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Fernando Pessoa 1/3

HETERONÍMIA / UNIDADE E DIVERSIDADE EM FERNANDO PESSOA


Uma das razões que levou Pessoa à despersonalização está ligada às
consequências da sua náusea existencial que todo o percurso do ortónimo
denunciou.

A par desta razão psíquica, encontram-se razões hereditárias ligadas


a uma histeria familiar e toda uma densidade psicológica que rodeia a
vida do poeta que, por isso, busca a simulação para suavizar o seu peso
de existir. Neste sentido, a heteronímia surge também como atitude de
fingimento em que Pessoa se diversifica numa multiplicidade de
personagens e se vai integrando com vários estados mentais, vivendo em
cada um, o outro que desejaria ser.

A heteronímia constitui assim " um drama em gente ", o mesmo é dizer


que Pessoa se transforma num poeta dramático que escreve em poesia
lírica. Deste drama viriam a surgir, entre outros, três nomes e outras
tantas personalidades.

 Caeiro, que com a sua complexa simplicidade, tem influência


direta nos os outros heterónimos.
 Campos torna-se o representante típico da modernidade, da
civilização e da técnica do mundo contemporâneo, e, simultaneamente
o intérprete das depressões nervosas e do estado de inadaptação e
cansaço.
 Reis que, por sua vez, sintetiza toda a história do passado
todo o património moral da tradição humanista que vai de Horácio até
aos nossos dias.

Assim, se a poesia de Campos se situa no alvoroço da ideia nova, a de


Reis, constituída com uma sabedoria secular, torna-se uma espécie de arte
de viver.

Citemos mesmo Pessoa:

" Pus no Caeiro, todo o meu poder de despersonalização dramática ";

" Em Reis, toda a minha disciplina mental, vestida de música que lhe é
própria ";

" Em Campos, toda a emoção que não dou a mim nem à vida ".

Fernando Pessoa joga, assim, com a arte de ser (Caeiro) a arte de


sentir (Campos) e a arte de viver (Reis).

Contudo, qualquer destas artes é sempre assumida como uma máscara e


por isso as personagens actuam numa peça monumental, construída por
monólogos que, todavia, se articulam num dialogo profundo de modo a
espalhar a alma de Pessoa - a unidade dentro da multiplicidade.
É que para Pessoa, a sua despersonalização não e uma mera quês tão
técnica, mas essencialmente analógica e estética, factores importantes
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para qualquer actividade poética. Por meio da despersonalização,
estabelece-se um certo equilíbrio interior, constante desejo de Pessoa e
motivo da sua alienação. É por sua vez, essa alienação, geradora de
solidão e de falta de contactos com o exterior, que leva Pessoa a
procurar povoar-se e a um pluralismo poético, única forma que Pessoa
encontrou para sair de uma situação interior absurda de uma desilusão
inicial e definitiva, de uma certeza amarga de que não há comunicação
possível entre a inteligência e o ser.

A despersonalização é, assim, uma atitude tomada pela consciência de


uma falta e Caeiro, Campos e Reis não serão mais do que sonhos diversos,
maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir para se encontrar
um sentido para a existência.

Se com Caeiro fingimos que somos eternos e com Campos entramos na


aventura do quotidiano moderno, com Reis compreendemos que o destino é
implacável. A despersonalização é também uma manifestação simbolista.

É, ainda, importante referir e esclarecer que este tema da


despersonalização do eu, pode ter raízes históricas - sociológicas, já
que coincide com o movimento futurista Europeu de que Fernando Pessoa se
aproxima quando estabelece uma relação múltipla com a realidade e a arte,
sendo nesta época que o homem tem pela primeira vez a consciência de
pertencer a um todo, à humanidade.

ALBERTO CAEIRO
O mais ingénuo e paradoxalmente o mais complexo dos heterónimos, na
sua aparente simplicidade, na sua visão de pastor está implícita uma
construção intelectual sustentada sobretudo pelo verbo ver, o mais
completo dos sentidos.
A sua obra representa a reconstrução do paganismo já que sustenta uma
filosofia do tipo concretista e que se reduz à compreensão do mundo
circundante; este concretismo é colaborado pelo sensacionismo que
projectam Caeiro numa linha de temporalidade presente, já que para ele, é
a única que se torna real, autêntica, sentida.

São então várias as sugestões temáticas de Caeiro:

a) Pastor por metáfora


Caeiro veste-se na pele de pastor para viver em contacto com o real,
com a natureza. Esta metáfora é construída com base numa série de
símbolos representativos, dessa simplicidade e desse concretismo: "
rebanhos, chocalhos, cordeiro, cajado, outeiro ". Ressaltam uma série de
sensações que são para Caeiro o elemento privilegiado do conhecimento:
pensar é sentir. A supremacia do sentir, aproxima-o de Cesário Verde e,
como ele, deambulando, desfruta da variedade das coisas - a natureza e o
real tornam-se um espectáculo e o espírito deve concentra-se OLHANDO - é
um misticismo naturalista que muitas vezes, obriga Caeiro a desejar
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transformar-se num rebanho, a sentir-se mais um elemento da natureza "
toda a paz da natureza, sem gente, vem sentar-se a meu lado ". O pastor
por metáfora é assim o homem que vive pelo olhar e vive de ver.

b)A visão antimetafísica das coisas


O pensamento ingénuo de Caeiro, resultante do seu lirismo exaltante
e instintivo projectam-no numa atitude que o torna o inimigo do
abstracto. Contudo estamos perante um paradoxo porque a ingenuidade
(sustentada pela pobreza lexical do seu estilo) torna-se argumento,
crítica e uma reflexão sobre sensações com predominância da visão, já que
e este o mais intelectual dos sentidos.
Caeiro, torna-se, assim, um intelectualista, pois ao negar a metafísica e
a abstracção está a admiti-las, como possíveis, já que, mostra que lhe é
impossível abandonar as ideias: " metafísica, mistério, Deus, filosofia,
injustiça " não são mais do que exemplos desse paradoxo.

c) O objectivismo e a arte poética


Contrariamente a Pessoa ortónimo, cuja poesia se vira para dentro,
Caeiro projecta-se na realidade exterior. Para Caeiro, a subjectividade,
é uma atitude não poética e a objectividade e o imediatismo são os únicos
actos poéticos que aceita (daí a linha de temporalidade presente) o "
aqui " e o " agora ".
Mas, mais uma vez, o paradoxo, pois é de subjectividade e de sensações
que Caeiro parece viver.
O jogo está pois entre o conteúdo da mensagem e a sua expressão, se na
linguagem directa e natural num estilo infantil e num discurso oral,
Caeiro é objectivo, a mensagem está impugnada de subjectividade. Surge
assim em Caeiro, uma atitude poética e antipoética perspectivada
simultaneamente pela forma de conteúdo e pela forma de expressão (muitas
metáforas, comparações, anáforas e repetições), mostram como o subjectivo
se esconde numa aparente objectividade.

d)O sentimento do tempo


Nesta ânsia de objectividade, Caeiro admite apenas a existência do
tempo presente já que no seu entender, só o instante e o agora lhe
pertencem.
Por isso, não conhece passado nem futuro a sua temporalidade
psíquica e estática não recorda, não projecta.
A sua vivência leva-o a admitir a sucessão normal do tempo e isso para
ele as coisas, não têm existência, não têm história. O tempo torna-se
assim sempre uma criação primeira e única, desligada pela inteligência,
sustentada pela sensibilidade.
Contudo mais uma vez o paradoxo, porque ao falar do futuro e ao
pensar no passado nega ser o futuro da sua existência "a vivência da
realidade o momento, o nascimento a cada minuto". Por isso o tempo
natureza acaba por se dissolver num tempo/nada, e neste aspecto não
estamos longe de Pessoa ortónimo.

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