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[...] quando falo de imagem não me refiro apenas à visualidade, mas a todas as
sensorialidades. Assim como hoje guardamos imagens visuais e sonoras nas nuvens, as
outras sensorialidades (tato, olfato, paladar) não podemos “pendurar”, elas nos ancoram
ainda no chão. Foi por isso que o jornalista e comunicólogo espanhol Vicente Romano
defendeu até o fim da vida a comunicação de proximidade em um mundo que apostou
todas as fichas nas telecomunicações (comunicações de distância) (BAITELLO
JUNIOR, 2019, p. 13).
Assim nos fotografamos, de cima para baixo, como se estivéssemos pendurados à mão
que fotografa a nós mesmos lá embaixo. Nosso corpo, lá embaixo, nossa foto, lá em
cima dentro do celular. O mundo está inteiro nesta caixinha elegante e portátil, cada vez
mais indispensável, obrigatória, que guarda todos nossos segredos, nossa vida social,
nossos olhos para o mundo, nossos afetos, nossas contas bancárias, nosso despertador,
nossos passatempos, nossa atividade física, nossa frequência cardíaca e a pressão
arterial, nossa biblioteca e nossa filmoteca, rádio e televisão, espelho e lanterna,
máquina fotográfica e álbum de fotos e filmes, calculadora e caderneta de endereços,
previsão meteorológica e cartografia do céu, suas estrelas e suas constelações, mapa-
múndi e enciclopédia, guia turístico e consultor astrológico, aplicativo para pedir
comida, localizador para tudo o que existe aqui e agora, tradutor instantâneo para todas
as línguas, agenda e calendário para toda a eternidade, microscópio e telescópio e, por
último, telefone com som e imagem ao vivo ou com sons e imagens para serem vistos e
lidos depois (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 14-15).
Selfie chegou como um conceito, um gesto e uma palavra, todos juntos. É tão universal
o gesto como a palavra em inglês. E tão universal como os próprios celulares. Será
ocioso fazer uma estatística dos celulares, como algo que surgiu e viralizou em poucos
anos, tornando obsoletos os telefones fixos, os telefones públicos, daqui a pouco
também o e-mail e talvez também o próprio computador pessoal, o celebrado PC dos
anos 1990. É ocioso fazer estatísticas de celulares, como também é inútil computar as
avalanches de fotos que os celulares fazem no mundo (muito embora tais números
sejam impressionantes!). A estatística estará obsoleta no minuto seguinte, tamanha é a
velocidade em que estes objetos e estas ações conquistam o mundo. E talvez esta
estimativa nos dê resposta para a pergunta logo acima: onde estamos? No celular
guardados como imagem ou no mundo olhando as imagens de nós mesmos?
Estatitisticamente estamos infinitamente mais nas imagens que no mundo. Há milhares
de nós mesmos lá dentro da caixinha enquanto há só um no mundo. Este só um, além do
mais, é mortal, adoece, envelhece e morre. Já as imagens, que lá estão penduradas,
fazem a promessa de resistir ao passar do tempo, de não morrer, não adoecer nem
envelhecer. Este é o paradoxo das imagens: estamos nelas mas continuamos fora delas.
O que é uma imagem afinal? Um paradoxo de presença e ausência? (BAITELLO
JUNIOR, 2019, p. 16-17).
O segundo olhar é o que acontece quando a lente nos olha. Este é o olhar que fica
registrado na foto. É o olhar do celular em posição superior que ficará para a eternidade.
O deslocamento do olhar da imagem que nos olha, de cima para baixo, é o ponto de
vista aéreo, dos seres alados, dos seres suspensos, mas também dos seres inefáveis,
anjos, deuses e imagens. O olhar de cima é o olhar do poder. O olhar da selfie é o olhar
de um destes seres aos quais atribuímos vida simbólica e poder, a quem entregamos
nossa alma, nossa vida e nossa morte, a quem confiamos nossa imagem. É a esta
divindade, adorada ao mais alto grau das adorações contemporâneas, o celular, que
entregamos nossas memórias, nossa história, nossos sonhos, nossa glória (BAITELLO
JUNIOR, 2019, p. 17).
As selfies, feitas por um gesto de levantar o braço, estarão nas nuvens duplamente
penduradas no ar. Se nos identificamos com nossas próprias fotos (e seria possível não o
fazermos?), então há nas nuvens uma versão de nós, lá estamos nós, duplamente
pendurados, pelo braço e pela nuvem (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 18).
O totem forma uma comunidade de pertencimento a um grupo social que escolhe como
imagem identificadora um determinado animal ou um objeto na natureza em uma
relação vertical de entrega e renúncia. Hoje não seria o animal, nem a natureza, mas a
imagem e seu aparato, desde o celular ou à câmera até a intrincada alquimia digital de
armazenamento “nas nuvens”. Há os clãs totêmicos de determinadas marcas de
celulares, de computadores, de carros, de grifes. Mas onde ficamos nós na sociedade
neototêmica? (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 19).
O rosto é o centro da foto, seu objeto maior, sua razão de ser. Todo o resto é necessário
e figuração. O conjunto de gestos, o braço estendido para o alto, o rosto virado para lá, o
sorriso largo, todos querem mostrar uma emoção, como todo gesto. Emoção é uma
palavra que vem de “movere”, do latim, que significa mover, mexer, colocar em
movimento. Uma emoção é, portanto, algo que se mexe e que nos mexe ou mexe
conosco. Mas qual é a emoção que estaria aí se mexendo ou nos mexendo? Vamos olhar
para outros gestos para tentar entender este nosso gesto da selfie. Os gestos exacerbados
de jogadores de futebol logo após um gol possuem algo em comum. Saltos para o alto,
murros no ar, corridas disparadas e rostos voltados para cima. Este é o gesto da vitória,
da emoção de uma difícil conquista. Tal gesto tem uma longa trajetória na história
humana. Desde sempre a vitória foi celebrada com explosões gestuais ou encenações. O
retorno de uma tropa vitoriosa sempre foi uma explosão de movimentos exteriores e
interiores. E sempre foi festejado de todas as formas e registrado com as possibilidades
de cada época, com narrativas, com música, com esculturas e estátuas, com relevos,
com pinturas, com desenhos, com fotos, com filmes (BAITELLO JUNIOR, 2019, p.
22).
Com os celulares equipados de câmeras iniciou-se uma nova ordem das prioridades.
Fotograva-se, facilmente e a qualquer hora, qualquer objeto. E as fotos raramente saem
dos celulares, são vistas ali mesmo (ou nem mesmo são vistas de novo, nunca mais),
sem a necessidade de outro aparelho estranho, sem grandes dificuldades no domínio das
regras. Ou são envaidas para outros celulares. Aí sim, serão vistas, por outros. Ou ainda
vão para as redes sociais, onde se exporão para existirem. E, quando restritas aos
próprios celulares, se miniaturizaram, dificultando a visão dos detalhes ou então
restringindo o detalhe procurado individualmente pelo uso do “zoom” (BAITELLO
JUNIOR, 2019, p. 33).
A era da proliferação das imagens trouxe a dificuldade de diferenciar o que somos nós
mesmos de o que são nossas imagens. As imagens se tornam constitutivas da existência
das pessoas. Por isso ficamos nós mesmos aqui embaixo achando que estamos lá em
cima. E as imagens lá em cima se achando verdadeiras existências, produzidas a partir
de um suporte inferior (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 34).
A ideia de eternidade está desde então associada às imagens, graças às suas núpcias com
as pedras das paredes, com uma existência mineral (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 38).
Se 30 milhões seguem um youtuber e gastam com ele uma hora por semana, seu valor é
de 30 milhões de horas por semana. Seu valor é equivalente às horas de 50 vidas de 70
anos, apenas em uma semana (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 42).
O corpo não se eleva, o que se eleva é sua imagem (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 49).
“Existir” é uma palavra curiosa, significa estar vivo, estar presente, possuir
corporeidade em um entorno de espaço e de tempo. Não é apenas ser ou estar, é muito
mais! É algo mais da natureza do “ter” que do “ser”. A gente é pai, mãe, filho, filha,
professor, vendedor, estudante etc., mas existir significa mais que isso, significa possuir
algo que nos finca num tempo e num espaço, nos marca como presentes e nos iguala aos
outros existentes. Mas de onde tiramos esta palavra? Qual é sua história mais remota, de
onde nasceu essa ideia de existência? Originariamente vem de uma raiz indo-europeia
que quer dizer “estar de pé” [...] (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 58).
A queda é uma imagem de ameaça e risco. Por isso é forte. Diferentemente da leitura
puramente formal e lógica da frase do filósofo austríaco, uma leitura imagética nos
levaria para outro rumo. O mundo é tudo o que é perigo, risco, ameaça. O mundo
desaba! (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 62).
Uma cartografia não possui vida pulsante, não possui seres que vivem e morrem, ela é
retrato congelado de um cenário já imóvel e sem vida (BAITELLO JUNIOR, 2019, p.
67).
Aqui nasceram os drones, pequenos artefatos com aparência de brinquedos que podem
penetrar e bisbilhotar, filmar, fotografar ou visualizar, com pouquíssimo alarde, o
espaço do outro. O olhar que vem do alto ganhou novos recursos técnicos. O olhar
suspenso é sempre mais poderoso (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 74).
Nossos pensamentos na era das imagens mediáticas são programados para serem
orbitais e repetitivos. E toda órbita possui o destino da obsolescência por exaustão,
continuando, porém, em movimento depois da morte (BAITELLO JUNIOR, 2019, p.
75).
Hoje vivemos nas imagens, a moda das selfies é apenas uma de suas manifestações. O
que significa isso, viver nas imagens? Quando ouvimos uma história, lemos um livro,
vemos um filme, entramos no universo desenhado e oferecido pela história, pelo livro,
pelo filme, temos a capacidade de nos transferir para um mundo imagético, mergulhar
nele de corpo e alma e depois retornar enriquecidos de novas experiências, trazendo-as
para o nosso mundo primeiro. As imagens (que não são apenas as visuais, mas também
aquelas auditivas, olfativas, táteis e gustativas) possuem uma força enorme, elas nos
movem, comovem e mobilizam (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 82).
A interação com os celulares cria indubitavelmente um encapsulamento isolante do
entorno. Isolante e apenas aparentemente protetor. Temos a impressão de não sermos
vistos quando nos escondemos na relação íntima com o celular, onde quer que
estejamos, no ônibus, no metrô, no espaço público, num restaurante, no elevador. A
sensação de cápsula reproduz aquela que temos quando estamos dentro de um carro
(BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 88).
As selfies são, em sua grande maioria, fotos de caras e muito raramente fotos de corpo
inteiro. Por uma razão muito simples, aparentemente: não cabe o corpo na tela quando a
distância do celular é a distância do braço estendido. Aparentemente apenas! Há uma
motivação mais forte para isso. O rosto (humano) possui uma magia inegável. De onde
vem esta força de atrair o olhar do outro? Neste caso, do outro eu-mesmo, para o rosto
de mim-mesmo? Já que a maioria das selfies ficará no celular mesmo ou, no máximo,
será transferida para um arquivo na nuvem, ainda mais alto que o celular levantado pelo
braço, guardado por uma senha individual e segura, apenas para mim-mesmo, então
raramente haverá um outro (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 94).
O rosto é o nosso primeiro e maior display para a construção de alteridade. Nas selfies
ocorre o oposto: o rosto é sempre a imagem do eu-mesmo, dizendo para mim-mesmo:
“eu vejo o eu-aqui”. Há uma inflação de “eus” que se dispersam em infinitas imagens de
“eus”. Se nos lembramos que onde há inflação há desvalor, concluímos que o “eu”
nunca esteve tão desvalido (BAITELLO JUNIOR, 2019, p. 94).
Onde não há alteridade, não sabemos quem somos. E se não sabemos quem somos, não
temos noção sequer de que seremos os prejudicados pelos atrasos e retrocessos que
provocamos nos outros e em nós mesmos, com nossas escolhas (BAITELLO JUNIOR,
2019, p. 97).
Somos tão ativos como formigas, nosso tempo é picotado por muitos entrecruzamentos
e demandas de centenas de outros tempos. Por isso sempre sentimos que não temos
tempo. Tudo tem o seu tempo, só nós que não temos tempo (BAITELLO JUNIOR,
2019, p. 103).
Nunca fomos tão fechados em nós mesmos como somos hoje (BAITELLO JUNIOR,
2019, p. 104).