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* Conferência pronunciada na Universidade de Indiana, Bloomington,
[ E.U.A., a 15.10.1971.
ACOPLAGEM NO ESPAÇO
CASTRO ALVES, PROTOMODERNO OU APENAS ROMÂNTICO?
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tais como o seu contagiante civismo, sua adesão à admirável caUSa
abÓlição do cativeiro negro no Brasil, seu inquebrantável fervor . a reifieação da imagem - exultante, dir-se-ia COm realizar-
dim - r" ' se na pura
mocrático. en~~ ISlca - atlnge um àescarnamento plástico, uma concreção
Em conseqüência desse enfoque, bem intencionado e generoso fenomeruca que exibem 't d . .
" mUI o a econOlDla expresSlva da dicção ho-
mas de todo insatisfatório, a menção às suas páginas conota quase ... dierna. EIs-nos face a face com wna metáfora complexa, a desenca-
automaticamente ret6rica farfalhuda, arroubos patri6ticos, inconti- . dear um processo perceptivo múltiplo e simultâneo A ru'''d
'A' • • • .. a expe-
nência verbal, perorações em registro vocal máximo. Se, de fato, não ~encIa auditlva deflagrada pela fanfarra se prolonga, Já animizada, na
lograsse ele transmitir-nos, a nós, indivíduos da era atômica, a n'io ser mcontroláv~l sucessividade dos ecos que se estilhaçam na visualid d
d d' . a e
I a alta voltagem de seu temperamento oratório e os fogos-de-bengala e na ~gos~ a .e prumática dos penedos. Esses planos sensoriais he-
I do seu virtuosismo verbal, não' nos sobejaria outro recurso senão re- ter6clitos sao mtegrados num ato perceptivo totalizante
turalme t à dinamiza - . ' graças, na-
I êusar-lhe qualquer possibilidade de induzir em n6s uma corrente em-
pática, de entreter conosco um diálogo fecundo.
. n e,. _ çao operada pela magIStral figuração implícita
da matilha d~ caes que, a ladrar, se precipita vertente abaixo.
Apresso-me, todavia, a frisar que não desejo ser tido por alguém
II
O poeta, como que inebriado com o próprio êxito, glosa o mesmo
que, inconformado com uma suposta ingratidão da crítica para COm. . no ~ma1 de. "Remorso", numa estância, porém, menos bem su-
Castro Alves, pretende a todo o custo apresentá-lo como um pioneiro cedida, maIS subIDISsa à convenção.
da poesia moderna, retificando-lhe, assim, por um expediente de suo.
percompensação, presumível injustiça de que tenha sido vítima. Não . Tu não vês? Qual matilha esfaimada
se coaduna com nosso feitio a postura de reparador de ofensas. Não Lá dos morros por sobre a quebrada'
Ladra o eco gritando: quem és? '
nos encontramos a serviço de nenhuma cruzada.
Onde vais, cavaleiro maldito?
Foi tão-s6 o reexame vigilante e objetivo dos textos do poeta Mesmo oculto nos véus do inímito
abolicionista que esporeou em nós o intuito, não apenas de aflorar Tua sombra te morde nos pés2 •
melhor a sua mestria artesanal, como, também, de aventurar que ela se
conduz, nos momentos 6timos da perícia criadora, na linha de uma ~eleva, contudo, salientar aí o ins6lito uso do verbo "morder"
sensibilidade poética que prenuncia a dicção contemporânea. refendo ~ ".s~mbra", o que confere à linha uma qualidade tersa, so~
Haverá de escandalizar muita gente o asserto de que, em mais de bremodo mClSIVa.
um poema de Castro Alves, vemos satisfeitos imperativos que, em Teríamos de aguardar até o advento de GuinIarães Rosa nos dias
tom de reivinàicação, Oswald de Andrade propõe, por exemplo, no p:esent~s para encontrar quem rivalizasse com Castro Alves na tradu-
"Manifesto da Poesia Pau Brasil". ça~ d~ lITefreá~el úupeto da energia instintiva, da exultação dos belos
COm efeito, a "síntese, o eqUÍhôrio, a invenção, a surpresa, uma . ~aIS na plerutude da saúde e. da liberdade, ou das insopitáveis for-
nova perspectiva, uma nova escala" do preceituário do rabelaisiano ... ças a n~tureza. O que o aprOXIma da maneira moderna é a dinâmica ..
autor de Marco Zero já se acham, até certo ponto in nuce, na expres- d; sua . linguagem musculosa, a velocidade da comunicaç~-;;:-;
são de, Castro Alves, em especial ao nível da fusão metaf6rica, da- SlDtese mt~~ativa dos perce..p.tQg dos correlatos imagéticps.
quela incomparável sagacidade em operar a soldagem da célula fotoe- 1
Tudo ISSO se confirDIa, de modo peno . .
e conVIncente, em versos--
COmo
létrica da imagem, façanha em que ninguém lhe leva a palma.
A ignição instantânea da emoção, a velocidade do circuito lírico,
Os poldros soltos - retesando as curvas _
a eficácia da comunicação s6 cinqüenta anos depois viriam a ser acei-
Ao galope agitando as longas crinas,
tas como coisa corriqueira no idioma modernista, mas, por surpreen- Rasgam alegres - relinchando aos ventos _
dente que pareça, já se divisam lá em algumas estrofes do meninão De tua vaga os turbilhões barrentoS3.
genial. que se consumiu por inteiro nas labaredas da poesia.
No famoso.quinteto de "O H6spede", de Espwnas FluÍuantes, ~sse pass~ insere-se numa vigorosa ap6strofe ao "Rio soberbo"
Teu cavalo nitrindo na savana -. o Sao FrancISCO - e fixa (melhor se diria "fiilma"...) umamalhada de
Lambe as úmidas gramas em meus dedos. Jovens animais a cruzar estrepitosamente a artéria líquida. Os mesmos
Quando a fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha
Ladrando pela ponta dos penedos1. .~ J~ AI:nansur H~ddad, São Paulo, Companhia Editora Nacional, [1966], p.
. 3. As CltaÇOes subsequentes procederão dessa edição.
1. Cf. ANTÔNIO DE CASTRO ALVES, Poesias Completas, OrganizaçãO 2. Idem, ibidem, p. 158.
3. Id., ibid., p. 249,adinit.
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traços acham-se presentes à bela sextilha de ··Sub. tegmine fagi", que E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas,
Caem de horror no abismo estateladas•••5
diz:
. Nas paisagens desmesuradas que se. descerram ao.fiat demiúrgico
A alma fica melhor no descampado•••
de Castro Alves, vale acentuar seu gosto pelos alcantis ossudos, seu
O pensamento indômito, arrojado, .
Galopa no sertão, pendor pelas clivagens violentas, ríspidas arestas, cortes atrevidos nas
; Qual nas estepes o corcel fogoso rochas, o que nos traz à mente os transfundos inesquecíveis das telas
Relincha e parte turbulento, estoso, de Mantegna.. Esses resultados são atingidos mediante um ~~o
Solta a crina ao tufã04. ~ e SUCillto que, por sua desenvoltura, parece fruto do imprO-
viso, porém a uma mirada mais atenta se revela produto de genUÚla
o rasgo da .audácia conceptiva, o verbo viril e elástico, a aderên- . perícia artesanal.
cia cabal da película imagética à nesga circunscrita da realidade são
Não é assim desca&ido falar-se nos valores plásticos da poesia
atributos por assim dizer inerentes ao seu estilo de plasmar a lingua-
que ora nos ocupa, em particular na sua esculturalidade. Traços
gem. Para afastar qualquer dúvida, basta considerar o magnífico sí-
outros, não obstante, se poderiam respigar sem illcorrer em nenhuma
mile do 'caudal do São Francisco, a~ despenhar-se na cachoeira
demasia. Lembro-me de ter, certa vez, aventado ao professor Heitor
Paulo Afonso, figurada como uma colossal cobra, e o assoalhado de
Martins, meio em tom_de galhofa, mas, de fato, veiculando um intento
lajes do terraço a pique, como um touro colhido no bote do ofIdio.
sério, a necessidade de estudar-se a meteorologia lírica do irresistível
Quando no lodo fértil das paragens bardo, com Lllcursôes na sismologia correspondente.
Onde o Paraguaçu rola profundo, Há, na verdade, em seus versos belíssimos efeitos de levitação de
O vennelho novilho nas pastagens vapores, volatilizações, llÚgrações de nevoeiros, matizamento de arco-
Come os caniços do torrão fecundo;
Inquieto ele aspira nas bafagens
íris, opalescência de arrebóis, irisações de garoas. E quem, como ele,
rasga no céu de chumbo a fenda coleante do relâmpago, ou sabe insti-
r
Da negra suc'ruiuba o cheiro imundo •••.
Mas já tarde••• silvando o monstro voa. •• gar a "briga colossal dos elementos"?
E o novilho preado os areS troa! O_enquadramento do es~ço, com o escalonamento da proporção
dos objetos segundo um extraordinário senso de perspectiva, chegan-
Então doido de dor, sânie babando,
ãoaconstruir linhas de fuga quase alucinantes, tudo sob o signo de
Co'a serpente no dolSO parte o touro•••
Aos bramidos oS vales vão clamando,
uma visualidade avassaladora, aproxima, também, a técnica de Castro
Fogem as aves em sentido choro_o Alves da arte representativa do nosso tempo, par excellence: o cine-
Mas slibito ela às águas o arrastando ma. Claro está que sua medular vocação para traduzir seqüências di-
Contrai-se para o negro sorvedouro ••• nâmicas é responsável, em grande parte, por tal singularidade.
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, Muitas vezes ele semelha um operador cinematográfico, ávido
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.
de Ílsgar takes memoráveis. Não é, porventura, de legítima "tomada
Assim dir-se-ia que a caudal gigante IJ<U.I0râmica" a impressão que resulia da seguinte estrofe de "Vozes
- Larga sucuruiuba do infinito- d' Africa"?
Co'as escamas das ondas coruscante
Ferrara o negro touro de granito!.•• De Tebas nas colunas derrocadas
Hórrido, insano, triste, lacerante As cegonhas espiam debruçadas
Sobe do abismo um pavoroso grito••• O horizonte sem Ílm •••
E medonha a suar a rocha brava Onde branqueja a caravana errante,
As pontas negras na serpente crava!••• E Q camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim. •• 6
Dilacerado, o rio espadanando
Chama as águas da extrema do deserto ••• Notem-se, ademais, a elegante monumentalidade de um fotogra-
Atropela-se, empina; espuma o bando._ ma como esse e o poder que tinha o poeta de infundir majestade a uma
E em massa rui no precipfcio aberto._
cena. Desenvolvera o dito recurso a tão alto grau que, muitas vezes,
Das grÜtas nas cavernas estourando
O coro dos trovões travam concerto•••
5. Id., ibid., pp. 249 e s.
4. Id., ibid., p. 27.
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. em que, ao lado da expansão quase ilimitada do espaço, o poeta, ante- . 'Stamos em pleno mar••• Abrindo as velas
cipando-se a um recurso hoje banal de rrwntage cinematográfica, Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
opera a absorção da "luz da estrela" pela "fogueira noturna da caba- Como roçam na vaga as andorinhas•••
na", com a conseqüente construção de uma admirável equaç!ío signifi-
cativa. o quadro s6 encontra paralelo em Camões, nos versos imperecí-
É, todavia, nas partes I, 11 e III9 do genial poema "Tragédia no veis:
Mar", conhecido geralmente por "O Navio Negreiro", onde esta sen-
sibilidade para o cinema, avant fi1r.age, se mostra apurada ao máximo. Já no largo Oceano navegavam,
Dificílimo é ao leitor conter o pasmo ante o faro certeiro com que As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Castro Alves espacializa a linguagem e a instala na visualidade. Das naus as velas côncavas inchando;
Em tomada panorâmica, desdobra-se, de começo, a incomensu- Da branca escuma os mares se mostravam
rável vastidão do mar, focalizado a tremenda distância. É o império Cobertos, onde as proas vão cortando
absoluto da colossalidade natuIal,.vazia de qualquer traço anímico•. As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Pr6teu são cortadas.
(Os Lusfadas, Canto primeiro, XIX)
'Stamos em pleno mar••• Doido no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta- De retomo a Castro Alves, as interrogações que se lerão adiante
E as vagas após ele correm••• cansam
mostram bem que ainda.é apreciável a distância que guarda o narrador
Como turba de infantes inquieta.
em relação ao descampado líquido por onde dispara aembarcação:
A determinação do rumo, como se vê, revela-se ainda tarefa Na linha desse intento de desaceleração da narrativa, do ânimo de
possível Pode-se tão-s6 intuir o deslocamento, bem como COllJeC:turar suspendê-la graças a um hiato digressivo, é intercalada a se-
a felicidade de quem, lá, se oferece o espetáculo do panorama. Já .gunda parte, em ~ue, co~ a mu~ça de metro - do decassílabo her6i-
ensejam, todavia, discriminações c6smiéas. Não há lugar mais ..• co para o redondilho maIor -, assIm como do esquema es~6fico - ~o
confusões entre' o embaixo e o em cima. quarteto para a décima -, são obtidas, d:, um s6 golpe" vaneru:de ,e di-
latação da expectativa. Sucedem-se, entao, quatro lépIdas estânCIas, a
'. Bem feliz quem ali pode nest'hora terceira a exibir a metáfora célebre sobre a Inglaterra.
Sentir deste painel a majestade! •••
Embaixo - o mar••• em cima - o finnamento •••
E no mar é no céu - a imensidade••• Que importa do nautà o berço,
Donde é filho, qual seu lar? ••
Ama a cadência do verso
Chegam, agora, a sensibilizar os ouvidos do narrador uns
Que lhe ensina o velho mar!
de música que lhe parecem de cristalina pureza e doçura. Cantai! que a morte é divina. ••
Resvala o brigue à botina
Oh! que doce harmonia traz·me a brisa! ••• Como um golfinho veloz.
Que másica suave ao longe soa! Presa ao mastro da mezena
Meu Deus! Como é sublime um canto ardente Saudosa a bandeira acena
Pelas vagas sem fim boilmdo à toa! Às vagas que deixa após.
1. Cf., op. cit., Rio de .Janeiro. Instituto Nacional do Livro, 1954. Tradu-
ção deI. Matoso Câmaralr.