Você está na página 1de 5

BACHELARD. A poética do Espaço. In: Os pensadores. 2. ed.

São Paulo: Abril


Cultural, 1984. (181-354).

Um filósofo que formou todo o seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da
filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, a linha do racionalismo
ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu
saber, romper com todos os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os
problemas colocados pela imaginação poética. Aqui, o passado de cultura não conta; o
longo esforço para interligar e construir pensamentos, esforço feito em semanas e
meses, é ineficaz. É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se
houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no momento em
que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da
novidade da imagem. A imagem poética é um súbito relevo do psiquismo, relevo mal
estudado nas causalidades psicológicas secundárias. Também não há nada de geral e
coordenado que possa servir de base a uma filosofia da poesia. A noção de princípio, a
noção de novidade psíquica do poema. Enquanto que a reflexão filosófica que se exerce
sobre o pensamento científico longamente trabalhado deve fazer que a nova idéia se
integre num corpo de idéias já aceitas, mesmo quando esse corpo de idéias seja
forçado, pela nova idéia, a uma modificação profunda, como é o caso de todas as
revoluções da ciência contemporânea, a filosofia da poesia deve reconhecer que o ato
poético não tem passado – pelo menos não um passado no decorrer do qual pudéssemos
seguir a sua preparação e o seu advento (BACHELARD, 1984, p. 183).

O poeta não me confia o passado de sua imagem e no entanto sua imagem se enraíza, de
imediato, em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular é um fato de grande
significação ontológica (BACHELARD, 1984, p. 184).

A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. Ela é a dádiva de uma


consciência ingênua. Em sua expressão é uma linguagem jovem. O poeta, na novidade
de suas imagens, é sempre origem de linguagem. Para especificarmos em o que possa
ser uma fenomenologia da imagem, para frisarmos que a imagem existe antes do
pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, antes de ser uma fenomenologia do
espírito, uma fenomenologia da alma. Deveríamos então acumular documentos sobre a
consciência sonhadora (BACHELARD, 1984, p. 185).

Nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber. As
dialéticas da inspiração e do talento tornam-se claras se considerarmos os seus dois
pólos: a alma e o espírito. Em nossa opinião, alma e espírito são indispensáveis para
estudar os fenômenos da imagem poética, em seus diversos matizes, a fim de que se
possa seguir sobretudo a evolução das imagens poéticas desde o devaneio até a sua
execução (BACHELARD, 1984, p. 186).

Está em nós, simples leitores, para nós, e só para nós. Ninguém sabe que lendo
revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor, um pouco apaixonado pela leitura,
alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor. Quando a página lida é bela
demais, a modéstia recalca esse desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira,
todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito
(BACHELARD, 1984, p. 189).

A imagem poética é uma emergência da linguagem, está sempre um pouco acima da


linguagem significante. Ao viver os poemas tem-se pois a experiência salutar da
emergência. Emergência sem dúvida de pequeno porte. Mas essas emergências se
renovam; a poesia põe a linguagem em estado de emergência. A vida se mostra aí por
sua vivacidade. Esses impulsos linguísticos que saem da linha ordinária pragmática são
miniaturas do impulso vital. Um microbergsonianismo que abandonasse as teses da
linguagem-instrumento para adaptar-se a tese da linguagem-realidade encontrarria na
poesia muitos documentos sobre a vida bem atual da linguagem (BACHELARD, 1984,
p. 190).

Na poesia, o não-saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação do


conhecimento. É a esse preço que uma obra é a cada instante essa espécie de começo
puro que faz de sua criação um exercício de liberdade. Texto capital para nós, porque se
transforma imediatamente numa fenomenologia do poético. Na poesia, o não-saber é
uma precondição; se há um ofício no poeta,. Este se encontra na tarefa subordinada de
associar imagens. Mas a vida da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a
imagem é uma superação de todos os dados da sensibilidade (BACHELARD, 1984, p.
194).

O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente
abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua
positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em particular, quase se
mpre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. O jogo do exterior
e da intimidade não é, no reino das imagens, um jogo equilibrado. Por outro lado, os
espaços de hostilidade são apenas evocados nas páginas que se seguem. Esses espaços
do ódio e do combate não podem ser estudados senão referindo-se a matérias ardentes, à
imagens de apocalipse (BACHELARD, 1984, p. 196).

Pois a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.
Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela. Os escritores de “aposentos
simples” evocam com frequência esse elemento da poética do espaço. Mas essa
evocação é sucinta demais. Tendo pouco a descrever no aposento simples em sua
atualidade, sem viver na verdade a sua primitividade, uma primitividade que pertence a
todos, ricos e pobres, se aceitarem sonhar (BACHELARD, 1984, p. 200).

[...] todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores de onirismo
consoante. Não é mais em sua positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é
só na hora presente que se reconhecem os seus benefícios. O verdadeiro bem-estar tem
um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. A velha
locução: “Carregamos na casa nossos deuses domésticos” tem mil variantes. E o
devaneio se aprofunda a tal ponto que um domínio imemorial, para além da mais antiga
memória, se abre para o sonhador do lar. A casa, como o fogo, como a água, nos
permitirá evocar, no prosseguimento de nossa obra, luzes fugidias de devaneio que
clareiam a síntese do imemorial e da lembrança. Nessa região longínqua, memória e
imaginação não se deixam dissociar. Uma e outra trabalham para seu aprofundamento
mútuo. Uma e outra constituem, na ordem dos valores, a comunhão da lembrança e da
imagem (BACHELARD, 1984, p. 200).
[...] a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa de nossa
história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os
tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas
moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorável. Vivemos
fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos revivendo lembranças de proteção.
Alguma coisa fechada deve guardar as lembranças deixando-lhes seus valores de
imagens. As lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das
lembranças da casa. Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho;
nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção
traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida (BACHELARD, 1984, p. 201).

Aqui o espaço é tudo, porque o tempo não mais anima a memória. A memória – coisa
estranha! – não registra a duração concreta, a duração no sentido bergsoniano. Não se
podem reviver as durações abolidas. Só se pode pensá-las na linha de um tempo abstrato
privado de todas as densidades. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos
fósseis de uma duração concretizados em longos estágios. O inconsciente estagia. As
lembranças são imóveis e tanto mais sólidas quando quanto mais bem espacializadas.
Localizar uma lembrança no tempo não é uma preocupação do biógrafo e quase
corresponde exclusivamente a uma espécie de história externa, a uma história para uso
externo, para comunicar aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenêutica deve
determinar os centros de destino, desembaraçando a história de seu tecido temporal
conjuntivo sem ação sobre nosso destino. Mais urgente que a determinação das datas é,
para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços de nossa intimidade
(BACHELARD, 1984, p. 203).

Cada pessoa então deveria falar de suas estradas, de seus entroncamentos, de seus
bancos. Cada pessoa deveria preparar o cadastro de seus campos perdidos
(BACHELARD, 1984, p. 204-205).

Todos os espaços de intimidade se caracterizam por uma atração. Repitamos uma vez
mais que seu ser é o bem-estar. Nessas condições, a topoanálise tem a marca de uma
topofilia. É no sentido dessa valorização que devemos estudar os abrigos e os aposentos
(BACHELARD, 1984, p. 205).
Por que nos saciamos tão rápido com a felicidade de habitar a morada? Por que não
fizemos durar as horas passageiras? Alguma coisa mais que a realidade faltou à
realidade. Não sonhamos o bastante dentro da casa. E já que é pelo devaneio que
podemos encontrá-la de novo, a ligação é mal estabelecida. Fatos atravancam nossa
memória. Gostaríamos, além das lembranças esmiuçadas, de reviver nossas impressões
apagadas e os sonhos que nos faziam crer na felicidade (BACHELARD, 1984, p. 233-
234).

Mas se a casa é um valor vivo, é preciso que ela integre uma irrealidade. É preciso que
todos os valores tremam. Um valor que não treme é um valor morto (BACHELARD,
1984, p. 235).

Para quem sabe escutar a casa do passado, não será ela uma geometria de ecos? As
vozes, a voz do passado ressoam de forma diferente num cômodo grande e num
pequeno quarto. De outra forma ainda ressoam os apelos na escada. Na ordem das
lembranças difíceis, bem além das geometrias do desenho, é preciso reencontrar a
tonalidade da luz, depois os doces aromas que ficam nos quartos vazios, pondo um selo
aéreo em cada um dos quartos da casa da lembrança. Será possível, ainda, no além,
restituir não simplesmente o selo das vozes, “a inflexão das vozes caras que se
calaram”, mas ainda a ressonância de todos os aposentos da casa sonora? Nessa extrema
tenuidade das lembranças, só aos poetas podemos pedir documentos de refinada
psicologia (BACHELARD, 1984, p. 236).

Os conceitos são gavetas que servem para classificar os conhecimentos; os conceitos


são termos de confecção que desindividualizam os conhecimentos vividos. Para cada
conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já
que ele é, por definição, pensamento classificado (BACHELARD, 1984, p. 246).

O ser do homem é um ser não fixado. Toda expressão o desfixa. No reino da


imaginação, mal uma expressão é enunciada, o ser tem necessidade de outra expressão,
o ser deve ser o ser de outra expressão (BACHELARD, 1984, p. 337).

Você também pode gostar