apelo urgente a Sua Excelência, o

Presidente da República Federal da Nigéria, membros do Senado e Câmara dos


Representantes da República Federal da Nigéria.

Nós, membros abaixo assinados das organizações da sociedade civil nigeriana,

defensores dos direitos humanos, activistas dos direitos das mulheres,

advogados da media, assistentes sociais de saúde e nigerianos interessados,

pedimos a Sua Excelência, Presidente da República Federal da Nigéria, e ilustres

membros do Senado e Câmara do Representante para:

1. Retirar imediatamente o projecto de lei de proibição de casamento entre


pessoas do mesmo sexo, 2011, devido a suas implicações em violações

graves dos direitos humanos de todos os nigerianos, independentemente

547
de sua sexualidade e da probabilidade de impedir a Nigéria da comunidade

de nações democráticas.

2. Tomar medidas para interromper as acções extrajudiciais tomadas pelas

autoridades policiais e por outras agências estatais que violem os direitos

humanos - incluindo todas aquelas dirigidas contra indivíduos que possam

ser (ou suspeitarem de ser) LGBTI.

3. Garantir que a aplicação da lei e outras agências estatais tratem e parem as

acções individuais e da multidão que visem ou resultem em intimidação,


tratamento desumano e degradante de pessoas e indivíduos com base na

sexualidade real ou percebida.

4. Tomar medidas imediatas para consultar a comissão de direitos humanos,

a sociedade civil e as partes interessadas na preparação, revisão e alteração

de toda a legislação proposta para considerar suas implicações nos direitos

humanos e no processo democrático.

5. Manter os princípios democráticos e os procedimentos parlamentares para

garantir um debate equilibrado e diversificado de todos os sectores - sem

garantir atalhos de processo.

6. Levar em conta o relatório da Pesquisa Integrada de Vigilância Bio

comportamental (IBBSS)

-2007, conduzida pela NACA, que enfatiza ainda mais a importância de

integrar Homens que fazem sexo com homens (HSH) na programação de

548
HIV / AIDS na Nigéria (que tornar-se criminoso se este projecto de lei foi

aprovado.

Lista de organizações e indivíduos que são signatários.

APÊNDICE

CONTEÚDO E CRÍTICA DE CADA CLÁUSULA DA CONTA PROPOSTA

UMA PROPOSTA DE ACTO PARA PROIBIR O CASAMENTO OU UNIÃO CIVIL

ENTREGUES ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO, SOLEMNIZAÇÃO DO


MESMO E PARA OUTRAS QUESTÕES RELACIONADAS PELO LADO DO

Senado da República

Federal da Nigéria, como segue.

Claramente, a nova lei é totalmente desnecessária porque, uma vez que a conduta
sexual entre pessoas do mesmo sexo entre adultos consentidos já é proibida e

criminalizada sob o Código Criminal, o Código Penal e vários códigos penais da

Sharia, consequentemente, casamentos entre pessoas do mesmo sexo já são

ilegais na Nigéria.

Também é desnecessário, porque não houve nenhuma demanda por casamento

entre pessoas do mesmo sexo na Nigéria.

A lei proposta violará vários direitos humanos fundamentais consagrados na

constituição de 1999.

549
35 (1) Toda pessoa terá direito à sua liberdade pessoal e nenhuma pessoa será

privada dessa liberdade

Embora vários países tenham escolhido não permitir o casamento entre pessoas

do mesmo sexo, definindo o casamento como a união entre um homem e uma

mulher, a Nigéria seria o primeiro país do mundo a proibir o casamento entre

pessoas do mesmo sexo com disposições criminais.

Se essa lei for aprovada, todo nigeriano poderá estar ameaçado ou

responsabilizado pela lei, estejam em relacionamentos reais do mesmo sexo ou


meramente percebidos, ou mesmo conheçam outras pessoas que estão no

mesmo sexo.

1 Proibição de casamento ou união civil por pessoas do mesmo sexo.

1 (3) Um Contracto de Casamento ou União Civil celebrado entre pessoas do

mesmo sexo em virtude de um certificado emitido por um país estrangeiro será

nulo na Nigéria, e qualquer benefício daí resultante em virtude do certificado não

será cumprido por qualquer tribunal de justiça na Nigéria.

O escopo dessas disposições não é claro. Como a definição legal de casamento

não é permitida pela definição legal de casamento, claramente qualquer


casamento do mesmo sexo, por mais celebrado que seja, é legalmente nulo e não

há consequências e efeitos legais. Portanto, essas disposições são redundantes.

550
As disposições relativas à proibição de reconhecer o casamento entre pessoas do

mesmo sexo validamente contratadas no exterior também são desnecessárias. De

acordo com o direito privado internacional, a obrigação dos Estados Partes da

Convenção de Haia, de 14 de Março de 1978, de comemorar e reconhecer a

validade dos casamentos, de reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo

sexo, validamente celebrado no exterior, é altamente contestada e até agora

rejeitada. De qualquer forma, a Nigéria não assinou essa convenção: isso significa

que as autoridades nigerianas têm plena jurisdição no que diz respeito à

definição de casamento sob a lei doméstica. Nada nas Secções 49 e seguintes da

Lei do Casamento de 1990 torna possível o reconhecimento de um casamento


celebrado no exterior que seja contrário à lei doméstica.

2 Solenização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em locais de

culto.

O casamento ou união civil celebrado entre pessoas do mesmo sexo não deve ser

solenizado em nenhum local de culto, nem na Igreja, nem na Mesquita, nem em

nenhum outro lugar ou na Índia.

Nenhum certificado emitido para pessoas do mesmo sexo em um casamento deve

ser ou a união civil é válida na Nigéria.

Esta disposição viola o artigo 18 do PIDCP, pois restringiria o direito à liberdade

religiosa daqueles grupos que optarem por abençoar a união entre pessoas do

551
mesmo sexo, mesmo que nenhuma consequência legal seja atribuída a esses

sindicatos. Este tem sido o caso de várias igrejas cristãs e templos judaicos em

vários países, e a proibição estatal claramente interfere nessa liberdade.

A exceção do artigo 18 (3), com referência à protecção da moral, não se aplica

neste caso: a interpretação do Comité de Direitos Humanos à noção de moral,

Comentário Geral no. 22 (1993), no artigo 18, afirma claramente que a noção de

moral “deriva de muitas tradições sociais, filosóficas e religiosas;

consequentemente, as limitações à liberdade de manifestar uma religião ou

crença com o objectivo de proteger a moral devem basear-se em princípios que


não derivam exclusivamente de uma única tradição” (8).

Finalmente Comentário Geral no. 22 explica que o direito à liberdade de religião


deve ser interpretado de maneira ampla, precisamente porque o artigo 18

reconhece o exercício desse direito “individualmente ou em comunidade com os

outros e em público ou privado” (4).

Esta disposição é, portanto, inconstitucional nos termos da Constituição da

Nigéria, uma vez que viola o artigo 38 que reconhece a liberdade de religião e

constitui a base da separação entre Estado e igrejas. Também viola o Artigo 8 da

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e, portanto, também a lei
interna da Nigéria.

3 Casamento reconhecido na Nigéria.

552
Somente casamentos contratados entre homem e mulher são reconhecidos como

válidos na Nigéria.

Novamente, isso replica a lei existente e, portanto, é redundante.

4 Registro de clubes e sociedades homossexuais.

Esta disposição levanta as preocupações mais sérias em termos de violações das

obrigações de direitos humanos pelas autoridades nigerianas sob o PIDCP, a

Carta Africana e a Constituição da Nigéria.

4 (1) É proibido o registro de clubes, sociedades e organizações gays, seu sustento,

procissões e reuniões.

A proibição de organizações LGBTI serem registradas sob a lei nigeriana,

especialmente à luz da ofensa criminal introduzida pelo parágrafo 1 da secção 4,

é contrária ao artigo 10 da CADHP (que é domesticado como lei nigeriana) e ao

artigo 22 da ICCPR que lê:

1. Todos têm direito à liberdade de associação com os outros (…).

2. Não podem ser impostas restrições ao exercício desse direito além

daquelas prescritas por lei e necessárias em uma sociedade democrática,


no interesse da segurança nacional ou da segurança pública, ordem pública

553
(order public), protecção do público saúde ou moral ou a protecção dos

direitos e liberdades de terceiros. (…)

3.

Conforme explicado acima, a exceção da protecção moral não é aceitável, de

acordo com o Comité de Direitos Humanos de Toonen, onde concluíram que a

derrogação ao direito à privacidade não poderia ser justificada em nome da

protecção da saúde pública, em particular para prevenir a propagação do HIV /

AIDS. O Comité argumentou que a proibição de conduta sexual entre pessoas do


mesmo sexo poderia ter um impacto na educação e prevenção do HIV / AIDS,

causando de facto a propagação da doença entre certos grupos estigmatizados.

Da mesma forma, a disposição violaria o artigo 10 (1) da Carta Africana,

estabelecendo que “[e] muito indivíduo terá o direito à livre associação, desde

que cumpra a lei”, bem como a Resolução sobre o Direito à Liberdade de

Associação (1992), que mais tarde foi redigida pela Comissão Africana dos Direitos

Humanos e dos Povos, afirmando que:

1. [as] autoridades competentes não devem anular as disposições

constitucionais nem minar os direitos fundamentais garantidos pela

constituição e pelas normas internacionais;

2. Ao regulamentar o uso desse direito, as autoridades competentes não

devem adoptar disposições que limitem o exercício dessa liberdade;

554
3. A regulamentação do exercício do direito à liberdade de associação deve

ser consistente com as obrigações do Estado nos termos da Carta Africana

dos Direitos Humanos e dos Povos.

4. Pelas mesmas razões, esta disposição seria inconstitucional, constituindo

uma violação do artigo 40 da Constituição da Nigéria.

4 (2) É proibida a exibição pública de relações amorosas do mesmo sexo, directa

ou indirectamente.

Conforme já indicado, a Secção 4 viola os artigos 19 e 22 do PIDCP, criminalizando

qualquer actividade directa ou indirectamente relacionada a questões LGBT ou

relacionamento amoroso do mesmo sexo. A restrição é tão severa que atinge


actividades realizadas, pensamentos e opiniões expressas em particular.

A gravidade desta violação é certamente confirmada por vários relatórios


publicados nos últimos 10 anos, a partir de 2001, pelo Relator Especial da ONU

sobre a promoção e protecção do direito à liberdade de opinião e expressão. Os

relatórios destacam e criticam casos de censura, restrição e criminalização dos

direitos à liberdade de expressão, bem como abusos, ataques e restrições por

parte das autoridades estaduais contra defensores LGBTI ou indivíduos cujos


comportamentos não se confinam a normas e expectativas sociais conservadoras

de sexo ou sexualidade aceitável.

A criminalização de qualquer forma de expressão e associação relacionada aos

direitos LGBTI, portanto, expõe todos os defensores de direitos humanos que

555
operam nos campos de direitos sexuais, direitos à saúde e direitos LGBTI. Os

abusos, especialmente dos defensores dos direitos humanos LGBTI, foram

amplamente relatados pelo Representante Especial do Secretário-Geral nos

últimos 10 anos. Este projecto de lei aumentaria esse abuso. Isso resultaria em

uma situação contrária à Resolução sobre a Protecção dos Defensores dos

Direitos Humanos na África (que a Nigéria assinou) e exporia as autoridades

nigerianas ao escrutínio do Relator Especial sobre a Situação dos Defensores dos

Direitos Humanos estabelecido pela Comissão Africana Direitos Humanos.

A Secção 4 também terá um impacto significativo nos direitos sociais, como o


direito à saúde sexual e a prevenção do HIV / AIDS. Geral

Comentário no. 14 do Comité de Direitos Humanos, sobre o direito ao mais alto


padrão de saúde possível, reconhece que o princípio da não discriminação do

artigo 2 (2) “proíbe qualquer discriminação no acesso aos cuidados de saúde” com

base, entre outras coisas, na saúde status (incluindo HIV / AIDS) e orientação

sexual (Artigo 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e

Culturais - PIDESC). O direito ao melhor estado possível de saúde física e mental

também é protegido pelo Artigo 16 da Carta Africana e, portanto, também pelo

direito interno da Nigéria.

Conforme sublinhado repetidamente pelo relator especial da ONU sobre o direito

de todos a usufruir do mais alto padrão possível de saúde física e mental, a

discriminação e o estigma certamente restringiriam o acesso à saúde e à

556
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis a todos os nigerianos,

independentemente de seu género e sexualidade.

Por fim, essas disposições, em particular, podem pôr em risco a vida de todos os

nigerianos reais (ou percebidos como sendo ou simplesmente acusados de serem

LGBTI); expondo-os a um risco aumentado de tratamentos e punições

degradantes, desumanos e cruéis, tortura, execuções extrajudiciais, privação

arbitrária de sua liberdade. É precisamente por causa de incidentes de violação

de direitos humanos contra defensores de LGBTI que o relatório do Relator

Especial afirma que "a discriminação por orientação sexual e identidade de


género pode contribuir para o processo de desumanização da vítima". O facto de

mesmo formas particulares de expressão, expressão e associação estarem

sujeitas ao escrutínio da lei criminal promove um rígido controle social, mesmo


por actores não estatais, bem como o risco concreto de um uso político dessa

legislação.

5 Infrações e Sanções

As pessoas que celebraram contracto de casamento entre pessoas do mesmo sexo ou


uniões civis cometem um crime e são responsáveis e cada uma é condenada por

condenação a um período de 14 anos de prisão.

Qualquer pessoa que registre, opere ou participe de clubes, sociedades e organizações

gays ou, directa ou indirectamente, mostre público o relacionamento amoroso do

557
mesmo sexo na Nigéria comete um delito e cada um deles será condenado por

condenação a um período de 10 anos de prisão.

Qualquer pessoa ou grupo de pessoas que testemunhar, favorecer e auxiliar a

solenização de um casamento ou união civil do mesmo sexo, ou apoiar o registro,

operação e manutenção de clubes, sociedades, organizações e procissões gays na

Nigéria comete uma ofensa e deve ser condenado por condenação a 10 anos de prisão.

O facto de o projecto restringir explicitamente a jurisdição em relação à aplicação

da lei não atenua a gravidade da violação dos direitos humanos e as preocupações


com um controle e abuso social mais amplo que constituem as consequências

razoáveis da promulgação desta lei.

6 Interpretação

"Uniões civis" significa qualquer acordo entre pessoas do mesmo sexo para viverem

juntas como parceiros sexuais e deve incluir descrições como relacionamentos

independentes de adultos, parcerias de assistência, parcerias civis, pactos de

solidariedade civil, parcerias domésticas, relações de beneficiários recíprocos,

parcerias registradas, relacionamentos significativos, uniões estáveis, etc.

O projecto de lei é desnecessário para proibir o casamento entre pessoas do


mesmo sexo na Nigéria: a secção 27 da Lei do Casamento de 1990 já define

implicitamente o casamento como a união de um homem e uma esposa, enquanto

558
todos os códigos penais e criminais da Nigéria já fazem conduta sexual entre

pessoas do mesmo sexo não. permitida.

“Casamento do mesmo sexo” significa a união de pessoas do mesmo sexo com o

objectivo de viver juntos como marido e mulher ou para outros fins do mesmo

relacionamento sexual.

A definição proposta de casamento entre pessoas do mesmo sexo vai muito além

da noção de casamento entre pessoas do mesmo sexo que é aceita nos países que

reconheceram legalmente os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Essa


definição realmente se refere a qualquer forma de relação entre pessoas do

mesmo sexo, incluindo a coabitação de facto de casais do mesmo sexo. Isso é

inconsistente com a legislação internacional e estrangeira, jurisprudência e


literatura jurídica.

Esta disposição viola claramente o PIDCP. Embora o Comité de Direitos

Humanos tenha estabelecido em Joslin v. Nova Zelândia [1] que o PIDCP não

reconhece um direito fundamental de se casar com casais do mesmo sexo nos

termos do artigo 23 (2), em Young v. Austrália [2], o próprio Comité Reconheceu-

se que um tratamento diferente entre casais do mesmo sexo e casais de sexo

diferente pode constituir uma violação das obrigações dos estados partes sob a
proibição de discriminação do artigo 26, que inclui a discriminação com base na

orientação sexual. Como consequência, a proibição introduzida pelo projecto de

lei, alcançando qualquer forma de coabitação entre indivíduos do mesmo sexo, é


contrária ao artigo 26 do PIDCP.

559
Além disso, como a lei proíbe as escolhas íntimas e emocionais dos adultos que

consentem, é extremamente intrusiva à privacidade daquelas pessoas cujos

comportamentos não estão em conformidade com papéis sociais e de género

conservadores. Essa definição de casamento entre pessoas do mesmo sexo e as

disposições a seguir vão muito além do limite estabelecido em Toonen e viola o

artigo 17 do PIDCP e, consequentemente, a disposição constitucional do artigo 37.

Além disso, na práctica, o projecto de lei também implicaria a probabilidade ou

simples semelhança de tais escolhas (definindo o casamento entre pessoas do

mesmo sexo como “outra forma de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo

para os propósitos de coabitação como marido e mulher”).

Ao criminalizar qualquer forma de relação entre pessoas do mesmo sexo, o

projecto de lei não protege a família e as tradições, conforme exigido pelo Artigo
18 da Carta Africana, mas coloca em risco a dignidade e a segurança individuais,

respetivamente protegidas pelos artigos 5 e 6 da Carta. Também retira

claramente a protecção das pessoas LGBTI e de suas famílias que, de acordo com

os Artigos 5 (2) e 5 (3), podem ficar presos por 10 anos se não denunciarem

membros da família que são LGBTI.

Essa intromissão na esfera privada de facto promove a estigmatização contra

indivíduos e grupos que já correm risco de marginalidade, expondo-os à


violência e aos abusos por parte das autoridades locais e de actores não estatais.

Tanto o Relator Especial das Nações Unidas sobre Execuções Extrajudiciais,

Sumárias ou Arbitrárias, como o Relator Especial sobre a Questão da Tortura e

560
Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, nos últimos

anos, relataram extensivamente sobre como a discriminação, a marginalização e

o fracasso dos Estados proteger gays, lésbicas, transgéneros e outros grupos que

não se enquadram nas "normas sexuais" têm sido a causa de assassinatos por

actores não estatais e autoridades estaduais, além de torturas e outros abusos

cometidos por autoridades estaduais. Assim, eles responsabilizaram os governos

pela violação dos artigos 6 e 7 do PIDCP. Conclusões semelhantes foram

discutidas pelo Relator Especial sobre Violência contra a Mulher, suas Causas e

Consequências, bem como pelas observações dos órgãos de tratados, como o

Comité contra a Tortura, na sua interpretação da Convenção contra a Tortura


(CAT) nos últimos 10 anos.

[1] Communication No. 902/1999, UN Doc. CCPR/C/75/D/902/1999 (1998). [2] Communication No. 941/2000, UN Doc
CCPR/C/78/D/941/2000 (2003). http://bit.ly/U8xQQB

561
562
34 – DIREITOS HUMANOS E DESCONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA
LÉSBICAS NEGRAS NA ÁFRICA DO SUL – Zethu Matebeni

Introdução

A reivindicação de uma identidade lésbica negra na África do Sul e no continente

africano como um todo é uma reivindicação importante, mas contestada. A


categoria lésbica, como identidade e grupo político e social, destaca a sexualidade

e o género, bem como a interação entre essas e outras categorias de identidade,

como raça, nação e classe. Argumento que essa interação retrocede e ressurge
da maneira como a categoria lésbica é feita para 'desaparecer' através de várias

formas de injustiça, uso da linguagem e violência na África do Sul


contemporânea.

A África do Sul é conhecida por seus altos índices de violência em geral e em

relação às mulheres em particular. Como um grupo de mulheres (levo a sério os

argumentos de Monique Wittig (1993) aqui) ou pessoas de corpo feminino, as

lésbicas negras têm sido cada vez mais enquadradas como vítimas de formas

específicas de crime e violência sexual perpetuadas em seus corpos - o que certos

563
grupos denominaram violação corretiva 'ou' curativa. Sem dúvida, a violência

contra lésbicas faz parte de um flagelo mais amplo da violência contra as

mulheres. Embora possa parecer difícil separar a violência anti lésbica da

violência mais ampla contra as mulheres, existem diferenças entre as duas. As

lésbicas são alvos de violência por causa de sua orientação sexual, expressões de

género e identidade. Além disso, elas são consideradas transgressoras e

perturbadoras das normas de género / sexo. Ao sugerir e posicionar a

sexualidade independente dos homens e remodelar as estruturas de género, a

sexualidade lésbica e desafio de género ordens sexuais e de género dominantes.

Lésbicas masculinas ou machonas são alvo porque seus traços masculinos


visíveis perturbam a hierarquia de género ao reivindicar simbolicamente

privilégios masculinos (Gontek 2009; Gunkel 2010). Lésbicas femme, que

permanecem "invisíveis" na sociedade, pois são consideradas "heterossexuais",

são violadas porque invertem sua atração feminina e erotismo para outras

mulheres, e não homens. Independentemente de onde alguém se encaixe no

paradigma lésbico, a mera existência de lésbicas negras africanas, em particular,

permanece contestada.

De várias maneiras, muitas vezes violentas, as lésbicas negras na África do Sul,

mesmo com as leis progressistas dos direitos pró-homossexuais, vivem sob

condições severas que tentam "acabar" com suas subjetividades sexuais. A forma
de violação corretiva ou curativa mencionada anteriormente é um exemplo. Nas

próximas Secções, abordarei as maneiras pelas quais essa linguagem de estupro

564
e violência sexual contribuiu para a identificação e o enquadramento de lésbicas

negras como vítimas 'especiais' de estupro e tortura sexual generalizados contra

mulheres na África do Sul. Essa é uma posição complexa e difícil de ser tomada,

porque, por um lado, como apresentado anteriormente, as lésbicas são atacadas

por causa de sua perturbação percebida e real da ordem de género e sexo. Por

outro lado, ao enquadrar lésbicas negras como vítimas especiais de uma forma

de estupro, a linguagem do estupro correctivo localiza lésbicas negras nos

municípios da África do Sul fora das lutas mais amplas de género, classe,

sexualidade e raça da justiça social na África do Sul.

A linguagem do estupro como "correctiva / curativa"

Lésbicas negras que vivem nos municípios (e, portanto, presume-se "pobres") na

África do Sul têm sido cada vez mais vistas como vítimas e sobreviventes do que

foi denominado estupro curativo ou correctivo. Essa narrativa de vítima de

lésbicas negras é uma visão limitada e problemática de como nós, como lésbicas

negras, experimentamos a plenitude de nossas vidas. Os conceitos de estupro

curativo / correctivo surgem dos círculos activistas lésbicas e feministas na África

do Sul (Muholi 2004, Mkhize et al 2010). Um dos primeiros trabalhos publicados

de pesquisa activista a introduzir o termo estupro curativo, intitulado 'Pensando

no estupro lésbico' de Zanele Muholi (2004), credita Donna Smith, então CEO do

565
Fórum para o Empoderamento das Mulheres (uma organização de lésbicas

negras, em Joanesburgo) por definir a frase.

A peça de Muholi (2004: 118) se refere aos depoimentos de 47 lésbicas na área de

Gauteng, a maioria das quais foi 'estuprada explicitamente' por causa de sua

sexualidade ou não-conformidade de género. Muitas outras foram agredidas ou

sobreviveram a tentativas de estupro, várias formas de abuso e sequestro. Entre

elas, menos da metade havia relatado suas experiências à polícia e muitos tinham

pouca fé na polícia ou no sistema de justiça criminal.

As organizações que trabalham com lésbicas negras na África do Sul relatam

continuamente inúmeros casos de lésbicas negras que sofrem estupro curativo /

correctivo devido à sua orientação e identidade sexual (Muholi 2004, Bucher


2009, Mkhize et al 2010). O estupro curativo é definido como o "estupro de

mulheres percebidas como lésbicas pelos homens como uma" cura "ostensiva

para suas sexualidades (aberrantes)" (Muthien 2007: 323). O termo tornou-se

sinónimo da experiência de lésbicas negras 'pobres' no município. Fora a noção

de que esse termo limita esse tipo de experiência apenas a uma certa classe de

lésbicas negras, existem várias razões pelas quais sugiro que ele apresenta uma

leitura problemática da violência contra as lésbicas. Segundo registros policiais

e relatos de crimes na África do Sul, o estupro correctivo não existe. Todo estupro
é registrado e categorizado da mesma maneira. Em um documentário que

investiga estupros e lésbicas na África do Sul, um oficial da polícia afirma quando

perguntado sobre o fenómeno do 'estupro correctivo' (Schaap e Gim 2010):

566
O que é estupro correctivo? Não tenho certeza do que é estupro

correctivo. Para nós, o estupro correctivo não é um problema aqui na

África do Sul. Com base na maneira como os crimes são denunciados -

se alguém denuncia um crime de estupro, ele é investigado como

estupro. Não temos um fenómeno ou uma categoria de crime chamada

estupro correctivo que será capaz de dizer que isso está alcançando

proporções alarmantes ...

Vishnu Naidoo, porta-voz do Serviço de Polícia da África do Sul

Estrategicamente, o uso desse termo tem sido eficaz nos círculos activistas, pois

captura e destaca a extensão das injustiças e da violência praticada em lésbicas

negras por causa de suas sexualidades e identidades. Além desses círculos, ainda

não está claro o quão útil foi a implantação desse termo. A linguagem do estupro

como curativa a esse respeito, eu argumento, faz mais mal do que bem para

grupos de lésbicas negras. Marcar certos grupos como vítimas de um tipo

especial de crime pode torná-los vulneráveis a vitimizações indesejadas. Sabendo

que uma vítima sofreu estupro curativo a identifica imediatamente como lésbica,
uma categoria que muitos (incluindo certas instituições) ainda tratam com

567
desdém. Nesse sentido, essa linguagem e terminologia podem funcionar

involuntariamente contra o que se propôs a fazer.

Descrever a intenção e a acção do autor como curativo pode significar, ou ser

mal-interpretado, implicar a vítima como "merecedora" do crime. Essa

linguagem a posiciona (todos os casos de estupros relatados são mulheres) como

sendo purificada de algo indesejado, anormal e ilegal na sociedade. Através de

estupro correctivo / curativo, as lésbicas tornam-se curadas e normalizadas. Na

mente distorcida do estuprador, reivindicar o corpo de uma mulher através de

um processo violento de 'ensiná-la a se comportar como uma mulher' (Reddy et


al 2007: 10) só faz sentido como uma maneira de promover ganhos patriarcais.

Não há nada de correctivo ou curativo no estupro. Pelo contrário, o estupro é

muito prejudicial, causa raiva. Destrói e derruba vidas. Causa divisões e danifica
uma alma inocente (Reddy et al 2007: 11). Visto do ponto de vista da sobrevivente

ou da vítima, esses termos podem ser ofensivos e debilitantes. O uso dessa

linguagem (ou a leitura da violência como curativa) sugere um status elevado para

o agressor que é visto como 'curando' e 'corrigindo' o bem da cultura dominante,

enquanto estigmatiza e marca o sobrevivente. Assim, a culpa muda do agressor

para a vítima, que é vista como tendo transgredido as normas sociais.

Sem ficarmos presos ao uso da linguagem, vamos considerar as possíveis


maneiras pelas quais a terminologia pode nos ajudar a alcançar as funções

pretendidas. A mais recente contribuição bem- vinda de Phumi Mtetwa (2011) em

Amandla oferece uma alternativa de como o termo correctivo pode ser usado em

568
nossa sociedade. Mtetwa inverte o termo correto, redirecionando-o para longe

de lésbicas (ou melhor, em relação a estupros cometidos em corpos de lésbicas)

e a homofóbicos. A peça "Corrigir os homofóbicos" deixa o termo "correto"

permanentemente em vírgulas invertidas para mostrar sua própria

ambivalência. Ela não se esquiva de problematizar o termo nesta peça e desafia

ainda mais aqueles que são contra homossexuais e aqueles que ainda não se

uniram às lutas de todos os membros de nossa sociedade, para estarem corretos.

Ela argumenta que eles devem "corrigir" seus caminhos, direcionando nossa

sociedade para a transformação social e a justiça, e não para prejudicar vidas

individuais.

O uso desse termo pode ter sido efectivo ao mesmo tempo, mas suspeito que ele

tenha atingido sua data de validade. Recentemente, um grupo de activistas que


são membros de organizações da sociedade civil na equipe nacional sobre

violência contra lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros na África do Sul teve

que lutar com várias questões relacionadas ao uso do termo estupro correctivo.

Entre muitas perguntas, tivemos que considerar os motivos pelos quais uma

categoria separada de estupro foi desenvolvida, quanto era e permaneceu não

reconhecida como tal. Além disso, tivemos que interrogar a utilidade de rotular

estupro dessa maneira. Essas perguntas foram respondidas apenas parcialmente

por uma chamada para acabar com o termo completamente. A resposta para isso
foi encontrar um termo de substituição que captura similarmente o estupro

correctivo. Actualmente, este grupo propôs que a violência e o estupro não

569
deveriam isolar grupos ou indivíduos específicos. Em vez disso, a violência deve

ser pensada em seu sentido amplo, além de ser específica sobre quem é o alvo.

Espera-se que a mudança para encontrar linguagem ou terminologia alternativa

sobre a violência contra as pessoas LGBTI capture tanto as subjetividades sexuais

quanto as não conformidades de género.

Encontrar novas terminologias e linguagem que realçam várias formas de

violência e de injustiça é essencial, mas também demorado. A experiência da

implantação do termo estupro curativo mostrou que a terminologia pode

prejudicar as mesmas pessoas para as quais foi projetada para ajudar, além de
excluir algumas de grupos semelhantes. Acima de tudo isso, é importante

prevenir- se de contribuir para formas de patriarcado que visam nos cegar e

silenciar, por violar nossos corpos e pelo uso da linguagem, ao mesmo tempo em
que avançamos em ganhos patriarcais.

O apagamento da identidade lésbica

Muitas de nós confiam no sistema de justiça para justiça. No entanto, ainda existe

um número significativo de casos que não são relatados ou são sub-investigados

por vários motivos. No artigo de Muholi (2004), a maioria das mulheres com quem

ela conversou nunca relatou seus casos à polícia, e muitos dos casos relatados

permanecem sem investigação.

570
Para muitas lésbicas negras, a justiça é adiada ou não é obtida, mesmo quando

elas conhecem os autores e continuam a viver entre eles. Essa realidade

preocupante é um sinal de como as mulheres negras recebem pouca atenção do

sistema de justiça criminal. Mesmo quando os casos chegam ao tribunal, muitas

vezes somos lembradas de quão falho e limitado o sistema judicial pode ser. Os

efeitos disso podem ser sentidos de maneiras muito pessoais (e, portanto,

políticas).

Para ilustrar isso, farei referência a um dos poucos casos bem divulgados, o de

Eudy Simelane, lésbica negra de 31 anos e jogador de futebol nacional assassinada


por quatro jovens negros em seu município. Ao contrário de muitos outros

assassinatos de uma lésbica negra, o caso de Eudy pode ser considerado muito

bem-sucedido quando chegou ao tribunal e houve uma condenação. Em casos


semelhantes, as detenções dos autores foram inimagináveis por vários motivos,

incluindo nenhuma investigação policial, alegações de falta de evidência, falta de

recursos materiais para acompanhar os casos e vários outros atrasos e

limitações.

Como muitos activistas, acompanhei esse caso e muitos outros de muito perto,

principalmente dentro da corte. É no processo judicial do caso de Eudy Simelane

a que me refiro nesta secção. São os acontecimentos do processo de 12 de


Fevereiro de 2009, uma manhã fria de quinta-feira em Delmas, que me deixaram

e todas/os em confusão, sem saber como entender o papel do tribunal e do

judiciário em partes da África do Sul.

571
O tribunal de Delmas, a cerca de 80 km de Joanesburgo, no leste de Rand, é

conhecido pelo julgamento de traição de Delmas, um dos julgamentos políticos

mais antigos da história jurídica da África do Sul. Este foi o local da acusação do

famoso ícone dos direitos dos gays e do activista anti-apartheid e AIDS Simon

Nkoli, junto com os então líderes políticos alinhados pelo ANC. Pode-se dizer

que, como no julgamento da traição, o caso de Eudy Simelane foi político. Fora

do tribunal havia um grupo de mais de 150 manifestantes raivosos,

principalmente jovens negras (lésbicas). Havia um punhado de mulheres brancas,

principalmente de fora da África do Sul.

Jovens lésbicas negras vieram de Durban e Cidade do Cabo para mostrar

solidariedade, em mais um caso do que tem sido cada vez mais entendido como

'crimes de ódio contra lésbicas negras'.

O julgamento estava marcado para começar às 10 horas, mas devido a atrasos, foi

adiado. Uma multidão se reuniu fora do tribunal cantando e protestando contra

esse atraso e o que alguns activistas chamaram de "justiça atrasada". Muitos dos

presentes também estavam em Delmas no dia anterior, mas todos foram

mandados para casa 15 minutos após a chegada porque um dos acusados havia

sido convocado para outro julgamento em outro tribunal por uma série de outros

crimes. Aparecer na corte, apenas para ser submetido a outro atraso foi descrito
por alguns dos manifestantes do lado de fora do tribunal como sendo 'redigidos

e reduzidos, convocados para o tribunal de vez em quando e depois a justiça

atrasava'. As emoções eram altas, já que muitos da multidão o consideravam um

572
caso muito pessoal. Para alguns, o resultado do caso determinaria como e quando

eles poderiam utilizar os espaços públicos comuns em suas comunidades, se

podiam caminhar com segurança nas ruas ou se podiam ir a um parque.

O assassinato de Eudy ocorreu em KwaThema, um município conhecido no

passado por acomodar pessoas gays e lésbicas e que havia gerado muitos grupos

politizados de gays e lésbicas. Para os moradores de KwaThema, esse assassinato

desafiou seu próprio senso de segurança e sugeriu que seu município não era tão

seguro quanto eles imaginavam. Para as muitas manifestantes lésbicas negras do

lado de fora do tribunal, o assassinato de Eudy implicava que as ruas da cidade


não eram seguras para lésbicas negras. A visibilidade desmascarada do lado de

fora desse tribunal era, de certa forma, uma recuperação de seu espaço e

demanda por justiça; elas estavam dispostas a enfrentar os quatro acusados de


frente no tribunal.

Foi o acusado número quatro, Mpiti, cuja declaração abalou muitos de nós no

tribunal. Lendo sua declaração, Mpiti parecia relaxado. Ele se declarou culpado

pelas acusações de assassinato, roubo com circunstâncias agravadas e cúmplice

de tentativa de estupro. Parte de sua declaração incluía o seguinte: ‘Eudy

reconheceu Themba (outro coacusado). Themba me deu a faca e disse que "devo

fazer alguma coisa", pois ela o reconhecia e podia ver quem ele era. Ele confirmou
que ela o conhecia e Themba disse "ela vai nos prender", então eu "preciso fazer

alguma coisa ..."

573
Ao fazer um interrogatório após ler sua declaração, Mpiti afirmou que ele não

conhecia a falecida antes de matá-la, que sua identidade só lhe foi revelada após

sua prisão: ‘Fui informado após minha prisão de seu nome e de onde ela é.

Disseram-me que ela era uma jogadora de futebol do Banyana Banyana. Eu

também ouvi sobre a orientação sexual dela enquanto estava sob custódia.

A essa altura, todos nós, prestando atenção nos processos judiciais, já tínhamos

notado o que o juiz decidiu perder. Mpiti reconheceu que seu coacusado

(Themba) havia sido reconhecido por Eudy. Mais tarde, ele alegou não ter

conhecido Eudy antes de matá-la. Também é indubitável que Eudy era uma figura
bem conhecida em seu município. Não é comum uma jovem negra que joga na

seleção nacional de futebol passar despercebida por sua comunidade. É

igualmente incomum os membros de nossas sociedades não verem formas de


expressão de género que desafiam as normas populares de género. Eudy não era

apenas uma figura conhecida da comunidade, as pessoas a reconheciam como

lésbica e lésbica 'masculina'.

Foi a intervenção do juiz que irritou muitos de nós neste tribunal. O promotor

havia procedido, questionando o acusado sobre seu conhecimento da orientação

sexual de Eudy. O juiz Mavundla interrompeu rapidamente essa linha de

questionamento e afirmou com autoridade: 'Não há significado da orientação


sexual da vítima no crime de Mpiti'. O promotor, forçado a retirar sua linha de

questionamento, exalou e, aparentemente derrotado, sentou-se.

O protector injusto

574
A afirmação do juiz Mavundla durante o interrogatório de Mpiti foi uma

intervenção perturbadora e prejudicial da pessoa mais alta do tribunal. Sua

intervenção fez da orientação e identidade sexuais uma parte invisível e

insignificante da vida de Eudy e da vida de muitas pessoas na sala de audiências.

Ele negou o conhecimento comum de que Eudy era conhecida pelos autores e

muitos outros na comunidade como lésbica. O juiz Mavundla excluiu a

possibilidade de Eudy ter sido alvo especificamente por ser lésbica, um factor

importante que faz com que muitas lésbicas se sintam vulneráveis e inseguras

em suas comunidades. Principalmente, quero argumentar, o juiz cometeu uma

séria injustiça silenciando a orientação e identidade sexual, silenciando-a


também como um factor motivador do assassinato. Por seu poder e posição, ele

cometeu uma violação dolorosa e ainda maior de muitas lésbicas e da família de

Eudy. O fracasso do juiz em reconhecer a importância da orientação sexual e as

múltiplas identidades da vítima ilustram o que Amartya Sen chama de

"abordagem solitarista da identidade humana" (2007: 4-6). Pensando que

qualquer pessoa ou vítima de crime possui apenas uma identidade durante esse

crime limita a possibilidade de ver a miríade de identidades encontradas dentro

de cada indivíduo. É uma falha não reconhecer que Eudy era uma jovem lésbica

negra no município, sem os meios para se sentir protegida em sua própria

comunidade enquanto cuidava de sua família. Em vez disso, durante esse caso,

fomos obrigadas a ouvir incessantemente como Mpiti era um jovem


desempregado, um pai em dificuldades de um bebé pequeno, um parceiro que

não podia cuidar de sua namorada, um filho cuja mãe doente precisava dele; a

575
lista era interminável. Em suma, Mpiti foi vítima de circunstâncias que o levaram

a comportamento criminoso, circunstâncias que estavam fora de seu controle.

Ao mesmo tempo, fomos impedidos de ver as multiplicidades e identidades

entrelaçadas de Eudy. Ela só deveria permanecer sem nome, sem rosto, sem

identidade e apenas 'a falecida'.

Como Sen coloca, "em nossas vidas normais, nos vemos como membros de uma

variedade de grupos - pertencemos a todos eles" e o tempo todo (minha adição).

A mesma pessoa pode, sem qualquer contradição, ocupar diferentes posições de

sujeito. Assim, afirmar que a orientação sexual 'não tem significado' não era
apenas um julgamento moral ou ético indesejável, mas também uma descrição

limitada ou uma 'abordagem solitarista' (Sen 2007: xii) para entender e descrever

as muitas maneiras pelas quais as pessoas vivem suas vidas. Portanto, roubar um
indivíduo da multiplicidade e interseccionalidade de suas identidades é

problemático. É problemático porque habitamos o mundo com uma infinidade

de identidades e associações. Estes não cessam mesmo no caso de assassinato ou

violência (Sen 2007: xii). Assim, quando um caso está sendo tratado, pelo menos

no nível do tribunal, espera-se que todos os motivos pelos quais uma violação

ocorreu sejam levados em consideração. Portanto, por sua intervenção, o juiz

anulou a oportunidade de explorar as múltiplas razões2 que ocorreram em uma

violação e assassinato.

O juiz estava errado, mas pode não ter sido inteiramente culpa dele. Como Sally

Kohn (2001: 225) argumenta, a sociedade:

576
geralmente tem como premissa uma hierarquia de classes sociais -

baseada em raça, sexo, orientação sexual, identidade de género, idade,

riqueza, nível de educação e assim por diante. Essa hierarquia social é

transferida para a esfera jurídica ... os acusados de ofender alguém

acima deles no status social, provavelmente serão tratados com mais

severidade do que aqueles que ofendem alguém abaixo deles.

Dada a sociedade socialmente desigual, heteronormativa e patriarcal em que

vivemos, não é de surpreender que nossas vidas como lésbicas negras de classe
média ou baixa, mesmo no contexto da corte, constituição progressiva e discurso

de direitos humanos, permanecem nos escalões mais baixos da hierarquia social

ou até não são reconhecidas.

Os esforços de reparação foram numerosos, incluindo um pedido de legislação

apropriada para facilitar os procedimentos legais. No entanto, o que é primordial

é sensibilizar as principais fontes de justiça. A partir do momento em que a vítima

entra em uma esquadra ou é vista por um membro da força policial, sua


experiência com as diferentes fileiras do sistema judiciário não deve impedi- la

de procurar mais ajuda. O ponto de entrada no sistema de justiça deve ser

sensível às experiências subjetivas de violação da vítima. É através de esforços

577
adicionais que nossas vidas e experiências como membros de raça, classe, género

e formações de identidade sexual deixarão de desaparecer.

Notas

Simon Nkoli foi preso em 1985 e acusado de traição. Ele estava detido por supostas actividades terroristas, juntamente com
outros 21 activistas. O julgamento de traição de Delmas foi um dos processos judiciais mais prolongados da África do Sul, que
terminou em 1988 com a absolvição de Nkoli.

Sou grato a Sarai Chisala por esse insight e por seus argumentos esclarecedores

Referências

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Wittig, Monique (1993) ‘One is not born a woman’, in Abelove, Barale, M.A. and Halperin, D.M.

579
580
35 – ARQUIVO ÍNTIMO DE ZANELE MUHOLI: FOTOGRAFIA E VIDAS
LÉSBICAS PÓS-APARTHEID – Kylie Thomas

Quem tem medo de mim acha que sabe quem eu sou.

Minnie Bruce Pratt¹

Este artigo enfoca o trabalho da fotógrafa lésbica negra sul-africana Zanele

Muholi e levanta a questão de como a experiência considerada indizível pode

entrar na representação. Se sempre lemos imagens através de "códigos de


conotação", através do que Roland Barthes chama de "estúdio" de nosso

conhecimento, como é possível reverter maneiras de ver que tornam invisível a

subjetividade lésbica?2 E se a subjetividade lésbica se torna visível através da


suspensão as estruturas de reconhecimento, quais são as implicações políticas

de ocupar uma posição tão "fora da lei"? Como o ir além do reconhecimento abre

ou fecha o campo da possibilidade política? Minha leitura dos retratos de Muholi


que constituem sua série 'Faces e Fases' explora como suas fotografias

funcionam com as ambiguidades de 'passagem' – passar para o alem, passagem

entre estados de género e passagem pelas proibições de tornar visível a

experiência lésbica e o luto pela perda lésbica. Dessa forma, este capítulo

581
argumenta que o trabalho mais recente de Muholi, 'queers', tanto as convenções

da fotografia memorial quanto suas próprias representações anteriores da

subjetividade lésbica.

Zanele Muholi é uma das poucas artistas mulheres negras que se destacam no

campo das artes visuais e seu trabalho foi exibido na África do Sul e no exterior.

Ela é certamente a artista lésbica negra mais visível na África do Sul e recebeu

inúmeros prémios por seu trabalho. Suas fotografias também geraram muita

controvérsia. Em Agosto de 2009, a Ministra de Artes e Cultura da África do Sul,

Lulu Xingwana, saiu de uma exposição que continha várias fotografias de Muholi,
alegando que eram "imorais, ofensivas" e trabalhavam "contra a construção da

nação" .3 As fotografias de Muholi no centro de um debate nacional sobre

homofobia, liberdade de expressão e experiência queer.4 Voltarei ao significado


dos comentários de Xingwana mais adiante neste artigo, na minha discussão

sobre as tácticas que Muholi emprega em suas fotografias de lésbicas negras que

foram sujeitos a 'estupro correctivo' e que morreram por causas relacionadas à

SIDA ou que foram assassinadas como resultado de crimes de ódio. Li essas

imagens como obras de luto que invocam tropos convencionais de

memorialização, para contornar precisamente as proibições socialmente

normativas tão dramaticamente executadas por Xingwana em seu papel de voz

autorizada do estado. O artigo oferece uma análise da transformação no modo de


trabalho de Muholi, que ocorre quando ela aborda a questão de como representar

a perda. Em particular, rastreio como seu trabalho actual se baseia nas

582
convenções da fotografia memorial, a fim de garantir um lugar para assuntos

queer na representação. Ao mesmo tempo, mostro como esse complexo trabalho

com e contra as 'estruturas de reconhecimento', sinaliza um afastamento de suas

conceituações anteriores e mais estreitas da subjetividade lésbica.5 Para fazer

isso, começo a descrever algumas das maneiras pelas quais as fotografias podem

ser entendidas como envolvidas na tarefa de "diferenciar o cânone", antes de

passar a uma leitura de sua mais recente série de retratos, "Rostos e Fases". O

trabalho das teóricas feministas sul-africanas Desiree Lewis e Pumla Dineo

Gqola, e da curadora e artista Gabi Ngcobo chamou a atenção para como as

fotografias de Muholi tornam visível a complexidade da vida lésbica.6 No entanto,


essa tarefa corajosa e politicamente necessária não é a soma de seu trabalho. A

importância de suas fotografias actuais reside na maneira como elas se revelam

e contestam as maneiras pelas quais a vida de indivíduos estranhos é tornada

invisível e sua morte, irrecuperável. “Faces e fases", argumento aqui, funciona no

limite do que pode ser falado, e as fotografias de Muholi marcam esse limite,

mesmo quando passam além dele.

Interrompendo códigos visuais

Em Encontros no Museu Feminista Virtual, Griselda Pollock apresenta uma

abordagem da história da arte que inicia o trabalho do que chama de "diferenciar

583
o cânone" ⁷. Ela rapidamente repousa a noção de que o cânone é bastante

"diferenciado" o suficiente, já observando que 'não apenas tivemos que lutar e

ainda lutar para garantir a equidade na representação de todas as mulheres e de

todos os homens em nossos arquivos culturais, mas agora nossa própria luta está

sendo escrita fora da história,⁸ Pollock começa suas reflexões sobre o lugar das

mulheres na história da arte, no museu e no arquivo, relacionando seu encontro

com uma série de cartões postais que retratam The Three Graces, uma escultura

neoclássica de Antonio Canova. Ela observa como a prevalência do nu feminino

no museu de arte é tão naturalizada que não vemos mais sua estranheza e, como

significante de longa data da arte ocidental, a forma feminina nua se torna um


espaço reservado para as mulheres na arte - o lugar da 'mulher' em um museu,

um ponto limite pedregoso para a práctica e a teoria feministas da arte. Seu livro

continua produzindo 'um museu feminista virtual' através de uma constelação de

imagens exibidas no que ela chama de 'salas' no início de cada um de seus

capítulos, que perturbam e recalibram o arquivo da história da arte. O trabalho

de Pollock nos lembra que os arquivos são importantes. O que está incluído

molda para sempre o que pensamos que éramos e, portanto, o que poderíamos

nos tornar. A ausência de histórias das mulheres nos arquivos mundiais definiu

uma visão do ser humano sobre o padrão de uma masculinidade privilegiada. '9 A

abordagem de Pollock para reconfigurar como pensamos a cultura visual é

sugestiva e seu objectivo feminista arquivador ressoa com o trabalho de Zanele


Muholi em várias formas. O projecto de Muholi também é arquivístico e

584
preocupa-se com muitos dos mesmos problemas de visibilidade e invisibilidade

que consumiram bolsas de estudos feministas desde a década de 1970. Na

declaração de sua artista, que aparece no catálogo da exposição 'Innovative

Women', ela escreve: 'Como uma pessoa privilegiada na comunidade de lésbicas

negras e activista visual, quero garantir que minha comunidade, especialmente

aquelas lésbicas que vêm dos municípios marginalizados, estão incluídos no

“cânone” das mulheres.

Uma pesquisa superficial do trabalho de Muholi até agora revela a intensidade de

seu compromisso em produzir um arquivo visual de experiência de lésbicas


negras. Suas fotografias aparecem em exposições coletivas desde 2002, sua

exposição individual 'Visual Sexuality' foi realizada na Galeria de Arte de

Joanesburgo em 2004 e, desde 2006, ela é representada por Michael Stevenson,


uma galeria de arte comercial na África do Sul. Realizou quatro exposições

individuais adicionais lá: 'Only Half the Picture' (2006); 'Ser' (2007); 'Faces e Fases',

exibido pela primeira vez em 2009; e "Indawo Yami" (2010). Suas exposições na

Europa e na América do Norte incluem shows solo em Viena e Amsterdão. Em

2007, juntamente com a fotógrafa lésbica branca sul- africana Jean Brundrit,

Muholi facilitou uma série de oficinas fotográficas 'para reunir opiniões diversas

e experiências lésbicas diversas na África do Sul' com oito aspirantes a

fotógrafos.10 Enquanto a artista agora está firmemente posicionado na arte


comercial do mundo, ela continua seu trabalho com o Fórum para o

585
Empoderamento das Mulheres, uma organização que ela cofundou e para ensinar

outras pessoas a tirar fotografias.11

As fotografias de Muholi abrem novos espaços de representação na cultura visual

da África do Sul, mas seguem a tradição de prácticas de arte feminista / lésbica

estabelecidas ao longo do tempo por artistas como Judy Chicago, Cindy Sherman,

Laura Aguilar e outras. Em sua obra, existem numerosas obras que proclamam

sua postura transgressora e perturbadora, e essas são talvez as imagens que são

mais fáceis de categorizar, mais fáceis de descartar - como alguns críticos têm -

como 'arte não muito boa' que, no entanto, faz um ponto político importante .12
Algumas das imagens do livro de Muholi, Only Half the Picture, e algumas que

aparecem em sua série mais recente de 'Being' estão entre aquelas que invocam

tropos convencionais de representação lésbica / feminista para contestar os


limites do que é considerado adequado para mulheres e para a arte. 'Dada, 2003',

uma fotografia em preto e branco de uma mulher negra de seios nus amarrada a

um vibrador, o rosto além da moldura da imagem, a série 'Período' de 2005-2006

e a série 'LiZa' de 2009 podem ser lidas como testando os limites da propriedade

na arte e como uma reivindicação directa de um espaço visual para a experiência

lésbica negra incorporada. E através desses trabalhos pode-se dizer que o

projecto de Muholi está alinhado com a posição feminista dominante que Pollock

articula em Encontros no Museu Feminista Virtual. Pois nessa conceituação da


produção de uma nova forma de arquivo feminista que torna visíveis as

experiências das mulheres, é claro que é necessário que as mulheres

586
representadas sejam reconhecidas como mulheres. O projecto de Muholi, que ela

articula em seu site como 'mapeando e arquivando uma história visual de lésbicas

negras na África do Sul pós-Apartheid', também envolve e afirma uma forma

específica de política de identidade, a fim de reivindicar um lugar dentro de uma

ordem existente de representação.

Ao mesmo tempo, a preocupação de Muholi em garantir um lugar para a

experiência lésbica dentro do "cânone das mulheres" sinaliza que construção da

subjetividade lésbica não é de forma alguma decidida. Suas palavras atestam a

insegurança ontológica da categoria de ser que é "lésbica", em um contexto em


que o estupro correctivo é praticado como uma maneira de "restaurar" as lésbicas

à feminilidade. Trazer o trabalho de Zanele Muholi à conversa com a posição

feminista que Pollock articula também, abre uma maneira de considerar quais
podem ser os limites de 'diferenciar o cânone'. O que acontece quando formas de

subjetividade radicais e perturbadoras procuram entrar na representação? O

cânone aguenta? O arquivo apreende, proíbe a entrada? Que tipos de silêncio

permanecem?

Escrita de luz em tempos de escuridão

587
A primeira monografia de Muholi, Only Half the Picture, trabalha

cuidadosamente com a estética do corpo, um complexo acervo de histórias

traumáticas codificadas na pele, juntamente com uma celebração do desejo

lésbico e a promessa de prazer. Através da lente de Muholi, os corpos femininos

negros são ressignificados; emoldurados como sujeitos do e para o desejo lésbico,

tornam visível uma erótica do desejo, da intimidade sexual e da comunidade. Ao

mesmo tempo, muitas das fotografias carregam ressonâncias de fotografias de

corpos femininos negros, retiradas de uma longa história da iconografia racista

e que mapeiam as continuidades da opressão feminina negra ao longo do tempo.

Nas unhas dos pés rachadas das mulheres em 'Triplo III', por exemplo, há sinais
de sofrimento; nas marcas escuras ao longo das bordas externas das coxas das

figuras reclinadas, há uma sombra de escuridão, de violência, contusões ou

manchas. .13 Leia em conjunto com as outras fotografias da série 'Triple' que

retratam as pernas e nádegas entrelaçadas de três mulheres e que lembram os

nus eróticos de Edward Weston ou Imogen Cunningham, as ambiguidades de

'Triple III' são amplamente apagadas. Sua dimensão erótica chega a frente. A pose

das três mulheres fala da quietude do sono e mostra a ternura protectora dos

corpos curvados um ao outro. E, no entanto, há algo perturbador no arranjo

desses corpos no chão. Eles são mostrados descansando em uma faixa de carpete,

seus detalhes em primeiro plano tão próximos que se tornam um terreno

estranho e depois desaparecem para se fundir com o que parece ser um piso de
pedra que se estende atrás deles. As marcas nos membros dessas mulheres

588
evocam a história da escravidão, convocam fotografias dos corpos dos mortos no

genocídio de Ruanda, fornecem um eco visual das pernas das alunas que foram

golpeadas com gás lacrimogéneo e que correm da polícia de Soweto na África do

Sul em 1976. O contexto mais amplo do livro de Muholi, que inclui fotografias de

mulheres após serem estupradas, levanta a questão de como é possível ler o

desejo de lésbicas negras fora da violência do passado e do presente. Quero dizer

que dentro do quadro do 'Triplo III' não há medo, apenas parentesco, intimidade,

amor. Mas se é assim, então o medo está além das fronteiras do que é tornado

visível aqui e assombra esse belo conjunto de formas nuas. Aqui, como nos

trabalhos que fazem parte de sua série retratando lésbicas que foram sujeitas a
crimes de ódio que eu discuto abaixo, Muholi é magistral ao retratar a

vulnerabilidade do corpo humano e a complexidade da experiência incorporada.

Em 'Ordeal, 2003', há uma linha de fúria que atravessa o braço da mulher que se

agacha na beira de uma bacia de esmalte, esfregando as mãos em um frenesi

turvo, movendo-se tão rápido e tão escorregadio com a água que parece não ter

pele. 14 No centro da fotografia em que tudo o mais permanece imóvel, essas

mãos ficam irreconhecíveis, uma massa pulpy, um órgão interno exposto ao ar,

um feto ou placenta abortada. Algo que não pode ser lavado.

Esta é a primeira de uma série de fotografias em, Only Half the Picture, que
retratam os sobreviventes de crimes de ódio. É seguido por uma página dupla de

número de caso, um pedaço de papel amassado retratado contra um fundo preto,

589
emitido pelo Serviço de Polícia da África do Sul em Meadowlands, Soweto.

Manuscritos na página estão os detalhes de um caso - a data do incidente, o nome

do inspetor designado para o caso, um número de telefone e um carimbo oficial.

Há também uma linha que lê ‘ATT. Estupro + agressão G.B. [dano corporal grave].

A fotografia que aparece no verso lança luz por que esse número de caso escrito

às pressas deveria receber tanto espaço. "Hate Crime Survivor I, 2004" é um

retrato recortado de uma mulher visível da cintura até um pouco acima dos

joelhos. As linhas verticais de sua calça de pijama para uso hospitalar se inclinam

levemente em direcção ao centro da fotografia, e atraem os olhos do espectador

para os pulsos e mãos delgados posicionados em seu colo, o dedo e o polegar


curvados formando uma cavidade escura entrada em seu corpo, um mitónimo

para as partes violadas que não podemos ver. Ao redor de seus pulsos há três

etiquetas de identificação que significam seu status de paciente interno, mas aqui

também são lidas como algemas. E de repente suas roupas listradas se

assemelham a um uniforme da prisão, e a postura de seu corpo mantém o eco de

inúmeras imagens de homens encarcerados que permanecem com a cabeça

inclinada, as mãos e os pés atados - uma postura de culpa. A implicação é que,

apesar da indiscutível evidência arquivística representada pela fotografia do

número do caso que precede imediatamente essa imagem, as lésbicas que são

estupradas muitas vezes não são acreditadas e são tratadas como criminosas

dentro e fora do sistema de justiça. A justaposição dessas duas fotografias torna


visível as maneiras pelas quais os sujeitos a estupro, também são frequentemente

590
acusados de terem causado violência sobre si mesmos. O conceito de estupro

correctivo ou curativo é frequentemente lido como premissa da ideia de que as

lésbicas fizeram algo errado no início e que o estupro é aquele que corrige as

coisas, restaurando a ordem natural. Muholi articula como o estupro é usado

para punir e corrigir lésbicas na África do Sul: 'Os estupros curativos, como são

chamados, são perpetrados contra nós, a fim de nos transformar em mulheres

africanas “reais” e “verdadeiras” - apropriadamente femininas, mães. Entanto,

como mostram as fotografias de Muholi, entender o mecanismo psíquico

subjacente ao estupro curativo como um acto que restaura a ordem do

patriarcado através da afirmação das relações de poder entre homens e mulheres


é conceder um tipo de sentido a actos sem sentido de ódio. Sua série que descreve

sobreviventes de crimes de ódio mostra como o acto de estupro curativo está

fundamentalmente ligado ao desejo de matar.’

Uma das fotografias mais dolorosas da obra de Muholi é 'Hate Crime Survivor II'.

Ele aparece ao lado da fotografia do 'criminoso / sobrevivente' e desfaz com força

a lógica fatal e falha que procura culpar as lésbicas que foram estupradas. Numa

enfermaria de hospital, em uma cama alta coberta com um lençol branco, há uma

figura debaixo de uma pilha de roupas de cama escuras. De facto , é apenas a

legenda que acompanha a fotografia que torna a figura legível - sem a única linha

que nos diz que, o que estamos olhando é uma pessoa, uma 'sobrevivente', não há
como saber com certeza que a forma na cama é uma forma humana. O ângulo da

camera torna a cama enorme e encurta a figura para que a pessoa pareça

591
encolhida, quase lá. A fotografia retracta como a forma humana é superada pelo

trauma do colapso psíquico. Aqui, o efeito do estupro é mostrado como

apagamento ontológico, a aniquilação da subjectividade. A pessoa que sabemos

estar lá, mas a quem não podemos ver, não foi feita 'mulher', mas foi totalmente

desfeita como sujeito.

'Aftermath, 2004' retracta uma mulher em pé e, nesse sentido, contrasta com a

figura desabada na cama do hospital na página anterior.16 No entanto, a grande

cicatriz que se estende ao longo da coxa dessa mulher significa que não pode

haver movimentos fáceis além do trauma do estupro. A cicatriz é um sinal de um


ferimento muito mais antigo, mas serve aqui como uma manifestação externa de

seus ferimentos físicos e psíquicos mais recentes por estupro correctivo. A

própria cicatriz, uma lágrima alongada, uma abertura em seu corpo agora
fechada, como a mão enrolada da mulher retractada em 'Hate Crime Survivor I',

serve como metonímia para sua vagina violada. Há algo insuportável no

posicionamento das mãos dessa mulher. Eles procuram protegê-la, protegê-la,

neste caso, tanto do nosso olhar quanto da memória traumática do ataque, mas,

ao mesmo tempo em que são passivos, são mãos que contam uma história de

derrota. Se existe um pontual aqui, não é a cicatriz que não podemos deixar de

ver, mas a luz que captura o polegar dessa mulher, seus dedos enrolados, a

vulnerabilidade de seu ser que está codificada em suas mãos.

592
A série de crimes de ódio de Muholi nos pede que pensemos de maneira diferente

sobre como entendemos a sexualidade e a subjetividade, e isso não se restringe

a pensar o que são ou podem ser lésbicas. Eles nos mostram que ser lésbica não

é realizar o desejo de uma maneira que transforma / queers um ser essencial

subjacente que é 'mulher'. Em vez disso, mostram a dolorosa

maneira pela qual o estupro correctivo de lésbicas não restaura absolutamente

nada, o vazio no centro da ficção que anima todas as formas de ser de género.¹⁷

Enqueerecendo o arquivo

As maneiras pelas quais a escultura das três graças de Antonio Canova pode ser

lida como grávida do desejo lésbico / transexual são reveladas em um trabalho

fotográfico da artista britânica Della Grace / Del LaGrace Volcano.18 A fotografia


em preto e branco mostra três mulheres, nuas, excepto por suas botas, em pé na

pose das Três Graças, com os braços um ao outro e a cabeça raspada, o corpo

escarificado, perfurado e tactuado. Vi pela primeira vez a reformulação da

escultura por LaGrace Volcano no livro de Parveen Adams, The Emptiness of the

Image, e a leitura da fotografia feita por Adams é provocativa. Para Adams, a

imagem perturba os modos convencionais de representação da mulher a tal

593
ponto que ela argumenta: "Essas mulheres estão além do reconhecimento¹⁹. Ela

continua explicando:

O reconhecimento é um processo que pode ser visto de dois lados. As

mulheres que são reconhecidas como tais são reconhecidas por um

rigoroso modelo de definição. Se não reconhecemos, nesta fotografia,

essas mulheres, não é porque elas são reconhecidas como outra coisa. É

porque a estrutura de reconhecimento foi suspensa.²⁰

O que Adams chama a atenção aqui é a maneira como a fotografia do Vulcão

LaGrace inaugura uma maneira de olhar que desfaz nosso olhar de género. O
poder transgressor da imagem reside no facto de que não podemos

simplesmente substituir "mulher" por outra categoria reconhecível de ser - seja

"lésbica" ou qualquer outra coisa. A leitura de Adams fornece uma maneira de

explicar a ausência do livro As Três Graças do vulcão LaGrace, no museu

feminista virtual de Pollock. Sua análise de como a fotografia funciona para

suspender as estruturas de reconhecimento levanta a questão do que significa

ser posicionado fora dos reinos do legível. E isso nos leva ao significado do

arquivo, que, como observa Pollock:

é pré-seleccionado de maneira a reflectir o que cada cultura considerava

digna de armazenar e lembrar, distorcendo registros históricos e, de


facto, escritos históricos para os privilegiados, os poderosos, os políticos,

594
os militares e os religiosos. Áreas vastas da vida social e um grande

número de pessoas quase não existem, de acordo com o arquivo.

O arquivo é superdeterminado por factos de classe, raça, género,

sexualidade e, acima de tudo, poder [minha ênfase]²¹.

De facto , o arquivo produz esses 'factos' tanto quanto os detém e procura

protegê-los. O arquivo é também (e acho que esse é o sentido em que Zanele


Muholi emprega o termo) um local de luta pela legitimidade. Um certo tipo de

entrada no arquivo marcará as vidas queer como desviantes, perversas e

criminosas. Outro modo de entrada, que o trabalho de Muholi busca encontrar,


é aquele que garantirá visibilidade dentro do social que não é ao mesmo tempo

uma forma de apagamento. Aqui está central a questão do que o próprio arquivo

exige - quais são as condições de entrada no arquivo de legibilidade? Se "o

arquivo é a lei do que pode ser dito", qual é o lugar dos sujeitos

ilegais que não estão apenas além ou fora da lei, mas que significam que a lei está

sendo prejudicial?

É em um espaço de suspensão, uma espécie de zona limite entre reconhecimento

e invisibilidade, que as fotografias mais poderosas de Muholi estão situadas. As

maneiras pelas quais Muholi força cuidadosamente os limites da fronteira do


arquivo são o assunto do restante deste capítulo. Exploro como, por meio de um

595
processo que o teórico literário Ross Chambers chama de 'sequestro de género'
23 e que aqui desenho e recodifico como 'passageiro', o trabalho de Muholi realiza

uma negociação complexa dos limites e possibilidades da subjetividade queer na

representação.24

Luto e / como disfarce

Em última análise, a fotografia é subversiva, não quando assusta, repele

ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa, quando pensa.

Roland Barthes²⁵

Em Camera Lucida, Barthes define seus conceitos de estúdio e pontual, termos-

chave para pensar em como as fotografias são lidas. A maioria das fotografias

pertence ao estúdio, aquilo que aprendi a ver por aculturação e aquilo que

realmente não pode me alcançar. E depois há aquelas fotografias que prendem

meu olhar, fotografias que perturbam o estúdio do meu conhecimento,

fotografias que me ferem, fotografias que eu amo. Este elemento da fotografia é

animado através da particularidade do meu olhar. É isso que Barthes chama de

pontual: O segundo elemento irá quebrar ou (pontuar) o estúdio. Desta vez, não

sou eu que a procuro (ao investir o campo do estúdio com minha consciência

596
soberana), é esse elemento que surge da cena, dispara como uma flecha e me

atravessa. '26 Barthes, os conceitos de estúdio e pontual estabelecem um método

de leitura de fotografias que ilumina como todas as leituras são culturais - mas

ao mesmo tempo legitimam um modo de resposta profundamente subjectivo. O

conceito de pontual permite que Barthes (sem mencionar todos os que o

seguiram) lance suas respostas emocionais e poéticas às fotografias como uma

teoria. Eu uso esses conceitos aqui para conceder um tipo de legitimidade às

minhas leituras das fotografias de Muholi. Ao mesmo tempo, fico impressionada

com o modo como o trabalho dela em relação aos termos influentes de Barthes

lança luz sobre as implicações de "olhar estranho" além dos estudos de gays e
lésbicas. Em outras palavras, não é simplesmente que o método de Barthes

ofereça um modo produtivo de ler as fotografias de Muholi, mas o trabalho de

Muholi mostra que a leitura com e para o pontual pode ser entendida como um

modo de leitura queer, uma abertura para formas de ver que perturbam o meio

ambiente, hegemonia patriarcal heteronormativa que limita e estrutura nosso

olhar.

Na Camera Lucida, Barthes escreve sobre como "dar exemplos de pontual é, de

certa forma, desistir".27 Revelar as maneiras pelas quais sou afectada por uma

fotografia deve ser exposto, descrevendo o que vejo, um acto que me 'exclui', um

que posiciona meu eu íntimo em uma esfera pública. 'Desistir' antes de uma
fotografia é também ocupar uma posição de sujeito além ou fora da minha. O que

a ministra poderia ter visto se ela tivesse ficado para olhar as fotografias de

597
Muholi? A qualidade incendiária dos trabalhos que a Xingwana fez e não viu,

reside em como eles possibilitam um espaço para reconhecermos nosso próprio

desejo (estranho), quero argumentar, em como eles fornecem um ponto de

entrada para um arquivo íntimo, que é encarnado, aquele que é formado através

do amor.

Existe um segundo ponto que Barthes identifica enquanto estuda as fotografias

que o movem e tenta identificar os segredos do efeito fotográfico. Esse pontual é

tempo. As fotografias tornam visível a passagem do tempo e marcam nossa

incapacidade de interromper sua passagem. Essa relação entre fotografia e


tempo é central para entender como a fotografia e a fotografia de retratos em

particular, estão ligadas ao luto. Em camera, Lucida Barthes lê O retrato de

Alexander Gardner, de 1865, de Lewis Payne, um jovem que foi fotografado em


sua cela enquanto aguardava a execução por tentar assassinar o Secretário de

Estado Seward: ‘A fotografia é bonita, assim como o menino: esse é o estúdio. Mas

o ponto é: ele vai morrer ”.28 Barthes rapidamente vê que todas as fotografias

tornam visível nosso ser em direcção à morte. ‘Li ao mesmo tempo: será e já foi;

Observo com horror um futuro anterior do qual a morte está em jogo. Ao me dar

o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro.'29

As fotografias que compõem a série "Rostos e fases" exploram a relação entre


fotografia e luto com grande efeito. Todas as fotografias da série são tiradas em

preto e branco, quase todos os assuntos estão voltados para a camera,

598
'retornando' o olhar do espectador, a maioria são retratos de meio comprimento

e vários retratam apenas a cabeça e os ombros do sujeito. Cada fotografia é

legendada com o nome da pessoa retractada, o local em que foram fotografadas

e a data em que a imagem foi tirada. A uniformidade das imagens indica que elas

fazem parte de um único corpo de trabalho. A aparente regularidade da série

também serve a outro fim - ela funciona como um sinal visual de uma experiência

compartilhada, de uma comunidade de ser e é uma práctica comum na fotografia

que visa a memorializar.

A declaração da artista de Muholi para 'Rostos and Fases' articula abertamente


seu desejo de afirmar a presença negra na África do Sul contemporânea e

enquadra esse desejo em relação à ameaça sempre presente de violência, tanto

discursiva quanto material: 'É importante marcar, mapear e preservar nossos


momentos através de histórias visuais para referência e posteridade, para que as

gerações futuras notem que estávamos aqui.'30 Em sua descrição do trabalho que

ela pretende que a série realize Muholi escreve: 'Historicamente, os retratos

servem como memoráveis registros para famílias e amigos como evidência

quando alguém passa. Os rostos expressam as pessoas, e as fases significam a

transição de um estágio da sexualidade ou expressão e experiência de género

para outro. '31 Aqui Muholi usa o termo 'passes' no sentido de 'faleceu' ou 'morrer'.

Uma análise do trabalho 'Rostos e fases' também revela como a 'passagem' opera
de outra maneira através dessas fotografias que tornam visível a morte de

lésbicas como resultado de crimes de ódio e doenças relacionadas à AIDS e uma

599
forma de passagem entre posições fixas de género. Esses retratos permitem

simultaneamente que essas vidas lésbicas passem para um arquivo de

representação visual convencional por meio do "sequestro" das convenções

genéricas de memorialização. Ross Chambers, desenvolveu essa ideia em relação

ao trabalho de escritores gays que testemunharam suas experiências de viver e

morrer de AIDS. O "sequestro de género" faz uso de convenções genéricas

estabelecidas para falar o que a cultura considerou indizível. No caso do trabalho

de Muholi na África do Sul, o que é indizível é tanto o desejo quanto a perda de

lésbicas. "Rostos e fases" mobiliza as convenções da fotografia de retratos

memorial para abrir um espaço para luto e, ao mesmo tempo, queers que
espaçam justapondo imagens dos mortos com vários retratos de assuntos

estranhos vivos.

A questão do que está em jogo nesse acto de passar marca a linha ténue entre

passar como uma estratégia de sobrevivência, um mecanismo que permite que

alguém apareça e passe, tornando-se invisível como sujeito esquisito através da

entrada no reino da legível. Essa invisibilidade pode ser psíquica, uma perda

metafórica de subjetividade e pode tomar forma material através da ameaça de

assassinato que afecta lésbicas em todo lugar da África do Sul hoje. A declaração

do artista de Muholi chama a atenção para os retratos daqueles que morreram,

mas ao mesmo tempo os posiciona entre os retratos dos vivos. Aqui a presença
dos mortos sinaliza a posição precária dos vivos e dos vivos nos lembram a

subjetividade dos mortos:

600
"Rostos" articula a dor colectiva que vivemos na comunidade devido à

perda de amigos e conhecidos por meio de crimes de ódio e doenças.

Alguns dos que participaram deste projecto visual já faleceram.

Lembramos com carinho de Buhle Msibi (2006), Busi Sigasa (2007),

Nosizwe Cekiso (2009) e Penny Fish (2009): que descanse em paz. Os

retratos também celebram amigos e conhecidos que ocupam posições

diferentes e desempenham muitos papéis diferentes nas comunidades

queer negras - actriz, jogadores de futebol, estudioso, activistas


culturais, dançarinos, cineastas, escritores, fotógrafos, direitos humanos

e activistas de género, mães, amantes amigos, irmãs, irmãos, filhas e

filhos.³²

Posicionar os retratos dos mortos entre os que ainda vivem implica solidariedade

com os mortos, uma comunidade que atravessa a fronteira entre a vida e a morte.

A força retórica desse emparelhamento dos vivos e dos mortos recusa

poderosamente a desumanização das lésbicas negras que levaram à morte das

mulheres aqui memorizadas. Esse posicionamento que insiste na relação entre


vivos e mortos também significa que necessariamente lemos cada retratos da

série como assombrado pela possibilidade de violência, estupro e assassinato.

601
As fotografias da série de mulheres que morreram - Busi Sigasa, Penny Fish e

Nosizwe Cekiso - fazem uso dos códigos reconhecíveis da forma do obituário,

mas leram em relação aos outros retratos da série que esses códigos são

inegavelmente estranhos. Testemunhe a justaposição de 'Nosizwe Cekiso,

Gugulethu, Cidade do Cabo, 2008' e 'Gazi T Zuma, Umlazi, Durban, 2010'. O que

resulta é uma forma de memorial queer que torna visível a vida e a morte de

lésbicas sem sacrificar sua estranheza. É a particularidade dessas mortes como

mortes de lésbicas que Muholi não permitirá que elas passem, mesmo que elas

'passem' para as estruturas memoriais de reconhecimento. As fotografias que

compõem "Rostos e fases" negociam a linha entre passagem e morte, visibilidade


e invisibilidade. Pois nessas imagens o que vemos não é 'mulher' e, no entanto,

também não podemos reconhecer esses sujeitos como lésbicas; por um

momento, ao olhar, a fixidez de nosso olhar de género não pode se sustentar.33

'A estrutura do reconhecimento foi suspensa'. 34 Tudo o que se pensa separar

lésbicas negras da subjetividade "humana" está simultaneamente presente e

ausente aqui. As fotografias insistem na particularidade das lésbicas negras que

retratam ao mesmo tempo em que insistem em sua mesmice - para outras

mulheres, para outros assuntos corporificados, para o humano. Através desses

retratos "directos", testemunhamos vidas estranhas. As fotografias de Muholi nos

movem através e além de nossas percepções sobre o que pode ser a subjetividade

lésbica e, ao mesmo tempo, nos desafiam a reconceituar os limites do que se


pensa constituir o humano. A passagem entre invisibilidade e visibilidade deve

602
implicar em abrir mão da estranheza? No complexo desconhecimento das

convenções através das quais reconhecemos o humano, os retratos que

constituem "Rostos e fases" sugerem que isso não precisa ser assim.

As fotografias de Muholi reivindicam um lugar para assuntos estranhos no campo

da arte visual. Com esse acto de "reivindicar", seu trabalho testemunha a

complexidade da experiência queer na África do Sul pós-apartheid e, ao mesmo

tempo, constitui uma demanda por reconhecimento político. As fotografias de

Muholi, que testemunham as experiências de lésbicas que foram sujeitas a crimes

de ódio, bem como algumas das respostas que seu trabalho gerou - como a de
Xingwana - mostram que essa demanda ainda precisa ser atendida.35 A inclusão

da constituição sul-africana é frequentemente o ponto de partida para debates

sobre os direitos de gays e lésbicas no país; no entanto, como mostram muitas


das fotografias de Muholi, ser esquisito ainda está sujeito a múltiplas e muitas

vezes violentas formas de apagamento.

Este ensaio apareceu de uma forma um pouco mais longa na revista Safundi em

2010.

Notas

1 Pratt (1990: 114).

2 Barthes (1981: 26).

603
Van Wyk 2010. Para a declaração da media, consulte Xingwana (n.d.). Também é instrutivo ler as declarações do ministro sobre
arte que promove a construção da nação. Veja, por exemplo, seu endereço (Xingwana 2009) no lançamento do Mês da
Regeneração Moral.

Emprego o termo 'queer' para abrir uma maneira de pensar sobre sexualidade e subjetividade que atravessa e procura desfazer
os limites entre categorias de identificação como 'gay', 'lésbica', 'hétero', 'bissexual' e 'intersex

Eu desenho a frase 'estruturas de reconhecimento' do teórico psicanalítico Parveen Adams (1996). O termo implica modos de
ver socialmente construídos e modos pelos quais alguém se torna reconhecível como sujeito, bem como a dimensão psíquica
das operações do olhar.

6 Lewis (2005), Gqola (2006) e Ngcobo (2006).

7 Pollock (2007: 13) e também Pollock (1999).

8 Pollock (2007: 13).

9 Pollock (2007: 12).

Uma seleção de fotografias dos participantes do workshop, uma descrição do projecto e alguns dos trabalhos fotográficos
muito interessantes de Jean Brundrit que, como os de Muholi, se envolvem com a experiência lésbica, (in) visibilidade e o
arquivo é coletado em Brundrit 2008.

Para obter mais informações sobre o activismo visual de Muholi, consulte seus projetos em seu site wwww.zanelemuholi.com.

Veja as críticas feitas nos primeiros trabalhos de Muholi por revisores como Smith e reimpressas em Muholi (2006: 90-1); e
Hogg, citado em Lewis (2005: 17).

A imagem pode ser vista no site da Michael Stevenson Gallery (Muholi 2005). 14 Veja esta e outras imagens em Muholi (2005).

15 Muholi (2009a: 19).

Para outras leituras desta fotografia, consulte Lewis (2005) e Gunkel (2010).

O texto-chave para pensar o género como performativo continua sendo o problema de género de Judith Butler, que pergunta,
entre outras coisas, como a própria linguagem produz a construção fictícia do "sexo" (Butler 1990: xi).

Della Grace agora é Del LaGrace Volcano, uma artista visual que varia de género. Consulte www.dellagracevolcano.com.

19 Adams (1996: 123).

20 Adams (1996: 138).

604
21 Pollock (2007: 12).

22 Foucault (2002: 145).

Chambers (2004: 29). Veja também Chambers (1998) para um excelente estudo de como escrever a experiência de viver e
morrer de aids testa os limites da escrita autobiográfica.

O ensaio de Natasha Distiller 'Outra história' (2005) oferece uma reflexão crítica sobre os limites da e para a experiência lésbica
na representação. Curiosamente, Muholi se refere ao argumento de Distiller em sua discussão sobre sua motivação para
produzir 'Faces and Fhases' e afirma: 'Eu queria resistir à representação heterossexual de lésbicas por meio de retratos'
(Muholi 2009a: 26).

25 Barthes (1981: 38).

26 Barthes (1981: 26).

27 Barthes (1981: 43).

28 Barthes (1981: 96).

29 Barthes (1981).

30 Muholi (2010).

31 Muholi (2009a: 27).

32 Muholi (2010).

33 Para uma seleção representativa de imagens, consulte Muholi (2009b e 2010). 34 Adams (1996: 138).

35 Veja, por exemplo, o recente incidente no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra, em que o
representante da África do Sul, Jerry Matjila, se opôs à inclusão da orientação sexual em um relatório sobre o racismo, para
fazê-lo, seria "rebaixar a situação legítima da vítimas do racismo (Fabricius 2010: 3).

Referências

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Barthes, Roland (1977) Image, Music, Text, Glasgow, Fontana

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Butler, Judith (1990) Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, New York, Routledge

Chambers, Ross (1998) Facing It: AIDS Diaries and the Death of the Author, Ann Arbor, University of Michigan Press

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Distiller, Natasha (2005) ‘Another story: the (im)possibility of lesbian desire’, 63: 44–57 Fabricius, Peter (2010) ‘SA fails to back
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Pollock, Griselda (1999) Differencing the Canon: Feminist Desire and the Writing of Art’s Histories, London, Routledge

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women exhibition’, Department of Arts and Culture, http://www.dac.gov.za/media_releases/2010/04-03-10.html, accessed 2
July 2010

607
608
36 – O RETRATO – FICÇÃO – Pamella Dlungwana

Jabu fica de pé, cabeça e os ombros, com o pai, num retrato pendurado no salão.

Eles parecem irmãos, na verdade, o pai dela em forma e mais velho e Jabu magro

e mais jovem. A única diferença é o grau de cabelo e o rosto sem pelos. O pai dela

tem barba, é dura e preta, pode ser espessa e grossa, mas a maneira como pega

o sol torna a aparência mais dura e áspera. Acabei de decidir que Jabu é ela; nós

não tivemos essa loucura antes. Bobo, sério, quando você considera a realidade

com a qual namoramos há três meses. Jabu simplesmente foi Jabu. Em Zulu, Jabu

conseguiu evitar o desconforto que acabamos de experimentar no Pick 'n Pay.

"Poupança ou cheque senhora?", O caixa pergunta.

Essa pergunta é recebida com um silêncio vazio, uma bagunça nos bolsos de Jabu

e um coçar de cabeça por mim.

"Cheque, por favor", é a resposta curta, mas firme, de Jabu.

No caminho para o carro, quero perguntar o que o caixa quis dizer com a

pergunta dela, por que Jabu respondeu e não a corrigiu a princípio. O silêncio

que pensávamos ter deixado na fila de check-out nos seguiu até o carro e até o
apartamento de Jabu em Berea.

609
Fico ali, entre a geleira e o sofá, no salão de Jabu, olhando o retratos de pai e filha,

pai e filho, e me pergunto repetidamente o que pretendo fazer com essa

descoberta. Jabu passa o resto da tarde na cama; de repente ela não se sentiu

bem. Eu desempacotei os mantimentos sozinha, o retrato na parede perfura as

minhas costas. Pai e filha, pai e filho, monitoram todos os meus movimentos.

Eu espio dentro do quarto antes de sair; Jabu está a dormir, eu acho. Tranco e

coloco a chave debaixo da porta. Os vizinhos preparam o jantar, feijão e carne,

talvez. Eu deveria estar em casa a cozinhar papa para a minha família também. A

caminhada da Berea até a estação de trem é obesa com homens e mulheres,


meninos e meninas. Mulheres em vestidos, saias longas, saias curtas, em

combinações de blusas, camisas, coletes, toucas e tranças, perucas e afros.

Homens de calça, bermuda e camisa de golfe, camiseta e colete, cabelo curto,


tranças e dreadlocks. Homens de sapatos grossos com grandes pegadas na areia

e mulheres de saltos delicados, sandálias e sapatilhas fofas.

O cabelo de Jabu é macio, trançado ordenadamente e, como a barba do pai, brilha

ao sol. Jabu veste calças, moletons e shorts curtos com blusas e blusas de

basquete. Em garimpeiros, suas panturrilhas são como pedras de praia enfiadas

em carne azul-escura e seus pés espreitam das sapatilhas masculinas da Nike e

da Air Jordans. Fico aliviada que suas mãos não serem patas calejadas e lembro
que elas são grandes, da mesma forma que o resto dela geralmente é grande. Eu

610
amo Jabu antes de amar ela e ele juntos, antes de me perguntar por que nunca

tiramos a blusa quando fazemos sexo.

Ando mais rápido até ao comboio, examinando o inventário da geleira de minha

mãe. Vou cozinhar frango e arroz; vou fazer um caril rápido, talvez peixe. Vou

usar um pouco dessa pasta de caldo que minha irmã comprou.

Chego tarde à estação. Eu sou a única pessoa de uniforme escolar. O comboio

está cheio, é a sardinha que eu posso abrir mais tarde, derramando peixe em um

prato branco limpo para eviscerá- lo e destruí-lo melhor. Os homens cheiram,


têm um odor pesado. Um homem gordo me aperta contra um poste, com o braço

estendido acima da minha cabeça. Sua axila está na minha cara e sua barriga

pressiona contra minha bunda. Suponho que ele esteja com desodorante, mas há
um cheiro de suor no seu perfume; sua axila está respirando directamente no

meu nariz. Jabu sempre cheira fresco; as garrafas de Calvin Klein estão

orgulhosas no seu banheiro. Eu pulverizo um pouco no blazer uma vez por

semana. Farejo entre as aulas quando sinto falta de Jabu; parece que, se eu

olhasse para traz, encontraria Jabu atrás de mim.

Eu olho para o rosto do homem gordo e de repente seu bigode começa a crescer

em minha direcção, espaguete de cabelos compridos me alcançando. Sinto-me


enjoada e me pergunto quando chegaremos à estação de Thembalihle. Preciso

chegar em casa para cozinhar peixe enlatado e arroz e ver minha família comê-

lo.

611
Às oito Jabu liga. Ela quer saber se eu cheguei em casa em segurança, seu tom é

plano, anestesiado por qualquer emoção. Estou bem, cheguei em casa bem, fixe

então. Tchau. Tchau.

Vou dormir cedo e não consigo dormir. A imagem de Jabu quando a deixei na

cama me segue e não sei o que perguntar quando nos encontrarmos novamente.

O retratos pendurado em seu salão está vindo em minha direcção, como os

cabelos do Sr. Gordo Tum no trem para casa.

De manhã, espero receber a ligação de Jabu. Não vem. Não tenho dinheiro, minha
mãe esqueceu de nos deixar o dinheiro do almoço novamente e não tenho

telefone celular. Não sei se vou ver Jabu à tarde e, assim, arrasto os pés enquanto

me preparo para sair de casa. A irmã dela liga apenas alguns minutos antes de eu
sair. Eu devo ir ao Hospital da Cidade a caminho da escola. Jabu não está bem.

Ela desliga.

O hospital fica a um quarteirão da minha escola. Pulo do comboio e passo directo

pela minha escola, apesar de estar atrasada 15 minutos e o portão estar fechado e

os idosos encontro ao longo do caminho me dando olhares estranhos. O térreo

do hospital tem uma recepcionista; ela já me viu aqui antes. Passei alguns dias no

lobby, a espera para ver minha tia que tem asma. Conversamos em todas essas
ocasiões.

"Sua mãe não está bem de novo?", ela pergunta.

612
‘Não, ela está bem. Estou aqui para ver um amigo, respondo, passando correndo

e pressionando o elevador fechado. Eu evito as perguntas dela, se minha tia ficar

doente de novo, não quero que essa mulher conte histórias. Estou escondendo

Jabu. Eu nunca escondi Jabu antes. Estou escondendo Jabu ou evitando responder

perguntas sobre abandonar a escola? Eu não tenho uma resposta para isso. Estou

sozinha no elevador, mas os muitos eus que olham para mim não parecem muito

orgulhosos.

Jabu esta numa ala feminina, uma ala para mulheres. As paredes são de um

curioso rosa pastel. As enfermeiras do posto de enfermagem informam-me


sucintamente do horário das visitas. Eu digo a eles que trouxe artigos de higiene

para pacientes. Quando elas perguntam quem eu estou visitando, eu lhes dou o

nome de Jabu. As duas enfermeiras se entreolham e depois me dizem como


encontrar Jabu.

‘A paciente cortou seu peito ... algo como uma navalha. Sim, com uma navalha, eu

acho. Foi um corte suave. Nenhum acidente. As fotos que tiramos dos seios

mostram outros cortes, nas axilas e nos próprios seios. Esta não é a primeira vez.

As cicatrizes na paciente ...

O Hospital da Cidade não é um Hospital Universitário. É semiprivado, não deve


haver tantas pessoas de jalecos em pé ao redor da cama de Jabu. Não deveria

haver pessoas conversando sobre Jabu. No entanto, hesito em andar: não é o

horário de visita, Jabu e eu não somos família. Ela está sedada, está vinculada a

613
medicamentos e ela não pode falar. Eu me inclino hesitantemente contra o

batente da porta, silenciosamente a espera que toda a cena desapareça, que Jabu

esteja bem, nas palestras no ML Sultan e não deitada na cama sendo analisada.

A conversa de fotos tiradas da paciente na admissão na noite anterior continua.

Esses estranhos viram os seios de Jabu. Eles têm uma pasta cheia de fotos deles

em algum lugar nas instalações do hospital. Imagino-os passando essas fotos

mais tarde, jogando-as casualmente de uma pessoa para outra, enquanto

pontificam por que qualquer pessoa sã se mutilaria. Tão absorvidos em seu

pequeno enclave estão eles que minha presença ainda não foi notada.

Jabu vira um pouco; ele esteve acordado esse tempo todo. Ele ficou acordado

enquanto esses sete ou oito académicos famintos por fofocas e vestidos de bata
estavam debruçados sobre seu arquivo.

‘Oi, com licença. Posso falar com ele sozinho, por favor?” É assim que eu pratico

há horas, como algo que costumo dizer com frequência. Eles olham para mim, de

uniforme, com minha mochila. Eu devo ser a irmã, uma de muitas. Eles afastam,

mais ou menos. Eles ficam de lado, me deixam entrar e eu estou de pé ao lado da

cama de Jabu.

Não pode ser tão ruim, quero dizer. Não sei por que, mas essa ideia morre na

minha garganta. Não tenho ideia de como deve ser, bom ou ruim. Eu fico lá, como

um molde de geleia, inanimado e sem propósito.

614
"Eu odeio inglês", Jabu administra. Ele levanta a mão e pega a minha. Estamos

trancados assim há um tempo, nossas mãos juntas, minha campainha da escola

tocando ao fundo. Suas mãos estão atadas com ataduras, bem como o tipo que

ele mantém em sua mesa de cabeceira. Seu polegar esfrega no centro da minha

mão, nós rimos.

O esquadrão médico de fofocas sai do palco à esquerda. Coloquei minha bolsa no

chão, agarrei uma cadeira e passei o resto da manhã conversando com meu

parceiro.

615

31
3
616
37 – VER ALÉM DOS BINÁRIOS COLONIAIS: DESFAZENDO O DISCURSO
DA HOMOSSEXUALIDADE DO MALAWI – Jessie Kabwila

Introdução

O debate sobre gayismo e lesbianismo, geralmente chamado de


homossexualidade, é polarizado principalmente entre dois discursos

concorrentes, cuja origem é amplamente colonial. De um lado, existe a voz da

minoria, falando através de estruturas legais, lutando cautelosamente para que a

homossexualidade seja legalizada, avançando argumentos que são

principalmente impregnados no discurso dos direitos humanos. Por outro lado,

há a maioria, voz mais alta, rejeitando vigorosamente esse chamado e liderada

por igrejas, líderes tradicionais e funcionários do governo. O que este capítulo

analisa é a falta predominante de propriedade indígena e doméstica nos


argumentos avançados por qualquer dos campos. Usando minha participação no

processo de revisão constitucional do Malawi, as reacções ao e-mail da

'Sociedade de Gays e Lésbicas do Malawi' no serviço de listas do Chancellor


College, as legendas do Malawi Daily Times da Ministra da Informação Patricia

Kaliyati e artigos do Nyasa Times sobre o Movimento dos Direitos dos Gays do

Malawi, argumento que, dado o nível de HIV e SIDA1 que o Malawi está

617
enfrentando e o carácter imperial, parasitário e abutre do discurso sobre direitos

humanos, o Malawi do século XXI deve ser o proprietário desse discurso. A

decisão de legalizar ou manter a homossexualidade ilegal no Malawi precisa ser

tomada em termos indígenas e do Malawi. O Malawi pós-colonial precisa ter essa

conversa em termos descolonizados que não seguem o discurso prescritivo e

colonizador dos direitos humanos, nem o discurso cultural essencial malauiano

que acaba sendo um representante para o discurso colonial ocidental da religião

organizada ocidental e oriental e do elitismo de classe. O discurso precisa girar

num eixo que:

• Aceita e valoriza a diferença, diversidade e abertura da voz;

• Interroga os prós e os contras de legalizá-lo para a vida cotidiana da

maioria e da media do Malawi entre classe, género, sexo, etnia e outras

categorias;

• Determina como a homossexualidade como categoria se envolve com o que

definimos como sendo um malauiano;

• Define e traça historicamente o que sexo e homossexualidade significam

para a cidadania do Malawi desde os tempos pré-coloniais até a data,

respondendo pelas mudanças.

618
Abordagens ancoradas em binários polarizados só problematizam e aumentam

as tensões no Malawi. Por um lado, há argumentos impregnados de conveniência

política que muitas vezes atrapalham o conceito de "cultura", empregando

produtos coloniais e imperiais, como o cristianismo e o islamismo. Eles

constroem uma forma hegemónica de essencialização cultural. Por outro lado,

existem conceitos voyeuristas e darwinianos ocidentais que exotificam África, os

africanos e o sexo africano. Eles retratam a legalização da homossexualidade

como mais uma descoberta ocidental, um presente para o continente escuro e

primitivo e prova de uma modernidade africana.

Como este capítulo se baseia principalmente em fontes de media impressa, ele

começa com uma visão geral da cobertura da media impressa, ² com foco nos

anos de 2005 a 2007.3

Homossexualidade na media impressa do Malawi

Em geral, a reacção do Malawi à homossexualidade, conforme relatada na media,

tem sido negativa, variando de intolerância à homofobia directa. Comparado a

2003 e 2004, o ano de 2005 viu um aumento significativo na media pública de

debates sobre questões como homossexualidade, travestis e transsexuais.

619
Os meios de comunicação do Malawi, especialmente os impressos e os rádios4 (a

televisão não é amplamente utilizada), tratam a homossexualidade, o travestismo

e o crossdressing de maneira diferente. A homossexualidade é a questão mais

debatida. As discussões se concentram principalmente em sua moralidade e na

maioria das submissões oponha-o no altar da religião e da cultura. O travestismo

raramente é discutido, enquanto o vestir-se frequentemente não está ligado à

homossexualidade ou ao travestismo. O tipo de travesti que é visível na media do

Malawi é o que acontece durante as funções tradicionais, como casamentos,

funerais, ritos de iniciação e reuniões de entretenimento que podem ser

indígenas ou cosmopolitas ou uma mistura. Há também um aumento de artistas


populares adoptando nomes artísticos femininos, como Anne Matumbi. A TVM,

a estação de televisão do Malawi, já realizou documentários sobre meninos que

se vestem como mulheres para se divertir. Quando esses músicos são

perguntados por que fazem isso, eles relatam que é por razões comerciais; os

torna mais famosos que os outros e cria uma sensação de intriga e suspense ao

seu redor, aumentando assim suas vendas. A media malauiana apresenta homens

vestidos como mulheres e vice-versa em casamentos e até mesmo durante

funerais para algumas etnias, mas isso não é tratado como uma práctica

indicativa de 'desvio' ou tendência homossexual. Em suma,os media implica que

o travestismo está ausente no Malawi, pois nem sequer é discutido. O vestuário

cruzado é retratado como uma práctica que não está ligada à sexualidade,
identidade sexual ou questões de identidade, mas como uma ferramenta de

620
entretenimento que ambos os sexos podem praticar. A homossexualidade, por

outro lado, é geralmente vista como uma nova ameaça, um 'pecado' alienígena

que precisa ser erradicado muito rapidamente antes que se espalhe e contamine

os malauianos. Às vezes, discussões sobre homossexualidade na media pública se

espalham para os fóruns de discussão on-line da Universidade do Malawi.

O Chanceler College listserv

No início de 2005, o servidor de listas do Chancellor College, o principal colégio

constituinte da Universidade do Malawi, publicou uma publicação da "Sociedade

de Gays e Lésbicas do Malawi", sediada na África do Sul. Ele descreveu seu status
legal e declarou que planejava apresentar seu pedido de legalização na próxima

revisão constitucional, programada para ocorrer no final do ano. Eu estava

interessada em monitorar a resposta a esta questão por três razões: como

participante do processo de revisão constitucional; uma activista académica

feminista que viu o cartão da cultura, etnia, género e regionalismo em suas lutas

contra o patriarcado, 5 especialmente em questões relacionadas à violência

contra as mulheres; 6 e como activista e o presidente de um sindicato que tinha

um membro que era gay e que era constantemente perseguido verbalmente.7

621
Eu estava interessada em ver como os malauianos “aprendidos” reagiriam a esse

problema que havia sido jogado em seus rostos. Eu queria ver se a discussão seria

investigativa, condenatória, participativa e / ou desdenhosa. Foi uma questão que

deu várias voltas na sala comunal sénior8, mas agora a comunidade

homossexual9 havia colocado uma caneta no papel e solicitado uma resposta.

O que se seguiu foram pontos de vista que citaram a religião e a cultura como

fundamento para legitimar as posições amplamente homofóbicas. Para começar,

as respostas lançaram tudo - gays, lésbicas e pedófilos todos agrupado um

mesmo barco. Os comentários variaram de rotular a homossexualidade de não-


malauiana, não-humana e ilógica, alguns até invocaram o Presidente Mugabe do

Zimbábue: chamar uma pessoa homossexual de coisa, rotular a

homossexualidade de algo que nem sequer é feito por animais, na verdade,


marcando-a como sub-humana. A Bíblia e o Alcorão foram citados, em uma

tentativa de provar que a homossexualidade não é um acto humano. Dois e-mails

foram ataques verbais directos ao membro da equipe que se acredita ser gay e

expressaram expressamente desdém pela pessoa e por qualquer pessoa que "faça

o que faz". Outros e-mails rotularam a práctica como algo compreensível quando

feito por prisioneiros, mas não por malauianos livres. A palavra operativa usada

para vincular essa práctica à prisão era matanyula, um termo depreciativo que se

refere aos homens que participam de sexo anal. Um dos e-mails lamentava por
que um homem não queria dormir com as inúmeras mulheres bonitas, enquanto

outro expressava alegria pelo facto de que quanto mais gays houvesse, mais

622
mulheres haveria à sua disposição. Em geral, a heterossexualidade foi rotulada

como norma, qualquer coisa fora dela retratada como uma anomalia e, portanto,

um infortúnio e doença deplorável e infeliz.

O cartão makwerekwere

Essa reacção me lembrou o modo como vivenciei a reacção de Botswana 'ao HIV

e auxílios em 1994 a 2003. Isso me lembrou de minhas experiências como

makwerekwere11 no Botswana, onde fui professora de expatriados por oito anos,

antes de voltar a ser professora de teoria literária feminista africana no

Chancellor College, University of Malawi.

Quando o HIV e a SIDA ganharam visibilidade no Botswana, a opinião pública de

Botswana entrevistada na Televisão do Botswana (BTV) e nas estações de rádio


locais citou esta doença como estrangeira, trazida por makwerekwere. Um bom

número de estrangeiros costumava ser castigado e era muito comum ouvir os

moradores locais pedirem que eles fossem enviados de volta para suas casas

porque eles estavam vendendo essa doença horrível. O interessante é que

categorias de raça e nação foram aplicadas nesse castigo. Africanos de pele

branca e clara, especialmente os de países africanos prósperos, como os sul-

africanos, não faziam parte dos makwerekwere que vendiam HIV e auxílios;

623
foram os "outros" africanos negros de países pobres como Zimbábue, Malawi e

Moçambique que foram os principais alvos desse jogo de culpa. Eu experimentei

isso em primeira mão. Meu contracto para ensinar na Escola Secundária de

Moshupa exigia que eu fizesse um teste de HIV e SIDA e eu conhecia um bom

número de expatriados negros africanos que haviam sido declarados sem

emprego e mandados para casa, depois de dar positivo. Fiquei enfurecida com o

carácter claramente racista dessa política, especialmente quando descobri que

um colega professor de expatriado, um inglês branco, não estava sendo

convidado a fazer esse teste. Decidi registrar meu desgosto com meu

empregador, a Administração de Serviços de Ensino.

Esse inglês, que por acaso era amigo e vizinho, concordou em me acompanhar,

pois ficou pasmo com a diferença em nosso tratamento quando tínhamos o


mesmo empregador e estávamos ensinando os mesmos alunos. Disseram-nos na

nossa cara que era política do governo que o teste fosse feito por expatriados

'negros' (leia-se os negros africanos porque não são necessários euro- ocidentais

e afro-americanos).

Então, quando cheguei em casa e ouvi argumentos que rotularam a

homossexualidade de não- africana, uma importação estrangeira e vil, veio à

mente a semelhança de como eu era suspeita de vender maconha e auxílios,


principalmente por causa de minhas origens geopolíticas. Havia uma semelhança

impressionante na maneira como eu tinha visto Botswana e agora os malauianos

624
'estrangularem' uma práctica que consideraram negativa e prejudicial e que não

aprovaram, como se todas as coisas ruins fossem importados e os indígenas

fossem perfeitos e bons. A síndrome de culpar o estrangeiro não parou por aí.

Uma doença trazida por estrangeiros

Em um artigo intitulado 'Governo do Malawi colhendo amendoins do turismo'

(Jomo 2006), Patricia Kaliyati, a então ministra da Informação e Turismo, passou

a 'lamentar' o 'problema' da homossexualidade que, segundo ela, era galopante

no Chintheche Inn e infetando rapidamente os resorts do Lago Malawi (Jomo

2006: 1). Ela rapidamente jogou o cartão de cultura: ‘Nossa cultura não tolera a
homossexualidade. Esses turistas, quando chegam, devem aprender nossa

cultura, não nos apresentando uma cultura ruim como a homossexualidade, que

é desnecessária no Malawi (Jomo 2006: 1). Ela passou a culpar os turistas que

gastaram dinheiro com jovens malauianos em troca de favores homossexuais.

Em 25 de Janeiro de 2007, as principais agências de media impressa do Malawi

publicaram uma manchete que capturou a ministra Kaliyati fechando mais um

resort turístico, por estar ligado ao homossexualismo e abuso de drogas. O artigo

continuava explicando que ela havia procurado chefes seniores que se

aproximaram dela, implorando a ministra que abrisse a estação turística porque

625
era seu principal meio de subsistência. Neste artigo, não havia relato de planos

actuais ou futuros para a ministra se envolver com os chefes e pessoas desta

comunidade. Pergunta-se por que, dada a crença em sua cultura que ela atestou

anteriormente, uma cultura que se orgulha da comunidade, que a senhora

ministra não se sentou e discutiu esse assunto com a comunidade e os chefes12

em vez de recorrer à abordagem de cima para baixo e usando seu poder e status

de estado para fechar arbitrariamente o resort. Ela se comportou como um

colonialista que "veio, viu e conquistou", passando a prescrever o que era bom

para o povo e o que deveria acontecer. Por meio de Kaliyati, o governo

demonstrou que, quando se trata de homossexualidade, não se deve envolver


com as pessoas envolvidas para entender o problema, antes de tomar uma

posição.

A tomada parlamentar

A mesma ministra havia falado sobre homossexualidade mais cedo enquanto

fazia parte de um workshop de treinamento em género em Agosto de 2006, no

qual eu participava. Esta foi uma iniciativa conjunta do Executivo escocês e do

British Council para capacitar as parlamentares do Malawi, vinculando-as à

sociedade civil em questões de género.

626
Ela foi uma das participantes, embora não tenha participado de todo o workshop

ou da sessão em que levantei a questão da homossexualidade. Um dia antes de

ela publicar seu discurso sobre homossexualidade, eu havia apresentado a

questão da sexualidade e quão importante era que as líderes femininas

estivessem bem informadas antes de se apressarem em dizer algo à media para

que não precisassem retratar suas opiniões quando pesquisassem o contrário,

vindo à tona. Eu citei a saga de Mary Nangwale13 como um exemplo para ilustrar

que os discursos políticos públicos de mulheres políticas são mais examinados

quanto à precisão do que os feitos por homens.

Usei a maneira como os profissionais reagiram ao e-mail de gays e lésbicas no

listserv discutido anteriormente, perguntei como eles, como parlamentares,

lidariam com esse problema. Um bom número reagiu da maneira usual de


"homossexualidade é pecado". Mas enquanto a discussão continuava, um

deputado de um dos distritos eleitorais de Lilongwe, por exemplo, se perguntou

por que os homossexuais não saíam para lutar por seus direitos sexuais, por que

estavam escrevendo cartas anónimas. Eu apontei que alguns dos factores

contribuintes, foram que a homossexualidade é um crime no Malawi e o

ostracismo e estigma que ela carrega.14 Eu descobri que, quando se apresenta os

factos que se obtêm no terreno, os parlamentares se abrem e fazem perguntas

para entender esta questão melhor. Alguns deles até dão exemplos de pessoas
gays e lésbicas que eles conhecem, citando exemplos históricos de pessoas que

foram avisadas por seus avós. No final da discussão, alguns dos parlamentares

627
gostaram da minha apresentação. A visão geral era de que, tanto quanto eles

podem perguntar e se abrir sobre o assunto, a conclusão é que eles não podem

endossar aquilo que enfurece e é visto como um tabu por seus líderes

constituintes e partidários. No final do dia, eles exibem as opiniões das pessoas

cujos votos eles dependem para seus empregos. Eu ainda enfatizei que eles, como

indivíduos, precisam ler essa questão e tomar uma posição informada.

Os comentários da Ministra Kaliyati sobre homossexualidade vieram um dia após

esta sessão e eu usei o aparente fracasso dela em distinguir homossexualidade e

pedofilia para enfatizar o argumento que eu havia exposto nas sessões de


treinamento anteriores. Kaliyati havia homogeneizado e criticado os praticantes

de ambos, pedindo sua prisão onde quer que fossem encontrados no Malawi.

Kaliyati não foi a primeira política a pedir a prisão de homossexuais. Ela estava,
claramente, seguindo a sugestão do Presidente Mugabe, do Zimbábue, que em

1993 enfureceu alguns participantes da feira de livros do Zimbábue, 'marcando

extravagantemente os gays como “piores” que os cães e porcos” (Grundy, 2006:

1) e depois pediu sua prisão em Mutare, Zimbábue. Mugabe continuou a

argumentar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma ameaça à

humanidade e condenou as igrejas que abençoavam as uniões gays (Grundy 2006:

2). Seu discurso foi aplaudido por padres anglicanos na plateia e o Zimbábue é

fortemente anglicano. As opiniões de Mugabe encontraram um lar entre os


clérigos do Zimbábue e do Malawi.

628
A rejeição de Henderson

A voz religiosa do Malawi é muito audível no debate sobre a homossexualidade.

Para apreciar o peso que essa voz carrega, é importante conhecer a composição

religiosa do Malawi. O Malawi tem uma população de cerca de 18 milhões.

Muçulmanos e cristãos são responsáveis por 93% da população. Existem 7,9

milhões de cristãos (80%), 1,3 milhão de muçulmanos (13%), 305.000 pertencem a

outras religiões (3%) e apenas 423.000 são não-crentes, religiões tradicionais


africanas ou ateus (4%). 15 Ao abordar a homossexualidade e a emissão de

preservativos aos prisioneiros do Malawi, o pastor Gibson Nachiye, da Igreja

Deeper Life, e o bispo Andrew Dube, das Assembleias de Deus, emitiram um


alerta severo contra a legalização da homossexualidade em Julho de 2003,

argumentando que: 'homossexualidade é uma o pecado diante de Deus, portanto,

actos como a distribuição de preservativos apenas encorajariam a imoralidade

(Gmax 2003: 1).

A rejeição do bispo Nick Henderson, que em Julho de 2005 havia sido eleito pela

diocese de Lake Malawi para servir como bispo, mas que foi desafiado por

membros conservadores da Igreja Anglicana, resume a reacção da igreja à

homossexualidade no Malawi. Em Setembro de 2005, o Herald informou que o

bispo Malango atrasou a audiência de confirmação do bispo Henderson, devido a

629
relatos de que ele era gay, alegando que o apoio de Henderson aos direitos dos

homossexuais estava em desacordo com os valores africanos. Malango não estava

sozinho, argumentando que ser gay vai contra os valores africanos. O bispo

Nathaniel Yisa, da Nigéria, argumenta que: ‘A Bíblia se refere à homossexualidade

e condena directamente. Na sociedade africana tradicional, não há espaço para

homens que desejam fazer sexo com homens. Quanto às mulheres que querem

fazer sexo com mulheres - para a maioria das pessoas nas áreas rurais, é

inimaginável (Grundy 2006: 2).

O argumento de que a homossexualidade ou ser gay não é africano é uma questão


que abordo em um artigo na África feminista (Kapasula Kabwila 2006).

Argumento que, independentemente de se aceitar ou aprovar o uso de roupas e

a homossexualidade, o que está claro é que ambas as prácticas têm história e


precedência na África. O artigo desafia o pensamento binário e substância sua

posição, fornecendo evidências de documentos sobre literatura africana,

artefacto s e rituais de países como Gana, Quénia e África do Sul. De facto, há um

crescente corpo de pesquisa africana que ilustra a homossexualidade como uma

práctica indígena doméstica.

Legalizar a homossexualidade - apelo do MHRRC

630
O argumento para legalizar a homossexualidade no Malawi é escasso, mas

notavelmente crescente. Em um artigo, Frank Namangale (2005) relata que o

Centro de Recursos Humanos em Malawi (MHRRC), em 28 de Janeiro de 2005,

apresentou uma proposta à Comissão do Malawi para legalizar a

homossexualidade no país. O centro disse que queria que essa proposta fosse

considerada durante a revisão constitucional nacional, argumentando que as

sanções previstas no código penal violavam o direito de uma pessoa escolher

livremente sua orientação sexual. O argumento mais avançado pelo centro é o

mais interessante: [Este é] um padrão internacional reconhecido de direitos

humanos. A discriminação de pessoas de várias formas é proibida e todas as


pessoas têm, sob qualquer lei, protecção igual e efetiva garantida contra a

discriminação em razão de raça, cor, sexo, incluindo orientação sexual

(Namangale 2005: 1, grifo meu).

O oficial de comunicações do centro, John Soso Phiri, disse que os malauianos

deveriam aceitar que havia gays e lésbicas em sua comunidade e que eles

precisavam ter permissão para sair ao ar livre e viver livremente. Isso não

poderia acontecer até o centro 'abrir a mente das pessoas' (Namangale 2005: 1,

minha ênfase) e foi por isso que a proposta foi feita.

A síndrome do presente estrangeiro

631
Começando com o MHRRC, as duas palavras destacadas acima, "internacional" e

"aberto", resumem a natureza problemática dessa visão, se você concorda ou não

com o orador. Quando alguém tenta alcançar, para ser entendido pela nação do

Malawi - um povo que foi colonizado pela Europa e que luta contra várias formas

do imperialismo ocidental - um pedido para que sigam as tendências

internacionais está pedindo problemas. Dado o que geralmente acontece com os

malauianos e africanos quando seguem a liderança do mundo internacional

orientado para o Ocidente, pedir aos malauianos que façam uma mudança de

atitude paradigmática em uma questão com base no que está acontecendo

internacionalmente é imprudente, errado e perigoso. Para começar, o uso da


palavra internacional anacroniza e infantiliza o Malawi, insinuando que o Malawi

está atrasado e que não tem agência para traçar seu próprio caminho nesse

assunto. Phiri precisa lembrar que este é o tropo exato que foi usado para

legitimar actos imperiais como os do tráfico de escravos e do colonialismo, e a

tendência continua até hoje. Phiri precisa lembrar que a palavra "internacional"

conota o Ocidente a muitos africanos e malauianos. Não é apenas um insulto

dizer-me como malauiano para imitar o Ocidente, francamente, é como me pedir

para seguir os caminhos da pessoa que comprou as algemas que estão me

acorrentando. Walter Rodney (1972) e Adu Boahen (1987) ilustraram de forma

convincente como os chamados gigantes "internacionais" são os responsáveis por

grande parte do que a África e o Malawi estão enfrentando.

632
O oposto de 'aberto' é 'fechado' e quando Phiri diz que o centro quer abrir a mente

das pessoas, isso implica que suas mentes estão e / ou foram fechadas, esperando

serem abertas por pessoas como ele e pessoas do seu centro. Essa abordagem

está ligada à dinâmica do poder e insinua que as questões do Malauí precisam

estar engajadas com o critério daqueles que defendem o discurso de direitos

humanos usado pela Europa e pela América do Norte. Em uma entrevista comigo

(Abril de 2007), Nkiru Nzegwu alertou contra o envolvimento da África de uma

maneira que não a considerava igual a outros continentes, uma maneira que não

respeitava seu povo e que, em vez disso, colocava o Ocidente no centro do mundo

e fez dele o local e a medição do conhecimento. Ela dá o exemplo de como os


artistas europeus aprenderam abstração da arte africana. Em vez de reconhecer

isso, ele virou-se e rotulou-o de arte tribalista e primitiva. Ela continua

explicando como a sofisticada arte africana que eles encontraram foi rotulada

para imitar a deles ou simplesmente encobrir. Quando se leva em conta essas

visões, fica evidente por que as visões de Phiri podem ser problemáticas para a

África de hoje, que está lutando para se sustentar, enfrentando tantos obstáculos

"internacionais" em sua tentativa de se definir e decidir por si mesma o seu

destino. Quando se olha, como o Ocidente se beneficiou da primitivização e

exotização não apenas das identidades africanas, mas também das sexualidades

africanas, os africanos têm justificativa em desconfiar de um discurso que sugere,

mesmo remotamente, que deve ser prestada atenção à posição internacional


sobre sexualidade. O internacional inclui a Europa que nos tempos coloniais

633
definia o africano como homem e mulher excedidos (Salo 2001). O povo da África

e do Malawi, neste caso, está lutando contra a imagem de ser anacrônico16 pelo

Ocidente como doente, desamparado e atrasado. Pedir que eles sigam o

internacional está dignificando o retratos racista da África pelo Ocidente. Esta

questão de abrir a mente dos malauianos faz com que a aprovação e / ou

reconhecimento da homossexualidade pareça ser uma questão prescrita pelo

exterior. Dá-lhe a imagem de um presente que vem de um povo internacional,

iluminado e selecionado, os três Reis Magos bíblicos do Oriente, ou, neste caso,

do Ocidente. A historiografia do Ocidente com a África, para não falar das

problemáticas actuais, torna muito difícil para os malauianos receber qualquer


"presente" do Ocidente. As palavras de Nuruddin Farah em seu livro Gifts,

ilustram eloquentemente o argumento que estou tentando apresentar aqui.

Falando sobre as línguas europeias que se diz serem um presente que pode unir

os africanos, Farah aponta a razão pela qual os africanos desconfiam aos

chamados dons do Ocidente: 'Para saber quem eu sou (africano) e como me saí,

você deve entender por que resisto a todos os tipos de dominação, incluindo a de

receber alguma coisa (Ngaboh-Smart 1996).

Rótulos racistas

634
É crucial que aqueles que defendem a legalização da homossexualidade evitem

rótulos racistas, pois isso só problematiza a maneira como os africanos leem sua

causa. Richard Kirker, secretário- geral do pequeno, mas vocal, Movimento Gay

Lésbico-Cristão, tinha isso a dizer ao reagir à divisão que ocorreu quando a igreja

anglicana americana nomeou o bispo Gene Robinson: "Pessoalmente, prefiro ver

uma divisão entre as fileiras da comunidade anglicana, do que pessoas de

princípios se curvarem às demandas dos africanos homofóbicos".

O que exactamente se quer dizer com o rótulo 'africanos homofóbicos'? E se

Akinola (o arcebispo da Nigéria) fosse europeu e branco, isso faria alguma


diferença? O problema é a homofobia ou a capital epidémica do proprietário da

homofobia, para citar Steven Gregory (2007)? Tal afirmação acelera o discurso,

agravando a situação.

Engajando-se com a homossexualidade nos termos do Malawi

Se examinarmos as posições adoptadas por e a favor da legalização da

homossexualidade, é evidente que a maioria dos argumentos é de natureza

externalista. O Malawi precisa examinar esta questão nos termos do Malawi. Em

vez de nos apressarmos em falar de cultura como se fosse um conceito puro,

precisamos alcançar dentro de nós mesmos como povo e descobrir como o sexo

635
é definido e como foi definido antes da colonização, e o papel que o sexo e a

sexualidade desempenham nos parâmetros do Malawi, cidadania e

personalidade. Como definimos desvio de sexo? A homossexualidade é um

problema entre nós agora ou não? Como isso está relacionado ao HIV e à sida que

estamos lutando? Nossa agenda e prioridades devem ser baseadas no que

sentimos, pensamos, acreditamos e defendemos uns com os outros e

coletivamente. A menos que a identidade 'Malawi' não exista mais, precisamos

ter certeza de que o debate sobre esta questão pertence e participa dos

malauianos em sua diversidade, em vez de ancorá-lo à hegemonia heterossexual,

do cristianismo e islamismo.

A primeira realidade a aceitar no Malawi é que, embora tenhamos prisioneiros

que damos preservativos, dizemos que a homossexualidade não é do Malawi.


Certamente os preservativos não servem para explodir como balões, e as

declarações de Lucius Banda de 13 de Maio de 2007 atestam a presença da

homossexualidade nas prisões. Evidentemente, precisamos reconhecer essa

realidade, em vez de moralizar e prescrever o que achamos que o sexo é e deve

ser em Malawi. Precisamos interrogar esse tropo moralizante e prescritivo que

percorre os argumentos daqueles que são contra a legalização da

homossexualidade.

Precisamos nos perguntar se a cultura malauiana define e policia o sexo da

mesma maneira que o cristianismo. Estou perguntando isso sabendo como a

636
"cultura do Malawi" foi citada no discurso sobre prostituição, mães solteiras e

mulheres solteiras na teoria literária feminista. Um bom exemplo é a maneira

como as definições de 'mulheres soltas', 'mulheres perdidas', 'crianças de fora' e

'bastardo' surgiram e foram debatidas (Kalipeni e Zeleza 1999). Em Kabwila-

Kapasula (2007), Nzegwu ilustra como a sexualidade das mulheres na África pós-

colonial foi policiada em questões que não eram na África pré-colonial. Usando

o exemplo de sua sociedade igbo, Nzegwu (2006) ilustra como a definição cristã

de moral e crianças frouxas nascidas fora do casamento é usada para policiar e

ostracizar socialmente as mulheres na Igbolândia pós-colonial, ao contrário dos

tempos pré-coloniais. Hoje, quando se entra em uma comunidade africana que


adoptou a definição colonial de 'boa mulher', que é frequentemente modelada

nos ideais vitorianos e usada para policiar a sexualidade europeia das mulheres

(Pateman, 1989), é fácil entender como as categorias ocidentais estão sendo

normalizadas. É fácil comprar categorias como "bastardo" e "prostituta", mas isso

foi diferente antes dos colonialistas guiados pelo estilo vitoriano chegarem à

Igbolândia.

Se a homossexualidade deve ser rejeitada com base em sua alienação, só

podemos fazer isso depois de examinarmos como definimos a homossexualidade

antes da chegada do colonialismo e suas identidades, processos e instituições

correspondentes. Precisamos investigar nosso passado em Malawi, se é que isso


é possível, e depois verificar se realmente não temos homossexualidade. Por

outro lado, quantas coisas os malauianos fazem hoje que não fizeram antes? A

637
questão da homossexualidade precisa ser desvendada e interrogada por nós

como pessoas de hoje, levando em consideração o nosso ontem. Precisamos

pesar e ver como nós, como povo, sentiu e sentimos sobre isso.

Precisamos nos perguntar como definimos sexo, se o sexo como um acto tem e é

sempre definido na diversidade. É importante examinar nossas diferentes

comunidades em suas várias versões de matriarcado, patriarcado, patri e

matrilocalismo, e ver qual o peso que é dado às relações sexuais e como isso se

cruza com a cidadania na aldeia e no ambiente urbano. Precisamos saber se a

maneira como se faz sexo afeta a definição de quem é ou não um malauiano.


Precisamos descompactar a interface entre a maneira como se faz sexo com

acesso a recursos e cidadania. Nos meus estudos literários sobre o Malawi e a

região da SADC, ainda não vi provas de uma comunidade que sancione uma
pessoa, desqualifica-a de ser membro da aldeia ou comunidade com base em

como elas fazem sexo.

Conclusão

É importante que os malauianos se envolvam em suas questões como iguais à

outras nações. Precisamos evitar privilegiar a lógica colonial e o eurocentrismo

na conceituação de nossos problemas e soluções. Aqueles que defendem a

638
legalização da homossexualidade precisam se envolver com o Malawi como uma

nação madura, independente e com conhecimento. Eles não devem apresentar a

homossexualidade como uma questão que o mundo inteiro acordou enquanto o

Malawi fica para trás. Em uma entrevista com o autor, Nzegwu enfatiza que

qualquer sociedade, especialmente a africana, dada a sua historicidade, precisa

se envolver com respeito, como igual. Ela precisa ser abordada com uma atitude

que a leia por dentro, e não uma que passe nas prescrições e diga 'Eu vim para

lhe dizer o que fazer' (Kabwila-Kapasula 2007: 174). O Malawi precisa usar seus

mancais para encontrar uma solução para os problemas de seu lar, porque, leste,

oeste, norte ou sul, o lar é o melhor. É imperativo que o Malawi use óculos
caseiros para ver a homossexualidade além dos binários coloniais de religião /

cultura e direitos humanos. O discurso da homossexualidade precisa ser

fundamentado em discursos locais e próprios.

Notas

1. Este artigo adopta a posição de Zillah Einstein de não capitalizar letras que atingem uma presença hegemónica em
outros (1996) e aplica isso para não capitalizar HIV / AIDS, em uma tentativa de enfatizar que, embora o HIV / AIDS
seja real na África, ele não define o povo da África. É uma maneira de ilustrar que eles estão vivendo suas vidas
heroicamente diante de uma doença tão crónica. A vida continua e a África não é uma história de miséria, vitimização
e dependência, comoos media ocidental quer que acreditemos.

2. O estado moderno do Malawi tem uma população de cerca de 18 milhões e conquistou sua independência em 1964.
Seus baixos níveis de alfabetização e desafios económicos tornam o rádio a forma de media mais amplamente usada.
As taxas de alfabetização são de 49,8% para mulheres, 76,1% para homens, em comparação com o Zimbábue, onde os
números são 87,2% para mulheres e 94,2% para homens (UNICEF (2007) The State of the World's children)

639
3. Voltei ao Malawi em 2003 depois de trabalhar como professor expatriado no Botsuana por oito anos.

4. A principal estação de rádio do Malawi é a Malawi Broadcasting Corporation (MBC), e os principais jornais são The
Daily Times e The Nation.

5. A força hegemónica que trabalha de várias formas, incluindo físicas, ideológicas, institucionais e processos,
defendendo a criação e manutenção da dominação masculina nos níveis individual e / ou colectivo. Este poder é usado
por homens de qualquer idade, raça, classe ou religião para dominar as mulheres.

6. Iniciei um projecto para combater a violência contra as mulheres na universidade (UNIMA) e vi como forças
hegemónicas, como o patriarcado, se disfarçam, se reinventam e se transformam, principalmente quando estão sob
ataque. Esta é uma universidade onde uma colega activista académica feminista (professora Isabel Phiri) teve que sair
depois de fazer uma pesquisa que expôs a prevalência de várias formas de violência contra as mulheres no campus
em que ensino.

7. Fui presidente da União do Pessoal Académico do Chancellor College (2004-2006) e, em nossas batalhas contra o
governo pela liderança visionária e com o governo por salários, eu tinha visto em primeira mão como o capitalismo
protege a si próprio e luta ferozmente quando é atacado. proteger os lucros, inventando categorias de etnia, género
e idade.

8. Um local onde o pessoal académico e seus cônjuges se encontram e socializam e discutem questões académicas e
outras. Seus membros incluem professores universitários, do mais baixo ao mais alto escalão, de funcionários a
professores.

9. Eu acreditava que o email veio da comunidade homossexual clandestina do Malawi. Isso foi discutível, pois o e-mail
dizia que os membros da associação estavam na África do Sul e isso fez com que algumas pessoas duvidassem de sua
autenticidade. Coloquei o subterfúgio no medo de ser identificado, dado o status legal da homossexualidade.

10. O povo do Botsuana é chamado Batswana.

11. Termo depreciativo referente a estrangeiros negros africanos no Botsuana. Emprego uma abordagem centrada no
sujeito para a ortografia, a ortografia que eu, os Chichewa / Shona Mukwek, morávamos no Botsuana, para autenticar
e contextualizar o termo.

12. Estou ciente de que o papel e a definição dos chefes do Malawi foram muito influenciados pelo colonialismo, pela
política multipartidária e pela chamada democratização do estado neocolonial. Emprego a definição pré-colonial de
chefe no Malawi.

640
13. O manuseio, pela media e pelo sistema político, do debate parlamentar sobre a primeira inspetora geral da polícia
do Malawi. Outro exemplo é o tratamento dado pela media à candidatura de Vera Chirwa à candidatura à presidência.
Ela foi rotulada como muito velha quando tinha a mesma idade de Bingu wa Mutharika, então presidente do Malawi.
Existem tantos exemplos que evidenciam o viés de género na liderança política global e no Malawi

14. Alguns parlamentares e colegas da sociedade civil disseram que ficaram desapontados com a minha escolha de
discutir a questão da homossexualidade, com um lamentando claramente que desta vez eu havia ido longe demais
em meu radicalismo.

15. Isso se baseia no artigo do Reverendo Dr. Chakanza sobre 'Percentual de religiões da população visão geral do país'
(2004).

16. Um termo usado por Fanon (1963), Boahen (1987) e McClintock (1995) para se referir à maneira como o Ocidente
considerava a África um lugar sombrio, atrasado e desamparado. Chegar a ele era visto como voltar no tempo,
enquanto ir à Europa era visto como ir à luz, desenvolvimento e ao mundo.

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643
644
38 – O CAMPO DE TREINO DE CONSTRUÇÃO DE MOVIMENTO PARA
ACTIVISTAS QUEER DA ÁFRICA ORIENTAL: UM EXPERIMENTO EM
AMOR REVOLUCIONÁRIO – Jessica Horn

Memória

Recordar: Lembrar. Do latim re-cordis, passar de volta através do coração.

Eduardo Galeano (1991),

O Livro dos Abraços

Aqui, no final de uma experiência de tremer a alma do MBBC, com seus

cumes emocionais e vales emocionais, cocriando novas maneiras de

entender a si mesmo e a politizar debates sobre tudo, desde corpos,

economias, perdas ... Vendo agora tão claramente que os africanx queer

estão na vanguarda dos movimentos sociais progressistas africanx e que a

solidariedade feminista dá ar a esse trabalho.

Diário pessoal, 28 de Março de 2011

645
De todos os espaços activistas em que participei desde meus dias como uma

adolescente feminista mal-humorada, nunca estive em um espaço tão pessoal e

colectivamente transformador quanto o Campo de Treino de Construção de

Movimento (MBBC) para activistas Queer da África Oriental.¹ O MBBC era um

processo de aprendizagem de um ano organizado por Fahamu e UHAI - Iniciativa

de Saúde e Direitos Sexuais na África Oriental - em 2011, com o objectivo de

promover uma nova liderança entre activistas lésbicas, gays, bissexuais,

transgéneros e intersexuais (LGBTI), explorando e desenvolvendo base teórica e

política do trabalho activista. Este mandato formal de construção do movimento

recebeu asas da vontade dessas duas organizações de mudar genuinamente as


energias activistas da região, permitindo a criação de uma metodologia de treino

independente e passional e uma comunidade de aprendizado reflexivo. Na

práctica, algo elétrico nasceu entre nós no processo MBBC; algo profundo mudou

em nossas maneiras de fazer e estruturas de sentir. A experiência foi tão

importante, na visão de uma participante lésbica, como 'no momento em que

percebi que era bonita, que era queer, africana e tinha consciência'. Então, o que

foi o MBBC?

Este ensaio representa um acto de análise retrospetiva. É uma tentativa

provisória de entender o espaço inesperado, as línguas, a comunidade e a energia

transformadora que nos encontramos criando coletivamente no MBBC. É


necessariamente subjetivo, pois é minha memória e minha compreensão do que

ocorreu, pontuadas por ressonâncias e reflexões de outros envolvidos. Inclui

momentos de recordação da experiência (literalmente, o acto de recompor o

646
corpo das minhas emoções) e o engajamento de uma teoria que vivemos através

da práctica na criação do espaço do MBBC. Escrevo isso reconhecendo que é vital

que envolvamos o que chamei de "política do processo" em outros lugares (Horn

2009) em nosso trabalho, uma vez que passamos a maior parte do tempo

trabalhando, e não necessariamente nos momentos mais breves de vitória ou

conquista. Ao voltar ao processo do MBBC, também estou constantemente

envolvendo o significado mais amplo do espaço que criamos e as metodologias

que desenvolvemos no cenário de uma ONG baseada em direitos humanos e

justiça social. Enquanto protestamos contra o encolhimento de fundos para o

activismo de ONGs, também precisamos apreciar os enormes recursos que


realmente temos à nossa disposição, incluindo o potencial para processos de

aprendizado entre países e aprendizado e trocas no local nos arredores

confortáveis dos hotéis. Como usamos melhor essas possibilidades de

aprendizado que já temos para atender ao imperativo pedagógico activista de

nutrir uma profunda transformação política?

Ideias de nascimento

Em meados de 2010, Hakima Abbas, uma feminista africana que trabalha para a

organização pan- africana de justiça social Fahamu, abordou-me com uma ideia

de trabalhar no desenvolvimento de um currículo para um programa de

647
treinamento para activistas LGBTI da África Oriental. A ideia era criar um 'campo

de treino', baseando-se numa metáfora militar, mas aplicando-a no sentido de

envolver nosso desenvolvimento político como activistas com a disciplina vista

nos movimentos revolucionários. Nas palavras de Hakima:

desde a primeira ideia, o MBBC foi um processo colectivo ... saiu de conversas

com camaradas, onde a sensação era de que precisava haver uma reinjecção da

política no movimento LGBTI e uma maneira holística de encarar esse

movimento ... e um reconhecimento de que muitos de nós estamos cansados e de

que existem ideias excelentes e maravilhosas por aí que não estão sendo
exploradas porque estamos ocupando muito espaço.

Entendi o anseio de usar a frase de Amílcar Cabral, para um 'retorno à fonte',


para abraçar o valor de um pensamento político rigoroso e debater sobre nossas

visões políticas e as metodologias e maneiras pelas quais engajamos e usamos o

poder para instigar mudanças. Com essa intenção e uma tremenda latitude dada

pelas organizações anfitriãs, trabalhei no currículo escrito. ² Pesquisamos

activistas na região para identificar prioridades de aprendizagem e as

combinamos com nosso próprio senso de áreas-chave para explorar ou

introduzir no debate gay africano. Uma dessas áreas era o bem-estar, que

priorizamos como uma questão a ser explorada em termos políticos e práticos,


como central para sustentar o activismo.

O processo de aprendizado em si deveria ocorrer em duas sessões residenciais,


cada uma semana e meia, com os meses entre elas dedicados à aplicação do

648
aprendizado e discussões em andamento sobre questões-chave por meio de uma

lista de e-mail. Ao planejar a criação do processo, fui acompanhada por outras

facilitadoras Phumi Mtetwa, uma feminista socialista queer sul-africana que tem

participado de uma série de lutas intersectoriais em torno de orientação sexual,

raça, classe e género, bem como os estudantes anti- movimento do apartheid;

Solome Nakaweesi-Kimbugwe, uma activista feminista e empreendedora que foi

uma aliada vocal dos direitos das mulheres, LGBTI e profissionais do sexo; e

Hakima Abbas. Juntas formamos a equipe principal de facilitação. Todas

principais facilitadoras eram africanas, mas também, sem querer, todas eram

mulheres e todas firmemente posicionadas na política feminista, embora com


uma variedade de perspectivas sobre isso. Outrx facilitadores se juntaram

durante o processo, incluindo Najia Sabeen, psicóloga queniana e curadora de

energia, que participou em período integral do segundo treinamento residencial.

Embora nem todx os facilitadores tenham sido identificados como queer, todx

compartilharam uma solidariedade com a luta queer. Ao selecionar os

participantx, Fahamu e UHAI escolheram activistas LGBTI e profissionais do

sexo, aqueles que representavam o que Hakima Abbas descreve como 'pessoas

que não estão necessariamente profundamente arraigadas na ONG-organização

do movimento, mas demonstraram comprometimento em um sentido amplo de

correr riscos, tornando as coisas diferentes e que têm paixão pelas pessoas.

Base

649
Você nunca pode esquecer quem você é e onde está na luta.

Bob Marley e os Wailers, "tantas coisas a dizer"

Negar a importância da subjetividade no processo de transformação do

mundo e da história é ingênuo e simplista. É admitir o impossível: um

mundo sem pessoas.

Paulo Freire (2005 [1970]: 50)

O espaço de aprendizado do MBBC foi iniciado em treinamento residencial nos

arredores verdes de uma loja de Nairobi, Quénia. No primeiro dia do

treinamento, organizamos uma sessão de diálogo, com alguns membros da


equipe de facilitação compartilhando suas próprias experiências e lições do

activismo. A sessão foi bastante interessante, mas naquela noite nos encontramos

como facilitadores e compartilhamos o que era um desconforto comum sobre a

dinâmica de poder que criamos. Paulo Freire sugere que, em uma práctica de

ensino libertador, "[a] educação deve começar com a solução da contradição


professor - aluno, reconciliando os polos da contradição para que ambos sejam

simultaneamente professores e alunos" (Freire 2005 [1970]: 72) É claro que é uma

coisa a dizer e outra a acontecer em um espaço de aprendizado. Os africanos do

650
leste são herdeiros de um sistema de educação colonial baseado na obediência

hierárquica a um professor onisciente

aprender é memorizar, falando apenas se for solicitado e com medo de cometer

erros. A obediência é frequentemente imposta através do castigo corporal, a

aplicação literal das hierarquias do conhecimento através da violência física.

Além disso, mesmo em nossos espaços de aprendizado para activistas adultos,

também tendemos a não considerar profundamente as hierarquias silenciosas de

classe, género e linguagem, e como elas se desenrolam em quem se envolve e o

que consideramos 'conhecimento' e quem acaba falando. Ao reflectirmos como


facilitadores na primeira noite, percebemos que de facto encenamos a

'contradição professor-aluno'. Embora nos sentássemos em círculo, tínhamos

sustentado muito a hierarquia vertical de 'activista mais velho qualificado que


fala versus activista mais jovem que escuta' que pretendíamos subverter.

Abrimos o dia seguinte em círculo novamente, mas agora perguntamos a todos

na sala: 'Como você chegou à consciência activista? As horas seguintes foram

testemunhas de um compartilhamento mútuo, suave, profundo e, por vezes,

incrivelmente doloroso de realizações sobre a evolução da compreensão do eu,

momentos em que a homofobia ou normas de género foram violentamente

aplicadas, inspirações políticas de pais ou mentores e o desejo de buscar a


libertação da brutalidade da marginalização. Permitimos um ao outro espaço

para chorar, espaço para esgotar-se e obter ar, e a oportunidade de segurar e ser

mantido. A partir desse ponto, permanecemos conscientes, como facilitadores,

651
da necessidade de abrir espaço para os participantes nos envolverem também

como 'professores' e compartilharem seus respetivos conhecimentos e

sabedorias de seu activismo pessoal e colectivo. Esse círculo de

compartilhamento revisado ajudou a estabelecer dois eixos críticos de nossa

comunidade de aprendizado: cocriação e adopção de subjetividades.

Nesse momento de profunda partilha, encontramos um novo desafio como

facilitadores. Sentimos o peso da dor na sala e respondemos da melhor maneira

possível. No entanto, estávamos cientes de que talvez não tivéssemos os recursos

emocionais para mantê-lo juntos durante todo o tempo em que estivéssemos


juntos, considerando tudo o mais pelo qual fomos responsáveis por manter o

processo em andamento. Reconhecemos abertamente aos participantes que

tínhamos lutado para encontrar um conselheiro adequado em quem


acreditávamos que poderíamos confiar em não ser tendencioso. Em resposta, um

participante (que era um conselheiro treinado) ofereceu-se para nos mostrar um

método simples de apoio ao grupo. Ele nos pediu para formar um círculo, com

cada pessoa atrás de outra. Ele então nos pediu para tomar nota da pessoa que

estávamos atrás e ofereça- se como seu "anjo", cuidando deles durante o processo

e respondendo primeiro se eles estiverem enfrentando alguma dificuldade. Cada

um de nós também concordou em ser procurado pela pessoa que estava atrás de

nós; eles seriam nosso anjo. Ao oferecer esse pequeno ritual, o participante não
apenas nos deu uma estrutura práctica para gerenciar o cenário emocional do

MBBC, mas também redistribuiu activamente a responsabilidade do amor

revolucionário horizontalmente, respeitando a necessidade de cuidado de cada

652
pessoa e sua capacidade de cuidar de outra pessoa. Isso criou outro eixo

fundamental de nossa comunidade de aprendizado - abraços mútuos.

Depois de situarmos nossa política no contexto de nossas próprias histórias de

vida, passamos por um processo em camadas de nos situar no que sabíamos da

história de opressões e libertações no continente africano, criando uma linha do

tempo visual com todos os momentos-chave que sentimos ter contribuído para

estabelecer - ou mudar - relações de poder para nós como africanos e em cada

uma de nossas outras identidades de classe e género. Através do envolvimento

da teoria política em sessões e grupos de leitura da noite, assistindo filmes sobre


activismo de todo o mundo e compartilhando a cultura de movimentos sociais,

como a dança de protesto sul-africana de toyi toyi e microfones abertos de

poesia, localizamos nossa política e acções activistas firmemente dentro das


linhagens existentes. de luta. E assim construímos outro eixo de nossa práctica

de aprendizado

o debate histórico. Isso pode parecer evidente como práctica activista; no

entanto, é surpreendentemente ausente o suficiente do activismo baseado em

ONGs que todos experimentamos como motivo de preocupação.

653
Ver a sala de aula como um local comum aumenta a probabilidade de esforço

colectivo na criação e manutenção de uma comunidade de aprendizagem.

Bell Hooks (1994: 184)

Fiz o check-in no campo de treino como um indivíduo que aguardaria uma

chamada de propostas. Eu saí como pesquisador, poeta (e me veja, posso

escrever!), como activista, armado com o Manifesto Africano Queer. É minha hora
de retribuir às pessoas que represento.

Participante do MBBC, reflexão por ensaio no seu blog

Como facilitadores, trabalhamos para entrar nos espaços residenciais e on-line

do MBBC, ouvindo activamente e nos envolvendo com o grupo quando


começamos a aprender sobre personalidades, preferências e política e perceber

como as pessoas interagiam. Também estávamos abertos um ao outro e aos

muitos estilos diferentes com os quais gerenciamos sessões e apresentamos

conteúdo. Os participantes brincaram que tínhamos 'irmãs PowerPoint e não

PowerPoint', pois cada uma de nós trouxe diferentes estilos de facilitação e

partilha de conhecimento. Continuamos explorando uma práctica de facilitação

suficientemente flexível para pontuar discussões sobre o potencial radical da

tecnologia de código aberto com coreografia para as músicas de Lady Gaga e


Miriam Makeba. Os facilitadores convidados que se juntaram a sessões curtas,

incluindo médico, desenvolvedores de software de código aberto e um activista

654
que trabalha com teatro político, compartilharam esse espírito de ensino radical

e facilitaram de maneira muito condizente com o ritmo do processo (de facto, a

certa altura, lembro-me de exclamar que o processo do MBBC havia sido

abençoado pelos ancestrais, pois era tão claro que quem se envolvia nele vinha

com a energia certa para o espaço).

Na práctica da cocriação, reunimos formalmente os participantes para liderar as

sessões. Em uma sessão de saúde sexual, um profissional do sexo identificado

como homem nos guiou pela arte do sexo seguro, numa demonstração

esteticamente surpreendente de envolver um parceiro sexual usando


preservativos, lubrificantes e outras ferramentas de sexo seguro e prazeroso. Em

outra sessão, um participante facilitou um debate sobre as relações de ética e

poder da pesquisa em saúde pública, abrindo espaço para discutir questões como
os ensaios de vacinas contra o HIV, das quais alguns membros da nossa

comunidade haviam participado como sujeitos da pesquisa.

No processo MBBC, também comemoramos o poder do eros - no sentido em que

a feminista lésbica afro-americana Audre Lorde (1989: 55) explora:

A própria palavra erótico vem da palavra grega eros, a personificação do

amor em todos os seus aspectos - nascida do caos e personificando poder

e harmonia criativos. Quando falo do erótico, falo dele como uma


afirmação da força vital das mulheres; dessa energia criativa capacitada,

655
cujo conhecimento e uso estamos a recuperar agora em nossa linguagem,

nossa história, nossa dança, nosso trabalho, nossas vidas.

Na verdadeira tradição de dança da África Oriental, nos envolvemos em uma

ampla dança provocativa entre as sessões e no final de alguns dias (levando a uma

renomeação afectuosa do campo de treinamento como o 'campo de treinamento')

e recebemos a autoexpressão no espaço seguro de nossos microfones abertos,

onde as pessoas falavam de amor queer, desejo e experiências sexuais. Todos nós
incentivamos uma participante e uma fabulosa drag queen ugandense com

música, joias e um piso para 'fazer a coisa dela', inclusive numa celebração de

encerramento em que outros hóspedes do hotel estavam presentes. Engajar esse


poder de eros em nosso espaço de aprendizado era encontrar-nos como seres

humanos plenos. Foi um acto profundamente político de reconhecer desejos que,

de outra forma, são censurados ou forçados às sombras. ³ Como Hakima Abbas

oferece: 'Estávamos em chamas em nossa estranheza, e era libertador poder ser

nós mesmos, ser fabulosos, andar e saber que seus irmãos e irmãs seguram suas

costas.

Nem sempre fomos barulhentos. De facto, houve muitos momentos em que


abrimos espaço para o silêncio. Todos os dias do processo residencial tinham um

elemento reflexivo, incluindo meditação, yoga e massagem. Exploramos muitas

prácticas de autorreflexão que compartilhamos no grupo, incluindo reunir no


final do dia para compartilhar um pensamento sobre algo que nos inspirou e

656
encerrar os treinamentos residenciais com todos escrevendo afirmações um

para o outro. E também tivemos prácticas reflexivas inesperadas. Uma manhã,

fui pega em busca de assistência médica para um participante, e assim outra

facilitadora (não conhecida por suas qualidades de monge) assumiu a

responsabilidade de liderar a reflexão da manhã. Ela havia feito da melhor

maneira que sabia, tocando uma música da ópera Farinelli, pedindo aos

participantes que fechassem os olhos e 'sentissem a música'. Era tão hilário

quanto profundamente emocionante. Com os olhos abertos, vi uma sala cheia de

jovens africanx queers, jovens sentados em silêncio e começando a absorver o

som invulgar e evocativo da melodia operística italiana. Em todos esses


momentos, compartilhamos nossa delicadeza e desejo de quietude. Como Kevin

Everod Quashie (2012: 9) oferece: ‘Na humanidade, o silêncio é inevitável,

essencial. É uma parte simples e bonita do que significa estar vivo. Para mim,

pessoalmente, foi uma nova experiência envolver homens neste profundo

processo de facilitação. Enquanto eu estava acostumada a partilhas muito

pessoais entre mulheres na tradição feminista de conscientização política

incorporada, nunca facilitei o desenvolvimento de espaço seguro em grupos de

ambos os sexos. Acabou não sendo uma montanha muito grande para escalar,

pois todos trabalhamos para nos encontrar como éramos (inclusive em nossas

variadas transgressões de género, feminilidades masculinas, masculinidades

femininas e identidades trans). Alguns homens também falaram sobre suas


experiências como pais e cuidadores, bem como experiências de testemunhar

violência doméstica contra suas mães, reconhecendo os papéis e as

657
desigualdades das mulheres na família. No entanto, e talvez esperado,

patriarcados subtis se apresentaram em alguns momentos. Um exemplo

memorável foi quando um grupo trabalhou no mapeamento do corpo de uma

mulher, e os homens do grupo não conseguiram localizar com precisão todas as

partes da anatomia das mulheres (não era o caso das mulheres do grupo que

desenhavam o corpo de um homem). Em alguns aspectos, a extravagância da

cultura dos homens gays também se manifestou mais abertamente do que a

expressão cultural lésbica nos modos em que nos envolvemos e celebramos, e em

maneiras pelas quais expressamos ideias sobre o que significava ser 'queer' (por

exemplo, com muitas drag queen, mas sem performances de drag king). Essas
são, é claro, todas as hierarquias aprendidas e parte do trabalho de mudar a

consciência e construir novas normas de género.

Ubuntu queer

Ubuntu… fala da própria essência de ser humano. É dizer: 'Minha

humanidade encontra-se, inextricavelmente ligada à sua'. Pertencemos a

um monte de vida. Dizemos: "Uma pessoa é uma pessoa através de outras

pessoas".

Desmond Tutu (1999: 31)

658
Se eu entro na emoção que o MBBC cria em meu corpo, sei que a magia do MBBC

está na rica e talvez até imprevisível sensação de nutrir a comunidade. Criar

comunidade é trabalho. É preciso trabalho emocional para ouvir e se abraçar,

tanto quanto trabalho político para explorar desacordos e se abraçar com

respeito mútuo. Criar comunidade também requer o estabelecimento de limites

éticos claros em torno de maneiras de ser e de fazer no espaço comunitário.

Durante o primeiro processo residencial, várias participantes identificadas como

mulheres relataram aos facilitadores que estavam sendo perseguidas por um

participante homem em específico.

Achamos que isso era absolutamente inaceitável e, contra a ética do espaço, o

envolvemos e concordamos mutuamente que ele não continuaria com o

programa. Outra participante não estava muito envolvida desde o início.


Conversamos com ela como facilitadores e, no final, ela mesma não compareceu

ao segundo treinamento residencial. Estávamos bem com a decisão, sabendo que

o trabalho político requer vontade individual e escolha activa, e que nem todos

permanecem na jornada. Os participantes também assumiram a propriedade

colectiva do processo em diferentes momentos, convocando reuniões para

discutir como estavam se engajando e contribuindo para as sessões. Como

facilitadora, foram belos actos de afirmação de que o espaço era compartilhado

em sua gestão e não apenas no conteúdo do que era explorado.

Instituições e facilitadores anfitriões agonizavam com a ética do dinheiro. Todos

estamos angustiados com a cultura de direitos que surgiu no activismo baseado

659
em ONGs. No primeiro dia do MBBC residencial, alguns participantes

expressaram desaprovação por não receberem diárias, e por o treinamento não

ter sido realizado em um hotel cinco estrelas ou próximo à vida noturna urbana.

Os representantes das instituições organizadoras tiveram tempo para explicar

sua escolha política para não apoiar a ideia de serem 'pagos para aprender', e a

escolha deliberada de nos situar num local onde pudéssemos nos conectar ao

ambiente natural e focar no trabalho em questão. Os participantes aceitaram os

princípios e logo o debate sobre dinheiro mudou para questões de justiça

económica para todos. Durante o segundo treinamento residencial, os

participantes lideraram sessões sobre economia cooperativa e início de negócios


coletivos, uma mudança que todos observamos como inovadora. Nos dois

treinamentos residenciais, também acordamos cedo muitas manhãs para correr,

praticar yoga e meditar ao ar livre.

Durante todo o processo do MBBC, dedicamos um tempo considerável à

exploração de teorias de poder e mudança que inspiraram vários movimentos

sociais na África, incluindo marxismo, feminismo, pan-africanismo e consciência

negra, teoria queer, direitos humanos liberais e anarquismo. Os participantes

criaram grupos de leitura e leram textos críticos. Trabalhamos com

determinação a linguagem frequentemente difícil da teoria revolucionária.

Desconstruímos textos bíblicos sobre homossexualidade com a ajuda de Happy


Kinyili, estudante de teologia que virou, e abordamos questões relevantes para

nossas comunidades, do uso de drogas aos debates sobre violência e não-

violência como ferramentas de luta. Na melhor tradição do pensamento

660
transgressivo, também continuamos trabalhando para abrir espaço para

divergências, diálogos, contradições e refinamentos. Afinal, se a teoria política se

destina a inspirar movimentos, ela também precisa se mover.

Um dos processos mais ricos politicamente foi chegar a definições individuais e

depois coletivas de liberdade. Começamos fazendo as seguintes perguntas: Quem

sou eu? Desse ponto de vista, sou livre ou não sou livre? Se eu não me considero

livre, o que seria necessário para eu ser livre? Reunimos as respostas dos

participantes individuais num mapa visual, do qual emergiu uma política

colectiva de libertação que abraçou totalmente a interseccionalidade. Para todos


nós, não haveria liberdade separada da justiça económica, de um tecto sobre

todas as nossas cabeças e uma posição transformada em nossa sociedade e na

economia mundial. Não haveria liberdade sem a liberdade das mulheres e de


outros constituintes marginalizados pelas relações normativas de poder. A

liberdade para queer africanx, em nossa visão libertadora, exige envolver a terra

e a justiça ambiental tanto quanto as leis sobre sexualidade. Ao reconhecer as

complexidades e, portanto, os diversos eixos de nossas próprias opressões,

fomos capazes de abraçar plenamente a relevância de uma ampla política

transformadora que tornaria possível o apelo básico à igualdade LGBTI.

Fiquei constantemente impressionada e animada com as energias que os


participantes trouxeram para o espaço. No processo de fecho do primeiro treino

residencial, um participante da Tanzânia criou seu próprio ritual de

agradecimento. Ele havia escrito palavras em cartões individuais que eram

661
relevantes para ele e sua vida. Enquanto estávamos no círculo, ele entregou um

cartão para cada um de nós, envolvendo-nos um a um com cada palavra, em uma

narrativa poética que nos ligava a elementos de seu corpo, alma, história de vida

e sobrevivência. Ao fazê-lo, ele criou uma conexão política mágica e radical entre

nós. Era a expressão de um ubuntu estranho: eu sou como você é. Tu és eu. E eu

sou você.

Em outro exemplo, um participante se ofereceu para exibir um documentário

sobre homofobia no leste e sul da África, que apresentava alguns dos

participantes. Assistimos com raiva excruciante quando alguns de nossos amigos


foram mostrados sendo perseguidos por bandidos homofóbicos e expressamos

nossa indignação com elx quando o filme terminou. No filme, também vimos

filmagens do caso dos malauianos Steve e Tiwonge, presos por supostamente


tentarem um casamento ilegal do mesmo sexo. E quando Tiwonge assumiu o

posto no banco das testemunhas, um dos participantes sentados ao meu lado

sussurrou baixinho para si mesmo: 'Sou eu! Novamente, um ubuntu estranho: eu

sou como você é. Tu és eu. E eu sou você.

Quem, como, com que palavras ...

662
Falar, escrever e discursar não são meros actos de comunicação; eles são acima

de todos os actos de compulsão. Por favor siga-me. Confie em mim, pois o

profundo sentimento e compreensão exigem total comprometimento.

Trinh T. Minh-ha (1989: 52)

O processo MBBC não ficou isento de dificuldades do ponto de vista pedagógico.

De facto, houve vários sérios desafios conceituais e de processo, situados em


grande parte no contexto de como actualmente gerimos os espaços activistas. O

primeiro grande desafio foi a questão de quem incluir. Fahamu e UHAI

escolheram intencionalmente pessoas que não eram os "suspeitos do costume"


de activismo baseado em ONGs da África Oriental, num movimento para

reconhecer a amplitude da liderança activista existente e de novas vozes

activistas. Isso criou dificuldades para alguns participantes, que tiveram que

navegar pelas políticas de direito no espaço das ONG-activistas e retornaram ao

ciúme e raiva de colegas de suas organizações e perguntas sobre quem os

escolheu como representante do activismo em seus respetivos países. Apesar dos

esforços ativos dos organizadores para incluir a inclusão trans, inicialmente não

tínhamos participantes transgéneros (o participante que trabalhava numa


organização transgénero não foi identificado). Durante o segundo treinamento,

um participante saiu como homem trans, um acto em si mesmo que demonstrou

a fluidez da identidade de género e o potencial da composição de género de nosso

663
espaço para mudar. No segundo processo residencial, uma mulher trans também

se juntou a nós como parte da equipe de logística e facilitação.

O segundo grande desafio foi a linguagem. Para começar, os ensinamentos,

textos e filmes foram apresentados em inglês. É claro que o inglês é uma língua

franca para africanx do leste e do sul e, como tal, uma 'ferramenta' para permitir

uma conversa colectiva e a possibilidade de todos participarem do nosso espaço.

No entanto, tem seus limites e exclusões, inclusive no facto de que nem todos os

participantes falam o mesmo "tipo" de inglês (principalmente o inglês da teoria

académica). Alguns participantes eram deliciosamente fluentes em kiswahili,


mas não conseguiam articular a mesma textura de expressão em inglês. Sem

serem solicitados, outros participantes imediatamente entraram para actuar

como intérpretes, traduzindo o que seus colegas disseram de Kiswahili para o


inglês e, em alguns casos, vice-versa.

A linguagem também era complexa no sentido da terminologia e dos discursos

que usamos. No espaço do MBBC, diferenças na perspectiva política significavam

que havia diferenças inevitáveis entre nossas línguas de resistência e as línguas

que usamos para falar sobre questões como sexualidade, poder e mudança. E, de

facto, alguns dos debates em que participamos foram precisamente no domínio

da linguagem, por exemplo, sobre a autoidentificação como defensora dos


direitos humanos e a noção de que os direitos humanos são a linguagem mais

poderosa para expressar discordâncias. A palavra 'queer' era relativamente nova

para a maioria das pessoas do grupo e demorou um tempo para nos

664
familiarizarmos e entendermos a intenção política por trás da palavra e sua

relevância para nossas discussões sobre a abertura e o desafio de conceituações

binárias de género e sexualidade. Consideramos até que, se o termo "queer" fosse

um acto de reclamar um insulto usado contra pessoas não conformes sexuais e

de género no Reino Unido e nos EUA, talvez devêssemos reivindicar a palavra

shoga (um termo depreciativo em Kiwsahili para gays ou lésbica) e começar a

articular uma teoria do shoga, fundamentada na experiência da África Oriental.

Em um exercício, dividimos as pessoas em grupos de acordo com os idiomas

africanos que eles falavam e, em seguida, pedimos que explorassem toda a

terminologia e expressões de género e orientação sexual, fornecendo


interpretações em inglês. Essa foi uma exploração fascinante da diversidade e

das semelhanças nas conceções de género nas línguas da África Oriental, que

também consideraram a existência de conceitos de desejo do mesmo sexo e o

continuum da identidade de género em muitas culturas.

Como parte do trabalho de desenvolvimento de uma linguagem comum, porém

diversificada, também recebemos com satisfação a expressão de outras línguas,

incluindo línguas africanas como o kiswahili (falado eloquentemente por alguns

dos participantes, para a inveja de outros), a linguagem da dança, o linguagem de

autorrepresentação visual e linguagem de toque de cura nas sessões de

massagem, o que também possibilitou diferentes tipos de 'vozes' a serem


expressas, ouvidas e respondidas. Não tínhamos pessoas com deficiência visual

ou auditiva no grupo, o que novamente nos levaria a considerar a linguagem e

provavelmente teria exposto os limites de nossa própria destreza linguística.

665
Batimento cardíaco

Precisamos de uma revolução da mente, precisamos de uma revolução do

coração, precisamos de uma revolução do espírito. O poder das pessoas é mais

forte do que qualquer arma ... precisamos ser armas de construção em massa,

armas de amor em massa.

Assata Shakur na música de d'bi young, 'Revolution', tocada durante o MBBC

Nada do que foi criado, compartilhado ou inspirado no MBBC poderia ter

acontecido sem paixão, compromisso político vibrante além dos 'empregos

diários' do activismo de ONGs, facilitação formal ou papéis de participantes - e


certamente não sem amor. Quando falo de amor, não quero dizer amor no

sentido romântico da palavra. Quero dizer amor no sentido de uma energia

emocional libertadora; o amor como a conexão político-emocional que

desenvolvemos entre si que nos faz querer voluntariamente contribuir para

sustentar a vida um do outro. É mais profundo do que uma política de identidade

superficial ou afiliação política teórica. O amor revolucionário é o que nos

mantém unidos, nos faz sentir tão comprometidos um com o outro e se manifesta

como uma respiração criativa e reconfortante diante do que podem ser paisagens

complexas de compromisso e perda.

666
Essa energia do amor revolucionário foi expressada evocativamente por uma

participante, Rena, no último dia do processo de treinamento residencial. Nas

palavras dela:

Neste dia eu aprecio tudo ao meu redor e respiro amor, respiro amor. Eu

quero apreciar todos os paxás do dia. Quero dar uma última olhada em

tudo e vê-los de uma maneira que não vejo nos últimos 12 dias. Eu quero

respirar fundo o amor que eles vão exalar. Amando o movimento. Sempre
há beleza atrás da ponte.

O amor revolucionário também é evidente nas solidariedades demonstradas

durante e após o processo formal de treinamento do MBBC, inclusive no apoio


económico e emocional aos participantes que foram despejados ou cujas casas

foram incendiadas em ataques homofóbicos e ao organizarem-se em volta de um

caso de brutalidade policial contra o filho de um dos participantes. Continuamos

lá um para o outro on-line e pessoalmente, sempre que possível, marcando

aniversários, expressando condolências pelos entes queridos perdidos,


vinculando pessoas a oportunidades de crescimento e aprendizado adicional e

numa alegre celebração das realizações das pessoas. Na lista de email do MBBC,

um participante compartilhou as palavras do líder da libertação moçambicana


Samora Machel de que 'solidariedade não é um acto de caridade, mas um acto de

unidade entre aliados que lutam em terrenos diferentes em direcção aos mesmos

667
objectivos'. Na comunidade MBBC e em pleno abraço de nossas diversidades,

certamente apoiamos essa solidariedade, com um objectivo abrangente de

alcançar a 'libertação do destino'.

Notas

Os participantes vieram do Quénia, Uganda e Tanzânia.

O currículo completo, incluindo textos e contribuições adicionais dos facilitadores do MBBC e outros, está disponível online
em http://www.fahamu.org/mbbc.

Uma das facilitadoras, Happy Kinyili, da UHAI, gerou um debate sobre como o espaço activista queer frequentemente se torna
tão abertamente sexualizado, criando um fascinante jardim de perguntas que ela sem dúvida explorará mais.

Referências

Freire, Paulo (2005 [1970]) Pedagogy of the Oppressed, New York and London, The Continuum International Publishing Group

Galeano, Eduardo (1991) The Book of Embraces, New York and London Norton

hooks, bell (1994) Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom, New York and London, Routledge

Horn, Jessica (2009) ‘Through the looking glass: process and power within feminist movements’, Development, 52(2): 150–4,
Society for International Development

Lorde, Audre (1989) ‘The uses of the erotic: the erotic as power’, in Sister Outsider: Essays and Speeches, New York, The
Crossing Press Feminist

Minh-ha, Trinh T. (1989) Woman, Native, Other: Writing Postcoloniality and Feminism, Bloomington, Indian University Pres

Quashie, Kevin (2012) The Sovereignty of Quiet: Beyond Resistance in Black Culture, New Jersey, Rutgers University Press

Tutu, Desmond (1999) No Future Without Forgiveness, London, Rider

668
669
670
39 – O LUGAR MAIS FABULOSO DA TERRA – Um poema em muitas vozes

Rena

Eu vivo num mundo onde o riso é a música do dia rimos até chorarmos

sorrimos até nos tornarmos máquinas sorridentes abraçar até a alma suar

amar incondicionalmente

Eu moro no mundo onde a família é composta por todos e os amigos são todos

Eu vivo num mundo que toda palavra dita cria, restaura e ama

Eu vivo no mundo do poder da mulher, doçura da mulher, charme da mulher, as

mulheres são as sedutoras, sedutoras das mulheres

Eu vivo num mundo em que temos bebês, não os temos, casamos, não casamos,

me apaixono por minhas colegas, por homens, por mim, por mulheres e homens,

sem nenhum. Sim, eu moro num mundo queer e eu amo isso

Eu vivo num mundo onde abraçamos a diferença e eu adoro viver neste meu

mundo

671
Jessica

Contra a noite de ametista do meu mundo nós decoramos o céu, sem medo

enquanto brilhamos como vaga-lumes

a cair sobre os amantes banhados ao luar chovendo risos quando eles pisam

meu mundo é esplendor, suor e amor

enfurecido rebelde através dos corações de seu povo

Meu mundo é movimento

seu solo, sua família como raízes de uma videira sem fim

meu mundo nasce molda bebês que mudam

meninomeninameninameninomeninomeninameninomeninamenina

meu mundo não conhece ricos ou pobres único alimento, não tem fúria

apenas pássaros e batidas, o pulso colectivo de um povo espirando ...

Nicole

Eu respiro ... profundamente, profundamente em minha alma

na minha alma onde amo, onde anseio, onde reside minha paixão,

minha paixão pela África, pela minha feminilidade, pela minha liberdade,

liberdade de amar, fazer amor, fazer amor com,

672
cantar e dançar ritmos da minha alma e ver como os que estão à minha volta

admiram, seguem o exemplo,

Olhando para mim

meu corpo GRANDE e LINDO movimento, africano, único, LIBERTA-TE

meus camaradas

Eu imploro ... deixa pra lá, liberte seu espírito

Vai! Vai! Vai…

correr para o mundo onde tudo o que importa é amor, amar, segurar, abraçar,

esfregar, beijar, sentir

meu mundo é amor

Jia

Se queer é amoroso, então devo ser queer, porque amo com paixão,

devoção sem fim, loucura crescente

Neste mundo, no mundo dela, no mundo deles, no meu mundo ...

Eu fui eles e eles foram eu de várias formas como agora ... eu sou eles e eles sou

eu

673
Nós somos todos um

você é amor

Eu sou você e se é assim,

então eu devo ser amor divinamente presente, actualmente divino, queermente

divino

Se queer está amando, então eu sou queer

Jay

Eu me amo,

Eu me importo muito

toda noite eu sento lá fora e olho para o céu, Eu olho para a lua e as estrelas,

e dou graças a Deus por toda a beleza da terra.

Eu sempre relaciono tudo isso com o dia em que estarei livre

O dia em que serei eu sem que ninguém me questione quem eu sou.

O dia em que estarei livre da opressão.

O dia em que exercitarei meus direitos plenamente.

Eu sei que não posso fazer tudo,

674
mas eu posso fazer algo o caminho

eu sou

Essy

Quando ela me toca, meu coração perde uma batida,

A sensação de seu peito pressionando meu peito parece

O orvalho da manhã em meus pés, nos comunicamos olhando nos olhos uma da

outra,

Seus lábios macios e molhados são a razão de eu acordar todas as manhãs Deus

me ama, por isso a trouxe para mim,

quando estamos juntas eu estou em paz como o rio de manhã,

Como esse amor pode estar errado se o que estou sentindo está certo?

Nicholas

Algumas pessoas vão tentar me fazer sentir-se mal por ser gay

vão tentar me convencer de que sou incapaz ou inferior.

Eu não acredito nisso.

Isto é minha vida,

675
e eu posso fazer qualquer coisa eu quero fazer

Eu não tenho que seguir alguma

expectativas de quem eu deveria ser.

Nunca deixarei ninguém me convencer do contrário, e nunca estabeleça limites

para mim,

porque sou gay.

Eu posso admirar as mesmas qualidades em mim

que eu admiro em outras pessoas. Lembre-se de que sou forte, inteligente e

capaz Sou dedicado a

qualquer esforço que eu me proponho Sou gay e tenho poder

Eu posso seguir meus sonhos e dançar ao ritmo

do meu próprio coração. Eu não tenho que ir através da vida oscilando das nuvens

em vez disso, posso voar para as estrelas e reivindicar

um para o meu.

Hakima

Eu vivo no mundo onde todo corpo é um testamento à zombaria desafiadora da

conformidade,

676
é a própria deusa.

Onde nenhum corpo é ilegal

e eu me pergunto se há ouro suficiente para pagar por sua forma perfeita.

Eu vivo num mundo onde o doce choro do meu orgasmo é um chamado de

guerreiro à resistência

Onde ele / ela se torna obsoleto diante de você / eu Onde elx não podem encaixar

nós

Eu vivo num mundo onde seus olhos explodem meus instintos de mãe lutadora

pela liberdade de chorar

da boca do meu estômago

por uma alma bonita demais para este mundo. Onde nosso filho entende o poder
do amor

e tem muitas respostas para a pergunta de seu livro 'o bebê é menino ou menina?

Eu vivo num mundo onde o trabalho é valorizado sobre o capital e tudo o que

você tem é a centelha nos seus olhos

Eu moro em um mundo

onde seu poder está na poesia do seu sorriso

677
Pade

Médicos e conselheiros mentores, camaradas e amigos,

vocês são todx artistas de nascimento, combatentes e defensores de LGBTQ,

então deixe suas habilidades talentosas fluírem adiante e combinar com o mundo

cabeça corajosa

Desde que você é como a luz para todos nós, nossa brilhante Estrela do Norte

sempre suaviza nossos espíritos, e lava nossos medos,

como o anjo uma gota de lágrimas, que limpa nossas almas ...

Muhaari

Eu moro num lugar onde outros consideram uma floresta,

Eu moro num lugar onde outros se preocupam com as sombras que ganham vida,
Eu moro num lugar onde um colar colorido pode se tornar uma cobra venenosa

ou uma cobra venenosa, um colar colorido,

Eu moro num lugar onde a necessidade de outros validarem como me sinto é

inexistente, um lugar onde meu lócus interno de validação e avaliação é tudo o

que importa,

Eu moro numa utopia, sim, eu sou um ogro, cheio de mistério

678
capaz e pronto para transformar para caber sem perder minha identidade

No entanto, outros me acham feio, outros ainda me acham mau,

outros ainda ostracizam e me condenam por quem eu sou,

outros ainda me acham um desajustado, um nome impróprio, não digno de sua

aprovação, ainda vivo, amo, brinco, oro e preso, como todo mundo.

Sim, minha vida é doce e minha alegria completa, porque eu sou um ogro,

confortável na minha floresta, feliz em cuidar e compartilhar, aqui estou eu, aqui

vou ficar

não é de admirar o que os outros dizem.

Dismus

Eu vivo num mundo de mistério onde a liberdade é sentida

a religião não discrimina

não há privilégio, não há opressão empoderamento é nosso

Barbra

Eu sou. Eu sou porque,

Eu vivo, trabalho, brinco como desejo, Resiliente queer africana,

679
activa activista

Soloh

Queridos, queridos, queridos,

Como digo a todos, seja fabuloso e viva um com o outro viva em harmonia

enquanto o mundo é caótico

viva como se a liberdade fosse o próximo segundo a todos meus amigos LGBTI,

para nossos parceiros,

a todos os nossos aliados, para nossas famílias, para nossos vizinhos,

vivemos e deixamos viver porque estamos vivendo

pelos irmãos e irmãs que partiram em nosso curso, estamos vivendo para você,

para a comunidade, erga-se acima de tudo porque somos quem somos

seja atrevido, seja feroz, seja o que te faz brilhar

Pois a liberdade está a segundos de distância

bem-vindo à minha ilha LGBTI de amor e liberdade o mais fabuloso

Lugar, colocar na

terra

680
Este poema foi uma contribuição colectiva dos activistas envolvidos no Campo de

Treino de Construção de Movimento Anglófono na África Oriental, organizado

por Fahamu e UHAI e discutido por Jessica Horn no capítulo 38 deste volume

681
682
40 – ONDAS CARMESINS – FICÇÃO - Hakima Abbas

Há sangue. Por que sempre há sangue na maioridade? Lentamente, quando a

navalha corta a pele, o carmesim aparece primeiro como uma gota, depois um fio

até que um fio é uma piscina e minha cabeça fica leve. Mas eu não diria que é

desagradável. Comecei isso determinada, teimosa

você deveria saber disso sobre mim, sou muito teimosa -, mas agora estou vejo

como se minhas mãos, meu movimento, essa transformação, acontecessem com

outra pessoa. Como se eu estivesse assistindo de outro lugar. A dor se foi, minha

mente está à vontade. A determinação ainda me mantém concentrada, mas de

longe, cansada e leve. De alguma forma, me sinto velha como meus ancestrais.

Como se estivesse na água, as vistas e os sons ao meu redor são abafados. Estou

flutuando, observando e lembrando.

Lembrando que sim, porque essa foi uma jornada. E eu comecei do final, que é

realmente apenas um começo. Então, deixe-me começar pelo que todos parecem

querer saber - quem sou eu?

Bem, tenho muitos nomes, alguns mais agradáveis que outros, outros mais

verdadeiros que outros, mas aprendi a não sentir nada sobre nomes. Quem eu
sou não está em meu nome ou em um nome. Mas o mundo está determinado a

nomear e definir. De onde tiramos isso? Essa obsessão por definir. Alguns dizem

683
que o wazungu nos deu com sua 'ciência'. Que, antes de nossa subjugação, éramos

fluidos; que abraçamos a contradição e a complexidade. Mas isso soa como

palhaçada romântica para mim. Certamente o mito Avatar também é uma

construção europeia do outro primitivo. Eu ri. Seja qual for o caso, certamente

internalizamos essa necessidade de definir, julgar, normalizar, conformar e essa

é a África em que vivo. Essa é a África que quer saber o que sou. Constantemente,

a pergunta mais desagradável: o que você é? Eu ri. Como alguém pode começar

a responder a essa pergunta? O que eu sou? Aprendi a perguntar de volta. O que

você é?

Eu divago, e os pensamentos ficam nublados. De alguma forma, a leveza está se

enchendo. Pesado como uma nuvem cheia de chuva. Eu ainda flutuo, e ainda há

uma pulsação na minha cabeça. Aqui mesmo no lado direito. Uma batida rítmica
como ondas batendo na praia.

Eu sempre pensei que as ondas são tão provocadoras. Eles chegam com um

drama perfeito, com uma arrogância, uma desgraça iminente, como uma mulher

caminhando alto ou, melhor ainda, como uma trans mulher, fazendo beicinho,

uma sobrancelha levantada, cabeça baixa, mas olhando directamente para você,

balançando os quadris sob roupas justas e saltos assassinos. Assim, quando ela

chega até você, perto o suficiente para te tocar, ela sorri lentamente. É assim que
imagino as ondas, mas são provocações. Eles entram na sala, na praia,

exatamente assim. Com estilo! Com batuques batendo, com multidões

aplaudindo. E então, no clímax, assim como elas batem para provar seu poder ...
elas recuam! O que é isso?

684
Mas talvez eu esteja sendo dura com as ondas. Talvez eles sejam tímidas, afinal.

E quem sou eu para conversar? Porque eu não sou esse tipo de heroína. Eu não

sou essa mulher. Teimosa, certamente, e ousada, apenas do meu jeito. Caso

contrário, eu sou bastante comum. Aparência comum: nem belíssima, nem

bonita, nem feia o suficiente para se destacar, simplesmente. Eu me visto

normalmente - sem cores vivas, roupas apertadas ou sapatos de salto alto. Eu

simplesmente não consigo. Falo em voz baixa e cubro a boca quando rio.

Normalmente tímida.

Até o meu nome preferido é comum. Pelo menos de onde eu venho. Meu nome é
Njeri. Uma de muitas Njeri no Quénia, especialmente em Thika, onde moro, de

onde venho, onde sempre estive. A cidade é comum. Minha vida é comum. É

interessante pensar na minha vida. A única vez que realmente me senti viva foi
quando deixei as ondas tomarem conta de mim. Sem vergonha, sem vergonha,

viva.

Eu era jovem então. Eu ainda sou. Mas, na verdade, uma esperança ainda brilhava

nos meus olhos para todos que se importavam em ver. Eu tinha acabado de

terminar o ensino médio, fiquei em terceiro no distrito escolar. Meu pai teria

orgulho de mim. Só que pelo pequeno erro que me fez a única rapariga duma

escola de rapazes. Ele se recusou a entender ou até olhar para mim. Ele sempre
desviou os olhos com nojo quando entrava numa sala. Mas eu não me importava

muito. Além disso, mal vi o homem. Eu estava no internato há anos. Ele e minha

mãe nos separaram assim que entramos no ensino médio. Meus dois irmãos mais
novos estavam na mesma escola que eu e eles não pareciam se importar.

685
Ninguém realmente se importava. Fiquei sozinha, estudei e tirei boas notas. Às

vezes, um novo garoto chegava à escola e achava interessante me incomodar um

pouco. Eles me chamariam de 'shoga'. Geralmente eu apenas dou de ombros e

continuo a andar. Porque eu sabia que não era gay. Eu não sou gay Eu sou uma

rapariga que gosta de meninos, o que, no seu mundo de definições, me deixa

heterossexual, 'normal'. Mas não me incomodei em contar a eles. Eu apenas dou

de ombros. Eu acho que eles aprenderam a me ignorar ou a me tolerar porque

ficou chato. Ou pode ser porque eu tenho uma reputação após o incidente da

assembléia. Estou rindo agora, lembrando o incidente da assembléia. Eu esqueci.

Uma manhã, como todas as manhãs, nosso dormitório foi acordado pelos sons

terríveis dos monitores mais velhos batendo em panelas e frigideiras pelo

corredor para garantir que ninguém ainda estivesse dormindo. Por que acordar
em um novo dia deve ser brutal está além do meu entendimento, mas .... Enfim,

essa era uma manhã como qualquer outra. Comum, você pode chamar. Mas,

quando fui para a pia, joguei a água gelada da única torneira para 40 meninos no

meu rosto e me olhei, brevemente, fugazmente o suficiente para garantir que não

havia pasta de dente colada no rosto, mas não muito tempo, o suficiente para ver

os cabelos dolorosamente curtos e a mandíbula cinzelada que eu detestava tanto,

eu vi. Ou melhor, eu senti. Senti o crescimento persistente, mas ainda suave, do

queixo. Já era ruim o suficiente quando meu lábio superior começou a ser
coroado com penas mais grossas, mas, isso ... a propagação, como uma doença,

de folículos capilares no meu rosto. Anunciando a destruição iminente, como as

ondas. Olhei mais de perto no espelho rachado, encontrando o único ponto duas

686
por quatro no vidro onde você podia ver um reflexo e confirmei que restolho

peludo ameaçava se espalhar pelo meu queixo e pelo meu rosto. Eu quase chorei.

De pé lá. Silenciosa. Até que fui empurrada pelo próximo rapaz querendo usar a

pia. Eu respirei profundamente. Engoli em seco e afastei minhas lágrimas.

Andando nas lajes frias de volta ao meu beliche, puxando meu uniforme por cima

da cabeça. Vestindo minha gravata, perguntei a mim mesma, como todas as

manhãs, se não era ridículo uma garota estar se vestindo assim. Mas esta manhã,

minha pergunta interna não foi convincente, nem mesmo para mim mesma. Meu

coração pesado, eu segui a linha de gritos, meninos correndo em direcção ao

salão de reunião. Eu sempre me perguntei como rapazes, sem gritar, porque isso
seria contra as regras, poderiam fazer tanto barulho. Mas esta manhã eu não me

importei. Eu mal podia ouvi-los de qualquer maneira. Abafei os sons com tanto

sucesso que não ouvi as provocações. Atrás de mim, nos bancos planos que

ocupamos para enfrentar o director, um novo garoto estava sussurrando no meu

ouvido: 'Patrick é um shoga, hein, Patrick, você gosta de rapazes, hein. . "Você não

precisa mentir para mim, eu já te vi a olhar meninos no chuveiro." Suas palavras

eram apenas sons, na cacofonia de palavras ao meu redor. 'Shoga!

Então ele cuspiu. Duro, vil, sujo. Senti uma pastilha pousar directamente entre

meus ombros na espinha. Meu corpo estremeceu sutilmente. Meu queixo travou.

Suor nas palmas das mãos. Eu vi carmesim quando fechei meus olhos
gentilmente. Minha boca seca, todos os meus pensamentos haviam evaporado.

Eu me peguei rolando meus ombros e esticando minhas costas, antes de me virar


para encarar esse rapaz. Raiva. Esta foi minha primeira vez. Não seria a minha

687
última Antes mesmo que eu soubesse, eu já havia dado uma surra naquele

menino. Sua boca, lábios, nariz, quem sabe, a fonte, o fim, do sangue. Tudo o que

sei é que eu estava montado nele e mergulhei cada soco em seu rosto rindo há

não muito tempo. Cada soco pousava com um baque satisfatório. 1–2–3–4,

quantos socos, não tenho certeza. Como agora, eu estava flutuando, de longe,

assistindo a cena sangrenta. Foram necessários quatro meninos mais velhos para

me tirar dele.

Inevitavelmente, fui punida. Enlatada de facto. Mas não me importei tanto. Além

disso, acho que o director foi gentil comigo, porque nunca havia sido punida
antes e era uma boa aluna. Os cílios pousaram suavemente, a dor pálida em

comparação com as contusões latejantes das minhas mãos onde eu bati naquele

garoto. Eu nem sei o que aconteceu com ele. Ouvi que seus pais o transferiram
para outra escola depois que ele saiu do hospital. Pobre garoto, quase sinto pena

dele agora. Aposto que ele não viu isso acontecer! Eu ri.

Foi aí que aprendi a ficar quieta e passar despercebida. Onde eu chorei até dormir

toda vez que fui acordado para um novo horror neste / naquele corpo. Porque

agora é diferente, este corpo. Hoje será mais um passo. Um começo. Ah, mas eu

não contei sobre a vida, sobre as ondas.

Depois que meus resultados foram divulgados e eu estava me preparando para

entrar na universidade para estudar biologia, minha irmã mais velha, que estava

casada e grávida, me convidou para visitá-la em Kisumu. Nós sempre nos demos
bem, eu e minha irmã. Ela cuidou de mim quando eu era pequena, me

688
defendendo das outras crianças do bairro e até tanto quanto ela podia, do meu

pai. Eu passava horas no quarto dela assistindo ela e seus amigos. Foi divertido.

Para minha irmã, eu era apenas seu bebê e ainda sou. Às vezes, quando ela me

olha com amor, vejo uma tristeza em seus olhos. Não pena, porque isso seria

removido. Mas uma tristeza para nós; para o mundo, talvez. Ela pegou meu rosto

em suas mãos uma vez e me disse que eu era bonita demais para este mundo e

que deveria perdoá-los por não serem capazes de entender. Uma única lágrima

escorreu por sua bochecha. "Não deixe que eles cheguem até você, está me

ouvindo", disse ela com firmeza, reforçando seu aperto no meu queixo antes de

me soltar de repente e se afastar para enxugar os olhos. Antes que eu pudesse


responder, ela estava dizendo: 'Twende, vamos lá', me levando para fora da sala

para jantar. Eu sinto falta dela. Não é o mesmo agora que ela é casada e tem quatro

filhos. Eu ainda a visito e amo minhas sobrinhas e sobrinhos, eles se parecem

com ela. Mas um cansaço cobriu seu rosto. Ela tem "um bom emprego e um bom

marido", é o que dizem. No entanto, sua faísca foi extinta. Eu não tenho certeza

do que. Minha irmã nunca me conta sobre sua vida e seus sentimentos. Quando

pergunto, ela diz: 'Calma, você é da minha idade? Retoricamente. Então, eu calo.

Quando eu a visitei, ela estava grávida de seu primogênito. Muito grávida E ela

estava linda carregando sua barriga enorme sem graça. Ela andava pela casa, sem

sapatos, com um sutiã e um embrulho solto amarrado abaixo da cintura para


acomodar a barriga estendida se projetando firmemente como uma melancia.

Quando os visitantes chegavam, ela simplesmente vestia uma camiseta grande e

andava até a porta murmurando sobre como disse a todos que não queria visitas,

689
por que as pessoas não podiam ouvir! Então, num instante, ela sorria

educadamente para quem chegasse com presentes e boa vontade.

Eu a ouvi discutir com o marido numa noite sobre mim. Ele estava preocupado

com o modo como ela se comportou na minha frente. Ela riu alto, rouco, para ele.

Então ele gritou que era inapropriado e que ele não queria que sua esposa se

comportasse dessa maneira, ponto final! Apenas mal conseguindo rir, ouvi-a

dizer tranquilamente: “Não se preocupe com Patrick, confie em mim, ele nem

percebe, não se preocupe com Patrick.” O marido dela sempre me olhou com

desconfiança, mas não muito mais do que a maioria dos homens, então não me
importei tanto. Às vezes, quando saio com as crianças, ele resmunga, como se

desaprovasse, mas minha irmã o ignora, então eu faço o mesmo. Eu me divirto

com essas crianças. A mais velha me lembra muito minha irmã. Curiosa, quieta,
teimosa e muito inteligente. Ela é minha favorita. Mas é claro, não digo isso a eles.

Aquele mês que passei com eles foi a primeira vez que estive em Kisumu. Uma

vibração melodiosa domina a melancolia temperada que fica sutilmente no ar da

cidade, muitas vezes me impedindo de seguir. O calor pode ser insuportável,

então uma das minhas tarefas foi abanar minha irmã enorme enquanto ela

dormia ou assistia TV. Ela estava sempre reclamando do calor. ‘Está muito quente

neste lugar. Tão quente, você pensaria que o diabo havia se mudado para a porta
ao lado. Haiya, está quente. Eu ria. Eu gostava de gostar dela e do bebê em sua

barriga. Fiquei empolgada com a nova vida que ela estava levando e, em algum

lugar no fundo da minha mente, empolgada com minha nova vida: a possibilidade
de começar de novo na universidade, num lugar onde não conhecia ninguém e

690
longe de meus pais. Talvez lá eu pudesse ser eu mesma, a verdadeira eu que

desejava ser. Kisumu parecia ser o primeiro passo para essa vida e eu a abracei.

Um dia, quando eu estava comprar mantimentos para a casa, parei num quiosque

para comprar refrigerantes para minha irmã que, por alguma razão, estava

bebendo pelo menos quatro Fanta laranjas por dia. Eu dizia a ela que era ruim

para ela, mas ela não quis ouvir. No quiosque, um jovem de bicicleta subiu para

pedir um graveto de desportista. Enquanto esperava o cigarro, ele olhou para

mim. Curiosamente, mas sem a malícia que às vezes sinto. Ele apenas olhou.

Fiquei nervoso e desviei o olhar, pedindo à mulher atrás das grades de metal os
refrigerantes e levantando desajeitadamente minha bolsa para devolver as

garrafas de vidro vazias. O homem usava apenas um par de shorts cáqui na altura

do joelho. Embora esbeltos, os músculos de sua pele escura eram definidos. Todo
movimento causava uma ondulação em seus tendões e músculos, como se ele

fosse um experimento de biologia e eu estivesse observando cada estímulo criar

uma resposta. Não ousei olhar para ele, mas observei pelo canto do meu olho

quando ele acendeu o cigarro e ficou parado, respirando fundo. Eu estava ciente,

através do cheiro vertiginoso de tabaco recém queimado, de seu cheiro. Um

perfume profundo de suor do homem. Não o cheiro de garotos tão familiar nos

meus dormitórios, mas o cheiro de mofo e esmagador de um homem.

Como se ele não tivesse nenhum outro lugar para ir ou nada mais para fazer e

como se fosse perfeitamente normal ele ainda estar ali, eu podia senti-lo me

observando pegar minhas garrafas de refrigerante e pagar a mulher por trás das
grades de metal. Agradecendo em silêncio e olhando com determinação para o

691
chão, eu me afastei. Eu podia senti-lo assistindo todos os meus movimentos. Eu

me senti desajeitada e tola, consciente de todas as partes do meu corpo estranho.

Eu tinha dado apenas 12 passos, que eu tinha contado resolutamente para manter

o equilíbrio, quando ouvi o barulho de metal de sua bicicleta. À medida que o som

se aproximava, gaguejei 'Trinta e quatro, quatro e quatro', e nem sabia direito o

que eu estava contando. 'Psst', ouvi dizer. Eu nunca entendi por que os homens

chamam mulheres assim. Eu sou um gato? "Psiu", ele disse novamente, presumi

que chamasse minha atenção. Eu não me virei - teimosa, mesmo nas situações

mais tensas -, mas suavemente diminuí o ritmo até sentir o cheiro dele ao meu

lado. 'Sasa', ele disse, me cumprimentando casualmente.

"Diga", respondi. 'Pra onde vais? Casa

“Tu moras por aqui?

"Minha irmã sim, eu estou a visitar", eu disse apressadamente. Ah.

Não sabia mais o que dizer, mas não queria que a conversa terminasse. Eu ainda

não tinha tirado os olhos do chão e podia sentir gotas de suor se formando na

minha testa.

"Qual é o seu nome?", Ele perguntou.

'Por que você quer saber? Eu disse, parecendo irritada. Eu simplesmente não
sabia o que dizer.

692
"Eu estava curioso", disse ele calmamente, parecendo desanimado. Ergui os olhos

e vi pela primeira vez os gentis olhos questionadores e a expectativa hesitante em

sua testa levantada, traindo a confiança de seu corpo imponente. Eu amoleci.

Eu tenho muitos nomes. Mas ainda não encontrei um que gostei - falei baixinho.

Ele sorriu, balançando a cabeça levemente, como se entendesse.

Eu sorri de volta.

Ele tinha um pé no pedal da bicicleta e usava o outro para empurrá-lo.


Caminhamos lado a lado, silenciosamente, até que eu estava no portão da minha

irmã.

"É aqui que eu fico." 'Sawa, então, nos vemos.

'Ok, tchau', eu disse sem jeito, esperando que não fosse realmente um adeus.
Procurando algo mais a dizer, uma maneira de fazer o momento durar mais, uma

maneira de vê-lo novamente

Ele empurrou a bicicleta para a frente e colocou a outra perna por cima da sela.

"A propósito, eu tenho um nome", ele gritou de volta para mim. "É Omondi."

Eu o observei andar a distância, sua forma magra obscurecida sob o pó dourado

que ele estava levantando com sua bicicleta. Omondi.

Quando entrei em casa, exalei profundamente e percebi que estava segurando a

respiração. "O que há de errado?", Gritou minha irmã, parecendo irritada.

'Nada', eu gritei de volta. "Pegaste os refrigerantes?" "Sim, vou colocá-los no gelo".

693
"Bom, está tão quente neste lugar que estou morrendo aqui", disse ela, abanando-

se vigorosamente em um movimento fútil, como se estivesse batendo no ar duro.

'Omondi', pensei comigo mesma.

A semana seguinte foi torturante. Todo dia, toda hora, todo segundo, eu me

perguntava se o veria novamente. Fui ao quiosque mais vezes naquela semana do

que era humanamente possível. Até a mulher anônima e sem emoção por trás das

grades de metal começou a me olhar com desconfiança. Eu não sabia o que fazer.

Como eu podia encontrar esse homem? Quem era esse Omondi? Não pude
perguntar a ninguém, porque não sabia nada sobre ele e procurar um Omondi

em Kisumu, bem, é como procurar um Njeri em Thika! Fiquei louca ao invocar

cenários sobre quando o veria em seguida, o que diria, como me comportaria, até
o que vestiria! Mas não havia sinal dele em lugar algum. E comecei a me perguntar

por que queria ver esse homem novamente. Eu nem o conhecia e, pelo que sabia,

ele poderia ser um assassino psicótico. Mas então me lembrei daqueles olhos. E

eu sabia que tudo que eu queria era ser encarado assim novamente. Ser envolvida

naquele corpo frio e sem compromisso e mantida fechada naqueles olhos gentis

me dizendo pela primeira vez por um homem adulto que sou visível e digna de

ternura. Seus olhos eram promissores.

E, como digo agora, meu eu pessimista se pergunta como isso é possível, num

olhar de um estranho de 21 anos em Kisumu. Mas eu sabia então que era assim

que eu sentia. O leve cheiro de lago em seus cabelos e roupas lhe dava uma
paisagem permanente. Como um cenário, um cenário. E é claro, como todo amor,

694
eu também dei o tema de uma música para ele. Mas estou pulando em frente. Eu

finalmente o vi novamente. Uma semana depois, ele bateu na porta da minha

irmã. De alguma forma, quando eu ouvi o barulho grosseiro na porta, eu sabia

que era ele. Meu coração pulou quando eu estava em cima da pia onde eu lavava

pratos. Ouvi minha irmã murmurando para si mesma enquanto caminhava

pesadamente para a porta. Então ouvi a voz dele, insegura: ‘Olá, senhora. Eu

estava pensando se há alguém que mora aqui. Minha idade? Veja eu não tenho o

nome, mas nos conhecemos na semana passada. Hum Minha irmã ficou lá

olhando para ele, franzindo a testa com as sobrancelhas e os lábios. Cabeça

inclinada como se estivesse confusa. Observando- o com curiosidade, mas


irritada, suas mãos akimbo. Saí da cozinha limpando as mãos ensaboadas na calça

jeans. "Tudo bem, Chico, é para mim." E parei na frente dela para protegê-lo de

seu olhar. Fechei a porta atrás de mim, com ela ainda de pé, agora também

olhando para mim incrédula, mas sem dizer nada. Depois de um segundo, eu a

ouvi murmurando novamente, desta vez quase como uma risadinha, respirando

pesadamente enquanto ela carregava seu peso de volta para dentro.

'Oi', eu disse.

"Oi", ele disse. "Obrigado por me resgatar, estou tão feliz que você mora aqui, eu

não tinha ideia do que eu diria!", Ele soltou um suspiro, como se ele também
estivesse prendendo a respiração desde a última vez que nos vimos.

Ele riu profundamente, uma mistura de diversão, nervos e alívio. Eu ri com ele
quando nos sentamos nos degraus da casa. De repente, foi tão fácil.

695
Conversamos, rimos, brincamos e brincamos. Bem, ele me provocou, não posso

dizer que realmente o provoquei. E ficamos ali sentados pelo que pareceram

horas até o céu ficar laranja e os mosquitos se revezando a chupar minha carne.

"Eu devo ir", ele disse suavemente, olhando para mim com perspicácia. Ele

colocou a mão no meu joelho e olhou em frente como se o horizonte pudesse

conter uma resposta. 'Eu gostaria de ver você novamente.

'Eu também.

'Posso levá-la no meu barco? 'Quando?

'Amanhã?

Eu gostaria disso.

Nós rimos.

No dia seguinte, esperei aquele baque na nossa porta da frente. Minha irmã não

disse nada sobre o meu visitante. Ela tinha acabado de olhar para mim com um

meio sorriso nos lábios e uma pergunta nos olhos durante o jantar. Evitei o olhar

dela, mas sabia que meu meio sorriso respondeu ao dela com todas as respostas

que ela precisava. Então, quando o barulho finalmente ressoou por toda a casa

no dia seguinte, eu a ouvi rir livremente antes de gritar: 'Seu amigo está aqui',

caminhando até a porta.

Saí do banheiro onde estava escovando os dentes pela quinta vez naquele dia e a

ouvi perguntando: 'Então, você tem um nome, jovem?

696
"Sim, senhora, meu nome é Omondi", disse ele, olhando para os pés.

Mais uma vez, minha irmã riu uma risada total e desenfreada, olhando Omondi

de cima a baixo. 'Oi', eu disse parado na porta.

Minha irmã colocou a mão no meu ombro e olhou directamente nos meus olhos,

novamente com essa pergunta. Eu olhei para ela como se não soubesse o que ela

estava perguntando. "O quê?" Ela sorriu. 'Nada. Divirta-se. 'E então, como se

lembrando de algo profundo, subitamente preocupado. "Ah, mas ..." ela disse.

E então voltei para casa, pedindo para eu seguir. "Omondi, sente-se, preciso falar

com Patrick."

Omondi sorriu ao ouvir esse nome pela primeira vez. Eu me encolhi, querendo

interromper, para dizer: ‘Mas não, isso não é quem eu sou. Patrick não é o meu

nome. Em vez disso, fui levado à cozinha por minha irmã.

"Patrick", ela disse severamente. "Sim, Chico."

‘OK, não sei como ter essa conversa. E eu definitivamente não achei que teria que

fazê-lo agora e com pressa como esta. Mas de qualquer maneira, olhe. Você

conhece o trabalho que faço. Eu digo o que vejo.

Eu me encolhi, de repente percebendo o que ela estava prestes a falar comigo. E


ficou em silêncio esperando que ela não o fizesse.

"Então, Patrick, você sabe como estar seguro?" Ela disse com naturalidade. "Hmm,
sim", eu disse, embora não tivesse certeza.

697
"E você tem o equipamento?"

'Hmm, não', eu disse envergonhada. "Mas, de qualquer maneira, por que você está

me perguntando isso agora, Chico, do que você está falando?" Perguntei,

tentando desviar a conversa.

"Patrick", ela disse, olhando-me morta nos olhos. 'Eu não sou burra e isso é

importante. Eu quero que me escutes. Nada, quero dizer, nada acontece sem

estar seguro. Estas a ouvir-me? - ela disse com firmeza, colocando algo no meu

bolso de trás. "Isso é vida e morte, Patrick, e tu és o meu bebê."

'Ok Chico', eu disse, chocado com a insistência dela. 'ESTÁ BEM. 'Promessa?

'Promessa.

Ela soltou um profundo suspiro de alívio. 'Ok, agora vá, seu amigo te espera', disse
ela, recostando-se no balcão. ‘Lembre-se do que eu disse, Patrick. Sempre - ela

disse, com a cabeça inclinada para a frente, como se estivesse recitando um

mantra, uma oração.

Meu coração estava pesado. Eu não sabia se eram os avisos da minha irmã ou o

facto de que de repente eu estava ciente da possibilidade de sexo. Eu nem sabia

se era possível. Como poderíamos fazer isso? Na minha cabeça, minhas fantasias,

bem, era como nos filmes - um homem bonito, eu sou uma garota bonita, uma
coisa leva apaixonadamente a outra, tão simples quanto parecia. Essa

possibilidade era nova para mim. Confusa, de repente entrei em pânico. E se ele

não soubesse que eu, bem, que eu tinha o corpo de um menino. Claro que ele

698
sabia, todo mundo sabia, certo? Então eu percebi que estava sendo boba. Ele era

um homem, é claro, ele não queria fazer sexo comigo, ele pensava que eu também

era um homem, não é? Eu ainda não tinha dito a ele que não era, então ele

provavelmente assumiu, certo? Então, nós íamos sair. Como amigos. No barco

dele Puxa, Chico é tão louca, por que ela me assustou assim?

E foi isso que fizemos, Nós remamos no barco dele. Bem, ele remava, eu me sentei

no barco com minhas mãos entre os joelhos. Eu me ofereci para ajudar, mas,

piscando, ele disse que não era um trabalho para mim. Eu sorri silenciosamente,

olhando para a água. Observar e sentir as ondas nos levam adiante com cada
curvatura de seus antebraços. Agora parecia que o estímulo e a resposta de seu

corpo se estendiam aos remos, à água, às ondas, ao barco, tudo como um.

Rítmico, batendo. Quando alcançamos o que parecia ser o centro da terra, ou


pelo menos o centro do lago, Omondi parou de remar. Ele colocou os remos no

barco e colocou um cobertor no fundo, fazendo um sinal para eu me sentar.

Sentamos, conversamos e rimos, deixando o barco nos balançar de um lado para

o outro, de lugar nenhum e de outro lugar. Não sabia por que estava tão

confortável, mas era delicioso me sentir perdido, longe das realidades da costa.

Eu estava ciente de seu corpo, seu cheiro, seu suor, os toques delicados entre nós.

Eu estava ciente de sua respiração perto o suficiente para eu senti-lo rir. Ciente

de seus dedos tocando os meus. Ciente da brisa carregando nossos risos e


mudando a distância entre nós. Nós conversamos sobre nada e tudo. E nada mais

importava. Então, em um silêncio reconfortante, vendo as nuvens se moverem

rapidamente nos céus em mudança, ele me puxou suavemente em sua direcção.

699
Deitei debaixo dele enquanto ele olhava interrogativamente com aqueles olhos

negros hesitantes nos meus. E, como se encontrasse uma verdade, ele sorriu e

aproximou os lábios para tocar os meus. Fechei os olhos. Era aqui que eu queria

estar. Neste momento, neste tempo, este era o fim e o começo. Gentilmente, ele

beijou meu rosto, meu pescoço, minha boca e eu afundei nele, ciente da

protuberância crescente em seus shorts.

Suas mãos começaram a procurar meu corpo com uma urgência grosseira que

mudou abruptamente os ritmos em minha alma. Sua mudança de ritmo me

abalou com a intensidade de estar perdida em seu perfume, toque e energia. Abri
os olhos e procurei o rosto dele, mas ele estava muito ocupado procurando os

botões da minha calça. Sentindo-me observando-o interrogativamente, ele olhou

para cima e sorriu. Um sorriso superficial, fugaz e pouco agradável. Eu assisti


enquanto ele puxava minha calça para baixo dos meus joelhos, enquanto ele

desabotoava o short. Eu assisti enquanto ele me beijava, apressadamente, antes

de procurar sua entrada. Sua mão acariciando meu peito era o único sinal do

toque que me trouxe aqui. E então ele me puxou para perto num impulso lento,

a dor disparando pela minha espinha atingindo a ponta da minha cabeça. Prendi

a respiração novamente, imobilizada. Então senti a umidade, o sangue. E,

lentamente, seu aperto diminuiu, ele entrou e saiu, acelerando o ritmo, entrando

e saindo, a dor ofuscando, mas ainda suportável. Confusa, tentei


desajeitadamente recuperar o movimento dele, facilitar o toque dele. Até acabar.

Nós deitamos lá no fundo do barco dele. Seu braço e perna frouxamente se


lançaram sobre mim, quando ele caiu no sono, aparentemente satisfeito. Minha

700
mente estava em branco. O movimento da água embalando minha alma. Parte de

mim queria chorar, parte de mim queria rir. Eu queria abraçá-lo e ao mesmo

tempo fui repelida por seu corpo pesado. Então, abrindo meus olhos de repente,

como se tivesse sido atingida por uma epifania, me virei para beijá-lo. Eu

encontrei a resposta. Eu beijei seus lábios, sua bochecha, seu pescoço, sua orelha.

Beijei seus olhos e sua boca, acordando-o de seu sono. Passei minhas mãos e

dedos sobre os músculos de seus braços, costas, pescoço. Lentamente,

gentilmente, ele se levantou. Abrindo sua boca na minha, mesclando-se ao meu

toque, imitando os golpes no meu corpo. Nossos corpos afundando nos

movimentos um do outro até encontrarmos o nosso ritmo. E então eu o segurei


para mim, lembrando pela primeira vez o alerta da minha irmã. Tarde demais.

Muito tarde. Mas ainda assim, desta vez eu queria fazer o certo. Despindo e

bloqueando os olhos com os dele, tirei a camisinha do bolso, encontrando

desajeitadamente uma maneira de abri-la com uma mão. Nós rimos e lá

encontrei os olhos que eu ansiava. Ele olhou para mim como se pudesse me ver

inteira e me encontrou com aceitação, calor e desejo. "Deixe-me", ele disse

pegando o pacote e envolvendo o preservativo sobre o pênis com um movimento

experiente. Eu ri de novo, sem saber o que faria, mas me diverti com minha

própria inaptidão. Ele então levantou minha camisa e circulou meus mamilos

com a língua. Eu podia ver seu pulsar ficando mais forte e grosso, e afundei na

minha própria felicidade. Ele começou a me despir e, subitamente consciente de


si mesmo, eu parei sua mão. "Está tudo bem", disse ele, virando-me lentamente

para o lado. Eu deixei ele me conhecer. E a dor era suportável, o toque suave, seus

701
beijos quentes, meu corpo relaxando em seu ritmo que lentamente subiu para

um rugido. Nossas águas se fundiram, suas ondas batendo contra a minha costa.

Sem vergonha, sem vacilar, sem vergonha. Nós rimos.

Enquanto nos deitávamos, eu me perguntava: ele experimentou isso como eu?

Ele lembraria como eu? "Devemos ir, está escurecendo", ele disse, me beijando

levemente, fugazmente. Vestindo suas roupas e me entregando as minhas, eu

assisti esse garoto, pensando em silêncio.

"Vejo-te em breve", disse ele, quando chegamos à casa da minha irmã. E a


constatação de que nunca mais veria Omondi tomou conta de mim com tristeza

retumbante. Eu o beijei, bem ali na porta da minha irmã, e soltei um sorriso antes

de dizer: 'Obrigado'. Ele sorriu de volta, tocando meu cabelo com a ponta dos
dedos. E, lá, eu vi a pesada tristeza em seu rosto, como se a realização se

desenrolasse sobre seu espírito também. Nós ficamos lá. Presos pelo inatingível.

Não foi possível congelar o tempo. Nós ficamos lá. Nossos dedos se encontram

um pouco como se por acidente.

Às vezes me pergunto sobre as possibilidades, de mim para mim de amor à

companhia de conexão, se tudo fosse diferente. Uma utopia onde eu posso ser

totalmente abraçada e abraçar. É um exercício fútil. Minha luz está extinta há


muito tempo. Eu nem tenho certeza de que reconheceria o ser daquele tempo,

aquela alma, se ela flutuasse diante de mim agora. Faz apenas seis anos desde

Kisumu. Minha irmã se mudou depois que Kathambi nasceu. Eu nunca voltei. Mas

702
eu posso, às vezes cheirar o lago no ar, de repente no meio de uma conversa, ou

esperando um matatu na cidade e eu sorrio em algum lugar lá dentro.

E agora. Enquanto faço meu sétimo círculo. À medida que meu corpo enfraquece,

minha visão fica embaçada e meus olhos se fecham, sinto o cheiro do lago à

distância, ouço as ondas batendo cada vez mais perto e sei que, se eu alcançar o

tempo suficiente, tocarei nelas.

703
704
41 – CONVERSAS AFRICANAS SOBRE IDENTIDADE E CLASSIFICAÇÕES
DO CID

Esta conversa começou após encaminhar-se uma declaração de um consultor da

Organização Mundial da Saúde (OMS) num servidor de lista de discussão que

incluía o seguinte sobre transexualismo e a Classificação Internacional de


Doenças (CID): 'Uma terceira função da OMS é estabelecer e revisar, conforme

necessário, nomenclaturas internacionais de doenças. […] A 11ª versão do CID

está programada para ser apresentada à Assembleia Mundial da Saúde (Corpo


Governante da OMS) em Maio de 2015. Embora a homossexualidade não esteja

mais incluída, outras questões que podem nos interessar permanecem, como o

transexualismo como um distúrbio mental. Como podemos garantir que


atendamos às necessidades de saúde das populações trans, sem estigmatizá-las?

Espero que as pessoas transgénero e o movimento trans possam nos ajudar a

enfrentar este desafio, invocando o principal princípio de participação em


direitos humanos - “nada para nós sem nós”. ‘Uma conversa por e-mail ocorreu

entre camaradas de diversas identidades na África Oriental sobre identidade de


género e Classificação do CDI…

Audrey

Bom Dia a todx,

705
A Educação e Advocacia Transgénero (TEA) enviará uma carta solicitando à OMS

que retenha o transexualismo na classificação do CID. O TEA não vê nenhum

motivo para removê-lo do ICD ou DSM-V.¹

Além disso, o TEA vê aqui uma tendência de homossexualização: a questão actual

é remover o transexualismo como um distúrbio mental (a classificação da

homossexualidade como um distúrbio mental foi removida em 1990). E daí que a

homossexualidade foi removida do CID e do DSM? Há uma diferença entre

homossexualidade e transexualismo. Não existe nenhum relacionamento e é

rude associar essas duas questões.

A propósito, remover do ICD para quê? Que alternativa vocês propõem se ter?

Fico feliz que alguns grupos estejam falando de tê-lo como uma condição médica,
o que é bom para alguns de nós, mas detestamos a maneira como a LGB cisgénero

lidam com esse assunto: remover o transexualismo do CID e do DSM porque a

homossexualidade foi removida. Quero passar essas informações com amizade:

não saltem para os nossos problemas casualmente, para que pareçam estar a

trabalhar nos problemas de T.

Ajudem a estender a mão a algumas pessoas e organizações para que elas vejam

a sensação de respeitar o espaço T. Se a comunidade LGB quiser ajudar, deixem-


nos seguir nossa liderança, mas não atuem como porta-vozes num assunto tão

sensível como esse. Não conseguimos obter serviços médicos adequados para a

transição de género e, em seguida, encontra-se pessoas descartando o único


diagnóstico que temos para obter o pouco que temos?

706
Penso que a melhor maneira de lidar com o estigma relacionado a transtornos

mentais é educar a sociedade sobre transtornos mentais, e não apagando os

transtornos mentais da CID-10 ou DSM-

IV. Por que não deixar esse assunto para pessoas trans - nós temos nossa própria

coisa e esse tipo de coisa.

Audrey - T36.000

Hakima

Querida mana,

Concordo plenamente contigo em torno do estigma com transtorno mental.

E eu gostaria de sugerir outra maneira de ver as coisas, se não o mundo. Na minha


visão de mundo, não há binários. Não acredito que a forma (por exemplo, sexo,

sexualidade etc.) ou o conteúdo (por exemplo, como eles se manifestam

fisicamente, espiritualmente, intelectualmente etc.) de nossos seres sejam

lineares, binários ou capazes de serem categorizados de maneira ordenada (sei

que você é cientista então não vai gostar disso). Acho que o erro que cometemos

é tentar criar esses binários para entender o mundo.

E fazemos isso mesmo no nosso movimento: por exemplo Eu sou homem ou

mulher ou trans, ou intersexo. Sinto que meu género, expressão de género,

desempenho de género e identidade de género são todos muito mais complexos

707
do que aquilo que entendemos por género ou sexo ou a interação entre os dois,

por exemplo. os papéis que eu desempenhei na minha família, na rua, nos lençóis,

como meu corpo funciona, como não funciona, o que é esperado de mim, o que

eu cumpro, como eu me comporto, etc., e eu não acredito que outras duas

pessoas com identidades de género categorizadas semelhantes têm as mesmas

coisas a acontecer (fisicamente, espiritualmente ou por socialização). Na verdade,

acho que o mito biológico dos binários do sexo é desintegrado pelos povos

intersexo - que novamente o mundo dominante tenta categorizar (até a palavra

'inter' implica entre duas coisas) - mas que ocupam um espaço físico de

resistência contra essas categorizações.

Eu sei que você não se importa com essa parte, mana, mas o mesmo é verdade,

na minha opinião, sobre sexualidade. Há muitas coisas que nos movem


sexualmente e há muitas maneiras de expressar nossa sexualidade que podem

ou não ter nada a ver com o que fazemos na cama com nós mesmos, com um ou

mais parceiros. Tentamos dizer que somos heterossexuais, gays e lésbicas para

evitar a luta boa (mas muito mais complicada) de dizer que a sexualidade é plural.

Eu não acho que homens que se dizem gays são excitados apenas por outros

homens, ou que lésbicas não fazem sexo com homens trans ou que uma lésbica

dourada não pode desejar um homem gay etc.

Essa complexidade / pluralidade de género, sexo, sexualidade, identidade (assim

como muitas outras categorias do mundo - algumas das quais luto mais para ver

dessa maneira) é uma posição política que pode nos permitir combater a boa/
complexa luta como, o que eu chamaria de queers.

708
"A política queer é anti-assimilacionalista, inclusiva e diversificada". "O queer não

é visto como uma maneira única de ser, mas como uma posição dissidente com

grande respeito e espaço para a diferença".

Como você verá, portanto, a partir desse ponto de vista, as ideias de desordem

de identidade de género (ou disforia de género) categorizadas para pessoas trans

ou, como acabei de ver nalgum lugar, desordem congênita (como sugerido para

pessoas intersexo como uma 'desordem' física) ) não fazem muito sentido. Não

creio que 1) esses sejam distúrbios ou 2) que haja pessoas cisgénero (quando

decido que minha identidade 'coincide' com o que se espera de meu


comportamento ou função?).

Novamente, a rota mais complexa para a advocacia pode não ser a que
escolhemos, mas talvez para criar o mundo que procuramos, a longo prazo seria

melhor. Ou talvez eu esteja fora do comum e possamos continuar trabalhando da

mesma estrutura do TIBLG! Porque, irmã, entendo que digo isso da posição

privilegiada de não ter minhas escolhas de género oprimidas diariamente e,

como sugeres, eu sempre assumiria a liderança do povo trans enquanto ando em

solidariedade. E isso não quer dizer que você e outras pessoas trans não sofram

diariamente as opressões deste mundo binário e, às vezes, enquanto lutamos,

devemos lutar dentro da estrutura / binários existentes para desmontá-la (por


exemplo, no que diz respeito à raça, eu só entendo esta abordagem). Além disso,

no espírito de minha posição anarquista política africana queer, valorizo nossa

pluralidade de opiniões, por isso espero que minha partilha tenha sido útil para
fazer fluir os sucos da mente e que possamos continuar discutindo.

709
Hakima

Barbra

Olá a todx,

Eu pensei nessa conversa quando estava ia trabalhar hoje. Me desculpem se eu

pular para cima e para baixo em meus pensamentos.

Quando descobri que era trans, foi como um momento de luz. Disseram-me todo

tipo de coisas, e principalmente me disseram que eu era gay (ou naquela época:

homo). Eu sabia claramente que não era isso, mesmo desde tenra idade de 12

anos. Para mim, quando soube que havia uma causa diagnosticada para minha
'dor', foi um momento de 'Aha'. Eu tinha algo para contar às pessoas e não estava

só, não estava imaginando coisas.

Acho que essa discussão é sensível porque, por um lado, sabemos (presumo) que

alívio deve ser ouvir alguém lhe dizer que o que você está passar não é seu próprio

feito, que na verdade é uma 'desordem' documentada. Mas, novamente, a

denominação de desordem traz tantas outras questões de ‘Estou louco? O que as

pessoas vão pensar? 'E assim por diante.

Embora a causa da remoção do GID / GD do DSM-V ou ICD-10 pareça boa,

pergunto-me o que as pessoas realmente trans sentem. Sinceramente, não tenho

certeza. Não me trataram como um caso mental e não sofri um colapso ou

depressão mental significativa ou o que se tem devido à minha 'disforia'. No

710
entanto, sendo eu e sendo 'diagnosticada como tendo GD', consegui ter acesso a

hormônios, cirurgia e terapia.

Comparar o transexualismo à homossexualidade não pode acontecer. Os

homossexuais não precisam de hormônios ou cirurgia para serem verdadeiros.

Para um amar outro, não precisam de um médico que lhe dê injeções ou

modifique partes do seu corpo. No entanto, para um transexual ser quem

realmente é, são coisas realmente tangíveis de que se precisa. Às vezes, vejo

realmente por que trans e intersex se correlacionam: porque para essas pessoas

não é apenas 'eu amo essa pessoa, sou atraído por essa pessoa', é uma coisa física,
mental e social. Muito tangível! É assim que eu vejo. E é por isso que hesito em

participar da campanha 'Stop Trans Patologisation'. Porque não os vejo a

responderem a essas perguntas.

Não quero ser tratado como um caso mental, quero ser tratado como uma pessoa

que precisa de certos cuidados médicos específicos para mim e para minha

condição.

Mas eu posso ser corrigido. Barbra

Seu silêncio não irá lhe proteger ~ Audre Lorde

Julius

Olá a todx,

711
Eu eco alguns dos pensamentos que Barbra expressou. Na minha opinião, é

necessário reflectir profundamente ao considerar as necessidades individuais

em relação às necessidades coletivas. Frequentemente, pessoas diferentes que

podem se identificar com uma situação comum sentirão diferentemente a

situação e terão até abordagens diferentes para a situação. A questão crítica para

mim é: o indivíduo tem o direito de fazer escolhas e adoptar abordagens que

atendam às suas necessidades percebidas e lhes proporcionem o resultado

desejado?

Aproximando meus pensamentos da conversa em questão, eu hesitaria muito em


levantar a bandeira 'Parem a patologização' sem ter certeza de quais são as

implicações para todos os outros que podem não estar no mesmo espaço político

e socioeconómico que eu. sou. Para mim, a palavra "desordem" em si não seria
um problema, mas como é usada, e se o seu uso pode dar a pessoas como eu

acesso aos cuidados de saúde e intervenções médicas de que necessitam.

Correndo o risco de parecer patológico, ouso dizer que na verdade existe algo

'não muito certo' ou que 'não está em ordem' com ou a maneira como nossos

corpos foram formados no útero (no caso de indivíduos intersexo), ou a maneira

como eles acabaram sendo (masculino / feminino, no caso de indivíduos trans).

Como alguém escolhe dizer que o resultado do corpo "não está certo" é
praticamente uma questão pessoal, dependendo das necessidades do indivíduo.

No entanto, quando falamos de exames médicos, cirurgias, terapia de reposição

hormonal (que em muitos casos é vitalícia e requer monitoramento contínuo da


saúde) e possíveis riscos à saúde, pode ser bastante impraticável supor que

712
iremos interagir apenas com os médicos que se sentem à vontade para modificar

um corpo que foi diagnosticado como sem anomalia. Portanto, é de alguma forma

uma situação Catch 22.

Um distúrbio de desenvolvimento de género ou sexo certamente NÃO é uma

doença ou doença mental. É simplesmente isso - uma condição de 'corpo' que

exibe algo 'não muito ORDENADO' para o indivíduo que lida com isso e requer

alguma intervenção médica para NÃO 'corrigi-lo' por si só, mas torná-lo 'certo'

para o indivíduo em causa. Sendo realista comigo mesmo, essa percepção abre

mais portas do que fecha - mesmo no que diz respeito à autodeterminação e


estima. Digo isso porque se digo que não há nada FORA DE ORDEM, então tenho

perguntas subsequentes que me assombram, como por que não possuo o corpo

que corresponde a quem eu acredito que sou - como diabos eu recebi esse tipo
de corpo, que eu odeio com paixão? De onde vieram esses seios, que não

deveriam estar lá e que eu odeio tanto? Por que eu deixo essa barba crescer

quando deveria e quero ter um rosto 'feminino' suave, etc.?

Como Barbra, eu permaneço aberto aos pensamentos de outras pessoas, mas

esse é o valor de meus dois centavos na conversa.

Calorosamente, Julius

Guillit

Olá a todx,

713
Eu realmente não sei por onde começar com a coisa do 'transtorno mental'.

Primeiro, não permaneço corrigido, mas aceito e respeito as opiniões das

pessoas. Concordo com Barbra e Júlio. NADA ESTÁ FORA DE ORDEM, ponto final.

Quero partilhar uma história que mostra como acredito que algo está errado com

a sociedade, não connosco como TI [pessoas intersexo e trans]. Eu testemunhei

a discriminação e o estigma mais cruéis em 21 de Março de 2012. Estou

escrevendo uma história sobre isso e espero que todos vocês nesta lista tenham

algumas ideias sobre o próximo passo e como ajudar essa pessoa a sair dessa vida

toda de humilhação.

Testemunhei como as pessoas cisgénero podem estigmatizar alguém com

silêncio e discriminação com uma mentalidade capitalista. Eric é uma pessoa

intersexo com quem eu sofri recentemente algumas das discriminações de


género que ele enfrentou a vida toda. Só experimentei por um dia, mas já estava

traumatizado. Não consigo imaginar como ele sobreviveu com isso a vida toda.

Depois da minha observação, acho que alguns dos irmãos de Eric podem ser gays

e isso é assustador para eles, e os faz reagirem com raiva e ignorância.

Nada está errado com Eric; ele nasceu bem com genitais únicos. No entanto, sua

singularidade genital fez sua família e vizinhos tentarem matá-lo mais de uma

vez, espancá-lo e denunciá-lo à polícia toda vez que ele fala com mulheres
porque ele não está assumindo o papel que elas acreditam que ele deveria

desempenhar. A comunidade se voltou contra ele, crianças em idade escolar o

ridicularizam em sua região, questionando quem ele é enquanto o analisam da

714
cabeça aos pés. Essa é a magnitude da ignorância e da sociedade que molestam

as pessoas TI.

Eu também experimentei algumas dessas coisas, mas não nessa extensão. Foi

difícil para mim me amar completamente no começo por causa do jeito que

costumava me sentir. Conhecendo o homem D, me pergunto por que Ele deixou

coisas assim acontecerem comigo. As pessoas religiosas não entendem que ser

trans não tem nada a ver com o que está escrito na Bíblia - inferno, nem está na

Bíblia! Ciência e medicina me classificam como tendo um 'transtorno mental'.

As pessoas cisgénero não sabem e nunca experimentarão seu corpo e mente sem

coordenar. Portanto, como eles não entendem as pessoas TI, o próximo passo

fácil é chamar de "transtorno mental". Vamos começar por aí - aaaha! - e use a


pesquisa para julgar as pessoas por quem elas são. Eles esqueceram de perguntar

às pessoas TI como elas se sentem e se relacionam com suas normas sociais de

merda, e se elas querem se encaixar. De qualquer maneira, quem é normal? Quais

critérios tornam um normal?

Isso pode parecer patológico, mas não é. Eu tenho que cortar 'transtorno mental'

do DSM-V e da CID-10, e até dos pensamentos e ideias das pessoas de classificar

e rotular as pessoas sem o seu consentimento. Eu sei que sou tão queer como elx
vem, se é que viemos num pacote com uma fita vermelha. Se as pessoas cisgénero

devem me identificar, que coloquem um adesivo em mim, sou eu, trans homem

e parte das categorias de minorias sexuais e de género. Cuidados de saúde são


meu direito. Não preciso aceitar o rótulo de outra pessoa para acessá-los.

715
Classificação, não preciso estar em laboratórios de pesquisa para me rotular de

acordo com os resultados finais. Por que sentimos a necessidade de ajustar tudo

neste mundo às recomendações científicas, esquecendo que a natureza e o tempo

mudam-nos constantemente? A sociedade não adopta nenhuma mudança sem

categorizar e dar um nome a ela! Apenas para que possa ser arquivado e acedido

para que todos se ajustem às suas normas sociais egoístas e papéis patriarcais.

A UP² trabalha com uma assistente social em um hospital em Kayole. Oferece às

pessoas TI da organização UP refúgio na procura de serviços médicos em

particular, evitando assim o estigma e o julgamento dos médicos nas salas de


exames. As pessoas que ministram treinamentos nos cursos de médicos,

enfermeiros e assistência social devem adicionar género ao currículo para

sensibilizar os campos médicos sobre as pessoas TI. E devemos ter pósteres em


instituições farmacêuticas, dizendo: 'Não é um tabu nascer ambíguo, seja na

mente ou no corpo. Ser intersexo ou transgénero não é uma doença, mas uma

condição. "

Concordo com Hakima que o género é fluido e você pode e deve ser o que quiser,

sem rótulos. Mas isso é a realidade? A autodefinição e a fluidez acontecem, com

estigmas visíveis roçando uns contra os outros durante actividades ou eventos?

A maioria de nós, mesmo trans e intersexo, ainda tenta se encaixar nas categorias
de 'homem' e 'mulher', 'hétero' e 'gay' e outros binários. Precisamos expandir

nosso próprio entendimento e opções para diferentes maneiras de identificar e

definir a nós mesmos.

716
Terminarei mencionando que minhas emoções, pensamentos, acções e fazer

escolhas informadas são o que me fazem Guillit, e mudar meu nome não tem

nada a ver com isso. Pense bem, por que a sociedade e suas normas patriarcais

têm nomes de género? Mas sinto a necessidade e posso me relacionar com o

nome que escolhi para mim, não como os nomes impostos ou dados nos quais

me forço a me encaixar como qualquer outra coisa, incluindo as classificações

DSM e ICD.

Vou projetar como viver e qual é o melhor para mim e fazer parte de trazer

mudanças positivas, quer me beneficie pessoalmente ou a outra pessoa. Não será


fácil, mas estarei na luta positiva pela livre escolha, para me amar e tornar a vida

habitável para mim e para outras pessoas para as quais o mundo não foi

projetado. A ciência e o homem-D podem discordar, mas ainda assim construirei


minha vida para me adequar; tempo e morte são os únicos limites que tenho,

embora o homem esteja lutando para parar meus sonhos. Só podemos trazer à

vida nossas diferenças, aprender um com o outro e construir um ao outro sem

nos despedaçarmos.

Solidariedade, Guillit

Notas

O DSM-V é a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, compilado pela Associação Americana
de Psiquiatria (APA), a ser publicada em Maio de 2013. Substitui o DSM-IV, publicado em 2000.

717
Ushirikiano Panda (UP) é uma organização queniana cuja missão é criar espaços seguros e aumentar o bem-estar das pessoas
intersexuais e transgéneros (IT) no Quénia. O grupo é liderado pelo próprio pessoal de TI e se esforça para desenvolver um
país no qual todos os cidadãos sejam livres para determinar e expressar seu próprio género. Desde essa conversa, a UP mudou
seu nome para Jinsiangu, que vem das palavras em kiswahili jinsia yangu, que significam 'meu género'.

718
719
42 – LEMBRA-TE DE MIM QUANDO EU ME FOR – Busisiwe Sigasa

Busisiwe Sigasa (23 de Dezembro de 1981 a 12 de Março de 2007)

Em Abril de 2006, Busi foi estuprada por um jovem perto de sua casa. Alguns

meses depois, ela descobriu que era seropositiva. Busi já sofria de diabetes e,

embora estivesse a receber ARVs, nunca estava muito bem e muitas vezes lutava

por seus dias. Ela não apenas teve que aceitar ser estuprada e seropositiva, mas

teve que viver vendo seu estuprador andar pelas ruas e até se deparar com ele na
clínica de HIV. Em 12 de Março de 2007, Busi, que tentava trabalhar alguns dias

por semana, voltou para casa e imediatamente foi dormir no seu quarto. Poucas

horas depois, sua mãe apareceu e a acordou para tomar seu remédio para

diabéticos. Busi disse que estava tudo bem, mas ela deve ter adormecido e a partir

daí nunca mais acordou. Este é um dos muitos poemas que ela escreveu e

compartilhou antes de morrer, e foi retirado de seu blog:

http://latifah.wordpress.com/.

Escrevi histórias para as nações lerem

720
Parei sem medo e contei a minha história

Eu sorri e cumprimentei sem julgar

Eu influenciei positivamente os doentes

Eu plantei sementes de esperança para os desesperados

Eu arranjei e enfeitei os mais novos cujos pais morreram

Criei desenhos artísticos com as mãos

Criei e desenhei lindas imagens

Eu instalei o raciocínio educacional em alguns

Eu ensinei representar a minoria para a maioria

Eu conscientizei nações

Eu prejudiquei alguns e fiz alguns felizes

Eu sobrevivi contra as probabilidades

Engoli minha medicação apesar de quão duro quanto às vezes

Fiz isso para permanecer forte e viver minha vida, independentemente do meu
status

Eu lutei para que as mulheres fossem levadas em consideração seriamente pelo


nosso governo

Eu escrevi e disse ‘minha’ palavra dita

721
Lutei e mostrei a muitos que não há nada errado em ser diabética, epilética e HIV

Eu representei muitas das irmãs lésbicas infetadas pelo HIV

Eu disse a verdade, não importa os julgamentos

Eu vivi e ainda vivo

Amei e orei ao meu DEUS

Rezei sem hesitar, pois acredito/ei

Eu era irmã mais velha das minhas irmãs mais novas

Eu ouvi os ensinamentos da minha mãe Tornei-me amiga do pai

Eu morreria pela minha família, eu os amei tanto! Capturei momentos com

minha câmara

Eu trouxe à tona o que não era visto pelas nações através do poder da imagem,

caneta e papel

Eu lutei para torná-lo vida

Fui levada para um passeio por alguns que eu pensei que eram amigos

Mostrei ao meu violador o quão forte eu era, independentemente de ele ter


envenenado meu sangue com o HIV

Eu acreditei e orei

Fiquei baixa e respeitei tudo, independentemente da idade, cor e tamanho

722
Eu digo junto com os outros

Eu tinha uma voz única

Eu tinha uma mensagem para entregar e uma visão para ver Eu tentei, caí e nunca

consegui às vezes

Eu era paciente enquanto para alguns eu era estranha

Eu era amada por alguns e odiada por alguns, AINDA assim eu fiz o que eu fazia

Amei e apreciei mulheres bonitas

Eu amei-a mais do que a própria vida . Alguns diriam ...

Eu sou uma merda! mas espiritualmente eu estava cheia Fui alimentada com a

glória de DEUS, por isso o louvei Eu adorei-O mais do que adorei amigos

Eu sou filha da minha mãe

Eu fiz história e marquei livros históricos deste mundo ENTÃO………

LEMBRA DE MIM QUANDO TIVER PARTIDO!

POR ... sem dúvida, vou e estou em paz com meu fazedor e criador. AMÉM!

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