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Introdução
É possível um corpo livre de coerções sociais? É possível dizer que o corpo humano de
Gregor, sobre o qual não se temnenhuma informação, exceto sua serventia como
cacheiro viajante, não era um corpo livre, natural, mas um corpo adestrado,
disciplinado, modelado por interdições próprias do processo civilizatório.A efetividade
de tal processo talvez explique porque mesmo tendo Gregor se transformado em um
inseto monstruoso, trate a nova condição de seu corpo como algo pouco importante,
uma eventualidade a ser superada.Pelo o que está enunciado em A Metamorfose(1997),
mesmo antes de sua transformação em inseto, o corpo humano de Gregor já não lhe
pertencia, não servia ao “eu” de Gregor. Pode-se dizer que o corpo humano de Gregor
Samsa já era institucionalizado, considerando que vivia em função das determinações
familiares e profissionais, em uma espécie de confinamento invisível, que determinava
todas as suas rotinas. Gregor definia-se como “uma criatura do chefe, sem espinha
dorsal,nem discernimento.” (KAFKA, 1997,p.10). Tal afirmação de Gregor revela-se
como um tipo de despersonalização e redução da humanidade à situação profissional.
Tal redução, recorrente nas obras do autor tcheco, nomeada porGünther Anderscomo ‘
homens-profissão’ de Kafka.
Para Anders, estilo de vida modernao homem é reduzidoà profissão, à sua função no
mundo administrado e, como consequência, é “arrancado da plenitude humana”. A
conformação do homem à sua função social se dá, por exemplo, na adequação de
características e necessidades individuais às da profissão exercida, por um processo
socialmente naturalizado visando o estabelecimento e manutenção do equilíbrio e ordem
social. A mãe de Gregor expõe ao gerente “Esse moço não tem outra coisa na cabeça a
não ser a firma. Eu quase me irrito por ele nunca sair à noite; (...) Fica sentado à mesa
conosco e lê em silêncio o jornal ou estuda os horários de viagem.” (KAFKA, 1997,
p.17). Com essa fala, a mãe de Gregor expõe o quanto o caixeiro-viajante estava
condicionado às suas atividades profissionais, inclusive nas horas em que não estava
trabalhando, dedicando seu lazer ao planejamento do seu tempo para cumprir
precisamente suas funções de trabalho.Apesar dessa fala sugerirperfeita adequação de
Gregor à rotina imposta pelo trabalho, estequeixa-se em pensamento de como esta
rotina, para ele, é contrária a condição humana, “Acordar cedo assim deixa a pessoa
completamente embotada-pensou. – O ser humano precisa ter o seu sono.”(KAFKA,
1997, p.9). Pelos indícios, deduz-se que a vida de Gregor, mesmo antes da
metamorfose, já se caracterizava como desumanizada. Tanto pelas privações às
demandas naturais de seu corpo, como por exemplo, a interrupção do sono que
impossibilitao descanso necessário para cumprimento de prazos de trabalho; quanto
pelo caráter sacrificial que se manifesta na escolha de permanecer em um trabalho,
indesejado, até que possa saldar uma dívida dos pais.
Gregor submetia seu corpo humano, enquanto o tinha, a sistemas que lhe eram alheios e
hostis, sistemas civilizatórios, como o trabalho e a ordem. Estas duas instâncias impõem
adequação, enquadramento, conformação a limites. Nesse sentido, também pode ser lida
como irônica, a escolha de Kafka da únicadistração de Gregor, ainda na forma humana,
o fato de ter feito uma moldura de quadro.
“ Por exemplo, durante duas ou três noites entalhou uma pequena moldura; o senhor vai
ficar admiradode ver como ela é bonita; está pendurada lá dentro do quarto(...)”.
(KAFKA, 1997, p.17);
“Agora Gregor não comia quase mais nada.(...) Pensou a princípio que
era a tristeza pelo estado do seu quarto que o impedia de comer, mas
foi justamente com as mudanças ocorridas ali que se acostumou bem
cedo.Haviam se habituado a introduzir naquele quarto as coisas que
não se podia colocar em outro lugar, e existia um monte delas ali, já
que um quarto do apartamento fora alugado a três inquilinos. Estes
senhores sisudos(...) eram obcecados pela ordem não só no seu quarto,
mas também-uma vez que tinham se mudado para lá, na casa inteira-
principalmente na cozinha. Não suportavam tralha inúltil, muito
menos suja.” (KAFKA, 1997, p.66)
A cisão invisível que existia entre a vontade de Gregor e seu corpo permanece, mas de
forma visível e radicalizada na metamorfose. A mudança brusca e radical do estado
corpóreo de Gregor alterou sua identidade, seu “eu”. Há de se considerar que havia um
“eu Gregor” que possuía corpo e comunicação humana, tinha gostos próprios e
linguagem comum à da sua família. Nesta condição, o corpo humano de Gregor existia
como um adversário por não coincidir com as necessidades e normas coletivas às quais
estava submetido. Após a metamorfose corpórea, instaura-se progressiva desarticulação
da fala e, consequentemente, da identidade humana de Gregor. Se na forma humana o
seu preferido era o leite fresco, este passa a causar-lhe náusea; as comidas podres,
sobretudo o queijo, passam a ser a alimentação preferida do inseto; também alterou a
percepção da dor, tanto que chegou a questionar-se sobre perda de sensibilidade.
(KAFKA, p.37) 63. Se no início referem-se a Gregor como “ele”, após a saída dos
inquilinos, a irmã refere-se a ele tratando como uma coisa, nega-lhe a humanidade. “-
Precisamos nos livrar disso- disse então a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe não
ouvia nada com a tosse.” (KAFKA, 2013, p.75), na versão em alemão, kafka optou pelo
pronome “es” “Wirmüssen es loszuwerdensuchen”.1
1
P.28 http://www.digbib.org/Franz_Kafka_1883/Die_Verwandlung_.pdf
uma reflexão sobre o corpo como um meio, condicionante,como um lugar onde se aloja
o “eu”, Foucault declara:
Na forma humana, Gregor era um membro, parte do “corpo dafamília”, com suas
identidades e necessidades por elasobrepujadas. A metamorfose do corpo faz dele
“ungeheuer”, algo não familiar, monstruoso.O corpo de Gregor acaba por estabelecer-se
como o critério determinante de seu não pertencimento à família.
A opção de Gregor por trabalhar em um emprego que não o agradava para pagar dívidas
alheias, ametamorfose do corpo, a perda da linguagem humana, as modificações do
quarto e a mudança dos hábitos alimentares realizaram a mortificação do eu-caixeiro-
viajante Gregor Samsa. O que se pretende defender é a ideia da não unidade identitária
de Gregor, sobretudo antes da metamorfose. O ‘eu’ e as palavras que constituíam o
Gregor que havia cumprido serviço militar como um tenente sorridente e despreocupado
eram, certamente, diferentes das que constituíram o eu de sacrifíciodo caixeiro-
viajante.Mas, havia outro Gregor, no corpo humano, cujas palavras só eram ditas em
pensamento. Estas revelavam a inadequação e falta de vontade de continuar no trabalho
de caixeiro,pretendia anunciar à família, solenemente na noite de natal, seu apoio à
vontade da irmã de tocar violino no conservatório, a despeito da desaprovação dos pais.
Pode-se pensar o nome ‘Gregor Samsa’ como uma circunscrição,uma organização
atributiva heurística para o conjunto de acontecimentos, que agrupa o ser e o corpo. A
unidade Gregor Samsa, possível talvez apenas na linguagem, é o que se mantém apesar
das metamorfoses. De acordo com Lacan “A fala, é claro, define-se aí por ser o único
lugar em que o ser tem um sentido. E o sentido do ser é presidir o ter.” (LACAN, 2013,
p.566). Como fica o sentido se o ser e sua posse estão em constantes metamorfoses? O
corpo de Gregor marca a distinção do seu “eu”, ainda que também em metamorfose, em
relação aos outros. O “eu” Gregor muda também, não é uma entidade fixa, essencial,
absoluta, porque esse “eu” não preexiste à criação de si mesmo através da linguagem.
Gregor é transformado pelas palavras e pela impossibilidade de pronunciá-las no corpo
de inseto. Gregor, após a metamorfose, não dispunha do corpo humano, meio pelo qual
se mantinha em rotinas e discursos que sustentava uma identidade humana. O corpo, o
meio de expressão,mudou, logo, as palavras e o ser, consequentemente mudariam.
Considerações Finais
Considera-se o nome como a unidade possível que une três vozes diferentes: a primeira
voz, cujas falas poucas, porém proferidas, revelam um‘eu’Gregor humano, em acordo
com os objetivos da família, um profissional adaptado; a segunda voz, só se manifestava
em pensamentos, nos quais Gregor dizia para si seu desacordo com a profissão, com as
e com obrigações profissionais que oprimiam as necessidades do seu corpo, tal voz,
planejava, no natal, anunciar à família seu apoio à escolha profissional da irmã; a
terceira voz, animal, progressivamente desarticulou os automatismos que cerceavam a
expressão de seus desejos, suas obrigações para com a família, horários e emprego.
Talvez, possa-se dizer que, a metamorfose corpórea de Gregor Samsa tenha sido um
colapso e uma radicalização do que o Freud chamou de mal-estar na
civilização.Mas, como disse o gerente, “Embora por outro lado eu tenha de dizer
que nós homens de comércio, feliz ou infelizmente-como se quiser- precisamos
muitas vezes, por considerações de ordem comercial, simplesmente superar um
ligeiro mal-estar.” (KAFKA, 2013, p.18)
Referências:
ANDERS,Günther. Kafka. Pró e contra. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Cosac e
Naify, 2007.