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RELACIONAR Crítica

E
Na literatura, observa-se, frequentemente, um diálogo entre o texto, a sociedade e a
C cultura da época de produção da obra, que permite expor situações ou comportamentos
O considerados negativos. A crítica social evidencia a estreita relação entre o texto literário
R e as suas intenções, por um lado, e a época de criação (ou a época recriada) e o contexto
D social, político, moral e cultural, mobilizado direta ou indiretamente pela obra, por outro.
A crítica pode associar-se, ainda, à ironia ou à sátira (através da qual se ridiculariza
A a situação visada) ou mesmo à metáfora ou à alegoria. De uma forma global, a aborda-
R gem crítica da realidade numa dada obra/texto visa não só a denúncia como também
a mudança social – procura-se, muitas vezes, corrigir a ação da sociedade, pelo que a
obra se investe de uma função pedagógica e edificante.

Poesia trovadoresca: cantigas de escárnio e maldizer


Estas composições abordam satiricamente uma grande variedade de temas e de situações individuais e
coletivas, refletindo sobretudo a vida quotidiana da corte e o seu ambiente social, político, moral e cultural.
Entre elas, encontramos a crítica a aspetos como:
VER TEXTOS • o amor cortês1: a paródia das cantigas de amor denuncia a convencionalidade dos sentimentos
e os traços estereotipados da “senhor”;

VER TEXTOS
• os costumes: sátira de aspetos relacionados com a realidade social da época: decadência da nobreza2,
conflitos entre o jogral e o trovador, relacionados sobretudo com a falta de dotes poéticos ou artísticos3
do jogral, ou a pelintrice de alguma fidalguia4;
• factos políticos e militares ou aspetos relacionados com a moralidade ou com agentes religiosos
(frades, freiras, …), entre muitos outros temas.

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente


Tendo como pano de fundo a sociedade do séc. XVI, a crítica assenta sobretudo em personagens-tipo que
representam classes sociais, profissionais ou mesmo mentalidades. Expõem-se, com um intuito satírico,
diferentes temas que colocam em evidência uma certa crise de valores característica da época:

VER TEXTOS
• o desejo de ascensão social e sátira à conceção do casamento como forma de emancipação5: Inês
Pereira, uma moça solteira e sonhadora, ambiciona um casamento que lhe assegure a ascensão social
e o contacto com um ambiente de cultura cortês;

VER TEXTOS
• a pelintrice disfarçada de fidalguia (ser vs. parecer)6: o Escudeiro, representante de uma pequena
nobreza decadente que não pretende abdicar de uma determinada aparência social, exibe um
discurso galante, por entre mentiras que dissimulam a sua condição social miserável;
VER TEXTOS • o materialismo7: a denúncia da valorização excessiva do dinheiro é associada aos casamenteiros,
a alcoviteira Lianor Vaz e os judeus, que encaram o casamento como uma encomenda que implicará
uma compensação material em troca dos seus serviços, que não serão necessariamente honestos;
VER TEXTOS • a subversão dos valores morais8: as situações associadas aos membros do clero na Farsa evidenciam
a dissolução de costumes e a imoralidade clerical.

Os Lusíadas, de Luís de Camões


O plano das reflexões do poeta está marcado por considerações didáticas e críticas relacionadas com a
época da escrita. Nestes momentos, a voz do poeta ergue-se para denunciar e apontar vícios e desvios que
afastam a pátria e os portugueses do caminho da glória, o que o leva a deixar críticas e conselhos aos seus
contemporâneos. Neste âmbito, destacam-se as críticas relacionadas com
VER TEXTOS • o desprezo pela cultura e pela literatura9;
• a corrupção pelo dinheiro10: as suas consequências negativas ficam evidentes em atitudes de tirania,
VER TEXTOS
de traição ou de mentira e implicam todas as classes sociais, inclusive o próprio clero.

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CRÍTICA

FARSA DE INÊS PEREIRA, DE GIL VICENTE

 O desejo de ascensão social e sátira à conceção de casamento como forma de


emancipação:

(5a) No início da Farsa, Inês apresenta o seu ideal de marido, colocando em evidência a sua
preferência por um homem discreto, ou seja, que saiba estar em ambiente de corte, bem
falante e bem dançante, cortês, sensível:

Inês Porém, não hei-de casar


senão com homem avisado1.
Ainda que pobre e pelado,
seja discreto em falar,
que assi o tenho assentado.

1
discreto.

(5b) Após a experiência como mulher casada, Inês reformula o seu ideal de homem, deixando
evidente que a ascensão social pode ser ilusória, não sendo garante nem de felicidade nem
de liberdade:

Inês Renego da discrição,


comendo ò demo o aviso,
que sempre cuidei que nisso
estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros,
fidalgos e escudeiros,
não cheos de desvarios,
e em suas casas macios,
e na guerra lastimeiros1.

1
cruel, desapiedado.

António José Saraiva (apresentação e leitura), Teatro de Gil Vicente,


Lisboa, Dinalivro, ed. revista, 1988.

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CRÍTICA

FARSA DE INÊS PEREIRA, DE GIL VICENTE

 A pelintrice disfarçada de fidalguia (ser vs. parecer) – parasitismo:

(6a) A apresentação do Escudeiro coloca, desde logo, (6b) A forma tirânica e violenta como trata Inês logo
em evidência a oposição entre o ser e o parecer, pois após o casamento mostra claramente que a pertença
as suas mentiras e falsidades vão sendo denunciadas a uma dada classe social não é garante de nobreza de
pelo Moço, o que mostra que o Escudeiro exibe uma caráter, o que contribui para uma visão satírica desta
aparência construída para impressionar: fidalguia pelintra:

Escudeiro Antes que mais diga agora, Escudeiro Se vos eu vejo cantar,
Deus vos salve, fresca rosa, eu vos farei assoviar…
e vos dê por minha esposa, […]
por mulher e por senhora. Vós buscastes descrição,
Que bem vejo que culpa vos tenho eu?
nesse ar, nesse despejo, Pode ser maior aviso,
mui graciosa donzela, maior descrição e siso
que vós sois, minha alma, aquela que guardar eu meu tisouro?
que eu busco e que desejo. Não sois vós, mulher, meu ouro?
[…] Que mal faço em guardar isso?
Escudeiro A viola.
Moço (Oh como ficará tola,
se não fosse casar ante
c’o mais çáfio1 bargante (6c) A intencionalidade satírica associada ao Escudeiro
que coma pão e cebola!) fica também presente na sua morte irónica às mãos
Ei-la aqui bem temperada, de um pastor.
não tendes que temperar.
Escudeiro Moço «[…] Sabei que indo
Faria bem de ta quebrar vosso marido fugindo
na cabeça, bem migada! da batalha pera a vila,
Moço E se ela é emprestada, a mea légua de Arzila,
quem na havia de pagar? o matou um mouro pastor».
Meu amo, eu quero-m'ir. […]
[…] Inês o diabo me arrebente!
Escudeiro Não dormes tu que te farte? Pera mim era valente,
Moço No chão, e o telhado por manta... e matou-o um mouro só!
E çarra-se-m’a garganta
com fome. António José Saraiva (apresentação e leitura), Teatro
de Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, ed. revista, 1988.
1
rude; bronco; vadio.
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FARSA DE INÊS PEREIRA, DE GIL VICENTE

 O materialismo:

(7a) A forma como as personagens valorizam os (7b) A falta de honestidade, evidente sobretudo nos
pretendentes de Inês justifica-se pelo interesse que Judeus, hábeis negociantes, constata-se nas
colocam na concretização do matrimónio, o que mentiras a que recorrem para convencer Inês a
implicaria o pagamento dos seus serviços: aceitar o Escudeiro como marido:

Lianor Em nome do anjo bento Latão […]


eu vos trago um casamento. que tomeis esse senhor
[…] escudeiro cantador
Eu vos trago um bom marido, e caçador de pardais,
rico, honrado, conhecido. sabedor, revolvedor,
falador, gracejador
afoitado pola mão,
Vidal Esperai, aguardai ora! e sabe de gavião...
Soubemos dum escudeiro Tomai-o por meu amor.
de feição d'atafoneiro1 Podeis topar um rabugento,
que virá logo essora, desmazelado, baboso,
que fala... e com’ora fala! descancarrado3,brigoso,
Estrugirá esta sala. medroso, carapatento.
E tange... e com’ora tange! Este escudeiro, aosadas4,
Alcança quanto abrange, onde se derem pancadas,
e se preza bem da gala.2 ele as há-de levar
boas, senão apanhar.
Nele tendes boas fadas.

(7c) A própria mãe apercebe-se das verdadeiras


intenções dos judeus, dispostos a tudo para
assegurar o lucro:

Mãe Quero rir com toda a mágua


destes teus casamenteiros!
Nunca vi judeus ferreiros
1
2
que anda sempre ocupado; aturar tão bem a frágoa.5
e se preza de ser um cavalheiro;
3
descarado;
4
interjeição que significa admiração;
5
desempenharem bem as suas funções. António José Saraiva (apresentação e leitura), Teatro de Gil
Vicente, Lisboa, Dinalivro, ed. revista, 1988.

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FARSA DE INÊS PEREIRA, DE GIL VICENTE

 A subversão dos valores morais:

(8a) O clérigo que terá atacado Lianor Vaz evidencia a devassidão do comportamento clerical,
que também na Farsa se denuncia:

Lianor […]
vinha agora pereli1
ò redor da minha vinha,
e um clérigo, mana minha,
pardeos2, lançou mão de mi3.
Não me podia valer.
Diz que havia de saber
se era eu fêmea se macho.

1
por ali;
2
interjeição “por Deus”;
3
agarrou-me.

(8b) Também o Ermitão com quem Inês se vai encontrar no final da obra é associado a um
comportamento duvidoso, que permitirá Inês concretizar o adultério:

Inês
Bem sabedes vós, marido,
quanto vos amo:
sempre fostes percebido1
pera gamo.2

1
sempre tiveste inclinação;
2
o cervo, ou gamo, é como o cuco: um símbolo do marido traído.

António José Saraiva (apresentação e leitura), Teatro de Gil Vicente,


Lisboa, Dinalivro, ed. revista, 1988.

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