Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Por
Maria Beatriz G. L. de Albernaz
Aluna do doutorado de poética (Ciência da literatura)
2006
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
2
Agradecimentos
A Manuel Antonio de Castro que não só orientou formalmente o meu trabalho, mas me
deu segurança para seguir um caminho próprio de investigação, fazendo dos meus
limites, as minhas possibilidades de criação.
Aos professores Antonio Jardim, Gilvan Fogel e Ronaldes de Mello Souza, cujos cursos
– enquanto modos diferenciados de pensar junto – foram de enorme significação para a
escrita deste trabalho.
Ao professor Pedro Benjamin Garcia, que junto com os citados anteriormente se dispôs
a fazer parte da minha banca, possibilitando uma maior aproximação da poesia e da
educação.
Àqueles que mantêm na CAPES uma linha de investimento em pesquisa que não se
referencia, nem se propôe a acumular saber tecnológico.
A Ana Maria Albernaz a quem devo a invenção de uma irmandade feita de sangue e de
espírito, inspiradora, esclarecedora e debatedora das questões existenciais que dão
sentido a este processo acadêmico.
A Maria Inez Pumar, por sua ajuda na tradução para o inglês do “Resumo” presente no
final deste trabalho.
Ao Maurício Peltier, por existir. Ao Nicolau Maldonado, por ser. A ambos, por tocarem
suas vidas durante a gestação desta tese, certamente uma gestação longa e cheia de
intercursos.
SUMÁRIO
PALAVRAS DE INTRODUÇÃO, 5
ANEXO
Quatro dimensões da cidade ser, 266
POSFÁCIO
Em defesa desta tese, 285
PALAVRAS DE INTRODUÇÃO
lição. Esta tese se fez pelo desaprender. Mas isso, paradoxalmente, ela faz pela afirmação, a
“santa afirmação” da criança que joga, do habitante que anda na rua, da coisa que se mostra
como lugar de olhar e de escutar. Desaprender a distância, será? Olho com despreparo a
paisagem, eu mesma tão infinitamente preparada para ser lugar de um eu. Mas esta tese se fez
pela desautoria de um eu subjetivo e aprisionante de coisas como conhecimentos adquiridos.
Despreparar o olhar, que difícil é se encantar com o mistério da humanidade em ruínas e ser
também ruína, ser também a inútil paisagem do progresso.
Sem nenhuma esperança e ainda assim sendo vontade, a paisagem em ruínas da cidade
sitiada indica caminhos: “O livro dos prazeres” e “A maçã no escuro”. O vazio aberto por
Lucrécia mostrou que qualquer lugar pode ser o primordial; o lugar de se habitar
poeticamente. A leitura desses dois outros romances da mesma autora verteram
generosamente neste trabalho a realização prazerosa e dolorosa de quem se abre para a vida
como uma aprendiz ou como um cidadão perdido. Mesmo nas mais ínfimas relações, seja em
estábulos, seja em feiras-livres, ressonantes de dor e de prazer são todas as realizações. Talvez
não fosse preciso passar por tão longo processo para dizer isso que é simples. Mas foi
necessário muito empenho para perceber a relação entre o caminho e a margem, e a
descoberta da margem também como meio e mundo onde o ser se presenta. Percepção
cuidada foi essa. Não digo que “usei” Heidegger. Expandiram-se minhas possibilidades de
percepção pelo envolvente cuidado que em sua leitura se percebe em relação àquele simples
tão descurado por nós, habitantes sitiados sem margem para ser-com. Tão próximos parece
que estamos, amontoados mesmo, em relação quase de promiscuidade, e ainda assim sem
relacionamento que se realize.
Foi assim: criei relações com as personagens principais dos três livros, com Lucrécia-
luz-basal, Martim-martírio e Lóri-lenda-romântica; criei diálogos com Heidegger e Lispector,
com suas figuras fantasmais e por isso mesmo provisórias; criei um modo de me aproximar
poeticamente da cidade e da sua cultura, num processo de superação do padrão civilização-
barbárie. Para poder me aproximar de sua realidade diferenciada, busquei a cura na criação de
relações e diálogos. Mas as formas criadas não existem, objeta-se. Existem, afirmo. Faço
desta tese um lugar de sua existência. Se serão capazes de saltar para o espaço padronizado da
cidade, da educação e da literatura, isso posso apenas prometer. E se verá o que a sua leitura
pode cumprir.
Procurei realizar um trabalho de interpretação identificado com o que Fernando Pessoa
indica quando diz: “o que em mim sente, ‘stá pensando”. Tratei de dialogar com os obras
escolhidas de modo que o pensamento entretecido refletisse a tensão entre autor e leitor, como
7
Capítulo 1
NO INÍCIO: A PERDA DA AURA
No meio do segundo mais primeiro do meio-dia, não há sombra. Tudo o que existe
refulge em áurea luz e tem seu lugar e está presente em toda sua volumosa majestade.
Sintonizados com as coisas, na assunção do que apontou Walter Benjamin em relação à aura1,
pode-se perceber nelas, a sua autenticidade. Autêntico, diz ele, é tudo aquilo que as coisas
contêm e que é transmissível (ou melhor: tudo que as coisas são, segundo o modo como
aparecem). Mas vamos logo ao que nos interessou nessa história toda: autêntica é a literatura,
em sua materialidade, em sua duracão, em seu poder de testemunhar acontecimentos na
história. E assim também a educação, que se autentica e se “aureariza”, enquanto duração
material e poder de testemunho. Mas isso foi antes. Perdeu-se. Diz Benjamin que a facilidade
em reproduzir atingiu em cheio a aura das obras de arte. E dizia isso, com os olhos voltados
para o processo de industrialização e da produção em massa, que estava em seu auge no
início do século XX. A reprodução. Posteriormente, Althusser descreveu a escola como
aparelho reprodutor, teoria que culminou na obra de Bourdieu e Passeron sobre a mesma
instituição, cujo título era “A reprodução”. Reprodução, nesse caso, é a produção requentada e
reativada por técnicas escolares e formas codificadas de relacionamento no processo de
aprendizagem que automatizam a duração e que impedem o testemunho, de modo que alunos
e professores se tornam meros papéis exaustivamente repetidos a bem da estagnação histórica.
Já então, Baudelaire havia colhido nas ruas, o que restara de aurático nas coisas,
abaladas e sem autoridade, perdidas na sombra que a modernidade projetara. Plantadas na
época das técnicas de reprodução, todas as coisas viram-se atingidas em sua possibilidade de
serem obras de arte, compreendendo obras de arte como a produção autêntica, numa
percepção da arte para além da criação de objetos exponíveis. Foi assim que Baudelaire,
olhando a rua e a multidão (as massas), colheu coisas destruídas e do fundo de sua perdição,
abrigou-as em sua poesia, testemunhal e duradoura, e que, mesmo de modo sombrio, eram por
ele entrevistas como aparições de uma realidade longínqüa, por mais banalizadas que
estivessem.
Nesse gesto inspirado, o poeta rompe duas tendências dentro da massa: a necessidade
de tudo ter bem perto, no esquecimento daquela “realidade longínqüa”, assim como – no
1
Esta discussão em torno da idéia de aura, vale-se principalmente do que escreveu Walter Benjamin em “A obra
de arte na época de suas técnicas de reprodução” in Textos escolhidos / W. Benjamin, M. Horkheimer, T.
Adorno, J. Habermas, trad. de José Lino Grünnnewald et alli, 2a. ed., São Paulo:Abril Cultural, 1983 (Col. Os
Pensadores).
10
processo técnico da reprodução – a depreciação daquilo que é dado apenas uma vez. Mas
somos massa, estamos plantados em realidades fugidias e produzir na unidade e na duração é
difícil. Estamos no reino da aura destruída, em que todos procuram atentar para repetir; e
facilitar essa atividade reprodutora, pelo trabalho de estandartização do que acontece uma vez.
Com o alinhamento da realidade em uma só direção, perdemos nossa capacidade de
ritualizar, esgarçando o substrato a partir do qual as coisas se fazem a si próprias.
Substituimos a reunião das várias dimensões numa só coisa pela soberanização da atividade
humana que as examina e as reproduz. Sorte é que essa substituição não é absoluta. Persiste a
possibilidade de os homens, em sua atividade, se remeterem a algo mais do que a estrutura
política, compreendida como a manipulação das coisas, das obras de arte, das pessoas, da
própria relação que se estabelece no processo de (re)produção, tudo transformado em
mercadoria ou em objeto. Diz Benjamin que desde esse momento, desde o momento em que o
poder da ritualidade própria da imersão no aqui e no agora, desde o momento em que impera
o cálculo, nada mais podemos fazer do que cultuar a recordação daquela outra realidade não
funcional.
Estamos entre relógios, vedetes e ditadores, numa realidade reduzida a um imenso
mercado. Corrompido o encanto da aura, passamos a cultuar personalidades, especializações,
competências técnicas que satisfaçam as nossas cada vez maiores necessidades de consumo.
Na literatura, os autores procuram não se diferenciar da massa; na educação, essa mesma
funcionalidade autoriza a criação de esquemas industriais, imobilizando o poder dos rituais
que permitam a brotação e a compreensão sensível da vida. Gestos de negação, porém, não
são suficientes. A crítica, por si só, não restabelece aquela proximidade com o longínqüo.
Nem mesmo a melancólica saudação às recordações nos remete à possibilidade de Viver,
Existir, Ser, na reunião do aqui e do agora com o antes e com o porvir. O que esse trabalho
pretende? É um trabalho de “ligação”, na abrangência mesma do sentido que a gíria há pouco
tempo deu a essa palavra, quando o “estar ligado” significava estar junto às coisas. A
expressão serviu mesmo para designar o estado obtido por meio de drogas, o que indica na
escritura aqui proposta, a possibilidade do delírio, enquanto permissão de entrada de imagens
advindas de um território estranho à razão, sem que em nenhum momento ela seja negada.
Trata-se de um esforço de equilibração de forças, de admissão da tensão, na medida em que
são admitidas e tidas como necessárias para o restabelecimento de um processo em que pensar
e sentir não podem ser dissociados.
11
Poder:o que é? Estará essa pergunta incluída naquela outra célebre, feita pelo príncipe
Hamlet, quando em meio às suas indagações sobre as atitudes que deveria tomar, para que a
justiça em seu reino fosse feita, alinha e reúne ser e fazer? Ser ou não ser – equivaleria tal
questão a de ser no fazer, em que somente pelo fazer se possa ser? Essa harmonização traz à
tona o poder que não se reduz ao exercício de um encargo político mas ao poder como
implicação da própria vida sendo vivida em sua inteireza, no cumprimento de uma existência,
em que razão e desrazão se equilibram de modo tênue. Contudo, a compreensão do poder
dentro da acepção instituída pela política se tornou hegemônica e substituiu aquela outra que
vincula poder à realização do ser.
O poder altivo da hierarquia e dos sistemas políticos fez-se parceiro da noção de saber, um
saber que se adquire e se acumula como riqueza material, saber que se fez moeda de troca e se
tornou capital e sustentáculo das escolas e das academias. Foi esse poder, grávido de saberes,
que deu à luz a uma ninhada de nada, de ignorantes, de miseráveis e de desiludidos. Saber e
poder, desvinculados da noção de ser, no fazer, passaram a ser organizados segundo regras
administrativas e governamentais. Mas isso já foi diferente? Em que momento pode-se dizer
que isso aconteceu? Estaria este trabalho sendo escrito na trilha melancólica e reflexiva que
suspira pela perda, seja da subjetividade de um eu, seja da objetividade de um ente,
supostamente dotadores de um poder mais autêntico? Comecemos apenas por admitir que o
poder, ao ser exercido, procura eliminar aquilo que o contradiz. Mas admitir também que ele
se dá no acontecer do ser das coisas. Nessa concepção mais abrangente, cabe ainda a
percepção do ser como experiência tanto da vida quanto da morte. Sendo assim, aquele
alinhamento do ser, no fazer, pode estar tanto nas atividades que exercemos, quanto no abraço
receptivo do reconhecimento manso do não-poder ou de “nada poder fazer”. Ser e Nada são
essencialmente diferentes – assim como vida e morte – mas um não existe sem o outro. Como
a defesa pelo reconhecimento do Nada passou a ser uma escola de pensamento identificada
como niilista, o presente trabalho assume, diferentemente, os nomes do Vazio ou do Não-ser
para indicar o pólo determinante e contraditório para que o Ser seja – assim como a Morte o é,
para que a Vida humana aconteça em sua plenitude. Ser e não ser: eis a nossa condição.
2
ME: abreviatura de “A maçã no escuro”, de Clarice Lispector.
12
“esquecida”. Tão-logo nos damos conta dessa inquietação, tão-logo a questão do poder se
impõe. Poderíamos iniciar nossa busca pela investigação da angústia de quem vive nesse
contexto, mas como nos pusemos num confronto imediato com as pedras desse caminho, as
pedras que calçam e que também são obstáculos, a questão do poder se impôs. Ela se
apresenta em qualquer confronto e, inspirada pela leitura de Lispector e de Heidegger, a
contingência de luta se sobrepôs à pesquisa em torno do sentimento de angústia.
Essa perspectiva assume a decisão de ir de encontro a uma aprendizagem que, mesmo não
escapando da maneira de pensar fundada num sistema, seja ele científico, lingüístico ou
político, acolhe outras formas. E a primeira luta surge quando se diz que essas “outras
formas” nos fazem atentar para a originariedade do próprio pensamento, que –
verdadeiramente – acontece na vigência daquela tensão ser-não ser. A luta eclode nessa
proposição, que parece tão abstrata, tão pouco ameaçadora. Mas dizer que o pensamento não
pode ser limitado por qualquer sistema e que é essa sua tangência com o ilimitado que o torna
possível; dizer que essa grandiosidade, apesar de não poder ser controlada por nossos
sistemas, constitui justamente a verdade essencial que nos funda, isso parece mesmo muito
complicado. Essa complicação é apenas reflexo do nosso desaparelhamento para falarmos de
coisas simples como “somos jogados no mundo”. Sim, até uma criança diz “não pedi para
nascer”. Não parece novidade a idéia de que a vida nos foi dada, sem participação da nossa
vontade nessa decisão, mas que mesmo assim temos de assumi-la. Mas como abandonar-se a
essa condição de ser sem pedir-pra-ser e, ao mesmo tempo, ser “alguém na vida”, poder viver,
considerando que esse “alguém” não é ser objeto nem sujeito, mas simplesmente alguém que
assume e cumpre sua existência? Esse cumprimento também não é complicado, não se faz
através de um discurso, mas no cotidiano, nos atos. Não é complicado mas a simplicidade é
difícil porque se o homem não se projeta, não se joga para estar e ser junto às coisas do
mundo, ele não se diferencia, não se define, não se completa. A sua essência de homem
jogado-no-mundo realiza-se na sua existência de ser-no-mundo. Isso é difícil? A questão fica
um pouco difícil sim, se pensarmos que essa dimensão de ser-no-mundo acontece, num
contexto absolutamente familiar para o homem, do qual tudo parece uniformizado,
estabilizado, sem vida própria, inclusive ele, que parece automatizado, indiferente. Aí,
voltamos à questão do poder. Para poder ser ele-próprio, o homem precisa superar essa
impessoalidade, mas – paradoxalmente – para poder-ser precisa se livrar de sua subjetividade.
Estamos constantemente nesse jogo, nesse movimento de tensão entre o eu e o mundo. E é
difícil nesse jogo não se trapacear, discursando e moralizando, criando regras e impondo
visões de mundo, comprando o mundo, congelando as coisas em formatos, de modo que o eu
14
permaneça “a salvo”, a vida completamente “a salvo” da morte (já que essa necessidade de
controle parece ser a do homem que se quer imortal, permanentemente “a salvo”). Outro
paradoxo: estar-aí na vida só pode estar quem não se furta da morte, como possibilidade
definitiva de ser. Então, surge o mais difícil dos aspectos desse jogo: ainda que se trapaceie, a
dinâmica do seu movimento é tão forte que se mantém. A cadência absorve a decadência.
A leitura de “A cidade sitiada” de Clarice Lispector abre um caminho de cadência, e
justamente na descrição da decadência de uma pequena cidade, na medida em que ela se
dispõe a “progredir”, segundo o modelo urbanístico de demarcação das cidades em espaços de
exercício do poder exclusivamente funcional. Mas, na leitura de “A cidade sitiada”,
acompanhando a trajetória de Lucrécia, percebe-se que há lugar (sempre haverá, mesmo que
esquecido e obscuro) para a experiência de um poder fruto da tensão de contrários, melhor
ainda, um poder que não se desvincula da experiência de ser da personagem. Será ausência de
poder, sem que daí decorra em falta de saber? Pois sob o olhar dessa cidadã absolutamente
comum se percebe: é possível experimentar um poder não político, mesmo dentro da cidade,
um poder impossível de se controlar e inútil para o domínio e para a conquista de posições de
destaque na cidade.
Mas quem quer esse poder? Quem sente vontade de um poder que não traz supremacia?
Certamente não aqueles que se sintam indiferentes em relação ao vento, aqueles que o queira
controlar, na via da exaustão. É absurdo ou ridículo pensar no vento como poder? Para nos
auxiliar a pensar sobre essa fonte obscura de poder, Martim, protagonista de “A maçã no
escuro”, também de Clarice Lispector, assim como Lucrécia, procura abrigo em outra
instância que não a política para se fortalecer. Não, não é só pela conquista de espaços na
administração política de uma cidade que se exerce poder. Como ar aberto em vento,
turbilhonante livre, provoca-se também a própria chegada. Não, não se trata de forjar aqui um
libelo anti-político. A cidade está sitiada e isso requer diálogo, mas à relação de corda esticada
entre o eu e o mundo deve se interpor a maçã no escuro. Não há cidade de maçãs sempre
iluminadas, e o turbilhonante livre que provoca a vida a ser diferente dos padrões pre-
estabelecidos, padrões sem aura a serem reproduzidos, pode vir carreado pelo simples vento.
Ainda bem que o mundo não se faz à imagem e semelhança do homem, como se o primeiro
fosse a face externa do segundo. Ainda bem que nem tudo na cidade está sob o controle
imperial do homem, nem tudo que é real precisa antes passar pelo crivo explicativo da
inteligibilidade humana (cf. SOUZA, p.37-8).
À escalada da consciência como cogito contrapõe-se a presença que deixa as coisas serem
e acontecerem como são, ainda que fora do padrão reprodutível. Poder não poder – nessa
15
Educação ou pelo Estado. “Tu deves”, “tu recusas”, enfurecido como um leão. Tu
institucionalizas, na busca ansiosa de um “tu crias”. E nada disso impede a vigência do poder
de ser, presente em todo pensamento, em toda obra de linguagem, ainda que ele se retraia, no
momento mesmo em que se procura descrevê-lo (ou institui-lo). E é essa mesma retração ou
velamento que abre a possibilidade de novamente ele acontecer, abruptamente (cf.
SANTORO, 1994, p.27).
Quem nunca experimentou desse poder? “Tu és”, quem nunca foi com gosto, prazer e
desejo? Dá vontade de demorar nesse instante de quase ociosidade no ser em realização
simples (semelhante aquele instante em que a criança se encontra totalmente mergulhada em
seu jogo), mas quando se vê o tempo já passou. De repente, começa esse acontecimento de
ser, esse começo que acaba no momento em que a gente começa a querer prolongá-lo. Mas a
possibilidade sempre está aí, sempre retorna. Alcançá-la se dá não de forma segura,
programática, mas com os passos tortos de um pombo, pela espera e pela escuta; é o ser que
toma conta da pessoa ou da coisa, e não o inverso. O que a gente tem de fazer? Deixar-se
cativar por esse ser que não realiza nada mas que faz tudo acontecer; abandonar-se ao poder
desse cativamento graças ao qual qualquer coisa é, se mostra e pode ser dita. Assim, surge o
pensar. O ser torna o pensamento possível. É pela “força tranqüila” desse poder amoroso e
cativante do ser que o pensar é possível (HEIDEGGER, 1969, p.71).
Já Benedito Nunes chama atenção para o sacrifício do eu, presente nas narrativas de
Clarice Lispector, que aquieta o seu querer e sua ansiedade quando deixa de ser movido pela
esperança. Esperança aí parece se relacionar à identificação metafísica que a humanidade
estabeleceu entre a possibilidade e a atividade diretiva da subjetividade. Sim, há uma
dimensão do fazer como necessidade, mas não se estabelece entre ela e o acontecer uma
linearidade de causa e efeito. Sim, há também uma dimensão do fazer como possibilidade,
como campo para o ser poder se dar. Ser no mundo é obedecer à lei inaparente da terra e
salvaguardá-la, ainda que restritos ao “círculo comedido do possível” (HEIDEGGER, 2003,
p.85), sendo o que é possível ser, dentro da necessidade. Mas possibilidade não é norma. O
desafio é que a cada vez e a cada coisa, o possível se apresenta diferentemente e que a
condição de ser está no fazer presente.
Porém, nessa época de desertificação da terra, o homem ainda tenta afirmar-se pela
negação do ser, seja pela aposta na transformação do poder do espírito em intelecto, através
da ciência (via pela qual o projeto metafísico encontra-se em ilimitado progresso); seja pelo
niilismo esvaziador, pelo qual o homem passa a querer o nada por não compreender o nada
querer. Paradoxalmente, nesse movimento desesperado, a morte é negada “no seu segredo”,
17
como diz Clarice Lispector, como se assim pudéssemos tornar nossa vida possível. (ALP 3,
p.132).
Ser não se contrapõe ao não-mais-ser; e tampouco contradiz o ainda-não-ser. Ao ser
pertence não só a realidade e a necessidade como também a possibilidade. (cf. HEIDEGGER,
2003, p.161) Esse poder-ser, tão caro à idéia da educação, constitui por si-só uma realidade,
mas tantas realidades radica que inclui mesmo o impossível. É que a largueza do ser é mesmo
incomensurável e abarca o inesperado. Nessa dimensão de realização do impossível, reside a
noção do sagrado. E agora? Não é tão difícil traçar relações da possibilidade com o tempo,
com a realização, com a vida sensorial, mas agora foi trazida à tona essa palavra “sagrado” e
foi admitida uma percepção diferente da racional, ainda que não a elimine. E agora?
Reúnamos simplesmente aquilo que toca a nossa inteligibilidade com o que tange a nossa
sensibilidade. Grassi diz: retomemos a teoria (Theoreîn) como olhar (1978, p.142).
Nos levará essa retomada ao centro do labirinto, ao encontro do Minotauro? Ou, através
dela, nada mais conseguiremos do que a sucessão e a alternância de caminhos, enfim, ao
pensamento solto em descaminhos?4 Como responder, a não ser pela ponderação de que já é
tarde para voltar atrás, pois já se percebeu a puerilidade da visão que concebe o real apenas
como variante do possível. Na muda potência dos mártires, já tornamos nosso o trabalho dos
ventos; o trabalho duro e deslumbrado do crescimento das árvores. Já nos deixamos cativar
pelo ser, já podemos dizer que o melhor momento de nossas vidas foi quando um homem
disse dai pão aos que têm fome.
Portanto, enfrentemos labirintos e descaminhos. Mas, acalmemo-nos, o ser humano não
pode não ser. E, sim, o homem está imerso em suas possibilidades, mas o sagrado revela uma
realidade que transcende todas as realidades. Anseias pela saída e pela chegada? Nada mais há
a dizer a não ser atenha-se ao destino humano, o de “moldar temporalidades difusas num todo
significativo” e reconhecer-se no ser que parece existir à sua revelia (GRASSI, 1978, p.65).
Poder ou não poder? Livre arbítrio ou destino? Já os gregos acenavam nossa tragédia: o Deus
desmoronou-se e sem deus nenhum homem pode sobreviver como homem.
É denso o ar que respiramos. Nossos sentimentos (por mais que admitamos aquela
dimensão sagrada no ser) possuem natureza tão pouco divina. Nossa vontade espalhou-se
como desejo da noite, como vago suor. É tenso o ar que respiramos. Serenos ou apáticos, nos
dividimos. Atenção, atenção! Você está sendo transposto para um mundo em que as coisas já
3
ALP: abreviatura de “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”, de Clarice Lispector.
4
Dilema colocado por Ronaldes de Mello e Souza representado pelos relatos protagonizados por Teseu e
Menelau (esse último, no livro IV da Odisséia).
18
são, para um mundo já dado. Esteja alerta. É desse tipo de tensão que estamos falando. E
agora? Aplica-se aqui a frase de Carneiro Leão, “enquanto ainda não se deu uma pro-dução, o
poder-ser se reduz a uma simples possibilidade abstrata” (1991, p.157).
Aprender a pensar, sem sair do recinto da tensão, amplia a compreensão da contingência
humana (tão fortemente mostrada na obra de Clarice Lispector): a extrema indigência e o
radical poder de ser. Refreemos a nossa empáfia (o ser humano confia demais em seu poder
de regrar), em vista da descoberta do homem como morada da verdade do ser. A densa onda
que traz palavras fortes como essas não cessará de bater, apenas fique claro de que verdade se
está falando. Diferencia-se: verdade como adequação e verdade como automanifestação,
como inegável presença ainda que se vele, no mesmo instante em que é desvelada. É “um
poder que mais alto se alevanta”. “Conquistar a experiência deste poder é a responsabilidade
que a existência e o pensamento sempre reclamam para si em todo agir, em toda tarefa e
questão” (SANTORO, 1994, p.36).
Para passar a tomar as coisas “não mais como objeto mas como possibilidade de expansão
e realização do poder constituidor de sentido” (idem, p.52), o homem dispõe da arte. Ali, ele
se confronta com a sua realidade originária. A cidade pode também ser vista como obra de
arte; o lugar onde o homem pode encontrar sua natureza, o segredo de sua história. Nesse
lugar, se dá o poder transformador do jogo, no qual, sem igualar os jogadores, se cria uma
tensão; pelo qual, cada um pode ser o que é. No jogo, há entrega a um imperativo maior. Diz
Heráclito que “tempo (Aîon) é criança brincando, jogando; de criança, o reinado.” (frag.52).
Joga-se o jogo do mundo porque se joga, sem explicações. Martim, protagonista de “A maçã
no escuro”, vive a cidade como o lugar desse jogo de ser-no-mundo sem porquê, em pleno
campo. Aliás, assim como a experiência da cidadania pode se dar no isolamento do campo, o
“caminho do campo” pode acontecer também na cidade.
Arte como jogo é ficar olhando até que a vida instalada no terreno, comece a acordar...
A confusão na qual se cai é ardor no meio do jogo. E quando se é jogador, mesmo o mais
ardoroso, é preciso se manter dentro dos limites do permitido. Ao homem obediente à “lei
inaparente da terra” só cabe ser o que é, tal qual um mosquito que pode brilhar, ou o
passarinho cauteloso. Tal qual ratos e ratas, irmanados no silêncio. A verdade da arte aponta
19
para vários caminhos. Saber relaciona-se à experiência e não mais representa luta pelo poder.
Nesse jogo de ser-no-mundo sem porquê, o poder é total e igualmente acessível a quem quer
que se ponha à escuta das coisas, da sua aura, na medida em que elas acontecem; em que elas
passam a ser lugar cativante de ser, em que passam a exercer a sua “força tranqüila”. Não se
trata aqui de tecer um discurso transcendente, mas sobretudo afastar-se da falsa dualidade
transcendência-imanência pois, no isolamento das partes do binômio, homem virou sujeito-
diante-de-objeto. Nessa prudente distância, as palavras caem frouxas, evaporam, não
concretizam o tempo.
A união das palavras às coisas torna-se abstração lógica... Vergar-se não inteligível mas
harmoniosamente... Caos e cosmos – reuni-los não é finalidade; é harmonização com a fonte
originária de universos. Vergar-se ante o poder mais forte que a prudência é não submeter-se
a uma só visão, à unidireção do poder, isto é, à hierarquia que instaura autoritarismos. A
violência absolutiza-se na subjetividade que renega a morte. Clarice Lispector diz: a nossa
bondade é real e violenta; reafirma a tensão violência e bondade. Não há mundo-só-cosmos,
sem caos. Por força desse reducionismo, por sermos tão objetivos (ou subjetivos; isto é: um
ou outro), “terminamos sendo de nós mesmos apenas aquilo que tem uso” (ME, p.233). Por
sermos tão discretos, ignoramos a ferocidade de nosso amor.
Mas dizer sim e ao mesmo tempo dizer não – isso é possível? No amor,
principalmente. Reduzir seria fechar-se à eclosão da realidade seja como sim, seja como não.
Não se trata de escolha. Caos e cosmos existem ambos em suas individualidades e diferenças.
Harmonização é mito, é instante, Aîon. Tempo re-criado na poesia, o de resistência à
imaginação da vida diluída numa sociedade informe, do indivíduo fantasmagorizado na
coletividade massificante. É um poder fugaz esse, perseguido em cada ato, o de realizar o
único no vário. Renovamos assim o presente. Em busca desse poder, o político amparado em
símbolos que forjem essa realização. Essa realização, contudo, apesar de sempre operante,
não se entende, nem se controla racionalmente. Nesse sentido, a cidade – para ser uma cidade
– precisa abrigar a diversidade. Assim, ela pode se realizar no presente. Nesse seu incessante
recomeçar, mantém-se “como um fuso trabalhando”, como se a esperança não fosse também
esperar, mas apenas atingir. Na corrente de necessários afazeres, ao esquecer do repouso, esse
há de se impor à força, assim como a noite. Assim a vida se dá, do nada para o nada. A
escuridão em que recaímos: a tragédia do homem ocidental, sem pouso permanente, sem
lógica possível que explique esse movimento vital.
Qual o sentido profundo da ação trágica? Justamente a conquista da falta de poder.
“Édipo não é autônomo. Seus atos são cumprimentos de um desígnio que a ele escapa. Ele é
20
agente e paciente, vítima e algoz. Sua grandeza está na unidade indissolúvel de sua vida com
o mandato dos deuses.” Eudoro de Sousa (1964) chama atenção para a ligação visceral entre a
tragédia e a pólis. O herói trágico experimenta a contradição do Universo na realização de
suas relações com a pólis. Do ponto de vista político, toda ação é contraditória,
irremediavelmente (cf., p.70). E não há lei escrita da cidade que possa sanar essa contradição.
Mas do ponto de vista da “lei inaparente da terra”, da physis, do processo dinâmico de
aparição do real, da verdade do ser, ela pode ser sanada. Num acontecer abrupto.
Para esse desejo, não há juízo, nem prova, nem justificação. Cientistas tão meticulosos em
suas explanações técnicas regem-se fundamental e paradoxalmente por esse “outro
pensamento”, desejante e movente. Pensamento que pode parecer insentato, mas tanto quanto
uma fonte na base de uma montanha possa ser. E, no entanto, para poder aprender é preciso
ter essa fonte em atividade; uma disponibilidade para os “aís” da vida; e se deixar cativar por
esses “aís”, enquanto fundantes e originários de pensamentos, aí sim, canalizados em técnicas
e formatos vários. Mas a fonte, a fonte mesma, essa nos escapa, não informatizável, nem pode
ser citada pelo rigor de regras pré-determinadas.
Então, haveria uma “outra” coisa por trás de todos os “aís” que aprendemos? Atenção,
atenção, a fonte, o ser, não existe fora do aí. A cada vez que tentamos interpretar e
desvincular o ser do ente, concebemos mais um ente, um outro ente porque cada coisa só
existe enquanto é. Arranquem-lhe essa faculdade visceral e ela agonizará ou rapidamente
advirá em nova entidade, agarrando-se na mínima concretude que possa existir em nossas
interpretações. Por isso, como é deliciosa a explicação científica que faz uso de figuras de
linguagem, metáforas prodigiosas que tornam a ciência tão mais compreensível, viva enfim.
Quando se diz pensar, se diz corpo. Quando se diz, aprender, se diz corpo. Absurda aquela
velha divisão. Pensamento metafísico? Realidade representada? Tudo isso são criações
tardias de um homem saudoso de um momento em que ser é mais simples ainda do que
colocar açúcar numa xícara de café. Mas é que estamos tão mais acostumados ao cotidiano de
nossa funcionalidade... “Outro pensamento”, não metafísico? Como fazer uma pedagogia a
partir de uma visão momentânea, uma pedagogia vigilante do mundo na aparição das coisas?
Um instante, por favor! No entusiasmo, podemos ter a impressão de que é possível criar
algum novo sistema perfeito de aprendizagem. Entrar numa perfeita sincronia com as coisas,
com o mundo que verdadeiramente é, essas são fantasias que transformam insensatez
fundante e autêntica flexibilidade em loucura por imobilização. Voltemos ao começo para
retomar a chegada do “outro pensamento” e vejamos como ele não se dá fora. Como esse
outro pode ser simplesmente a descoberta de que se pode pensar de outra forma sendo apenas
si mesma. Parece estúpido fazer uma tese sobre isso, perder tanto tempo apenas
acompanhando a trajetória de uma personagem que trava com “A cidade sitiada” uma relação
baseada nos sentidos, prioritariamente o olhar, mas enfim uma relação nada intelectual, nada
política e nem mesmo produtiva economicamente.
É a visão de uma tola, se poderia dizer. A visão de uma obtusa que nem ao menos possui a
argúcia de um Bobo da Corte, ou a agudez de um marginal. Não, Lucrécia é só uma pomba
que cisca grãos pela rua e ela nada seria não fosse Clarice Lispector a localizar a sua confusão
22
e a fazer-se voz dessa insensata que nada mais faz do que absorver influências, do que abrir-se
ao desconhecido de maneira simplória e que cria ou pensa enquanto se vê dissonante ou
deslocada. E é bom que se diga que ela, Lucrécia, jamais chamaria esse seu “pensamento” de
“pensamento”. Por isso, a denominação feita aqui, como “outro pensamento”. A paidéia
poética de Clarice Lispector nos orienta para percebê-lo e salvaguardá-lo. A escrita do
romance faz-se pela marcação de indicações para fazer desse modo de ser um caminho, um
caminho educativo.
Mas como? Estamos habituados a entender acontecimento como atividade de homens que
interferem na história, que deixam sua marca nas coisas. Como então pode alguém ser ou
acontecer simplesmente no ver? Pode o olhar provocar a transformação de alguém ou de
algo? Nesse caso, como entender o olhar?
De antemão, considera-se aqui transformação como fundamento de todo ato educativo, no
qual está implicada uma superação, uma ultra-passagem, dentro do necessário processo de
atravessamento do deserto. Isso aqui quer dizer que não se supera a metafísica fora dela.
Sempre, em qualquer tentativa de se buscar um “outro pensamento”, algo se perde e algo
permanece. Bem, é preciso que se repita: Lucrécia não tentava buscar esse ”outro
pensamento”. O interessante dessa personagem é a sua experiência sem intenções. Mas, a
diretividade parece ser uma sina dos educadores. Pobre de nós. Nesse sentido, Lóri, em sua
trajetória como aprendiz (descrita em “Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres”) vem
bem a calhar porque, neste livro, Clarice Lispector mostra o caminho na busca desse “outro
pensamento”. Um caminho que se faz se não pela intenção, pelo menos pelo desejo.
O caminho de aprendizagem de Lóri se dá na obscuridade. Enquanto Lucrécia é toda
olhar, Lóri segue meio às cegas, e parte de um acontecimento que é ponto de chegada de
Lucrécia: o susto de estar viva. É uma aprendizagem estranha essa em que o conteúdo não se
define, pois o ser, o real, não se define. E nenhum pensamento pode ser uma transcrição
positiva e total do real. O real não pode ser abarcado, nem corrigido e muito menos
substituído por um real ideal. O “outro pensamento” busca apenas pensar o não pensado, o
que parece não natural. Conhecer ampara-se no desamparo de estar viva. “De estar viva ...
teria de agora em diante que fazer o seu motivo e tema” (ALP, p.156).
Esse “outro pensamento” encerra uma dificuldade pois demanda uma forma diferente de
lidar com a linguagem. Talvez possamos chamá-lo de Sabedoria já que ele, tal como o
conhecimento tradicional, é baseado em princípios arcaicos, em pensamentos que se fazem
em harmonia com o ser, e por isso mesmo é tão difícil nomeá-los. Mas, se a Sabedoria busca
afinar-se com uma época arcaica em que tal harmonia existiu, na atualidade, o pensamento
23
vive na tensão em relação a essa unidade. O pensador do nosso tempo crepuscular tem
sobretudo a tarefa de des-pensar, tal o peso da metafísica entre as palavras e as coisas. Daí, a
importância de se pensar justamente no modo como articulamos palavras e coisas. Sobre que
apoio essa articulação se dá? “Sereno apoio”, tecnicamente invisível. Por isso, aprender é
interpretar; é “rememorar” aquela harmonia e, como foi dito em relação ao poder, sem
controle possível. Quando queremos compreender algo, temos de antemão alguma
compreensão, que precisamos desfazer. A aprendizagem, portanto, está em apreender o que já
sabíamos e na gênese do aqui e agora, redescobrir o arcaico como possibilidade de abertura de
um porvir, de uma descontinuidade, de uma ruptura em relação à nossa compreeensão
habitual.
Pensemos que a verdade de cada ente reside em seu ser. Uma verdade que vem vaga e
que traz como certeza apenas o saber de que há um sentido secreto das coisas da vida e o
pressentimento de que há perfeição no mundo (cf. idem, p.16). Dito dessa maneira, em plena
era da tecnologia, essa afirmação simples parece obscurantista. Vivemos ainda na época da
caça às bruxas. Só que as bruxas de hoje não são mais aquelas que não seguem os preceitos da
religião hegemônica. Hoje, a liberdade de culto é aceita politicamente. Obscurantistas são
considerados aqueles que não reverenciam a ciência como porta-voz absoluta da verdade. No
entanto, essa postura básica no momento de conhecer-viver, não nos impede de reconhecer na
ciência uma atividade em que também se possa entrar em contato com um “outro
pensamento”, não metafísico. De algum modo, o cientista pode ser ainda um artesão; em
algum momento, pode ele sentir o desamparo na medida que percebe a indigência e a
precariedade dos seus conceitos diante da simples (e ao mesmo tempo tão difícil de nomear)
verdade de ser. O pensamento poético, que tenta pensar em direção da verdade do ser, traz à
linguagem, na dificuldade de uma primeira aproximação, uma parte ínfima dessa outra
dimensão. Na poesia, a linguagem se altera, recusando a pretensão excessiva que tomou conta
do conhecimento científico.
Como pensar não significa se armar de conceitos, educar pressupõe que o ser de cada ente
seja o maestro dos ditos acordes cognitivo-ético-emocionais presentes no processo da
aprendizagem. A escolha do livro “A cidade sitiada” como motor primeiro, secundado pelos
dois outros (“Uma aprendizagem ou Livro dos Prazeres” e “A maçã no escuro”) trouxeram a
oportunidade de pensar dessa forma. A poética de Clarice Lispector guia a realização deste
24
5
Alguns pontos que remetem a essa compreensão do relacionamento entre pensar-dizer-ser humano: a
advertência quanto à “mania da dúvida” em confronto com o que é “digno-de-ser-questionado” (HEIDEGGER,
1967:38); a falta de efetividade de uma “arenga” sobre a “Verdade do ser” diante da disposição do pensamento
em chegar à Verdade do ser que se faz linguagem, sem exigência de pronunciamentos e muito mais pela
proximidade com o silêncio (idem, 70); a percepção da impregnação metafísica em conceitos “elevados” como
Humanismo, que – no esquecimento do ser – passam a obstruí-lo (ibidem, 72).
25
tal sentido à sua própria realização, a língua age. O agir da língua é pensamento; é linguagem:
ação não necessariamente verbalizada ou organizada racionalmente. O dizer já está implícito
no re-conhecer o inesperado, no senti-lo e no saudar a sua vigência. Na experiência da
escuridão, a reconhecemos, e isso implica um jogo imediato em que também a luz participa. É
assim como olhar para trás e compreender o aqui e o agora. É assim: iluminamos o mundo de
baixo, iluminamos o lado escuro da busca de luz, e o saber sobrevém, sem necessidade de
comprovação, pois ele próprio é a experiência. O lado escuro do saber é o do esvaziamento da
racionalização, da intelectualização, da erudição e – na simplicidade do pensar-com-sentir –
“um poder mais alto se alevanta”. Na experiência de esvaziamento: só dessa maneira,
colocamo-nos à altura do poder do pensamento, que põe em crise o nosso ser, que nos leva à
radicalidade de uma questão através de uma linguagem própria. A linguagem, ao articular o
sentido do inesperado, "faz aparecer o poder configurador do real, a força e o sentido de ser e
pensar” (SANTORO, 1998:38).
A linguagem articulada ao pensamento é respiração profunda, é desamordaçamento, é
resolução de viver, é serenamento do medo da morte. Essa linguagem articulada ao
pensamento esvaziado, ao pensamento-sentimento possui uma força esquecida pela educação,
empenhada em ensinar justamente o pensar, mas o pensar cheio de informações e aflito pela
sistematização; um pensamento testamental e não testemunhal. Mas assim como Benjamin
(1983:34) relata a experiência da perda da aura em Baudelaire (que ilumina o lado escuro da
busca da luz na modernidade, fazendo do “choc” o fundamento de sua poesia), é possível
relatar, tal como aconteceu com a arte, um processo de assunção da dimensão educadora do
acaso. A paidéia, como os gregos concebiam sua formação, também teria vivido seu
momento de aura viva, em Homero ou na formação como elogio ao divino. Jaegger (1995)
descreve “areté” ou virtude como o foco que o homem devia buscar então; um ideal
aristocrático. A ação paideumática como elogio ao divino (a força do acaso) exercida pela
poesia fazia com que se experimentasse uma visão da ética para além do controle humano e
ao mesmo tempo realizada por ações heróicas dos homens.
Segundo Benjamin (1983:53), aura é a “aparição irrepetível de uma distância”. Na
decadência da aura, olhares perderam a capacidade de olhar e, na impossibilidade de se
relacionar de modo único com as coisas, nas grandes cidades, na época da reprodutibilidade
técnica, os olhos se tornaram estúpidos, tristes e transparentes; sobrecarregados por funções
de segurança, sem abandono e sem sonho. Pensando arte e educação dentro de uma mesma
tradição cultural, pode-se compreender como o discurso da técnica, que veio a se tornar ritual
escolástico da aprendizagem na modernidade, e a hegemonia do conhecimento científico
26
expressaram a perda da aura da educação. Todo esforço passa a se concentrar na fixação dos
acontecimentos, na sua repetição pelo voluntarismo e na vivência tímida da memória como
coleção de lembranças. É verdade que a cientifização da educação também gerou preceitos
escolanovistas de valorização da curiosidade infantil, no reconhecimento do seu
desenvolvimento psicológico, mas voltada para a reprodução da racionalidade higienizadora
do pensamento, a pedagogia reafirma-se como instrumento contemporânea de conquista da
supremacia nas cidades modernistas.
Estamos em busca da restauração da aura na literatura e na educação? Impossível,
enquanto objetivo. Estamos todos tocados pelo “hálito do tempo perdido” (BENJAMIN,
1983: 52, nota 17). Possível talvez seja “olhar” a poética de Clarice Lispector, na expectativa
de sermos correspondidos, isto é, de podermos realizar uma experiência com a linguagem em
que o sensível e o inteligível não se distingüam. O exercício do acaso dá-se aqui como via de
memorização involuntária de um tempo que se perdeu, tempo que realiza (aîon), que é
experiência do real. Deixemos que a linguagem da obra de arte opere um estranhamento na
linguagem do crítico. A poesia auxilia-nos no esforço para recuperar nossa tensão original: do
não ser para o ser. Ela pode ser esforço, sem exaustão. Abre-nos a compreensão do que somos
para além do conhecimento, tido habitualmente como o-que-se-pode-ensinar. A hermenêutica
– que investiga as possibilidades de produção de sentido – parte da poética. Com esse
enfoque, entende-se theoria em seu sentido originário, como olhar ou visão; idéia (eidos)
como imagem; experiência como um modo, longe do cálculo e próximo do jogo; e os temas
da educação (conhecimento, erro, metodologia, compreensão, instrução, leitura e escrita,
planejamento, consciência, entendimento, razão, saber, medida) se dispersam nessa
perspectiva. Tracemos círculos, gozos que renovam a necessidade de recomeçar, nesses veios
esperemos que ressurjam aquilo que a gente “não se cansa de olhar” pois no pensamento
poético não há prova final e a repetência pode ser um prêmio.
impossível. Nós olhamos as coisas, que não vêem nada e somos vistos por pessoas, porque
somos pessoas. Existimos então no meio de um monte de cacarecos sem vida? Estamos num
cenário criado por nós mesmos para olharmos e sermos olhados? O que acontece quando nos
apercebemos que as coisas não são cenário simplesmente? Na cidade, isso é mais difícil, tal a
quantidade de coisas amontoadas a nos impedir a nitidez. Talvez por isso, o despojamento
seja o primeiro passo para retomar o caminho da visão. No entanto, a despeito de nossa visão,
o todo das coisas, aquele no qual mal podemos distinguir o singular, causa-nos impressões.
Nesse encontro desajeitado, se faz história e se tece a memória, base da escritura. Nesse
encontro, se dá uma experiência pedagógica profunda, na qual o mestre são nossos olhos, se
ao menos nós os deixássemos ser nossos guias para a percepção. Nesse encontro, se dá o
pensamento, o mais primitivo, aqui chamado “coisal”, sem filosofia, simples, simples,
simples.
Mas o que possibilita a experiência das coisas?
Certamente não há uma metodologia para pensar. Sem caminho certo, não há
possibilidade de controle. Mas, acima de tudo, ao ir de encontro às coisas, à experiência das
coisas, estamos no caminho de mão dupla, no qual, momentaneamente, reune-se o olhar e o
olhado. Ora, uma coisa não é um mero objeto, nem mesmo um mero produto do trabalho do
homem. Assim, ao pensarmos nosso encontro com as coisas, pensamos nossa visão de
trabalho. Será esse um fazer convulsivo, uma possibilidade de consumo? Dentro da ordem
metafísica, trabalho é um processo incondicional de objetivação na qual sobretudo vigora a
vontade de querer do homem (HEIDEGGER, 2003, p.62). O homem, enquanto animal
trabalhador, persegue com sofreguidão o controle e a possessão das coisas, o que tem
conduzido a terra à desertificação. Nessa situação, propriedade vem a ser a conquista das
coisas para si e não mais o que as coisas são (ainda que na química ecoe esse significado de
“propriedade” como modo da coisa ser); e o homem, nesse seu fazer sôfrego, o homem está
sempre aquém, distante do real: o próprio das coisas.
Há, no entanto, uma metamorfose possível, a do Sísifo feliz, que reside justamente no
reconhecimento de sua miserável condição. A possibilidade de transcendência do seu destino
está na sua apropriação do lugar que é seu: entre a pedra e a força incontrolável que faz a
pedra rolar. Ele, Sísifo, o “proletário dos deuses” (CAMUS, s/d, p.149), descreve o mito do
homem trabalhador que brota enquanto rola a pedra montanha acima. Trabalho aí é apenas o
que tem de ser feito. Mas como ser feliz na repetição de um trabalho que não tem fim?
Existiria uma forma de repetição alegre e que não feche as portas para a criação? A questão
primordial talvez tenha de partir do seguinte princípio: a vida não pode não ser repetição mas
28
é repetição de quê? O homem não pode aspirar à imortalidade, diz a epígrafe do livro citado
de Camus, mas por que não esgota ele o campo do possível? Sou Sísifo? Então serei com a
máxima propriedade, com a objetividade, segundo palavras de Lispector, em “A maçã no
escuro”:
Para descrever com maior profundidade o processo dessa forma de aprendizagem, Lóri
(de “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”) vem a ser uma voz mais permeável do que
a de Lucrécia; uma voz com mais oportunidade de enunciação pois tem como anteparo e guia
o amor sempre ouvinte de Ulisses. Seu amante torna-se para ela a coisa, com quem – junto e
através – Lóri reencontra seu modo próprio de ser, “como exige a natureza das coisas”. As
coisas então nos são reveladas junto e através da ação humana, ou seja: concretude não é
objeto, mas afeto, sentido.
Cada coisa nos conta sua história e nos faz parte dessa mesma história. E esse reunir-se a
ela não é como um fundir sujeito a objeto; não é como um usar sem compromisso; nem
tampouco como um analisar intelectual. O que é então? O que nos faz participar das coisas,
do mundo? Trata-se de um espírito, tal como uma chama sobre as cabeças dos apóstolos na
última ceia? O problema dessa simbologia é que ela já está por demais comprometida.
Imiscuiu-se com a metafísica divisora da modernidade e já mal podemos distinguir espírito de
intelecto. Então, o que é o espírito para além dessas reduções? Se tomarmos a sua
apresentação por Heidegger, que o considera como “ex-posição sapiente, originariamente
disposta, à Essencialização do Ser” (HEIDEGGER, 1978, p.75), poderemos sair dos caminhos
viciados na consideração dessa palavra: símbolos institucionalizados, posição representadora,
enfim, formas que nos posicionam como sujeitos controladores do real. Essa tomada de
posição, para além da posição habitual, imediatamente nos coloca em outra posição;
disponíveis para sairmos de nossa perspectiva subjetiva; ex-postos ao originário de cada
encontro; sapientes porque abertos para perceber o ser sumarento e concreto das coisas. Isso é
existência histórica.
Identidade possível
Na experiência imediata de encontro com as coisas, quem é eu, quem é outro? É em
termos próprios que reconstruimos a existência de tudo e de todos? E que tipo de
conhecimento (não redutível ao cognitivo) se dá nessa experiência?
Em termos epistemológicos, haveria três princípios para chegar ao real: na identidade,
eliminando-se o dionisíaco (a perda dos limites) para que tudo seja verdadeiro; na atividade
representativa, eliminando-se a verdade para que tudo passe a ser discurso; na historiográfica,
limitando-nos a pensar o real como uma dinâmica evolutiva binária, de causa-efeito. Tais
princípios encaixam a realidade em sistemas, o que torna a vida mais confortável, mais
facilmente compreensível e controlável. Porém, feliz ou infelizmente, a vida se recusa ao
encaixe que lhe propomos.
30
Nesse ponto, em vista da aproximação imediata das coisas, falemos sobre identidade.
Dionisíaca é a visão de entrega absoluta à graça da vida, sem que se distingua o gesto do
próprio jogo, o jogo do próprio corpo, na inspiração de uma presença transcendente
(KERÉNYI, 2002, p.10-1). Na tentativa de sanar a eliminação dessa possibilidade humana de
apagamento dos limites, mas também no reconhecimento desse apagamento como necessário
ao encontro das coisas para além da realização humana singular, poderíamos adotar aqui a
visão de que todos convivemos graças ao nosso constante movimento de reunião e separação,
isto é, na tensão entre a entrega dionisíaca e a ordenação rítmica apolínea. Dessa forma, não é
possível consagrar-se inteiramente a um só deus, a uma só posição. “Por toda parte, “quando
sirvo a um, falta-me o outro...” (Hölderlin, “O Único”). Quanto mais leal o culto, mais
coerente a dedicação, mais difícil fica libertar-se da maldição do “falta-me o outro”. Não há
“eu” sem “outro”, não há “eu” fora da experiência de encontro com as coisas. Esse ser
obediente ao sentido da terra, sem mediação metafísica e sem ressentimento de homem em-si-
mesmado, irmana finitude e gratuidade, ritmo e graça: sem “ser-para”, sem ser impositivo. Se,
porém, a consciência se deixa perpassar pela experiência da gratuidade da vida (na admissão
de que a vida não existe para satisfazer o desejo humano), a consciência passa a ser o que
pode ser ou a se exercitar no esgotamento de todas as suas possibilidades.
Quanto ao “eu” egóico e representativo, também esse, tardiamente, passa a existir pela
experiência. Pelo seu esquecimento, ela passa a constituir uma lembrança e a fazer parte da
“bagagem” do sujeito. Mas o “ser-com” do “eu” ex-positivo e sapiente, só se dá no
movimento pela rememoração de um tempo que não é bagagem, mas sim realização. Diz-se
que essa tensão é aquela entre o “moi” (eu-em-experiência) e o “eu” (sujeito instituído e
instituidor). Paralisia não funda história; experiência de ser transforma. Estamos, como já
pensado anteriormente em relação à questão do poder, em plena travessia do deserto, no
movimento vital de vir a ser outro, desde de si. Lembrando que, no movimento de tornar-se
“outro”, algo do mesmo permanece. “Um mundo de absolutos contrários se tornaria estático.”
(SANTORO, 1994, p.58-9) Há, portanto, sempre mais que dois em tensão. Há um terceiro
elemento que justamente possibilita a convivência e a boa luta, na qual não se anula mas se
evidencia o outro. Desse modo, não se trata de optar entre identidade e diferença. A diferença
é que possibilita a identificação; na luta, se dá o venha a ser o que tu és. Na ação, e porque é
ação, nos revitalizamos.
No processo em movimento de aparição do real: o fuso trabalhando em que se vê
passarinhos cautelosos, mosquitos brilhantes, ratos e ratas cruzando, subjaz o solo que
possibilita a suportação das diferenças (o poder-ser); e sobre este solo, as configurações
31
Escritura e história
O modo como as coisas estão vivas não tem começo, nem fim. Quando nos posicionamos
diante delas de posse de um sistema de referências então parece que sim, elas têm um limite.
Sem esse sistema, o homem cai na negatividade do medo ou na afirmatividade da serenidade
que Eudoro de Sousa (1964) chamou “subhistórica”. Na tensão entre ambas, se dá a história.
No homem, em seu processo de compreensão da realidade atravessado por um projeto de
destinação comunitária, a história. A própria história mostra – no que acontece – o que
poderia acontecer, segundo a verossimilhança e a necessidade. A história tem esse aspecto em
comum com a poesia. É “verossimilhante”, isto é, semelhante ao verdadeiro porque a
compreensão humana, quando faz história ou poesia, tem uma medida para além dessa mesma
compreensão. Assim a tessitura ou escritura histórica é semelhante à verdade do ser, aquele
modo como as coisas estão vivas, sem começo, nem fim. E é por essa aproximação com a
verdade que se dá a compreensão humana como linguagem. Existe uma pré-compreensão que
nos possibilita perceber nossa linguagem como verossimilhante. Verossimilhante a quê? A
um todo inatingível e incontrolável por nossos sistemas, que por eles, porém, se revela, no
momento mesmo em que se esconde. O homem necessita de seus sistemas, de sua linguagem
fazendo poesia para revelar sua história, seu destino. Sabendo que essa sua escritura não dá
conta do real, a história está sempre se fazendo.
32
Em alguns momentos, somos relógio. Em outros, “delicadeza das outras horas” (CS6,
p.13), o “tempo perdido”. No processo da história, destacamos algo, conservamos algo e,
dessa mesma maneira, o perdemos. É nosso modo errante de fazer história. Em alguns
momentos, percebemos no que acontece algo que nos tira do relógio. Procuramos nos
apropriar desse momento, conservá-lo. Mas é de sua natureza que o apropriador seja ele, o
acontecimento. É ele que nos toma. Assim, tão logo o queremos conservado, tão logo se
perde. E o que nos permite perceber esse acontecimento é aquela pré-compreensão. Píndaro
diz “aprender é ver, no céu”7. Assim, quando nos colocamos fora dos sistemas de referências
– no céu – aprendemos. Mas ele completa sua frase: “na terra, (aprender) é lembrar-se”;
lembrar-se daquele acontecimento aprendido no céu, o sem-sistema. A contraposição de
Benjamin entre memória e lembrança também vai neste sentido. A primeira acontece
involuntariamente e é fruto do acaso, da mesma maneira que o gosto da “madeleine” de
Proust o levou de novo a experimentar o passado, e não simplesmente a lembrá-lo. História é
essa escritura de um acontecimento inescriturável.
Mas há nuances a serem esclarecidas. Na terra, então, não passamos pelo acontecimento
apropriador (ou melhor, ele não passa por nós)? Onde fica esse céu? Na cidade, é possível?
Vamos tomar então aquela referência de Heidegger (1977, p.35-9) que coloca no termo
“terra”, diferentemente da dimensão “mundo”, tanto os fenômenos terrestres como os
celestes. Isso nos faz pensar no céu aqui, em qualquer lugar da terra. Talvez fosse bom
chamar Terra aquela que engloba “chão” e “céu”. Mais adiante, quando nesse trabalho se falar
das quatro dimensões da cidade ser, com a ajuda de Clarice Lispector, vamos ver as
delicadezas que traduzem Terra e Mundo, ou ainda: céu-chão; finitude-imortalidade.
Assim, quando Heidegger (2002) fala em desertificação da terra, inclui o céu de Píndaro.
Por isso, o acontecimento que nos resgata do esquecimento do ser (do modo como as coisas
estão vivas) se dá na terra, ou antes, é a própria Terra nos tirando do relógio. Esse movimento
de entrada na história do ser (o sem-sistemas) quando explicado por um sistema é
historiografia. Isso quer dizer que Heidegger puxa a história “um pouco mais atrás” e assim a
“subhistória” proposta por Eudoro de Sousa (cf. 1964) seria histórica, ou seja, fora da
historiografia.
É preciso pedir desculpas por tantas explicações. Como acontece com Martim, de “A
maçã no escuro” (que ambiciosamente persiste no caminho) a grandiloquência aqui tem
humildade, aquela da aceitação de que será preciso a decorrência de muitos momentos para
6
CS: abreviatura de “A cidade sitiada”, de Clarice Lispector.
7
Cf. epígrafe de “A cidade sitiada”: “No céu, aprender é ver; na terra, é lembrar-se.” (Píndaro)
33
chegar em algum lugar (ME, p.111). Não é possível dispensar o relógio, nem a historiografia.
Não é possível abrirmos mão das influências. No tempo cronológico e nas referências
bibliográficas, nossa luta se dá. Como já foi dito anteriormente, não somos todo tempo poetas.
Nem mesmo suportaríamos. A terra mencionada por Píndaro, aquela onde aprendemos pela
lembrança, é imprescindível, principalmente em termos de formação do homem às voltas com
os sucessos e os fracassos de suas ações.
De certa maneira, a educação procura dar um sentido comunitário para aquelas
lembranças; através dela alguns acontecimentos são lembrados, e busca-se preservar
(perdendo) alguns daqueles momentos reveladores da história do ser. Mas se nos mantivermos
apenas na preservação, sem consideração às questões presentes, o projeto cultural se
empobrece por falta de céu (e de chão) e excesso de humanismo. Para evitar o domínio dos
fantasmas do passado, num presente ausente de sentido, Goethe evitava o culto aos sítios e
aos grandes acontecimentos históricos. Para ele, passado desvinculado de presente é
fantasmagórico (apud BAKTHIN, 1992, p.251-2). Mas, se – na terra – aprender é lembrar-se,
podemos nascer para o passado por uma maneira de ser presente. Não podemos nos privar do
passado e deixar que a memória se reduza à nostalgia. Não podemos compreender o passado a
não ser pela sua superação, como atravessamento. Passado é “passamento”; algo que perdura
e encontra-se em processo de acabamento. Não basta ver o abismo sensível-suprassensível
para que a metafísica seja superada. É preciso que se viva a plenificação desta era; expor-se;
deixar que se concretizem as suas possibilidades cristalizadas.
A importância em se aprofundar no presente é buscar a compreensão da coisa como
presença e do tempo indefinido do seu nascimento, ao que Lispector pergunta: como
prolongar o nascimento pela vida inteira? (ALP, p.143) Será preciso pensar nascimento como
originariedade (não confundir com originalidade) e não só como início. E voltar à noção do
subhistórico ou transhistórico de que Eudoro de Sousa (cf. 1964) lança mão para falar do
culto do Dionisos na origem da tragédia grega, ou seja, de um “espírito” que se nos revela sob
as letras clássicas. O encontro com o originário relaciona-se à função arcaica de nomear,
assumida por Lucrécia em “A cidade sitiada”, pela rememoração da história do ser, no trazer
as coisas à presença, não como coisas originadas, acabadas, mas como modos de trazer o sinal
da origem, do tempo perdido, da realização.
Um homem histórico é um homem tomado, mergulhado numa tessitura anônima que não
cessa de instaurar realidades. Isso é escritura, processo de tecer história pela memória que
salva. Escrita seria, nesse contexto, uma cristalização da escritura pelo ofício regulamentado
34
Aprender na rua
Então ela viu uma rua que nunca mais iria esquecer. ... Aquela rua era sua. (CS,
p.154)
Do momento que se fala em escritura, se fala em leitura. E essa também pode se tornar
“habitáculo das maquinações do homem”, caso se deixe levar pelo cunho analítico em
detrimento do apropriador. A distância entre esses dois tipos de leitura é o mesmo que existe
entre experimento e experiência. Lucrécia, como passante da cidade, é passagem através do
estranho, às vezes em êxtase, às vezes em perigo. Toda experiência impressiona, inclui afeto,
se rende à evidência da diferença e à impossibilidade do voluntarismo. Mais uma vez: é o
acontecimento, o apropriador. Independente da vontade, ele se dá com ênfase, sobrevém ao
homem. Não é voluntarismo mas também não é errância, num ficar à mercê da busca de algo
para distrair o tédio. Não é tampouco espírito de pesquisa, pensado como um tipo de
investigação que, a cada passo, calcula o próximo. O “espírito” do passante é um modo de ser
que “se dá conta” e que “consente”, como o dos “pastores que vivem fora do baldio da terra”
(HEIDEGGER, 2003, p.85). “Os pastores moram de modo inoperante fora do baldio da terra
devastada”, isto é, imperceptivelmente, distraidamente, dentro do “círculo comedido do
possível”, em aquiescência.
Lucrécia tem a experiência da pastora fora do baldio da terra devastada. Desde o início da
narração de suas passagens pela rua, ela se mostra inoperante, solidária aos cavalos sem
espaço na cidade, aberta ao acontecer abrupto, ou seja, em disposição afetiva, no curso da
corrente, mas – lançando mão da expressão de Guimarães Rosa – na “terceira margem do
rio”. Daí que o momentâneo para ela adquire força exclusiva. Como um poeta, também ela
encontra em suas passagens um tom aqui e ali outro, cada um plenificado, sem necessária
relação lógica com o anterior. Do momento em que se tenta incorporar um sistema que dê
35
conta de suas visões pelas passagens, interrompe-se a corrente, passa-se à margem firme ao
invés de se deixar levar pelas águas.
Lucrécia então é tocada pela experiência e Clarice Lispector a descreve poeticamente. É
nítida a sua cadência pelas ruas, a pulsação que pressupõe o seu silêncio. Só assim sua
passagem pode não ser repetição. Há uma definição muito sugestiva de Staiger sobre a
experiência poética como linguagem. Ele diz: no lirismo, não há re-produção lingüística de
um fato. “É a própria noite que soa como língua.” (1975, p.21) Em seu aprendizado, portanto,
Lucrécia vive a experiência da linguagem originária (por isso ela diz ter a função arcaica de
nomear). Nesse sentido, assemelha-se ao processo vivido por Martim de “A maçã no escuro”,
um homem que foge de um crime e passa por um processo de cidadanização no campo até
que se vê pronto para assumir seu ato. Nesse processo, é preciso “se mover devagar na grande
extensão, desimpedido enfim pela ausência de pensamento” (ME, p.65).
Assim se vê o tempo, se lê o tempo nas ruas que é o acontecimento e não um pano de
fundo imutável ou um sistema de referência pré-estabelecido intelectualmente. A
compreensão, quando se diz: ir à rua “pra ver o movimento”, muda de acordo com a margem
em que se estiver. Postada na margem fixa, a gente vê o movimento mas não o experimenta.
Estar em movimento é estar na insegurança, na abertura para aprender a partir das passagens,
pois como diz Lóri, “a dificuldade era uma coisa parada” (ALP, p.21).
“Peri-patético”: em torno do pathos. Já se disse anteriormente que a atitude entra pelo
afeto. A atitude – medida do agir – tem ritmo, cadência. Por sua atitude, Lucrécia transcende
os limites do cotidiano, em suas pequenas viagens diárias. São atos genesíacos da própria
cidade, fundada pelos seus olhos. Assim, é verdade que há um tom aqui e outro ali, como uma
cena atrás da outra, mas também se percebe que seu olhar gera uma organicidade própria da
obra de arte. A cidade torna-se obra de arte através de seu olhar que não busca o meramente
ornamental. Parece um exagero falar assim, considerar uma passante como fundadora (ou
fundamentadora) da cidade, mas
sem exagerar, como viver? Como atingir, sem exagerar? O exagero era o único
tamanho possível para quem era pequeno. (ME, p.237)
Para Lucrécia, a cidade revela sua pobreza, seus limites, sua condição trágica. Por estar
aberta, em seu percurso, aos limites da cidade, Lucrécia deixa que aconteça a experiência, a
questão passível de investigação. Dessa maneira também aconteceu a experiência da perda da
aura para Baudelaire; em suas passagens, ele percebeu a suspensão do sentimento heróico da
existência, ele viveu o choque e fez-se o lugar onde o choque aconteceu. Benjamin pôde
36
O milagre das folhas. Estava andando na rua e do vento lhe caíra exatamente nos
cabelos: a incidência de linha de milhões de folhas transformada em uma que caía, e
de milhões de pessoas a incidência de reduzi-lo a ela. (ALP, p.122)
Capítulo 2
EM BUSCA DE UMA PAIDÉIA POÉTICA
2.1 Paidéia
Paidéia é a palavra grega para designar um percurso de formação educativa, através do
qual determinados habitantes tornavam-se cidadãos. Diferentemente do que existe hoje, a
palavra “paidéia” reúne as idéias de educação e de cultura num só projeto em que participam
todas as áreas de saber da pólis, sem hierarquia. Todas deveriam convergir para a paidéia.
Werner Jaeger (1995) disseminou essa concepção de paidéia pela sua obra enciclopédica que
analisa as diferentes contribuições da literatura (lírica, trágica e épica), da política, da
filosofia, da medicina e da legislação para a concretização de um ideal de formação da
civilização grega. Quando se fala em paidéia, Jaegger é referência obrigatória. Foi ele quem
indicou uma trajetória da paidéia grega como acordo em torno de normas; como projeto do
homem político unido ao do homem heróico; como sentido histórico enquanto realização de
um destino vital; e como presença constante dessas diretrizes em todas as ações formativas.
Fundamental nessa trajetória foi a capacidade dos gregos reunirem as duas
predestinações humanas em uma só: a um tempo, sendo-se distinto e destinado. Esse princípio
da paidéia pode ser traduzido pelo termo areté. Nesse atributo que o homem esforçava-se
para expressar de maneira cada vez mais inequívoca ao longo da sua vida residiu um conjunto
de qualidades morais, espirituais e físicas. O homem que possuía areté era dotado de uma
imagem difusa da virtude, e estava predestinado a ser regido por deveres. Enquanto
predestinado, esse homem não tinha de procurar adquirir determinadas noções. Sua educação
acontecia, portanto, no sentido de cultivar seu sentimento de dever para com areté. Educação
seria então a conquista do que já existe; envergadura das virtudes naturais. Os jogos de guerra,
olímpicos, amorosos, florais ou fúnebres constituíram a arena por excelência na qual se
conquistava areté.
39
Quando a figura do herói aristocrático educado pela idéia de areté8 começou a fazer parte
do passado e da mitologia recontada aos cidadãos – que as ouviam com respeito, mas também
com distanciamento –, firmou-se a noção de paidéia difundida pela ação dos sofistas na pólis.
Essa paidéia, voltada para a educação com vistas à ação individual no Estado, refletia a
separação entre natureza e ética, público e privado; e propunha ainda o “ensino” da sabedoria,
isto é, a técnica para a transmissão de saberes científicos, matemáticos, poéticos, musicais,
gramaticais, retóricos e dialéticos.
Mas o que significa a retomada da idéia de paidéia neste trabalho? A necessidade de – na
invenção de uma paidéia poética – reconhecer o caráter multidimensional da educação e a
circularidade dos saberes (ausência de hierarquia); entender educação como cultura; e,
principalmente, possibilitar a dinamização tanto de paidéia quanto de poética. Essas, em
relação apositiva, podem, no dizer de Clarice Lispector (CS, p.11), fazer “soar dourado e
solene o relógio”, mostrando que a contagem do tempo, como aspecto cultural de um povo,
possui espacialidade e ritualidade, tornando únicos determinados momentos na existência
desse povo.
Assim, quando abrimos, na leitura das três obras da autora, o seu sentido paideumático,
conforme Leo Frobenius (1934) 9, descrevemos vias de acesso à experiência formadora
enquanto acontecimento originário, de união do destino existencial da pessoa em particular
(distinção) com o da pessoa em comunidade (destinação), como ser humano no mundo. É
difícil antever essa possibilidade que, dita assim, pode parecer muito abstrata. No entanto, é
essa convergência – também expressa em termos de união entre a sensibilidade e a
racionalidade – que pretendemos compreender ao longo deste trabalho, na reflexão de
fragmentos das obras citadas. Tudo que podemos adiantar, por enquanto, é que a paideuma se
dá nessa convergência.
Numa leitura lispectoriana, razão pode ser figurada como a experiência que nos
possibilita, momentaneamente, estarmos presentes na vida tumultuosa da rua e estarmos
8
Tal qual a epopéia de Aquiles contada por Homero na “Ilíada”.
9
Leo Frobenius (1873-1938) foi um estudioso alemão dos mitos, um etnógrafo-filósofo que em fins do século
XIX e princípio dos XX, buscou contribuições da cultura africana para pôr em cheque a hegemonia da
racionalidade como via exclusiva do pensamento. A obra a que fazemos referência aqui é “Paideuma”, no qual
ele visualiza a cultura como um ser vivo. À parte a questão própria da época, de adesão a uma visão orgânica da
realidade, tomando o corpo humano como modelo, esse livro permanece instigante no que tange à aproximação
da questão cultural aos modos de ser da humanidade. Dessa forma, ele eleva mitos e rituais, de manifestações
representativas de diferentes níveis evolutivos de compreensão da realidade, a modos da linguagem humana
poder dizer o eterno, em sua perplexidade. Sem paideuma, sem essa incorporação da cultura, que vai muito além
de meios racionais de expressão e obviamente muito além da aquisição ou da repetição mecânica para a
reprodução de manifestações, o homem “envelhece” e se torna mudo diante de questões essenciais para que ele
possa permanecer um ser vivo, desperto pela sua pequenez diante da grandiosidade do inexplicável.
40
deslocados das características físicas desse ambiente, na sua identificação com uma época
longínqüa. Razão é experiência do pensamento no tempo, em que se vê e diz o futuro, no
reconhecimento de um passado no presente. Razão implica deslocamento no tempo.
Absorvida ainda por imagens de Lispector na sua visão da cidade sitiada, sensibilidade pode
ser figurada pela aspiração selvagem com as narinas abertas, e com os sentidos tão abertos
que o sangue passa a ser um caminho onde pisamos. A vida passa a circular quente por todos
os espaços que nos pareciam inertes. Sensibilidade é a experiência de ressurgimento do
espaço como lugar pulsante. Mas, enfim, uma e outra são formas esquecidas dos nossos usos
atuais da razão e do sentir.
A identificação de Razão como uso exclusivo da inteligência lógica certamente reduz
aquela concepção poética. Razão não é experiência retórica. Quem já passou por uma rua
tumultuosa e pôde abraçar sua história com o pensamento, solidarizando-se com a sua
destinação, sem estagná-la, nem recusando o que ela é, sabe que razão exige mobilidade do
pensamento; sua fluidez para deslocar-se no tempo. Quem sentiu, o sangue subir à cabeça,
não apenas em momentos de raiva, mas em momentos de desobstrução do velho e de geração
de novos lugares de ser, sabe que sensibilidade é mais do que simplesmente sentimento ou
vivência natural dos sentidos, mas experiência do natural em sua transformação constante. A
visão de razão e de sensibilidade, com essa abrangência, sempre esteve na raiz do fazer
poético, que é uma paidéia muito especial, que ultrapassa a lógica, a retórica e a contemplação
subjetiva. 10
Em realidade, a visão abrangente e convergente desses termos também está presente na
tradição ocidental. Remonta à experiência de pensamento dos gregos, em período pós-
homérico (cerca de 850 a.C.) e pré-socrático (cerca de 450 a.C.). Heráclito é um proeminente
pensador dessa época intermediária entre a vigência da paidéia poética e da paidéia platônica.
Em alguns dos seus remanescentes fragmentos, ele trata do logos, que vem a ser a raiz do que
hoje chamamos “razão”. A apreensão pelo pensamento ou simplesmente o logos então
considerado extrapolava em muito o uso da nossa capacidade racional tal como hoje a
compreendemos. O caminho do pensador enquanto alguém que fala aquilo que aparece,
aquilo que se produz e se estende diante de nós para que esse se mostre a partir de si mesmo,
acabou se reduzindo à concepção atual do pensador como alguém que dá a medida para o
fazer e o não fazer. A cuidadosa reflexão desses fragmentos feita por Heidegger nos mostra
que a origem da palavra légein em grego como “pousar” indica uma percepção mais rica da
10
Assim como reconhecemos, na tradição ocidental, a areté, a paidéia sofística e a paidéia filosófica
consolidada pela escola platônica, nela também persiste a vertente educadora de Homero e outros poetas.
41
linguagem e do pensamento humano. Um pensador “todo ouvidos” não pensa-sobre mas faz
parte do que lhe é inspirado; não “faz uso” do que seus sentidos lhe anunciam. Ele “pousa” ou
estende-diante uma coisa junto da outra – coisas que se afastam ou se opõem – e as reúne,
sustentando-as em sua singularidade. Residiria aí uma mobilização do pensamento no tempo,
tal como nos inspiraram as palavras de Lispector? Consideremos pois o que diz Heidegger
(1979) sobre o logos enquanto o que escuta e diz “a presença do presente”. Postado na
“tempestade do ser” (cf. p.123), o pensador deixa que as coisas se produzam e durem no
desvelamento, mas, com seu pensamento, não pretende fazer presente o desvelado e sim
deixar que se ilumine o velado. O pensador nomeia o esquecido. E não vê o verdadeiro na
multiplicidade do sempre novo, mas na simplicidade dessa clarificação. O pensador pensa em
direção da clarificação. No fogo da sua meditação, ele traz o espaço livre onde todas as
coisas, particularmente as opostas, chegam a manifestar-se (cf. p.133). Pensamento vem a ser
presença do presente; nomeação do esquecido; e condução para o espaço livre.
Quanto ao pensamento da sensibilidade, inspirado pelas palavras de Lispector como a
“experiência de ressurgimento do espaço como lugar pulsante”, procuramos também o
amparo daquela mesma reflexão heideggeriana sobre as sentenças de Heráclito. E acatamos a
advertência quanto à superficialidade de se pensar physis (ser-manifestando-se) apenas como
emergir. Physis é o nome que está na raiz do que aqui antes chamamos “sensibilidade”. No
entanto, essa emersão se dá desde o velamento. É possível que justamente onde se nomeia
algo como concreto, queiramos pensar no que se considera como abstrato. Pode ser
justamente que, para não imergir no velamento, esse mesmo velar-se esteja em constante
emersão. Sensibilidade, portanto, vai bem além do que sentem os sentidos, assim como falar é
mais do que emitir sons. Tomemos também aqui o acontecimento da clarificação (enquanto
meditação e recolhimento que conduz para o espaço livre) como o próprio “fogo do mundo”,
que se nos dá à visão ao mesmo tempo e num mesmo lugar a coisa que emerge e o seu
mistério incognoscível.
A retórica seria assim uma fagulha desse fogo imenso, uma fagulha do pensamento
identificada com o uso sofístico da língua, e que se tornou a técnica de persuasão por
excelência. Até hoje, na relação de cunho educador, ela tem entrada ambígüa. Ao mesmo
tempo que serve para “vestir” os ensinamentos com uma capa mais agradável, em termos
lingüísticos, a retórica é rejeitada como “afetação”. Nessa ambigüidade, resulta um ensino que
confronta a “secura” e a “aridez” da verdade científica com o agradável, mas falso ou
acessório, do retórico. Nesse caso, o conteúdo real do ensino residiria na explicação racional
dos fênomenos, e o resto seria enfeite para trazer alguma emoção ao conteúdo de fato. Trata-
42
11
No texto citado acima, Heidegger toca na aletheia, enquanto o próprio movimento de velar e desvelar das
coisas a ser recolhido pelo logos. Em latim, aletheia se tornou veritas e, com a modernidade, se reduziu a uma
mera adequação dos fatos à subjetividade dos homens.
43
Todos sabiam a verdade. E mesmo que a ignorassem, o rosto das pessoas sabia.
Aliás, todo mundo sabe tudo. E uma ou outra vez, alguém redescobre a pólvora, e o
coração bate. A gente se atrapalha é quando quer falar, mas todo mundo sabe tudo.
(ME, p.234)
A paidéia poética se debruça sobre a obra atrapalhada da gente que quer falar a verdade, a
interpretação que é só a “redescoberta da pólvora” mas que faz o coração bater. E pelo jogo
entre o saber e a ignorância, a tensão que não se resolve pela força humana sobre as pessoas
que ignoram mas sabem, a pedagogia poética se debruça sobre a ética que se estende junto da
estética. A pedagogia poética depende de grupos de cavalheiros anônimos, os cavalheiros de
pau ao redor dos quais se pode dançar em nova composição de trote.
Talvez seja justamente no reconhecimento de um saber que se tem, mesmo quando
ignorado, que a poesia se desprenda da retórica enquanto arte do convencimento. Afinal, não
é preciso convencer ninguém que se encontre em idêntica disposição anímica. Nesse sentido,
a fundamentação torna-se desnecessária. Tomemos de empréstimo o que diz Staiger sobre a
indelizadeza da fundamentação numa poesia lírica: “tão indelicada quanto a atitude de um
apaixonado que declara seu amor à amada, expondo razões lógicas para isto” (1975, p.50).
Afinal, pela pedagogia poética não se transmite conteúdos, não se confrontam saberes, e
ninguém fica mais “instruído”. Através dela, o que é possível é reunir forças, experiências,
temperamentos para além de nós mesmos. Poética é pensamento convergente. Será então que
na pedagogia poética estejam tanto arte (enquanto criação) quanto técnica?
É interessante considerar o vir-a-ser na educação, relacionando-o ao vir-a-ser da physis.
Na paidéia poética, articula-se movimentos e ao mesmo tempo experimenta-se o
ressurgimento de espaços livres para o desconhecido na visão das coisas emergentes e na
percepção de sua incognoscibilidade. Mas seria este um projeto de laudação à ignorância? Ou
antes de resgate do fogo do mundo pela sua distinção e destinação diferenciados em relação à
fagulha do pensamento lógico? Na paidéia poética, abre-se lugar para tudo que é, enquanto
algo sendo; do fuso trabalhando, na irmanação do silêncio. Pela paidéia poética, aprende-se a
atingir o mortal e a considerar o que é eterno sem perigo.
Na unidade, abrigo criado pela linguagem poética, tudo que é se desdobra em várias
perspectivas e em cada uma mantém um vínculo originário. No chão, único, achamos coisas
perdidas. O que fazer com esses despojos antigos da cidade? São ainda? Existe uma pulsação
45
perscrutável nos despojos do antigo? Quão antigas podem ser coisas a serem catadas e postas
no lixo? São suspiros que colocados em coro amplo e virginal da cidade podem atingir sua
antiga fortaleza. Pela arte e pela técnica, reunidas. Quando se fala de uma paidéia poética, se
pensa em uma poética com força suficiente para retomar o fio perdido: um só chão,
desdobrado. Mas essa realização é momentânea. Tão logo se atinge a antiga fortaleza, o
trabalho recomeça. Elevados ao morro onde uma vez essa cidade pôde crescer na visão
privilegiada da planície, rapidamente a reconvertemos em reles chão. O acontecer abrupto da
poesia está fadado à perda. É o movimento do fuso, do qual faz parte o próprio silêncio. A
paidéia poética não se atém ao desenvolvimento das capacidades necessárias para o bom
funcionamento do fuso mas à luta pela existência que se dá na tensão trabalho-silêncio.
2.2 Cultura-educação
“O homem pensa sob a forma de configurações poéticas e fantásticas” (GRASSI, s/d,
p.220); toda cultura, portanto, é poética. Mas o que é cultura? “Abertura para o mundo”,
unidade de culto, celebração de um mito dominante (SOUZA, 1986, p.32), atividade
institucionalizante rigorosa que reprime o caos e projeta mundo, mas também vigor de uma
fascinação vital, que é descontrole caótico. Em “A cidade sitiada”, a narração tem início em
uma retreta, uma festa de padroeiro. É ali, diz a narradora, que alguma coisa extraordinária
pode suceder no subúrbio. Na retreta, um só corpo se faz e todo ele é perpassado por “uma
contração inicial longínqüa” (CS, p.11 e 13). Para tocar a multidão do sono, a cultura, esse
chamado do longínqüo, promove contrações de artifício que espoucam, como se fosse o fogo
do mundo a se manifestar. E, como se fosse uma corrida de cavalos, a multidão rebenta em
gritos no carrossel.
“Não é a vontade humana que produz as culturas, mas a cultura que vive sobre o homem
(atravessa homem)” (FROBENIUS, 1934, p.15). Para compreendê-la, é preciso acompanhar
os caminhos que ela traça, perseguir seus movimentos, sem aprisioná-los em sistemas ou –
ismos. Modos de ser, acontecimentos, disposição anímica, são esses os movimentos que
dispensam convencimento para dizer sua importância. Na cidade sitiada, importantes são o
congestionamento, a vida tumultuosa da rua, o deslocamento pela persistência de um gosto de
passado, ironia sobre a lentidão, o jornal... o movimento de cada coisa a caminho de suas
próprias formas. Na cidade sitiada, poderosa e expectante, todos esses movimentos deveriam
ser movimentos em direção à clarificação mas são passos de quem não sabe. Ir
metafisicamente “em direção a”? Será essa a resposta? Cursos formadores de cursos, produtos
46
formadores de produtos. A cultura tenta adiantar o passo e há muitos corredores, mas sem se
saber ainda.
A pista talvez esteja naquela contração inicial longínqüa, na reivindicação da terra, mesmo
que sem o entendimento completo da proveniência desse tímido desejo de espiritualidade.
Mesmo e principalmente sem instrumentalizá-lo. Será que resistiremos a transformar esse
tímido desejo em produto, em enfeite ou em distração para o tédio? Toda cultura é poética,
entretanto. Nela reside uma herança de caos necessária à atividade institucionalizante. Há
inquietação nos comerciantes, talvez de qualidade diversa daquela que aparece nos chefes em
busca de diretivas. No mundo demoníaco intuitivo, move-se ainda vital a cultura a ser gerada.
Cultura é também secreta, não se confunde simplesmente com “manifestações”.
Mas na cidade sitiada, a cultura – transformada em império mecanicista – transforma em
produtos mesmo as virtudes heróicas, as descidas ao inferno, ao caos, o demoníaco intuitivo.
A indústria cultural pode ser bem estúpida em seu desejo apressado e excessivo de formar
adeqüadamente o povo. Munida de sua bagagem helênica, a cultura desprovida de aura,
fustiga esperanças com seus motores e interrompe o medo pelo tráfego e pelos apitos. Lá no
alto, paira o mito do Homem que derrotou os deuses. Está cheio de medo; seus sentidos estão
confusos e empoeirados; seus projetos são de pureza e amor à alma; ele excita-se com o
caminho do bem. Para chegar até ele, aquela contração inicial longínqüa precisa atravessar o
deserto que se tornou a civilização ocidental.
Heidegger indica os processos essenciais da desertificação da civilização ocidental ou, de
modo mais abrangente, do obscurecimento do mundo: a fuga dos deuses, o abandono do ser, a
massificação do homem, o privilégio do medíocre e a destruição da terra (1978, p.71). São
esses os processos que tiram a potenciação do ser humano para poder sentir a contração inicial
longínqüa. Na cultura do progresso, os construtores se debruçam em cálculos planificadores,
em regras constantes para o asseguramento das posições conquistadas, em estratégias
institucionalizadoras para a cultura, assim garantindo sempre um determinado resultado. Esse
é momento de ouro e de escuridão em que vivemos. A educação e a própria arte vivem essa
realidade: sem desejo, sem importância, muito ocupadas para verem as suas próprias
construções, abandonadas em futuro obscuro. Estamos em momento de saturação pelo
excesso de controle? Estamos tão enfiados naqueles processos de autoafirmação da vontade
dos homens, sem presença de espírito, massificados e mediocrizados, pela sistemática
destruição da terra; estamos tão enfiados no centro da cidade que ignoramos para onde ela se
estende. E o desgaste é tanto que eu falo, mas sei que não transmito nada. Por um instante
47
ser existe uma diferença (cf. HEIDEGGER, 1967, p.53), pode parecer incompreensível.
Verdade do ser: a essência dos alicerçadores pertence a ela e não a um projeto social, a uma
religião ou a qualquer ideal arquitetado por mentes humanas, por mais que elas sejam
fabulosas. Na realização, afirma-se a mais radical liberdade.
A realização do homem enquanto ente é encaminhada pela propriedade do seu dizer, em
atenção às dimensões do ser nas coisas. Ser no mundo é um dançar atencioso e não uma
submersão pela vibração das badaladas. O homem em realização enquanto ente deixa-se
atingir pela ausência do cheiro de estábulo em sua cidade, pela arma de fogo deflagrada na
rua. Ele se dá o tempo de ver a presença em seu modo ausente e presente. Os alicerçadores
podem ainda decair na leitura de folhetos sobre o “câncer espiritual”, podem se sentir
dignificados com pensamentos elevados ou indignados contra a baixeza de nossa época, mas
no acionamento de mecanismos não reside a glória da realização. Isso não quer dizer que tudo
que declaramos como “valores” (cultura, ciência, arte, cidadania, etc.) seja sem validade. Mas
ao transformar algo em valor, o aproximamos de uma medição quantitativa. E o que a coisa é
não se esgota em sua objetividade ou valoração, enquanto medida. Pensar contra os valores
não significa proclamar a ausência de valores e a nulidade do ser, mas antes se contrapor a
subjetivação que faz do ser um puro objeto. (cf. HEIDEGGER, 1967, p.78)
A existência não é uma atribuição da realidade do sujeito humano, nem tampouco existiria
uma realidade auto-suficiente, não humana, projetada num plano cósmico. Natureza e cultura
não se excluem. Percebamos, no entanto, que natureza é anterior à Natureza, e homem é
anterior à Homem (SOUZA, 1986, p.34). O mito helênico do homem provocou uma
desastrosa divisão na existência, ao desprender da natureza e da humanidade (ou da cultura), o
seu acontecer. O acontecimento se dá pela ação libertadora de um trabalho; tanto a cultura
quanto a natureza acontecem por si mesmas. Trabalho aqui não se resume à eficiência do
fazer. A natureza trabalha; a cultura vai além da fazeção de objetos, da criação de atividades.
O trabalho do homem, que costumamos denominar “cultura”, em uma concepção mais
convergente ou poética desse nome, só liberta enquanto nele vigora a verdade do ser.
Natureza seria o “ser da cultura”? Se quisermos lançar mão dessas concepções que passaram a
vigorar dentro do pensamento metafísico, poderíamos dizer que sim, cultura só existe
unificada ao meio ambiente, mas que esse elo se rompeu e hoje a cultura alcança ainda essa
autenticidade em saltos, “em erupções de estado de ânimo profundamente íntimos”. Nesses
momentos, de rememoração do ser esquecido, quando se está certo que a história não mais
acontecerá, nem interessará a mais ninguém, trasnformada pela cultura em uma sucessão de
49
monumentos sem vida, a ação pode irromper como libertação, fazendo jus à destinação do
homem como aquele que abriga o ser na linguagem.
Nas primeiras experiências das crianças, principalmente com fogo e com água, mas
também com desenhos na areia ou modelagem de peças em barro, percebe-se a presença dos
sentimentos primitivos (e libertadores) que fundam cultura (cf. FROBENIUS, 1934, p.136-
140). Cultura assim ultrapassa a lógica mecanizadora de conhecimentos, repovoa a cidade
desertada do espírito dos habitantes e a desobstrui de sonhos com linhas de trens subterrâneos.
2.3 Formação
Quando o sino enche de emoção a festa religiosa
o movimento da multidão torna-se mais ansiado
e mais livre
(cf. CS, p.11)
Formação, forma, tornar visível. Multidão, sino pelo ensino, movimento em ânsia e
liberdade. A diferença entre forma e formação equivale à existente entre ânsia e ansiedade e
entre livre e liberdade. Equivalente também a formado e formante. Certo, relevemos o
processo, mas mesmo na forma formada. Lembremos que a forma acabada permanece em
processo enquanto não nos esquecermos que ela traz em si a forma formante. Toda forma é
formação. Toda forma é semente, dinâmica e núcleo de movimentos imperceptíveis. Todo
núcleo – gerado na concentração dos movimentos – é a concretização no processo de
gestação. Movimentos imperceptíveis, gestação: formação. Forma em ação, forma se fazendo
forma.
Mas estaríamos nós prontos para assumir a revolução da mudança permanente?
Consideremos que a ânsia de ver o processo terminado, assim como a promessa de ser livre ao
final do mesmo fazem parte do processo de formação. A estagnação lateja e em cada
passagem acena o desejo de instituir e de se apoderar do que insiste em se mover para
finalmente dominarmos o processo e definirmos a ordem para o progresso. Não é isso o
método? A definição do “como”, do “para onde”, envolucrados no discurso do “porque”? Na
perspectiva do método, como predomínio da técnica na formação, importa sobretudo o que
vem a ser produto da nossa subjetividade, dentro da lógica do belo ou do bem. Dentro dessa
visão, indiferente à experiência, que necessariamente acolhe o inesperado como incontrolável,
formação não significa saltar em direção a outra dimensão na qual se está aberto ao aion, ao
saber imprevisível contido num instante.
50
Mas estamos enganados se achamos que mesmo essa escolha – entre a formação
metafísica ou a formação como experiência – nos cabe. O enredamento entre ambas é mesmo
o ponto de partida. Quem se encontra nesse processo, encontra-se em situação delicada e,
mesmo quando resolve abrir-se ao que as coisas oferecem, “resolve”. Ou seja: a formação
sublinha a subjetividade implicada no processo de aprendizagem do encontro com as coisas.
Tanto mais deleguemos nossa formação à “alta cultura”, como diz Frobenius (cf. 1934,
p.261), à vida estatal (o poder na república), ao tráfico intenso e ao desenvolvimento de
ofícios, ao canto dos bardos (a opção por formatos), às ricas vestimentas e aos palácios reais
(o cortejamento dos poderosos), isto é, à vida medida pelo acúmulo e posse de produtos
estagnados do processo de formação, tanto mais embuídos nos tornamos da palavra enquanto
ideal, discurso justificador para a tomada de decisão da aprendizagem em uma só direção pré-
definida. Assim, o império subjetivo do Eu é também o domínio desse Outro objetivado em
formatos e produtos acabados a serem adquiridos.
No entanto, os poetas, os andarilhos, os aventureiros, mesmo os cientistas e os sapateiros,
e todos os seres humanos, sempre em processo de formação, às vezes, tão jogados estão no
seu fazer que – esquecidos de imprimir ao processo a direção pré-definida – deixam que a
força criativa e própria das coisas (objetos, pessoas, elementos da natureza) com as quais
lidam possa exercer a sua “baixa cultura”. A aprendizagem de baixo para cima não rechaça
o obscuro, parte dele. Já o universo que circula em torno da formação como ideal relaciona-
se ao projeto iluminista de Ilustração, cuja hegemonia tem sua defesa preparada e amparada
no desejo de independência do homem diante de tudo que ele não possa controlar. Liberdade
como ideal é liberalismo. Em nome da modernidade e amparado nas conquistas da ciência, o
homem quer afirmar-se dono dos processos em formação, todos os ciclos de todas as coisas
(objetos, pessoas, elementos da natureza). Educação, nessa ardorosa defesa da verdade
instituída como valor humano a ser defendido; nesse esbanjamento de liberdade espiritual,
que fez da razão um bem transcendental, se tornou a indicação do nome último das coisas.
Educação se tornou a condutora desse processo de obediência às leis da razão, para o
coroamento do homem como sujeito universal e absoluto na condução da vida.
Formação, portanto, viria a ser o processo do homem se fazendo. Bildung, diriam os
alemães, desde o marcante livro de Goethe – Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister – a
necessidade de auto-aperfeiçoamento, para além da aprendizagem de um ofício, se tornou
desafio pessoal e invenção de uma história individual. Fora das limitações prescritas pela
divisão da sociedade em classes, a burguesia proclama sua ânsia em ocupar um lugar no
mundo em que suas pequenas questões se articulassem a uma vida espiritual fora das
51
12
Na educação estética para a liberdade, pensada por Schiller, a experiência da beleza vem a ser o foco
formativo. Como cidadã de dois mundos, ela recebe sua existência na natureza sensível e obtém seu direito de
cidadania no mundo da razão. Uma coisa ou um objeto, do momento em que aparece como livre, nos faz
experimentar a liberdade ou a autonomia no fenômeno. Trata-se de uma busca em direção ao objetivo da coisa, à
sua qualidade de “não-ser-determinada-do-exterior”. Nessa acepção, a liberdade só pode ser sensivelmente
apresentada com o auxílio da arte, que vem a ser a regra seguida e dada pela coisa mesma (cf. SCHILLER,
2002).
52
ela é as duas. Absorvida pela perfeição e perdida da angústia, sua única salvação está no fato
de que ela estaca como uma mula no asfalto. O pensamento a faz hesitar e aplicar-se, apesar
de sua intolerância moral, na busca da unidade visível. Ela é a própria tarefa sempre
inacabada; alguém que, ao realizar um retrato ideal e sem alegria de si mesma, no auge do seu
empenho em não penetrar demais, parte novamente para poder continuar a espelhar o mundo
em movimento. E assim novamente estacar e olhar em esforço delicado apenas a superfície
das coisas, do mesmo modo que não percebia o futuro das ruas duras e realizadas.
Em seu processo de formação, Lucrécia assume a essência paradoxal do mundo, em sua
atitude ambivalente. Distanciada e objetiva, não julga, vive na fenda que o mundo lhe
permite. Não há formas pré-definidas as quais se queira chegar, não subsiste oposição entre a
forma e o que se vai formar. Há abandono ao que as coisas inspiram; aceitação do seu convite
para a percepção. Isso é reconquista da graça para a linguagem. Isso não é conquista de um
discurso na antecipação da forma do acontecer, uma aprendizagem do que não é uniforme, do
que não pode ser conceito, das possibilidades diversas de ser.
Portanto, a contribuição do processo de formação, como Bildung, para a realização de
uma pedagogia poética não pode ser reduzida à afirmação da individualidade. A visão
romântica do reconhecimento do papel formativo do devir abre a educação para a necessidade
da viagem autodescobridora na chamada “escola da vida”. Bem compreendido, esse processo
de auto-realização não desemboca necessariamente na expansão do domínio da subjetividade,
mas na aquisição de imagens próprias a respeito do próprio das coisas. Nessa reunião do
estético ao ético, as ligações que estabelecem podem superar os “porém” e “aí”, conectivos
adversativos e retóricos com a realidade. Nesse itinerário de apreendizagem da arte de viver,
pode-se deixar a casa cheia de segurança material para um modo mais impessoal de encarar as
coisas. O ar de estrangeira é a própria cara de quem se espanta com o comum, sendo comum.
É assim a nossa heroína desse romance de formação. Em devir, passageira das inúmeras
possibilidades do porvir, tem grandeza variável, e apresenta mudanças sutis em sua forma de
ver, que é sua forma de sentir, pensar e agir. O tempo na cidade sitiada não apenas passa fora
mas dentro dela e isso modifica o seu destino. Entre dois momentos da história da cidade, em
sua passagem entre a vigência do morro do pasto e dos viadutos, o tempo passa nela e através
dela. Lucrécia é o “homem novo” que se forma frente à força organizadora do futuro, para
além da sua biografia e da sua idade? (cf. BAKTHIN, 1992). Não, na epopéia da personagem,
descrita por Clarice Lispector, ela – abandonada por sua cidade – sente-se envergonhada por
ter se escondido dessa circunstância. Agitava-a a sensação de ter se defender do abandono,
negando-o. Tentava ser vigilante e recomeçar em sua forma pequena e contínua, tentava
53
pigarrear à guisa de conversação e sobretudo tentava demonstrar pressa, como se ela fosse útil
à cidade. O “homem novo” seria mesmo aquele que é deixado para trás pela sua cidade? São
os acontecimentos sutis, quase imperceptíveis, os que modificam de maneira visceral o olhar
da nossa heroína. Nada que seja heróico, dentro do código cavalheiresco da palavra. Lucrécia
é apenas uma espécie de Alice, inalterável em sua insistente curiosidade e em seu olhar
espantado, mas também alterável em seu tamanho para poder caber e viver os acontecimentos
que, aliás, sempre a pegam de surpresa e exigem novas modificações.
Talvez se possa diferenciar três planos na história das manifestações humanas: o da razão,
comprendendo idéias e intuição; o da essência, relacionada à presença e ao vigor; e o da
existência, que é o “como” se está presente. Na modernidade, o primeiro plano se fundiu ao
segundo de tal maneira que a essência se tornou a “representação” do cogito. E o mundo
passou a ser através do processo de positivação do homem. O homem representa o mundo e,
nesse processo, ele se representa a si próprio. Isso lhe dá segurança. Enfim, tudo passa a ser
do seu tamanho.
A idéia habitual sobre o romance de formação pressupõe que, ao longo da narração, uma
espécie de “segunda voz” reflita o itinerário vivido pelo protagonista. A sua ação, portanto,
estaria desdobrada em dois níveis: o dos acontecimentos propriamente ditos e o da reflexão.
Ao final do percurso, o protagonista possuiria plena autocompreeensão e autopossessão do
seu processo que, no entanto, estaria irremediavelmente dualizado. Além disso, a sua
experiência do tempo teria de ser linear, progressiva; excluídas tanto a visão de tempo cíclico
da natureza, quanto o “sem tempo”, isto é, o instante a partir do qual não se sabe para onde se
vai, fora do esquema da causalidade.
No entanto, a crença atual de que é possível corrigir o real, seguindo o fio da causalidade,
impossibilita o caminho da Bildung. Na era da técnica, essa tendência se fez hegemônica e,
no afã de se corrigir o real, se chegou à substituição do real pelo poder virtual, em
desconsideração à experiência. O relato dessa desconsideração, ou seja, o relato da
paralisação do interesse pela liberdade mais funda em virtude do interesse privado dos
indivíduos pelo bem-estar material coincide com o relato do totalitarismo político, da
destruição da natureza, da aniquilação de toda diversidade cultural ou da exploração do
homem pelo homem: confirmações do fracasso do projeto racional ilustrado.
Então, de que forma fica a existência, fora da construção moderna do Homem? De que
forma, as relações com a natureza, com os demais e com nós mesmos, fora da construção
moderna da Razão? De que forma, o habitar o tempo, fora da construção moderna da
História? E a nossa vontade de viver, de que forma fica, fora da construção moderna da
54
divertido é
dentes amarelos aparecendo com inocência e
não precisar da inteligência.
voltar sujo, rasgado,
com alguma coisa na mão
ao galope de um cavalo imaginário 13
13
Parafraseando passagens distintas de “A cidade sitiada”, em saída de Lucrécia às ruas do centro de São
Geraldo.
57
Daí se percebe que, assim como a formação parecia ser um processo de aquisição de “alta
cultura”, a metamorfose parece ser um processo de apropriação da baixa cultura, nos termos
de Frobenius (1934). É interessante notar também que a palavra “demoníaco” por esse autor
se afasta da tradição judaico-cristã, na qual demoníaco é o desmedido querer-o-que-não-se-
pode-ser. Num fluxo demoníaco (na acepção primeira da palavra), deixa-se-que-o-ser-seja, na
experiência do encontro com a medida misteriosa de uma coisa específica. E, na cidade, como
se dá essa concreta experiência de afeto no desconhecido? Em nosso dia-a-dia, encontramo-
nos, isso sim, é com os nossos “compromissos”, nada criativos. Somos carros andando no
calor, navios longínqüos que se mal se cruzam em suas viagens, somos entes-viúvos bastante
distantes do pensamento como reinvenção do impessoal. Uma invenção voadora e risonha,
isso sim é que seria bom.
Como o riso, que surge após a transformação de uma tensa espera em nada e que
desmancha o esforço desnecessário, podemos nos transformar subitamente. A alegria é esse
desfazimento de ansiedade de saber pela constatação inevitável do não-saber. A transição
possibilitada pela saturação e exaustão da ânsia é tanto um modo de aprendizagem passo-a-
passo quanto um súbito salto qualitativo. Lembremos da relação já estabelecida entre escritura
e história. Mesmo atravessados pela metafísica, nos expomos; deixamos mesmo que se
concretizem as possibilidades cristalizadas da tecnologia. As invenções parecem cada vez
mais perfeitas, a perfeição parece cada vez mais inventada. Só não nos parece mais possível
que tudo isso possa alimentar a crença na subjetividade como medida do real.
Constantemente, esta crença se desconstrói; paralelamente, compreende-se a incompreensão
dessa vida.
Parece cínico, mas talvez seja mítico. O caminho dessa compreensão abre-se com uma
pergunta ao não-evidente, anunciado por um interesse. Sem o controle hegemônico da
instância do racional, o pensamento espanta-se e nos transporta (assim como uma metáfora)
para além da relação objetiva-subjetiva com o mundo e as coisas. A metamorfose faz
oscilarem os sentimentos habituais, na sensação de vertigem.
Quando antes nos detivemos sobre a questão da formação, apontamos o quanto o
bildungsroman se valeu da passagem entre épocas efetuadas no homem e através dele. O que
a literatura, emquanto campo de conhecimento (metafísico) capta nesse processo é a produção
do romance do novo homem que se forma, em termos biográficos e históricos. O romance de
formação – atravessado de poética – vai além do relato subjetivo e da concepção racional da
educação; é também iniciático; apresenta o êxtase como mestre; e relata uma travessia de
transformação, num movimento que perfaz e forma existência.
59
Na travessia, pensar é meditar no deserto, com o fardo nas costas. Travessia não é
reflexão, nem dialética; é o entre; o lugar arcaico; o estado de inocência e ao mesmo tempo de
angústia pela nostalgia da unidade. Todas as metamorfoses se dão no deserto. Na aridez. Na
esterilidade. É aí que tudo pode acontecer, no atravessessamento do deserto, no deixar que a
dor perpasse.
Muitas coisas você só tem se for autodidata, se tiver a coragem de ser. (ALP, p.122)
Num suspiro resignado pareceu ao homem lento que ‘não olhar’ também seria o seu
único modo de entrar em contato com os bichos. ... Deixou-se ficar submisso e
atento. ... Por um altruísmo de identificação foi que ele quase tomou a forma de um
dos bichos. E foi assim fazendo que, com certa surpresa inesperadamente pareceu
entender como é uma vaca. (ME, p.74)
Uma pesada astúcia fez com que ele, agora bem imóvel, se deixasse ser conhecido
por elas. ... Só que as vacas escolhiam nele algo que ele próprio não conhecia _ e
que foi pouco a pouco se criando. (idem, p.75)
60
Foi um grande esforço do homem. Nunca, até então, ele se tornaria tanto uma
presença. Materializar-se para as vacas foi um grande trabalho íntimo de
concretização. (ibidem, p.75)
14
Os alquimistas previam as seguintes passagens de estado: aquecimento, dissolução,
solidificação/ressurreição, transubstanciação. A medicina chinesa parte da presença concomitante dos pólos
nagativo e positivo em tudo o que existe; e que a cura não está em eliminar um deles, mas de colocá-los em
suave tensão.
15 Fragmentos recolhidos em “A cidade sitiada” (LISPECTOR, 1975).
61
caminho em direção desconhecida, trilhado e participado pela visão. Porque toda visão é
inclusiva. Não há excluídos na pedagogia poética do olhar.
Tudo isso parece estranho pois traz noções com as quais não aprendemos a lidar. Nossa
perspectiva dualista não nos permite falar da experiência inclusiva e sempre nos coloca um
passo atrás do que vemos. O que “A cidade sitiada” faz é mostrar um modo de ler a cidade
sitiada; traz a perspectiva de uma cidadã que exerce sua cidadania pelo olhar inclusivo, não no
sentido de participar do processo produtivo de sua cidade, engajando-se em sua saga rumo ao
progresso. Seu olhar inclusivo, fácil e sem resistência, possui o poder despreocupado que
reúne a ordem à desordem.
Deixando-se mimetizar, Lucrécia pode parecer tão precária quanto o que vê. Pontieri
(2001) a chama de grotesca e em sua fortuna crítica levanta as várias interpretações negativas
que ela suscitou pela sua escassez de recursos elaborativos. No entanto, através dessa
precariedade, vislumbramos algo na cidade que está a ponto de se perder, algo ínfimo e
fundamental, isto é, a própria possibilidade de reunir. Precariedade: eis a riqueza da
insuficiência metafísica. Sem muito vocabulário, sem agudez, nem inteligência, Lucrécia
trilha no entanto um caminho de olho inquisidor, que procura saber se na vida vivida alguma
coisa se cumpriu. Sem dominar categorias historiográficas, psicológicas ou científicas, ela até
que raciocina. Quem disse que a razão é privilégio de quem maneja bem conceitos? Lucrécia
guarda o que não se categoriza e mistura uma longa experiência que ela nem sabe mesmo que
carrega com descobertas de última hora. Mas nessa sua percepção simples, ela enxerga mais
do que querem os intuitivistas, positivistas e empiristas, acomodados em um cabedal de
conhecimentos que também mal suspeitam; e eles possuem tanta carga, tanta carga que seu
olhar “pesa”, faz as coisas se imobilizarem, desvitalizadas.
Não, não é preciso buscar ganhar um novo olhar, mas sim perder as imensas
possibilidades de crítica, análise e argumentação que a metafísica nos dispõe. Toda nossa
cultura está voltada para o ganho, o mais, o muito. Nosso arcabouço teórico realiza-se graças
a essa volúpia de acumulação, como se aquela carga-pesada de conhecimento nos defendesse
das incertezas provenientes da falta. A falta sempre levou de antemão um sinal negativo; o
pouco, um sinal de carência, penúria. Mas a presença não é o muito. “Muito” pode ser no
máximo “muitos presentes”. Presença se tornou presentes – o que se pode ganhar – e o real
possibilitado pela presença se tornou invisível. Olhar é aspirar esse parco real.
Paciência é que se precisa mesmo muita para que a reflexão se converta em olhar. Eudoro
de Sousa fala em “grau ínfimo de gnose” (cf. 1964, p.39-40) e na possibilidade de aceitação
de que, com o particular, concorre algo universal; com o temporário, concorre o permanente.
62
A percepção simples pode dar conta desse conhecimento, mas nosso metafísico parece feito
sobretudo para a dia-gnose. Certo, não podemos simplesmente parar de investigar por conta
de nossa razão cindida. Apenas não podemos nos contentar com uma descrição morfológica
do que vemos, pois essa nos colocaria irremediavelmente no caminho da categorização; é
preciso investigar o que vemos na riqueza do seu acontecer por mais que tenhamos
dificuldade em descrever as inúmeras relações que surgem no horizonte da experiência.
Embora não consigamos cair plenamente no centro desse regozijo, o pensamento pode ser
como em Lucrécia na festa do padroeiro: ora estala no silêncio, ora esfuzia-se nos giros dos
cavalinhos (cf. CS, p.11-2). Com o pensamento em festa, as pessoas param, olhando. Cabeça
quente, Lucrécia se mete na frescura da sombra. É assim que ela ensina a ver homens que
parecem vir do horizonte e não do trabalho.
Em nossa trajetória civilizatória, citadina e cidadã, temos os gregos como fonte. Temos o
pensamento em ato de espanto e de brotação; temos a tragédia que, em sua amplitude, indica
também na pólis a presença da physis; e no homem, o entrelaçamento do desejo e do
inexorável. Nessa fonte grega, sorvemos o traço de união entre logos e physis. Na re-visão dos
caminhos que nos levaram ao conhecimento científico, na admissão da tensão entre nossos
limites e o ilimitado, o mundo se manifesta. Íntimas são as manifestações das coisas que
indicam através de seus nomes a sua vaga história. A história se vê. O pensamento que nunca
ninguém pensa, este se vê.
Parece inconsistência e é apenas desconstrução do tédio como incapacidade de
perceber / ver. O tédio cria um cosmos humano indiferenciado, enquanto o vidente citadino vê
o universo mundano repleto de tensões a serem investigadas, tensões com o universo terrestre.
No acolhimento dessa tensão fundamental entre pólis e physis, o habitante das cidades re-
apodera-se da visão do mundo “que parece fazer uma enorme pergunta” (ME, p.88).
Deixemos pois, como diz Staiger que “o mundo discretamente se inflame em nós” (1975,
p.29).
Essa “inflamação” é o próprio pensar, pois o mundo se pensa em nós. Sérios, obedientes,
sem desilusão, deixemos nos tocar pela própria atenção. Quando nos vemos por fim sozinhos,
percebemos a presença constante de alguma coisa a trabalhar sem barulho. Nessa percepção,
o mundo se faz presente. Essa escuta atenciosa é linguagem, é realização de mundo. Realiza-
se a “inflamação”, ao aparecer – linguagem. E o mundo dá limites, configura, deixa e faz ver,
mantém relações, torna presente, determina valores e poder. Aparece o mundo, o pensamento-
mundo acolhido na visão-linguagem.
63
O real ganha contornos diferenciados. Sob a sua visão trêmula, sem objetividade, o torto
ganha direito e os “bazares” passam a gotejar sua razão. Bazares são vistos na sua vacuidade e
64
podem ser vertidos como uma jarra; passam a ser percebidos antes como buracos do que
como lugares onde se vendem utilidades; são desideologizados.
Mas será que tal “visão” acrescenta algo em termos de informação, de aprendizagem, de
noções, de conhecimento? Por que aqui a chamamos de experiência pedagógica? Em “Uma
aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, Ulisses chama atenção para um pardal, que “não pára
de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com certeza seus olhos vêem a comida”
(ALP, p.63). Talvez o que ele esteja nos dizendo é que a “visão espantada” nos nutre com
uma comida invisível, mas existente, real. O que parece um deserto é campo fértil. Aprender a
lição do invisível nos possibilita fertilizar desertos.
Assim talvez possamos atravessar a majestade de uma vida desértica, essa porta para o
vazio, essa claridade de ar que não tem nome, essa casa cheia de segurança material. Nesse
mundo empírico, quando desemboca a visão espantada, desembarcam obras de arte. A visão
empírica seria então própria à ciência e a “espantada” à arte? Estamos tão acostumados a
dividir o conhecimento em útil, científico e artístico que de cada um esvaziamos o que ao
outro caberia. Mas se aquela “visão” desemboca em obra de arte, instaura também mundo.
Transforme multiplicidade em totalidade. A visão do bazar descrito por Clarice Lispector nos
aproxima de um “mundo estilhaçado em cujos fragmentos vemos espelhado o cosmos em
milhares de partículas cintilantes” (GRASSI, s/d, p.50). O acesso ao cosmos espelhado em
partículas nos é dado por aquela “visão”, na medida em que nos desloca da nossa habitual
impressão e relação com os bazares da vida.
O mais simples talvez seja dizer que é preciso nos despirmos de nossos preconceitos, mas
isso talvez só nos leve a uma ingênua visão das coisas. Não se trata de uma verificação
sensorial. Uma visão é uma “aparição”, um jorro que se oferece à memória, configurando em
um desafio para os apetrechos lógicos que dispomos. A “visão” do bazar compartilhada por
Clarice Lispector com o leitor é um convite ao seu pensamento como possibilidade de
configuração. No caso específico da minha interpretação/configuração, a memória me levou a
identificar o bazar visto por Lucrécia à jarra descrita por Heidegger em “A coisa”, na qual o
vazio é compreendido como fundamental para que o pleno se expresse. Porém, estaremos
mais uma vez apenas racionalizando o real, subordinando-o à instância do observador? Como
evitar o olhar de medusa-que-petrifica ou o olhar derramado-que-nunca-vê-o-que-é, que
sempre procura adivinhar um “algo por trás”?
O mundo seria assim uma enorme metáfora? Em atitude aliviada, deixemos nos conduzir
por formas que aparecem por si mesmas e que SÃO, independentes da nossa razão, da nossa
imaginação e mesmo da nossa sensibilidade.
65
tricotemos
e do movimento contínuo das mãos
nasce um espírito e uma facilidade:
tudo intransponível mesmo pela imaginação 16
O desregramento dos sentidos ou a visão “espantada” não se faz pelo comando de um “eu
penso”, mas por um “eu sou pensado”. A visão se nos impõe uma linguagem básica indicativa
formada pelos archai, palavras “transparentes” que invocam a relação originária entre as
palavras e as coisas. O que distancia essa “visão” do olhar-de-medusa e do olhar-derramado é
a nossa necessidade de encontrar caminho no mundo sem o auxílio de conexões lógico-
explicativas. No exercício de nossa capacidade “visionária”, figuras que parecem
contraditórias ou sem relação plausível ficam lado a lado; assim como tempos diferentes; e
mesmo o visível e o invisível se aproximam.
Martim, em “A maçã no escuro”, em seu processo de cidadanização, um despertar para o
mundo, chega ao ápice do seu aprendizagem quando compreende que não é mais um “homem
claro”, ao redor de quem “tudo costumava ser visível” (ME, p.82). Também Lucrécia
experimenta um tipo de escuridão tranqüilizadora provocada à luz da dúvida. O momento da
dúvida é uma experiência “passiva”, abole a realidade cotidiana e nos impele à visão.
Passividade aqui quer dizer “um modo simples de estar no escuro” (ME, p.201). No escuro, o
pátio da igreja pode resplandecer. Na sombra, rimos para alguém perdido (CS, p.11). Trata-se
da paidéia das profundezas, do período caótico da criação. Na obscuridade, ilumina-se o
fazer-se da physis, ao qual não pretendemos reproduzir, mas apenas fazer visível.
Martim já não pedia mais o nome das coisas. Bastava-lhe reconhecê-las no escuro. E
rejubilar-se, desajeitado. (...) Depois quando saísse para a claridade, veria as coisas
pressentidas com a mão, e veria essas coisas com seus falsos nomes. Sim, mas já as
teria conhecido no escuro como um homem que dormiu com uma mulher. (ME, 228)
A “visão” permite uma intimidade com as coisas que faz com que elas mostrem seu lado
“estranho”, seu lado invisível. A “visão” é o próprio dizer poético que “reúne integrando
claridade (e ressonância de muitos aparecimentos celestes) numa unidade com a obscuridade
e a silenciosidade do estranho” (HEIDEGGER, 2003, p.177). Na sombra, se “vê” até mesmo
o som; através dela, a música é trazida pelo ar. Na escuridão, na sombra e na estranheza – se
estivermos atentos à tensão que se anuncia – vemos o que não é treva. É verdade que também
na luz, às vezes a cegueira é completa. É preciso exercício e disposição para enxergar a dura
verdade do sol e do vento; e a de um homem andando; e a das coisas postas.
16
Parafraseando Clarice Lispector, em “A cidade sitiada”.
66
As belas palavras são também as sábias? Pela imagem de uma dobradiça, procuremos
compreender como ambas estão entrelaçadas, assim como o claro e o escuro, assim como as
coisas dependem de algo que as invista de vida. Um lado da dobra não existe sem o outro e só
existem na articulação em movimento, em tensão. Se nós insistimos na dis-junção, que ela
seja tensa, que ela seja desdobrável. Mas a tensão desagrada, dá um certo trabalho ser-com.
Talvez a gente tenha a ilusão ermitã de um sossego cristalizado, em que a cisão se perenize. É
o conforto do esquecimento. É a aquietação na dualidade e na divisão. Entramos com tanta
vontade nessa situação que a naturalizamos e a dobradiça enferrujada às vezes range com o
vento do inesperado, mas a paisagem está mesmo é desolada. Naturalizadamente desolados,
agarrados em uma situação material a qual se possa agarrar e se defender de movimentos de
dobradiças, mesmo que essa materialidade seja um deus ou um discurso científico. Por isso,
quando “bater um vento insperado”, sustenta o olhar. Ou fecha os olhos com pudor.
Não olhar pode ser olhar. Presenciar a “aparição”, nada mais é do que deixar que se
balancem as estruturas construídas para que nos agarremos ou nos defendamos. Se a
dobradiça entra em movimento é sinal que a desolação naturalizada está sendo balançada.
Parece muito figurada, essa história de entrar em estado de graça, diante das questões
prementes da utilidade e da determinação da razão. Em “Uma aprendizagem...”, Clarice
Lispector descreve a passagem de Lóri (ou seria melhor dizer, “em” Lóri) de um estado como
aquele, que sem esforço, permite lucidez à existência.
O corpo se transformava num dom. E ela sentia que era um dom porque estava
experimentando, de uma fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
... Tudo ganhava uma espécie de nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor
da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir que
tudo o que existe – pessoa ou coisa – respirava e exalava uma espécie de fínissimo
resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade do mundo e é impalpável.
(ALP, p.147)
Quem disse que a lucidez é fácil? Ela é muito muito difícil pois é simples, simples, tão
simples que dá enjôo desse excesso. Por isso, diante da dádiva da existência, não há nada
melhor a fazer do que respirar, ser o que somos, e atravessar nossa condição metafisica,
respirando-a. A terra há de aproveitar nosso gás carbônico. Já falamos em passividade e desse
lugar – espécie de nimbo – no qual é preciso estar para poder ver. Tal atitude parece poder se
desdobrar em atenção e renúncia, um caminho através do qual abandono significa pre-
disposição; uma imensa receptividade pelo ser sendo o que é, respirando. Nesse movimento,
somos também movidos sem desnecessárias ações impositivas. Ver é ser tocado pelo
privilégio de ser testemunho desse movimento, do qual quem vê também participa. Ver não
67
quer dizer dominar, melhorar ou piorar, nem mesmo abrir-se a novas manifestações culturais.
Quem vê, não promete esperanças, nem anuncia catástrofes. Quem vê, o faz sem ruídos, sem
adeptos, sem necessidade de conseqüências.
O senso didático, a vontade de transmitir limita-se ao que essa visão lhe permite falar.
Evita-se o falatório e a polêmica. Encaminha-se e espera-se que a pergunta se desloque tanto
do sujeito quanto do objeto para o próprio aparecer das coisas. Retomar esse acontecimento
possibilita um ponto de virada posto que ele é afeto. A partir dele, o homem pode ser tocado.
E na linguagem “tocada”, mesmo o não-entender dá sinal da largueza e da liberdade. É que
pode haver falta de entendimento, e ainda assim se saber da condição humana. Martim
também goza do vasto vazio de si mesmo e acrescenta que “este modo de não entender era o
primeiro mistério de que ele fazia parte inextricável” (ME, p.65).
Consuma-se a dúvida, experimenta-se a fé arcaica, mítica. Perceber a aparição como
acontecimento, é rememorar a aura das coisas. Essa é a leitura do “livro dos prazeres”, uma
aprendizagem orientada pelo amor. No eros do saber, há desejo e amor. Há “contextura de
ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios”, mesmo quando se aprende a estar entre
laranjeiras, sol, e flores com abelhas (cf. ALP, p.48 e 51). Que venha o desejo, com todos os
seus perigos, pois sua falta faz calar o coração. Só assim se nos abre o indizível e o afeto para
com o desconhecido. A educação que faz calar o desejo, mata a respiração em sua inspiração.
Pelo desejo, paradoxalmente, alcançamos a involuntariedade. Aconchegarmo-nos “ao
precioso fora de nós”, traz um certo ponto de glória. A glória da auto-pobreza revelada, da
condição humana implorante.
Já veremos que para fundar uma cidade é preciso se emocionar e amar o feio, o
repugnante, o imperfeito. É preciso mesmo a coragem de reunir-se ao retrato desejado. Na
dobradiça que move a cidade para sua constante e radical renovação, encontra-se também o
gesto de abandoná-la em seu mercantilismo. É preciso coragem mesmo para desconstruir o
que se ergueu com orgulho desmesurado.
Já veremos que para adquirir o sentido do comunitário, a misericórdia se transforma em
ação, por amor ao futuro. Mas ao mesmo tempo que se levanta o sítio de uma cidade, arruma-
se a trouxa e se escapa.
Nós que nos fomos dados como amostra do que o mundo é capaz.
Chegados plenamente a nós mesmos, chegamos aos homens.
Nos guiamos até ‘transformar os homens’.
Falhamos mas não totalmente porque fizemos outros.
No fundo do inferno, sobe o amor:
as pessoas exigentes comem o pão
68
Capítulo 3
POIESIS NO HORIZONTE DA CIDADE
Depois de ter escrito os dois primeiros capítulos desta tese, percebi serem eles as duas
primeiras voltas da investigação de uma questão que se modificou e se alargou. As primeiras
formulações desta questão constituem o lastro do que foi até agora escrito: do
“conhecer/aprender na cidade”, passei ao “pensar na cidade”, e então ao “ser na cidade”. É
importante dizer que uma formulação não elimina a outra, e nem mesmo que a última
corresponde a uma compreensão finalmente clara e totalmente abrangente para o
enfeixamento dos questionamentos que me levaram à realização deste trabalho. Como situar,
por exemplo, a pedagogia poética no modo de ser próprio da cidade? Vejo-me agora, no
entorno e nos limites do que já foi dito até aqui, diante da necessidade de apresentar com novo
vigor a questão sobre o agir-de-quem-aprende-poeticamente na cidade. Esse agir, vou chamá-
lo de poiesis.
E antes de desdobrá-lo em outros questionamentos à procura da essência desse agir (o que
ele é); como se dá; e o que o torna fundamental neste lugar a que chamamos “cidade”, queria
pensar como entram os textos escolhidos de Clarice Lispector nesta investigação. Como um
auxílio, trago colocações do prof. Manuel Antonio de Castro em sua aula proferida por
ocasião do concurso para titular da cadeira de Poética sobre poiesis na interpretação (1998).
Essa parada estratégica se dá porque é preciso pensar o caminho neste ponto, e ultrapassar as
tarefas de reescritura de conceitos tradicionais relacionados à educação, assim como de
desconstrução do sólido edifício de conhecimentos metafísicos onde resido na condição de
aluna, de pesquisadora e de professora.
Quando pergunto “que caminho tomar agora?”, no entanto, trago já a poiesis como
indicativo, o que me faz refazer a pergunta da seguinte maneira: “como continuar na vereda
da poética como processo de aprendizagem dentro da cidade?” e “como interpretar os
itinerários poéticos traçados por Clarice Lispector nos três textos escolhidos?” Em termos
muito breves, posso dizer que tal consulta me faz sentir a necessidade de explicitar a presença
do diálogo, da ética (ethos) e da especulação na interpretação aqui empreendida (cf.
CASTRO, 1998). Quanto à poiesis, ou o modo de dizer poético na retomada deste trabalho,
vejo-a como um “agir vigoroso”, para além dos métodos e das técnicas. Ou seja; o que essa
consulta me apontou foi o caminho da própria interpretação como um fazer poético.
71
Assim, preparo-me para entrar com força maior nos itinerários propostos por Clarice
Lispector; respaldando-me no diálogo para fazer fluir o dizer dessas obras (ainda que me
sabendo atravessada por seqüências metafísicas) e, da mesma maneira, considerando o tempo
e o lugar que este meu trabalho de interpretação poética pode realizar. O caminho a ser
apreendido é o da poesia. E, num empreendimento como este, é preciso se colocar junto à
tensão gerada pela disposição de convergir contrários e diferenças. Acredito que, nesse
movimento perseverante e tenso da investigação, a partir da retomada de algumas pistas já
abertas pelos romances de Clarice Lispector, será possível perceber sabedoria; amor na
aprendizagem; inexorabilidade do real sempre justo, apesar de incerto; e contínuo processo de
individualização na diferenciação das coisas do mundo.
O presente capítulo trata então de iniciar a interpretação poética como uma ação vigilante
do ser no mundo, sendo conduzido por um diálogo poético cuja pergunta gira não em torno do
desejo de descobrir “o que o texto quer dizer”, mas em torno do sentido da ação que se dá no
homem em seu fazer. Esse sentido, de antemão considerado poético, se dá de muitos modos,
que aqui adotam as designações de convergente; fundante; tenso de mundo e terra ou
comunitário; e textual-coisal. Na interpretação da poética perceptível pela leitura de Clarice
Lispector, é que eclodiram tais modos, tal mundo; na sua obra, como linguagem, verdade e
caminho, procurei me aproximar do que somos na atualidade, e do que somos como
permanência do vigor de sempre ter sido. Procurei também, nesses modos mundanos de ser, a
fugaz e infinita disposição para o ethos do real, quer dizer, para a realização desse real.
“Como possibilidade e sentido, fazemos nossa travessia” (CASTRO, 1998). Concentrando-me
na “espera do inesperado”, passo agora a interpretar como caminho ou experiência poética.
Um véu sobre os cabelos nada impede. Sobre a cabeça, aviões e pássaros. No céu, as
nuvens passam... Um véu cobre os cabelos, mas não interrompe as passagens. Viver é ter um
véu cobrindo os cabelos, é estar no fluxo, com uma cobertura mínima, feita de tecido fino por
mãos humanas. Viver é cobrir cabelos, não passagens de nuvens. Diante delas, o pudor tênue
e inútil. Diante de seu mistério, o recato. Um véu tão fino, como pode mostrar tanta tensão?
Viver é tecer a linguagem que veda e vela, na fina tensão entre o mundo-véu e a terra-céu.
Mundo passageiro. Terra, passagens.
72
Se fiquei tão assustada é porque estar na rua nada tinha a ver com meu pai, nem com
minha vida, nem comigo mesma, era uma coisa tão isolada, como se fosse um
acontecimento – e no entanto, apesar disso, eu estava ali rodeada de vento, o bonde
passando, com o coração batendo como se tivesse acabado de ter um pensamento.
(ME, p.215)
como faz Martim, quando olha o terreno que começa a acordar. Os mosquitos carregam luz; o
passarinho, cautela. Folhas secas assim o exigem. Do mesmo modo, que as pedras são
essenciais ao cruzamento dos ratos e ratas. Tudo converge, irmanado em silêncio. “Como um
fuso trabalhando, um movimento não se distinguia do outro.” A sossegada confusão onde
Martin caíra (cf. ME, p.63-4).
Na convergência do dizer, do fazer, do permitir que isso aconteça e do próprio
acontecimento, com toda a sua propriedade, a “sossegada confusão”. Dizer “cultura” nesse
contexto, porém, é procurar a ordem nessa confusão: o fuso trabalha, o silêncio irmana, um
movimento não se distingüe do outro, os limites parecem se apagar, e ainda assim as
individualidades persistem nessa multiplicidade. Essa confusão sossegada pode ser conhecida
também como tensão. Tensão entre violência e bondade; entre cosmos e caos, se se negar a
presença dessa tensão ou dessa confusão sossegada, a terra, em seu movimento no tempo ou
com o tempo, será apenas uma estrutura formal e fechada, matematizável. No entanto, a tarefa
dos homens com sua linguagem parece ser a de cuidar para que se expressem as forças
ordenadoras dessa tensão. Cuidado: a tarefa é de se entregar às forças ordenadoras da tensão e
não suplantá-las com uma ordem despregada dessa massa em conflito. Com uma ordem acima
dessa massa sossegadamente confusa.
Em termos de experiência do tempo, significa dizer que presente permanente, sinalização
do ainda encoberto (o futuro) e descoberta de vestígios (o passado) mostram-se
concomitantes. Na atenção à concomitância, convergem-se as diferentes tendências. Quando
se fala em cultura convergente na cidade, significa dizer a-tender para a verdade dessa
experiência. O que também significa dizer, deixar-se ficar na “luz aberta e superior do
campo” que, paradoxalmente, pode nos cegar de incompreensão (cf. ME, p.65).
Na cidade, a urgência nos impele para alguma coisa. Num projeto, precisamos escolher
um dos lados da tensão e fazê-la afrouxar. Mas na cidade onde ainda luz o aberto do campo, a
tensão permanece. Nessa cidade convergente, ethos-physis-logos-poiesis, como espaço
culturalmente espiritual, gradativamente mostra-se presente aquilo que ainda não é (o
encoberto sinalizado), junto com o que já não é (o vestígio descoberto). Falemos de poiesis,
pois. Essa ação convergente, que não se dá sob o impulso exclusivo do demonstrável e
tampouco pode ser obra apenas do aludido. Sobre ela, se costuma dizer que transporta o não-
ser para o ser (cf. GRASSI, s.d, p.98-101).
Seria isso o mesmo que afirmar uma tendência do fazer para encaminhar as coisas ou os
acontecimentos do caos à ordem? A poética seria portanto uma gramatização ou dramatização
desses acontecimentos? Digamos que dessas duas expressões ela se aproximaria mais do
74
sufixo –ação do que das raízes gramat- ou dramat-, já que poiesis é fazer, produzir,
empreender, livre do princípio, sem ser tampouco um fim. Mais uma vez, pode-se buscar uma
contribuição de Castro (2004a) quando, ao pensar sobre a gramática e a poiesis, chama a
atenção para a exclusiva consideração do orgânico pela primeira, silenciando o aórgico que –
lembra o autor – não deve ser confundido com “inorgânico, este já de-finido a partir do
conceito de coisa como ente orgânico”.
O aórgico como o não-orgânico, o não-conhecido, o não-visto, nos leva ao fuso
trabalhando descrito por Clarice Lispector; ele é o silêncio sobre o qual se cria a irmanação. O
vazio. O não-ser. O silêncio de toda música e de toda fala. Pensando assim, quando se diz da
poiesis como “o transportar do não-ser para o ser”, deve-se compreender que esses estados
não se anulam. A idéia do ser como a luz absoluta, isto é, a pretensão de se anular o não-ser,
como se a verdade dependesse disso, pode “cegar de incompreensão”.
Nesse sentido, cidade é ordem e caos; e, concebida como o lugar de projeção, abrange o
espaço controlável e o lugar vazio. “Cidade” nesse trabalho vem sendo chamada de “pólis”
que, acima de tudo, se refere ao espaço de trocas políticas, compreendidas como rede de
movimentação e de acontecimentos que não admitem a cristalização de posições e de
hierarquias. Mas a “cidade”, concretamente, existe enquanto ruas, praças, mercados, templos,
feiras, edifícios etc. e, sobretudo, o zunido das pessoas e das coisas a se deslocar e a se
transportar. Na cidade, habitamos sobretudo a movimentação. No entanto, na palavra “cidade”
ainda ressoa a sua acepção latina, que identifica “polis” a distrito administrativo, o que, sem
dúvida, esvazia o caráter concreto e movimentado das “trocas” políticas, fazendo com que
nela se procure o aspecto funcional e institucionalizante da gerência do coletivo.
Uma outra acepção ressonante, mais crítica, contrapõe ao campo e à cega incompreensão
advinda da sua “luz aberta e superior”, a tensão e a urgência da cidade. Tal contraposição está
calcada na suposta dualidade entre o campo como iluminado e a cidade como obscura.
Supondo que tal dualidade realmente exista e que tenhamos cristalizado essa identificação de
cidade à obscuridade, a poiesis como fazer o “entre” do não-ser e do ser; e o próprio não-ser,
como o vazio necessário, nos resgatam do pensamento petrificante e imobilizador da cidade.
Cidade é maquinação sim (sua physis), cidade é vazio sim (os buracos contingenciais de toda
rede), cidade é lugar de produção de sentidos porém (a concretização ética e discursiva da
rede), e cidade é troca também (a multiplicidade do logos como experienciação). Na
convergência, cidade é poética (um fazer a partir do desmoronamento incessante).
Esse entretecimento da degenerescência própria do artificial da cidade com as suas
necessidades naturais e justas, que desembocam em construções, articulam sentido e falta de
75
sentido, sabedoria e técnica. Para o “entre” convergem o vazio – concebido como aórgico – e
a necessidade – concebida como palavra geradora de construções ou de alteridades. No
reconhecimento desse modo de cultura, encontra-se um novo acordo do homem e sua
urbanidade (sua politização). O ser humano em sua projeção urbana erige uma forma de
habitar a Terra condizente com a sua necessidade de manifestar a sua experiência de fracasso
e de busca permanente de ser-com as coisas. Na cidade como obra de arte habita essa paixão.
Ao se propor então aqui um caminho de convergência, como um projeto cultural de
‘Não entender’ era tão vasto que ultrapassava qualquer entender – entender era
sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao
Deus. ... O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha
como a de ter loucura sem ser doida. (ALP, p.42)
17
Em capítulo anterior se falou sobre o que Frobenius chama a “baixa cultura”, identificada ao demonismo
presente nas experiências das crianças que ainda conseguem integrar-se aos acontecimentos animicamente. Essa
perspectiva descarta a visão da criatividade como um dom que parte do homem. Crativo seria então sentir a
vitalidade intrínseca dos acontecimentos, ou seja, comungar com a cultura, como ser vivente (em sua physis),
com devir próprio e apenas acessível por um logos e um ethos no qual ventila o poético.
76
– sem que ela caia.” Foi isso que sentiu Martim, em “A maçã no escuro”; e Lóri, em “Uma
aprendizagem”; e é isso que busca Lucrécia e, “A cidade sitiada”. Na afirmação desse não-
entendimento, abre-se uma via para o entendimento do logos como “pensamento” e não como
“categoria”. Pensamento é a própria linguagem, que é também o acontecimento; não há como
separar. No dinamismo perpétuo, o único que permanece é a própria diversidade.
Mas no sacrifício da lógica racional parece se incluir um determinado ritual, um culto
contemplativo que abre a mente ao vazio, à tensão, ao escuro no qual não cabem nem mesmo
os sistemas religiosos que se impõem como dogmas, nem mesmo as certezas científicas que
se impõem igualmente como dogmas. Nessa clareira, o acontecimento se apresenta em aberto
e vem a ser a linguagem que brota, aprendida instaneamente pois todas as relações se
apresentam com imenso vigor. Não terá sido isso que sentiu Martim?
próprio da mistura do humano e do animal, mas principalmente por ele ali estar, naquele
lugar, naquela noite.
Ali, Martim experimenta o sentido convergente da terra, o que reserva a todos a mesma
noite, onde cada coisa é um lugar de aprendizagem. Ele adentra na “baixa cultura”, na
expressão de Frobenius (1934, cf. p.255-8); transfere-se para um outro espaço vital,
aprendendo de outras fontes. O pensamento que daí surge tece novas configurações culturais
na forma de falar, de interagir, de contar as histórias do lugar, de caminhar... A relação do
homem e do lugar com o tempo se transforma a partir desse encontro fundante: ambos “se
tornam”, no encontro com uma tarefa certeira apresentada no presente, com o abrir incerto ao
futuro e com a evocação ao passado indefinido.
Cada vez mais, no entanto, a cidade se defende desse encontro, protegida por uma rede
gigantesca de fios e cartéis com que sitiaram a terra. Esse tecido cultural altamente mutante,
porém, próprio da cidade sofística, não é expressão da convergência, mas do intelecto
utilitário. No entanto, às vezes nos parece que é nessa mesma rede que embalaremos
sossegada e convergentemente a nossa confusão. Rede da confusão sossegada, rede “terra de
ninguém”. Rede é sempre rede, mesmo na paixão e no delírio do fazer constante, mesmo com
o entusiasmo despertado por ilusões, não se consegue impedir que a rede pesque alguns
peixes e o caminho se dê na direção fundante e justa, isto é, no sentido da necessidade da
própria terra. Isso quer dizer que mesmo na República platônica, vige a necessária “baixa
cultura” da terra, que permite a reentrada na experiência inaugural. Essa experiência é sempre
momentanea, porém, pois o fundador quer fazer do fundante um espaço determinado,
institucionalizado e paradigmático. O fundador não é o fundante que se encontra no “entre”.
O fundador pré-determina em seu projeto o ponto de chegada educativo e faz da cidade um
espaço político esquadrinhado pelas leis. Nela, cabe apenas a nostalgia da origem, dentro dos
recintos apropriados, como os templos e, mais modernamente, os museus. O fundante, no
entanto, precisa reconhecer e suportar o sofrimento das atrocidades e catástrofes provocadas
pelas falhas morais. E é por isso que está sempre na disposição do re-fazer.
Nesse caso, a distinção entre o fundador e o fundante se dá pelo risco a que cada um se
expõe. O fundador, que procura constantemente o auto-asseguramento, não arrisca adentrar
em território não controlável pela razão. O exercício de dominação, portanto, para a
manutenção das instituições, é próprio do fundador. O fundante de novo se expõe para de
novo conquistar; repete a alegria do fazer, mesmo depois do feito.
Isso nada tem a ver com o mecanicismo próprio da era da técnica. Em termos culturais,
multiplicam-se os “produtos”, consumidos como mercadorias ou cultuados dentro de uma
80
determinada ordem, como “bens” do povo. Desse modo, a massa “inculta” e os lugares fora
dos “corredores culturais” fazem parte de uma forma de viver desprezada. O cotidiano, as
ruas de passagem, os corredores dos transportes públicos são cidade repudiada. Mas num
projeto poético da cidade, o mundo se aceita e se reconstrói a partir do reencontro individual
com a origem da coletividade.
Para Martim, personagem foragido das leis e da cidade, em “A maçã no escuro”, a ordem
destruída, no entanto, não veio com o assassinato que supostamente cometeu, mas com a
culpa, por haver repudiado um modo de viver. No campo, ele passa a conhecer os
fundamentos da cidadania como entrega de si próprio a uma coletividade onde a physis tem de
ser obrigatoriamente obedecida, com seus ciclos e seu natural barbarismo, incompreensível
para um pensamento exclusivamente lógico. Essa mesma (des)ordem da physis existe na
cidade mas perde seu lugar em um projeto de humanismo totalitário, em que o poder do
homem se sobrepõe a toda e qualquer força. Ao final de sua saga no campo, Martim pode
enfrentar a lei dos homens da cidade porque agora conhece a (des)ordem da convergência.
No seu processo de formação, ele veio a ser o que ele próprio é, tornando-se uma unidade
na multiplicidade, porque se abriu à terra e ao mundo para que esses o formassem, através do
seus sinais e de suas ações. Passou então a exercer a cultura de modo fundante, e não pelo
consumo de bens culturais. Desse modo, toma posse da sua própria vida, sem querer exercer
um controle absoluto sobre ela, e pode até mesmo obedecer às leis construídas pela razão e
pelo homem, na compreensão das suas limitações históricas.
E a verdade é que, ao sol, ele estava tão definitivamente emaranhado quanto o fora
antes; em qualquer lugar onde um homem pisava, instalava-se uma cidade, só
faltavam os bondes e os cinemas. (ME, p.215)
Em sua trajetória, Martim se emaranhou na rede e caiu no fundado das leis. Para fugir
delas, foi para o campo, mas os caminhos que “levam à parte alguma” são os mesmo que
levam as pessoas a fundar cidades. O emaranhado das redes nos acompanha de modo que
estamos sempre “em luta” e marcamos o caminho com nossas pesadas pegadas. Caminhamos,
caminhamos e o lugar nos acompanha em apelo fundante. À cada pisada, se imprime a
história do homem que a deu. Fundante-fundado, essa a luta inexorável. Essa mesma
81
O campo se estendia silencioso; lá estava a outra vida. Mas olhando aquelas terras
onde o espírito ainda era livre, “o quê! terrenos inaproveitados nesta época!”, a
mulher prática ainda pensou com teimosia: “Aqui. Aqui eu construiria uma grande
cidade”. (CS, p.162)
Entre a escrita das duas obras, há uma diferença de perspectiva perceptível pelo confronto
do relato sobre o processo vivido por Martim e aquele experimentado por Lucrécia. O
primeiro faz parte do encerramento do romance e reflete a consumação de um processo de
entrega à experiência que não se sente no relato protagonizado por Lucrécia. Em “A cidade
sitiada”, o momento em que acontecem as duas citações transcritas acima, a personagem
ainda não “tomou posse da própria vida”, ainda não reconheceu e por isso não pode ainda
suportar o sofrimento das atrocidades e catástrofes provocadas pelas falhas morais. Não
percebeu, não se metamorfoseou; e, em sua formação, luta com a perspectiva de ser uma
fundadora, mas ainda sem se dar conta da possibilidade de se entregar à tragicidade dessa
nossa contingência de ser fundantes. O desejo está presente tanto em Martim quanto em
Lucrécia, mas a cultura em seu modo fundante se dá na receptividade do que é ditado pelo
lugar, sem que se sobreponham projetos construídos de fora dele. Nessa experiência não se
impõe uma modalidade de ser, mas se trava uma relação de correspondência e reciprocidade
com o ser próprio do lugar.
Esse modo fundante na cidade implica na descoberta das relações possíveis entre
realidade e verdade, que se fazem visíveis, tal qual uma pintura à medida em que é pintada.
Ao se entrar nesse jogo do real, entra-se na dinâmica de realização do real. Nesse modo
fundante, não se anula o que se é, nem se deixa de fazer o que se faz. A cidade é, à medida em
que nela se vive. A cidade se faz desde o cidadão que a ela se dá, como obra e coisa, como
terra e mundo. Auto-superação, nesse caso, não implica progresso, no sentido de se obter
mais, mais e mais; que acaba sendo sempre menos do que deveria ser, sempre aquém do se é.
A experiência do fundante caminha em outra direção; é a a experiência da alegria no pouco.
As cidades são paisagens feitas pelo homem. Paisagens são estados da alma. A cidade,
portanto, é antes um estado (no sentido da disposição) do que um objeto. Reatar com esse
82
estado – um modo de ser convergente – é voltar a fundar a cidade, que não se ergue contra a
natureza, mas dela sobressai como sua coroação. Não que esse estado seja imutável. O mundo
não foi criado uma só vez, mas tantas quantas as vezes em que apareceu um artista ou
pensador originário. Assim, o fundante, como um artista ou um pensador originário, coloca
em nova perspectiva a realidade aparentemente conhecida. A cidade funda-se e re-funda-se, e
sempre se constituirá como experiência inaugural. Daí, que quando pensarmos em fundação,
devemos sempre manter o entre do parânteses (incessante), pois esse processo não se estanca.
A constância da dinâmica inaugural é condição para que o mundo se instaure.
Em seu texto “A coisa”, Heidegger faz exatamente essa ressalva: “instaura-se mundo no
vigor do jogo” (2002, p.157). Quer dizer, o fundante não precisa se retirar da cidade para
novamente inaugurá-la. Dentro das três obras em foco neste trabalho, há três trajetórias
descritas na relação entre o protagonista e a cidade: Martim foge da cidade, mas a ela retorna;
Lucrécia sai de férias da cidade e depois a abandona; Lóri, que junto com a cidade se
descobre. Nos termos descritos por Heidegger, a protagonista de “Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres” “se instala numa correspondência”, isto é, vem a ser “mundo dentro do
mundo”. E esse “responde-lhe em seu próprio âmbito” (2002, p.159).
Já tem um tremor dentro. (Deve ser muito longe o trovão.) Será que a noite vai
chegar? A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. ... Mas não suporta
a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz.”
(ALP, p.22-3)
Fundar cidade não é representar um real e assumi-lo como verdadeiro. Significa “engolir”
o tremor que agita a cidade. Esse tremor é o seu apelo para que se atente para o seu vigor.
Fundar cidade é corresponder ao apelo desse seu vigor, a ele se entregando e assim aceder à
sua linguagem. E essa não é a linguagem demonstrável. É a linguagem alusiva, tal como a
chegada da chuva que se anuncia antes dela cair. É esse apelo ou vigor que se acolhe no modo
de ser fundante; nesse apelo reside tudo o que o já se foi como um trovão que já foi chuva
outras vezes; mas nesse apelo reside também o advento velado daquilo que se anuncia (a
possível fundação de algo novo). Será que isso quer dizer o mistério que faz com que a chuva
comece pelos olhos de Lóri? E que o choro dela venha a ser a chuva na cidade? Ou será que o
tremor é já o anúncio da possibilidade de esquecimento subjacente a todo encontro? Em
qualquer dos casos, abre-se aí uma correspondência, não só entre o trovão e a chuva como
entre a chuva e o choro. Prestar atenção ao apelo múltiplo desse vigor é re-colher seus
próprios desejos e convergi-los com acontecimentos que, pela lógica, não teriam “nada a ver”.
Nessa escuta, a cidade se re-faz. Mas então o perigo da errância também é imenso. Pois o ser
83
vigoroso nunca é apenas o dado real (o trovão). Daí que, o modo fundante não se reduz à
vigilância desses sinais tradicionalmente considerados como físicos.
Quando se fala em modo de ser fundante e se quer relacioná-lo ao convergente, o
pensamento precisa se esticar como um elástico. Retornemos, pois, ao começo deste capítulo
e retomemos alguns fios que agora precisam ser entretecidos. Desde o momento em que se
falou do véu que cobre os cabelos e ao mesmo tempo permite a passagem das nuvens no céu,
lançou-se uma semente sobre a simultaneidade de acontecimentos, entre o anúncio e o destino
de ser. Desde o momento em que se falou da confusão sossegada, se estabeleceu a distinção
entre o estar no tempo, ou seja, na perspectiva mundana da sucessão dos acontecimentos; e o
estar com o tempo, ou seja, no momento histórico em que os acontecimentos em curso são
simultâneos aos que já foram e aos que serão. Desde o momento em que se falou do ser dono
da terra e do criar um mundo ao mesmo tempo em que se abre mão das necessidades
expressas pela vontade (o que significa dizer liberá-las e não reprimi-las, deixá-las soltas para
se confundirem sossegadamente com a terra e o mundo) se apresenta o tempo como lugar de
manifestação de individualidades.
Anúncio de ser, na terminologia que ora se emprega, quer dizer descoberta de vestígios.
Pois é no encontro fundante, que incessantemente traz a possibilidade temporal desses
vestígios se tornarem tarefa presente, que eles se realizam como destino de ser. Assim, o
fundante é o zelador do destino da cidade e para isso é preciso estar vigilante pelo que é dado,
no presente, mas também pelo que foi, antes, e pelo porvir. Enquanto correspondência, no
entanto,
No capítulo “Ser urbano humano”, se falará sobre esse “caminho do campo” a que
Heidegger se refere, mas o que agora se deve destacar é essa atitude de renúncia à salvação.
Para os educadores e humanistas em geral, tal atitude é muito difícil. No entanto, há algo nela
que a diferencia do simples ceticismo ou do mais complicado niilismo. Essa atitude tem a ver
com uma reverência ante o vigor da verdade do ser e é sobretudo um alerta para que se dê
lugar ao apelo desse vigor. Esse é o “passo atrás” indicado na citação de Heidegger. Uma
84
espécie de “conselho metodológico” para que o pensamento, mesmo errante, cuide do ser
presente nas coisas, presente na cidade. Como? Abrindo-se para o vigor do seu apelo.
Quando essa abertura se dá, beleza e força surgem de lugares inauditos:
Reduzida a se lembrar
no restaurante a boca luzindo com o molho que escorria, o que dava um pouco de
repugnância;
naqueles dias era forçoso emocionar-se com o que é feio;
com um nojo subitamente inseparável do amor ela admitira:
as coisas são feias.
O cheiro da quitanda parecia um quente cheiro de pessoas sujas,
e era forçoso emocionar-se com aquelas coisas
eram tão imperfeitas que pareciam pedir-lhe sua compreensão,
seu apoio, seu perdão e seu amor. (cf. ME, p.212)
Certo, beleza e feiura coexistem, num mesmo lugar; e amor se dá na relação com o
obscuro. Tal como a experiência pedagógica do olhar – que precisa da escuridão e do erro
para aprender a luz e o acerto – a experiência do obscuro relaciona-se à do vazio e do silêncio;
e corresponde a um caminho fundamental em direção à realidade humana. O contato com o
obscuro equivale também à abertura para a dúvida no pensamento. A partir daí, abole-se da
realidade o seu significado aparentemente seguro e cotidiano.
Se deve viver apesar de. Muitas vezes é o apesar de que nos empurra para a frente.
Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora da minha
própria vida. (Sabia ver a beleza disfarçada e tão recôndita que um ser vulgar não
poderia.) (ALP, p.23-4)
85
Nessa angústia reside uma “vontade de arte”, segundo Nietszche (2004, aforismos 290 e
299), expressa no fazer poesia a partir do menor e do cotidiano. Dentro desse mesmo espírito,
alerta Rilke, “se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si
mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador,
com efeito, não há pobreza em lugar mesquinho e indiferente” (1986, p.23). Sua frase lapidar
– todo acontecer é sempre um começo – poderia servir aqui como uma espécie de refrão, de
modo a não deixar que as situações caiam no esquecimento expresso pelos lugares-comuns do
cotidiano. Toda a aprendizagem de Lóri se dá nessa direção: aprender na rua, transformar o
dia-a-dia na vida-a-vida; sentir-se mundo e, no entanto “ser pouco vitororiosa”. Se vitória é
não amar acima de todas as coisas. Se não ser tolo é aceitar o que não se entende, então o que
Lóri aprende vai de encontro ao pequeno; não amontoa coisas, nem seguranças. Pois a vitória
dos construtores de catedrais não comporta alegria não catalogada. E, dado que uma vez que
se tenha conquistado a vitória, se passe a temer as armadilhas, os vitoriosos preferem ficar de
fora das catedrais que eles mesmo constróem. E, dado o nosso temor por uma vida larga, não
nos entregamos a nós mesmos (cf. ALP, p.47).
“Uma vida larga” se prenuncia ao se perceber o extraordinário no comum e, diante dessa
percepção, se poder ainda, experimentar dor e prazer. Esse estado de graça, porém, não é para
ser usado em nada. É apenas um saber saber ao qual se admite como um dom de poder existir
materialmente, sem fugir da comunidade das coisas, das pessoas e das coisas, das quais se
pode perceber beleza e acima de tudo energia – a “maior verdade do mundo e é impalpável”
(ALP, p.147).
Essa percepção – realizada de modo menos programático e ainda dentro de uma certa
desconfiança, embora totalmente “demoníaca”, no sentido antes expresso – Lucrécia também
tinha, pois se espantava com os acontecimentos cotidianos de sua cidade. Para ela, no entanto,
essa experiência não se identifica com um “estado de graça”. Em sua visão das atrocidades e
do grotesco, embutem-se o esquecimento do ser e a mentira que, no seu caso, torna-se um
modo de chegar à verdade. Nada há de utopismo conformador em suas visões. Ela vê o avesso
do mito do progresso e o processo de aculturação em sua cidade. Mas possuía um espírito
fundante da cidade, altamente atuante, mesmo que à sua revelia, mesmo que ela-própria
expressasse medo pelo que experimentava. Talvez por isso ela precisasse se impor a
destruição da cidade, através de seu abandono, e assim ir em busca de um modo de ser menos
ameaçador: no campo, onde o modo fundante parece estar acalmado, já que as coisas parecem
86
ser mais exatamente aquilo que se destinam ser. E o mundo, parece guardar maior intimidade
entre o humano e o ser.
deixarem-se encaminhar pela linguagem e assim abrirem-se à sua impotência, como potência
sobrevivente da comunhão do sentir, do crer, do saber e do agir mundano.
Deixar o mundo se dizer em nós, se tornar presente em nós: foi assim com Martim, que
realizou seu processo de cidadanização deixando que o mundo se impusesse na figura das
mulheres com quem lidou em sua fuga: a patroa, a amante, a amada; mas também nas
intempéries naturais, no modo totalmente coisa das vacas, dos ratos, dos cavalos e na
multidimensionalização desse mundo aberto pela obediência à lei de todos e de cada um.
Cada um deixava o mundo aparecer na forma das suas necessidades, e na contingência de
estarem juntos. O singular se fazia na medida plural de sua convivência. A política então se
mostrou para Martim em pleno campo porque, em seu modo de ser fundante e convergente,
ele se fez a praça em que mulheres, bichos e homens se cruzavam e através dele dialogavam.
Foi assim também em Lucrécia no mundo das ruas compartilhadas, em que ela se fez a terra
onde estátua podia se dizer como flor e assim em Lóri que se fez ser-humano-todo-ouvidos
para a enorme pergunta que é o mundo em tensão com a terra.
Cada um participava e aparecia no fazer das relações terra-homem-mundo e assim agia,
como sobre-vivência e con-vivência. O que é ético, fora da pretendida unidimensionalização
de um sistema que vinculou ethos à moral, como um bem determinado a priori. Se
considerarmos, porém, ethos como o lugar do fazer da poiesis, aberto para o que é; e bem,
como a própria manifestação do sentimento da terra, verdade de ser uni-versalizada e
multidimensionalizada pela linguagem do homem no mundo conjunturado, redescobriremos a
cidade de um outro modo. E existiremos, cidadãos em fazer histórico.
Quando Martim pensa em “restos transfigurados de civismo e de colação de grau, leiteiros
que não falham ... coisas assim que parecem não instruir mas instruem tanto” (ME, p.235),
está em-caminhado-no-mundo. O ser, dito assim de maneira concreta, no fazer do leiteiro,
mostra a sua simplicidade. Mas isso não quer dizer que se deve transformar leiteiro em
símbolo. Toda vez que se quer impor uma modalidade de ser como verdadeira, a verdade se
torna coisa secundária (ME, p.237). No entanto, continua Martim, não há modo de escapar à
verdade. E imaginar, como modo de fazer mundo, é também – tanto quanto ser leiteiro - um
meio legítimo de atingi-la e pode-se usar a mentira sem escrúpulos (ME, p.244): não há modo
de escapar à verdade.
O contexto desse seu pensamento no romance é o de um homem que está sendo preso e
que uma vez tentou escrever a sua história e que não conseguiu porque teve com a
honestidade uma relação medíocre, ao querer explicar o inexplicável. É assim que o homem
passa a identificar imaginação e mentira, ou seja, passa a perceber imaginação onde antes só
88
havia mentira. Quando enfim Martim se permite mostrar ao mundo o inexplicável que ele
próprio é, vê-se capaz de escrever a sua história, “em homenagem aos nossos crimes”. Ou
quem sabe talvez: “aos nossos crimes inexplicáveis” (ME, p.244-5). E é assim que o “bem”
vem a ser a obra de uma arte ou a poesia de nossa vida, do menor e do mais cotidiano em que
se funda incessantemente a cidade.
Essa ética, no entanto, lugar tenso da manifestação de mundo conjunturado ao sentimento
da terra, difere do sentido que a palavra tomou por força do pensamento metafísico. No
processo de positivação do homem como senhor do mundo, acontece uma estranha
reviravolta. O que poderia ser a sua libertação frente à submissão a um deus ou a um rei ou a
um pai ou a um senhor, por força da sua própria razão e consciência, vem a ser obrigação de
sujeição. E, nessa sujeição moderna,
De que me valeu a liberdade. ... Nada fizera dela. ... E se esse caminho apenas
circular acabara de tornar inúteis todos os passos que ele dera, no fundo mesmo de
seu medo o homem, de repente pareceu concordar com esse caminho, com dor e
com medo pareceu admitir que sua natureza desconhecida fosse mais poderosa que
sua liberdade. (ME, p.171)
não espera salvação traz também uma espécie de identificação contigente e co-protetora entre
todos os entes. No comunitário, subjaz a serenidade que permite que se circule pelo humano,
sem sair da “condição do Universo’, nas palavras de Clarice Lispector.
É Lóri que fala em “ser tão protegida a ponto de não recear ser livre”. Terra é esse lugar
de liberdade incondicional, para onde sempre se pode voltar. Na aprendizagem desse lugar,
nossa “condição pequena” não nos deixa “fazer uso da liberdade”. E é essa aceitação de um
fazer livre por não precisar buscar liberdade que nos faz saltar à “condição do Universo (que
nem mesmo é chamada de condição)”. Parece complicado e é tão lugar-comum quanto o
“acertar o passo com as coisas ao redor” (ALP, p.17). Isso é pôr-se em estado de tensão e de
aceitação da linguagem titubeante, pela entrega e pela participação no mundo con-junturado.
“Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito” (NIETZSCHE, 2003, p.45).
Pela experiência e pela vitalidade se ultrapassa a autonomia do sujeito. Lucrécia, que mais do
que ser-no-mundo encontrava-se em situação de estar-no-mundo (inflamada que estava pela
visão do mundo), pouco o elaborava na consciência, mas isso não a impedia de aceder a um
logos poético, no qual o sensível jogava importante papel. Só assim, podia ela, por exemplo,
perceber que um sábado é “noite de vários mundos” (CS, p.13) ou que o mundo sensível e em
tensão com a terra reaparece incessantemente, mesmo que apenas num sábado, quando se
permite iluminar o mundo de baixo, com seus abismos e seus demônios.
Fora dessas ocasiões festivas, o homem se apega a uma interpretação fixa de natureza e de
história; e separa em absolutos contrários os sentidos da teoria e da prática. Mas, separados,
os mundos não propõem tarefas. E, longe da luta, a verdade não acontece. A luta se dá pelo
esforço de transposição ao estado de tensão. Por isso, é impossível acabar com o trabalho.
Camus, ao descrever um Sísifo feliz, diz que entre a pedra a ser constantemente carregada e
Deus que impôs a tarefa, está o homem que, apenas nesse lugar, pode ser o que ele é.
O trabalho repetitivo pode ser monótono, mas também alegre, se considerado como
repetitivo do que permite a alegria na e da criação. Pois o homem tem necessidade de
realização, de ação necessária (ação como medida justa de liberação do próprio, que descansa
no agir), assim se revitaliza porque gosta do que faz. O fazer é condição de alegria. E o
trabalho vem a ser medida do homem, se ele não quiser mais do que a ação pode lhe dar. 18
Trabalho, enquanto uma não-produção seria um não-agir? Fora do sistema de transformação
do prazer em produto, trabalho abrange dança, música, jogo. Chamamos a tudo isso de
18
A partir de anotações de aula de Gilvan Fogel, leitura do texto “A superação da metafísica”, de Heidegger.
91
trabalho contudo. Por que? A brincadeira cansa? O carregar piano pode distrair, des-
tensionar?
Em sua aprendizagem, “Lóri se cansava muito pois não parava de ser” (ALP, p.19).
Cansaço esse talvez devido não tanto ao ser, mas ao medo da condição que o ser perscruta.
Parece sim, que o medo de ser cansa e quando a gente se descobre nessa contingência de
estar-jogado, quando a gente des-cobre, já se cobre. Já luta consigo mesmo porque, no senso
comum, o que é bom não pode durar. Clarice Lispector, segue em direção contrária a esse
pensamento no posicionamento antevisto pelo comentário de Ulisses (amado e preceptor de
Lóri) que, diante do relato de suas últimas descobertas, afirma: “a condição não se cura mas o
medo da condição é curável.” A condição, nesse caso, parece equivaler aqui à necessidade
(trágica?) do homem carregar incessantemente as pedras que rolam e exigem a retomada do
trabalho. Mas é a luta contra essa condição que cansa. Lóri, porém, ainda associa a
“condição” à amargura. Mais adiante, esvaziada a amargura, assim como o gosto secreto da
punição e o julgamento, sobra um “cio sem desejo”. Então, nesse vazio, “bem e mal não
existem”. É o “perdão súbito” (ALP, p.21-2); o salto para, da outra margem, reiniciar o
trabalho (inventivo) da linguagem.
Mas da outra margem, a aprendizagem da poiesis pode se configurar sob quatro modos:
recusa, transgressão, isenção ou posicionamento. Na configuração da poiesis como recusa, as
palavras que ferem são eliminadas, como aconteceu com Martim que, em determinado
momento, diz não admitir palavras alheias porque assim estaria admitindo “a palavra ‘crime’
_ e ele se tornaria apenas um criminoso vulgar em fuga” (ME, p.101). No entanto, na
transgressão aos modelos discursivos, às categorizações e às conceituações, persiste a
interação com esses mesmos modelos. E a reação pode aportar maior amargura a essa
condição. Na busca pela isenção na linguagem, que se apresenta como esquecimento do
sentimento da terra, ainda que se possa ouvir o apelo do seu vigor, prevalece um “eu”
submetido ao medo da solidão que a completa entrega à condição pode surtir. A serenidade
virá do posicionamento, isto é, de um habitar comunitariamente o lugar, a partir da adesão
incondicional à condição de ser (em sua dinâmica pendular de esquecimento e de escuta),
fazendo-se mundo para que ele se manifeste. É a confusão sossegada. Nesse ponto, não se
sente a ameaça de fora. Em seu processo de aprendizagem, quando se sente cidadã desperta,
Lóri pode dizer, sem que isso seja mero discurso: “todos lutavam pela liberdade ... e alegrava-
se de que enfim não suportasse mais as injustiças” (ALP, p.129).
O que esse pensamento pode provocar de positivo no curso imediato dos acontecimentos
históricos? Quando fizeram tal pergunta a Heidegger, ele simplesmente respondeu:
92
não sei nada sobre o “efeito” que pode ter tal pensamento... Não conheço nenhum
caminho que conduza a mudar de maneira imediata o estado atual das coisas no
mundo, a supor que a mudança fosse possível aos homens. Mas me parece que a
tentativa de pensar poderia despertar a disponibilidade, clarificá-la, afirmá-la. 19
A disponibilidade a que ele se refere é aquela necessária seja para a vinda, seja para a
ausência definitiva de Deus. Rememorar o sentimento da terra é mundo atuante? Talvez, mas
quem diz atuante não diz disponível. Falemos de disponibilidade; a habilidade de quem
mantém “disposição”. É impossível estar disponível enquanto produzimos? Ou a disposição
só se dá no intimidade, mesmo que essa se manifeste publicamente? Disposição “anímica”
para a música do universo: nessa escuta, faz seu trabalho o poeta. Disponibilidade é o
exercitar-se na disposição. E é a permissão de “saltos” na realização desses exercícios, afinal
bem físicos, esse fazer histórico, nessa escuta rememorativa de uma música do universo.
Parece estranho (mais uma vez!), mas a História é um “dançar conforme a música”, não como
repetição de um modelo, mas como outorga de lugar histórico aos acontecimentos, os
“saltos”. O acontecimento, o “cada vez” é o próprio lugar desde o qual a história toma a
segurança de um tempo. Mas os acontecimentos, ao mesmo tempo que se mostram, sendo
tantos, sendo simultâneos, sendo intangíveis em sua grandeza e musicalidade, tecem nossa
indigência para apreender a História do ser em sua inteireza. O que percebemos? Sem ruídos
nem conseqüências, um sacodir de tudo o que é verdadeiro e real.
Pensamento não tem a eficácia que um sistema voltado para a produtividade poderia
esperar. Cautela, é o que precisamos ter ao interpretarmos necessidades de mudança que não
se façam escuta e se mantenham na discursividade que concebe fazer como prática
desvencilhada do pensar-sentir a terra e que espera do fazer a obtenção de um produto. Dentro
dessa lógica fundada na causalidade, a teoria é bem sucedida quando consegue muitos adeptos
frente a seus argumentos; e a prática, quando possibilita a obtenção de um efeito útil para
quem atua.
Na linguagem dos que buscam um efeito prático sobre o mundo, o pensamento deve se
expandir de modo a ser assumido por um coletivo. Uma idéia se realizaria então quando se
transformasse em guia de pensamento e ação para muitos. Na prédica religiosa ou política,
percebe-se bem essa orientação em relação à vontade de quem escuta para convencer e afetar
decisões. Entretanto, essa linguagem de convencimento só se faz possível do momento em
que se distancia ação ou prática e fundamentação teórica. Numa realidade re-unida, toda ação
19
Declarações dadas à revista Der Spiegel, em entrevista publicada após a morte de Heidegger, mencionadas
por Eduardo Carrasco Pirard da Universidade de Filosofia do Chile, em um texto sobre “Heidegger e a Ética”,
encontrado no site http://personales.ciudad.com.ar/m_heidegger/carrasco.htm.
93
Eis o gesto de levantar os olhos e dizer “assim quero ser também”. Eis o pisar firme na
terra, sentindo sua vastidão que atravessa a crosta terrestre e segue em direção às estrelas. O
levantar os olhos mede a vastidão, o “entre” quem-vê e o-que-vê; e implica também a visão
do inaparente. Nessa perspectiva, abre-se a dimensão ou o horizonte: a “medida comedida”.
Medir-se pelo celestial? Isso implica em abandonar o mundo e suas coisas? Não, é
somente na ação humana e através dela que o “ser-em-si” das coisas se revela. Como diz
Clarice Lispector: “neste obscuro ato ele (o homem) se fecunda.” (ME, p.98) Ou ainda,
segundo Heidegger:
Mais adiante se verá que esse tipo de pensamento que leva à realização (ao qual se
denominará pensamento coisal) permite relacionar o urbano ao humano; e a um habitar, no
qual construir e pensar não se excluem. Nesse tipo de pensamento meditativo, se dá o salto
que aproxima o cidadão de uma potência nua constrangedora. Nessa “grandeza do mortal”
subsiste nossa "bondade real e violenta" implicada no esforço em esvaziar nossa relação com
o mundo da carga subjetividade-objetividade. “Nós, que somos tão objetivos que terminamos
sendo de nós mesmos apenas aquilo que tem uso; por discreção, ignoramos a ferocidade de
nosso amor" (ME, p.233).
"Nós": necessidade gregária, ranço de coletivismo ou gregarismo? O que ou quem somos
nós, enquanto busca serena do comunitário? Sem a intermediação insistente de um propósito,
dá-se a relação de comunidade com o mundo não em termos de domínio, mas de abertura.
Por Deus, se não criássemos um mundo, este mundo apenas divino não nos receberia
(ME, p.98).
Mundo-mundano criado por nós e mundo-divino já realizado: esse último seria a terra?
Queda e salto seriam passos alternados de um mesmo andar? Nesse balanço, o homem pôe-se
em êxtase. Para voar é preciso pés na terra. Tanto terra, quanto céu são “Terra”. Esse pensar,
20 Tradução livre do texto de HEIDEGGER, M. “Lettre sur l’humanisme” em Questions III, Trad. Roger
quanto mais presente, mais inquietude nos traz já que não existe para resolver “problemas” do
mundo; não tem em vista nenhum progresso, no sentido metafísico. Ao contrário, pensar
desse modo faz com que surjam mais "problemas". A serenidade lida incessantemente com o
medo. Mas, da mesma maneira, é o próprio medo o gerador da serenidade: na aproximação
com o ser da terra, sentimos medo; na imensidão que entrevemos, nosso medo é re-tomado e
des-feito, enquanto pensamento/realização. Assim, o homem se faz, enquanto realização, que
tanto pode ser construir uma casa, ou simplesmente olhá-la. O pensar meditativo é também
construtivo, tece uma linguagem de aproximação com o ser.
Pensar meditativo: pensar coisal. Aproximação com o ser: aproximação com a coisa.
Heidegger (cf. 2002, p.157), em seus escritos finais, percebia na poiesis a essência do agir e
escreveu textos muito mais poéticos que filosófico. Descreveu, por exemplo, o "jogo de
espelho e reflexo da quadratura" que constitui a própria coisa. A coisa é o mundo. E o mundo
reflete, como coisa que é, a presença do céu, da terra, do mortal e do infinito, num jogo em
que os quatro fiam, confiam e comprometem. A coisa é o mundo; esse jogo de espelho. E, no
poder desse jogo múltiplo, se instaura mundo. Não se explica nem se fundamenta essa
instauração; causa e efeito nada têm a ver com isso. Nenhuma explicação lógica alcança o que
é essa unidade simples dos quatro: esse jogo de espelhos presente em todo fazer de todas as
coisas.
Nessa relação em que o um é outro, ético é o dizer dessa experiência humana do existir no
jogo múlitplo do ser, isto é, o viver conformemente o seu destino. Ética que se faz tanto mais
imperiosa quanto mais a desordem evidente e escondida do homem cresce para além de
qualquer medida. Nessa ética, a medida não pode mais ser o homem metafísico, mas a criança
nietzscheana. No entanto, a metafísica e a ética vigentes, resultantes de uma cultura greco-
cristã, perspectivada pelo cartesianismo, se apropriaram do homem. E o homem humanista,
em sua expressão de "animal racional", passou a ser a medida e o critério para definição de
todas as coisas, enquanto o senhor da terra, unidimensionalizada pela razão, soberana no
projeto da existência humana.
Com isso, o coletivismo assume a referência do homem modelado pelo triunfo da razão e
da técnica eqüalizadoras. Procuremos, pois, poupar e consolidar, mesmo os mais pobres e
imediatos liames éticos que de alguma maneira rememorem a poética do ser. Afinal, talvez
seja mesmo como diz Clarice Lispector: "nós não fomos feito senão para o pequeno silêncio,
não para o silêncio astral" (ALP, p.36). Carregar pedras, fundar cidades: somos o mundo,
vivemos o pouco. Mas tal penúria não dispensa o pensamento de se rememorar o que
precisamente falta pensar e que é verdade (cf. HEIDEGGER, 1967). “Ética”, “lógica” e
96
“física” são disciplinas que nasceram na época em que o pensamento se fez “filosofia”. A
ética experimentada em sua convergência com a physis, o logos e a poiesis pensa tão-
simplesmente o cotidiano do homem. Para o triunfo do “homem produtivo”, essa ética não
parece ser muito eficaz pois, como pensamento arcaico, acontece antes da divisão teoria e
prática. E diz o que tem a dizer em cada momento histórico, ditado pelo essencial de cada
coisa. Não "vale" (social e politicamente) como o pensamento da ciência, mas é mais livre do
que ela. É o pensamento que constrói lentamente uma casa, conforme o destino que aproxima
o homem à verdade de ser, de modo que essa aproximação se torne propriamente um habitar.
Neste mesmo trabalho, quando se falou sobre "poder tenso na cidade", se tocou na
contradição insolúvel que nessa casa habita: o Deus desmoronou-se e, sem a dimensão do
imortal, como pode o homem sobreviver como homem? O apoderamento do livre arbítrio, em
termos absolutos, não livra o homem do seu destino impossível de dominar. Na vigência
dessa cultura, o habitar é destruído; essa, a nossa trágica condição. Aceitá-la nos torna
perceptíveis aos acontecimentos como “saltos” na história de ser.
Se Édipo sonhasse de mãos no bolso com a justiça não conseguiria de modo algum
deixar claro o contraste entre o direito humano e o divino. Seu pathos o leva
compulsoriamente à comprovação do sonho. ... Apenas um espírito
extrordinariamente conseqüente pode vir a conhecer o trágico (STAIGER, 1975,
p.151-2).
Apenas aquele que se deixa tocar pela “coisa pública”, como acontecimento plural,
presente e vigoroso com o qual se dialoga, e que percebe a praça pública como palco da
tragédia humana é cidadão. Esse cidadão se inquieta e pensa inquieto com a sua "visão".
Atento, o cidadão que se encontra nessa clareira, insere o seu dizer na linguagem comum.
Cidadania e misericórdia.
É assim que pensamento é fazer superior a toda produção, não pela grandeza do que
realiza ou pelos efeitos que ele produz, mas pelo seu cumprimento, mesmo sem resultado (cf.
HEIDEGGER, 1967). E faz-se como poesia. Concretiza-se como olhar e como jogo de ser o
que olha e aquilo que olha, construindo-se ao mesmo tempo que olha. Poesia não se restringe
à forma poética. Trata-se aqui da poiesis presente até mesmo num martelar ou num atravessar
a rua. O convívio com obras-em-arte apura nossa visão e ausculta dos fenômenos,
acontecimentos e coisas. A autêntica criação artística mantém uma atitude ética que liberta as
97
coisas de sua condição de sujeitos e de objetos, isto é, de figuras isoladas, abstratas, empíricas
e técnicas. E a contemplação da existência pela arte vem a ser, pois, uma possibilidade de
realização ética do homem.
Nessa ética, as leis expressas não são as do mero dever, mas as do ser, que permitem a
entrega às experiências caóticas da vida. Jaegger, ao comentar Homero, lembra que suas
figuras não representam esquemas dramáticos, que se levantam a extremos prodigiosos para
logo caírem na inação. A sua existência está em íntima conexão com o mundo, pela coerência
do pensamento e da ação. O segredo da força plástica das figuras de Homero está na
capacidade de situá-las solidamente num espaço vital. A obra pertence à ação e a ela dá um
sentido. Por isso, ao se dizer ação e construção não se diz fabricação. Obra, como diz
Carneiro Leão (cf. 1991, p.156-7), é presença provocante; é bem. Obra não se restringe ao
âmbito da ação humana. Pertence à dinâmica de toda a realidade. Quando se diz que uma
coisa é uma obra, pretende-se acentuar-lhe o que já se atualizou e amadureceu.
Obra, como abertura para o ser, é viver, surgir e permanecer: os três ao mesmo tempo,
considerando que viver é ser em seu sentido mais usual; surgir é crer (pois só se dá sob essa
condição); e permanecer é saber, na acepção de sabedoria e não especificamente como
conhecimento. O que fez a filosofia platônica? Colocou as duas primeiras dimensões no
mundo sensível e a última no mundo inteligível, das idéias (cf. HEIDEGGER, 1978). Para
posteriormente, na cultura ocidental, essa última ainda se desdobrar em razão pura e razão
prática, na qual estaria compreendida a ética, como práxis comportamental, através de
postulados não comprováveis e projeções de ideais.
Desses ideais, o “eu” é o primeiro. Mas ideais são fugazes e não possibilitam que o "eu"
se conserve. A cultura do ego busca a preservação do eu através da institucionalização dos
caminhos de realização do homem. Voltamos então mais uma vez ao princípio da
comunidade, corrompido pelo processo de institucionalização de campos de conhecimento
tais como a educação. Essa, nos termos éticos da Grécia arcaica (quando a educação nem
mesmo existia como saber isolado) deveria ser a impressão da comunidade em cada um dos
seus membros, desfazendo o princípio da individualidade como expressão da totalidade.
Transpondo, porém, essa ética pedagógica arcaica para os termos da pedagogia poética nas
obras aqui estudadas de Clarice Lispector o indivíduo passaria por um ritual que não "apenas
simbolizasse a submissão mas a realizasse" (ME, p.174). Ou seja: o modo comunitário inclui
ritmos e ritos.
Assim, o comunitário passa do patamar da ética como um valor humanístico para a ética
como realização amorosa do homem, numa atitude de entrega ao ininteligível, alcançável
98
apenas pela criação de uma linguagem regida pela percepção que essa mesma dimensão
sobrehumana lhe proporciona. Essa linguagem ritual e rítmica significa presença,
acontecimento, vigor, significa a retomada de um corpo poético esquecido. Quando ritmos e
ritos são comungados se dá o nascimento de uma compreensão e de um modo de amar: a
coisa mais importante que pode acontecer em terra de homens (ME, p.129).
O impessoal-individual
Pelo amor, o pensamento “desce” novamente à pobreza de sua provisoriedade. E pode até
mesmo sorrir da visão absolutista de um mundo regido exclusivamente pela razão ou por
qualquer outro sistema que se queira único. O pensamento reage também à igualdade forjada
entre razão e ele-próprio, o pensamento. A literatura brinca em muitos dos romances sobre a
existência de um “duplo” em cada um de nós, no qual não sem um certo sentimento infantil
de temor e curiosidade ante a possibilidade de existir alguém no mundo completamente
idêntico a nós. Borges (1960, p.69), no seu conto “Borges y yo”, descreve a angústia de ter
encontrado esse duplo bem no centro de sua existência. Um deles é o escritor, o literato, que
faz de todas as alegrias do “eu” a matéria-prima para a ficção. “O outro compartilha essas
preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator”, relata o eu-
narrador em franco estado de tensão; mais que tensão, hostilidade, experimentada ao final da
leitura também como sofrimento de alguém que, ao se ver permanentemente roubado de tudo
o que lhe é próprio, confessa-se viver em fuga “e tudo perco e tudo é esquecimento, ou do
outro”. Por outro lado, essa “vida dupla” também permitiu idealizar o gênio romântico, como
possibilidade de libertação das limitações da história íntima, da herança familiar, na mesma
medida em que a torna pública e “literarizada”. Nessa recriação às vezes estilosa e
“vanidosa”, como diz Borges, das relações mundanas, produz-se um sujeito social aceitável;
mais que aceitável, genial. Fazer-nos duplos! Quantas vezes sonhamos ser dois e passamos a
sentir a reconfortante sensação de criar-com, co-nascer, realizarmo-nos enfim como obras-de-
arte da natureza! Tão bom nascer alheios ou apesar dos conteúdos racionais e assim nos
manter livremente suspensos!
Nesses afetos jogados dentro do desconhecido, cessaria o individual, como sensação
de isolamento. Não estaria Martim em busca dessa sensação, ao querer "se agregar aos salvos
e pertencer"? "O medo levara-o a isso", diz ele (ME, p.170). A serenidade ressurge a partir
dessa entrega ao medo, em lição de humildade. Usar a humildade como técnica; mergulhar
99
É essa a paidéia poética, essa a condição do fundador da cidade, esse o pensamento coisal:
desistir de imperar sobre as coisas e "só então viver, na latência das coisas" (ME, p.83). E é
isso que nos permite dizer que, quando Clarice Lispector narra na 3a pessoa não o faz com a
3a pessoa gramatical, que separa o eu, o tu e o ele: o eu narrante e o eu narrado permanecem
distintos mas em identidade; desdobra-se o narrador, na narração de si próprio, mas
principalmente na busca da prevalência das coisas como indicadoras da óbvia
interdependência entre elas e as suas sombras. Dentro dessa perspectiva de unicidade na
multiplicidade, imprime-se distância espaço-temporal assim como uma tão intensa
proximidade que o narrador passa por uma metamorfose existencial ao se deixar infiltrar pela
sensibilização do personagem, transformação essa experimentada no tempo mesmo da sua
narração. Isso é diferente do modelo clássico do romance de formação pois a formação que
tem lugar nessa dinâmica não é aquela propiciada pela produção da subjetividade humana,
mas aquela do salto para outra dimensão, na vigência de um tempo e de um espaço impossivel
de ser medido objetivamente.
No ápice da força da subjetividade, terra e mundo objetivados não acontecem. Quando a
vontade fica fraca é que pode ser tocada pelo acontecimento. Ir se fragilizando: esse foi o
percurso de Martim, de Lucrécia e de Lóri. Os três se recolheram no sentido do lugar que
passaram a habitar. Um sentido que perceberam ser aquele que não quer ser mais nada do que
ser. Talvez nesse sentido resida o encanto de Duchamps, ao desistir de trabalhar com artes-
plásticas “para respirar”, ou seja, deixar de “produzir” arte, admitindo um mundo sem arte
(palavra esta gestada, diz ele, dentro da barriga da subjetividade que se apropriou das coisas
em sua simplicidade e em sua sacralidade para torná-las não mais que “objetos da arte”) (cf.
CABANNE, 2001, p.170). Escrever como quem respira, essa a poética de Clarice Lispector.
A sua lírica? Desiste-se do eu duplificado no outro, enquanto se escreve em atenção à própria
respiração e à intersticialidade que ela pressupõe com tudo o que existe. Haveria muito o que
falar do lírico como fenômeno de aderência ao mundo, na dissolução de fronteiras e nessa
realização como linguagem, como modo de ser. Na lírica da convergência, proferem em
ressonância Martim, Lóri e Lucrécia, ao terem expostas a sua disposição e as suas
experiências de repercussão do arcaico. Nesse sentido, suas trajetórias traçam caminhos
individuais sim mas dentro de uma tonalidade que cada vez mais se dilui na experiência de
ser. Para um eu-narrado-narrante que respira poesia,
Um dia será o mundo com sua impessoalidade soberba versus a minha extrema
individualidade de pessoa mas seremos um só (ALP, p.76).
O pensamento coisal
Então voltamos à pergunta: mas o que possibilita essa experiência? Como lidar com a
coisa, movido e orientado por ela? Como "pegar o espírito da coisa"? Talvez pela
compreensão do afeto envolvido em qualquer fazer. Uma compreensão não necessariamente
intelectual; o medo pode provocar o pedido de abrigo à cidade como coisa, e esse pode se
converter numa linguagem. Quebrando desastradamente as coisas ou abandonando-se na
escuridão tranquilizadora, Lucrécia encontrava-se nesses momentos "eriçada", sem poder
tocar "cada ponta revertida de coisa" (CS, p.15). Cada ponta é um começo, uma excitação que
pede um rito de agora. Nesse rito, imediatamente surgem as normas, cada coisa parece portar
como uma carapaça as regras de conduta para serem “pegas em seu espírito”. O homem cheio
de si é em geral presunçoso e confunde a coisa com as normas por ele mesmo instituídas.
Experiência é se achegar ao normal que cada coisa encaminha. Como “pegar o espírito da
coisa”? Talvez deixando de querer pegá-lo. Esvaziados desse querer mais para posse do que
para toque, começamos a vê-la de um outro lugar.
Para dar conta das coisas, é preciso ver de outro lugar. Transgredir, sendo interativo.
Rebelar-se, sendo revelado. Mas “dar conta”, o que é? É escutar, sendo calado. Porque a
linguagem faz ressurgir com novo fulgor as coisas antes condenadas a objetos carregadores de
regras. Destrói-se a coisa para se criar o objeto. Confrontemo-nos pois com a gênese
transcendental desses objetos em que o sujeito vem sempre primeiro, sempre se representando
103
a si próprio, a fim de garantir a sua realidade. Dar conta das coisas é pensá-las, dentro de um
modo de percepção que permite que a razão apareça com a riqueza múltipla que o logos a
possibilita ser: integrada, sincopada como o poetar, essa é a linguagem para além da análise e
da explicação. Mas o que é isso que integra a razão (logos) nessa percepção inteiriça e poética
das coisas?
Isso ainda é difícil de dizer. Persigamos as coisas como o faz Clarice Lipector, tentanto
trazer aqui a sua experiência de fascinação, de pausa contemplativa, de saber imediato. Coisas
não são as suas finalidades, não são sinais que justificam ou evidenciem a subjetividade.
Coisas tampouco são “problemas” traduzíveis em termos matemáticos ou qualquer outra
linguagem que as possa colonizar. Perseguir a coisa, deixando-a de querer se apropriar dela
implica em um processo de des-ver a coisa, sair do lugar que a metafísica nos colocou. Ao se
procurar perceber a coisa em sua inteireza, no entanto, os lugares ressurgem. Ali tem claro, ali
tem escuro. Relacionados. Estamos em plena experiência pedagógica do olhar. Entes
colonizados que somos, também nós (pois o homem se faz tanto objeto como sujeito), custa-
nos muito despedirmo-nos da metafísica. Não importa, fiquemos com ela. Sejamos então, a
partir da própria metafísica, deixando que a metafísica seja tudo o que ela pode. Então, se a
matemática vier, que venha. Ela chegará à saturação e saturadas as possibilidades
explicativas, supera-se o afã de asseguramento da coisa. Não adianta querer ter “a”
experiência e principalmente não adianta querer repetir as experiências relatadas, nem as
nossas próprias, não adianta querer repeti-las. O que deve se fazer para “dar conta” das
coisas? Render-se a elas e aceitar o momento (mesmo em seu aspecto mais mundano e
cronológico), abrindo-se às oportunidades (kairós) e presentificando o aión.
A experiência pode parecer sem sentido ao intelecto, mas essa mesma falta de sentido
pode ser plenitude. Pois as coisas podem nos levar “ao descortínio silencioso de quem se
deixa penetrar por elas” (ME, p.111). Um maravilhoso exemplo é a experiência de Martim
junto à árvore quando, já praticamente descoberto em seu crime, conversa com a sua “patroa”,
a sua senhora, acolhendo-a ao mesmo tempo que recusa sua ordem de derrubar a árvore. Foi à
sombra e a própria sombra da árvore que, penetrando em Martim, levou-o ao descortínio
maravilhoso de dizer a poesia da recusa, tão oportuna naquele momento.
Necessita-se, para poder experimentar esse encontro, pré-compreendê-las, as coisas;
significa dizer estar aberto para cada ente e para o ser que em tudo se sente: o ente aparece
como ente, manifestando-se pela linguagem que se inaugura pela própria presença de cada
um, pela intersticialidade dos uns-com-os-outros; e pela localização e temporalização que
ocorre na tensão entre o mundo e a terra. Sob essas múltiplas manifestações, a coisa pode ser
104
nomeada com todo o poder encantatório que a nomeação propicia. E seu nome pode ser
repetido, “avolumando” o acontecimento, “aumentando” a coisa (ME, p.138).
Quando Heidegger (cf. 2002, p. 144-9) descreve em seu texto “A coisa” a experiência da
proximidade das coisas procura mostrar o que seria ir em busca do seu modo de ser, para além
do seu uso, do seu abuso, da sua explicação, segundo propósitos ou em busca de causas. Ele
salienta que a coisa não se dá como objeto oposto a sujeito; nem como representação; nem
tampouco como fruto de uma produção. É difícil pensar, mas a coisa não é só produzida para
ser, ela é também produzida por ser algo. Daí, que ninguém pode ser proprietário de nada.
Cuidamos desse algo. Mas a coisa é dona de si. Querermos ser donos dela, conhecê-la em seu
processo de fabricação não é experimentar a verdadeira proximidade, não é tampouco pensar
a coisa em termos do seu modo de ser real. Há um modo de avaliar poético e um modo de
avaliar científico. Este último tem sido considerado o único válido, aquele que corresponde ao
real da coisa. Mas, desse modo, essa avaliação o que faz é nadificar e anular a coisa. Mas
essa, apesar da ciência, mantém o seu vigor. O que é preciso é perceber e receber a doação
própria da coisa.
Viver na latência das coisas é desistir de explicá-las, reunindo e acolhendo as
diferenças de cada uma. Essas diferenças ou o que há de céu, de terra, de mortal e de sagrado
nas coisas existem em reciprocidade, na aproximação do distante, sem violar-lhe, e também
na preservação da distância. Nesse texto, Heidegger marca bem nitidamente a diferença entre
a forma poética e a forma científica de pensar e nos remete a uma história que foi esquecida
tal o estado de subjugo produzido face ao desejo de apropriação das coisas em nossa
civilização. Res-piremos, da coisa retiremos a res-ponsabilidade de “causar” uma outra; res-
pondamos coisa como “caso” de uma outra, como coisas-em-jogo, na lide. Assim, a realitas
da “res” é a vigência do vigente, muito mais abrangente do que sua utilidade, sua produção e
sua representação (cf 2002, p. 150-3).
Pensemos, pois. Deixemo-nos manejar pela vigência mundanizante da coisa. Tornemo-
nos, no rigoroso sentido da palavra, “coisas-em-jogo”.
Ético é deixar que a essência das coisas se torne aparente na lide, através do “tornar-se”
aparente do próprio homem (como coisa que também é), isto é, através de sua história. Tal
modo de ser distancia-se do pragmático na medida que se aproxima da coisa em sua
propriedade. No movimento da pragmática, coisas são metas. Uma carapaça diferente daquela
posta pelo modo científico de objetivação. Neste, a coisa se tem em sua absoluta
inteligibilidade; no pragmático, porém, a coisa se obtem em sua materialidade. Por isso,
pragmatismo não é o mesmo que pensamento coisal. Na abertura para a coisa enquanto
105
fenômeno, movimentação de ser, a coisa se tem em sua linguagem. O modo de ser noite, o
modo de dizer noite. Nesse exercício poético, cumpre-se um saber. Na linguagem liberada
dos liames da gramática, em vista de um articulação mais original de seus elementos, cumpre-
se o com-promisso.
Interpretar a coisa a partir de um sistema, seja científico, seja técnico ou pragmático
que, presunçosamente a queira fundar, nos reduziria ao orgânico no mundo, silenciando o
aórgico, o inesperado realmente fundante. Dentro dessa perspectiva, coisa não é apenas uma
unidade a espera do que digam os nossos sentidos sobre ela; não é só utensílio, nem só
“causa”. Seu elemento é a linguagem que, inclusive, pode ver, na coisa, o sagrado, como
possibilidade de saber a partir do desconhecido, o seu mistério. Nesse modo de ser, se admite
também a implicação política ao colocar o empenho no esvaziamento do poder-querer
dominar as coisas, assim como no se deixar “pegar” por elas. É uma postura radical, demanda
do homem o cultivo de sua instância extática na verdade do ser. Na linguagem, infiltrar-se
pela poesia. Meditativamente, então, esse pensar na raiz, no radical das coisas, requer
desconstrução da postura tradicional que situa a grandeza do homem no fato dele ser o
ordenança das coisas; o assujeitador delas, pronto para dissolvê-las na célebre “objetividade”.
Colocar-se em rede com o Real não exclui nem mesmo a realidade do virtual. Nessa postura
de movimentação pela serenidade, nos colocamos em busca de um processo de
descategorização. Isso é coisificar.
Coisa e ser: Clarice Lispector, em suas obras aqui estudadas, descreve experiências de
convergência, fundantes no sentido de originárias, comunitárias no sentido de percepção da
tensão terra-mundo, infiltrada a sua linguagem pela poesia, no sentido de aceitar no
individual, o des-personalizado e de aceitar na coisa, tanto o individual quanto o universal. O
lugar da reunião, aquele em que a coisa se mostra inteiriça, é corpo, muito além do orgânico,
muito além dos nossos membros biologicamente definidos, mas enquanto toda concretude que
nos é disponível e que habitamos.
Na humildade como modo de fazer, proposta por Clarice Lispector, a coisa se deixa
“pegar”. Para além de sua utilidade: a coisa muda a cada manhã; as conversas conversam
entre si; são frutos que conservam sua relação com o tempo, o lugar, através de suas cores,
texturas, etc. (cf. GRASSI, s.d., p.165, nota). Ou como descreve Lóri:
como se ela fosse um pintor que acabasse de ter saído de uma fase abstracionista,
agora, sem ser figurativista, entrara num realismo novo. Nesse realismo cada coisa
da feira tinha uma importância em si mesma interligada a um conjunto – mas qual
era o conjunto? Cada fruta era insólita, apesar de familiar e sua. A maioria tinha um
exterior que era para ser visto e reconhecido. Às vezes comparava-se às frutas, e
106
desprezando sua aparência externa, ela se comia internamente, cheia de sumo que
era (ALP, p.137-8).
Tudo isso ainda pode parecer pouco e talvez o seja. Pouco também é medir as coisas,
reduzindo nossa relação com elas à medição da desmesura, da massificação. Então, é preciso
se achegar ao pouco. É assim que do mundo se faz coisa, “pequeno nó de simplicidade”
(HEIDEGGER, 2002, p.160). Acostumamo-nos a valorizar a simplicidade, como estilo,
inclusive, produziram-se normas para ela. Da mesma maneira, desprezamos o simplório como
um estúpido, mas parece que não é esse o sentido que Clarice Lispector dá ao personagem de
“A cidade sitiada” – Perseu, “o cidadão”, de acordo com o título do capítulo que o apresenta.
Considerando tudo o que foi dito aqui sobre o pensamento coisal, colocando-me no lugar do
desvio da errância tecnológica de nossa época, leio na seguinte frase um elogio, qual seja: O
cidadão ... “quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava” (CS, p. 65).
107
Capítulo 4
URBANO-HUMANO
Pensar a cidade como obra de arte, com o apoio de Clarice Lispector, nada tem a ver com
imagens ou teorias feitas a partir da vida cultural de cidades monumentais ou animadas por
eventos artísticos. Através da leitura de “A cidade sitiada”, “Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres” e “A maçã no escuro”, só se pode concluir não que viver seja uma arte como
quer o senso comum, mas que fazer arte implica em viver. Sendo assim, o ser humano, para
fazer valer sua “mais premente necessidade” – que é tornar-se ser humano – precisa aterrisar,
com alguma graça e sem possibilidade de fuga, em seu destino de “luta e sofrimento e
perplexidade e alegrias” (ALP, p.31 e 149). Esse encontro com a cidade, em sua dimensão de
obra de arte, fica ainda mais interessante se for possível se valer da companhia de um filósofo
que reverencia a poesia, como é o caso de Heidegger (cf. 2002, p.140-1), e que imediatamente
“tira o tapete” daqueles que esperam vê-lo identificar a autenticidade da cidade – a afirmação
de seu ser, portanto – com a retomada de suas raízes, algo como o lamento pela sua identidade
perdida ou a exaltação a um retorno à atmosfera interativa de uma comunidade à moda antiga.
Sim, é verdade, a cidade está em crise, existe sobretudo uma crise habitacional no âmbito de
toda cidade moderna ou em vias de modernização: estamos na era das mega-pólis. É verdade
que os discursos sobre o problema não vão além da proposição um tanto vaga sobre a
construção de habitações. Mas o comentário do filósofo a respeito defende a busca do habitar
essencial, isto é, o aprender a habitar. Muitos, a partir de tal afirmação, já vão divergir e se
afastar da perspectiva que este trabalho traz, considerando que o óbvio abandono da teoria
crítica aqui, impede qualquer visão construtiva sobre a questão urbana. Talvez para que esses
se animem a ir-se embora ou talvez para aguçar-lhes a curiosidade, acrescenta-se aqui o
inusitado apelo ao desenraizamento, único meio de levar os homens a enfrentarem sua crise
habitacional, sem o peso da miséria.
Tudo começa com a entrada em São Geraldo, subúrbio em vias de desenvolvimento, de
mãos dadas com Lucrécia Neves, protagonista de “A cidade sitiada”. É ela que escolhe a noite
de sábado para aterrisar e que, sem pudor, se dirige a um estranho, a exclamar “que noite!”,
fazendo-o hesitar e hesitando ela própria por conta do carrossel que ilumina o ar em giros e da
queda trêmula das luzes... É um convite ao desenraizamento, ainda que a noite de sábado
permita que a iluminação alterne num mesmo rosto a delicadeza e a monstruosidade; e
109
também que a praça se pasme na postura torta em que tiver sido tocada. Tudo isso, por
enquanto, faz parte apenas de um frio reconhecimento de que a cidade também pode ser
habitada poeticamente pelo homem (cf. CS, p.11-4).
Mas isso está longe de ter o efeito demonstrativo de compatibilidade entre o habitar e o
poético, pista que se seguirá para a descoberta da cidade enquanto lugar habitável. Antes
porém é importante que se repense o próprio termo “habitar”, evidentemente fora do seu
contexto usual que o fixa ao açulamento pelo trabalho, ao revolvimento pela caça de
vantagens e sucesso ou ao enfeitiçamento pelo lazer e descanso organizados. Se se pensar
então no modo como se pensa o termo poético atualmente, o quadro será o da ocupação das
letras, do belo espiritual e a veiculação em publicações ou outros meios comunicacionais.
“Coisa do passado”, “vôo ao irreal”, “fuga para o idílico” também são expressões que
poderiam fazer parte desse posicionamento (cf. HEIDEGGER, 2002, p.165). Por que então,
afinal, se quer correlacionar o habitar do homem à poesia?
Afinal, tomemos uma cidade qualquer. Visualizemos uma rua, cujo calçamento está em
vias de remodelamento, numa tarde em que os aparelhos aperfeiçoados se esquentam ao sol.
O que faz você, transeunte, frente a essas máquinas? Se mostra que não as compreende, está
inteiramente fora, quase isento deste mundo. Mas se as compreende? Se as compreende está
inteiramente dentro, mas perdido. A melhor posição, portanto, talvez seja a de ir embora,
fingindo não as ter visto –, continuando as compras (cf. CS, p.129-30). Isso quer dizer,
enraizamento, através do qual o habitual ganha status de natural.
Agora, o que diz uma observação mais desenraizada, vinda de Lucrécia, em São Geraldo?
Foi ao final do dia, “passando pelas ruas mais leves os homens na luz pareciam vir do
horizonte e não do trabalho” (CS, p.19). Estamos aqui frente a uma visão inabitual, pela qual
se pode ser tomado por um certo espanto frente ao que se vê, contanto, é claro, que não se
duvide dela, e imediatamente a descarte e a desmereça, essa visão fora do padrão. Pois poder
ver dessa maneira é poder se colocar para além de um estado de repressão à espontaneidade
das coisas, que, sob nosso espanto, se apresentarão como muito mais do que meros suportes
das características a elas atribuídas.
Coloquemo-nos, pois, numa época de “brisa e indecisão, num momento de cidade ainda
mal erguida, quando o vento é presságio e o luar horroriza pelo seu sinal...” (CS, p.20).
Ficaremos surpresos de perceber que mesmo as mega-polis podem mostrar “brisa e
indecisão”. A tarefa de pensar o habitar e a poesia em seu vigor essencial não termina nunca.
E a partir do habitar, se pode pensar o que se costuma chamar a existência humana, para além
da representação que encaixa trabalho e cidade; e habitação com posse de domicílio. Mas e o
110
habitar, pergunta Heidegger (cf. 2002, p.166-7), como traço fundamental da presença
humana?
Apoderamento, operacionalização, fazer febril: parece não estar mais no poder do homem
deixar de fazer isso. Paradoxalmente, talvez sua redenção esteja em se entregar ao ativismo,
até o fim, até a exaustão desse sistema. Em “Da redenção” (NIETZSCHE, 2003, p.113),
Zaratustra fala ao aleijado (ansioso pela cura através da retirada de sua corcunda) que, se
assim o fizer, vai extirpar de si próprio o seu espírito. Nossa civilização, como o corcunda, já
está disforme; mas não será o espírito de vingança que nos livrará do peso do sistema
civilizatório no qual toda atividade tem de ser sistematizada; e toda urbanização, planejada,
mesmo quando caótica. Não adianta querer transformar essa orientação, pois a própria
vontade de transformação se tornou escrava dessa lógica. “A vontade”, diz Zaratustra-
Nietzsche (2003, p.114), “não pode querer para trás: não pode aniquilar o tempo, e o desejo
do tempo é sua mais solitária aflição”. Esperar a reconciliação com o tempo também é tarefa
inglória. A redenção, talvez se deva buscá-la pela não-vontade, de modo a exaurir a nossa
deformidade. Mesmo sem alimentar o camelo, uma das três transformações do espírito –
segundo o filósofo-poeta (cf. 2003, p.35) – a nossa realização através do dever ainda resistirá
por muito tempo, mas acabará por se extingüir diante da não-vontade21. Que se cumpra até o
fim o destino histórico. Só assim, sem rechaçar o erro 22, pode-se fazer dele uma descoberta. E,
à vontade no erro, pode-se chegar, como Lucrécia, “a encontrar a outra face dos objetos e
tocar-lhes o lado empoeirado” (CS, p.103).
Só assim, começa-se a a trilhar um caminho que, contrariamente à tradição greco-cristã,
agradece o erro; não quer o acerto da racionalidade estrita e nem considera o humanismo
erigido sob essa égide como tradução da humanidade. Não se empenhar em afirmar essa
humanidade, eis um caminho. Caminho que, da mesma maneira, busca imagens concretas
para falar de coisas abstratas. Coisas concretas estão mais próximas ainda do ser humano do
que sensações e sentimentos que, por sua vez, estão mais abertos ao ser do que toda razão.
Não se sente nada abstratamente; daí, essa nossa escolha de errar entre as coisas da cidade de
São Geraldo, levados pela mão de Lucrécia Neves. Mas é apenas isso? Qual a diferença então
entre nós e o louco vagabundo, ou o cego niilista que, como o louco, não vê o movimento da
verdade se fazer e o da realidade precisar ser essa verdade? Errar entre as coisas não pode
21
Interpreta-se aqui a terceira transformação apresentada pelo mesmo texto (a da criança), e descrita como a da
inocência e do esquecimento, como “não-vontade”, apesar de Nietszche apontar a essa como uma “santa
afirmação”, na qual o “espírito quer agora a sua vontade” (cf. 2003, p.36).
22 “Erro” aqui não tem o mesmo sentido da errância como modo de ser totalizante da nossa era tecnológica;
identifica-se com a “corcunda”, com o que é “gauche” em nós e que às vezes insistimos em endireitar.
111
dispensar o movimento do fazer; isso seria deixar de ser. Dispensar o movimento do fazer é
deixar de jogar o jogo de fazer visível a verdade, concebida como desvelamento e como
história do ser humano, permanentemente por se fazer.
Esse entrelaçamento entre o racional e o não-racional; entre o concreto e o abstrato; entre
o movimento e a verdade concorrem talvez para que se aceite sem desatino a alma do mundo.
Lóri, de “Uma aprendizagem...”, inscreve nessa engrenagem a alma humana como dotadora
de sentido ante o mundo esvaziado, obscurecido e esterilizado (cf. ALP, p. 157). “Por meia
fração de segundo”, pode-se desmanchar em nada. Tal o nosso frágil equilíbrio.
Não é à toa que as pessoas sentem medo da cidade nascente. Lucrécia Neves relata que em
São Geraldo, as moças formaram uma Associação na tentativa de direcionarem o progresso
para o bem:
O medo e a contra-medusa
Esse medo – refletido na necessidade de controlar o movimento urbano – constantemente
as impelia à experiência de fracasso no trato com as coisas, com as pessoas e na sua atitude
diante das paixões, por permanecerem elas sob a compulsão do regulamento, da lei e da
obrigação que não se pode cumprir.
Descartados estão, desse modo, também “os projetos de pureza e amor à alma” (CS, p.21).
Significa então que não nos devemos forçar à obrigação que produza um processo de busca e
à qual possamos chamar espírito? Não é essa tentativa perene que nos distingüe da vida
puramente orgânica? Talvez, seguindo o caminho dos entrelaçamentos possíveis, tenhamos
que conjugar nossa fala a um algo que não somos nós. Sim, pois por que deveríamos insistir
em saídas de euforia desenfreada ou de tristeza desperdiçadora de tempo? Diante do ocaso, da
falta de liberdade exterior, a única possibilidade de reexperimentar a liberdade é estar
indiferente à proximidade da morte, deixando que um algo fale através de nós. Só assim
consolida-se o destino individual. A vida interior acontece quando dá forma à realidade. Que
não é boa, nem má. O certo às vezes é deixarmos a noite escurecer, o silêncio silenciar, o
pleno ser o vazio.
Com Lucrécia foi assim: “A realidade precisava da mocinha para ter uma forma.” E sua
única vida interior se constituía “do-que-se-vê”; “e o que se via tornou-se a sua vaga história”.
112
Foi assim que a dificuldade deixou de ser o seu único instrumento; até alcançar a extrema
docilidade da visão (cf.CS, p.23). Aliás, se debruçar e adivinhar, através do crepúsculo, o
subúrbio lá embaixo estendido, foi pensar o subúrbio, mas de um pensamento que nunca se
pode pensar. Com Lucrécia, o que não se sabia pensar, se via! (cf. CS, p.24 e 105). Significa
então que não nos devemos forçar à obrigação que produza um processo de busca e à qual
possamos chamar espírito? Nem obrigação moral, nem intelectual. Mas um processo a que se
possa chamar espírito, sim, ainda que não se possa identificá-lo com algo que se assemelhe à
inteligência ou elevação. Capacidade de ver é o quanto basta, pois as coisas são para o homem
quando já são.
Assim também pensa Heidegger (1978, p.75), quando diz que:
os sentimentos começarem enfim a se mostrar. Que fazer quando a criação do mundo, com a
nossa vontade, furtivamente toma conta da terra? O que é que um homem faz então? Essa
pergunta também se fez Martim, em “A maçã no escuro”, quando lhe “chegara o duro tempo
da explicação” (ME, p.95). Também para ele, ainda que de modo diferente ao de Lucrécia, a
arte se manifestou. Entenda-se aqui, “arte” no sentido amplo, de busca de um saber originário,
que possibilita a superação das limitações da época, que é aberto pela techné, termo que na
tradição japonesa recebeu o nome dô, caminho para o auto-aperfeiçoamento pela
aprendizagem de uma arte específica. No caso de Martim, foi “à custa de um controle de arte”
que ele “se apegou a uma verdade apenas” (ME, p.101). Seu caminho de auto-
aperfeiçoamento o levou à compreensão da verdade singular das coisas, o que pode gerar mais
um motivo de estranheza, pois nos acostumamos a buscar a direção da universalização, da
verdade abstrata e polivalente. Mas essa arte em muito se aproxima daquela desenvolvida por
Lucrécia, a arte de ver. Com olhos de contra-Medusa, ela permitia a livre movimentação e ao
mesmo tempo o emolduramento de cada coisa como obra, ou seja, desvelando a sua verdade,
a essência do seu ser.
Normalmente, vemos as coisas como matéria e forma, interpretando-as como
instrumentos cuja forma e matéria se dão em função da sua utilidade. Mas quando deu o
exemplo dos sapatos da camponesa no quadro de Van Gogh, em “A origem da obra de arte”,
Heidegger (cf. 1977, p.25-7) observou bem que a utilidade dos sapatos dependia de um outro
item por ele chamado “solidez”. Então, se quisermos chegar a nos aproximar do ser das
coisas, ou do que é essencial nos sapatos, por exemplo, não basta descrevê-los, nem relatar o
processo de sua fabricação, nem mesmo mostrar o modo como são utilizados aqui ou ali,
basta, nesse caso, nos colocarmos diante do quadro de Van Gogh. Aproximando-nos da obra,
nos colocaremos num lugar “que habitualmente não é aquele que costumamos estar”. Não se
trata de importar subjetividade aos sapatos. Trata-se de deixar que a obra nos desvele o ser
dos sapatos. Pois, na obra está em obra um acontecer da verdade, e então conseguimos ver
concretamente aquela “solidez” para além da utilidade dos sapatos. É apenas isso, com a
diferença de que nesse pensamento acerca da obra de arte, essa passa a ter a ver com Verdade
e não simplesmente com Beleza, como se costuma pensar, ainda que a imagem de uma
“pequena igreja cuja arquitetura modesta se erguera no antigo silêncio” (CS, p.17), encontrada
na S. Geraldo de Lucrécia, seja certamente bela.
114
O obrar da obra
Mas além de bela, ela nos abre para o antigo silêncio como terra que pode fazer crescer
uma pequena igreja. Sem ele, essa igreja é apenas um monumento. Com ele, pode ser lugar
de oração mesmo que o prédio caia. Esse silêncio é concreto em sua poesia e é ele que
sustenta o “habitar” dessa igreja. É talvez no poético que se sustenta o habitar dos lugares da
cidade. E é esse poético que dá às coisas o seu caráter de obra a ser vista. Mas para vê-las
assim é preciso ser também uma coisa a se obrar, buscando pela aproximação da verdade de
uma outra coisa a sua potenciação como ente-que-vê-com-arte. Por isso, Lucrécia mantinha-se
atenta aos movimentos dos cavalos em S. Geraldo, e por isso abandonou a cidade no
momento em que os cavalos dela foram banidos. Enquanto isso não acontecia, os cavalos
foram uma espécie de guias para que a moça visse a cidade como eles. Com a cabeça a
dominar o subúrbio, lançando o longo relincho, a adivinhar os cascos secos avançando até
estacarem no ponto mais alto da colina, mesmo com medo, “nas trevas do quarto, o terror de
um rei, a mocinha queria responder com as gengivas à mostra”. Assim:
A tarefa de ver requer grandeza de alma: a entrega necessária para fazer transcender a
cidade e, no movimento para além da sua época, fazê-la obra de arte. Ou seja: não é
explodindo-a, fazendo-a se dissipar em redundância, como um poeta que perfuma flores e
poetiza poesia. É preciso ter domínio das forças; pode parecer loucura “ver as coisas como um
cavalo”; para isso é necessário conhecer a contenção, saber domar a explosão e ignorar a
tentação da dissipação. Ser o lugar desse olhar exige trabalho. Lucrécia fez também coisa ao
obrá-la com seu olhar. Quanto mais trabalhado é esse olhar, mais a coisa acontece como obra,
onde “mais” tem o sentido de intensidade e secundariamente de quantidade. Assim, a poesia
se deixa habitar. Um artista lança, como uma árvore, suas raízes no escuro da terra, orientando
e haurindo a seiva; e deixa passar, pelo tronco até a folhagem, a obra de arte. Arte que é
aquiescência da beleza como o brilho do escuro.
Na cidade, obra de arte pode ser um rapaz maravilhado e vazio que inesperadamente abre
“as grandes asas num bocejo de juventude” (CS, p.34). O encantamento e a profunda
(ir)realidade dessa imagem são também construção, trabalho. À espera de poesia estão as lajes
quase reveladas de uma cidade. À espera de um olhar que as veja, as construa. Mas dá
trabalho olhar com olhos que vêem. Um tipo de esforço que se dá com gratidão; um tipo de
115
jogo que se joga sem o suor da exaustão; que não é trabalho intelectual como se poderia
pensar: é uma “arte antiga de corpo” que se inicia tateando na ignorância, até que se parece
encontrar “a simples sutileza do corpo, transformado afinal na coisa que age” (CS, p.79).
O amar concreto
Aqueles que preferem se manter na ignorância e nem mesmo iniciar o processo de tatear
não conseguem perceber que ver é agir, e que construir uma obra empenha “habilidade,
serventia e sentido de ação”. Como diz Carneiro Leão (1991, p.156-7), “a toda ação pertence
uma obra”. Obra e ação não se separam (muitos são poetas sem o saber), de modo que a obra
acontece como presença provocante e a ação como fruto de um empenho, isto é, de um
sentido. Seria possível então dizer que o amor é uma ação e a cidade, obra sua? (Mas, atenção,
sem que isso queira dizer que o amor esteja dirigindo diretamente à cidade.) Tal pergunta é
motivada por uma outra formulada por Lucrécia: “... Estava dito sem explicações que também
ela uma vez amasse com brutalidade, talvez para elevar esta cidade com mais uma pedra?”
(CS, p.139). A correlação entre amar alguém ou algo com intensidade e construir
concretamente uma cidade perfila-se com o ver poeticamente a cidade e assim torná-la mais
habitável.
Tais atitudes indicam a existência do espírito da arte ou da vontade de arte, traduzidos
como ser-o-poeta-de-nossa-vida e, em primeiro lugar, do menor e do mais cotidiano. Vontade
de arte é exercício de liberdade; a obra de arte é marco civilizatório, mas também expressão
de uma necessidade, tão autêntica e natural, quanto humana é a civilização. Do fundo do
inferno, sobe o amor, diria Clarice Lispector. Romper a correlação entre “produtos” e
“produtores” gera um inferno sem amor. Mas, como “as pessoas são tão exigentes”, esperam
que os “produtos” sejam imaculados e as obras de arte mais ainda, totalmente alheias aos
dejetos que a natureza nos impõe. Então, “elas comem o pão e têm nojo dos que pegaram na
massa crua, e devoram a carne mas não convidam o açougueiro; as pessoas pedem que se lhes
esconda o processo” (ME, p.241).
Ora, “obra” não é “produto” simplesmente; cada coisa é também o seu processo de
construção. Além do mais, (para complicar) “obra não se restringe ao âmbito da ação
humana”. Como diz Carneiro Leão (1991, p.156-7), obra “pertence à dinâmica de toda a
realidade”. Ou seja:
sempre que na realização de qualquer coisa eclode e surge algo que não estava
presente nem em vigor, há e se dá obra. Quando se diz que uma coisa está em obra,
116
Deste modo se compunha uma visão. A moça não tinha imaginação, mas uma
atenta realidade das coisas que a tornava quase sonâmbula. (CS, p.44)
Assim também, Martim procurava aprender dessas línguas, tão pouco escutadas que
acabam restritas ao descampado do sonho. Por isso, Martim faz sonho, que é o mesmo que
construir obra. E o único modo como a verdade podia vir a ele e como ele podia vivê-la (cf.
ME, p.107). Uma obra de arte é uma obra do espírito mas não por isso é um objeto já patente
em nós. Mesmo a obra feita em estado de sonho não é a transposição de uma elocubração
mental do homem ou uma representação. Da coisa se manifesta algo original em impulso para
a obra. E, através desse processo, temos esclarecimento de nós mesmos. Ou seja: no acontecer
de uma obra, não há eu, não há produto, mas há implicação de um movimento em que estão
eu e produto. O autor é obra da obra, assim como a obra é obra da Verdade, que se faz na
117
tensão com a não-verdade. E a vida tem algo de romance, de drama; tem enredo e tessitura.
Doamos nosso corpo à obra, que se faz apenas através dessa materialidade. Nós, ei-nos nessa
abertura, para sermos vistos, assim como se vê a cidade. Nós, na cidade, uma obra, a
realidade. “E sem sentir a moça tomou a forma que o homem percebera nela” (CS, p.50). As
relações são de reciprocidade entre o visto e o vidente; a origem do artista é a obra, e vice-
versa. Há, no entanto, um terceiro na arte: a essência que se encontra na obra. Um paralelo é
possível com a tripla concepção do tempo, em que convivem chronos, aión e kairós. A
dimensão do “sem tempo” é necessária para que o tempo não passe a controlar tudo; a vida
retoma a singularidade de cada instante em aión, um terceiro essencial. A Arte como terceiro
essencial que se encontra na obra é o que sustenta o seu dizer pelo que ela não disse. O artista,
o vidente, se entrega como acesso para o surgimento da obra, e a si próprio se esvazia na
criação.
Cidadão-artista
Quando a praça estava nua e irreconhecível ao luar – quando a moça se fez acesso para
essa visão, ela própria não se reconheceu (CS, p.13). Por isso, em diálogo com Heidegger
(1977), para encontrar a origem da obra de arte, ou seja, para encontrar o modo como se dá a
transformação da matéria urbana em obra de arte, é preciso levar em conta a atividade do
cidadão-artista. (Notem que essa terminologia foi aqui colocada em substituição ao termo
“artista” tão-somente para que não se estabeleça uma mistificação do artista, como alguém
isolado das coisas da cidade.) Estamos falando de um habitante da cidade como possível
artista. De um habitante compreendido no processo de criação da cidade, em seu aparecer de
praça nua irreconhecível ao luar. O processo de criação reside na possibilidade de ver essa
praça. Artista é aquele a quem ela assim se mostra. Dessa maneira, a praça deixa de estar
absorvida em sua utilidade, ela vem a ser a praça além da praça. Uma obra de arte aberta.
Então qualquer canto, rua, calçada, esquina, muro, tudo o que “tomba sobre a cidade”
(diferente dos monumentos tombados, que podem ser tão belos como obras de arte
mumificadas) se materializa em coisa; é incomparável; é manifestação em movimento. No
limiar da noite, na praça nua, na tarde, aos sábados, na praça do Mercado, no calçamento sob
os cascos dos cavalos, todo aparecer é uma aparição. Nesse novo universo, a uma distância de
abismo, um parafuso no chão é uma aparição (CS, p.51 e 56).
Ver a cidade acontecer como obra de arte é, como já foi dito, poder novamente fundar a
cidade, descobrindo a convergência de sua realidade e sua verdade à medida em que urbano e
humano se fazem visíveis. Nessa dinâmica de realização do real, a cidade pode aproximar-se
118
de seu destino, do seu obrar original; pode ser uma cidade e não uma sucessão de muros; pode
fazer-se, nesse acontecer; e pode auto-superar-se. Auto-superação aqui, porém, não implica
progresso, nem o movimento em direção ao mais, mais e mais. Auto-superação vai no sentido
do despojar-se da cobiça e da insaciedade, e também do descobrir-se no menos do que deveria
ser. Essa descoberta equivale à experiência da alegria no pouco, à abertura da obra em que o
Eu também se funda novamente, se refaz como hora e lugar do real e não como proprietário e
mandatário do real.
Na sucessão de muros da cidade, Lucrécia estava dentro. É a cidade limitada, sitiada por
seus múltiplos quereres, por cobiça de crescer em que os entes isolados não se fazem ver. A
abertura que nos mostra Lucrécia não se encontra em novas construções dentro da cidade,
nem em novos projetos, mas na sua aventura de ver aqueles entes solitários; de colocar-se em
sinergia com o movimento e o estado desses entes e, assim, sitiar a cidade no que é próprio e
autêntico dela, como uma imensa coisa, que sinergicamente ressoa um silêncio invasor a lhe
entrar pelas brechas dos muros. A cidade está cercada de silêncio e Lucrécia gostaria de estar
do lado de fora dos muros. Assim talvez pudesse criá-los como obra de arte. Ainda no começo
da narrativa, os habitantes de São Geraldo aglomeram-se em torno de uma fogueira em uma
festividade do subúrbio. Com esforço, Lucrécia se vê fora da roda formada pela pequena
multidão e a observa de longe. Sitiar a cidade como obra de arte é impossível, quer dizer, uma
fogueira se apaga, habitantes se dispersam, Lucrécia vê que continua dentro dos muros (CS, p.
73).
O querer não se aplica, nem decide de antemão o saber. Obra de arte se cria sem querer.
Não adianta decidir e querer sitiar a cidade em sua autenticidade. Estranhamente, é sempre a
partir do ente aprisionado e não fora dos muros que o acontecimento se dá. O único querer
possível é decidir ir além de si mesmo, significa dizer deixar de ser Eu: o único querer que
pode permanecer como saber. Nesse deixar de querer afirmar a sua vontade e sua
subjetividade, conquista-se uma dimensão outra do humano: a não feita, a criativa. Tal o
processo originário da arte; processo da linguagem, sem dúvida, pois “na linguagem, o
homem recebe e assume a exigência de adentrar na essência do que seja poesia e habitar”
(HEIDEGGER, 2002, p.168). Mas é preciso estar atento: é comum que os autodenominados
artistas passem a se comportar como os soberanos da linguagem ou ainda, por terem
descoberto uma tática de produzir arte, decaiam numa estranha mania de produção.
Linguagem aqui vai muito além da expressão; é um apelo do essencial da coisa, uma abertura
para a verdade da coisa. Não é a técnica, nem o desejo de querer controlar a linguagem
119
artística que nos possibilitará acolher o inesperado. Nesse ponto, o pensamento de Heidegger
sobre o poético nos parece oportuno. Ele diz:
Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para
acolher o inesperado é o seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao
parecer daquele que o escuta com dedicação, e maior a distância que separa o seu
dizer da simples proposição, esta sobre a qual tanto se debate, seja no tocante à sua
adequação ou à sua inadequação. (idem)
Assim, é por amor à cidade como coisa, sem que se tente adequá-la a uma verdade pré-
estabelecida que a poesia se cria. Um amor incondicional, embora falível, errático às vezes.
Sobretudo quando o que se vê é por demais incompreensível ou quando se apresenta a
oportunidade, como diz Lóri em “Uma aprendizagem”, com o-que-não-é-substituível. É então
que querer assumir uma atitude de naturalidade soa falso. Certamente (e esse é ainda o
pensamento de Lóri), naturalmente nos encontraremos com a verdade das coisas, mas o
processo de aproximação natural pode ser muito longo e só depois de um tempo ilimitado
então, “certas palavras terminarem por serem ditas”. Para quem tem o tempo de uma vida
apenas, é preciso condensar-se à custa de arte. E mesmo à custa de certos truques (cf. ME,
p.118). Ah! Mas eis que aqui se apresenta uma contradição. Não dissemos há pouco que a
técnica, o desejo de controle da linguagem artística nos afasta da coisa e sua verdade? Sim,
talvez o homem só tenha condição de fazer poesia a partir de sua decadência, de seu ridículo,
de sua fraqueza. Fazer um truque realmente parece uma bobagem, o artificialismo dos gestos
teatrais parecem ridículos. Mas um ator que parece ator faz-se verdade. Um ator que se quer
poderoso e esconde seus truques, se fazendo cópia da realidade – como se essa fosse uma
armadura para salvaguardar sua figura do ridículo – esse não faz arte. Apenas engendra
tecnicamente uma representação da realidade.
Sem engenharia artística, a moça na cidade pode teatralizar gestos a fim de percorrer mais
rápido as suas ruas. Lucrécia assim o fez:
que tinha de se despedir do namorado e ir embora para casa. Um gesto gratuito, um se perder
nas ruas escuras, a solidão das ruas escuras. O que emergiu desse gesto ridículo foi o
abandono da cidade noturna. E para aquelas ruas escuras, fora do campo de visão de Lucrécia,
ela inaugurou um sentido.
Outras vezes, não são palmas que se espalham, mas o espírito é vento, vento quebrado
pelos sobrados das ruas, vento que prenuncia “portas bruscamente espalancadas” (CS, p.70).
O habitante da cidade, em geral, parece que a habita sem a menor poesia. Esquece-se de
“construir” o vento, de habitar o vento tanto quanto a sua casa edificada sob o céu. Mas, ainda
assim, os sobrados “quebram” o vento e o homem permanece capaz de ouvi-lo
(HEIDEGGER, 2002, p.178-9).
Sobrados, bibelôs, estátuas, jarros com uma única flor. Este era o subúrbio, descobre
Lucrécia. “Lá estava a cidade. Suas possibilidades aterrorizavam.” Há tantas medidas
possíveis do céu mesmo na cidade, mas os homens se ocupam por demais na construção de
muros, geometricamente calculados. Um dia, a vida, mesmo decrépita, acaba por encontrar
uma brecha (CS, p.71 e 73). Um dia, o coração acaba por se voltar para a cidade por essa
medida da poesia. Essa é a força de superação, quando acabamos por pensar o vento,
desabrochando como uma flor urbana entre os sobrados. Isso é saber a cidade do ponto de
vista da arte. É ver, como Lucrécia, tão “anonimamente que o jogo poderia ser permutado sem
prejuízo, e ser ela a coisa vista pelos objetos” (CS, p.105); ela tocada pelo vento, imitando seu
processo com o gesto teatral das palmas, deixando que a verdade do vento apresente para ela a
dinâmica do acontecer do real.
O florescer da história
A diferença entre arte e natureza pode ser assim superada: o vento – ente natural – obra de
arte – passa a não obedecer a nenhum prévio plano, a não ter finalidade; reconquista sua
autonomia, o que é próprio dele. O vento faz-se presente, e aí está sua força e beleza. Na
origem da obra de arte, a luta é evidenciada pela diferença que se faz identidade. Arte e
natureza. Mas o poeta, se “procurar” essa inspiração, situa-se fora do âmbito da graça, do
mesmo modo que, para a superação da metafísica da diferença entre sensível e inteligível, é
preciso deixar que essa “trans-passe”, ainda que não na indiferença, mas pela sinergia com a
obra. Lucrécia vê e ela sempre será a que viu o vento sendo quebrado pelos sobrados, a praça
nua ao luar, as ruas na escuridão, re-unindo beleza, inutilidade e gratuidade separadas na vida
cotidiana pelo homem humanista, subjetivo e objetivante.
121
Eis o mistério de uma flor intocável: a veemência jubilante. Que rude arte. (CS,
p.79)
A coisa é simples não-nada. A flor aí está e esse seu puro estar, ao mesmo tempo que a faz
manifestação de materialidade traz uma intocabilidade; rescende seu mistério de ser flor, para
além de seu valor estético (que isso é uma finalidade que o homem lhe impôs: ser
esteticamente agradável). Ser uma flor rudemente indiferente ao valor que a humanidade
possa lhe dar: essa veemência é que provoca júbilo. Então, diante dessa flor, nada acontece? E
como essa falta pode provocar experiência? Precisamente por não se dar como falta,
precisamente por não provocar a ânsia de chegar ao fundo, pois uma flor vista assim pode ser
como as coisas às duas horas da tarde parecem feitas, ou seja, totalmente à flor da pele,
totalmente visíveis em sua superfície. E é possível olhá-las com calma, deixando-se tomar
pela qualidade do que se vê (cf. CS, p.98).
A flor, as coisas às duas horas da tarde, vistas com esse modo calmo têm a liberdade para
o puro estar em si mesmas, “retirando-se dela todas as relações com aquilo que é outro que
não ela”. É uma doce sensação de autonomia de nascer por si mesma e de não poder ser
explicada por algo externo. Liberadas de ser objetos funcionais e da manipulação que
acontece mesmo no mundo da arte seja pelo público, pelas autoridades, pelos críticos, pelos
comerciantes ou pelos historiadores, as obras vêm ainda ao nosso encontro? Quando uma obra
atinge cotação no mercado, quando uma flor adquire valor estético se esvanece o seu estar em
si. Daí a a tarefa do habitante: tornar “de novo visível o acontecimento da verdade da obra”.
Em “A origem da obra de arte”, Heidegger (2002) expõe o mundo que se inaugura quando se
122
abrem as relações (já que a coisa, em seu puro estar em si, pode inaugurar vias inusitadas,
capazes de fazer com que o ser humano ganhe seu destino). Todas essas descrições de flor, de
luar, não podem ser relegadas a um mundo simplório. Aí se encontra justamente a
simplicidade como decisão essencial de nossa história, em detrimento de outras possibilidades
mais cobiçosas. Qual o destino para o ser humano afinal? Que mundo se instala quando se
cria uma obra?
História pode ser vista de modos diversos mas ...
... a melhor maneira de não errar talvez seja apenas enumerar os passos da moça e
vê-la agindo assim como apenas se diria: cidade. (CS, p.100)
O habitar poético é o habitar “esta terra”. Poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre
a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. Poesia traz o homem para a terra.
(HEIDEGGER, 2002, p.169)
E faz com que ele aproveite tanto, mesmo de uma cidade deserta, como Lucrécia Neves,
“e sem tirar uma migalha para si mesma”. Quer dizer: sem tentar reformar, transformar, só
123
olhar e, entre as ruínas, encontrar pequenas preciosidades como uma lagartixa fugindo e
levantando poeira! (CS, p.104) Não se pode querer que a cidade seja diferente dela mesma,
não se pode cindir a coisa do processo dela ser. Daí que a lagartixa pode ser uma pequena
preciosidade, na medida em que naquela experiência se presencia a inteireza da coisa como
sua ação. Lagartixa, poeira, assim como moça, brinco; homem, navio; ou velha e chuva. A
cada situação, uma experiência de inteireza, de puro estar aí. Toda obra é essencialmente
produtora. Por isso é tão rica a descrição da estruturação da obra. É que então evidencia-se
uma via, caminho de transcendência, em que a obra evidencia sua origem, não como passado,
mas como possibilidade. É assim com o mármore que “dita” sua obra ao escultor. Na obra,
ressai o mármore.
Qualquer pessoa do povo pode apreciar a beleza de um material trabalhado e construído
como obra. Quando esse processo se evidencia, o dizer do povo também se apura. Arte e
pensamento andam juntos: deixam ver o próprio deixar ver da natureza. “Toda obra criadora é
um lugar privilegiado onde transparece a força de origem, o processo de aparição e realização
do real” (SANTORO, 1994, p.98). Daí que ver na cidade a realização do real, desvelando
obras ocultas pelo achatamento do cotidiano, possibilita que as forças originalmente efetivas
do lugar se atualizem. Nada disso se faz sem combate, porém. O mundo das coisas confronta-
se com o oculto da terra e procura trazer a obra para a luz. Por isso, a obra encontra-se em
mobilidade, mas quando a mobilidade supera a quietação, não deixando que o obscuro da
coisa se manifeste, ou seja, sua quietude, seu silêncio, a obra deixa de acontecer. Impossível
pré-estabelecer valor para as coisas (“vento é bom”, “escuridão é triste”, etc.); a afirmação
antecipativa impede que aconteça o real e sua manifestação em realidades singulares. A
verdade acontece, porém, para além da coisa (já que ela se supera), apesar de não longe dela.
A partir dela, acontece algo diferente dela própria.
É preciso que o combate se estabeleça, e que o oculto e o revelado se sustentem num
horizonte que se abre. São modos de sustentar um horizonte que se abre: deixar que a
verdade se manifeste; realizar um ato fundador; aproximar-se de uma coisa catalizadora
(Heidegger a chamaria de o “mais ente entre os entes”; enquanto Lucrécia é atraída pela
verdade catalizada em um cavalo; um poste; um homem que joga lixo numa lata do quintal
dos fundos; um jarro com flor...); o sacrificar-se; ou o perguntar do pensar (a partir do ser-
digno de pergunta). Dito assim parece muito intelectualizado, mas verdade não acontece no
âmbito do racional, ainda que o envolva. Não é possível controlá-la. Não foi Lucrécia que
escolheu o jarro com flor. A flor a atraiu. Por isso, ver é o que é possível fazer para abrir-se ao
124
acontecimento da obra, cuja verdade ainda não foi desocultada. Ver a realização do real. Isso
é produção suficiente. O mundo emergirá; a verdade se manifestará. Abre-te obra!
Uma observação final: quando se diz que na cidade as coisas são obras de arte não se
excluem as pessoas. Elas são também coisas e isso não as diminui, isso as eleva à verdade do
seu ser, na medida justa do que elas são – corpos que se degradam, que abrigam os espíritos
da terra, que têm relação com o infinito e que transcendem, indo além de sua singularidade,
sem contudo abandoná-la ou justamente por a habitarem, enquanto único lugar que nos é
próprio. Escrevo coisas assim e penso nas sobrancelhas a se franzirem enquanto o olhar se
fixa em notícias de violência e miséria urbana, enquanto as mãos desdobram notícias como
estas. “Séria é a matança, a fome. Quanto a isso, o que pode a poesia?” Realmente, nada. Isso
é muito duro admitir: pensar na cidade como obra de arte é brincadeira sim. Jogo que ainda
não se entrega, ainda não inteiramente, como jogo verdadeiramente jogado, por se colocar
fora e alheio às coisas ao redor enquanto justifica sua pertinência. Poesia é se colocar em
questão tanto quanto qualquer coisa, se colocar em relação de co-pertinência, mas isso mal
conseguimos avaliar. Nos contentar com a possibilidade de olhar e ver as coisas com as quais,
nas quais e as quais habitamos parece pouco, mas se tivermos a humildade de perceber que –
apesar de estarmos em atividade intensa, de às vezes sermos altamente sofisticados em nossas
análises – sermos cegos a maior parte do tempo, poderemos finalmente dizer que poesia é
abraçar as coisas em sua verdade. E que isso, dentro da cidade, poderia desmontar o esquema
de abandono no qual a humanidade se envolveu tão profundamente. Para isso é preciso do
saber poético muito além do deleite estético, ou do desejo subjetivo.
Estava numa plataforma terrestre de onde por átimos de segundos parecia ver a
super-realidade do que é verdadeiramente real. (ALP, p.27)
Nessa plataforma terrestre, vi a flor azul de Trakl, tomada de empréstimo de Novalis 23.
São todos alemães e românticos. São todos profundos e inúteis. A flor azul, no entanto,
23 Aqui se faz menção ao poeta Georg Trakl, com quem Heidegger dialoga em seu ensaio sobre “A linguagem
na poesia” (2004), que em vários de seus poemas menciona o azul, e que principalmente em “Calma e silêncio”,
no livro de poesia De profundis (trad. Cláudia Cavalcanti), apresenta o “observador”, como “santidade de flores
azuis” (1994, p.53). Na cultura alemã, parece que, do simbolismo da flor azul, desdobra-se a atitude romântica
apresentada por Novalis em seu romance de formação Henri d’Ofterdingen (trad. francesa de Albert Camus, em
edição presumivelmente de 1942), onde se lê “... mas é a Flor azul que morro de vontade de descobrir!” (s/d,
p.67, trad. nossa), como lema que dá início ao processo de aprendizagem do seu personagem-poeta-idealista.
Para Trakl, mesmo sendo ele uma contundente testemunha da decadência do anjo, ainda murmura “azul no
fundo da rocha” (cf. o poema “O nascimento”, 1994, p.55).
125
permancecia ali, na plataforma, e era ela o trem que deveria me tomar e me levar à super-
realidade do que é verdadeiramente real. Estava tão cansada que nem pensei em colocar
sapatos ou ajustar o cinto, nem quis compor uma ode de despedida pois o único que sabia
fazer naquele momento era sentir o aroma da flor azul e me deixar levar para algum lugar.
Algum. Algo de um e já estaria bem. Minha visão estava turva de letras e de números e de
prazos e de tentativas frustradas de dominar e calcular. A super-realidade do que é
verdadeiramente real me esperava (o algo de um espera a gente). E lá fui eu deixando para
trás um espaço que o mestre Heidegger procurou mostrar em tantos trabalhos seus, em tantas
conferências. Me abundavam dizeres seus e era impossível não repeti-los como orações para a
salvação de um destino submerso em cálculos galileucos e newtonianos. Deixar-me ir, deixar
para trás o uniforme, as zonas equivalentes. Onde está o espaço prometido, a terra convertida
nesse trilhar urbano, ainda promessa bíblica? Um homem desperta, eu vejo. Ele treme
angustiado. Que espaço é esse, todo igual, todo opaco, no virar das esquinas e no atravessar e
no aguardar sinais? Existiria mesmo esse famoso habitar que move as multidões até aqui,
espaço urbano?
Escolho ainda um mambembe espaço poético. Que ele matize o afeto que se encolhia
antes de tomar o trem na plataforma onde encontrei a flor azul. A tristeza de não conseguir
tocar a cidade e de não ser tocada por ela, de estar vago, vacante, vazio sucumbiu ao desejo da
poesia que me traz uma inusitada intimidade com o mundo. Intimidade que me faz perder o
medo de pisar a cauda do tigre, na esperança que ele compreenda esse lugar aqui desdobrado,
aumentado, dito e assim cada vez mais existente. Avisto uma casa pequenina. Sou o povo de
Clarice que por um momento pareceu ouvir o espaço. Ah! Vejo um anjo com um estandarte
na mão que estremece e de súbito some, pois o espocar de badaladas que anunciam
movimentos bruscos e gritos no carrossel, faz o anjo que era só quietude obrigar-se a agir, a
proceder uma procissão, a ocupar um espaço inaudível.
Estou cansada, talvez como Lucrécia que sabe que suas maneiras são suburbanas e,
raivosa, ouve insultos à cidade que era ela. Foi aquele soldado Felipe, um guapo e
autoconfiante soldado por quem Lucrécia se atraiu (ela também amava uniformes). Mas o
prazer em insultá-la “bem na sua cidade” (CS, p.59), isso já havia se tornado cansativo. Sabia
que aquele subúrbio mambembe (e não “imundo” como queria Felipe) estava longe de ser o
lugar que a sua mãe adorava descrever (as mães são as donas de paraísos?). Sabia que estava
longe ainda de dizer “casa” para “casa”, como ela queria (cf.CS, p.65). Estava em plena
construção, como este texto, como a cidade de S.Geraldo. E não me furtaria de construir
126
(guiada pela flor azul na plataforma terrestre), ainda com a esperança de chegar a habitar algo
de um lugar.
Percebo, no entanto, que, enquanto construo esse habitar, o lugar se desmorona
rapidamente em prédios, assim como nas fábricas de S.Geraldo o subúrbio se erguia em vida
própria. Sou muito mais olhada do que olho. As janelas são muitas. Os buracos desse lugar
também foram feitos por mim, vacante e vaga, em um texto repetitivo como as ruas de uma
cidade. Ah! Um salto, uma quebra desse sonho de progresso, de páginas e páginas, de tese
pesada, calculada, trabalho de tantos anos que ao final precisa ser desfeito (cf.CS, p.16 e 144).
É possível reconhecer nessa cidade, as marcas da minha construção? O prédio que habito
foi construído por mim. Reencarno agora um operário que mexe no cimento e arma um local
de morar. Ele se foi. Uma legião de moradores e famílias vieram e se foram, e morreram, e
algo de uns permaneceu. Há algo desse um de todos nessa construção que ainda se faz. Nessa
habitação que se insere no texto como a dizer: existo. Talvez ao sair na rua, também possa
ouvir esse apelo de existir. Por sob as camadas de asfalto exala-se um forte odor de desafio. A
terra prometida está bem aqui, talvez ouça por debaixo das camadas de asfalto, se você tiver a
coragem de meter suas unhas e cavar. Talvez os habitantes dessa cidade andem tão
desesperadamente de um lado pra outro para poder desgastar a camada e isso quer dizer que
todos aceitam tacitamente o desafio que exala como um forte odor. Ë esse o modo de ser
urbano, de ser humano aqui. Caminhar e comungar por sobre o apelo silencioso que exala das
profundezas do asfalto.
Não, não vou acrescentar mais uma vez as belas palavras de Heidegger sobre o construir e
o habitar poeticamente. O muito uso delas também as faz asfalto e ainda que soem como um
odor que não tento esconder, procuro – Lucrécia e flor azul – formas esquecidas (passa o trem
nas plataformas), um dizer poético do que não compreendo ao olhar. Parece liberdade
espiritual essa de dizer poeticamente o incompreensível (que assim permanece
incompreensível). Parece um ainda procurar fazer parte de uma Associação cuja função é
cantar flores (cf.CS, p.22). Realmente o sentido do ridículo torna-se aqui um espírito ao qual
tenho de reverenciar como reverencio algo que provoca riso, que é irrisório, que é exagerado e
inapropriado. Saio da Associação, abandono a missão e se continuo a cantar uma flor, a flor
azul, faço-o como pedindo socorro, pois ao ridículo anteponho a vergonha de se poupar.
Ocorre-me a resposta de Lucrécia, nesse momento: “sim, mas ali estava ela” (CS, p.197).
Construir, constrói-se, construo: edificar, edifica-se, edifico: cultivar, cultiva-se, cultivo.
Ah! Enfim habitar, habita-se, habito. Enfim, a poesia permanece. Posso ver, na experiência
mesma cotidiana do homem, no habitual, sobrevive o algo de um, a super-realidade do
127
verdadeiramente real (cf. 2002, p.127). Assim como há pensamento autônomo nas escolas e
academias, assim há nas ruas e nas faixas de pedestre. Os cidadãos encolhidos que atravessam
ao sinal de atravessar habitam a rua que atravessam, assim como o canoeiro que rema nas
águas do rio o mais puro da terra.
Ele, o cidadão, encolheu-se por saber se encolher ou foi induzido a não ser nada? Só o
saber concede dignidade e intensidade ao habitar do cidadão encolhido?
Talvez, se o saber lhe abrir o sentido de escuta, lhe permitir escutar imagens que lhe
descrevem a sua “entrada no mundo”, o seu “ser no mundo”, cidadão-encolhido-que-
atravessa-a-rua. Sou esse homem! Diz aquele que, encolhido (ou será melhor dizer
aquietado?), se observa. Atravesso essa rua! E olha como daqui vejo os pés, as falhas, a
poeira, o barulho, o vento, a luz, o esgueirar, o reflexo no vidro do carro, o pingo da chuva.
Devaneio, devaneio, como dizia Bachelard. “Por que o devaneio da planície nunca é o
mesmo do devaneio do planalto?” (1993, p.208) Sonhar na colina, sonhar na Rua Figueiredo
Magalhães. Afinal, pode-se atravessar a rua em estado de devaneio? “Ele” não nos coloca
sempre longe, num espaço além? Mas para Lucrécia, aqueles cavalos eram realidade ainda
(depois deles desaparecerem, ela também se irá da cidade). Não é devaneio então. Para
Bachelard sim, ele é. Pois diz ele, o “além é natural”, isto é, o além não se aloja nas casas do
passado (não seria então fuga para um outro lugar). Trata-se de encontrar o imenso do lugar.
Não há mais cavalos. O que há então que leve aquele cidadão que atravessa a rua, para o lugar
da “contemplação primordial”? (cf. BACHELARD, 1993, p.190) Não falamos há pouco da
cidade como obra de arte? Trata-se aqui de desocultar. “Para além do ente, mas não longe
dele, mas sim a partir dele, acontece ainda algo diferente” (HEIDEGGER, 1997:42).
Em seu devaneio (mãos dadas com a flor azul), Lucrécia criou seu museu de coisas
insignificantes. Bibelôs, repouso, caminho dos gestos. Ela assim habitava o corpo (cf. CS,
p.34 e 150); reverenciava a physis, e obrava o que permanece. Não que permaneçam os
bibelôs, não que o seu repouso vá ser lembrado, ou seus gestos em caminho. É que nessa
profissão de abraçar as coisas, para além (mas não longe), salvava-se a terra, acolhia-se a
terra, talvez quem sabe aguardava-se o divino e conduzia-se a todos e a cada um dos mortais.
“É assim que acontece propriamente um habitar. Habitar é bem mais um demorar-se junto às
coisas” (HEIDEGGER, 2002, p.130-1). Nesse obrar mitológico-espontâneo, o cavalo é um
deus, um guia, como se pode também ter o oceano como guia em um deserto ou um coelho na
planície. Talvez a figura dos cachorros com seus donos seja bem mais do que a representação
da carência afetiva para os pobres cidadãos que esquecidos de si atravessam as ruas; eles
podem ser um caminho para o devaneio. Quem sabe? “Realidades fortes e estáveis que são as
imagens materiais fundamentais, as imagens que estão na base de qualquer imaginação” (cf.
BACHELARD, 1993, p.225 e 211) Os cavalos, os bibelôs, a estátua. Lucrécia os tem como
entes contemplativos, como ponte para um âmbito para além do humano e fundamental, para
o habitar poético da terra-cidade-ainda quase que campo. A cidade de Lucrécia ocupa uma
fronteira.
Demorar junto às coisas é escutar da cama os cavalos; é a reunião ali da dupla
encruzilhada (céu-terra; mortal-imortal). Escutar já é preservar, demorar, construir. Quem
escuta de sua cama o algo de um, assim como os cavalos, não pode habitar sem ele.
Impossível seria para Lucrécia então continuar em São Geraldo sem os seus guias. Esse
sentimento nada geométrico ou geográfico da cidade que se habita não se deixa descrever
facilmente. Penosamente, Lucrécia pede que os bibelôs o façam, que a estátua o faça. Mas
129
esses, diferentemente dos cavalos, ela pode desfazer. A cidade os desfaz, tornando-os poeira,
tomados de poeira, opacos, quase invisíveis. Não são guias tão disponíveis à habitação como
os cavalos. Os cavalos, quando se vão de S.Geraldo, esvaziam completamente a “cidade-de-
Lucrécia”. Bibelôs e estátua, ela pode deixar. Eles são objetos vesgos, que só podiam ser
vistos de viés; eles são a cidade que só pode ser vista de viés, da qual é impossível um olhar
de frente. A estátua, que espaço propicia? Uma praça esquadrada, se vista de frente. E as
pedras invisíveis dos sobrados? E a náusea dos bicos de gás? O espaço pedra só se torna in-
visível, os bicos de gás só se tornam náusea, se misturados a um vento novo (cf.CS, p.64).
O vento novo libera o espaço da pedra e do bico de gás, o olhar de viés é o espaço do
bibelô; é o limite, como o entende Heidegger (cf. 2002, p.134), ou seja, não onde uma coisa
termina, mas de onde alguma coisa dá início à sua essência. O cavalo é o limite da cidade-de-
Lucrécia. Até o morro do pasto, a cidade podia se expandir. Quando ela ultrapassa aquela que
é a sua essência – o espaço ainda liberado da caça e da guerra –para onde o cavalo a guia, a
cidade se esvazia desse lugar essencial.
se a aura tanto do “tempo que se espacializa, quanto do espaço que se temporaliza” (cf.
SOUZA, 1986, p.44).
“Tempo que se espacializa”, “espaço que se temporaliza”. Será que cada coisa pode ser
mesmo um tempo congelado que se descongela? Uma permanência e uma fugacidade? Ler o
tempo no espaço é imagem fácil de se perceber. Bakthin (cf. 1992, p.243), imbuído de certo
pragmatismo, descreve o espaço como um acontecimento e não como um pano-de-fundo
imutável ou como um todo pré-estabelecido. Nada é fora do seu lugar. Tudo interage e todas
as coisas ditam sua história para quem as vê-escute, o que realmente sugere a polifonia
bakthiana. Nesse sentido, o deslocado sente-se estranho, talvez por experimentar exagerada e
profundamente a sensação de alocamento em que a pele parece sempre em arrepio por estar
sempre sendo tocada por algo. O deslocado vê-escuta demais. Lucrécia, coitada, sofre muito
(ou muito se compraz) com a vida tumultuosa da rua do Mercado. Ela é a própria vida
tumultuosa da rua do Mercado e, dessa perspectiva mesma, brota o deslocamento diante das
“varandas de ferro forjado, nas fachadas rasas dos sobrados”. Porque ela é também esse gosto
passado (cf. CS, p.16-7).
Tempo que se espacializa presente. Espaço que se temporaliza passado. Mas o que há por
vir? Onde se aloca o futuro na cidade? Nem no tumulto, nem nas varandas de ferro forjado. O
futuro tem também o seu lugar na coisa concreta, na aparência, em sua atualidade. Ou não? A
verdade é que procuro ler Clarice Lispector de forma redentora. Essa sua personagem
Lucrécia já foi lida pela crítica como alienada ou grotesca24, mas quando a conheci ela me
deslumbrou, mostrou uma forma de olhar a cidade-por-vir e mesmo que isso não a transforme
em redentora da cidade, incita o leitor a dialogar com essa possibilidade. “Redentora” aqui
quer dizer lugar de redenção, de reunião das várias dimensões do ser. A possibilidade das
coisas serem mortais, imortais, terrestres ou mais propriamente telúricas e celestes;
transpirantes de uma realidade invisível, mas totalmente física, que desperta afeto, erotismo,
sensualidade e espírito (palavra complicada sobre a qual falaremos mais tarde.) Dizer cidade
como lugar de educação é também dizer cidade como lugar de redenção: aqui se equivalem,
posto que se pensa numa paidéia poética a caminhar na direção da reunião das várias
dimensões da cidade ser.
24
Cf. a excelente fortuna crítica elaborada por PONTIERI (2001:37-86), no capítulo sugestivamente
denominado “Infortúnios de uma cidade”.
132
Para perceber o porvir no lugar da redenção, diferencia-se real e atual; ideal e abstrato; e
finalmente porvir e realização do possível. Cada um desses pólos atua, presencia-se, e entre
cada um dos elementos desses pares, encontra-se o élan de uma diferenciação criadora. Esse
élan ultrapassa a linguagem da inteligência lógica e metafísica; o élan vem menos de um
pensamento inteligente (mesmo que liberado da doxa) e mais de um pensamento poético
forjado com duros metais; não condicionado por eles; no entanto, sangrento e silencioso. Esse
pensamento poético é coisa. Machuca em algazarra e jorra prazer silencioso. E, retomando
Trackl: ainda que se fazendo a partir do desvario da grande cidade – ainda que enrijecidos,
oprimidos, estourados, açoitados pelo desvario da grande cidade –, a máscara de prata; a luz;
a fúria; e os olhos verdes não deixam de ver; criam porque vêem algo de um e deixam que
esse algo fale, mesmo que aleijadamente. Deixar que esse algo fale – puta que pare uma
criança morta – é deixar sangrar a cidade. A redenção está na perda da mudez do sangue. E
mudez não é silêncio. O silêncio fala. Mudez é opacidade; estagnação do movimento entre os
entes urbanos.
A atualidade em relação à qual Lucrécia se sente “inferior” identifica-se com uma “nitidez
sem apelo” (CS, p.41). Ruas duras, realizadas, não dão lugar à redenção, não apelam,
bloqueiam o olhar e se tornam opacas, ausentes, impossíveis de se fazerem imagens. Há uma
133
grande arrogância no grandioso e no realizado. Eles não são mudos como a humanidade
sangrenta; mas eles não falam. Grandes prédios e carros e pessoas esbaforidas “matracam”,
gritam; não falam no sentido do dizer, mas sim no sentido do falatório. O realizado das ruas,
aquilo que parece intransponível, a realidade petrificada da cidade quer impedir que o espaço
se temporalize, isto é, imobiliza o espaço.
A ironia das ruas duras e realizadas é que elas não mais realizam. Passam a ser nada,
espectrais. Redenção é salvá-las dessa imobilidade numa percepção profunda, concreta e
atenta dos lugares. Percepção que desbatiza os lugares, desconhece suas funções
conservadoras. Lucrécia chama a atenção para os “lugares quase desertos, já em fronteira com
o campo” que “em breve tomaram o nome de passeios” (cf. CS, p.19). Quando, casada,
passou a viver em uma cidade grande e “deixava-se guiar pelo marido em visitas a lugares”
(CS, p.124); em outros termos: o lugar nomeado “lugar”, escolhido “lugar”, como aquele em
que é permitido estar, no momento certo, na dose certa, ou seja, segundo uma lei às vezes um
pouco dura. Em São Geraldo, Lucrécia percebeu sua cidade em progresso no momento em
que o lugar onde havia os trilhos do trem e, mais além, a visão do morro do pasto passaram a
ser lugares de passeio. A função imobiliza; o lugar passa a ser a função: torna-se espaço
geometrizado ou planificado. Redimi-lo implica talvez em deixá-lo em paz, inutilizado,
falante, em sua mudez.
É difícil, no entanto, deixar um lugar ser simplesmente um lugar. Na “cidade adiantada”,
Lucrécia percebe o cuidado em “valorizar as manifestações conseguidas” (CS, p.129).
Manifestações talvez sejam falas e gestos que transformam momentaneamente o espaço em
lugar. Em “Ser e Tempo”, Heidegger (cf. 2002 a, p.59-60) diferencia manifestação de
fenômeno. Fenômeno equivaleria a um modo privilegiado de encontro, enquanto
manifestação seria uma espécie de referência, que anuncia algo que não se mostra como algo-
que-se-mostra. Nesse sentido, manifestação talvez fosse um símbolo, no sentido metafísico do
termo, através do qual se opõem produção e produto, ou seja, “não constituindo (a
manifestação) o ser próprio daquele que produz”. O cuidado em valorizar “manifestações
conseguidas”, foi observado por Lucrécia, tanto no espalhar das notícias pelo rádio, quanto no
multiplicar dos gestos por espelhos. Talvez o rádio possa ser um lugar na cidade, talvez
apenas um espaço para a publicidade. Os espelhos são também lugar de olhar-escutar (pode-
134
se entrar dentro de um; mergulhar; perder-se), mas também podem ser espaço para
reprodução de sujeitos distraídos ou atentos demais em sua performance.
Talvez a visão redentora do lugar só seja visível, como quer Bakthin (1992, p.257), se o
vemos “aclarado pela atividade do homem”. Clarice Lispector faz isso, mas sem a limitação
da racionalidade; faz com inteligência sensível. No texto abaixo, escrito por ela em tom de
narrativa de conto acontecido ou de acontecimento passado, ela acompanha “o abraço do
lugar” em Lucrécia:
Água escorria da bica e ela passava o pano ensaboado nos talheres. Da janela via-se
o muro amarelo – amarelo, dizia o simples encontro com a cor. Esfregando os dentes
do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava
lenta – a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como
formiga. Ser formiga na luz, absorvia-a inteiramente e em pouco, como um
verdadeiro trabalhador, ela não sabia mais quem lavava e o que era lavado – tão
grande era sua eficiência. (CS, p.97)
Nesse abraço, Lucrécia é conduzida para um lugar dela ser. E tal como um poeta lírico, ela
“inspira ao mesmo tempo clima e linguagem” (STAIGER, 1975, p.28). É individual e
impessoal. Faz-se como linguagem e, para além de ser representação do lugar, de ser uma
produção da imaginação de Lucrécia, o lugar fala e diz-ensina a ser formiga na luz. E “isso” é
o quê? Formiga na luz poderia ser assumido como um modelo, caso admitíssemos que a
linguagem é expressão sonora de movimentos internos; é atividade humana; ou é
representacão figurada e conceitual. Mas é apenas “isso” que o lugar acima descrito fala? O
que ele diz-ensina é a figura da formiga da luz surgida do vazio da água a escorrer da bica. E é
interessante que a autora narre esse dito-ensinamento com uma fala que passou, que é um dito
passado que já ensinou. Pode ele ainda gerar ensinamento? Sem se fazer parâmetro, a figura
continua próxima, faz-se vigor e guarda porvir25. Amadureceu a figura, temporalizou-se, mas
de um tempo que se encaminha simultaneamente como lugar. A formiga na luz repousa
quieta, como o tempo entre o ser escrito e o ser lido, entre o ser visto e o ser narrado. A
formiga na luz a-guarda o porvir de Lucrécia, da autora, de quem abre o livro e a lê. Mas ela
também a-guarda quem se coloca nesse lugar da água a escorrer da pia? Nesse lugar, existe
uma formiga na luz?
Pode-se dizer que todo e qualquer espaço entreabre, libera e concede localidades e
lugares, assumindo o simultâneo como espaço-tempo? No todo de sua essência, o espaço não
25
Manuel Antonio de Castro sugere aqui a expressão imagem-questão, para fugir da terminologia retórico-
metafísica. Imagem-questão é uma questão dita centralizada e condensada numa determinada imagem. Nesse
sentido, “Capitu”, por exemplo, é uma imagem-questão.
135
se move. O espaço repousa quieto. Será? Qual “o todo da essência desse lugar”? Talvez esse
movimento que temporaliza espaço e espacializa tempo se encontre na travessia, no tempo
transcorrido entre; no espaço existente entre. O todo da essência desse lugar abre-se não só
como aprendizagem, mas como metamorfose inocente e ao mesmo tempo angustiante pela
nostalgia da unidade. O todo da essência é a ponte, o lugar arcaico que – colocado na e como
travessia – permite ver margens como margens (cf. HEIDEGGER, 2002, p.131).
E assim como quem diz espaço, não diz necessariamente lugar, quem diz travessia, não
diz necessariamente intervalo. Intervalo é:
aquilo que se diz com a palavra latina ‘spatium’, ou seja, um espaço entre. ... Num
espaço representado meramente como “spatium”, a ponte se mostra como uma coisa
qualquer que ocupa uma posição, a qual pode ser a todo momento ocupada por
qualquer outra coisa ou até mesmo substituída por uma mera demarcação. (idem)
Lucrécia diz-ensina pelo seu olhar-escutar que, agregada “a um povo e, fazendo parte
dessa multidão sem nome, sentia-se a um tempo célebre e desconhecida” (CS, p. 127). Mas
pode ser tanto espacial quanto localizado esse sentimento de incompreensão presente na
intimidade da rua do mercado. Em suas caminhadas, Lucrécia não compreendia: via espaços
construídos de altura, largura e profundidade, onde vê lugares a se mover. Nessa travessia
entre o paralisado e o movente, ela vê “homens espaçados – jogadores de chapéu de palha e
palito na boca”. Vê que eles espiam “de seus postos, duros, separados” (CS, p.18).
No espaço matemático, não há lugares. “Como um morcego a cidade era cega de dia”
(CS, p.95). No cotidiano, nos movemos pelos espaços aprendidos (“o lugar de guardar
vestidos, onde era o banheiro e onde se acendia a luz”) (CS, p.124), mas sem ver o vestido, o
banheiro e a luz acesa em toda sua essência: como lugares ou coisas construídas e em
construção. Por perseguir esses lugares, incompreendendo-os, Lucrécia aprendia com eles.
Mesmo com toda precaução, porém, Lucrécia pode se tornar “parâmetro”. A construção
de parâmetros se tornou ele próprio um parâmetro a ser desconstruído. Trata-se de instituir
que homem e espaço não constituem pólos antagônicos? Pois o que nos mostra Lucrécia-
Clarice é esse mesmo pensamento claro. A presença minuciosa de Ana, a mãe de Lucrécia, se
identifica aos abafadores de bule amarelecendo, ao passarinho empalhado, à caixa de madeira
136
com vista dos Alpes na tampa. Não é que Ana apreciasse esses objetos, ela era essas coisas
(cf. CS, p.63).
Heidegger, pensando sobre o poema de Hölderlin (2002, p.136) (“Poeticamente, o homem
habita...”), diz não existirem “homens e, além deles, espaço. Espaço não é nem objeto
exterior, nem vivência interior. Ao se dizer ‘um homem’ e
ao se pensar nessa palavra aquele que é no modo humano, ou seja, que habita, já se
pensa imediatamente no nome ‘homem’ na demora, na quadratura, junto às coisas.
Mesmo quando nos relacionamos com coisas que não se encontram numa
proximidade estimável, demoramo-nos junto às coisas elas mesmas.
Vista do alto de uma janela a cidade era um perigo. ... S. Geraldo perdera os motivos
e agora funcionava sozinho. ... Se acontecia um assassinato, era S. Geraldo quem
assassinara. Nunca as coisas haviam pertencido tanto às coisas. Fora pra sempre
deflagrada uma mola, e a cidade era um crime. (CS, p.138)
Talvez um forasteiro, alguém que não pertence ao lugar, que tira do lugar tudo o que possa
aproveitar, possa ser aquele capaz de ver a cidade na dimensão da fantasia e assim... Não.
Esse foi o engano de Lucrécia ao se casar com Mateus Correia pelo desejo de se “sacudir para
sempre de S. Geraldo” (CS, p.125). E esse desejo de abandonar a cidade a tornou abandonada
(a ela própria, Lucrécia). Não se trata de buscar uma relação de causa e efeito. Ninguém sabe
o que faz com que o único sonho da cidade passe a ser o de ter “linhas de trem subterrâneas”
(CS, p.201).
Mas como, então, o que não se encontra em parte alguma e o que não é nada pode
impulsionar a nossa vida?
No vazio
quase escuro
o povo se comprimia na zona da retreta
dentro de um círculo
demarcado. Era mesmo estranho
espiar os habitantes se empurrando:
aqueles cujas costas já davam para
o vazio
lutavam
sonâmbulos para entrar. (cf. CS, p.13)?
O sonho único (e insignificante) de um dia vir a possuir trens subterrâneos não constitui
uma experiência do vazio. O povo às vezes se comprime para sair do vazio e cair no nada,
“dentro de um círculo demarcado”. Ali, onde estão os trens, os shoppings, os “lugares de
passeio”, os espaços da “cidade adiantada”. O vazio, em contrapartida, “quase sempre aparece
como uma carência por espaços intramundanos”. Porém, diz Heidegger (1970):
sem dúvida o vazio está relacionado com as peculiaridades do lugar e por isso não é
uma carência mas uma criação. ... Esvaziar – para se manifestar o ler, o encontrar
que obra em um lugar. O vazio deixa de ser nada no esvaziar um copo (encontrando
assim o conteúdo do seu livre advir); no cuidar de um lugar, no seu habitar.
O habitar é a travessia entre o vazio e o cheio. Ao se querer eliminar uma dessas margens,
a ponte se arruina.
Em S. Geraldo, em vez do vazio do sol, cada coisa se movia a caminho de suas próprias
formas, utilizando as menores sombras. Em São Geraldo, tudo agora estava de perfil, os
beirais dos telhados se recortando no vazio... Sol e coisas com sombras; beirais de telhados e
vazio (do céu). Eis aí, o habitar em São Geraldo:
?
Texto reorganizado em forma de poema para fins de destaque.
139
O equilíbrio do dedo sobre o vazio, o vento, o vento... – seu chapéu de luto voou, ele
correu atrás enquanto de repente o subúrbio enfim se manifestava porque um chapéu
voara ao vento! (CS, p.43)
Lidar com o vazio é lidar com o desconhecido. E isso, na cidade, tange o afeto do medo.
Pois seja na cidade, seja no campo, onde quer que habitemos, esperamos o abrigo da casa.
Depois de presenciar o movimento da multidão e de espalhar-se pelos becos escuros da
cidade, através de um simples bater de palmas a se perderem por vielas, Lucrécia despede-se
do namorado e se encontra só. É noite, o “lugar de diversão” está longe. Diante desse vazio
que na cidade surge apenas durante as noites, Lucrécia acaba sendo dominada pela
ingenuidade e pelo horror. Ela corre para sua casa e toca desesperadamente a campainha
querendo entrar. Sua casa é sua cidadela.
É irracional esse medo patológico? Mas se há razões de sobra para sentir medo numa
cidade... A integridade da pessoa encontra-se ameaçada. O indivíduo encontra-se ameaçado.
O eu. A cidade adiantada busca relacionar-se com esse “eu”, dá a ele conforto, dá ele padrão
de qualidade. A cidade racional assume as razões do medo como construtoras da cidade, e
assim faz “eus” ao mesmo tempo que constrói prédios. Como? O que vem a ser eu?
Talvez se possa pensar no vazio como o não-eu; e, nas formas da cidade, como o eu,
lembrando que nos encontramos na travessia, no incessante movimento que nos joga do vazio
ao pleno. Talvez também se possa pensar que o não-eu protege o eu, cuida justamente para
que ele não transforme seu medo em um prédio, para que ele possa se colocar num outro lugar
e habitar um lugar que não seja construído em função desse medo. E no movimento do eu ao
não-eu, assim como do não-eu ao eu, o homem possa ser hora e lugar do real, que não se
resume a uma única leitura que dele possa ser feita, seja ela racional ou irracional. Como
possibilidade da possibilidade do real, o homem se faz lugar das coisas, ao invés
simplesmente das coisas se limitarem a ser um lugar para ele, enquanto império do eu.
Tentar assegurar as coisas como patrimônio de um ou mesmo de toda humanidade não
impedirá, no entanto, as “angústias de domingo” ou a falta de saber para onde ir. Quando se
diz aqui “possibilidade da possibilidade” se emprega essa última palavra como um campo
para poder ser, no sentido de um movimento que ponha o eu em cheque. Ou seja: um campo
140
para poder ser não se dá pela eliminação da “angústia de domingo” ou da falta de saber para
onde ir.
Dar o lugar
Lucrécia Neves de pé espiava a cidade que de dentro era invisível e que a distância
tornava de novo um sonho: ela debruçava-se sem nenhuma individualidade,
procurando olhar diretamente as coisas. (CS, p.24)
Jogada nesse jogo, ela se faz ponte que cumpre a travessia; “que permite ao rio o seu
curso ao mesmo tempo em que preserva, para os mortais, um caminho para a sua trajetória”
(HEIDEGGER, 2002, p. 132). Os mortais, os homens... Será que Lucrécia, ao ser campo para
os cavalos, permite que eles cumpram o seu destino enquanto e talvez mesmo em virtude da
preservação de um caminho para os mortais? Ao chamar os homens de mortais, ao chamar
atenção para sua caminhada “de terra em terra”, Heidegger quer avivar na memória do
homem o caminho arcaico, aquele em que o homem se faz lugar de homem. Jogado nesse
141
caminho, que é jogo, que é ponte, os mortais “ultrapassam o que lhes é habitual e
desafortunado”. Heidegger chama atenção para essa ultrapassagem por ele chamada de
“passagem transbordante para o divino”. Então, quando “o rosto de Lucrécia Neves se
esforçava curioso além de sua própria figura, escutando”, ela integrava-se, nesse seu modo de
ser, à tempestade, aos cavalos molhados, à própria curiosidade e a um algo inexplicável. O
divino?
Divina talvez seja a vontade de realizar tal escuta. Foi Lucrécia que curiosa a
empreendeu? Sim e não. Lucrécia se abriu ao seu chamado, se fez campo e lugar onde essa
vontade aparece. É uma questão complicada que não pretendo responder. Sei que toco aqui na
possibilidade de saber autônomo do homem. No momento, apenas distinguo essa
possibilidade de saber da possibilidade de um cogito autônomo do ser humano. Limito-me a
refutar esse último. Isso quer dizer à possibilidade de escutar os cavalos molhados pela
tempestade apenas pela inteligência racional. A sensibilidade de Lucrécia, de onde vem? Não
vem de ideais, nem de princípios morais, nem também de um conhecimento científico acerca
dos cavalos. Digamos que ela escuta um chamado dos cavalos. Isso é possível, é alucinação, é
imaginação? É “uma tentativa sorrateira de espírito pelo lado onde este menos esperava” (CS,
p.21). Uma coisa parece certa, ao se tentar regularizar ou regulamentar essa escuta, sua
possibilidade se vai. Ao tentar controlar essa escuta, o homem se perde.
Então, o homem só pode ser senhor dessa escuta se a ela se curvar. O senhor que obedece
à terra. E não se substancia o espírito como verdade. O divino não traz oculto nenhum deus
que possamos agarrar. É a esse “inagarrável” que se pode chamar de divino. Quando um
mortal nomeia um imortal, esse imediatamente passa a ser um algo que morre ou então passa
de “uma natureza a outra”. A experiência sem controle e sem antecipação, sem regularidade
ou regularização não significa, no entanto, a ausência da razão; essa experiência de tensão
convergente entre divergentes é como uma ponte que permite ao rio seguir o seu curso. Ao
longo de seu caminho, Lucrécia parece perceber que as coisas assim se dão:
A casa inacabada
O olhar como linguagem, o olhar que escuta: essa a possibilidade que Lucrécia nos
apresenta. Envolvida por essa possibilidade, essa linguagem passa a ser a casa onde Lucrécia
habita. Para onde ela for, levará junto a sua casa. Linguagem: casa do ser na qual habita o
142
homem. Casa que faz homem lugar de homem, que se integra e se entrega ao chamado,
cuidando para que esse chamado ecoe pela casa, mesmo sem compreendê-lo totalmente.
Desse modo, a casa-cidadela refúgio da cidade, construção do eu, abre-se para a cidade e
aceita seus despojos. Casa e cidade ouvem o chamado mútuo, se pertencem mutuamente.
Bachelard (1993, p.62), ao pensar sobre a poética da casa, chama atenção para a “casa
que a imaginação converteu no próprio centro de um ciclone”, ao mesmo tempo que alerta
para a necessidade de superar as meras impressões de conforto que sentimos em qualquer
abrigo. “É preciso participar do drama cósmico enfrentado pela casa que luta”, diz ele.
Nenhuma casa está acabada, nenhuma casa é segura, nenhuma casa termina em seus muros.
Uma casa precisa adquirir a dignidade da solidão, assim como o homem precisa se encontrar
sozinho num cosmos que não é o de sua infância. Assim, a casa vivida não é uma caixa inerte.
Um recanto seu, por exemplo, pode ser o germe de um quarto. Mas o devaneio torna-se
enfadonho, ao se imobilizar num recanto: “ele reencontra aí um mundo gasto” (idem, p.152).
A casa é mais que “um canto pra morar”. Quando em repouso, a casa é um ângulo, que
necessita ser quebrado logo em seguida para se fazer ver como figura.
Na casa habitada por Lucrécia, a sala de visitas é uma praça de armas onde, se pergunta
ela-Clarice, “cada coisa esperta existia como para que outras não fossem vistas?” (CS, p.104)
Pensando na linguagem como casa, é interessante correlacionar essa pergunta com a
afirmação de Heidegger (2002, p.128) de que “as palavras essenciais da linguagem, o que
nelas se diz propriamente cai, com muita facilidade, no esquecimento, em favor do que se diz
num primeiro plano”.
Estamos acostumados ao barulho de um falar compulsivo que faz com que se retraia para
o homem o seu dizer simples. Mas isso não chega a emudecê-lo. (Há uma apelo implicado na
escuta que Lucrécia procura em relação aos cavalos na tempestade.) Esse apelo se dá como
silêncio. Mas o homem não presta atenção a esse silêncio. Encontrar a concha inicial em toda
moradia: essa a tarefa básica de quem pro-cura. Quer dizer: situar a realidade profunda de
cada uma das nuanças do nosso apego a um lugar predileto ou o como nos enraizamos no dia
a dia num “canto do mundo” (cf. BACHELARD, 1993).
E tudo aquilo que se retraíra com tanta reserva à sua entrada, recomeçou a respirar
cheiro de madeira, porcelana, verniz gasto e sombra. No espelho flutuava o
conhecimento de toda sala. A flor! As flores se exprimiam em pétalas, a cortina
avançava até o meio da sala. Ana retirava cada dia a poeira mas a calma penumbra
ela não conseguiria espanar. (CS, p.105)
143
A casa: um canto do mundo. Lucrécia nos acena com o seu construir, as nuanças do seu
apego àquele lugar (“madeira, porcelana, verniz gasto e sombra”); o seu enraizado habitar
(flores e cortinas); a concha inicial de sua moradia (calma penumbra que não se consegue
espanar).
A casa: abrigo, refúgios e aposentos; sótão dos meus tédios; centros de tédio, centros
de solidão, centros de devaneio – casa onírica. Sonhador de refúgio, o homem sonha com sua
cabana, com o ninho, com os cantos onde gostaria de se encolher como um animal em sua
toca. Ninho e concha – primitividade do refúgio. “Se a casa é um valor vivo, é preciso que ela
integre uma irrealidade. ... É preciso que todos os valores tremam. Um valor que não treme é
um valor morto” (BACHELARD, 1993, p.73). É preciso viver no provisório.
Viver no provisório é habitar. “Não habitamos porque construímos”, diz Heidegger (2002,
p.128). “Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos.”
Existirá uma casa essencial? (A essência: eis uma palavra recorrente e que a cada vez que
surge pede explicações impossíveis.) Pensemos na casa arcaica. Será essa uma experiência tão
antiga apenas reexperimentada na linguagem poética na medida em que essa pode identificar
casa à cripta? Existiria uma casa com raízes cósmicas? Uma imensa casa cósmica em todo
sonho de casa? Uma casa que, tão dinâmica, permitisse ao poeta habitar o universo? Ou,
noutras palavras, que permitisse ao universo vir habitar a sua casa? Universo ou cósmico são
palavras de Bachelard para o que Heidegger denomina divino? Para efeito desse trabalho,
consideremos que sim. Consideremos que na pergunta que busca reunir casa e universo,
subjaz aquela a respeito da dimensão do divino na linguagem. Significa dizer: quando
falamos, algo fala em nós.
Lucrécia “não saberia se olhava a imagem ou se a imagem a fitava porque assim sempre
tinham sido as coisas e não se saberia se uma cidade tinha sido feita para as pessoas ou as
pessoas para a cidade – ela olhava” (CS, p.55). Ao escutar aquele algo que fala em nós – a
tensão mundo-terra aqui encarnada na tensão cidade-pessoa – o homem passa a habitar um
lugar comunitário, para além da sua casa, como abrigo individual. Essa escuta é um esforço
sincero do homem, que levanta os olhos e diz assim quero ser também, lembrando que esse
144
levantar “os olhos percorre toda direção acima rumo ao céu”, sem deixar de “permanecer no
abaixo da terra” (HEIDEGGER, 2002, p. 171-2).
Nesse sentido, no olhar “os telhados escuros e as torres das fábricas, extremidades secas
do mundo” (CS, p.196), o homem mede o entre do céu e da terra. E mede na medida
comedida e ajustada ao seu habitar de homem.
O tamanho delicado
Entre o insignificante e o sutil, reside uma dignidade, uma abertura para o mundo, e um
“ser-no-mundo para além do majestoso”. “Tal experiência proporciona o desprendimento do
ambiente e a resistência à sua dissolução” (BACHELARD, 1993, p.168). Entre o céu e a terra,
abre-se o horizonte de uma medida comedida. O homem mede (ausculta) esse horizonte, em
se medindo com o celestial. E é somente nesse medir-se que o homem é homem.
O relâmpago.
O aposento se revelava em claridade.
A moça olhava os cantos alargados da sala, procurava prender-se à primeira
salvação sólida:
fitou o confuso buraco da fechadura que sob a fixidez foi se aperfeiçoando em
fechadura menor, menor, até que alcançou o próprio tamanho delicado. (CS, p.77)
“O próprio tamanho delicado”. Que a linguagem própria dessa “medida comedida” nos
dispense de “sonos conceituais e de geometrias utilitárias”. Que a casa “conquiste sua parcela
de céu”.
Levantar a medida, levantando os olhos, não consiste em mera geo-metria. Para além do
tempo e do espaço calculadores, o homem se faz lugar do homem; cidade se faz lugar de
humanidade. Nesse caminho de olhar sem ânsia, “o horizonte cortado de chaminés e telhados”
se tornava real. Lucrécia percebia que “o difícil é que a aparência era a realidade” (CS,
p.101). Não há paisagem na cidade, sem a experiência que a torne real. Martim, em seu
campo também “descortinou”, no curral, esse “lugar quente que pulsava” (ME, p.76).
Para assim poder ver, é preciso se colocar no caminho da atenção a relações simples na
cidade ou no campo. Talvez caminho pudesse ser chamado “plano”, mas seria preciso muito
cuidado pois essa palavra está a um passo do desejo de apoderamento e de instrumentalização
dessas relações simples. Lucrécia-Clarice diz que no instante em que “ela se exprimisse”,
“ter-se-ia colocado no mesmo plano da cidade”. E no “instante em que ela se demonstrasse”,
“teria a forma que lhe era necessária como instrumento” (CS, p.78). “Exprimir” aqui é
experienciar a cidade tal como campo aberto que abarca o inexplicável; “demonstrar” é
145
A flor logo se esconde. Não adianta querer lhe edificar um altar. Assim que inaugura, a
poesia se esvai. Por impotência, pensa Lucrécia, pode-se inventar um sinal misterioso e
inocente. Algo que pudesse sempre dizer algo do um. Um aceno permanente ao poético é
possível? Reunido o sensível ao inteligível, inquieta-se permanentemente o homem. Qualquer
palavra, a mais simples das relações o agita. A flor azul: o projeto extático. Esse o lugar a não
se esquecer.
Transcendência suja
As caras ora apareciam, ora desapareciam. Lucrécia achou-se tão perto de uma face
que esta lhe riu. Era difícil perceber que ria para alguém perdido na sombra. (CS,
p.11)
Ela o desejara porque ele era um forasteiro, ela o odiava porque ele era um
forasteiro. (CS, p.60)
Estamos diante da dualidade, vivemos sob o império dúbio que nos arranca do caminho
singular. Há quem assim esteja? Num caminho que nunca bifurca? Alguém que, estando na
cidade, na cidade está? Estando no campo, no campo para sempre? Parece que sim, parece
146
realidade atual facilmente previsível de mocinha suburbana. E isso não acontece porque ela
quer, porque ela assim reivindica em atitude de voluntarismo e de imanência em relação à
realidade. Como outras personagens de Clarice Lispector, Lucrécia não é um estereótipo ao
qual possamos colar adjetivos. É errado identificar em Lucrécia a figura da “alienada” ou da
“antenada”. Não é possível colocar suas personagens em esquemas, assim como não é
possível fazer isso com qualquer ser humano que se coloque em um caminho, mesmo que
vagamente delirante: em direção a.
Ermelinda e Vitória, as duas primas presentes na história de Martim, em “A maçã no
escuro” também são exemplos dessa dualidade, cujos pólos animam-se suavemente. São elas
representantes de dois pólos? Ermelinda seria aquela que representa a transcendência, pelo
emaranhamento que se nos apresenta: de uma mulher com medo de morrer? (cf. ME, p.202-3)
Mas, em relação à idéia que costumamos ter de transcendência, o medo de morrer seria
totalmente o contrário, não? No entanto, o que fazer daquela sua atitude imaterial, de “cabeça
nas nuvens”? Essa imagem parece corresponder ao estereótipo da mulher transcendente. E
Vitória, do auge de sua posição de fazendeira “pé-na-terra”, seria ela a representante do pólo
da imanência? Mas, sendo assim, como ela pode ser aquela cujo emaranhamento parece dizer
“tenho medo de viver”? Ermelinda parece dar-se conta da beleza pelo seu lado da
eternidade. Tudo para ela é indício de eternidade: galinha que voa mais alto, cabelos que
crescem tão depressa, cobra que some, rapidez com que lenços e tesoura são perdidos,
“cabeça de cavalo adicionada como uma máscara de espanto naquele corpo sólido” (cf.ME, p.
187-189), rapidez com que as coisas se transformam... Profundamente ligada a esses indícios,
ela implora a Deus que a deixe sempre ter um corpo.
Vitória foi viver no campo para dar uma paixão à sua pureza. E assim, experimentou a
plenitude da preguiça com que as plantas cresciam eretas. Mas do mesmo modo que a
natureza deu ardor à sua confusão, a fez cair “na brutalidade truculenta de uma pureza moral”.
Exausta, por conta das suas artérias enrijecidas como as de um juiz, é que pôde desabrochar
tão simples como uma gota d’água que já não suporta o próprio peso e tomba onde tombar. E,
“de despojamento em despojamento, aproximara-se por dentro, sem ao menos saber, de
alguma coisa viva” (cf.ME, p.213-4).
O quê é e quem é então transcendente ou imanente? Seriam esses pólos representantes de
uma dualidade discordante? Talvez seja bom então abrirmos um parênteses para pensarmos
um pouco mais no que vem a ser um e outro pólo e como podem ser discordantes ou então
animadores entre si. Nesse trabalho, já pontuamos o caminho do transcender como aquele que
nos leva para além da realidade atual; aquele que abre para as possibilidades advindas da
148
superação dos limites da razão absoluta e do projeto metafísico; aquele que se dá como salto,
a partir mesmo do cotidiano e que propicia a visão da relação não discordante dos pólos,
como horizonte, em sua relação com tudo o que é imanente; aquele caminho, enfim,
propiciado na medida em que nos deixamos tocar pelas coisas, e que nos deixamos ficar na
sensação de vertigem provocada pelo espanto. Mas escapamos dessa maneira a um discurso
do transcendente? Superamos a dualidade discordante dos pólos?
Passemos então por uma bifurcação que nos faz desconfiar do adjetivo “originário”, da
valorização talvez demasiado rápida de tudo que julguemos autêntico, e que nos leve a um
transcendentalismo, apoiado justamente em valores sociais, estéticos, éticos, psicológicos, etc.
Bachelard (cf.1993, p.193) chama a atenção para o fracasso da imaginação gerado por esse
projeto transcendental. Se tal ou qual visão nos suscita o adjetivo “originário” ou “autêntico”,
deve-se então, enquanto interessados no pensamento do fenômeno, colocarmo-nos no encalço
da agitação que essa mesma visão provoca em nossa imaginação. “Colocarmo-nos no
encalço” vem a ser justamente pôr-nos no caminho mesmo que essa visão indica, sem que a
pressa nos obrigue a reconhecer nessa coisa (que na verdade se faz junto ou enquanto se
caminha) uma visão transcendente. Se assim fizermos, se na pressa de classificar tal visão, a
despojarmos de sua espontaneidade para a encaixarmos em um discurso do transcendente,
novamente nos colocaremos em contraposição ao que quer que seja, mesmo que esse algo seja
maravilhoso, espantoso, extraordinário, enfim algo que “nos tire de nossa vidinha”.
Não se trata, portanto, de “cultivar” transcendência. A nossa pobre flor, aqui abertamente
colhida como fruto tardio do romantismo, pode ser também um exemplo da simbolização
paralisante do transcendentalismo. A escolha de Heidegger como interlocutor privilegiado
nesse trabalho se dá pelo que na sua obra desmente a estagnação em um pólo: seja imanente,
seja transcendente. Daí, a ênfase na palavra “caminho” ou “travessia” como modo de
pensamento e de conhecimento do real. Acredita-se que essa seja a posição que melhor se
coaduna com a chamada pedagogia poética de Clarice Lispector. Se os coloco aqui em um
diálogo, facilita que ambos estejam de acordo nessa complexa questão do ser enquanto o entre
da transcendência-imanência. Claro que essa questão, em termos conceituais, passa ao largo
da obra da escritora. A melhor medida talvez seja seguir uma outra pista dentro da obra do
pensador, isto é, a sua indicação da poesia como a forma da linguagem mostrar a inexorável
união entre transcendência e imanência. Isso significa – no reduzido campo de reflexão que se
constitui este trabalho (que é muito mais experimentação do que reflexão) – um
reconhecimento de um apelo do ser como dimensionamento temporal do ente, como coisa. Ou
seja: uma identificação com a visão do ser da pre-sença na individuação mais radical. Porém,
149
se tal apelo do ser está presente e antecede mesmo todo ente (assim como o caminho é mais
começo do que chegada), buscar conhecê-lo nos coloca diante da dimensão transcendental.
Mas então o que nos resta? Manter-nos surdos a tal apelo? Desertificar? O que se percebe é
que – ao se furtar do pensamento propiciado pela escuta daquele vigor que antecede a
finalidade do caminho – o homem tende à imanência absoluta, resfatelando-se em sua vontade
concretizada pela técnica e a serviço do ideal de asseguramento e de controle 26.
Sobre essa desertificação do homem que tudo quer controlar já nos detivemos. Mas a
transcendência não metafísica é que queremos destacar aqui, como abertura à Possibilidade,
para além do domínio da cultura, da informação e do desempenho; da programação e da
classificação. E, ao pretender subjugar a transcendência, o homem perde justamente sua
abertura às possibilidades da Possibilidade e passa a se restringir à dimensão de uma única
realidade (com grande chance dessa ser a tradução da sua subjetividade). A imanência “livre”
da transcendência acaba por criar uma legião de autômatos, de repetidores, de seguidores de
moda. Pois o salto que nos leva ao encontro da diferença passa por uma zona não codificada
pela informação, não classificada ou, se se preferir, por um esforço de desinformação, de
desclassificação, de descodificação, o que, em hipótese nenhuma significa dizer, pela negação
desse assim chamado plano de imanência. Sobretudo, o imanente e o transcendente dialogam,
existem com e um pelo outro (não há como separar), interpenetram-se a ponto do corpo se
reencontrar com sua possibilidade de ser muito além do biológico, do genético, do território
disputado a tapa pelos laboratórios farmacêuticos, pelas experiências acadêmicas e pela zona
de opacidade em que permanece na comunicação virtual. Tudo isso virou senso-comum, virou
discurso. Essa é uma questão apontada por semiólogos, mas também por pensadores – aqueles
que se colocam em torno da questão do dizível e do indizível – e, principalmente, esse diálogo
intermitente entre o transcendente e o imanente encontra-se no modo híbrido do fazer-pensar-
sentir dos poetas. A experiência, nos termos aqui citados, diz respeito ao encontro dessa zona
limítrofe em que transcendência e imanência se reúnem, de modo que um acontecimento se
nos apropria e nos torna próprios, isto é, reintegrados a um modo de ser próprio, ao ponto de
nos sentirmos “naturais” (as aspas correspondem à re-união do pensamento com a
sensibilidade). Nesse fazer sentido, não nos encontramos nem dentro, nem fora das coisas, de
um modo que a oposição entre nós próprios e as coisas pareceria descabida, ainda que a
diferenciação se desse de modo evidente e necessário.
26
É preciso chamar a atenção aqui para a diferenciação da imanência da consciência e da imanência pura, como
ser em movimento. Sobre essa última seria necessário ler com atenção as colocações feitas por Deleuze em sua
obra que lamentavelmente ainda não tive a oportunidade de fazer.
150
Fechamos então esse longo parênteses com Ermelinda, ao transcender seu emaranhamento
transcendental de mulher que tudo vê como indício de eternidade. Colada à árvore, às suas
boas e duras nodosidades, sem conseguir dizer adeus ao perfume de corpo vivendo; com as
mãos cegas na árvore áspera, e com os joelhos na terra molhada, ela, já muito cansada, enfim
cede e enfim segue a sua vocação que é um dia morrer (cf. ME, p.190).
Por que tal figura nos fala, nos seduz? É porque “nunca fora hoje até então”. E não há
existência possível sem esse estar presente, inteiramente. E mesmo, sem saber onde nos leva o
caminho que tomamos, podemos dizer que sim, ele nos leva; que sim, ele parece infinito, mas
só porque começa e termina para além de nossa própria finitude.
Lucrécia, as patas erguidas dos cavalos e o retraimento dos vagabundos de chapéu de palha
fizeram seu lugar de acontecimento; caminho de história. Isso porque, antes mesmo da
chegada dos cavalos, Lucrécia já se preparava, entortada a cabeça. De forma quase indigente,
por pura ociosidade, ela meteu a cabeça na frescura da carvoaria. Depois, cada coisa, no
silêncio do sol. Aberta para a frescura da carvoaria, de cada coisa sob o silêncio do sol,
Lucrécia pôde ela mesma se fazer como parelha da parelha e se colocar em posição de quem
vê os homens de chapéu de palha, integrada à perspectiva dos cavalos, sacudindo toda aquela
realidade das calçadas.
Apenas começou a andar sozinha e já se arrependia porque era isso mesmo que
S.Geraldo queria.
Andava contida, mecânica, tentando mesmo certa ironia.
Mas os passos se multiplicavam e a praça de pedra marchava.
Interrompeu-se sem avisar, amarrou os cordões de botina...
Quando ergueu a cabeça resolveu não deixar de olhar o sobrado mais estreito, a
menor sombra. (CS, p.14)
O que Clarice relata nessa transformação que pode nos parecer tão pequena é uma
superação, uma ultrapassagem do andar de tropa (os passos que se multiplicavam). Em
relação à exigência de contenção e de mecanização, nem mesmo a ironia mostrou-se como
caminho para Lucrécia. Ah! Tão pequena a aprendizagem pela poesia da atenção, tão ínfima a
educação provocada pelo pensamento desse caminho que se abre. Nada, a não ser escritura e
memória se abrem nesse instante. Nada? Pois nesse instante, Lucrécia é devolvida à
experiência de realizar um modo de ser, de vigorar. Desse modo, ela escreve a memória da
cidade; sua vida passa a ser inscrita por ela, sua memória passa a ser lugar para a cidade
existir (cf. HEIDEGGER, 2004, p.8).
Este trabalho, portanto, procura simplesmente se colocar ao encalço desse modo de ser
presente, narrando o fio dos questionamentos que se fazem afirmações sem serem respostas; o
lugar de onde brota esse fio e para onde ele retorna. Como superar o andar de tropa? Como
superar a metafísica? Talvez na experiência. De algum modo, sempre algo permanece e algo
se perde – tanto do andar de tropa, quanto da metafísica. O instante é um cume a que se chega
mas do qual se é obrigado a descer sempre alguns degraus para que se possa narrar o fio dos
questionamentos que tece o acontecimento. Nessa meditação, retoma-se o acontecimento que
foi tudo que podia ser e que passa então a ser “esquecido” pois, não depende da
intencionalidade o seu acontecer de novo. Nesse caso, a tomada de decisão diz respeito a uma
disposição e a uma atenção à contingência de ser alguém idêntico e ao mesmo tempo
diferenciado, alguém em atitude de esvaziamento da vontade. A narração do acontecimento é
assim tanto o desprender-se dele quanto o lembrar-ser dele. Mas tanto em um quanto em outro
sentido, pre-sencia-se o acontecimento. A narração faz de novo o acontecimento acontecer, de
outro modo. Narração é memória no acontecimento. Por isso, não se pode separar Clarice de
Lucrécia ou de Martim; como também nesta rememoração quase poética, não se pode mais
separar o lido do leitor. Ao retomar esse entrelaçamento, percebe-se que a narradora presencia
o acontecimento e, no ânimo suave da duplicidade simples que existe entre ela e a
personagem, trilha caminho próprio. Narração é fragilização pois, por mais que se presencie,
sempre será tardia. Percebe-se também que, em alguns instantes, a narração toca o ouvinte, o
leitor. O tempo todo a narradora busca a mão do leitor e expõe um caminho que só se abre
para quem interrompe a marcha, para quem percebe o retraimento do homem diante das patas
dos cavalos. Escutar a narração, assim como tecer seu fio, assim como experimentar o
acontecimento é fragilização. Lucrécia, na cidade sitiada, ao rememorar o seu caminho para o
campo, nos expõe o seu esvaziamento, necessário a seu modo de estar viva. Martim, maçã no
escuro, em seu caminho para o campo (que o leva na realidade de volta à cidade) nos expõe
154
seu modo cru e enrugado, seu desimpedimento enfim pela ausência de pensamentos. Quando
ambos nada mais podem, algo lhes sobrevém em seu percurso.
Mas, antes de prosseguir nesse cruzamento Clarice-Lucrécia-Martim-leitor, passemos a
buscar o encalço de outra pista entrevista pela leitura da tese de Regina Pontieri (2001) sobre
“A cidade sitiada”. Trata-se de um outro cruzamento, dessa vez entre Perseu – um dos
namorados de Lucrécia (“A cidade sitiada”) – e Martim (“A maçã no escuro”). Neste último
romance, Martim é um homem em processo de cidadanização. Um processo que o levaria a
ser o que Perseu já é no primeiro romance – “o cidadão” – mesmo que escrito muito antes
cronologicamente. Essa analogia se deu à medida em que Pontieri identifica Perseu a cavalo
e corpo, pedra e casa e mundo. Ela vê, nessa fluidez, um caroço (que Perseu, no capítulo “O
cidadão” cospe sem parar pela janela, enquanto chupa tangerinas): um homem rígido, mas não
“pedra encerrada em em-si bruto”; um “germe de sua própria substanciação em fruta”. Em
Martim, porém, naquilo que ele tem de fluidez, ela identifica um esquema destrutivo, que se
transformaria ao final “numa estereotipia maciça”. Ainda que discordando dessa
interpretação, o movimento de aproximação entre os dois romances e personagens se impôs.
Aqui, entretanto, a aproximação ou cruzamento entre Perseu e Martim se estabelece pela
experiência do cidadão sem heroicidade, que é ponto de partida no primeiro e caminho aberto
no segundo (em nada estereotipado). Quanto à aproximação perceptível entre Lucrécia e
Martim, também marcaria aqui uma perspectiva diferente em relação à interpretação de
Pontieri (e também da crítica em geral, tal qual ela mesma apresenta), que vê ambos os
personagens tomados por um movimento de embrutecimento, ou seja, um desprovimento da
capacidade auto-reflexiva. Pois, no presente trabalho, esse mesmo desprovimento é lido como
um desimpedimento da subjetividade (da pedra encerrada num em-si bruto) que nos impede
de ver e de experimentar o “estrangeiro”, o inesperado.
Esse caminho para o campo, em que o campo se dá vazio, pode ser mesmo identificado
como pobre, mas considerado aqui como profundamente necessário (essencial) para que se
remonte à criação do mundo. Abrir mão da logística da vida, da mobilização, tal qual a de um
soldado que marcha, mobilizado por uma causa estratégica, em um jogo tático planejado,
significa aqui pôr-se a caminho, na direção onde aponta a escuta proporcionada pelo
cruzamento com algo que nos ultrapassa (algo que nos faz retrair como vagabundos de chapéu
de palha, algo que nos faz interromper a marcha). Sem nos rebelar contra nossa própria
fraqueza, seguimos. Isso é transcender. E não gritar alto a palavra “ideal”, como Lucrécia
presenciou assustada na Associação de moças. Transcender não é se dar essa “liberdade
espiritual” ignorante das forças sorrateiras da cidade, assim como o eram Lucrécia e os
155
destruidores buscam assim a gênese. Fugir, se a mim não me cabe a castidade da cidade ou a
inocência do campo. E se a fuga é necessária, por que não frui-la como uma grande viagem?
Se os caminhos são sujos e percorridos na escuridão, por que não rebentar os pensamentos em
gestos? Lá vai Lucrécia que deseja e odeia o forasteiro. Que firma aliança com o estrangeiro,
mas como negócio; como negação do erotismo nesse encontro; como traição e venda de sua
cidade (CS, p.119). Lucrécia fugiu.
Lá vai Lucrécia:
Buscar o longe, buscar o alheio, fazer aliança com o forasteiro levada pelo livre rancor do
“nada adianta”. Martim também sente desilusão no campo, que pode ser nada mais do “que
um depósito maior onde mil árvores tinham espaço para se perderem na distância”. Afinal,
pensa ele, “o mundo era só um lugar”. Só? Ao proferir essa palavrinha, perde-se o ilimitado
do lugar (ME, p.133). Horrível? Pois para se ir a qualquer lugar, para se tomar um caminho, é
preciso também saber anoitecer. O que é anoitecer? Talvez consentir a miséria do lugar: seja
no sentido da extrema utilidade que parece circundar todas as coisas na cidade, seja no da
extrema inutilidade no campo, como mato. Anoitecemos quando nos deixamos ser coisa que
vive e morre, para além desses sentidos com que os discursos tomam os lugares, sejam
cidades ou campos. Anoitecemos quando podemos pensar as coisas, em sua gratuidade total.
Esse, um dom a ser experimentado. Não é anoitecer que Lucrécia faz quando, “através das
buzinas abafadas”, “sente o prazer das ruas como fontes de um jardim” (CS, p.137)? Será
anoitecimento a corrida em pânico, empreendida por Martim, “protegido pela escuridão”
(ME, p.167)? Afundar-se no mecânico suceder das cidades, adentrar no negro coração do
bosque permite tão-somente que se mantenha a respiração, nossa garantia mais primária.
Enquanto isso uma “invisível jornada” se faz sob o caminho que se julga palmilhar.
O mundo é só um lugar. O mundo é cidade e campo. Terra é que é tudo. Na terra,
perfazemos a “invisível jornada”. No mundo, a esquecemos enquanto corremos em pânico,
protegidos pela escuridão e pelo prazer das buzinas abafadas. E não há pecado moral nesse
tipo de relação que o homem trava com o ser. Às vezes, a brisa sopra mesmo de um lado só e
o caminho faz desvio para se abrir de novo no ar.
158
Necessário anoitecer
Em “A linguagem”, Heidegger (cf. 2004, p.17) chama atenção para os viandantes da
errância, aqueles que viajam por veredas escuras e que atravessam para a morte, como o
encobrimento mais elevado do ser. Mas atravessam a escuridão para chegar à casa e à mesa e
poder dar estatuto de coisa à coisa, o que significa acolher cada coisa, tudo que vigora à sua
volta. Assim, quando os viandantes da errância chegam à casa e à mesa e se dirigem àqueles e
às coisas que ali estão e então se fazem caminho, e restituem o que é próprio de cada um a
todos os que o percorrem. Não é isso o que fazem os poetas?
Então, anoitecimento pode ser caminho, quando – desde o buraco – encontra-se com
pessoas e coisas já instalados, e reencontra a casa e a mesa. Anoitecimento não é, portanto,
inteligência, modelo e molde de ser. Em “Uma aprendizagem”, Lóri percebe, nas quedas, um
começo de vida e um susto porque sente o buraco como lugar de fé (cf. ALP, p.29). Nesse
susto tão grande, pode-se cair em abismo mais profundo ainda (ah, o fanatismo dos fiéis!)
mas fé pode ser também o pegar pé para dar o impulso e emergir, superar, redimir-se.
O pensamento ultrapassa a metafísica assim: descendo até a proximidade do mais
próximo. Acostumados com a idéia da redenção associada à ascensão, os homens se vêem
poderosos pela força que exprimem quando estão no alto. Para esses, a descida é ainda mais
difícil e perigosa, mas tão necessária como o foi para o Zaratustra que desce em direção aos
homens no crepúsculo. É a descida que conduz à pobreza contingencial do humano.
Ir, ir, buscar longe, esforço, exaustão. Quando Vitória explica para Martim porque foi
morar no campo afirma essa sua decisão como um erro. No entanto, afirma também uma
aproximação com uma força que não sabe explicar, uma motivação que a faz fazer tantas
coisas! “É como se houvesse um acontecimento que me espera, e então eu tento ir para ele, e
fico tentando, tentando” (ME, p.214). Vitória percebe-se viandante da errância (e Martim foi
o caminho para essa descoberta). Lucrécia – enquanto um cálice de licor é servido ao
estrangeiro – espera também um dia poder ir, ir, buscar longe: “enormes e inúteis passeios de
onde volta exausta”(ME, p.149).
É isso que se aprende nas ruas? Buscar? Talvez Lucrécia, preocupada com o cálice a ser
servido ao estrangeiro, tivesse perdido o caminho, e tenha feito da utilidade/inutilidade a
medida de seus passeios. Enquanto que, para se mover, mesmo que devagar, na grande
extensão que se faz presente nos caminhos, é preciso estar desimpedido pela ausência de
pensamento.
Assim
159
submisso respirar
atoleimado esforço
suportar
a luz intensa do campo –
fazer cego.
Quem sai do caminho por sua monotonia, e busca o estrangeiro para escapar da grosseria
do mundo, não percebe nesse caminho mesmo a proximidade sempre nova que a mudança das
estações proporciona (cf. HEIDEGGER, 1969). O segredo das coisas está em que,
manifestando-se, se manifestam iguais a elas mesmas. Lucrécia amanhece e vê tudo: o peixe
que é o único pensamento do peixe, a folhinha de calendário que o vento arrepiava... a mesma
clareza incompreensível. Não é preciso buscar longe. Quando Lucrécia está, o lugar se torna
paideumático. E não só por ser sensual, por manifestar-se aos seus cinco sentidos, mas porque
ele próprio transcende, configurando-se através dela, isto é, desdobrando-se em linguagem.
É lento
o trabalho de se tornar concreto.
É contra o gosto.
Como uma vaca, se atravessa o campo.
O tempo passa redondo.
E o campo cheio de luz
como coisa que rolando, se avoluma.
Viva então na latência das coisas
em espirais largas
como linha da curvatura da terra.
160
Caminhoar
Não importa se a voz de Lucrécia não pode e se esgarça; se os cabelos, espetados sob o
duro chapéu. Linguagem não é só dizer com a voz. Quando ela entra na rua do Mercado,
quem diz?
o vento a levantar-lhe a saia, ela segurando o chapéu com as duas mãos – tudo o que
jazia em lixo nos esgotos secos foi despertado pelo vento; apesar da firmeza, como o
subúrbio era reversível apenas pelo vento! (CS, p.49)
Vento: caminho que se faz para Lucrécia. Assim como, para Martim, o caminho foram as
vacas: a mesma inteligência somente essencial que tem ritmo próprio, que não pode ser
brutalizado.
Aos poucos tembém este se tornou o tempo do homem. Redondo, lento, incontável
por um calendário, pois assim é que uma vaca atravessa o campo. (ME, p.75)
Martim exulta: “há um lugar onde, antes da ordem e antes do nome, eu sou!” (ME, p. 246)
E, tal como o tempo das vacas é redondo e incontável por um calendário, o lugar onde se é,
onde se está, o lugar paideumático, de reencontro com o ser, não se encontra num mapa.
Implica mesmo na superação do calendário, na derrubada do licor ao estrangeiro; implica em
transcender e transdescender (ou imanar), em se deixar ultrapassar pelos acontecimentos.
Então, acabou o esforço, a exaustão, a busca? Qual nada! Como fazer cego, define-se a
existência de todos os dias. Pois existe um desejo que se realiza como trabalho e um trabalho
que abre o horizonte de realidade da montanha. Trabalho que é gesto, que é muitas vezes o
deixar os cabelos desfeitos ao vento. Trabalho que é linguagem e dizer através também de
gestos simples como esse: arrancar o chapéu e deixar os cabelos desfeitos ao vento. O que
Lucrécia queria dizer com esse gesto “só as árvores assistiam, e os cavalos avançavam entre
elas” (CS, p.151-2). Estar nesse “estado de trabalho” é também às vezes se calar. Dá trabalho
não falar de certezas. Perseu simplesmente “nunca falava da certeza já um pouco ansiada de
ser um bom médico” (CS, p.190). Enquanto para Martim, seu trabalho se fazia para vencer a
vaidade de pertencer a um campo tão grande (cf. ME, p.112-3).
161
caminho do campo próprio da cidade. Afinal, não se pode negar a diferença cidade-campo. Se
ainda se encontram vestígios da pólis grega em nossas cidades, na pequena S. Geraldo,
também se encontra linguagem própria, que um dia foi autêntica, da política, em tudo que ela
implica de amor ao próximo (no sentido de philia, que irmana eros e logos), mas também de
doxa (no sentido de autonomia e criatividade do pensamento) e de autoctonia (no sentido de
amor ao lugar que nos sustenta e acolhe). Essa visão rememorada de uma cidade a caminho
do campo talvez se confunda com uma visão idílica e utópica de seus habitantes atravessados
pelos sentidos de ser-no-mundo; de ser-em-algum-lugar; e de ser em direção-a-si-mesmo.
Idílica e utópica sim enquanto idealizações da pólis grega, mas possíveis também enquanto
linguagem, trabalho, jogo. Enquanto travessia.
Se nos detivermos nesse acontecimento que é a linguagem, compreenderemos a dupla
dimensão do homem: encoberto e revelado, enquanto simultaneidade do ser e do não ser.
“Fazer verdade”, portanto, é colocar-se nessa travessia entre ser e não ser, em que um se faz
por e através do outro. Assim, através do olhar lispectoriano da cidade sitiada (a pólis
tiranizada pela idéia de progesso), percorre-se o caminho do campo enunciado por Heidegger,
ainda que no próprio da cidade, na medida em que essa se reencontra com o seu destino de
lugar de acolhida e de trocas; de passagem e de instalações; de produção de saberes e de
temporalização de acontecimentos originários.
Em lojas e mercados a vida parece menor, cabe-se dentro deles sem medo. Ninguém sabe
quem o outro é, e a gente mesmo não sabe quem é, a gente não sabe o que o outro é, o outro
também não sabe quem é. “E todos no entanto estavam tão vivos quanto se pode estar vivo”
(ME, p.70). Quais as palavras certas para se dizer um acontecimento de modo que ele seja
reconhecido como verdadeiro? O vazio, a solidão, a mudez não dão garantia nenhuma e é
preciso criar. “Fazer a verdade para poder vê-la” (ME, p.32). Mas se essa verdade se faz sem
método e sem tema, precisa no entanto de se fazer num campo; ela abre campos, atém-se a
campos, pertence a campos. Fazer a verdade para poder vê-la é um caminho que se cruza
também na direção contrária: olhar campos que sustentam o pensamento, que nos preparam
possibilidades de experiência (de verdade). Um campo aberto para a vizinhança da poesia: um
retorno lento para onde nós já estamos.
Campo então “é a clareira onde o claro e o encoberto alcançam o livre”; e “caminho é que
nos permite alcançar o que nos alcança, o que nos lança uma intimação” (HEIDEGGER,
2004, p. 154-5). O campo concede, inaugura caminhos; encaminha. E, nesse abrir e construir
caminho, faz-se um modo de ser próprio: o do caminhoar. Caminhoar é olhar ao redor de si
com independência, leve, sem desejo e, por isso, mesmo, aberto ao pensamento próprio que o
163
caminho resgarda e concede. No caminho, um sentido se dá, tanto que a tentação é grande de
– embriagados – criarmos um método a partir daí. Se, para cada caminho, há um guia, como o
vento, as vacas, os cavalos, procura-se torná-los símbolos em permanente disposição para
indicar-nos acessos privilegiados para o sentido. Mas esses guias (que podem ser palavras
norteadoras em um poema) são acenos e não respostas. “Acenam, fazendo-nos passar das
representações corriqueiras da linguagem para a experiência da linguagem como saga do
dizer” (idem:159).
Na cidade, há caminhos que perfazem sua fundação quando se percebe o aceno de suas
coisas simples, parcas. Em suas lojas e mercados, onde a vida parece menor, subjazem, no
entanto, campos, como regiões paideumáticas, prontas a nos acenarem caminhos. Todos
reconhecem nos cantos, nas festas populares, nos monumentos essa intenção – a de demarcar
regiões educativas, campos de ensino e de aprendizagem. Mas lojas e mercados talvez
também abriguem uma última jovialidade. Em alguma praça ou banco de ônibus, pode haver
algo mais do que falatório. Lugar oportuno é o do linguajar enérgico e rico de imagens, o das
palavras antigas que acordam um sentido que ama a liberdade.
Sem-saber-para-onde-ir é o caminho do campo? O caminho do campo parece ser o do
coração da liberdade. O da ausência do impedimento e ao mesmo tempo o da sabedoria de
que a imensidão nos obriga à restrição. Pois o tempo em que o mundo era acessível parece
que termina. Parece que o mundo se multiplicou, não pára de se multiplicar. Se se pensa em
quantidade, é assustador. Se se pensa em diversidade, é rico. Como valor de troca, o mundo é
temível. “O poder tornara-se grande, as mãos inteligentes” (ME, p.34). A verdade organizada
pode ser bela e desapontadora. Des-apontadora.
“Sobretudo havia as crianças se levantando de nossos campos de batalha, frutos puros e
fatais do amor ruim” (ME, p.35). A frase de Clarice Lispector, tão lapidada e sofrida lembra
as crianças mal paridas e o lamento das não paridas feitas por Trackl diante de um campo de
batalha onde só se via mortos e abatidos. Um campo de batalha é um campo coberto por uma
camada que o sufoca, tal qual o asfalto que nos impede de ver o chão. Mas um campo em que
uma batalha se dá ou se deu ou onde uma batalha se dá permanentemente entra em estado de
camada única. O campo de Trackl dura até encontrar-se com o campo visto por Martim, em
que não há “minha época e a época antes de mim”, não há nem mesmo Brasil e Alemanha. É
claro que tais afirmações podem ser apenas minha língua que engordou demais na boca, e
esses pensamentos não serem mais do que ânsia. Em toda claridade, há escuridão. Um homem
tem às vezes que desistir para poder novamente se sentar num restaurante com grande
164
harmonia e dizer “sua época e a minha”, “Brasil e Alemanha”. Escuta-se com esperança?
“Mas a noite, a noite rodeando a torre do relógio é a resposta” (CS, p.74).
Sim e não, claro e escuro, noite e dia: é essa a circularidade de que damos testemunho. E é
o quanto basta para “instaurar o ser como abertura de um mundo, e como início de uma
história, na qual os homens pertencentes a este mundo e a esta história viverão. Um novo
trovão rola com tristeza? A moça ronrona de prazer. Sim, cair na armadilha da harmonia.
Cair na armadilha da harmonia como se às cegas e por caminhos tortos tivesse executado
em pura obediência um círculo fatal perfeito – até encontrar-se de novo, no mesmo ponto de
partida que é o próprio ponto final. E se esse caminho apenas circular torna inúteis todos os
passos, no fundo mesmo de seu medo o homem de repente parece admitir que sua natureza
desconhecida é mais poderosa que sua liberdade (cf.ME, p.170-1).
No caminho circular, Martim e Lucrécia se encontram, para depois se perderem e se
perderem de si mesmos. Para finalmente encontrarem a vida comum na qual alegria e dor se
interpenetram, na qual gestos são de pedra, mas são gestos e – para quem testemunha a
circularidade, o movimento ao mesmo tempo, constante e vário – em todo gesto o oculto está
exteriorizado e em evidência. Todo gesto conserva, “para sua perfeição, o mesmo caráter
incompreensível: o botão inexplicável da rosa” que se abre “trêmulo e mecânico em flor
inexplicável” (CS, p.80). Martim vibra: flor entreaberta é alarme de vida (cf.ME, p.39).
Desejo descalço
Vida será profecia? Às vezes, o simultâneo acontece. Vida (campo, cidade, lugar) como
lugar da temporalidade e sonho protegido; como um carvalho no caminho do campo que leva
a pensar nos jogos de infância e que, pela lentidão e pela sua constância de crescer, faz o
caminhante sentir consistência e odores. Às vezes – por prodigalidade e abandono – se pode
ser o lugar, tal a adesão que se pre-ssente entre a força de entreabrir e a flor entreaberta. Pois
tudo que for maduro só chega à maturidade se o homem estiver disponível para o apelo do ser
do lugar. E, se não se pode ser a flor, pelo menos passa-se a fazer parte dela porque dela se fez
verdade e é só assim que se pode vê-la a se entreabrir.
Segundo Benedito Nunes (1989, p.108), Lucrécia sente, pensa e age de acordo com o ser
coletivo (demonismo) que a vigia e por quem se modela. Diz isso com um certo tom de
desconsolo pela experiência reflexiva da moça convertida “no reflexo oblíquo de alguém que
ela não vê: instância anônima, absorvente que não é ninguém”. Será? Bom, ser instância
anônima não é assim tão mal. Lucrécia se parece com o seu subúrbio? E em seu subúrbio
nenhum acontecimento se desencadeia? Então o que será dela? Talvez fosse melhor
165
despregar-se dele e tomar um caminho para bem longe, como ela também – em certos e outros
momentos – queria fazer. Ironias à parte, já se percebeu que a rua pode ser também caminho
do campo. E que Lucrécia sim, vê. Tal como Martim, que em seu caminho-paixão de viver, vê
que as coisas são muito mais que a casca seca. E que – se o perigo está sob a secura; se tudo o
que existe é horrível e maduro – as coisas imperfeitas parecem pedir sua compreensão
(cf.ME, p.211-2).
Depois disso, pode-se arrancar do que diz Benedito Nunes – de que todo percurso é uma
forma de itinerância humana – até mesmo sua compreensão para a falta de vínculos sociais e
históricos que ele percebe em Lucrécia. Diz ele que esse tipo de itinerância é antes de tudo
uma “infelicidade natural da nossa condição fraca e mortal” (1989, p.114). Martim chamaria
de “desejo descalço”. Montado no cavalo que serve de guia a Lucrécia, ele se sente no
cumprimento de uma missão e ambos parecem ver o mundo como pergunta.
São peregrinos. O caminho que ambos seguem é circular mas assim mesmo eles
peregrinam. Buscam continuamente, num caminho entre palavras (pois ir para sempre da
cidade é abandonar sua falta de palavras, sua mudez) para ir buscar uma linguagem comum.
Quando Martim também se prepara para ir embora do campo, o que espera encontrar? O
“grande lugar comum a todos”. Nada a ver com espaço de comunicação. Ou melhor, pode ser
também espaço de comunicação. Tanto quanto uma porta forjada com enigmas da existência.
E pelo menos ela já possuía a própria forma como instrumento de olhar: o gesto.
(CS, p.84)
Pois o lugar comum é o destino do enorme vazio, da inquieta procura. Para partir é preciso
estar inesperadamente humilde, feliz por não dominar o vasto. Ser assim cumpridor, é estar no
momento da abertura da flor, pronto para ser agarrado pela beleza. Para isso, a mobilização
166
desaparecimento no horizonte. Quem ascende ou o quê ascende vai, sobe, até desaparecer.
Enquanto quem ou o quê agride está munido de uma energia de choque, podendo até mesmo
desaparecer, mas só se houver antes uma explosão. Dificilmente se associaria a serenidade à
transgressão, portanto. Seu porvir estaria mais próximo ao finito. Transgressão, em termos
figurados, é o lado profano do transcender, pois pressupõe uma espécie de trânsito rasteiro,
um chão. Assim, quem transgride está afeito a se esbarrar e a interagir, com uma carga de
energia que faz com que o quê transgride atravesse a coisa esbarrada, indo além dela,
carregando junto algo dela talvez. Por isso, faz-se também possível a sua aproximação com
potência e vontade de poder; pelo apoderamento que se inclui no movimento transgressor.
No capítulo 3, sobre a poiesis e a abertura de um horizonte para cidade, faz-se
referência a quatro modos da poiesis se configurar: a recusa, a transgressão, a isenção e o
posicionamento. Aqui se privilegia o segundo modo, como experiência de ser humano em
meio urbano, buscando-se acompanhar as possibilidades da errância transgressora se fazer
caminho. Talvez no título deste ensaio resida um pleonasmo, considerando que na
transgressão persiste a interação com o sistema em relação ao qual se queira reagir. Nesse
momento, no entanto, interagir – que antes foi considerado como um obstáculo à poiesis
posicionada pelo habitar comunitário – mesmo que seja pela reatividade, parece indicar um
fazer que se deixa atravessar pela concretude do momento, apresentando-se assim como uma
questão digna de ser pensada.27
Perspectivas de transgressão
Lucrécia, Martim e também Lori não são os típicos heróis da transgressão, enquanto
forma aguda de interação. São personagens introvertidos; têm uma vida interior rica, como se
diz, mas possuiriam aquela potência ou vontade de poder, enquanto apoderamento de alguma
coisa, em seu atravessamento? Mas a luta se dá em qualquer circunstância, seja qual foi o
modo de ser da personagem, conquanto esteja numa travessia. Em Martim, há luta e
transgressão, em sua fuga e em seu esconderijo (até que ele se mostra e se entrega ao final);
em Lucrécia, há também luta e transgressão, em seu ser transeunte e seu trânsito pela cidade
(até que ao final ela vai embora para ficar em um lugar); e em Lóri, há luta e trangressão, em
sua descoberta erótica do mundo (até que ao final ela se mostra atravessável, ela própria lugar
a ser transgredido, em sua solidez e acolhimento). Agraciados então, os três do seu sentido
27 A palavra “transgressão” tem uma história que pode ser contada pela vertente da sacralidade, da negatividade
ou do atravessamento de um ente por outro, ou ainda de um ente que “sai dos trilhos” não se sabe por quê, na
pro-cura plenificada justamente por uma não-reação ao mistério que somos (cf. CASTRO, 2004b).
168
chão, podem passar agora a mostrar sua experiência transgressora, enquanto potência e
vontade de poder. A reflexão de tais termos se dá aqui a partir da leitura do Zaratustra de
Nietzsche, ou melhor, de uma interpretação “transgressora” da expressão, atravessada tão-
simplesmente pela indagação do que vem a ser “vontade de poder” no corpo poético de
Clarice Lispector. Esse o meu horizonte. Sabendo, no entanto, que quanto maior a solidez do
que se atravessa, mais o horizonte se mostra em sua inteireza, espera-se que o texto da
experiência Martim-Lucrécia-Lóri possa mostrar, ao final da leitura desta parte do trabalho, o
que é transgredir/interagir na perspectiva que lhes é própria, abarcando nessas palavras a
possibilidade de transcender no chão.
Martim, Lucrécia, Lóri são três perspectivas da transgressão, o que nos faz aproximar
essas duas palavras: perspectiva e transgressão, lembrando que ver através de uma perspectiva
é olhar até o fim, implicando num necessário estar, numa necessária assunção de um lugar
para poder ver. Não se desvincula aqui o horizonte da perspectiva. Digamos que a perspectiva
é um modo de dizer horizonte em sua proximidade. A possibilidade de transcendência
presente na transgressão residiria então na sua perspectivação. Já que só se pode ir além do
que se vê, e só se vê aquilo que se torna visível ao nosso olhar, a tomada de decisão percebida
em Lucrécia (a decisão de tudo ver) pode ser assim concebida como tomada de perspectiva,
de interesse, de afeição, e, ainda que o que ela passe a ver não se resuma a essa
perspectivação, o que ela passa a ver passa a ser visto, passa a existir no horizonte aberto por
esse seu modo interessado de ver. Ou seja: as coisas não existem apenas porque são vistas,
mas precisam ser vistas, de acordo com um modo próprio de ver, para existirem, concebendo
existir como aparecer. Assim, não se pode confundir modo de aparecer com “causa” do
aparecimento, mas pode-se reunir o se mostrar da coisa com o ver essa mesma coisa. Mas
como aproximar o ver-através-da-perspectiva com o ir-além da transgressão? O
atravessamento que a pouco se dizia como movimento próprio da dinâmica transgressora não
implicaria numa destruição da coisa e numa afirmação de quem, poderoso, se encontra dono
dos despojos dessa luta com a coisa atravessada/destruída em sua transgressão?
Talvez seja necessário destruir para retornar à gênese, desconquistar um sentido para
retomá-lo; e para se colocar numa perspectiva em que as coisas se mostrem, talvez seja
necessário des-locar-se e isso, de algum modo, pode se tornar um crime, uma fuga, uma
negação de um determinado modo de ser: um ir além. Para interagir, seria preciso então se
distanciar e não agir. Para ir além, estar aquém: tornar-se uma coisa solitária, um espírito em
estado de sonho, aberto ao que irrompe. Transgredir é poder ser atravessado e tocado por algo
que se mostra. Nesse movimento, vibra mais inocência do que crítica, mas vibra também algo
169
de desejo materializado, vontade realizada num fazer, mesmo que esse fazer seja a assunção
de um lugar deslocado.
Talvez a aparição destacada da palavra transgressão aqui se dê como afirmação da
força presente no ato de ver a cidade, percebendo-a como obra de arte, como lugar a ser
habitado e como caminho do campo. Nada disso que até agora se disse se dá sem força.
Paidéia poética não é sinônimo de moleza, falta de consistência; leveza não é o mesmo que
ausência de corpo.
***
São as onze, disse o tenente Felipe. Disse para todos e para ninguém, durante a festa
do padroeiro São Geraldo. Hora de estar na cidade de corpo presente e, no ritual da festa, estar
de uma só vez com muitos moradores da cidade. Com o patrocínio da igreja, o encontro
parece mais solene pois o povo, em suspenso, fica fora da ordem do trabalho; reverente a uma
ordem dourada, em que o sagrado é um estandarte comemorado por artifícios: fogos e gritos
de carrossel. Trata-se de uma provocação de chegada. Nesse momento turbilhonante, a
multidão é tocada do sono. E não é isso que se espera da cidade como obra de arte; da cidade
habitada; da cidade a caminho do campo? São as onze. Hora de tenência e de tomar decisões
que imponham limites ao ilimitado e amargo poder da burocracia, da tecnologia, da
metafísica, da divisão social, da exclusão do poético; e aproveitar a chegada do povo, mesmo
que provocada, para fazê-lo “ouvir um momento o espaço”, para trazer à linguagem esse
homem turbilhonante livre. Esta a nossa tarefa, afinal. Como pensadores, questionar: nessa
multidão em festa, talvez seja possível obrar alguma arte, habitar algum ser humano, fundar-
se alguma cidade, encaminhar-se algum sentido.
Mas é disso que se vai falar novamente? Disso mesmo, mas não de maneira igual.
Trata-se agora de falar disso enquanto transgressão da ordem, necessidade de transgredir; e
imposição de limites, necessidade de limitar. Transgredir e interagir: dois pólos divergentes e
necessários para que a cidade se funda incessantemente como obra de arte e como lugar de
paidéia poética. Estamos nas onze horas deste trabalho: momento de se arriscar na
investigação dessa divergência e buscar pistas para quem se encontra engajado no pensamento
da cidade sitiada, da aprendizagem como livro de prazeres, e para quem quer colher uma
maçã na Vida, ainda que no escuro.
A máscara e a dor
Mas a dor da solidão nos faz recuar a cada momento de distração. A via-crucis, afinal,
fica fora da zona da retreta. A multidão se concentra na margem de cá ou na margem de lá.
Por que se mortificar, ficando na passagem? A vida em público, nas margens pré-definidas do
mundo, parece tão sorridente. Às armas, então, contra a dor! E passamos a sorrir em público
do que não sorriríamos quando estamos sozinhos. E é assim que Lóri, sem compreender ainda
o significado do que se chama vitória nossa de cada dia, nem do que poderia ser uma
transgressão amorosa, empenha-se na criação de sua “persona”. Às vezes, devemos
reconhecer nossas limitações, não? Se é impossível a autenticidade, por que não afivelar no
próprio rosto uma máscara como faziam os antigos atores gregos ou romanos. Lóri pondera
que existe um dar-se também através da máscara, tão importante quanto “o dar-se pela dor do
rosto”. A fabricação de uma máscara, no processo de adolescência, parece comprovar isso: é
também feita à custa de muita dor. É uma surpresa amedrontadora ter de representar um
papel. É horrível a liberdade de não-ser (cf. ALP, p.91).
Assim somos nós, seres limitados e militantes de uma máscara escolhida. Mas
acontece que as coisas acontecem e a dor não se corta (a máscara consegue apenas limitá-la).
A dor acontece, mesmo que estejamos no umbral da porta e, sem coragem, vejamos essa
mesma dor acenar como guardiã de uma passagem misteriosa. Ah mistério. Lá reside o
prazer? Lá, para além da dor? Se ficamos no umbral da porta, sem chegar perto da dor (como
um cão? um dragão? um espelho?), sofremos o tempo todo porque a dor acena, a dor
acontece, mesmo e sempre a quem existe. Viramos o rosto, mas sem a dor a nos acenar, o que
sobra (pois o mistério e o possível prazer estão para além, e não aquém, da dor)? “Sem a dor,
ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato” (ALP,
p.38).
Então, fiquemos doloridos, doentes, como experiência transgressora a esse absurdo
que é precisar sofrer para se ter contato com o mundo. Ah doce exílio da doença, conforto da
inadaptação. Como é bom que o corpo pife e diga em seus sintomas que ele é limitado! Mas
mesma na doença, permanecem, ainda que sublinhadas em vermelho, as margens entre vida e
morte. E, paradoxalmente, mesmo na saúde, permanece a necessidade da salvação. Parece que
estamos sempre em perigo. Se a dor bate e bate à nossa porta, e ficamos quietinhos, ela só
172
finge que vai embora. Nesse processo, fica tudo paralisado: parada a vida de sentimentos.
Talvez o melhor seja pedir a alguém que nos salve. A interação talvez seja a salvação! E
passamos a dar choques em público na esperança de uma salvação, “uma” salvação, sem nos
darmos conta que esses choques provocam movimentos na vida sem dor e paralisada de
sentimentos, mas apenas no interesse da multiplicidade de feitos interpretados
“objetivamente” como realizações pessoais ou profissionais. Ou seja: sem a necessária
consistência do movimento proveniente de um modo de estar presente como realização no
tempo. Quem sabe possamos aqui discernir esse modo de estar e ser presente com o anterior,
próprio de uma realização do tempo passado, a qual devemos constantemente interagir, mas
destruindo-a?
Ato de destruição
Já falamos sobre a necessidade de destruir conceitos de cidade e de campo. Aqui
também buscamos a destruição como gênese, como parte da paidéia que vai de encontro a
uma ordem nova, sem compromissos com tradições petrificadas que impõem ao presente uma
atualidade pré-fabricada. Estranho porém é que essa destruição se inicie aqui pela positividade
da doença, da máscara, do ato grosseiro, aquele que se dá como simples fuga do
entorpecimento.
Clarice Lispector relata a potência do gesto, no momento em que esse nos ultrapassa.
Em um minuto, Martim fora transfigurado pelo seu próprio ato. Porque depois de
duas semanas de silêncio, eis que ele muito naturalmente passara a chamar seu crime
de “ato”. (ME, p.29)
Mas essa mesma sensação de vitória dura uma fração de segundo. É um retorno que o
lança para o futuro. E a realidade está tanto lá quanto no profundo entorpecimento. A
realidade das margens pré-definidas. Mas o movimento entre uma e outra estava aprendido,
tanto quanto um rato grosseiramente se esgueira para chegar sua boca onde está o alimento. E,
na voracidade cega e entorpecida, esse movimento realiza um ato, em presença. A dimensão
rato de Martim se constitui como visão passageira desse enigma que é viver, subsistir,
simplesmente ser.
Também Lóri, em um determinado momento de sua aprendizagem, usa a máscara de
palhaço da pintura excessiva. Aquela mesma que nos partos da adolescência se escolhe para
não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que faça mal deixar o próprio rosto
exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em
173
súbita máscara involuntária e terrível: era pois menos perigoso, antes que isso fatalmente
acontecesse, escolher sozinha ser uma “persona”. Escolher a própria máscara é um gesto
voluntário humano e solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolhe
para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça pode às
vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo e a pessoa move-se (cf. ALP,
p.91-2).
Nem adianta julgar, se essa é uma atitude de valor moral. São apenas indícios de uma
destruição possível, o início de uma “grande cólera” (ME, p.29). Devem haver, em tratados de
psicologia, investigações sobre o histerismo como sintoma. Aqui, máscara e outros atos
grosseiros movidos pela fome de ser no mundo são considerados parte de uma linguagem em
que se sinaliza, apenas sinaliza, a grande cólera.
... Os movimentos histéricos de um animal preso tinham como intenção libertar, por
meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo – a
ignorância do movimento único, exato e libertador era o que tornava um animal
histérico: ele apelava para o descontrole – durante o sábio descontrole de Lóri ela
tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida primitiva e
animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que
o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede. (ALP, p.12)
dar conta não nos poupa de acontecimentos humilhantes. Os homens às vezes vêem suas
máscaras se espatifarem, depois de anos de relativo sucesso no inter-jeitivo e na truculência.
Pode ser por um olhar pasageiro ou uma palavra ouvida; uma palavra ouvida, um olhar
entrevisto e de repente a máscara de guerra da vida cresta-se toda como lama seca, e os
pedaços irregulares caem no chão com um ruído oco.
Pequena vitória
O que fazer no fim do baile de máscaras? Começar uma festa íntima, talvez. Persistir
no movimento pendular que perturba a intimidade e provoca o ser-no-caminho da experiência
do mundo. Ah experimentar enfim em pleno a experiência do mundo, mesmo que dolorosa é
tudo que Lóri quer (é tudo que queremos?). Não sei. Do outro lado da margem da cidade,
Martim brinda com as vacas e com os ratos, com um copo de suor e em uma atmosfera escura
e plena de cheiro de terra e de axilas, em homenagem a sua natureza pouca divina. Ele – o
inter-jeitivo e ainda furtivo – também está prenhe da experiência de mundo doloroso. À
experiência, a isso brinda! Mesmo que negativa. Grassi (s/d, p.147) diz que “experiências
negativas só são possíveis quando se está sob a compulsão de um regulamento, de uma lei, de
uma obrigação que não se pode cumprir”. Lóri já não pode sustentar sua máscara, Martim
quer inventar uma nova linguagem com palavras próprias, na qual a palavra “crime” não seja
admitida. Ele tem vontade de romper com a marca “criminoso-vulgar-em-fuga”. São palavras
alheias. Mas ouvidas. Cai a máscara. Mas o que é o crime então? Experiência de mundo, ato
de ruptura com a sociedade. O mundo criminoso nega o social.
Pode-se ser um criminoso e amar o mundo então? O sim seria chocante pois se
admitiria que sim, quem ama pode matar, e matar ao amante como um pedido secreto. Na
relação de transgressão amorosa com o mundo, no entanto, é uma pequena vitória poder usar
a palavra amor, mesmo que reconhecendo sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros
contraditórios. Sem máscara e sem a palavra crime (ainda que se tenha cometido o ato
criminoso) e na ânsia da palavra amor, eis um doente da sua própria libertação, assim como o
Zaratustra, em “O convalescente” (NIETZSCHE, 2003, p.170). Prenhe de sua truculência, o
homem, diz ele, é o mais cruel de todos os animais. Satisfeito, assiste a tragédias, touradas e
crucificações. E, oh suprema inspiração, o homem inventou o inferno: e fez, deste, o seu céu
na terra, louvando-o, buscando-o, satisfazendo-se com pequenices e mesquinhezas. No grande
homem, pende em ânsia um homem pequeno. E o homem pequeno, acusa Zaratustra, se curva
diante de palavras de acusação à vida, mesmo que elas sejam ditas por um poeta. Zaratustra
175
está conturbado: se vê também pequeno nesse momento em que acusa o homem pequeno que
sente prazer em toda acusação.
O convalescente é aquele que se dá conta então de que a doença como experiência
transgressora, o crime como experiência transgressora fazem parte de uma condição incurável
do mundo. Sempre nos oporemos à sociedade, amando ao mundo? Essa parece ser mesmo
uma condição que não se cura. Mas Ulisses, em sua aventura de aprendizagem, afirma,
porém, que o medo da condição, sim, é curável. Temos de lidar com o finito, mesmo que
debatendo e cansando o nosso corpo, em processo de libertação, mesmo que “animalesca”.
Rebelar-se contra o finito é querer o asseguramento do infinito. O medo secretamente se
esconde nas palavras rebeldes. Pouco, o homem precisa agora lançar-se em busca é dessa
cura, desse medo do finito.
Transgressão e amorosidade
O corpo de Lóri se consola de sua própria exigüidade na relação com a vastidão do
mar: “é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava
pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias” (ALP, p.83) Zaratustra ouve
os conselhos de suas aves: “ter de cantar de novo: é este o consolo que inventei para mim; eis
a minha cura” (op. cit., p.171). E Martim se inventa herói, capaz de sacrifícios, com o destino
do desempenho de uma missão entre os homens.
Usemos, pois, a palavra salvação, sem nos envergonharmos de sermos inocentes. A
isso podemos chamar uma vitória nossa de cada dia e experiência transgressora e amorosa
com o mundo. A isso que é dar destino aos instantes, que é querer obscuramente que a nossa
vida tome o tamanho de um destino. Heróis um pouco ansiosos, sentimos que um instante
acaba e pode nunca mais voltar, e nos encarniçamos então sobre ele. Vivifiquemos nossa
imaginação, peguemos a mão livre do homem, e em imaginação ainda, prendamos essa mão
entre as nossas. E ela, toda doce, há de arder, arder, flamejar.
Enquanto isso, Perseu, o herói-cidadão de São Geraldo, via-se a si mesmo andando,
em “intimidade exterior”, com certa consciência de sua solidão. Essa “certa consciência” é
sua maneira de ser inocente. E é em estado de hesitação e pena que ele diz, como uma criança,
“chão” (cf. CS, p.42). E anda, anda, anda, pega a mão, canta, faz-se herói. O chão, a mão, o
mundo: em inocência, surge uma obscura raça de construtores (cf. CS, p.199).
Consciência dissonante
176
Vamos investigar agora essa “certa consciência”, em que “certa” vem a ser sinal de
inocência e ao mesmo tempo de construção. E como essa lucidez, como clareza da realidade
do chão e da mão, pode se tornar um inferno humano (mais um!), à medida que, “em termos
de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade” (ALP, p.131), a clareza de
realidade é um risco. Somos seres cindidos e não há como se instalar na consciência na
medida certa. Mas, tocada a nossa carne no chão e pela mão, aquela diária e permanente
acomodação à irrealidade sofre um choque: é uma pequena contradição que se instala. E essa
contradição se torna oração e canto, inocentes e construtores.
Somos seres cindidos: é a lei da dissolução, própria do mundo atual. De um lado, estão
as forças da natureza, a nossa carne, da qual brota chão e toque de mão; de outro, o poder
humano, o espírito superestimado do homem, do qual brota... chão e toque de mão! A própria
dissonância traz em si a lei da dissolução. Oração e canto anunciam a dissolução da
dissonância! Nas onze horas deste trabalho, se encontram o crepúsculo de Zaratustra,
momento em que a humanidade se dissolve, e a madrugada de Efigênia, mulher que reza nas
bordas da cidade de São Geraldo, uma arauta de um passado indissoluto retomado no
presente. Tudo estremece, cada vez mais, embora nada se transforme. Há oração e canto,
percebemos a força do não e experimentamos o sim. Mas permanecemos na via negativa, em
que uma folha vibra “em aço no meio da ramagem escura como sinal para ser vista” (CS,
p.29). Estamos, com perverso gosto, distanciados da “linguagem dos outros”, atrevidos que
somos em orar e cantar. E é por esse atrevimento mesmo que nos arriscamos, transgressores e
amorosos, a fazer contato, obscura contrução, para que a pessoa se abra.
Lucrécia sentou-se para tomar café com a mãe, Ana. “Talvez pensasse em “como seria
burlesca a vida de ambas se elas se falassem”. E em “como S.Geraldo se destruiria se, em vez
de espiá-lo mantendo-o fora de alcance da voz – alguém falasse enfim” (CS, p.69). Oração,
canto e conversa. Um dizer que pode ser quebra de resistência pela sinceridade, mas pode
também ser falta de necessidade de se explicar: a invenção de uma língua desinteligente,
espontânea em seu dizer, em obediência ao mistério de ser, sem estar mobilizada ou motivada
por nada. Aqui se encontra o transgredir e o transcender-imanar na cidade: o ser-no-mundo e
o ser-no-caminho-do-campo. No meio do risco, nos encontramos.
Cansados do esforço da libertação, em convalescência ainda, deserto crepuscular de
um, madrugada de outro se encontram na noite de nossa fraqueza, nossa dificuldade em dizer,
nosso aparecer burlesco. Mas por que essa pequena vitória nossa de cada dia, essa experiência
nossa de transgressão amorosa tem de ser chamada de fraqueza e não de candura?
177
A doçura do herói
Desde menino sempre tivera tendência para a celebração,
o que era a parte mais generosa de sua natureza:
essa tendência ao grandioso.
Mas, afinal, tudo o que a gente tenta é mesmo
preparar um “finale” perfeito.
No que, é verdade, há o perigo de se começar a falar alto,
e , afinal, só a doçura é potência.
Cantar, orar, conversar são “finales” perfeitos da humanidade. Por si só, já são suficiente
motivação, celebrações de se estar vivo e amoroso e interativo. E viva essa transgressão de ser
só isso! Mas aqui a interjeição mostra-se em demasia. A preparação, a interjeição: há algo aí
que não combina com o risco, e talvez seja o excesso de desejo, a superexposição de si como
autor de uma façanha, a falta de cuidado com o canto, a oração, a conversa. Doçura, doçura.
Doçura é potência, diz Clarice Lispector. A espontaneidade de que estamos falando aqui, do
ponto de vista individual, não tem gosto de reconhecimento, nem de sucesso. A pequena
vitória de cada dia, é disso que estamos falando. Aquela que se torna possível por um se
deixar viver. Esse herói então não vive a si mesmo, seu “finale”, mesmo que nossa tendência
seja de grandiosidade, prediz apenas uma pequena vitória. Esse herói está sendo vivido, não
pode falar alto demais. Por isso, essa espontaneidade, do ponto de vista individual, parece
negativa (cf. WILHELM in LAO-TZU, 1978, p.26-7). Suas falas são um “submisso respirar”.
Um herói chapliniano, kungfuístico, burlesco: um herói lispectoriano espera que a vida
mostre em cada instante e acontecimento a ação necessária. O poder heróico está em se
oferecer como complemento necessário a cada acontecimento para que, dentro da lei da
dissolução do mundo atual, ressoe a contradição do mundo como pergunta. Qual a pergunta,
que em aceno, o mundo nos sugere? Somos livres para vivê-la e podemos mesmo reinventá-la
como interjeição. Desse modo, seríamos felizes, embora desassossegadamente porque o risco
permanecerá: “tal o equilíbrio” (CS, p.76).
“Ele queria ‘sim’.” Ele, Martim, personagem criado por Clarice Lispector para dizer o
que é um homem em fuga que se depara com algo no campo que não espera a partir de um
crime na cidade. Ele, Martim, queria. Estava disposto e proposto, com o corpo todo alerta e os
178
sentidos voltados para esse algo com o qual ele se deparou e agora queria. Queria sim: aberto
os braços, fincados os pés, em posição de quem trabalha na terra, com o pensamento
concentrado na tarefa de querer e assim realizar no sentido de. Esse algo querido sim, do
modo que for possível e preferido, que seja solitariamente, que seja em companhia, ele queria
sim. Agora, cuidadosamente, removamos desse algo a cortina que encerra a peça e iniciemos
a sua investigação. Veja, o mundo! O mundo cheio de gente, cheio de chão, cheio de céu e
cheio de mistérios e incompreensões. E gente que tem a ver com chão e chão que tem a ver
com céu e mistério que tem a ver com tudo isso. Como é penoso dizer o mundo em todas as
suas dimensões! Mas alguém há de entender, deve ter sido isso que Clarice Lispector pensou
ao escrever sua obra, realização de uma “ela”; de um “querer”; e de um “sim”, uma
aquiescência com o mundo, mesmo sem levar muito a sério a sua seriedade, mesmo sem
cálculo para grandes vitórias (cf. WILHELM in LAO-TZU, 1978, p.18).
Essa maneira de compreender o ser do e no mundo não irá de encontro ao hegemônico
do mundo, ao seu relógio medidor de sucesso na sociedade massificada e homogeneizada,
mas também não implica em uma rebeldia em que reverberem os modos dos outros, uma
rebeldia contra a massa associada. Nessa maneira de compreender a vida, privilegia-se a
investigação do vivo, e aí se incluem as coisas que Clarice Lispector chama de “neutros
vivos” ou de inumanos, como as frutas e as verduras e o bronze; ou o mar; ou as vacas; ou os
cavalos e os homens de chapéu de palha, em sua pertinência e participação nesse mundo de
todas essas coisas. A investigação é também uma pergunta e quer compartilhar do sentido do
mundo e quer dialogar com linguagens afins.
Querer compartilhar, querer dialogar, estando nessa posição de rebeldia investigativa,
de transgressão amorosa é querer conhecer o inferno da paixão pelo mundo. É estar possuído
e possesso e se voltar apenas para quem pode com esse diálogo: com o Deus. A prece de
possesso de Lóri preserva o que ela ama, e se dirige ao indestrutível, tamanha a força e a
cólera contra a sonolência das coisas surdas e que se recusam a se apresentarem. O poder de
destruição sempre permanecerá, assim como o risco, que já se mostra irrelevante diante da
grandeza da força que nos acomete no momento do sim. Sim é poder: possibilita acolhida ou
destruição. É do sim que o não pode surgir? É do ser que o não ser existe? A simples
possibilidade de compreensão do ser ou do não ser permite que vibre em nós a alegria de
viver (cf. ALP, p.123).
Poesia do viver
179
Potros, rocins, alazões, longas éguas, cascos duros – uma cabeça fria e escura de
cavalo – os cascos batendo, focinhos espumantes erguendo-se para o ar em ira e
murmúrio. E às vezes um suspiro que esfriava as ervas em tremor. ... A mocinha
queria responder com as gengivas à mostra. Na inveja do desejo o rosto adquiria a
nobreza inquieta de uma cabeça de cavalo. (CS, p.27)
Inexplicavelmente com mais esperança, tentava agora excitar sua ira até achegar à
própria força, trotando atenta, experimentando tocar nos objetos. (CS, p.74)
Pronto, agora está feito: a inocência está conquistada. Não há mais vergonha em ser
um cavalo na cidade, e da ira passar ao riso de nós mesmos. Não há mais vergonha em sermos
considerado tolos durante o dia para podermos ainda nos sentir perplexos antes de apagar a
luz. A transgressão humorística é também uma vitória nossa de cada dia. (Sempre me lembro
do pequeníssimo poema de Oswald de Andrade: “Amor // Humor”.) Com o achegamento
dessa força, a contradição de ser e não ser se torna mais tranqüila e nos tornamos seres
humanos por excelência, podendo fazer poesia do viver, como exercício mais profundo do
homem.
Fazer poesia do viver é ação que se desenvolve na errância; é busca ética, no sentido
da obediência à lei inaparente da terra; é caminho iniciado com o não e no qual se permanece
com o sim. Aí estar: transgredir. Uma transgressão que não se sujeita a uma valoração em
termos de bem ou mal sucedida. Às vezes, ela acontece, às vezes nos esquecemos dela. A
aprendizagem está na coragem de, “não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se
conhecer exige coragem” (ALP, p.83). Sim, as estátuas gregas talvez nos apontassem o
caminho, caso ainda tivessem braço ou não tivessem sido deslocadas do seu lugar de origem.
É por isso que Lucrécia pensa: ninguém deveria ser transportado de sua cidade, de seu lugar
de origem, para não ficar apontando para o vazio. Mas, sacudamos os ombros em sinal de
indiferença, assim é a liberdade das viagens (cf. CS, p.73).
viver. E, também como já foi dito em relação ao enconto com as coisas, a destruição primeira
e grosseira se obtém com o ato de cólera, mas há ainda um trabalho mais delicado por se
fazer. Não se trata de crescer e agir sem sentido, em hamonia oca; e também significa dizer ir
além da não-traição em relação ao seu próprio crime, à sua própria revolta. Trata-se de
assumir um estado espiritual de trabalho, com a objetividade de uma vaca e ao mesmo tempo
se desculpar a cada vez que se faz coisas sem querer.
Lembremos ainda do que já foi dito em relação à escritura e memória; à iniciação,
metamorfose; e ao tantas vezes citado Heidegger (2002), em relação à superação da
metafísica: a humanidade está em fase de acabamento. Não basta ver o abismo entre o mundo
sensível e o suprassensível para que a metafísica seja superada. Deixemos que se concretizem
as possibilidade cristalizadas na técnica. Sejamos máquinas felizes e que, do movimento
contínuo de nossas mãos, nasça um espírito e uma facilidade; e “a clarividência dentro da
clarividência como o escuro dentro do escuro” (CS, p.198). Mas máquinas felizes se
permitem o devaneio, essa corrente doce que nos dá força vital, que nos leva – corpo e alma –
a um tempo não-cronológico. E se afastam do ardor pela verdade e pela esperança cultivadas
pelo medo da cidade que nasce. Estejamos cientes, apenas cientes da dura verdade “do sol e
do vento, e de um homem andando, e das coisas postas”, essas sim, intransponíveis mesmo
pela imaginação. É assim, às cegas, que se dá o avanço de uma pessoa no querer: no vergar-se
não inteligível mas harmonioso, não como uma finalidade mas harmonioso, em que “se
fizesse enfim a união das plantas, das vacas e do homem que ele começara a ser”.
“O homem de que estás enfastiado torna eternamente o homem pequeno.” (op. cit.,
p.170)
O homem pequeno se enfastia do homem. Brrr! Que calafrio! Até o perigo, quando se
repete, vira costume. Estamos aqui então, prezados leitores, diante de uma passagem.
Cumprimentemos o homem pequeno e enfastiado. Olá, eu não sou um padrão. Talvez você
queira ser um mártir, me diz ele, como Martim, entre restos de trabalho e de uma vontade.
Sim, como ele, não me darei ao luxo de não ser poderoso. Veja, posso me divertir enquanto
escrevo uma tese e posso me ver livre também dessa força para não me tornar doente da
minha própria libertação. Não foi você quem disse: “ter de cantar de novo: é este o consolo
que inventei para mim; eis a minha cura”? Sou também como Ulisses: faço poemas como o
exercício mais profundo do homem (cf. ALP, p.120).
E, sabe o que mais? Serei como Lóri, a consolar sua própria exigüidade na vastidão do
mar, pois exígüos somos, exígüos nos tornamos quentes e delimitados. Sou um cão, pobre e
livre gente, que lança o corpo no ilimitado frio, mulher que não sabe e cumpre uma coragem.
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as
pernas. (ALP, p.83)
Assim:
erguia a cabeça, atordoado chamado,
poderoso.
Utilizado o perigo como defesa - no diálogo com o homem pequeno, subvertendo o tédio
pelo choque com-preensivo com ele - nos aproximamos agora de uma diviníssima noção: o
não-querer, tomada a investigação sobre a questão feita por Heidegger em texto sobre a
“Serenidade”. Talvez o perigo do tédio venha justamente da incompreensão desse ato maior
(o não-querer), conquistado em primeiro lugar pelo querer dominado por um não (um não que
incide sobre o próprio querer). E que por isso pode nos levar à “persona” do mártir, aquele
que recusa voluntariamente o querer. Um mártir não se importa de morrer; às vezes, ele
parece mesmo buscar a morte, não porque já conhecesse o segredo da vida, mas por ansiar a
integração sem palavras com o mundo.
182
Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada.
(ALP, p.83)
A chave desse se lançar na morte não parece estar no frio que a partir daí se passa a
sentir. Talvez esteja sobretudo no ato de entrar. Esse modo de não-querer é, portanto, um
tanto enganador: esconde dentro de si um querer, um ensejo de ir e entrar. Mas ainda assim,
tal como uma máscara de que às vezes temos necessidade de usar para sermos o próprio de
nós mesmos, essa forma de não-querer parece ser a única via para alcançar aquela que é “pura
e simplesmente estranha a todo tipo de vontade; que não pode ser alcançada por querer”
(HEIDEGGER, 1972, p.32). E aqui devo confessar que não sei se alcancei e compreendo esse
modo de não-querer por minha própria experiência. Lóri relata o que Clarice Lispector
identifica como “estado de graça”. Creio já ter vislumbrado esse estado de graça, no qual se
vê a “profunda beleza, antes inatingível de outra pessoa”. É um estado raro pois transgride a
nossa condição de sujeitos do universo em que nos colocamos reunidos com tudo o mais
numa “espécie de nimbo” que não é o imaginário, justamente compreendido como domínio de
uma subjetividade. Desse nimbo, irradia o esplendor quase matemático das coisas e das
pessoas e sente-se a respiração de fínissima energia, a impalpável verdade do mundo (cf.ALP,
p.147).
Então, será que podemos formular a seguinte hipótese? Segundo Heidegger (cf.s/d,
p.32-3), é através do não-querer como recusa do querer que podemos avançar ao estado de
graça de Lispector, se o considerarmos como “a essência do pensamento, que não é um
querer”.
partir do outro de si mesmo”, aquele que constitui Região, lugar de ser, de serenidade (cf.
HEIDEGGER, 1972, p.48-53).
“De onde sei que isso é assim?” “Justamente por isso.”, diz Lao-Tsé. Para além da
tautologia, a compreensão experienciada dessa forma de não-querer é um princípio que
simplesmente existe nas pessoas e coisas (op.cit., p.24). Poderá ser comprovado
cientificamente? Ainda bem que estamos em meio a um trabalho poético, no qual não se
espera que a comprovação venha desse modo. Mas ainda assim permanece o compromisso da
com-pro-verdade-ação, desde a perigosa verdade que fala alto demais; da cultivada pelo medo
da cidade que nasce à dura verdade do sol, do vento e de um homem andando e das coisas
postas; da energia como impalpável verdade do mundo (sobre a qual a física quântica tanto se
debruça). Talvez o que aqui se coloque como des-compromisso seja a investigação do valor
social desse trabalho desintegrado na sociedade brasileira de hoje, na burguesia de classe
média. “Você acha que eu ofendo a minha estrutura social com a minha enorme liberdade?”,
pergunta Lóri.
Claro que sim, felizmente. Porque você acaba de sair da prisão como ser livre, e isso
ninguém perdoa. O sexo e o amor não te são proibidos. Você enfim aprendeu a
existir. E isso provoca o desencadeamento de muitas outras liberdades, o que é um
risco para a tua sociedade. Até a liberdade de ser bom assusta os outros. (ALP,
p.172-3)
... uma rua que nunca mais iria esquecer. Nem sequer pretendia descrevê-la: aquela
rua era sua. Só podia dizer que estava vazia e eram dez horas da noite. Nada mais.
Fora porém, germinada. (ALP, p.154)
Lóri estava agora co-locada, viu a rua condicionada em Serenidade; pôde percebê-la
enquanto o próprio dela, sem que fosse causa ou conseqüência de nada. Heidegger (cf. 1972)
diria que Lóri percebeu não só a rua, mas a Região, portanto a rua como lugar de ser.
Zaratustra talvez cantaria a igualdade da rua com ela mesma, ali na Praça Tiradentes (por
onde Lóri a viu), em tudo o que a torna o que ela é, “em ponto grande e pequeno” (op.cit.,
p.172). Clarice Lispector acrescentaria que Lóri alcançou um estado de sonho-vislumbre, na
conjunção da entrega e da visão como theoria. A partir daí, ela pôde conceber o mundo como
fruta, a qual se come ou toca. ”Uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no
185
espaço escuro, brilhando de uma quase luz de ouro.” E o melhor de tudo é que mesmo quando
comemos a fruta-mundo, ela permanece inteira, como dois amantes que se deixam possuir,
para “além do que parecia ser possível e permitido”, e, no entanto, também permanecem
inteiros (ALP, p.168). Eis mais uma pequena vitória da transgressão amorosa.
Uma rua, uma mulher que passa num táxi. O mundo, a fruta. Uma mulher que sonha e
devaneia com eles. Dois amantes e a inteireza dos dois, mesmo quando são um. “Dá-se o
nome de mundo a este jogo em espelho, onde se apropria a simplicidade de terra e céu, de
mortais e imortais” (HEIDEGGER, 2002, p.157). A mulher vê, como se a rua fosse um
espelho e se esse a reflete, ela é também rua. Nesse jogo, a aparência de ambos se afirmam
enquanto existentes em sua singularidade e beleza, o que indica a certeza de que as coisas são
como são: rua e mulher. Ao mesmo tempo, o jogo lança a ambos na incerteza de que um é o
outro, e a existência mostra-se em sua fugacidade. Através do espelho imaginário, a mulher
lança-se em um devaneio e vê o mundo transfigurado em uma enorme fruta pendente no ar.
Nesse jogo, participam o cotidiano da mulher (sua solidão) e seu desejo de transfigurá-lo (sua
união com o homem): o mundo solitário e a fruta da fome satisfeita. Tudo parece próprio de
um universo particular aqui – um devaneio de Lóri em relação a Ulisses. Mas nesse jogo em
espelho, o mundo reflete-se como fruta de um devaneio para além da singularidade da história
entre Lóri e Ulisses, pois nós, como leitores, vemos essa fruta também, ou seja, estamos
lançados nesse jogo também. E, ao embarcarmos nessa viagem imaginária, em que fruta e
mundo se refletem, compreendemos que, apesar dos limites impostos por desejos e cotidianos
particulares, algo da imagem refletida os transcende. Só assim podemos compartilhar dessa
mesma imagem: mundo é fruta, mastigamos. Mundo é fruta quando se deixa apropriar e
refletir o que nele há de terra e céu, mortal e imortal.
Entrar na roda
Resgata-se assim a memória do mundo (são tantas as histórias e acontecimentos que
devêm!) e ao mesmo tempo desabrocha-se um porvir proveniente da “concentração na roda de
dança dessa apropriação” (a harmonia céu, terra, mortais e imortais se dá em movimento, em
um “nó de luta”28) (HEIDEGGER, 2002, p.158). Participar desse jogo de espelho requer
concentração na roda de dança de apropriação; a dança só pode ser compreendida quando
compartilhada. Concentração diz, portanto, empreitada corporal. Fazer é dançar; é refletir em
si o jogo especular em que o mundo aparece. Dançar é linguagem enquanto possibilidades de
28
Traduzido por Eudoro de Sousa por “anel” e por Manuel Antonio de Castro por “ciranda”.
186
Ao exigir uma explicação, o conhecimento humano não se põe acima mas abaixo da
vigência do mundo. O querer explicar do homem não alcança a unidade simples da
singularidade unitária do mundanizar. Ao serem representados, apenas, como um
real particular, fundando-se e explicando-se um pelo outro, os quatro conjugados são
sufocados em sua vigência essencial.
Assim:
ter fome e de modo instável
pegar no escuro uma maçã –
sem que ela caia.
Capítulo 5
fossem o dia e não coisas que existissem dentro da manhã, entendem? Ou seja: não havia mais
palco, nem atores. Mas era preciso muita rapidez para perceber as coisas dessa maneira, como
realizadoras do próprio tempo, dia ou noite. Isso também Martim considerou como
aprendizado da objetividade, mas só que restringiu a possibilidade de sua experiência a um
“vertiginoso relance”. Era tudo uma questão de ritmo, isso ele aprendeu. Seu segredo era:
descrever as coisas. Quando se procura mais do que isso, um galo se torna uma forma vazia.
Mais do que a descrição, no caso, significa aqui encerrar o pobre do galo no domínio da
razão; e ele, diante desse peso, desaparece. E, sem galo, sem coisa (cf. ME, p.108).
Descrever a coisa é poupá-la. Existe o galo? então é o galo que se vê, enquanto um em seu
mundo, com as suas diferenças reunidas e acolhidas, e não desprezadas em nome da razão que
lhe queremos infringir em sua totalidade. Poupando a coisa, na reunião e no acolhimento de
suas diferenças, nos aproximamos dela. Mas quando e como nos lançamos nesse exercício de
aproximação com as coisas? Esse modo de ser aproximativo, apenas descritivo, reunidor e
acolhedor das diferenças de uma coisa, (um galo, imagine) nos parece ainda artificial.
Estamos em pleno império da distância, acostumados demais com a nossa tradição
investigativa em que galo fica lá no galinheiro, ou no laboratório, ou no zoológico, ou no
abatedouro, e eu, dono do sítio, avalio se está velho ou não; eu, tenho condições de dizer se
ele serve à minha experiência; se é bonito, na medida do meu gosto; se deve morrer, na minha
criação. Essa é apenas uma das tradições investigativas das coisas: na medida dada pela
subjetividade, se tem de um lado o objeto; e do outro, o sujeito com predicados para avaliá-lo.
Mas galo pode ser mesmo apenas um animal que uso como despertador, ou ainda um bicho
que me agrada, me desperta sensações de orgulho e de liderança. Em todas essas formas, no
entanto, o galo, aquele galo que é um, unzinho que seja em suas diferenças, lá não sei onde,
ciscando não sei o quê, com seu porte tão próprio, esse - sumiu em minha investigação. A
experiência imediata foi anulada porque antes de o encontrar já sabia o que deveria ver.
A antecipação veda a meditação sobre o ser do ente, barrando o caminho para o caráter
coisal da coisa; caráter de obra da obra. Heidegger (cf.1977, p.27) acrescenta ainda outra
questão mais complexa e que talvez, apesar de tanto já termos nos referido a ela neste
trabalho, ainda causa estranheza a mim quando a escrevo e talvez a quem me leia (e mesmo
que não leia, ao povo com quem compartilho o “império da distância”): o que é a “meditação
sobre o ser do ente”? Nessa parte do trabalho nos caberá pensar o pensamento enquanto
meditação e caminho de aproximação das coisas. Mas permanece ainda uma outra questão,
que se circunscreve ao “ser do ente”. Se estávamos interessados naquele galozinho específico,
por que essa história de ser do ente? E não simplesmente ente? Por enquanto, posso
190
improvisar um dizer que não responderá mas trará mais elementos a essa pergunta de modo
que o ser seja uma melodia a qual voltemos e o ente um andamento e um ritmo dado à canção.
Realmente, trata-se de uma analogia manca, como diria Nietzsche. Não me sinto segura para
dançar no gelo fino da filosofia.
Sigamos, portanto, a cadência do galo de modo, quem sabe, a encontrar a música que o
acompanha, e que o torna ser-galo, reunidor e acolhedor de diferenças. Talvez o ser seja
precisamente esse impreciso movimento de reunião e acolhida, mas cada coisa parece fazer
isso, que em última instância poderia ser chamado de “viver” ou “existir”, de uma maneria
assaz reservada e discreta. Ver o galo e não ouvir a música do ser cantada por ele é como não
perceber os seus movimentos como dança participativa no gelo fino da Vida. Muito difícil de
ver, mais fácil ter a visão obtusa mesmo, em que o galo... ué, pra quê dar tanta importância a
um galo?... é assim: indiferente. Nesse caso, a coisa deve permanecer em sua insignificância,
enquanto a natureza humana se refastela em sua egoidade, percebendo-se também tão-
somente como um animal racional, indiferente à música que quase imperceptivelmente o faria
dançar, o implicaria no nó da luta em que todas as coisas parecem implicadas. Não ouvir a
música do ser é colocar um pano preto no espelho para não entrar no jogo que configura a
essência da história.
E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada
na parte mais grossa da sola do pé. (ALP, p.20)
Lóri, sem desastre ou cólera, sente falta e ausências. Tinha um caminho... mas Lóri não
sentia vontade de ir por ele. A farpa está tão incrustada, não há pontas salientes, não há
possibilidade de pinçar esse amor que nos faz sentir pelo menos a vontade de nos aproximar
das coisas, e do ser das coisas. Mas as coisas estão todas às avessas, adverte Lucrécia, com as
pontas todas revertidas, elas assim não podem ser tocadas. Que tal servi-las então? Lisonjeá-
191
las? Não é isso que uma obra de arte tenta fazer? Seduzir, para tocar? Para ter a cidade então,
seria necessário bajulá-la em sua vaidade. Mas assim, alisando tão insistentemente a crista do
galo, para mostrar como é bonita, ela acaba por se achatar.
Lóri se revolta; não quer aprender: todo caminho não é! então é porque não é para ser!
Esta não é uma época própria para a meditação, ela argumenta. E continua: esse caminho
parece ridículo diante do desejo que inquieto acontece fora do período fértil da mulher. Esta é
a época da energia que desagüa na menstruação e é também época de controlá-la, pela
manutenção da esterilidade (cf. ALP, p.12).
Tanta solidão e ceticismo também assustaram Lucrécia e a fizeram experimentar a via
estéril da aspiração sufocada à posteridade. Lançada na boca da moderna cidade, ela passou a
falar em nome do progresso, usando formas úteis de pensamento, e no lugar-comum de sua
língua passavam expressões como “na teoria é ótimo, mas na prática...” Mas essa fala
ventríloqüa esbarrou na obstinação cega de Lucrécia e ela acabou por emudecer diante da
obrigação de se exprimir e de criar um sentimento simplesmente para o dizer (cf., CS, p.140 e
194). Ficara assim no estado da dor-nenhuma. Assim, as personagens de Clarice Lispector
cruzam o vestíbulo do pensamento meditativo. Ao que parece, nelas a meditação era natural,
talvez em estado selvagem tenhamos todos essa via de ressonância da experiência, e alguns
acreditem mais que outros que deixá-la soar seja essencial para ser humano. Mas, como numa
época de desertificação viver a gestação da linguagem? Como se acreditar grávida de
linguagem, na secura da subjetividade – o império da distância? Como um embrião que ainda
não se viu na luz, essa linguagem é de uma doçura pesada. Lóri (cf. ALP, p.22) reúne
desajeitadamente seus pés e suas mãos, no tanto que eles participam da meditação. Eles
querem dizer algo, por que não escutá-los? Quando a boca e o cérebro se encontram por
demais obstinados em pensamentos metafísicos ou em expressões de lugar-comum,
dominados pelo “império”, pés e mãos podem dizer mais, mesmo que suas palavras sejam
“farpa” e “secura”. Pés e mão se movimentam, mesmo nas circunstâncias difíceis das calçadas
e dos tanques. Talvez seja por isso que persistamos no trabalho: a aparência de movimento
que ele propicia, mesmo no sentido da manutenção de um estado, é movimento. Na
meditação, compreendemos a insistência nesse intolerável da vida como cio sem desejo: uma
propensão instintiva ao movimento como autopreservação da humanidade. Bem e mal não
mais existem; o próprio perdão já se torna indiferente, pois não se julga mais. Tudo por um
tremor. Treme o humano no urbano, no deserto.
Paidéia é deixar esse tremor ganhar dimensão de linguagem. Paidéia é a travessia em que
o pensar torna-se o meditar da desertificação. Na paidéia poética da cidade sitiada, os cavalos
são lugares incomuns da meditação: são mãos e pés de Lucrécia a se liberaram de suas cargas-
farpas, mesmo que à noite, mesmo que só à noite possam galopar finos e soltos. No escuro do
que acreditamos ser o escondido das exigências de um mundo cruel, cultivamos um cavalo
preto e lustroso. Clarice Lispector ama os cavalos e eles são o lugar-(in)comum na gestação
de sua linguagem. Lóri, assim como Lucrécia, guarda em si a imagem dos cavalos que não
mais circulam por sua cidade. E o cavalo guarda nela o estado selvagem, concebido como
“doçura primeira de quem não tem medo” (ALP, p.26). Martim também se tranqüiliza na
escuridão, mesmo que com espasmos de pavor (cf. ME, p.168). Na escuridão, a
impassibilidade o apavora e ao mesmo tempo o tranqüiliza. Impassível suportação, nesse
estado meditativo atravessamos o deserto.
O cavalo de Lispector reflete o camelo de Zaratustra. E, em suas costas, como centauros
meditativos, encontramo-nos com Lóri a rezar. Sua linguagem mostra-se afinal no tom
recitativo, no sentimento amedrontado e no lugar e tempo anteriores. A reza em várias
modulações se dá primeiro para ela como um pedido a si mesma, um pedido do máximo de si
mesma (cf. ALP, p.54): a impassível suportação, na movimentação do corpo e na escuta dessa
presença. Heidegger (1972), quando fala de Serenidade, descreve a “noite que caiu” como
tempo para meditar;
afrouxamento do passo; longe ainda das habitações dos homens; cada vez mais
liberado; confiança na direção invisível das palavras; porque conversar se torna mais
difícil. (cf. op.cit., p.33-4)
humanística das cidades não alcança. É muito difícil essa passagem que se dá no solitário,
atravessa a tradição e aceita finalmente a paisagem mundana, a aceita (cf. ME, p.219 e 223).
Nessa altura, porém, o crime já se encontra aplicado em coisas concretas. Suas mãos, seus
pés, seu corpo todo, não mais poderão ser amputados, ou colocados ali como meros
instrumentos, meras representações. Quando foi levado para a prisão, Martim já havia
atravessado a experiência das coisas como feitos e artefatos ou até como símbolos, já havia
tentado se explicar para explicar aos outros o seu crime, e já havia reconhecido a força do
pensamento meditativo, que pensa o sentido. Assim, não poderia mais ser usado por aqueles
que o prenderam como um simples instrumento ou até um símbolo.
Por causa da perfeição, terminamos por acertar. Essa talvez seja ainda uma esperança, mas
acertar aqui não pode coincidir com o fim definitivo da confusão humana. Quando Lóri se
pergunta se ser era uma dor; se ser poderia deixar de ser uma dor; e se só assim o prazer
adviria, ela nos faz um convite a fecharmos os olhos ao realismo e a afirmarmos, ainda que na
confusão humana, a abertura ao visível do calor e à alucinação lenta que reúne visível e
invisível (ALP, p.16 e 19). E, mesmo no caos urbano da cidade, se dar o direito de ser
inocente e leal. Ah meditar com as pedras, silenciar num profundo estar, deixar-se transpassar
pelo vento; ser de um modo des-campado, des-imperializado. E começar a tomar algum
cuidado em ser exatamente apenas aquilo que se está sendo.
Bachelard (1993, p.30) usa para esse estado meditativo-devaneador a imagem do “vazio
ressonante de uma catedral”. E chama a atenção para a consonância que passa a vigir entre
imaginação, verdade e representação. E quando, por hábito, dissermos “sentir por dentro o
vazio ressonante de uma catedral” deixar que isso signifique apenas o estabelecimento
necessário de um ponto de vista que pode também ser por baixo, por alto, etc.; “é mais um
ponto de vista estranho, irreconhecível”. No pensamento meditativo, não se troca
simplesmente de posições, se instala uma correspondência, que se dá como um apelo de “ser
mundo dentro do mundo”, e assim ele produz respostas ou realizações no próprio âmbito do
mundano (HEIDEGGER, 2002, p.159).
justamente em não se ter idéias do que se faz; e a severidade e a dureza, em não se buscar a
causa das coisas, mas a coisa apenas. É um desafio e tanto: chegar às coisas, sem nos
desviarmos dos objetos e ainda que deles nos recordemos em antigas feições.
Às vezes, objetos antigos, bem velhos mesmo, têm sua forma esquecida de tanto uso, de
tanto desgaste, até chegar ao esquecimento. Uma caixinha na vitrine de um antiquário ergue-
se mais facilmente para a incompreensão dos nossos olhos. Mas tudo mais pode se mostrar
como coisa sem função.
Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes
tivéssemos dado o sentido de nossa esperança humana ou de nossa dor. Se não
hovesse humanos na Terra, seria assim: chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e
secavam e depois ardiam secas ao sol e se crestavam em poeira. (ALP, p.32)
sentimento que não se gasta, mas ao alcançarmos (e o alcançamos desde a nossa primeira
respiração), o medo de perdê-lo vem junto. Afinal, onde estamos quando nos colocamos nessa
correspondência perceptiva de árvores no jardim, de garçons se aproximando, de mar azul do
Mediterrâneo, de aranha a imobilizar a presa com o seu veneno, de criança a esccoregar nos
ladrilhos do chão e a gritar assustada: mamãe!, de mãe que tem um filho que escorregou nos
ladrilhos que circundam a piscina? (cf. ALP, p. 75) No horizonte onde se encontram céu e
terra, finito e infinito? Como vislumbramos o infinito, essa infinidade de coisas sendo em um
grande concerto?
quieta, mas inspirada pelas imagens do mundo, versos alegres e sem intenção de mensagens
subjetivas. Meditar é isolar-se? Talvez se pensarmos em um crescendo de distanciamento da
lógica que quer excluir o devaneio poético (como diz Bachelard) ou o pensamento coisal
(como sugere a leitura de Clarice Lispector). É que, ao meditar, nos deparamos primeiro com
a repreensão da consciência que quer perfilar o pensamento exclusivamente à razão; depois,
com a repreensão da moral, na verdade um recurso emocional em prol da razão (“isso de
meditar não condiz com os costumes da nossa sociedade”); em seguida, temos que nos ver
com a nossa própria herança educacional e com os fantasmas que surgem sob a forma de um
olhar frio, uma boca retorcida da parte dos nossos convivas; e finalmente temos que encarar o
isolamento para o qual se é empurrado ou para onde nos refugiamos do instinto de rebanho
(nas palavras de Nietzsche) (cf.2004, p. aforismo 50).
Quem se propõe a meditar, no entanto, aos poucos se desvencilha mesmo do isolamento
como condição. Volta e meia, repreensões, fantasmas, olhares reaparecem e é preciso se
recompor o clima que nos coloca no caminho que vai-sem-se-saber-para-onde. Igor Rossoni
chama atenção para alguns aspectos da linguagem de Clarice Lispctor aos quais ele identifica
com procedimentos desenvolvidos pelos praticantes do zen-budismo. Um deles é o artifício
(um dispositivo ao mesmo tempo técnico e artístico) denominado “koan”, uma pergunta
paradoxal que os discípulos se repetem sem cessar como forma de se desvencilhar da rigidez
racional em seu pensamento. Rossoni (cf. 2002, p. 58) dispõe em pormenores essa sua
aproximação que aqui ressurge apenas como indicação de um meio que o próprio processo do
pensamento coisal, enquanto meditação na linguagem, pode desenvolver no desvio da
repreensão da consciência e da moral, e no fortalecimento do dizer andarilho, apesar da
herança educacional e das desaprovações fantasmagóricas que leva quem medita ao
isolamento.
Com Perseu, em sua repetição da lição da escola em que se insinua um pensamento
meditativo sobre sua relação com Lucrécia e com São Geraldo, percebe-se a força da
inconsciência no ressurgimento da beleza.
Decorar era bonito. Enquanto se decorava não se refletia, o vasto pensamento era o
corpo existindo – sua concretização era luminosa. (CS, p.32)
“Os seres marinhos, quando não tocam o fundo do mar, se adaptam a uma vida flutuante
ou pelágica”, com essa espécie de mantra, um bordão que se ramifica em “os animais
pelágicos se reproduzem com profusão”. Perseu nos é apresentado – heróico e vazio – a
sobrevoar a cidade nesse decorar-meditar. Na cidade sitiada, só quem consegue voar no céu
198
da vacuidade dos ensinamentos que fundam a tradição da educação dessa mesma cidade está
preparado para ocupá-la com todo o peso de seu corpo (cf. CS, p.78). Todo cidadão é como
Perseu? Transido em sua condição? Envolvido pela beleza dos preceitos, mais do que por sua
justiça ou verdade?
Em todo caso, talvez possamos indicar, dentro do que seria uma paidéia poética na cidade
sitiada, o reconhecimento desse encantamento, assim como sua produtividade “pensamental”.
Há quem creia que meditação é despertar da consciência, mas essa atividade quase espontânea
e imperceptível procura sobretudo manter o vínculo daquele que medita com as imagens
próprias das coisas e de si próprio como coisa. Do estado de consciência, nesse processo, vêm
inúmeros erros, inúmeras ordens que fazem um ser humano sucumbir em inquietude
antecipatória de seu destino. Em contrapartida, imbuído de um processo que, na “Gaia
Ciência” (2004, p. aforismo 11), é chamado de “o conservador vínculo dos instintos” e aqui
de “pensamento coisal”, aquele que medita se lança na tarefa de incorporar o saber e torná-lo
instintivo, irreflexivo, sem intenções.
Nesse processo de incorporar a verdade, Perseu, em seu transe escolar-cidadão-
meditativo-coisal, ri da “lentidão da inteligência dos homens de S.Geraldo”, enquanto “as
mulheres eram tão espirituosas! Se reproduzem com extraordinária profusão!” (CS, p.33)
Esse seu “ponto de concreto”, como num ponto de acupuntura, sensibiliza-se diferentemente
de acordo com o modo com que o feminino o toca. O toque feminino desavergonhadamente
fecundo, em Perseu inconsciente, une força à fragilidade, e percebe na ocupação da cidade a
dinâmica veloz da reprodução da espécie. Para o cidadão, o obrar feminino e meditativo não
significa a quietude. O estado de gravidez na cidade mostra-se, ao contrário, profuso e
extraordinário. Como um bebê que se maravilha com mecanismos, Perseu, em sua “grande
saúde”, torna-se médico, naturalmente empobrecido. Nessa beleza inconsciente em que se
lança, afirma-se cidadão virtuoso, não por negar ou privar-se de si, mas porque sua saúde
reside numa certa permissividade em relação à distração, a uma disposição a se deixar
absorver pelo pensamento das coisas. Perseu, como uma mãe, se deixa fecundar pela cidade; e
como um artista, aceita sua obra do jeito que ela é.
Nesse ponto concreto, pode-se aproximar de Lucrécia, criatura perdida, salva da angústia
justamente por ser perdida, “como Deus quer que se seja inocente” (CS, p.33). Pergunta-se
então: inocência, nesse caso, é falta de conhecimento ou conhecimento transfigurado em
dúvida, questionamento ou, como diz Nietzsche, em “escrutínio, negação, desconfiança,
contradição”? Nenhuma das opções. Quando – em Clarice Lispector – Lucrécia experimenta
perdição, apreende-se corporeidade. Salva-se da angústia por safar-se do processo de embate
199
rua, uma vitrine... O abrigo que cada uma dessas regiões comportaria não poderia ser
preparado. Isso parece ser uma regra na meditação, buscar o despreparo cultural, literário,
perceptivo e psicológico. Despreparo aí quer dizer ir de encontro à região “de coração
aberto”, sem razões ocultas, sem nenhuma razão comunicável. Shii! Silêncio. Mas, numa
situação de terror, a inquietude é tamanha! Como silêncio? “Como estar alcance dessa
profunda meditação do silêncio?” (ALP, p.34)
Nossa vida é truculenta. ... Nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre
a possibilidade de união perfeita. ... É preciso acreditar no sangue como parte
importante da vida. A truculência é amor também. (ALP, p.106-7)
Amém ao sangue e à truculência então. Rastreio, rastejo. Meditação não é bobeira. A vida
é atingida em cheio quando a gente se deixa levar. Vocês achavam que meditar era coisa para
ser feminino e rasteiro? Pois lhe explode na cara uma bomba do próprio sangue. Onde está,
afinal, a compaixão da terra para quem lhe obedece? O pensamento natural é mau, ora vejam.
Bom, se vocês estão em busca dos efeitos benéficos da meditação como pensamento coisal,
algo prático para ser usado numa situação de terror, tudo o que encontrarão é sangue e
truculência. Mas eu vi a beleza de Martim metamorfoseado em plantas. Sim, mas isso não é
nada. A igrejinha é nada. Efigênias existem aos milhares à margem de qualquer cidade. E,
com toda vida espiritual, elas não são nada diante do mal que tem o grande efeito a seu favor.
201
Não busquem a natureza em busca de efeito. Ela não lhes dará. (E aqui chamo a todas as
coisas de natureza, incluindo o livro, a vitrine, a rua, as plantas de Martim, a pequena igreja,
Efigênia.) Deixem-se agarrar! (Oh que pedido esdrúxulo diante de uma situação de terror!)
Mas é então, quando se percebe que não há mesmo mais nada a fazer que denote salvação,
redenção, sucesso ou paz de espírito, que o espírito se cansa de tentar e se entrega. E,
efetivamente, “algo” pega a quem se larga. A sensação é de que o ambiente possui um clima
invisível que anima tudo e cada coisa. Com a percepção desarmada, “ouve-se” esse clima e
chega-se a sorrir para ele.
O sorriso vem do cansaço; é um sorrir para o próprio cansaço, para a fantasmagorização
que se cultiva e que se herda, para as falas tolas a respeito do que somos e principalmente do
que queremos, para os olhares e os gestos de soberba ignorância. A meditação nos coloca em
estado de aninhamento no clima (ou será na região?) e a ânsia de salvação – o mal dos outros
e o nosso – passa a ser alimento do riso. Passamos, nas palavras de Nietzsche (2004, p.
aforismo 200), a “ter alegria com o mal dos outros, mas com boa consciência”. Ah que alívio
não querer nada! E rir do desejo quando ele aparece. Assim nos tornamos mais liberados para
ver o que não deseja. Lucrécia, em sua passagem pela “cidade evoluída” sentiu imenso prazer
ao ver o peixe. Ah que alívio não querer nada! O querer na gente vira o próprio pensamento e
“o peixe era o único pensamento do peixe” (CS, p.71). Quando uma coisa não pensa (pensar
como forma de querer), a forma que possui é o seu pensamento.
Não é que essa experiência seja fácil, mas ela acontece todos os dias em doses tão
minúsculas e tímidas que se tornam imperceptíveis. A experiência é a intensificação, um
ganho de clareza na medida em que o olhar se estende, em que cada célula do corpo abrem
como pequenas bocas e sorvem o “clima”. “Eu cresci com isto”, pode-se dizer então, mas já
não importa. O que importa quando as coisas se proliferam? É a primavera das coisas.
Heidegger (2004, p.25), quando escreveu sobre a linguagem, lembrou que “os mortais
falam a partir da diferença, no sentido da diferença, como um corresponder”. Pela meditação,
a linguagem cresce em correspondência, pois responde e reconhece o peixe, os pássaros na
manhã, o feijão na panela, a máscara a partir da qual se sorri. O cansaço, como indicador da
mortalidade, nos sucumbe e nos habilita a falar na medida em que escutamos o chamado o
peixe – o seu “quieto da diferença”, evocador de coisa como rasgo, de mundo como coisa
rasgada e como o próprio rasgo da coisa. É tão emocionante e nobre a linguagem que fala
desde essa escuta. Bachelard (1993, p.203) diria que então “fenômenos fonéticos e fenômenos
do logos harmonizam-se”: é a poesia da palavra experimentada na lentidão da meditação. E
um peixe, a palavra que é sua forma, que é seu pensamento mesmo, sua inteligência, quando
202
convocada em toda sua nobreza é chave para entrada na própria dinâmica do rasgar
constituidor de mundo.
É preciso cuidado, no entanto, o grandioso que aqui aparenta é simples. Estamos falando
de uma saga, que rescende a atmosfera do épico, mas toda essa experiência não é mais do que
um abraço, do que um refluir para a proximidade, lembrando ainda que o abraço no peixe é
com o olhar, é com as palavras de reconhecimento e de resposta. Pois proximidade é dizer, na
medida mesmo em que o dizer sorri, em puro abandono, em que vigora e se encaminha um
encontro (“abraço”), na possibilidade dele ser do modo que lhe é mais próprio. Pois dizer é
proximidade e, em seu vigor e encaminhamento, encontram-se face a face coisas de diferentes
campos do mundo. Nessa experiência da linguagem, a simples saga do dizer em abraço, os
diferentes campos do mundo se relacionam, se sustentam, se alcançam e se enriquecem. Sem
cálculo, sem filosofia: no lento pensar da meditação.
E como se lançar nessa saga? Nem sempre estamos no limite do cansaço. Como
intensificar a experiência do simples? Já vimos que os zen-budistas inventaram procedimentos
para entrar em estado meditativo; Lóri aprendeu a rezar, assumindo o tom recitativo embalado
pelo medo; Heidegger descreve a “noite que cai” como tempo para meditar... Vimos que a
meditação incorpora e se apoia no negativo, no obscuro; é preciso agora pensar que partimos
do nosso comportamento habitual (o negativo faz parte dele), o imediato ao qual não devemos
desprezar. Se vemos a coisa como obra - como um obrar ou um rasgar ou um fazer mundo –
reconhecemos a sua coisalidade, palavra esquisita que não falamos nesse habitual, nem
pensamos nesse contato. Como diz Lucrécia, pode-se “pensar tudo contanto que não se saiba”
(CS, p.102). Penso coisa agora, neste trabalho, mas não sei coisa, quando vejo, abraço, digo,
encontro peixe.
E também passo, esbarro, utilizo, comunico peixe. O pensar meditativo advindo do limite
do cansaço, do negativo e do habitual, às vezes mantém-se estagnado, não “obra”, mantém-se
tentativa, querer esperançoso e esvaziado. Talvez, fala um Nietzsche (2004, p.288)
ponderado, o “estado de ânimo elevado” venha ser habitual em almas futuras. Por enquanto é
uma “exceção que faz tremer”:
Vamos conversar com Lóri: ela também não “entendia aquilo que parte dela entendia”. É
uma estranha e mínima e aguda lucidez. Clarice Lispector diz que isso é clareza, a clareza a
ser intensificada no estado meditativo. Mas “isso” o quê? O piado do pássaro? A participação,
pela percepção, na dinâmica rasgativa de mundo? O descrever essa mesma percepção neste
trabalho? O piado diz algo que não posso compreender, mas é tão concreto e tão rasgativo que
ressoa nos meus próprios ossos. É a clareza da concretude do piado ou é o dizer essa
concretude que pode se tornar o “inferno humano”, como nos adverte Clarice Lispector,
através da aprendizagem de Lóri? (ALP, p.131) Ou talvez a clareza de que a concretude do
piado e do seu dizer não existam separadamente? Em termos de “nossa diária e permanente
acomodação resignada à irrealidade”, o piado não existe, o dizer não existe. Mas a clareza da
realidade de ambos, a correspondência, nos adverte de novo Clarice Lispector é um risco.
Num modo mais possível de consistir, a incandescência do rasgar é mantida apenas no
reconhecimento mínimo.
Às vezes, nem mesmo permitimos o mínimo das coisas, o estão ótimas, estão bem ou até
estão mais ou menos, mas estão! No afã de agarrarmos o que sabemos delas, as coisas não
passam (pois estar é passar) e envelhecem em nossas mãos, se tornam objetos. Em nossa
arrogância, as coisas não estão, nós apenas as utilizamos e as moldamos enquanto elas
sorrateiramente envelhecem até que somem. Quando, em contrapartida, se intensifica aquele
mínimo, aceita-se em pleno o amor, mil corações batem nas nossas profundezas e somos
tomados por um direito-de-ser. Lóri, em sua alegria, quer saber como prolongar o nascimento
pela vida inteira. E aí abre-se nova bifurcação: no desejo do prolongamento da alegria mais
uma vez reiniciamos o subir-descer degraus. Tomados de compaixão, desejamos nos fazer
agentes de transformação, pois afinal reconhecemos, aceitamos em pleno o amor! Então nos
colocamos em marcha: ensinamos, escrevemos, prescrevemos, atendemos. E, ainda no
faiscante terreno da alegria, novamente desejamos, mas dessa vez, movidos pela vontade de
sermos nós mesmos transformados (cf. NIETZSCHE, 2004, p. aforismo 118).
alma”, como diz Lóri, “a um passo desta já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio
aviso prévio”? (ALP, p.143).
Parece que, afinal, não podemos nos livrar da dor. Ela nos avisa da eminência da morte,
do perigo. A dor é um sintoma necessário para a grande saúde. Somos seres perguntadores de
quem e de por que. Ah o prazer! Mas o prazer não quer, não deseja nada, nem mesmo
transformar ou ser transformado. Ele tende a “ficar consigo mesmo e não olhar para trás”.
Mas esperem, esse pensamento, para continuar, precisa esclarecer alguns princípios, na
verdade, retornar a algumas considerações feitas em outras partes deste trabalho, apresentadas
aqui como restabelecedoras das margens que guiam o nosso caminho. Sim, um pouco de
conhecimento...
Vamos trazer de volta a idéia de “paidéia poética” e confrontá-la a de “pensamento
coisal”; ambas se contrapõem mas, na mesma medida em que, na meditação, se contrapõem
dialogicamente dor e prazer. No próprio coração das expressões aqui forjadas (entre o
pensamento e o coisal; e entre a paidéia e a poética), há também contraposição; tensão que já
percebemos também entre o ver e o agir. Mas, no meditar, enquanto pensar coisal (da coisa e
na coisa), há construção de uma obra, ou seja, a sua inerente tensão de opostos é construtiva.
Já dissemos que meditar não é bobeira e que transgredir amorosamente não se faz com
moleza. Intensificar o mínimo reconhecimento exige, portanto, um empenho. Não sei se isso
significa a presença de um querer naquele que pratica a meditação. Talvez sim, tal qual o que
acontece dentro do amor: dentro dele ruge o desejo. Ao qual se perdoa. Do mesmo modo, a
serenidade só se alcança pela passagem no tremor. E o equilíbrio da cidade, pela insegurança
das pedras pesadas e brutas que a constróem. São essas incongruências próprias de tudo o que
é concreto. Amar é concreto, não? Diz-se mesmo “o objeto do amor”, o que parece triste para
quem gostaria de o preservar dos discursos e da banalização do poder, mas mesmo esse dizer
falho implica em certa coragem: a de estar envolvido numa luta em que o próprio corpo se
modela, tanto para poder segurar o amado, quanto para ser segurado por ele. E é triste o fim
dessa luta, quando o corpo não se presta mais a segurar, nem ser segurado. Mas a coragem
está justamente em se lançar numa luta em que a perda é inevitável.
E se substituíssemos a vontade de poder pela vontade de arte? Essa luta poderia ganhar
uma dimensão gloriosa, mesmo patética. E estaríamos assim mais próximos da transfiguração
do pensamento coisal em paidéia poética, já que ser-o-poeta-de-nossa-vida - em
transformação e em silêncio - nos empurra ao necessário exercício de liberdade para nos
lançarmos ao reconhecimento das coisas (e a si próprios como coisas), e à habitação do lugar
onde se trava a luta dor-prazer. Nesse sentido, Lao-Tzu fez escola mesmo sem querer, pois o
206
andarilho em algum momento pôs suas idéias num papel, assim como a linguagem poética é
civilizatória e a meditação mais profunda se dá na superfície. Ai, e até a cidade pode ser
pensada como lugar de reunião. Necessitamos da divergência dos pólos para re-uni-los, e
coragem para se lançar na luta de inevitável perda.
Nos inspiramos, nos acordamos pela curiosidade, nos empurramos pelos caminhos da
vida: serenidade é experimentar a necessidade da desarticulação. Afinal, quem diz que as
coisas estão ótimas, supostamente sabe que elas estão péssimas. Fazer um voto de amor a elas
é não ignorar isso, mas também saltar para uma terceira margem em que elas digam por elas
mesmas como estão, independente do que isso signifique em termos práticos ou educacionais
ou progressistas ou poéticos, no sentido estrito da realização de um poema “bem-feito”.
Repetimos o que já dissemos aqui de diversas maneiras: a desistência do imperador de todas
as coisas de dominar todas essas mesmas coisas o lança na vida, na “latência das coisas”.
Na tragédia, como um modo de fabular, de agir e de viver, autores e atores não versejam
simplesmente, nem exprimem o “próprio pensamento e caráter” (SOUSA, 1964, p.76). Somos
lenda heróica e somos nada, a não ser beleza e necessidade. No mínimo reconhecimento da
inteligência do peixe, alcançamos, quem sabe, o “grau ínfimo de gnose” a “diagnose
universal” (cf.idem:39-40), vislumbre da infinitude, esse algo incompreensível que talvez nos
faça entrar na luta perdida. E rir dela. E recomeçar. Algo vislumbramos, ora essa, mesmo que
mínima e infimamente.
Que esse algo parece se esgueirar a toda e qualquer análise, seja ela a mais científica e
rigorosa, isso já nos parece claro. Há quem desse conhecimento ínfimo tenha orgulho e parta
para conquistas que julga maiores entre os homens ignorantes desse saber advindo da
meditação. Mas, nos parece que, mesmo em seu grande isolamento, o meditador por
excelência é um compassivo e se curva diante dos homens ignorantes e sofredores. Talvez
eles sejam mesmo, como diria Nietzsche (2004, p.13), “mulheres de vida alegre”: para elas, o
sofredor é presa fácil, e deliciosa.
Entre tantas divagações, continuemos a caminhar, mesmo sem saber ainda o que fazer,
e com a perspectiva única de aguardar, sem mergulhar no desconsolo. Parece um bordão, mas
a música, em uma certa medida, vem desse desequilíbrio constante e necessário para que o
caminho continue. Aguardar por que? Onde? Quem sou, onde se esconde? Oh engano! Temos
caminho, embora nos esqueçamos.
Esse acontecer entre o esquecer e o recordar-se é o acontecimento do Mesmo. Assim
mesmo com letra maiúscula, para que desse momento compreendamos a grandeza que é cair
em si; quando se percebe a repetição que implica num retorno para o começo. Um novo
207
uma língua perceptível na articulação das coisas enquanto gestos de “mundo”. Uma língua
que é falada, dançada, jogada, cantada, transformada, ritualizada não poderia ser produzida a
partir de coisas apenas objetos, mas de coisas fluxo e repouso. São elas como abrigos
(lembram-se do mundo-ninho?) da quadratura, na medida mesma em que podem permanecer
em seu vigor de fluxo-repouso. Por isso falar, dançar, jogar, cantar, transformar, ritualizar a
língua “mundo” dos mortais protege e cuida das coisas.
Paciência é o que Lucrécia aconselha para os mortais construtores e demolidores
salvaguardarem a quadratura das coisas. Porque às vezes, salvaguardar é construir; às vezes
destruir e construir de novo. Mas é preciso muita paciência frente à ansiedade que esse
processo pode provocar, principalmente quando se sabe que se pode morrer no dia exato de
uma demolição em vias de re-erguimento (cf. CS, p.70). E o conhecimento? Para nada serve o
cabedal de conhecimentos que o homem acumula durante séculos? Estará ele fadado a ser um
Sísifo, mesmo que feliz, mas sem progredir na verdade? Realmente, há muitos séculos que o
conhecimento se tornou tanto essa articulação da língua “mundo”, que à maneira de Nietzsche
(cf.2004, p.110) pode ser expressa como “parte da vida mesma”, quanto poder em contínuo
crescimento ou progressão. Nós, mortais, somos a região de encontro de ambos, em seus erros
e em seu impulso à verdade. Dessa luta, dependem as coisas, pois as questões que se abrem
no conhecer-meditar desse pensador-lutador colocam em foco as condições da vida e o único
modo de buscar respostas para elas é experimentar, ou seja, proceder a incorporação da
verdade, sua temporalização pela experiência.
A língua “mundo” é uma ponte armada com conhecimento (erro) e na pertinência do
encontro demorado-extenso com as coisas. É a experiência que permite ao rio seu curso; e,
aos mortais, o caminho para a sua trajetória de terra em terra. Quem pensa-medita, e não
apenas conhece, sabe que à vezes a ponte é curta para a distância que se quer aproximar.
Quando nos lançamos ao cosmo, infinito para o homem, a ponte é o foguete, uma
incorporação serena do medo do infinito permite aos mortais realizar essa construção, mas é
serena enquanto se sabe que mesmo o menor rio da nossa cidade guarda uma infinitude que
não pode ser ultrapassada pela ponte. A ponte como civilização que é pode ser destruída ou
superada, mas no lançamento de uma pedra fundamental, de um barco, de um foguete, guarda
sempre um Mesmo e Diferente encontro do homem com e no rio, com e no mar, com e no
cosmo.
Como diz Clarice Lispector, há um tempo que se mistura à “delicadeza das outras
horas” (CS, p.13). Esse tempo distingüe a atenção do esquecimento; e o habitual e
desafortunado da bem-aventurança de quem acolhe o infinito, como o lugar invisível do
209
visível. A ponte, o barco e o foguete podem se cumprir como coisa que possibilita a
“passagem transbordante” para esse infinito, essa invisibilidade que Heidegger (2002, p.132)
chama “divino”, mas a qual, no momento, só posso chamar – ao modo de Alberto Caeiro – de
vento, aquele vento...
Eu bem queria ter a força de uma janela, murmurou-se baixo, e através dessas
palavras disfarçava talvez outras mais antigas, à procura de um rito perdido. (CS,
p.74)
Eu bem queria poder dizer divino, como palavra antiga, própria de um ritual perdido. Mas
vento é minha força, como de Lucrécia é janela. Temos ambas o sonho de sermos gregas, uma
maneira de dizer “divino” sem escandalizar; um meio de explicar segredo em forma de
segredo. Tudo o mais é conhecimento pelo medo (cf.CS, p.91). Portanto, não me venham
dizer que estou falando de vento como um símbolo. Não é. Isso seria uma traição ao vento,
subtraindo-lhe a verdade e armazenando-o como um remédio sem rótulo, sem origem, fruto
de invenção minha. O vento realmente, em sua simplicidade, me trouxe um saber
imprevisível, um aporte ético, um obrar poético e um intraduzível salto. O vento foi muito
feliz em me fazer compreender a coisa como estância e circunstância porque, com ele, fica
mais fácil sorrir para a tentativa de estagnar as coisas em substância imutável e dizer “vento é
ponte” (cf. HEIDEGGER, 2002, p.133).
Ah as coisas que chamamos de amor! Mas se em meu encontro com o vento, não há
desejo, nem cobiçosa ânsia de possui-lo, mesmo que sob a forma de um símbolo, deixo-me
deixá-lo ir e experimentar por ele uma espécie de amizade. Não procuro ultrapassá-lo em sua
serenidade. Lucrécia também:
Plantara a primeira estaca de seu reino olhando: uma cadeira. Ao redor porém
continuara o vazio. Nem ela própria podia aproximar-se desse campo criado que
uma cadeira tornara inabordável. Nunca pudera ultrapassar a serenidade de uma
cadeira e dirigir-se às segundas coisas. (CS, p.70-1)
cada coisa, como um corpo, tem uma barreira final, e sempre subjaz algo de reconhecível em
momentos de estranheza.
Na estranheza ante à palavra “divino” também subjaz algo de reconhecível porém vento
me permitiu caminho e serenidade. Talvez algo em mim esteja fechado, por excesso de
subjetividade. Foi por isso que me demorei junto ao vento, para chegar a esse fechamento, e
arrombá-lo. Transformo-me, como ato poético e de bem-aventurança, dentro de um
refinamento e de um rigor quase matemático. Não porque acredite que – através do vento –
conhecerei as coisas em geral e até mesmo a ele próprio, mas para assim constatar a relação
humana com a coisa, pelo exercício da língua “mundo”. Na cadência deste trabalho, extende-
se um ritmo poético, permitido por uma demora no pensamento coisal. Eia Nietzsche! Ritmo
que quebra distâncias, é coação, gera desejo de aderir (não só os pés, a alma segue o
compasso, e provavelmente também a alma dos deuses). Com poesia, tece-se um laço mágico;
uma doutrina filosófica e um artifício pedagógico; um desafogo de afetos, uma purificação da
alma e um abrandamento da ferocia animi. Convido a todos e a ninguém, na forma simples da
escrita deste trabalho, à dança ritmada da poesia para recuperar a justa tensão e a harmonia
para dançar (cf. 2004, p.84).
Eis, eis, toda ela, terrivelmente física, um dos objetos. Respondendo enfim à espera
dos bichos. (CS, p.79)
Lá
nenhuma planta sabia quem ele era;
e ele não sabia quem ele era;
e ele não sabia o que as plantas eram.
Foi a essa altura que Martim apareceu de novo no seu campo de visão.
Ele, o homem concreto que parecia impedir que as coisas voassem. ... A cada
martelada ele dava enfim matéria ao campo desfraldado, e dava ao corpo daquela
moça, tão vago, um corpo. (ME, p.66-7)
Foi, pois, com o prazer mais legítimo da meditação que ele numa tarde se lembrou,
sem mais nem menos, de que “existem búfalos”.
212
O que deu grande espaço ao terreno, pois búfalos se movem devagar e longe. (ME,
p.72)
Martim, Martim, você agora trouxe a existência de uma coisa lenta e longínqüa como um
desejo, que realiza o espaço pela sua mera lembrança. E essa realização é uma espécie de
contaminação: o clima do búfalo acontece sem a sua presença física. As coisas criam climas à
distância, da mesma maneira que sonhos nos fazem estabelecr relações diferenciadas com o
dia. Estavamos no final desta parte quando Martim soprou essa imagem e essa percepção da
transformação concreta que a imaginação, a lembrança, o devaneio, o sonho provocam.
Houve uma súbita mudança de clima e de ritmo pelo ensejo prazeiroso provocado por uma
nuance meditativa. A imaginação é quase um vapor; uma sensação de calor em coisas que
para os demais são frias. Aí reside a nobreza da meditação: o estar e transformar num lugar,
sem tirá-lo de sua ordem aparente. Para concretizar algo, basta perceber sua presença em
detalhes tão sutis que só quem se acostuma ao refinamento proporcionado pela meditação
pode perceber. Nesse sentido, é sugestivo que Martim, ao final do romance, se deixe pegar
pela justiça e se mostre um fraco chorão, medroso aos agentes da lei e às testemunhas, que
não puderam compreender que aí justamente residia a sua nobreza: ele se curvava à lei, à
regra, tonara-se mesmo um seu advogado, mas o espaço em que ele se movia já estava
irremediavelmente alargado.
Essa nobreza equivale ao artístico que também realiza uma obra “a partir do que na obra
está em obra”. Assim como existe o búfalo que faz o espaço acontecer à sua maneira lenta e
longínqüa, na obra, o espaço de uma tela ou de uma folha de papel tornam-se suporte de um
acontecimento que “só se deixa manifestadamente compreender a partir do processo de
criação” (cf. HEIDEGGER, 1977). Mas, assim como Martim, qualquer criminoso pode
produzir como Criação, em contraposição à mera fabricação das coisas. E qualquer pensador
pode construir concretamente o espaço, na medida mesmo que não o ignora, que se torna um
advogado seu. Pensar e construir – juntos – fazem o espaço se alargar, na constância de sua
reunião. Serenos então? Cada um a partir de sua experiência? Moluscos, moluscos.
Vamos invocar a divisa do molusco, o “búfalo” de Bachelard (1993, p.118):
Divisa do molusco: é preciso viver para construir sua casa e não construir sua casa
para viver nela.
Eis o mistério da fé, diriam os cristãos, mas mais modestamente digamos que é o mistério
da lenta da formação da meditação poética. Lugar-búfalo ou lugar-molusco são paragens do
213
pensamento coisal que desdobram e até mesmo expulsam o espaço físico-técnico se esse
significar um processo de desgaste da terra, pois búfalo e molusco alargam o espaço para que
nele a terra se liberte para si própria. E por mais que sejam lentos e longínqüos esses lugares
em que a terra se salvaguarda, e por mais que se tornem abrigo, persiste nele uma
intranqüilidade própria do acontecer da obra de arte. A serenidade se dá apesar dela. Talvez
ela (a intranqülidade) advenha da tensão entre os quatro pólos presentes no lugar-búfalo e no
lugar-molusco, principalmente pela sua dimensão de mortalidade, mundanidade, desgaste. É
então que a calma ressonância do que há de terra e de imortalidade nesses lugares atinge o
criador da obra de arte e fazem com que ele se recorde: a obra de arte não pertence ao homem
que a cria; não se faz por causa dele. Por isso mesmo, por mais estridente que ela seja, por
mais tensão que ela provoque, ela nunca é dissonante em relação à terra e à imortalidade, tão
presentes na criação quanto o homem que a cria.
A ínfima função da mocinha na sua época era uma função arcaica que renasce cada
vez que se forma uma vila, sua história formou com esforço o espírito de uma
cidade. (CS, p.22)
Búfalo, molusco, Lucrécia e cavalo não são meras invenções, não são tampouco
representações de Martim, Bachelard e Clarice Lispector; nem mesmo imagens irreais – são
“projetos clarificantes” da fabulosa relação mundo-terra, do fabuloso espaço de jogo em que
se trava essa relação combativa, do lugar em que se aproxima e se afasta o divino. A poesia,
enquanto meditação e pensamento das coisas, permanece impassível na escuridão; e
simplesmente produz, mostrando abertamente o que se fecha em si. Humilde, serena e des-
lumbradamente, o pensador que medita na poesia das coisas, busca a consonância do quieto,
214
a linguagem que pode interromper a palavra, devolver o sonoro ao não sonoro e aproximar o
mundo aos campos da quadratura.
Gestos das coisas, mundifiquem o mundo como língua de salvaguarda! Quietude, conceda
às coisas a suficência para salvaguardarem o mundo em sua doença e sua saúde! (cf.
HEIDEGGER, 2004, p.23) Todos a caminho! Todos quietos para ouvir o chamado da terra a
ser produzida no mundo instituído! Meditemos no fazer dessa obra, sem a ilusão de quietude é
ficar parado. O repouso inclui o movimento. Senão, nada de obra, ora! Serenidade é tanto
caminho, quanto caminhar. Com esse pensamento, chegaremos à proximidade do longínqüo e
da lentidão do búfalo, do molusco, do cavalo e de Lucrécia, lembrando que às vezes a
corporificação da verdade “flutua pelos ares como o canto austero e amistoso das
campanadas” (HEIDEGGER, 1970). Alcancemos o aguardar como decisão, ao pertencimento
daquilo que aguardamos.
Não há arte, sem esse saber meditativo. Não há serenidade, sem determinação a partir
daquilo com que se relaciona. É no saber meditativo e na relação que a arte pode se decidir ser
um salto ou um suplemento, que o homem pode ser um “natural apodrecimento” (ME, p.36)
ou um modo de conhecer: um histórico. O saber meditativo ou pensamento coisal é a
“perversão em ser eterno”. Se, em geral, estamos rodeados de faltas e ausências, serenidade é
perversão. E perversão mais pervertida ainda à medida que não procede de um querer e
admite uma pertença aos lugares-coisas.
ATIVIDADE
APAGAMENTO
REPOUSO
MOVIMENTO
VERDADE
OCULTAMENTO
Eis a flor – mostrava o grosso caule, a corola redonda; a flor se demonstrava. Mas
sobre o caule também era intocável. Quando começasse a murchar, já se poderia
215
olhá-la diretamente mas então seria tarde; e depois que morresse se tornaria fácil:
podia-se jogá-la fora tocando-a inteiramente... como se o que fora mortal tivesse
morrido e o resto fosse eterno, sem perigo. (CS, p.72)
Feliz. Porque, se não expressara o inexplicável silêncio, falara como um macaco que
grunhe e faz gestos incongruentes, transmitindo não se sabe o quê. (ALP, p.37)
Estamos diante uns dos outros, convivemos, nos isolamos, mas ainda assim estamos
uns diante dos outros, somos uns diante dos outros, ligados por uma imensa rede muito mais
densa do que os cabos telefônicos: o fio tecido por nossa linguagem dita, maldita e inaudita. O
mais estranho é que essa rede de linguagem parece se depositar em silêncio; não é uma rede
falante, necessariamente; comporta gestos, grunhidos e outros movimentos simples, como
suspiros e tosses. Estamos em respiração compartilhada e onde quer que haja um aceno,
sente-se adiante. Sente-se. Lóri está feliz porque ela acena, não importa o quê, não se sabe o
quê. Eu não sei desse bem e grunho, querendo acenos de volta. Dêem bananas, dêem sim.
Mas os únicos atentos parecem ser os cobradores. Feliz, Lóri insiste. Não se sabe por quê, por
quem tampouco. Os cobradores fazem sua parte de conservação de um passado que talvez não
precise ser conservado. Os trilhos por onde percorre esse fio de linguagem não são retos, não
são uniformes, não são de um só material, afinal de que material é feita a terra, considerando
tudo que nela não pode ser contado. Ao grunhir, portanto, eis o segredo de Lóri, não espere
por bananas. A terra estende para você as próprias bananeiras e os frutos não nascem pela
ação de cobradores. Eles nascem pela energia silente alimentada de grunhidos felizes,
inexplicavelmente. Coisas são palavras, gestos, acenos em estado de grande concentração.
Meditar nelas é deixar que esse fio de linguagem prossiga em direção ao advir. Coisas são
advertências, estações para esse fio que nelas repousa para poder partir e repartir.
Na estação das coisas, a linguagem se refastela. Há tanto o que dizer, tantas
coisas dentro da coisa e, no entanto, parece haver um nome próprio e específico para aquela
coisa em que se está. Cada coisa é como uma cidade invisível, vista pela primeira vez por
Marco Pólo, e através do horizonte aberto da sua linguagem, mostrada no que têm de mais
próprio a Kublai Khan, o imperador (cf. CALVINO, 1990). Mas, na era do império espraiado
em cobradores que não mais sabem jogar xadrez (como Kublai Khan e Marco Pólo), outro
jogo a linguagem há de inventar. Pois as coisas permanecem como estações, cidades visíveis,
216
aguardando que o fio as eletrize em um dizer. Todos nós, como coisas e estações, sabemos
como desejamos, mesmo que muda e pacientemente, um nome, um dizer que indique sentidos
que por nós partem e repartem. Esse desejo talvez seja o que propriamente nos define como
humanos e imperfeitos.
Mas estamos com sono, estamos cansados, estamos inertes, abobalhados
porque a aparência das coisas, sendo a sua própria realidade, nos parece difícil. Sem o dom da
fala, como Lucrécia, podemos apenas dizer: “eu vejo”. Nossa pequena experiência
pedagógica se inicia aí: fios humanos desejantes e imperfeitos, cansados e abobalhados diante
da dificuldade de dizer a simples aparência das coisas como realidade, balbuciamos: “eu
vejo”.
Pronto, e assim projetamo-nos para o clarificado e libertamos nosso fio de
linguagem lançado num “dizer projetante”, que é recusa da confusão, do cansaço, da inércia.
Se as coisas brincam de se esconder, aceitar a brincadeira é recusar o seu esconderijo,
buscando descobri-las entre risos, corridas, falhas e em exclamações dos nomes das coisas
encontradas. E, a gente sabe, muitas vezes, dizemos: achei! (mesmo sem ver) e a coisa
aparece, sai de seu esconderijo, atenta ao nosso chamado. Também – como Lucrécia – não
sabemos mais que império ou reinado representamos. Não temos Kublai Khan como
interlocutores, a quem dizer “olha o que eu achei”. Nosso trabalho é mesmo “curto demais e
quase inexplorável”, mas tudo o que vemos, descobrimos, achamos, chamamos, passa a ser
“alguma coisa”. Como Lucrécia e o cavalo, vemos e dizemos, mesmo que seja só o que
vemos. “Nela e num cavalo a impressão era a expressão” (CS, p.23), orientados por um
pensamento coisal e com um leve pressentimento de que, por ser “algo de uma”, a coisa está
levemente aproximada de uma dimensão sagrada.
Ops! Parece que bati com a cabeça em algo estranho. Da última vez que topei
com a palavra “divino” fiquei constrangida e agora novamente essa sensação de falar sobre
algo que desconheço me faz sentir com vontade de pedir desculpas por essa intromissão.
Martim também, em um momento de sua saga, também diz que “parecia ter atingido aquela
coisa que uma pessoa não sabe pedir” (ME, p.40). Eu sei, ele não estava falando propriamente
do sagrado. Mas pensei nele porque justamente são desculpas o que uma pessoa não sabe
pedir. Bom, consideremos isso como uma hipótese: que uma pessoa não sabe pedir perdão,
ajuda. Talvez aqui nos afastemos da palavra sagrada e retornemos ao humano (porque só
humano pede desculpas), mas depois, com certeza, reencontraremos essa história de sagrado,
que não precisa ser procurada, de vez em quando ela aparece, mesmo sem ser chamada.
217
Queria pensar agora sobre o que uma pessoa não sabe pedir, considerando isso como
perdão e buscando sua realização como um dizer projetante. Significa dizer: quando do
perdão de algo do passado, do seu descobrimento e do seu dizer, abre-se uma outra
perspectiva. Digamos então que seja a partir de um perdão à coisa por tê-la ignorada, por não
tê-la visto, por não saber seu nome e não poder chamá-la ou descobri-la, que possamos
recolocá-la na rede tecida pela linguagem. Perdão por não abrir a essa coisa uma abertura em
direção ao advir, não tomá-la como advertência e deixá-la esquecida, indiferente e engessada
no passado. Um pedido de perdão talvez seja já um pedido de ajuda, algo que uma pessoa
também não sabe pedir. Tanto faz quem esteja pedindo ajuda a quem. O importante aí é mais
a palavra pedido do que ajuda, pois pedido, em seu sentido próprio, livre do seu sentido
político ou jurídico, ganha um contorno mais movimentado: quem pede, aborda, investe,
quase assalta. Quem pede, se projeta, como uma coisa que quer ser vista. Perdão vem a ser um
complemento natural de pedido. A aproximação entre ambas é um rasgar de sentimentos
passados; é uma oportunidade de se movimentar e sair da estação ressentida, escondida e
engessada nas relações políticas e nos códigos jurídicos. Sob o manto da língua política ou
jurídica, que mantém as coisas em seus devidos lugares, não ameaçadores, pedintes podem ser
aceitos, mas não os assaltantes, a aproximação se dá distraidamente, sem nomes próprios, sem
energia que leve à coisa em direção a um sentido de partição e repartição.
Atingir o pedido, no entanto, não depende de concessão, não significa humilhação, é
um salto projetante; atingir o perdão, da mesma maneira, projeta, agiganta quem o diz.
Martim comenta que na linguagem, não há uma palavra sequer que dê nome ao fato de, no
agigantamento de si próprio, ele ter alcançado o alto da montanha (cf.ME, p.41). E aqui,
aparência é realidade: Martim realmente alcançou o alto de uma montanha, no escuro, sem
saber por onde estava indo, a não ser sentindo a dificuldade da subida, sem saber que a
dificuldade advinha da montanha, que ele subia imperceptivelmente, no meio da noite. A
quem então ele pedia perdão e ajuda? A si mesmo, à montanha, à humanidade, a Deus? Ao
subir, como um macaco, ele talvez pudesse apenas grunhir, fazer gestos, tecendo com seu
corpo uma linguagem que — pelo caminho — fez, da fuga, advir o encontro: o cume da
montanha. Mas mal sabe ele que ali chegando, agigantado, outro movimento complementar
vai se fazer necessário — a descida da montanha: como Sísifo ou como Zaratustra. Ele não
sabe dizer quem ele é, ainda que se veja; e “descer” ao mundo agora terá o sentido de buscar
esse nome para alcançar novamente o horizonte.
Ele vai se pôr em preparação, reaprendendo a dizer as coisas de maneira a
projetá-las, com a generosidade de quem atende a seus pedidos e com a humildade de quem
218
lança um pedido, sem formulá-lo, sem saber nem mesmo a quem, apenas como forma de se
mostrar receptivo ao que lhe for dado, apenas sabendo que “isso” que lhe for dado, ele não
poderá dizer, não por ser segredo, mas por desconhecer o nome do que está por vir e porque
algo sempre escapa e parece nunca se deixar descobrir, nos fazendo recomeçar a brincadeira
de esconde-esconde.
Mas, felicidade, algo sempre pode ser dito e se fazer aparecer. Lucrécia, por exemplo,
dizia:
Esta é a praça mais bonita que já vi, e depois podia atravessar com segurança a praça
mais bonita que já vira. (CS, p.129)
O silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão; ele grunhia aprovando. Ele
que não tinha uma palavra a dizer. (ME, p.64)
o alto grau a que chegavam as coisas sobre a prateleira, o passarinho seco prestes a
voar empalhado pela casa, a altura da torre da usina, tanto intolerável equilíbrio...
(CS, p.69)
A “muda existência”, tal qual aparece na cidade sitiada, é tagarela, fala pelos passarinhos
secos empalhados, pela altura das torres das usinas, e por essas alturas se equilibra,
intoleravelmente. Somos usinas? Não, respondemos, somos macacos, somos cavalos, pois só
eles sabem exprimir em cólera sobre as patas, a sua intolerância. Só assim se quebra o
equilíbrio empalhado e empilhado, pois é preciso que cada um de nós permaneça em aberto
para ser como é. Esforço constante é atenção vigilante; é dizer e não explicar; é exprimir-se
em cólera e desequilíbrio sobre as patas e não estáticamente sobre a prateleira. E mesmo que
tenhamos de dizer “olhe esta samambaia!” porque não podemos dizer “eu te amo” (ME,
p.116), dizer porque às vezes, a comunicação esconde razões que são desejos, desejos que são
pulsações, ouçamos o começo de uma música que, apesar de não poder ser dita, pode ser
entoada. E assim “olhe esta samambaia”, para ouvidos atentos pode também soar como “eu te
amo”.
221
Não temos quase nada a dizer? Ótimo! “Só assim restitui-se a riqueza de sua essência à
palavra e ao homem.” Essência aqui quer dizer o “eu te amo” que não pode ser dito, o quase
diante do nada, a possibilidade suada de dizer “olha a samambaia”, um abrigo para habitar, a
verdade do ser dita em tosses e grunhidos, uma correspondência ao amor que reclama e
aborda o homem, como uma coceira que não pode ser ignorada. Pensamento seria então o
amor ou a samambaia? E a palavra inexpremível “eu-te-amo” pode ser considerada
linguagem? Linguagem seria então um aparecer possível do pensamento impossível? Mas isso
não é o mesmo que dizer a linguagem dizível representa o pensamento indizível? O ente
representa o ser? Que enrascada, que difíceis questões! Algo me diz, no entanto, que o
cuidado para não ficar vago significa aqui o movimento de reunião pensamento-linguagem, o
amor traz a samambaia, mas mesmo que se trouxesse enquanto eu-te-amo, restaria sempre
uma palavra inexpremível que de novo se apresentaria, seja como “pele”, seja como “dor”. O
movimento de dizer pode ser tanto mais cuidadoso, tanto mais se demorar no inexprimível, a
clareza vem desse se deixar sentir “a coceira”, sem recorrer a primeira samambaia que
encontrar. Enfim nossos dizeres estão carregados de indeterminação e de delizadeza. Nossa
própria existência é vaga e delicada o que indica a simplicidade como maneira assertiva de
enunciar a experiência direta e próxima, mas essa indicação não exclui o modo dubitativo e
hipotético que enuncia incertezas e probabilidades, mesmo a poesia diz “talvez”, “parece” e
“quem sabe”. A simplicidade abraça as tonalidades e as modalidades dos dizeres que se
compõem segundo o diapasão das coisas presentes, sejam samambaias ou prateleiras. Temos
de levar em conta que a simplicidade é obtida em um espaço de crise e de divisão de saberes.
Um especialista terá dificuldade em não-explicar e um apaixonado em não-ser-vago.
“A linguagem da poesia é essencialmente polissêmica”, diz Heidegger (2004, p.63-4).
Abraça as dificuldades não como hesitações e indeterminações, mas como caminho para
pensar. “Não conseguiremos escutar nada sobre a saga do dizer poético enquanto formos ao
seu encontro guiados pela busca surda de um sentido unívoco.” Mas ao mesmo tempo: o lugar
mais íntegro da poesia é o da consonância com o que permanece indizível.
Consonância, aproximação, desejos que são pulsações: o começo de uma música... Mas
não estamos falando do “coração aberto” do apaixonado que, desejante, tagarela. Consonância
aqui quer dizer soar-com, desapaixonadamente, de modo que o coração silencie em sua
abertura e possa finalmente ouvir, para assim dizer poeticamente. O dizer poético é fruto da
experiência pedagógica da percepção e ao mesmo tempo de um desejo misteriosamente
silenciado. Mas, atenção, é preciso cuidado com a educação que quer calar o desejo com o
falatório das usinas, dos pássaros empalhados e das prateleiras. A poesia abraça a
222
incongruência e pode se manter calada, pois não se deixa coçar por caprichos de coerência. A
poesia sabe que as palavras podem vir a ser outras coisas. O desejo calado na poesia não é o
mesmo que a educação ensurdece. O recusar o desejo na poesia, ou seja, a falta de desejo que
silencia o coração não é negativo, é afirmativo do indizível, do que não se pode possuir.
É interessante lembrar aqui o caso da língua chinesa, que, diante da pergunta “ele não
vem?”, diz “sim”, para responder que ele realmente não vem. Isso porque o “não” da pergunta
une-se ao “vir” numa só noção: a de “não-vir”. Isto é: “não” não quer dizer privar-se. Calar-
desejo, do mesmo modo, não quer dizer privar-se dele, mas afirmá-lo de outro modo. O que a
língua chinesa traz ao nosso pensamento e mais especificamente o pensador Lao-Tzu, em sua
obra Tao Te King, é que “não-ser” não é simplesmente o nada, mas algo qualitativamente
distinto do “existir” (cf. WILHELM in LAO-TZU:28).
Poesia é a procura de falar a ambigüidade em que existimos. A língua que dispomos
procura pôr em ordem os pensamentos e resumir os resultados de algo que sentimos e que
merece ser dito com a mesma agudez. Mas esse é um dizer revolvido de desejo. Desejoso,
Martim procura — em sua permanência como empregado foragido e incógnito em um sítio —
escrever, mas “concentrado no penoso”; lenta e aplicadamente, como o rosto de uma mulher
“ao enfiar a linha na agulha”, calculando com as palavras, do jeito que aprendera a calcular
com números (ME, p.131). Eis que, em nossa permanência nos sítios da vida, começa a nos
fazer falta o que não dizemos, o que não-dizemos, na acepção não-privativa do “não”. E
passamos a experimentar dizer o indizível. É então que descobrimos que, se não quisermos
mentir, resta-nos bem pouco a dizer, como Lucrécia que, “numa conversa de vizinhas, em
mistura de longa experiência e de descoberta de última hora”, sobra apenas a possibilidade de
dizer: “sim, sim, alma também é importante, não acha?” (CS, p.197) Uma frase estúpida,
cheia de significados importados, um lugar-comum, pois não? Mas, não vamos nos curvar
diante do capricho da coerência, nem começar a pensar que essa frase pode querer dizer
diferentes coisas, ou que essa diferença se dá a partir da instauração de uma relação instaurada
pela demora, que possibilita calar o desejo: vamos fechar a matraca e ouvir. A linguagem se
faz em sua inteireza, em consonância; só assim ela obra e age. Só assim podemos concordar e
discordar: sim, sim, Lucrécia, a alma é importante, mas isso não é tudo.
Linguagem e ação
Passar a língua pelo mundo, passeando sentidos... Estamos diante de um pressentimento
de que o dizer consonante está ligado ao ser-no-mundo, à transgressão amorosa e a uma
postura de presença do corpo na linguagem. “O corpo fala” é uma expressão já absorvida pelo
223
linguajar técnico, mas talvez ainda não experimentada no pleno da palavra corpo, enquanto
espírito (lembremos de Nietzsche e o seu “escreve com sangue e verás que sangue é espírito”)
e enquanto coisa (lembremos da quadratura da coisa, tal como Heidegger indicou). O corpo
diz-se mortal, divino, céu e terra. Passar a língua pelo mundo, passeando sentidos pode ser o
pressentimento da história do homem inscrita por seus movimentos ao longo de sua vida e
pela forma aparente de suas relações com as pessoas ou coisas. O nosso dizer pressente a
história que colocamos em curso, mas é incapaz de controlá-la. Cada dizer é um movimento,
uma respiração, um deslocamento de ar, um lançamento de caroços (lembremos do cidadão
Perseu que, enquanto pensa em sua janela, espalha caroços de tangerina pela rua). Passear
sentidos traz para o dizer em movimento não só a presença física orientada pelos cinco
sentidos, mas a percepção de que esses resguardam possibilidades só deflagráveis quando
postas diante do impossível.
Por isso, a linguagem concretizada em cada ser humano conta a sua saga e a própria saga
do dizer. Escutemos Martim:
Ele só queria agregar-se aos salvos e pertencer – o medo levara-o a isso. A salvação.
E com o coração ferido de surpresa e alegria, pareceu-lhe por um instante que
acabara de encontrar a palavra. Seria à procura dessa palavra que ele saíra de casa?
Ou de novo apenas os restos de uma palavra antiga? (ME, p.170)
entre os homens mas com as pessoas ou coisas que se fazem ouvir, co-ouvir, mesmo que essas
coisas não falem.
Ah! Dizia uma ave cortando obliquamente a intensa luz. Em resposta as três
mulheres de pedra sustentavam a portada do edifício. (CS, p.17)
No entanto, nesse processo em que se diz e se escuta, em que uma coisa vem de encontro
à outra, o que é ressentimento, medo, sentimento de ameaça e ferida pode entrar num canal
exotérico de busca do interessante, com a intenção de inocular distração e vulgarização em
relação ao obscuro. Mas o corte oblíqüo da intensa luz se faz de maneira tão natural quanto o
vôo de uma ave – natural, misterioso e impossível. À leveza do som que se escuta no bater
das asas do beija-flor, respondemos com a exposição de ombros e de corpos torneados de
mulheres de pedra que podem apenas servir como lugar de pouso para os pássaros e de
sustenção para a obra em que os homens se abrigam. O pesado não insulta o leve, nem tem
como dominá-lo; ambos não se opõem: se diferenciam, isso é claro. Desde a luz, fala o corpo
da ave, através do soar das asas e da expansão do pulmão pulsante: ah! desde a portada do
edifício, soam em consonância, as mulheres de pedra, num dizer que lhes sai do corpo inteiro,
em tensa sustentação da cidade que se constrói.
Em seu encontro, ave e mulheres poderiam — ah! poderiam – se pedir mutuamente
socorro, como sugere Lóri: numa “das experiências humanas e animais mais importantes: a de
pedir mudamente socorro e mudamente esse socorrro ser dado” (ALP, p.134). Em seu
encontro, poderia ressoar esse pedido mudo, que poderíamos pensar aqui como um poema.
Ouve-se um pássaro; esculpem-se mulheres, cria-se um poema: ressonância. E, ao repeti-lo,
na fala própria deste trabalho, trabalho de repercussão da paidéia poética de Clarice Lispector,
esse poema é nosso. Pedido mudo de socorro vem a ser a contrapartida da criação daquele
canal exotérico. Quem pede, como dito anteriormente, se projeta como coisa que quer ser
vista, mas quem pede mudamente, espera ser socorrida pelo que é, pelo que expõe: asas ou
ombros. O socorro, faz com que – na obscuridade — corra uma rede que reúna esses dois
entes tão diferentes, numa só comunidade agregada e salva pelo dizer consonante, ressoado e
repercutido, em um constante trabalho.
O dizer de ambos é apenas aludido. Esse dizer aludido é o indizível, deixado aos cuidados
de cada um que o escute, repercutido no encontro, bifurcado em trabalho, jogo ou dança
poética, sob a tensão da permanência de nossas palavras antigas. A linguagem em movimento
é ação que narra a história, que a socorre. Em Édipo, tragédia de Sófocles (cf.1998), em vários
momentos, a história segue seu curso através de pedidos explícitos feitos à linguagem:
225
“vamos, fala!”, diz um. “Pois ouve bem:”, diz outro. E a rede segue tensa e sutilmente em
detrimento das fraquezas humanas que muitas vezes torcem para que o antigo permameça
quieto; que outras vezes limitam-se a sustentar portadas de edifícios já construídos; que
algumas vezes recebem mudamente o socorro pedido; e que raríssimas vezes se encontram,
em estado de graça, com coisas simples como uma as asas de uma ave.
Madura, a nossa linguagem se faz de vez em vez: em graça, em socorro, em sustentação e
também em esquecimento. Sem essa mistura de fios, a rede da linguagem em comum se
perderia. E o que há de tão importante na linguagem em comum? Nada, ela corresponde à
praça pública de uma cidade. Todos vamos para lá. Falamos, falamos e falamos, buscando a
compreensão de todos os cidadãos. Se eles demonstram indiferença e não nos ouvem,
paciência. Continuamos nosso trabalho, agora procurando discípulos entre estudiosos e
companheiros de criação. E, se nos apercebermos que para sermos ouvidos entre esses, temos
de dizer de acordo com um sistema de crenças, abandonamos antigas pretensões escolásticas e
seguimos, como Martim, até atingir o cume da montanha. Mas lá continuamos a falar, mesmo
que seja para ninguém. Para o futuro talvez, apostando no encontro sem intenções entre aves e
mulheres. E, na linguagem em comum feita não só como resposta muda a um pedido de
socorro, mas pela simples felicidade do encontro, da reunião: ah!
Era cedo demais para lhes dizer isso, mas gozava do prazer de falar-lhes. (ALP,
p.110)
Feliz. Porque, se não expressara o inexplicável silêncio, falara como um macaco que
grunhe e faz gestos incongruentes, transmitindo não se sabe o quê. (ALP, p.37)
Então, Martim desceu a montanha. Lóri foi à praia e depois à feira. E Lucrécia atravessou
as ruas de São Geraldo, acompanhando o seu progresso até o seu limite. Em busca de
palavras, de sentidos e de silêncio. Felizmente, ele vem em nosso socorro e encontramos,
nele, uma fonte deliciosa em que podemos passar a língua, passeando sentidos...
Linguagem e silêncio
O silêncio é fonte de palavras mas é também terrível.
Inútil querer povoá-lo.
Inútil querer esquivar-se.
Noite secreta do mundo,
do corpo descansado, o silêncio aparece.
Do espírito atento, e da Terra e da Lua,
o coração reconhece: ele é o de dentro da gente.
Eis um poema do macaco que grunhe e faz gestos incongruentes. Entretanto, também ele
ouviu o silêncio astral impossível e inesquecível. Foi a nudez que o fez assim, um animal
diante desse Deus, em quem – agitado – quer aninhar-se e repousar. Se ao silêncio, a gente se
submete, a palavra passa a agir através Dele. Homem, filho do Silêncio, da onde surgiu a
palavra e a história e para onde ela escoa, tão logo tenha sido proferida. Sem silêncio, não se
existe, não se cria. Sem o estalar do silêncio do fogo, não há regozijo. Sem o silêncio do sol,
não desembocam cavalos das esquinas. Mas a cidade respira seu silêncio com desassossego.
Recusa-o, com medo extremo da solidão que ele expõe. Na cidade, grita-se e grita-se.
Furtivamente, no entanto, ei-lo de volta. Na verdade, ele nunca se foi. No meio da gritaria,
ressurge o silêncio sempre vitorioso, nos expondo novamente a boca que grunhe em sua
solidão; as mãos incongruentes, sendo só elas mesmas: mãos incongruentes. Da agitação, do
ridículo, o silêncio nos faz reaparecer. Na palavra ausente, nos sustenta.
Martim já não pedia mais o nome das coisas. Bastava-lhe reconhecê-las no escuro. E
rejubilar-se, desajeitado.
Depois quando saísse para a claridade, veria as coisas pressentidas com a mão, e
veria essas coisas com seus falsos nomes. Sim, mas já as teria conhecido no escuro
como um homem que dormiu com uma mulher. (ME, p.228)
Na palavra ausente, sem os devidos nomes, percebemos as coisas em sua dimensão de ser.
As coisas nuas de seus nomes, sem a iluminação da identidade, da estirpe, da categoria, será
possível que se veja assim? Mas isso não seria defender a possibilidade de se pensar sem
linguagem? Da linguagem restrita das palavras, talvez sim. Pois há uma linguagem que só as
mãos conhecem. Afinal, pode-se dormir com alguém, sem saber o seu nome. Pode-se chamar
alguém e seu corpo e seu espírito por um suspiro e um repousar silencioso, pode-se conhecer
227
o outro simplesmente pela “linguagem de contato”, fruto do silêncio. Talvez a pergunta que
caiba então seja: é possível o conhecimento fora dessa via direta?
Via direta, no entanto, quer dizer apenas desfazer-se da privacidade, aproximar-se das
coisas tão intimamente quanto duas pessoas em contato sexual, e ao mesmo tempo desfazer-se
do constrangimento da publicidade, para a qual as coisas são todas possíveis mídia de uma
mensagem preliminar ou subliminar. Para aproximar-se do ser, o homem precisa aprender a se
desfazer da privacidade e da publicidade: uma é expressão da impotência e outra da
prepotência. Reconhecer o ser no silêncio é se deixar tocar por ele através das coisas, antes de
selar uma via intencional, ou mesmo que impulsiva, para o toque.
É de dentro desse silêncio que um canto vai se fazer ouvir pois para o ritmo se dar é
preciso que a pulsação se faça presente. O coração diante do nada. Nos ouvidos, o próprio
coração. Isso quer dizer: ausência de nome não é ausência de afeto. Só no silêncio pulsante, a
água que enche um balde se torna cantante.
No silêncio abriram água abundante, então ela debruçou-se para divisar o balde que
a água enchia num som cada vez mais raso e cantante. (CS, p.199)
A paidéia poética requer abertura para esse afeto descomprometido e essa apuração do
ouvido para o insignificante. A pedagogia do balde cantante nos leva ao reencontro com a
nossa história de ser.
Sentir e dizer
A história de ser não tem nada de complicada, nem se restringe a poetas renomados, nem
a filósofos pesquisadores sobre a verdade. A verdade é coisa que todo mundo sabe, mesmo
que a ignoremos. “O rosto das pessoas” sabe.
Aliás, todo mundo sabe tudo. E uma ou outra vez, alguém redescobre a pólvora, e o
coração bate. A gente se atrapalha é quando quer falar, mas todo mundo sabe tudo.
(ME, p.234)
Então, se todo mundo sabe, pode-se perguntar: para quê ensinar? Mas nessa ironia, a
pedagogia do balde cantante não resvala. Para isso, Clarice Lispector diz, através de Martim,
todo mundo sabe tudo, mas se atrapalha quando quer falar. Vai falar a “linguagem do contato”
e o som do balde cantante! A aprendizagem se faz na ensinagem que a multiplicidade das
coisas permite, no processo de ouvir com afeto e dizer com afeto. E não adianta dizer que um
cientista não precisa disso. Pois um cientista que se restringe à técnica, nada descobre. Basta
ler um texto científico para perceber a sua impregnação poética no seu dizer metafórico. É
228
tudo “como se”, “como se”, “como se”. Para “voltar atrás” na direção que nos leva ao é, antes
do como se, ao é que nos parece inexprimível (o dizer da “linguagem do contato” e do balde
cantante), é preciso sentir de novo, ouvir de novo, se deixar tocar de novo. Mais uma tarefa
para a pedagogia? Abrir essa oportunidade de novo sentir? Essa fala que ressurge no contato e
no ouvir das coisas insignificantes é articulada com um sentir; tem a forma estrutura de
síntese; se dá em conjunto com outro. Essa linguagem é ela mesma ensinante e aprendizagem;
ela própria é a oportunidade e o lugar no qual de novo se sente; ela torna visível aquele que
me toca e a quem toco, assim como audível aquilo que escuto. Aquele e aquilo tão mais
existentes são, mais os digo em sua impossibilidade de serem exprimíveis.
Dizer linguagem como lugar da pedagogia não quer dizer, no entanto, linguagem como
condição das coisas serem. Não é a linguagem que funda ou fundamenta àqueles e àquilos;
nem está ela a serviço exclusivo da razão. A razão pode procurar fundações ou fundamentos,
mas então não estará no processo autêntico de ensinamento e de aprendizagem. Con-dicção é
a palavra que Heidegger usa para expressar essa forma na qual nos articulamos com aqueles e
aquilos em contato com os quais dizemos nosso discurso, nossa fala comunicante, nosso
vazamento poético em cantoria própria ou parafraseante. Con-dicção, com-aqueles, em-
contato, com-os-quais, comunicante... eis-nos na “via direta”, ou seja, no consentimento do
mistério da palavra em nosso dizer. Con-sentimos assim com algo grande, quer dizer, sempre
em movimento, quer dizer, distante, quer dizer, de volta. Eu sinto o que o balde faz ressoar:
algo maior do que o balde, um grande que não cabe no interior de seu espaço geometrizável
ou matematicamente calculado. O som cantante que o balde me faz de novo ouvir é o som de
algo grande, impossível de ser paralisado em palavra, mas só por me colocar em com-dicção
com o balde, experimentando exprimir o inexprimível do seu som é que esse mistério grande
e em movimento se consente, para logo se pôr distante, inatingível; para logo voltar, em um
jogo irresistível que nos envolve e que nos faz ser viventes.
O dizer que se tece então vai de encontro a esse princípio, distante e sempre de volta, por
isso insistimos tanto aqui na palavra como caminho e na necessidade da presença, na reunião
do sentido e do sensorial, usado de preferência no plural. Às vezes, a gente acha que essa “via
direta” perceptível na insistência e na sensação de continuidade presente na obra de grandes
artistas tem a ver com um contato com o sobrenatural. Às vezes, a gente inventa uns
mediadores angelicais, fantasmagóricos, espectrais. Isso parece nos facilitar e nos desviar da
verdadeira dificuldade pois “tocar na realidade é que estremeceria nos dedos” (CS, p.24). Às
vezes viver é tão difícil que se restringe ao movimento de um carro andando no calor. Então,
já que viver ficou assim moroso e pequeno e próximo, sem nos levar de volta a um princípio,
229
nos pomos a contar histórias, a nossa própria história, em longas biografias narradas em frente
do espelho ou apoiadas no travesseiro, em esculturas diminutas ou gigantescas, feitas com
palitos de fósforo ou com o peso do bronze forjado, em teses de doutorado e em leituras e
organizações de partituras e de cursos. Assim fazemos-dizemos-sentimos para que o viver que
avança “dia a dia como o que fica maduro” se acompanhe de alguma coisa grande, em
movimento, distante e de volta (CS, p.198).
E como para lhe dar de presente alguma coisa, ele disse: - Sabe o que é sarcofila?
- Nunca ouvi esta palavra, respondeu.
- Sarcofila é a parte carnosa das folhas. Segure esta e sinta.
Estendeu-lhe a folha, Lóri tateou-a com dedos sensíveis e esmagou-lhe a sarcofila.
Sorriu. Era lindo dizer e pegar em: sarcofila. (ALP, p.116)
Às vezes, essa história que nos pomos a contar vai na direção do nome de uma coisa
evocada como se evoca um deus. Desfazermo-nos desse nome pode ser difícil demais.
Redescobri-lo então, em sua estranheza e no caminho inverso da sua apropriação pelo uso
comum, consente que o mistério que nele reside se faça novamente sentir (na reunião
sentimento-sentido-sensorial). Nessa convocação do sentir-junto, trazemos de volta o corpo
para a linguagem, que se mostra como configuração: o amor de Lóri e o de Ulisses diante do
Nada evoca uma palavra como deus; e, ao dizer a palavra cujo sentido se pode sentir com os
dedos - como “sarcofila”, de volta o deus-palavra responde: o que é distante se faz presente e
a vida se põe em movimento, no sentido do grande.
Alguém pode dizer que essa lua impressora não dispõe de algo grande? E, nessa com-
dicção simbolizante, não tem poder de metamorfosear realmente as portas “em mil portas
mudas”? As portas, nesse movimento, deixaram de ser meros instrumentos de abrir e fechar,
ou antes, passaram a ser passagens da linguagem que se abrem e fecham com toda a
231
objetividade que esses atos encerram; a força contida no abrir ou no fechar a porta para
alguém ou algo reúne-se ao seu nome, que nem mais precisa ser pronunciado. Mudamente, ele
está presente. Esse é o estado espiritual de cada ato ou trabalho: a transgressão e a
interatividade entre o comum e o extraordinário. Na cidade, a lua se dispõe como um sinal da
espiritualidade na porta; no campo, a vaca indica a Martim – também sem palavras – que seu
trabalho possui esse estado espiritual (ME, p.113).
Em “A origem da obra de arte”, Heidegger (cf.1977, p.32-4) descreve esse estado
espiritual como estar-aí e exemplifica-o com o templo que, assim como a lua concede mil
portas mudas às portas, “concede primeiro às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si
mesmos”. Dai à porta o que é da porta; dai às coisas o seu próprio rosto; e aos homens, em
com-dicção com o templo, dai a vista de si mesmos, com toda a objetividade e força que isso
implica. E “esta vista”, continua Heidegger, “permanece aberta enquanto a obra for obra,
enquanto o deus dela não tiver fugido”. Nesse sentido, assim como lua pode ser um caminho
para a porta, o templo o é para o homem. Caminho é obra; obra é movimento de algo grande,
que traz de volta o distante. Nesse obrar, está a presença do deus, elemento metamorfoseador
que “transforma o dizer do povo”, sendo povo a coisa que passa a se ver com a força e a
objetividade indicadas pelo obrar do sagrado. A libertação do povo reside na reunião da sua
respiração a si mesmo: o sopro da palavra.
Mas essa reunião reside na espera. E a palavra, na ponta da língua ...
... com a compreensão quase por se revelar, nessa tensão que termina por se
confundir com a vida, e que é ela própria, acontece que ele queria a palavra. (ME,
p.128)
Martim queria a palavra que, nesse estado espiritual, se insinua como musicalidade.
Linguagem e música
No capítulo anterior, ao falar sobre o transcender e o imanar na cidade, sons e ritmos
foram associados ao cidadão que, ouvindo-os, reveste-se da disposição do poeta. E, ao
escutar, ele também diz. A musicalidade manifesta em sua linguagem é sinal de que ele foi
transformado; sua espera foi transformada em pressentimento, mesmo que não entenda, nem
possa definir o que sente e de onde vem o que sente (há quem admita ser tocado pela lua,
assim como as portas, ou pelo templo ou pela noite...), ele deveras sente, entrega-se ao estado
espiritual em si provocado, sem poder dar maiores explicações sobre as variáveis e a dinâmica
de todo esse processo. Staiger (1975, p.23) compara-o ao sentimento ou ao pressentimento
232
provocado em um ouvinte sensível pela leitura de versos líricos em uma língua estrangeira
mesmo que ela seja incompreensível. “Parece conservar-se no lírico um remanescente da
existência paradisíaca”, diz ele. A música seria o ecoar dessa memóra, abertura para a
linguagem sem palavras ou para expansão daquele sopro que reúne – na entoação das palavras
– a respiração a si mesmo.
Para se diferenciar do silêncio, sem fugir dele, a linguagem reveste-se de ritmo, de
cadência e de pulsação. Na linguagem da repetição, no entanto, a uniformidade anula o ritmo,
e a igualdade entrega-se ao esforço de controlar o silêncio, agarrando-se a uma determinada
cadência, de modo que acaba por congelá-la; e ela se torna surda ao movimento próprio das
coisas, na decadência. Mas voltemos à “linguagem da repetição”, impossível anulá-la na
música, na vida. Poderíamos então retomar as frases anteriores para dizer justamente o
contrário. A repetição impede a música de se desfazer, assim como um templo precisa de
colunas enfileiradas que o sustentem. O que talvez pudéssemos acrescentar é que não há
repetição do idêntico, parece paradoxal mas o que se repete é diferente. Falso é querer tratar a
repetição de um compasso como uma questão metronômica. Existe talvez uma medida sim,
mas se vivemos em equilíbrio-desequilíbrio, tal medida conseqüentemente sofrerá oscilações.
Já falamos de medida em relação à ética, agora estamos em busca da medida do ponto de
vista da respiração, enquanto um trabalho espiritual de reunião do ato com quem o pratica. Ou
seja: pela experiência em uma determinada tradição, “pega-se” o ritmo; pela entrega a um
sinal que se faz presente, origina-se o ritmo. O ritmo, portanto, não é expresso por compassos
neutros marcados por um metrônomo. A neutralidade no ritmo seria sua própria negação, já
que sua medida pressupõe experiência e presença; e abarca diálogo com o silêncio, no que ele
implica de impacto, de serenidade e de transgressão amorosa.
Na linguagem marcada pela musicalidade, a lógica não precisa estar visível e o pensar
mostra-se enquanto aquele que admite, invoca e entoa “a palavra inexpremível do ser”. Talvez
então, ao invés de dizer que na linguagem da musicalidade não é preciso que a lógica esteja
visível, devamos indicar que esse dizer mantém com as regras gramaticais e com as
construções próprias da retórica uma imensa tensão. Para que o fluxo ou o movimento de um
dizer com ritmo próprio não seja prejudicado pelo excesso de estruturas lógicas (hipotéticas,
conjuntivas e causais), é preciso investir em direção às oportunidades métricas da tradição ou
à força que origina ritmo. Encontrar o tempo certo de entoação da palavra oportuna requer
investimento no estado espiritual do trabalho, que desperta o modo próprio de encaminhar-
musicar a questão-canção.
233
A fala simples
A graça infinita que pode se levantar em vôo de uma frase simples. (ME, p.199)
perdidas, que entoam música em ondas. Como as ondas, essa linguagem a ser trabalhada,
antes de delinear-se o cume, já se destrói de novo. Alegria ou desespero? De maneira objetiva
e simples, vejamos: onda é “o fluir constante que impede a conclusão de cada uma das partes”
(STAIGER, 1975, p.42). O mar, no trabalho das ondas, parece óbvio. No entanto,
permanecemos no desejo decadente e insistente de ver concluído esse trabalho, como se isso
fosse possível. É um hábito de quem não se habituou a viver. Dizer o indizível não sei se é
fácil, mas é simples:
Falar o óbvio como extraordinário - para quem não se habituou a viver. (ALP, p.97)
Limites humanos
Mas foi assim mesmo, aqui mesmo, nessa cidade tão pouco sagrada, no âmbito de um
trabalho acadêmico, em uma instituição obviamente laica, a partir de uma experiência de
desconforto em relação à religião e mesmo de denegação quanto à existência de um mundo do
divino; no centro de uma linguagem construída em torno da consolidação da crítica e do
ceticismo como postura intelectual; e num estado emocional de insegurança quanto ao
acolhimento de demandas geradoras de sentimentos de impertinência frente às tendências
hegemônicas no meio em que se deseja ser aceito, foi assim e aqui que se impôs o
reconhecimento dos limites humanos e, paradoxalmente, - tal como a paisagem suja da cidade
se mostra como obra de arte – ao se deixar aparecer a natureza pouco divina da humanidade,
o ar se adensou e as coisas ganharam a dimensão do inexplicável.
Os limites de um humano eram divinos? Eram. Ela queria morrer talvez ainda toda
inteira para a eternidade tê-la toda. (ALP, p.40)
Se o que distingue o humano é a sua linguagem, o que não pode ser dito ou explicado por
ela, mas que de um modo próprio se deixa apreender, como eternidade ou infinito, como
?
Texto reorganizado em forma de poema para fins de destaque.
235
imortalidade ou perenidade, a “isso” talvez se possa chamar divino. Lóri, quando queria
morrer toda inteira ainda não havia atinado para a inteireza que jaz e recrusdece na entrega à
finitude, ao fragmentário da vida, enfim ao que é próprio do homem. Mais se está jogado, sem
se querer controlar a partida e sem se querer antever a chegada – o fim do jogo –, mais se está
próximo da eternidade que Lóri tanto almejava. O homem revoltado com a finitude não aceita
o dom do presente. De que adianta a manutenção da juventude dos lábios se neles não pousa a
poesia? Repousa sua inquietude de “morrer inteira”, experimenta retomar desse alimento sutil
que acontece quando se presta atenção para o que nasce, incessantemente nasce, para o que é
“essencialmente natal”, diria Heidegger (1973). Suas considerações sobre o poema “Retorno”
de Hölderlin pontuam o que é essa busca do sagrado, num caminho realizado pela poesia de
um homem voltado para a sua terra, assim como o girassol se retorna constantemente para
ficar de frente para o sol.
Em todo movimento em que vigora não só o tempo que acaba, mas o tempo que dura,
persiste essa busca do sagrado. Quer seja considerado “com propriedade e pensado com
visível gratidão na figura de um santo padroeiro”, “quer desconsiderado ou mesmo
renegado”, o “divino está sempre vigorando” (2002, p.132). Às vezes não dizemos a verdade
de modo negativo? É difícil mesmo usar expressões como “poder gerador”; e, afinal, o que o
sagrado tem a ver com a paidéia poética na cidade sitiada? Nada não, pode-se desconversar
delicadamente. É preciso cuidado para que a ênfase no assunto não o destrua. Tal como
Martim, nesse momento, sinto pena da verdade (ME, p.202). Reúno a insegurança, o medo, a
raiva, a tristeza, o próprio ódio que no cotidiano brinca conosco em sua versão emagrecida e
modernizada, a ansiedade, uma espécie de escravidão introjetada em que o ódio só aparece
como revolta obediente, e – ao misturar toda essa negatividade – surge a pena. Por compaixão
então, não me explico, não chamo mais atenção para a sensata mesquinhez que
compartilhamos, aquela mesma que nos impede de falar no sagrado, fazendo-nos “lembrar a
tempo dos falsos deuses” (ALP, p.48).
Ah sim, nessa viagem ao não, Nietzsche é uma figura que se impõe para ajudar a nos tirar
as certezas: ao mesmo tempo, rindo da fraqueza do homem na procura do sagrado e clamando
pelo deus-que-ri; ironizando o obscurantismo da religião e afirmando a impossibilidade de se
combater a superstição daqueles que imprimem um ritmo poético à sua fala na esperança de
ser favorecido em seu destino. “Um sentimento assim fundamental, não pode ser inteiramente
erradicado”, escreve em “A gaia ciência”, “até o mais sábio entre nós é ocasionalmente
turvado pelo ritmo, quando mais não seja por sentir como verdadeiro um pensamento que
tenha uma forma métrica e surja com um divino sobressalto” (2001: aforismo 84).
236
Voltemos pois ao estado transgressivo para, como quer Nietzsche, fazer valer o nosso
“vínculo conservador com os instintos” (2004, p. aforismo 11). Voltemo-nos, transgressiva
mas interativamente, para as experiências negativas pois o discurso desmistificador do divino
é demasiado forte e prevalece na racionalidade em vigor. Estamos fadados pois a sentir algo
fundamental sem conseguir cumpri-lo em sua integridade. Entre o fado e o fardo, subjaz o
espírito, apenas um nome para esse processo de busca pela conservação dos instintos ou pelo
pensamento coisal, tal como o descrevemos, já que a tarefa da conservação manifesta-se na
contínua atualização e diferenciação do que percebemos como formas. O espírito que
perpassa essa busca, apesar de conservador, é criativo. Parece nos convidar para o tempo de
nascimento das coisas e de seu surgimento no porvir. Pode vigorar suave, mas também
destrutivamente. Sempre como uma inflamação, seja como manifestação do processo de cura,
seja como a presença do mal. A destrutividade provém do que deforma, e no tumulto das
opiniões, o espírito pode realizar-se, mesmo que seja como mal. (HEIDEGGER, 2004, p. 50)
Realização em movimento, a metamorfose está sempre aí, se fazendo, na tensão das ações,
das paixões, das palavras e dos objetos. É dramática. No que você vai se transformar agora?
Nada não, você me responde delicadamente, mas o que é aquilo que desponta em sua cabeça?
As figurações do desconhecido, do livre dos padrões podem ser inúmeras. Manchas, chifres,
brilho nos olhos, algo se prepara para vir à luz do parecer. Vamos chamar a esse espaço
metamorfoseado pelo nome de sagrado. Na longa preparação, o inexplicável da coisa, que
também já chamamos de ser, se aclara. Experimentamos brevemente a sua verdade. Mas
rapidamente somos novamente nada e ninguém: figuras sem manchas, sem chifres, sem brilho
nos olhos; e o inexplicável passa a ser definido em um bê-a-bá religioso ou em um tatibitati
conceitual.
Rá!, ri-se o espírito a nos deslocar de novo para o estranho. Estamos de novo na travessia,
impelidos de volta ao caminho. A vida se tornaria realmente muito sem graça sem o ânimo do
espírito criativo a nos modificar dentro da intimidade permitida pela alma que cada um
carrega. Alma, estado, psiquismo, “a brasa da melancolia”, como a chama Heidegger (2004,
p.50); o tanto que participamos e interagimos, o tanto que nos permite a nossa experiência do
amor, dos costumes, do senso de justiça e da sabedoria. De qualquer maneira, é inútil tentar
decidir, neste ponto, em termos metafísicos ou teológicos se o homem está aquém ou para-
além dessa participação no poder gerador de metamorfoses realizadas no âmbito de um
mundo aqui chamado de sagrado. Eu disse “neste ponto”? Vamos alargar isso e dizer é inútil
tentar decidir sobre a “existência de Deus” ou de seu “não-ser”. Não percamos tempo em
polemizar sobre a possibilidade ou impossibilidade de deuses. Em termos filosóficos, optemos
237
em situar nossas dúvidas no plano ontológico e façamos a relação do ser-no-mundo com Deus
(1969, p. 111): um “ardor no coração” que nos anima “a sustentar numa travessia o peso
melancólico do destino”. (2004, p.51) Aceitam a dimensão do sagrado? Volto a dizer que isso
não assinala uma decisão a favor do teísmo ou do ateísmo. Esse reconhecimento vincula-se
sobretudo à busca de uma saída da dimensão do indiferente e do temor ao erro, como traço
dominante dessa idade do mundo. Dou-me conta dos limites fixados ao pensamento, e quando
digo “sagrado”, reconheço que há algo a pensar. Heidegger em “Carta sobre o Humanismo”
(1969, p.112) nomeou esse algo como “a verdade do ser”, e depois, em “A linguagem na
poesia”, menos filosoficamente, como (dentre outras possibilidades de se dizer o sagrado) a
“maneira como o olhar consegue inflamar-se e pela qual a dor se torna familiar” (2004, p.51).
Clarice Lispector, sob a vigência do olhar de Lucrécia, mais simplesmente ainda diz: “um
tubo de borracha ligado a uma torneira quebrada, o casaco pendurado atrás, o fio elétrico
enrodilhando um ferro”. Tudo que era visto e “era alguma coisa” (CS, p.102 e 22-3). Tudo:
Procurava como modo de olhá-las, ser de certa maneira estúpida e sólida e cheia de
espanto – como o sol. Olhando-as quase cega, ofuscada.
Através de anos de obstinação, acentuara-se nesse seu modo de olhar o que nele
havia de rudemente espiritual. (CS, p.102)
É um alívio saber que se pode ser rude e espiritual, do mesmo modo que o próprio espírito
pode ser suave e destrutivo. Assim podemos conservar nossos instintos ou ainda sermos nós
mesmos, na chegada ao solo natal e no reeencontro com as pessoas da terra. Não precisamos
ser inteligentes tampouco, basta ser sólidos e cheios de espanto. Nem mesmo clarividentes,
quase cegos, ofuscados: simplesmente olhamos e vemos “alguma coisa” dentro da nossa
inquietude e preocupação. Somos seres inquietos a sonhar com a serenidade das margens da
terra natal, sob o eco da “forja imensa estrangeira a este universo” (HEIDEGGER, 1973:16).
Trata-se, portanto, de uma experiência pedagógica da percepção através do olhar. Mas eis que
se vê algo que não se pode pensar. “Quem pensara jamais a claridade?”, pergunta-se Lucrécia
(CS, p.106). E percebemos, humildemente, que há algo que não se pode pensar. Mas que está
próximo, bem próximo, do lugar que habitamos. A Claridade lá fora e aqui dentro, tão
exterior quanto a alegria dos outros. A Claridade percebida é experiência de exterior no
interior. Dá ou não dá para sentir a alegria dos outros? Diz o poeta, diz o pensador: Aquilo que
você busca está próximo e já vem ao seu encontro. Parece que as pessoas e as coisas são
familiares, mas por que fecham-se sobre o que têm de mais próprio? Então, não basta ir à rua
e ver, ora bolas? Não, não basta chegar à terra natal, é preciso alcançá-la. É preciso que aquele
238
que chega permaneça como aquele que busca. Contudo diz o poeta, diz o pensador: Aquilo
que você busca está próximo e já vem ao seu encontro. Mas o que é encontrar afinal? É
receber o que se vê nas ruas, como um fundo para aí fundar sua morada (HEIDEGGER,
1973:16). Lucrécia encontrou. Viu e recebeu “as nuvens como um modo dela não estar na
terra” e “as serras o modo dela estar mais longe” (CS, p.106). Ela era assim como um deus
impessoal que retorna à sua terra natal e uma guardiã da palavra que nomeia a experiência da
altura na terra.
Palavra que às vezes some, mas pode sempre reaparecer sob os nomes do mundo, esse
jogo de espelho, onde se vê, se encontra e se recebe a simplicidade de terra e céu, de mortais e
imortais. Esse processo de mundanização do mundo abarca o sagrado, tanto quanto as nuvens
e as serras. Claro, já sabemos, é impossível explicar e fundamentar a mundanização de
mundo. Ao exigir uma explicação, o conhecimento humano não se põe acima mas abaixo da
vigência do mundo. E mundanizar tem a ver com a experiência da altura. Se nos pomos a
explicar, as nuvens não são mais um lugar onde habitar pois ainda que ela possa ser um
simples prenúncio de chuva é também a morada de quem a encontrou na altura que lhe é
própria. A nuvem tem tanto de céu quanto de terra, tem tanto de Lucrécia quanto de deus
impessoal. Essas quatro dimensões têm o compromisso de se desdobrarem umas nas outras,
como num jogo de espelhos. Se se retira uma dimensão que seja, pronto, a nuvem desaparece.
Sei, ainda está lá, mas fechada e indiferente. Não é mais parte de nosso mundo, assim como a
claridade, de maneira exterior e interior. Não é mais alegria a ser sentida.
E não me venham perguntar: mas por que “deus impessoal”? Esse nome foi Lucrécia
quem deu. Nem tampouco me perguntem por que “forno de padeiro” se “ali também os
deuses estão presentes”, como uma vez disse Heráclito. Mundo, mundanizar, quer dizer
justamente a aproximação dos deuses ao cotidiano. Cada aproximação é a mesma história e
uma nova história. No movimento da aproximação, está o espírito, não necessariamente na
dimensão a que identificamos comumente como sagrada. Ou seja: na nuvem vista por
Lucrécia, o espírito não está necessariamente no deus impessoal por ela indicado, está
também... Ora, vocês sabem onde ele está. Está na própria nuvem, no céu onde a nuvem
flutua, no olhar humano de Lucrécia, como também na eternidade que a moça percebeu ali: o
vapor produzido pela respiração de um deus, o impessoal. O espírito está em todas essas
dimensões e não é nenhuma das coisas. Ele se mostra nas coisas, mas não se intromete. Lao-
Tzu chama a essa onipresença de sentido (mais um nome!), que não se esgota em nenhum
evento. O Sentido não fica cheio a ponto de que nada mais caiba nele. Sua força reside aí
nessa inesgotabilidade e nessa presença que dá a todas as coisas justamente Sentido, enquanto
239
sua fraqueza se encontra no modo não-intrusivo em que sua presença se dá. Seu poder baseia-
se no movimento de retorno, em que negativo e positivo se convertem um no outro
incessantemente. Assim, “quando as coisas ficam fortes, então elas morrem; a firmeza e a
rigidez ligadas a essa força induzem à morte” (WILHELM in LAO-TZU, 1998:28-9).
Digamos então que o movimento de retorno seja uma vocação em todos nós quando
prestamos atenção ao sentido das coisas. Ocorre então uma abertura entre os canais que
costumam manter separados o negativo do positivo. Nessa conversão, gera-se. É estranho
dizer “gera-se” sem complemento. Vamos complementar com mundo. Nessa conversão, gera-
se mundo. Eis aí um novo sentido para a transgressão amorosa. Mundo gerado nesse terreno
de natalidade. Heidegger (1973) diz que a vocação do poeta é o retorno. Talvez sejamos todos
poetas, mas há alguns que se dedicam a auscultar esse movimento tão sutil de retorno pelo
qual uma cidade é preparada na terra natal. Ele diz “como” terra natal, “o país preparado
como terra natal”. Residiria aí uma indicação de um identidade possível entre mundo-cidade-
país e Terra? Talvez no momento do encontro, de aproximação com a origem (o momento
gerador), na chamada convergência physis-logos.
Então como nos aproximar de nossa vocação de poeta?
O homem ficou olhando até que a vida que se instalara no terreno começou a
acordar. Mosquitos brilhantes, como se transportassem para ali o primeiro
carregamento de luz. O passarinho cauteloso entre folhas secas. De uma pedra para
outra, se cruzaram ratos e ratas. Mas na irmanação do silêncio, como um fuso
trabalhando, um movimento não se distinguia do outro. Essa foi a sossegada
confusão onde Martin caíra. (ME, p.63-4)
A poesia está nesse processo de conhecer, na posição nada imponente de quem caiu, no
estado mental nada inteligente da confusão, mas na atitude meditativa da serenidade, do
sossego. Só assim se pode conhecer o que a cidade tem de mais secreto e melhor. Heidegger
fala em amadurecimento disso que é mais secreto, no que é possível estabelecer um vínculo
com o mundo-como-fruta. Esse mais secreto amadurecido existe para ser partilhado entre
aqueles que vivem na terra natal. Mas na historiografia se anota apenas o partilhamento da
própria terra, sem que o seu segredo tenha sido igualmente distribuído. Os Inquietos pela
posse da terra não são os que “estão em casa” nessa mesma terra. “Estar em casa” é o segredo
para o qual se quer retornar. Em termos de tarefa da educação, pode-se pensar aí na
preparação dos inquietos para esse retorno, considerando que o “estar em casa” não se limita à
ocupação da terra, nem tampouco na adaptação aos costumes dos mais velhos (1973:17).
O segredo parece, contraditoriamente, residir no que a cidade tem de mais amigavelmente
aberto, aclarado, cintilante, esplêndido, luminoso; o que vem como saudação das coisas e dos
240
homens dirigidas àquele que busca, “ao encontro do poeta desde a sua chegada às portas da
terra natal” (1973:18). A esse brilho amigável, Hölderlin chama alegria. Alegre é o que vem
em poema. Estamos então jogados ao cruel acaso, à confusão? A redenção depende da
confusão? O conhecimento, melhor dito, está no reconhecimento dessa confusão, na
possibilidade de se colocar em tensão. É preciso se perder e consentir o caos, para novamente
sentir a força originária, o Sentido. Congelar o sentido é perdê-lo.
Alegria, alegria, pois. Conqüanto seja ela regozijo apaziguado de serenidade, isto é,
possibilidade de fruir do poema ditado pela nuvem, e que faz aparecer não só ela própria, mas
o céu, a respiração e o olho de quem vê, ou ainda, a própria claridade e a paisagem ao seu
redor. Alegre é vibrar em conjunto com a nuvem e escrever o poema que ela dita, poema que
opera a reunião do lugar de onde parte o olhar que a vê com o lugar onde ela mesma está,
poema que é reencontro. Nesse conhecer propiciado pela poesia parece até que a nuvem deixa
de ser o que ela é, um simples objeto flutuante. Às vezes, ela até se evapora e o poema
permanece — como transgressão à ordem da nuvem evaporada. E às vezes, só resta mesmo a
claridade em que a nuvem se instalou. Aliás, esse Claro onde a nuvem se instalou sempre
permanece. Mas foi a nuvem que nos propiciou percebê-lo, esse Claro, esse “Espaçoso”,
como diz Heidegger (1973:19). “O Claro, o Espaçoso é único na medida em que atribui a todo
resto um lugar em sua dimensão. ... O Claro garante a cada coisa, segundo o seu modo, o
espaço de ser que lhe ressurge para que lá, em seu brilho, tal como uma luz serena cada coisa
se sustente, contente de si mesma.” (Encontramos aí um outro nome para o sagrado?)
O campo se tornara vasto e a luz tinha a graça religiosa como para um homem que
não tem mais vergonha de si e olha face a face, já redimida em si a natureza humana.
(ME, p. 226)
Campo vasto: homem limitado, que – sem vergonha – lança sua pergunta em direção
ao Alto: como poderei abrigar um segredo se não sei como me aproximar do mais-alegre?
Como desdobrá-lo num dizer que o abriga, que o acolhe se eu não o conheço?
Também não vamos fazer de ser, cavalo de batalha! Não vamos complicar a vida:
pois a este tranqüilo gozo temos direito. E nem é coisa sobre a qual se possa sequer
discutir pois, além do mais, falta-nos a capacidade do argumento – e, para falar a
verdade, muito antes de sabermos, já os cães se amavam; afinal, por direito de
nascença, temos o direito de ser o que somos... o medo confundiu um pouco a
realidade com o desejo, mas o cão em nós conhece o caminho, que diabo! (ME, p.
246-7)
241
Sim, aceito a sugestão. Recolho-me ao cão que existe em mim, recolho meus desejos em
nome do regozijo merecido, recolho minhas perguntas em virtude da falta de argumentos e
prossigo por essa realidade onde cabe também o nome do diabo.
O que fazer então? Esperar que cavalos venham de vez em quando relinchar em nossa
porta? Esperar pequenos milagres como esses? Lóri inventa: “milagres, não. Mas as
coincidências”.
Mas, “mal falasse das coincidências, e já estaria falando em nada”. Tanto que ela mesma
confunde (é possível confundir) milagres com coincidências. Porque ela dizia também possuir
um milagre:
O milagre das folhas. Estava andando na rua e do vento lhe caíra exatamente nos
cabelos: a incidência de linha de milhões de folhas transformada em uma que caía, e
de milhões de pessoas a incidência de reduzi-lo a ela. Isso lhe acontecia tantas vezes
que passou a se considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos
furtivos tirara a folha dos cabelos e guardara-a na bolsa, como o mais diminuto
diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontrara entre os mil objetos que
sempre carregava a folha seca, engelhada e morta. Jogara-a fora: não lhe interessava
o fetiche morto como lembrança. (ALP, p.122)
O instante é vivo, não pode ser trazido de volta pelos fetiches. Mesmo assim procuramos
sinalizar, pelo menos sinalizar que a simultaneidade existe em instantes privilegiados ou
sagrados, se assim pudermos e quisermos chamar. De qualquer maneira, essa simultaneidade
presente nas coincidências, experimentadas como pequenos milagres, nos faz lembrar que os
limites de espaço e as seqüências de tempo podem ser eliminados (GRASSI, 1978, p.88). São
aquelas poucas vezes na vida (uma só vez!) em que nos defrontamos “com o que não é
substituível” (ME, p.118).
Então, desconheces o deus do Instante? Certamente que não. O instante é a medida mesma
que nos fez possível a realização das horas, meses, anos. Todavia esse deus não é um Ele ao
qual possamos conhecer. O mistério é essa sua revelação pela experiência do instantâneo (a
flecha que nos atinge) e não pela revelação de um Ele. Hölderlin diz ele aparece como o céu
(apud HEIDEGGER, 2002, p.174). Alberto Caiero perguntaria: mas então por que não
chamá-lo de céu? Não tratemos então de nomes aqui. Tratemos de encontros, como aquele
entre Lóri e o mar, o encontro de seus mistérios na entrega de um ao outro: “a entrega de dois
mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões”
(ALP, p. 82). Está na introdução ao Tao Te King: “o ser é diferente do não-ser apenas no
nome e não na essência” (WILHELM in LAO-TZU, 1998: 29). O Instante, no encontro entre
Lóri e o mar, se dá na forma do maternal, gera mundo em suas individualidades, e também as
243
recolhe, na morte. Não se entende, mas é vasto. Não se quer mais entender, mas é infinito.
Esse encontro é, como diz Clarice Lispector “uma benção estranha como a de ter loucura sem
ser doida” (ALP, p.42).
Uma pausa para falar de espírito, já dito e redito ao longo deste trabalho, como
movimento de autosuperação (em que se passa a ser outro, desde si), em meio ao poder tenso
da cidade; como intelecto, à força transformado pela desertificação da terra; como acontecer
abrupto, que não pode ser regra para que a posse momentânea da loucura não se torne uma
“doideira”; como simbologia comprometida com a metafísica divisora da modernidade; como
ex-posição sapiente, originariamente disposta, à Essencialização do Ser (HEIDEGGER, 1978,
p.75); como volta à noção do subhistórico ou transhistórico; como em pesquisa transformado
pelo recuo do sagrado; como aprendizagem nas ruas, em aquiescência imperceptivel e
distraída, dentro do círculo comedido do possível, ao modo dos “pastores que vivem fora do
baldio da terra” (HEIDEGGER, 2003, p. 85); como saber alijado por não propiciar poder na
pólis e, para além dos compromissos de engenhosidade e de análise intelectual, investigação
da questão do Ser no ente; como espírito reivindicativo do longínqüo, da terra e do sagrado na
criação da cultura; como elemento de uma “fina mistura” com o corpo, conduzida em êxtase
iniciático e metamórfico; como “vontade de arte” no poeta do menor e do mais cotidiano;
como elemento necessário na fundação (incessante) da cidade; como sangue; como criança
transformada na compreensão ética da comunidade; como extrordinariamente conseqüente
para se poder vir a conhecer o trágico; como distinto da alma lírica; como o afeto envolvido
em qualquer fazer, ao modo do que se diz "pegar o espírito da coisa".
E agora podemos acrescentar que o espírito que aqui se reivindica não é “espiritual” em
sentido metafísico; “é o que inflama e somente assim talvez um sopro de dor”: a chama do
entusiasmo (HEIDEGGER, 2004, p.49). O que o Instante nos abre é o limiar do impossível
que, como tal, entusiasma, inflama. Nesse Sentido, recebe-se, assim como Martim, “o milagre
como o único passo natural ao seu encontro”. Sagrado — de início tão perturbativa é essa
palavra, e agora, por puro cansaço, ela se faz irrecusável. Não há “como não aceitar o que
acontece pois para tudo o que pode acontecer um homem nascera”. Por isso, Martim, depois
de fugir da cidade e do hotel à beira da estrada, e ao chegar às terras que passará a servir ...
... não se perguntou se o milagre era a água que o encharcava até a saturação, ou o
caminhão sob a garage de lona, ou a luz que se evaporava da terra e da boca
iluminada dos cães. Como um homem que alcança, ali estava ele exausto, sem
interesse nem alegria. Estava envelhecido como se tudo o que lhe pudesse ser dado
já viesse tarde demais. (ME, p.46)
244
- Porque afinal, diabo! – lembrou-se ele de repente – usei tudo o que pude, menos –
menos a imaginação! Simplesmente me esqueci! E imaginar era um meio legítimo
de se atingir. Como não havia modo de escapar à verdade, podia-se usar a mentira
sem escrúpulos. (ME, p.244)
ser uma preocupação, foi o que pensou Martim, ainda mais em detrimento do que ele tinha de
mais próprio: o seu modo de ver, de figurar, de imaginar. É impossível fugir de si mesmo.
Sim, mas e o sagrado com isso? Não é à toa que Martim conjura tal pensamento ao diabo (as
diabruras nietzschianas). O diabo é essa divindade entre o humano e o divino, cujo maior erro
é querer ser mais divina do que humana; querer ser mais universal do que individual; querer
exercer um poder “ao modo de deus”. Querer, querer. Mas a imaginação é o diabo-sem-
querer.
Quando se quer manipular a imaginação se cria monstruosidades como um deus humano:
Não sei de divinização. A não ser que se considere a imaginação como uma percepção
graciosa (logo, divina) da vida. Sei de uma coisa! tal como explodiu a contida Vitória, em
conversa franca com Martim. “Que só a santidade salva! que é preciso ser o santo de uma
paixão ou ser o santo de uma ação!” (ME, p.201) Sei que da “vida passada”, temos nós ainda
a presença de pessoas que, antes invisíveis, agora ganham importância por “recusarem a nova
era” (CS, p.19). O arcaico não está confinado a um tempo, nem tampouco o imaginário.
Talvez, ao arcaico, nos seja possível perceber apenas pela imaginação em ato, atualizada.
Enfim, não há modo de escapar à verdade, portanto pode-se usar a mentira sem
escrúpulos. A verdade está na atuação, está na imaginação, está na própria mentira, assim
como o arcaico está na atualização.
A consagração
Então, a função arcaica da mocinha só pode existir na formação atual da vila, na história
que - com esforço – forma o espírito de uma cidade. Mesmo sem saber o que Lucrécia
representava junto àquela nova colônia, apreende-se seu trabalho, mesmo que curto demais e
quase inexplorável. Alguma coisa, tudo o que via era alguma coisa. Cada casa nova imitava
uma nova vez e, num certo sentido, repetia a criação do mundo. Em cada cidade, imago
mundi (ELIADE:324).
Diz Benedito Nunes que Clarice Lispector possui uma linguagem marcada por “topoi da
via mística” e que a história de Martim, por exemplo, se daria segundo uma parábola norteada
pela máxima “aquele que perde a sua vida, achá-lo-á” (1976:143). Fala em peregrinação
mística, em “ciclo da disciplina ascética”, indicando a primazia da mudez em detrimento da
fala; da percepção, em detrimento do pensamento abstrato; da impessoalidade da consciência
agregada à natureza e solidária das coisas em detrimento da identidade pessoal e das relações
intersubjetivas (1976:142). Sim, talvez haja um apanhado de práticas que nos lance na
economia do sagrado (ELIADE, 1949, p.103), e que nos socorra na falta de pensamentos,
assim como a oração pode ser uma fórmula da quietude (NIETZSCHE, 2004, p. aforismo
128).
Fórmulas são para ser repetidas e acionadas em caso de desespero, mas paradoxalmente
parece que “seu efeito” acontece quando as transgredimos, amorosamente. “Desculpe
qualquer coisa que eu tenha feito sem querer.”
Não, não era assim a frase que vagamente se lembrava! – e ele fazia questão de
reproduzi-la sem o mínimo erro como se uma simples modificação de sílaba já
pudesse alterar o seu velho sentido, e tirar a perfeição da fórmula perfeita de
despedida – qualquer transformação no rito torna um homem individual, o que deixa
em perigo a construção toda e o trabalho de milhões; qualquer erro na frase, torná-
la-ia pessoal. (ME, p. 249-50)
Ora, no “ciclo da disciplina ascética”, descobre-se que não há necessidade de ser pessoal
pois já “existem fórmulas perfeitas para tudo o que se queira dizer”. Assim, “quando a
imitação é original ela é a nossa experiência” (ME, p.249-50). No entanto, foi o erro o que
despertou Martim para a perfeição da fórmula. E talvez por uma condição humana (mais uma
contingência), a imitação daqueles que se sentem instalados na terra, por mais perfeita que
seja, para ser originária e poder ser experimentada na proximidade e como retorno ao país,
precisa ser sinalizada, mostrada como um sinal, para ser vista como alguma coisa. Dizer
proximidade aqui significa dizer afastamento da indiferença e do imobilismo, isto é, amizade.
247
Resumida a oração de Lóri, podemos agora aguardar com paciente ansiedade o momento
de Martim terminar o trabalho. E acompanhar seu ritual, uma espécie de oração feita de
gestos: o de “ir de novo à encosta para retomar cada dia o instante de sua formação do dia
anterior”, tocando no símbolo “subir-uma-montanha”. E então simplesmente olhar, em estado
de entrega e obediência a essa necessidade: um ato obscuro e fecundante. Um lugar como
aquela encosta era um pensamento, que não podia ser convertido em fórmula. Talvez sim, em
lenda, mas uma lenda da qual nascem incessantemente novas realidades. Um lugar sagrado
como aquela encosta parece que já tinha acontecido antes, “não importava quando, talvez
apenas em promessa e em invenção” (ME, p.98).
Subir a montanha: longe de cultos e próximo do céu, numa experiência individual e
impessoal. Subir a montanha é erigir um templo à medida que se sobe; é consagrar um lugar
para a convocação ao aberto em que se instala um mundo, não importa se pela aceitação ou
recusa da benevolência dos deuses – também a ausência de deus constitui um modo como o
mundo mundifica. Bachelard (cf. 1993, p.225) vê no acontecimento desses espaços louvados
e felizes, dessa topofilia, o surgimento de uma “mitologia espontânea”, que pode ser figurada
?
Texto reorganizado em forma de poema para fins de destaque.
248
como a montanha, mas também como a porta, por exemplo, onde se encontraria a sacralidade
dos umbrais.
Lugares sagrados são centros do mundo onde se revelam mitos espontaneamente. Não se
trata de um espaço geométrico que, pela sua abstrata homogeneidade, exclua a coexistência de
dois centros, mas de um espaço sagrado onde, por toda parte e ao mesmo tempo, pode ser
escolhido um centro. Em presença dessa geografia sagrada e mítica, a homogeneização e a
mensuralibilidade espacial perdem o sentido. No real que aí se descortina, mundo é habitação
do próximo e não projeção de um espaço teórico. Eliade chama atenção para a indeterminação
da própria tradição religiosa em relação às fórmulas para se encontrar o “Centro do Mundo”,
pois alguns grupos atestam que esse se acha sem esforço e “outros insistem na dificuldade e
sobre o mérito que há em poder penetrá-lo” (1949, p.327). No entanto, tanto a nostalgia do
paraíso quanto as provas iniciáticas podem ser ambas fórmulas fáceis baseadas na própria
ambivalência do espaço sagrado: acessível e inacessível; único e transcendente de um lado, e
de outro, repetível à vontade. Na fabricação em série de “doublés fáceis” de lugares sagrados
e “centros”, Eliade quer chamar atenção para a “reprodução mecânica de um só e mesmo
arquétipo, com variantes cada vez mais ‘localizadas’ e ‘grosseiras’”. Mas o traço revelador,
diz ele, é “a necessidade que o homem sente de constantemente realizar os arquétipos até nos
níveis os mais vis e os mais ‘impuros’ de sua existência imediata: é a nostalgia das formas
transcendentes” (1949, p.329).
Dito assim, poderia ser simples fazer com que da inquietação se forme uma meditação do
segredo na proximidade econômica com o sagrado. E fazer com que Meditativos se tornem
Pacientes de uma lenta coragem na qual se aprenda a estar na falta persistente de deus. Reunir
Inquietos, Meditativos e Pacientes para alcançar memória e não esquecer do dito da poesia,
mas como? Como torná-los companheiros do poeta em sua atenção ao segredo naquela
proximidade econômica com o sagrado? Como fazer dos outros, aliados? No aguardar dessas
respostas, depois da leitura (inquieta, meditativa e paciente) do texto “Retorno”
(HEIDEGGER, 1973), acompanhemos mais uma vez Lóri. Nela se encontra a voz da poeta
neste momento. Sejamos sua aliada na sua saudade do Deus que não mais existe, feito à nossa
imagem e semelhança, na sua falta persistente de deus.
Já estava com saudade do que fora: nem mesmo à igreja de Santa Luzia, que era o
refúgio no calor entorpecente da cidade, ela iria mais. Lembrava-se da última vez
que entrara lá e sentara-se na sombra límpida entre santos. (ALP, p.69)
249
Mas na transcendência esvaziada, assim como não cabe Deus figurado em um Ele, não
cabem mediadores. Persistir nessa falta é aceitar o vazio. Mas é também se colocar no
aguardar das respostas. E, tanto na arte como na oração, estender no escuro a mão, procurando
agarrar algo da graça, para assim se transformar na mão-que-dá (“a giving hand”). Nessa
perspectiva de doação impessoal, desfaz-se a auto-alienação própria do poder da vontade,
através de um “fazer-se infinitamente pequeno”. O que Clarice Lispector relata na
aprendizagem de Lóri passa por esse duplo processo do desfazer o voluntarioso e do fazer
amoroso com as “coisas simples da vida”, e isso implica em confronto com o deus feito à sua
imagem e semelhança e em encontro com o deus-que-falta. No banco da igreja, Lóri, às
cegas, pensou em Cristo:
Cristo foi Cristo para os outros, mas quem? Quem fora um Cristo para o Cristo? Ele
tivera que ir diretamente a Deus. E ela ... quisera também poder ir direto à
Onipotência, sem ser através da condição humana de Cristo que era também a sua e
a dos outros. E, oh Deus, não querer ir a Ele através da condição misericordiosa de
Cristo talvez não passasse de novo do medo de amar. (ALP, p.69)
Há um lugar onde, antes da ordem e antes do nome, eu sou! E quem sabe se esse é o
verdadeiro lugar-comum que saí pra encontrar? Esse lugar que é nossa terra comum
e solitária, e aí é apenas como cegos que nos apalpamos – mas não é isso que
queremos? Eu te aceito, lugar de horror onde os gatos miam contentes, onde os anjos
têm espaço para na noite bater asas de beleza, onde entranhas de mulher são o futuro
filho e onde Deus impera na grave desordem da qual somos os felizes filhos. (ME,
p.246)
No elemento próprio do destino humano, a terra dispõe o espaço para que os homens
possam “estar em casa”, no lugar de sua História. A terra seria então uma espécie de anjo da
casa, como diz Heidegger (1973:20). A esse “anjo”, o espaço da casa se curva e se abre para
que ele possa bater asas de beleza. Aceitamos o horror da obscuridade e da cegueira, dos
quais nos sobrevêm nomes como “Deus” e “anjos”, não só para podermos nos apalpar, mas
para sentirmos beleza, fazermos futuro com o filho nas entranhas e até mesmo sermos felizes.
O sagrado não existe em abstrato, por isso a cerimônia sagrada pode ser experimentada como
um jogo. Os locais sagrados, como áreas de jogo, se estabelecem como domínios onde regras
são lembranças para que nos ponhamos no caminho de retorno. Nesses lugares, e não em
250
“outro mundo”, convivemos com o divino; o ser eterno configura-se em coisas, configuradas ,
elas próprias, na claridade do ser-que-sempre-persiste (ELIADE, 1992). Com-sagrados, coisas
e lugares, banham-se e nutrem-se de uma vida melhor e mais fina. Nessa pungência do bom, a
carne se quebra em espírito e espírito se quebra em carne, numa “fina mistura” (ALP, p.127).
Mistura que faz coisas e lugares se mostrarem como fenômenos, em que transcender e
imanar não mais se distingüem; em que o aparecer, o parecer e a aparência “se inter-
relacionam reciprocamente em sua estrutura”. E ainda que se tornem símbolos, essas mesmas
coisas e lugares, não poderão prescindir desse aparecer-parecer-aparência, como modo
privilegiado de encontro. Sem isso, as manifestações simbólicas se restringiriam a um modo
de produção e a um produto. “Isso” constitui o ser próprio do que produz, que traz a cada
coisa e a cada lugar, beleza, futuro e felicidade só possíveis na conjunção do específico, na
expressão de “cada coisa e cada lugar”. Existem sim, símbolos produzidos em série, a
banalização a qual já se fez referência, mas aqui se fala de coisa mais fina. A esse modo
privilegiado de encontro com o ser próprio do que produz e é produzido; ao Instante de
desprendimento do habitual, Eliade chamou “hierofania”, que etimologicamente significa
apenas “algo de sagrado se nos mostra”. O sagrado que pode parecer-aparecer numa pedra ou
numa árvore ou na encarnação de um homem como Jesus Cristo, isto é, a apresentação de
algo “de ordem diferente” em lugares e coisas que fazem parte do nosso mundo ‘natural’,
‘profano’ (ELIADE, 1992, p.25-27).
Nas suas viagens, é impossível que você nunca tenha estado entre laranjeiras, sol, e
flores com abelhas.
Essas coisas, como símbolo, são para todo mundo. É porque você não aprendeu a tê-
las. (ALP, p.51)
29
Ver nota 24.
251
Martim: que, do cansaço da solidão, se possa “arcar com um fardo”. “Arcar com um fardo”,
diz ele, é um dos símbolos antigos, “resto de procissões e de jogos atléticos”, que é preciso
averigüar, apesar da ignorância daqueles que querem proteger o fardo, impedindo que o seu
mistério se abra (ME, p.235). Estes homens ignorantes – os guardiões do fardo desprovido de
mistério – não querem saber da visibilidade invisível ou a invisibilidade visível, enfim sobre
aquela “alguma coisa” que Lucrécia via desdobrada na própria coisa. Estes homens será que
perceberiam que “a respiração arquejada dos cavalos fazia a vida preciosa ao redor” (CS,
p.53)?
A pedra, a ávore, o cavalo parecem “mostrar” qualquer coisa que não é pedra, nem árvore,
nem cavalo, mas a vida preciosa ao redor. Alguma coisa que faz da pedra, da árvore e do
cavalo coisas sagradas, sem que eles deixem de ser eles mesmos. De fato, o sagrado só se
mostra porque as coisas permanecem como elas mesmas são. (ELIADE, 1992, p. 27) Quando
pensamos na cidade como obra de arte, descrevemos coisas que se tornam “guias”, no
entender de Bachelard, as “realidades fortes e estáveis que são as imagens materiais
fundamentais, as imagens que estão na base de qualquer imaginação” (1993, p.211). É o
poder obscuro (a asa da beleza que bate à noite), mas nem sempre desagregador, que animais
e outras coisas, como pedra e árvore, carreiam. Imunes à inquietude da “consciência infeliz”
(NUNES, 1976, p.132), eles se tornam nossos “guias”, sinalizações angelicais do imaginário
do sagrado.
Mas essa sinalização ocorre também em gestos, como o piscar de olhos úmidos,
agradecidos com a experiência da inocência. Como aconteceu com Martim ao ser acusado
injustamente. A inocência se realizou então como um símbolo, descreve Clarice Lispector
(ME, p.248), na sucessiva passagem: da religião da infância para uma não-religião; e depois
para algo mais amplo.
E por causa da vastidão impessoal era um Deus para o qual não se podia implorar:
podia-se era agregar-se a ele e ser grande também. (ALP, p.86)
30
De acordo com estudos em andamento, Manuel Antonio de Castro considera que, na narração, se dá a “epi-
fania” daquelas “imagens-questões”.
31 Estas “ajudas” localizadas biunivocamente nos personagens citados constituem, como já se viu no decorrer
deste trabalho, dimensões presentes nas trajetórias dos três. Assim: Lóri pôde se alegrar de que enfim não
253
“Oh, livre-me de meu mistério!”, implorou-lhe ela por dentro. E como se tudo
entrasse na mesma serena e violenta harmonia, a vida se tornou tão bela que eles se
olharam nos olhos com a tensão de uma pergunta, incompreensíveis olhos de
homem e de mulher. (ME, p.125)
Diante do grandioso mistério do ser, não sou mais que uma pequena pergunta. E às vezes,
esse mistério se torna tão pesado que o alegre se esconde, tornando-se um alívio sair fora
dessa história de sagrado. Os homens e as mulheres precisam ser profanos para serem
humanos. Voltar às suas limitações quando a sua “representação” da grandiosidade se torna
incomodamente artificial; quando a harmonia se desprende de sua carga de violência, isso é
artificial. A paz e a serenidade são belas figurações, mas quando se tornam indústrias, o
sagrado se perverte em efeito; é desfigurado para entrar no padrão mais controlável da causa e
do efeito. Então, quando o mais-alegre se foi, o mistério passa a ser um fardo pesado demais
do qual nos precisamos livrar. E é melhor não nos ocuparmos do sagrado. O próprio sagrado,
em sua autenticidade, precisa de que o deixem. No profano, subrepticiamente e em liberdade,
ele reaparecerá, renovado.
A profanação
Homens protegiam o fardo com a ignorância ... sem abrir-lhes o mistério.
Uma vez ou outra, então alguém inventava uma vacina que curava. Uma vez ou outra o
governo caía. Às vezes a mulher parava de gritar e nascia um menino. Que diabo! Pensou
Martim arrepiado, como se tivessem hasteado a Bandeira nacional à qual ele jamais pudera
resistir.
suportasse mais as injustiças e de que pudesse entrar no mar, como quem percorre “o caminho do campo”, na
acepção mais ampla dada por Heidegger (1969); da mesma maneira, Martim experiencia –
em seu processo de cidadanização – o prazer consentido pelo habitar em comunidade com a terra e a retomada
do seu caminhoar se dá quando empreende o retorno para a cidade; por fim, Lucrécia, cujo caminho do campo é,
em realidade, para o campo, já sabe que leva a cidade para onde for porque soube aprender com o prazer
selvagem do campo ainda salvaguardado nas ruas de sua cidade sitiada.
254
“Oh mas eu também tinha o direito de tentar! ... Eu queria o símbolo porque o
símbolo é a verdadeira realidade! Eu tinha o direito de ser heróico! Pois foi o herói,
em mim, que fez de mim um homem!” (ME, p.235)
sinais mágicos; da prescrição sagrada; do tratamento mágico do corpo, que passaram também
a serem mercadorias exotéricas. De acordo com Frobenius, “nenhuma obra artística da
pintura, do desenho ou da escultura é imaginável sem a origem do simbolismo sagrado, e este
caminho conduz para trás, inclusive até a formação de nomes que se dão os homens entre
eles. ... Em toda parte, está a ‘expressão’ do princípio; e utilidade profana, quer dizer,
aplicação ao final” (1934, p.222-3). Nessa era de decadência do sagrado, de exoterismo, as
próprias epifanias, enquanto experiências de proximidade com o “começo”, são rapidamente
tornadas “coisas mortas”, num processo de esvaziamento do sagrado e de enquadramento na
categoria de “fenômenos” a serem comercializados ou simplesmente estudados num
apagamento da “personalidade” divina e da “experiência mítica” (cf. ELIADE, 1949, p.103)
em favor de sua compreensão teórica e/ou de sua redução a um produto.
O livrar-se do mistério se tornou então a regra; o descanso se perpetuou; o
desencantamento se alastrou e agora o homem precisa de se colocar em processo de pro-cura
para rememorar, no jogo de espelhos, a dimensão humana como coisa inteira, tanto se
reaproximando do céu e da terra, quanto se reapropriando da sua experiência com o sagrado.
Mas como encontrar aqueles que guardam o “tesouro da terra” e a pátria em sua
ancestralidade? Uma maneira de se voltar para esse caminho de retorno talvez seja travar uma
aliança com os Inquietos como representantes do futuro do ser historial da cidade e unir o
povo do Poema e do Pensamento, considerando que razão não é ausência de hierofania.
Mesmo nessa era de desertificação, a experiência do sagrado continua em regiões do espírito
que não se podem mapear. O próprio ritmo do ser e do não ser, da vida e da morte propicia
essa experiência que ressurge mesmo que pateticamente. A presença da transitoriedade se
tornou uma marca epocal e o nada de eterno que a lei do devir parece sugerir, leva-nos
sutilmente ao reconhecimento do retorno, quando as sementes que se dispersaram e se
decompuseram tornam a aparecer, mesmo sob uma nova forma. O devir, a dispersão, o ritmo
de alternância adquirem uma significação no âmbito do nosso precário equilíbrio, da infinita
variedade das condições humanas, das “liberdades encorajadas pela deterioração de todas as
‘leis’ e de todos os padrões arcaicos” (ELIADE, 1949, p.165).
Numa passagem do “Édipo Rei” de Sófocles (1998), Jocasta se afasta
momentaneamente do discurso sentimental e chama Édipo de volta ao pensamento sagrado.
Aceitando a sua cólera, ela age com compreensão e benevolência, o que promove uma lenta
alquimia no comportamento de Édipo. Através da fala de Jocasta, ele começa a saber. Não
que ela seja porta-voz da verdade, assim como Tirésias poderia ser considerado. Ela é tão
ignorante e oportunista quanto Édipo (no sentido que tira privilégios dessa ignorância) mas,
256
diferentemente dele, ela não traz a alcunha de decifradora de enigmas, não carrega esse fardo
que seria um dom, não fosse a sua utilização política. Ela é simplesmente a portadora de
notícias com vida própria, que são eloqüentes e não retóricas, as quais Édipo não consegue
rechaçar. Em sua relação de solidariedade no medo com Édipo, Jocasta fala livremente,
permite o transe (o trânsito), desnuda Édipo de seu poder ilusório e o abre para a revelação
indiscutível da verdade. Isso não a impede de, logo em seguida, tentar voltar atrás. E então é
Jocasta que recusa a saber o que deveras já sabe, recusando o sagrado (a recusa do sagrado
corresponde à recusa da verdade?) (1998, l. 837 a 1024).
Diabo! A verdade foi feita para existir! E não para sabermos. A nós, cabe apenas
inventá-la. A verdade... – bem, simplesmente, a verdade é o que é, pensou Martim
com uma profundeza que o depôs exatamente no vazio. A verdade nunca é
aterrorizante, aterrorizantes somos nós. E também, como que “a verdade
acontecerá”. Quem não acreditar que veja uma galinha andando por força do
desconhecido. “Aliás a verdade tem acontecido muito”- a essa altura Martim já se
tinha perdido na profundeza que sempre o aguardara irônica – de onde uma grande
onda de amor lhe nasceu no peito. (ME, p.238-9)
A ânsia e a busca
No entanto, aquilo que vem ao encontro permanece ainda como “a ser buscado”. Mas,
silêncio, eis que surge em cena um Poeta:
Já era tarde para Jocasta, para São Geraldo, para o Rio de Janeiro, e para Lóri também.
“Já era tarde: ela já ansiava por novos êxtases de alegria ou de dor” (ALP, p.80). Em meio à
busca, a ânsia e a inquietude já estão instalados. A necessidade de um alento, um aceno toma
a cena desértica agora. São os órfãos que reaparecem em busca da Sagrada Serenidade. O
discurso é imenso, a distância de si mesma e a dificuldade dão a tônica das falas. E agora,
como trabalhar sobre essa deterioração (ansiedade) para alcançar o sagrado? Para dizer o
mais-alegre?
Tinha era que ter tudo o que o mais humano dos humanos tinha. Mesmo que fosse a
dor, ela a suportaria, sem medo novamente de querer morrer. Suportaria tudo.
Contanto que lhe dessem tudo. (ALP, p.80)
Não. Ninguém lhe daria. Tinha que ser ela própria a procurar ter. Inquieta, andava
de um lado para outro do apartamento, sem lugar onde quisesse sentar. Seu anjo da
guarda a abandonara. Era ela mesma que tinha que ser sua própria guardiã. (ALP,
p.80)
Sim, estamos sem anjos, no momento. A terra que nos garante estarmos em casa, onde
está? A luz, que nos garante a passagem do ano, até a ela estão conseguindo atingir e fazer
sumir. O Éter... O Éter, Heidegger? Não, não vi, não sei. Mas existe algo que lhe provoca o
regozijo, insiste o pensador. Algo que se destaca na luz e vem ao seu encontro. Vá pelas
bordas, na próxima e fácil fascinação das coisas bem conhecidas e de suas correspondências
simples. E o Claro, ora o Claro, é somente em seu seio que homens e coisas podem aparecer.
“O Claro repousa em seu brilho discreto. Não exige nada para si e não é nenhum ‘objeto’ e no
?
Texto reorganizado em forma de poema para fins de destaque.
258
entanto não é também ‘nada’” (1973, p.20). Alegre, toma seu primeiro encontro, e se
desdobra na saúde daquilo que é aclarado. O aceno é assim: desce das nuvens! Aterra para
preparar, enquanto diz, um lugar de novos acenos. Quando Jocasta não pode mais, ela e Édipo
recorrem à voz de um pastor, um escravo. Deixa que o seu escravo fale! Os cidadãos, entre
aliviados e tristonhos, hão de ser tomados de sua inatividade e atravessados serão por
sentimentos eróticos e tanáticos, num novo ímpeto de eloqüência (1998, Coro, a partir da l.
1394). Antes assim, “já existem demais os que estão cansados. Minha alegria é áspera e
eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa
alegria mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses” (ALP, p.102).
Ser cordeiro de deuses, assim no plural, é se fazer garantido, o mais garantido possível, de
adoção por alguma “força superior”. Mas não é assim que se entende consagrar, não é mais
possível que seja assim pois não se pode impunemente ignorar a falta de Deus, nem mesmo
transformá-la em carência. Viver essa falta é a questão. Como? Não é fabricando um outro,
não é se acomodar a um deus habitual, não é deixando de sentir a falta. Como amadurecer a
proximidade da falta? Como permanecer nessa relação com o deus-em-falta, com a falta-que-
faz?
A falta-que-faz é o nosso horizonte agora. Viremos nosso rosto para essa Região, talvez o
lado mais pobre da Região, mas o que fazer, esse lado é o único de que dispomos, como
humanos nesse momento: nosso poder de representação, nosso transcendentalismo. E
aguardemos. Aguardemos mas com a liberdade de se regozijar com o que se destaca na luz e
vem ao nosso encontro. Há de se libertar assim o momento de serenidade. Lembram-se?
“Próxima é a doce fascinação das coisas bem conhecidas e de suas correspondências simples”
(HEIDEGGER, 1973, p.20). Lembram-se ainda da pungência do bom?
Nessa finura Lóri se banhava, nutria-se da vida melhor e mais fina, pois nada era
bom demais para se preparar para o instante daquela nova estação.
Ah pressentir era mais ameno do que o intolerável agudo do bom. E que ela não se
esquecesse, naquela sua fina luta travada, que o mais difícil de se entender era a
alegria. (ALP, p.128)
bem? Assim como a ignorância como aceitação da obscuridade? Mais um impasse, pois
impossível agora nos livramos de nossa “consciência”, que já teve seu nome mudado de “má”
para “crítica”. Uma atenuação: antepusemos a crítica ao bem. Talvez não seja possível mesmo
contradizer a mordaz colocação de Nietzsche, mas talvez por isso mesmo, pela consciência da
falta, da morte e do mal, é que o regozijo possa assumir força maior ainda pois não tem o
sentido de fuga, e sim de encontro. No meio dos entraves da consciência, seja ela crítica ou
má, o bem doce da criança e do povo ressurge como gozo sereno, sem pressa. No meio da
vida, no meio do caminho, a consciência serenada ressurge como vigília. Que o sombrio
abismo tome o que há de relevo no abismo. Que no luto não escondido se possa pressentir
“que mesmo o luto só pode ser proveniente de ‘antigas alegrias’. ... O luto (diferente da
tristeza) é “a alegria que se aclara por acolher o mais-alegre enquanto ele ainda hesita na
reserva” (HEIDEGGER, 1973, p.23).
Misericórdia, piedade, compaixão pela falta em que estamos: com o resto de nós
mesmos, refazemo-nos; com a pedra mais dura, a escultura: a poesia por misericórdia.
E então a misericórdia pela qual ele esperara a vida inteira quebrou seu peito em
peso e impotência, o coração de Jesus exposto, a misericórdia assaltou-o como uma
dor. Os olhos do homem se tornaram vidrados, os traços se congestionaram numa
beleza de que só Deus não tem nojo, ele parecia prestes a ter um ataque de paralisia.
(ME, p.250)
Não, Martim, mova-se, agora mova-se, porque você já está muito perto. Está próximo
da beleza da escultura que sempre existiu dentro da pedra dura, da alegria que sempre existiu
dentro do luto. Não se feche agora às coisas como se elas só pudessem existir por força de
nosso poder de representação. Pode ser muito doce e de tão doce dar nojo, pode ser muito,
mas não se furte agora à descoberta, à vizinhança com o mais-alegre. Retoma agora o
caminho que te leva de volta ao mais secreto e ao melhor de tua pátria. Isso é retorno. Quantas
vezes será preciso dizer para que você entenda que voltar não é regredir, nem deixar de fazer?
Quando se quebra a cara e o peito, quando se toma porradas, como as que Álvaro de Campos
tomou, se abre no horizonte um Alberto Caiero. Felizmente já é tarde demais quando se quer
parar. Então, já foi feita alguma coisa de essencial, e foi a própria falta que se encarregou de
fazer.
“O que realmente acontecera – não se sabe, a gente substitui muito” (ME, p.252). Um
poeta, um homem-criança-povo chama o “reservado”, diz algo que fere o senso comum, diz
que alguma coisa está próxima e permanece distante. Já é tarde demais então. Ou esse
homem-poeta-criança-povo enfrenta o princípio da não-contradição ou se torna um jogador de
260
Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das
próprias mãos – mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento
frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é
um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das
próprias mãos. Preferia então o silêncio intato. Pois o que se bebe é pouco; e do que
se desiste, se vive. (ME, p.133)
Então, cheguei até aqui para desistir, para dizer que a paidéia poética da cidade sitiada
não se define, não se conforma, não se tornou, ao longo de um trabalho tão longo, feito
durante tanto tempo, corpus teórico nenhum. Ensinar-aprender, poderia em tentativa dizer,
pode se tornar fazer-poético, enquanto se deixar permanecer no que não pode ser ensinado-
261
aprendido. Não confundamos, porém, esse “deixar-se” com o laissez-faire do liberalismo, que
repercutiu na educação como alargamento do poder, do querer, da vontade de quem aprende,
ou seja, no agigantamento do sujeito, em detrimento do que se aprende, banalizado e
diminuído como conteúdo a dominar. O deixar-se permanecer no que não pode ser ensinado-
aprendido se refere a uma abertura à maneira das coisas, o que se assemelha à tradicional
“inspiração poética pelas musas”, como se costumava dizer na Grécia antiga. O se deixar
possuir pela maneira das coisas significa dizer dar a elas o tempo, dar a elas o lugar. Como
não se pode mais dizer mania das musas impunemente, depois de a poesia ter passado por um
processo de naturalização, humanização e artificialização, dissemos pensamento coisal. Mas
aqui, envolvidos pelo clima de desistência provocado pela abordagem do sagrado,
fundamental para a compreensão da paidéia poética de Clarice Lispector, nos voltamos para
essa terminologia mais perigosa.
Sem a pretensão de abarcar o conhecimento acumulado filosoficamente sobre as
musas, sem ao menos ter a intenção de inventariar o percurso da tradição poética que se inicia
pelos rapsodos como “crianças dos deuses”, que passa pelo lento reconhecimento da técnica
na arte poética e que desemboca no cultivo da personalidade e da vontade do poeta, é que
ouso invocar o sagrado (assim como, neste trabalho se disse “dáimon”, “guia”, “anjo”). Faço
isso porque, tal como Lucrécia, vi-me diante de uma necessidade de revisitar a educação em
seu plano arcaico. Nessa perspectiva arcaico-educativa, o se deixar possuir pela inspiração das
musas (a música que cura sob a forma de encantamento e que faz concórdia da discórdia)
coloca em movimento pensamentos, sentimentos, gestos que antes se encontravam parados.
Não é à toa que a analogia da inspiração com a fonte se tenha feito tão amiúde. Por isso,
deixar fluir livremente o que lhe foi inspirado é o conselho que se pode dar a um poeta
“tocado pela musa”. Este não é um trabalho que se pretende referencial, em termos da
distinção necessária entre as musas, que vivem em consonância com o divino, e o dáimon,
que faz também uma mediação entre deuses e humanos, mas não necessariamente musical,
sendo porém força igualmente vivificadora do lógos. Ler Clarice Lispector veio a ser um
caminho para desenvolver as possibilidades de interpretação do dáimon ou da musa, que
inventa formas diversas de dizer o essencial. Sei, parece muito esotérico, pois relendo o que
escrevi, me parece que isso pode soar como o reconhecimento de uma força externa e superior
à compreensão humana e que seria mais sensato reescrever estas frases no máximo falando no
“saber experimentado” expresso pela poesia, isto é, falar em amor, em fome, em miséria, nas
amargas queixas que os poetas repetem frente aos poderosos políticos e no desempenho que
ele mesmo, enquanto homem limitado, exerce da tarefa comunitária de se tornar um “mestre”.
262
Façamos o seguinte, é o que peço aos leitores deste trabalho, escolham as palavras ou sejam
escolhidos por elas, mas as coloquem diante do essencial e percebam a sua deficiência,
sempre.
Se o essencial não foi destinado a ser compreendido, se somos cegos por que
insistimos em ver com os olhos, por que não tentamos usar estas nossas mãos
entortadas por dedos? Por que tentamos ouvir com os ouvidos o que não é som?
(ME, p.252)
... como se enfim fizessem parte daquela coisa maior que às vezes chega a conseguir
se exprimir na tragédia. (ME, p.252)
Pois senão como explicar – sem a ressurreição e sua glória – que aquela mulher ali
mesmo tivesse nascido para a vida diária; que ela, ali em pé, enfim, enfim nascida
para o mistério da vida diária ...; como explicar que aquela mulher ferida, e talvez só
porque fora mortalmente ferida, fosse a mesma que amanhã se voltaria para o
plantio, de novo inteira como uma mulher que teve um filho e cujo corpo de novo se
fechou? (ME, p. 252)
Caos! Origem, silêncio, não ser, matéria plástica de vários atos inaugurais, se
transforma em Cosmos! Originário, palavra do ser.
plural poderia ser. Repito o ritual de Clarice Lispector, a colher a maçã no escuro; repito o
linguajar ritualístico da tese do doutorado: eles estão aí para me livrar do medo e delivrar “a
única palavra de passe: creio” (ME, p.175). Clarice Lispector, a cidade sitiada, a paidéia, a
poética pertencem à Região que não pode ser o que é sem Clarice Lispector, a cidade sitiada,
a paidéia, a poética. A Região da Verdade só existe porque utiliza a esses todos na permissão
de sua serenidade, no agradecimento simplesmente de poder agradecer e, de poder conseguir a
delicadeza de uma criança, na reunião de suas forças produtivas e alimentadoras, produtivas e
não possuidoras, ativas sem guardar para si, aumentativas sem dominação. Eis a Vida Secreta,
o melhor e o mais secreto da terra natal: o acontecimento no homem, sem a necessidade de
sua autoria, no pensamento de um eu que pensa a transfiguração de valores, sem decoração de
lições, mesmo as do corpo e do espírito, pois a vida, como instância existencial, mesmo
calejada da divisão, é anterior a essa divisão.
Veja e esqueça. Leia e esqueça. Todos conhecemos “esse grande susto” de estarmos
vivos, “tendo como único amparo apenas o desamparo” de estarmos vivos.
De estar viva – sentiu ela – teria de agora em diante, que fazer o seu motivo e tema.
Com curiosidade meiga, envolvida pelo cheiro de jasmim, atenta à fome de existir, e
atenta à própria atenção, parecia estar comendo delicadamente viva o que era muito
seu. (...) Até que ponto ela ia na miséria da necessidade: trocaria uma eternidade de
depois da morte pela eternidade enquanto estava viva. (ALP, p.157)
Soa a aprendizagem do Livro dos Prazeres. Ah, doce o desejo do eros sagrado que nos
ensina a amar alguém assim como se escuta uma música: aprende-se a ouvir uma figura, a
distingüi-la e a demarcá-la como uma vida em si. E com empenho e boa vontade, suportamos
sua estranheza; com paciência, aguardamos a sua expressão; com brandura, o que nela é
singular. Nos habituamos, sentimos falta dela e, pela sua magia, nos tornamos seus humildes e
extasiados amantes. E, por nosso empenho, boa vontade, paciência e brandura, a “estranheza
tira lentamente o véu e se apresenta como nova e indizível beleza: - é sua gratidão por nossa
hospitalidade” (NIETZSCHE, 2004, aforismo 334). Amor, ó amor de música informado, nós
nos damos, em presença, uns aos outros, a própria solidão?
Não sei
meu amor
mas sei
meu caminho chegou ao fim:
cheguei à porta de um começo.
(cf. ALP, p. 174)
265
ANEXO
266
1.
Um rito perdido:
tocar nos objetos.
Limites, possibilidades e ela –
uma estação.
32 Estes poemas foram feitos com base nas leituras e referências já fornecidas nos capítulos anteriores. São
recriações que aconteceram pelo impulso de tentar buscar na cidade as quatro dimensões da coisa (a
quaternidade) descrita por Heidegger: as dimensões céu, terra, mortais e imortais que, numa dança, num anel ou
num nó, em tensão, desvelam o mundo em sua simplicidade.
267
DIMENSÃO CÉU
2.
A gente diz céu, pensa logo em terra;
em gente que morre; e coisas que não morrem na própria coisa.
Caminhos de poeira e sol.
Uma simplicidade: ar-princípio dos sopros, luz-princípio do que aparece.
***
3.
A iluminação das duas horas
panela, cozinha, água enquanto se lava a louça.
Coisas de defender cidade
pelo buraco da fechadura.
4.
268
Ufa! Vida visão e vento. Tem gente que cria asas. Risos ricos, contar de histórias iluminam a
economia.
5.
Sopro e vento vem junto.
Rede fina,
invisível de tão fina,
entre os homens e a geração.
Roupa cósmica.
Flauta tece, gente respira e é respirada.
Tardes sujas sopradas, levantar das saias, nuca desnuda, cabelos a cegar o rosto.
Transviado, o vento corre, arrepia a folha de calendário e dissipa o cheiro das cadeiras.
Vacila a sala, abre a porta, desperta a casa e respondem outras janelas:
tudo hesita, tudo existe em extremidades ligeiras ao vento.
6.
Nenhum vento soprava a estátua do cavalo em trevas.
Em noites assim as flores são de prata,
cruéis e assassinas.
269
7.
Sol: uma bola de fogo.
Da lua, falam poetas e outros noturnos. Na lua, pousam até se fartar,
mas de dia, só pensam coroados e inteligentes –
toda a região mapeada.
E o sol, alheio e nosso, esconde o seu segredo.
Desaparece vermelho e quente e mantém tudo por um fio.
O sol vai, as marteladas param, o suor estanca.
Trégua de luz encerrada em dura noz. Debaixo da terra, todos sabem:
ele volta. Sobre a terra, dê-lhe sangue, e os rumores invisíveis vão surgir pela manhã.
Dê-lhe a cabeça dos soberanos, dos iniciados, dos heróis e dos filósofos
e a manhã será silenciosa. O sol anula enfeites, a luz fere possibilidades. As pálpebras piscam
em obstinado amor.
Sol, igualdade, mil portas recolhidas em cada porta.
8.
A melhor luz de se viver
Madrugada,
sem pressa e tão de leve manhãzinha.
Hora tímida,
tom agudo de vitral a quebrar a casa.
Luz precedente,
de exercer profundo a pessoa,
quando cheiros não usados entontecem de alegria.
É limiar, a luz
mal se separa do orvalho na grama.
É horizonte, onde um pássaro se ergue.
As árvores mantêm ainda, imóveis, a noite.
Na cabeça da estátua, voeja a primeira abelha
mais além, emerge dos vapores, o galo. Tesouro,
é cedo demais! Mas a pedra já se anuncia.
270
***
Frescor e visibilidade, brisa sobre o rosto mutilado entre latas: é aurora. Ouvidos leguminosos
de sono se reduzem rapidamente a orelhas pequenas e sensíveis, abelhas. Alegre movimento,
fresco, perturbador: toda a população se prepara para o embarque. Fios de telegrama e
varandas abertas, em agudo prosseguimento e iminência – o dia!
Que cada um se mova a caminho de suas próprias formas. Bairros colhidos em insignificância
e em minúcias. É tarde, ainda imutável.
Na cidade, os andares piscam e todos sentam. Na cidade escura e iluminada, como um navio.
Rasguemos pois as finas veias da noite. Comecemos, moças, a nos mover ao longo das
paredes, procurando. Dizem que elas, ao voltar na noite, na rua aspiram o cheiro: damas-da-
noite! O perfume parece matá-las lentamente. É mais forte, o perfume. Agora, notadas, são
iniciadas no mundo. Dizem que no sábado meninas insones sacodem os cachos coroados de
papelão e que as noites de domingo é que são próprias para os bailes. Dizem que uma menina
voa entre as últimas pessoas da noite, aterrorizada pelo escuro do morro e assustadora em sua
corrida. Se nada se transforma, a noite perde a data e entra grande pelas portas da varanda,
latejante. Casas imersas no silêncio da eletricidade tornam inútil o acender das lâmpadas.
Progressivamente, luzes se apagam nas janelas, já não há olhar a exprimir a realidade.
“Não ser”, esta a vasta noite de um homem. O milagre é manter-se inteiro ainda. A noite e não
a torre do relógio é a resposta. Talvez um som de sino iluminasse as ruas, pois a noite agora é
de ouro.
9.
Lua, conto com o dia imprevisível de amanhã
me consola mais uma vez
Mais uma vez ferida espero
Passa o assombro e volto aos grandes sapos
Horrível patriota, permaneço inteira.
Lua, se reúna hoje mesmo ao sol
e, como um caminhão, me dê passagem pra a usina
Carrego peixes pela noite
e de etapa em etapa, de silêncio em silêncio
me reduzo a ser visível, a ser o máximo de que os olhos precisam.
Hoje, o meu primeiro amanhã é hoje mesmo.
DIMENSÃO TERRA
10.
Fecundação
11.
Sustenta a construção, sustenta todo gesto de dedicação.
Concentra-se na pedra, desfaz-se na água, irrompida em flora,
273
12.
Cultos da vegetação
13.
Árvore-altar
Eu vejo que me tocas, ele sente que nos cheira, vós ingeris ruídos de universo na terra.
Bem escondida é sua vida de imortal.
Fácil é chegar ao seu conhecimento oportuno e frutificar estourada de espiritual. Pequena, a
oportunidade da planta limpa e da verdura sem sentido. Mas é no domingo que a árvore fica
em pé. Na beleza do seu silêncio, na minúcia de sua inutilidade, a vida é profunda e tranqüila,
em suas trezentas mil folhas.
***
Então, ele põe a mão no tronco do castanheiro, e ela põe também. Através da árvore, tocam
um ao outro. No través do mundo, no retorno do gesto que aponta coisas e que cria o que
desconhece, toca-se no pequeno e se atinge o imenso.
14.
Casa, umbigo do terrestre
– um lugar claro da história.
15.
Silenciosa alma animal
***
Sou um animal no escuro. Ninguém vê minha cabeça de touro, de cão, minha cabeça de
homem que pensa sem ritmo. Não procuro e não produzo o que não acho. Da mesma maneira
que alguém procura, e produz o que acha. Prendemo-nos ambos às coleiras: ele, o super, e eu,
o sub. Ele, poder, e eu, sem nunca perder. Nada que pulsa é juiz de tudo o que pensa.
Animalescamente, nos jantamos.
276
16.
Chegou o cavalo, enfim chamado.
Eles, que invadem em trote a cidade rasa
e estancam em longo relincho, patas sobre as ruínas.
Eles, que no sangue sabem de outra época
e intimam o subúrbio a respirar, arquejante
a vida preciosa ao redor.
O intolerável do equilíbrio, é deles a cólera, o livrar-se da carga.
DIMENSÃO MORTAL
17.
Morte, pequeno cofre do Nada. Esse mundo é de quem sabe perder a vida, levantar os pés e
esticar fios ao longo da terra. E andar entre as coisas apequenadas com firmeza, desilusão.
Morte, ritual de vida. É preciso possui-la antes do fim. E guardar o pequeno tempo, sem fazer
da noite, o dia; nem do dia, a agitação. Sem fazer de si mesmo um deus: ser capaz da morte,
sem nunca morrer antes de morrer. É preciso prolongar a promessa com finura. A promessa
que sentimos, no momento em que nascemos. Viver na latência, na lata. Que a morte sempre
será em casa estranha. Que até o fim, se aprende.
18.
Lição de dor
277
19.
As perguntas que se seguem
20.
Homens: modos de ver
I.
Cidadão e desertor
Curador heróico, ao mesmo tempo coro e coração vazio.
Ouvido atento, redescobre seres pelágicos,
sem tocar o fundo, adaptado à flutuação.
Sábio, atende necessidades do corpo; e não da visão.
Cego e glorioso. Ele está na luz! Vasta concretização.
Obstinadamente fraco, tem doçura sem ser doce. Influentemente insignificante,
sofreria, se fosse a hora. Escolheria sentimentos, se fosse essa sua cultura.
Não, o cidadão não comunica sua paz estranha. Sim, pensa como roda,
sempre anterior aos acidentes.
II.
Soldado e forasteiro
Estou falando de uniforme
de cabeça sentido ereto, em
278
III.
Amado e desconhecido
Tranqüilo é o homem que trabalha.
Forte é o que não se mostra, nem se esconde.
Digno, mesmo sozinho.
Colérico, quando é falsa a inocência.
Caminha, sem futuro, sem piedade de si:
só no escuro ele é visível.
21.
I.
Maternidade ambigüa
Se você for do mundo, mãe,
hei de conhecer muitos filhos seus.
E, se em você, os filhos eu reconhecer,
reencontraremos fácil o colo de nossa origem.
II.
Sabedoria ignorante
Sei que os vagarosos esperam
que eu os conheça e que os perdoe.
E isso porque não sei nada, nem de mim.
III.
Modernidade ideal
Só assim se estabelece e se é o estabelecimento:
na altura e na gordura, no domínio e
no adiantamento das situações. A felicidade se
constrói no agudo cruel da inteligência.
IV.
Aprendizagem prazerosa
Objeto a ser olhado
não no espelho, no gosto de ser.
Aceita, mesmo em manca condição.
Aceita tão pequena, sem condição de ser livre.
Aceita em grande, o incondicional.
Cômica, tem perna curta pro espetacular.
Obscura, socorre-se náufraga
e não encomprida o feminino.
Escorre o desejo solto nos cabelos.
22.
Exilado e cidadão
DIMENSÃO IMORTAL
23.
Sonhei ser grega pra dizer segredo em forma de segredo
e em poesia o lugar onde o gesto é trovão e a fala, vento soprado.
Inesperada, essa fome de chamar um segredo pelo nome
e de repente, sempre a primeira vez, ele aparecer bem-coisa.
24.
Consagração:
sou ninguém, meu nome é eu.
281
25.
Convoquemos pro perto o que está distante:
as feituras a se fazerem nomes.
Nome situa a bola de papel em folha aberta.
Encaixa o pé no côncavo do solo e exclama
“cavalo” no clarão aberto pelo relinchar.
26.
sorriso é palavra simples
coisa é gesto do mundo
cidade destrói-se nova
cavalos voltam no antigo
sombras matam cavaleiros
braço aponta a montanha
homem conclui a frase.
27.
Sementes da canção
28.
Esqueça a Grécia e o seu segredo
Desse lado, mora o medo
Desse medo, nasce o eu
Esse eu, não reconheço
As tarefas, me esqueci
Caí, inquieto, mesquinho,
pequeno, o medo eu renego.
29.
medo na terra, em nome do céu
medo do mundo e de estar viva
olha a mulher, que medo!
olha a mulher fria, que remedo!
olha a chuva, que perigo na cidade
sem guarda-chuva, que susto no campo!
o que receio é que posso demais
o que me assusta é não saber dos limites
no fundo mesmo, que medo do descontrole
me salvem os salvos. me agrego por medo e
pertenço enfim. agradeço ao medo
mortal, admito: pertenço enfim.
30.
O que seria uma alegria?
31.
No limite, rimos.
Na margem, nos despreocupamos.
Por um segundo se escapa, se compreende ou se fulmina.
É melhor escapar de saber
(S. Geraldo estava cheio de pessoas fulguradas que sacolejavam plenas de alegria no carro
de socorro do Hospício Pedro II).
O principal era mesmo não compreender. Nem sequer a alegria.
32.
o próprio desejo, é duro sentir.
Mas não se tocar é quase o ponto extremo.
Trabalho paciente forma parelhas neste mundo.
Em último esforço, se tenta a solidão.
A solidão com um outro: em último esforço, assim se ama.
***
33.
E assim no limiar,
despojado e tosco, no intransponível
sair pela cidade.
285
Posfácio
EM DEFESA DESTA TESE
Entrego-me pois à tensão deste momento, reenviando-a, porém, ao que – por princípio
– se coloca como a questão que fez girar toda esta roda: o ser e o não ser na cidade, e as
possibilidades de aprendizagem que essa movimentação abre ao ser humano. Eis aí a pedra no
meio do meu caminho. Poderia investigar a angústia que ela me provoca, mas preferi voltar-
me para a realidade da própria pedra, que é tanto calçamento quanto obstáculo, mas que
originariamente é pedra, simplesmente. A invenção de um nome. Então, todo este trabalho se
dá na atenção desta originariedade e se dá pelo pensamento que reflete esta presença entre o
ser e o não ser das coisas, circunscrevendo-as na paisagem que posso ver: a cidade. Dito
assim parece uma proposição pouco ameaçadora: estar e ser junto às coisas. Mas para isso é
preciso superar a impessoalidade que impede a vigência das diferenças, assim como livrar-se
da subjetividade, ao menos do seu predomínio em nossa maneira habitual de pensar e de com-
viver com as coisas, de ser-no-mundo, melhor dito.
Para realizar este trabalho, é preciso também achegar-se a um poder não político, ou
seja, inútil para o domínio e para a conquista de posições. Nisto, já se acotovelam para entrar
inúmeras perguntas. Foram tantas no percurso do trabalho e são ainda tantas... Por exemplo: o
noção de poder não se originaria da própria cidade enquanto pólis, sua instância
institucionalizada e institucionalizante? Haveria uma cidade despojada desta dimensão aqui
chamada de “pólis”? Seria ela a comunidade? Poderíamos talvez compreender e forjar um
poder comunitário e esse não seria então político? Bom, digamos que quando digo “poder não
político”, procuro trazer uma outra perspectiva de poder, um poder aberto à tensão
desestabilizadora provocada por uma força que não se encaixa, que teima em se deslocar,
força que só se mostra à medida que se dá o sacrifício daquele eu, incomodamente espaçoso e
obstrutor. Só assim o poder se configura como poder-ser, aquele que tantas possibilidades
radica que inclui mesmo o impossível. E aí entra em cena o inesperado. Com a realização do
impossível, surge algo de sagrado. E surge o desconcerto: tornar central este encontro ou
desfazer-se dele em prol da soltura do pensamento? Viram, como pode se tornar tão difícil
aquela proposição tão pouco ameaçadora? Ela pode nos fazer oscilar da extrema indigência ao
mais radical poder de ser.
Para que a proximidade com o poder não se traduza então numa interminável luta pelo
poder, é necessário ater-se à experiência como saber-maestro, que rege enquanto re-cria a
música. Pois a música que o maestro toca é a mesma que ele escuta. A experiência possibilita
reinterpretar o virtuosismo aristocrático da educação homérica, ao incorporar ao diálogo a voz
tanto do nobre quanto do pária, a bem do foco na ação realizadora, e pela especulação de duas
épocas: uma que se via através de heróis e outra que se vê pela destruição dos mesmos.
287
Esquecidos de ser, não mais podemos empreender uma aprendizagem pelo caminho da
luz e do acerto. A poesia agora jaz no pequeno e no cotidiano; no espanto e no medo; na
abertura à impotência como potência sobrevivente da comunhão do sentir, do crer, do saber e
do agir mundano. Em nossa relação medíocre com a honestidade, achamos que a imaginação
é um modo de escapar à verdade, e que não há lugar para o desconhecido e o inexplicável
numa cidade planejada. Comunitário, no entanto, é circular pelo humano sem sair da
“condição do Universo”, como diz Lispector. Compartilhamos uma condição que não se cura,
mas o medo dessa condição, porém, é curável. O empenho se dá na medida que se assume o
contingente como necessário. O apoderamento do livre arbítrio não livra o homem de seu
destino impossível de dominar.
O eu como obra da vida: esse processo pedagógico de ser si-próprio não é o do
florescimento da personalidade mas da desistência de um eu insistente unidirecional. Mas ah,
quanta dificuldade em permitir finitude e infinitude, quanta dificuldade em sorrir da nossa
condição de transitoriedade e da nossa perplexidade na relação com a eternidade. Que difícil é
apreender o público em nossas experiências particulares e a impossibilidade da posse, pois as
coisas são bem mais do que sua finalidade, seu uso e consumo. A coisa se tem em sua
linguagem. Em cada modo de ser reside um modo de dizer. Ficar junto às coisas é permitir a
sua movimentação, mas isso é difícil também.
Relendo este trabalho, percebi que dizia muitas vezes a expressão “para além de”.
Acho que aí reside a percepção de algo indizível e a necessidade de encontrar o imenso do
lugar, como diz Bachelard. É um trabalho que busca caminhos de superação e de elogio à arte
de ver com olhos de contra-medusa porque tudo parece estar paralisado. Ver é agir, é fruto de
um empenho; e também ao olhar pertence uma obra, pois – neste encontro – a coisa ressurge
como presença provocante, como acontecimento. A simplicidade de ver e escutar constitui
hoje uma decisão essencial em nossa história. Com a poesia, desmontaremos o esquema de
abandono? Digamos que hoje esse é um modo de ser urbano, ser humano aqui: o caminhar e o
comungar por sobre o apelo silencioso que exala das profundezas do asfalto.
O que quer que se torne “centro” se torna lugar de aprendizagem. Mas centro é apenas
o habitado, o lugar experimentado, na concomitância da fragilização e do exagero. Se nos
esforçamos em perceber o poder de formação (de Bildung) das ruínas, “a força educativa da
plenitude de formas ao redor do indivíduo”, como quis Goethe, estaremos talvez em atitude
demasiadamente romântica. Mas não há formação sem contínua deformação ou des-formação.
O deslocado sente-se estranho, talvez por experimentar exagerada e profundamente a
289
sensação de alocamento em que a pele parece sempre em arrepio por estar sendo tocada por
algo.
Li Clarice Lispector de forma redentora? Admito que sim, contanto que relacionemos
redenção ao dizer de Píndaro (“Venha ser o que tu és.”). Não se espera que ninguém seja
melhor do que é, que a cidade progrida na direção de nosso ideal. Em cada lugar, cada coisa,
cada um, sente-se o desejo pela sua incompletude e provisoriedade, por isso, o processo de
singularização é expansivo, multidimensional, define-se na continuidade do processo e no
entrelaçamento de relações, e não se estabiliza numa visão única. O habitar se dá nessa
incessante travessia entre o vazio e o cheio. Elimine-se uma das margens, e a ponte se arruina.
Sim, a passagem transbordante para ser campo para o inexplicável passa pelo esvaziamento.
Desprendimento vai mais além da perda, e comporta delírio e o se deixar atravessar pelo
múltiplo, em animação suave do insubstituível, do único.
Pois é, este trabalho é assim: mais experimentação do que reflexão. Quer dizer, através
dele, procuro me colocar ao encalço de um modo de ser presente, narrando os fios dos
questionamentos que se fazem afirmações sem serem respostas. Talvez não seja muito
heróica, essa qualidade de estar aquém. Não sei também se é a melhor essa escrita que diverte.
De qualquer maneira, corro do estado da dor-nenhuma. As orações que escrevo modulam
primeiro um pedido a mim mesma, do máximo de mim mesma. E a experiência de “um
deixar” perceptível nessa escritura não se traduz como passividade, mas como a atividade de
um estar à deriva. Pois é, relendo o meu trabalho, percebi que a sua leitura também pode se
dar à deriva, principalmente a partir dos seus ensaios e poemas anexos. Cada uma de suas
partes, (ouso dizer, de suas orações, expressões e mesmo algumas de suas palavras) tem um
inteligência, mas uma inteligência sensível, serena que pede que nelas nos depositemos como
num mundo-ninho. Assim como Lóri (de “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”),
quando ela sai do mar, saio desta tese (e principalmente agora depois desta releitura na
tentativa de bancá-la) como náufraga.
Meditar é isolar-se? O que escrevi? O que pode ser lido no turbilhão destas muitas
páginas? Distanciei-me da lógica, incluí o devaneio poético e um pensamento ao qual chamei
de coisal. Tudo para se perder como Deus quer que se seja inocente. Pois só na inocência,
pode-se dialogar com a pobreza de nossa cidade. Então não sei se produzi algo consistente em
termos científicos, algo útil em termos técnicos. Esta tese é um pedido de ajuda. Procurei
Lispector e me deparei com personagens vivas. Nossa vida é truculenta, meu sorriso vem do
cansaço. É pena que não possamos conversar sobre essas coisas na mais apropriada luz
crepuscular. A noite que cai nos apropria e nos ensina a língua das passagens. Mas não,
290
estamos nas duas horas da tarde. E para ser fiel ao que defendo – o pensar-sentir-dizer junto
às coisas – e como coisa é clima, é preciso encontrar nesta instância o reconhecimento
mínimo das coisas esvaziadas de cálculo e superexpostas de luz (nesta tarde invernal).
Nesta instância, qual a substância que ora se põe à prova? O medo recolhido foi aqui
trabalhado por um desejo suave, benevolente e compassivo. Transformá-lo e ser transformado
seria o suficiente. Mas do medo, como de toda dor, não podemos nos livrar. Então talvez
pudesse abrir mão desse desejo e procurar nesta mesma instância o prazer substantivo de
quem comemora e rememora o obrar deste trabalho como um ponto de partida, uma
possibilidade de Possibilidade. E, por se saber apenas campo de fruição, não exigir que ele
apresente já qualquer transformação. Sei, no entanto, que essa escolha não se faz. Mostrá-las
assim separadas as duas opções têm o dom de iludir, distrair, causar um efeito animador de
que bastaria focar em um outro pólo e então essa angústia terminaria mais rápido e mais
facilmente. É preciso, portanto, colocar a luta no centro novamente e mostrar que nela se trava
o embate entre a dor e o prazer, a luta de inevitável perda, a partir da qual procurei forjar uma
feição: a “paidéia poética”; e outra figura: o “pensamento coisal”.
Fiz-me um campo de batalha e um campo para colheita. Aceitei o convite que primeiro
me foi feito pela própria cidade em sua condição de sítio armado. Pediu-me ela que eu
experimentasse nela aquela luta. Experiência e resultado, essa luta se mostra agora como
encontro. Posso dizer agora que a cidade, a cidade que habito, aqui está e pacientemente
espera que algo desta descarga de energia para ela retorne. Que a energia que ora se refina a
ela retorne, pois. É esta minha expectativa, devolver à cidade, enquanto terra e mundo, a
poesia e o pensamento que procurei desvelar no modo da paidéia e das próprias coisas, nas
imagens sugeridas por Lispector, em algumas outras encontradas em Heidegger, imagens da
minha própria experiência.
Escrito em círculos, tal como uma mandala, este trabalho agora me parece pedir uma
leitura não linear. Seus capítulos iniciais nos introduzem a uma dinamização poética,
meditativa do pensamento. À medida que o leitor adentra nos círculos posteriores, nos
capítulos mais ensaísticos, começo a perceber no texto um tom de quase cantilena. Isso pode
parecer um auto-insulto, mas não é. Minha percepção é de que estes ensaios, ainda que não
sejam aforismos, guardam dessa forma de escrever a mesma necessidade de saltitar, de fazer o
leitor dançar. Assim que percebi a dificuldade de acompanhar uma leitura cursiva dos
mesmos, fiquei preocupada. Pode ser que eu esteja tão cansada e tão tomada de um
sentimento de urgência e de ânsia, que não tenha podido ser a minha melhor leitora. Mas pode
ser também que eu tenha sido agraciada por esses mesmos motivos e, levando em
291
que aceitei e incorporei no decurso do trabalho. Me ultrapassei e posso dizer que entrevi nesta
realização um descortínio de campo que todavia não saiba explicar. Sustento o que importa, o
simples como enigma. Serei capaz de instaurar um mundo, criar uma obra? Sustento-me e
espero me manter com a maçã que colhi no escuro. Comprometo-me apenas em cuspir o
caroço.
Espero que a leveza com que o texto se revestiu não tenha incorrido em falta de
consistência pois dela não se pode abrir mão. Posso assegurar somente que o texto resulta do
empenho em dar corpo ao dito, avolumando-o não pelo acúmulo insistente de informações, o
que infelizmente sinto que também ocorreu, mas pela agregação de experiências colocadas em
concomitância, em co-existência.
Minha tarefa: provocar, no aproveitamento desta oportunidade a que se dá o nome de
“tese”, a linguagem que aproxima o ser humano do turbilhonante livre, da possibilidade de
ouvir um momento o espaço. Agora, chegamos as onze horas desta tese, hora que um homem
toma tenência por sentir a vigência na proximidade de um clímax, de um choque. Agora é
hora de dizer que este foi um trabalho de emergência, que procurou trazer limites ao ilimitado
e amargo poder da burocracia, da tecnologia, da metafísica, da divisão social, da exclusão do
poético em nossa existência. Esta a minha tarefa: questionar no quase final de um ciclo da
humanidade, mesmo que no decurso extemporâneo de um trabalho de tese, a possibilidade de
obrar alguma arte, algum habitar humano; de encaminhar um sentido na cidade que rompa o
sítio que ao seu redor se instituiu.
Escrita em círculos, corre ela o perigo de andar em círculos, não sair do lugar.
Realmente, este trabalho sai da zona da retreta, para encontrar um espaço não-fundado no
pensamento, ao encontro de um poder que pode ser também uma ferida. Como não andar em
círculos? Ou seja: como sair do lugar, assumindo-se o inevitável do retorno? Pela imaginação
talvez, pela delicadeza do toque mesmo em coisas consideradas inúteis à aprendizagem, pela
dúvida assumida como caminho. Terei chegado ao mesmo ponto em que dei minha partida?
Pois comemoro o retorno com a presença de um tempo indicativo de futuro, ainda que no
pretérito. Poderíamos ser diferentes? Poderia a cidade alargar-se no abraço do que se encontra
fora da “zona da retreta”?
Bom, agora posso exclamar: veja a cidade! A cidade cheia de gente, cheia de chão,
cheia de céu e cheia de mistérios e incompreensões. Como é penoso dizer a cidade em todas
as suas dimensões! Mas a simples possibilidade de compreensão do ser e do não ser nesse
lugar permite que vibre em nós a alegria de viver. Na inocência conquistada, não há mais
293
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Donesi, São Paulo:
Martins Fontes, 1993. (Coleção Tópicos)
BAKTHIN, M. “O romance de educação na história do realismo” em Estética da
criação verbal. Trad. M. Ermantina Pereira. Martins Fontes, SP, 1992.
BORGES, José Luis. “Borges y yo” in El hacedor, Buenos Aires: Alianza Emecé,
1960.
BENJAMIN, W. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” e “Sobre
alguns temas em Baudelaire” In: BENJAMIN, W., HORKHEIMER, ADORNO, T.,
HABERMAS, J. Textos escolhidos, trad. de José Lino Grünnnewald et alli, 2a. ed., São Paulo:
Abril Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores).
CABANNE, Pierre. “Gosto mais de respirar do que trabalhar” (entrevista) in Marcel
Duchamps: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perpectiva, 2001.
CALVINO, I. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi, São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CAMUS, M. O mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo. Trad. Urbano Tavares
rodrigues e Ana de Freitas. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.
CASTRO, M. A. de. Poética e poiesis: a questão da interpretação, concurso para
titular de Poética, UFRJ, 1998. Disponível no site http://acd.ufrj.br/~travessiapoetic
________________. A poiesis da gramática à coisa, 2004a. Disponível no site
http://acd.ufrj.br/~travessiapoetic
________________. O mito cura: o apelo e escuta da pro-cura, 2004b. Disponível no
site http://acd.ufrj.br/~travessiapoetic
ELIADE M. Traité d’histoire des religions. Prefácio de Georges Dumézil, Paris:
Payot, 1949.
_________ . O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério
Fernandes, São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: MEC, 1967.
FROBENIUS, L. La cultura como ser viviente. Trad. Máximo José Kahn. Madri,
Espasa-Calpe, 1934.
GRASSI, E. Arte e mito. Tradução de ... Edições “Livros do Brasil”, Lisboa, s/d.
_________ . Poder da imagem, impotência da palavra racional: em defesa da
retórica. Trad. Henriqueta Ehlers, Rubens Siqueira Bianchi. São Paulo, Duas Cidades, 1978.
295
***
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BACHELARD, G. La tierra y los ensueños de la voluntad. Trad. Beatriz Murillo Rosas.
Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1994.
______________. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins
Fontes, 1988.
BARTHES, R. O grão da voz (entrevistas 1962-1980). Trad. Teresa Meneses e Alexandre
Melo, Porto: Ediçoes 70, 1982 (Colecção Signos).
BEAINI, T.C. Máscaras do tempo. Petrópolis: Vozes, 1995.
BENJAMIN. W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio
Seligman-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999.
BERNET, J.T. “La educación y la ciudad”. In: Otras educaciones. Mexico: Universidad
Pedagogica Nacional/Anthropos: 1993, p.177-203.
BORGES, J.L. Nietzsche – el proposito de Zaratustra. Disponível na internet, no site:
http://www.nietzscheana.com.ar/borges_zaratustra.htm, capturado em 21 de maio de 2003.
___________. Esse ofício do verso. Org. Calin-Andrei Mihailescu. Trad. José Marcos
Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BUENO, A. “Cidades brasileiras modernas: velocidade e violência” in Revista Terceira
Margem, ano III, n.3, Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
CASTRO. M. A. O acontecer poético – a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
_____________(org.). A costrução poética do real. Rio de Janeiro: 7 letras: Faculdade de
Letras, UFRJ, 2004.
DETIENNE, M. A escrita de Orfeu. Trad. Mário da Gama Kury, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991.
298
OBS.: Além dos três livros de Clarice LISPECTOR enfocados ao longo deste trabalho, foram
constantes os retornos a mais outras duas das suas obras: A descoberta do mundo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984; e Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
300
RESUMO
A leitura do romance “A cidade sitiada” de Clarice Lispector, assim como de outras duas
obras da mesma autora: “A maçã no escuro” e “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”
baseou-se na premissa da aprendizagem poética na cidade. No interrelacionamento das
trajetórias dos personagens dessas três obras, foi possível perceber a originariedade do
pensamento pelo exercício do olhar, o processo de cidadanização pelo “caminho do campo” e
a descoberta da cidade como lugar de realização prazerosa de si-próprio. A interpretação foi
aprofundada pela retomada de algumas questões levantadas por Martim Heidegger,
principalmente a visão do pensamento enquanto poiesis, a percepção das coisas como um “nó
de luta” das dimensões Terra e Mundo, e a possibilidade da linguagem des-velar a verdade de
ser. O trabalho foi escrito de modo que suas partes possam ser lidas como ciclos, em
aproximações sucessivas das obras: parte-se de um posicionamento em relação à educação, ao
poder e às possibilidades do pensamento realizado na proximidade com as coisas; busca-se
um despojamento do discurso com a desconstrução de conceitos tradicionais ligados à
aprendizagem; destacam-se modos de perceber a poiesis na cidade; ensaia-se a identificação
possível entre o urbano e o humano; e chega-se à participação da poética perceptível nas obras
investigadas, pela escritura de poemas da cidade enquanto lugar de céu, de terra, de
mortalidade e de mistério.
ABSTRACT
This novel, “The Besieged City” by Clarice Lispector, as well as “The Apple in the Dark” and
“An apprenticeship or The Book of Pleasures” was studied based on the assumption of a
poetical approach of learning from the city. The path interrelationship of the main characters
of these three works enabled to link thinking to looking; to construct a citizenship based on a
“field passage”, and to discover the city as a place to pleasurably accomplish oneself
understanding as a human being. Clarice Lispector’s work interpretation was deepened using
once again some issues raised by Martin Heidegger, mainly his vision of thinking as poiesis,
of things as a “fight knot” of Earth and World dimensions, of language unraping the truth of
being. The present work was written in such manner thar both of its parts can be read as
cycles, in successive approaches of Clarice Lispector’s works: it starts with a view related to
education, to power, and thinking possibilities close to things; it seeks to deprive speech by
deconstructing tradicional concepts connected with learning; it points out manners to notice
poiesis in the city; it tries to offer a possible identification between urban and human aspectos
and finnaly it reviews how poetry contribution is perceivable in Clarice Lispector’s studied
works by the poems written on the city while sky, earth, mortality and mystery places.