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TRABALHO / RESOLUÇÃO:

A literatura norte-americana das primeiras décadas do século XX está


indelevelmente associada à conjuntura político-económica e sociocultural
coeva. Ao ritmo frenético do progresso tecnológico, de uma galopante
industrialização e de avanços científicos sem paralelo os Estados Unidos
elevam-se à condição de grande potencia mundial. No rescaldo da I Guerra
Mundial, paradoxalmente aos traumas e ao sentimento de devastação, a
sociedade norte-americana conhece uma prosperidade sem precedentes.
Confortavelmente instalada numa sólida situação económica entrega-se a uma
vida dissoluta de prazer, diversão, frivolidade, esbanjamento e consumo de
estupefacientes e de álcool, não obstante a vigência da Prohibition decorrente
da 18ª emenda à Constituição.
É o retrato dos Roaring twenties e de uma geração que vive em euforia
ao som do jazz e viria a merecer o epíteto de Lost Generation. Este clima de
bonança é drasticamente interrompido pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque em
1929, com a especulação de valores mobiliários a sofrer uma quebra
inesperada que arrasta os Estados Unidos para a maior crise financeira de
sempre.
Neste contexto começa a delinear-se a condição do indivíduo dos
tempos hodiernos. Em consequência da perda das estruturas coletivas
aglutinadoras e de coesão social, o homem do novo milénio entra numa espiral
de alienação, de perda de valores e de quadros referências, vê-se
enclausurado em si próprio, forçado a confrontar-se consigo mesmo, num
movimento de descida ao seu interior em busca da sua essência e na
indagação do sentido último da vida. O Modernismo enquanto movimento
estético assume-se como repositório deste enquadramento epocal. Pugnando
por uma estética de liberdade formal e concetual, com rejeição de qualquer
normatividade, centra-se na condição do indivíduo moderno, na representação
quase pictórica da sua interioridade, da sua fragmentação e do seu
desenraizamento da vida coletiva.
Essa realidade é objeto de reflexão por parte de Scott Fitzgerald em
Babylon Revisited, em que aborda a temática da passagem do tempo através
da construção psicológica do personagem central, Charlie Wales, que incarna o
protótipo do homem do início do século XX, e da dicotomia disfuncional entre
este e a sociedade sua contemporânea, confrontando-se e sendo confrontado
com a linha do tempo da sua vida num diálogo entre o eu presente, o eu
passado e o não eu, eco de uma influência do Doppelgänger de inspiração
germânica.
Ao longo da diegese o protagonista vai, voluntária ou involuntariamente,
sendo acareado com a passagem do tempo e sendo revisitado pelo seu
passado de alienação e excessos, que se insinua no presente sobrepondo-se à
atualidade e condicionando o tempo que virá, e que Charlie se empenha em
rasurar para construir um futuro melhor: “he wanted to jump back a whole
generation and trust in character again as the eternally valuable element”1.
Logo no início da narrativa Charlie, de regresso a Paris, visita um dos
lugares emblemáticos do seu passado, o bar do Hotel Ritz e procura os
companheiros dos seus tempos de tertúlias e de boémia. O cotejo entre
passado e presente é evidenciado quer na mudança do ambiente do bar, quer
da própria cidade de Paris: “He was not really disappointed to find Paris was so
empty. But the stillness in the Ritz bar was strange and portentous”. No períplo
que faz Charlie retrata a cidade numa paleta de cores erosivas “fire-red”, “gas-
blue” e “ghost-green” e afirma: “I spoiled this city for myself”, um sentimento
ambivalente de perda e arrependimento.
Na terceira pessoa, num ritmo vivo e numa linguagem simples o
narrador vai paulatinamente revelando a vida pretérita de Charlie: a luxúria, a
adição ao álcool, o casamento fracassado que termina com a morte da mulher,
e revela também o motivo do regresso a Paris, o propósito de recuperar o
poder paternal sobre a sua filha Honoria, entretanto entregue à guarda e
cuidados da irmã da sua falecida mulher, Marion Peters. Charlie apresenta-se
como um novo homem à procura de uma nova vida.
Financeira e emocionalmente recuperado e livre do vício está
empenhando em demonstrar a si próprio e aos outros que o seu passado está
encerrado: “No more, Charlie said, I’m going slow these days”; “I’m awfully
anxious to have a home … things have changed now”. Pese embora o facto de
Charlie encarar frontalmente o passado, este apresenta-se sempre com um
adversário obstinado em perpetuar-se e em mantê-lo cativo. Insinua-se no
1
Todas referências e citações reportam-se à obra consultada e referida no espaço destinado à indicação da bibliografia.
reencontro com os parceiros de pândegas ”Sudden ghosts out of the past”; nas
acusações de Marion, que não apenas o considera responsável pela morte da
irmã “How much you were responsible for that”, mas que o vê como
representante dos expatriados americanos que invadiram Paris, e ainda, nos
sonhos com Helen: “The image of Helen haunted him”. No embate entre
Charlie e o seu passado este sai vitorioso no último instante, sob a forma do
aparecimento inesperado de Duncan e Lorraine em casa da família Peters,
levando Marion a não entregar Honoria a Charlie. Num desenlace aberto o
futuro fica adiado por efeito de um passado que se faz presente e que condena
Charlie à solidão.
Fitzgerald recorre a diversos expedientes para evidenciar o carater
imorredouro do passado: expressões que marcam o decurso do tempo: “old
habit”, “a couple of years ago”; tensão entre personagens, Charlie/Marion,
Charlie/Duncan e Lorraine; Charlie/Helen, Charlie/Honoria, Honoria/Marion e a
dicotomia entre Charles e a jovem e sensata Honoria que representa o futuro, o
contraponto do passado de seu pai.
Toda a narrativa é eivada de um intenso simbolismo, desde logo, o título
uma referência a Paris dos anos 20 como a Babilónia da tradição judaico-cristã
símbolo de queda e do pecado e uma analogia com a vida do protagonista; a
escolha da composição do nome do personagem central, o nome próprio
remetendo para a expressão good-time Charlie pessoa inconsequente que
procura diversão, e o apelido fazendo lembrar o princípe de Gales da época um
boémio que abdicou do trono por amor; a subtil comparação de Charlie como o
desajeitado e caricato Charlie Chaplin “the old derby rim and the wire cane”; a
simbologia da neve que pode ser tudo o que o dinheiro consegue comprar; o
vestido preto de Marion símbolo de luto e perda, e por fim o bar do Hotel Ritz
lugar em que se inicia e termina o enredo com um duplo significado, sugerindo
que Charlie descreveu um circulo, voltando à situação em que se encontrava
no início sem que tenha feito qualquer progresso, e simbolizando também a
dualidade do seu caráter que se afirma que tudo mudou, não deixa, porém, de
resgatar o seu passado.
Scott Fitzgerald cria, assim, um protagonista, à semelhança de Cora
Jenkins de Langston Hughes ou do “old man” sem nome de Hemingway, que
vive no presente aprisionado por acontecimentos trágicos de morte e perda
ocorridos no passado.

Bibliografia:
Alves, Teresa F. A. Alves et al.. Literatura Norte-Americana. Cord. Maria Irene
Ramalho. Lisboa: Universidade Aberta, 1999.

Avelar, Mário. Hstória(s) da Literatura Americana. Lisboa: Universidade Aberta,


2004.

Cunliffe, Marcus. História da Literatura dos Estados Unidos. Trad. Bernardette


Pinto Leite. Lisboa: Europa-América, 1986.

Fitzgerald, Francis Scott Key. Babylon Revisited. Disponível em <


https://elearning.uab.pt/mod/url/view.php?id=540241>, acedido em 2020.04.30.

Hemingway, Ernest Miller. A Clean, Well-lighted place.


<https://gutenberg.ca/ebooks/hemingwaye-winnertakenothing/hemingwaye-
winnertakenothing-00-h.html#story02acleanwelllightedplace > acedido em
2020.05.01.

Hughes, James Mercer Langston. Cora Unashamed.


<http://www.columbia.edu/itc/english/Hughesf1124y-001/resources/cora_pbs.pd
f> acedido em 2020.05.01

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