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Avanços, equívocos e

retrocessos nas lutas identitárias


Richard Miskolci é um dos
precursores em pesquisas
relacionadas à Teoria Queer
na academia brasileira. Nesta
breve entrevista, – em
continuidade à reportagem A
gramática da inclusão,
publicada na edição impressa
258, de outubro de 2021 – o
PHD em Sociologia, professor
titular da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp) e
pesquisador do Conselho
Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico
(CNPq), fala um pouco de sua
compreensão sobre o que
entende por
Richard Miskolci, PHD em Sociologia, professor
“desconhecimento ou
titular da Universidade Federal de São Paulo
interesse em refutar teorias (Unifesp) e pesquisador do Conselho Nacional
sobre gênero em favor de de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq)
políticas identitárias que são,
Foto: Acervo Pessoal/Divulgação
ao mesmo tempo, anti-
intelectuais e autoritárias”. Miskolci lançou recentemente pela
Autêntica o livro Batalhas Morais: política identitária na esfera
pública técnico-midiatizada.

Richard já havia conversado com o Extra Classe em 2012 sobre os


livros Discursos fora da Ordem: deslocamentos, reinvenções e
direitos (Fapesp/Anna Blume Editora) e Teoria Queer: um
aprendizado pelas diferenças (Ed. Autêntica).

Extra Classe – Na sua ótica, parte da questão da dita linguagem


neutra ou não binária carrega um certo modismo?
Richard Miskolci – Propostas de linguagem neutra podem ser vistas
como expressão de demandas de igualdade no âmbito da
comunicação interpessoal e, sobretudo, nos espaços educacionais,
burocráticos, coletivos. Não deveria haver dúvidas de que a
sociedade deve ser inclusiva e respeitosa em relação às diferenças
de gênero. Dito isso, o que merece ser discutido é se a igualdade se
alcança pelo que chamam de linguagem neutra. Ter um vocabulário
para compreender seu local no mundo é fundamental para que
grupos historicamente subordinados possam demandar
reconhecimento, mas tal vocabulário – compreendido aqui de forma
sociológica e educacional – não necessariamente exige reformar a
língua.

EC – Como assim?
Miskolci – Nessa linha, a linguagem precisaria ser neutra para
garantir igualdade? A neutralidade de gênero na linguagem é
possível? Seria tal proposta adaptável ao português sem criar ruídos
comunicacionais como os evidentes percalços que cria para aqueles
que usam equipamentos para ler? Gênero é social, coletivamente
assignado, mas cotidianamente negociado pelos sujeitos.
Renegociar a linguagem como meio para garantir a igualdade é algo
a ser discutido, tendo por base qual compreensão de gênero
embasa os argumentos a favor ou contra. Na perspectiva
sociológica, compreender as regulações de gênero não leva
necessariamente à neutralidade, tampouco neutralidade é sinônimo
de igualdade e condições de existência dignas. Abundam exemplos
de pessoas que questionam o gênero assignado ao nascer e têm
outra identificação de gênero que não a atribuída pelo aparato
médico-legal, mas – na imensa maioria dos casos – essas mesmas
pessoas demandam (outro) gênero e não um suposto status não
generificado.

EC – E que pode ser considerado o modismo no meio disso?


Miskolci – O que pode se revelar um modismo é a autoclassificação
como “não binário”. Trata-se de algo muito recente e que precisa ser
estudado para averiguar se não se trata de uma classificação de um
segmento da cultura jovem contemporânea. Autoclassificar-se como
isso ou aquilo no que se refere ao gênero expressa tanto insatisfação
com a identidade atribuída socialmente à pessoa como a expectativa
de deter o poder sobre o gênero, como se gênero fosse algo que
alguém tem e não o resultado de regimes regulatórios, em que o
gênero é sempre atribuído a nós pelos outros, pela sociedade, pelo
aparato médico-legal, por exemplo.

“Sem diálogo ou negociação, as batalhas morais beneficiaram os


conservadores, já que, historicamente, se associa a eles o monopólio
da moralidade. O ativismo e a própria área de pesquisa em gênero e
sexualidade contribuíram para sua própria derrota ao lidarem com
seus adversários em termos que os favoreciam”

EC – E na perspectiva dos gêneros?


Miskolci – Em uma perspectiva informada pelas teorias de gênero –
de Scott a Butler –, tal autoclassificação não para em pé e lembra
rótulos ou identidades que se disseminam pelas mídias e mudam
depois de alguns anos, como o já esquecido “metrossexual”. Não por
acaso, costumam ser adotadas por figuras midiáticas, além de
gerarem um segmento de consumo. Só pesquisas poderiam
confirmar se tal autoclassificação (não binário) pode se efetivar na
vida cotidiana, já que vivemos em uma sociedade conectada, em
que as pessoas tendem cada vez mais a se confundirem com seus
:
perfis on-line. As estratégias midiáticas de construção de um perfil
não são necessariamente afeitas à vida cotidiana e às relações face
a face, nas quais as pessoas se deparam com forças sociais que –
por trás da tela do computador em uma rede social – podem ignorar,
recusar, bloquear. Na rua, no trabalho, na escola temos que negociar
nossas identificações.

EC – Os defensores da linguagem não binária dizem que o


português seria uma língua que, em geral, ao categorizar as
palavras como masculino e feminino (o tijolo, a cadeira), daria
margem para excluir ou inviabilizar grupos no masculino
genérico. Você concorda?
Miskolci – Não sou linguista e só posso circunscrever minha análise
à minha expertise de sociólogo e pesquisador na área de gênero e
sexualidade. Nessa perspectiva, o gênero gramatical não equivale ao
gênero compreendido socialmente e o que é atribuído a um objeto
não exclui sujeitos ou os inviabiliza. Vejo a generificação como algo
histórico e culturalmente situado, portanto, discutir linguagem
inclusiva envolve pensar no Brasil, em nossa sociedade e nas formas
como negociamos culturalmente os gêneros, os hierarquizamos ou
buscamos compreendê-los cada vez mais de forma igualitária.
Apagar o gênero das palavras por si só não garante melhoria
comunicacional, tampouco maior igualdade política. Cabe
reconhecer que temos uma língua latina e que é diferente criar
neologismos nela ou em uma língua germânica como o inglês. Há
línguas sem gênero, como o húngaro, o que não significa que ela é
neutra, tampouco que não exista desigualdade de gênero na
Hungria.

EC – Esse debate começou a ganhar corpo por volta de 2012,


por aí. De lá para cá, como em tudo num país polarizado, temos
defensores árduos e detratores também árduos. Como você vê
essa polarização?
:
Miskolci – Em Batalhas Morais, meu livro mais recente, exploro tanto
a emergência de uma campanha contra os estudos de gênero e os
direitos sexuais e reprodutivos como os descaminhos dentro da área
de pesquisa e do ativismo sexual e de gênero. A polarização que
você menciona realmente se intensifica por essa época. Costumo
datá-la a partir do uso eleitoral do tema do aborto pelo PSDB na
campanha eleitoral de 2010, a eleição de Dilma Rousseff como
primeira mulher presidente e o reconhecimento das uniões entre
pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de
2011. A partir desses eventos, começou a se formar um campo de
disputa pela opinião pública a respeito de temas que envolvem
gênero e sexualidade.

“Apagar o gênero das palavras por si só não garante melhoria


comunicacional, tampouco maior igualdade política. Cabe
reconhecer que temos uma língua latina e que é diferente criar
neologismos nela ou em uma língua germânica como o inglês.
Há línguas sem gênero, como o húngaro, o que não significa que
ela é neutra, tampouco que não exista desigualdade de gênero
na Hungria”

EC – Oportunismo político?
Miskolci – O enquadramento das disputas foi moral: políticos
conservadores se apresentando como os supostamente legítimos
defensores da família e da infância contra ativistas e pesquisadores
progressistas que se apresentaram como detendo superioridade em
sua demanda de reconhecimento e igualdade. Questões que
poderiam ser discutidas na linguagem do direito e da saúde pública
terminaram como temas de disputa autoritária de lado a lado: os
conservadores buscando restabelecer uma hierarquia social
anacrônica e os progressistas fazendo uso de táticas como a
vigilância comportamental e vocabular, como suposto meio de
alcançar a igualdade.
:
EC – Moralismo eleitoreiro?
Miskolci – Sem diálogo ou negociação, as batalhas morais
beneficiaram os conservadores, já que, historicamente, se associa a
eles o monopólio da moralidade. O ativismo e a própria área de
pesquisa em gênero e sexualidade contribuíram para sua própria
derrota ao lidarem com seus adversários em termos que os
favoreciam.

EC – E a cultura de cancelamento?
Miskolci – Além disso, a área se fragilizou pela intensificação do
patrulhamento ideológico, da destruição de reputações, escrachos
e, desde o advento da internet, dos cancelamentos. A
preponderância de interesses políticos sobre os científicos gerou
ovos de Colombo conceituais e teóricos. Cabe questionar as razões
por trás da emergência de termos como cis e cisnormatividade,
ambos derivados de uma compreensão de gênero estática e
mecânica. No fundo, cis é uma noção que atribui coerência e
estabilidade a todas as pessoas que não são trans. As evidências
socioantropológicas provam o contrário, pois a maioria das pessoas
– de uma forma ou de outra – não tem reconhecida sua “coerência”
de gênero.
:
Foto: Ed Autêntica/Divulgação
EC – Com o isso se dá?
Miskolci – Isso se passa até entre homens e mulheres
heterossexuais, mas é ainda mais radical entre homossexuais, quer
:
sejam gays ou lésbicas, historicamente acusados de serem
“invertidos”, com um gênero falho ou até patológico. Jovens
femininos, quer sejam gays ou não, têm a experiência cotidiana de
serem xingados de “mulherzinha” ou “maricas”, e mesmo
homossexuais masculinos tendem a receber apelidos e xingamentos
que os feminilizam, como o termo “Barbie” atribuído a homens gays
musculosos ou atléticos. Tais noções de cis/cisnormatividade não
têm bases epistemológicas, tampouco empíricas. Então, cabe
perguntar: por que se disseminaram? Atendem a quais interesses? É
plausível a hipótese de que visam estabelecer uma hierarquia interna
ao campo de pesquisa e do ativismo em que homens gays, mulheres
lésbicas e bissexuais sejam secundarizados, já que seriam “cis” e,
nessa linha de raciocínio, supostamente mais próximos da
“normalidade”.

EC – Uma ideia de superioridade ou de prerrogativa?


Miskolci – O fato é que nenhuma orientação sexual ou identificação
de gênero em si própria credencia um segmento a ter prioridade às
suas demandas em relação à de outros segmentos estigmatizados,
tampouco garante uma perspectiva intelectualmente privilegiada,
crítica em relação às normas ou apartada das expectativas de
normalidade e aceitação coletiva. A transformação do gênero de um
regime regulatório universal – desigual e violento para todo mundo –
em uma suposta ordem “cis” serve, sobretudo, como meio de
hierarquização interna dentro do coletivo político imaginário LGBTI+,
garantindo o monopólio da palavra e da agenda a um de seus
segmentos.

EC – Quem ganha com o debate como está posto?


Miskolci – Em suma, até o momento, a polarização política – no que
se refere aos temas de gênero e sexualidade – favoreceu os
conservadores na arena pública, e as respostas intelectuais ao
quadro contemporâneo tenderam a uma (re)naturalização do gênero
:
como identidade. Estudiosos do conceito e das teorias de gênero
sabem como se demandou imenso trabalho acadêmico de gerações
de pesquisadoras que, por décadas, lutaram para superar visões
naturalizantes e/ou identitárias que agora retornam em nova
embalagem. O contexto interno ao campo do ativismo e da pesquisa
tornou-se tão insalubre, que muitos mudaram de área ou optaram
por mapear os adversários do campo em uma empreitada que,
ironicamente, reproduz a paranoia dos conservadores e suas teorias
conspiratórias, apenas com sinal trocado. O cenário é marcado por
expulsos, autoexilados do campo ou ainda os que, mantendo-se
nele, como provável estratégia de sobrevivência, evitam discutir suas
fraturas e violências internas.

EC – O que fazer?
Miskolci – Cabe acompanhar para saber qual será a composição
futura do campo de pesquisa, a correlação de forças e agenda de
investigação daqui a alguns anos. É provável que a área saia
enfraquecida em relação ao que atingira no início deste século e não
apenas por seus adversários ou um suposto complô global
antigênero, mas também pelas suas divisões, fragilidades internas e
opções estratégicas equivocadas.

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