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VIRILIO, Paul. Estética da desaparição. Trad. Vera Ribeiro.

Rio de Janeiro:
Contraponto, 2015.

CRARY, Jonathan. Introdução

Para Kant, o papel essencial do tempo era unir de maneira coerente todos os elementos
do conhecimento, estabelecendo uma relação entre o pensamento e a percepção. Ou
seja, o tempo é visto como a condição necessária de qualquer experiência particular que
tenhamos; o tempo é aquilo que torna possível e inteligível a percepção (CRARY, 2015,
p. 10).

[...] a experiência, como duração, sempre se constituiu como algo dessincronizado e


fraturado [...] temática da “picnolepsia” [...] vértice da fenomenologia da percepção [...]
A “fenomenologia” de Virilio (que ele substituiria pelo termo “logística”) descobre que
a percepção compõe-se de rupturas, ausências, deslocamentos, bem como da capacidade
de produzir colchas de retalhos de vários mundos contingentes (CRARY, 2015, p. 11).

Para o picnoléptico também não aconteceu nada, o tempo ausente não existiu; só que, a
cada crise, sem que ele desconfie, um pouco de sua duração simplesmente lhe escapava
(VIRILIO, 2015, p. 19).

[...] o hábito de ressoldar as sequências, de reajustar seus contornos para tornar


equivalentes aquilo que vemos e o que não pode ter sido visto, o que recordamos e
aquilo que, evidentemente, não podemos lembrar, aquilo que é preciso inventar, recriar,
para dar verossimilhança aos discursos (VIRILIO, 2015, p. 20).

[...] a picnolepsia como fenômeno de massa, à noção de sono paradoxal (sono rápido),
que corresponde à fase dos sonhos, viria a somar-se, na ordem consciente, um estado de
vigília paradoxal (vigília rápida). Em suma, nossa vida consciente, que já pensamos
inconcebível sem os sonhos, seria igualmente impensável sem a vigília rápida
(VIRILIO, 2015, p. 24).

A busca das formas não passa de uma busca do tempo. Porém, quando não há formas
estáveis, não há mesmo uma forma do todo (VIRILIO, 2015, p. 26).
[...] o efeito de realidade torna-se o da presteza de uma emissão luminosa: o que se dá a
ver é visto graças à intermediação de fenômenos de aceleração e desaceleração, que em
tudo são identificáveis com as intensidades de iluminação. Ele faz da luz como que uma
sombra do tempo (VIRILIO, 2015, p. 27).

Um dos problemas da puberdade mais difundidos é a descoberta que o adolescente faz


do próprio corpo como estranho e estrangeiro, descoberta que é sentida como uma
mutilação, uma causa de desespero. Essa é a idade dos “maus hábitos” (drogas,
masturbação, álcool etc.), que ainda são apenas esforços de reconciliação consigo
mesmo, adaptações atenuadas do processo epiléptico desaparecido. A partir daí, há
também o uso descomedido de próteses técnicas de midiatização (rádio, moto, foto, som
etc.). O homem ponderado parece esquecer tudo da criança que foi e que se acreditava
eterna (E. A. Poe); entra de fato, como sugeriu Rilke, numa outra categoria de ausência
no mundo, num exílio ainda mais longínquo, na “exuberância e ilusão dos paraísos
imediatos, baseados nas estradas, nas cidades, no gládio...”, aos quais a tradição
judaico-cristã opõe uma nova partida para “um deserto de incertezas” (Abraham),
tempo perdido, verdes paraísos nos quais só podem entrar os adultos que voltam a ser
como crianças (VIRILIO, 2015, p. 28).

Imagens de uma sociedade vigilante, que marca horas iguais para todos (VIRILIO,
2015, p. 29).

Se admitirmos que a picnolepsia é um fenômeno que afeta a duração consciente de cada


um – para além do bem e do mal, um pequeno mal, como era chamado antigamente –,
veremos que a meditação sobre o tempo já não seria apenas a tarefa preliminar confiada
ao metafísico, hoje substituído por tecnocratas onipresentes. Qualquer um, na verdade,
seria levado a viver uma duração que seria sua e de mais ninguém, graças ao que
poderíamos chamar de conformação incerta de seus tempos intermediários. O ataque
picnoléptico seria algo que se poderia considerar uma liberdade humana, na medida em
que seria uma margem dada a cada um para inventar suas próprias relações com o
tempo e, portanto, um tipo de vontade e de poder para espíritos dentre os quais nenhum
“pode, misteriosamente, supor-se inferior a outro” (E.A. Poe). (VIRILIO, 2015, p. 30).
O estado de vigília paradoxal conciliaria as duas visões, em síntese: é a nossa duração
que pensa; a primeira produção da consciência seria sua velocidade própria, em sua
distância temporal. Donde a velocidade seria uma ideia causal, ideia anterior à ideia
(VIRILIO, 2015, p. 31).

[...] gozo do ato sexual, são chamadas de pequena morte, ou morte curta. Sobre o sono,
falamos de uma morte da qual se pode retornar, e assim por diante (VIRILIO, 2015, p.
39).

[...] a faculdade de sentir, ou seja, o sentimento estético, ocupa o centro do


desencadeamento epiléptico; a epilepsia é provocável e pode ser domesticada
(VIRILIO, 2015, p. 40).

É a maldição de Psiquê, na qual a luz externa destrói instantaneamente o cristal da


imagem amorosa. Eros foge e abandona a jovem no momento em que esta ilumina seu
rosto. Em termos mais simples, trata-se do antigo costume de deitar na cama jovens
esposos que, muitas vezes, nunca se haviam encontrado, e aos quais se dava o conselho
de não tentarem uma aproximação imediata, e sim dormirem, isto é, sonharem,
deixando a lei natural encarregar-se de criar entre eles a harmonia e a “vontade”.
Podemos contrastar com esse velho método o desertar excessivo da informação e da
educação sexual, que tem como resultado matar até a naturalidade dos gestos amorosos,
enquanto os psicanalistas passam a receber jovens ou casais racionalmente educados e
que, ainda assim, nem ao menos sabem “o que fazer com o sexo” (VIRILIO, 2015, p.
41).

O mundo é uma ilusão, e a arte consiste em apresentar a ilusão do mundo.


Michelangelo, por exemplo, abominava a execução de imagens que imitassem a
natureza ou pudessem assemelhar-se a modelos-vivos (VIRILIO, 2015, p. 43).

Olhar para o que não se olharia, escutar o que não se ouviria, atentar para o banal, o
comum, o abaixo do comum. Negar a hierarquia ideal que vai do crucial ao anedótico,
pois não existe o anedótico, e sim culturas dominantes que nos exilam de nós e dos
outros numa perda de sentido que, para nós, não é apenas uma sesta da consciência, mas
um declínio da existência (VIRILIO, 2015, p. 44).
Uma tecnologia desvinculada dos conceitos socioeconômicos ou culturais, que
ambiciona vir a ser a metáfora do mundo, erigindo-se em revolução da consciência. Isso
é substituir, em sua, o pseudoestado de vigília racional por um estado artificial de vigília
paradoxal, fornecendo aos homens uma assistência que se tornou subliminar (VIRILIO,
2015, p. 49).

De uns quarenta anos para cá, as próteses humanas seguiram os avanços extraordinários
da biologia, da física e da eletrônica. Durante esse breve período, passamos de aparelhos
antropomórficos quase inertes a sistemas de assistência ativa, em particular no campo
sensorial – um conforto subliminar que traz consigo, ao mesmo tempo, a crise das
dimensões e da representação (VIRILIO, 2015, p. 56).

O heterogênero sucede ao homogêneo, a estética da busca suplanta a busca de uma


estética, a estética da desaparição renova a empreitada da aparência [...] o cinema [...]
desde a origem oscila entre a produção de impressões luminosas persistentes e a pura
fascinação, que destrói a percepção consciente do espectador e contrasta com o
funcionamento natural do olho (VIRILIO, 2015, p. 58).

Não meditamos o suficiente sobre as causas profundas da revolução geral da tecnologia:


a miniaturização, esse reduzir a nada ou quase nada o tamanho de qualquer aparelho, é
não apenas fornecer peças de reposição ao organismo, colocando-as na escala do corpo
humano, mas é também criar no interior do indivíduo uma concorrência parassensível,
uma duplicação do ser-no-mundo (VIRILIO, 2015, p. 72).

Produzir as próteses de um conforto subliminar é produzir simuladores do dia, ou até do


último dia, metamorfose dos objetos da produção industrial em que o conjunto das
realidades econômicas viria substituir a cinemática (VIRILIO, 2015, p. 77).

O manejo do desejo pelos diferentes poderes já não é o manejo das vontades pelos
diferentes vetores, mas o da espera, de todas as esperas, possibilitando pelo
aparelhamento dos corpos (VIRILIO, 2015, p. 78).
Brevemente, não nos restará alternativa senão esquecer as distinções especiosas entre a
propagação de imagens ou ondas e a de objetos ou corpos, já que, doravante, toda
duração será estimada em termos de intensidade (VIRILIO, 2015, p. 78-79).

[...] a sedução, o distanciar-se de significado no seducere, assume aqui uma dimensão


cosmodinâmica: a sedução é um rito de passagem de um universo a outro, que implica
uma grade partida comum para a humanidade, o início de uma navegação dos corpos e
dos sentidos partindo de algo imutável para outro departamento do tempo, um espaço-
tempo essencialmente diferente, uma vez eu é vivido como instável, móvel, condutível,
transformável, como a criação de um segundo universo que depende inteiramente desse
rito de passagem inicial (VIRILIO, 2015, p. 82).

É que o prazer solitário proporcionado ao espectador de filmes pornô pelo motor


cinematográfico já anuncia o resumo que se esboça, e que é comparável ao da narrativa
de ficção científica em relação à hipótese bíblica: o desaparecimento dos intermediários
humanos e a emergência de uma sexualidade teriam a ver diretamente com o objeto
técnico, desde que este fosse motor, vetor do movimento. O filme de terror sucede
normalmente ao filme erótico, como uma realização mais perfeita da lei do movimento
num universo em que a ascensão tecnológica corresponde ao uso e a à busca de
velocidades excessivas (VIRILIO, 2015, p. 84).

Atrair o olhar é captá-lo e, portanto, desviar a atenção, ilusão de óptica num mundo
inteiramente percebido como ilusório (VIRILIO, 2015, p. 84).

O tempo da narrativa parece incompatível com a própria visão. Para tentar enxergar, é
preciso fazer intervir, paradoxalmente, um transtorno da visão, um efeito de câmera
lenta (VIRILIO, 2015, p. 88).

O motor cinemático nos habituou a achar natural o mistério do movimento deste mundo
que passa, a não mais nos perguntarmos como pode a aceleração de um gesto tornar-se
mortífera, como a pavana de um corpo que cai ou é impelido pode tornar-se fatal. Ao
mesmo tempo, essa violência banalizada do movimento revelada pela trucagem da
visão, mostra-nos sua incoerência; a violência da velocidade domina o mundo da
técnica, mas nem por isso deixa de ser, como na época da Esfinge, o principal enigma
(VIRILIO, 2015, p. 103).

Se tudo é movimento, tudo é, ao mesmo tempo, acidente. Nossa existência de veículo


metabólico poderia resumir-se numa série de colisões e traumatismos, uns assumindo o
aspecto de carícias lentas e perceptivas, ou, conforme o impulso que lhes seja dado,
tornando-se choques mortais, apoteoses de fogo, mas, sobretudo, uma outra maneira de
ser. A velocidade é uma causa de morte pela qual não apenas somos responsáveis como
da qual, mais ainda, somos criadores e inventores, conforme alguém escreveu. Quando
muito jovem, eu me interrogava sobre a estética das máquinas de guerra, o que, em meu
foro íntimo, eu chamava de seu enigma. Muitas vezes me detinha para contemplar um
bunker ou a silhueta de um submarino parado ao largo, perguntando-me por que suas
formas brilhosas eram tão indecifráveis, de onde vinha aquela espécie de invisibilidade
plástica (VIRILIO, 2015, p. 106).

[...] o desenvolvimento das altas velocidades técnicas levaria ao desaparecimento da


consciência como percepção direta dos fenômenos que nos dão informações sobre nossa
própria existência (VIRILIO, 2015, p. 107-108).

A tecnologia introduz um fenômeno sem precedentes na meditação do tempo (VIRILIO,


2015, p. 108).

O cinema seria o resultado no qual viriam confundir-se, para se perder, as filosofias e as


artes dominantes, numa espécie de confusão primária entre a alma humana e as
linguagens da alma-motor (VIRILIO, 2015, p. 108).

A cultura tecnológica só fez aperfeiçoar essa apropriação dos elementos motores. Ela
aumenta sem cessar a nossa dependência de sistemas de controle (contadores de
velocidade, painéis de bordo, controles remotos etc.). Criadora de itinerários de direção,
aplica à terra e à natureza (à natureza humana) a formulação de Bacon – Nada é mais
vasto que as coisas vazias – e acaba criando o vazio e o deserto, pois só o nada é
contínuo e, portanto, condutor (VIRILIO, 2015, p. 109).

A palavra não parece inopinada (VIRILIO, 2015, p. 110).


[...] o instante seria como se a percepção ilusória de uma estabilidade, claramente
revelada pela prótese técnica, como nos é mostrado pelo exemplo einsteiniano dos trens
que se ultrapassam: a sensação de instante seria dada apenas por coincidência
[epiteikos], no momento em que os dois trens parecem imóveis para os viajantes,
quando, na verdade, deslocam-se a toda a velocidade, um ao lado do outro (VIRILIO,
2015, p. 111).

[...] a história das batalhas descobria a deslocalização como precipitação para um último
recorde metafísico, um derradeiro esquecimento da matéria e de nossa presença no
mundo, para além da barreira do som e, logo em seguida, da barreira da luz (VIRILIO,
2015, p. 114).

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