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A subversão do ser
IDENTIDADE, MUNDO, TEMPO, ESPAÇO:
FENOMENOLOGIA DE UMA MUTAÇÃO

Mauro Maldonato
Nota à segunda edição *

Q uando, há um ano, as Edições Sesc me propuseram a


segunda edição de A subversão do ser e de Raízes
errantes , confesso ter experimentado um sentimento de
alegria e, ao mesmo tempo, de perplexidade. Não são
muitos os livros, pensei comigo mesmo, que resistem à
impaciência do tempo, à mutabilidade das estações
culturais. Além disso, quais ideias devem ser deixadas,
quais devem ser abandonadas ao próprio destino?
Todavia, ao reler as páginas, percebia que os receios,
temores, medos deixavam lentamente lugar a uma
sensação de surpresa pela atualidade dos pensamentos
que eu havia comentado. Foi como se os fios de uma
pesquisa, explicitada pelos olhares e pelas aberturas
através das quais tentei sondar o mistério do homem,
estivessem se amarrando novamente de forma
completamente casual.
Ver renascer, depois de muitos anos, o movimento
daquelas palavras suspensas no branco destas páginas,
principalmente na refinada forma que as Edições Sesc
reservam desde sempre aos seus livros, tem um valor
enorme, muito mais que testemunhal. É como se
vestígios, rastros, momentos e sinais de meu caminho
intelectual se transfigurassem em novas imagens. Esses
livros nascem ao redor de uma única pergunta, relativa
às maneiras através das quais o homem foi pensado
durante o século XX . Mas, se a interrogação é única, os
caminhos que atravessei são múltiplos. Em determinadas
passagens do livro transparecem, de fato, evidentes os
indícios das tentativas e das deviações de como é feita
uma viagem que não teve intenção de refazer trilhas já
percorridas. Eis por que determinados argumentos são
enfrentados com insistência e com liberdade estilística,
livre das regras da escrita científica.
Não podia ser diferente. Esses livros colocam em
cena máscaras enigmáticas da contemporaneidade e, ao
mesmo tempo, horizontes silenciosos e antigos onde
terra e mar, nômades e navegantes, compartilham o
mesmo destino; estéticas metropolitanas
desmaterializadas e ao mesmo tempo vozes
interrogativas, que não respondem (e se respondem,
nunca chegam a uma conclusão); experiências
visionárias e, ao mesmo tempo, identidades errantes.
Nos interstícios entre os cenários pós-modernos e os
remotos ecos da memória parecem delinear-se vultos e
figuras de uma época livre de esperas, desejos perdidos,
(meta)narrações sensacionalistas, que cancelam e
reconstroem paisagens que nos são familiares. Na
escrita, tempo e espaço se dilatam, se suspendem, se
perfuram, se anulam. Impossível distingui-los um do
outro, mesmo que só por pura abstração: o espaço
assume a forma visível do tempo e o tempo, a forma
visível do espaço.
Movimentos e mutações traçam as margens de um
deserto (não tem importância se é um deserto
metropolitano) no qual a memória de uma experiência
torna-se o infigurável limite de areia que o nada enfrenta
e consome. Desse deserto, tentei traçar o ponto de vista,
a ele externo, que anulou o nomos do espaço . O que
sobra é somente um território intransferível, uma ordem
que o próprio movimento assume ao dar forma ao
espaço: a todo o espaço representável, que, todavia, não
é o único espaço. Nos Gobi metropolitani da nossa
contemporaneidade, nenhum lar é mensurável pelo
fundamento, mas por uma dúvida, por uma reflexão que
contempla cada passagem, sem nunca ser palpável ou
capturável. Assim é o deserto, que chama para fora de si
mesmo, fora do espaço no qual se desenrola e se
consome o tempo.
Ter um olhar novo, tornar-se um olhar novo, deveria
levar a uma assunção plena da mudança. Mas, daquele
olhar, não somos mais capazes. Se o sentir de dentro se
exteriorizou (isto é, não flui mais de um movimento
íntimo), o sentir de fora estranhou-se completamente do
mundo, da vida. O deslocamento do desejo em direção
ao imaterial, não mais como antigamente em direção às
coisas, sela a realização de uma cesura. O corpo deixou
de ser o lugar do sentir. Parece ter se tornado um
território inorgânico, um espaço fechado onde as
experiências, corrigidas do próprio significado, se
despedem do sentir comum. A experiência foi
neutralizada por um formidável processo de
virtualização, de desobjetivação, de desaparecimento
das relações. Expropriados da capacidade de sentir e
alimentar desejos, os corpos parecem cada vez mais as
matrizes biopolíticas instáveis, nômades, dispersas nas
geografias urbanas impensadas.
Nessa paradoxal condição, a própria linguagem
parece ter se arrastado do naufrágio do Eu, esmagado
por um convulsivo e indistinto fluir de coisas, nem
domináveis, nem nomináveis. Gestos e sinais revelam
um radical êxodo da identidade: a identidade de si com a
própria terra-pátria, com a própria linguagem, consigo
mesmos. Nada mais parece ser capaz de expressar a
realidade como ela é. A unidade da pessoa se dissolve
em um brusco descolorir de emoções e reações. As
coisas não estão mais no próprio lugar e a linguagem não
consegue contá-las. Ainda assim,
perturbador/avassalador não é o silêncio da realidade,
mas sim o multiplicar-se de suas vozes, o seu
permanecer embargado, diante de um vazio de
significado, sobrecarregado pela extenuante e
ininterrupta epifania que a cerca por todos os lados.
A linguagem não consegue carregar essa realidade
lacerada, desfeita, furada. Tendo se tornado já um gesto
fonológico, estrutura de separação, não agarra o cone de
sombra que nos tornamos, depois de nos termos iludido
de poder passar e declinar a nossa existência nas
fronteiras da aparência, dos jogos cuja soma é zero de
realizações e dos arbítrios da vontade. Essa condição
indecisa entre conscientização e inconscientização,
sonho e vigília, reflexos e recessos da consciência vai
além de uma linguagem já incapaz de contar o seu sonho
obscuro, a cena na qual somos atores e espectadores de
um drama em que nem mesmo a ciência é estranha.
Geralmente, a colocação em jogo de um livro é a
experiência das vicissitudes da linguagem, da indigência
da palavra e seus limites. Essas páginas levam a uma
nova vida de fraternidades abstratas, pensamentos
arriscados, vozes e sombras que desaparecem no próprio
instante em que se compõem em um sentido. Nessas
inquietas pesquisas reencontro uma tensão em relação à
origem e, por outro lado, um caminho em direção a uma
“palavra” aberta, que é nada mais do que a tentativa de
dizer as coisas mantendo-se distante da chamada ao
fundamento, do pathos da profundidade, das metáforas
prejudicadas por estruturas da verdade. Ter privilegiado a
experiência interior subverteu a relação com a superfície,
inverteu a primazia da profundidade sobre a superfície,
fez com que a superfície fale em nome da profundidade:
gesto, este, que recoloca em questão a primazia que
desde sempre rege o pensamento ocidental, sob o qual a
harmonia interior é encontrada na descida em si mesmo,
no gesto que nos protege de irmos para fora de nós
mesmos.
A subversão do ser e Raízes errantes não são
resumos ou relatórios de uma existência confiados ao
destino aberto dos sinais, mas sim o diário de uma
pesquisa inquieta das leis misteriosas da vida, da
coragem e da esperança de um novo caminho, do
sacrifício daquilo que fui e da dor pela qual passei. Meu
caminho foi somente um caminho. Entre os muitos
possíveis, escolhi aquele indicado pela exatidão da
emoção que me faz espelhar naquilo que ainda não sou.
Isso alimenta o esforço do pensamento que faz mover
novas palavras que o colocam de novo em condição de
agir. Em seu sentido mais radical, pensar é criar novas
formas de pensamento, ir além do próprio pensamento,
objetivando ao outro pensamento: na perfeita
conscientização que poderemos agarrar esse outro
somente dentro e através do próprio pensamento. A
pergunta que angustia desde sempre os filósofos – o que,
naquilo que se pensa, provém de quem pensa e o que
provém daquilo que é pensado? – permanecerá para
sempre uma questão indecidível. Esse paradoxal fardo/
ônus constitui o limite intransponível do pensamento. Eis
por que o pensamento não pode ser um procedimento
cognitivo, um território com soberania científica. Sua
viagem é interminável porque não consegue mais
alcançar o próprio objetivo, que é nada mais do que a
aspiração mais profunda e mais irrealizável do desejo:
aquela que gostaria de, através das peripécias da
viagem, livrar-se desse fardo e reencontrar a
simplicidade da origem.

MAURO MALDONATO
abril/2014
* Texto traduzido por Ornella Accasto Grizante.
Sumário

Apresentação – Danilo Santos de Miranda


Prefácio – Nurimar Falci

IDENTIDADE E LIBERDADE
Fenomenologia de uma mutação
A identidade, o outro, o estrangeiro
O Ulisses errante
Poderes do símbolo
O eu plural e sua sombra
O inquietante estranhamento do familiar
A subversão inaudita
A identidade-limite
A terra de ninguém
A identidade escrita na areia

O NÃO LUGAR DO MUNDO


Instante e penumbra
Intuição e representação
Dom e espanto
Aposta e risco
METAMORFOSES DO TEMPO
A ilusão da simultaneidade e a morte do tempo
Em memória do futuro
Agostinho e a interrogação impossível
O tempo e a metáfora psicopatológica
A hora impermanente no fluxo
Cronotopias
O texto do tempo
Tempo da morte

A PARÁBOLA DE EUCLIDES E O NOMOS DO ESPAÇO


Berlim planetária
Crítica da razão funcionalista
O pharmakon urbanístico
O sagrado desabitado e a deriva dos continentes
simbólicos
A periferia do mundo. Pathogeografias da
modernidade
Fenomenologia do atópico
A loucura e as arquiteturas totais
O espaço errante

Bibliografia
Sobre o autor
Apresentação

É possível subverter a memória, revolvendo o que


permitimos que se ofuscasse, embora não devêssemos
ter esquecido. É possível subverter a identidade,
submergindo, afundando e precipitando-nos sobre o
abismo do próprio eu, expurgando temores, admitindo
riscos e enfrentando-os tanto quanto necessário. É
possível subverter o mundo, movendo-nos contra aquilo
que permanece estático, imóvel, ignorando
indefinidamente quaisquer anseios por mudança. É
possível subverter tempo e espaço, desequilibrando o
insustentável, perturbando o imperturbável, o que não se
desestabiliza, transtornando o que não se questiona, o
que se tem assegurado. É possível subverter
revolucionando o eu em seu conforto ofensivo diante da
intranquilidade do mundo. É possível subverter tendo a
coragem de dizer sim tanto quanto de dizer não, nos
desapegando das certezas e confiando em nossas
dúvidas, antes de tudo.
Eis os convites de Mauro Maldonato neste livro denso
e poético. Ele nos estimula a pensar sobre a experiência
humana no mundo contemporâneo. Para isso, serve-se
da fenomenologia como essência para o entendimento
sensível das experiências vividas, avançando sobre o que
seria uma compreensão meramente cognitiva ou
científica da realidade. Mas o entendimento da palavra
mundo pela fenomenologia em muito se alterou ao longo
do último século. Falamos, assim, de vidas que se
desenrolam em um tempo-espaço fundamentalmente
urbano. E que tempo-espaço é esse, que entrevemos de
forma míope em sua complexidade, sabendo-o
multifacetado, não raro caótico, violento e exigente
quanto ao simples desejo de sobreviver?
É no território da cidade que o homem é absorvido
pela experiência da vida e pela apreensão dos sentidos
do mundo, que Maldonato chama de líricos ou trágicos.
Nesse território, marcado por tempos que não
respondem às dinâmicas da natureza, mas a imperativos
de ordem material, o homem pode encontrar a alegria,
mas conhece o frisson , a urgência, a frustração,
perdendo-se em si mesmo. No tempo-espaço da cidade
temos a relativização das verdades, a fragmentação do
conhecimento, a singularidade de saberes e interesses, o
rompimento frequente com a convenção, a ruptura da
ideia de uma realidade totalizante, visto que o olhar
intransferível de cada indivíduo, a partir de uma lógica e
um contexto histórico-social particulares, constrói
narrativas subjetivas, sem necessariamente ignorar a
perspectiva do coletivo.
Apesar das possibilidades abertas pelas
transformações tecnológicas contínuas, facilitando
deslocamentos e comunicações, essas mudanças têm
instituído questões novas, antes impensadas pela
sociedade, sobretudo no plano da ética, deixando-nos
apenas respostas precárias ou ainda insuficientes. Essa
realidade, própria ao mundo ocidental, redimensiona a
relação do homem não só com o tempo-espaço, mas
consigo mesmo, refletindo na elevação da variedade de
diagnósticos no campo da psiquiatria e requerendo dos
médicos cuidados redobrados para reconhecer e tratar
comportamentos e sintomas que afetam a capacidade
psíquica e emocional dos pacientes.
Porém, longe de serem os insensatos que
correspondem aos estereótipos da loucura, os doentes
em busca de acolhimento podem ser qualquer um de
nós. Daí, observarmos a intensa medicalização da vida,
permitindo depreender que as fronteiras entre sanidade
e loucura encontram-se cada vez mais tênues,
conduzindo aqueles que são vistos como diferentes,
anormais ou estranhos às frequentemente perversas
formas de banimento social.
Este encontro com Mauro Maldonato aponta para os
impasses do homem contemporâneo, sem dissolver no
leitor a esperança de manter-se crédulo, razão que leva o
Sesc São Paulo a publicar A subversão do ser .

DANILO SANTOS DE MIRANDA


Diretor Regional do Sesc São Paulo
Prefácio

A ideia de escrever um livro inédito para o Brasil surgiu


em 2000, a partir de uma longa e animada conversa
entre Mauro Maldonato e eu.
A subversão do ser nasce desse encontro, quando
estabelecemos uma conexão, uma rota singular e
complexa, via correio eletrônico e telefone, ligando o
Mediterrâneo ao Atlântico. Mauro, então, passa a se
dedicar, com grande entusiasmo – diria até com paixão –
à elaboração deste livro, em meio a suas viagens entre
Roma e Nápoles e às atividades multidisciplinares que
exerce, dentre elas a de médico psicopatologista clínico,
em Nápoles, sempre generoso e atento às constantes
solicitações de seus pacientes.
Pesquisador obstinado dos problemas do homem e
do mundo, o narrador participante perde-se no mar das
ideias e das experiências vividas, complexas e plurais,
tentando dar vida a elas: “Penso que o texto contenha
em si muitas e diferentes instâncias: o discurso
epistemológico, a filosofia, a psicopatologia, o mito, o
símbolo, talvez a narração literária de uma experiência
humana sempre vivida no limite”.
Lançado inicialmente em 2001, A subversão do ser
reaparece em 2014 em nova edição pelas Edições Sesc,
das quais Mauro Maldonato se torna autor exclusivo.
Os temas abordados no livro são atemporais, e já
apontam os embriões de um pensamento
intrinsecamente ligado à trajetória de vida do autor.
Questões concernentes à identidade do ser humano, no
sentido mais abrangente, do encontro com outro, do
estrangeiro, aqui abordadas, serão retomadas
posteriormente, e desenvolvidas de maneira mais
aprofundada, no livro Raízes errantes , que também está
sendo reeditado pelas Edições Sesc em 2014. A temática
sobre o tempo, tão apreciada pelo autor, com a qual ele
foi internacionalmente premiado, tem sido
exaustivamente pesquisada e desenvolvida por Mauro
Maldonato, tornando-se uma marca singular desse autor
em diferentes momentos e instâncias, como seminários
internacionais, conferências, artigos e no livro Passagens
de tempo , publicado pelas Edições Sesc em 2012.
As diferenças internas apresentadas em seus livros,
no tocante aos temas e ao estilo, poderiam ser atribuídas
às várias identidades que se alternam em diversos
momentos da vida do autor. “No fundo, penso que este
livro, com todas as suas particularidades, seja, antes de
tudo, autobiográfico”.
E é desse modo que o autor chega ao final da sua
narrativa:

Qualquer história, conto, biografia está inscrita na


temporalização da própria presença. No encontro
com o outro, que é sempre o encontro com o tempo
(mesmo no cone de sombra do sofrimento), o
homem se constitui, a cada vez, como autor do
próprio texto da vida. Na experiência vivida da
própria biografia, torna-se a pôr em jogo as
articulações da temporalidade, novas alquimias,
durante as quais ou ao findar delas poderá surgir
uma história inédita, imprevista, não mais somente
uma reconstituição do passado, mas uma história
inscrita no devir, que já começa a escrever-se no
presente.
Assim, oceanos, continentes e pátrias foram
percorridos e transpostos subvertendo poeticamente o
ser por meio de uma prosa narrativa que nos fala de
identidade, de mundo, de tempo e de espaço!

NURIMAR FALCI
Identidade e liberdade

Não me perguntem quem eu sou e não me peçam


para continuar o mesmo.
É uma moral de registro civil: impera nos nossos
documentos.
Ao menos deixem-nos livres quando se trata de
escrever.
FOUCAULT

Muitos se queixam de que as palavras dos sábios não


passam
de alegorias, não utilizáveis na vida diária – e esta é a
única que
temos. Quando o sábio diz: “Vá para o outro lado”, ele
não quer
significar que se deva passar para o lado de lá, o que,
seja como
for, ainda se poderia fazer, se o resultado da caminhada
valesse
a pena; ele no entanto se refere a algum outro lado
lendário,
a alguma coisa que não conhecemos, que nem ele
consegue
designar com mais precisão e que, também neste caso,
não pode
nos ajudar em nada. Todas essas alegorias, na realidade,
querem
apenas dizer que o inconcebível é inconcebível, e isso
nós já
sabíamos. Porém aquilo com que nos ocupamos
todos os dias são outras coisas.
A esse respeito alguém disse: “Por que vocês se
defendem? Se
seguissem as alegorias, teriam também se tornado
alegorias e
com isso livres dos esforços do dia a dia”.
Outro disse: “Aposto que isso também é uma
alegoria”.
O primeiro disse: “Você ganhou”.
O segundo disse: “Mas infelizmente só na alegoria”.
O primeiro disse: “Não, na realidade; na alegoria
você perdeu”.
KAFKA

[…] Quando os filósofos usam uma palavra – ”saber”,


”ser”, ”objeto”,
“eu”, “proposição”, “nome” – e quando tratam de
apreender a
essência da coisa, então é preciso sempre perguntar:
essa palavra
é realmente usada assim, na língua em que ela se sente
em casa?
– Nós é que acabamos por reconduzir as palavras de seu
uso
metafísico a seu uso cotidiano.
WITTGENSTEIN

D epois de um caminho de milênios, a questão da


identidade humana encontra-se ainda diante de si
mesma, como o reflexo de um enigma. Dos limites
extremos do nosso tempo, a identidade surge como um
conceito indeciso, incerto, enigmático, ainda impensado.
Indiferente às teorias filosóficas e científicas, fugidio
como os segredos guardados, incontornável como seu
sentido, o discurso sobre a identidade impossibilita tanto
a designação de confins estáveis, quanto palavras
definitivas. Jorge Luis Borges disse que a história do
universo é a história de algumas metáforas. Para nenhum
outro conceito isso é tão verdadeiro quanto para a
identidade. Também por isso, talvez, seja ainda
impossível pensar o outro. Com efeito, falar de
identidade para o Ocidente é falar de si mesmo. A
identidade, o eu, a consciência, o si mesmo e o outro são
metáforas com as quais a filosofia e a ciência
designaram a imagem humana, atribuindo um sentido ao
não sentido, uma forma ao incompreensível.
Mas a que aludimos quando falamos de identidade?
A que rigor, a que precisão podem tender as palavras
diante de uma metáfora tão incerta? Como podemos
considerar-nos autorizados a traçar seu retrato? E ainda:
a que enigmas, a que paradoxos conduz sua exploração?
Segregada por muito tempo em rígidas doutrinas
filosóficas e científicas, com o eclipse dos conceitos de
sujeito e consciência e das pretensões racionalistas de
um eu unitário, coerente e permanente no tempo, hoje a
questão da identidade está inscrita num horizonte pós-
metafísico. Não é só a ilusão de uma identidade refletida
no espelho de si mesma o que está declinando, o pano
cai também sobre o que resta da retórica e da metafísica
da alteridade. Enquanto seu discurso for enredado pelas
construções (e constrições) epistemológicas modernas
que fizeram da identidade um novo campo de doutrina
da verdade, nenhuma esperança, nenhuma palavra nos
fará sair da neblina das ilusões construtivistas ocidentais.
O objetivo desta pesquisa não é experimentar novas
definições da identidade, apelar para outros (e novos)
horizontes epistemológicos, indicar critérios alternativos
ou mesmo desconstruir o texto da identidade nas partes
que o compõem. Também não é desmascarar as
censuras e os procedimentos internos de exclusão que o
discurso filosófico e científico estruturou para um projeto
muito preciso. Nossa tentativa consiste em tirar a
identidade do campo teórico que contribuiu para
descaracterizá-la e fazer suas manifestações profundas
aflorarem. De fato, antes que a época moderna
enredasse sua originalidade e criatividade, a identidade
era um pluriverso conceitual ligado a horizontes
imagéticos que não tinham relação alguma com a
idolatria do universal de origem helênica. Com a marca
grega da história ocidental – o sistema do aparecimento
do Uno que reconhece o outro fazendo-o pronunciar
palavras gregas –, o diálogo desaparece e se produz a
absorção de um dos interlocutores.
A viagem que empreendemos neste inquieto
crepúsculo da modernidade, ou melhor, neste pós-
moderno, é uma viagem ao limite do sujeito . Uma
viagem além do sujeito e do objeto. Além da própria
lógica. Não pode existir um caminho lógico para a
identidade humana. Uma viagem pelas sombras.
Primeiramente, pela sombra de nós mesmos. Uma
viagem precária, como a de uma verdade nas sombras.
Uma viagem para além da especialização do saber, longo
arquipélago intrincado, geografia complexa , como
intrincada e complexa é a paisagem que se abre se
apenas provocarmos seus mecanismos internos. Uma
viagem que exige paixão e linguagem motivada, mais do
que uma linguagem que pretenda corresponder à
verdade. Uma viagem, sobretudo, que assume
totalmente a separação entre ela e a realidade. A
pretensão, dialética e científica, de um conhecimento
total que mantivesse unidos sujeito e objeto, espírito e
matéria – o longo caminho da modernidade –,
representou um crepúsculo que perdura até hoje. Mas,
paradoxalmente, é essa queda que torna hoje possível
olhar a escuridão do não saber como uma chance de
libertação. Deixar para trás as pretensões totalizantes do
conhecimento só é possível por meio de uma paixão
desmedida pelo conhecimento, mediante o gesto que o
acompanha até o ponto em que desaparece.
O caminho que iniciamos parte, portanto, de um
abandono preliminar dos paradoxos gerados pela
metafísica da identidade e por seu objeto imaginário 1 .
Considerando não mais o caráter unitário das categorias
“sujeito” e “objeto”, mas a sua vertente sombreada,
contraditória, múltipla. Pensando nelas e,
inevitavelmente, além delas. E, mesmo que no final da
viagem não tiverem sido mantidas as promessas, terá
sido igualmente apaixonante escrever sobre elas. Talvez
nem seja paradoxal afirmar que é exatamente do que
não se pode dizer que se deve escrever. Mas que escrita
possibilita nosso discurso se ele já não pode ser reduzido
a posições puramente epistemológicas e a práticas
especializadas, entre as quais o cientificismo que
confinou e controlou a consciência do ser humano? Como
poderemos evitar a “cortina de ferro” erguida pela
epistemologia a fim de impedir a exploração livre
daqueles territórios onde ainda existe a possibilidade de
reunir a ciência e a filosofia, justamente o que a cultura
sistematicamente dividiu? 2
A pretensão do eu (e sua racionalidade inquisitiva) de
compreender o mundo com base em fundamentos
indiscutíveis constituiu-se e se erigiu em um tremendo
processo de recalque 3 . Esse gesto, como mostrou Aldo
Giorgio Gargani, permitiu que a epistemologia clássica
encenasse o teatro da subjetividade autocentrada sem
tomar parte dele. Mas, sobretudo, que ela descrevesse o
mundo sem dizer nada do sujeito que o descreve. É com
esse gesto que o eu, por meio do olho que observa,
descreve, cataloga, tornou-se a fortaleza vazia na qual o
“moderno” segregou a multiplicidade. Mediante
paradigmas e instrumentos extremamente refinados – os
sistemas axiomáticos, a demarcação das raias do dizível,
os critérios de significado, o normativismo processual, o
convencionalismo epistemológico 4 e outros mais –, a
ciência, a filosofia e o direito atuais atingem seu objetivo.
Jacques Lacan e Ignacio Matte Blanco mostraram,
embora a partir de perspectivas diferentes, que o dever
da epistemologia não é espelhar as coisas descrevendo-
as, mas conduzir o pensamento até os limites extremos
da linguagem. Com sua teoria bilógica , Ignacio Matte
Blanco abriu a experiência clínica ao uso da contradição
como chave de acesso ao inconsciente, quebrando a
solidariedade ontológica entre as diversas instâncias da
identidade. A dissolução do fantasma da unidade-
identidade 5 , o desmoronamento do modelo do eu
piramidal, o extinguir-se de uma gramática da identidade
que via “[...] no vazio do sujeito a prova irrefutável de
uma lógica puramente reflexiva da interioridade” 6
deixam como herança uma paisagem confusa,
fragmentária, mas nem por isso infecunda. O fragmento
retorna como sentido e valor em si, possibilidade de
abertura inesgotável, espaço de leituras múltiplas que se
entrelaçam com ele. A quebra da unidade-identidade-
totalidade em tantos pedaços quantos são os pontos de
vista das diversas disciplinas solicita agora que sejam
deixados para trás os convencionalismos formalizados e
se adote uma linguagem divergente, e não ancoragens
fixas. Enfim, um movimento copernicano que resgate
aquelas partes da existência aparentemente destituídas
de sentido, contraditórias, “irracionais”, que a geometria
das paixões manteve por muito tempo à margem.
A psicanálise, que em algumas de suas declinações
havia escolhido o caminho das identificações múltiplas e
das assimetrias constituintes , parece hoje exposta às
insídias naturalistas, indiferentes aos fluxos profundos de
desestruturação e recomposição da identidade. Na
tentativa de curar a ferida originária de uma legitimação
científica falha, a psicanálise desistiu de procurar os
sendeiros de novas experiências do pensamento,
recaindo – ela mesma, ciência dos limites, nascida no
crepúsculo da metafísica – no paradoxal destino do
cientificismo pelo qual, na origem, ela havia sido
duramente criticada. À medida que os estudos
psicanalíticos se conformaram aos modelos dominantes,
a fim de adquirirem sua dignidade científica, acabaram
normalizando-se, expelindo seus conteúdos mais
originais. Isso, aliás, já estava inscrito em seu
nascimento: a psicanálise, tornando-se uma biologia da
psique 8 , teria perdido seu poder subversor e se
dissolvido na névoa metafísico-moral, jogos de
dissimulação em que a superfície assume as
características de um encobrimento da profundidade.
Na teoria psicanalítica da última metade do século XX
, tanto o discurso da chamada “psicologia do ego”
quanto aquele baseado na ideia do self tiveram como
núcleo “metafísico” uma representação intimamente
coerente, coesa, contínua. A evidência dos processos de
“cisão”, de “negação”, de “projeção” ou, mais
geralmente, das dinâmicas entre as diferentes personae
psíquicas que habitam o inconsciente não bastou para
levantar dúvidas sobre a existência de uma unidade
coerente. Embora na atividade psíquica inconsciente os
confins da identidade sejam sempre incertos, como,
aliás, são os conteúdos que aí residem 8 , ou mesmo que
no lugar sem tempo e sem espaço do inconsciente não
haja vestígio dessa unidade. Ao longo desse caminho, a
identidade tornou-se a representação de uma ausência,
um local desabitado, quanto mais nos aproximamos do
núcleo, cada vez mais vazio – um lugar povoado por
fantasias onde ecoa uma aparência que pretende ser real
9
.
Depois de ter desempenhado uma importante missão
crítica inicial , a psicanálise parece hoje não perceber a
dissolução da díade consciência-inconsciente e,
sobretudo, a crise de um modelo de inconsciente
considerado o lado invisível de um psiquismo consciente.
Ter abrandado a exploração desse espaço inobjetivável,
dessa insuprimível ulterioridade (sobre a qual o próprio
inconsciente se rege), em troca da adesão aos
procedimentos e aos critérios nosográficos, custou à
psicanálise sua deriva para uma psicologização do
inconsciente 10 . Um risco já lucidamente previsto por
Lacan 11 .
Isso, todavia, não impediu que a psicanálise
penetrasse as dinâmicas fundamentais da constituição
individual em seus processos de identificações múltiplas
e nas negocia ções dos conflitos que essas mesmas
identificações provocam 12 . A existência do inconsciente,
da pluralidade das instâncias que o povoam (Id, Ego,
Superego, cada uma das quais persegue o próprio
objetivo), mostra a fragilidade das representações
unitárias, compactas e coerentes da identidade. Liberar o
discurso analítico das aporias monísticas e inaugurar um
horizonte de pesquisa aberta e inconclusiva, de um self
desunificado e dialógico, não mais hierárquico 13 , é o
desafio que a psicanálise, em todas as suas articulações,
é chamada a responder.
FENOMENOLOGIA DE UMA MUTAÇÃO
Com o valor da passagem da visão ptolomaica do
universo à copernicana, no final do século XIX , Husserl
coloca a experiência vivida no centro da investigação
filosófica. Esse gesto marcará profundamente toda a
filosofia do século XX . A experiência vivida será a estrela
que orientará o caminho de toda a reflexão
fenomenológica. Se, de fato, com o penso, logo existo
cartesiano toda a realidade do intelecto humano é
questionada (exceto o próprio intelecto), agora se poderá
dizer “sinto algo, logo existo”; e, existindo, faço
experiência daquilo que sinto no encontro com o outro e
com o mundo. Agora poderei esclarecer a mim mesmo
aquilo que sinto, poderei expressá-lo e restituí-lo assim
como se expressa na rede intencional da minha
consciência, com a unicidade da linguagem que invento
e me socorre. É uma experiência radical. Principalmente
se os fatos já foram, em seu decorrer, vividos, como no
encontro psicopatológico. Desse modo, se o vivido só
pode ser conhecido por meio do vivido, eu só poderei
compreender quando reviver dentro de mim mesmo algo
que esteja relacionado com o que o outro está me
comunicando.
Foi Karl Jaspers quem designou a psicopatologia
como conhecimento do vivido por intermédio do próprio
vivido. Foi ele quem indicou o caminho – bem diferente
do escolhido pela ciência para estudar, conhecer e
reproduzir os fatos empíricos do mundo físico – que hoje
nos leva a esclarecer que, se é verdade que o jogo
interno das sinapses é um dado incontornável, também é
verdade que a experiência a que chamamos “sintoma”
pertence a uma ordem de coisas infinitamente mais
complexa. O acesso ao vivido por trâmite do próprio
vivido abre uma ampla frente de conhecimento e liberta
a experiência do encontro com o outro das hipotecas
científicas que sacrificam a verdade do vivido no altar do
fato objetivo. Foi nesse terreno que amadureceram os
gestos decisivos da intuição, do olhar, da visão como
capacidade de transfigurar o invisível, de resgatar a
forma interna das coisas, de intuir e constituir a estrutura
da experiência: de uma experiência qualquer, mesmo de
uma experiência delirante ou alucinatória. A franja
subliminar em que tudo isso sucede não é o campo
luminoso por onde o discurso sobre a mente humana foi
conduzido, mas, quando muito, o limite de uma
penumbra que permite visualizar os contornos e os perfis
de uma figura.
A fenomenologia apareceu no século XX como o
caminho adequado para dar nome à experiência vivida,
até suas tramas mais profundas. Desde então, muita
água correu debaixo da ponte. Depois de um período de
expansão, mais ou menos paralelo à expansão da
psicanálise, a fenomenologia conheceu (nos anos 1950 e
1960), também com grande variedade de estilos, uma
vasta difusão nos ambientes alemão, francês, holandês,
norte-americano e italiano. Muitos dos expoentes da
chamada antipsiquiatria (de Laing a Basaglia) de fato
tinham na fenomenologia a própria retaguarda teórica e
prática. Sucessivamente, num clima de progressiva
regulamentação e de restauração das categorias
biológico-nosográficas, a fenomenologia quase se
eclipsou, transformando-se em corrente, em saber de
caráter quase iniciático, cultivado apenas por poucos
psicopatologistas, que continuaram suas pesquisas com
procedimentos quase artesanais em relação aos que, ao
contrário, escolheram os horizontes mais gratificantes do
organicismo e da mais moderna biologia molecular.
Assim, defendendo a experiência humana de sua violenta
redução a material objetivo, a cifra bioquímica ou a
constructo metapsicológico, a fenomenologia rivalizará
continuamente com a potência vital da psicopatologia.
Na segunda metade do século XX , exatamente
quando a fenomenologia parecia destinada ao fim, algo
novo ocorreu, em silêncio, sem rumores nem furores
revolucionários. A expansão dos paradigmas
farmacológicos e reabilitativos corresponde a um
desmantelamento das tradicionais barreiras que, desde
sempre, separaram sujeito e mundo, sonho e realidade,
eu e você, intelecto e emoção, cérebro e mente, psique e
soma, loucura e normalidade. Tudo ocorre numa
atmosfera de transição crítica, de declínio rápido dos
tradicionais paradigmas filosóficos e científicos. A
começar por aqueles inerentes à identidade humana. A
predominância da comunicação por imagem em relação
aos conceitos e às linguagens, a massificação e seus
contramovimentos de pesquisa de originalidade e
autenticidade, a desmaterialização da experiência e, por
último, a explosão do virtual e da comunicação mediática
e em rede restituíram à fenomenologia muitas cartas
para ainda serem jogadas. Esse clima de efervescente
fermentação torna hoje necessárias conceituações
radicalmente novas. Mas, sobretudo, torna necessária a
redefinição de expressões como “experiência vivida” e
“conhecimento”. Nessa mudança radical, o encontro
individual com o homem continua sendo a tarefa
decisiva, o paradigma inevitável de cada pesquisa: a
experiência vivida e a penetração intuitiva são os pontos
críticos nos quais se rompem as presunções
sistematizadas do conhecimento e as arquiteturas de
representação.
Constituída originariamente como tentativa de
retorno às próprias coisas , a fenomenologia parece, hoje
– no tempo em que todos os aparatos cognitivos, mesmo
os mais sensíveis e sofisticados, como o constructo
psicanalítico, parecem oscilar num impasse paralisante –,
o único pensamento capaz de abrir novos caminhos de
pesquisa. Mas o que significa, para uma investigação que
se pretende teoreticamente ateorética, interrogar-se
sobre a experiência vivida e sobre o problema do seu
conhecimento? O gesto fenomenológico que vai até o
limite das próprias coisas evidencia a ingenuidade de
uma visão direta do objeto. O olhar fenomenológico
questiona a representação e o seu objeto teórico,
denunciando a propensão a contemplar o objeto como
uma abstração, uma visão parcial do ser, um
esquecimento de sua verdade, que se poderia dizer em
termos modernos 14 .
Após Lévinas, a pesquisa fenomenológica não pôde
mais ser a mesma. Sem dúvida, tornou-se mais difícil
fazer frente a uma dissolução tão radical de seu objeto
teórico. Mas, apesar das mudanças dos tempos, da
época e das tendências, o espaço do encontro ainda é,
para a identidade, um imenso recurso teórico e empírico.
Será assim também quando espaço, tempo e mundo
forem abissalmente diferentes dos atuais. Duas pessoas
se encontrarão para dialogar e sentirão algumas coisas.
Esse encontro será marcado pelo ritmo, pela atmosfera,
pela linguagem e pelas imagens que cada um desenhará
por si mesmo, a cada vez. O encontro continua sendo,
para além de toda a epistemologia, o imenso campo de
experimentação da experiência e do conhecimento . Isso
continua válido mesmo que essas expressões ainda
conservem uma forte carga de ambiguidade, de
indeterminação semântica e de obscuridade.
O vivido e o seu conhecimento – ou melhor, o
conhecimento vivido – representam, de fato, a vexata
quaestio das múltiplas declinações desde os saberes
sobre a mente até o comportamento e tudo o que
concerne à experiência interior do homem. O
desmoronamento dos diques conceituais e a
fragmentação das conjeturas científicas desobstruíram o
território, tornando o caminho do conhecimento mais
fascinante e livre. O problema de como se podem fazer
asserções que tenham relação com os estados
emocionais e de consciência sentidos por outra pessoa
ainda está longe de ser solucionado. Após a tematização
da linguística, da filosofia da linguagem e da psicanálise,
a questão tornou-se ainda mais complexa, apesar das
muitas tentativas de neutralização da multiplicidade da
experiência interior do homem. A própria história da
ciência mostra, aliás, o quanto é improvável tal tentativa.
Se o mundo físico é demasiado complexo para poder ser
compreendido com o auxílio dos métodos racionais, os
mundos do pensamento, das emoções e do desejo o são
em medida extremamente maior.
Tudo isso suscita algumas perguntas embaraçosas.
Como é possível que, após o crescimento desmedido dos
enigmas e das interrogações das ciências físicas sobre si
mesmas, esse pseudopluralismo seja ainda mais
triunfante que o positivismo em seus primórdios, e num
campo como o psíquico, por definição inverificável? Por
que, apesar das dificuldades – nos procedimentos, nos
métodos –, o paradigma científico ainda é amplamente
dominante? Por que, numa época que pretende ser de
conhecimento sem fundamento , o discurso sobre a
identidade humana submete-se às leis e às ordens das
ciências exatas ? De onde provém essa legitimação, esse
poder incontrolado, quando diariamente o estatuto
epistemológico que rege aquelas ciências é violado? A
questão continua aberta, cravada como um espinho no
costado do saber moderno.
Apesar de tudo, o discurso sobre a identidade
continua a nos interrogar, mas, contudo, em outra
vertente. Os próprios conceitos de superfície e
profundidade são questionados e exigem nova
interpretação. Não é mais plausível, realmente, reduzir
as interações dinâmicas da psique a uma hermenêutica
da “superfície”, à retórica da “profundidade”. Trata-se de
pensar outra “profundidade”, transfigurada na superfície,
que se torna, como por paradoxo, essa mesma superfície
“por profundidade”. O fim dos paradigmas unitários
atribui à identidade um natural “espaço de diferença”.
Não de uma diferença como um atalho entre as duas
coisas. Ou, segundo a conhecida tese heideggeriana,
como diferença ontológica entre ser e ente: tal conceito
de diferença anula as oposições que pretende
compreender. Trata-se de pensar uma diferenciação
contínua, diferença da “diferença”, num espaço sem
mediação e sem comunhão. Um espaço trágico, sem
nada que o sustente, exposto, muito além de Bonhoeffer
15
, à falência do eu e do mundo. Um só eu , na vertigem
da sua auto-nomia , que é ao mesmo tempo sua força e
sua fraqueza.
“A partir de qual a priori histórico’ ’, pergunta Michel
Foucault, “foi possível definir o grande tabuleiro das
identidades distintas que se estabelece sobre o fundo
confuso, indefinido, sem fisionomia e como indiferente,
das diferenças? A história da loucura seria a história do
Outro – daquilo que, para uma cultura, é ao mesmo
tempo interior e estranho, a ser, portanto, excluído (para
esconjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o porém
(para reduzir-lhe a alteridade); a história da ordem das
coisas seria a história do Mesmo – daquilo que, para uma
cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser,
portanto, distinguido por marcas e recolhido em sua
identidade” 16 .
Às pretensões totalitárias da tradição parmenidiana é
estranha a relação com o outro, a solidão e a moralidade
do existente. O “[...] intrépido coração da Verdade bem
redonda” 17 de Parmênides, sua imagem de corpo-prisão,
trai a necessidade de um universo de formas fixas e
eternas, indiferente ao tempo, que é movimento, ciclo de
nascimento e morte. Sem temporalidade,

[...] pois ente a ente cerca./ Além disso, imóvel, nos


limites das grandes amarras,/ fica sem começo, sem
parada, já que origem e ocaso/ muito longe se
extraviaram, rechaçou-os Fé verdadeira./ O mesmo
no mesmo ficando, sobre si mesmo pousando, e
assim, aí fica firme, pois poderosa Necessidade/
mantém as amarras do limite, cercando-o por todos
os lados,/ porque é norma o ente não ser inacabado./
Pois não é carente, [não] sendo, careceria de tudo 18 .

Evidentemente, Parmênides designa uma identidade


com formas e relações perfeitas, que exigem uma ordem
lógica e um espaço geométrico: um só espaço para as
coisas espaciais, um só tempo para as coisas temporais,
uma só verdade para as coisas verdadeiras. É estranha
para ele a ideia de um espaço atributo de uma
experiência vivida , do tempo como signo de um
acontecimento, da verdade como sinal de um
julgamento. Parmênides protesta veementemente contra
o horror da decadência, do envelhecimento, do destino
mortal do homem. Nessa revolta, chega até a negar a
incompletude da vida individual – ele a desconhece como
causa do destino mortal. A morte supõe a individuação. E
a individuação é completamente diferente da perfeição;
é separação, dor, queda no mundo, regressão,
dissolução. A existência individual começa com um
tremor emotivo e é acompanhada até o fim pelo terrífico
e pelo amor, pela angústia e pela serenidade, pelo
incompreensível e pela instabilidade. A existência é um
movimento emocional sempre distante do equilíbrio, uma
ressonância de coisas e fatos, sobressaltos, tremores,
instabilidade permanente.
A totalidade parmenidiana, que compreende o todo
como unidade, está na origem dos movimentos
desagregadores, que provocam as separações (da
mesma unidade da qual faziam parte até então) dos
fragmentos e das experiências psíquicas vitais. Mas a
que corresponde a inclusão da identidade na totalidade?
Por que o pensamento tende a identificar-se com o ser,
constituindo-se contra a multiplicidade? E o que se pode
entender racionalmente por totalidade? Em suma, o que
é o todo? Ocorre-nos a imagem de Franz Rosenzweig:

Esta parede, pelo resto vazia, é uma imagem não


inadequada daquilo que resta do pensamento
quando o separamos de sua multiplicidade
correlacionada ao mundo. Não que nada reste, mas
sim alguma coisa completamente nova, a unidade
desnuda. Se a parede não existisse, não se poderia
pendurar o quadro, mas a parede não tem nada em
comum com o quadro. Ela não teria nada a opor, se
além daquele se pendurasse outro quadro, ou se
pendurássemos um em lugar de outro. Ao passo que
de Parmênides até Hegel, segundo a concepção
dominante, a parede era considerada pintada em
afresco, de maneira que parede e imagem
constituíam uma unidade; mas agora, ao contrário, a
parede em si é uma unidade, a imagem em si é
multiplicidade infinita, totalidade que exclui para fora
de si, o que, no entanto, significa: não uma unidade,
mas um uno, uma imagem. [...] Não se pode ainda
examinar a fundo onde residiria aquela unidade à
qual agora só está ligado o velho conceito de lógica,
e que não conhece nem reconhece nada além de si
mesma. O mundo, precisamente por ser na medida
em que é mundo de Parmênides a Hegel tem, de
todo modo, aquela unidade não dentro, mas fora de
seus muros. Nele o pensamento tem direito de
cidadania, mas o mundo não é o Todo, mas uma
pátria 19 .

Na esfera compacta e imóvel de Parmênides, na


lógica que não reconhece nada externamente a si, a
relação com o outro é estranha. O pensamento da
alteridade tem origem na solidão absoluta. Quem é esse
outro eu que se decompõe em seu espelho múltiplo, que
encontra a si mesmo num jogo um tanto paradoxal e
estranho? Parece impossível responder a essas velhas
perguntas mediante gestos renovados de “fusão
construtiva”, tão insensatas quanto evanescentes
“plenitudes”. Seria impossível mesmo forçando o
discurso racional até suas raias extremas: a identidade e
seus diversos nomes continuariam um enigma, vestígios
de algo intangível.
Aqui é preciso esclarecer que nenhum discurso sobre
a alteridade e nenhuma crítica ao “preconceito
identitário” poderão ocorrer sem que se questionem mais
uma vez as ligações ocultas que, por muito tempo, a
fenomenologia clássica – por meio dos conceitos de
Erlebnis (experiência vivida) e Erfahrüng (fazer
experiência) – manteve com o subjetivismo que declarou
combater. De fato, permanecer ainda naquele mesmo
horizonte metafísico – no qual o cogito (a certeza do eu )
e a experiência vivida (a forma fundamental do ser-
homem) se tocam – significa comprometer a
possibilidade de um pensamento radical. Esse
esclarecimento não é exigido apenas pela dificuldade
teórica de reduzir o outro e o mundo ao juízo do
fenomenólogo, mas também pela incerteza, pela
exiguidade do material dessas convenções. Em suas
consequências extremas, a redução fenomenológica,
sem um envolvimento existencial na experiência de si
mesmo, sem subtrair a experiência da teoria e da
subjetividade, é apenas mais um ato de violência contra
o existente. Apenas um gesto plenamente liberado pode
garantir a autonomia do encontro. Ficarmos incertos e
indecisos nesse território significa expor o encontro a um
risco fatal. O percurso e o discurso do encontro decorrem
da decisão de obter essa liberdade, de renunciar a dirigir
a vida por meio de outros gélidos intelectualismos.
Fica claro então por que o conceito de Mitsein – o
“com” e o “nós” da coletividade – não vai além da ideia
solidária da relação com o outro. Jacques Derrida
esclarece bem essa passagem da obra de Lévinas:

[...] Face a face sem intermediário nem comunhão .


Sem intermediário e sem comunhão, sem mediação
nem imediação – essa é a verdade de nossa relação
com o outro, a verdade pela qual o logos tradicional
é para sempre inóspito. Verdade impensável da
experiência viva à qual Lévinas retorna
continuamente e que a palavra filosófica não pode
tentar acolher sem mostrar logo, em sua própria luz,
algumas fissuras providenciais e uma rigidez que
havia sido tomada por solidez 20 .

Lévinas lança a semente de outra ideia de encontro,


que é uma saída para qualquer relação conceitual com o
Mesmo. O eu e o outro, aqui, não se deixam confinar
dentro de uma filosofia da intersubjetividade, de um
conceito de encontro e de relações neutras. Aqui não tem
mais sentido perguntar-se qual é esse encontro: porque
cada encontro é o encontro, única saída, única aventura
possível fora de si em direção do imprevisivelmente
outro . É uma aventura sem espera, sem esperança de
retorno. Mas nem por isso desesperada. Lévinas fala de
uma “[...] escatologia sem esperança em si ou sem
liberação em relação a meu tempo” 21 . Para que o outro
possa falar de si, portanto, não se lhe poderá opor o
logos . Nesse caso, acabaríamos no antigo e cego atalho
que quer o outro identificado com o mesmo, já que o
puramente outro – ficando no campo das forças da ratio –
é ilusório: isso pode acontecer, de fato, apenas como
pathema 22 .

A IDENTIDADE, O OUTRO, O ESTRANGEIRO

Mas o que era a identidade antes dos gregos, antes de


uma vigorosa reductio ad unum de tudo o que era
distinto e radicalmente separado? Isto é, antes do
advento do discurso racional, quando o mito habitava o
mundo e os espaços vitais eram constelações de ilhas
“esporádicas”, originais, dispersas, disseminadas nos
diferentes dialetos? Não poderemos ter nenhum acesso a
nós mesmos, à identidade que carregamos conosco tão
naturalmente – a identidade dos homens de uma
modernidade tardia –, sem retornar, ainda que
brevemente, aos vestígios originais da civilização
ocidental. Em O homem e o tempo, Henri-Charles Puech
mostrou-nos de forma brilhante como a narrativa do
homem primitivo, sua identidade, estavam inscritas nos
ciclos do cosmos, correspondiam às formas da natureza –
o sol, as constelações, os planetas, o céu, a terra. As
populações primitivas vagavam numa terra claramente
ligada a um céu inatingível e ilimitado. Se o céu era o
reino do eterno, a terra era o da morte: não dos modelos,
mas do destino mortal. “Para que germine, a semente
deve morrer, assim como todas as coisas vivas têm
origem na corrupção, como toda vida futura deve ter
início no sacrifício da vida presente e toda a vida terrena
deve terminar com a morte” 23 .
Na Epopeia de Gilgamesh 24 , a obra suméria que
marcou mais profundamente o imaginário
contemporâneo, Utnapishtim (equivalente a um Noé
sumério) diz ao herói:

Não existe permanência. Acaso construímos uma


casa para que fique de pé para sempre, ou selamos
um contrato para que valha por toda a eternidade?
Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam
mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio
dura para sempre? Somente a ninfa da libélula
despe-se da larva e vê o sol em toda a sua glória.
Desde os tempos antigos, não existe permanência.
Como são parecidos os adormecidos e os mortos,
eles são como um retrato da morte. O que divide o
servo e o senhor depois de ambos terem cumprido
seus destinos? Quando os Anunnaki, os juízes do
mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe
dos destinos, juntos eles decidem a sorte dos
homens. Eles distribuem a vida e a morte, mas o dia
da morte eles não revelam 25 .

Gilgamesh, figura mítica de guerreiro poderoso e


selvagem, conhece a dor da morte. Assim como Aquiles
chora por Pátroclo na Ilíada , Gilgamesh verte lágrimas
de piedade por Enkidu, num lamento fúnebre intenso e
amoroso, impensável para aquela primeira civilização,
que movia ao pranto todos os homens da cidade de Uruk.
Por muitos dias Gilgamesh chora sobre os despojos
mortais de Enkidu, antes de lhe dar sepultura no Kur (o
Hades da mitologia grega), o lugar extremo para aonde
vão as almas dos mortos.
Os sumérios, mesmo que sejam tradicionalmente
identificados com a coragem, a inventividade e a força
bélica, tinham como tema central de sua civilização a
consciência do destino mortal do homem. A força
agressiva dos grandes guerreiros (como Gilgamesh) e o
conflito permanente entre eles deixavam intacta a
solidariedade das cidades-estados da Suméria 26 e sua
pertença a uma só cultura. Nem para a cidade nem para
o guerreiro pode haver vitória permanente. O
reconhecimento do outro, a pertença a um destino
mortal comum, à imediatez do fim da vida terrena,
faziam da cidade o espaço mais próximo do céu. E nesse
espaço se dava o reconhecimento pleno do outro.
Corresponder aos movimentos da natureza era o reflexo
de uma necessidade “sagrada” mais profunda, quase o
fazer parte do cosmos, de um elemento poderoso, de um
ressoar profundo e espontâneo que está na base do
pensamento e da linguagem, como também de toda
religião. É aqui, nessa metáfora, nessa região de mistério
e transcendência, que o nosso olhar sobre o mundo
continua sendo, de tantas maneiras, o mesmo de nossos
ancestrais. Por isso suas emoções ainda são nossas
também.
Antes do surgimento da polis , o mundo oriental
mediterrâneo era marcado por uma intensa relação com
o religioso.

A religião de mistério, escreve Ernesto de Martino,


uma vez superada a fase estritamente agrária, era
naturalmente destinada a satisfazer as aspirações
daqueles que não tinham encontrado na religião
olímpica uma solução adequada para o problema
escatológico ou daqueles que tinham sido excluídos
do culto da polis . Sua origem agrária e rústica se
refletia, portanto, na persistência orgiástica dos ritos
e no grande número de gnomos e demônios de turva
representação mítica que ela acolhia, os quais,
desdenhados como eram pelos poetas, nunca
puderam tirar proveito da virtude apaziguadora do
canto. Como tal, a religião de mistério estava em
conflito com a religião olímpica, quase livre de
preocupações escatológicas, entrelaçada às
vicissitudes políticas da cidade, notabilizada pela
obra de poetas e filósofos; um conflito contínuo e
variado que se resolveu a favor da religião de grau
cultural mais elevado, quando a cidade se tornou um
sólido organismo político 27 .

Com o aparecimento da polis , começa um processo


de ingerência do Estado em todas as formas de culto.
Escreve Riccardo Di Donato:

A tradição afirma que durante a Batalha de Salamina


(480), de Elêusis partiu o grito Iakchos, Iakchos ,
benfazejo para os guerreiros gregos, que depois se
tornou o nome de um demônio: logo, não somente os
deuses olímpicos, mas também as divindades míticas
se envolviam fortemente no desfecho das batalhas
que tinham por fim a salvação da pátria. De resto,
esse processo de estatização cumpriu-se
ininterruptamente durante todo o século V . Dos
quatro epimeletes dos Mistérios, dois eram
escolhidos entre as famílias sacerdotais de Elêusis
(um para os Eumólpidas e um para os Kericios), mas
dois eram da polis ; o arconte-rei com dois de seus
pares recebia as terras pertencentes aos templos;
finalmente, todos os magistrados do Estado
tomavam parte nos Mistérios. Essa ingerência do
Estado, que culmina com o ordenamento da aparchai
, tinha suas razões políticas: a democracia se servia
dos Mistérios de Elêusis para nela inocular as
correntes místicas exóticas 28 .

Com a polis , inicia-se não apenas o declínio do poder


do pensamento mítico e das leis de liberdade dos gregos,
mas também a conquista e a racionalização das diversas
formas de culto.

A aischrologia, aischrourgia, o tothasmos foram


perdendo lentamente seu significado religioso,
transformando-se nas licenças dos simpósios, na
comédia ou na animosidade plebeia em relação aos
poderosos de que se faz menção na segunda glosa
de Esíquio. Por outro lado, perfilava-se o ideal cívico
do homem de bom gosto, cujo espírito nunca é
inconveniente ou grosseiro 29 .

A passagem do período arcaico ao período clássico


realiza-se com a neutralização do “religioso” e a
purificação das representações míticas dos deuses: em
suma, o legislador bane da polis toda forma de culto. O
aparecimento da organização coletiva da polis e da
identidade pública, que dela se origina, abre um conflito
entre a liberdade e a autonomia individual (da qual o
“religioso” é elemento central) e a lei e a ordem da
cidade. Com essa passagem, que leva a uma
radicalização extrema da ideologia da polis , começa a
delinear-se precisamente o perigo da democracia
ateniense: a tirania. É nesse contexto histórico-ideológico
que Sófocles traça a fenomenologia do tirano em suas
obras Antígona e Édipo-rei .
É em Antígona , talvez mais do que em Édipo-rei ,
que se podem distinguir os traços essenciais da
concessão do governo da polis . O “discurso do bom
governo” de Creonte – elemento central da tragédia
sofocliana – pode ser tema para o topos da política
ateniense: a lealdade absoluta em relação à cidade; a
superioridade da polis em relação a qualquer outro valor
(mesmo a lealdade aos parentes e amigos); a
necessidade de as relações pessoais serem definidas no
interior da estrutura da polis ; a distinção entre patriotas
e traidores (de fato, a Etéocles, morto pela pátria, é dado
sepultamento, enquanto ao “traidor” Polínice é negado);
o exercício dos encargos públicos como medida de valor
de uma pessoa; a religiosidade como vínculo absoluto
dos deuses à polis , como no caso da guerra contra os
Sete. Se, por um lado, as declarações de princípio de
Creonte parecem completamente conformes ao senso de
um bom cidadão da polis , por outro, elas deixam
entrever distintamente a natureza despótica e tirânica da
racionalidade política da polis encarnada em sua figura.
A fenomenologia de Creonte, que Sófocles descreve,
possui os traços inconfundíveis e “[...] constitutivos da
figura do tirano e que podem ser brevemente
recordados: crueldade, ira, transgressão, avidez, rigidez
dos comportamentos, medo de complôs, incapacidade de
comunicação” 30 .
A ação cênica é famosa: para a sentinela que cita a
tentativa anônima de dar sepultura a Polínice (um gesto
que transgride as leis da polis ), Creonte, governante de
Tebas, explode numa reação furiosa, que anula qualquer
dimensão ética ou religiosa. Somente a Creonte é dado
decidir sobre os valores de que é vedado prescindir. Em
Creonte está encarnado o saber-poder que se identifica
com os valores supremos da polis . Com a prisão de
Antígona, o tirano mostra toda sua desumanidade. A
ideologia do bem público perde a máscara e desnuda o
poder pessoal do tirano, a face violenta de sua lei e de
seu governo. Como nos mostram a hermenêutica e a
filologia de gerações inteiras de estudiosos, Creonte se
identifica com o bem da cidade e a legitimidade de seu
poder prescinde do consenso dos cidadãos.
“A cidade”, pergunta, “não pertence a quem a
governa?”
Seu despotismo e sua tirania são conscientemente
cruéis. Se por um lado Creonte manifesta em palavras
respeito pelos deuses, por outro, considera o culto a
Hades “uma tarefa vã”. Nem a Tirésias, que lhe pede
para revogar sua cruel decisão de impedir a prática do
culto dos mortos, ele dá ouvidos. E irrita-se
ameaçadoramente com o pedido. Com seu gesto de dura
e expressa recusa das práticas sagradas, Creonte
radicaliza, forçando o cumprimento das características da
polis : uma organização total de governo que ignora e
anula os valores consolidados pela medida, pela
moderação e pelo divino, que sempre transcende os atos
humanos.
Com Antígona – mas o discurso concerne também a
Édipo-rei –, Sófocles descreve a parábola democrática
dos governantes que, em nome das leis e do interesse da
polis , “[...] se transformam em déspotas arrogantes e
tirânicos que sobrepõem seu domínio aos interesses da
cidade, até a catástrofe final na qual matura a
consciência dos próprios erros e do próprio destino” 31 .
Sófocles chama também a atenção do público de Atenas
para os riscos da involução tirânica que sempre
acompanham a democracia. O conflito entre as leis não
escritas de Antígona e as leis da cidade, com cuja força
Creonte veta o sepultamento de Polínice, é reconhecido
por toda a tradição interpretativa de Antígona , a
começar pela leitura de Hegel. Mas a interpretação não
pode limitar-se à tensão genérica entre as categorias
modernas de família-estado, religião-política, liberdade
individual-razão de Estado. Seu gesto, de fato, não é nem
pode ser uma exigência jurídica. O contraste entre a lei
cidadã (o decreto de Creonte) e as leis não escritas (que
tornam natural o sepultamento de Polínice) não define
apenas o conflito entre diferentes tradições legislativas:
de um lado, os agrapha nomina , os imperativos éticos
universais que transcendem os indivíduos, as normas
religiosas genéricas que obrigam os vivos a sepultarem
os mortos; de outro, o direito codificado da polis e as
decisões da autoridade política. O gesto de Antígona é
um crime sagrado, um humaníssimo ato de amor
fraterno por Polínice, que faz da culpa um ato da mais
alta justiça e de seu sacrifício, de sua morte, uma
afirmação de vida. Nessa responsabilidade, nesse dom
supremo, na impossibilidade de deixar o outro só,
sozinho diante do mistério da morte, está a grandeza de
Antígona. Ela morre e, ao morrer, faz a vida triunfar
sobre a morte, faz triunfar a intangível lei divina, seu
absoluto e individual direito natural, sobre a ímpia lei da
cidade. Certamente, contra seu sacrifício ergue-se a
cidade. Mas quem fica enterrada viva é a própria vida,
uma vida convertida em morte viva.
Imortalizada por Sófocles em seu ato de revolta e
piedade, Antígona ficará para sempre no imaginário e na
memória profunda do Ocidente, na história de nossa
consciência filosófica, literária e política. George Steiner
escreveu sobre esse assunto e disse que “[...] a um único
texto literário foi concedido expressar todos os temas
principais do conflito existente na condição humana:
aquele que opõe homem e mulher, juventude e velhice,
vida e morte, mortais e imortais” 32 . Talvez por isso as
análises filosóficas, ético-políticas e teatrais do texto de
Sófocles continuam ininterruptas. Além das
interpretações de Hegel, Kierkegaard e Heidegger (para
mencionar os mais célebres), há também a incomparável
revisitação do destino trágico de Antígona de María
Zambrano. A autora “[...] retoma a filha de Édipo ali onde
Sófocles a deixara, diante da tumba de pedra, onde
desaparece de cena em seu lamento final por aquelas
núpcias com que antes nunca parecera ter-se
preocupado e pelo tempo de que se privara, por si
mesma e por sua própria vida não vivida” 33 . María
Zambrano não a observa como a figura canonizada, que
por seu gesto se torna heroica, mas dirige sua atenção
para o seu lado oculto, para

[...] a jovem Antígona; dolente, sem terra,


abandonada, só “na ausência e no silêncio dos
deuses”, condenada a não ser, a ficar naquela terra
de ninguém entre os vivos e os mortos; mas que no
momento em que entra na tumba se vê pela primeira
vez “como se nunca tivesse se olhado num espelho”
até àquele momento. A ela, então, que nunca pudera
dispor de sua vida, que “nem ao menos teve tempo
para perceber a si mesma”, porque “desperta de seu
sono de criança pela culpa de seu pai e pelo suicídio
de sua mãe, pela anomalia de sua origem, pelo
exílio, obrigada a viver como guia do pai cego, ré-
mendiga, inocente-culpada, coube entrar na
plenitude da consciência”. Uma consciência que,
porém, a tinha ocultado de si mesma e a fizera
prosseguir “como se não existisse”, “tateando pela
história sanguinolenta, arrastando, como todas as
personagens da tragédia, o seu ser fatal que nunca
se torna vivo numa perspectiva de liberdade, porque
seu nascer ainda não se tinha cumprido” 34 .

Assim, Antígona não pode morrer. Para resgatar a


fatalidade, a necessidade do destino, para que se mostre
o sonho de liberdade que supera e transcende sua
própria tragédia, ela precisa de tempo.
Dissensões inconciliáveis, como a vocação dos
homens para transcender continuamente a si mesmos,
como a base sacrifical da história e a radicalização
profunda da arte na esfera do sagrado, complicam a vida
dos gregos e daqueles de quem a tragédia é metáfora da
existência. Ninguém, além dos gregos, conheceu a dor
na forma do trágico. A cena trágica foi lugar de encontro
de dilaceração e conflitos insanáveis. Lugar onde cada
figura humana é o prisma de uma natureza infinita. Lugar
da originária e discordante harmonia na qual “[...] aquilo
que diverge também converge” 35 . Lugar de decisões, de
tensões não unívocas e indiferentes, de vocabulários
antes desconhecidos: em suma, um imenso laboratório
de liberdade. Nesse construir-se antinômico do espaço
começa o pensamento, a consciência da diferença. Essa
dimensão do contraste foi o traço decisivo da cultura
grega 36 . Nietzsche o reconheceu até mesmo como
caráter distintivo da psicologia do povo grego, e,
declarando-se próximo de Heráclito, no qual se baseou,
escreveu:

[...] me sinto com um ânimo mais caloroso, mais


bem-disposto do que em qualquer outro ponto. A
afirmação do desvanecimento e da aniquilação, o
elemento decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer
sim à oposição e à guerra, o devir , com a radical
renúncia ao próprio conceito de ser – eis onde devo,
em todas as circunstâncias, reconhecer a minha
maior afinidade com o que até agora foi pensado 37 .

Os gregos conheciam a si mesmos por meio do outro:


o outro com quem deviam entrar em conflito. O polemos
é o espaço das tensões dramáticas . Seu teatro, como se
sabe, nasce quando Dioniso é desmembrado do Uno e
despedaçado quando o campo do outro abre-se para a
guerra. Na tensão com o outro, no encontro com o outro,
as infinitas vozes do coro convocavam seu nome para
identificá-lo com as formas de seu próprio destino. Toda a
cultura grega tem como pano de fundo esse universo
psíquico imaginário. O imenso trabalho que os estudos
sobre a Antiguidade cumpriram esclarece a fragilidade do
modelo que a tradição clássica nos transmitiu, que surgiu
da identificação da polis com o mundo grego como tal. O
universo que precede a polis é um prisma através do
qual a identidade reconhece a si mesma, os núcleos, as
vozes e as máscaras da vida, nossas personalidades
secundárias, os ecos da caverna em relação ao mito,
com o território imagético profundo das percepções, das
imagens, dos arquétipos originários daqueles homens e
daquela comunidade. Nenhuma mitologia, em civilização
alguma, possui uma complexidade tão vigorosa e
elevada. O modelo policêntrico carrega em si o caos das
personalidades secundárias, os impulsos autônomos de
cada indivíduo. A sua pluralidade oferece à psique
fantasias capazes de refletir possibilidades inexploradas.
Esferas e regiões psíquicas, míticas e fantásticas estão
indiretamente ligadas à geografia e às histórias reais.
Paisagens – interiores, mais geográficas – são metáforas
do reino imagético no qual residem os arquétipos 38 .
O polemos é tensão entre alteridade divergente e
não conjunção das alteridades; fragmentaridade
heteróclita e não arquitetura do Uno; liberdade
imprevisível e não projeto pré-organizado do mundo; arco
estendido sobre o abismo entre identidade e alteridade.
Porém, acima de tudo, é compaixão, reconhecimento de
si mesmo no outro, no inimigo. Um gesto que não elimina
as diferenças com o outro reduzindo-o a si mesmo, mas
que vê o outro a partir de seu ser irmão, que vê o outro
como concreto e irredutível, o outro como face a face. O
polemos não é mera oposição de forças. É uma relação
na qual, além da força, também pesam outros aspectos
da ação humana: a destreza, a coragem, o engenho.
As guerras entre as cidades da civilização clássica
são persuasivamente construídas sobre as imagens da
“bela guerra”, do valor da morte pela pátria. São guerras
limitadas no tempo e no espaço, conflitos ainda
ritualizados, guerras em um mundo que exclui a
totalidade e a anexação, em que o fim é selado pela paz
do vencedor com o vencido. É nesse sentido que Hannah
Arendt lê os poemas de Homero e Virgílio, da compaixão
do grego Homero pelos heróis troianos, ao pius Eneias,
vencedor troiano que constrói Roma pela fusão com o
povo latino. As próprias conquistas militares dos romanos
são reguladas pela política, pelo direito, por sua
capacidade de “federar-se” com as cidades e os povos
vencidos, de lhes deixar a autonomia e uma relativa
liberdade de usos e costumes. “Que eu possa nunca ser
um destruidor de cidades”, exclama o coro no
Agamêmnon de Ésquilo. Se a guerra que alterna a
fortuna dos homens e reflete o ódio que os divide é
trágica, o destino que une os vencidos em todo lugar e
em todo tempo é universal. Esses são os fatos trágicos
da Guerra de Troia, mas também o destino trágico da
guerra em absoluto. De todas as guerras.
Mas que relação é essa que inscreve a identidade no
espaço dialético que divide e separa o Uno do ser? Quem
habita a distância entre o eu e o tu ? E, sobretudo, quem
é o outro que questionamos? Talvez ninguém tenha
pensado a questão do outro como inimigo tão
radicalmente quanto Carl Schmitt.
Pergunta-se o filósofo:

Quem é meu inimigo? Quem posso geralmente


reconhecer como meu inimigo? Evidentemente,
apenas aquele que pode me questionar. E quem
pode realmente me questionar? Apenas eu mesmo.
Ou meu irmão. Pronto! O Outro é meu irmão. O Outro
revela-se meu irmão, e o irmão, meu inimigo. Adão e
Eva tiveram dois filhos, Caim e Abel. Assim começou
a história da humanidade. Esse é o rosto do pai de
todas as coisas. Essa tensão dialética detém o motor
da história do mundo, e a história do mundo ainda
não está no fim. Prudência, portanto, e não falemos
de inimigo com leviandade. Classificamo-nos por
meio do próprio inimigo. Enquadramo-nos graças
àquilo que reconhecemos como inimigo. Maldosos
são certamente os exterminadores que se justificam
alegando que os exterminadores acabam
exterminados. Mas cada extermínio nada mais é do
que um autoextermínio. O inimigo ao contrário é o
Outro. Recordemos as grandes proposições do
filósofo: a relação consigo mesmo no Outro – esse é o
verdadeiro infinito 39 .

O ULISSES ERRANTE
Antes que a metafísica da unidade e da luz a fechasse e
a selasse, a identidade era, portanto, aventura,
exposição à fatalidade, deixar a terra firme pela “paz
violenta dos ventos”, ordo excêntrico, irredutível a um
domínio do saber, navegação de ilha em ilha pelos
“acidentes” do saber 40 . Os poemas do período medieval
helênico, homéricos e pseudo-homéricos, narram o
conflito permanente entre realização e aventura. Os
heróis retornam à pátria, mas as viagens tornam-se
rapidamente histórias de aventuras. Homero nos mostra
Ulisses retornando à pátria. Mas o poder evocativo de
sua obra não está ligado à conclusão doméstica, ao
retorno a Ítaca. Na Odisseia , o mais importante são as
histórias, os obstáculos que Ulisses encontra na viagem.
É Dante Alighieri quem desenha grandiosamente seus
trajetos. Ao Ulisses astuto e racional, ele opõe um Ulisses
cujo imperativo é andar, arriscar, não parar: um Ulisses
desinteressado na construção do futuro. Ele desafia o
mar aberto, num jogo de dados com o destino, porque a
aventura é o próprio mar, e o mar é a passagem de um
mundo limitado para um universo infinito. É o viajante
por excelência, o errante que não retorna, o mais audaz
dos marinheiros.
Ulisses não pode ser de ninguém, porque não pode
ser nem de si mesmo. Conhece o amor pelas mulheres –
luta por sua mulher –, mas não pode amar nenhuma para
sempre. Se Ulisses cede ao desejo, o faz atado ao mastro
da nave. Sente grande responsabilidade pelos
companheiros, mas nunca até o fim: porque até o fim
não é responsável nem por si mesmo. Ulisses tem muitas
identidades: prefere, na verdade, chamar-se ninguém .
Se alguma coisa ele nos ensina, é a instabilidade de sua
identidade, o seu transfigurar-se no decorrer da vida. Ele
luta pela meta, mas, depois da conquista, logo dela se
separa. Nenhum chamado a algum lugar, nenhuma
saudade da paz doméstica poderão demover Ulisses.
Assim, sua navegação nega o centro:

O seu é um desejo de aventura, e mergulha no


abismo, porque aqueles acontecimentos, que havia
trocado por obstáculos e que, de modo
aparentemente casual, retardaram seu retorno a
Ítaca, já eram, na realidade, projeções fantásticas de
um vazio, como negação da referência a um centro:
logo, o abismo 41 .

Essa inclinação para a conquista, essa aventura sem


anábasis , esse errar sem esperança de retorno eram a
identidade dos antigos povos mediterrâneos. Para seu
espírito, andar é existir. E existir é debruçar-se sobre o
nada, a saída inevitável por meio da aventura: “[...] esse
é o fim, é o Oceano, é o nada; e o canto passa e sobre
nós se desfaz” 42 .
A figura de Ulisses nada tem de mítico.
Diferentemente de Prometeu 43 , que aceita
conscientemente as consequências de sua escolha
imprudente e arrogante, ele observa e se questiona, sem
responder. Não sabe quanto caminhou nem quanto lhe
resta para chegar até Ítaca. Ulisses relata-se e escuta o
que os outros lhe relatam. No relato, Ulisses dá forma a
sua identidade. Se Prometeu orgulha-se de sua heroica
rebelião contra os deuses, Ulisses foi lançado na guerra
involuntariamente: viaja para salvar-se, diz chamar-se
ninguém , procura uma ilha que permanece apenas em
sua memória, que se modificou durante sua ausência.
Enquanto Prometeu paga por sua ousadia, Ulisses está
livre de todo vínculo, salvo consigo mesmo 44 . A sua é
uma viagem até o fim do mundo, aos confins extremos
das colunas de Hércules. São essas as condições para
retornar e contar. Ulisses faz-se homem na viagem, por
assim dizer, in itinere.
O mar é o elemento indeterminado, o infinito, a
poderosa metáfora da condição moderna que unirá o
progressivo deslocamento de toda a existência humana.
Seus confins não são definidos nem no espaço nem no
tempo e são irredutíveis a uma soberania ou à história:
“[...] se parecem com o círculo de giz que continua a ser
riscado e apagado, que as ondas e os ventos,
empreendimentos e aspirações ampliam ou diminuem” 45
. Ultrapassar as colunas de Hércules é aventurar-se no
infinito, mergulhar no nada. A terra que se lhe opõe, ao
contrário, é um espaço restrito, conhecido, finito,
circunscrito. Terra contra mar, bem contra mal, numa
tensão sem fim: o destino humano. À dura disciplina da
terra opõe-se a liberdade dos mares. Terra-mar, Leste-
Oeste, Ásia-Europa, Antiguidade Clássica-Idade Moderna
serão os eixos do desenrolar da história do mundo 46 .
Antes do advento da lógica, a identidade era o
infinito quebrar das ondas na praia, memória de lugares
diferentes, existência inconsciente dos conceitos de
Espaço e Tempo: o percurso e o discurso eram mito. Para
aquela identidade eram estranhas as filosofias do lugar,
os radicalismos, os fundamentos. Por isso, a viagem –
como decisão essencial, desvinculação com a terra – é
metáfora da existência, expressão perfeita da
transitoriedade humana. A viagem exige um ponto de
partida e um ponto de atracação, exige o respeito aos
elementos e a tarefa para a realização. De ilha em ilha,
de porto em porto, é um movimento daquilo que é para
aquilo que pode ser, além dos limites conhecidos. Nessa
figura de homem, identidade e viagem coincidem:
daimon , ânsia até o espasmo final, tensão extrema da
existência, até o limite do desejo. Identidade e viagem
recapitulam-se, como um rastro indelével, a vida do mar,
a história e as histórias dos povos que a precederam, a
sucessão universal da humanidade.
Essa experiência é em si mesma uma ponte, mar
entre ilhas, que conduz “[...] do contingente e mutável
acontecimento da viagem à eterna igualdade da
perfeição, à primordial entidade pedra-almas , isto é, um
retorno fatal ao Cais Absoluto, de onde os homens
partiram em suas Naves-Nações” 47 . Essa era a história
do Mediterrâneo, espaço entre Oriente e Ocidente, antes
que a paixão pela lógica se tornasse obsessão
geométrica 48 , antes que o pluriverso se tornasse
universo e uma poderosa logicização abrangesse o
mundo, tornando os gregos mais científicos e mais
superficiais, mais triunfantes e mais fracos. Em suma,
antes que a racionalidade se tornasse sintoma de uma
fraqueza, de um declínio incipiente 49 . Nasce a geometria
e morre o mito. As ilhas, suas identidades distintas, a
pluralidade dos espaços disjuntos, sucumbiram a uma Lei
que conecta tudo o que está separado. A história trágica
e inocente, a vontade e a criação tornam-se
ressentimento 50 . O interesse pela razão torna-se
desinteresse pela vida.

PODERES DO SÍMBOLO
Com a passagem do assentimento incondicional à vida
para a paixão pela racionalidade, os gregos descobriram
o ser : a vida torna-se conceito. A ordem lógica do
pensamento constitui-se enquanto pharmakon , remédio
para a angústia da experiência pânica e do preocupante
poder do mito. O pensamento geométrico e a construção
lógica do mundo têm como código original a
neutralização desses continentes simbólicos. Mas essa
ordem racional logo trai suas intenções. Nascida para
rechaçar e manter à distância os poderes terríficos da
fase mágica primitiva, a razão, com sua pressa de
onipotência, acaba por confiná-los à sombra. O símbolo,
integrado à linguagem psíquica, dispersa-se em signos e
significados. Foi a psicanálise que se designou a essa
tarefa, e com um trabalho sistemático de decodificação
decompôs prismaticamente o símbolo numa série de
signos. Mas, se o conhecimento médico aumentou, nada
veio iluminar o continente submerso que o símbolo,
enquanto reserva recôndita de ulteridade, guarda. A
angústia de uma definição, de um nome (embora
evocativo e atraente), não podia revelar a ulterioridade
criativa de sentido à qual o símbolo remete. O símbolo,
de fato, é situação diferente da palavra, seu êxodo
permanente, além de suas interpretações, seu
afastamento do sentido. Eis por que sua via
interpretativa é aporética em si, eis por que antes de
tudo um símbolo é experiência.

“Nessa experiência”, escreve Umberto Galimberti, “a


linguagem é chamada novamente da sua
exterioridade a sua raiz. Assim como a calma, que
não destrói a si mesma no clamor das palavras,
assim como o silêncio, que não se concede à
explicitação total, também o símbolo, subtraindo-se a
toda interpretação que pretenda exauri-lo, não
explica a palavra, como, ao contrário, acontece na
prática ocidental, mas a encontra em seu oriente.
Com a insistência infinita das ondas que se quebram
na praia, a exegese simbólica é como o retorno e a
repetição da mesma onda sobre a mesma praia,
onde, porém, a cada vez, o sentido se renova e se
enriquece, reconstituindo-se numa experiência que,
quanto mais indescritível na conceitualidade
ocidental, mais exigirá nossa atenção. É uma atenção
que se volta para o espaço da interrogação, no qual,
no entanto, quem interroga não somos nós, mas o
símbolo que já nos surpreendeu no diálogo da
interrogação sobre nós e conosco. É um espaço que
ninguém pode ter a ambição de explorar do exterior,
ou de descrever como geralmente se descrevem as
coisas, porque, quando é o símbolo que promove a
interrogação, a pergunta ainda não está
suficientemente determinada para que a hipocrisia
de uma resposta já se tenha introduzido sob a
máscara da interrogação 51 .

E mais:
[...] para seguir os rastros do símbolo é preciso seguir
um caminho, mas, assim como o lugar aonde se deve
chegar não é mencionado, não se pode entender o
caminho como um simples meio de se chegar a uma
meta que deixa o caminho para trás. Essa é a razão
pela qual, com o acordo de todos os psicanalistas e
de todos os semiólogos, não há maneira de ler
símbolos. A exegese da linguagem simbólica,
deixando para trás a ironia, a maiêutica, épocas,
dúvidas, inaugura aquela permanência no caminho,
sem permitir que se chegue a um resultado como
meta alcançada. O caminho traçado pelo símbolo
conduz significados e sentidos ao mesmo lugar onde
o externo e o interno, o esotérico e o exotérico, ou,
como preferem os psicanalistas, o consciente e o
inconsciente atravessam-se um ao outro (symballein
). Evocada enquanto símbolo, qualquer palavra só é
apropriada se não se resolver naquilo que diz. O
símbolo é mistério, e os mistérios não se interpretam
– deles podemos apenas nos aproximar 52 .

Na ambivalente essência do símbolo mostram-se os


extremos entre os quais, em implacável tensão, oscila a
própria civilização: o poder mítico original e a ordem da
consciência que procura neutralizar seu perturbador
pano de fundo. Quando o símbolo é deslocado, relegado
à margem, não é somente a identidade individual a ser
ameaçada (como, aliás, a da civilização), mas a própria
loucura, já que sua força, seu poder de fascinação
sobrevivem sob outras formas. A ordem lógica anula a
relação mimética do mundo originário do qual provém,
cindindo a experiência numa ordem abstrata de signos e
numa obscuridade emocional que insidia sua
transparência. Com respeito às angústias primordiais, o
símbolo demarca uma distância, mas, ao contrário do
pensamento lógico, não anula o mundo emocional 53 .
Como presença ambígua e fugidia, o símbolo gera
sentido como matriz das estruturas profundas, instância-
ponte, gramática invisível da intencionalidade psíquica.
Para Franco Fornari, o símbolo medeia entre mundo
interior e mundo exterior, posição esquizoparanoide e
posição depressiva, remoção e sublimação, processo
primário e processo secundário, objeto parcial e objeto
total. De maneira mais geral, entre natureza e cultura.
Seu nascimento sempre pressupõe o ego. Este, de fato,
não teria lugar se os limites entre o si e o mundo não
fossem ainda presentes, se não estivesse sempre viva a
possibilidade de intercâmbio contínuo entre os diversos
momentos da vida psíquica. Decerto o símbolo do
esquizofrênico remete-nos a uma fase arcaica do
desenvolvimento, mas é isso mesmo que nos restitui a
possibilidade de partir novamente dali e traçar um
percurso diferente 54 .
Mostrando-o como momento de síntese no complexo
psíquico, Jung 55 define o símbolo como terreno unificador
entre consciente e inconsciente e, frisando sua
assemanticidade, subtrai-o ao destino estabelecido por
Freud. Para Jung, o símbolo encarna um arquétipo: o fato
de reconhecê-lo e vivê-lo conscientemente corrige a
neurose. Ao contrário, quando a psique recusa-se a
aceitá-lo, o símbolo constitui-se em obsessão ou
alucinação. Ele é o operador do complexo e muitas vezes
dramático processo de individuação . Para que um
símbolo desempenhe seu papel é necessária, por assim
dizer, a colaboração da consciência. O homem deve
pagar com a tensão ou, eventualmente, com o
sofrimento consciente a sua possível individuação 56 . O
símbolo é a base do vastíssimo e insondável laboratório
que é a imaginação inconsciente. Sintetizando ou
compondo os opostos, o símbolo contribui para o
desenvolvimento infinito do self e para o processo aberto
e interminável de individuação 57 . Nesse sentido, à
medida que é pressuposto insubstituível da linguagem e
do pensamento, ele representa a porta de acesso para a
imaginação criativa inconsciente.
A diferença e a multiplicidade das visões sobre a
gênese e a natureza do símbolo e da simbolização
evidenciam limites e aporias da teoria do inconsciente,
como também, por conseguinte, do conceito de
identidade. Essa questão permeia grande parte do longo
trabalho teórico da psicanálise, que, segundo a
elaboração de alguns autores, acaba por atribuir às
instâncias psíquicas características ontológicas. O caso
de George Groddeck, que chega a uma substancialização
do inconsciente, é paradigmático. No célebre Livro do Id ,
ele escreve: “[...] meu Id tinha compreendido, e feito
minha consciência entender, que eu, como qualquer
outra pessoa, tenho realmente uma vida dupla” 58 . E
ainda: “Às vezes o Id engana a si mesmo” 59 . O Id, como
parece evidente, aqui é assumido como entidade vital e
unitária, condensado numa identidade que ultrapassa a
metáfora, e se constitui paralela e reflexivamente no
Ego. Um gesto, em suma, que ontologiza o Id e designa
quase a ação de uma essência metafísica ou religiosa.
A oscilação entre absolutização do ego e biologização
do inconsciente, entre símbolo e processos
inconscientes, questiona instâncias e papéis tradicionais:
o ego torna-se o lugar de formação do símbolo, e o
inconsciente, a instância de energia criadora para essa
formação. No lugar da velha dinâmica de formação do
símbolo subintroduz-se um centro único, no qual o
inconsciente é entendido como uma contínua solicitação
do ego. O ego é a instância criadora de formas e
símbolos, ao passo que o inconsciente é uma reserva de
material, produtor de estímulos não ainda ou não mais
conscientes. A psicanálise, que havia dado um duro
golpe na centralidade do cogito , propõe sub-
repticiamente seu retorno. Assim, em vez de se colocar
atrás de novas pistas a explorar, tentar novas geografias
psíquicas, também para o símbolo a psicanálise renuncia
a pensar além de si mesma, além do gesto que a leva de
volta à ontologia originária 60 .
O pensamento do ser brota na marginalização do
símbolo, na tentativa de neutralização do arquipélago
imagético das origens: uma longa história para a qual
muito contribuíram a psicanálise e a antropologia
“científica”. O destino da razão se cumpre e começa o
declínio. Maria Zambrano mostrou-nos como aquelas
potências marginais seriam transfiguradas, no conceito
clássico, em formas de pura e perfeita beleza, além da
vida e da morte. Desde o advento da polis , os gregos
nos são mostrados assim: com sua insaciável sede de
razão, de ordem, de transparência, com uma vocação
profunda pela luz, pela verdade, pelo ser . Todavia, desde
aquele momento, ficaram eLivross e tornaram-se
decadentes, como homens para além da vida 61 . Como
se, fora daquelas formas, a vida fosse insustentável,
violenta – algo para o qual não estavam preparados.
Antes do gesto ingênuo e violento que faz da
identidade o ponto de coincidência entre pensamento e
ser, para os gregos era estranha a nostalgia da
identidade perdida 62 , a pretensão de produzir valores
universais 63 . Escreve Derrida:

Em grego, na nossa língua, numa língua rica de todas


as avalanches da história – e já aqui se prenuncia
nosso problema –, numa língua que culpa a si mesma
por um poder de sedução de que faz uso
continuamente, ela nos convida ao deslocamento do
logos grego, o deslocamento da nossa identidade e
talvez da identidade em geral; convida-nos a
abandonar o lugar grego, e talvez o lugar em geral,
para ir em direção àquilo que não é nem sequer uma
nascente ou um lugar (muito favorável aos deuses),
em direção a uma respiração , em direção a uma
palavra profética já disseminada não só antes de
Platão, não só antes dos pré-socráticos, mas aquém
de toda a origem grega, em direção ao outro do
Grego. [...] Pensamento para o qual o todo do logos
grego já sobreveio, húmus que se depositou não
sobre um terreno, mas em torno de um vulcão mais
antigo. Pensamento que, sem filologia, mediante a
única fidelidade à nudez imediata mas desvanecida
da própria experiência, quer libertar-se da dominação
grega do Mesmo e do Uno (outros nomes para a luz
do ser e do fenômeno), como também de uma
opressão, decerto diferente de qualquer outra
existente, opressão ontológica ou transcendental,
mas também origem e álibi de toda opressão no
mundo 64 .

Petrificado por um olhar insaciável de possuído que


chega a devorar a si mesmo 65 , o discurso sobre a
identidade torna-se um terreno de mediação analítico-
discursiva, de metalinguagem lógico-formal e projeta
para fora tudo aquilo que não conseguir reconhecer
dentro de si.

A consequência da ingenuidade grega, o fato de que


a identificação ocorria no Ser, tinha como
consequência o crer em filosofar juntos e em
considerações um do outro, de modo que cada
filósofo referia-se a seus precedentes ou a outros
seus contemporâneos que pensavam. Não é assim
entre nós, já que uma tal ação é inautêntica e
prejudicial à autenticidade e à identidade do si
mesmo e do Eu . Assim, no horizonte da filosofia
atual, cada um deve vê-la apenas consigo mesmo,
cada Eu com seu si, cada um em si mesmo 66 .

Nesse caminho, a identidade se tornará um espaço


psicológico invariável, unitário em si. Suas dinâmicas
serão sequências de cadeias causais, fluxo de
acontecimentos previsíveis, tempo linear. Os mundos
separados, as variedades desconexas do mito, a
multiplicidade de morfologias não ligadas seriam
reatados no espaço euclidiano 67 . O espaço interno será
definido pela linguagem geométrica e a identidade se
tornará uma realidade rígida de coisas e substâncias, de
causas e de efeitos 68 . Com refinados dispositivos
científicos, filosóficos e jurídicos de neutralização, a
máquina da modernidade levará a termo esse projeto,
marginalizando sentimentos e paixões: a lama barbárica
que dois mil anos antes Platão já sonhara eliminar da
alma. Ao longo do caminho que nos leva de Platão a
Hegel, a filosofia tem tentado clarear a noite da
profundidade humana com a luz ofuscante de uma
verdade que está além do sujeito e de sua própria vida 69
. Quando as trevas ameaçavam abater-se sobre o século
XIX , Nietzsche faz ressoar sua voz. Suas questões ainda

nos advertem do extremo perigo que acarreta privar o


homem da sombra e do abismo que sua sombra
esconde.

O EU PLURAL E SUA SOMBRA

Afirmando que a identificação é sempre uma


identificação incompleta, Freud opõe uma radical objeção
ao sujeito como plenitude e presença de si. Com uma
inversão de perspectiva, a postura freudiana dá lugar a
uma descentralização que reconduz à origem da
diferença na identidade, assumindo-a como duplamente
constitutiva de si. Designando o outro como condição
necessária da identidade, Freud mostra que quando nos
referimos ao eu aludimos inevitavelmente ao outro. Aqui
se origina a cisão do eu sobre a qual se orientará a
concepção lacaniana do “estágio do espelho” na
formação do Eu 70 . Tem origem aqui também “[...] o
descentramento, como problema de identidade, antes de
qualquer outra nova captura por parte de uma lógica
parmenidiana da tautologia ou da identidade de si” 71 . O
gesto freudiano é o ponto de partida de um novo
caminho. Um caminho para um espaço diferente,
inverificável, do lado oculto das coisas 72 .
Esse procedimento inverso, que tenta descobrir a
vida em sua desordem, é algo mais que uma nova
designação epistemológica. Aqui, a verdade não
representa mais a realidade, mas coloca a vida em
relação com o pensamento. Nessa altura poderia definir-
se a questão da subjetividade sem sujeito . Mas a
designação de tal itinerário (cujo fim nunca se vislumbra)
para um lugar que não é subjetivo e muito menos
objetivo (o outro em meu lugar , de Blanchot) exige uma
mudança de estatuto do eu , uma mudança de tempo e
de linguagem. Se dissolvermos a certeza do cogito que a
verdade instituía, não restam explicações, verdades, nem
linguagens possíveis. Resta apenas um vazio, um espaço
neutro do sujeito que fala. É nesse espaço que a
desobjetivação, o descentramento, as assimetrias
assumem o valor de uma reescritura radical da
identidade, fora da lógica parmenidiana. Despida da
armadura da subjetividade, a identidade se dissemina
numa multiplicidade de segmentos perceptivos, afetivos,
cognitivos, que se alteram entre si num processo de
desobjetivação. Para Emile Benveniste, mesmo um
simples ato de palavra já é, em si, uma radical
desobjetivação. Pergunta-se ele:

Qual é a realidade, à qual se referem eu e você ?


Unicamente uma “realidade de discurso”, que é algo
muito singular. Eu pode ser definido apenas em
termos de “locução ” e não em termos objetivos,
como ocorre com um sinal nominal. Eu significa a
pessoa que enuncia a instância atual do discurso que
contém eu 73 .

Em termos ainda mais radicais, para a pergunta


“Quem está falando?” e “O que quer dizer ‘falar’?” a
resposta é: quem está falando é um homem, um homem
movido por si mesmo. Mas qual é o limite entre o falante
e o si mesmo, que se observa no ato de falar? Mesmo se
fôssemos ao limite de nossa pergunta, não
conseguiríamos esclarecer quem está falando. Entre esse
falante e esse si mesmo não há, de fato, fronteira
nenhuma. Mesmo que pareça paradoxal, não pode haver
fronteira entre duas essências hipostáticas que não se
podem reduzir uma a outra e, logo, são indefiníveis. O
falante não pode ser o si , se for verdade que esse ainda
conseguimos designar. Mas também não pode ser o
mesmo, cujo conteúdo exige o si . É evidente que aqui
conteúdo e continente coincidem. E essa coincidência
torna-se um todo. Mas o todo que nos envolve nos
impede de ir ao fim do quem e do que . Que
correspondência poderia haver, de fato, entre o todo e o
eu? E, então, esse todo pode ser o eu que nos arrasta e
extenua? E mais: há possibilidade de provar que esse eu
existe, como a sensação de presença insegura, de
temporalidade provisória que está nas raízes de nossa
existência? Quem está falando, partindo de si mesmo?
Enfim, quem é esse algo que chamo de eu na tensão
incessante entre o todo e o nada? Eludir essas perguntas
significaria permanecer no sulco da filosofia clássica, que
concebeu a identidade em oposição dialética ao ser,
fixando-a e cristalizando-a dentro de estruturas rígidas e
inalteráveis.
O traço mais vigoroso e agudo de uma
fenomenologia da desobjetivação é a voz poética de
Fernando Pessoa. Seus heterônimos Álvaro de Campos,
Ricardo Reis e Alberto Caeiro são um imenso campo de
experimentação do eu. Em uma de suas poesias, diz
Pessoa:

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com


inúmeros espelhos fantásticos que torcem para
reflexões falsas uma única anterior realidade que não
está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me
viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como
se meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada um, por uma suma de não
eus sintetizados num eu postiço 74 .

Talvez Pessoa seja o sismógrafo mais sensível da


decomposição da ideia moderna de identidade. Porém, já
antes de naufragar na praia do século XX , novas
descrições, diferentes figuras da identidade,
heteronômicas, sem centro, haviam falado de si.
Experiências caóticas e contraditórias que levam, por
exemplo, Rimbaud a declarar querer “ser absolutamente
moderno” e, ao mesmo tempo, a dizer também que “Eu
é um outro”.
Já Kierkegaard, entre 1833 e 1834, havia adotado
inúmeros pseudônimos para uma série importante de
livros: Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin
Constantius, Virgilius Haufniensis, Nicolaus Notabene.
Nessa desmedida multiplicação da própria identidade,
Kierkegaard
[...] antecipa um dos traços mais significativos e
preocupantes da modernidade: a ruptura do pacto
mimético, que garantia a relação entre um eu
unitário e um mundo plural mas explorável, cujas
fronteiras eram definidas, ainda que através de uma
série de mediações. [...] Quanto mais incertos os
limites do mundo e do eu que deve testá-los, mais
ansiosa se faz a compulsão pela autorrepresentação;
desde os autorretratos de Van Gogh até a
autodescarnificação de Schiele, quase descobrindo,
sob a própria pele, um traço da alma. A ostentação
de si torna-se uma necessidade 75 .

Mas é Pessoa quem faz debruçar o eu em seu próprio


abismo. Com um raio de luz fria, transforma suas figuras
internas num teatro de uma solidão estelar. Uma solidão
multiplicada, uma vida que se torna muitas vidas 76 . Seus
heterônimos dissolvem-se até tornarem-se pura
existência “[...] entre a vida e a consciência da vida,
entre o ser e a ideia do ser, entre si mesmo e a ideia de
si mesmo, entre o real que ele vê e o real que ele
reproduz na sua descrição literária” 77 . O Livro do
desassossego é uma experiência que leva o olhar e o
intelecto para além do eu , até fazer o próprio mundo
tornar-se eu . É nesse sentido que se pode dizer que
Pessoa é o sismógrafo mais agudo do século XX . Se
Pirandello havia iluminado o subsolo do Eu , fazendo
explodir suas pretensões unitárias e ordenadoras do
mundo; se, num reerguimento da perspectiva, ele havia
mostrado um eu observado e constituído pelo olhar do
outro, por um olhar invisível que percebemos sem poder
identificar, foi Pessoa, na solidão cósmica de seus
heterônimos, quem ultrapassou os limites dolorosos da
relação com o outro. Seu desespero desnudo, sua
insegurança ontológica acompanham-nos até as regiões
mais remotas do eu, sem nunca ter acesso a elas. Como
se sobre o fosso do castelo de sua alma a ponte levadiça
estivesse erguida e, entre o castelo e as terras ao redor,
restasse apenas poder olhá-las, sem poder percorrê-las.
Naqueles territórios, palavras como “consciência” e
“subjetividade” mostram sua inconsistência dispersa, sua
impossibilidade de compreender e sua natureza de
hieróglifos gravados nas páginas do tempo. Que podem
nos dizer, aliás, a consciência e o sujeito que para
poderem dizer de si devem livrar-se de toda realidade
extralinguística e, finalmente, des-objetivar-se ! Nada.
Porque seu discurso coincidirá com os dispositivos
formais da linguagem, com a interdição plena da
possibilidade de falar 78 . Pessoa não procura mediação.
Ele é portador das dissonâncias, das contradições, até as
últimas consequências: lá onde sua própria presença
decompõe-se. Numa profusão de sentidos, os
heterônimos deformam sua identidade até o inusitado,
dando-lhe uma dimensão estranha, irreconhecível, ao
ressoar dos vários nomes que selam a estranheza, a
alteridade e a alienação, dando forma e substância a
tudo o que é difícil de concretizar e tornar visível
mediante a palavra.
Mas nomes e heterônimos não são palavras vazias,
mas a possibilidade de dizer – à medida que a língua é
comum a outros sujeitos – a verdade oculta, a vontade
de viver: daquilo que, no impalpável eco que se pretende
realidade, é mais íntimo e profundo. Suas figuras nascem
para reduzir a distância entre símbolo e palavra,
repatriando o símbolo à própria palavra e o sujeito ao
imaginário. Aqui, fazer palavras e coisas coincidirem,
restituir o sujeito às palavras, é pura ilusão. A linguagem
e a palavra não podem unificar a experiência psíquica,
nunca serão pontes lançadas ao inconsciente, porque o
inconsciente é irredutível ao falante como sua única
linguagem, porque este é o espaço de múltiplas
linguagens. Por isso é ilusória a tentativa de soldar –
como na técnica psicanalítica – a palavra ao seu outro . A
palavra não é mais que uma palavra, algo que é
condicionado por sua relação com o corpo e com as
coisas. Primeiro no Tratado lógico-filosófico e
sucessivamente em Notas filosóficas , Wittgenstein
mostrou como a linguagem seria uma superstição
originada na ilusão gramatical e como, mais geralmente,
a mesma crença nos nexos causais e no pensamento
significante – logo, na linguagem enquanto tal – seria
uma superstição.
A projeção do logos no plano do ser, o gesto inicial
dessa autêntica patologia metafísica , teve origem em
terras gregas, nas margens eleatas, onde a linguagem é
assumida como espaço revelador do ser. O trecho
seguinte foi a extensão daquele gesto para a
“generalidade do espírito humano”, em que “[...] nunca o
tempo, em sentido próprio e forte, teve realidade, o
mundo sendo essencialmente cosmos, universo imutável
e ordenado, movimento regular e numerado do espaço”
79
. Aqui, o espaço é espaço lógico da linguagem,
experiência que se neutraliza num tempo deformado,
sem duração. Por outro lado, não é a linguagem a figura
decisiva com a qual a metafísica pretende explicar a
experiência? Grande parte dos enigmas insolúveis da
linguagem (logo, da metafísica) nasce do fato de que o
juízo é separação original, espacialização primordial,
ruptura do pensamento; e de que qualquer mudança é
movimento de superfície de algo que no fundo
permanece imóvel, como uma estrutura da mudança.
Inscrito na linguagem, qualquer enunciado sofre a
pressão do efeito deformante. Não é verdade, por
exemplo, que um problema deixa de ser um problema
cada vez que um enunciado lhe dá a formulação correta?
A questão não diz respeito a uma coisa em si , abstrata,
mas a como ela se manifesta na linguagem.
Decompondo-a em símbolos, de fato ela se torna algo
imensamente diferente da experiência. A função da
linguagem é exatamente manter a realidade por
interesses práticos. Mas reconstruir o acontecimento
concreto da experiência, unificando esses segmentos
mediante uma abstração, é pura ilusão. Na linguagem,
nossas ideias juntam aquilo que é diverso e distinto,
anulando a descontinuidade que existe entre objetos
materiais. Essa tarefa realiza-se no espaço do signo,
convertendo o restrito em amplo, a qualidade em
quantidade. Um gesto certamente funcional para a maior
parte das ciências, cujas consequências, porém, são
nefastas: como a de confiar nas aparências enganosas
da linguagem, de confiar e conformar-se aos seus
hábitos, o que as torna paralisadas pela claustrofobia do
pensamento conceitual.

O INQUIETANTE ESTRANHAMENTO DO FAMILIAR

Mas, se a linguagem é uma experiência deformante, o


que permanece do eu que sempre confiou sua sorte à
linguagem? Como poderemos pedir à palavra que nos
fale dela própria? E o que acontece no momento em que
quem fala é falado, ingressando na zona cinzenta da
desobjetivação ? A questão do quem do sujeito tem
sentido apenas se a encararmos por esse lado. Escreve
Giorgio Agamben:

O eu, a subjetividade a que ele acede, é uma


realidade puramente discursiva, que não remete nem
a um conceito, nem a um indivíduo real. Esse eu que,
como unidade que transcende a múltipla totalidade
das experiências vividas e garante a permanência
daquilo a que chamamos consciência , nada mais é
do que o aflorar de uma propriedade exclusivamente
linguística no ser. [...] Os linguistas analisaram as
consequências causadas pela instalação da
subjetividade na linguagem para a estrutura das
línguas. Todavia, resta analisar em grande parte as
consequências da subjetivação para o indivíduo vivo.
É graças a essa inaudita presença em si mesmo
como o eu , como locutor na instância do discurso,
que se produz no ser algo como um centro unitário
de imputação das experiências vividas e dos atos,
um ancoradouro fora do oceano em movimento
representado pelas sensações e estados psíquicos, a
quem estes podem referir-se integralmente 80 .

Benveniste mostrou como, por meio da presença em


si e no mundo, possibilitada pelo ato de enunciação, é
gerada a temporalidade humana. O homem não dispõe
de outro modo de viver o “agora” senão realizando-o
mediante a inserção do discurso no mundo, ou seja,
dizendo “eu”, “agora”. Mas justamente por isso,
justamente porque não possui outra realidade senão a do
discurso, o agora – como provam todas as tentativas de
fixar o instante presente – é carregado de uma
negatividade irredutível; justamente porque a
consciência não tem outra consistência senão a
linguagem, tudo o que a filosofia e a psicologia
acreditaram vislumbrar não é mais que uma sombra da
língua, uma substância sonhada . As determinações não
essenciais do eu evaporam, os limites se desfazem. Se
no interior da linguagem só existem diferenças, no
exterior há apenas identidade. Mas não há equivalência
entre as duas perspectivas. Quando interior e exterior,
identidade e diferença vierem a coincidir, a sobreposição
produzirá uma imagem composta na qual o que se
opunha e era distinto acabará se misturando. Assim, em
vez de ver seu outro (e ver-se a si mesmo), o sujeito
descobre duas encarnações simultâneas. Perdidas todas
as diferenças biológicas, culturais, genéticas numa única
diferença, essa realidade produz uma vertigem
alucinatória que fará o sujeito abalar-se num sobressalto
tremendo. Quando não houver mais diferença
verdadeira, a identidade será perfeita, e os opostos,
duplos . Para René Girard,

O princípio fundamental, sempre ignorado, é que o


duplo e o monstro são apenas um. O mito,
evidentemente, coloca em relevo um dos dois polos,
geralmente o monstruoso, para dissimular o outro.
Todos os monstros têm tendência a se desdobrar, e
não há duplo que não encerre uma monstruosidade
secreta. A precedência deve ser dada ao duplo, sem,
no entanto, eliminar o monstro; na duplicação, aflora
a verdadeira estrutura da experiência. É a verdade
da sua relação, teimosamente recusada pelos
antagonistas, que acaba impondo-se a eles, mas sob
uma forma alucinada , na oscilação frenética de
todas as diferenças. A identidade e a reciprocidade
que os irmãos inimigos não quiseram viver como
fraternidade do irmão, como proximidade do
próximo, acaba se impondo como duplicação do
monstro, neles mesmos e fora deles mesmos, em
suma, sob a mais insólita e mais inquietante das
formas 81 .

Talvez por essas razões a modernidade tenha


hesitado tanto em pensar o quem do outro. Como se
pressagiasse que a experiência desnuda do outro fosse
um perigo essencial para o seu edifício racional. Como se
tivesse intuído que sua máscara jurídica, com a abertura
para a multiplicidade dos possíveis, pudesse desintegrar-
se. Mas quem é o outro exatamente quando o sujeito
desaparece? E que identidade se torna possível fora da
subjetividade? Para responder a essa pergunta,
certamente não poderemos mais fazer apelo às
estratégias neutralizadoras de um pensamento
interiorizado. Nenhum vocabulário de ficção poderá
reconciliar as tramas de uma interioridade pensada como
reflexão intelectual. Não há linguagem que possa dizer:

[...] lugares sem lugar, soleiras que atraem, espaços


fechados, proibidos e todavia abertos a todos os
ventos; corredores nos quais batem as portas que
introduzem em salas para encontros intoleráveis,
separando-os com abismos sobre os quais as vozes
não passam, os próprios gritos se atenuam;
corredores que terminam em novos corredores onde,
à noite, ecoam, além de cada sono, a voz sufocada
daqueles que falam, a tosse dos doentes, o gemido
dos moribundos, o fôlego suspenso de quem não
para de parar de viver 82 .

Nenhuma linguagem pode ter a pretensão de


compreender o mundo. A vontade de reconduzir o
universo à linguagem, reconduzir o outro à linguagem,
implica a violação da porta fechada do silêncio. O
caminho que conduz ao diálogo é, ao contrário, uma
passagem estreita, cujos limites não estão no exterior da
linguagem – são o seu exterior . Assim, o diálogo entre
dois interlocutores não pode ser apenas o intercâmbio
entre duas consciências, a comunicação entre dois
universos mentais, mas o lugar do próprio
questionamento, da contestação recíproca dessas
existências, a necessidade de se esconder até se anular
a fim de instaurar a relação. Aqui está o nosso problema:
quem é o outro, fora e além da linguagem? Como
podemos falar dele sem que as palavras continuem
sigilosas, fechadas no silêncio insondável de suas leis e
de seus movimentos? Abrir-se para o universo do outro
significa aceitar o risco da agressão, da recusa, do
questionamento de nossa própria identidade: o risco, em
suma, que o sacrifício de um dos dois se cumpra. Está
suficientemente claro esse ponto? Isto é, que a inclusão
do universo do outro é, inevitavelmente, o sacrifício do
próprio universo?
Está claro, sim, que o diálogo não pode se limitar às
transações entre dois universos irredutíveis, mas deve
preparar um tempo novo mediante o próprio sacrifício? O
diálogo, esse diálogo, o nosso diálogo, é uma luta mortal.
Aqui, a alteridade do outro, para tornar-se familiar e ser
reconduzida a uma figura de si, arrisca-se ao extremo
sacrifício. O diálogo, esse diálogo, nosso diálogo, nunca
mais será um jogo decorado, cujos movimentos os
autores conhecem antecipadamente. Ora, o diálogo é
improvisação. Nenhum jogo está já acabado. Tudo está
aberto. Nenhum uso calculado das palavras, dos silêncios
poderá esconjurar os riscos que um encontro traz
consigo, ou seja, que o encontro, esse encontro, nosso
encontro, se torne um encontro frustrado . Como nos
psicodramas de Jacob Lévi Moreno, em que os atores
dissolvem a própria identidade na confusão das infinitas
máscaras, o encontro se redefine como uma sinfonia livre
e incompleta de situações imprevisíveis.
Esse vértice aberto sobre o limite e ao limite entre eu
e mundo recorda a radical reflexão de Ernesto de Martino
e de Bruno Callieri sobre o conceito de crise da presença
83
. O Nirgends , o ponto mais alto da dispersão do ego,
foi deslocado para esse difícil equilíbrio. Esse ponto, na
verdade, não é o Id ou o inconsciente da metapsicologia
freudiana, mas, antes, a despersonalização e
desrealização, neutralização do eu e da própria intenção
de significar 84 . Esse crepúsculo metafísico, que Aldo
Masullo assinalou com a locução fenomenologia das
ruínas do eu 85 , provoca movimentos caóticos de
descentralização. É o encontro com o outro que desnuda
a ilusão de nos situarmos num ponto único absoluto.
Mas, com tal exigência, o eu já se tornou documento de
uma identidade perdida. No máximo, fica um traço
daquilo que éramos e que agora não somos mais. O
velho, o desmedido eu deixou seus despojos. Como
numa diáspora ilimitada, as palavras deixaram de se
pertencer, tornaram-se estranhas. Uma sombra caiu
sobre elas. Como se separasse o sim do não 86 , a
liberdade do nada 87 . Esse destino está completamente
contido na metáfora kafkiana da ponte lançada sobre o
abismo 88 . A ponte conduzirá à margem oposta, com a
condição de que ninguém a atravesse. Quem transgredir
será precipitado no abismo. Assim como a ponte nunca
alcançará a margem oposta, o significante tampouco se
unirá ao significado 89 . A pretensão do significante de
conduzir até si o significado precipitará, como na
metáfora kafkiana, o significante (o transeunte que a
atravessa) no abismo. E isso, por sua própria pretensão
de conhecimento, de possuidor dos significados que, fora
da metáfora, tornará a realidade ainda mais intangível.
Não é apenas a luta ímpar do conhecimento lógico-
científico contra as sombras do múltiplo que mostra a
inanidade da pretensão unificante e totalizante do
“moderno”. Isso é demonstrado também pelo efeito de
impertinência radical experimentado continuamente
quando tentamos certificar nossa presença e
percebemos que o eu e a palavra são o sinal de outra
vida, secreta e fugidia. Disse Peter Handke: “Enquanto
estiver só, ainda serei eu só./ Enquanto estiver entre
conhecidos, ainda serei um conhecido. Mas logo que me
encontrar entre desconhecidos./ Mal desço a rua – um
pedestre desce a rua./ Mal saio de um trem – um
passageiro sai do trem” 90 . Nesse não reconhecer-se e
não ver-se a si próprio há algo que ultrapassa o sentido
da identificação. Quem é que desaparece nesse jogo de
presença e ausência? Quem é que está se tornando
visível ou invisível na borda extrema de sua própria
identidade? Há uma cena freudiana em que a identidade
do sujeito é posta em dúvida num jogo de espelhos com
a própria imagem.
Numa nota à margem do famoso ensaio de 1919,
Sigmund Freud escreveu:

[...] Estava sentado, só, no compartimento do vagão-


leito, quando, por um tranco mais violento do trem, a
porta que dava para o banheiro contíguo se abriu e
um senhor idoso, de pijama e um gorro de viagem na
cabeça, entrou na minha cabine. Supus que ele
tivesse errado a direção ao sair do banheiro, que
ficava entre as duas cabines, e que tivesse entrado
na minha por engano; aproximei-me dele para
explicar-lhe o ocorrido e percebi de repente, com
grande espanto , que o intruso era minha própria
imagem refletida no espelho fixado na porta de
comunicação. Lembro ainda que aquela aparição não
me agradou nem um pouco 91 .

A que Freud faz alusão? O que é essa estranheza que


irrompe, tornando inquietante aquilo que é familiar? O
que questiona essa sua exposição ao mundo, sua
exterioridade, sua imagem, ele mesmo? O que é que
torna seu próprio rosto irreconhecível e estranho para si
mesmo? Onde se origina aquela sensação de ter
encontrado alguém vindo de um canto sombrio, cujos
gestos, curiosamente, lembram os seus?
Freud conhece perfeitamente o limite que separa a
lucidez do ato consciente das névoas de um estado
crepuscular.
A experiência de Freud mostra que a consciência e as
fortalezas conceituais para dentro das quais a vida se
retirou não garantem o contato direto com o mundo.
Como um jogo paradoxal, a divergência entre visto e
vivido, entre significante e significado, entre eu e
imagem, é permanente: a experiência vivida e o eu não
coincidem com o que se vê e o que se vive, no sentido de
que o olho vê a partir da própria cegueira, a partir de
seus sonhos. Isso significa que se não sonhar, não vê,
porque as coisas que vejo me olham. Por isso, por trás da
aparência não há uma coisa em si, mas o próprio olhar 92 .
Isso demonstra que a essência nada mais é do que a
condição de recusar a centralização dos significados, que
a metáfora não remete a nada além de si mesma e que a
pretensão de reconduzir o significante ao significado não
tem sentido. Além da pretensão de possuir os
significados, resta a experiência, a vida. Porém, se cada
história é uma história de metáforas – como queria
Borges –, que discurso poderia falar delas sem deixar que
elas falem dele ? Em que sentido, designando uma
metáfora, tornamo-nos nós próprios também metáfora?
Se essas perguntas têm fundamento, quem é então o
homem? É desse ponto que devemos prosseguir. A
pergunta volta a ser literalmente essa e não será mais
possível reformulá-la em como é o homem. O desvio de
sentido que anula o quem por meio do como ,
designando uma resposta que assume “por objeto” as
possíveis formas da vida e da experiência, revela a
prepotência rasa e simplificadora da modernidade. Se de
fato assumíssemos as determinações do como ser,
equivaleria a pensar o texto infinito do encontro – a
graça, o mistério, a culpa, a violência, o risco, a poesia –
no interior de uma relação totalizante, de um horizonte
que compreende o outro do início ao fim: caindo, em
suma, na aporia de sempre. Ao contrário, deveremos
estar em condição de pensar contra a evidência de um
conceito que quer o encontro como comunhão. Mas

[...] não se trata de pensar o contrário , que ainda é


seu cúmplice, mas de libertar o próprio pensamento
e a própria linguagem para o encontro além da
alternativa clássica. Sem dúvida, esse encontro que
pela primeira vez não tem a forma do contato
intuitivo [...] mas a da separação (o encontro como
separação...), sem dúvida, esse encontro do
imprevisível por excelência é a única abertura
possível do tempo, o único porvir puro, único
dispêndio puro além da história. [...] Mas esse porvir,
esse além, não é outro tempo, amanhã da história.
Ele está presente no centro da experiência. Presente
não como experiência total, mas como o rastro . Face
a face com o outro num olhar e numa palavra que
conservam a distância e estilhaçam qualquer
totalidade, esse estar junto como separação precede
e ultrapassa a sociedade, a coletividade, a
comunidade 93 .

Essa destotalização da identidade não é dada no


início; ela segue-se a uma ininterrupta negociação com o
tempo. Mas a identidade não acontece no tempo: ela é o
tempo . A interrogação sobre quem é o homem , para
poder significar, deverá converter-se em: quem é o
tempo ? Se, realmente, homem e tempo coincidirem,
nenhuma computação poderá definir o contínuo diferir do
homem na sucessão de agoras numeráveis. O tempo
instaurado pelo olhar é momento, presença estática,
movimento da espera. Nessa espera, a identidade marca
e desfigura o próprio destino. A isso fazem alusão a
espera estática, a suspensão do tempo, a ressonância
dos espaços vazios de Giovanni Drogo 94 . É um horizonte
diante de um vazio que não é uma abertura entre outras.
É abertura da abertura, existência tetrágona à luz da
evidência porque anterior à própria luz. Sua espera do
inimigo, do outro, é um encontro com as sombras, face a
face com o tempo.

A SUBVERSÃO INAUDITA

O nosso é um tempo no qual, mais do que o valor


falsamente crítico da arte e da filosofia, devem revolver-
se a fonte liberatória da loucura, seus mundos vitais,
suas existências frustradas. Não se trata de designar
novas geografias, mas de olhar para um limite que
coloca em questão todos os outros.
Na transição entre o século XIX e o século XX , novas
imagens do homem tomam o lugar das tradicionais
descrições da identidade. O eu compacto e unitário dá
lugar a um campo de forças anárquico e múltiplo. Finda
uma época. E, como ocorre nas grandes passagens de
tempo, à excepcionalidade das transformações
corresponde a excepcionalidade das linguagens. Nenhum
discurso comum ou convencional poderia falar do
declínio de uma forma de existência. Foi Nietzsche quem
suspendeu as convenções. Com uma linguagem
profética, acompanhou o século diretamente ao encontro
de seu destino, encorajando a que se atravessasse o
deserto sem fáceis consolos, reintegrando a verdade à
loucura (e a loucura à verdade), contra toda idolatria da
história 95 . Nunca a dor física e espiritual foi tão absoluta.
Não há relato de uma genealogia tão grandiosa em
que o destino de um homem e o de uma civilização
coincidam. Antes dele, aquela dor encontrara expressão
nas representações de Munch 96 , Bosch, Goya, Brueghel,
Dürer; na obra de Erasmo, que inscreveu a loucura no
universo racional do “discurso” – o sistema que
absorverá na grande inferiorização todo vestígio de
irracionalidade e do outro. Mas foi com Nietzsche, Van
Gogh, Artaud, De Nerval, Hölderlin que a alteridade
reduzida ao silêncio retornou. A segregação da
experiência-limite do outro demonstra ter sido uma
ocultação temporária, não uma perda definitiva. Assim,
enquanto a imensa obra classificatória do olhar médico
tenta mostrar a estranheza do outro, aquilo que havia
sido recalcado retorna, com o poder de sua inquietante
desordem .
Nietzsche põe fim à ideia da cognoscibilidade do ser
e do mundo, que sempre animou a “comunidade dos
filósofos desde a Jônia até Jena”. Não de início ou por
meio de seus livros, mas com a grandeza trágica de sua
própria vida. Escreve Franz Rosenzweig:

Desde sempre os poetas haviam falado da vida e da


própria alma. Mas não os filósofos. Desde sempre os
santos haviam vivido a vida e haviam sido vividos
pela própria alma. Mas, novamente, não os filósofos.
Depois veio um homem que sabia a própria vida e a
própria alma como um poeta, às suas vozes
obedecia, como um santo, mas era um filósofo [...]
Ele, que conforme as imagens de seu pensamento
mudavam, mudava a si próprio, ele, cuja alma não
temia nenhuma altura, e subia acompanhando o
temerário espírito escalador, para o alto, cada vez
mais, até o topo alcantilado da loucura, onde não há
mais nenhum além , precisamente ele é aquele do
qual seja quem for que precise filosofar já não pode
abrir mão. A imagem terrível e exigente da relação
de incondicional sequela da alma para com o espírito
agora já não se podia cancelar. Para os grandes
pensadores do passado, à alma era concedido
assumir com relação ao espírito, a parte talvez de
uma nutriz, no máximo de uma preceptora; mas um
dia o aluno cresceu e tomou seu rumo, e alegrou-se
pela liberdade e pela visão desbordante;
exclusivamente com desgosto tornava agora a
pensar nas quatro paredes brancas entre as quais
havia crescido. Assim o espírito desfrutou
precisamente seu estar livre no ar fechado e
estagnante de alma, na qual o não espírito consome
seus dias; a filosofia era para o filósofo a altura
fresca acima da qual ele se subtraíra das névoas das
baixas planícies. Para Nietzsche essa cisão entre
alturas e baixuras do próprio si não existia; ele fez
seu caminho por inteiro, alma e espírito, homem e
pensador, fez dele uma unidade, até o fim 97 .

Nietzsche devolve a verdade à loucura, restitui a


loucura à verdade, removendo com sua própria vida a
interdição do discurso racional sobre a loucura,
restituindo-a ao mundo. E adverte da impossível
possessão da verdade, porque aquela razão absoluta
está morta 98 .
Nunca ouviram falar de um louco que em pleno dia
acendeu sua lanterna e pôs-se a correr na praça pública
gritando sem cessar: “Procuro Deus! Procuro Deus!”.
Como lá se encontravam muitos que não
acreditariam em Deus, seu grito provocou grande
hilaridade.
– Ter-se-á perdido? – perguntou um.
– Ter-se-á perdido como criança? – perguntou outro.
– Ou estará escondido? Terá medo de nós? Terá
partido? – assim gritavam e riam.
O louco saltou em meio a eles e trespassou-os com
seu olhar.
– Para onde Deus foi? – bradou. – Vou lhes dizer. Nós
o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus
assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos
esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos quando desprendemos a corrente
que ligava esta terra ao sol? Para onde vai agora? Para
onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estaremos
caindo incessantemente? Para a frente, para trás, para o
lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um
abaixo? Não erramos como através de um nada infinito?
Não sentimos na face o sopro do vazio? Não fará mais
frio? Não surgem noites, cada vez mais noites? Não será
preciso acender as lanternas pela manhã? Não
escutamos ainda o ruído dos coveiros que enterram
Deus? Não sentimos nada da decomposição divina? Os
deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus
continua morto! E nós o matamos! Como nos
consolaremos, nós, os assassinos dos assassinos? O que
o mundo possui de mais sagrado e possante perdeu seu
sangue sob nossa faca. O que nos limpará desse sangue?
Com qual água nos purificaremos? Que ritos expiatórios,
que jogos sagrados teremos que inventar? Não é por
demais excessiva, para nós, a grandeza desse ato? Não
seremos forçados a tornarmo-nos deuses para
parecermos, pelo menos, dignos dele? 99
A “morte de Deus”, de Nietzsche, fala da
impossibilidade da história, do devir, do tempo; da
impossibilidade de reconduzir o mundo a uma ordem
estável, imutável. Suas perguntas ainda pairam no ar
para nos escandalizar. Sua própria atividade humana nos
lembra a falsa inocência da verdade , da ordem , do
sujeito . Com Nietzsche, o homem (um homem) “[...] na
pura e simples singularidade de sua essência individual,
em seu ser, caracterizado por nome e sobrenome, saiu
do mundo que se sabia acessível ao pensamento, saiu do
tudo/todo da filosofia” 100 . Sua transavaliação de todos os
valores é destruição criadora, subversão do ser. Nesse
gesto, a liberdade e a identidade humanas voltam a
coincidir. Não mais como questões distintas, que se
aproximam (como se, justamente, a liberdade dissesse
respeito à identidade), mas no sentido de que a questão
da liberdade é a questão da identidade. Ela não é um
estado qualquer da consciência, ou outra abstração
universalista dissimulada, mas uma tensão que
reescreve de maneira incessante os limites da
humanidade do homem 101 , do seu imenso continente
imagético. Nesse horizonte absoluto, o homem é
determinado por uma única urgência: exatamente a de
ser livre. Essa liberdade é a lei física do homem, não
mais só em potência, mas em ato. No mundo em que
toda criatura tem a sua lei sem poder segui-la ou obter
outra que não seja a sua, o homem tem como lei ser livre
. Ele é solicitado pela liberdade por todos os lados. O
encontro é o laboratório permanente da liberdade .
Reconduzir a vertical (para a qual tende toda relação
humana) para a horizontal é também estabelecer a
dimensão política da liberdade. Também a relação com o
destino é transformada por ela. O destino, do qual não é
dado saber nada, nessa perspectiva é previsto para ser
prevenido. É a liberdade que desenvolve a tarefa
decisiva.
Vem-nos à mente a fulgurante imagem de André
Neher: do vigia do farol que tem sua luz apontada para
os vagalhões impetuosos da tempestade. A morte o
apanha extenuado, exausto, mas sua mão firme na
lâmpada permite ao navio evitar o rochedo e prosseguir
sua rota. Ele morre, mas na ruína a liberdade é
resgatada. Antes que isso aconteça, há um momento em
que, de pé e ainda lúcido, ele pôde desafiar o adversário
e evitá-lo. Esse momento doloroso é uma margem
existencial assustadora e altíssima: um espaço onde
ocorre a luta entre a liberdade e a necessidade. Nessa
luta, a aventura da liberdade reencontra o seu
significado propriamente bíblico.
Como a esperança, também a liberdade tem na
Bíblia uma dimensão essencial. É, talvez, seu elemento
mais original e que revoluciona a concepção do homem.
Hermann Broch nos mostra o Antigo Testamento, que
contém uma chancela e um código profundo, a invenção
da liberdade humana.

Quando há três mil anos foi concebida e redigida a


proposição de alcance universal segundo a qual
“Deus criou o homem à sua semelhança” [...] tal
proposição continha antecipadamente toda a filosofia
idealista do Ocidente, de Platão a Descartes e Kant.
[...] Certamente, com a formulação desse princípio, a
ideia prometeica foi elaborada até aquelas extremas
consequências que a mitologia grega nunca estaria
apta a alcançar. É uma ideia admirável e fantástica,
porque coloca o fogo da ilimitada liberdade divina no
plano terrestre, com uma lógica terrível e dura como
é a própria ideia de Deus do Antigo Testamento. E,
com essa lógica rigorosa, algo prometeico é
concedido ao homem, algo que nenhum animal
possui, a tensão para uma liberdade absoluta que o
põe acima da natureza criada e de suas leis, ainda
que, com seu ser físico, ele fique submetido a tais
leis, sem poder fugir a seu domínio, e ainda que tais
leis só se tornem manifestas mediante a virtude de
seu conhecimento: o fogo permanece indômito na
natureza terrestre, restam o vulcão e o relâmpago,
resta o seu adversário; e indômita permanece a
liberdade na alma do homem. Ela também é vulcão e
relâmpago, de tal modo que nesse fogo ele, o
guardião do fogo, consome-se sem trégua, posto que
ele é ao mesmo tempo sua maldição e sua graça.
Nenhum direito natural podia garantir tal dialética,
em que maldição e graça caminham pari passu .
Somente o direito divino tinha essa possibilidade 102 .

Diante da radical incerteza introduzida por Deus com


a liberdade, a identidade humana é o movimento de
improvisação absoluta, imprevisível, o vazio infinito, no
qual se dissolve a longa noite da totalidade .

A IDENTIDADE-LIMITE

Uma parte relevante da discussão teórica na


psicopatologia do século XX concentrou-se no conceito do
borderline . Logo ao se constituir como ciência nova,
mediante uma admirável operação de sistematização,
nos grandes hospitais psiquiátricos, dos resíduos
humanos não integráveis na sociedade industrial, a
psiquiatria também viu-se diante de novas expressões do
sofrimento humano, não imediatamente classificáveis
nas categorias clínicas previamente estabelecidas. O
discurso sobre o distúrbio borderline 103 – definido
também como estado-limite ou síndrome marginal
(porque se encontra nos limites das neuroses clássicas,
das psicoses afetivas, das psicoses esquizofrênicas e das
psicopatias) – seria, posteriormente, estimulado pela
redescoberta cada vez mais maciça das formas clínicas
avançadas, definidas como “esquizofrenia ambulatorial”,
“esquizofrenia latente”, “esquizofrenia oculta”,
“esquizofrenia pseudoneurótica” e assim por diante. Mas,
como acontece frequentemente na história da ciência,
em vez de simplificar, o conceito de borderline abre 104
um novo e desconhecido campo de pesquisa,
recolocando em jogo a questão da personalidade
humana. Assim, conforme a prevalência das diversas
teorias 105 ou da integração das várias teorias da
personalidade humana 106 , a conceituação do borderline
se modifica. A psicanálise, por meio de um trabalho
teórico sem par 107 , ficou exposta ao problema da sua
definição. Mas se isso, por um lado, ampliou sua esfera
de influência 108 , por outro, provocou seu
desnaturamento pelo uso de práticas de tratamento dos
pacientes estranhas à própria natureza e tradição 109 .
Com um gesto teórico brilhante, a pesquisa
psicanalítica 110 mais atenta à reflexão fenomenológica
aproxima o conceito de borderline ao de “homem
trágico”. Com a definição de homem culpado , Heinz
Kohut designa uma figura humana dominada por um si
mesmo grandioso, profunda e irremediavelmente ferida
na própria relação com o mundo, indiferente a seu ritmo,
a seu chamado: um homem radicalmente exposto à
própria falência. É surpreendente que a psicanálise tenha
explorado e tematizado mais agudamente o borderline e
que, ao contrário, a psicopatologia fenomenológica 111
tenha sido (e ainda seja) essencialmente incapaz de
pensar um tema de importância tão crucial. Só com as
pesquisas de Bruno Callieri 112 é que a exploração do
mundo borderline levaria a psicopatologia
fenomenológica a um confronto radical com as
conceituações psicanalíticas e à tipificação diagnóstico-
nosográfica 113 . Callieri chegou a essas reflexões após
estudar por muito tempo os fenômenos da
despersonalização e da desrealização . Recentemente,
Gilberto Di Petta evidenciou 114 como a pós-modernidade
é permeada – nos espaços metropolitanos, nos mundos
das subculturas juvenis 115 – por correntes subterrâneas
vitais, por metamorfoses antropológicas, que fazem do
borderline , do mundo-limite , um dos códigos
constitutivos do nosso tempo.
Mas a que, precisamente, aludimos quando dizemos
mundo-limite ? Quem e o que delimita e define seu
campo? O fato de falar sobre isso (e aqui define-se
melhor o nosso problema) já significa experimentar os
próprios limites da linguagem, suas ambivalências e suas
distorções: pensar a experiência e a existência partindo
do que a filosofia e a psicologia moderna têm
sistematicamente marginalizado, ou seja, exatamente o
limite . Levantar tal questão leva-nos além do portal da
racionalidade 116 , além das colunas de Hércules da tópica
psicanalítica e dos determinismos da filosofia da mente,
além das fronteiras que delimitam e constituem a própria
linguagem. Aqui não fazem nenhum sentido as nostalgias
das “experiências vividas” originárias. Os símbolos, as
imagens, as metáforas, as linguagens da ciência e da
arte reconfiguram a tal ponto a experiência que tornam
absolutamente patéticos aqueles sentimentos. É certo
também que pensar a vida a partir do limite, a partir de
suas fronteiras, quase fora dela, não garante êxitos.
Experimentar o limite leva a coincidir experiência e
limite.
No limite, nesse delgado limiar dessa juntura difícil,
já ficam mais claros os contornos da identidade. Pensar a
identidade humana torna-se diferente de pensar na
identidade. Significa antes pensá-la a partir das margens
extremas entre eu e o mundo . Dessa posição, nada
neutra, os jogos e as habituais perspectivas lógicas,
como também a compreensão de nós mesmos em
relação às coisas, tornam a se propor. Toda uma visão de
mundo torna a ser questionada, toda uma cultura que
quis os seres humanos transfigurados em essências
ideais e que – em virtude disso – manipulassem,
humilhassem, destruíssem a si mesmos 117 .
As coisas, dessa perspectiva, podem parecer
desnudas, em sua precariedade. O gesto que desmonta
os jogos dos diversos determinismos e os esvazia de
suas falsas certezas e pretensas inocências é
escandaloso em si. Colocar-se nesse delgado limiar
significa separar-se da descrição segura do mundo, para
restituí-lo a sua realidade. Quer dizer participar do jogo
do mundo sem adesão acrítica, estar fora dele sabendo
que se está dentro e que disso jamais poderemos nos
subtrair. E, assim, a identidade torna-se zona de trânsito,
com nada além de suas bordas. Mas, da borda onde ela
se debruça – justamente porque é repelida, recusada,
negada, ela afirma também o que a excede: a vida.
A identidade, como forma da experiência, nessas
condições se transforma numa incessante reconfiguração
das dinâmicas psíquicas que tornam visíveis ao homem
sua relação com um mundo irrepetível. Assim, se é
impossível um discurso que redefina inequivocamente a
identidade, também é impossível a tentativa de
restabelecer a unidade perdida, recompondo seus
fragmentos esparsos e dissolvidos. A verdade do sujeito,
uma vez tendo se distanciado do eu , volta a ser
imaginária, desejo, símbolo: exatamente como a
existência antes de se tornar um universo objetivo. Esse
caminho é marcado por um gesto de liberdade, por um
olhar que por trás da aparência não procura mais algo
em si, mas somente a si mesmo, como um reverso da
consciência, como a vertente na sombra da
representação 118 . Nesse sentido, pode-se dizer que, se a
nosografia traça os limites da norma, da psicopatologia
os tolhe.

A TERRA DE NINGUÉM
A busca do elo que mantém unidos os fragmentos da
identidade – não mais que fragmentos – segue adiante.
Não restam muitas palavras para dizer a respeito do
reescrever-se e do apagar-se infinito da consciência e de
suas tramas. É uma sensação estranha. Cada vez que o
pensamento tenta estabelecer pontos firmes é como se
ali ele tivesse que costear uma margem. Sem nada além.
Só a própria margem. Uma longa e infinita margem. Mas
uma margem, em si, não diz nada. Exceto que uma
margem delimita e divide coisas diferentes. Logo, um
limite. Mas mesmo um limite, observando-se bem, não é
apenas um limite. É também uma linha de fronteira, além
da qual há uma divisão imaginária, um território de
fronteira, o limite do mundo. Eis o problema: pode essa
distância entre dois territórios designar mais um
território? E, também, é realmente importante saber o
que divide esse limite e recai noutra obsessão
geométrica? Aquele território não pertence a nenhuma
cartografia. Não sabemos se é uma fronteira entre
diversos estados da mente, entre relatos da nossa
história, entre nós e os outros. Ou, então, entre as
próprias coisas que, à medida que são diferentes, ao se
aproximarem, criam uma linha de demarcação, de
diferença, de cisão. É fascinante, em lugar de pensar,
percorrer esse desfiladeiro. Certamente, o homem que
caminha pelo limite acaba, de alguma forma, por se
tornar ele próprio a margem ou marginalizado. Aqui, de
fato, nesse portal, nesse parapeito, corre-se o risco de
delimitações contínuas, despercebidas, violações de
territórios de outrem, providos de outras legitimidades.
No entanto, com esse percurso, as linhas da identidade
tornam-se paradoxalmente mais consistentes. Não é
importante se o limite sofre desvios, proibições,
censuras. O risco que se corre ao ultrapassar o ponto de
não retorno é o de se colocar no relato. Cada violação
desse ponto provoca duras sanções. Aliás, a história do
homem ocidental é, em grande parte, a história das
técnicas educativas e disciplinares, até mesmo da
domesticação do homem (com o álibi da civilização) em
direção à confiabilidade e à previsibilidade de seus
comportamentos sociais (as técnicas que têm
enfraquecido e debilitado sua natureza). Seria ingênuo
não considerar esse dado. Mas, se ainda ontem esse
caminho teria sido impensável, hoje ele não espanta
mais. O encontro com o outro, a começar pelo louco,
revela invariavelmente que a existência sempre é
existência no limite: talvez essa seja a existência normal.
E, aliás, existir, para os filósofos, não foi sempre, ec-
sistere , isto é, debruçar-se, projetar-se para fora?
Além desse limite, tudo é incerto. À frente, nós
mesmos. Não há indicações, organização, normas. É
como se o caminho estivesse desocupado, livre por
quilômetros e anos, sem ninguém para encontrar. Aliás,
não parece haver muitos interessados em defender essa
linha. Além, há um território intocado. “Não existe,
suspeito eu, fronteira, ao menos não no sentido em que
estamos acostumados a pensar. Não há muralhas de
separação, nem vales divisórios, nem montanhas que
fecham a passagem. Provavelmente ultrapassarei o
limite sem nem perceber, e seguirei em frente, sem
saber” 119 . Mas não é dado a todos ultrapassar essas
fronteiras. Ali, o mundo fala de si como presença
descontínua, efração do tempo, ruptura e cesura da
história. Dessa fronteira de experiências vividas sem
relato, de dispersão da identidade, intui-se a terra de
ninguém, lugar onde normas e regras definidas pelo
limite são proibidas, onde cada um deverá cuidar de si
mesmo, onde o tempo se dilata e se extenua.
Mas por que cruzar esse limite? Para ir ao encontro
de quê? E de onde se origina essa inquietação provocada
por essa terra infinita e desconhecida? Nem sequer
sabemos se além do limite esse território é verdadeiro ou
é nada. Por ora, é preciso explorar essa fronteira, esse
limite cromático, esse claro-escuro indefinido de luz e
sombra. Poderia tratar-se, também, de um crepúsculo,
uma penumbra, que ressuma, ambiguamente, para
meio-dia de um lado e meia-noite de outro.
Como um paradoxo, a viagem agora oferece mais
riscos, mas o pensamento torna-mais claro. A passagem
entre razão e paixão é angustiante. Só pode ser assim a
passagem entre dois conceitos, entre duas palavras. A
razão está para a palavra grega logos como a paixão
está para a palavra (também grega) pathos . A
psicopatologia continua, desde sempre, na margem, nas
fronteiras, na zona tumultuada que mantêm em si pathos
e logos . Essa viagem ocorre exatamente nesse território
tumultuado entre pathos e logos , mediante experiências
marginais, de homens à margem. Pathos e logos , aqui,
nada têm a ver com as geografias da psicologia e da
filosofia. Inserem, sobretudo, um discurso (e um
percurso) existencial. Um discurso sob o signo de Hermes
, incerto, fragmentário, mutante, que ignora divisão e
separação, em que pathos e logos , há muito tempo
desunidos e separados, são reconduzidos a gestos
comuns.
Mas o que todo esse campo de experiências tem que
ver com aquilo que se chama borderline ? Responder a
essa pergunta significa definir primeiramente os limites
entre luz e sombra, caminhar (mas o problema é
exatamente o que define um caminho) até a fronteira do
que não tem fronteira, pela linha que mantém unidas e
separadas as vertentes nas quais o homem se define,
deixando para trás a terra de origem para se abrir à
desnorteante experiência do estranho fora da sua terra.
Diz Caterina Resta:
Aproximamo-nos de casa quanto mais nos
afastarmos dela, quanto mais formos capazes de
atravessar aquele exterior que além dela se exclui e
a ela se reporta. Essa separação, essa nostalgia , a
dor que dilacera afastam, mas também conduzem ao
porto; são, portanto, necessárias. No mar aberto –
outras imagens poderiam ajudar, como o deserto
sem fim ou o áspero e tortuoso caminho que adentra
e sobe os montes –, é preciso abandonar tudo o que
é familiar e toda imagem que recorde a
domesticidade da casa, para poder acolher
plenamente o estranho que vem ao nosso encontro
120
.

Luz da sombra, estranheza do familiar, aparência do


inaparente: passagens para outro pensamento.
Por que será que nos lembramos das páginas do
Pensamento meridiano , de Albert Camus, as suas ideias
de limite, medida, vivificadas pela “revolta”? O limite
volta como medida, lei do pensamento mediterrâneo,
rebelião contra a idolatria da história; como um inclinar-
se, mas também erguer-se, escolher, existir. E existir
remete a uma dimensão estática que se conota
etimologicamente como deslocamento, perturbação,
alienação. Exatamente como ocorre quando somos
investidos pela luz meridional, que para o tempo que a
ele se opõe, restituindo-lhe outra vida. O êxtase, o
isolamento do instante, carregam em si a revolta contra
a realidade a fim de afirmar outra realidade, sem calcular
nada. “A verdadeira generosidade para com o futuro” –
diz Camus – “consiste em dar tudo ao presente” 121 .
Retirado de seu destino clínico e nosográfico, o
borderline torna-se passagem, ser duplo: noite do eu que
anuncia a luz clara da manhã. Os primeiros gregos
imaginaram a existência na irredutível luz da evidência.
Agora há outra luz , outra face do dia, uma sombra
retranscrita na luz.
No frontão da abadia beneditina de San Michele, do
século XV , na ilha de Procida, existe uma esplêndida
meridiana de pedra. O amplo espaço branco do relógio
solar conserva gravada uma frase: “Dum sol me despicit
non aspiciat me visus hominis” 122 . A inscrição alude a
uma situação complexa, à copresença de ao menos três
elementos: a meridiana, o sol e o rosto absorto de um ser
humano. O quarto elemento, necessário, mas não
explícito pela epígrafe, é a sombra. A ela, de fato, pode-
se apenas aludir, porque nenhuma linha de sombra pode
ser declarada, revelada. É a sombra da haste, na
verdade, que torna possível a leitura da hora.
Há uma única hora do dia em que se pode ler a
meridiana sem a sombra: o meio-dia, a hora meridiana.
Mas ao meio-dia 123 a sombra não está dissolvida; ela está
coincidindo com o corpo e com a luz que o ilumina. A
coincidência de luz e sombra dissolve os conceitos de eu,
sujeito, mente. Ceder a um ou a outro desses poderes
pode significar render-se à sedução do vazio, a outra
vertente do dia, a outro mundo, ao jogo insensato e
simétrico que quer a sombra como o reverso da luz.

As duas experiências ocorrem simultaneamente: é


uma questão de limite. O problema é intuir o limite
máximo em que a ausência de luz pode ser
estimulada. A loucura do dia não é epifania de um
instante fulgurante, mas continua a ser uma
cegueira. Experiência terrena: nenhuma gruta do
inconsciente se oferece, porém, à exploração;
nenhuma inversão ocorre na profundidade 124 .

A IDENTIDADE ESCRITA NA AREIA


É difícil redigir um prognóstico sobre a questão da
identidade. Depois de um caminho científico e filosófico,
parece que a única possibilidade que resta é a alusão a
ela, a seus traços, a seu rosto, a sua trajetória. Talvez
assim se poderá intuir seus horizontes. Mas será inútil
confiar em novas e ingênuas topologias. Melhor explorar
outras vidas: aquelas que restam do imenso território
que o conhecimento moderno deixou impensadas. Não
se trata de afirmar outros ordenamentos, estatutos,
paradigmas. Agora é necessário liberar o campo daquilo
que inibe o olhar. Da designação desse lugar sem
fundamentos e perímetros, diferente do discurso
científico, a identidade se libertará das constrições de
uma “subjetividade” que a envolve como uma mortalha.
Trata-se de um gesto simples, de uma nova transcrição,
aliviada das incrustações de sentido, das regras
implícitas, das superstições, das crenças, dos dispositivos
que vêm alimentando há muito tempo a nossa preguiça
intelectual. Um jogo rápido, inocente, de casualidade
feliz: um jogo leve contra a lei pesada.
Vem à mente o menino nietzschiano brincando na
praia 125 . A onda que arrasta para o fundo seus
brinquedos é a mesma que lhe trará em seguida outros
motivos de folguedo, novas conchinhas a seus pés. O
mar e o menino podem trocar de papel, num jogo sem
fim. Porque sem fim, paradoxal e múltiplo é o jogo da
vida. A criança que sorri das ondas que desmancham seu
brinquedo é a metáfora viva de cada um. Mas essa
metáfora, como a identidade, fala da impossibilidade de
se adequar à verdade. A verdade projetada no mundo da
vida, no espaço complexo, tem um rosto natural, simples.
“A aurora e o crepúsculo, a luz e a sombra, o voo do
gavião etc. são articulações simples de nossa vida. Não é
o gavião em si que importa, mas a possibilidade de
encontrar na figura de seu voo circular um traço básico
de nosso modo de perceber a nós mesmos” 126 .
Esse gesto simples abre horizontes imprevistos,
acompanha-nos para fora dos lugares enrijecidos onde se
impede o acesso ao fluxo da vida. Mas isso não quer
dizer expor-se a uma multiplicação relativa e indiferente
das linhas, das cores, das vivências, das experiências.
Mesmo essa natureza simples e ligeira exige uma
decisão que individualiza e identifica. E aqui mais um
paradoxo: a multiplicidade recompõe-se em unidade; a
descontinuidade, em continuidade; a desordem, em
ordem. Na decisão, todos esses momentos se modificam:
a multiplicidade reconstitui a unidade; a descontinuidade
restabelece a continuidade; a desordem revitaliza a
ordem. Mediante essa decisão – ato de radical
identificação – a experiência reapropria-se de sua
unicidade. A margem, o limite, a borda retranscrevem-se
num espaço fluido, ilimitado, dinâmico. O êxodo se
cumpre para outra ordem, além das articulações das
cadeias numéricas, das geometrias euclidianas, da
granítica rocha racionalista, dos espaços conexos da
Enciclopédia . A ciência seleciona, divide, elimina,
reparte. Assim também faz o cientista: distingue,
decompõe, intui o particular no discurso universal.
Talvez, sem essa contínua diferenciação, a própria
ciência teria sido impensável. Mas para a identidade
humana omnis determinatio est negatio . No território do
múltiplo, da força nua do sagrado, ninguém pode adquirir
direitos de propriedade.
Com o que resta de seu antigo carregamento, a
barca da identidade põe-se novamente a navegar em
mar aberto. Tem definitivamente nos ombros a pretensão
de um tempo e parou de imitar o espaço. Nenhuma
nostalgia do espaço. As leis escritas da cidade pesam nos
ombros. Nessa despedida, não são mais possíveis
atribuições. É um movimento oposto às filosofias da
história, à dialética hegeliana, aos movimentos que vão
em direção ao outro construindo conceitos e idola . A
historicidade, aqui, é o contrário das idolatrias da
história. Ela representa o compromisso da ação
responsável e sem consolo dos homens. Dessa
desencantada travessia da história (presença, saída,
passagem, travessa), da separação que possibilita a
identidade, esclarece-se o ponto de encontro de
transcendência e imanência, o prisma singular e
diferente que unifica aquilo que o discurso grego separou
na superstição do logos . Essa alteridade absoluta,
irredutível – que tem um nome próprio e enquanto tal se
torna singularidade, individualidade, solidão –, reconhece
a própria origem na essência hebraica.
A singularização leva a uma rápida saída da idolatria
do universal grego que, por representar abstratamente a
totalidade,

[...] deve recorrer à intercessão de um elemento


lógico e móvel, capaz de separar e reunir, de
ultrapassar as particularidades atravessando-as: o
logos , mediação universal, representação vazia de
presença, portanto ídolo por definição. Na
perspectiva hebraica, porém, o particular é o
elemento móvel do universal. A letra não mais
representa assim a figura de particular, de obstáculo
ao universal. O particular e a individualidade não são
mais uma massa opaca na transparência do
universal, mas uma travessia, uma passagem, um
deslocamento (há’avarah ). A casa é um lugar de
passagem, uma porta onde cada entrada (kanes ) é
uma reunião (kenes, knesset ) e não mais o
encerramento de uma cidadela 127 .
Depois da noite mais escura que do Egito atinge a
historicidade absoluta, a presença não pode mais dar-se
senão num caminho inverso, que do nosso tempo vai até
a luz da noite originária, a soleira transcendente, a
proximidade divina “[...] posta até aquele momento na
sombra do véu. É a imagem da criação, na qual a
presença destaca-se de si própria para fazer passar o
outro, o embrião (‘ubar ’, mesma raiz de ‘passagem’),
para revelar, trazer a sua presença para fora da sua noite
original” 128 .
A identidade que nasce da passagem, do transitar,
do interpretar – em suma, das experiências que
descendem da travessia original do deserto – tem
inevitavelmente traços nômades. Aqui, não têm
nenhuma relevância a precisão lexical, ou o rigor
disciplinar sempre prontos a soprar – como dizia Musil –
como um “vento de morte nos campos do espírito”. Aqui,
o itinerário não é dado por seu conjunto, mas pela ordem
das diversas etapas da viagem, cada uma das quais é
dada pelo percurso e pelas mudanças de orientação que
a caracterizam 129 . O hábitat não tem nenhuma relação
com o território, porque o próprio território recusou
apropriar-se do espaço a ser cruzado. O único
enraizamento possível está dentro de si mesmo.
Ninguém é, de fato, mais enraizado que um nômade 130 .
Não há traduções predispostas, vocabulários de
referência para essa identidade. As suas origens residem
nas figuras da diáspora, do êxodo, do nômade da
consciência, de quem retorna e sempre parte
novamente.
Que pode ser, na verdade, a distância entre o início e
o fim de uma viagem? E que sentido pode ter a viagem
como simples meta a se atingir? Nada. Onde apenas a
meta é importante, o território a se atravessar não tem
importância nenhuma. Mas uma viagem que adquire
sentido apenas enquanto conquista morre ao se
aproximar da meta. E com isso morre também a
identidade construída sobre a meta, a identidade
indiferente à experiência da viagem, a identidade que
sabe separar-se da paisagem.
Essa viagem é como responder a um convite – o
mesmo solicitado por Abraão a deixar tudo, a casa, a
pátria, o amor, a verdade, a salvação. E levar os próprios
passos para a frente, não para visar a alguma outra
coisa, mas para acolher a própria paisagem como
possibilidade sem limites. Nessa exposição ao insólito

[...] pode-se descobrir, até mesmo por uma só noite


ou por um dia, como o céu se estende sobre a terra,
como a noite realça no céu novas constelações,
como a religião reúne as esperanças, como a
tradição faz povos, a solidão faz deserto, a inscrição
faz história, o rio faz curvas, a terra faz sulcos, na
rápida sequência em que se sucedem as
experiências do mundo que fogem a qualquer
tentativa que procure fixá-las e dispô-las em
sucessão organizada, porque, além de cada projeto
orientado, o nômade sabe que a totalidade é fugidia,
que o não sentido contamina o sentido, que o
possível excede o real e que cada projeto que tenta a
compreensão e o abraço total é loucura. Então, a
música cede à cadência erótica; a visão, à
virtualidade da ilusão; o mistério, ao desafio da
interpretação; o corpo, à desventura da alma; a
salvação, à desolação da terra desventurada; a
linguagem, à distorção da verdade; a sexualidade, ao
enigma; a crítica, à crise; a paixão, à passividade; a
identidade, à sua dissolução; o silêncio, ao rumor das
palavras. E, quando o olhar retira-se da paisagem e a
noite dilata a alma, [...] na viagem pode-se descobrir
o engano da inocência, a mortificação do espírito, a
sinuosidade do sentimento, a outra face que a
melancolia revela, as etapas inconclusas de nossa
eterna desordem no jogo de máscaras, útil para
esconder o sem rosto a que chamamos eu , com
quem todos os viajantes atraídos por uma meta
estão terrivelmente envolvidos como à couraça que
esconde todo o seu medo 131 .

Como não pensar em Bruce Chatwin e na sua viva


metáfora da viagem; nas suas leituras do poeta
Coleridge (lembre-se da belíssima Balada do velho
marinheiro 132 ); no seu abandono dos rituais coletivos; no
seu ser viandante noturno , estrangeiro na pátria, errante
de uma casa para outra; na sua incapacidade de criar
raízes onde quer que seja. Coleridge tinha, como muitos,
horror ao domicílio : Caim, o Judeu errante, os
navegadores do século XVI sempre em busca de novos
horizontes 133 . Um destino, o seu, de viajante incansável.
Como o dos nômades em terra, no deserto, para quem,
como para os navegantes, o hábitat não está ligado a um
território, mas aos próprios itinerários. Para eles, o
espaço é inapropriável: pode ser apenas transitado,
abandono ininterrupto dos espaços percorridos. Por isso
ninguém é mais arraigado que um nômade. A metrópole
contemporânea, seus mundos múltiplos, labirínticos,
caóticos, os espaços atópicos, os não lugares são o
teatro de suas travessias. Nesse sentido, somos todos
filhos do êxodo, viajantes desse labirinto. A arquitetura –
Valéry já a havia entendido há muito tempo – como
construção de um lugar “orgânico” onde se habitar, fora
do irresistível “caos das ruas”, está acabada 134 .
No entanto, essa condição não é de fato ligada à
ideia de separação, de erradicação, de não pertinência.
É, ao contrário, uma transavaliação do domínio original, a
transfiguração em um arquipélago de figuras
metamórficas: o errante, o estrangeiro, o eLivros do
próprio exílio. Mas é também interrogação, ética do
distanciamento. De uma distância habitada que se
identifica com o que não tem laços, certeza ou proteção,
que sobre essa abertura constrói a aventura de cada
encontro. Nesse sentido, a viagem não é o caminho mais
curto entre dois pontos da terra, mas, sim, a geografia de
um caminho nunca definitivo, uma história
continuamente decomposta e recomposta na trama
daquilo que herdamos e daquilo que somos 135 .
Essa experiência do mundo lembra a do deserto, de
Edmond Jabes:

[...] os silêncios, as invasões, os céus de pedra, a


solidão de gelo, as pegadas canceladas ou
sepultadas, as vozes de um teatro interno agitado
pelo vento e que com o vento dialoga, a palavra de
um Deus sem rosto e sem nome – destituída de eco e
de resposta –, as vertigens de infinito, os vestígios de
um sentido ferido, indecifrado, perdido, o tempo
queimado e retomado. E depois a escuta do silêncio,
de suas infinitesimais refrações, e vozes; posto que
no deserto esse lugar do ilimite e da passagem,
nesse não lugar, a escuta se dilata até perceber o
pulsar do grão de areia: imagem de tudo aquilo que o
silêncio transpassa e transforma 136 .

O destino do nômade está presente na história do


outro, na história do Ocidente. Como mostrou Lévinas 137 ,
a possessão – como pensamento do enraizamento – é o
ponto de resistência ao distanciamento do “lugar”, da
própria terra, o gesto pelo qual o Outro sempre foi
reconduzido ao Mesmo. Aqui se iniciam todas as formas
de poder. Apenas na posse, de fato, o eu realiza a
identificação do diferente. Possuir quer dizer, na verdade,
salvaguardar a realidade do outro que é possuído. Mas
esse gesto suspende a liberdade, a independência, faz
calar a palavra, o espaço do reconhecimento e da
codivisão.
O discurso sobre a identidade humana é, como
tentamos explicar, profundamente solitário. As tentativas
– feitas ao longo de dois milênios – de defini-la numa
moldura de saber estável, numa dinâmica fixa e
invariável, produziram contramovimentos que fizeram
reflorescer tudo aquilo que o cogito havia tentado
marginalizar. Depois das pretensões de um pensamento
metafísico, que queria libertar o homem das cenas
míticas que o haviam gerado – como um viandante que
crê escolher o caminho, sem perceber ser ele mesmo o
efeito da viagem –, teremos de enfrentar um tempo
ambíguo, mutável, sem nome, mas também menos iluso.
Faltam-nos precisamente os nomes, como Husserl já
compreendera. E isso torna mais difícil falar de um
movimento que corresponda ao nosso próprio gesto
cotidiano. Porém, essa é a única possibilidade de evitar
desfigurar ainda mais o rosto do outro numa teoria da
alteridade abstrata. Sobre isso e por isso, somos
radicalmente interrogados. As ordens jurídicas,
filosóficas, científicas e nosográficas da modernidade não
têm nenhum sentido. Essa viagem não poderá estar a
salvo das categorias de pensamento, nem das categorias
da clínica 138 . As coisas levam para longe, sem plano
preestabelecido. Aos territórios da lógica regulares e
organizados sucederam-se mundos sem âncora, sem
nada que os sustente.
Manter-se no interior dos movimentos da identidade
não é colocá-la num lugar indeciso e indeterminado. O
exercício que se opõe à loucura da redução exige a
inscrição da identidade e da alteridade numa ideia não
simétrica do encontro, que é completamente diferente de
uma liberdade abstrata. É, antes, abandono da tentação
e da pretensão da posse. No encontro, preocupo-me,
como qualquer outro, com aquilo que sou, com quem eu
sou, com aquilo que soube fazer e que estou disposto a
fazer da minha própria existência. Levarei o outro comigo
até onde eu mesmo chegar. Depois, terei que deixá-lo.
Preocupo-me com a existência do outro por meio da
minha própria existência. O encontro, esse encontro, o
nosso encontro, é a aproximação de duas existências.
Origina-se aqui o gesto entre nós , a proximidade
anárquica de um encontro não mediado por nenhuma
idealização, por nenhum princípio. Essa é uma
preocupação (não uma preocupação abstrata, mas a
minha preocupação), a (minha ) responsabilidade pelo
outro, que vem de um além e de um antes da minha
liberdade . Mas essa preocupação é também pensar o
outro no horizonte de uma separação. É nesse campo
infinito de ação, no qual os jogos não estão encerrados,
no qual o diálogo é autêntica improvisação, no qual nos
corresponderemos sem nunca concluir: aqui está, nesse
campo decidimos o espaço da liberdade entre nós .
Apenas aquele que entre nós estiver disposto a apostar a
própria vida, a cada vez e a cada novo encontro, pode
encontrar outro que esteja disposto a apostar mais uma
vez. Isso também pode significar nunca vencer, apenas
pelo risco de apostar alguma coisa juntos. É nessa aposta
que, como queria Pascal, tudo é decidido: o encontro
com o outro e a minha responsabilidade para com ele.
Nessas condições, sem as falsas inocências do nós , eu
poderei continuar sendo eu , e o outro, ainda outro.
1 Carlo Sini, Il profondo e l’espressione: filosofia, psiquiatria e psicoanalisi ,
Milano: Lanfranco, 1991, p. 70.

2 Michel Serres, Passaggio a nord-ovest , Parma: Pratiche Editrice, 1984, p.


27. É inevitável a leitura do duro ato de acusação do autor à rude
contraposição entre ciências exatas e ciências humanas.

3 Aldo G. Gargani, Il filtro creativo , Roma-Bari: Laterza, 1999. Do mesmo


autor, ver Il coraggio di essere , Roma-Bari: Laterza, 1992.

4 Edoardo Benvenuto, Incontro con il post-moderno , Milano: Feltrinelli,


1984.

5 Sobre o tema da doença identitária que decorre da absolutização unitária


dos processos psíquicos, é de grande interesse a leitura de Eugène
Enriquez, “Il soggetto umano: dalla chiusura identitaria all’apertura al
mondo”, em: Roger Dorey et al ., L’inconscio e la scienza , Roma: Borla,
1996. Ao predomínio da ideia monística que influenciou a tradição
psicológico-filosófica ocidental em suas expressões totalitárias e
violentas, o autor contrapõe uma filosofia da diferença e do múltiplo.
Instâncias estas logicamente incompatíveis com a racionalidade clássica
ocidental, que postulava sua neutralização segregando-as à perspectiva
do sujeito.

6 Carlo Montaleone, Homo loquens: persone, contesti, credenza , Milano:


Cortina, 1998, p. 140.

7 Frank J. Sulloway, Freud biologo della psyche: al di là della leggenda


psicoanalitica , Milano: Feltrinelli, 1982.

8 Andre Green, “Atomo di parentela e relazioni edipiche”, in: Claude Lévi-


Strauss (org.), L’identità , Palermo: Sellerio, 1980.

9 Remo Bodei, Scomposizioni: forme dell’individuo moderno , Torino:


Einaudi, 1987. Do mesmo autor, Geometrie delle passioni , Torino:
Einaudi, 1991. Para uma reconstrução do problema da subjetividade, ver
também Davide Sparti, Soggetti al tempo: identità personale tra analisi
filosofica e costruzione sociale , Milano: Feltrinelli, 1997.
10 Jacques Lacan, Le Séminaire xi: les quatre concepts fondamentaux de la
psycanalyse , Paris: Seuil, 1973, p. 26.

11 Sobre esse risco, mas principalmente sobre a crítica em chave


antissubjetivista e anti-idealista, ver Jacques Lacan, Scritti , Giacomo
Contri (org.), Torino: Einaudi, 1974; e ainda, do mesmo autor, La cosa
freudiana , trad. Giacomo Contri e Sciana Loaldi, Torino: Einaudi, 1972.

12 Eugène Enriquez. “Vers la fin de l’intériorité”. Psycologie clinique , n. 2,


1989. pp. 61-78. Ver sobre esse tema, do mesmo autor, “L’individu pris
au piège de la structure stratégique”. Connexions , n. 54, 1989, pp. 145-
61.

13 Vittorio Lingiardi. “II sé come spirito del luogo”. Rivista di psicologia


analitica , n. 4, 1998, pp. 56-97. A reflexão do autor evidencia como o
debate psicanalítico contemporâneo sobre o self é permeado pela tensão
criativa entre a representação do self como múltiplo e descontínuo e a do
self como único e contínuo.

14 Emmanuel Lévinas, Scoprire l’esistenza con Husserl e Heidegger , Milano:


Cortina, 1998, p. 129.

15 Dietrich Bonhoeffer, Ética , Brescia: Morcelliana, 1995.

16 Michel Foucault, Le parole e le cose , Milano: Rizzoli, 1978, p. 14. Edição


brasileira: idem , As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas , trad. Salma T. Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.
20-1.

17 Parmênides, O poema de Parmênides: da Natureza . Edição do texto


grego, tradução e comentários por Fernando Santoro. Laboratório ousia,
disponível em: <www.ifcs.ufrj.br/~afc/2007/parmenides.pdf >, acesso em
outubro de 2013.

18 Idem , p. 103.

19 Franz Rosenzweig, La stella della redenzione , Gianfrancesco Bonola


(org.), Casale Monferrato: Marietti, 1985, p. 14.

20 Jacques Derrida, La scrittura e la differenza , trad. Gianni Pozzi, Torino:


Einaudi, 1982, p. 114.
21 Idem , p. 120.

22 Sobre este tema, ver Massimo Cacciari. “Risposte”. Filosofia e teologia ,


VII , 1993. A meditação sobre a hybris e seus limites constitutivos do logos
, o esforço de pensar a pura alteridade fora do campo dialético hegeliano
(aqui se evidencia a critica à dialética hegeliana e à concessão avançada
do negativo por parte da filosofia e da teologia contemporâneas), não
pode ser desenvolvida utilizando-se segmentos daquele mesmo sistema,
mas indagando-se as aporias relativas à concessão inicial. Ver também
do mesmo autor, “L’europa di María Zambrano”. Paradosso . Venezia:
1994, n. 8, pp. 174-5. Para Cacciari, o Início anula o princípio de não
contradição, mas nem por isso é pura contradição. A destituição dos
opostos, à sua volta, não assegurada ou necessitada desde sempre: a
possibilidade de que eles, em vez de se unirem, se separem, está sempre
aberta.

23 Thomas Cahill, Come gli ebrei cambiarono il mondo , Roma: Fazi, 1999, p.
51.

24 Essa obra fala de um herói lendário que viveu provavelmente por volta
da metade do terceiro milênio antes de Cristo, e foi rei de Uruk, a cidade
onde foi inventada a escrita. Figura com atributos mitológicos, guerreiro
feroz como um touro e forte como uma onda, foi também engenheiro
genial e insuperável navegador.

25 A epopeia de Gilgamesh , trad. Carlos Daudt de Oliveira, São Paulo:


Martins Fontes, 1992, p. 147.

26 Segundo a arqueologia, a Suméria foi um aglomerado de cerca de 25


cidades-estados, solidamente coesas pela cultura e pela organização.
Com sua expansão, tornou-se forte a ponto de dominar toda a
Mesopotâmia, abrangendo intensos laços comerciais e políticos que se
estendiam do vale do Nilo ao vale do Indo.

27 Ernesto de Martino, apud Riccardo Di Donato, Greci selvaggi:


antropologia storica di Ernesto de Martino , Roma: Manifesto, 1999, p. 51.

28 Idem , p. 52.

29 Idem , ibidem .
30 Gherardo Ugolini, Sofocle e Atene: vita politica e attività teatrale nella
Grecia classica , Roma: Carocci, 2000, p. 121.

31 Idem , ibidem , p. 135.

32 George Steiner, Le Antigoni , Milano: Garzanti, 1990, p. 260.

33 Rosella Prezzo, “La scrittura del pensiero in María Zambrano”, in: María
Zambrano, La tomba di Antigone , Milano: Tartaruga, 1995, p. 20.

34 Idem , ibidem .

35 Heráclito, Frammenti , M. Marcovich (org.), Firenze: Ponte alle Grazie,


1978, p. 85.

36 Sobre o tema, ver Salvatore Natoli, L’esperienza del dolore: le forme del
patire nella cultura occidentale , Roma-Bari: Laterza, 1986. Ver também o
ensaio de Yvon Garlan, “L’uomo e la guerra”, in: Jean-Pierre Vernant
(org.), L’uomo greco , Roma-Bari: Laterza, 1999.

37 Friedrich Nietzsche, Ecce homo , v. IV , t. III , Milano: Adelphi, 1970, p. 321.


Edição portuguesa: Ecce Homo , trad. Artur Morão, Covilhã: Lusofia Press,
2008.

38 James Hillman, Saggio su Pan , Milano: Adelphi, 1977, pp. 91-2.

39 Carl Schmitt, Ex captivitate salus , Milano: Adelphi, 1987, pp. 91-2.

40 Michel Serres, Passaggio a Nord-Ovest , Parma: Pratiche, 1984. É


indeclinável o convite de Serres à viagem, que ele chama de
Détachement , pelo caminho imprevisível de divisão e separação, que até
aqui tem marcado a cultura ocidental. A aventura, a viagem
extraordinária, a que ele alude, é por um país chamado Enciclopédia,
para explorar seus territórios, redesenhar seus mapas e ligar os espaços
que nossa tradição cultural separou. Aqui, o método e o percurso
coincidem e enunciam a topografia imagética de nossa própria
interrogação.

41 Idem , ibidem , p. 18.

42 Idem , ibidem , p. 19.


43 O mito de Prometeu está ligado à descoberta do fogo, à apropriação por
parte dos homens da centelha divina para utilizá-la em seu proveito.
Prometeu rouba o fogo dos deuses para trazê-lo à terra, contrariando a
decisão de Zeus de escondê-lo dos homens como punição. O fundo do
mito – que, como se sabe, tem muitas interpretações – é representado
pela vicissitude teogônica. Prometeu assiste ao reinado de Cronos e à
passagem do cetro de suas mãos para as do filho Zeus. Primeiro, ele se
põe ao lado de Zeus, contra seus irmãos, os Titãs, mas depois acaba
punido pelo furto do fogo. Em Ésquilo, isso se dá como um ato de rebelião
e violação das leis de Zeus, que constitui uma escolha consciente de
Prometeu em favor dos homens, assim como é consciente a aceitação
das penas decorrentes de seu ato. Prometeu será acorrentado à rocha
caucasiana, exposto aos ventos e ao sol, para ser depois precipitado no
Tártaro, onde uma águia, de dia, devorará seu fígado, que à noite se
reconstituirá para que seu tormento seja renovado.

44 O psicopatólogo, no mundo pós-moderno e pós-industrial, fora de todo


baluarte ideológico, numa multiplicidade de referências culturais, é um
homem que navega o olhar, que encontra náufragos e desgarrados, que
se detém com eles, que relata; que, como Ulisses, ouve relatos feitos por
outros sobre suas próprias aventuras, e que muitas vezes não tem nem
sequer uma verdadeira identidade para revelar. Hoje, não há mais deuses
para desafiar e a consciência não é mais um patrimônio estático de quem
quer que seja: nem dos velhos sábios, nem da história, nem do poder.
Hoje a consciência só pode ser viagem, na qual cada meta prefixada logo
se torna ilusória, cada etapa é apenas uma expectativa temporária. Com
efeito, o novo verbo desse Ulisses, criatura humana, já não é iluminar
(fiat lux ), que é um ato divino, mas errar, que, na sua dupla acepção de
movimento e de erro, é um autêntico ato humano: errar derivando para
uma sempre tão improvável quanto metafórica Ítaca, e, errando,
encontrar outros homens errantes, todos aqueles que, estando parados, é
realmente impossível encontrar.

45 Predrag Matvejevic, Mediterraneo: un nuovo breviario , Milano: Garzanti,


1991, p. 165.
46 Sobre essas irredutíveis antinomias, polaridades espirituais e culturais,
Carl Schmitt distingue os fundamentos de um nomos da terra como
oposição dialética entre Raumrevolution e Landnahme , entre revolução
na concessão do espaço e apropriação da terra e do mar. Sobre esse
tema, ver o ensaio introdutivo de Angelo Bolaffi, em: Carl Schmitt, Terra e
mare , Milano: Giuffrè, 1986. Nessa obra, Schmitt tenta o caminho de
uma síntese audaz das diversas tradições culturais e filosóficas, em que
os elementos primordiais de terra e mar determinam a existência e o agir
humanos, as características da organização, como também as formas de
guerra. O ensaio, que antecede a obra capital de Schmitt, ll nomos della
libertà , é decisivo para entender o conflito entre potências de terra e de
mar, a luta extrema que contrapõe as figuras bíblicas do “grande Leviatã”
ao do potente “Behemoth”; e que, no horizonte do jus publicum
europaeum , agora em seu declínio, reaparece como crise da soberania
do Estado e sombra da “guerra civil mundial”.

47 Luigi Panarese, “Introdução”, in: Fernando Pessoa, Poesie , Firenze:


Passigli, 1993, p. 40.

48 Ver o belíssimo ensaio de Michel Serres, Le origini della geometria , trad.


Alessandro Serra, Milano: Feltrinelli, 1994, em que a procura da terra de
origem da geometria o leva a uma terra desconhecida que não é nem
Oriente nem Ocidente, nem Norte nem Sul. É antes um lugar sem
história, sem raízes, o mais imemorial dos nossos universos. Mas a
viagem às origens da geometria transformou a questão da representação
das figuras e das metáforas do seu espaço. Mas, mais ainda, a questão
do tempo.

49 Friedrich Nietzsche, La nascita della tragedia , Milano: Adelphi, 1972.

50 Idem , “La geneaologia della morale”, in: Opere , Milano: Adelphi, 1968,
v. vi, t. II , p. 239. Nietzsche põe o ressentiment na base da consciência
moral do homem europeu. Reconstrói toda a história da sociedade e
grande parte da reflexão filosófica ocidental à luz do ressentimento como
instinto de vingança. Para Nietzsche, a história da humanidade tem como
fundamento uma relação de dominação em que estão submetidos tanto
dominadores quanto dominados. É a moral dos escravos que se estende
aos patrões, deixando-os com uma visão comum do mundo, qualificada
exatamente como ressentiment . Sobre esse tema, ver o livro de
Domenica Mazu, Il complesso dell usurpatore , 2. ed., Milano: Giuffrè,
1999. Ver também René Girard, Il risentimento: lo scacco del desiderio
nell’uomo contemporaneo , Milano: Raffaello Cortina Editori, 1999; Max
Scheler, Il risentimento nella edificazione delle morali , Angelo Pupi (org.),
Milano: Vita e Pensiero, 1975; assim como Franco Fornari, La malattia
dell’Europa , Milano: Feltrinelli, 1981.

51 Umberto Galibmerti. “Quanti misteri nascosti in un simbolo”. La


Repubblica , 7 abr. 2000. Sobre esse tema, ver, do mesmo autor, Psiche e
teche , Milano: Manifesto, 1999; Gli equivoci dell’anima , Milano:
Feltrinelli, 1987; Parole nomadi , Milano: Feltrinelli, 1994.

52 Idem . “Quanti misteri nascosti in un simbolo”. La Repubblica , 7 abr.


2000.

53 Sobre o tema, em particular pela análise aguda da obra de Aby Warburg,


ver Mario Pezzella, Il volto de Marilyn: l’esperienza del mito nella
modernità , Roma: Il Manifesto, 1999.

54 É interessante recordar, nesse sentido, a análise dos processos de


pensamento dos esquizofrênicos realizada por Segai com o modelo
fecundo das equações simbólicas, caracterizado pela dissolução das
operações lógicas transicionais em que os símbolos são elaborados e
identificados como objetos em que o como se se dissolve. Em outras
palavras, se para o paciente neurótico é como se o terapeuta fosse o pai
(como se uma gruta representasse o útero), para o esquizofrênico o
terapeuta é o pai, a gruta é um útero que ameaça e destrói, com a
consequente sensação de terror vivo e imediato.

55 Carl Gustav Jung, Tipi psicologici, in: Opere , v. vi. Torino: Boringhieri,
1969.

56 Idem , ibidem , p. 118.

57 Idem , ibidem , p. 119.

58 George Groddeck, II libro del Es: lettere di psicoanalisi a un’amica ,


Milano: Adelphi, 1961, p. 19.

59 Idem , ibidem , p. 41.


60 Mauro Maldonato, “Semiotica e dialogo psicoanalitico”, in: Massimo
Bonfantini e Marco Lombardi (orgs.), Specchi del senso II , Napoli:
Lombardi, 1998.

61 María Zambrano, L’agonia dell Europa , Venezia: Marsilio, 1999, pp. 77-8.

62 Gilles Deleuze, “Pensiero nomade”, in: Divenire Molteplice: saggi su


Nietzsche e Foucault , U. Faclini (org.), Verona: Millepiani, 1996.

63 Michel Serres, Passagio a Nord-Ovest , introd. Mario Porro, Parma:


Pratiche, 1984, p. 6.

64 Jacques Derrida, op. cit. , p. 104.

65 Ferruccio Masini, Il travaglio del disumano: per una fenomenologia del


nichilismo , Napoli: Bibliopolis, 1982, p. 107. A análise de Masini da obra
de Ugo von Hofmannsthal, contida no ensaio “Lo sguardo della Medusa”,
nos acompanha até o limite extremo e insuperável que se opõe à visão
reificante do Outro, ao olhar prevaricador, de uma “[...] embriaguez
intelectual da visão que se manifesta como ocorre no abismo da
interioridade e é exatamente nesse horror que se torna evidente o nexo
entre a própria essência da visão e o princípio da destruição e da morte”
(p. 100). Sobre a figura da Medusa, em torno da qual o imaginário grego
projeta a alteridade absoluta, elaborando sua ideia da morte e como
figura da desordem cósmica, irredutível e indizível, a soleira além da qual
se iniciam as trevas da noite, ver Jean-Pierre Vernant, La morte negli
occhi , Bologna: Il Mulino, 1987.

66 María Zambrano, Delirio e destino , Milano: Cortina, 2000, p. 289.

67 Michel Serres, “Discorso e percorso”, in: Lévi-Strauss (org.), L’identità ,


Palermo: Sellerio, 1980, p. 38.

68 A. G. Gargani, Il filtro creativo , Roma-Bari: Laterza, 1999. Ver também,


do mesmo autor, Lo stupore e il caso , Roma-Bari: Laterza, 1985.

69 Franco Rella, Negli occhi di Vincent: l’io nello specchio del mondo ,
Milano: Feltrinelli, 1998.

70 Jean Marie Benoist, “Sfaccettature dell’identità”, in: Claude Lévi-Strauss


(org.), L’identità , Palermo: Sallerio, 1980.
71 Idem , ibidem , pp. 22-3.

72 A propósito da sombra e de seu campo de gravidade psicopatológico, é


imprescindível a leitura de Bruno Callieri, Quando vince l’ombra: problemi
di psicopatologia clinica , Roma: Edizioni Universitarie Romane, 1982. Ver
também, por outros motivos e declinações: Jorge Luis Borges, Elogio
dell’ombra , Torino: Einaudi, 1998.

73 Émile Benveniste, Problemes de linguistique générale , v. I e II , Paris: PUF ,


1974, p. 252.

74 Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de autointerpretação . Textos


estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado
Coelho, Lisboa: Ática, 1966.

75 Franco Rella, Confini: la visibilità del mondo e l’enigma della


autorappresentazione in libri e riviste , Bologna: Pendragon, 1996, p. 34.

76 Sobre esse tema, Angel Crespo, A vida plural de Fernando Pessoa ,


Barcelona: Bertrand, 1988; Mário Saraiva, O caso clínico de Fernando
Pessoa , Lisboa: Edições, 1990; Antonio Tabucchi, Un baule pieno di
gente: scritti su Fernando Pessoa , Milano: Feltrinelli, 1980.

77 Antonio Tabucchi, “Prefazione”, in: Fernando Pessoa, Il libro


dell’Inquietudine , Milano: Feltrinelli, 1991, p. 10.

78 Giorgio Agamben, Quel che resta di Auschwitz , Torino: Bollati Boringhieri,


1998, pp. 108-9. Retomando e radicalizando o horizonte de pesquisa de
Homo sacer , Agamben demonstra como enunciar, dizer eu , expõe a
impossibilidade de preencher o hiato que separa o ato da enunciação das
próprias experiências vividas e como o irromper do ato da consciência na
instância do discurso (a subjetivação) seja um trauma que os homens
tentam curar e como o frágil texto da consciência se desfaz e se apaga,
apontando o desvio sobre o qual se constitui a de-subjetivação de cada
subjetivação.

79 André Neher, “Vision du temps et de l’histoire dans la culture juive”, in:


Les cultures et le temps , Paris: Gallimard, 1975, p. 173.

80 Giorgio Agamben, op. cit. , p. 113.


81 René Girard, La violenza e il sacro , Milano: Adelphi, 1980, p. 224. Edição
brasileira: A violência e o sagrado , trad. Martha Conceição Gambini, 2.
ed., São Paulo: Unesp, 1990. Do mesmo autor, ver também: Coisas
ocultas desde a fundação do mundo , trad. Martha Gambini, São Paulo:
Paz e Terra, 2009.

82 Esclarecedora a leitura de Foucault da obra de Blanchot sobre a


linguagem da simulação e sua necessidade de transformar a linguagem
reflexiva desde fora, levando-nos longe das aporias autorreflexivas do
espelho da interioridade. Michel Foucault, Il pensiero del fuori , Milano: se,
1998, p. 26.

83 O conceito de crise da presença permeia toda a pesquisa de Ernesto de


Martino. O estudioso napolitano viveu, iluminado pelo estreitíssimo
diálogo com Bruno Callieri, uma intensa experiência existencial e
intelectual, até o limite entre a pesquisa filosófico-antropológica e o
próprio sofrimento psicopatológico. A esse respeito, é fundamental a
leitura de Clara Gallini, (org.), La fine del mondo: contributo all’analisi
delle apocalissi culturali , Torino: Einaudi, 1977. Para a síndrome do fim do
mundo, não se pode deixar de ler, de Bruno Callieri, Quando vince
l’ombra: problemi di psicopatologia clinica , Roma: EUR , 1982, em que se
revive a força das memoráveis conversas entre Callieri e De Martino, nos
quais se reconectam os diversos fios de suas vicissitudes humanas.

84 Gilberto Di Petta, Il mondo sospeso , Roma: EUR , 1999. O autor analisa


esse conceito com extremo radicalismo, tornando a questionar a
psiquiatria com base nas transformações temporais que dissolveram seu
caráter autocêntrico (desconstrução, descanonização, desmistificação),
deixando o horizonte do pathos humano numa fragmentação
caleidoscópica.

85 Mauro Maldonato e Gilberto Di Petta, Lineamenti di psicopatologia


fenomenologica , introd. Aldo Masullo, Napoli: Guida, 1999.

86 Ver o ensaio sobre a poética filosófica de Paul Celan em Vincienzo Vitiello,


Non dividere il sì dal no: tra filosofia e letteratura , Roma-Bari: Laterza,
1996. O autor mostra como a palavra poética pode ser o pathos que
chega à porta do invisível e indizível, arraigada na ausência; que não
busca resoluções improváveis, mas fala das dissonâncias, dos conflitos,
das contradições; que é infinita interrogação, pergunta originariamente
marcada pelo fracasso, mas que, no entanto, torna a propor-se
incansavelmente.

87 Devo ao pensamento de Luigi Pareyson e a sua releitura da grande


literatura existencialista e hermenêutica a tematização da liberdade
contraposta ao nada e à necessidade. Ver, particularmente, Luigi
Pareyson, Ontologia della libertà , Torino: Einaudi, 1995; Ver também, do
mesmo autor: Filosofia della libertà , Genova: Il Nuovo Melangolo, 1990.

88 Franz Kakfa, “Il ponte”, in: Il messaggio dell’imperatore , trad. Anita Rho,
Torino: Einaudi, 1952.

89 Ferruccio Masini, Il travaglio del disumano , Napoli: Bibliopolis, 1982, p.


258.

90 Peter Handke, “Trasformazioni nel corso della giornata”, in: Il mondo


interno dell’esterno dell’interno , trad. B. Bianchi, Milano: Rusconi, 1980,
pp. 52-4.

91 Apud , Paolo Gambazzi, L’occhio e il suo inconscio , Milano: Cortina, 1999,


p. 71.

92 Idem , ibidem , pp. 72-3.

93 Jacques Derrida, op.cit. , p. 121.

94 Dino Buzzati, “Il deserto dei tartari”, in: Dino Buzzati, Sessanta raconti ,
Milano: Mondadori, 1995.

95 Na segunda das Considerações inatuais , com o título eloquente Da


utilidade e dos inconvenientes da história para a vida , Nietzsche move
uma crítica dura e irônica ao historicismo, isto é, à visão positivista que
estuda a história como se fosse um objeto de observação científica.
Nietzsche capta magistralmente as características da mentalidade
historicista: o estudioso vaga como um turista no jardim da História,
atento a todas as belezas, mas, como escreve Franco Volpi, totalmente
“[...] incapaz de ação histórica: comporta-se como um observador
isolado, indiferente à tradição e à utopia, em conformidade com aquele
tout comprendre que é ao mesmo tempo tout pardonner e que o priva da
força de decidir, isto é, de agir”, em Franco Volpi, Il nichlismo , Roma-Bari:
Laterza, 1997, p. 93. Do mesmo teor será a critica ao historicismo do
jovem Carl Schmitt. Na belíssima sátira “I Buribunki: un saggio di filosofia
della storia”. L’informazione Bibliografica , XXII , n. 3-4, Bologna: 1996, p.
450, em que o grande jurista alemão focaliza a base intelectual do
moderno, levantando uma crítica radical à fé – do historicismo – nos fatos
históricos e em seu excesso, partindo da filosofia da história.

96 O famoso quadro de Edvard Munch, O grito , é um traço fortíssimo da


grande temática da alienação, da desagregação, da solidão,
exteriorizadas como um sentimento desesperado e desinteressado; um
tema moderno de uma época chamada “era da angústia”.

97 Franz Rosenzweig, op. cit. , pp. 9-10.

98 Sobre a crise da positividade infinita da religião que concilia em si


mesma Temporalidade e Verdade, da razão absoluta como veracidade
divina, segundo Descartes, é absolutamente indispensável a leitura de
Jacques Derrida, “Cogito e storia della follia”, in: La scrittura e la
differenza , Einaudi: Torino, 1977. p. 73. Nesse ensaio, que representa um
febril e agudo confronto com o pensamento de Foucault, Derrida escreve:
“Deus é o outro nome do absoluto da própria razão, da razão e do sentido
em geral. E o que mais tem o poder de excluir, reduzir ou, o que no fundo
é a mesma coisa, compreender de modo absoluto a loucura , senão a
razão em geral, a razão absoluta e sem determinação, cujo outro nome é
Deus para os racionalistas clássicos? Não se pode acusar todos aqueles,
indivíduos ou sociedade, que recorreram a Deus contra a loucura, de
procurar colocar-se ao abrigo, garantindo para si defesas, fronteiras,
asilos, a não ser fazendo desse refúgio um refúgio finito no mundo,
fazendo de Deus um terceiro ou uma potência finita, o que equivale a
dizer: enganando-se; enganando-se nem tanto sobre conteúdo e sobre a
finalidade efetiva desse gesto na história, mas sobre a especificidade do
pensamento e do nome de Deus. Se a filosofia teve lugar – o que é
sempre um fato contestável –, teve lugar somente na medida em que
concebeu o plano de pensar além do refúgio finito. Ao descrever a
constituição histórica desses abrigos infinitos, no movimento dos
indivíduos, das sociedades e de todas as totalidades finitas em geral, é
possível, no máximo, descrever tudo – e é uma tarefa legítima, imensa,
necessária – salvo o próprio projeto filosófico. E salvo o projeto daquela
própria descrição. Não é possível pretender que o projeto filosófico dos
racionalismos infinitistas tenha servido como instrumento ou álibi para
uma violência histórico-político-social finita, no mundo (o que é, por outro
lado, indubitável), sem ter que reconhecer e respeitar, antes de tudo, o
sentido intencional daquele mesmo projeto. Em seu próprio sentido
intencional, ele se dá como pensamento do infinito, ou seja, daquilo que
não se deixa esgotar por nenhuma totalidade finita, por nenhuma função
ou determinação instrumental, técnica ou política. Mas, poderão dizer,
está exatamente no dar-se como tal a sua mentira, a sua violência e a
sua mistificação; ou ainda a sua má-fé. E é necessário, sem dúvida,
descrever rigorosamente a estrutura que une essa intenção exorbitante à
totalidade histórica finita, é necessário determinar a sua economia. Mas
essas astúcias econômicas não são possíveis, como toda astúcia, senão
por palavras e intenções finitas, de modo que constituam uma à outra.
Não se pode mentir quando não se diz nada (de finito ou de
determinado), quando se diz Deus, o Ser ou o Nada, quando não se
modifica o finito no sentido declarado da sua palavra, quando se diz o
infinito, ou seja, quando se deixa que o infinito (Deus, o Ser ou o Nada,
porque é próprio do sentido do infinito não poder ser uma determinação
ontológica/ôntica entre os outros) se relate e se pense. O tema da
veracidade divina e a diferença entre Deus e o Demônio Maligno
iluminam-se assim com uma luz que é só aparentemente indireta. Em
última análise, Descartes sabia que o pensamento finito não tinha – sem
Deus – o direito de excluir a loucura etc. E, na verdade, ele a exclui
sempre somente de fato, violentamente, na história; ou melhor, essa
exclusão e essa diferença entre o fato e o direito são a historicidade, a
possibilidade da própria história. Que diz Foucault de diferente? “A
necessidade da loucura...”, acrescenta Derrida “[...] está ligada à
possibilidade da história”.

99 Friedrich Nietzsche, “La Gaia Scienza”, in: Opere , v. v, t. 2, Milano:


Adelphi, 1965, pp. 120-30. Edição brasileira: A gaia ciência , trad. Paulo
César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

100 Franz Rosenzweig, op. cit. , p. 10.


101 Idem , ibidem , p. 67.

102 Hermann Broch, Gesammelte Werke , v. 7, Zurique: Erkenen und


Handeln, 1965, apud André Neher. L’esilio della parola , Genova: Marietti,
1997, pp. 155-6.

103 Naturalmente, o risco que corre (ainda), constantemente, a definição de


borderline , é o de tornar-se um confortável conjunto de rejeições, ou
uma espécie de subcategoria sem maiores especificações, na qual sejam
inseridas à força todas as condições que não logram obter uma
especificação clínica e nosográfica mais congruente.

104 Depois de se ter tornado independente de sua origem filosófica, a


psiquiatria foi perdendo aos poucos o contato com o espírito do próprio
tempo, contato que, ao contrário, foi conservado pelos mais finos
instrumentos antropológicos, sociológicos e culturais das ciências
humanas. Se, por um lado, esse impulso à frente da psiquiatria como
conhecimento sobre um objeto específico a fez viver uma longa estação
de pujança, por outro, porém, prendeu-a à incerteza infinita de questões
que, por sua própria constituição, não podem ser reduzidas a um único
plano, tampouco a uma integração simplista de mais planos (o modelo
biopsicossocial): entre as questões insondáveis está a da personalidade.

105 Atualmente, no âmbito das psiconeurociências, cerca de vinte teorias


competem entre si para fornecer um modelo explicativo da personalidade
humana, e, ao contrário da concepção epistemológica de Kuhn, nenhum
dos paradigmas propostos, ao menos nos últimos vinte anos, tem
prevalecido fortemente sobre os outros. Diante dos crescentes dados
empíricos que afluem para esse setor, muito recentemente (1998),
Clarkin e Lenzeweger divulgaram uma proposta esclarecedora citando
aqueles que, segundo eles, são os cinco principais modelos que se
enfrentam nesse campo: o cognitivista, de Pretzer e Beck; o psicanalítico,
de Kernberg; o interpessoal, de Benjamin; o evolucionista, de Millon e
Davis; e a abordagem neurobiológica, de Devue.

106 Outra frente de estudos em expansão é aquela que trata do


temperamento, que vem sendo cada vez mais considerado como o
hardware biológico da pessoa, como um tipo de padrão que, em suma,
permite expressividades limitadas de caráter, experiência e cultura. Esses
novos modelos extrabiológicos, ou epigenéticos, derivariam, mais ou
menos diretamente, das interações precoces com uma figura
significativa, que, na mutação de configuração da família contemporânea,
frequentemente não é mais sequer um dos pais. É por meio dessa figura
de cuidador que os anglo-saxões cunharam o termo caregiver .

107 Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos de grande difusão da


teoria e da técnica psicanalítica, o aparecimento de casos clínicos que
tendiam a se apresentar como neuroses normais, infringindo
inesperadamente as regras do setting clássico (desenvolvendo, por
exemplo, psicose de transferência ou escassa capacidade do controle dos
impulsos, ou outros elementos típicos dos estados psicóticos), colocou
dramaticamente em crise a capacidade da teoria psicanalítica de fazer
uma leitura adequada do espectro clínico observado com base na
metapsicologia freudiana clássica. Em particular, ou se ampliava o campo
de indicação da análise das condições patológicas reconduzíveis a
temáticas conflituais pré-edipianas ou se admitia sua desatualidade para
um número de casos cada vez maior. O estudo aprofundado dessas
constelações personalógicas e sintomatológicas, conduzido por analistas
que tiveram a preparação clínica de Schmideberg, de Kohut, de
Kerneberg, no entanto, permitiu, em tempo relativamente curto, chegar a
uma conceitualização mais razoável da psicopatologia e da dinâmica
borderline , centrada, principalmente, em torno do paradigma narcisista
mais do que em torno do edipiano. Narciso e Hamlet, muito mais do que
Édipo, tornaram-se, assim, os topoi mitológicos e conceituais, na base da
compreensão das estruturas borderline de personalidade, como categoria
da modernidade psiquiátrica.

108 A reflexão psicanalítica sobre essas estruturas fronteiriças, que, além da


contribuição americana, é devedora da aguda reflexão francesa de Jean
Bergeret (sobre as desestruturações e sobre as relações entre estados-
limite e personalidade anaclítica, isto é, dependente) e de André Green
(psicose branca e loucura privada), é amplamente apoiada pelas
teorizações de Klein, Mahler, Jakobson, pela teoria das relações objetais,
pela psicologia chamada do eu (Hartmann, Kris, Lowenstein e Rapapott) e
também pela recente psicologia do self . De resto, à luz dessas reflexões,
também os casos clínicos clássicos, aqueles tratados e descritos por
Freud nos estudos sobre a histeria, de Anna O. e Dora, começaram a ser
reinterpretados à luz do surgimento de núcleos pré-edipianos e de defesa
de tipo arcaico em sujeitos de aparência neurótica.

109 O analista dos casos impossíveis, como era definido quem, como Kohut,
em São Francisco, ocupava-se ativamente de pacientes – como os
borderline e narcisistas, considerados impossíveis de serem submetidos à
análise pelos outros, era, geralmente, um médico disposto e pronto a
contínuas infrações do setting a fim de enfrentar as instâncias
impossíveis do paciente, absolutamente incontíveis nas dimensões da
psicanálise clássica, com os psiquiatras responsáveis pela gestão
farmacológica do paciente e/ou com as estruturas idôneas para uma
contenção hospitalar dos sujeitos.

110 Kernberg, ao contrário, mais pragmático, baseia sua conceitualização da


organização borderline de personalidade, sobretudo no nível da
agressividade, da dispersão da identidade (identity diffusion ), e se
encaminha para um tipo de classificação do transtorno borderline , ou
seja, concebe um nível alto de distúrbio, no limite da neurose histérica e
obsessiva, um nível intermediário, que se confunde com o narcisismo, e
um nível baixo, que compreende as personalidades esquizoides,
paranoides e antissociais. O nível de gravidade é avaliado conforme o
tipo predominante de operações defensivas que o paciente utiliza. A
desvantagem desse modelo é que ele corre o risco de parecer
completamente descontextualizado em relação ao espírito do tempo e,
em alguns momentos, quase como uma tábua pitagórica, em que a
algumas premissas devem se seguir algumas conclusões. O limite do
modelo de Kernberg é o de parecer o suporte de uma base teórica para
as abordagens nosográficas correntes e fornecer uma base para a
preditividade clínica útil ao tratamento psicoterápico de orientação
psicanalítica. As premissas fecundas se dissolvem, em suma, como toda
abordagem que ambicione ser estrutural, diante dos novos conceitos de
espectro, de continuum , de dimensão, de transnosografia e de
comorbidez.

111 Os psicanalistas foram, sob esse aspecto, e a sua revelia, os


precursores dos atuais psiquiatras em campo. Porque eles, não
trabalhando nas instituições, mas predominantemente em seus
consultórios particulares, acabavam por atingir com uma visão, ainda que
filtrada, o campo dos fenômenos psicopatológicos emergentes, ao passo
que os psiquiatras institucionais continuavam a se ocupar de psicoses
clássicas.

112 Callieri se esforçou, por um lado, em firmar o próprio discurso com as


várias conceituações psicodinâmicas e cognitivas, com os dados
neurobiológicos, com as nosografias contemporâneas, ainda que não
tenha nunca renunciado, por outro lado, a firmar o distúrbio borderline
por meio da noção husserliana de mundo da vida e do conceito
heideggeriano de existência, Dasein , ou exercício. A vantagem de uma
abordagem fenomenológica em relação às outras teorizações é que ela é
mais desvinculada da necessidade terapêutica como necessidade de
intervenção e de modificação do fenômeno que observa: tanto no plano
farmacológico quanto no plano psicodinâmico. Mas, principalmente, é
desvinculada da necessidade de classificação nosográfica. O
psicopatologista de orientação fenomenológica, depois de ter colocado
muitas coisas entre parênteses, pode ampliar o horizonte de
compreensão do fenômeno borderline : tentando, por exemplo, enquadrá-
lo como a imagem humana (a última imagem histórica) dividida e
paradoxal da modernidade.

113 O estudo da presença humana borderline em termos de mundo, corpo,


tempo e espaço, conduzido nos últimos trinta anos por Callieri, permite-
nos juntar elementos que reencontramos, perfeitamente isomórficos, na
arte contemporânea e na arquitetura de nossas cidades, na poesia, no
próprio modus vivendi do homem contemporâneo, assim descontinuado
entre as próteses tecnológicas e a própria experiência diária. A impressão
que os observadores da modernidade registram é unanimemente, como
insinuei na abertura, a de um contínuo descentramento, ou de um
deslocamento da divergência, para as margens daqueles que eram os
parâmetros históricos e clássicos, até o limite do absurdo, na soleira do
impensado, às raias de qualquer possibilidade. A reconsideração da
patologia borderline em termos antropológicos, além de clínicos,
conduziu Callieri a ponto de dizer, num recente trabalho, que a
personalidade dos jovens deste fim de milênio é quase inteiramente
codificada no sentido borderline . Se por um lado isso atenua a conotação
estritamente doentia da definição de borderline , por outro, lança as
bases para um horizonte mais amplo de compreensão e, logo, de
tratamento.

114 Ver, a esse respeito, Gilberto Di Petta, Il mondo sospeso , Napoli: Guida,
1998; Bruno Callieri, Mario Maldonato; Gilberto Di Petta, Lineamenti di
psicopatologia fenomenologica , Napoli: Guida, 1999. No rastro da
cinquentenária experiência teórica e prática de Bruno Callieri, Di Petta
estabelece os seguintes pontos: 1) o pensamento do outro, ou
andersdenken : nesse âmbito cabem as noções psicopatológicas de
transversalidade, de obliquidade, de alteridade, bem desenvolvidas por
Callieri, a propósito da condição borderline . De resto, a própria ideia de
fronteira não diz nada sobre a direção, isto é, sobre o sentido ou a
orientação da própria linha, nem sobre o plano de início dessa fronteira.
Não é certo, ainda quanto à metáfora, que a linha seja reta e que saia de
um só plano; ela pode ser também em zigue-zague e em vários planos; 2)
a fascinação da doença. Por definição, o sujeito borderline traz sua
identidade (de se manter à margem) de outra área patológica. Isso lhe
permite conservar o exame da realidade e se adaptar (ou até mesmo
readaptar-se) socialmente, mas, ao mesmo tempo, lhe permite atingir o
tempo todo um universo fantasioso próprio de outros estados da mente.
Na composição histriônica e narcisista, o elemento patológico é vivido em
sua chave de solução de unicidade e distinção, e também na chave
onipotente de domínio sobre a própria doença, ou de refúgio e de relação
simbiótico-intimista com ela. A neurose, a tísica, a anemia, a síndrome do
cansaço crônico, a mania, a melancolia, o próprio câncer e hoje a
síndrome de imunodeficiência adquirida, despojadas de seus significados
médico-sanitários, tornam-se códigos simbólicos de um universo de
escolha e de diferença, de um jogo trágico, mas também sempre estético
com a morte e com a dissolução no nada; 3) a evanescência como
anomalia do espaço e do tempo. O limite é sempre móvel, fugidio e
intangível; 4) a vertigem: a instabilidade do eu diante da contínua
mudança do espelho do mundo (ver Franco Rella, Negli occhi di Vincent:
l’io nello specchio del mondo , Milano: Feltrinelli, 1998). Esse conceito,
que Callieri retoma de Zutt e desenvolve, é o da Standverlust , ou o da
perda do estar; e 5) o próprio conceito de limiar (limen ) ou de fronteira,
contido em sua duplicidade de limite e de trânsito. No plano
psicopatológico esse conceito foi bem desenvolvido por Callieri, em
relação ao pânico, como debruçar-se à soleira do nada, e em relação à
perplexidade, como borderline do autismo e como sentimento fundador
da Wabnstimmung .

115 Ver, a propósito, as reflexões que Massimo Canevacci desenvolveu em


Culture estreme: mutazioni giovanili tra i corpi delle metropoli , Roma:
Meltemi, 1999.

116 Giacomo Marramao, Kairós: apologia del tempo debito , Roma-Bari:


Laterza, 1999.

117 Enrica Lisciani-Petrini, “ Lo zar nudo, il gaffeur e la morte: pensare ‘ai


margini della vita’”, in: Vladimir Jankélévitch, Pensare la morte? , Milano:
Cortina, 1995. O belíssimo ensaio introdutório de Lisciani-Petrini lança
uma luz sobre o limite e as margens da existência na viagem para o mais
inexplorado dos continentes: a morte. Viagem que a autora exorta a
cumprir, na senda de Jankélévitch, ganhando o ponto de interseção entre
as margens da vida e a sua impossível alteridade.

118 Paolo Gambazzi, L’occhio e il suo inconscio , Milano: Cortina, 1999. O


autor, com uma intensa e apaixonada crítica anticientística, questiona
não apenas o visível da percepção, mas também o visível do sonho, do
espelho, da pintura, explorando, entre outros, o tema da perturbação e
do duplo na dimensão psicótica. Na sua bem-sucedida exploração entre
psicanálise e fenomenologia, o narcisismo da visão e o olhar das coisas
da fenomenologia prendem-se ao imaginário, ao desejo e ao inconsciente
da psicanálise.

119 Dino Buzzati, “Il deserto dei tartari”, in: Sessanta raconti , Milano:
Mondadori, 1995, p. 13.

120 Caterina Resta, Il luogo e le vie: geografie del pensiero in Martin


Heidegger , Milano: Franco Angeli 1996, pp. 99-100.

121 Albert Camus, L’uomo in rivolta , Milano: Bompiani, 1987, p. 332. Edição
brasileira: O homem revoltado , 8. ed., trad. Valerie Rumjanek, Rio de
Janeiro: Record, 2009.
122 “Enquanto o sol não tiver cessado de se espelhar em mim, que nenhum
rosto humano se volte para mim”.

123 Sobre esse tema, remeto ao ensaio de Roger Callois, i demoni meridiani
, Torino: Bollati-Boringhieri, 1988. Contrariamente à noção tradicional,
que via na noite a presença inquietante de fantasmas, Callois,
pesquisando textos clássicos, demonstra que a hora escolhida pelos
demônios e pelas divindades é o meio-dia. O meio-dia é, de fato, a hora
de passagem; naquele momento, a alma, assim como a sombra, ficam
mais expostas a grandes perigos e ao sobrenatural. O autor pesquisa as
relações que ligam as divindades meridianas, Pan e as sereias, aos
homens: seu surgir, sua sedução e os efeitos daquelas tentações, o
paroxismo e o abandono que ao meio-dia acontece a todos.

124 Pier Aldo Rovatti, Il declinio della luce , Genova: Marietti, 1988, p. 89.

125 Friedrich Nietzsche, Così parlò Zaratustra , v. i, Milano: Adelphi, 1979.


Edição brasileira: Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra , trad. Paulo
César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

126 Pier Aldo Rovatti, op. cit. , p. 60.

127 Shmuel Trigano, Alle radici della modernità: genesi religiosa del politico ,
trad. Piero Dello Strologo, Genova: Ecig, 1999, pp. 315-6.

128 Idem , ibidem , p. 325.

129 José Emperaire, Les Nomades de la mer , Paris: Gallimard, 1995.

130 Na psicologia primitiva, o nomadismo remetia aos grandes espaços


vazios. Sua travessia era uma estratégia para remover a angústia. Saindo
do Egito, os judeus fizeram uma longa peregrinação no deserto em busca
de Canaã, a terra prometida. Tiveram como guia Moisés e foi a religião o
primeiro vínculo com a terra habitada de forma estável. Talvez seja esse o
valor original do termo “religião”. Ele deriva de religare , e religio é o
termo que compreende o que é ligado a cada forma de sagrado, a tudo o
que é originalmente ligado ao subterrâneo, ao mundo dos deuses ctônios.
A passagem para o sedentarismo, a agricultura e a criação implica logo
uma divisão dos espaços. Por longo tempo, o nomadismo foi
marginalizado. Afastando-se do nomadismo, o indivíduo se identificará
com uma porção de espaço. Poder dizer, de fato, “esta terra é minha”
equivale a dizer “esta terra é parte de mim”. O gesto que subtrai a
individualidade humana da multiplicidade nômade produzirá uma
identificação primordial com a terra e fará do direito de propriedade, na
modernidade europeia, não só o protótipo do direito subjetivo, mas a
base da liberdade civil como esfera subjacente ao poder público.

131 Umberto Galimberti. “Lettere”. La Repubblica , 4 abr. 2000.

132 Bruce Chatwin, Anatomia dell’irrequietezza , trad. Franco Salvatorelli,


Milano: Adelphi, 1996.

133 Idem , Patagonia , trad. Marina Marchesi, Milano: Adelphi, 1982.

134 Franco Rella. “I sentieri del possibile”. Casabella . Milano: 1982, nº 486.

135 Iain Chambers. Paesaggi migratori: cultura e identità nell’epoca


postcoloniale . Genova: Costa & Nolan, 1996.

136 Antonio Prete, “Parola di sabbia”, in: Edmond Jabès, Il libro dell’ospitalità
, Milano: Feltrinelli, 1991, pp. 115-6.

137 Emmanuel Lévinas, Totalità e infinito: saggio sull’esteriorità , trad.


Adriano dell’Asta, Milano: Jaca Book, 1980.

138 Diante da beleza, complexidade e tragicidade da existência humana, o


frio e impotente edifício nosográfico, com todos os seus códigos, parece
estreito e contorcido; o incansável apoio conceitual da filosofia tradicional
não reina mais. A existência não tem uma etiopatogênese, a existência
não é uma doença, a existência não tem um órgão principal, ou uma
constelação receptorial que possa servir de alvo às novas especulações
da indústria farmacêutica, e, portanto, dadas essas premissas, a
existência prossegue sendo, se não se pode assimilá-la às doenças,
também não se pode curá-la. Não se pode, de fato, curar a vida, desde
que, justamente, a vida não é uma doença. Mas a existência também não
é uma palavra-conceito, a existência não é redutível a uma teoria sobre a
– ou da – própria existência. A existência, infelizmente para os vários dsm
(Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders ) e por sorte para a
salvação da dignidade humana, não é um sintoma, nem uma síndrome ou
um transtorno, e nem mesmo um conceito.
O não lugar do mundo

S ou um homem, e nada do que é humano me é


estranho . Esse ditado antigo e famoso, do comediógrafo
Terêncio, poderia ser adotado como lei inalterável do
olhar fenomenológico em seu contínuo empreendimento
de reconversão do alienus em alter . Isso é
particularmente válido quando os fenômenos em estudo,
como normal e diariamente acontece na prática da
psiquiatria clínica, constituem-se em experiências vividas
. Tornar a propor a visão fenomenológica aplicada à
psicopatologia clínica, num momento histórico em que se
consolidaram importantes orientações psicológicas
(cognitivas e terapêuticas) como a psicanalítica, a
cognitivista, a sistêmico-relacional ou a gestáltica,
significa salientar não somente a particularidade de uma
maneira de olhar para as coisas, mas também o risco de
fechamento, inerente às grades conceituais previamente
constituídas. De modo similar, no que concerne às
grades nosográficas da psiquiatria diagnóstico-
estatística, esta, com efeito, para além das recentes
aberturas oferecidas pelas nuances dimensionais e pelas
noções de continuum ou de espectro, tende a deixar
margens cada vez mais restritas para a subjetividade do
clínico, ou seja, para sua capacidade (que não pode ser
padronizada) de observatio e ratio , para seu ver, tocar,
sentir. Assim, o significado da evidência sensível – ou
seja, da verdade do caso isolado, obtida direta e
simplesmente com os próprios sentidos – assume, de
fato, uma importância cada vez menor, para não dizer
que praticamente já não há formulário técnico que
contenha tal opção. Tudo isso nos parece injustificado,
além de gravemente lesivo, para a autonomia e a
liberdade do clínico e de seu encontro com o doente.
Como já mencionamos, na prática clínica, para além
daqueles estudos rigorosamente controlados em que
prevalece a utilização das escalas de classificação (por
motivos de uniformidade de coleta de dados), a grande
maioria das orientações de diagnósticos fundamenta-se,
ainda hoje, em critérios que nós próprios não
hesitaríamos em denominar fenomenológicos , embora
quase nunca sejam declarados e explicitados como tais.
Mas, perguntamo-nos, por que se guarda silêncio quanto
ao fato de que o psiquiatra clínico, independentemente
de sua formação, continua a se mover diariamente com
uma abordagem essencialmente intuitiva e descritiva?
Por que não discutir seriamente a possibilidade de
potenciar esse elemento subjetivo e sensorial, estrutural,
na atividade clínica, de absoluta propriedade do
indivíduo?
É oportuno voltarmos, mais uma vez, ao significado
de expressões como “conhecimento” ou “experiência”,
“intuição” ou “representação” para devolver a esses
termos, aparentemente abstratos, a concretude da
dimensão clínica, cujo protótipo, para nós, além de todos
os modelos e todos os settings , permanece o do
encontro dual, ou seja, o horizonte semântico que se
instaura entre duas pessoas e que se define por uma
solicitação de um sofrido pedido de ajuda e por uma
resposta que se explicita no plano da escuta, e da
aceitação de tratar (e não de “encarregar-se”) do outro.
A consciência da problemática de tais questões
epistemológicas e metodológicas não é, como dizíamos,
fácil de ser explicitada, sobretudo para um tipo de
psicopatologia que, como a fenomenológica, se inscreve
ao longo das correntes hermenêuticas (transcendendo-
as), e que, para justificar a própria formação cognitiva,
nunca codificou nenhuma metafenomenologia: de fato,
nenhum protocolo de entendimento documenta o modo
pelo qual os fenomenólogos exercitam seu olhar
consciencial sobre o mundo. Ao contrário, em sua
constituição original, a fenomenologia preferiu continuar
assistemática, capaz de uma visão teoreticamente
ateorética , que se dá como um inapreensível theorein a-
teorético.
Com relação ao delineamento desse horizonte
cognitivo, os procedimentos objetivantes da psiquiatria
naturalista tendem, ao contrário, a deixar as variáveis
indeterminadas em seu mínimo poder de interferência.
Assim, a entropia dos sistemas é reduzida a uma
constante; a equação pessoal é padronizada numa certa
cota de desvio ou de indeterminação na revelação dos
dados; o controle das várias fases do procedimento
torna-se obsessivo; enfim, cada novo elemento que surge
deve encontrar seu ambiente teórico de enquadramento
e de resolução. É assim que os dados e sua elaboração
estatística tornam-se, desse ponto de vista, o irredutível ,
o limite de cada possível teoria. Seria interessante, por
exemplo, perguntar-se quanto há de fenomenológico no
olhar do cientista no instante em que ele capta o
acontecer de uma nova maneira de organizar as coisas.
Mas esse discurso poderia nos levar muito longe. Aqui,
devemos limitar-nos ao campo exclusivamente
psicopatológico-clínico .
Parece-nos importante lembrar também a
possibilidade heurística do método fenomenológico,
sobretudo sua capacidade de estar próximo de
procedimentos também mais objetivantes, até em
campos em que não esteja em jogo exclusiva e
primariamente a experiência vivida. Transportando então
a eficácia desveladora e reveladora do olhar
fenomenológico para o mundo do inorgânico e do
orgânico, percorrendo a área (por si só já vasta e
delicada) da psiquiatria clínica, pode-se dizer que a
fenomenologia reivindica, com razão, uma primazia: a
que deriva do plano de observação dos acontecimentos,
plano que é irredutivelmente a consciência do sujeito e
dos sujeitos envolvidos no encontro clínico. Na psiquiatria
clínica, em que tempo, espaço, mundo, cor, forma, odor
são inconcebíveis sem o binômio experiência vivida
(Erlbenis ) e mundo da vida (Lebenswelt ), a
fenomenologia é capaz de concretizar a visão essencial
dos acontecimentos e sua constituição em eventos
dotados de sentido, sem o auxílio das tecnologias e dos
suportes diagnóstico-estatístico-estruturais.
Assim, voltando ao olhar fenomenológico (que, em
alguns aspectos, poderíamos assimilar ao relance, como
flash fotográfico), entende-se que mesmo o
fenomenólogo mais experimentado, aquele homem de
olhar mais agudo, de intuição mais forte, continua sendo,
quanto ao mundo da vida, um eterno iniciante, um
viajante, nos primeiros contatos com o fenômeno do qual
está tendo, naquele momento, uma radical e talvez
solitária experiência. Essa primariedade do olhar
fenomenológico decerto combina seus valores mais
científicos, mas lhe permite, ao mesmo tempo, nunca
ceder aos traumas autorreferenciais de um saber
estratificado, levando-o a seguir sempre em frente e a
começar de novo.
Para a fenomenologia, bem como para a
fenomenologia aplicada às condições psicóticas mais
alienadas, duas experiências em particular não ocorrem
nunca: o déjà vu e o déjà vécu . Talvez por isso o
fenomenólogo mais experimentado esteja sempre mais
atento em captar (como um esotérico pesquisador de
essências) as impressões de um menino ou as de uma
pessoa qualquer que, por acaso, se encontre envolvida
numa situação difícil, e mesmo as impressões de uma
pessoa comum, sem experiência, até o ponto de vivê-las
desde seu interior.
Assim, mesmo se tratando de psicopatologia clínica,
por exemplo, o fenomenólogo valoriza repetidamente as
impressões de um poeta, de um escritor, de um filósofo.
Essencialmente, tudo serve, desde que, por meio da
experiência vivida e da linguagem, devolva a própria
coisa à sua origem de objeto vital e mundano ou, no caso
de experiências vividas, de fenômeno tipicamente
humano. A palavra viva, ou a palavra encarnada, da
fenomenologia é a própria verdade daquele determinado
fenômeno ou, ao menos, uma de suas verdades: a
verdade de como ele apareceu naquele momento, a
verdade de como, enquanto foi se desenvolvendo, ele se
manifestou.
Aqui, evidentemente, o discurso, como nunca antes,
está aberto. Quando o campo de aplicação é o da
experiência vivida não existem “profissionais”. Cada qual
está mergulhado no interior da própria experiência
vivida, e ninguém poderá saber mais sobre isso, do
exterior, do que aquele que vive a própria experiência
como sua própria . Isso naturalmente não significa abrir a
todos o difícil campo da clínica. Significa, no entanto,
devolver ao homem doente a plena posse da própria
experiência, reconhecer plena dignidade epistemológica
à linguagem que ele utiliza e aos modos como se
comunica com o próprio sofrimento, ou seja, a
necessidade absolutamente incontornável de dar conta
ao outro, durante o encontro clínico da própria
experiência vivida. Desse modo o fenomenólogo valoriza
plenamente as expressões do doente como fragmentos
linguísticos que ecoam densamente a experiência vivida
e que significativamente dizem muito mais do que todas
as coisas que o conhecimento psiquiátrico ou psicológico
construiu.
O tema da experiência vivida apresenta-se de modo
bem diferente de qualquer outro tema da clínica (como
um eeg ou um egc ou uma lesão cutânea), ou de
qualquer outro tema do mundo. Não existe a figura de
um perito em fenômenos vividos, que tenha mais
probabilidade do que qualquer outra pessoa de colher ou
ler certos sintomas ou certos sinais, como ocorreria, ao
contrário, com um especialista em radiografias em
comparação com aquele que nunca viu nenhuma chapa.
Justamente porque a fenomenologia tenta conectar-se à
vida em sua nascente originária – uma nascente da qual
a vida está sempre jorrando nova –, é oportuno concluir
que toda experiência, afinal, é sempre diferente e que é
quase impossível extraí-la da corrente das experiências
vividas (Husserl), e que talvez só possa ser captada
naquele jogo lírico e trágico, bem conhecido e próprio
dos poetas, entre o instante e a eternidade.
Mas esse feliz encantamento que liga ab origine
homem, olhar e fenômeno (e, noutro plano, a experiência
como laço de consciência e mundo) não poderá ser
compreendido se não pensarmos no pano de fundo ou,
melhor dizendo, no terreno em que esse ato (a unicidade
desse ato) se dá: o terreno em que esse evento se
verifica, ou seja, o mundo da vida , a Lebenswelt
husserliana.
Antes que explodisse o protesto heideggeriano em
relação à técnica contemporânea como instrumento
estruturador e condicionante do moderno, Husserl já
havia identificado na Crise das ciências europeias (1933)
aquela fronteira que o homem ocidental estava violando,
ou seja, o abandono de sua relação vital e imediata com
o mundo em favor de mediações cada vez mais diretas
entre homem e mundo, homem e outros homens,
homem e si próprio. Nesse chamado às origens e às
diferenças entre humanidade, naturalidade e tecnicidade
também confluíam a reflexão de Dilthey e as elaboradas,
em linha geral, pelas correntes irracionalistas,
espiritualistas e vitalistas do final do século.
Por meio da fenomenologia, Husserl procurou
elaborar um método que permitisse a criação de um
conhecimento do mundo. Uma operação que não
renuncia à evidência , ou seja, ao sobressalto, à
vitalidade que aquele fenômeno carrega, de início,
dentro de si. Decerto o denominador comum
antipositivista impregna de si o clima de nascimento da
fenomenologia, mas nem por isso ela cai numa vertente
irracionalista. É sobre essa arriscada vertente que a visão
(o fenômeno da visão ou a visão do fenômeno), como
poderoso sismógrafo, registra até os mais sutis e
sensíveis movimentos da consciência humana, revelando
totalmente – em declarada contratendência com relação
à postura objetivadora, despersonalizante e
neutralizadora das ciências positivas – suas
potencialidades descritivas, intuitivas, interpretativas e
perceptivas.
Como o rio de Heráclito, no qual “não podemos nos
banhar duas vezes”, o mundo da vida é concedido a esse
homem que o observa no instante (eterno) do olhar . Por
isso, o fenomenólogo é um homem que “está no mundo”
e é, concomitantemente, sempre e ininterruptamente,
“tomado pelo mundo”. Mas o fenomenólogo também é
um homem que se situa, em virtude da capacidade
transfiguradora de seu olhar, bem além do mundo dos
dados fenomenológicos: olhar e objeto como momentos
adicionais que não se podem suprimir, ou seja, como
infinita alteridade. Nessas bases realiza-se a visão , ou
melhor, a transfiguração de uma experiência qualquer no
fenômeno que a expressa. Assim, naquele que exercita o
olhar anuncia-se uma atmosfera de espanto: uma
maravilha, uma aura intensa de gratuidade , de dom ,
dom oculto que surge à luz eivada de graça e mistério .
Ao redor e antes, mas talvez até depois dessa percepção,
tem-se (sente-se) como uma sensação de vazio , um
alívio, uma espécie de superação ilimitada dos vínculos
de gravitação. É um vazio liberatório, um vazio pelo qual
– e graças ao qual – aquela determinada experiência que
eu, como fenomenólogo, vivi, pôde constituir-se
plenamente em fenômeno , isto é, em mundo de carne e
osso . Naturalmente temos consciência do efeito
desnorteador que tais premissas têm para os médicos,
geralmente instruídos para versões predispostas das
coisas e do mundo, ou seja, para divisões de parâmetros
fisiopatológicos e anatomoclínicos. Mas esse
desnorteamento, afinal, é importante, pois as imagens
da fenomenologia, mesmo as mais impregnadas da mais
crua realidade da clínica, não podem acontecer sem que
nos tenhamos despedido das coisas conhecidas, sem o
efeito de estranhamento e de obliquidade com relação
aos próprios baricentros.
Há uma diferença radical entre esse caminho e o
método objetivante da tecnociência, sobre a qual,
obviamente, a medicina fundamentou-se
progressivamente. Como também, por outro lado,
percebemos a proximidade entre esse olhar que
atravessa e constitui e o olhar do pintor, do fotógrafo, do
narrador, do poeta. O olhar deles sobre o objeto (sobre o
corpo) reproduz o mundo assim como o veem. Seu
trabalho torna-se artístico no momento em que eles
doam ao olhar que desnuda o objeto alguma coisa do
próprio mundo, alguma coisa autenticamente mundana,
mas também, e concomitantemente, algo que
transcende a própria prosa do mundo, porque nunca é
uma reprodução exata, ainda que revele a todos um
segredo, outro verdadeiro segredo do mundo.
Eis por que, retornando à origem, o mapa do
movimento fenomenológico nada mais é do que uma
constelação de olhares, uma theoria de visões. Eis por
que todo fenomenólogo é, em si e para si, diferente de
todos os outros e produz visões diferentes: ele constitui
fenômenos diferentes. Assim, precisamente na medida
em que é homem diferente de todos os outros e sempre
diferente de si próprio, está sempre produzindo novas e
discordantes visões de si mesmo.

INSTANTE E PENUMBRA
Mas como essa filosofia do olhar pode descobrir
instantaneamente coisas e fatos e até evocá-los em sua
mais intensa e quase absoluta fenomenologia e encaixar-
se concretamente na bagagem de um psiquiatra clínico?
A clínica desde sempre, e radicalmente, é encontro
com o doente. Hoje, a medicina clínica parece
claramente subalterna ao poder irradiado pela
tecnomedicina. Frequentemente o papel do clínico
consiste em coordenar dados produzidos
instrumentalmente: em geral, aqueles que levantam com
os próprios sentidos resultam não suficientemente
confiáveis. Ao contrário, o ato clínico de um psiquiatra,
de um psiquiatra qualquer, seu encontro concreto com
outro homem nos mais diversos contextos da práxis
psiquiátrica contemporânea, é um momento carregado
de valores éticos, diagnósticos e terapêuticos. Mas antes
de tudo é um momento que abre outro problema de
natureza eminentemente cognoscitiva, ou gnosiológica.
Aqui preferimos utilizar o termo “cognoscitivo” a
“científico”, termo mais redutivo, pois a ciência pertence
de pleno direito ao discurso mais genérico do
conhecimento. O diferencial da psiquiatria, por mais
avançadas que sejam as técnicas e os instrumentos de
laboratório, reside no fato de que ela, em comparação ao
andamento veloz da medicina científica, ainda concentra
todos os seus valores na observação clínica.
O que ocorre, portanto, no momento em que esses
dois homens, o psiquiatra e o paciente, ao se
encontrarem, falam? Dois homens que até um instante
antes não se conheciam e que, mesmo após anos de
encontros, continuam, não raro, não se conhecendo? No
momento do encontro eles se comunicam e, ao mesmo
tempo, evitam-se, aproximam-se, traem-se, ajudam-se e
perseguem-se. Qual é o significado das coisas que eles
se dizem, que ao dizerem intencionam e ao
intencionarem constituem? Que tipo de linguagem eles
usam? Quais são os instrumentos de validação das coisas
que eles afirmam, das coisas que pensam um do outro,
de si com relação ao outro? E como podemos, enfim,
constituir um discurso científico a partir dos feixes de
emoções que se perseguem de um lado para outro nessa
dupla?
A psiquiatria interroga-se há mais de duzentos anos
sobre esses problemas e ainda não encontrou respostas
definitivas. O campo das temáticas abertas pelo encontro
com um homem (outro que não si próprio ) ultrapassa
mesmo o âmbito clínico, e atinge planos de natureza
antropológica, social e política. Um esforço de restringir o
campo ao âmbito clínico leva diretamente à pedra
angular da grande psiquiatria clínica: o encontro, ou seja
lá como o quisermos chamar – visita, colóquio, setting ,
sessão, entrevista, grupo ou outros.
Nessa circunstância particular, que poderíamos
definir como a unidade de medida ou, mais
apropriadamente, o próprio ritmo da psiquiatria clínica,
verifica-se uma condição intensamente deslocada na
figura do médico, sobretudo se comparada com o que
ocorre com os colegas de outras especialidades. A
exposição humana do psiquiatra empenhado no exercício
clínico é muito maior do que com relação à realidade de
seu equipamento técnico. A presença de aparatos ou
conhecimentos esquematizados, aliás, não é suficiente
para proteger ou cobrir, nesse âmbito, o profissional em
sua essência humana. Aliás, para além de toda técnica
aprendida e de todo esquema mental, escolar ou de
formação, nesse contexto vale a esplêndida expressão de
Paul Ricoeur: “ser uma espécie de receptor vivo do
outro”. Desenvolvendo essa metáfora biológica
(retomada em perspectiva fenomenológico-
hermenêutica), isso significa que, se o outro é um elo
que se encaixa, o psiquiatra sente-o vivamente, e todo o
seu sistema perceptivo se modifica, justamente como
acontece nas membranas biológicas, nos sistemas
abertos e vivos dotados de receptores. É evidente que
aqui não estamos nos movendo tanto ao longo da
sequência lógica das ideias, quanto, antes –
parafraseando a belíssima imagem de Giordano Bruno –,
ao longo do “longo perfil de suas sombras”.
Essas simples reflexões já põem em xeque a imagem
de um observador neutro/isento que examina e classifica
objetivamente aquilo que analisa. A matéria de que
tratamos aqui é naturaliter diferente : não é mais o reino
do inorgânico, tampouco somente o do orgânico. É,
antes, a terra incógnita do vivido, a Atlântida que nunca
emerge definitivamente do mar da experiência vivida.
Pensar então numa categoria de profissionais que pesa e
calibra sua capacidade profissional no pulsar flexível da
própria experiência vivida, num contexto que –
contrariamente a essa alquimia – parece cientificamente
avançado e tecnologicamente corroborado, é algo
perturbador. O psiquiatra trabalha, de fato, com o auxílio
exclusivo dos instrumentos de pesquisa que a
sensibilidade coloca ao seu dispor, num território que já
não é a camada do parênquima hepático e sim a
experiência de outros homens: a experiência em que
nenhum instrumento se revela mais delicado e sensível,
nem tampouco mais incisivo para agir na experiência
vivida pelo outro, do que a própria experiência vivida .
Dessa fragilidade nasce a vulnerabilidade e, ao
mesmo tempo, a possibilidade do psiquiatra, isto é,
aquela capacidade, apesar de todas as limitações, de
desfraldar um campo de possibilidades praticamente
infinito, desconhecido de qualquer outro tipo de
profissional. Em outros termos, o campo gerado pelo
estímulo dos recursos humanos e das ressonâncias
emocionais, de outro modo destinados a serem
dissipados em sintomas, síndromes e medicamentos. O
ato clínico do encontro com o paciente, quer ocorra
numa sessão de setting mais ou menos formalizado, quer
se dê numa consulta ocasional, é dotado de um
fortíssimo valor cognoscitivo e está assegurado, do
mesmo modo, por uma forte questão quanto ao sentido e
à verdade daquilo que se experimentou. O encontro
clínico, insistimos, é o desdobramento máximo do poder
e, ao mesmo tempo, o ponto máximo da fraqueza do
psiquiatra como médico clínico. Nesse sentido, utilizando
a metáfora da luz, a fenomenologia é o triunfo da sombra
com relação à solaridade de todo o sistema em si
acabado.
Diante de tais premissas, perguntamo-nos: Que
relação há entre o discurso fenomenológico e os
problemas de qualquer psiquiatra que, prescindindo da
sua formação, encontra-se às voltas com sua consulta,
situado no ponto meridiano do encontro clínico com seu
paciente? De um lado, está o “estar em xeque”, do outro,
mesmo que na penumbra, e com base nessa consciência
desencantada, vislumbram-se outras possibilidades. Já
dissemos que o desvio ou, se quisermos, o grãozinho de
areia na máquina da objetividade científica é
representado, no terreno do encontro clínico, pelos dados
exclusivos e constitutivos das experiências vividas.
Tentaremos encontrar agora, na história da
psiquiatria, as premissas desse discurso. O que está se
desdobrando hoje, em toda a sua evidência – a
insuficiência dos meios de que dispomos para
compreender o que acontece no homem que
encontramos e em nós mesmos –, já foi previsto por
alguns grandes médicos da primeira metade do século XX
. Eles intuíram, em primeira mão – com base numa
consciência que já estava se difundindo no âmbito
filosófico –, os limites heurísticos e as aporias internas ao
método da ciência oficial, positiva e objetivante; viram os
obstáculos que impediam a superação do limiar dos
estados mentais, emocionais, das experiências vividas e
da experiência interior da pessoa: aquela mesma pessoa
que então, em termos brutais, era denominada alienada
mental.
O estar “em xeque” das teorias organicistas, com
efeito, dava-se então em diversos níveis
etiopatogenéticos: a hipótese infecciosa (modelo
neurológico tomado como ponto de referência
fundamental para a neuropsiquiatria, um modelo médico
que não podia dizer nada sobre as doenças psíquicas, da
alma), a hipótese neurofisiológica (no modelo da
epilepsia) e a hipótese degenerativa (no modelo do
Alzheimer ou do Parkinson), hipóteses essas que não se
haviam demonstrado tão facilmente extensíveis às
grandes síndromes psicóticas denominadas endógenas
(esquizofrenia, loucura e melancolia). Assim, os médicos
que aspiravam a uma compreensão mais profunda da
pessoa do doente, até para criar um clima de
relacionamento mais favorável, começaram a se dedicar
ao estudo de outras abordagens que poderíamos definir,
hoje, hermenêuticas.
Da mesma forma, enquanto o discurso psicanalítico
arriscava-se ao estudo esmerado da filogênese neurótica,
o olhar fenomenológico voltava-se para os contrafortes
da alienação, isto é, para o espectro psicótico. Foi assim
que as grandes áreas da psiquiatria clínica –
esquizofrenia, loucura e melancolia – foram
completamente revisitadas com base em seu constituir-
se em maneiras peculiares de estar no mundo . É notório
que a reflexão fenomenológica coloca a própria
experiência vivida no centro de sua investigação. Se
Descartes tornou a questionar tudo, exceto o próprio
intelecto (cogito, ergo sum ), Husserl, embora
conservasse as premissas cartesianas, escolhera o
caminho da refutação da grande maioria das aquisições
da psicologia e da lógica e fixou-se na filosofia da
experiência vivida. Com base no que paralelamente
elaboravam os filósofos da vida e da história – de Dilthey
a Simmel –, a tese da fenomenologia poderá ser
condensada na expressão sinto alguma coisa, logo existo
no mundo. E, existindo, torno experiência aquilo que
sinto. Assim, esclarecendo a mim mesmo o que eu sinto,
expressando isso ao outro, também conhecerei as
imagens do mundo do outro que estão emaranhadas na
rede intencional de minha consciência, assim como
posso expressá-las na linguagem que invento e que me
socorre. O caminho da consciência (ao menos da
consciência psiquiátrica clínica), portanto, é o de uma
experiência radical, irredutível ao puro empirismo, ainda
mais se os fatos a conhecer já são experiência
originariamente vivida, ao acontecer, como no caso do
encontro psiquiátrico. A experiência vivida, portanto, só
pode ser conhecida mediante a experiência vivida, ou
seja, apenas à medida que poderei reviver dentro de
mim alguma coisa que tem a ver com o que o outro está
me comunicando.

INTUIÇÃO E REPRESENTAÇÃO
Quem sabe constituir objetos não teme o vazio do objeto;
quem sabe ver formas não teme o informe, nem teme o
surgimento do absurdo ou a ocultação dos significados. O
epoché , que Roberta de Monticelli designa como gesto
da liberdade, nada mais é do que o efeito produzido pelo
exercício rigoroso da fenomenologia, o movimento
estratégico que de repente demole todas as cognições
preexistentes de qualquer objeto.
Se cada fato fenomenológico pode ocorrer apenas
depois do epoché como ato constitutivo e fundador de
cada discurso, então o fenomenólogo já tem, com o vazio
e com a ausência de estruturas, uma longa familiaridade.
Ele não se espanta com a crise dos paradigmas
cognitivos e com a inconfiabilidade dos quadros objetivos
– ao contrário, sente-se atraído por eles. As distinções
tradicionais entre explicar e compreender, entre ciências
da natureza e humanas (Prigogine e Stengers), entre
cognitivismo e fenomenologia, abrem, atualmente, um
novo e imprevisto campo de flutuação fenomênica . Os
fenômenos continuam sem nome; as síndromes, sem
cura; os homens, sem escuta. No ápice da crise e no fim
dos paradigmas dos diversos cientificismos, o que
aparece é uma paisagem lunar habitada, de um lado, por
sacerdotes dos convencionalismos formalizados e, de
outro, ao contrário, por aquele que não parou de correr
riscos, por aquele que ainda é capaz de resoluções éticas
radicais: as do conhecimento e da experiência. Nesse
caminho cognoscitivo, experiencial mais do que
experimental, alguma coisa ocorre. Algo que sempre
acontece é o encontro, que permanece até mesmo em
sua descontinuidade. A do encontro clínico é a história de
um paradoxo, uma continuidade descontínua e diferente,
uma duração esboçada, o espaço de uma experiência
vivida prismática, dissolvida e reconfigurada, e no
entanto fluida e sobreposta.
A minha e a sua experiência são, no fundo, o único
sujeito e o único objeto de nosso acontecer. O que
Descartes procurava obter com a dúvida metódica, e
Husserl, com o epoché e a redução fenomenológica ou
transcendental, hoje, no plano da psiquiatria clínica, é o
único acontecimento emergente: a intuição do encontro.
Não há nada além da nossa própria experiência de nós
no mundo . Nenhuma teoria, nenhum dado: apenas a
minha experiência. A minha experiência clínica – de
médico com o paciente e de “homem com você” – é um
dado vivido imediato , que permite inferências: somente
a minha travessia reconstitui a continuidade
incessantemente descontínua. Posso contar então com o
fato de que minhas experiências descontínuas serão um
contínuo acender-se, uma fileira de luzes que iluminarão
momentos isolados, ações, coisas, situações. Como um
dom. O dom inexaurível que é o próprio fenômeno.
Acontece, dá-se, pertence à originalidade do mundo, ao
seu estrato insubordinável e informalizável: dom como
olhar, fenômeno como gratuidade, maravilha, espanto,
ingenuidade.
O que eu intuo concretamente é uma percepção,
uma cor, um som, um cheiro, a possibilidade mesmo de
inscrever nessa vibração uma série interminável de
coisas, de respostas . Essa experiência explode dentro de
mim como um sentimento de liberdade. A experiência
sou apenas eu para mim mesmo, nos múltiplos estados
da consciência que podemos experimentar ou que,
latente, não somos capazes de experimentar, pelo
menos não na sua forma mais consciente. Experiência é
impacto com o outro, diferença irredutível, ulteridade
insuprimível que elude e elide cada ocultamento
homologante. Experiência é choque, confusão com a
realidade circundante.
Não sabemos se conseguimos dizer, até aqui, o
quanto a experiência se torna fenômeno, o quanto o
acontecimento se torna experiência vivida, o quanto o
olhar se torna visão, o quanto o sintoma ou a síndrome
se torna mundo. A única teoria possível parece ser o
theorein , o lugar intencionalmente sem raízes que, em
última análise, é estética. Nós e o outro, enquanto
falamos e fazemos experiência de nós mesmos com o
outro, conhecemo-nos tocando-nos com as nossas
superfícies perceptivas. Mas não sabemos dizer o que
somos, a partir da impredicabilidade, da
intraduzibilidade, da indescritibilidade daquilo que
vivemos. Um delírio ou uma alucinação podem continuar
a não ter sentido. Mas o problema não é de sentido. O
delírio, a alucinação, em sua complexidade temática, de
fato, organizam-se para mim numa forma , numa
constelação , numa série infinita de sugestões. É nesse
momento que de mim se irradiam como flechas para
apreendê-lo. Essa é a intencionalidade que atinge os
fenômenos e que se reflete no campo de minha
consciência. Dentro de mim eu o recomponho; não me
canso de descobrir e de ir ao encontro de cada
experiência como se fosse novamente um fenômeno, um
aparecer, um desvelar.
O objeto que surge, de fato, é sempre novo.
Descubro particularidades infinitas. Dialogamos, eu e ele,
separadamente de mim. Cada vez que o encontro, eu o
decomponho e o recomponho numa das variações
praticamente infinitas de sua forma. Vivo de ressonância,
não de imagens, e no entanto a atmosfera não é
frenética. Há calma, porque cada forma é em si
completa, mesmo que depois venha a ser
completamente superada, ou melhor, ultrapassada, pela
forma que sobrevém. Assim me experimento sempre,
continuamente diverso. No fundo, não tenho outro modo
para me conhecer senão viver-me .

DOM E ESPANTO
O que encontramos diante de nós, durante o desenrolar
desse discurso, é apenas a experiência vivida, aquilo
que, como dissemos, a filosofia alemã chama de Erlebnis
. Algo que, como uma espécie de valor mais constante,
de núcleo duro, escapa a todas as tentativas de
formalização, caracterizado pela ambivalência da
invisibilidade e da evasividade. Os autores mais
prudentes (Maj, Van Praag), de fato, situados muito além
das pressões exercidas pelas sugestões
farmacoterápicas, já iniciaram um longo processo de
revisão que torna a questionar toda a abordagem
empírico-estatística da patologia psiquiátrica.
A proliferação metafísica das siglas e a veneração
pelos dados obtidos pela centrifugação de imensas
baterias de testes sobre um grande número de pacientes
introduziram, mesmo nos casos clínicos mais específicos
e mais críticos, a tendência de se estabelecer uma
ligação entre os significantes completamente
desvinculados dos próprios significados. Pode-se
suspeitar que se estejam fazendo operações de tipo
vagamente lógico-matemático, que não têm mais laços
com a materialidade e a concretude da realidade vivida
pelo homem em si . A contínua introdução de variantes
detalhadas no mesmo quadro de referência; as
promessas não cumpridas sobre a identificação das
geografias neuroquímicas dos transtornos do
pensamento, da percepção, do humor; as tentativas
malogradas de explicar, em termos de padrões
neurobiológicos, clusters comportamentais mais
complexos, como os arranjos da personalidade e mais,
está provocando perplexidade, decepção e desencanto, e
não apenas nos clínicos mais atinados.
Diante de um cenário em que se vê um declínio geral
de atenção para a psicanálise como tronco comum da
origem de mil cismas do mundo psi , cumpre-se o triunfo
acrítico das práxis reabilitadoras na formatação de
variadas técnicas terapêuticas, destinadas, em breve, a
ceder o lugar a práticas talvez mais centradas no aspecto
puramente administrativo. Em tudo isso, a psiquiatria
inteligente e prudente, consciente das próprias raízes
históricas e das próprias responsabilidades, não pode
deixar de tornar a questionar seus próprios feitos.
A fenomenologia, naturalmente, não dá nenhuma
resposta a tudo isso. Ao contrário, ela exercita ainda mais
sua suspensão do juízo. Essa atitude de suspensão e de
dúvida é tanto mais salutar por se recusar à cristalização
de certezas apodíticas e evita, além disso, a dispersão
em dúvidas de resolução incerta. O homem que se
empenha nesse encontro não pode esperar nada além de
nossas crises epistemológicas e identitárias. A sua
experiência nos deve ser comunicada, e nós, conscientes
do pequeno equilíbrio de um saber sem fundamentos ,
de alguma forma, devemos poder enfrentá-la,
assumindo, antes, a incerteza como nosso único
fundamento. Nesse campo, a contínua vigilância crítica
da fenomenologia impede que se adote qualquer ponto
de vista, seja biológico, seja psicanalítico, passando pelo
social ou qualquer outro.
A atitude fenomenológica é, no fundo, uma atitude
radical, refratária a toda formalização; e, como foi
recentemente frisado por Dalle Luche, completamente
anárquica no plano metodológico, porque a formalização,
qualquer que seja ela, sempre trai o mundo da vida com
o qual cada experiência vivida de forma autêntica (aquilo
que eu e somente eu sinto e digo que estou sentindo) é
grandemente aparentada. O risco da fenomenologia,
enquanto pensamento do fenômeno, é o de acabar fora
das modas culturais ou o de ser considerada
contemplativa, inútil, pouco operativa. Mas a fidelidade
ao fenômeno, ao seu fundamento experiencial, é
absoluta e assim permanece apesar de toda crítica. Por
sua adesão ao fenômeno, à gratuidade de sua doação
como precipitação fluida do mundo, a filosofia
fenomenológica não pode simplesmente encaixar-se num
dos tantos paradigmas que se sucedem na história das
ideias e na filosofia do conhecimento. É uma questão – a
do choque entre paradigmas cognitivos – que a
fenomenologia deixa de bom grado à história, seja a
história das ideias, seja a da ciência, que nos recorda o
caráter inesgotável do fenômeno vivido nas fórmulas que
procuram contínua e coativamente explicá-lo.
Em particular, para ser ainda mais explícito, a
fenomenologia psiquiátrica abre panoramas que não
pertencem à fenomenologia filosófica, à poesia ou à
literatura, de cujas metáforas ela se serve
frequentemente. São panoramas clínicos e como tais
realmente tramados pela experiência vivida, até a última
fibra, coisa que poderia ainda faltar às divagações
intelectualísticas de um filósofo. Exatamente como um
principiante, o fenomenólogo volta cada vez ao início,
com cada homem desde o início, isto é, volta às
experiências e ao seu constituir-se, exatamente, em
fenômenos cooriginariamente ligados ao ser humano que
naquele preciso e determinado instante ele está vendo.
Então começa a se manifestar, mas somente depois
de as várias correntes misturadas terem-se separado, a
relação fenomenológica com o phainestai : o aparecer e
o manifestar-se dos fatos em eventos carregados de
significados e ligados entre si. Ele observa e espera o
acender-se de uma luz na sombra, o manifestar-se quase
repentino do fenômeno como um dom, o seu acontecer e
o seu cintilar. A fé do fenomenólogo é que a sua
consciência e o seu mundo são, como diria Merleau-
Ponty, imbricados, entrelaçados, presos entre si antes de
cada possível e artificiosa distinção. É preciso, então, que
se faça o vazio das noções antes de poder recuperá-las,
mais adiante. E, ainda, criar o silêncio. Suspender e,
nessa suspensão, nessa expectativa, eis que, mais cedo
ou mais tarde, a forma, a imagem, como um dom , sinal
de uma indesviável cooriginalidade e copertinência de
consciência e de mundo, aparece. E, então, o fenômeno
surge do olhar maravilhado e ingênuo de quem descobre
algo já conhecido com a surpresa da primeira vez.
A filosofia do fenômeno é, no fundo, também a
filosofia do vazio. Mas, enquanto filosofia do nada, é
também filosofia da liberdade. Nesse ponto, ela teve,
para Heidegger, muitos contatos com o pensamento
oriental do Zen. Ela pressupõe, com o mesmo critério da
psicanálise, uma transformação do operador, um tipo de
desconstrução, de redução aos mínimos termos de wash-
out do olhar, um campo de metamorfose em que o olhar
perde progressivamente as próprias rédeas e rompe à
deriva daquilo com que se luta. O convite de Husserl,
talvez o mais peremptório, foi: voltemos às próprias
coisas , às coisas em carne e osso , à sua pureza e
essencialidade.
A própria coisa em psiquiatria clínica é, como
demonstrado, o encontro , ou seja, o lugar de onde
partimos. Mas o que acontece afinal, e sobretudo como
acontece, no encontro clínico entre duas pessoas que
aqui, por pura convenção, são chamadas de psiquiatra e
paciente? O discurso claro-escuro , ou aquele que passa
pela ambiguidade do jogo entre luz e sombra, torna-se
aqui, talvez, o próprio código da compreensão.
Nesse sentido, a fenomenologia é filosofia da luz, ao
menos tanto quanto é filosofia da sombra. Por meio do
mesmo jogo, ela é filosofia do vazio e filosofia da
liberdade . Há coisas, modos, formas, mundos, que
podem ser iluminados apenas com uma luz bem próxima.
E coisas que, ao contrário, podem ser esclarecidas com
um obscurecimento parcial ou apenas sombreadas.
Enfim, há coisas que podem ser apenas intuídas e nem
mesmo vistas. Coisas que devem ficar caladas, reveladas
pelo silêncio, como uma presença nua e imponente.
Mas o que vê (como vê) um psiquiatra no lugar da
inspeção da semiologia médica clássica? O que se pode
ver é uma forma , ou uma Gestalt , dotada de sentido,
mais do que facies , ou, ao contrário, são elementos em
desordem, isto é, objetos específicos da psicopatologia
descritiva tradicional, pré-fenomenológica? E, também,
em virtude de que se podem dar cores e formas ao
silêncio, consistência e peso a uma pausa? Em razão de
que se pode notar uma voz interna, uma claridade, ou
simplesmente o delinear de um pressentimento
destituído de qualquer evidência racionalmente
demonstrável? Por que o que se passa dentro de e entre
esses dois seres humanos é tão importante em
comparação ao que ocorre em âmbito físico ou cirúrgico,
ou comercial, ou judiciário, em que a relação a dois é
sufocada pelas inevitáveis ingerências? E, finalmente, no
fundo, o que é o encontro – o encontro clínico em
particular – senão um acontecimento no qual, de um
modo ou de outro, manifestam-se graça e mistério?
Mesmo a dissolubilidade da ideia positivista da
realidade objetivamente reconhecível permitiu que se
entrevissem os territórios que emergiram da experiência
vivida do homem. Mas essa experiência – ao mesmo
tempo espacial, temporal, linguística, afetiva, mundana –
pode ser captada e fixada exclusivamente em sua
inefável mutabilidade, em seu contínuo deslocamento. A
fenomenologia, nessa adoção do fenômeno vivido, se,
por um lado, parece enfraquecer toda uma série de
grades teóricas e metapsicológicas , por outro, corre
muito próximo do fio da poesia, da escultura, da pintura,
da dramatização .
São, de fato, os processos das artes figurativas,
colocados na linha de fronteira entre o visível e o
invisível, que nos desconcertam, com sua capacidade,
como diria Merleau-Ponty, de preensão do mundo .
Porém, ao psiquiatra de orientação fenomenológica não
se pede uma atitude artística. A clínica, mesmo quando
utiliza algumas áreas perceptivas da estética, continua
sendo clínica. É nesse ponto que a situação do encontro
torna-se perceptível, ainda que seu núcleo duro – a
experiência vivida – seja invisível e intocável e, muitas
vezes, intraduzível.
Mas o que significa fazer experiência de alguma
coisa? Seria uma pergunta inútil se isso não significasse
transformar essa “alguma coisa” em um movimento da
nossa consciência que se estende a quem a comunicou a
nós e a quem está em volta. Produzir a imagem de uma
experiência vivida significa, portanto, transformar a
experiência em fenômeno, o fenômeno em conhecimento
experimentado e a experiência em um evento.
APOSTA E RISCO
E assim chegamos à última parte deste discurso. Como
se pode notar, o simples diálogo que ocorre entre dois
seres humanos suscita questões grandiloquentes,
mesmo no simples plano da cognoscibilidade daquilo que
se experimenta nos termos da mera comunicabilidade.
Nesse sentido, a singularidade da fenomenologia põe o
psiquiatra diante do como do fenômeno e não do seu por
quê. O fenomenólogo, de fato, não indaga nunca sobre
as causas reais ou presumidas como tais. Ele tenta,
antes, alcançar uma percepção nítida da experiência
vivida, uma percepção da vivência que chegue o mais
perto possível daquilo que ambos, psiquiatra e paciente,
sentiram naquele momento: um clima de desconfiança
ou de medo, uma aura de alegria intensa ou uma
angústia de pânico, a submissão a uma inevitável coação
ou o impulso, qualquer que ele seja. O fato de a
fenomenologia não se limitar a uma teoria sobre a
gênese ou sobre a dinâmica, sobre a tópica ou sobre a
economia das experiências vividas, torna-a certamente
pouco prática, naturaliter frágil. No entanto, é isso que a
torna plástica e flexível, capaz de se ajustar a toda
emergência, mesmo à incompreensibilidade mais
absoluta, já que a fenomenologia – em paradoxo apenas
aparente – assume a incompreensibilidade até o fim.
O que a fenomenologia apreende – agora está claro –
não tem margem de redutibilidade posterior: permanece
ligado a ela assim como já foi depurado das referências
psicológicas, biológicas e sociológicas. Esse olhar
constitui o fenômeno da experiência direta das coisas,
dos acontecimentos, das emoções, dos homens, e, do
fenômeno, o mundo vivido. A segunda vantagem é que o
olhar fenomenológico ajuda a manter sempre uma
vigilância crítica sobre as posições que correm o risco de
se tornar “vícios de postura” no curso da conversação, do
encontro ou até mesmo da própria relação. A
fenomenologia utiliza uma linguagem legível, a mesma
do mundo em que estamos imersos, a mesma linguagem
que deriva do mundo da vida : em definitivo, a
linguagem dos próprios pacientes. A linguagem
fenomenológica é comunicável, não julgadora, aberta a
todas as evoluções. E, enquanto adiagnóstica , é uma
linguagem no interior da qual o próprio paciente pode
reconhecer-se e na qual pode iniciar também sua própria
transformação.
Agora é preciso detalhar alguns pontos de
reconhecimento.
O dualismo platônico entre o mundo das ideias e o
mundo real , o dualismo cartesiano entre res cogitans e
res extensa , o dualismo diltheiano entre ciências do
espírito e ciências da natureza favoreceram,
limitadamente, na cultura ocidental, o desenvolvimento
exponencial de técnicas e de conhecimentos específicos,
até a pulverização da unidade do todo. Em relação a essa
fragmentação que se arrisca a produzir artefatos
continuamente, permanece válida a posição de Karl
Jaspers, que, incansavelmente, em todo o arco de seu
percurso clínico-filosófico, chamou a atenção para a ideia
do todo (Ganzheit ), ou para a ideia da experiência vivida
como totalidade indivisível. O desenvolvimento
tecnológico libertou-nos das antigas cosmologias e
cosmogonias. Não pretendemos aqui redesenhar o mapa
das várias explosões conceituais, das fraturas
epistêmicas que marcaram a cultura ocidental nos
últimos dois séculos, período em que se consolidou o
paradigma histórico-natural da psiquiatria como ciência
médica. Contudo, nossa atenção volta-se, hoje,
exatamente para as zonas fragmentárias e maleáveis da
experiência interna do homem.
O advento da modernidade, pensada como
desencanto do mundo, significou desmitificação e
esvaziamento metafísico, mas trouxe consigo o risco da
perda da experiência interna do homem como marca
indelével da sua origem de estar no mundo . A
representação sem salvação da existência que se adensa
no ser homem no mundo embaraçou até mesmo os mais
sólidos otimismos científicos. A rápida e contínua
obsolescência dos paradigmas históricos, entre os quais
o último a morrer parece ser o psicológico em benefício
do neuronal, desertificou o horizonte. O súbito
esvaziamento criado pela onda nietzschiana,
falsificacionista (Popper), anarquista-metodológica
(Feyerabend), o frêmito de indeterminação que, de
Poincaré a Boutroux, de Heinsenberg a Einstein, de Gödel
a Prigogine, permeou, sacudindo-a, a velha máquina
positivista das certezas cognoscíveis, acabou por expor o
homem à nua pobreza do deserto, deixando-o nômade e
desarraigado, em exílio perene da verdade da coisa em si
. As correntes subterrâneas do pensamento
existencialista, a partir de Kierkegaard e Nietzsche, e
depois, de modo talvez mais denso, nas páginas de Kafka
e Dostoiévski, por vias transversas, confluíram na
fenomenologia.
A finitude, a precariedade, o risco, a culpa, a morte, a
angústia voltam como códigos inevitáveis, situações-
limite, busca inexaurível, na experiência vivida e na
consciência do homem contemporâneo. No fundo, esse
súbito vazio não surpreende o fenomenólogo. Ao
contrário, torna-se pensamento do seu caminho e
caminho do seu pensamento. Nos anos 1930, Edmund
Husserl foi levado a tomar uma posição decisiva
perfilando a diagnose da crise a que tinham chegado as
ciências europeias em sua pretensão de objetivação e
formalização. Em relação a todo o edifício cognitivo
erguido sobre a elaboração das várias ciências
específicas – química, física, fisiologia e matemática –,
Husserl relança o mundo da vida , como terreno
antepredicativo, subjacente e cooriginário na consciência
humana, entendida como presença.
Com o rigoroso trabalho de Husserl, começa a
pesquisa dos fenomenólogos: difundir a experiência do
mundo em suas características de espaço, tempo, corpo,
cor e forma. Primeiro Jaspers, depois Binswanger e
Minkowski, com acentos próprios e particulares, tornam-
se sujeitos perspicazes dessas interrogações que
entrecruzam o quadrante da modernidade tardia,
conferindo à postura husserliana o máximo de sua
potência. Em relação a todo esse movimento de crítica
radical e corrosão epistemológica, a práxis rotineira da
psiquiatria acreditou arrogar-se sólidos e bem definidos
paradigmas operacionistas. Uma maior impregnação
fenomenológica tornaria talvez os psiquiatras menos
temerosos e hesitantes ao se confrontar com as
prementes temáticas humanas e científicas da
modernidade e da pós-modernidade, de quem, no fundo,
a psiquiatria é filha. Esse é o caminho indicado por Bruno
Callieri, a aposta como conotação de risco do encontro
com o outro, clínica de um acontecimento que é graça e
mistério, espanto, tragédia e poesia, doença e
incandescência. Retomando a temática pascaliana sobre
a confiança em Deus, a aposta do psicopatologista é
viver a vicissitude humana estreitamente entrelaçada
com a vicissitude clínica: no encontro com o outro, ou se
é si mesmo ou o resultado é um não encontro , no qual o
outro é continuamente frustrado, como a própria
existência. Esse jogo difícil entre autenticidade
existencial e capacidade de ler clinicamente o texto
infinito do encontro com o outro é o abismo que separa o
ser fenomenólogo do ser, profissionalmente, os técnicos
de uma coisa qualquer. Seja ela o que for.
Metamorfoses do tempo

Em minha vida sempre foram demasiadas as coisas;


Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para
pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta, e não machuca;
flui por um brando declive
e se assemelha à eternidade.
JORGE LUIS BORGES

O final do devir, com todos os nossos suspiros,


já é experiência do passado.
KAFKA

Isto eu gostaria que tu soubesses: existe na


separação o mesmo
mistério que há no encontro. Em ambos os casos, uma
porta se
abre. No primeiro, abre-se para a passado; no segundo,
para o
futuro. A porta é sempre a mesma.
WIESEL

A ILUSÃO DA SIMULTANEIDADE E A MORTE DO TEMPO


P ara mim o futuro é ontem. Preciso da informação
agora, antes do encerramento. Não daqui a dez minutos,
já será história. Às quatro serei um dinossauro” 1 . Pensar
o tempo do jovem corretor de Wall Street causa uma
cãibra mental. O tempo dele é uma vertigem sem
duração, sem medida, sem espera, sem pausa, extensão
ou desejo. Nenhuma cifra diacrônica. O agora, o antes, o
depois são rastros de um prisma que dissolveu a
experiência. O tempo é uma fronteira entre o presente e
o futuro, uma linha que se encolhe às nossas costas, até
o ponto exato em que se apaga. A subversão do tempo.
Wall Street decerto é uma ficção cênica. Entretanto,
parece uma metáfora precisa da metamorfose do tempo
da modernidade avançada. Os receptores vivos, os
atores dessas experiências, somos nós. As categorias
tradicionais do tempo, suas dimensões de passado,
presente e futuro, a relação entre tempo estático e
tempo dinâmico são inutilizáveis. Os lugares sem lugar e
os tempos sem tempo da contemporaneidade são a
ordem do mundo, a moldura dentro da qual nossa
existência flui. É uma questão que já não se pode ignorar.
Se nos despedimos do espaço como horizonte
estritamente material e físico sem consequências
dilacerantes, a mesma coisa não pode ser dita do tempo.
Sua ininterrupta transfiguração em multiplicidade de
formas e ritmos está mudando a qualidade e a dimensão
evolutiva da existência, até chegar a resultados
extremos, tornando a questão do tempo, sob muitos
aspectos, impensável. A questão tornou-se muito mais
emaranhada e complexa após as catástrofes da
modernidade, a dilaceração do paradigma do progresso ,
a dissolução da concepção quantitativa da temporalidade
e da ideia de uma evolução irreversível da história.
Apesar de tudo, esse enigma (o enigma mais antigo
do mundo) não cessa de interrogar-nos e de extenuar-
nos. O tempo é a vida, a vida como tal. E isso intensifica
o paradoxo. Sem o tempo, o mundo não pode sustentar-
se. Mas definir o tempo significa, assim como no mito,
fazê-lo morrer por suas próprias mãos, devorado por si
próprio. Não é talvez verdade que, para ganhar tempo, é
preciso consumir tudo o que encontrarmos pelo
caminho? Essa corrida, essa destruição, esse gesto que
aniquila o tempo não estaria na origem da paradoxal e
nunca vista morte do tempo ? 2
Num ensaio sobre algumas pinturas de Hogarth e
Goya, Massimo Cacciari mostra-nos que o tempo, a figura
mítica de Cronos , em seu andamento solene e
majestoso, anuncia a própria morte. Na pintura de
Hogarth, a clepsidra está vazia, o mundo, dissolvido num
monte de escombros fumegantes. Na de Goya, o tempo
tem o rosto da loucura, da cobiça extrema que leva a
devorar os próprios filhos, eles que garantem sua
existência. Ambos aludem a um tempo que, por sua
vontade de viver, lança-se ao encontro da própria
destruição. A figura de Goya trai um escárnio
inquietante, um riso alienado que observa, inerte, a
própria autodestruição. “O tempo voraz” – escreve
Cacciari – “desvela a inverdade da pretensão humana a
ter valores, imortais e imutáveis. O momento daquele
riso que começa a libertar-nos só pode ser alcançado se
compreendermos a verdade anti-idólatra que representa
o tempo destruidor” 3 . O mito originário de Cronos ,
como nos mostrou Jean-Pierre Vernant 4 , é um mito de
criação. Toda época se autorrepresenta por meio do mito.
Também uma civilização fala de si, do próprio sentido, do
próprio conhecimento, mediante o mito. O tempo
transfigura-se nos conceitos de uma época e eles
carregam em si o tempo, como a nuvem carrega em si a
chuva. Mas nem o conceito que imobiliza o tempo nem a
consciência da passagem do tempo podem deter a
irreversibilidade do movimento.
Mas em que sentido o tempo morre por suas próprias
mãos? Por que o ápice de seu poder também é o ponto
em que seu declínio começa? As pinturas de Hogarth e
de Goya têm por moldura a modernidade, a nova idade :
a época da neutralização programática dos
conhecimentos e das tradições anteriores.

A nova era e sua forma peculiar de movimento – a


aceleração – não se contentou em aterrorizar Cronos
fazendo aflorar um novo conhecimento, mas, de
modo pragmático, esforçou-se para transformá-lo em
ação. Tudo aquilo que Francis Bacon já havia
delineado com seu modelo de argumentação – a
esperança de um crescimento sistemático das
ciências, se se aspirava a reconhecer não apenas a
utilidade para o futuro, mas as causas, para sempre,
se se eliminava o acaso mediante o planejamento, aí
então se traduzia no progresso bem controlado das
invenções, valendo-se do auxílio recíproco da divisão
do trabalho –, tudo aquilo começou então a ser
revelado 5 .

Na pintura de Hogarth, as novas concepções


científicas falam de si, a rápida transformação da ordem
anterior, o novo mito da velocidade, a aceleração que
não se detém diante de nada. A modernidade é a época
em que nasce a organização da produção em série do
conhecimento, das mercadorias, das grandes viagens,
das expedições, das colonizações, da reprodutibilidade
da técnica, da clínica. Mas, sobretudo, é a época em que
tudo o que é estático torna-se fluido. O culto da
velocidade e a ilusão da simultaneidade começam a
exercer a própria soberania. Se há uma cifra que desvela
o “moderno”, é essa mutação radical da cognição do
tempo, a afirmação do contingente, do instantâneo.
Nesse gesto inscreve-se ainda nossa história, nossa
identidade instável, a subvertida articulação de todos os
futuros possíveis, a mudança acelerada, a erosão da
experiência. Aqui se origina (mas a história tem origens
mais distantes) o movimento que tornou o tempo ainda
mais incognoscível, e mais indefiníveis sua história, sua
direção, seus eventos.

A “idade” moderna é, por definição, a idade da


transição. A mobilidade absoluta dos eventos, a
mutação contínua do olhar que os registra e torna a
interpretá-los de modo incessantemente novo
debilita a postura “clássica” de pensar o próprio
tempo como fim e como princípio. Por um lado, a
expectativa de diversidade do futuro, das
transformações que ele implicará; por outro, o
avanço, a mudança contínua, as “revoluções” dos
ritmos temporais da experiência, a inserção dessa
experiência num movimento acelerado de mudanças
cujos intervalos são cada vez mais breves e
limitados, escritos numa cadência cada vez mais
frenética 6 .

Se é verdade então que, como vimos, a vontade


desmedida de vida gera a morte do tempo, a aceleração
configura-se como uma pulsão de morte. A aceleração,
de fato, somente pode definir o tempo. Conquistar outros
segmentos de tempo é a doença mortal que apaga
valores, esperas, promessas, esperanças e aniquila toda
mediação possível entre futuro e passado. Essa obsessão
faz com que o tempo seja sistematicamente proibido
pelo instante: o tempo já não pode livrar-se do instante,
sair do instante. O instante, portanto, sua absoluta,
paradoxal exterioridade, é a medida mais íntima do fim
do tempo como experiência. Para Michel Foucault,
estamos vivendo na época

[...] da simultaneidade, na época da justaposição, na


época do próximo e do distante, do lado a lado, do
disperso. Vivemos num momento em que o mundo
se experimenta, acredito, mais do que como um
grande percurso se desdobrando no tempo, como
uma rede cruzando alguns pontos e entrelaçando seu
novelo 7 .

A pretensão da posse das razões do mundo,


portanto, faz do instantâneo a autêntica partitura do
tempo. Isso muda o estatuto conceitual do presente: de
verdade subjetiva, transforma-se em movimento pelo
qual a realidade reproduz a si própria. Na
instantaneidade , o presente se dissolve e, com ele, a
razão das coisas, pois passa a faltar a duração que o
explicava. Decerto o ato livre pressupõe o instante, a
escolha responsável e desestabilizadora do instante, a
duração de um instante durante o qual a energia da
escolha dá lugar a uma enorme tensão. Mas o instante
está sujeito ao tempo (e juntamente sujeito no tempo),
porém não é do tempo. Sua encenação – o teatro que
denominamos “presente” – é um movimento rápido,
efêmero, frágil. Nessa cena, o instante, o ato livre do
instante, se tenciona sobreviver, tem de enfrentar o
devir. O devir tem por campo de ação a liberdade.
Quando ela pretende exercitar-se no passado ou no
presente torna-se escravidão.
Épocas e civilizações conotam-se na experiência do
tempo. Toda a nossa existência está inscrita na
experiência do tempo. Mas o tempo não pode ajustar-se
com a experiência, pois esta – como mostrou Aldo
Masullo – é prejudicada pelo juízo e pelo domínio do
intelecto. Tudo isso é ainda mais verdadeiro para a
contingência que impele a nossa existência. A
experiência do instantâneo é algo diferente do tempo.

No instante em que colocamos o presente como o


domínio do existente sobre o existir e procuramos a
passagem do existir ao existente, encontramo-nos
num plano de pesquisa que já não se pode qualificar
como experiência. E, se a fenomenologia nada mais
é do que um método de experiência radical, nos
encontraremos além da fenomenologia 8 .

Os gestos impermanentes na permanência da


mudança, o acontecer sem projeto ou plano, a absoluta
improvisação de sentido, o devir puro que se nos subtrai,
mas que se identifica conosco (com alguma outra coisa
sempre inacessível) – todas as figuras desse discurso –,
já estão além da fenomenologia. A liberdade do tempo só
pode ser o devir. Nossa razão de ser – o tempo, portanto
– está no devir, sempre exposta ao olhar do devir. A
liberdade que

[...] pretende exercitar-se sobre o passado ou sobre o


presente transforma-se em servidão: é a liberdade de
Sísifo, que se imagina livre quando, todos os dias,
tem de subir as escarpas que ultrapassou no dia
anterior e que, à noite, enquanto rola no ponto morto
do vale, aprende que, como escravo, tem de
recomeçar um trabalho forçado e inútil 9 .

Mas esse tempo é – como observou Binswanger –


sentido traumático, descontinuidade vivida, campo de
oscilação de dor e prazer, “autoafecção originária”,
“desestabilização padecida nas mudanças” 10 . Esse
tempo, como tempo presente, sempre nasce de uma
fratura.

Tudo aquilo que eu vivo acontece-me . Se do âmago


da vida, que se vive ao sentir, o si mesmo
originariamente se alucina e aos poucos vai se
estabilizando no sentimento do si mesmo,
evidentemente apenas a vida acontece , e acontece
à medida que acontece a si mesmo , a um si para o
qual o acontecer cabe , como se o si mesmo fosse
antes do acontecer , como se a experiência vivida
fosse antes e não a partir da vida viva. Nesse rumo,
em que a vida se duplica, com a autoafecção do
tempo origina-se o sentido da contingência 11 .

O tempo da regularidade, da repetição opressiva da


Ordem e da Lei, é um jugo insuportável que impossibilita
qualquer conhecimento, reconhecimento de si mesmo,
revelação de si mesmo. Com efeito, o conhecimento de si
mesmo implica redenção de si mesmo. O ato que funda
esse conhecimento, embora se situe no tempo, não é do
tempo: é um ato repentino e gratuito que concerne a
todo indivíduo e que exclui ordens anteriores e limitadas.
Nosso eu não se realiza no tempo, mas imediatamente
fora do tempo: aquém ou além do tempo. Liberto do
tempo, o eu torna a falar-nos de nossa condição
originária, não temporal. Por esses motivos não se pode
imaginar o eu como pressuposto da identidade. A
identidade não pode ser o recipiente de uma qualidade
imutável. Eu sou eu mesmo não por identificar-me
preliminarmente com esse ou com aquele caráter, para
depois voltar a ser o mesmo de antes. Eu sou eu mesmo
se conseguir colocar-me fora do eu, se conseguir
temporalizar minha identidade sem cair na repetição
invariante de si. A identidade (que não é a consciência da
identidade) seria inimaginável sem essa intencionalidade
identificadora , que é pluralização temporal.

A identidade-resultado é a abstração que um


pensamento petrificado estabeleceu, pensamento
que já esqueceu a própria vida e aqueles horizontes
dos quais – mediante uma série de movimentos,
talvez felizes, mas imprudentes e irresponsáveis – ele
se separa para se apressar rumo a tal resultado. A
fenomenologia seria, portanto, a reativação de todos
esses horizontes esquecidos e do horizonte desses
horizontes. Estes são o contexto dos significados
abstratos e permitem que se saia da abstração, com
a qual o olhar ingênuo se satisfaz 12 .

Mas esse ato que suspende as convenções


temporais, não temporais em si, em seu objeto e em
seus afetos, seria talvez estranho ao acontecimento
temporal? Não seria plausível afirmá-lo. Evento e
consciência estão no mesmo plano e não há um tempo
atrás do tempo. Mas, sobretudo, “[...] a consciência do
tempo não é uma reflexão sobre o tempo, mas a própria
temporalização: o depois da tomada de consciência é o
depois do próprio tempo” 13 . Esse acontecer
fragmentário, individual e anárquico, essa
intemporalidade fazem o mito regressar à pátria dos
eventos históricos, tornando a ser ele próprio mito. Dessa
perspectiva, o tempo não é imaginável

[...] racionalmente, por conceitos, ou concretamente,


por apreensão de pessoas e eventos históricos em
sua singularidade: os conceitos tornam-se esquemas
de contornos mal definidos, entidades meio abstratas
e meio concretas, meio pessoais e meio impessoais
[...] fragmentos de duração ou períodos de tempo
espacializados e hipostatizados, os elementos ou as
personagens de um drama mitológico 14 .

O processo de desmaterialização e dessimbolização


que atinge o espaço contemporâneo fala de si num
tempo fragmentado, descontínuo. O epicentro dessa
mutação é a metrópole. Aqui, a tensão entre o tempo dos
homens e o tempo do mundo, entre a experiência
individual e os eventos históricos, vai muito além das
notórias análises de Hans Blumenberg a respeito do
alargamento da bifurcação temporal entre tempo do
mundo e tempo da vida 15 . As dinâmicas que
Blumenberg analisa, cujo ápice está no moderno ,
transformaram-se em movimento oposto. O tempo,
medida natural da vida, enruga-se e desaparece. A
memória, a percepção, a espera modificam-se. O antes,
o agora e o depois – antigas figuras do tempo – esvaem-
se.
Interrogar-se sobre essas questões é uma tarefa
incontornável. Mais ainda se consideramos a distância
que já separa os homens dos ritmos do planeta, dos
ciclos das estações. O sismógrafo extremamente sensível
da metrópole mostra a que ponto os absolutos da Ordem,
do Projeto, da Lei estão distantes dos chronoi individuais.
Até o kairós , a íntima e extremamente particular
condição da alma abrindo-se ao mundo, é um fragmento
de tempo disperso no devir. Até as metáforas do tempo
mudam. Mais que ao movimento linear da flecha ou ao
fluir do rio rumo à foz, o tempo remete ao andamento
das nuvens, a sua decomposição e recomposição, à
mutabilidade de sua velocidade e direção. Evocando a
alusão da paródia sobre o progresso e a racionalidade da
história de Robert Musil, Ferruccio Masini escreve:
O caminho da história não é o de uma bola de bilhar
que, uma vez em movimento, segue uma trajetória
determinada, mas se assemelha ao caminho de uma
nuvem, ao de alguém que vai vagabundeando pela
rua e ora é desviado por uma sombra, ora por um
grupo de pessoas ou por um estranho corte de
fachada, e por fim chega a um lugar que não
conhecia e para onde não desejava ir. O andamento
da história está sempre em debandada. O presente é
sempre uma última casa da margem, que de algum
modo já não é totalmente parte das casas da cidade.
[...] A expressão de Musil “[...] nós erramos para a
frente” é significativa: indica, justamente, esse
contínuo debandar, ou melhor, esse prosseguir da
humanidade rumo a um devir ao qual não se dá
nenhuma meta ou tarefa, já que não podemos avistá-
las nem tampouco deixar de avistá-las. É um seguir
adiante, portanto, que na realidade não progride, um
conferir aos erros a falsa solenidade de uma meta
alcançada e, portanto, situar o erro na meta: fazer do
erro, e portanto do próprio erro, uma meta 16 .

Estamos muito além das análises de Simmel, que em


1914 escrevia: “[...] Estamos experimentando uma nova
fase da velha luta – não mais uma luta da forma
contemporânea, cheia de vida, contra uma forma que
dela é tolhida, mas uma luta contra a forma como tal ,
contra o princípio da forma” 17 . Esse princípio em
desagregação transforma-se em multiplicidade e
indeterminação: uma tendência que se respirava no
espírito cultural e científico do início do século XX e que
Hugo von Hofmannsthal enxergou como uma mudança
de perspectiva e uma descontinuidade – com respeito a
uma tradição – que já viam a realidade sólida e nada
escorregadia 18 .
EM MEMÓRIA DO FUTURO
Mais do que na organização do espaço, é na estrutura do
tempo que a soberania do projeto moderno se desdobra.
A seta moderna do tempo – a ilusão que interpreta a
existência no seu processo histórico, numa perspectiva
de libertação e de ética do sacrifício – constitui-se a partir
de um recalque formidável da corporeidade, dos desejos,
das emoções e das pulsões. Com suas já clássicas
análises da secularização do sistema social e das
estruturas da temporalidade histórica, Reinhart Kosellek
19
e Niklas Luhmann 20 mostraram-nos que, no tempo da
modernidade, a ordem simbólica do tempo está
invertida; a perspectiva de redenção, dissolvida; a
experiência, enfraquecida. A Kosellek cabe o mérito de
ter investigado, com sua magistral semântica do tempo
histórico , a transformação da espera e a dilatação do
futuro que contraem a experiência até dissolver a própria
ideia de futuro. Kosellek reconstrói a patogenia do
moderno, explora seu território do imaginário por meio
das figuras, dos lexemas, dos sememas, e chega ao
patamar crítico da crise de consciência moderna: crise,
antes de tudo, normativa. A inversão simbólica da
relação horizonte de expectativa e espaço de experiência
abre caminho para a dilatação da expectativa, para a
contração da experiência. O tempo,

[...] a projeção futurizante, parece ao imaginário


individual e coletivo não mais como perspectiva
liberatória e sim como fator de coação e interdição
da experiência. A essencialidade dessa patogenia
para a nova idade é inequivocamente comprovada
pela genial intuição shakespeariana da pulsão de
morte que fundamenta a aceleração 21 .
A transformação da temporalidade, assim como nos
é dado experimentá-la, permaneceria incompreensível se
não assistíssemos ao adelgaçamento da fronteira que
demarca o processo das expectativas crescentes, ao
admirável processo de neutralização da experiência. Do
impulso neurótico rumo ao futuro, da abertura
radicalizada à pura aceleração, originam-se frustração e
“anomia”. Da poderosa metáfora do navio –
quintessência simbólica do moderno – permanece um
fragmento flutuante, um lugar sem lugar, entregue à
imensidão do mar. O navio que experimenta o naufrágio

[...] bem reflete uma nova consciência do projeto


moderno, como exemplifica aquela metáfora que,
justamente na década de 1930, começa a circular no
âmbito científico emendado pelas certezas
progressivas do positivismo. A imagem de um navio
de náufragos obrigados a consertar a própria
embarcação em mar aberto ajusta-se ao
reconhecimento de que o projeto moderno não tem
fundamento, nem tanto e não somente – como havia
mostrado o pensamento negativo entre os séculos XIX
e XX – do ponto de vista dos valores quanto,
sobretudo, com respeito aos próprios fundamentos
do processo científico e cognoscitivo que dera
substância ao máximo de certeza com relação aos
destinos de tal projeto, o positivismo velho e novo 22 .

Nos primórdios do século XX , Eugène Minkowski, com


extraordinária capacidade de antecipação, identificou,
nas categorias de atividade e expectativa , duas
modalidades distintas de experimentar o futuro,
mostrando como a psicopatologia (ciência
eminentemente individual) pode ser considerada
metáfora da temporalidade. Com a categoria da
atividade , ele aponta o movimento (centrífugo) do
indivíduo que segue em direção ao futuro, e daqui
controla os eventos; com a da expectativa , ele aponta
um movimento contrário (centrípeto), em que o futuro se
move em direção oposta, rumo ao indivíduo. No
cruzamento entre esses dois movimentos situa-se a
experiência do homem: sua identidade está submetida a
esse campo de tensões contrapostas.
A experiência da Primeira Guerra Mundial e,
particularmente, a do combate na linha de frente (a
espera angustiante e a absoluta imprevisibilidade do
futuro) estimularam Minkowski a desenvolver uma
verdadeira fenomenologia da experiência de trincheira,
induzindo-o a anotar, para uma obra que nunca veio à
luz e cujo título seria Como vivemos o futuro (e não o que
dele conhecemos ), algumas ideias que se revelarão
decisivas para sua atividade clínica e teórica. Da
expectativa , Minkowski observa que

[...] ela abrange todo o ser vivo, suspendendo sua


atividade e travando-o, angustiado, na expectativa.
Esta contém um fator de bloqueio brutal e deixa o
indivíduo ofegante. Poderíamos dizer que todo o
devir concentrado fora do indivíduo abate-se sobre
ele em massa poderosa e hostil que tenta aniquilá-lo.

Em seguida, com uma outra figura que nos faz


recordar o naufrágio do Titanic , escreve:

[...] É como um iceberg que flutua diante da proa de


um navio e que num instante fatalmente irá
destroçar-se contra ele. A expectativa penetra até a
raiz de um indivíduo, enchendo-o de terror diante
dessa massa desconhecida e inesperada que o
engolirá num instante 23 .
Talvez não haja metáfora capaz de resumir a
aventura da modernidade tão intensamente quanto a do
Titanic , o navio que encerrou sua corrida chocando-se
contra um iceberg , por ter tentado um insensato recorde
de velocidade. Não há imagem mais poderosa que tenha
evidenciado significado, valor e consequências da
velocidade e, ao mesmo tempo, a mudança radical da
experiência do tempo, a impossibilidade de utilização da
tradição e dos paradigmas do passado 24 . Essa metáfora
expressa perfeitamente como o progresso (a ideologia
que planeja o devir e diviniza o futuro) – em perfeita
heterogênese das finalidades – suplantou a ideia da
história como processo linear, decompondo-a
prismaticamente em múltiplos fragmentos, em vetor sem
sentido nem direção. O sujeito, figura-chave e o próprio
fundamento da modernidade, declina na incapacidade
“[...] de sustentar o peso do arco histórico que se retesa
entre história e utopia” 25 . Da utopia, que no horizonte da
filosofia da história constituía um horizonte meta-
histórico necessário, uma ulterioridade metatemporal,
resta, ao contrário,

[...] algo que insiste profundamente no tempo, na


própria estrutura do tempo, e é aquele presente que
carregamos por dentro. Não é esse o presente que
morre, que se apaga porque é engolido pelo passado
ou que cessa de ser porque já é futuro. Utopia, nesse
sentido, é uma experiência íntima da temporalidade
e, portanto, não implica colocarmo-nos do lado de
fora ou além, não evoca uma transcendência, mas
sim um estabelecer-se deste lado, no interior do
mundo 26 .

O enfraquecimento febril das leis da história parece


ter impelido a filosofia a entregar-se a uma deriva
impotente, incapaz de pensar em si mesma. Nenhuma
finalidade, nenhum projeto. Nem sequer a intenção de
um projeto. O futuro é a estação de chegada de uma
viagem que transcorre com imperceptível rapidez no
passado. A ideia de um futuro que possibilitasse a
emancipação transformou-se em fuga do futuro, em
necessidade de resgatar-se do futuro planejado e
realizado. A tentativa de anulação das raízes simbólicas e
mitológicas que se estratificaram no tempo gerou uma
estase da história , que Gehlen 27 definiu como
cristalização cultural . A Gehlen e, mais em geral, à
antropologia filosófica 28 da primeira metade do século XX
– pensemos na reflexão teórica de Pannenberg 29 , Von
Uexküll 30 , Plessner 31 , Marquard 32 – cabe o mérito de ter
indicado uma perspectiva antitética de qualquer filosofia
da história e seus modelos de racionalização. Ferruccio
Masini escreveu:

A antropologia filosófica move-se em função,


poderíamos dizer, antitética da filosofia da história e
conspira e colabora para a destruição da filosofia da
história. O homem é visto como creatura creatrix ,
não mais como protagonista dos eventos históricos,
um protagonista condenado a carregar o peso
daqueles. Ele cria, em sentido alternativo, culturas
diferentes. Na raiz dessa possibilidade, justamente,
há uma condição antropológica entendida como
variável permanente. O homem não é uma
invariável; é uma variável, no sentido de que, assim
como a história é um vir a ser, ele próprio também o
é. Portanto, ele não tem fronteiras, não pode assumir
uma configuração nítida e definitiva. Abre-se desse
modo a possibilidade de pensar numa pluralidade de
absolutos; dissolve-se um absoluto da teoria em que
tudo se cumpre: uma história como princípio e fim do
devir humano. Há um desdobramento excêntrico
desse sujeito humano em múltiplos absolutos. Daí a
possibilidade de uma filosofia anti-historicista como
filosofia pluralista 33 .

AGOSTINHO E A INTERROGAÇÃO IMPOSSÍVEL


Com a tematização fenomenológica de nosso século, a
questão do tempo passa a coincidir com a construção
temporal da experiência vivida. Husserl, Minkowski,
Binswanger, Von Gebsattel e Lévinas levam a questão da
temporalidade para o campo de forças do tempo vivido,
do tempo vivido do outro, das diferentes experiências
vividas que se encontram cara a cara no mundo. Com a
fenomenologia, a figura do outro, por mais estranha e
inapreensível que seja, é reinscrita no tempo, embora
sem que o tempo a possua. O tempo é sempre e
somente o tempo de um homem que o experiencia. O
tempo é, portanto, irredutivelmente, o meu tempo,
tempo desmedidamente diferente do tempo do outro. Se,
com efeito, meu tempo coincidisse com o tempo do
outro, a minha identidade e a sua compartilhariam a
mesma idêntica vida. Mas não há possibilidade de
compartilhar, nem sequer uma única possibilidade de
ajustar uma experiência certa a um horizonte objetivo. O
tempo surpreende a todos e manifesta estranheza a
todos. Cada qual o torna experiência na própria
identidade, sempre num outro lugar, num outro tempo. A
renúncia à pretensão de ser a medida das coisas é o
preço a ser pago pela própria presença no mundo. Nessa
renúncia para instituir o mundo, um caminho entre a
revolta e a resignação que absolutamente não deseja
anular a indiferença do mundo, a fenomenologia
redescobre a si própria. Uma tarefa em que a
tecnociência (especialmente desde que o homem deixou
de ser útil aos protocolos de pesquisa ) não está nada
interessada. Que esse homem, afinal, fora dos
protocolos, continue tendo suas lembranças, suas
esperanças, suas emoções, não tem nenhuma
importância: sua função agora está esgotada.
A análise fenomenológica da experiência do tempo
demonstra que a experiência vivida pelo homem
constitui-se de dois elementos irredutivelmente
diferentes que compartilham a mesma perspectiva: o
polo da experimentação e o da temporalização. Se faltar
um desses elementos perspécticos, não pode haver
nenhum tipo de experiência vivida. Para que algo
aconteça na experiência de um homem – que possa
dizer-se experiência vivida –, a experimentação e a
temporalização devem ser colhidas juntas. Aldo Masullo 34
mostrou-nos como o substantivo alemão Erlebnis é
indissociável de duas referências fundamentais: uma
constituída por uma experimentação sempre dotada de
sentido (e não por um simples fazer experiência de
alguma coisa); a outra, pelo elemento pático . A palavra
Erlebnis contém, de fato, a raiz Leben , que significa vida
, no sentido de algo originário, de primário, de não
cognitivo: uma experimentação afetivamente densa,
arraigada no fundo afetivo da vida. A palavra alemã
Zeiterlebnis alude a uma experiência temporalmente
configurada, impregnada afetivamente e dotada de
sentido. Toda experiência vivida do homem é constituída
de uma experiência afetiva e não pode ocorrer sem uma
determinação temporal da experiência vivida.
A exploração da atividade encefálica mostra-nos que,
se a relação entre processos e funções cognitivas é
bipolar, no estudo da “temporalidade vivida” essa
bipolaridade já não se pode encontrar. Em
neuropsicologia, fala-se de “cognição do tempo” com o
sentido de gradiente de modalidade – da percepção à
representação – por meio do qual o cérebro (as áreas de
integração do córtex cerebral) efetua um controle e um
conhecimento sobre o fluxo temporal. Fala-se ainda de
“tempo da cognição” com o significado de “cronometria”
mental, ou seja, o estudo do tempo que o córtex cerebral
leva para realizar uma série de funções integrativas,
elevadas e complexas, que conduzem à execução de um
determinado desempenho cognitivo. Mas, uma vez
suspensas as convenções científicas, o caminho rumo ao
interior da experiência humana mostra-nos que as
diferenças de superfície se pulverizam, o esquema
diacrônico do antes e do depois detém-se na hora.
Quanto mais nos aprofundamos, tanto mais indistintas
tornam-se as diferenças com as quais construímos a
nossa ideia de mundo. Poderíamos afirmar, com a
linguagem da física, que em certo nível de profundidade
não conseguimos mais dizer se aquilo de que tratamos é
uma partícula ou uma onda, um corpúsculo ou uma
radiação, velocidade ou posição. É famosa a alusão ao
valor ambíguo e incontornável de Albert Einstein: a “[...]
divisão entre passado, presente e futuro tem apenas o
valor de uma obstinada ilusão” 35 .
O acontecer, que denominamos “experiência vivida
do tempo” – o reviver a experiência vivida do outro
mediante a nossa própria experiência vivida –, é
inimaginável fora da coincidência de categorias de
temporalidade e experiência. Esse acontecer é um ato
visual contemporâneo, um dar-se significativo, uma
imagem vivida de um fluxo da consciência. O tempo
vivido, ou, se quisermos, a experiência vivida do tempo,
é, como tal, uma experiência humana, o ponto da
coincidência da consciência, presença e história. Em
outros termos, o ser humano como presença que se
temporaliza ou como presença que se presentifica .
Nesse sentido, tempo e espaço tornam a juntar-se. Nem
tanto porque o tempo torna a ser uma dimensão do
espaço, mas porque o espaço se temporaliza. Se, de fato,
como Bergson demonstrou, o tempo é uma sucessão de
momentos, um fluxo de momentos, um após outro, os
momentos dessa sucessão se espacializam. Aqui não tem
nenhuma relevância levantar os limites da análise de
Bergson: como no momento em que, por exemplo, da
sucessão dos diversos momentos considera somente o
acontecer formal, sem assumir o ato do “colher junto” os
diferentes momentos. Aqui, mais que tudo, interessa
observar como esse gesto devolve forma ao tempo, ao
tempo experimentado num espaço. É como dizer que o
espaço é intrínseco ao tempo. Mas, se isso é verdade,
tempo e espaço já não são dois, mas “um”, pois o tempo
só ocorre numa sucessão. Essa necessária espacialidade
está presente em Agostinho, para quem o tempo é,
justamente, distensio animi .
Então, o espaço pertence ao tempo. Mas como é que
o espaço torna-se espaço? Poderíamos responder que o
espaço torna-se espaço quando o tempo despede-se da
experiência vivida. Foi assim para Kant, que representou
o tempo numa linha reta. Nessa linha paradoxal o tempo
se espacializa, se transfigurando em espaço. Mas como
definir o tempo numa linha reta se ele não tem direção?
Como o tempo é tempo se, morando nele, está sempre
fora do tempo? Enfim, quem é o tempo quando sai de
mim e toma seu caminho, independentemente de
qualquer permanência? Qual será sua identidade, se
nasce para separar-se? As aporias da ciência que
interroga o tempo estão nesse constituir-se do tempo,
fora do eu . Se não fosse reinvenção contínua do
presente, do futuro, do passado, o tempo, sem a
experiência vivida, seria apenas uma sequência de
instantes, uma soma de instantes espacializados. Aqui
está a medida íntima do tempo da técnica, o tempo
dobrado às razões da pura objetividade, o tempo como
soma de espaços nas variantes deterministas e espaciais
da ciência. Quanto mais diminui esse tempo, reduz-se a
sequência externa de momentos (a espaço geométrico),
tanto mais está separado da experiência interna.
Naturalmente, não pretendemos afirmar que o tempo
enquanto tal é duração. Não teria sentido dizer que o
tempo da matéria, biológico ou físico que seja, também
carrega a cifra do tempo subjetivo. É difícil pensar, por
exemplo, na duração de um tempo mecânico, sem vida.
Dizemos apenas que toda a vida está inscrita no livro do
tempo, o qual não tem nada que ver com o tempo
marcado pelo relógio, com as relações espaciais
indicadas pelos ponteiros de seu mostrador.
Como não raro acontece, mais do que à pureza
teórica da filosofia e da ciência, é ao poder evocativo da
literatura que precisamos nos dirigir para compreender a
transformação de uma época. A grande maioria dos
romances tem como tema o tempo. Mas a experiência do
tempo, por mais que procuremos isolá-la – como
demonstra a grandiosa Busca de Proust –, não pode ser
capturada. O tempo, a dimensão temporal, é o centro
absoluto da vida. Não o espaço, que permanece uma
perfeita ilusão. Os espaços em que nossa vida se sucede

[...] nos envolvem e desaparecem, como as águas do


mar depois que o navio as singrou. Buscar a essência
da vida no espaço é como procurar o percurso do
navio na água. Ela existe somente como memória do
fluxo de seu ininterrupto movimento no tempo. Os
lugares onde temos a ventura de ser são cenários
efêmeros e casuais para a nossa vida temporal, e
tentar recuperá-los é impossível 36 .

O predomínio da importância da vida no tempo em


relação à vida no espaço permeia a obra de muitos
pensadores e escritores de origem judaica: Einstein,
Freud, Bergson, Proust, Kafka, Lévinas, Rosenzweig. Sua
busca da identidade, sua própria existência espacial,
como doloroso chamado ao desarraigamento, esclarece o
porquê da importância do tempo em suas existências.
Podemos dizer que a pátria do judeu é o tempo. Esta é a
trama que mantém unidos vida e pensamento.
Escreve Franz Kafka: “[...] Os relógios não coincidem;
o interior dispara de um modo diabólico, demoníaco, ou,
em todo caso, inumano, enquanto o exterior segue
vacilante sua marcha habitual” 37 . Kafka protesta contra
a insensatez desesperadora do tempo público. Em O
processo, afirma que a dissidência com o tempo público
torna-se protesto extremo. Joseph K., acusado sem o
saber, inexperiente dos procedimentos de um processo,
diz da convocação para o primeiro interrogatório:
“Telefonaram-me agora mesmo dizendo que devo ir a
algum lugar, mas esqueceram-se de me dizer a que
horas”. Joseph K. tem certeza de que o encontro está
marcado para as nove, mas chega com uma hora de
atraso. O juiz repreende-o por ter chegado com uma hora
e cinco minutos de atraso. Mas quando, na semana
seguinte, ele chega pontualmente, não encontra
ninguém. Não há razões a saber. A lei que está para
condená-lo, sem que ele saiba da acusação que pesa
contra ele, é totalmente irracional discutir. É o que lhe
dizem o advogado e o sacerdote. Simplesmente: “Não é
preciso considerar tudo como verdade, é preciso apenas
considerá-lo necessário”. Na tentativa de compreender a
razão de tudo aquilo, Joseph K. descobre que por trás de
seu mandado de prisão

[...] encontra-se uma grande organização. Uma


organização que mobiliza não só guardas
corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris,
no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso,
de qualquer modo, sustenta uma magistratura de
grau elevado e superior, com o seu séquito
inumerável e inevitável de contínuos, escriturários,
gendarmes e outros auxiliares, talvez até de
carrascos – e não recuo diante dessa palavra 38 .

Joseph K. pergunta-se: “Que tipo de pessoas eram


aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade
pertenciam?”. K. ainda vivia num estado de direito,
reinava a paz em toda parte, todas as leis estavam em
vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua
casa? E, definindo-se “mais perplexo que irado”, diz:
“Quem é o senhor afinal? Quer um sentido e executa a
coisa mais sem sentido que existe? É de fazer chorar!”.
Nas figuras kafkianas, traça-se uma rede universal, sem
Criador, sem Legislador ou Mente que a dirija, um
organismo que se move por ordem própria 39 : são as
máscaras que ocultam a distância abismal que há entre
as existências individuais e a Lei, os Tribunais, os
Impérios, as Muralhas. Os lugares onde a medida
humana está ausente e onde, antes, triunfa a
desumanidade de toda Lei, de toda norma e sanção. Em
Kafka, torna-se extremo aquilo que para Marlow de
Coração das trevas 40 é a inadequação de todas as
formulações públicas dos critérios humanos e das
motivações humanas. Em outra obra, O agente secreto ,
Conrad havia levado a consequências extremas a revolta
anárquica contra o símbolo mais representativo da
autoridade política centralizada: o atentado, pela mão de
um anarquista russo, ao Observatório de Greenwich,
autoridade máxima do tempo público. Aqui, tempo
absoluto público e estado absoluto coincidem. À sombra
do estado absoluto vive o símbolo da organização
universal com seu movimento centralizador. O estado
absoluto: uma forma sem tempo, sem rosto, que não
envelhece, não se altera, não se consome, uma “[...]
antivida, isto é, uma vida conceitual que para cada
condição da vida natural contrapõe uma condição
oposta: à transitoriedade a estabilidade, à mutabilidade a
imutabilidade, à mortalidade o imortalismo” 41 .
A temporalização como escritura do Tempo-Lei do
Estado transforma-se em instrumentos de
regulamentação e controle: não somente instrumentos
de designação jurídica, mas também meio de todas as
transformações sociais. Nessa perspectiva, a história
torna-se o tribunal universal (o mesmo que angustiava
Kafka) no qual todos são chamados a representar
segundo um roteiro em que será impossível nos
reconhecermos e em que “a mentira é transformada em
ordem universal”. Kafka conhecia bem o funcionamento
da diabólica máquina burocrática por ter visto de perto a
injustiça e a mentira da burocracia da velha Áustria, onde
as diversas nacionalidades, em conflito entre si, eram
governadas por uma hierarquia uniforme de funcionários.
Escreve Hannah Arendt:

Kafka, funcionário de uma companhia de seguros


sociais e amigo de judeus da Europa Oriental, para os
quais tinha de arranjar vistos para a Áustria,
conhecia exatamente a situação política de seu país.
Sabia muito bem que se alguém ficasse emaranhado
na rede do aparato burocrático já não teria salvação.
A consequência do domínio da burocracia era que a
interpretação da lei degenerava em instrumento de
arbítrio, ao passo que um absurdo automatismo dos
baixos escalões dos funcionários supria a
incapacidade crônica dos intérpretes da lei, um
automatismo ao qual, praticamente, delegavam-se
todas as verdadeiras decisões 42 .
Racionalidade do Estado, Lei universal, Tempo
público uniforme representam os gestos coletivizadores
em conflito com a liberdade dos indivíduos, fazendo
explodir a pluralidade dos tempos pessoais e tornando a
colocar o tempo no centro da experiência humana. Mas o
fluir interno do tempo não é marcado pela sequência de
números, normas, espaços. Disso tudo nossa vida interior
não sabe nada: como nada sabe a ciência que computa
as paixões perdidas de Paolo e Francesca , o Eros
metafísico de Tristão e Isolda , as perguntas de Hamlet,
as angústias de Ana Karenina , as interrogações
metafísicas do Pastor errante da Ásia , o amor como
renúncia à vida de Antígona . Nossa vida narra outra
multiplicidade: as experiências fluidas, indistinguíveis em
sua sucessão, irredutíveis a metáforas espaciais – uma
ordem de realidade diferente.
Diante dessa subversão, o tempo homogêneo e
universal é uma totalidade insensata. Aquele tempo é
processo psíquico despedaçado, um movimento que
nunca mais poderá ser reconstruído por meio de
categorias espaciais. Zenão de Eleia nunca mais poderá
decompor a corrida de Aquiles medindo-a no passo da
tartaruga. Aquela corrida agora se desenvolve no espaço
sem ser do espaço. Decerto é inimaginável uma corrida
como puro ato psíquico: ela só pode realizar-se num
espaço. E, portanto, a corrida de Aquiles não seria nem
tanto um movimento, mas simplesmente a
representação de um movimento. E, nesse caso, estaria
certo Antístenes, que demonstrava sua objeção ao
sofisma eleata pondo-se a andar 43 .
Entre a experiência interior do tempo e o espaço
determinam-se entrelaçamentos e movimentos
contínuos. O jogo entre essas duas diferentes instâncias
já não acontece, como para a metapsicologia freudiana,
em planos distintos: essa seria, com efeito, uma
declinação topológica e topográfica adicional. Ao
contrário, esse jogo ocorre com uma ordem espontânea
que envolve emoções, desejo, vontade. Nessa região
magmática nasce a relação entre a experiência do tempo
e do espaço, a dimensão em que a experiência sucede
concretamente e que se tornará mais evidente quanto
mais avançarmos da profundidade à superfície
(determinações, por ironia do destino, ainda espaciais).

O TEMPO E A METÁFORA PSICOPATOLÓGICA

A Eugène Minkowski cabe o mérito de haver introduzido


na reflexão psicopatológica uma abordagem de
categorias para a reconstituição da experiência do
tempo. Em O tempo vivido , Minkowski aplica o método
fenomenológico às categorias de passado, presente e
futuro, levando-o para o estudo de seus pacientes
psicóticos que, em virtude do caráter fragmentário e da
desorganização de suas experiências do tempo, da
ilegibilidade anamnésica evolutiva de sua personalidade
pré-mórbida e da própria síndrome, adquiriam extremo
interesse. Anteriormente, Karl Jaspers, em sua
monumental Psicopatologia geral , já havia traçado as
diferentes modalidades de experimentar o tempo e o
espaço nos diferentes distúrbios psicopatológicos. Antes
ainda, a reflexão sobre o tempo (que se tornará leitmotiv
da análise psicopatológica de orientação
fenomenológica) havia despertado a paixão e a mente de
gerações inteiras de psicólogos clínicos como Pierre
Janet, Théodule Ribot, Jean Guyau, Charles Blondel e
psicólogos experimentais como Gustav Fechner e
Wihlelm Wundt, para citar apenas alguns deles. No
entanto, foram Janet (com A psicastenia e Neurose e
ideias fixas) e Ribot (com As doenças da memória ) que
abriram uma nova era na análise dos diversos mundos
da psicopatologia deste século. Mais tarde, autores como
Eugène Minkowksi, Ludwig Binswanger, Hubertus
Tellenbach, Victor von Gebsattel, Danilo Cargnello, Bruno
Callieri, Eugenio Borgna nos entregarão páginas de
capital importância sobre a temporalidade na
esquizofrenia, na loucura, na melancolia. Essa lição,
nascida da escuta paciente e da diuturna observação
clínica, supera seu valor doutrinal. Suas categorias
representam as metáforas das modalidades universais de
experimentação do tempo.
Suas pesquisas mostraram também a dilatação do
tempo apagando a duração, a contração do tempo que
interdita seu acontecer. A psicopatologia conhece a
fundo a marcação do ritmo que nega o luto, a duração, o
diferimento; as sequências que anulam suas pausas; os
movimentos que opõem aos nãos da espera inerte os
sims da aceleração. A experiência maníaca vivida – a
experiência em que as ideias escapam, prorrompem e se
perseguem num impulso de vitalidade sem criatividade –
parece uma metáfora eficaz da existência metropolitana.
Mas em geral, a experiência vivida – temporal,
melancólica e maníaca –, seu acontecer simétrico e
contrapolar, bem poderiam representar o campo de
oscilação em que a mente da metrópole desliza.
Será útil adentrarmo-nos ligeiramente por esse
território. As modalidades da aceleração do tempo e de
sua desaceleração, até a parada cataléptica do bloqueio
psicomotor e do stupor melancolicus , no sentido de uma
disposição linear do tempo sobre um eixo que corre entre
um minus e um plus , ainda são (embora dentro de
certos limites) quadros passíveis de conceituação. Nesse
âmbito, o conceito jaspersiano de “compreensibilidade
da vida por meio da vida” (isto é, de compreensibilidade
da experiência por meio do revivido) e o minkowskiano
de “sintonia” encontram seu maior campo de aplicação.
Se numa escala quantitativa considerarmos algumas
variações de grau, cada qual poderá sentir o fluidificar-se
ou o gelificar-se do tempo em relação às flutuações do
humor. À medida que o entusiasmo se futuriza numa
perspectiva de planejamento substitutivo e à medida
que, ao contrário, a tristeza torna inerte o presente isso
também é algo que pertence à experiência cotidiana
vivida de cada um de nós. A impetuosidade do tempo na
aceleração maníaca está totalmente inscrita no sentido
binswangeriano da fuga das ideias . No entanto, há um
limite além do qual já não é possível recuperar uma
coerência formal: no ápice do acesso maníaco, o tempo
se despedaça e, como nas piores condições
esquizofrênicas, o eixo relacional com a própria
experiência vivida e a dos outros torna-se absolutamente
punctiforme, até se transformar, em seu grau extremo,
em puro instante.
O entorpecimento do tempo depressivo, em suas
diversas variantes (desde a depressão reativa até a
depressão melancólica) ainda continua uma experiência
passível de conceituação, situada num plano de
compreensibilidade.
A aceleração do tempo e sua desaceleração, pela
fluidez veloz das associações ideativas ou pelos
esquemas ideomotores, em outros termos, são
elementos que podem ser encontrados na experiência de
cada um de nós, em nosso dia a dia. O jogo entre a
corrida e a parada do tempo é um jogo que se coloca
entre a antecipação do futuro e a cristalização do
passado. Mesmo linguisticamente, a experiência do
passado e a do futuro ligam-se em todo movimento vivo
de nosso dia a dia. Não é difícil imaginar o sentido de
futuro dilatando-se até esgotar o campo da consciência.
Assim como não é difícil pensar no passado que se
apressa, impedindo o presente de se desenvolver e o
futuro de acontecer. A articulação desses três êxtases
temporais , em sentido husserliano, é ostentosamente
alterada na profundidade das experiências melancólicas
e maníacas. O presente, como dimensão atual do campo
de consciência, é visivelmente adelgaçado, invadido,
esmagado.
O tempo da esquizofrenia, ao contrário, é difícil de
compreender. A experiência esquizofrênica é, no tocante
a si própria, uma experiência mutável, inapreensível.
Nesse caso não se pode propor nenhuma
temporalização. As figuras da experiência transbordam,
perdendo sua carga, seu valor temporal. Tudo se torna
artificial, glacial, distante, paroxisticamente presente. O
jogo entre passado, presente e futuro já não responde a
qualquer sentido. O tempo transformado em instante,
que dissolve a possibilidade de ligar um instante ao
seguinte, situa-se numa distância extrema de qualquer
possível experiência nossa. Se o tempo da consciência é
o presente estendido, na esquizofrenia ele é um presente
eterno, atemporal: um presente imobilizado,
irrecuperável. A barragem do tempo, sua estagnação
sem fim na inércia catatônica, sua aceleração nos
meandros do delírio alucinatório são aspectos que
definem a natureza inapreensível da temporalidade
esquizofrênica.
Qualquer história, conto, biografia está inscrita na
temporalização da própria presença. No encontro com o
outro, que é sempre o encontro com o tempo (mesmo no
cone de sombra do sofrimento), o homem se constitui, a
cada vez, como o autor do texto da própria vida. Na
experiência vivida da própria biografia, torna-se a colocar
em jogo as articulações da temporalidade, novas
alquimias, durante ou ao findar das quais poderá surgir
uma história inédita, imprevista. Não mais somente uma
reconstituição do passado, mas uma história inscrita no
devir, que já começa a ser escrita no presente.
Em toda a reflexão teórica e no “tratamento”
daseinsanalítico, a temporalidade constitui o horizonte
final de sentido da condição humana. Falar da
temporalidade não é aludir à experiência do tempo ou à
consciência do tempo, tampouco a um abstrato
acontecer ou vir a ser. É, antes, aludir a uma
temporalização da presença como tal. Mas a
temporalização não é inerente à presença como tal, ao
estar na medida do ser desse modo. A existência falha é
uma existência dominada pelo tempo cronológico, pelo
calendário, pelo tempo exterior. Somente quando a
existência torna-se presença, ou seja, quando toma o
caminho do próprio projeto de mundo, é que ela se torna
temporalização. É a partir desse evento que o tempo se
torna kairós , evento de sentido, enxerto do sentido no
pathos da história vivida.
Se em Binswanger a temporalização coincide com a
realização de si mesmo, para Alfred Storch a
temporalização é fazer chegar a si a riqueza das futuras
possibilidades e fazer própria a riqueza das realidades
passadas, tornando-se, nessas condições, presente de
fato. A visão binswangeriana, separando-se da visão
heideggeriana, aponta o caminho das possibilidades do si
mesmo na abertura do estarmos juntos (eu e você) por
meio da amizade e do amor, inscrito fora do horizonte
finito da intersubjetividade. A continuidade da presença e
da extensão temporal, a continuidade temporal ou a
extensa continuidade do si mesmo expressam
radicalmente a convergência final de temporalização e
de presença . Aqui, existir é presentificar-se , articular o
próprio “ter sido” e o próprio “poder ser” no próprio ato
do “estar aqui” transcendendo um ao outro, rumo a um
“algures”. Essa dimensão, exclusivamente humana,
prenhe de significados e vividos, é uma experiência que
oscila continuamente entre paixão e abandono,
sofrimento e dor, sonho e liberdade, espiritualidade e
sensualidade. No pulsar desse encontro revelam-se, até
se tocarem de leve, as presenças irredutíveis do eu e do
você, num jogo indescritível de referências, em que
instante e eternidade anulam-se reciprocamente.

A HORA IMPERMANENTE NO FLUXO

Retomando a intuição agostiniana que inaugura a visão


fenomenológica do tempo, Edmund Husserl 44 fala de
protensio , retensio e praesentatio . É na “presença” que
a re tenção do passado e a pro tensão em direção ao
futuro se soldam indissoluvelmente. O presente não é um
ponto, mas um tempo dilatado, que permite
continuamente esse jogo articulador. Nesse tempo
dilatado, há uma coexistência relacional, uma forma da
existência. Husserl estende a noção kantiana de tempo
deslocando-a do intelecto para toda a consciência ou,
melhor dizendo, para toda a presença. Assim, o tempo já
não é somente um a priori , mas a arquitetura estrutural
da consciência humana e de seu contínuo presentificar-
se. Husserl diz: “Eu sou uma hora permanente no fluxo”,
mas o tempo não é fluxo de consciência do pensamento
puro que transcorre. A consciência aqui é vida
intencional , que contém em si muito mais coisas do que
conseguimos, a cada vez, abranger em nossos
pensamentos. Essa vida é tempo que palpita num
presente vivo. É uma experiência originária, presença
viva, corrente intencional, experiência vivida emergente,
chronoi múltiplos, sempre novos: um arranque infinito,
um perguntar ininterrupto. Mas procurar o tempo,
interrogar seu sentido, antes de tudo envolve a si próprio
nas próprias formas da linguagem. Aqui, tempo e
linguagem coincidem. E a linguagem, na medida em que
é tempo da narração, interroga a si própria
experimentando até o fim as dificuldades do dizer, que
não consistem no dizer de outra coisa, mas no dizer de
si. Todavia, se o tempo está ligado ao dizer, se este não é
um sinal no espaço, que resta do ininterrupto perguntar a
respeito do tempo? Quem é o tempo depois da célebre
pergunta feita por Agostinho? 45 A que alude sua
indagação retórica no gesto que desloca o tempo da
exterioridade do devir natural para o tempo interior?
Qual a dimensão do gesto agostiniano?
Como sabemos, ele funda uma dupla temporalidade:
um tempo interior e um tempo exterior, um tempo
subjetivo e um tempo objetivo, um tempo do espírito e
um tempo da civilização. Sua conversão mediante a
palavra – e não entregue à palavra porque íntimo pathos
– tem duas consequências decisivas: primeiro, a de
conotar o futuro como lugar da esperança, da
expectativa, da salvação; segundo, a de assumir o
passado como o lugar da culpa, do pecado. Para Giulio
Chiodi, a

[...] asserção agostiniana segundo a qual o tempo em


si não existe – já que o passado não é mais, o futuro
não é ainda e o presente é apenas a separação entre
os dois primeiros inexistentes – fundamenta-se numa
base deliciosamente retórico-patética. Nessa mesma
base também fundamenta-se a explicação das
consequências daquela afirmação, ou seja, que o
tempo só é concebível como o instante do presente,
que constrói a imagem mental do presente-passado
e do presente-futuro, da “espera” que se torna
“memória”. O tempo, portanto, nada mais é que a
fratura que acontece em nós mesmos, com todas as
dilacerações que implica, entre as fenomenologias da
espera e da memória. O esquema diacrônico “antes-
depois” está reduzido a “agora” e sua construção é
psicorretórica. O significado lógico e a
mensurabilidade da temporalidade certamente
resultam, com isso, obnubilados 46 .

Agostinho, como vimos, faz o tempo regressar à


pátria da consciência. A reivindicação do tempo como
movimento interior da consciência, como distensio ou
extensio animi , descreve o horizonte do pensamento
ocidental, uma visão arraigada no princípio do tempo
como movimento, ou seja, como medida do movimento.
O de Agostinho é um salto lógico de dimensão
incalculável, que vai da consciência como medida do
tempo (ou seja, da consciência humana como dispositivo
cronométrico e cronológico) à identificação do tempo
com as experiências vividas da consciência humana. A
reflexão agostiniana, pela primeira vez no pensamento
ocidental, anula a dissociação entre o dispositivo
instrumental de observação subjetivo e os objetos
observados, invertendo o processo do conhecimento do
plano dos objetos ao plano mental, do mundo da mera
factualidade ao mundo da experiência vivida. Presente,
passado e futuro são, para Agostinho, atmosferas
transitórias que pertencem ao mesmo estado de
consciência: aquele, por força das coisas, sempre
presente. Agostinho nomeia, sem meios-termos, os três
tempos do tempo (presente, passado e futuro),
previamente reconduzidos a três articulações de um
único tempo, o presente, com os nomes de três
faculdades distintas.
Mas o gesto agostiniano tem consequências mais
amplas. Seu gesto – que transgride os modelos
tradicionais da temporalidade e distancia o tempo
interior do tempo exterior do mundo (o Ocidente
moderno herda-o do mundo grego por meio das tradições
judaica e cristã) – marcará uma descontinuidade radical
com o tempo do eterno retorno, da reiteração do
idêntico. Naquelas culturas, medida e percepção do
tempo não podiam ser dissociadas do vínculo com a
natureza. As estações retornavam como um ciclo que vai
desde o nascimento até a morte, no qual os homens
refletiam a própria experiência. Chronos , o tempo que os
gregos descreviam com a metáfora da serpente enrolada
sobre si própria, era mera exterioridade, estranha a
qualquer finalismo. Aquele tempo, em sua completude,
era indiferente à nostalgia. Não há nostalgia na perfeita
regularidade, não há espera ou arrependimento. O futuro
nada mais é que repetição do passado mediada pelo
presente. Não há nada a esperar. Mas com Agostinho o
horizonte muda. O tempo da natureza dará lugar a um
desenho de “salvação”, tempo de Deus e dos homens,
que levará criação, invenção e redenção a coincidirem. A
concepção agostiniana do tempo, não mais cíclica, mas
escatológica, será a cifra decisiva do Ocidente. Será sua
cifra íntima, como ciência que realiza o progresso, como
utopia para a realização de um mundo melhor, como
revolução sangrenta para a renovação do mundo.
Com Agostinho, o homem inscreve suas obras e seu
projeto num horizonte temporal de redenção. Tanto para
a cultura cristã (numa perspectiva escatológica) quanto
para a cultura laica (numa perspectiva de história
entendida como destinos magníficos e progressivos ), a
história adquire sentido e o sentido coincide com sua
direção. Desse modo, terá origem aquele processo de
secularização das concepções escatológicas do tempo,
que irão se traduzir na dupla articulação da perspectiva
futurocêntrica , eixo do pensamento filosófico moderno, e
da consciência interior do tempo, que se tornará parte
fundamental da pesquisa filosófica e da análise de
orientação fenomenológica. Enfim, um duplo movimento,
uma diferença qualitativa entre o conceito de tempo e a
experiência vivida do tempo, que abrirá uma das
questões mais cruciais nas diversas vertentes da história
da modernidade. Daqui se originarão perguntas
vertiginosas sobre experiência e perspectiva, presente e
expectativa, existência e projeto 47 , pares de opostos que
Blumenberg descreverá com clareza com os conceitos de
Lebenszeit e Weltzeit , o “tempo da vida” e o “tempo do
mundo” 48 .
Como observou lucidamente Remo Bodei, Agostinho
desloca nos homens, na civitas terrena, a plena
soberania espiritual, oferecendo à Igreja não somente a
perspectiva escatológica – da qual, desde sempre, fora
depositária –, mas também aquela “histórica”, secular.
Se o bem, a inteligência, a beleza e todos os tesouros até
então tinham sua morada natural no céu, com Agostinho
esses bens são trazidos de volta à dimensão terrena: a
cisão originária entre humanidade sacra e profana se
anula. O olhar humano se cumprirá no horizonte secular,
os eventos pertencerão ao mutável horizonte do mundo.
A história, a teoria, as práticas de emancipação dos
indivíduos de toda autoridade exterior – em breve, a
construção de uma “história civil” exclusivamente
realizada pelos homens – darão vigor e consistência ao
projeto moderno 49 .

CRONOTOPIAS
Como poderemos compreender essa profunda mudança
da experiência do tempo, de suas categorias, de sua cifra
íntima, de sua ordem exterior? De que modo poderão nos
ajudar os dispositivos conceituais das ciências
contemporâneas? A epistemologia e a pesquisa
experimental mais prudentes tentaram, ao longo de todo
o nosso século, elaborar um diagnóstico sobre a
tendência da ciência moderna apagar o tempo.
Imobilizada no interior da paradoxal aporia de não poder
eliminar o tempo, embora impelida a tentar fazer isso o
tempo todo, a ciência moderna ficou aprisionada num
determinismo paralisante. Na tentativa de isolar o tempo
mediante sistemas fechados – medindo o tempo da
experiência vivida por meio da comparação dos
intervalos para deles deduzir em seguida as leis de
mudança com equações que depuram o tempo da
experiência –, a ciência moderna dispersou a riqueza de
suas aquisições promissoras. De fato, embora as ciências
físicas nos tenham mostrado a inadequação dos modelos
e das leis causais da mecânica quântica 50 para o
conhecimento do tempo e de como ele é regido, até suas
medidas mais íntimas, por relações de probabilidade e de
incerteza 51 , nenhum novo caminho foi inaugurado. Esse
paradoxo atingiu em cheio as ciências cognitivas e as
neurociências, que, num ulterior reflexo determinista,
desenvolveram instrumentos cada vez mais sofisticados
para a mensuração quantitativa do cérebro e da
memória, da mente e do tempo, quase como costuma
fazer a paleontologia, que investiga e calcula, em direção
contrária, as estratificações remotas em fragmentos
microscópicos de pedra. A possibilidade epistemológica
de pensar os sistemas biofísicos e os sistemas humanos
em termos evolutivos – em outras palavras, de assumir o
tempo (o devir) como fonte da liberdade humana fora de
todo determinismo naturalista – é algo que certa “ciência
moderna” exclui de seu horizonte.
Uma linha atravessa o debate sobre o tempo (de
Einstein a Prigogine, de Gödel a Frazer, de Husserl a
Minkowski, de Bergson a Heidegger, para mencionar
alguns dos estudiosos mais importantes da virada do
século XIX para o XX ), e é o questionamento da ideia do
fluxo objetivo do tempo e da impossibilidade de
representá-lo como uniformidade em si. No final do
século XIX , Mach engaja-se numa dura luta antimetafísica
contra o tempo absoluto 52 . Com as reflexões de Poincaré
53
, Bergson 54 , Einstein 55 , a reflexão sobre o tempo –
embora confinada de um lado no rígido esquema de um
tempo das ciências físicas e da natureza e, de outro, num
tempo psicológico – despede-se da categoria de tempo
absoluto e transforma-se em fluência uniforme. Se para
Bergson o tempo é o cerne da vida e da duração, como
fonte de liberdade e de experiência, Einstein desafiou a
irreversibilidade do tempo objetivo.
Com o conceito de cronótopo – figura
tetradimensional de continuum espaçotemporal (às
tradicionais coordenadas espaciais de altura,
comprimento e profundidade acrescenta-se o tempo
como quarta dimensão) –, Giulio Chiodi chancela o ponto
em que o tempo cruza os espaços e os eventos
concretos. Lugares físicos como prédios, praças, cidades,
metrópoles são os topoi onde tempo e espaço se
dissolvem dando lugar a uma formidável fusão.

Em seu corpo não se podem discernir as superfícies,


o volume, as formas, as estruturas (espaço) do
tempo estratificado e aí transfundido, legível com
referência a tudo o que, na ideação e atuação,
contribuiu gradualmente para construí-los. [...] No
que diz respeito a eles, não é possível, a não ser
mediante a abstração, separar o espaço do tempo,
porque o espaço é plasmado por , no e com o tempo,
e ambos são agora aquela cidade, aquele edifício,
aquele lugar, aquela combinação de elementos e de
formas, e aquela distribuição ambiental que temos
diante de nós ou na qual vivemos. Estamos em
contato com uma cronotopia visível e concreta, que
pode ser concebida, concomitante e
contextualmente, como matéria temporalizada ou
como tempo materializado. O próprio território em
que vivemos é fruto plasmado por formações
cronotópicas. Com mais precisão, a regra oculta,
para lhes darmos esse nome, na cronotopia histórica
é a seguinte: o espaço é a forma visível do tempo, e
o tempo, a forma visível do espaço ; ou ainda, sem
mudar a essência: o espaço dá forma ao tempo, e o
tempo, ao espaço . O fenômeno certamente também
se verifica na natureza; entretanto, ao nosso discurso
diz respeito, mais de perto, o que é especificamente
produzido pelo homem. A obra humana, com sua
intervenção no mundo, temporaliza o espaço e o
corpóreo e espacializa, ao incorporá-lo, o tempo.
Mais propriamente, deveríamos falar, no primeiro
caso, de topocronia e, no segundo, de cronotopia,
mas não me parece o caso de passar agora para tais
distinções; basta mencioná-las, parece-me. O que
conta é que, se toda construção humana, de todo
tipo, pode ser considerada um pedaço de história, é
porque representa um fenômeno cronotópico 56 .

Observando bem, uma cronotopia, no fundo, é um


paradoxo. Ela sempre tem lugar ali onde não aparece,
como um não lugar da mente, uma geografia psíquica
instável que toma o lugar daquilo que parece ser um
irrefutável dado objetivo. Ao mundo descontínuo,
flutuante e instável da epistemologia contemporânea 57
correspondem as dessimetrias e as heterotopias
flutuantes e instáveis da identidade, que desconstroem e
reconstroem desejos, nostalgias, memórias dentro de
palimpsestos provisórios. Tudo isso não tem mais nada
que ver com a medida do tempo do mundo. Tempo da
vida e tempo do mundo são irredutíveis. A memória é
indiferente à lembrança – no máximo, a padece, não
podendo mais decidi-la conforme as próprias
disponibilidades ou indisponibilidades. É como se apenas
ao identificar-me na lembrança do outro, agarrando-me à
indiferença do tempo dele em relação ao meu, como se
apenas nessas condições fosse possível abrir uma brecha
na indiferença do tempo do mundo em relação ao tempo
da vida 58 . Nesse corpo a corpo com a estranheza do
outro e do mundo, revelo-me. Não tem a menor
importância que o mundo conserve ou não a lembrança
do outro além do tempo. É tarefa da memória remediar
essa indiferença, esse esquecimento. Aqui, nessa
fronteira, com a memória se encolhendo às minhas
costas, tem lugar a extenuante luta contra o tempo.

O TEXTO DO TEMPO

Mas qual é o ponto em que a memória desaparece no


esquecimento? No fundo, qual é a necessidade de não
sermos esquecidos? E por que preciso que alguém se
lembre de mim? Por que tenho a pretensão de ser
recordado além do tempo que me foi designado? Porque
os inúmeros nomes, rostos, imagens encontrados estão
dissolvidos no esquecimento, já esquecidos para sempre.
Entre os fantasmas do passado e as sombras do futuro,
as lembranças amiúde são mais enganosas que os
nossos sonhos. Mostrando a insensatez de toda visão
pelo conteúdo e patrimônio da memória, Andrea Emo
escreveu:

Remontando com a memória o curso do tempo,


vemos que em nós permanecem a lembrança e a
visão de anos privilegiados em detrimento de outros
anos tristes e sombrios; a ave mágica da memória os
sobrevoa, sem olhar ou recordar. Nos anos santos da
memória, tudo aparece numa maravilhosa, simples e
fiel transfiguração – mas tudo o que concerne a nós,
efêmeros, é infinito, insondável, além da expressão 59
.

Resistir à contingência do tempo, tornar contínuo o


descontínuo: eis a incapacidade da memória. Mas, sem a
obsessão dos limites, o tempo desaparece, como numa
espera inquieta, longa, de horas e anos, com a saudade
dos lugares que viram estremecer nossa alma. Mas a
espera não é do futuro, como seria previsível: o futuro,
com efeito, exige separação. A espera é a inquietude
como condição paradoxal e indefinível entre a
designação do devir e a imobilidade do presente, não um
presente inerte, mas algo que desliza, que flui ao
contrário, rumo ao passado. Elvio Facchinelli descreveu
essa condição para a situação analítica em que a
temporalidade resiste e se opõe a toda temporalização
sucessiva.

É notória a asserção freudiana: o inconsciente


desconhece o tempo. [...] Para Freud essa é,
portanto, seja a malograda inscrição do tempo no
inconsciente, em sentido geral, seja a indiferença ao
tempo por parte dos desejos inconscientes ou de
seus derivados de compromisso, os sintomas 60 .

Com o encontro, a experiência do tempo regressa à


pátria do silêncio e das palavras, do pensamento e da
linguagem, exatamente no sentido de Paul Ricoeur 61 . O
encontro torna-se reciprocidade de narração e
temporalidade, de narração e vida. Da exterioridade
ordenada das cronologias, a vida nada sabe. O tempo é
tempo no “sentido” do homem, porque sua narração
conta de uma experiência temporal. Mas o tempo nunca
poderá tornar-se história, cronologia, sucessão. A história
sempre é uma ficção, e a vida sempre está fora da
história. Minha presença nunca será uma ficção ideal, e
muito menos ideológica. Sempre que tento reatar os fios
de minha vida, encontro-os fora de minha história, como
um conto que se estende além dela.

A história é uma ficção, no sentido de que, se de


algum modo ela existe, a escrevemos ou
simplesmente dizemos que ela existe, a história
nunca constitui nosso problema , e, na medida em
que não é nosso problema, a história não é nossa
realidade, porque nossa realidade é a presença de
nosso próprio problema, que não é um problema
declinado no tempo e sim a instantaneidade,
específica e absoluta, de nosso olhar, que nós não
vemos, voltado à realidade, imensa e ilimitada, em
sua circunvolução global. Eu toco o ponto real de
minha existência real despindo-a de sua veste
histórica; eu não vejo uma coisa particular, nem
sequer um efeito ou uma consequência do que
aconteceu antes; eu sou minha presença fora da
história, e esse é o ponto de concentração de toda a
minha realidade que posso perceber. Dar um texto da
própria vida ou da própria realidade não é dar um
texto da história e sim da própria presença, que é,
justamente, aquele texto . O texto opõe-se à
sucessão no tempo, o tempo é o antitempo, o texto é
o desdobramento da presença como atestado de
minha realidade, indiferente ao antes, ao agora e ao
depois; minha presença é minha realidade que
transborda da história 62 .

A inseparabilidade de narração e temporalidade


torna evidentes os segmentos discordantes,
desarmônicos, perturbadores de nossa existência.
Quando olho para trás, para a minha existência, para a
vida, para a minha vida, ela já não me pertence, já não é
minha vida. Tornou-se outra coisa. Uma reconstituição
inatural de fragmentos diferentes entre si: a história,
justamente. Mas eu nunca poderei ser história. Poderei
ser somente

[...] instantaneidade, e é somente nessa


instantaneidade que me reconheço. [...] Eu sou, e
nessa incidência, na qual eu encontro eu próprio
empenhado como minha presença que sou, a história
é irrelevante, no sentido de que para mim eu sou o
problema crucial que constituo para mim mesmo,
cada qual, portanto, consigo próprio. [...] A história
foi – é certo –, eu fui – isso também é certo –, mas o
ponto vertiginoso de minha realidade é que eu sou
agora e não estou, nem me encontro dentro da
história , mas estou diante de toda a história e,
portanto, fora dela 63 .

Isso vale para todos, para mim, para toda narração:


mítica, épica, lírica, trágica, cômica, dramática. Para
todos, o tempo é uma função essencial. Mas aqui o
tempo não unifica narração e vida: separa-as. A vida
torna a ser vida, e a história, narração. Em mim, que
ouço e solicito a narração do homem que está diante de
mim, sua história inteira torna a desenhar-se. Mas
também nele, que narra a mim, tornam a transcrever-se
as experiências vividas que emergem à consciência. O
tempo é uma linguagem da separação, o lado invisível de
todo encontro, que resiste à violência da luz tentando
desvelar seus conteúdos. O território em que esse
entrecho se coloca é definido por exclusão, designado
pelo encontro que des-temporaliza e põe entre
parênteses o preconceito gramatical e a interdição
computacional do tempo. É contra tal pretensão
geometrizante do tempo que a temporalização dos
fenômenos psíquicos conspira. É verdade: no encontro
analítico a narração tem de passar da inconsciência à
consciência. Mas essa passagem exige uma decifração
contínua, pois aqui não se veicula a realidade, mas sua
analogia, sua representação. Por isso, é importante que
repensemos os nexos e as relações entre o profundo e a
expressão. É necessário também aventurar-se até o
limite extremo da identidade, levando o discurso para
fora da floresta petrificada do cogito . O tempo do cogito
, que nega a temporalização da existência, é o tempo do
eu que nada conhece além de si próprio.
Com a pretensão de certificar a própria evidência
(totalmente constituída na negação da ambivalência dos
sentidos, da memória, das paixões), o cogito também
nega a existência. De nada adianta a garantia dos gestos
que reduzem o outro a sujeito lógico, epistêmico; enfim,
a sujeito da ciência. Mediante essa estratégia, a
liberdade do outro e das pessoas psíquicas que o
habitam é destinada a outro discurso: ao sonho ou à
loucura. O tempo não pode ser conhecido objetivamente.
O tempo abstrato e homogêneo da linguagem científica é
nada. E, à medida que é nada, não pode dar voz ao
sonho e à loucura. O pretenso andamento sincrônico das
dinâmicas psíquicas é o nada. O eu unitário é
desagregado em inúmeras unidades temporais, em
intervalos temporais, em linguagens decompostas e
recompostas sob o limiar da consciência, sem
possibilidade de integrar o tempo dos sonhos em suas
inúmeras figuras. A multidão de eus, sem nenhuma
simetria e sincronia, permeia uns aos outros numa região
de fluidez diferenciada. Não é necessário o caráter
sistemático do eu múltiplo. A única possibilidade de
constituir-se e identificar-se é um ato de vontade no
presente, uma decisão para o devir. Nessas condições,
perdendo-se como unidade, mas se reproduzindo numa
resolução no presente, o eu pode enfrentar seus limites.
Nessa presentificação, que é identificação e gesto de
liberdade, expressa-se um ato radical de separação que
traz à superfície não o si mesmo por inteiro, mas uma só
parte do próprio ser, um fragmento que se separa
totalmente, que se insere na continuidade da vida
individual.
Da aventura, George Simmel escreve:

É verdade que a forma da aventura, em sua acepção


mais ampla, consiste em sair do conjunto encadeado
da vida. Entretanto, quando falamos de uma
totalidade da vida, queremos dizer que nesta circula
um processo unitário, a despeito das enormes e
inconciliáveis diferenças entre os conteúdos tomados
isoladamente. O que denominamos aventura
contrapõe-se ao entrelaçamento dos círculos da vida,
à sensação de que, apesar das correntezas
contrárias, das curvas, dos funis, bem lá no fundo há
o mesmo fio escorrendo, contínuo. A aventura é uma
parte de nossa experiência que tem ligação estreita
com as outras partes situadas antes e depois dela,
mas, em seu sentido mais profundo, ela transcorre
fora da continuidade da vida. Entretanto, é diferente
de qualquer acontecimento simplesmente casual ou
estranho, daquilo que renteia a superfície de nossa
vida. Colocando-se fora desse conjunto encadeado, a
aventura cabe nele, por assim dizer, justamente com
esse movimento (a coisa se tornará clara aos
poucos): a aventura é um corpo estranho em nossa
existência, mas de algum modo está unida a seu
centro. Ainda que por um caminho insólito e indireto,
estar fora é um modo de estar dentro 64 .

Ainda, a aventura
[...] é desprovida daquela compenetração recíproca
entre as partes fronteiriças que faz da vida um todo
unitário . A aventura é como uma ilha na vida, que
determina seu início e seu fim com base nas próprias
energias formativas, e não como a fatia de um
continente, em relação às de seu aquém e de seu
além. Esse isolamento marcado com que a aventura
se separa do curso total de um destino não é de
natureza mecânica, mas sim orgânica [...] antes sua
forma temporal, sua radical finitude, é a configuração
precisa de seu sentido interior 65 .

Enfim,

[...] a aventura também é o exemplo mais radical do


homem não histórico, daquela natureza que vive no
presente. Um homem tal, de um lado, não leva em
conta o passado [...]; de outro, não se preocupa
minimamente com o futuro. Prova característica
desse fato nos é oferecida por Casanova, que, pelo
que podemos extrair de suas memórias, mais de uma
vez, no decurso de sua carreira heroico-aventurosa,
alimentou o sério propósito de casar-se com a mulher
que amava naquele momento. À luz da natureza e da
conduta de Casanova, não se poderia dar algo mais
contraditório, mais interna e externamente
impossível. Casanova não era apenas um grande
conhecedor de homens, mas, com toda a evidência,
também um raro conhecedor de si próprio; embora
ele repetisse a si próprio que não aguentaria um
casamento nem por duas semanas e que as
dolorosíssimas consequências de tal decisão seriam
totalmente irremediáveis, sua perspectiva futura era,
por assim dizer, devorada na ebriedade do instante
(e gostaria de frisar mais o instante do que a
ebriedade). Como era dominado pelo sentimento do
presente, Casanova queria estreitar uma relação
para o futuro que, justamente por essa sua natureza
orientada para o presente, tornava impossível 66 .

TEMPO DA MORTE
Quando a aventura da vida termina e tem início a viagem
de regresso ao lugar de onde todos viemos, nas
proximidades da última parada, na soleira extrema, os
sentimentos de angústia, dor e coragem podem coexistir.
Nem por isso, solidão e angústia refletem o horror da
morte. Pois mesmo quando o outro já se tornou ausência
de uma presença , a morte é uma experiência que em si
não se pode experimentar. Seja resignação crepuscular ,
seja desilusão quanto à inconsistência de tudo, morrer
nos campos de extermínio 67 , na miséria ou no horror do
declínio, morrer sempre é debruçar-se na sutil fronteira
da transcendência 68 . Mesmo na versão laica do
blochiano “Dies septimus nos ipsi erimus ” 69 , a morte é a
condição que torna a vida autêntica. Pensar, interrogar o
enigma da morte mediante a oposição ser nada torna a
morte, para nós, ainda mais inacessível, assim como
permanecem sendo inacessíveis as emoções, o sentido e
o não sentido que a selam.
Mas como é pensável a morte, que sempre é morte
de um homem isoladamente? Como podemos considerar-
nos autorizados a falar dela, a não ser nos termos da
única e autêntica aventura fora de si, rumo ao impossível
outro, que é, justamente, sem esperança de volta ? Entre
minha morte, a morte que diz respeito a meu ser e a
morte de outros não há nenhuma relação essencial,
direta. A morte é filosoficamente incompreensível: nessa
insondabilidade está todo o seu escândalo.
Tudo o que podemos dizer da morte e do morrer, e
de sua inevitável chegada, nos parece, de imediato,
de segunda mão. [...] Esse conhecimento provém da
experiência e da observação de outros homens, de
seu comportamento de morrentes e mortais. [...]
Minha relação com a morte não se limita a esse
saber de segunda mão. [...] Minha relação com a
morte também é feita da repercussão emocional e
intelectual do conhecimento da morte alheia. Mas
essa relação é desproporcional com relação a toda
experiência de segunda mão 70 .

Só compreende a vida quem vive o pensamento da


morte, escreveu Kafka. Somente a finitude dos
momentos da vida devolve-nos o lugar de uma decisão
verdadeira, de um verdadeiro aut-aut 71 . Se a
consciência da finitude da vida, dessa intransponível
soleira, é o encontro extremo e revelador, o recalque da
morte, se é tabu, é recusa do limite, gesto desmedido.
Com a modernidade, a morte é colocada às margens
da cidade. Algo parecido ocorreu com a loucura. Nas
épocas históricas anteriores, quando a identificação de
um espaço para a sepultura estabelecia um vínculo
duradouro (se não eterno) com uma sede de divindade, a
ligação com as “divindades da família” expressava-se no
domínio definitivo da casa e da propriedade. Na idade
histórica, a sepultura era classificada como uma res
religiosa que exigia o enterro do defunto numa porção de
terra da qual fosse proprietário. O que se realizava era
uma passagem de domínio dos homens aos deuses do
subsolo. Essa comunicação entre homens e divindades,
concomitantemente jurídica e cultural, tinha a finalidade
imediata de entregar o cadáver à quietude sepulcral e a
mediata de plantar uma raiz “inextirpável” de uma sede.
Mas como toda a família conservava fidelidade de culto
exclusiva a seus deuses, não era possível que aquele
espaço do lar, do sepulcro, fosse contaminado pela
contiguidade dos espaços alheios. A cerca sagrada não
bastava. Era preciso evitar qualquer contato com outras
terras ou com edificações adjacentes. É por esse motivo
que ao redor do campo era preciso haver uma terra de
ninguém, o limes , e ao redor da casa, mais um círculo a
isolá-la. O que se determinava com isso era a absolutez
espacial da propriedade. Não se construía nenhuma
planta urbana, a não ser em idade histórica mais
adiantada, que previsse casas de paredes comuns ou
adjacentes. Os limites do terreno eram assinalados com
marcos que não podiam ser deslocados ou tocados. O
marco representava Término, o deus guardião do limite.
Essa absolutez é a projeção de uma porção de terra da
inconfundível individualidade humana.
Com a modernidade, a centralidade jurídica, religiosa
e cultural da morte, exaltada pelas igrejas, pelos
monumentos funerários, pelos recintos sepulcrais – os
mapas que desde sempre distinguiram a cidade dos
vivos da cidade dos mortos –, dá lugar a sua ocultação 72 .
Essa história chega até o nosso tempo. Um tempo em
que é possível assistir à celebração da morte em gélidos
cemitérios-arranha-céus e em anônimos hospitais-
câmaras mortuárias.

O espaço é a morte, é a negação de nós – o espaço


como arte, como beleza, é a negação de nós, nosso
sermos negados pela exterioridade, pela abstração
do nada, que se torna nosso ato, o próprio ato de nos
negarmos, e sua diversidade absoluta, que também é
nossa identidade. As formas arquitetônicas dos
antigos edifícios, das antigas praças erguem linhas
majestosas, obeliscos metafísicos, simetrias e
relações plenas de significado; o significado que é
justamente nossa presença criada por nossa
ausência; nossa ausência é a nossa negação, nosso
ato negativo, sua diversidade, sua criatividade,
justificada por sua negação – essa beleza é, como
qualquer outra beleza e como a diversidade em
geral, uma transfiguração; o mistério interior de uma
metamorfose – uma metamorfose luminosa e uma
interioridade justificada por nossa absoluta abolição,
reapresentação e representação de nós mesmos, isto
é, nas formas da atualidade da negação. Nós somos
substituídos, nossa presença é substituída por sua
negação, aliás, pelo ato de sua negação, que é
diversidade e transcendência 73 .

A experiência da morte não pode ser reduzida a uma


simples dimensão da existência. É o sinal mais profundo
de uma civilização, que nem o funcionalismo urbanístico,
nem a compreensão científica, nem a reflexão filosófica
poderão esgotar intitulando-o banalmente de cinzenta e
ambígua zona de fronteira 74 . A morte é uma experiência
e uma dimensão eminentemente antropológica, não
apenas evento puro, como o nascimento, que só diz
respeito à minha facticidade. Talvez, para nenhum outro
“existencial”, salvo para o nascimento (pensemos em
Otto Rank), a linguagem tem de recorrer, assim, à
imaginação rumo a um dies natalis que permaneça
aberto e não dogmático. É nesse sentido que a morte –
devido a práticas e hábitos funerários que visam
proteger o vivo do morto e a fazer morrer o morto em
nós – é tão intimamente ligada ao mito 75 . Cultivar o
esquecimento da morte, esconjurar a possibilidade desse
encontro, trai a radical angústia do homem diante do
“mais inexplorado dos continentes” e faz emergir a
recusa da aceitação da morte como fim absoluto 76 . Nem
o exercício de racionalização e neutralização
mecanicista, nem o questionamento de seu conteúdo
radicalmente antropológico e transcendente poderão
atenuar seu poder.
Mas em que sentido a vida tem relação com a morte?
Por que esse evento me diz respeito sem nunca ser
realmente meu? Nas filosofias orientais derivadas do
hinduísmo e do budismo, a morte não tem outros
significados a não ser o de fim da vida. No hinduísmo, ela
marca a passagem para outra vida, superior ou inferior
conforme o ciclo das reencarnações e a lei do Darma. No
budismo, com o princípio da purificação dos bens e dos
males da terra – até a anulação final, que tudo absorve e
aniquila na apocatástase do mundo –, a morte é o mais
ilusório dos fenômenos, indica o oposto do que parece 77 .
Dezenas e dezenas de gerações, milhões de homens
sofreram sua influência, cultural e antropologicamente.
Aqui, talvez mais do que em qualquer outro lugar, torna-
se necessária uma investigação da sociologia da cultura.
A própria psicopatologia recebeu dela uma marca
profunda, que em parte transformou sua própria
estrutura. Pensemos, por exemplo, na modificação das
temáticas depressivas e suicidas. Abordado a partir
dessa vertente, o próprio suicídio liberta-se de boa parte
de seus traços patológicos e assume significados
existenciais diferentes 78 . Quanto mais estendermos os
limites do pensamento e da ação psiquiátrica (sobretudo
os transculturais), tanto mais se multiplicarão as
referências à morte em termos de estudos e reflexão
crítica, tornando-se evidente o tamanho da insensatez da
postura focalizada na doença.
Nos mitos primitivos – assim como nos sonhos do
homem contemporâneo –, a presença da morte, seu
questionar-se radicalmente, desempenha um papel
essencial. Em Psyche und Tod 79 , o famoso
psicoterapeuta junguiano Edgar Herzog mostra as
múltiplas modificações do quadro da morte por meio dos
usos, das sagas e das fábulas de povos europeus e não
europeus. As grandes religiões, as filosofias, as “visões
de mundo” vão propondo os modos mais diferentes de
colher a realidade da morte, de colocar a própria vida em
relação com a morte. Aqui tocamos de perto a
importância do símbolo que, ocultando e revelando a um
só tempo, restitui à morte sua dimensão psicológica. Para
Herzog, ali onde a morte é assumida como pulsão, o
símbolo é que a revela. Temos, portanto, necessidade da
morte. Mas, muito além de Heidegger, também de
percebê-la como a nossa mais profunda possibilidade.
Os conteúdos de inúmeros sonhos e “visões” de
muitos pacientes 80 (a morte como transformação e
renascimento, mas também eclipse radical e definitivo)
correspondem às representações da morte presentes nos
mitos dos povos ou nas experiências estáticas dos
grandes místicos de toda religião. Não é novidade a
afirmação de que muitos distúrbios neuróticos revelam-
se como fuga da Selbstwerdung , à qual também
pertence, justamente, o dizer sim à morte. Os estudos
sobre as reações psicológicas diante da morte alheia e a
percepção da própria morte podem ser ulteriormente
iluminados pelos estudos voltados (mas é um campo
totalmente diferente) à pesquisa da presença interior de
um núcleo de espiritualidade portadora de valores
distinguíveis dos processos psíquicos individuais (do
pessoal ao transpessoal e ao metapessoal, de Mounier a
Von Gebsattel, a Von Boros). O discurso sobre a morte é
um discurso de múltiplas perspectivas. O
psicopatologista deve ter experiência disso, pois ele
encontra e dialoga com cada uma delas. Aqui ninguém
pode presumir nada: a morte, como dizia Romano
Guardini, não é problema, é mistério. A morte e o homem
que vai ao seu encontro, paradoxalmente, nunca se
encontram, a não ser no melancólico e na experiência do
pânico. Ali, com efeito, há um encontro. Mas, como
demonstrou magistralmente Bruno Callieri, é um
encontro com o nada.
A única possibilidade de conhecer a morte, dizíamos,
está na morte do outro. É o que haviam observado
Merleau-Ponty e Lévinas, para os quais o pensamento da
morte não tem serventia alguma até sabermos da morte
de uma pessoa amada. É esse conhecimento caloroso
que nos faz tomar o caminho decisivo. Mas, mesmo
quando se “conhece”, por assim dizer, “empatizamos” a
morte alheia, mesmo então não sabemos o que é morrer.
Seja o que for que possamos dizer sobre a morte, nunca
poderemos dizer nada desse nítido, definitivo e
irrevogável rompimento da comunicação. Esse corpo que
agora está mudo, frio, inerte, há pouco era vida, palavra,
olhar. Certamente, o corpo ainda está lá: os traços são os
mesmos do homem que conhecemos. Entretanto, é como
se seu rosto se tivesse serenado, relaxado. Aquele corpo
até há pouco animado, embora ainda esteja lá, já não
está presente. Agora está imóvel, indiferente. É como se
o abismo que nos divide estivesse ali a interpelar-nos.
Essa é uma experiência da morte, decerto. Mas da morte
do outro, não do próprio morrer 81 . Da morte, de minha
morte, não se dá experiência. O oposto de minha
esperança, de minha expectativa, de minha coragem.
Mas justamente aí está o paradoxo. Enquanto a morte
permanece inimaginável sem os outros, morremos, no
entanto, sozinhos. Esse “cara a cara” radical é também
uma solidão radical.
Mesmo na alienação mais desagregada, a morte está
presente em toda a sua densidade. E, no entanto, essa
terra inexplorada, esse continente desconhecido não o é
de fato, porque ninguém dele retornou. É incógnito,
porque a morte é indiferente ao mundo da luz, porque o
seu é o mais intransponível dos territórios, o mais
inexplorável dos mistérios, um enigma indiferente a
qualquer possibilidade de solução, de definição. Contudo,
sendo esses os termos, como poderá a morte ser ainda a
minha morte? Como poderei reconciliar-me com ela? E
como poderei ser eu e, ao mesmo tempo, morrer? Como
poderei ser eu ainda acolhendo a morte e guardando a
mim mesmo nessa absoluta e inconcebível liberdade? O
que mantém juntos esses dois momentos (tornando-os
recíprocos) em seu tênue ponto de equilíbrio, entre o
presente e um misterioso devir?

A vida e “a humaníssima morte” têm de correr ao


longo de uma linha inexorável. Os homens
procuraram escapar da atração da morte, do fim,
construindo civilizações que os mantivessem
ocupados na fúria dos negócios, andando depressa,
como cada um de nós pode ver naqueles lugares
mortais que são as grandes cidades. Somente os
etruscos parecem ter sido capazes de “enfrentar a
morte e torná-la a principal ocupação da vida”. Sua
“ideia bastante sadia” está em não ter situado o
pensamento, o desejo, a utopia no inacessível, mas
“na morte”, na “humaníssima morte” que é acessível
a “todos” 82 .

A civilização contemporânea, portanto, recalca e


oculta a morte. Como, aliás, recalca e oculta todo
discurso que a ela alude. Embora muitas neuroses
individuais carreguem o selo inconfundível da angústia
da morte, é no “mal-estar na civilização” que seu poder
se expressa, como demonstrou Freud. O pensamento
psicanalítico dissipou muitas energias ao investigar a
angústia da morte e as pulsões agressivas, ligadas a
Tânatos. A tese freudiana, “a meta de tudo o que vive é a
morte”, permeia seus três grandes estudos: O devir de
uma ilusão , O mal-estar na civilização e Moisés e o
monoteísmo 83 . Todavia, especialmente após os estudos
de Racamier 84 sobre o luto, podemos dizer que as
angústias concretas têm uma parte apenas modesta na
atitude em relação à morte, apesar de ser ela tão
profundamente arraigada em nós a ponto de nunca
deixar-se excluir. Claro, as ideologias como formas
miméticas do caráter sagrado agiram como dicionários
de autorreconhecimento, aliviando em muitos as
angústias de morte; e hoje, com as derivações da
dessacralização, o domínio da racionalidade científica,
com a ausência de símbolos ou imagens aos quais
recorrer, a angústia da morte cresce simetricamente à
individualização.
A morte é a forma pela qual identificamos e
compreendemos o tempo. Por isso, como sucede às
civilizações decadentes, refugiamo-nos em símbolos que,
como máscaras da realidade, dissimulam o terror pela
impossibilidade da imortalidade. A ideia da morte para
toda a nossa civilização é o mais insustentável dos
pesos. Não enxergar o lado ensombrecido de nosso
universalismo, apagar sistematicamente o limite,
recalcar a insuprimível ulterioridade do sentido da morte
significa sujeitar-se a uma ilusão: a mais extrema, a do
esquecimento do nada. Não há campo da cultura
estranho ao encontro, manifesto ou oculto, com Tânatos:
quer seja sombra, quer seja metafenômeno. A questão
da morte não é contornável: nem pelo psicólogo, nem
pela antropoanálise, nem pelo pastor de almas, nem pela
teologia. Não é contornável porque constitui um convite
perene à indagação. Peremptório é o chamado secular
para a grande incógnita, inscrita na própria carne do
homem, raiz constitutiva da ambiguidade de seu estar aí
.
1 Wall Street , dir. Oliver Stone, eua: 1988, 125 min.

2 Giacomo Marramao, Minima temporalia:. tempo spazio esistenza , Roma-


Bari: Laterza, 1990. Ver também, do mesmo autor: Potere e
secolarizzazione. Le categorie del tempo , Roma: Editori Riuniti, 1983;
Dopo il Leviatano: individuo e comunità nella filosofia politica , Torino:
1995; Cielo e terra: genealogia della secolarizzazione , Roma-Bari:
Laterza, 1994; Kairós: apologia del tempo debito , Roma-Bari: Laterza,
1992.

3 Massimo Cacciari, Zeit ohne Kronos , Klagenfurt: Verlag, 1986, p. 23.

4 Jean-Pierre Vernant, Mito e pensiero presso i Greci , Torino: Boringhieri,


1978. Ver também, do mesmo autor: Mito e società nell’antica Grécia ,
Torino: Boringhieri, 1981; Le origini dei pensiero greco , Roma: Editori
Riuniti, 1993; Tra mito e politica , Milano: Cortina 1998.

5 Helga Nowotny, Tempo privato , Bologna: II Mulino, 1993, p. 93.

6 Gianluca Bonaiuti, Tempo a senso unico. Modernità: da un luogo comune in


memoria del futuro , Milano: Millepiani, 1999, p. 54.

7 Michel Foucault, Eterotopia , Milano: Millepiani, 1994, p. 11.

8 Emmanuel Lévinas, ll tempo e l’altro , Genova: Il Melangolo, 1987, p. 27.


Sobre esse tema, ver também, do mesmo autor: Dio, la morte e il tempo ,
Milano: Jaca Book, 1996.

9 André Neher, L’esilio della parola , Genova: Marietti, 1997, p. 179.

10 Mauro Maldonato; Gilberto Di Petta, Lineamenti di psicopatologia


fenomenologica , Napoli: Guida, 1999, p. 111.

11 Idem , ibidem , pp. 114-5.

12 Emmanuel Lévinas, Scoprire l’esistenza con Husserl e Heidegger , Milano:


Cortina, 1988, p. 168.

13 Idem , ibidem , pp. 175-6.

14 H. C. Puech; E. Neumann; A. Portmann, Le metamorfosi del tempo ,


Como: red, 1999, p. 47.
15 Hans Blumenberg, Tempo della vita e tempo del mondo , Bologna: Il
Mulino, 1996. Com um intenso confronto com a filosofia de Husserl,
Blumenberg permeia nessa obra imprescindível os momentos
fundamentais da história filosófica, científica e religiosa para chegar ao
problema da divergência entre o tempo da vida e o tempo do mundo; em
outros termos, o tempo da consciência individual e o de eventos
históricos e naturais que podem ser autônomos ou indiferentes com
relação à extensão temporal humana. Ver também, de Blumenberg,
Naufragio con spettatore: paradigma di una metafora dell’esistenza ,
Bologna: Il Mulino, 1985; e ainda Paradigmi per una metaforologia ,
Bologna: Il Mulino, 1969.

16 Ferruccio Masini, “Utopia e storia”, in: Ubaldop Fadini (org.), Le stanze dei
labirinto: saggi teorici e altri scritti , introdução de Sergio Giovane,
Firenze: Ponte alle Grazie, 1990, pp. 184-5.

17 Georg Simmel, Il conflitto della cultura moderna , Roma: Borla, 1976, p.


108. Ver, do mesmo autor: “La metropoli e la vita mentale”, in: Charles
Wrigt Mills, Immagini dell’uomo: la tradizione classica della sociologia ,
Milano: Feltrinelli, 1963.

18 Hugo von Hofmannsthal, Opere , Firenze: Passigli, 1960.

19 Reinhart Kosellek, Futuro passato: per una semantica dei tempi storici ,
Genova: Marietti, 1986. Reinhart Kosellek é, com Otto Brunner e Werner
Conze, o prestigioso diretor e organizador do Geschichtliche
Grundbegriffe: historisches Lexicon zur politisch-sozialen , uma obra
coletiva em sete volumes editada na Alemanha desde os anos 1970. Ver,
do mesmo autor: Accelerazione e secolarizzazione , Napoli: Guida, 1989.

20 Niklas Luhmann, Come è possibile l’ordine sociale , Roma-Bari: Laterza,


1985. Ver também, do mesmo autor: Struttura delle società e semantica ,
Milano: Feltrinelli, 1988. E, também, La differenziazione dei diritto:
contributi alla sociologia e alla teoria dei diritto , Bologna: Il Mulino, 1990.

21 Giacomo Marramao, Minima temporalia: tempo spazio esperienza , Roma-


Bari: Laterza, 1990, p. 109. Ver também Kairós: apologia del tempo debito
, Roma-Bari: Laterza, 1992.
22 Gianluca Bonaiuti, Tempo a senso unico: modernità: da un luogo comune
in memoria del futuro , Milano: Millepiani, 1999, p. 19.

23 Eugène Minkowski, Il tempo vissuto: fenomenologia e psocopatologia ,


Torino: Einaudi, 1971, p. 89.

24 Diante do desastre do Titanic ergueram-se as vozes de famosos


intelectuais e escritores europeus. George Bernard Shaw e Joseph Conrad
escreveram artigos muito duros contra o insensato desejo dessa corrida
contra o tempo para o estabelecimento de novos recordes. No Daily News
and Leader de Londres, o primeiro escreveu um requisitório contra o
capitão do Titanic por ter ousado prosseguir entre os bancos de gelo. O
segundo, na English Review , expunha suas profundas preocupações pelo
incremento contínuo da velocidade na navegação. Stephen Kern, Il tempo
e lo spazio: la percezione del mondo tra Otto e Novecento , Bologna: Il
Mulino, 1988, p. 141.

25 Franco Volpi, Il nichilismo , Roma-Bari: Laterza, 1997, p. 97.

26 Ferruccio Masini, Il travaglio del disumano: per una fenomenologia del


nichilismo , Napoli: Bibliopolis, 1982, p. 193.

27 Ver a esse respeito Arnold Gehlen, Antropologia filosofica e teoria


dell’azione , Napoli: Guida 1990. Ver também: L’uomo, La sua natura e
ilsuo posto nel mondo , trad. Carlo Mainoldi, introdução de K. S. Rehberg,
Milano: Feltrinelli 1983.

28 Para uma análise cuidadosa do pensamento antropológico-filosófico, ver


a coletânea de ensaios de Umberto Fadini, Principio metamorfosi: verso
un’antropologia dell’arfificiale , Milano: Mimesis, 1999.

29 Sobre a obra desse autor, ver o ensaio de Pietro De Marco, Pannenberg:


persona e società , Firenze: Ponte alle Grazie, 1997.

30 Da elaboração teórica e das teses de Von Uexküll, ver o importante


volume de Merleau-Ponty, La natura: lezioni al Collège de France , Milano:
Cortina, 1996.

31 Do pensamento desse autor, ver Salvatore Giammusso, Potere e


comprendere: l La questione dell’esperienza storica e l’opera di Helmuth
Plessner , Milano: Guerini, 1995.
32 Odo Marquard, Apologia del caso , trad. Gianni Carchia, Bologna: Il
Mulino, 1991; e do mesmo autor: Estetica e anestetica , trad. Gianni
Carchia, Bologna: Il Mulino, 1994.

33 Ferruccio Masini, Il travaglio del disumano: per una fenomenologia del


nichilismo , Napoli: Bibliopolis, 1982, pp. 191-2.

34 Aldo Masullo, Il tempo e la grazia , Roma: Donzelli, 1995.

35 Albert Einstein, Opere scelte , E. Bellone (org.), Torino: Boringhieri, 1998,


p. 707.

36 Stephen Kern, Il tempo e lo spazio: la percezione del mondo tra Otto e


Novecento , Bologna: Il Mulino, 1988, p. 67.

37 Franz Kafka, Confessioni e diari , Milano: Mondadori, 1972, p. 605.

38 Idem , O processo , trad. Modesto Carone, São Paulo: Brasiliense, 1988,


p. 53. A leitura dessas páginas não permite que nivelemos a superfície
em chave política ou imediatamente antipolítica. São textos polissêmicos
que requerem e animam uma constelação de interpretações. Deve ser
dito, no entanto, que nessa passagem de tempo, nas percepções, nas
esperas, nas consciências, o conceito de Joseph K. é o de inúmeros
homens. Mesmo na superfície, a distância abismal entre homens e Lei,
entre moral e ordenamento, toca um inevitável senso trágico. Por outro
lado, os textos kafkianos não podem ser reduzidos a metáforas de
totalitarismo. Nem sequer daquela forma inacabada, que é a construção
estatal.

39 Massimo Cacciari, Icone della legge , Milano: Adelphi, 1985.

40 Joseph Conrad, Cuore di tenebre , Milano: Mondadori, 1985.

41 Alberto Savinio, “Lo Stato”, in: Sorte dell’Europa , Milano: Adelphi, 1977,
p. 92.

42 Hannah Arendt, Il futuro alle spalle , Bologna: Il Mulino, 1981, p. 85.

43 Vittorio Mathieu, Bergson. Il profondo e la sua espressione , Napoli:


Guida, 1971.

44 Edmund Husserl, Per la fenomenologia della coscienza interna del tempo


, trad. Alfredo Marini, Milano: Angeli, 1998.
45 “O que é então o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se tiver de
explicá-lo a quem me pergunta, não sei; e, no entanto, posso afirmar que
sei, com segurança, que, se nada passasse, não existiria um passado; se
nada sobreviesse, não haveria um futuro; se nada existisse, não haveria
um presente”. Agostino, Le confessioni , v. 1, XI , 14, trad. Carlo Vitali,
Milano: Rusconi, 1992, p. 559.

46 Giulio M. Chiodi, “Verso una retorica dei tempo storico”, in: Chiodi et al .
(org.), Tempo della legge e tempo della storia , Napoli: Guida, 1999, p. 28.

47 Giacomo Marramao, Minima temporalia: tempo spazio esperienza , Roma-


Bari: Laterza, 1990.

48 Hans Blumenberg, Tempo della vita e tempo del mondo , Bologna: Il


Mulino, 1996.

49 Remo Bodei, Ordo amoris , Bologna: Il Mulino, 1991. Ver, especialmente,


Geometria delle passioni: paura, speranza, felicità: filosofia e uso politico
, Milano: Feltrinelli, 1991.

50 Werner Heinsenberg, Fisica e filosofia , trad. G. Gnoli, Milano: Feltrinelli,


1982, p. 55.

51 Idem , Indeterminazione e realtà , trad. G. Gembillo, Napoli: Guida, 1991.

52 Ernest Mach, La meccanica nel suo sviluppo storico-critico , Torino:


Einaudi, 1968. Físico e historiador da ciência, Mach teve o mérito
extraordinário – embora de uma perspectiva neopositivista – de
sustentar, com enorme antecipação, que a tarefa mais importante da
epistemologia é questionar seus princípios metodológicos como condição
prévia do progresso científico.

53 Henri Poincaré, Il valore della scienza , Firenze: Lemonnier, 1947.

54 Henri L Bergson, Saggio sai dati immediati della coscienza , Firenze: La


Scuola, 1957. Ver também L’evolution créatrice , Paris: PUF , 1907.

55 Albert Einstein, Teoria della relatività , Torino: Boringhieri, 1958. Aqui é


possível encontrar a problemática que dará origem à teoria da
relatividade restrita. Pela primeira vez, em 1905, embora em termos de
convenção matemática, Einstein fala de tempo local. Para uma
reconstituição biográfica e científica, ver Abraham Pais, Sottile è il
signore: La scienza e la vita di Albert Einstein , Torino: Boringhieri, 1986.

56 Giulio M. Chiodi, “Verso una retorica dei tempo storico”, in: Chiodi et al .
(org.), Tempo della legge e tempo della storia , Napoli: Guida, 1999, pp.
38-9.

57 Ilya Prigogine, et al. , Stengers , La Nuova Alleanza: metamorfosi della


scienza , Torino: Boringhieri, 1981. Ver também, dos mesmos autores: Tra
il tempo e l’eternità , Torino: Boringhieri, 1989.

58 Hans Blumenberg, Tempo della vita e tempo del mondo , Bologna: Il


Mulino, 1996.

59 Andrea Emo, Supremazia e maledizione: diario filosofico , Milano: Cortina,


1998, pp. 10-1.

60 Elvio Fachinelli, Claustrofilia , Milano: Adelphi, 1983, p. 189.

61 Sobre o tema da lembrança, é iniludível a comparação com a elaboração


teórica de Paul Ricoeur. Nesse sentido, veja-se não somente sua obra
monumental em três volumes Tempo e racconto , Milano: Jaca Book,
1986-1988, mas também La metafora viva , Milano: Jaca Book, 1981;
Filosofia della volontà: Il volontario e l’involontario , Genova: Il Melangolo,
1990; Della interpretazione , Genova: Il Melangolo, 1991. Para Ricoeur, no
ato da recordação, o sujeito torna a transcrever o próprio texto numa
dupla partitura. A primeira transcrição ocorre dentro de si mesmo e é a
tradução de imagens para pensamentos. A segunda transcrição é
realizada pelo pensamento rumo às palavras na hora da narração do
sonho. O texto final do sonho é verbal. A analogia entre o discurso de
Aristóteles, o de Ricoeur e o de Freud consiste no fato de que múltiplos
eventos, com derivações heterogêneas, têm de sintetizar-se numa
história. Para Ricoeur, em toda história narrada há dois tipos de tempo:
um, o da mera sucessão cronológica dos eventos; o outro é a
configuração temporal culminante de toda a história. Há, portanto, uma
espécie de encontro entre sucessão e duração. Na história narrada, de
fato, há como um plano que permanece ao lado de um fluxo que escorre
e que não volta. Aqui, o tempo torna-se tempo humano à medida que vai
sendo expresso segundo uma modalidade narrativa: se e à medida que o
conto alcança seu pleno significado quando se torna existência temporal.
Para Ricoeur é na narração que o tempo se refigura e vai constituir a
trama do enredo.

62 Aldo G. Gargani, Il testo del tempo , Roma-Bari: Laterza, 1992, pp. 7-8.

63 Idem , ibidem , pp. 8-9.

64 George Simmel, La moda, e altri saggi di cultura filosofica , Milano:


Feltrinelli, 1985, p. 15.

65 Idem , ibidem , p. 16.

66 Idem , ibidem , p. 17.

67 Yaffa Eliach, Non ricordare, non dimenticare: L’Olocausto con la speranza


chassidica nell’umanità , trad. G. Bonetti, Roma: Giuntina, 1992.

68 Romano Màdera. “La spiritualità di Ernst Bernhard nel contesto della


psicologia analitica”. Rivista di Psicologia Analitica . Roma: 1996, nova
série, n. 2.

69 Ernst Bloch, Ateismo nel cristianesimo , Milano: Feltrinelli, 1971. Ver


também, do mesmo autor: Il principio speranza , Milano: Garzanti, 1994.

70 Emmanuel Lévinas, Dio, la morte e il tempo , in: Silvano Petrosino (org.),


Milano: Jaca Book, 1996, p. 251.

71 Bruno Callieri, “La fenomenologia dell’incontro: Il noi fra psicoanalisi e


metafisica”, VII Congresso Internazionale di Metafisica , v. 2, Bergamo:
Roma, 1992.

72 Michel Ragon, Lo spazio della morte , Napoli: Guida, 1986. O autor


mostra como na existência humana a morte tem um espaço que não é
somente aquele mental do medo e da curiosidade pelo “depois”, mas
também aquele físico, dos lugares ocupados pelos ritos e das
necessidades da sepultura. A continuidade entre os vivos e os mortos,
desse modo, também é contiguidade entre espaços e formas.

73 Andrea Emo, Supremazia e maledizione: diario filosofico , Milano: Cortina,


1998, p. 53.
74 Paul Tillich, On the boundary , trad. E. Gatti. Ver também, do mesmo
autor: Sulla linea di confine , Brescia: Queriniana, 1969. Karl Jaspers em
Psicologia delle visioni del mondo , Roma: Astrolabio, 1950 indica a morte
como a situação-limite, o momento decisivo eminentemente humano, a
possibilidade autêntica da vida.

75 Giovanni De Vincentiis e Gabriella Valacca, Cultura della morte nella


mentalità occidentale contemporanea , prefácio de Bruno Callieri, Roma:
Città Nuova, 1981.

76 Ver sobre o tema as observações conclusivas da rigorosa contribuição


arqueológica de Pierfrancesco F. Callieri, “Il rilievo palmireno btmlkw e
hyrn nel Museo Nazionale d’Arte Orientale de Roma”, Arte Orientale in
Italia , n. 5, pp. 5-18, 1980: “Os olhares [das figuras das estrelas] nos
parecem carregados daquela expressão que, melhor que outras, pode
lembrar ao observador a existência do defunto atrás da laje do nicho”.
Ver, a propósito, as apaixonantes observações de Philippe Ariès, em
L’anthropologie de la mort , Paris: Payot, 1975; e também as de Giovanni
Testori, em Conversazioni con la morte , Milano: Rizzoli, 1967.

77 O mestre zen Masao Abe pergunta-se: “Por que o Ocidente escolhe o ser
em vez do não ser, a morte em vez da vida?”.

78 Danilo Cargnello. “Della morte e dei morire in psichiatria”. Sistema


Nervoso , n. 8, 1956. p. 113. H. Tellenbach, Melancholia , trad. E. Cipollini,
Roma: Il pensiero scientifico, 1975; M. Trevi, “L’analisi dell’io e lo spazio
della morte”, in: M. Mathieu e M. M. Olivetti (org.), Filosofia e religione di
fronte alla morte , Padova: Cedam, 1981, pp. 161-8.

79 Edgar Herzog, Psyche und Tod , Zurique: 1970.

80 Eugenio Borgna. “L’esperienza della morte nella schizofrenia”. Arch.


Psicol. Neur. Psich. , n. 30, 1969. p. 414. Admirável a monografia Come se
finisse il mondo: Il senso dell’esperienza schizofrenica , Milano, Feltrinelli,
1995. Particularmente, as páginas dedicadas a Gerard de Nerval, a
Antonin Artaud, a Margherita.

81 A esse propósito, ver Paul Louis Landsberg, aluno de Max Scheler, que
mais tarde morreria num campo de concentração nazista, escreveu
páginas inesquecíveis. Veja seu Essai sur l’expérience de la mort , Paris:
Payot, 1951.

82 Franco Rella, Confini: La visibifità del mondo e l’enigina


dell’autorappresentazione , Bologna: Pendragon, 1996, p. 54. Nessa
coletânea Rella faz uma esplêndida análise da obra de Alberto Savinio, à
qual, naturalmente, remetemos.

83 Yousef Hayim Yerushualmi, Il Mosé di Freud: Giudaismo terminabile e


interminabile , trad. G. Bona, Torino: Einaudi, 1996.

84 Paul-Claude Racamier, Il genio delle origini: Psicoanalisi e psicosi , Milano:


Cortina, 1993.
A parábola de Euclides e o nomos
do espaço

BERLIM PLANETÁRIA

B erlim. Um circo, na praça no fim da Friedrichstrasse.


Marion, a trapezista, em seu último espetáculo, diz
consigo mesma:

Frequentemente falo sozinha, só porque estou


constrangida, em momentos como este, como agora.
O tempo cura tudo. Mas o que acontece se o próprio
tempo for a doença? Como se às vezes tivéssemos
de nos pendurar para continuar vivendo. Viver, um
olhar basta. O circo vai me fazer falta. É engraçado,
não sinto nada. É o fim e eu não sinto nada. Como se
a dor não tivesse um passado. [...] Todas as pessoas
que conheci, que ficam e ficarão em minha memória.
Tudo termina quando está para começar. Era bom
demais para ser verdade. Enfim, fora, na cidade
saberei quem sou eu, quem me tornei? A maior parte
do tempo estou consciente demais para estar triste 1 .

Discreto e invisível, o anjo de Asas do desejo ouve os


pensamentos fragmentados de Marion, pensamentos
aparentemente sem sentido. O anjo está ali e algures.
Conhece aquela praça e tudo o que há à sua volta, desde
antes que se tornasse uma cidade. Está sentado num
banco do parque, perto de uma senhora idosa, perto de
um maquinista do metrô, ouvindo seus pensamentos.
Nenhum lugar lhe é secreto ou inacessível. Vagueia pela
cidade, sem rumo. Já não é o mesmo de antigamente,
quando decidia sobre o presente. Agora o mundo parece-
lhe imperfeito, exatamente como os homens. Lembra-se
de quando Deus voltou as costas ao mundo. A esperança
precipitou na história, mas não é mais da história. Sua
própria figura está na fronteira com o instante. Já não
tem ilusões, nem fórmulas de salvação. Resta a
melancolia, como uma culpa por ter ousado demais. Já
não olha o futuro, está imune ao fascínio do futuro, a
toda ideia de redenção.
Para o anjo de Wenders o futuro não é um monte de
escombros 2 . Seu olhar está voltado para o devir, mas
não há tormento nele. Não há tragédia ou apocalipse em
seus olhos; eventualmente ironia, hesitação. É como se
fosse no tempo, sem ser do tempo, como uma existência
suspensa, límbica , hesitante à soleira, sem
profundidade. Não tem nada dos divinos protetores
rilkianos. Eles fazem parte de um nível de realidade
superior, de uma unidade metafísica, que compreende
vida e morte. Todo gesto seu é um indício, uma
constelação de símbolos, um arquipélago de figuras em
movimento, numa eternidade para gente miúda.
Berlim. Ano 2000. Epicentro da metamorfose do
mundo. Cortina que se abre sobre o fazer-se e desfazer-
se de espaço e tempo. Para o início deste século, Berlim
foi o símbolo da vanguarda cultural; hoje, é o lugar de
uma admirável experimentação urbanística, in vivo . Seu
coração antigo bate de vida intensa e invisível. Seu
futuro é a memória de milhões de seres humanos que
fervilham por suas ruas. O que costumeiramente se
entende (ou se entendia) por natureza ou hábitat
humano , mesmo em suas articulações históricas mais
sedimentadas, mudou. Mais que qualquer outro lugar,
Berlim hoje é a fronteira móvel e disforme da
racionalização urbanista, o paradigma da licença de
voltar à estaca zero por dissolução, inclusive de suas
estruturas murais. A cidade que, dia após dia,
desaparece entre saudades irremediáveis e a euforia do
renascimento, exalta desmedidamente problemas e
paradoxos não resolvidos. Como um hipertexto da
história, carrega, gravados em sua carne, os sinais e os
sonhos da Belle Époque , dos totalitarismos, de novas e
improváveis promessas. Em nenhum outro lugar como
aqui a metrópole de formou o espaço e o tempo dos
homens, decompondo-lhes prismaticamente a
identidade. Aqui, o tempo tornou-se uma simples
curvatura do espaço, parado nos interstícios das ruas
mal iluminadas, silenciosas, ladeadas por carros velhos e
por edifícios cinzentos e decrépitos. Atravessar uma rua
leva apenas meio século.
Mas por que atravessar justamente Berlim? Para
começar, por ser o ícone extremo de um mundo que
tenta renascer após seu ocaso. A história aqui espelhou-
se demoradamente em seu muro. Não há mais vestígio
do que foi noutros tempos. Como por uma condenação
da memória, do tempo, seu tempo, resta somente a
imprevisibilidade de sua direção. Tudo o que ia
acontecendo ao longo de centenas de anos ocorreu aqui
numa década. Das muitas versões da cidade, restam
rastros dispersos, não estratificados. Mas o que
buscamos em suas ruas? Para que teimar em decifrar
seus cheios e vazios, os bairros, os espaços, as praças,
as zonas, como rastros concretos e tangíveis de mundos
humanos que vão se sucedendo? E, mais em geral, para
que interrogar ainda a cidade? Em vista do que traçamos
novas fenomenologias urbanas? Das descrições de
Baudelaire, Simmel, Benjamin e outros mais já não há
vestígio. As ruas, as praças, os próprios lugares dessa
mutação são acontecimentos imprevisíveis. Nenhuma
experiência pode mais ser verificada. Para nos
orientarmos, não serão de nenhuma ajuda as categorias
sociológicas. A única bússola útil para o nosso caminho é
a fenomenologia, a nossa filosofia do olhar . Mas orientar-
se é como buscar figuras permanentes nas nuvens que o
vento compõe e decompõe com seus turbilhões. Esse é o
interesse por Berlim ou, mais em geral, pela cidade,
lugar – para usarmos uma expressão de Bloch – do não
mais e do não ainda .
Por motivos diversos, talvez aqui ainda seja possível
liberar a imagem humana da insensatez de suas
representações e da desorientação, da incerteza e do
desnorteamento que elas geraram. Por isso é mais
interessante atravessar Berlim. Aqui a arquitetura
despediu-se da terra, de toda raiz terrena (percebemos
logo que faltam as palavras: dizer terra ainda é mover-se
por aproximação; talvez lugar seja mais preciso). Aqui,
mais do que em qualquer outro lugar, espaço, tempo,
lugar despediram-se dos vínculos originários. Em seu
lugar, a ideia de espaço abstrato, uniforme e idêntico foi
abrindo o próprio caminho. O espaço dessa cidade, para
onde quer que nos dirijamos, não tem mais lugares a
encontrar. É uma cidade que já não pode ser definida
num lugar. O espaço é projetado, cartografia de coisas,
mapas de vazios, formas a serem delimitadas. Em
Berlim, a urbanística não instaurou lugares: definiu o
espaço arquivando no subsolo suas histórias, narrações e
mitos. A resolução do vínculo entre espaço e lugar, a
afirmação metafísica do espaço, a libertação dos lugares
aqui são gestos acabados.
O discurso diz respeito a Berlim e a qualquer outra
metrópole do planeta. Está relacionado às mutações do
espaço, de seus traços, de seu papel, mas também ao
processo de subtração e desaparecimento do território.
De acordo com a visão prescritiva da urbanística
moderna, o espaço é a cifra de um vazio residual. O
território urbano todo não pode ser transcrito. Terra e
território são categorias em tensão oposta e extrema.
Com efeito, se a terra ainda resiste como raiz da
geografia do homem, o território já representa seu texto,
sua narração: a narração do encontro entre o homem
(seus ordenamentos, suas localizações) e a terra. O
lugar, como conceito político, econômico e jurídico,
despediu-se definitivamente dos termos territoriais
fechados. Os novos cenários resultantes do movimento
demográfico do espaço rural para o urbano, o papel
crescente dos fenômenos de localização e mundialização
da economia, o crescimento irreprimível das diversidades
étnicas fazem da metrópole o lugar de uma enorme
tensão. A expansão incessante do tecido metropolitano,
que enreda as velhas periferias em tecidos intersticiais
tentaculares, impele-nos a pensar novas epistemologias,
além dos paradigmas da complexidade 3 . O incremento
desmedido dos fatores de crescimento urbano, as
próprias grades da urbanística exigem que se
reconsidere tudo radicalmente 4 . As metrópoles
apresentam-se cada vez mais como espaços
estratificados, que apagam e redefinem o território 5 ,
num processo ininterrupto de desmaterialização.
Mas o que se desmaterializa não é a realidade. É
aquele conceito residual que teimamos em chamar
sujeito a não ter mais relação com o corpo, com sua
sensorialidade, com os próprios objetos. A questão diz
respeito à própria natureza da experiência, às mutações
racionais e afetivas, ao nascimento de novas paisagens e
geografias psíquicas. A contração irreprimível do
território transforma a existência e os conhecimentos, o
corpo redesenha-se até em suas articulações vitais mais
íntimas. Com a afirmação do espaço euclidiano, de fato,
apagam-se as funções originárias do mito e do
imaginário a ele ligados. A metrópole é o campo
gravitacional dessas metamorfoses. Esse é o cenário de
um inédito habitar errático, de um desnorteio radical 6 ,
do colapso da experiência, cartografias do medo 7 . Aqui,
a própria relação do homem com os objetos já não passa
por sua materialidade. Esses objetos adquiriram uma
espessura enigmática, outra estrutura: são “[...] o dobro,
uma estranha objetivação de nossa mente, de nossa
sensibilidade, de nossa afetividade, talvez de nossa
própria capacidade de imaginar ” 8 . Não teria o menor
sentido discutir essa mudança se deixássemos de colocá-
la aquém do século XX , que é o divisor de águas entre a
história do homem, já escrita, e uma identidade humana
a ser radicalmente reconsiderada. No grumo da
existência metropolitana, os conhecimentos parciais e as
extremas especializações formam um hieróglifo inútil. O
que é, justamente, Berlim senão o ilegível, caótico (e ao
mesmo tempo extraordinário) hieróglifo do século XX ? Em
nenhum outro lugar como aqui a urbanística gerou
contramovimentos de desaparecimento em formas tão
sistemáticas. A mítica Postdamer Platz 9 , símbolo de um
passado de meio século, constitui a metáfora dessa
mutação. A partir de 1945 a praça passou a ser um lugar
recalcado da história, uma cicatriz da memória. Após a
queda do Muro, para os berlinenses do leste e os do
oeste, é o primeiro lugar de encontro de uma nova
realidade. Em seu teatro – o mais intolerante da história –
homens do mundo inteiro reescrevem as páginas de um
novo conto.
Berlim é a cidade símbolo da urbe global, o não lugar
que luta com as sombras de um passado e as promessas
de um futuro que tarda a chegar. Aqui, as velhas
identidades se despedaçaram, aniquiladas antes pelas
bombas das Flying Fortresses e pelas artilharias dos
Aliados em 1945. Depois, mais silenciosamente, pelas
escavadeiras e buldôzeres da reconstrução atual. Berlim
é a metrópole símbolo que reinventa a si própria a partir
de um enorme vazio potencial, sob o signo de uma
urbanística que se dedica a esvaziar e desconstruir o
vazio, a reduzir a gravidade do sentido dos lugares e dos
corpos. Berlim cidade total , única dimensão possível
para o homem contemporâneo, ponto final de uma
história urbana que teve por paradas a cidade rural, a
cidade industrial e assim por diante, até nossos dias, a
metrópole mutante.
É evidente que o sentido que a fenomenologia
conferiu à palavra mundo nos últimos cem anos hoje é
totalmente inimaginável fora do contexto de mundo
urbano . Vice-versa, o mundo humano, isto é, o modo de
ser homem é hoje um modo radicalmente urbano. O
mundo do homem é essa cidade em sua forma extrema,
cidade mundo . Fora desse eixo, a possibilidade de
experimentar o homem do qual, há mais de vinte
séculos, falam a filosofia e a antropologia, dissolve-se. É
necessário, no entanto, muita atenção. Desse homem
permanece hoje uma imagem decomposta, um prisma
de múltiplas faces. Isso torna nosso paradoxo mais
radical, porém mais claro. Assim, se a cidade permanece
imaginável somente à medida que é dimensão mundana
do homem, ela mesma torna-se superfície dissolvente da
imagem de homem que, como relíquia, conservamos.
Começa a ficar claro por que Berlim. O que acontece
ali (e aconteceu) é simplesmente o que acontece (e
aconteceu) ao homem contemporâneo. A condição de
seus habitantes (o melting pot de alemães, ingleses,
turcos, italianos, russos) é a de homens sem mundo,
identidades dispersas, cifras de vida inatingíveis. Nos
olhos desnorteados do turista que anda por canteiros de
obras e bairros refletem-se os espelhos opacos e
paranoicos dos edifícios-fortalezas, os conjuntos
cerrados, subterrâneos e multicoloridos da U-Bahn, da
Siegessaule, da Fernsehen Turn. A cidade está envolta
por uma vertigem desnorteadora, por uma melancolia
metafísica. A operação urbanística berlinense demonstra
o quanto é insensato falar de mundo da vida em sentido
pré-categórico, originário. E quanto, ao contrário,
necessita-se urgentemente de uma antropologia do
artificial e de novas categorias do humano.
Recentemente, Renzo Piano, um dos principais artífices
da transformação, definiu Berlim como cidade “cheia de
vazios, livro de história do qual inúmeras páginas foram
arrancadas”.
Olhar hoje a Postdamer Platz é desorientador. Na
década de 1920 era o epicentro da Berlim mais
alternativa, cosmopolita, transgressiva. Hoje é uma praça
do mundo, onde toda uma fronteira se anula. Claro, é a
praça mais nova do mundo. Mas sua história, a que nos
foi entregue para sempre no início do século XX , é uma
damnatio memoriae , um buraco negro da história. Seu
destino não é diferente do da Alexander Platz, o lugar
esplendidamente fixado pelo romance de Alfred Döblin.
Em Berlim, pediu-se aos arquitetos que virassem
cirurgiões, historiadores, psicólogos, políticos: em poucas
palavras, que reescrevessem o futuro. Mas nessa
paisagem de metamorfose até isso parece não ser mais
suficiente. A cidade-mundo do futuro, base lunar sem
história, transitou para um mundo sem mundo .

CRÍTICA DA RAZÃO FUNCIONALISTA


Por que interrogar ainda a cidade? E de que cidade
estamos falando? Por que buscar os rastros da
“presença” humana logo no espaço urbano? A que
aludem o rompimento dos vínculos naturais, a abolição
do “sacro”, a expropriação das paixões que marcam tão
profundamente seu tempo? É impossível responder a tais
questões sem nos despedirmos, preliminarmente, das
queixas estéreis sobre a perda da “relação autêntica”
com o espaço, com a terra. Sem deixar para trás as
saudades da perda de autenticidade do indivíduo da
metrópole moderna, do processo de mutilação do morar
como consequência da racionalização do espaço
metropolitano e da vida que flui dentro dele. As
concepções do espaço e do morar, de uma arquitetura
ligada à experiência do interior, em relação mais ou
menos dialética com o exterior, já não servem. Assim
como não serve o organicismo que, por tanto tempo,
caracterizou a arquitetura e que se originava das pseudo-
oposições dialéticas entre racional e irracional, geometria
e linha curva, composição e espontaneidade 10 .
Ao residir, ao morar, a arquitetura pode aludir como
a algo que permanece estranho, de algum modo oposto.
O desatrelar-se do espaço do vínculo da terra, a
afirmação do planejamento como “modelo” abstrato e
uniformizador, a perda de lugar geraram
descontinuidades radicais na percepção espaço-tempo,
designando e desenhando novas cartografias cognitivas.
Poderíamos dizer que a cifra – um oximoro – a que a
cultura do século XX europeu chegou é estar radicado na
ausência de um lugar . Nesse sentido, do espaço resta
algo como um lugar não lugar , palco de guerra,
dilaceração de sentido. Um espaço descosido, ferido,
descontínuo. Um espaço como ponto crítico de fusão e
de distanciamento dos horizontes, de erosão do próprio
tempo e da vida. A metrópole contemporânea coincide
com esse topos , que sucede qualquer outro hábitat
histórico e natural do homem, não envolvido em
nenhuma ideia de progresso ou de desenvolvimento.
Mas vamos deter-nos ainda, brevemente, na questão
do espaço. O que entendemos ao dizer espaço? Por que
nos perguntamos o que é espaço? Por que queremos
saber isso? Por que somos tão motivados a responder a
essa pergunta? E por que é tão imperioso responder?
Como nasce do jeito que nasce? Enfim, em virtude de
que práticas pretendemos responder? Suscitar tais
perguntas significa abordar uma questão maior, que
poderíamos definir como a questão da não neutralidade
de toda prática. Isso, naturalmente, significa que a nossa
própria posição não é neutra, que as nossas próprias
palavras, o nosso próprio dizer carregam o sinal de uma
resolução ética, de uma verdade e um significado que já
somos, que estamos para ser ou que seremos. Entre os
inúmeros riscos a que o espaço nos expõe, o mais sério é
o da superstição. Ainda mais se o espaço – sobre o qual
nos interrogamos e pelo qual somos interrogados – não
for um espaço particular, mas um espaço da
universalidade. A universalidade é sempre uma
superstição. Mas, se isso é verdade, então o espaço da
universalidade é a superstição. É, para nós, impossível
imaginar algo que seja universal sem ser violento. Não
violento é o gesto que se opõe à pretensa universalidade.
Toda vicissitude moderna demonstra que a pretensão de
identificar uma determinação com o direito de impor-se –
antes e prescindindo de uma relação positiva sobre
outras – traduz-se em violência. A redução do espaço a
um conceito universal e abstrato é, na história do
homem, o relato de uma violência: a mesma que está na
origem do processo de homologação, de padronização,
de eliminação das permanências, dos arquétipos, das
diversidades.
Na origem do “moderno” há a ideia da
universalidade, de uma reductio ad unum onívora para
com todo pensamento, que exclui a tradição divergente.
Ter pensado o mundo por meio desse código deu lugar a
um processo inclusivo, homologatório, que tirou do
indivíduo (dissolvido no interior de subjetividade e
identidade coletivas) todo impulso para buscar o sentido,
para desencadear novas perguntas. Se isso lhe ofereceu
certezas, privou-o de si próprio. O poder planificador e
igualador do “moderno” neutralizou e apagou diferenças
e divergências, registrando-as nos vocabulários jurídicos
e ideológicos universalistas da razão construtivista. Com
a tentativa de manter unido o que não podia ser mantido
assim, as diferenças e as diversidades serão incluídas
num conceito uniformizador, unitário e universal do
mundo. Nessa lógica, tudo – desde o poder dos Estados
até as práticas dos legisladores – está reduzido a códigos
éticos e instâncias não conflituosos. Tudo, desde a
instituição dos manicômios até a racionalização
planejadora da nascente urbanística, responderá às
práticas prescritivas e coercitivas dos legisladores. Sobre
seus alicerces, a filosofia moderna construiu o esquema
universal e invariante da natureza humana, que devia
servir, afinal, a legitimar epistemológica, filosófica e
juridicamente o modelo nascente do Estado-sujeito como
ancoradouro decisivo da organização social dos homens.
Para cumprir-se, tal processo deverá alimentar-se de uma
universalização jurídico-moral ininterrupta, que terá no
Estado o implacável executante, que enredará,
neutralizará e regulará o conflito nas formas e no espaço
do ordenamento jurídico. Um objetivo que se cumprirá
mediante a aniquilação das especificidades, das
peculiaridades e de tudo o que é singular, independente,
autônomo: tudo o que, em suma, é expressão não
imediatamente social 11 .
Desde seu nascimento, ao perseguir um projeto
pessoal de homem 12 , o “moderno” procurou aniquilar e
neutralizar os obstáculos, os elementos particularizantes
que resistiam às dinâmicas de inclusão do Estado
moderno. Durante muitos séculos (o ápice é o século XX ),
as práticas políticas estarão subordinadas a essa ordem
de relações. Naturalmente, tudo isso não podia ocorrer
sem movimentos contrafactuais. O gesto que acompanha
o pensamento ético e as práticas legislativas da
modernidade, sob as insígnias da universalidade e do
fundamento, gera um conflito agudo, incorrigível: não
somente pela tensão irredutível entre a liberdade e a
autonomia dos indivíduos e a heteronomia da esfera
pública, mas, sobretudo, pela impossibilidade de a gélida
máquina estatal conter imaginação, esperanças, desejos,
direitos individuais. Agora, após séculos de pensamento
uniforme (e uniformizante), os homens redescobrem o
sentido da própria condição de indivíduos, o caráter
fragmentário da própria existência, a pluralidade dos
próprios interesses: em breve, as esferas de liberdade
humana, indisponíveis, inegociáveis e impossíveis de
serem reconduzidas a um desenho abstrato uniforme.
Num mundo em que os níveis de realidade
multiplicam-se e dissolvem-se sem interrupção, o espaço
e a experiência individual redesenham-se
incessantemente. Dos antigos mapas psíquicos, das
velhas cartografias da identidade, não há mais sombra. A
tentativa dos dispositivos filosóficos, científicos e
tecnológicos de circunscrever a dissolução dos poderosos
mitos modernos do eu e do Estado – novas
recomposições universalistas e patéticos paradigmas
globalistas –, naufraga contra os rochedos de novos
conflitos. A crise atinge diretamente a legitimidade do
Estado, num processo que será tanto mais agudo quanto
mais rápido for o enfraquecimento dos tradicionais
“poderes éticos” e das instâncias pré-políticas que
davam fundamento à legitimidade e à soberania do
Estado. Uma crise que, sob muitos aspectos, parece
ainda mais aguda do que aquela que, na Europa, viu o
nascimento do Estado moderno e da comunidade
internacional dos Estados soberanos. Com a
secularização radical daqueles poderes éticos e a agonia
digna de compaixão das grandes visões de mundo, a
política (que tirava sua força para a própria teoria e as
próprias práticas daqueles poderes) descobre-se frágil,
vulnerável, diante do problema decisivo para a sua
própria razão de ser.

O PHARMAKON URBANÍSTICO

Após ter-se despedido da relação fundamentadora com o


território, a urbanística é permeada e questionada até as
raízes de seus paradigmas. Filha de um pensamento
abstrato e geometrizante, ela foi progressivamente
perdendo sentido e perspectiva, capacidade
comunicativa e disponibilidade para o diálogo com as
formas da cidade histórica. Mas se é verdade que o mal-
estar e a incerteza da urbanística eclodem no século XX ,
sua origem está muito distante no tempo. Podemos
encontrar um divisor de águas na organização espacial
concentrada do período industrial, passando pela difusão
urbana da época pós-industrial, a unidimensionalidade
da cultura urbana moderna, até o pluralismo cultural da
cidade pós-moderna 13 . Imaginada por meio da metáfora
orgânica do “corpo” (desde suas próprias configurações
arquitetônicas), a cidade foi se tornando,
progressivamente, objeto de um processo de
transformação (antes de tudo, geométrico) que
permanecerá profundamente arraigado na cultura
urbanística até nossos dias. Ao longo do século XVII , as
formas urbanas de Paris e Londres foram deixando
definitivamente de ser reconhecíveis: a metáfora da
cidade-corpo logo será dissolvida pelas grandes
dimensões que assumirão as maiores capitais europeias.
Aqui se faz necessária uma breve exploração. O
cenário da cidade do século XVII – assim como aparece nas
crônicas da época – é marcado por problemas que não se
podem encaixar nas grades, nas dinâmicas, nos
equilíbrios de desenvolvimento até então conhecidos. O
crescimento demográfico incessante, a necessidade de
controle por parte dos órgãos de polícia, a falta de
segurança do labirinto urbano, a impossibilidade de a
administração fiscal exigir o pagamento de impostos e
fiscalizar os tráfegos e os comércios, a higiene deficiente,
a degradação do decoro e da moral pública levam os
governantes das maiores cidades europeias a executar
uma regularização e higienização do tecido urbano, com
inevitáveis repercussões nas dinâmicas sociais. Com a
formalização e a institucionalização dessas práticas,
surgirá a certidão de nascimento do conceito de espaço
prescritivo . Escreve Franco La Cecla quando, em Paris,
em 1728,

[...] redige-se o Plano, a municipalidade procura


elucidar no mapa o emaranhado das ruas entre a
praga das casas, os casebres, os quiosques, as
moradias provisórias, as carroças, as bancas dos
vendedores, as barracas. Os arrecadadores de
impostos têm de saber com precisão como orientar-
se, quem mora aqui ou ali. Os guardas municipais, os
funcionários encarregados da fiscalização dos bairros
só podem penetrar nesses locais sem receio se a
cidade sujeitar-se ao Plano que a representa. Para
isso é preciso que a posição de uma casa seja
“domiciliada”, que as portas sejam fechadas, todas,
após as dez da noite. E, sobretudo, que as casas
sejam numeradas e as ruas catalogadas com nomes
escolhidos pela prefeitura e transcritos no mapa.
Essas providências introduzem um novo tipo de
orientação desde o exterior, ao passo que negam o
interior dos moradores. Até então, em quase todas as
cidades europeias a orientação tradicional não era
topográfica, mas relativa 14 .

A exposição concerne a Paris, mas processos


parecidos, no mesmo período, atingem a organização de
outras cidades: Londres, Florença, Veneza, Hamburgo.
Afirma-se prepotentemente a exigência de um controle
baseado num conceito relativo à área do espaço
habitado, definido e circunscrito a diferentes áreas
contíguas e margeantes entre si. Trata-se de um espaço
em que as atividades se sucedem quase exclusivamente
ao ar livre, difícil de ser transposto. Um espaço
imobilizado, intransitável, que resiste aos ordenamentos
e aos regulamentos de policiamento urbano. Contra essa
desordem, e para tirar o controle do território dos grupos
locais de poder, serão imaginados e postos em prática os
primeiros planos urbanísticos. O objetivo, em suma, é

[...] começar a desimpedir a cidade de seus


habitantes locais e torná-la permeável e controlável
desde o exterior, em todos os seus pontos. Trata-se
de fazer uma “operação limpeza”, demolindo,
despejando, penetrando paços e pátios, desnudando
tudo o que, nesses domínios exclusivos da
localidade, podia abrigar o perigo para a higiene e a
moral pública 15 .

O conflito entre as exigências de controle e de


administração da cidade e a autonomia do crescimento
social e econômico está aberto. O desenvolvimento da
produção e da circulação das mercadorias irá exasperá-lo
progressivamente. A urbanística moderna – que nasce
como instrumento de prevenção, planejamento e
segurança – anuncia, desde as origens, sua íntima
vocação antiurbana. Inicia-se assim um gradual
empobrecimento do plurissentido emocional da cidade, a
supressão das diferenças, a limitação dos movimentos, a
redução da vida diária a teatro de sombras privadas 16 .
Na exigência de saneamento e requalificação urbana
baseia-se, portanto, a urbanística “taumatúrgica”, o
pharmakon , o remédio para os males da cidade.
Hausmann e Cerdà 17 (figuras decisivas da urbanística
moderna) são os autênticos intérpretes das exigências
formais do racionalismo iluminista aplicado à urbanística.
Os dois urbanistas irão submeter as cidades de Paris e
Barcelona a novos procedimentos de intervenção, à
reorganização do tecido urbano mediante decomposições
e recomposições radicais. Esses procedimentos, se de
um lado irão higienizar a cidade preexistente, de outro,
revolucionarão a disciplina urbanística, conferindo-lhe
(sempre por meio de dispositivos administrativos
adicionais) poderes enormes para a realização de
transações financeiras, a valorização das áreas e a
programação das obras. Nascem e instituem-se assim os
poderes e as atribuições da política urbana. Escreve Enzo
Scandurra:

A figura do urbanista, ao contrário da do cientista-


filósofo, não existe desde sempre. Ela é figura da
modernidade e consequência da segmentação
especializada dos poderes. [...] O urbanista é o
“especialista” que confere soluções (essencialmente
espaciais) para as exigências que os novos poderes
dominantes expressam. O barão Hausmann
representa o arquétipo, o símbolo “elevado” dessa
nova figura da modernidade que se propunha
encontrar soluções (técnicas) para o triunfo dos
novos valores da burguesia, que se afirmava com o
Iluminismo. Ele atribuía poderes especializados a si
mesmo: administrador e prefeito, financista, político,
economista, reformador e, como diz Mumford,
“propagador das funções humanas e do espaço”.
Napoleão III decreta a demolição das ruelas e dos cul-
de-sacs e a destruição de bairros inteiros para a
defesa contra ataques externos; logo Hausmann,
conselheiro do Príncipe , traduz essa exigência militar
na invenção dos boulevards ; inventa um pano de
fundo apropriado 18 .

Nas asas do positivismo e do cientismo consolida-se


uma prática que projeta a urbanística sobre um horizonte
de progresso essencialmente técnico, cuja finalidade é
livrar-se dos núcleos urbanos antigos, demolindo,
arrancando e saneando; tudo isso interpõe-se como
obstáculo à realização do sonho da cidade geométrica.
Em Le Corbusier 19 , tal perspectiva torna-se ainda mais
radical. Em sua elaboração, a ideia de uma coerência
entre modelo urbanístico e morfologia do lugar está
dissolvida. O tecido urbano preexistente, as
especificidades do terreno são irrelevantes. A metáfora
da cidade como máquina é resolvida na racionalidade de
uma ordem geométrica simples e absoluta. A formadura
de tal ideologia decretará o distanciamento da
arquitetura do elemento terreno . Para Le Corbusier,
zerar a perspectiva arquitetônica clássica corresponde à
afirmação do homem sobre a natureza, ao exercício do
poder do homem sobre a natureza.
Olhando ao nosso redor, parece que a estratégia do
pharmakon urbanístico – mediante os paradigmas que
fundam a singularização e a funcionalização da cidade
moderna – cumpriu-se plenamente. Permaneceriam
incompreensíveis, para nós, a crise, o mal-estar, o
desnorteamento da urbanística moderna – metrópoles
expandindo-se feito mancha de óleo, mobilidade cada
vez mais disseminada, migrações voluntárias e
involuntárias de proporções gigantescas impondo estilos
de vida inéditos –, sem interrogar o exasperado caráter
redutivo do estatuto funcionalista, com suas abstrações
geometrizantes, as espacialidades excludentes, o
metodologismo exacerbado. Enfim, sem questionar seu
paradigma fundamental: o plano urbanístico , o
instrumento que, para devolver à cidade o espaço
natural libertando-a de seus vínculos originários de
constrição, revogou o espaço natural, produzindo, ao
contrário, processos irreprimíveis de perda de sua
identidade. E mais: a generalização sistemática dos
procedimentos de zoneamento 20 abriu questões
totalmente novas na representação e na semântica da
cidade. Por diversos motivos: a transformação da relação
entre cidade e zona rural, o entrelaçamento de fatores de
trocas econômicas, a alta mobilidade, a progressiva
desindustrialização do território.
Tudo isso suscitou questões dilacerantes, que
resultaram em contramovimentos antiuniversalistas e
antiautoritários, retomando as necessidades negadas ou
marginalizadas pela ideia clássica de plano : impulsos
anti-hierárquicos, lutas políticas, rumos de pesquisa cujo
denominador comum era a nítida recusa do
funcionalismo, o questionamento dos próprios
fundamentos da urbanística clássica. Mario Perniola
abordou uma orientação inorgânica 21 da experiência
arquitetônica contemporânea para indicar um
movimento que reivindica a autonomia da arquitetura
com relação às práticas de edificação do engenheirismo
disseminado, do planejamento e da prescritividade
dogmática. Em outros termos, das práticas que
desejavam restaurar relações originárias entre espaço e
lugar, sentimentos de pertencer a “moradas originárias”,
que, ao contrário, destruíram toda experiência plástica e
curvaram a arquitetura aos modelos da engenharia
computadorizada.
A expansão do tecido metropolitano engolindo as
velhas periferias mediante tecidos intersticiais
tentaculares, a progressiva aprovação das grandes
metrópoles, o crescimento irreprimível das diversidades
étnicas fazem da metrópole o lugar de novo e espantoso
conflito. Isso impõe a reconsideração radical da
epistemologia urbanística tradicional. Para Tiziana Villani,

[...] as metrópoles aparecem cada vez mais como


espaços sobrecarregados, estratificados, voltados a
apagar e definir, de modo inesgotável, o próprio
território. Concomitantemente, a realidade urbana é
submetida a um processo contínuo de
desmaterialização por causa da subtração de
território e experiência real, e em virtude da
acentuação do território virtual 22 .

Tudo isso tem consequências não somente sobre as


novas configurações do espaço, mas, acima de tudo,
sobre o corpo: aquele mesmo corpo até aqui identificado
com o espaço, agora terá de declinar-se em outra esfera
topológica.
Como o “paradigma Berlim” demonstra, o cenário da
cidade do final do milênio está se redesenhando
rapidamente. A concentração urbana e os processos de
homogeneização da hipermetrópole abrem espaço para
uma irreprimível tendência à entropia, a uma deflagração
das diversidades, a uma subtração de espaço e de
experiência, à aglomeração de novas “galáxias”
metropolitanas, redesenhadas por novas distribuições de
subculturas e etnias. A antiga ilusão iluminista de poder
ordenar a proliferação da desordem por meio do plano –
a pretensão fatal de antepor os “resultados” aos
“processos” – dissolveu-se no resultado oposto das
derivas existenciais e territoriais das periferias. A
passagem da ideia do tempo geométrico para uma
experiência de tempo fragmentada e descontínua
também atinge o espaço. Se no século IX chegou a
cumprir-se a transformação da cidade em sentido
euclidiano e funcionalista (isto é, a ideia de que é
possível estabelecer um a priori na regulação das
dinâmicas sociais, econômicas e espaciais), no século XX
esse projeto, sob o signo implacável de uma lógica
uniformizante e padronizadora, encarnou-se numa
verdadeira transformação do arranjo físico da cidade.
Essa perspectiva, originada pela pretensão construtivista
de alterar as instituições da sociedade e da civilização,
lesou não somente vastos setores da psicologia, da
economia e do direito, mas também da urbanística.
A violação contínua das fronteiras que o Plano 23
havia tentado definir mostra como a transformação
intencional do território produziu um transbordamento
ininterrupto. Sinal disso: a devastação do território, o
espaço que se tornou sem nenhum futuro, as geografias
do medo metropolitano 24 , os lugares sem lugar de
nossas periferias. As distopias oníricas de filmes como
Blade runner ou lndependence day, se comparadas com
cenários como esses, não passam de tímidas ficções
cênicas.
A arquitetura e a urbanística modernas, com sua
fatal pretensão de querer impor o caráter abstrato de
modelos de reconstrução racional do mundo, entraram
nesse século num cone de sombra. A separação, a
simplificação e estagnação disciplinares, impermeáveis à
ideia de complexidade (paradigma que já nem basta para
a compreensão das tendências fundamentais das cidades
globalizadas 25 ), e as incertezas psicológicas travam o
debate, impedindo que se enxergue a inércia das derivas
culturais que freiam a mudança 26 .

O SAGRADO DESABITADO E A DERIVA DOS CONTINENTES

SIMBÓLICOS

A administração burocrática do território e a tentativa de


criar um espaço panóptico universal acarretaram em
longo prazo o comprometimento dos alicerces das
histórias milenares do mito, dos riquíssimos continentes
simbólicos, da multiplicidade dos encontros. O
construtivismo violento da tecné urbanística tornou ainda
mais agudas e devastadoras as consequências da
antropização da terra, a começar pela marginalização do
inextinguível poder dos elementos sacros. Não
conseguiríamos compreender a natureza dessa
metamorfose que atinge o mundo urbano
contemporâneo se não observássemos a relação
divergente entre o poder simbólico do espaço, seu
caráter sacro, e o estranho desdobramento da
engenharia aplicada à arquitetura, levando à dissolução
das raízes do sentido, da memória, das saudades, da
poesia que são transmitidos aos lugares desde os tempos
mais remotos. Com um estudo 27 , hoje já clássico,
Rudolph Otto indagou do encantamento e do isolamento,
do arrebatamento e do abandono que o sacro traz
consigo no encontro com o elemento espacial. Aqui, o
isolamento não é somente ruptura topológica, é também
referência ao caráter intimamente antropológico da
temporalidade, em que o encantamento, o elemento
fascinante estão intimamente ligados à espacialidade. O
sacro e a ligação invisível que mantém unidos espaço e
tempo 28 , o primário sinal perceptivo das paixões, dos
símbolos, dos lugares, da história, em cujos limites nossa
vida se consome. Aqui, incessantemente, as relações
entre mundos irredutíveis uns nos outros, e que
absolutamente não podem sobrepor-se, tomam forma:
relações assimétricas, múltiplas, não negociáveis,
sempre prestes a explodir quando a funcionalização
rompe a crosta sutil que separa civilização do subsolo de
desejos e violência, trazendo à superfície o que deles se
recalca.
O novo milênio nasce no horizonte de crise de todo
finalismo, de toda escatologia, de toda perspectiva que
se fundamenta na ideia de redenção e de interpretação
teológico-escatológica da história. O resultado dos
processos tipicamente modernos de secularização e
racionalização tornou extremo o impulso para uma
radical dessacralização e para a afirmação de uma
demanda de novos vocabulários religiosos – questões
essas apenas em contradição aparente. Com efeito,
enquanto indivíduos, movimentos, grupos tornam a
identificar-se no religioso , o processo de dessacralização
avança inexoravelmente. Se durante milênios o sagrado,
seus atores, seus lugares foram cercados por um
profundo sentido de mistério e de impossibilidade de
aproximação, hoje tal limite desapareceu, aniquilado por
uma rappresentatio , uma encenação, que nada tem a
compartilhar com a força expressiva do símbolo, de seu
originário poder ético-religioso. Essa dessacralização,
entretanto, não anula a dimensão simbólica que sempre
remete a uma ligação permanente e irreprimível do
homem com o sagrado e desempenha uma função
reveladora em condições de conferir sempre novos
significados à existência. Com efeito, quando damos por
nós diante da terrível realidade do sacrifício, não basta
invocar o conceito de ambivalência do homem, como se
o homem fosse inevitavelmente constituído por um rosto
duplo. Ou, ao contrário, neutralizar, expelir e consumir o
religioso, tratando-o (como por tanto tempo o cientismo
antropológico tentou) como bode expiatório.
Como é evidente no pensamento de Girard, ao
sagrado está estritamente ligada a noção de violência
(sacrifícios, vitimizações etc.). A supressão dessas
dimensões conduz ao retorno do recalque, ou seja, à
violência que aparece sob as formas mais atrozes até
mesmo nas sociedades consideradas desenvolvidas e
juridicamente predispostas à neutralização dos conflitos.
Escreveu René Girard:

Acreditamos não existir nenhuma sociedade que não


tenha emergido do sagrado. Digamos então que as
sociedades primitivas vivem no “sagrado”. Nenhuma
sociedade pode viver no “sagrado”, vale dizer, na
violência. Viver em sociedade é escapar da violência
– certamente não numa verdadeira reconciliação,
que responderia imediatamente à pergunta “o que é
o sagrado?”, mas num menosprezo sempre
tributário, de um modo ou de outro, da própria
violência. Não há sociedade que acredite ser a única
a ter emergido do sagrado. É justamente por isso que
os outros homens nunca são totalmente homens. Nós
não escapamos da lei comum, do menosprezo
comum. E não escapamos do círculo. A tendência a
cancelar o sagrado, a eliminá-lo totalmente, prepara
a volta sub-reptícia do sagrado, numa forma não
transcendente, mas imanente, na forma da violência
e do conhecimento da violência 29 .

A violência tem uma obscura e inseparável ligação


com o sacro, e quanto mais o homem pretender dominá-
lo tanto mais o sacro dominará o homem. O sagrado

[...] é a violência instituída que continua governando


tudo, longínquo sol invisível, ao redor do qual
gravitam não somente os planetas, mas seus
satélites e os satélites dos satélites; pouco importa
que a natureza desse sol seja menosprezada ou,
melhor ainda, que sua realidade seja considerada
insignificante 30 .

Certamente após o pensamento da crise, depois do


anúncio de Nietzsche da morte de Deus , mais aguda é a
impossibilidade de expressar a experiência religiosa em
sua linguagem tradicional. Mas justamente essa
inefabilidade, essa irrepresentabilidade mostram a
incerteza da linguagem, o lugar em que o religioso
sempre morou. Poderíamos pensar essa linguagem como
o “telhado” de uma casa, que impede os que nela moram
de vislumbrar o céu. O único modo de abrir caminho para
o céu – portanto, na origem última e transcendente do
mundo – é quebrar aquele telhado. Mas a quebra do
telhado só pode dar-se por meio de uma subversão da
nossa própria linguagem, devolvendo-nos as nossas
exclamações espontâneas diante do encanto e do horror
da experiência. Tais exclamações, tais dilacerações, tais
assimetrias do mundo repatriam os mitos, os símbolos,
as histórias do mundo. Isso evidencia quão falsas e
abstratas foram as harmonias que uma helenização
acrítica do Ocidente (com sua metafísica da luz ) assumiu
como fundamento do mundo. Nem sequer era verdade
para a ingenuidade da idade áurea da Grécia clássica. O
círculo não se fecha e não pode fechar-se em virtude da
irredutível e originária necessidade dos conflitos, em
virtude do seu poder regenerador. Aqui evidencia-se a
insustentabilidade de toda pretensão construtivista , seu
caráter tosco e ilusório. Mas não basta! A
hipercomplexidade, a molecularidade das tensões que
cruzam as cidades e os grandes espaços geoeconômicos,
o eu e os grupos, o fragmento e o sistema, mostram a
falta de fundamento dessas pretensões. Origina-se aqui –
do planejamento racionalista e construtivista integral, da
secularização do “moderno” – a deriva do imenso
continente de mitos, símbolos, sonhos, existências.
As tentativas de neutralização do sagrado da cena do
mundo alcançam o resultado contrário do retorno daquilo
que foi recalcado. O que nos revelam seus traços é a
hierofania (a manifestação do sagrado no cotidiano) em
suas formas primordiais e terríveis. Vem à mente o caso
dos religiosos cristãos trapistas da Argélia, amigos do
islamismo, degolados pela própria mão assassina do
islamismo. Pouco antes de morrer, dando um testemunho
de imensurável intensidade de sua fé e caridade, frei
Christian escrevia:

Se me acontecesse um dia (e poderia ser hoje) vir a


ser vítima do terrorismo [...] ao chegar a hora
gostaria de ter aquele átimo de lucidez que me
permitisse pedir o perdão de Deus e o de meus
irmãos de humanidade e, ao mesmo tempo, perdoar
de todo o coração aquele que houvesse me atingido.
[...] E também para você, amigo do último minuto,
que havia de não saber o que estava fazendo. Sim,
para você também quero esse obrigado e esse a-
Deus que se perfilou com você. E que nos seja dado
tornarmo-nos a ver, ladrões e bem-aventurados, no
Paraíso, se Deus quiser, Pai nosso, de nós dois.
Amém. Alá o queira! 31

A simples e humaníssima intensidade do gesto, sua


força, sua exemplar fraternidade, sua liberdade de fé,
dizem-nos que são os idola a morrer, os espectros da
mente, e não a irreprimível dimensão sagrada e sacrifical
do religioso.
É a desertificação do sagrado na origem da
progressiva esterilidade do relativismo ético, do
conformismo generalizado, da indiferença, de sua
manifestação em formas sempre novas e monstruosas.
Aqui se evidencia plenamente a trágica falácia daquelas
ideologias que haviam estabelecido a nova certidão de
nascimento da civilização com A Declaração dos Direitos
do Homem e tomado o caminho do Iluminismo para a
civilização. Aqui se manifesta, com toda a evidência, o
fim do Deus Mortal (o Estado para Hobbes), o lugar em
que ocorrera a admirável secularização do religioso .
Após os grandes inebriamentos, a arregimentação
ideológica, é tempo do reconhecimento, da escuta, do
reconhecimento da diferença, muito além da tradição
iluminista da tolerância que conserva o desprezo pelo
outro e simplesmente o tolera – no máximo o aceita.

A PERIFERIA DO MUNDO. PATHOGEOGRAFIAS DA MODERNIDADE

Mas como se chegou a tal ponto? O que fez que se


produzisse tamanho processo de perda, de progressiva
esterilidade, que tornam nosso planeta, nossas cidades,
cada vez mais semelhantes a uma paisagem lunar, sem
emoções ou afetos?
Para essa constatação não há necessidade da análise
sociológica. Basta entrar numa metrópole com regiões
periféricas; ali onde novas regiões metropolitanas vão
sempre se agregando às linhas de fronteira originárias;
onde “cidades verticais”, com espelhos, metafísicas e
paranoicas, sobressaem-se repentinamente; onde a
megalópole “autoriza” o transbordamento onívoro da
metrópole. A periferia metropolitana apagou cartografias
que nos haviam orientado para a leitura da cidade
moderna. A identidade, a segurança, a identificação – o
que o homem, em primeiro lugar, havia pedido à cidade –
são promessas não cumpridas. A periferia não é apenas
um espaço geográfico que atravessamos. É sobretudo
uma passagem interminável de tempo, um lugar
mutante que se reporta à segregação dos corpos, das
emoções: a outra face da falência do planejamento e do
projeto.
Proveniente da exigência de libertar o homem dos
vínculos naturais, a cidade conheceu, com a
modernidade, uma transformação radical. Com o
propósito de libertá-la de suas angústias e edificações, a
urbanística moderna, com suas generalizações e seus
funcionalismos abstratos (como, por exemplo, o
planejamento por zoneamento) , anulou a cidade,
produziu uma progressiva perda da identidade,
sistemáticas inibições da memória e a dissolução de
qualquer continuidade entre presente e passado. A
megalópole expande as metrópoles modernas
acrescentando a periferias e subúrbios novos cinturões
de fronteira. Assim, se a periferia assedia a cidade, a
megalópole anula da cidade a ideia de dentro e de fora,
as demarcações geográfico-espaciais. É esse o lado
obscuro, a vertente ensombrecida do plano , a questão
que a urbanística elude sistematicamente, perseverando
na utilização dos “projetos” como decorações do
existente e não como soluções comedidas das demandas
do território. Nenhuma estratégia de neutralização do
multiplicador metropolitano poderá ter sucesso se a
resposta à crise for a da transferência de algumas das
funções econômicas, que, aliás, facilitaria sua expansão.
Diante de semelhante cenário, o próprio conceito de crise
– assim como os de descontinuidade e de catástrofe, em
suas funções de categorias atualizadas da filosofia da
história – revela-se, hoje, inutilizável.
Talvez mais do que a análise dos nós temáticos e
problemáticos que a urbanística tem diante de si, deva-
se levar em conta os testemunhos, as experiências, as
viagens pelos “mundos sem mundo” das periferias. Todo
dia, ao longo de tiras de asfalto de marginais e eixos
viários, sob nossos olhos, escorre o exterminado interior
da megalópole napolitana. É uma realidade de
características universais, um paradigma das periferias
do mundo, mas também o resultado singular de um
transplante heterólogo entre o atávico atraso do sul da
Itália e uma falsa modernidade: industrialização,
destruição do mundo rural, urbanização em massa e
selvagem, crise da indústria, desemprego, crime
organizado e comum, evasão escolar, ausência de
qualquer intenção, religiosidade profana e crenças
institucionalizadas. Não há nenhuma solução de
continuidade, de relação e planejamento entre
prefeituras-satélites e a grande cidade com suas diversas
zonas: Nápoles Norte, Nápoles Leste, Nápoles Sul.
As divisões urbanísticas são burocráticas e não
históricas ou étnicas. Olhando-a do alto, de um avião, a
“megalópole” parece um interminável aglomerado
urbano sem rosto, sem nenhuma cifra residual de
identidade, uma proliferação de cimento, disforme e
metastática. No espelho dessa degradação – zonas em
expansão, zonas cicatriciais, zonas industriais
desativadas, canteiros de obras clandestinos, ruas sem
nome, casas sem número – fervilham milhões de
homens. Um imenso reticulado de ruas e anéis viários,
desvios para marginais e elevados. À noite, quando a
iluminação da rua clareia apenas alguns pontos, o
caminho se torna o de uma inextricável e perigosa
floresta: ruas escuras e cheias de buracos; campos de
nômades com trailers ; longas pistas de acesso de mão
dupla; prostitutas e fogueiras de pneus; casinholas do
terremoto de 1980 desde sempre (e talvez para sempre)
montadas em áreas improvisadas; canteiros de cimento
salpicados de seringas; infraestruturas e viadutos; eixos
rodoviários por onde fluem carros e travestis, prostitutas
e descartáveis vasilhames mentais. Em cada um desses
municípios, partes antigas de velhas prefeituras, antigas
cortes catalãs, frisos barrocos pendurados, paredes do
século XVII , já apodrecidas há duzentos ou trezentos anos,
sinos de bronze de igrejas em ruínas estão ali, como
cicatrizes da memória. Tufo misturado com vidro, com
cimento, com cornijas de gesso ornamentadas e
rendadas, partidas e penduradas de portais das velhas
edificações, até onde a vista alcança, e a ideia das grutas
vazias e das fossas que correm por baixo de bairros
inteiros.

FENOMENOLOGIA DO ATÓPICO
Desde sempre, acreditou-se que a cifra autêntica da
interioridade humana fosse o tempo 32 e que o espaço
representasse uma propriedade do exterior, algo
quantitativo, emergente da esfera do exequível, da
apreensão, do manuseável ou do utilizável. Como depois
sucedeu com as ciências físicas e químicas, também com
o espaço passou-se do domínio dos paradigmas das
ciências da natureza (exteriores) para a ideia de espaço
como metáfora do mundo interior, chegando, daí, à
noção fenomenológica de “espaço vivido”, que anula as
categorias de interior e exterior, dissolvendo o próprio
paradigma espacial, entendido em termos rigorosos e
clássicos, ou seja, em termos partitivos e
segmentadores.
O espaço em que vive o homem contemporâneo é
um espaço “atópico”, sem um lugar que o designa. O
espaço unitário, a respeito do qual insistiram
demoradamente muitas doutrinas científicas e
pseudocientíficas, hoje começa a parecer descontínuo,
fragmentado, sem tramas. A fenomenologia teve o
mérito histórico de ser a primeira a questionar as
categorias de exterior e de interior 33 , dando ao discurso
sobre o espaço uma direção completamente diferente.
Foucault percebeu-o com clareza:

A obra (imensa) de Bachelard, as descrições dos


fenomenólogos nos ensinaram que não vivemos num
espaço homogêneo e vazio, mas, ao contrário, num
espaço pleno de qualidades, um espaço que também
é, provavelmente, habitado por fantasmas; o espaço
de nossa percepção primária, de nossos sonhos, de
nossas paixões, que possuem em si qualidades
intrínsecas; trata-se de um espaço leve, etéreo,
transparente, ou melhor, um espaço escuro, áspero,
saturado: é um espaço do alto, dos topos, e
concomitantemente um espaço do baixo, da lama,
um espaço que pode fluir como água de fonte, que
pode ser vitrificado, imóvel como a pedra ou o cristal.
[...] O espaço em que vivemos, pelo qual somos
chamados para fora de nós mesmos e no qual se
desenrola concretamente a erosão de nossa vida, de
nosso tempo e de nossa história, esse espaço que
nos rói e corrói também é espaço heterogêneo. Em
outros termos, nós não vivemos no interior de um
vazio que se coloriria de reflexos cambiantes,
vivemos no interior de um conjunto de relações que
definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros
e que não são, de modo algum, passíveis de
sobreposição 34 .

A transformação espacial a que Foucault alude, o


espaço humano como tal, atinge os continentes
epistemológicos tradicionais e lança luz sobre os
acidentes e sobre a multiplicidade de espaços,
suscitando a quem investiga perguntas inevitáveis sobre
o que seriam o fechado e o aberto, o contínuo e o
descontínuo, o limiar e o limite. São questões que, a
princípio, tornam a pôr em jogo o corpo que habita esse
teatro desconexo. O corpo, com efeito, não pertence a
um único espaço, mas às dinâmicas, às conexões e
ligações de uma multiplicidade de espaços. Nada que
seja dado para sempre, mas tramas de sentido a
reconstituir sem cessar. Levando ao extremo, poderíamos
dizer que a doença surge quando, em virtude da falta de
tais conexões, o corpo é atingido por essa dissensão,
essa decomposição de espaços. O corpo não pode, de
modo algum, coincidir com o fantasma do idêntico, do
inteiro, do um , mas só pode declinar-se com a
multiplicidade caótica dos espaços. Fora desse percurso,

[...] aquele que deixa de passar, como tudo, ou que


se recusa a passar, como todos, na troca dessas
conexões múltiplas, será denominado “desajustado”,
ou “delinquente”, ou “desorientado”. E o mesmo
acontecerá com aquele que se detiver em um só dos
espaços, ou, em sentido oposto, com quem sentir
repugnância por todos eles. E com aquele que, por
exemplo, ficar congelado e perdido na árvore da
família, ou com aquele que recear sair do paraíso
encerrado entre os dois braços do rio. E com aquele
que quer dilacerar a rede, sofrida como prisão ou
vínculo de escravidão 35 .

É no horizonte psíquico e corpóreo-metamórfico que


explode a metáfora espacial da atopia, do não lugar ,
como símbolo-limite da identidade do homem
contemporâneo. Um símbolo desarraigado e nômade
como o de um viajante que já não tem morada ou rumo;
descontínuo, ectópico , marcado por um estranhamento
radical. A viagem que dissolve o paradigma espacial
como medida (objetiva) do mundo: esse é o campo de
pesquisa, a razão de ser de uma nova fenomenologia.
Esse gesto questiona toda distância entre interior e
exterior, mas também introduz a noção de
“inobjetibilidade” e a de “desobjetivação”, pois nenhuma
ressonância vivida pode ser formalizada em termos
geométricos ou metafísicos.
Se dizemos, com efeito, que esse mundo, o mundo
do qual estamos falando, não é (mais) simplesmente um
mundo exterior, mas um mundo que internaliza o
exterior e externaliza o interior, então a diferenciação
entre os dois polos – do interno e do externo – perde-se.
Abre-se, ao contrário, outro lugar, entre o exterior e o
interior, um lugar de interação, de encontro. Decerto, as
categorias interior, exterior e intermediária são,
inelutavelmente, categorias espaciais clássicas
(euclidianas), afirmadas no conceito fluido da ação
humana. Desaparecendo, elas levam consigo também as
de superficial e profundo, retóricas sobre as quais toda a
tópica psicanalítica estava construída. Mas o “espaço
vivido” é em si algo que vai além das geometrizações de
inspiração biologística ou psicologística, fisicista ou
positivista. O próprio conceito de “campo”, por outro
lado, quer se o conceba predicado da relação analítica,
quer se o considere aplicado ao conceito de consciência
36
ou ao espectro perceptivo 37 , é um conceito espacial
derivado da física dos campos magnéticos, que leva,
analogamente, ao de espaço vivido, à dissolução do
espaço como lugar de precisa determinação posicional,
geopolítica e antropológica.
O espaço é, sobretudo, metáfora do homem, de sua
identidade inapreensível. Não obstante, é a forma que
sua “presença” assume arriscando, a cada passagem, a
identidade como “atopia”. O espaço, aquele habitado
pelos outros, além da própria pessoa, é, na era da alta
modernidade, ou, se preferirmos, na pós-modernidade,
um espaço artificial. E o espaço de hoje é
incontornavelmente espaço metropolitano. Aqui também
se dissolve a noção heideggeriana de Zuhandenheit , que
indica justamente essa modalidade especial de
“manualidade das coisas”, em que as mãos (Haende ) 38
assumem um papel fundamental, quase moldadas de
forma côncava para a (e pela) convexidade do mundo.
Nesse sentido, a topografia da cidade-mundo é atópica,
pois não pode ser captada em seu conjunto, uma vez que
sua essência é dispersa. O espaço da alta modernidade é
pluriaxial, multiordinal, politrópico. O conceito de
“tomada de contato”, desenvolvido por Merleau-Ponty a
propósito da percepção, evidencia como as coordenadas
espaciais foram (são) decisivas para a estruturação da
relação com o objeto. O verbo alemão nehmen remete a
uma ideia transitiva de “preensão” do estímulo. Toda a
psicologia da Gestalt 39 fez dos conceitos de espaço,
espacialidade, espacialização e configuração um discurso
basilar, antes que a intuição fenomenológica chegasse a
mostrar a essência do espaço em sua própria
evanescência, como nada, vazio, falta. O espaço vivido
rompe, com efeito, em primeira instância, a cristalização
esquemática entre espaço interior e espaço exterior. E
permite acompanhar, em segunda instância, as difrações
da própria ideia de espaço, até sua negação no não
espaço da atopia .
Além do limite entre espaço interior e exterior, entre
nível de superfície e nível de profundidade 40 , até onde
eu chegar ainda sou eu: porque me estiro, alargo-me,
lanço as bases para me reconhecer. Contrariamente, até
onde posso receber (dentro de mim) o mundo,
deformando-o ou reconstituindo-o em minha experiência,
torno-me, descontinuamente, eu mesmo 41 . Assim, diga-
se também para o outro, do momento em que o outro e
seu rosto (sua experiência vivida) configuram-se como
“mundo à parte” do meu.
Para Jurg Zutt, a consciência constitui-se
inevitavelmente em dimensão espacial. A
autoconsciência (a consciência que reflete sobre si
mesma) dirige-se para trás, detendo-se diante do “onde”,
interrogando-se sobre onde seria possível obter um
ponto estável a partir do qual se pode olhar a si mesmo
ou os outros. Mediante a nossa corporeidade, podemos
ultrapassar as perspectivas dadas, ganhar outras,
qualquer outra possível. Pensemos no poder evocador e
deslocador dos intermináveis espaços do poeta Leopardi.
Assim, se nos revela a consciência que reflete sobre si
mesma e que, ao se desvelar, faz chegar até nós, por
meio de suas distorções, sinais bastante vivos de
referência. Basta olhar pessoas com leve depressão vital
para perceber o encolhimento do projeto espacial, as
diferentes formas de restrição espaço temporal que, a
cada vez, revelam-se na irrequietude, nas lentas figuras
do gesto dialogador, na distância a ser preenchida, na
imobilidade de um rosto sem sinais, no refúgio da cama
como recolhimento sobre si mesmo, como cesura da
relação espaço temporal. Um cone de sombra os
envolve, entregando-os a um setor de hospital, numa ilha
que possa eludir o olhar do médico e de qualquer outra
pessoa.
Na vertente oposta coloca-se a “presença” do
maníaco. Desde as ligeiras excitações eufóricas,
passando por uma extensa gama de registros de humor,
até os mais patentes estados de loucura, a distorção da
espacialidade vivida torna-se evidente na alteração dos
parâmetros temporais e espaciais, na aceleração do
pensamento, da mímica, dos gestos maníacos que se
sucedem como fogos de artifício incontroláveis. Todo
limite pode ser ultrapassado; todo espaço, conquistado.
Essa inundação (que nunca é uma fluência regular e
ordenada, mas sempre impetuosa e confusa) atinge a
“presença” do outro, arrastando-a, tomando-a como
pretexto para o próprio, ulterior expandir-se. Não há
direcionalidade possível. Sustentada por uma
arrebatadora força vital, a mutabilidade triunfa, solicitada
amiúde por inesgotável jocosidade, ou por uma
prepotente agressividade. A urgência de um espaço
ulterior é extrema, como extrema é a necessidade de sair
dos próprios limites, de dilatar desmedidamente o
próprio limite, o próprio espaço vital, de ultrapassar
continuamente as fronteiras do eu para abandonar-se a
uma conquista que nunca é a manutenção do objeto (já
conquistado), mas um estéril impulso extraterritorial, um
fantasmagórico vaivém de projetos que apagam toda
possibilidade de encontro, de atuação dialógica.
Talvez a distorção mais radical seja esta: a
espacialidade sem direção, incontível, não planejável.
Assim como para a temporalização, a espacialização
maníaca também mostra toda a sua densidade. O
declínio da presença é máximo, triunfa a mera
factualidade, o espaço por sua própria extensão e
expansão se dissolve, a mortificação da espacialização
da própria existência é total, sem saída. Esse retirar-se
rumo a si mesmo tem uma singular plenitude tanto na
constituição de objetivos e significados quanto nas
próprias modalidades de viver as experiências (também
as espaciais). Nesse congelar da existência, nessa
atmosfera suspensa e sem tempo, a tomada de contato
espacial do mundo torna-se cada vez mais insignificante.
Registram-se cintilações inesperadas de exuberante
vivacidade, que logo recuam rapidamente num
imperceptível fluir das horas, em que o espaço se
expande e se contrai sem pausa: os gestos bizarros
revelam a lenta desertificação da vida interior; o
desinteresse pelo contato com a realidade é cada vez
maior; a distância dos outros é cada vez mais
impreenchível; o afastamento indefinido dos horizontes
de relação; o azafamar-se inane para a retomada do
contato; uma apatia e uma abulia que circunscrevem e
abafam todo impulso pulsional, todo afeto e emotividade;
repentinas explosões de raiva e de agressividade, de
mau humor e de ódio logo desembocam numa
ambivalente indiferença ou numa retirada da realidade,
que oferece trégua, mas não perdoa; incapacidade de
um diálogo em plena abertura mútua, com uma bizarra
obstinação por amores impossíveis. Tudo isso pode ser
“defeito” e suceder sob o signo da mais sutil perda de
medida do próprio espaço antropológico, com
aproximações e afastamentos, saltos e contorções do
projeto mundano, na mais absoluta esterilidade, no vazio
mais insignificante. Ou decair na ideia fixa mais
desesperadora, na vã corrida atrás do outro, que se torna
inatingível, e com uma “tomada de contato” cada vez
menos convicta e mais descontínua, destinada a deter-se
num gesto desprovido de qualquer apelo, num sinal sem
significação, numa careta rebuscada em que se fixam
tempo e espaço sem possibilidade de recuperação. Por
analogia com o que Le Guen escreveu sobre o tempo,
temos a tentação de chamá-lo espace figé , espaço
congelado: uma imobilidade sem perspectivas, um
espaço como aparência.

A LOUCURA E AS ARQUITETURAS TOTAIS

Ao raiar da idade moderna, a loucura parece um resíduo


conceitual estranho, que não pode ser esclarecido ou
formalizado no discurso racional: como um elemento
espacialmente atópico. Na realidade, desde suas origens,
a história da loucura é a história de um fenômeno difícil
de localizar. Com a modernidade, o estudo da loucura
começa após ela ter sido desarraigada de seu contexto
de atribuição: o espaço social e familiar em que, até
aquele momento, havia morado. O alastramento da
funcionalização e das práticas de racionalização da
urbanística moderna coloca às margens tudo o que é
obscuro, incompreensível e não homologável (o louco
improdutivo, aliás, francamente perturbador). No mundo
dos conceitos claros e distintos da modernidade, não há
lugar para o obscuro e improdutivo desvario do louco.
Começa assim, como discurso de segurança social, o que
Foucault denominou a grande internação , muito antes
que a psiquiatria o assumisse como discurso médico.
Desse movimento de brusca reinclusão (do espaço do
céu, por meio do espaço do cérebro, ao espaço do
mundo) e de igualmente rápida expulsão (mediante sua
suspensão no manicômio), a loucura torna a propor à
psiquiatria, de modo agudo e premente, o problema do
espaço. E o coloca como em termos paradoxais, como
problema de difícil, se não impossível, solução. Nos
contextos arcaicos e tradicionais que antecedem o
nascimento da modernidade, a loucura era entendida
como um radical desvio de sentido. Nela variavam as
sobreposições de leituras da realidade, mas a visão que o
louco tinha do mundo não era menos verdadeira que a
do homem normal. Esse plano de compartilhamento do
sofrimento persiste ainda hoje em algumas tribos em
que, por exemplo, o sujeito “doente” é convidado a
sentar em círculo diante dos anciãos e do curandeiro (o
homem da medicina), sempre acompanhado de um vasto
número de representantes de seu grupo, de amigos e
parentes. Então, ele conta sua história, sua experiência
vivida; ouve as histórias dos outros, os mitos contados
pelos anciãos, em meio a cenas ritualizadas mediante
cantos. Ao final do encontro, o louco reinscreveu, com
seu “sentido”, a própria história dentro daquele grupo.
Seu relato, sua experiência vivida no mito, é desse modo
subtraído a um determinismo historicista e, em seguida,
compartilhado com os outros em seus aspectos mais
dilacerantes e dolorosos. É assim que se evita o caminho
– irreversivelmente desestruturador – que se estende em
direção ao fechamento autista. Essa mesma reaquisição
de um “sentido” comunicável dos fatos da própria vida,
sustentada pelo grupo a que se pertence, restitui à
própria vida aquele valor que, perdido, ameaçava sua
presença.
Da reflexão sobre a metáfora antiga do delírio
(descarrilamento do arado, a lira , fora do espaço do
sulco), podemos compreender – graças à identificação
dos sulcos traçados pela lira com as coordenadas
euclidianas da razão – a gradativa perda, no mundo
moderno, daqueles segmentos de terra entre os sulcos e
os espaços delirados (extrarracionais, em sentido
desviador e alternativo). A gradual redução, até o total
desaparecimento, por exemplo, dos espaços vazios entre
uma cidade e outra, as denominadas terras de ninguém
ou terras selvagens, onde cessava a vigência da lei. Para
o homem moderno, além da razão há a escuridão, o
abismo, o nada. Assim, se antes, no céu ou nos infernos,
existia um lugar (um espaço mental e cultural) destinado
ao louco, como, de resto, também existia terra entre os
sulcos e fora deles, hoje o louco é um homem que já não
tem pátria, um viajante sem rumo e sem história, e não
há mais nenhuma outra representação de espaços senão
aquela em que os não loucos vivem.
Com o planejamento, a centralização e a
burocratização da sociedade moderna, a concentração e
a homologação de grandes massas humanas, verifica-se
uma virada radical no conceito da loucura. De evento
desvinculado do sentido comum (embora dotado de um
sentido), é classificado como evento “patológico”,
totalmente desprovido de sentido: não razão,
antirracional, sem razão (déraison ). O lugar desse
acontecimento incompreensível localiza-se na abóbada
craniana. Esse gesto terá como consequência a
dissolução da experiência humana do mundo “normal”,
do sentido e da medida humanos. A criação e a
organização do Estado moderno (a forma histórica
transformada em “absoluto” que, junto com a construção
do eu, constitui a mais fúlgida e trágica criação do
homem) tornam, de fato, todos os espaços cada vez mais
incompatíveis com a livre circulação do louco. A terra,
como território, já não é res nullius , não mais território
selvagem, mas espaço funcional: de construção,
industrial, residencial. Assim, com a eliminação da
relação com o delírio e o delirante do âmbito das
relações possíveis, tem início um processo radical de
esvaziamento de sentido (do esvaziamento do espaço),
que culmina na assunção da racionalidade como
paradigma absoluto da vida humana. E a loucura,
configurando-se por antonomásia como antirrazão ,
torna-se o receptáculo de todo fragmento de sentido não
integrável, a temível ameaça para a vida do cidadão.
Com o advento da Revolução Industrial, a sociedade
moderna encarrega-se de construir, às margens da
cidade, os recipientes para colocar esses mesmos
resíduos. A passagem histórica da colocação do louco do
céu (metáfora de um espaço suprassensível e
inacessível) ao asylum (espaço não metafórico, mas
concreto e demarcável) cumpre-se. O hospital
psiquiátrico – templo da arquitetura moderna, não
somente cercado, mas também deslocalizado – é
construído nos últimos espaços ainda não urbanizados da
cidade, como medida de segurança dobrada (periferia
marginalizadora e alvenaria delimitadora). Na moderna
sociedade industrial, a vida humana real coincide cada
vez mais com a dos espaços urbanos. O espaço que
sobra é um espaço extraurbano, ou seja, o resíduo
daquela terra que noutros tempos se situava em vastas
terras entre uma cidade e outra: uma terra de ninguém,
o único lugar onde o manicômio podia surgir. Daquele
gesto, que designa um horizonte que vai muito além do
próprio destino da loucura, o manicômio representará,
dentro da cidade, incluído à cidade, um espaço interno
que captura o fora e o circunscreve com um muro.
Os fenômenos que seguem tal gesto não são
irrelevantes, e os efeitos fluirão, silenciosos, ao longo de
percursos ocultos, sob a crosta de superfície da cultura
do Ocidente. A descrição e a representação da
identidade humana serão radicalmente transformadas.
Desde sempre, com efeito, o sujeito (ou melhor, o que
resta do sujeito), para além da distinção entre sadio e
doente, espacializou-se no mundo. Nesse processo de
mundanização (no sentido que o sujeito é no mundo e
para o mundo), o mundo também se transforma para o
sujeito. Nessa contínua espacialização, a ideia do mundo
como espacialidade física dissolve-se e, com ela,
enfraquece ainda mais a relação com o outro. A rede ou
a trama das relações assume as características de uma
interação anárquica entre partículas, feita de choques,
orbitais caóticos de trajetórias erráticas. A tal ponto que
os próprios modelos da termodinâmica, da dinâmica
turbulenta dos fluidos, da entropia dos gases, parecem
mais idôneos, epistemologicamente, para configurar as
modalidades relacionais do plurissentido metropolitano,
conjunto de galáxias culturais, étnicas, emocionais. Os
limites de tamanha metamorfose sublevam os eixos
tradicionais de sentido, as instituições, as categorias, até
a dissolução da própria categoria de presença . A
decomposição da moldura espacial produz um efeito
dominó de toda uma série de peças e partes.
Binswanger e Minkowski são os primeiros a utilizar a
linguagem tradicional pertencente às categorias do
espaço e do tempo para descrever os modos da
espacialização e da temporalização da presença humana.
Devemos entender nesse sentido as tentativas
binswangerianas de forçar alguns conceitos e dimensões
do espaço – a altura, a base de apoio e a profundidade –
para a definição de atmosferas que, de outro modo,
seriam indefiníveis mediante as divisões propriamente
espaciais.
Como a pesquisa fenomenológica nos mostrou, é no
prefixo e- da palavra existir que a existência diz de si,
qualificando-se espacialmente. Literalmente, com efeito,
“existência” significa: vida que avança para fora (ex ) do
lugar onde jaz (sistere ). Aliás, a própria noção de
empatia leva a uma espécie de espacialização da
existência afetiva. Foi para onde o pensamento
fenomenológico e existencial se aventuraram,
introduzindo as noções de transcendência e de projeto .
Ambos os conceitos preveem um contexto espacial, pois
aludem e designam uma irreprimível ulterioridade, a
superação de um estágio por outro, sucessivo, até a
dispersão, entendida como perda, no não lugar, da
própria partitura espacial originária. No sentido dessa
dissolução do paradigma espacial estão a perspectiva de
Graumann, a horizontalidade de Herzog, a verticalidade e
horizontalidade de Binswanger, a transversalidade de
Zutt, o entre de Buber. Conceitos esses que nos projetam
imediatamente na área semântica da psicopatologia do
espaço vivido, na tematização das esferas
incandescentes da presença, além de toda concretude
espacial, e de modo totalmente outro que as tópicas
indicadas pelas várias metapsicologias psicanalíticas.
Nesse sentido, o espaço é reconstituído a partir de seu
esvaziamento, que apaga do espaço suas cifras de
conotabilidade e demarcabilidade, ainda demasiado
fisicalistas. Estamos muito além das famosas análises
simmelianas sobre a personalidade metropolitana e
sobre a intensificação de sua vida nervosa : a
experiência urbana causa desmedido alastramento da
vida perceptiva, numa progressão anfetamínica que
desarraiga o indivíduo da experiência real. A aposta em
jogo é uma metamorfose, um processo simétrico à
desmaterialização do espaço, à irreprimível subtração de
território e de experiência real, que desarticula as esferas
psíquicas já evolutivamente impróprias para suportar o
ritmo de contínuas acelerações.
Entre as mutações do espaço-objeto e as
transformações do próprio indivíduo, cada vez menos
capaz de suportar, com seus dispositivos de adaptação,
as dinâmicas da compressão temporal-espacia1 42 , abriu-
se uma tensão crescente. Um processo ao qual se segue
a radicalização de uma condição de desnorteamento
distraído e apático, em que a faculdade humana de estar
no mundo parece atrofiar-se, tornando unitária a ideia da
identidade a tópica, mais que utópica. O espaço, nesse
sentido, não tem mais nenhuma característica
dimensional: a tópico é tanto o espaço planetário quanto
a nossa psique. Ao transbordamento da cidade rumo à
metrópole, da metrópole rumo à megalópole e da
megalópole rumo a novos cinturões urbanos corresponde
o fim da identidade pensada como um si coeso, coerente
e contínuo.
A identidade moderna, construída no acúmulo
seletivo das experiências e na constante pretensão a
novos domínios, é neutralizada pela restrição das
fronteiras do mundo e do eu presumido que deveria
experimentá-los. O vínculo que soldava a relação entre o
eu unitário e a multiplicidade do real rompe-se
definitivamente. Nesse cenário, a identidade individual
torna-se o centro de mudanças radicais. O que resta da
identidade moderna é figura fragmentada, provisória. As
bases de “aço e cimento” que deveriam sustentá-la
descobrem-se incertas, oscilantes, flutuantes, mutantes.
A experiência do tempo fragmenta-se, e a distância entre
os ideais do eu e sua realização 43 torna-se desmedida. O
conceito de identidade, sua ilusão ideológica, topológica
e mitológica, que as linguagens da arte, da cultura e da
política nos entregaram, desaparece.

O ESPAÇO ERRANTE

Por diversos motivos, o conceito de espaço – num


horizonte que vai da filosofia à física, da geopolítica à
antropologia, da urbanística à economia – compartilha o
mesmo destino da modernidade. O que é o espaço é
questão aberta, não esclarecida: aliás, hoje se tornou
ainda mais complexa e indecisa. Ao que corresponde
essa categoria? Trata-se, talvez, de uma questão
territorial, geográfica, política, étnica? E o que significa
“espaço” num tempo em que as esferas jurídicas,
econômicas e políticas deixaram de coincidir?
Que haja tantos espaços diferentes (tantos quantos
os pontos de vista) é uma importante aquisição do século
XX . Com efeito, no século passado surgiram as ideias

mais penetrantes sobre a heterogeneidade do elemento


espacial contra a uniformidade de sua perspectiva, que
havia dominado o cenário nos séculos anteriores. Basta
pensar no “perspectivismo” de José Ortega y Gasset; no
desenvolvimento das geometrias não euclidianas de
Bernhard Riemann e Nikolay Lobatchevski; na teoria
geral da relatividade de Einstein; na espacialidade visual,
tátil e motora de Henry Poincaré; na biologia teórica de
Jacob von Uexkül; no “cubismo” de Picasso e Braque; na
mutabilidade das dimensões e das perspectivas da
consciência das obras literárias de Proust e Joyce etc.
Enfim, neste século surge o movimento de ideias que
questiona os diagramas ordenados, tornando a pôr em
jogo aquelas cartas que haviam orientado a cultura do
Ocidente. A abertura teórica para a proliferação de
espaços geométricos e físicos dissolve o conceito de
espaço único e uniforme, demonstrando que este nada
mais era que uma suposição e uma superstição sem
fundamento.
À dissolução do paradigma espacial corresponde o
emergir de uma multidão de espaços qualitativamente
diferentes. A cada espaço corresponde um diferente
ponto de vista, e nessa desmaterialização e
deslocalização a “presença” abstrai-se, deslocando-se
com respeito aos cânones habituais do corpo, até se
tornar experiência virtual. Metáfora disso é o borderline ,
a identidade atópica , a existência liminar , sem mais
onde , o gesto do estrangeiro que nos questiona o tempo
todo com sua própria presença. A aposta em jogo não é a
ideia de uma nova configuração ou delimitação do
espaço. É, ao contrário, o plano onde habitam a sensação
de pertencer, identificação, trânsitos, explorações. Enfim,
o pluriverso , que mantém unidos homens e coisas,
comunidades e povos, conhecimentos e linguagens; a
cifra oculta, o processo irrepresentável, que nos coloca
além de qualquer esquema conhecido.
Nesse espaço labiríntico, é preciso levar em
consideração o perder-se. As fronteiras habituais
evaporam. A ordem orgânica em que as experiências
estavam organizadas decompôs-se numa porção de
fragmentos inorgânicos, que não podem ser compostos.
Sob a pressão do “grande demais” e do “sempre novo”, a
experiência fez-se minúscula, precária, fragmentada. A
dissolução das ilusões progressistas e da ideia de uma
história de poderes salvíficos apenas acelerou o parto.
Três séculos de ilusões coletivistas, de pertinaz
deturpação da natureza e da antropologia humana, não
somente desfiguraram e deixaram à margem tudo o que
queriam redimir, mas deram um impulso poderoso a uma
reação oposta. Num mundo de aceleração incessante,
produziu-se um recuo para as raízes, as amarras seguras
de originárias identidades coletivas. A implosão das
unidades simbólico-fantasmáticas que sustentavam os
vínculos sociais, nas formas de uma diversidade sem
diferenças , tornou a trazer à luz, impetuosamente,
aquela necessidade, longamente negada, de identidades
ligadas aos lugares, de espaços de identificação, de
comunidades naturais e de pequenas dimensões. Essa
metamorfose tornou-se possível e foi sustentada pelas
transformações da tecnociência, pelo fluxo acelerado dos
eventos (e de sua desmaterialização) e por um
movimento oposto à sua unificação virtual em territórios
e culturas tão diferentes quanto distantes. Daqui origina-
se o recuo tranquilizador, de tantos indivíduos, aos
motivos da própria diferença, da própria identidade de
ficção, do próprio território, como possibilidade de
sustentar a angústia. Daqui surgem os saltos de
simplificação, as construções mitológicas e mitopoéticas,
os arraigamentos insulares, as improváveis Gemeinschaft
44
.
A viagem chega ao fim, e de todo modo esse não é o
lugar para aprofundarmos esse tema. Entretanto, temos
de dizer que o vaguear e o desnorteamento decerto são
lados sombrios do sentir-se em casa , do arraigamento:
no habitar, de fato, o vínculo entre o familiar e o
estranho se realiza. Todavia, o percurso, o
desarraigamento, o desnorteamento não podem ser
reduzidos à mera consequência de uma hybris moderna,
como o simples contrapasso por uma audácia e uma
arrogância prometeicas. Não são experiências
extremadas: são o horizonte no qual desde sempre o
espetáculo da origem do homem está inscrito. Agora que
da modernidade e de suas fúlgidas construções – de
sujeito e de estado – restam fragmentos flutuantes;
agora que as bússolas e as velhas rotas depuseram suas
pretensões; agora que não há mais mensurações
utilizáveis nem metas preestabelecidas onde ancorar, o
sentido da presença humana no mundo reaparece em
sua natureza originária. Inscrita na própria viagem.

1 Asas do desejo , dir. Wim Wenders, Alemanha: 1987, 128 min.

2 Walter Benjamin, Sul concetto di storia , Torino: Einaudi, 1997. Benjamin


aventurou-se aqui na interpretação de uma pintura de Klee. Uma
poderosa alegoria é o conceito fundamental das teses sobre a história de
Benjamin: o Anjo da história. Figura estranha à teologia hebraica e cristã,
à qual Benjamin entrega – como escrevem Gianfranco Bonola e Michele
Ranchetti na Introdução – “[...] a tarefa de aludir à complexidade última
do problema da história e indicar – ao assinalar a discrasia na percepção
dos fenômenos – o inevitável alcance metafísico. Com efeito, ali onde os
homens enxergam uma sucessão de eventos, o anjo só enxerga um
amontoado de ruínas. [...] Na intuição de Benjamin, o anjo da história
sempre está enxergando ruínas, até quando, aos olhos humanos, revela-
se apenas a normalidade do devir histórico. [...] À melancolia que as
teses engendram no meio do caminho, provocada por compartilharmos o
olhar do anjo, inspirada, portanto, pela visão das incessantes ruínas (essa
visão, todavia, dá-se com o anjo, consciente da redenção; sendo assim,
ela é mitigada pela esperança), parece seguir, no final, aquela melancolia
que, mais niilista, surge antes da contemplação do quid infinitamente
pequeno representado pela vicissitude humana diante do pano de fundo
dos tempos cósmicos; abandona-se, portanto, à ideia da insensatez da
história, e então nem pensa mais no fim e na aniquilação da imensidão
indecifrável do todo. Em analogia com o último escrito de Blanqui,
L’Eternité par le astres , meditação amarga e de renúncia política,
Benjamin também pareceria negociar uma rendição política diante do
espetáculo vitorioso do infinito. Ou, na melhor das hipóteses, com
estoicismo materialista repudia as tentações de qualquer perspectiva
consoladora, apontado para as enigmáticas estrelas. Esse seria, de fato, o
único resultado possível e coerente no sentido da imanência, se
Benjamin, até aquele momento, não tivesse se prodigalizado com
tenacidade para alcançar a integração do teológico na visão materialista
da história” (pp. 17-9).

3 G. Bocchi e M. Ceruti, La sfida della complessità , Milano: Feltrinelli, 1985.

4 Guido Martinotti, Metropoli: la nuova morfologia sociale della città ,


Bologna: Il Mulino, 1993.

5 Tiziana Villani, “Metamorfosi metropolitane”, in: Michel Foucault,


Biopolitica e territorio , Milano: Millepiani, 1996.

6 Idem , “Atena Cyborg (i luoghi non-luoghi del neutro)”, in: Michel Foucault,
Eterotopia , Milano: Millepiani, 1994.

7 Mike Davis, Geografie della paura , trad. Giancarlo Carlotti, Milano:


Feltrinelli, 1999. Retomando a análise sobre Los Angeles, metrópole pós-
moderna por excelência, em La città di quarzo , Roma: Il Manifesto, 1993,
o autor esclarece as consequências culturais, ecológicas e políticas da
urbanística moderna. Derrubando as análises tradicionais sobre a cidade,
Davis volta a trazer à baila as gigantescas contradições da megalópole
contemporânea, que fazem de Los Angeles um grande e incandescente
laboratório: lugar mítico do imaginário e epicentro de revoltas raciais;
símbolo da indústria de alta tecnologia e campo de experimentação da
violência das gangues juvenis; lugar de experimentação de novas
linguagens interculturais e do apartheid difuso; a cidade de Hollywood e o
sentimento disseminado de eminente desastre ecológico.

8 Eleonora Fiorani, “La crisi della territorialità e dell’appartenenza”, in:


Eleonora Fiorani et al. , Orizzonti della geofilosofia , Bologna: Il Mulino,
2000, p. 89.

9 “A Postdamer Platz deve estar em algum lugar por aqui. Mas não consigo
encontrá-la, não consigo mais me orientar” (Curt Bois, em Asas do desejo
, dir. Wim Wenders, Alemanha, 1987).
10 Mario Perniola, Il sex appeal dell’inorganico , Torino: Einaudi, 1994. O fio
condutor desse trabalho é a crítica radical e premente à concepção
orgânica do espaço. “A arquitetura dirige a própria atenção à paisagem
como verdadeira protagonista da experiência espacial. À diferença do
espetáculo, que implica a existência de um olho que o observa, a noção
de paisagem extrai, de sua proveniência geográfica, uma
impersonalidade que dispensa totalmente o ponto de vista subjetivo. [...]
Já não é o homem a sentir a paisagem, porque ele próprio é parte dela.
Tal inserção da paisagem, no entanto, não deve ser entendida como
pressuposto objetivante, típico da abordagem cientificista da geografia
clássica e sistêmica, que ignora a dimensão vivida da experiência
espacial. O fato de que o homem deve ser posto no interior e não no
exterior é um dado que emerge antes da vida diária do que da
arquitetura. As pessoas não pertencem mais a si próprias, mas ao lugar
em que se movem: elas são elementos móveis de ambientes aos quais
podem ser acrescentadas ou dos quais podem ser retiradas sem que o
ambiente mude essencialmente. Os corpos humanos também são parte
da arquitetura, com o mesmo atributo que as casas, os bosques ou as
montanhas”.

11 Louis Dumont, Una prospettiva antropologica sull’ideologia moderna ,


Milano: Adelphi, 1993.

12 Georg Simmel, “L’individuo y la libertà”, in: La legge individuale ed altri


saggi , trad. G. Barbolini, Parma: Pratiche Editrice, 1995.

13 Alfredo Mela, Sociologia della città , Roma: Il Pensiero Scientifico, 1996.

14 Franco La Cecla, Perdersi: l’uomo senza ambiente , Roma-Bari: Laterza,


1995, p. 31.

15 Idem , ibidem , p. 33.

16 R. Evans, “Il contagio dell’immortalità: casa e famiglia nella Londra


dell’Ottocento”, in: G. Teyssot e P. Morachiello (orgs.), Le macchine
imperfette , Roma: Il Pensiero Scientifico, 1980.

17 Ildefonso Cerdà, Teoria generale dell’urbanizzazione , Milano: Jaca Book,


1985.
18 Enzo Scandurra, Città del terzo millennio , Molfetta: Meridiana, 1997, p.
74.

19 Le Corbusier, Proposte di urbanistica , Milano: Zanichelli, 1967.

20 O zoneamento (zoning ) é o instrumento principal do planejamento para


administrar e regular o crescimento da cidade. Concebida como uma
máquina construída por partes, suas peças são projetadas e definidas na
prancha, designando para cada porção de território um destino de
utilização específico. Assim, vão-se acrescentando peças a outras peças,
numa lógica de linha de montagem, em que as peças da cidade são
encadeadas por aquele sistema de comunicação que é a rede viária.

21 Mario Perniola, II sex appeal dell’inorganico , Torino: Einaudi, 1994.

22 Tiziana Villani, “Metamorfosi metropolitane”, in: Michel Foucault,


Biopolitica e territorio , Milano: Millepiani, 1996, p. 47.

23 A respeito desse tema, remeto à leitura de Friedrich A. von Hayek,


L’abuso della ragione , trad. R. Pavetto, Soveria Mannelli, Rubettino, 1994.
Ele reconhece na filosofia da École Polytechnique uma fonte da hybris
cientificista, a pretensão voltada ao planejamento e novo plasmar da vida
social em sua totalidade. Na segunda parte do texto, a crítica ao racional-
construtivismo é premente. O autor critica a arrogância do engenheiro
puro – pouco importa se se trata de fato de um engenheiro, ou arquiteto,
ou urbanista, ou cientista social – que não consegue encontrar sentido
nenhum no que não é resultado de um desenho deliberado, de uma
adoração pela organização e pela prática da engenharia, de uma
predileção estética por tudo aquilo que é construído, em detrimento do
que emerge de uma ordem espontânea.

24 Mike Davis, Geografie della paura , Milano: Feltrinelli, 1999. Do mesmo


autor, La città di quarzo , Roma: Il Manifesto, 1993. Dois mapas
extraordinários do planeta Los Angeles: o lugar mítico da metrópole pós-
moderna, o prisma em que se despedaçam as mil condições da
metrópole contemporânea.

25 Saskia Sassen, Le città nell’economia globale , trad. Nanni Negro,


Bologna: Il Mulino, 1997.
26 Rosario Pavia, Le paure dell’urbanistica , Genova: Costa & Nolan, 1997.

27 Rudolf Otto, Il sacro , trad. E. Bonaiuti, Milano: Feltrinelli, 1966.

28 Essa oscilação dialética do sacro com respeito ao espaço evidencia-se no


confronto entre o mundo bíblico e outros mundos religiosos.

29 René Girard, La violenza e il sacro , trad. Fabio Berti, Milano: Adelphi,


1980, pp. 445-6.

30 Idem , ibidem , p. 444.

31 Claudio Magris. “Andiamo oltre il pensiero debole”. Liberal , n. 29, 1997.

32 Enquanto, como dizíamos anteriormente, o tempo, ao contrário, desde


sempre representou um predicado interior, em oposição ao espaço, como
estrutura do exterior. Com efeito, historicamente, quando se tratou de
reivindicar a interioridade do tempo com relação à exterioridade do
espaço, o protesto dos humanistas voltou-se contra a utilização e a
abordagem científica ao conceito de tempo. Bergson, por exemplo, foi um
dos primeiros a questionar a abordagem positivista que tinha um
conceito espacializado do tempo. Já Aristóteles, ao falar do tempo,
definia-o em relação ao movimento , isto é, justamente como ordem do
movimento segundo o antes e o depois . Obviamente, vincular tempo e
movimento significa necessariamente vincular tempo e espaço, porque o
movimento de uma coisa qualquer só pode se dar no espaço. E mais:
num espaço exterior com relação ao observador, de modo que o próprio
observador possa medir, por exemplo, o intervalo de tempo delta T
decorrido entre os dois instantes T = 0 e T = 1, ou então T = 1 e T = 2
etc. De resto, a teoria einsteiniana da relatividade retomou esse conceito
do tempo espacializado (ou seja, exteriorizado) porque chega a definir o
próprio tempo como a quarta dimensão do espaço e levantar a hipótese
do conceito de cronótopo. Essas considerações nos lembram como,
tradicionalmente – isto é, antes da reflexão fenomenológica –, o espaço
sempre foi definido como um milieu exterior no qual se desenrola a nossa
existência física. A elaboração psicopatológica (clínica) moderna, ao
contrário, com base na tradição fenomenológica, reivindica a existência
de um espaço interior, procurando ampliar, concomitantemente, o
exterior em direção ao interior da experiência daquilo que
tradicionalmente se entende como espaço geométrico, constituindo-o,
antropologicamente, como espaço vivido (gelebte Raum , espace vécu ).
A reflexão kantiana foi a primeira, nessa linha, a interiorizar o espaço.
Esse já foi um passo, por si, revolucionário, porque se tratava de colocar
no interior algo grosseiramente pertencente ao exterior, realizando uma
contaminação inicial de setores. Entretanto, o espaço kantiano ainda é
um espaço categorial , uma forma pura e a priori do intelecto humano,
imprescindível organizador do conhecimento. O espaço vivido, ao
contrário, é absolutamente outra coisa, porque não concerne tanto a uma
modalidade cognoscitiva do real, mas sim a uma deformação perceptiva
do espaço “real”, à redefinição, em chave habitacional, do espaço
ocupado pela presença no mundo.

33 Nesse sentido, para além do espaço atípico, ou seja, aquele próximo da


esfera perceptiva, também o espaço subatômico e o espaço cósmico,
vale dizer, o espaço do infinitamente pequeno e o espaço do
infinitamente grande, podem ter sua própria representação na
experiência vivida humana. Ainda que, como dizíamos, essas dimensões
não sejam imediatamente acessíveis à sensibilidade ordinária, isto é, a
uma sensibilidade tecnologicamente não potencializada: mesmo o
homem mais ingênuo, por exemplo, faz, dentro de si, do seu jeito, uma
representação (Vorstellung ) do espaço cósmico e do espaço molecular.
Isso basta, no plano da experiência, para poder dizer que essas
dimensões, de algum modo, são vividas, isto é, colhidas por uma
intencionalidade subjetivante e incorporante, e ambiguamente, de uma
só vez, deslocadora.

34 Michel Foucault, Eterotopia: luoghi e non luoghi metropolitani , Milano:


Millepiani, 1994, pp. 12-3.

35 Michel Serres, “Discorso e percorso”, in: Claude Lévy-Strauss (org.),


L’identità , Palermo: Sellerio, 1980, pp. 30-1.

36 Karl Jaspers, Psicopatologia generale , Roma: Il Pensiero Scientifico, 1971,


p. 197.

37 Sobre esse tema, ver a extraordinária obra de Merleau-Ponty,


Phenomenologie de la perception , Paris: Payot, 1945.
38 Nessa perspectiva, gostaríamos de avançar para o termo heideggeriano
Zuhandenheit , justamente nesse sentido: a manualidade, que o conceito
espaço revestiu na cultura ocidental.

39 O estudo da relação que se estabelece entre o sujeito da percepção e o


fundo que o define foi realizado, nos primórdios do século XX , por um
grupo de psicólogos. Max Wetheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka foram
os fundadores da que foi definida Psicologia da Gestalt , uma perspectiva
teórica na qual se elaboravam as leis que explicavam a organização da
percepção como enredo do campo de fundo e da figura, em que esta
prevalecia nas dinâmicas perceptivas. Oposta à teoria da percepção da
associação – em que as percepções complexas são constituídas por
instâncias simples e discretas –, para a Gestalt a percepção concerne ao
conjunto e não às partes separadas.

40 Na verdade, a análise de pacientes histéricos prestou-se muito bem para


a representação bi, tri ou até mesmo pluridimensional dos campos
psíquicos, já que elas viviam e agiam como partes descontínuas de sua
vida psíquica. Com a psicanálise, tem início o processo de dissolução do
espaço como lugar monadista e absoluto, ocupado pela evidência certa e
indubitável das res cogitans . Recentemente a abordagem cognitivista
recuperou esse conceito psicanalítico da consciência como entidade
descontínua (poderíamos dizer, portanto, espacializada, em relação
contrária à da consciência fenomenológica clássica, que é uma
consciência temporalizada, fluente e contínua, sendo fundamentalmente
duração, duração vivida, durée vécu ). Os termos da psicopatologia
francesa são, nesse âmbito, iluminantes: clivage , désagrégation ,
dédoublement . O próprio conceito de automatismo de Clerambault prevê
a representação de uma repartição interna dentro da qual se organizam
áreas de passividade e áreas de atividade, áreas de influência e áreas de
sujeição, áreas de exterioridade e áreas de interioridade. Segundo Liotti
(1994), o espectro dissociativo, em psicopatologia, é aquele no qual
podem-se encontrar, como num gradiente, todos os estados da
consciência descontínua, que vão desde os mais frequentes das situações
de caráter histérico (fugas, amnésias) até os menos frequentes, mas não
por isso ausentes, como o distúrbio de personalidade múltipla.O conceito
de desassociação (dissociation ) ao qual essa abordagem se refere é o de
Janet, não o de Bleuler. A diferença entre os dois conceitos pode ser
colhida plenamente no termo inglês splitting e no alemão Spaltung .

41 A loucura é, antes, uma visão vital e dinâmica, derivação, a -topia, u -


topia, variação, fuga, ex -centricidade, como também, por vezes, é
cristalização, liquefação, obstrução, imobilidade. Hoje não há mais o
enorme compartimento estanque do manicômio. O espaço da psiquiatria
parece despedaçado; o da loucura, deformado por sua nebulização
química. A fenomenologia do espaço vivido, a despeito de tudo, ainda
pode fornecer chaves eficazes para o acesso às dimensões clínicas.
Mesmo o espaço domiciliar, por exemplo, é um espaço incrivelmente
diferente do espaço ambulatorial, ou do de uma internação psiquiátrica
hospitalar. Uma coisa, por exemplo, é ver o paciente, não raro
acompanhado por terceiros que relatam sua história e a história de seus
movimentos no espaço, paciente frequentemente sedado ou, de todo
modo, naquele momento, entregue à imobilidade de seu espaço de
observação, e coisa totalmente diferente é ver o mesmo paciente em sua
própria casa, enquanto, em primeira pessoa, vai agindo o próprio
comportamento delirante e alucinatório.

42 David Harvey, La crisi della modernità , Milano: Il Saggiatore, 1993. Ver


também L’esperienza urbana. Metropoli e trasformazioni social , Milano: Il
Saggiatore, 1998.

43 Remo Bodei, La filosofia del Novecento , Roma: Donzelli, 1997.

44 Idem , Dimensioni etiche e politiche della comunicazione , n. 4, Bologna:


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Sobre o autor

M auro Maldonato é médico psiquiatra e professor de


Psicologia Geral na Universitá della Basilicata. Estudou na
Universidade La Sapienza (Roma), em Federico II
(Nápoles), na London School of Economics (Londres) e na
École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris).
Foi professor visitante na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP , na Universidade de São
Paulo – USP e na Duke University (Carolina do Norte - EUA ).
Dirige o Cognitive Science Studies for the Research
Group, na Duke University. Diretor científico da Settimana
Internazionale della Ricerca, é autor e curador de livros e
artigos científicos publicados em diversos idiomas.
No Brasil, é colaborador das revistas Scientific
American e Mente e Cérebro , além de pesquisador
convidado do Núcleo de Estudos Africanos do Laboratório
de Teoria da História do Departamento de História da USP .
Recebeu o prêmio Vasco Prado para as Artes e as
Ciências, promovido pela Universidade de Passo Fundo,
durante a XI Jornada Nacional de Literatura, em 2005. Em
2012, foi agraciado com o prêmio internacional
Conference on Time, pela Universidade dos Emirados
Árabes.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional

Abram Szajman

Diretor Regional

Danilo Santos de Miranda

Conselho Editorial

Ivan Giannini

Joel Naimayer Padula

Luiz Deoclécio Massaro Galina

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Edições Sesc São Paulo

Gerente Marcos Lepiscopo

Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre

Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni

Produção editorial Equipe Edições Sesc

Coordenação gráfica Katia Verissimo

Produção gráfica Fabio Pinotti

Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

Colaboradores desta edição Marta Colabone

Consultoria editorial Nurimar Falci

Tradução Roberta Barni e Luciano Loprete

Preparação Fernanda Almeida Umile

Revisão Zareth Serviços / Thereza Pozzoli, Beatriz de Freitas Moreira


Capa Warrakloureiro

Imagem de capa Rob Atkins/Getty Images

Diagramação Neili Dal Rovere

Produção do arquivo ePub fkeditorial

1ª edição 2001, Peirópolis

M2933s

Maldonato, Mauro

A subversão do ser: identidade, mundo, tempo, espaço: fenomenologia de uma mutação /

Mauro Maldonato; Tradução de Luciano Loprete; Roberta Barni. – 2. ed. – São Paulo: Edições Sesc

São Paulo, 2015 –

4.018 Kb ; e-PUB.

ISBN 978-85-7995-110-7 (e-book)

Inclui bibliografia

1. Ensaios. 2. Filosofia. 3. Epistemologia. 4. Identidade. I. Título. II. Loprete, Luciano. III. Barni,

Roberta.

CDD 104

© 2015 Edições Sesc São Paulo

© 2015 Mauro Maldonato

Todos os direitos reservados

Edições Sesc São Paulo

Rua Cantagalo, 74 - 13º/14º andar

03319-000 - São Paulo SP Brasil

Tel. 55 11 2227-6500

edicoes@edicoes.sescsp.org.br

sescsp.org.br/edicoes
Na base do farol não há luz
Maldonato, Mauro
9788569298861
376 páginas

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Ao propor um diálogo entre a tradição do pensamento


europeu e as reflexões de artistas e intelectuais
brasileiros, este livro permite ao leitor ampliar sua
perspectiva a respeito dos efeitos da fragmentação do
sujeito no mundo e da necessidade de construção de
novos valores para a convivência com as diferenças. Para
isso, Mauro Maldonato e Danilo Santos de Miranda
abordam assuntos candentes da contemporaneidade
como política, cultura, educação, ética, liberdade e
alteridade.

Na base do farol não há luz contribui para uma indagação


sobre o presente, a partir de aspectos como os novos
papéis da história, do cidadão e do estado democrático;
as relações entre a racionalidade, a moral e as emoções;
a banalização da educação diante dos excessos da
sociedade da informação; a função da intuição na
construção do conhecimento e do pensamento científico;
a consciência humana, o inconsciente e os processos de
criação; o futuro e os riscos para a liberdade.

Trata-se de um convite a manter viva a chama do


inconformismo, motor que move o homem, em busca de
um porvir que não venha a assombrá-lo.

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Raízes Errantes
Maldonato, Mauro
9788579951121
192 páginas

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Raízes errantes constitui um poderoso antídoto contra a


celeridade dos tempos modernos. Trata-se - segundo o
filósofo Edgar Morin, que introduz o leitor à obra por meio
de um prefácio alentado e luminoso - de um &quot;diário
poético-reflexivo de viagens por entre ideias, paixões,
pesquisas, cujas passagens desde logo revelam os traços
intelectuais de um estudioso temperado ao fogo de uma
longa experiência clínica e de uma paixão aguçada pela
insatisfação com todo fechamento e rigidez do
pensamento&quot;. A obra é organizada em torno de três
temas básicos - errâncias, fronteiras e incertezas - que se
espraiam por outros assuntos correlatos e explodem em
uma miríade de interrogações filosóficas e poéticas,
dispostas a conduzir o leitor pela tão antiga e ao mesmo
tempo ainda tão fascinante aventura do pensamento
humano.

Vencedor do Prêmio Jabuti 2015 na categoria Capa.

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Passagens de tempo
Maldonato, Mauro
9788579951138
192 páginas

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Uma viagem pelo conceito de tempo, permeada por


desafios e questionamentos, na tentativa de refletir
sobre este instigante e intangível enigma. Fruto de uma
aprofundada pesquisa e de sua própria vivência como
médico psiquiatra, professor de psicologia e filósofo, o
autor apresenta um ensaio em que dialogam filosofia,
psicologia, ciência, literatura e outros campos do saber.
Com uma linguagem permeada de prosa e poesia,
Maldonato tece considerações sobre o tempo, os
indivíduos e o mundo, além de apresentar ao leitor uma
densa bibliografia sobre o tema.

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Da mesma matéria que os
sonhos
Maldonato, Mauro
9788579951114
188 páginas

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Concebido para divulgar ao grande público as ideias que


o psiquiatra e pensador italiano Mauro Maldonato já
havia desenvolvido em artigos e ensaios publicados em
revistas como Scientific Americane Mente & Cérebro,
este livro constitui uma poderosa radiografia das
tendências e do debate em andamento nas
neurociências contemporâneas. Os dezesseis textos da
coletânea trazem o bem-vindo confronto entre ciência e
filosofia habilmente manejado pelo autor, que conclui:
&quot;é preciso reconhecer serenamente que, apesar
dos prodigiosos resultados experimentais, ainda não
estamos em condições de compreender fenômenos como
a percepção, a consciência, a decisão, a conscientização
consciente, o livre-arbítrio e assim por diante&quot;. O
livro não somente ecoa, em seu título, a fala de Próspero
em A tempestade, de William Shakespeare, seus textos
são escritos como se fossem contas de um grande colar
chamado ciência, atadas pelo fio de uma fecunda
imaginação, tão habilmente cultivada pelo autor.

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Mutações: o futuro não é mais
o que era
Novaes, Adauto
9788579951084
520 páginas

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Esta obra propõe uma investigação sobre a percepção do


tempo na contemporaneidade a partir de inspirações
filosóficas de pensadores clássicos. Seus ensaios
apresentam uma breve incursão sobre a natureza do
tempo, analisam as relações que os homens
estabeleceram com o futuro ao longo da história, e as
que podemos estabelecer hoje com o futuro quando os
ideais revolucionários e a própria ideia de esperança
estão em baixa e quando a tecnociência, a biotecnologia
e a revolução digital pretendem dar resposta a tudo e a
tudo prever.

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