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Tentativa de resposta à pergunta sobre qual ideia de poesia está em Alberto Caeiro.

Trabalho apresentado como requisito parcial da


disciplina: Seminário de Literaturas Modernas e
Contemporâneas: Cenas de escrita na poesia
portuguesa, do Programa de Pós-Graduação em
Letras Estudos Literários (POS-LIT) da UFMG.

Professora Dra. Silvana Pessôa

BELO HORIZONTE
2015 / 1o Semestre
Introdução

Alberto Caeiro disse de si como um sujeito simples, que conduzia sua vida a partir de uma

experiência sensível no mundo, do cotidiano mais elementar, “homem sem filosofia”,

constituído e orientado pelos sentidos e pela natureza. O fato de ter sido denominado ‘mestre’

pelos outros heterônimos pessoanos, os quais se consideravam seus discípulos, indicia a

complexidade poética e filosófica que, sob a forma de simplicidade, ele inscrevia. A relação

metatextual estabelecida a posterior por seus discípulos jamais seria entendida por Caeiro.

Como explicitou Eiras1, a relação instaurada entre mestre e discípulos, agrupa-os em um sistema

coeso e baseia-se nas contradições e diferenças identitárias entre eles, propostas completamente

contrárias às do poeta ribatejano.

Caeiro usou linguagem direta, sem rimas, em primeira pessoa do singular, tom confessional,

em “forma de versos tão livres da métrica quanto de qualquer escola ou movimento datável,

de quem não se conhece nenhum texto em prosa” como observou Moisés.2

Apesar da constatação de Moisés, há alguns poemas que apresentam rimas, como foi ressaltado por

Jorge Uribe, em artigo publicado na revista Estranhar Pessoa, Jorge Uribe apresenta versões

rimadas de “versões primitivas de “O Poema do Paganismo” escritas nos anos anteriores. Já

tive ocasião de referir alguns poemas bucólicos, muito bem rimados, que surgem nas mesmas

folhas duplas onde foram redigidas alguns dos primeiros poemas de Caeiro. Desses poemas,

três em número, apenas um ficou completo [...]” 3

O aprofundamento das implicações poéticas e filosóficas empreendido por Moisés tem o

detalhamento de quem “olhou mais de perto”, como se ao microscópico. A análise da autora

1
EIRAS,2005,p.?
2
PERRONE-MOISES, 2001, p.149
3
Revista Estranhar Pessoa, 2014, p.30
incide sobre a proximidade, conceitual e formal, da obra do mestre com a prática vivência

oriental do Zen. Além da questão fundamental comum, a dissolução da fronteira entre sentir e

pensar apresenta também semelhança formal entre a poética de Caeiro e os Haicais.

Desenvolvimento

A escolha do título “saída/saúde” para introduzir o estudo sobre Caeiro ressalta o caráter

dialógico da obra de Pessoa que, posteriormente irá se desenvolver, em relação ao primeiro

heterônimo. Tal fato pode ser observado na carta 4 de Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, do

dia 19 de Janeiro de 1915, sobre o surgimento dos heterônimos e nos poemas ao mestre

dedicados. Pessoa refere-se aos heterônimos como sinceros por terem sido vividos e sentidos,

o que, de acordo com Eiras, implicaria na convivência intra e extra-texto entre eles. Sobre

isso, Eiras chamaria “autêntica” a relação entre os pseudônimos, por estarem de acordo com

regras criadas por eles próprios, a coerência metatextual entre eles.

A ‘saída-saúde’, da qual relatou Moisés, à “irrupção de Caeiro”, se deu sob a forma de

“Paganismo Absoluto” 5, de recusa ao cristianismo e à contradição imposta pela a tradição

greco-judaica da cisão mente-corpo, que teria adoecido Fernando Pessoa.

“Para Pessoa, a busca de uma saída via Caeiro não é apenas mais uma
especulação filosófica ou mera experimentação poética, mas questão de
sobrevivência: saúde e salvação. Sofrendo agudamente da doença ocidental,
debatendo-se na busca de um ‘eu profundo” que quanto mais se busca mais
se perde- porquanto o pensamento se volta, afiado e aniquilador, contra o
próprio ser pensante-Pessoa foi ao extremo desse descaminho até o ponto em
que essa doença toma o nome de loucura, paralisa e mata ” 6

http://arquivopessoa.net/textos/3510
5
Grifo da autora.
6
PERRONE-MOISES,2001, p.148
Pessoa, o “drama em gente” 7, como ele próprio sinaliza em sua obra, cuja angústia da
identidade foi serena do apenas em Caeiro através da despersonalização dramática, entendida
como uma ilusão.

Apesar de Caeiro ter sido uma luz para os outros heterônimos,sua poéticaestava imbuída de

teor de profético ou caráter messiânico para a humanidade.

Nesse ínterim, Caeiro apresenta-nos sua poética como uma saída existencial para si mesmo,

de alguém que se propõe experimentar o mundo sem as deformações da racionalidade

provocadas pela mediação dos conceitos que se antecipam à vivência pessoal. Interessado no

cotidiano, nas sensações e percepções do corpo, particulares e indescritíveis, atento ao

cotidiano das pequenas coisas.

Mas, segundo Moisés, a simplicidade do mestre,

“não é a das crianças, ou dos pobres de espírito” (sic),à semelhança dos


mestres Zen, a simplicidade de Caeiros é proveniente da síntese, resultado de
um processo que passa por três etapas:

1) os rios são os rios e as montanhas são as montanhas (indissociação pré-


racional de sujeito e objeto); 2) os rios não são rios e as montanhas não são
montanhas (dissociação intelectual); 3) os rios são os rios e as montanhas
são as montanhas (reconquista da unidade)” 8

Apesar da recusa ao Cristianismo expresso na obra de Caeiro, o intertexto bíblico se mostra

mais frequente e visível em “O Guardador de Rebanhos”, poro ecoar da forma narrativa

cosmogônica bíblica “Deus viu que era bom”, recorrente no primeiro livro do Gênesis:

“Porque a luz do sol vale mais que pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não era e é boa” 9

O Cristianismo institucionalizou a cisão, daí a sua veemente recusa, mas aspectos

transcendentes desvinculados de qualquer religião específica também foram negados.


http://multipessoa.net/labirinto/obra-publica/25
7

PERRONE-MOISES, 2001, p.157


8

BERARDINELLI, 2012, p.80


9
“Não acredito em Deus porque nunca o vi [...]” 10

Em verso posterior do mesmo poema, Caeiro parece prever a resposta de um possível

interlocutor,ou contra argumento, adefender a obscuridade das manifestações do Deus cristão

através de suas criações.

“[...] mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?11

Nesse trecho pode-se observar a importância dada pelo poeta ao contato direto, sensível, com

as coisas sem mediação por palavras, indícios, símbolos.

A recusa do mestre à separação entre sensação e conceitoé coerente com um modo de vida

articulado na práxis, sem interferência da antecipação da razão na relação do homem com a

natureza como deformadora da experiência, não era a negação da razão em si ou apologia ao

mergulho cego no instinto, mas recusa da supremacia da razão, de sua posição hegemônica na

cultural ocidental.

Para Caeiro, o caráter deformante da razão era um impedimento para a relação pura e, por

isso, tomada como verdadeira, com o mundo, experiência semelhante ao olhar inaugural da

criança, cuja particularidade ainda não está perdida no intelectual:

“Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande,

Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi ”12

10
BERARDINELLI, 2012, p.84
11
BERARDINELLI, 2012, p.84
12
http://arquivopessoa.net/textos/2718
Moisésoferece mais ‘um ângulo de leitura cabível à poesia pessoana’ ao posicionar a escrita e

o modo de viver de Caeiro em paralelo filosófico à prática zen.

A autora chama a atenção para o fato de o Zen não ser uma filosofia discursiva, mas uma

sabedoria existencial vivida como práxis. “O Zen é um modo de viver o corpo que liberta a

mente e não, como nas filosofias ocidentais, uma mentalização que visa dirigir a existência

[...]” 13.

“Através da prática Zen, busca-se libertar os objetos da sobrecarga intelectual que lhes

impomos pela razão, aliviar dessa carga o corpo e o próprio eu-pensante, a fim de desfazer a

cisão sujeito-objeto que a percepção intelectual acarreta.” 14

O que o Zen nega é justamente a dissociação mente-corpo, intelecto-sentidos e nesse ponto

coincide com a postura de Caeiro.

Sobre o preceito físico da prática Zen, como a experiência Zen do mestre Caeiro, é um modo

de viver o cotidiano elementar sem revesti-lo com ideias, simplicidade que exige

aprendizagem, reconhecida e admirada por Ricardo Reis e os outros heterônimos, como em

“Mestre, meu mestre querido!” de Álvares de Campos.15

A negação da racionalização aparece é reafirmada em diversas formas:

Sob a forma de interpretação de fatos, e é nomeada como uma “necessidade doentia” no

metapoema [5] de Poemas Inconjuntos, e no poema XXXVI de “O Guardador de Rebanhos”,

a critica incide sob o fazer calculado:

“E há poetas que são artistas

13
PERRONE-MOISES,2001, p.153
14
PERRONE-MOISES,2001, p.154
15
http://arquivopessoa.net/textos/4398
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!
Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. ”16

No trecho do poema supracitado, Caeiro critica a ideia de uma poesia que vem do cálculo ,

intelectualizada,poesia determinada no saber antecede ao fazer,subjugada quanto à

funcionalidade comomuros em oposição à postura verdadeira natural do poeta que “sabe

florir”. A crítica da não espontaneidade, do agir conforme aprendido, também estão expressos

no uso das palavras “carpinteiro” e ‘poetas que são artistas’. A crítica da ideia de

funcionalidade/finalidade, e por extensão à metafísica, aparece no trecho seguinte poema

XXXIX de “O Guardador de Rebanhos”:

“Porque o único sentido oculto das cousas

É elas não terem sentido oculto nenhum [...] “17

As remissões ao mundo apreensível pelos sentidos do corpo, em suas muitas variações,

resguardam a concepção, consonante em Caeiro e no Zen, de que a felicidade está em nada

desejar ou esperar das coisas, além daquilo que elas oferecem em si, na terceira estrofe do

poema [3]. p.102

“[...] Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,

16
http://arquivopessoa.net/textos/3436
17
BERARDINELLI, 2001, p.97
nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.”

Contentar-se com isso é a chave para a felicidade, é menos uma proposta de conformismo,

que implicaria em expectativa seguida de frustração, do que de não desejar algo além das

simplicidades contingentes. O ‘desapego’, do Zen e de Caeiro, se expressa na forma

conciliada que o poeta lida com a morte ou com a possível não publicação de seus poemas,

como em [3] de Poemas Inconjuntos.

“Se eu morrer novo,

Sem poder publicar livro nenhum, [...]

Que não se ralem.

Se assim aconteceu, assim está certo [...]” 18

A conformidade com as coisas como são, com as experiências que se esgotam em si mesmas,
alinha ao pensamento do mestre, além do desapego, a ideia de tempo e anoção de
permanência do Zen.
Para referir-se ao tempo, Caeiro evoca elementos situações naturais, cíclico, feito de

nascentes, poentes e estações do ano, escreveu ‘hojes’ e ‘amanhãs’ em poemas não datados.

“Quando vier a primavera [...]” do poema [4] de Poemas Inconjuntos19, ou em “Ao

entardecer” do poema III de O Guardador de Rebanhos.20

Sua poética não oferece ao leitor referências mais datáveis, como possíveis menções

amateriais,- caneta, lápis ou pena -, que, ainda que imprecisamente, poderiam indiciar um

tempo histórico.

18
BERARDINELLI, 2001, p.102
19
BERARDINELLI, 2001, p.103
20
BERARDINELLI, 2001, p.82
Caeiro resume sua vida pelos dois marcos naturais mais definitivos, seu nascimento e morte:

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever minha biografia,

não há nada mais simples

tem só duas datas- a da minha nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra cousa todos os dias são meus [...] ”21

A identificação apenas desses dois momentos, deve-se ao fato de serem condições universais
aos viventes. Os interstícios não foram detalhados porque são relacionados à subjetividade,
que é interessante no presente - e ao corpo que o vivencia.
Pensar o verso “Se eu morrer novo [...]”, a sugestão da morte como algo que acontece mais de
uma vez ao mestre, revela a visão de si, de Caeiro, como elemento natural, existência
transitória em tempo cíclico, que permanece, paradoxalmente, através de suas mudanças.
“[...] Quando a única casa artística é a Terra toda

Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma ” 22

Para demonstrar a visão de Caeiro do particular e universal, e de permanência e finitude,


parte-se neste trabalho, diferentemente do exemplo escolhido por Moisés, do trecho de ‘Notas
para recordação do meu mestre Caeiro, de Álvaro de Campos’:

“Referindo-me, uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a


sensibilidade de Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth
designa um insensível pela expressão:
A primrosebytheriver's brim
A yellowprimrosewastohim
 And it wasnothing more.
E traduzi (omitindo a tradução exacta de «primrose», pois não sei nomes de
flores nem de plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era uma flor
amarela, e não era mais nada».
O meu mestre Caeiro riu. «Esse simples via bem: uma flor amarela não é
realmente senão uma flor amarela».
Mas, de repente, pensou.
«Há uma diferença», acrescentou. «Depende se se considera a flor amarela
como uma das várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só».
E depois disse:
«O que esse seu poeta inglês queria dizer é que para o tal homem essa flor
amarela era uma experiência vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso é que não
está bem. Toda a coisa que vemos,devemos vê-la sempre pela primeira vez,
porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é
uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A
gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser
já o mesmo. É pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso,
porque então éramos todos felizes ”23

21
BERARDINELLI, 2012, p. 106
22
http://arquivopessoa.net/textos/3436
23
http://arquivopessoa.net/textos/683
Ainda em consonância com os princípios do Zen, além do desapego, Moisés, ressalta a

despretensão e solidão:

“Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é uma ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho [...] ”24

“Esse Eu particular, experimentado numa mente-corpo concreta, participa da vida universal,

desapega-se assim de toda sentimentalidade individual, tranquiliza-se com relação ao nascer e

ao morrer, num processo que não é de auto-anulação, mas, pelo contrário, de intensa

autovivência num nível físico que transcende o individual.” 25

Moisés aponta afinidades entre os poemas de Caeiro e os haicais, expressões verbais sintéticas

e concretas de pequenos satoris, experiências de iluminações do Zen.

De fato, pode-se encontrar , segundo a autora, dentre os blocos de versos do mestre, que

constituem haicais perfeitos ou quase.

“... os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz não ”26

O deleite, resultante da experiência direta com algo natural, a ponto de suspender, por

instantes, a capacidade de verbalização e a distinção entre o visualizador e o visualizado é um

satori. Os haicais buscam comunicar a natureza dos satoris, a experiência e emoção que,

embora física, não está ancorada “a um eu caracterizado, único e insubstituível”. Para Moisés,

24
BERARDINELLI, 2012, p. 80
25
PERRONE-MOISES, 2001, p.169
26
PERRONE-MOISES, 2001, p.181
o poeta de haicai é antes de tudo um visualizador; para usar a expressão de Caeiro, “é alguém

que vê como um danado.”

Conclusão

Longe de ser o resultado definitivo de uma pesquisa, as considerações realizadas aqui são os

primeiros passos de uma futura investigação a ser realizada. A aposta é que as questões

suscitadas por Fernando Pessoa, sobretudo em Alberto Caeiro, possam iluminar o caminho de

uma pesquisa,sobre despersonalização, que tem se iniciado a partir de um texto em prosa.

Ancorada na crença da dissolução de fronteiras entre disciplinas e estilos, característica da

modernidade, pensa-se em ideias que se manifestaram de formas diferentes em prosa

everso,mas que exatamente pela da mudança de meios, permanecem as mesmas como se pode

aprender como Zen ou com Caeiro.

Referências:
BERARDINELLI, Cleonice (ORG). Fernando Pessoa - Antologia Poética. Rio de Janeiro: Casa da

Palavra. 2012

EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto- a fragmentação do sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa,

Herberto Helder e Maria Gabriela Lhansol. Porto: Campos das Letras, 2005. (parte sobre Fernando

Pessoa)

http://arquivopessoa.net/- consultado a 10 de julho de 2015.

https://www.academia.edu/9303152/Revista_Estranhar_Pessoa_n.o_1_Caderno_do_dia_triunfal -

consultado a 12 de julho de 2015

http://multipessoa.net/labirinto/obra-publica/25 consultado a 8 de julho de 2015

PERRONE-MOISES, Leyla. “Caeiro Zen”. In: Aquém do Eu, Além do Outro. 3. ed. Martins Fontes.

São Paulo: 2001.p.147-206

PERRONE-MOISES, Leyla. “Pessoa de todos (os) nós”. In: Inútil Poesia. São Paulo: Companhia das

Letras, 2000.p.145-150

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