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EC – Como assim?
Miskolci – Nessa linha, a linguagem precisaria ser neutra para
garantir igualdade? A neutralidade de gênero na linguagem é
possível? Seria tal proposta adaptável ao português sem criar ruídos
comunicacionais como os evidentes percalços que cria para aqueles
que usam equipamentos para ler? Gênero é social, coletivamente
assignado, mas cotidianamente negociado pelos sujeitos.
Renegociar a linguagem como meio para garantir a igualdade é algo
a ser discutido, tendo por base qual compreensão de gênero
embasa os argumentos a favor ou contra. Na perspectiva
sociológica, compreender as regulações de gênero não leva
necessariamente à neutralidade, tampouco neutralidade é sinônimo
de igualdade e condições de existência dignas. Abundam exemplos
de pessoas que questionam o gênero assignado ao nascer e têm
outra identificação de gênero que não a atribuída pelo aparato
médico-legal, mas – na imensa maioria dos casos – essas mesmas
pessoas demandam (outro) gênero e não um suposto status não
generificado.
EC – Oportunismo político?
Miskolci – O enquadramento das disputas foi moral: políticos
conservadores se apresentando como os supostamente legítimos
defensores da família e da infância contra ativistas e pesquisadores
progressistas que se apresentaram como detendo superioridade em
sua demanda de reconhecimento e igualdade. Questões que
poderiam ser discutidas na linguagem do direito e da saúde pública
terminaram como temas de disputa autoritária de lado a lado: os
conservadores buscando restabelecer uma hierarquia social
anacrônica e os progressistas fazendo uso de táticas como a
vigilância comportamental e vocabular, como suposto meio de
alcançar a igualdade.
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EC – Moralismo eleitoreiro?
Miskolci – Sem diálogo ou negociação, as batalhas morais
beneficiaram os conservadores, já que, historicamente, se associa a
eles o monopólio da moralidade. O ativismo e a própria área de
pesquisa em gênero e sexualidade contribuíram para sua própria
derrota ao lidarem com seus adversários em termos que os
favoreciam.
EC – E a cultura de cancelamento?
Miskolci – Além disso, a área se fragilizou pela intensificação do
patrulhamento ideológico, da destruição de reputações, escrachos
e, desde o advento da internet, dos cancelamentos. A
preponderância de interesses políticos sobre os científicos gerou
ovos de Colombo conceituais e teóricos. Cabe questionar as razões
por trás da emergência de termos como cis e cisnormatividade,
ambos derivados de uma compreensão de gênero estática e
mecânica. No fundo, cis é uma noção que atribui coerência e
estabilidade a todas as pessoas que não são trans. As evidências
socioantropológicas provam o contrário, pois a maioria das pessoas
– de uma forma ou de outra – não tem reconhecida sua “coerência”
de gênero.
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Foto: Ed Autêntica/Divulgação
EC – Com o isso se dá?
Miskolci – Isso se passa até entre homens e mulheres
heterossexuais, mas é ainda mais radical entre homossexuais, quer
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sejam gays ou lésbicas, historicamente acusados de serem
“invertidos”, com um gênero falho ou até patológico. Jovens
femininos, quer sejam gays ou não, têm a experiência cotidiana de
serem xingados de “mulherzinha” ou “maricas”, e mesmo
homossexuais masculinos tendem a receber apelidos e xingamentos
que os feminilizam, como o termo “Barbie” atribuído a homens gays
musculosos ou atléticos. Tais noções de cis/cisnormatividade não
têm bases epistemológicas, tampouco empíricas. Então, cabe
perguntar: por que se disseminaram? Atendem a quais interesses? É
plausível a hipótese de que visam estabelecer uma hierarquia interna
ao campo de pesquisa e do ativismo em que homens gays, mulheres
lésbicas e bissexuais sejam secundarizados, já que seriam “cis” e,
nessa linha de raciocínio, supostamente mais próximos da
“normalidade”.
EC – O que fazer?
Miskolci – Cabe acompanhar para saber qual será a composição
futura do campo de pesquisa, a correlação de forças e agenda de
investigação daqui a alguns anos. É provável que a área saia
enfraquecida em relação ao que atingira no início deste século e não
apenas por seus adversários ou um suposto complô global
antigênero, mas também pelas suas divisões, fragilidades internas e
opções estratégicas equivocadas.
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