Você está na página 1de 21

Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p.

53-73 – ISSN 1808-6462

A VIVÊNCIA DO PROCESSO DE LUTO EM HOMOSSEXUAIS: INTERSECÇÕES


COM O SUICÍDIO

José Valdeci Grigoleto Netto1


Giovana Kreuz2

Resumo: Ao longo da história, a compreensão social acerca da homossexualidade passou por


significativas transformações. Hoje, a homofobia é uma realidade vivenciada pela maioria das
pessoas homossexuais. Pensando na questão da saúde mental e no elevado número de
suicídio de homossexuais nos últimos anos, há uma emergente necessidade em acolher o luto
de quem sobrevive a um suicídio, isto é, os familiares e pessoas próximas à pessoa que
morreu. Nesta vertente, o objetivo deste trabalho é examinar como se dá o processo de luto da
pessoa que perdeu um companheiro homossexual por suicídio. Para tanto, foi realizada uma
pesquisa teórica contando com a realização de uma revisão bibliográfica. Como resultado,
percebeu-se que a sociedade tende a não sancionar as expressões de luto em relacionamentos
homoafetivos bem como em perdas que são ocasionadas por suicídio. Logo, em mortes em
que haja a presença de perdas homoafetivas e suicídio, a possibilidade do surgimento de
complicadores para o luto são significativos.
Palavras-chave: Homossexualidade, suicídio, luto não reconhecido.

Abstract: Throughout history, social understanding about homosexuality has undergone


significant transformations. Today, homophobia is a reality experienced by the majority of
homosexual people. Thinking about the issue of mental health and the high number of suicide
homosexuals in recent years, there is an emerging need to welcome the grief of those who
survive a suicide, that is, relatives and people close to the person who died. In this section, the

1
Possui graduação em Psicologia pela UNINGÁ - Centro Universitário Ingá. Mestrando em Psicologia pela
Universidade Estadual de Maringá - UEM. Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Atenção Psicossocial
pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR. Especialista em Educação Especial e Inclusiva pela
Faculdade de Tecnologia e Ciências do Norte do Paraná - UNIFATECIE. Foi membro do Instituto Psicologia em
Foco - Oficina do Saber e Jornal Psicologia em Foco, Maringá - PR (2015-2016). E-mail de contato:
josegrigoleto@outlook.com
2
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da
UERJ. Possui graduação em Direito pela UNIVEL e graduação em Psicologia pela Universidade Católica do
Paraná PUC-PR. Especialista em Psicanálise com crianças pela UTP-PR e Educação, políticas sociais e
atendimentos a famílias pelo ISEPE. Possui formação em Tanatologia (ISEPE). Possui Aperfeiçoamento em
Luto pelo Instituto 4 Estações - São Paulo/SP. Atuou como psicóloga do Hospital do Câncer UOPECCAN
(2001/2011). Certificada em Psicologia da Saúde pela ALAPSA e Especialista em Psicologia Hospitalar (CFP).
Email de contato: giovana_k@yahoo.com.br
53
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

objective of this work is to examine how the process of grief of the person who lost a
homosexual partner by suicide. For that, a theoretical research was carried out counting on the
accomplishment of a bibliographical revision. As a result, it was perceived that society tends
not to sanction expressions of grief in homoaffective relationships as well as losses that are
caused by suicide. Therefore, in deaths in which there is the presence of homoeffective losses
and suicide, the possibility of complicating grief is significant.
Keywords: Homosexuality, suicide, disenfranchised grief.

Introdução
A homossexualidade, ainda hoje, é tratada como um assunto incômodo, gerando,
devido à sua visibilidade, desconforto para muitas pessoas, sendo alvo de olhares nebulosos,
hostis, preconceituosos e repressivos (SANTOS e BERNARDES, 2008), o que
consequentemente leva os homossexuais a vivenciarem, diariamente, situações de homofobia
e discriminação frente à sua orientação sexual.
Para Guimarães e Rosa (2012) homofobia se refere a qualquer forma de discriminação
dirigida aos homossexuais, em que se parte do pressuposto de que ser homossexual é ser
inferior, ilegítimo e errado frente ao heterossexual. Ainda “qualquer atitude de hostilidade e
forma de violência praticada contra a homossexualidade do sujeito [...] é considerada
homofobia” (GUIMARÃES e ROSA, 2012, p. 2).
É urgente mencionarmos que frente aos casos de homofobia e aos demais processos de
discriminação e exclusão que rodeiam os homossexuais, os números de casos de suicídio
nesta população são alarmantes. Segundo dados disponíveis em relatórios do GGB – Grupo
Gay da Bahia, no ano de 2016 foram registrados 21 casos de suicídio de homossexuais do
sexo masculino no Brasil. Em 2017 foram registrados 33 casos.
Desta maneira, e sobre a necessidade de se discutir e problematizar tal realidade, é
importante mencionar que falar sobre suicídio automaticamente leva o ser humano às
questões relacionadas ao fim da vida, à morte e ao morrer, o que coloca o sujeito frente a
frente com a ideia de finitude. Hoje, em nossa sociedade, como menciona Kovács (2002),
tem-se encarado a morte como um tema tabu, interdito, que gera desconforto e causa
incômodo. O suicídio, além disso, carrega consigo grandes estigmas que rodeiam as famílias e
vão além da simples questão da morte natural e esperada: o suicídio é um tipo de morte na
qual a pessoa decide por concretizar o ato de matar a si própria. Pessoas que perderam um
ente querido por suicídio, ou seja, os sobreviventes, muitas vezes se deparam com sequelas de

54
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

ordem psicossocial que costumam ser intensas e duradouras, o que tende a aumentar o risco
para o suicídio (ANDRIESSEN, KRYSINSKA, 2012, p.24).
Segundo Ducati (2005) em relacionamentos homoafetivos, ou seja, entre pessoas do
mesmo sexo, a possibilidade de expressão do luto torna-se ainda mais difícil, visto que este
tipo de relacionamento não é aceito e tolerado, pela grande maioria da sociedade, incluindo os
familiares.
Desta forma, a partir dos pontos acima elencados, neste trabalho serão examinadas as
seguintes indagações que, em comum, carregam uma dupla carga de tabus, interditos e
estigmas sociais: Como se dá o processo de luto da pessoa que perdeu um companheiro
homossexual por suicídio? Qual o espaço possível na sociedade para a expressão deste luto?
Desta forma, o presente trabalho se caracteriza como uma pesquisa teórica
(RODRIGUES, 2007 apud PRAÇA, 2015) contando com a realização de uma pesquisa
bibliográfica para fundamentar e subsidiar os temas elencados: homossexualidade, suicídio e
luto. A Pesquisa bibliográfica, de acordo com Marconi e Lakatos (2012), se baseia em
levantamento realizado em bibliografias que dialoguem com a área na qual se deseja
pesquisar, tendo como objetivo colocar o/a pesquisador/a em contato com o que já foi escrito
e produzido acerca de determinado tema.

HOMOSSEXUALIDADE
A Homossexualidade: Breves Apontamentos Históricos

Segundo Molina (2011) a homossexualidade foi, ao longo da história e das diferentes


culturas, motivo de inúmeras reações negativas e hostis por parte da sociedade. Ainda hoje, no
entanto, é possível constatar que os homossexuais são alvos de “(...) gestos, olhares, palavras,
discursos, agressões e até mesmo assassinatos” (MOLINA, 2011, p. 950), simplesmente por
fugirem à norma sociocultural estabelecida, não se encaixando nos padrões heterossexuais.
No entanto, as pessoas parecem não perceber (ou talvez finjam não enxergarem) de
que “(...) os modelos de família, de masculinidade e/ou feminilidade colocadas em nossa
sociedade são construções históricas e sociais” (HASSLER, 2010, p. 22), ou seja, foram ao
longo do tempo construídas a fim de satisfazerem os interesses de grupos da sociedade da
época.
Sobre o preconceito contra os homossexuais, Dias (2010a) afirma que “não ver é a
forma mais eficaz de exclusão social, a mais cruel punição a quem ousa ser diferente, e negar

55
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

direitos a tudo que refoge à mesmice do igual é condenar à invisibilidade” (DIAS, 2010, p.
01).
Através dos tempos, como destaca Molina (2011), as pessoas que se atreviam a fugir à
heteronormatividade, isto é, a compreensão da heterossexualidade como única forma normal
de expressão da sexualidade, eram alvos de punição, vergonha, segregação e, também,
violência.
Curioso citar que, segundo Borrillo (2010), na Grécia Antiga a homossexualidade era
reconhecida e validada como legítima expressão da sexualidade pela sociedade,
desempenhando uma função de iniciação na vida sexual, sendo provida de desejo e prazer. Já
na Roma Clássica, a homossexualidade era permitida e validada pela sociedade desde que
obedecesse a algumas condições, tais como: “(...) não afastar o cidadão de seus deveres para
com a sociedade, não utilizar pessoas de estrato inferior como objeto de prazer e (...) evitar
absolutamente de assumir o papel de passivo nas relações” (BORRILLO, 2010, p. 46).
No Império Romano, segundo Borrillo (2010) os homossexuais tidos como passivo
chegaram a ser condenados à fogueira pelo imperador Teodósio 1º, no ano de 390, sob a
influência do cristianismo, visto que esta corrente religiosa reprimia de maneira severa a
relação amorosa/sexual entre pessoas do mesmo sexo, na crença da relação heterossexual
como única de ordem moral e natural. Ainda, os homossexuais passivos eram severamente
punidos e, também, alvos de zombarias pela sociedade, já que havia uma “(...) dicotomia
“macho/fêmea”, “ativo/passivo”, [que] definiam os papéis sociais, o acesso ao poder e a
posição de cada indivíduo segundo seu gênero e sua classe” (BORRILLO, 2010, p. 47).
Com efeito, como destaca Borrillo (2010), ao fazermos uma conexão com os dias
atuais, é interessante pontuar que ainda hoje “(...) um grande número de homens que assumem
um papel ativo na relação sexual com outros homens não se consideram homossexuais”
(BORRILLO, 2010, p. 90), na crença de que ser homossexual é ser penetrado, em que
passividade se torne sinônimo de feminino e ser ativo/penetrador não se distancia do papel
socialmente incumbido ao masculino.
Recentemente, no século XX, o movimento gay passa a se organizar entre a década de
1970 e 1980, visando uma articulação entre a defesa de visibilidade, bem como pela
construção de reconhecimento enquanto cidadãos plenos de direitos (FERRARI, 2004).
Na busca por reconhecimento, nesta época o movimento gay contou com a criação de
vários grupos de intelectuais que se reuniam periodicamente para discutirem as matérias

56
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

jornalísticas que eram vinculadas contra os homossexuais, além de lerem as edições do Jornal
Lampião da Esquina, publicação destinada às pessoas homossexuais (GREEN, 2000).

Homofobia: Intolerância, Ignorância e Hostilidade Frente ao Diferente


Uma confusão que muitas pessoas cometem é em relação ao uso das expressões
orientação sexual e opção sexual. Molina (2011) diferencia os dois termos destacando que o
termo mais utilizado nos dias de hoje é orientação sexual, visto que a homossexualidade não
se trata de uma opção, mas sim de sentimentos naturais de desejo e amor, e que apenas
podemos falar em escolha“ (...) quando decidimos nos relacionar ou não; contar ou não para a
sociedade e família, enfrentar ou não os padrões sociais representativos da sociedade em que
se está inserido” (MOLINA, 2011, p. 960). Com efeito, em relação aos tipos de orientação
sexual, o autor supracitado destaca que

Hoje, são reconhecidos três tipos de orientação sexual: a heterossexualidade (atração


afetiva, sexual e erótica por pessoas de outro gênero; a homossexualidade (afetiva,
sexual e erótica por pessoas do mesmo gênero); a bissexualidade (atração afetiva,
sexual e erótica tanto por pessoas do mesmo gênero quanto pelo gênero oposto)
(MOLINA, 2011, p. 960).

Importante mencionarmos que além destas existem outros tipos de orientação sexual,
mas que são pouco vistas pela sociedade, como é o caso dos assexuais (pessoas que não
sentem atração sexual por ninguém) e dos pansexuais (pessoas que sentem atração sexual por
pessoas independente do sexo/identidade de gênero).
Dentre os tipos de orientação sexual acima citados, a heterossexualidade, como já
sabemos, ainda é compreendida como única expressão normal e sadia da sexualidade humana
e, como conseqüência, qualquer exceção que fuja à regra torna-se alvo de gestos permeados
por hostilidades, preconceitos e intolerâncias, como é o caso dos/as homossexuais que passam
a serem alvos da homofobia.
A homofobia é uma realidade que muitas vezes é ignorada, intencionalmente ou não,
por grande parcela da população. Segundo Borrillo (2010) a origem da palavra homofobia
pertence à K. T. Smith datando de um artigo de 1971, quando este autor buscou analisar os
traços pertencentes à personalidade homofóbica. Ainda assim, foi apenas no ano de 1998 que
o termo apareceu pela primeira vez, em um dicionário de língua francesa. Já o termo
homossexualidade foi cunhado, segundo Mott (2003) e Molina (2011), pela primeira vez em
1869 pelo médico Karoly Maria Benkert. Existem muitas definições de homofobia, mas todas

57
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

sumarizam a mesma ideia: o preconceito e a aversão às pessoas que não se sentem


afetivamente e sexualmente atraídas pelo mesmo sexo.
Dias (2012) apresenta o conceito de homofobia como sendo uma expressão que
engloba “(...) qualquer ato ou manifestação de ódio ou rejeição a homossexuais, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais” (DIAS, 2012, p. 01) não ignorando, porém, novas formas
de expressão, como a lesbofobia, bifobia e a transfobia.
De maneira mais específica, Guimarães e Rosa (2012) conceituam a homofobia como
sendo um “(...) termo usado para designar qualquer forma de discriminação e preconceito
contra homossexuais, seja partindo de uma pessoa, grupo ou instituição” (GUIMARÃES e
ROSA, 2012, p. 02), podendo ser, inclusive, originado de um/a homossexual, heterossexual
ou até de si mesmo.
Borrillo (2010) apresenta homofobia como sendo uma atitude hostil contra os homens
e as mulheres homossexuais, sem distinção, que posiciona as pessoas homossexuais fora de
uma linha de normalidade, do comum, relegando-as ao anormal e inferior, sendo “(...) o
homossexual apontado pela norma social como bizarro, estranho ou extravagante”
(BORRILLO, 2010, p. 13), rejeitando “(...) todos aqueles que não se conformam com o papel
predeterminado para seu sexo biológico” (BORRILLO, 2010, p. 34).
Por certo, a homofobia está presente, direta e indiretamente, nos discursos cotidianos.
Frases como: “Ele é gay, que desperdício!”, ou ainda: “Mas ele é gay mesmo? Nem parece!”
são ouvidas com frequência pelos/as homossexuais, o que reafirma a importância de termos
em mente que a homofobia não se limita apenas aos atos extremos de violência física e ao
homicídio, mas também engloba agressões de cunho verbal (GUIMARÃES e ROSA, 2012).
Desta forma, segundo Borrillo (2010), o homossexual tende a sofrer sozinho as dores
originadas pelo preconceito social que vivencia, contando com quase nenhum apoio externo,
além de que muitas vezes o homossexual está inserido em ambientas familiares hostis,
fazendo-o “(...) mais facilmente vítima de uma aversão a si mesmo e de uma violência
interiorizada, suscetíveis de levá-lo até o suicídio (BORRILLO, 2010, p. 40).
Vivemos em uma sociedade pautada no heterossexismo, fazendo com que “(...) os
homossexuais se sintam acuados e sofram uma enorme dor psíquica por não corresponderem
ao ideal sexual, levando-os ao recolhimento e anonimato” (GUIMARÃES e ROSA, 2012,
p.06). Como destaca Borrillo (2010), em nossa sociedade ser homem é sinônimo de rudez,
isto é, dotar-se de comportamentos grosseiros, competitivos, implicando no menosprezo
contra as mulheres, na busca da manutenção da “superioridade” que os homens crêem possuir.

58
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Mott (2002), ao defender que os/as homossexuais são, dentre todas as minorias
sociais, os/as mais odiados, menciona que a relação homossexual desde muito tempo foi
considerada como “(...) crime hediondo, condenado como pecado abominável, escondido
através de um (...) complô de silêncio” (MOTT, 2002, p. 01) o que, consequentemente,
resultou na “(...) internalização da homofobia por parte dos membros da sociedade global, (...)
pela própria família, no interior das igrejas e da academia” (MOTT, 2002, p. 01). Diante
disso, é nítido que “(...) a homofobia desempenha um papel importante na medida em que ela
é uma forma de inferiorização (...) além de conferir um status superior à heterossexualidade,
situando-a no plano do natural” (BORRILLO, 2010, p. 15).
Ainda, Barnes, Golden e Peterson (2010) pontuam que os homossexuais possuem
grande risco para o suicídio pelo fato de que são vítimas de violência, estigma e discriminação
em relação à sua orientação sexual. Assim, existem alguns riscos para o suicídio, dentre eles:
abuso sexual, isolamento, abuso de drogas, problemas familiares, prostituição, homofobia,
discriminação, terapias de conversão, rejeição familiar e hostilidade na época escolar.

SOBRE O SUICÍDIO
Conceituando o Suicídio
Conceitualmente, a palavra suicídio é dotada de várias definições que apresentam,
desde o século XVII, uma mesma ideia central entre si: o ato de terminar com a própria vida
(BOTEGA, 2015).

Derivado do latim sui (si mesmo) e caees (ação de matar), o suicídio não significa
apenas a ação de matar a si mesmo, mas é, sobretudo um ato humano que implica
em um processo cujo fim da linha termina em um ato que faz a pessoa que fica,
neste caso, o sobrevivente, sofrer (FUKUMITSU, 2013, p. 43).

Segundo Bertolote (2012), a OMS – Organização Mundial de Saúde (1998) define o


suicídio como sendo

[...] o ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo, ou, em outras


palavras, um ato iniciado e executado deliberadamente por uma pessoa que tem a
clara noção (ou uma forte expectativa) de que ele pode resultar a morte, e cujo
desfecho fatal é esperado (OMS, 1998 apud BERTOLOTE, 2012, p. 21).

Bertolote (2012) menciona que a origem da palavra suicídio remete ao médico inglês
Thomas Browne e data do ano de 1643, tendo o termo sido originado primeiramente em
grego, contando com tradução para o inglês como suicide dois anos depois. No entanto,
59
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Aragão Neto (2014) menciona que na literatura não há um consenso único acerca do início da
utilização da palavra suicídio, visto que alguns autores atribuem a etimologia do termo a
diferentes fontes e autorias.
Percebe-se que através dos tempos as atitudes das sociedades ocidentais frente ao
suicídio foram se modificando e criando novas maneiras de compreender e lidar com o ato de
terminar com a própria vida. Perpassando por culturas primitivas que lidavam com o suicídio
como um ato pleno do exercício racional, o suicídio era considerado pecado na Idade Média e
frequentemente relacionado com transtornos mentais a partir da segunda metade do século
XX (BOTEGA, 2015).
Contudo, nos dias de hoje o suicídio passou a ser um fenômeno de proporções
consideráveis e que representa um impacto significativo na saúde pública mundial, visto que é
uma das principais causas de óbitos em determinadas faixas etárias e regiões do planeta
(BERTOLOTE, 2012) sendo, pois, atualmente considerado como uma questão de saúde
pública (BOTEGA, 2015). Naturalmente, quando somos noticiados acerca de um caso de
suicídio, nos questionamos sobre os possíveis motivos que podem levar uma pessoa a acabar
com a própria vida (BERTOLOTE, 2012). O suicídio, no entanto, é compreendido como “(...)
um fenômeno extremamente complexo e multideterminado, ou seja, não ocorre por um único
fator ou causa” (ARAGÃO NETO, 2015, p. 18). Ainda, para Fukumitsu e col. (2015) o
suicídio envolve aspectos “(...) biológicos, psicológicos e sociais” (p. 49). Sendo assim,
“existem vários tipos de suicídio – os planejados, os impulsivos, os que não ofereceram
nenhuma pista e os que assinalaram que a morte poderia acontecer” (FUKUMITSU &
KOVÁCS, 2015, p. 42).
Curioso destacar que, para o mesmo Fukumitsu e col. (2015), o suicídio é ambíguo: ao
mesmo tempo em que há o desejo de viver, há o desejo de acabar com a dor, isto é, busca-se
findar com o que incomoda e o que causa sofrimento, perturbando os pensamentos e o sentido
de viver. Na mesma vertente, Cassorla (2017) menciona que a pessoa com ideação suicida
está, evidentemente em sofrimento, passando a acreditar que o suicídio é a única saída para o
fim da sua dor. Fukumitsu & Kovács (2016) mencionam que os números de suicídios no
Brasil, chegam a 32 casos diários, o que equivale a uma pessoa tirando a própria vida a cada
45 minutos. No entanto, segundo Botega (2015), o número de tentativas de suicídio é dez
vezes maior do que o número de suicídios concretizados.

60
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Importante citar que Aragão Neto (2014) nos lembra que o suicídio não atinge uma
única parcela da sociedade, ou seja, não faz distinção de cor, raça, classe social ou credo
religioso.

Posvenção do Suicídio: o Cuidado com os Sobreviventes


Posvenção (postvention) é um termo cunhado por Edwin Shneidman, considerado por
alguns autores como o pai da suicidologia (LEENAARS, 2010), que surgiu como “(...) uma
alternativa que pretende minimizar em um sobrevivente as seqüelas de uma morte por
suicídio” (FUKUMITSU e col., 2015, p. 49). O trabalho com posvenção envolve o
estabelecimento de suporte social, trabalho clínico, ação comunitária e o desenvolvimento de
políticas relacionadas ao luto por suicídio (ANDRIESSEN, KRYSINSKA & GRAD, 2017).
A terminologia sobrevivente refere-se àquelas pessoas que passaram pela perda de um
ente querido por suicídio (BARNES, GOLDEN e PETERSON, 2010) e por tratar-se “(...) de
uma morte violenta, repentina e que pode provocar culpa e autoacusação é demandada muita
energia psíquica para a elaboração do luto” (FUKUMITSU, KOVÁCS, 2016, p. 04), desta
maneira, enfrentar todos os eventos demandados enquanto conseqüência do suicídio é um
verdadeiro ato de sobrevivência.
Importante mencionar que na literatura da suicidologia não há uma única palavra para
se referir às pessoas que perderam alguém por suicídio, mas sim múltiplas expressões, dentre
elas: “(...) sobreviventes, sobreviventes ao suicídio, sobrevivente do suicídio, sobrevivente
após o suicídio, sobrevivente de perda por suicídio, sobrevivente de perda de suicídio,
enlutado de suicídio e enlutado por suicídio” (HONEYCUTT & PRAETORIUS, 2016 apud
ANDRIESSEN, KRYSINSKA & GRAD, 2017, p. 05, tradução nossa).
Para Silva (2013) ser um/a sobrevivente do suicídio não é algo que se restringe apenas
à família, podendo englobar “(...) colegas de trabalho, os colegas de escola, os de grupos
religiosos, de lazer, os vizinhos” (p. 59), ou seja, o suicídio pode vir a afetar uma grande
parcela de pessoas. Bertolote (2012) menciona que cada suicídio afeta, em média, de cinco a
dez pessoas, englobando desde familiares, amigos, colegas e outras pessoas consideradas
próximas.
Lukas e Seiden (2007) apontam que os sobreviventes sofrem pelo fato deque, além de
estarem enlutados pela morte de um ente querido, também estão vivenciando uma experiência

61
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

traumática, estando, consequentemente, rodeados pelo silêncio que se instaura pelo tabu do
suicídio, o que geralmente não permite que a pessoa possa falar abertamente sobre sua dor.
Além de carregar alto grau de estigma social, a morte por suicídio traz inúmeros
questionamentos acerca da possibilidade de escolher desistir da vida, visto que parte de uma
decisão do próprio indivíduo, o que acaba por instalar enormes dúvidas acerca dos fatores que
motivaram o ato em si. Desta forma, o estigma social passa a ser uma linha tênue que pode vir
a contribuir no aumento do sofrimento dos sobreviventes ao suicídio (ARAGÃO NETO,
2015), isso porque “a sociedade, particularmente a ocidental, é mal preparada e desestruturada
para responder às necessidades emocionais e sociais dos que passam por esse tipo de
infortúnio” (p. 128).
A morte requer um período de diálogo em que é preciso conversar sobre o ocorrido e
falar acercados sentimentos desencadeados pela perda. Assim, é na fala que podemos
externalizar o que nos angustia, compartilhar nossos sentimentos acerca da pessoa que morreu
e expressar nossa raiva, tristeza, dor ou qualquer outro sentimento que exista. No entanto, a
morte por suicídio não oportuniza aos sobreviventes um espaço para a expressão de seus
sentimentos, em que o falar é silenciado, visto que o suicídio se difere das mortes
consideradas “normais” (LUKAS E SEIDEN, 2007).
Por isso, Silva (2015) destaca que muitos familiares não admitem que houve suicídio
na família, quer seja para si próprio ou para alguma pessoa da família considerada “frágil” e
que por isso, não saberia lidar com a notícia. Além disso, a preocupação com explicações para
a sociedade torna-se um constrangimento que assola muitas famílias. Botega (2015), no
mesmo viés, menciona que pelo fato de o suicídio não ser uma forma socialmente aceitável de
se morrer, “às vezes, esconde-se o fato de a morte ter sido por suicídio, e, em outras vezes,
são negados os sentimentos mais doloridos” (p.226).

[...] os sentimentos ambíguos e confusos que o enlutado experiencia ao [se] deparar


com o suicídio podem gerar dificuldades de compreensão e elaboração e,
consequentemente, podem direcionar o sobrevivente ao caminho da culpabilidade.
(FUKUMITSU, 2013, p. 236).

A culpa é um sentimento que assola a maioria dos sobreviventes, em que passa a


existir a sensação de que havia algo que poderia e deveria ter sido feito para evitar a morte do
ente querido. Quando há a presença de algum conflito ou desentendimento entre o
sobrevivente e a pessoa que cometeu o suicídio, o sentimento de culpa pode ser intensificado.

62
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Ainda, devido à presença deste sentimento, muitas pessoas acreditam que precisam punir a si
mesmas (WORDEN, 2008).
Segundo Kovács:

O suicídio é uma das mortes mais difíceis de elaborar, pela forte culpa que desperta.
Ativa a sensação de abandono e impotência em quem fica. O enlutado, além de lidar
com a sua própria culpa, é frequentemente alvo de suspeita da sociedade como
sendo o responsável pela morte do outro. (KOVÁCS, 1992, p 156).

Outro tipo de culpa é àquela dirigida a outras pessoas, ou seja, o sobrevivente busca
projetar a responsabilidade da morte no outro. Um dos motivos para tal feito é a busca de
controle e sentido na situação, em que há a necessidade de se entender os motivos que
levaram seu ente querido a cometer o suicídio (WORDEN, 2008).
Worden (2008), ainda apresenta a raiva como um sentimento comum nos casos de
suicídio, visto que os/as sobreviventes se questionam o porquê, sentindo-se rejeitados e
desamparados pela pessoa que se suicidou. Ainda, a vergonha, segundo Kaslow& Aronson
(2004) apud Worden (2008) é um sentimento que a família vivencia pelas influências e reação
das outras pessoas da sociedade. Os sobreviventes por suicídio vivem o dilema de não
possuírem respostas para o/s motivo/s para que o suicídio tenha ocorrido. Em alguns poucos
casos a pessoa que se suicidou deixa uma carta, no entanto, as dúvidas frequentemente
permanecem (BARNES, 2010).
Lukas e Seiden (2007) pontuam que “Por que?” é a palavra mais frequentes entre os
sobreviventes, surgindo em perguntas desde o momento em que se noticia o suicídio, podendo
se estender por muito tempo, com o surgimento de várias questões que buscam preencher o
vazio instalado pelo desconhecido.

Luto: Sobre os Rompimentos dos Vínculos Afetivos


Conceitualmente apresentando, luto é a resposta esperada e normal após a
concretização do rompimento de um vínculo afetivo e que não se aplica apenas aos casos de
morte, mas que estende a qualquer tipo de separação e privação de ordem irreversível
(BOUSSO, 2011).
Parkes (1998) situa o luto como sendo um processo e não um estado, visto que não se
trata de eventos que acontecem de maneira linear e aos poucos se minimizam. Ao contrário: o
luto é rodeado de quadros clínicos que se mesclam e se interpõem ao longo de todo o
processo.

63
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Ainda, Silva (2013) apresenta o luto como “(...) uma vivência esperada pela perda de
alguém querido” (p. 60). No mesmo viés, Doka (2016) e Parkes (1998) afirmam que as perdas
e o luto são experiências universais, visto que inevitavelmente iremos, em algum dia de
nossas vidas, perder aquilo que amamos e, dessa forma, iremos experienciar o luto. Em
resumo: “(...) o luto é, talvez, o preço que pagamos pelo amor” (PARKES, 1998, p.22).
No entanto, mesmo que a experiência da perda seja universal e inevitável, a maneira
como as pessoas irão vivenciar/responder ao luto são distintas, individuais e subjetivas, visto
que cada relação é construída, também, de maneira singular e única (DOKA, 2016). Doka
(2016) pontua que as reações do luto não são apenas de ordem emocional, mas que se
estendem para as esferas psicológicas, comportamentais, cognitivas, sociais e espirituais de
cada pessoa enlutada.
Desta maneira, ao falarmos sobre as especificidades do processo de luto nos barramos
aos conceitos de fases e etapas que autores criaram (KÜBLER-ROSS, 2008; BOWLBY,
2015; WORDEN, 2009), ao longo das décadas buscando explicitar didaticamente a maneira
na qual o enlutado irá reagir após o rompimento de um vínculo afetivo.
No fim da década de 1960 a médica suíça Elisabeth Kübler-Ross nos apresentou à
ideia de fases ou estágios que as pessoas tendem a vivenciar em situações de luto, mais
especificamente ao receber o diagnóstico de uma doença incurável. As fases são: negação,
raiva, barganha, depressão e aceitação (KÜBLER-ROSS, 2008). Kübler-Ross ficou
internacionalmente reconhecida por seu trabalho, tendo realizado inúmeros seminários,
concedido entrevistas e tendo publicado várias obras de extrema importância para o cuidado
com as pessoas em fim de vida (KÜBLER-ROSS, 1995, 1998, 2003, 2008).
No entanto, ao longo das décadas, o trabalho de Kübler-Ross passou a ser alvo de
inúmeras críticas, mais especificamente por não abordar de maneira empírica os dados que
apresentava, visto que contava apenas com sua prática médica para desenvolver seus trabalhos
e teorias (KONIGSBERG, 2011; STROEBE, SCHUT, BOERNER, 2017). Ainda, o trabalho
de Kübler-Ross foi alvo de acusações de plágio por autores que afirmaram que já trabalhavam
com a ideia de fases antes da publicação do primeiro livro de Kübler-Ross (PARKES, 2013).
Em síntese, mesmo com as críticas é importante destacarmos que Kübler-Ross possui
um papel significativo para a atual maneira com que as pessoas lidam com o processo de
morrer, tendo sido pioneira e revolucionária na promoção da atuação humana com os
pacientes incuráveis (KOVÁCS, 2012).

64
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Trabalhos contemporâneos apresentam novas formas de compreendermos o luto


(STROEBE & SCHUT, 1999, 2016), como o Modelo do Processo Dual, que busca apresentar
as oscilações entre a orientação para a perda e a orientação para a restauração que as pessoas
tendem a oscilar durante as experiências da vida diária.
Com isso, visto tamanha complexidade do tema, falar sobre o luto requer
conhecimento e domínio teórico e prático dos profissionais que almejam atuar com situações
que envolvam rompimentos de vínculos afetivos. Na literatura, tanto nacional quanto
internacional, encontra-se o tema do luto ramificado em diversas subcategorias e, dentre estes,
podemos citar: o luto antecipatório (LINDEMANN, 1944; SWEETING & GILHOOLY,
1990; FONSECA, 2004), luto complicado (SHEAR, 2015; GREGIO et al., 2015), luto adiado
(PARKES, 1998) e o luto não reconhecido (CASELLATO, 2005, 2015; DOKA, 1989, 2016).

Luto não reconhecido


Pssss... Por favor, não fale, cale.
Deixe o silêncio encobrir tudo, penetrar até a alma.
Afinal, é mais fácil acreditar que aquilo que não se ouve, que não se vê, não existe.
(DIAS, 2010c, p.1).

Conceitualmente, luto não reconhecido pode ser compreendido como o luto que não
pode ser abertamente reconhecido, publicamente vivido ou receber algum tipo de suporte
social (DOKA, 1999).
Nesta vertente, Corr (1999) menciona que o conceito de luto não reconhecido admite
que, de forma direta ou indireta, a sociedade se nega a reconhecer, validar ou dar suporte ao
luto de determinados indivíduos, famílias ou grupos/comunidades.
Segundo Doka (2008) o conceito de luto não reconhecido nasceu quando, em uma de
suas aulas, uma aluna fez um comentário acerca da experiência de perder o ex-marido por
câncer dois anos após o divórcio. Segundo ela, foi extremamente difícil encontrar algum
suporte social para lidar com sua ambivalência de sentimentos, tanto ao visitar seu ex-marido
no hospital quanto no dia de seu funeral, chegando a ouvir comentários que questionavam o
seu direito de enlutar-se, visto que eles já não eram mais casados e, por isso, segundo a
sociedade, não possuíam nenhum tipo de vínculo.
A partir dessa provocação, o autor aprofundou seus estudos acerca da experiência do
luto de ex-cônjuges, o que culminou com a apresentação do pioneiro artigo intitulado

65
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

Disenfranchised grief no Symposium on Death Education of the Foundation of Thanatology,


realizado em 25 de abril de 1985, em Nova Iorque. A partir disso, o autor continuou a
pesquisar sobre o tema, enfatizando outros tipos de perdas que não são reconhecidas pelos
outros e que não recebem validação social (DOKA, 2008).
Percebe-se, pois, que o conceito de luto não reconhecido traz consigo a ideia de que é
a sociedade que determina através de suas normas e “regras do luto” “(...) essa tentativa de
especificar quem, quando, onde, como, por quanto tempo e por quem a pessoa deverá enlutar-
se” (DOKA, 1999, p. 37, tradução nossa), não levando em consideração aspectos subjetivos
de cada indivíduo e que

Cada pessoa fica enlutada de sua maneira, não existindo, portanto, maneiras
melhores ou piores, nem a imposição de uma sequência rígida, que normatize o
processo. Portanto, mesmo que se identifiquem as fases e uma possível sequência
temporal, convém não esquecer que o luto é uma experiência pessoal e única, para
cada pessoa. (FRANCO, 2002, p. 26).

Por isso, segundo Casellato (2015), o que se observa é que há o fracasso da empatia,
isto é, há uma falha na “(...) capacidade de compreender o significado e validar a experiência
[da perda] de outra pessoa” (p. 19).
Ademais, Attig (2004) menciona que além de um fracasso da empatia, a não
autorização ao direito do luto é um fracasso político que envolve aspectos relacionados ao
abuso de poder e a negligência. Falar em poder é falar em autoridade, logo, quando há abuso
de poder significa que está ocorrendo o uso indevido desta autoridade, como, por exemplo,
quando alguém pretende saber ou entender mais do que os outros em assuntos que são pouco
conhecidos para si ou quando alguém acredita possuir conhecimentos superiores para poder
escolher pelos outros.
Ainda, há a existência de uma falha ética em relação a não autorização ao direito do
luto, uma vez que não autorizar que o outro expresse seu luto é um desrespeito à dignidade e
aos direitos humanos, porque, segundo o autor acima, respeitar é acolher, compreender e agir
respeitosamente frente à vulnerabilidade do outro.
À vista disso, em relação aos tipos de lutos que não são reconhecidos, Doka (1999,
2008) apresenta categoriais de perdas que tendem a não ser socialmente reconhecidas pelos
seguintes motivos:

66
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

1) Quando a relação não é reconhecida: Em nossa cultura ocidental, existe a


valorização dos papéis da família enquanto único espaço de relações de afetos. Logo, o luto
pode vir a não ser socialmente validado quando a relação entre o enlutado e a pessoa que
morreu não era baseada em laços de parentesco, como por exemplo: amigos, vizinhos,
parentes distantes (que não possuíam contato frequente e direto), colegas do trabalho e filhos
adotivos (quando perdem seus pais biológicos). Também, existem as relações que não podem
ser socialmente reconhecidas por não serem tradicionais, isto é, por não se encaixarem nos
modelos sociais de relacionamento, tais como: relacionamentos homoafetivos e os
relacionamentos extraconjugais.

2) Quando a perda não é reconhecida: São as perdas que a sociedade não julga como
significativas, perdas estas que podem transitar entre perdas concretas, ou seja, quando não há
mais o objeto fisicamente e perdas que ocorrem quando a pessoa está viva, há a existência
física, porém essa é tratada como morta. São exemplos de perdas concretas não reconhecidas
socialmente: a morte de um animal de estimação, aborto (em caso de aborto induzido, isto é, o
aborto ocorre com o consentimento da pessoa) e a mortalidade perinatal. Por outro lado, são
exemplos de perdas que ocorrem quando a pessoa está viva: pessoas em situação de
institucionalização (perda social), estado de coma (morte psicológica) e pessoas com falta de
consciência (morte encefálica). Importante destacar que nestes dois últimos casos os entes
queridos geralmente vivenciam um profundo sentimento de perda que não é publicamente
reconhecido, porque é inaceitável enlutar-se por um corpo ainda vivo, ou seja, a pessoa não
morreu, ela continua biologicamente viva.

3) O enlutado não é reconhecido: Há situações em que a pessoa é socialmente definida


como não sendo capaz de vivenciar o luto devido a alguma de suas características pessoais, o
que limitaria sua compreensão e reação frente à perda. Exemplos de enlutados que não são
reconhecidos: pessoas jovens (crianças e adolescentes), idosos/as que possuam algum
comprometimento cognitivo e pessoas que possuam algum tipo de deficiência intelectual.

4) A morte não é reconhecida: Algumas perdas fazem com que a pessoa enlutada fique
receosa em buscar suporte social, com medo da reprovação causada pela circunstância da
morte. São exemplos: morte por suicídio, acidente de trânsito por ingestão de álcool, overdose
e AIDS.

67
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

5) A maneira com que o indivíduo enluta não é validada: Luto não reconhecido
também ocorre quando o indivíduo vivencia seu luto de maneira que a sociedade não
compreenda como sendo adequada. Socialmente, o que se espera com o luto são expressões
emotivas que envolvam o choro. No entanto, algumas pessoas experienciam seu pesar de
forma cognitiva, ou seja, são mais introspectivas e não expressam com lágrimas seus
sentimentos, o que faz com que alguns interpretem como sendo ausência de pesar.

Percebe-se, pois, que as pessoas que não recebem o direito de enlutar-se acabam por
sofrer em silêncio, não recebendo suporte e reconhecimento social suficiente para vivenciar o
luto por suas perdas (DOKA, 2002, 2016).
Desta forma, o luto não autorizado necessita de atenção dos profissionais de saúde
para um correto e adequado manejo. Não validar a perda de uma pessoa/família/comunidade é
impedir a expressão do luto, é forçar uma voz a se calar, silenciando-a.

Intersecções entre homossexualidade, suicídio e luto


Desta forma, a partir da revisão bibliográfica elencada como eixo deste artigo, foi
possível tecer algumas considerações teóricas, podendo então, concluir que as relações
homoafetivas não possuem reconhecimento social, partindo do pressuposto de que as uniões
entre pessoas do mesmo sexo fogem da compreensão de normalidade e, logo, do socialmente
aceitável. Desta forma, qualquer relação que fuja a esta “normalidade” passa a não ser
validada socialmente, principalmente em discursos religiosos, não sendo consideradas como a
constituição de um legítimo casal.
Curioso e importante mencionarmos que em inúmeras matérias, reportagens e/ou
comentários que circulam pela internet, constata-se ferozmente muitos comentários
homofóbicos em que pessoas passam a criticar quem ousa dizer que a união de duas pessoas
do mesmo sexo forma um casal: duas pessoas do mesmo sexo, no máximo, dizem, podem vir
a ser considerada um par. Ainda, no pensamento de muitas pessoas, crê-se que casal é um
adjetivo pertencente exclusivamente para as uniões heterossexuais.
Sendo assim, a partir de um rompimento de vínculo, neste caso específico ocasionado
por suicídio, surgirá um duplo quadro de não reconhecimento e aceitação social do luto: a
homossexualidade enquanto orientação sexual (quando a relação não é reconhecida) e o
suicídio como causa da morte do ente querido (quando a morte não é reconhecida).
Por isso, no caso das pessoas enlutadas, ter acesso a uma efetiva rede de apoio para o
luto, ou seja, estar amparado por pessoas que auxiliem o sujeito enlutado a lidar com a forte
68
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

carga de sentimentos e emoções desencadeados pela perda, torna-se fator de grande


importância para a elaboração saudável de um luto.
Portanto, possuir reconhecimento social frente às situações de rompimentos de
vínculos afetivos entre homossexuais permite a abertura de espaços para falar sobre o
ocorrido, em que há a possibilidade de se expressar os sentimentos desencadeados pela
separação, tornando-se o reconhecimento social um recurso de enfrentamento que auxilia o
sujeito enlutado em seu trabalho de luto.

Referências
ANDRIESSEN, K.; KRYSINSKA, K.; GRAD, O. T. Current understandings of suicide
bereavement In: ANDRIESSEN, K.; KRYSINSKA, K.; GRAD, O. T. (Orgs.) Postvention in
action – The international handbook of suicide bereavement support. Boston: Hogrefe
Publishing, 2017.

ANDRIESSEN, K.; KRYSINSKA, K. Essential questions on suicide bereavement and


postvention. Int. J. Environ. Res. Public Health, v. 9, p. 24-32, 2012.

ARAGÃO NETO, C. H. de. O luto de um suicídio In: SANTOS, F. S. (Org.) Tratado


brasileiro sobre perdas e luto. São Paulo: Atheneu Editora, 2014.

ARAGÃO NETO, C. H. de. O sentido na vida como fator de proteção ao suicídio. Revista
Brasileira de Psicologia, v. 02, n. 02, p. 17-27, 2015.

ATTIG, T. Disenfranchised grief revisited: discounting hope and love. Omega – Journal of
Death and Dying, v. 49, n. 3, p. 197-215, 2004.

BARNES, D. H.; GOLDEN, R. N.; PETERSON, F. L. The truth about suicide. Nova
Iorque: Facts On File, 2010.

BERTOLOTE, J. M. O suicídio e sua prevenção. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

BORRILLO, D. Homofobia – história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2010.

BOTEGA, N. J. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.

BOUSSO, R. S. A complexidade e a simplicidade da experiência do luto. Acta Paulista de


Enfermagem, v. 24, n. 3, p. 07-08 2011.

BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

CASELLATO, G. Luto não reconhecido: um conceito a ser explorado In: CASELLATO, G.


(Org.) Dor silenciosa ou dor silenciada? – Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e
sociedade. São Paulo: Editora Livro Pleno, 2005.
69
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

CASELLATO, G. Luto não reconhecido: o fracasso da empatia nos tempos modernos In:
CASELLATO, G. (Org.) O resgate da empatia – Suporte psicológico ao luto não
reconhecido. São Paulo: Summus Editorial, 2015.

CASSORLA, R. M. S. Suicídio – fatores inconscientes e aspectos socioculturais: uma


introdução.

CORR, C. A. Enhancing the concept of disenfranchised grief. Omega – Journal of Death


and Dying, v. 38, n.1, p. 1-20, 1999.

DIAS, M. B. Homofobia é crime? Porto Alegre – RS, maio de 2012. Seção artigos.
Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_615)homofobia_e_crime.docx.pdf>

DIAS, M. B. O direito de ser visto. Porto Alegre – RS, agosto de 2010. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_660)31__o_direito_de_ser_visto.pdf>

DIAS, M. B. União homossexual – aspectos sociais e jurídicos. Porto Alegre – RS, set. de
2010b. Seção artigos. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_653)5__uniao_homossexual__aspecto
s_sociais_e_juridicos.pdf>

DIAS, M. B. A voz do silêncio. Porto Alegre – RS, agosto de 2010c. Seção artigos.
Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_666)23__a_voz_do_silencio.pdf>

DOKA, K. J. Disenfranchised grief in historical and cultural perspective In. M. S. STROEBE,


R. O. HANSSON, H. SCHUT, & W. STROEBE (Orgs.) Handbook of bereavement research
and practice: Advances in theory and intervention. Washington, DC, US: American
Psychological Association, 2008.

DOKA, K. J. Disenfranchised grief In: DOKA, K. J. (Org.) Living with grief: loss in later
life Washington, DC: The Hospital Foundation of America, 2002.

DOKA, K. J. Disenfranchised grief. Bereavement Care, v. 18, n. 3, p. 37-39, 1999.

DOKA, K. J. Disenfranchised grief: recognizing hidden sorrow. Lexington, MA: Lexington


Press, 1989.

DOKA, K. J. Grief is a Journey. Nova Iorque: Atria Books, 2016.

DUCATI, D. C. P. O luto pela separação nas relações amorosas In: CASELLATO, G. (Org.)
Dor silenciosa ou dor silenciada? – Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e
sociedade. São Paulo: Editora Livro Pleno, 2005.

FERRARI, A. Revisitando o passado e construindo o presente: o movimento gay como


espaço educativo. Revista Brasileira de Educação, v. 25, p. 105 – 115, 2004.

70
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

FONSECA, J. P. da.Luto Antecipatório: as experiências pessoais, familiares e sociais de


uma morte anunciada. São Paulo: Editora Livro Pleno, 2004.

FUKUMITSU, K. O. Suicídio e luto: histórias de filhos sobreviventes. São Paulo: Digital


Publish & Print, 2013.

FUKUMITSU, K. O; ABILIO, C. C. C; LIMA, C. F. da S; GENNARI, D. M;


PELLEGRINO, J. P; PEREIRA, T. L. Posvenção: uma nova perspectiva para o suicídio.
Revista Brasileira de Psicologia, v. 02, n. 02, p. 48-60, 2015.

FUKUMITSU, K. O; KOVÁCS, M. J. Especificidades sobre processo de luto frente ao


suicídio. Revista Psico – Psicologia, v. 47, n. 1, p. 3-12, 2016.

FUKUMITSU, K. O; KOVÁCS, M. J. O luto por suicídios: uma tarefa da posvenção.


Revista Brasileira de Psicologia, v. 02, n. 02, p. 41-47, 2015.

GREEN, J. N. “Mais amor e mais tesão”: a construção de um movimento brasileiro de gays,


lésbicas e travestis. Cadernos Pagu, n. 15, p. 271-295, 2000.

GREGIO et al. O luto desencadeado por desastres. In: FRANCO, M. H. P. F. (Org) A


intervenção psicológica em emergências – fundamentos para a prática. São Paulo: Summus,
2015.

GUIMARÃES, F. D.; ROSA, M. C. Homofobia: a angústia e medo de ser o que se é. In: VI


Congresso Internacional de Estudos Sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH, v. 1,
n. 1. Anais... Salvador: UFBA, 2012.

HASSLER, M. L. Direitos humanos e homossexualidade: conquistas e desafios – uma


contribuição. Revista Eletrônica Interdisciplinar, v. 3, n. 1, p. 21-36, 2010.

KONINGSBERG, R. D. The truth about grief – the myth of its Five stages and the new
science of loss. Nova Iorque: Simon & Schuster Paperbacks, 2011.

KOVÁCS, M. J. Educação para a morte – temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2012.

KOVÁCS, M. J. Comportamentos autodestrutivos e o suicídio In: KOVÁCS, M. J. Morte e


desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

KOVÁCS, M. J. Morte, separação, perdas e o processo e luto In: KOVÁCS, M. J. Morte e


desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

KÜBLER-ROSS, E. A roda da vida. Rio de Janeiro: Sextante, 1998.

KÜBLER-ROSS, E. Death is of vital importance – on life, death and life after death. Nova
Iorque: Station Hill Press, 1995.

KÜBLER-ROSS, E. O túnel e a luz – reflexões essenciais sobre a vida e a morte. Campinas,


SP: Verus Editora, 2003.

71
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2008.

LEENAARS, A. A. Lives and deaths: biographical notes on selections from the works of
Edwin S. Shneidman. Suicide and Life-Threatening Behavior. v. 40, n. 05, p. 476-491, 2010.

LINDEMANN, E. Symptomatology and management of acute grief. The American


Journey of Psychiatry, v. 101, p. 141-148, 1944.

LUKAS, C.; SEIDEN, H. M. Silent grief – living in the wake of suicide (rev. ed.). Londres,
Inglaterra: Jessica Kingsley Publishers, 2007.

MARCONI, M. A.; LAKATOS E. M. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Atlas,


2012.

MOLINA, L. P. P. A homossexualidade e a historiografia e trajetória do movimento


homossexual. Antíteses, v. 4, n. 8, p. 949-962, 2011.

MOTT, L. Homossexualidade: mitos e verdades. Editora Grupo Gay da Bahia: Salvador,


2003.

MOTT, L. Por que os homossexuais são os mais odiados dentre todas as minorias? In:
CORRÊA, M. (Org.) Gênero e Cidadania. Pagu/Núcleo e Estudos de Gênero: Unicamp,
2002.

MOTT, L.; MICHELS, E.; PAULINHO. Assassinato de LGBT no Brasil: Relatório de


2016. Bahia: GGB, 2016.

MOTT, L.; MICHELS, E.; PAULINHO. Mortes violentas de LGBT no Brasil – Relatório
2017. Bahia: GGB, 2017.

PARKES, C. M. Elisabeth Kübler-Ross, On death and dying: a reappraisal. Mortality, v.


18, n. 1, p. 94-97, 2013.

PARKES, C. M. Luto – estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.

PRAÇA, F. S. G. Metodologia da pesquisa científica: organização estrutural e os desafios


para redigir o trabalho de conclusão. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos”, 8, nº 01, p.
72-87, 2015.

REIS E SILVA, D. Na trilha do silêncio: múltiplos desafios do luto por suicídio. In:
CASELLATO, G. (Org.) O resgate da empatia: suporte psicológico ao luto não reconhecido.
São Paulo: Summus, 2015.

RODRIGUES, W. C. Metodologia Científica, 2007. Disponível em: <


http://www.hugoribeiro.com.br/bibliotecadigital/Rodrigues_metodologia_cientifica.pdf>
Acesso em: 10/09/2018.

72
Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p. 53-73 – ISSN 1808-6462

SILVA, L. C. da. Suicídio: o luto dos sobreviventes. In: CONSELHO FEDERAL DE


PSICOLOGIA. O suicídio e os desafios para a psicologia. Brasília: CFP, 2013.

STROEBE, M.; SCHUT, H. Overload: a missing link in the dual process model? Omega –
Journal of Death and Dying, v. 74, n. 1, p. 96-109, 2016.

STROEBE, M.; SCHUT, H. The dual process model of coping with bereavement: rationale
and description. Death Studies, v. 23, p. 197-224, 1999.

STROEBE, M.; SCHUT, H.; BOERNER, K. Cautioning health-care professionals:


bereaved persons are misguided through the stages of grief. Omega – Journal of Death and
Dying, v. 74, n. 4, p. 455-473, 2017.

SWEETING, H.; GILHOOLY, M. L. M. Anticipatory grief: a review. Social Science and


Medicine, v. 30, n. 10, p. 1073-1080, 1990.

TUMA, R. L.; MAIA, C. E. S. Casamento homossexual: legalização e ritual. Espaço e


Cultura, nº 38, p. 159-180, 2015.

WORDEN, J. W. Grief counseling and grief therapy – a handbook for the mental health
practitioner. Nova Iorque: Springer Publishing Company, 2009.

Artigo recebido em 28/01/2021 e aprovado para publicação em 25/03/2021

73

Você também pode gostar