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06/12/2022

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
repúdio
Trabalho final da disciplina "Sexualidade, conjugalidade e gênero: debates políticos
contemporâneos"
Ministrantes: Dr. Antonio Cerdeira Pilão e Dra. Marília Moschkovich
Aluna: Marília Calderón Borges de Paula

INCONSCIENTE (NÃO) MONOGÂMICO

Introdução
Tanto na clínica psicanalítica como nos debates políticos, sejam online ou presenciais,
temos acompanhado no Brasil do século XXI um grande crescimento de questionamentos críticos
em relação à Monogamia, assim como a ampliação de práticas e saberes que reivindicam e
reconhecem outros sistemas de parentesco, conjugalidade e regulação dos afetos, denominados
atualmente em grande parte dos casos pelo termo guarda-chuva "Não Monogâmicos". A
produção teórica psicanalítica brasileira, até agora, pouco tem contribuído de forma deliberada
para este debate, salvo raras exceções, como a dissertação de mestrado Problemática da
monogamia: investigações psicanalíticas acerca da instituição monogâmica em Freud e Horney
(2016), de Amorim e Belo, e o ensaio A psicanálise e a monogamia (2022), de Lucas Bulamah.
Como notam es psicanalistas Patrícia Amorim e Fábio Belo (2016), a monogamia - tema
relevante em termos culturais e clínicos - ainda que discutida em diversas áreas do conhecimento,
é muito pouco referenciada explicitamente no campo da psicanálise. Quando aparece, afirmam es
autories, é, via de regra, não como causa de investigações, mas como pressuposto estrutural,
naturalizado, a partir do complexo edípico: "...a questão da monogamia parece não ter sido
discutida no contexto histórico epistemológico da psicanálise" (AMORIM; BELO, 2017, p. 200).
Já o psicanalista Lucas Bulamah lembra-nos de como a psicanálise tende historicamente a ceder
ao conservadorismo e à normatividade que são criticadas e potencialmente subvertidas pela
própria teoria do inconsciente e da subjetividade desenhadas por Freud (BULAMAH, 2022).

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Se a Monogamia tem sido reconhecida, em nossa sociedade, como um problema - no
duplo sentido do termo, como realidade problematizável e também geradora de sofrimentos -
certamente não o é sem profundos atravessamentos inconscientes. Se, por um lado, o
inconsciente possibilita subversões e transformações; por outro, é também cenário de alienações e
repetições.

Ora, se o tempo da psicanálise é o passado, ou seja, se aceitamos o fato de que as


relações que estabelecemos, assim como nossos comportamentos em geral, são
moldados pelas nossas primeiras experiências, poderíamos pensar que: já que, inicial e
naturalmente como indica a suposição freudiana acerca da escolha de objeto amoroso, o
bebê humano desenvolve uma relação que poderíamos considerar monogâmica com a
mãe, com todas as exigências de monopólio e segurança que lhe são típicas, o caminho
normal para os relacionamentos amorosos futuros seria o da monogamia (AMORIM;
BELO, 2017, p. 206).

Ainda que a monogamia não seja natural, pois nenhuma relação o é (MOSCHKOVICH,
2022), quais as consequências de grande parte das relações afetivas primárias da população
brasileira ter se estabelecido em contextos conjugais (supostamente) monogâmicos? Quais as
marcas inconscientes deixadas por tais experiências, e por outras posteriores sob mesmo
enquadre, para parcelas LGBTQIAPN+ da população brasileira? Produziriam tais marcas um
destino compulsoriamente monogâmico ao desejo amoroso, ainda que frequentemente
insatisfeito? Ou as respostas a estas marcas seriam múltiplas, flexíveis, tornando possível
subvertê-las? O objetivo deste ensaio é investigar as raízes e consequências psíquicas
inconscientes da (não) monogamia, mais especificamente, para mulheres e pessoas
LGBTQIAPN+. A justificativa é a relevância e urgência em contribuir para o reconhecimento,
por parte de psicanalistas e da população em geral, do caráter problemático da compulsoriedade
monogâmica, associada à branquitude cisheteronormativa, sobretudo para mulheres e
(a)gêneros/sexualidades dissidentes.
O suporte epistemológico utilizado para tanto pretende-se "não monogâmico", buscando
prezar pela pluralidade no referencial teórico e pela relação dialética entre distintas áreas do
saber: sobretudo, a psicanálise e a antropologia. De início, será analisado o texto Moral sexual
civilizada e nervosismo moderno (FREUD, 1908), no qual Freud faz uma crítica à "moral sexual
civilizada" (monogâmica) e aponta para a necessidade de sua reforma. A partir disto, serão
estabelecidos diálogos com os textos "Racismo e sexismo na cultura brasileira" da antropóloga
Lélia Gonzalez, e O homem de cor e a branca (2018), do psicanalista Fanon, autories cujas

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produções teóricas nos possibilitam cruzar a temática dos relacionamentos sexoafetivos com
questões de raça, classe e gênero e compreender algumas relações entre monogamia e
branquitude. Por fim, será abordado o texto Conjugalidades e sexualidades em conflito:
monogamia e poliamor entre grupos LGBT (2021; tradução minha) do antropólogo Antônio
Pilão, a partir do qual veremos como parcelas da população LGBTQIAPN+ tem recepcionado e
produzido debates em torno da (Não) Monogamia no Brasil; buscaremos articular os conflitos
morais que emergem neste contexto com atravessamentos inconscientes de uma socialização
hegemonicamente monogâmica ditada por certa cisheteronormatividade branca e masculina.

Inconsciente (não) monogâmico

Ainda que diversos texto de Freud, como "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na
paranoia e no homossexualismo" (2006/1922), coloquem o amor monogâmico como uma escolha
natural, há, como afirmam Amorim e Belo (2017), um reconhecimento por parte de Freud de que
mecanismos na monogamia visam recalcar desejos inconscientes do sujeito; de outra forma, não
seriam necessárias as regulações legais às quais está submetida. Em Moral sexual cultural e
nervosismo moderno, tal reconhecimento se dá de maneira muito explícita. Neste texto, Freud
afirma: "...elas (as pessoas) estariam melhores, se lhes fosse possível ser piores"(FREUD, 1908,
p. 228).
Tal frase exprime uma significativa contradição do artigo de Freud. Pois se nele o autor
afirma que um estágio evolutivo com maior repressão dos instintos é mais civilizado do que um
estágio com menor repressão; por outro, o principal argumento do texto é justamente que a
repressão sexual atingiu um estágio tão avançado nas sociedades "civilizadas" que se tornou a
principal causa etiológica do nervosismo moderno (psiconeuroses), e que o saldo de tal repressão,
no fim das contas, é negativo: "a sociedade não pode alegar que obtém ganhos em troca de
sacrifícios, não pode alegar ganho algum, na verdade, quando paga a obediência a suas amplas
restrições com o aumento do nervosismo" (FREUD, 1908, p. 236). Ou seja, de acordo com a
argumentação de Freud, um estágio de repressão instintual "menos civilizado" é, para a
sociedade, melhor do que um estágio "mais civilizado". O pior, então, seria o melhor. Com esta
contradição, Freud acaba por não sustentar o pensamento evolucionista cujas categorias teóricas

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utiliza, e o que chama de mais "civilizado", pela sua própria descrição, nada mais é do que mais
repressor e causador de patologias.
Um autor que influenciou Freud a escrever "Moral sexual..." foi Von Ehrenfels, com o
livro Ética sexual. Para Ehrenfels, haveria duas morais sexuais: uma "natural", que permitiria a
um povo conservar-se duradouramente sadio e capaz, e outra "cultural", que estimularia um
trabalho cultural mais intenso e produtivo. Von considera que sob o domínio da segunda -
caracterizada pela "transferência para a vida sexual do homem de exigências feitas à mulher, e a
proscrição de toda relação sexual exceto as do casamento monogâmico" (FREUD, 1908, p. 221) -
a saúde e capacidade vital das pessoas estariam sujeitas a danos causados pelos sacrifícios a elas
impostos, tão elevados que comprometeriam até mesmo o objetivo cultural. Para Ehrenfels, "a
natural diferença dos sexos" obrigaria a punir menos rigorosamente as transgressões do homem,
admitindo uma "dupla moral" para este. A moral sexual "dupla", vigente em nossa sociedade no
tocante aos homens, dirá Freud, "é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita na
viabilidade das normas que estabeleceu" (FREUD, 1908, p. 230).
Interessante notar que Freud corrobora, no artigo em questão, a visão de Ehnernfels de
que a não monogamia seria "natural" e a monogamia "cultural", indo no sentido contrário ao que
percorre nos textos citados por Amorim e Belo, nos quais "naturaliza" a monogamia. E a respeito
dos efeitos nocivos da moral sexual "cultural" (monogâmica), acrescenta o incremento do
nervosismo que rapidamente se difunde na sociedade moderna. Afirma que os complexos
inconscientes associados aos sintomas neuróticos originam-se das necessidades sexuais de
pessoas insatisfeitas e representam uma espécie de satisfação substitutiva para elas: "em todos os
elementos que prejudicam a vida sexual, reprimem a atividade sexual e deslocam sua meta temos
de enxergar fatores patogênicos também das psiconeuroses" (FREUD, 1908, p. 224). O autor
aponta a importância, para a cultura, da sublimação - capacidade de trocar a meta originalmente
sexual por outra, não mais sexual, mas àquela aparentada psiquicamente -, mas afirma haver uma
certa medida, variável para cada pessoa, de satisfação sexual indispensável.
Considerando que a civilização está baseada na repressão dos instintos sexuais e
lembrando que estes não servem originalmente aos fins de procriação, tendo por meta
determinadas formas de ganhos de prazer, Freud estabelece alguns estágios de desenvolvimento,
tanto individuais quanto culturais: do autoerotismo, que ultrapassa livremente as metas da
reprodução, ao amor objetal, com a subordinação das zonas erógenas ao primado dos genitais e

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fins procriativos. Nos casos de "perversão" e "inversão", o desenvolvimento do instinto sexual
não teria se efetuado de modo correto. Desses "transtornos", teriam resultado estes dois desvios
nocivos da sexualidade "normal": os "pervertidos" seriam aqueles em que uma fixação infantil
numa meta sexual provisória teria estorvado o primado da função reprodutora; e os
"homossexuais" ou "invertidos", aqueles nos quais a meta sexual teria sido desviada do sexo
oposto.
Se, por um lado, Freud reproduz a binariedade e normatividade de sua época, afirmando
civilização como hierarquicamente superior a natureza e sexo-afetividades não genitais e
reprodutivas como transtornos e desvios, por outro, ele se contradiz e não corrobora a
necessidade de tais normas; pelo contrário, aponta-lhe a injustiça e o ônus. Freud argumenta que
a energia gasta com a repressão sexual por tais parcelas da população seria tanta que não lhes
sobrariam forças para utilizar no trabalho da cultura, o que aconteceria mesmo com homens e
mulheres heterossexuais. Nisso estaria "o malogro do processo, que, a longo prazo, mais que
contrabalançaria o êxito" (FREUD, 1908, p. 227). Freud afirma: "É uma evidente injustiça da
sociedade que o padrão cultural exija de todas as pessoas a mesma condução da vida sexual...uma
injustiça que, a bem dizer, geralmente é compensada pela não observância dos preceitos morais"
(FREUD, 1908, p. 228). Por fim, o autor insiste no ponto de vista de que "a neurose, não
importando o seu alcance e a quem atinja, sempre consegue fazer malograr as intenções da
cultura"; "Se juntarmos a isso que a limitação da atividade sexual de um povo é geralmente
acompanhada de um aumento da ansiedade perante a vida e da angústia em relação à morte...será
lícito perguntar se a nossa moral sexual "civilizada" é digna do sacrifício que nos impõe
(FREUD, 1908, p. 236). Freud aponta, como uma alternativa à saída neurótica, a não observância
aos preceitos morais monogâmicos.
Importante ressaltar minha discordância em relação à atribuição de naturalidade seja à
monogamia ou à não monogamia, em oposição a estágios que, distintamente, seriam "culturais".
Nenhuma sexualidade ou conjugalidade humana pode ser considerada natural, já que humanes
inevitavelmente operamos classificações e regras sobre as práticas sexuais à medida que as
percebemos e nomeamos. Compreendo ser por conta de classificações e regras já socialmente
estabelecidas que normas sociais monogâmicas são inconscientemente internalizadas e passam a
compor também, de forma conflituosa, as dimensões inconscientes do psiquismo, podendo este

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ser considerado a um só tempo não monogâmico E monogâmico, o que busco expressar com o
uso dos parênteses na expressão título do presente trabalho: "inconsciente (não) monogâmico".
Dito isto, transportemos a discussão para a realidade brasileira. A contraditória não
observância (não monogâmica) aos preceitos morais monogâmicos, apontada por Freud como
uma alternativa à saída neurótica, assume formas peculiares no Brasil do século XX e é abordada
por Lélia Gonzalez em Racismo e sexismo na cultura brasileira (2020) como parte sintomática
da própria neurose brasileira. Para Freud, alternativa à neurose; para Gonzalez, parte dela. Como
achar saída para uma neurose individual que não seja via de entrada em uma neurose coletiva?
Esta questão estará latente em Racismo e sexismo na cultura brasileira, em que Gonzalez busca
elucidar o porquê da identificação, já analisada por um Fanon, do dominado com o dominador,
no Brasil muito bem manifesta pela aceitação e divulgação do mito da democracia racial.
Ainda antes de adentrar o texto de Gonzalez, façamos então uma breve digressão a Fanon.
Em Pele negra, máscaras brancas (2018), no capítulo "O homem de cor e a branca", Fanon
discorre sobre o desejo do negro de ser reconhecido como branco, e analisa um romance
autobiográfico de René Maran para tentar compreender o que se passa. No romance, a
personagem Jean Veneuse, um homem negro, constata: "Amo Clarissa, Amo Madame Coulanges
e é Andréa Marielle que eu amo." (FANON, 2018, p. 72). O que não deixa de parecer na presente
discussão um exemplo de amor "não monogâmico", no romance analisado por Fanon é
interpretado como consequência da identificação de Veneuse pelo homem branco dominador. Ao
amar Andréa, uma mulher branca, a personagem buscaria a prova de sua própria humanidade em
meio a uma sociedade que a nega, e ao amar as outras, estaria buscando estudar Andrea a partir
de traços identificados em outras, já que com sua amada qualquer desfecho favorável pareceria
impossível. "Historicamente, sabemos que o negro acusado de ter dormido com uma branca era
castrado. O negro que possuiu uma branca torna-se tabu para os seus semelhantes" (FANON,
2018, p. 75). Mas não apenas o racismo está na base dos conflitos amorosos de Veneuse segundo
a interpretação de Fanon; também a neurose. Para defini-la, o autor recorre à obra de Germaine
Guex, La névrose d'abandon:

Opondo a neurose dita de abandono, de natureza pré-edipiana, aos verdadeiros conflitos


pós-edipianos descritos pela ortodoxia freudiana, a autora analisa dois tipos de neurose,
dos quais o primeiro parece ilustrar a situação de Jean Veneuse: "É sobre o tripé da
angústia que qualquer abandono desperta, da agressividade que ela provoca e da
desvalorização de si daí decorrente, que se edifica toda a sintomatologia desta neurose"
(...) De que estamos tratando aqui? De dois processos: Não quero que me amem. Por

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quê? Porque um dia, há muito tempo, esbocei uma relação objetal e fui abandonado.
Nunca perdoei minha mãe. Tendo sido abandonado, farei sofrer o outro, e abandoná-lo
será a expressão direta de minha necessidade de revanche. (FANON, 2018, p. 77)

Fanon afirma que Jean Veneuse é um abandônico negro, que precisa se libertar de seus
delírios infantis. "A estrutura neurótica de um indivíduo será justamente a elaboração, a
formação, a eclosão no ego de nódulos conflituais provenientes em parte do meio ambiente, em
parte da maneira toda pessoal com que este indivíduo reage a essas influências". Considerando
compreensível que o preto tente elevar-se à gama de cores às quais o branco confere hierarquia,
Fanon aponta, para além da saída neurótica, "uma outra solução possível. Ela implica uma
reestruturação do mundo" (FANON, 2028, p. 82).
Com esta breve digressão, já podemos perceber a articulação dialética que Fanon opera
entre duas dimensões também muito presentes na cultura brasileira: racismo e neurose. Não por
acaso Gonzalez cita Fanon já na epígrafe de seu texto, pois o autor será - junto com Freud e
Lacan - forte influência para a análise, também dialética, que a autora empreenderá entre as
mesmas duas dimensões, mas com outro enfoque: não na relação entre homem negro e mulher
branca, como em Fanon, e sim na relação entre mulher negra e homem branco. Acrescenta, para
tal análise, uma terceira dimensão: a do sexismo. Gonzalez afirma: “O lugar em que nos situamos
determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o
racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”
(GONZALES, 2020: 76).
A hipótese de Gonzalez, muito bem articulada no texto, é a de que a batalha discursiva em
termos de cultura brasileira foi ganha pela negritude; sendo a mãe preta a exercer a função
materna e o herói preto - Macunaíma, Zumbi, Pelé, etc. - a exercer a função paterna em tal
cultura, resta ao europeu, branco, dominador, o lugar de "corno", e à europeia, branca, o lugar de
"outra". No Carnaval, exaltação do mito da democracia racial, manifesta-se o reinado da mulher
preta - ou "mulata" - e do homem preto - herói da cultura; mas tal reinado será, nos demais dias
do ano, recalcado com altas cargas de agressividade cotidiana sobre a empregada doméstica e
outras figuras subalternas relegadas às pessoas pretas. Ou seja, a aceitação e divulgação do mito
da democracia racial é associada por Gonzalez a uma neurose composta pela "nega ativa" do
racismo e pela culpabilidade branca pelo endeusamento dos significantes negros de nossa
"Améfrica Ladina". Gonzalez nos lembra que o engendramento da mulata e da doméstica se
fizeram a partir da figura da mucama e seus "serviços sexuais" e, citando Heleieth Saffioti, que a

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mulher negra acabou por se converter no "instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava
a ordem estabelecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familiar"
(GONZALES, 2020: 82).
Interessante notar o uso que Gonzalez faz de termos pejorativos associados à
conjugalidade monogâmica para se referir a pessoas brancas identificadas por ela com posições
dominantes: "corno" para homem branco, e "outra" para a mulher branca. Cabe lembrar que a
normatividade monogâmica, dita hegemônica nas sociedades ocidentais, nunca alcançou da
mesma forma pessoas de diferentes raças, classes, gêneros, sexualidades e demais marcadores da
diferença. Como nos lembra o antropólogo Rhuann Fernandes em O amor é? Negritude e
relações não-monogâmicas: as dimensões micropolíticas do afeto (2022, p. 16), foram homens
(cis) europeus brancos que atribuíram ao casamento monogâmico estatuto de decência e foco
central da vida de indivíduos modernos, buscando impô-lo por meio da colonização àqueles
considerados atrasados no processo civilizatório. Ainda que assimilada, como o mito da
democracia racial, por pessoas marcadas por diversas racialidades, classes, gêneros, sexualidade
etc. a partir da identificação do dominado com o dominador, talvez possamos dizer que a
monogamia é, portanto, "coisa de homem (cis) branco". E Gonzalez usa as categorias pejorativas
criadas pelo próprio para apontar-lhe o furo, dado que este nunca praticou de modo coerente a
monogamia que impôs, e a cultura brasileira - na qual, de acordo com a autora, reina de fato o
discurso negro - é fundada nesse furo.
Gonzalez aponta exemplos peculiares da "dupla moral" do homem branco que vimos em
Freud, mostrando como a mulher negra, nas figuras de mucama, mulata, empregada doméstica ou
mãe preta, perpassa toda a formação cultural brasileira como sujeito/objeto de desejo sexoafetivo
extraconjugal e agressividade por parte do homem branco, num descumprimento sistemático por
parte deste da normatividade (supostamente) monogâmica que lhe beneficia. A autora, vale
ressaltar, não utiliza as categorias "monogamia", "não monogamia" e afins em seu texto, mas
uma leitura atenta permite perceber tais dimensões bastante presentes nas entrelinhas.
Ora, se, como nos informam Fanon e Gonzalez, a pessoa negra, ao identificar-se com o
dominador branco, busca neuroticamente o reconhecimento de sua humanidade negada pelo
racismo, o que leva mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ a identificarem-se também com o
dominador e aderirem à monogamia, patriarcal e heteronormativa por excelência?

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Em Conjugalidades e sexualidades em conflito: monogamia e poliamor entre grupos
LGBT (2021), Pilão busca contribuir para a compreensão dos conflitos morais em torno da (não)
monogamia/poliamor entre LGBT a partir de uma netnografia realizada entre 2012 e 2017.
Poliamor, como nos lembra o autor, é um termo cunhado nos Estados Unidos durante os anos
1990 para se referir à possibilidade de se estabelecer múltiplos, consensuais e igualitários
relacionamentos sexo-afetivos (CARDOSO, 2010; PILÃO and GOLDENBERG, 2012; VAZ DA
SILVA, 2017). Diferentemente de "relacionamento aberto" ou "swing", não apenas admite uma
multiplicidade de parcerias sexuais, mas inclui a possibilidade de amar mais do que uma pessoa e
sustentar mais de um relacionamento ao mesmo tempo (KLESSE, 2006; PILÃO, 2013;
SILVÉRIO, 2018).
Seu estudo revelou que, embora poliamoristas compreendam a monogamia e a
heterossexualidade como normas complementares, há divergências quanto a isso entre lésbicas,
gays e bissexuais. Nessas discussões, o interesse central de gays recai sobre a luta pelo direito ao
casamento monogâmico, o que leva a uma depreciação da promiscuidade sexual, vista como
obstáculo à obtenção de respeito. Contra esta tendência, há também os que defendem a "liberdade
sexual" e a chamada "promiscuidade", mas a questão da multiplicidade amorosa raramente
emerge. Já nos grupos de lésbicas Pilão afirma ter encontrado uma ênfase no diálogo,
honestidade e cuidado entre parcerias, junto com o desejo de romper com uma lógica (masculina)
que privilegiaria a liberdade em detrimento da responsabilidade afetiva. Aqui o poliamor pode ser
tão legítimo quanto a monogamia, contanto que relacionamentos com bissexuais sejam evitados,
por serem vistas como subordinadas aos interesses dos homens e cúmplices da dominação
masculina. Entre bissexuais, Pilão aponta que a redução da bissexualidade à não monogamia é
vista como uma barreira ao processo de reivindicar uma identidade específica. Duas atitudes
resultam da necessidade de mostrar que a orientação sexual independe de qualquer arranjo
conjugal: umas consideram que tanto a monogamia quanto o poliamor são igualmente possíveis
para bissexuais; outras criticam qualquer associação entre poliamor e bissexualidade.
Um tema compartilhado entre lésbicas, gays e bissexuais é, assim, a necessidade de lidar
com a acusação de serem incapazes de construir uniões sólidas. Laços entre mulheres são vistos
como menos relevantes, entre homens como puramente sexuais e bissexuais são consideradas
incapazes de se comprometer com uma única parceria por vez. Num esforço de resistir à

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deslegitimação de suas experiências amorosas, lésbicas, gays e bissexuais frequentemente se
distanciam do poliamor para evitar um duplo estigma (PILÃO, 2021, p. 15).
Nota-se, portanto, que pessoas estigmatizadas de diversas formas por uma
cisheteronormatividade monogâmica, acabam, muitas vezes, por identificar-se com as mesmas
normas que as oprimem como forma de defender-se do estigma e da opressão. Mas, como
apontado no presente ensaio, os mecanismos de identificação entre dominado e dominador não se
dão apenas de forma consciente, mas também inconsciente. Além da neurose e da busca por
adaptação, que outra saída poderia haver para a estigmatização e exclusão sofridas por mulheres e
pessoas LGBTQIAPN+ senão uma reestruturação do mundo, como nos apontou Fanon? E, para
tanto, faz-se necessária a conscientização política do caráter excludente e hierárquico da
monogamia.

Considerações finais
Vimos como o tema da não monogamia, apesar de relevante clínica e culturalmente, ainda
tem sido pouco abordado pela psicanálise. Partimos então de um texto em que o próprio Freud
analisa a monogamia enquanto problema cultural e trouxemos a discussão para o contexto
brasileiro. Neste, vimos como Gonzalez, inspirada pela análise dialética de Fanon sobre neurose e
racismo, percebe a não observância aos preceitos morais monogâmicos não como uma saída para
a neurose, tal qual em Freud, mas como parte da própria neurose cultural brasileira chamada
racismo, o qual se articula com o sexismo e tem na mulher negra uma figura central. Vimos como
a identificação entre dominado e dominador se dá também, de formas diferentes, entre mulheres e
pessoas LGBTQIAPN+ e, por fim, suspeitamos que a saída para a neurose, seja de pessoas
negras, mulheres ou LGBTQIAPN+ identificadas com as normas monogâmicas, não seria apenas
a não observância individual de tais normas morais, como apontado por Freud, mas sua
reestruturação coletiva - uma reestruturação do mundo, tal como apontou Fanon como saída à
neurose do abandônico negro.

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Referências Bibligráficas
AMORIM, Patrícia Mafra de. "A monogamia na obra de Freud". In: Problemática da
monogamia: investigações psicanalíticas acerca da instituição monogâmica em Freud e Horney.
Dissertação (mestrado) - UFMG. Belo Horizonte, 2016.

FANON, Franz. "O homem de cor e a branca". In: Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador:
Edufba, 2018, p. 69-82.

FREUD, S.; SOUZA, P. C. (trad). "A moral sexual "cultural" e o nervosismo moderno". In:
Obras completas volume 8. Companhia Das Letras. São Paulo: 2021.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: RIOS, Flavia e LIMA, Márcia
(orgs). Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

LUCAS, Bulamah. A psicanálise e a não monogamia. Revista Cult, São Paulo, edição 286,
outubro 2022. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/psicanalise-e-monogamia-
esboco-de-uma-pesquisa/. Acesso em: 22 nov. 2022.

MOSCHKOVICH, Marília. Amor não é um sentimento. Revista Cult, São Paulo, edição 286,
outubro 2022. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/apresentacao-dossie-ascensao-e-queda-da-monogamia-2/.
Acesso em: 22 nov. 2022.

PILÃO, A.C. Conjugalities and sexualities in conflict: monogamy and polyamory among LGBT
groups. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, Florianópolis, v 18, 2021.

PORTO, Rhuann Lima Fernandes. O amor é? Negritude e relações não-monogâmicas: as


dimensões micropolíticas do afeto. 2022. 253 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) -
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UERJ, Rio de Janeiro, 2022.

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