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L,' 276 ACOi"LAGEM NO ESPAÇO

Castro Aives, ProtomodernQ


I! Em ambos, há alusões cum grano salis a vezos da religião ou Apenas ~omântico? *
í nossa. Cito apenas passagem do pr..meiro:

iI Gente tão feliz que depois


de viver feliz neste vale
~ de lágrimas para milhões,

I paga missas e devoções .


para comprar muitos perdões
e imensas absolvições
f que a levem sem contrições
I ao paraíso ~lestiaL••
!•
I
i Observo, de rasp~o, que, quase ao termo de "Elogio (e

I do Café Society", o poeta obliquamente atribui a Schopenhauer


obra que tef4l por título "Acima do Bem e do :Mal". Na
trata-se de Nietzsche, au.tor de Jenseits von Gut und Bõse (1886).

Numa tentativa de enfeixar, numa síntese final, a impressãô


minante que me ficou da travessia por esse livro, diria que foi
beração, de liquidação dos disfarces, das máscaras.
O poeta promove a desrepressão de nossa cólera contra .......•. Em que sentido é licito dizer que o magistério de um ~ta per-
mundo estúpido que nos envolve, a civilização falida que logrou a ..... téncente a uma outra época continua a exercer-se nas ger~çoes poste-
çanha única na história de algemar o punho do cristianismo ao nnnh;, ·'·'·0'·'"~·.> riores? É 6bvio que a resposta variará com o centro de Interesse do
do capitalismo para submeter todos n6s ao tripúdio de um monstro di." . formulador da indagação, mas parece indubitável que a nós, eswd:m-
céfalo. ' tes e estudiosos de Literatura, bem eomo a. todos quantos estejam
Essas páginas porejam de identificação com a dor geral e valem ' comprometidos no processo de produção e COnslliTtO da coisa li~erá.-ia.
por uma propedêutica à insurr~ição contra a asfixia. o . tal influência s6 se revelará pertinente e significativa se se efeuvar no
mento da "ordem" vigorante na soi-disant cultura do Ocidente. domínio propriamente específico da criação de obras de ~te
da lin-
Ao mesmo passo, faz-se-nos aqui o legado de um Testamento de guagem. Ao historiador, ao ide61ogo, ao psicÓlogo, ~O SOCIólogo será,
Belezá Não é um sedicioso, um carbonário que se ergue diante d~ .' decerto, proveitoso haurir as lições que, nos respecllvoS setore~,
lhes
n6s. O vulto que COnvoca nossa admiração e respeito é um Poeta. . siga proporcionando o egrégio antepassado, contudo a expectauva .do
Nesta nave ressoa o Canto - a floresta corai do c a n t o . , profissional das letras se nutrirá sempre da possibilidade de equacIo-
O que isto possa conter de iriescruÍável, deixó ao leitor como te~ . nar pelo menos parte do legado estético daquele. eon: os valores em
ma de reflexão. circulação em seu pr6prio tempo. Em síntese, ll11poe-se que fique
Indagarei apenas: não se acha ar entrelumbrado o sembIarite de comprovada, de modo insofIsmável, a virtual rruxiernidade do prede-
nosso t e m p o ? ' cessor, ou seja, a irredutível permanência do seu espfrito. A •

No caso particular de Castro Alves, o célebre vate ro~anuco


brasileiro cujo centenário de morte, para emoção nossa, é o?Jet~ d~
reverência nesta grande universidade norte-americana, a aplicaçao a
risca da exigência antes configurada se converte numa pr~va d~cisiva,
dado que são os atributos mais epidermicamente extraliterários, os
elementos extrínsecos à estrutura de seus poemas que, ao longo dos
anos, resSalvadas preciosas exceções, a crítica vem pondo em realce,

i
* Conferência pronunciada na Universidade de Indiana, Bloomington,
[ E.U.A., a 15.10.1971.
ACOPLAGEM NO ESPAÇO
CASTRO ALVES, PROTOMODERNO OU APENAS ROMÂNTICO?
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tais como o seu contagiante civismo, sua adesão à admirável caUSa
abÓlição do cativeiro negro no Brasil, seu inquebrantável fervor . a reifieação da imagem - exultante, dir-se-ia COm realizar-
dim - r" ' se na pura
mocrático. en~~ ISlca - atlnge um àescarnamento plástico, uma concreção
Em conseqüência desse enfoque, bem intencionado e generoso fenomeruca que exibem 't d . .
" mUI o a econOlDla expresSlva da dicção ho-
mas de todo insatisfatório, a menção às suas páginas conota quase ... dierna. EIs-nos face a face com wna metáfora complexa, a desenca-
automaticamente ret6rica farfalhuda, arroubos patri6ticos, inconti- . dear um processo perceptivo múltiplo e simultâneo A ru'''d
'A' • • • .. a expe-
nência verbal, perorações em registro vocal máximo. Se, de fato, não ~encIa auditlva deflagrada pela fanfarra se prolonga, Já animizada, na
lograsse ele transmitir-nos, a nós, indivíduos da era atômica, a n'io ser mcontroláv~l sucessividade dos ecos que se estilhaçam na visualid d
d d' . a e
I a alta voltagem de seu temperamento oratório e os fogos-de-bengala e na ~gos~ a .e prumática dos penedos. Esses planos sensoriais he-
I do seu virtuosismo verbal, não' nos sobejaria outro recurso senão re- ter6clitos sao mtegrados num ato perceptivo totalizante
turalme t à dinamiza - . ' graças, na-
I êusar-lhe qualquer possibilidade de induzir em n6s uma corrente em-
pática, de entreter conosco um diálogo fecundo.
. n e,. _ çao operada pela magIStral figuração implícita
da matilha d~ caes que, a ladrar, se precipita vertente abaixo.
Apresso-me, todavia, a frisar que não desejo ser tido por alguém

II
O poeta, como que inebriado com o próprio êxito, glosa o mesmo
que, inconformado com uma suposta ingratidão da crítica para COm. . no ~ma1 de. "Remorso", numa estância, porém, menos bem su-
Castro Alves, pretende a todo o custo apresentá-lo como um pioneiro cedida, maIS subIDISsa à convenção.
da poesia moderna, retificando-lhe, assim, por um expediente de suo.
percompensação, presumível injustiça de que tenha sido vítima. Não . Tu não vês? Qual matilha esfaimada
se coaduna com nosso feitio a postura de reparador de ofensas. Não Lá dos morros por sobre a quebrada'
Ladra o eco gritando: quem és? '
nos encontramos a serviço de nenhuma cruzada.
Onde vais, cavaleiro maldito?
Foi tão-s6 o reexame vigilante e objetivo dos textos do poeta Mesmo oculto nos véus do inímito
abolicionista que esporeou em nós o intuito, não apenas de aflorar Tua sombra te morde nos pés2 •
melhor a sua mestria artesanal, como, também, de aventurar que ela se
conduz, nos momentos 6timos da perícia criadora, na linha de uma ~eleva, contudo, salientar aí o ins6lito uso do verbo "morder"
sensibilidade poética que prenuncia a dicção contemporânea. refendo ~ ".s~mbra", o que confere à linha uma qualidade tersa, so~
Haverá de escandalizar muita gente o asserto de que, em mais de bremodo mClSIVa.
um poema de Castro Alves, vemos satisfeitos imperativos que, em Teríamos de aguardar até o advento de GuinIarães Rosa nos dias
tom de reivinàicação, Oswald de Andrade propõe, por exemplo, no p:esent~s para encontrar quem rivalizasse com Castro Alves na tradu-
"Manifesto da Poesia Pau Brasil". ça~ d~ lITefreá~el úupeto da energia instintiva, da exultação dos belos
COm efeito, a "síntese, o eqUÍhôrio, a invenção, a surpresa, uma . ~aIS na plerutude da saúde e. da liberdade, ou das insopitáveis for-
nova perspectiva, uma nova escala" do preceituário do rabelaisiano ... ças a n~tureza. O que o aprOXIma da maneira moderna é a dinâmica ..
autor de Marco Zero já se acham, até certo ponto in nuce, na expres- d; sua . linguagem musculosa, a velocidade da comunicaç~-;;:-;­
são de, Castro Alves, em especial ao nível da fusão metaf6rica, da- SlDtese mt~~ativa dos perce..p.tQg dos correlatos imagéticps.
quela incomparável sagacidade em operar a soldagem da célula fotoe- 1
Tudo ISSO se confirDIa, de modo peno . .
e conVIncente, em versos--
COmo
létrica da imagem, façanha em que ninguém lhe leva a palma.
A ignição instantânea da emoção, a velocidade do circuito lírico,
Os poldros soltos - retesando as curvas _
a eficácia da comunicação s6 cinqüenta anos depois viriam a ser acei-
Ao galope agitando as longas crinas,
tas como coisa corriqueira no idioma modernista, mas, por surpreen- Rasgam alegres - relinchando aos ventos _
dente que pareça, já se divisam lá em algumas estrofes do meninão De tua vaga os turbilhões barrentoS3.
genial. que se consumiu por inteiro nas labaredas da poesia.
No famoso.quinteto de "O H6spede", de Espwnas FluÍuantes, ~sse pass~ insere-se numa vigorosa ap6strofe ao "Rio soberbo"
Teu cavalo nitrindo na savana -. o Sao FrancISCO - e fixa (melhor se diria "fiilma"...) umamalhada de
Lambe as úmidas gramas em meus dedos. Jovens animais a cruzar estrepitosamente a artéria líquida. Os mesmos
Quando a fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha
Ladrando pela ponta dos penedos1. .~ J~ AI:nansur H~ddad, São Paulo, Companhia Editora Nacional, [1966], p.
. 3. As CltaÇOes subsequentes procederão dessa edição.
1. Cf. ANTÔNIO DE CASTRO ALVES, Poesias Completas, OrganizaçãO 2. Idem, ibidem, p. 158.
3. Id., ibid., p. 249,adinit.
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traços acham-se presentes à bela sextilha de ··Sub. tegmine fagi", que E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas,
Caem de horror no abismo estateladas•••5
diz:
. Nas paisagens desmesuradas que se. descerram ao.fiat demiúrgico
A alma fica melhor no descampado•••
de Castro Alves, vale acentuar seu gosto pelos alcantis ossudos, seu
O pensamento indômito, arrojado, .
Galopa no sertão, pendor pelas clivagens violentas, ríspidas arestas, cortes atrevidos nas
; Qual nas estepes o corcel fogoso rochas, o que nos traz à mente os transfundos inesquecíveis das telas
Relincha e parte turbulento, estoso, de Mantegna.. Esses resultados são atingidos mediante um ~~o
Solta a crina ao tufã04. ~ e SUCillto que, por sua desenvoltura, parece fruto do imprO-
viso, porém a uma mirada mais atenta se revela produto de genUÚla
o rasgo da .audácia conceptiva, o verbo viril e elástico, a aderên- . perícia artesanal.
cia cabal da película imagética à nesga circunscrita da realidade são
Não é assim desca&ido falar-se nos valores plásticos da poesia
atributos por assim dizer inerentes ao seu estilo de plasmar a lingua-
que ora nos ocupa, em particular na sua esculturalidade. Traços
gem. Para afastar qualquer dúvida, basta considerar o magnífico sí-
outros, não obstante, se poderiam respigar sem illcorrer em nenhuma
mile do 'caudal do São Francisco, a~ despenhar-se na cachoeira
demasia. Lembro-me de ter, certa vez, aventado ao professor Heitor
Paulo Afonso, figurada como uma colossal cobra, e o assoalhado de
Martins, meio em tom_de galhofa, mas, de fato, veiculando um intento
lajes do terraço a pique, como um touro colhido no bote do ofIdio.
sério, a necessidade de estudar-se a meteorologia lírica do irresistível
Quando no lodo fértil das paragens bardo, com Lllcursôes na sismologia correspondente.
Onde o Paraguaçu rola profundo, Há, na verdade, em seus versos belíssimos efeitos de levitação de
O vennelho novilho nas pastagens vapores, volatilizações, llÚgrações de nevoeiros, matizamento de arco-
Come os caniços do torrão fecundo;
Inquieto ele aspira nas bafagens
íris, opalescência de arrebóis, irisações de garoas. E quem, como ele,
rasga no céu de chumbo a fenda coleante do relâmpago, ou sabe insti-
r
Da negra suc'ruiuba o cheiro imundo •••.
Mas já tarde••• silvando o monstro voa. •• gar a "briga colossal dos elementos"?
E o novilho preado os areS troa! O_enquadramento do es~ço, com o escalonamento da proporção
dos objetos segundo um extraordinário senso de perspectiva, chegan-
Então doido de dor, sânie babando,
ãoaconstruir linhas de fuga quase alucinantes, tudo sob o signo de
Co'a serpente no dolSO parte o touro•••
Aos bramidos oS vales vão clamando,
uma visualidade avassaladora, aproxima, também, a técnica de Castro
Fogem as aves em sentido choro_o Alves da arte representativa do nosso tempo, par excellence: o cine-
Mas slibito ela às águas o arrastando ma. Claro está que sua medular vocação para traduzir seqüências di-
Contrai-se para o negro sorvedouro ••• nâmicas é responsável, em grande parte, por tal singularidade.
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, Muitas vezes ele semelha um operador cinematográfico, ávido
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.
de Ílsgar takes memoráveis. Não é, porventura, de legítima "tomada
Assim dir-se-ia que a caudal gigante IJ<U.I0râmica" a impressão que resulia da seguinte estrofe de "Vozes
- Larga sucuruiuba do infinito- d' Africa"?
Co'as escamas das ondas coruscante
Ferrara o negro touro de granito!.•• De Tebas nas colunas derrocadas
Hórrido, insano, triste, lacerante As cegonhas espiam debruçadas
Sobe do abismo um pavoroso grito••• O horizonte sem Ílm •••
E medonha a suar a rocha brava Onde branqueja a caravana errante,
As pontas negras na serpente crava!••• E Q camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim. •• 6
Dilacerado, o rio espadanando
Chama as águas da extrema do deserto ••• Notem-se, ademais, a elegante monumentalidade de um fotogra-
Atropela-se, empina; espuma o bando._ ma como esse e o poder que tinha o poeta de infundir majestade a uma
E em massa rui no precipfcio aberto._
cena. Desenvolvera o dito recurso a tão alto grau que, muitas vezes,
Das grÜtas nas cavernas estourando
O coro dos trovões travam concerto•••
5. Id., ibid., pp. 249 e s.
4. Id., ibid., p. 27.
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'Stamos em pleno mar••• Do firmamento


não conseguia do~-lo e descambava para um bistrionismo de gosto Os astros saltam como espumas de ouro•••
duvidoso, uma teatralidade operística, agravada pela ausência de auto- 6 mar em troca acende as ardentias
crítica.. São as máculas do estro castroalvino que o indispuseram co~ - Constelações do líquido tesouro.
muitas sensibilidades, incapazes do esforço paciente de discriminação 'Stamos em pleno mar••• Dois infinitos
entre o· resíduo amorfo e o áureo veio. Ali s' estreitam num abraço insano•••
Relacionada à mesma técnica de filmagem, valeria citar, em Azuis. dourados, plácidos, sublimes •••
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?
acréScimo, primeiro a estância de "Adeus, meu Canto":
O "'Stamos em pleno mar" anaf6rico, enunciado pelo narrador
Quando a piedosa, errante caravana, épico, não deve ser entendido como atestando a inclusão da presença
Se perde J;los desertos, peregrina,
fisica deste no espaço marítimo a que alude. Ele é apenas um especta-
Buscandó na cidade muçulmana
Do sepulcro de Deus a vasta rurna, dor privilegiado que, para uma testemunha hipotética (na verdade,
Olha o sol que se esconde na savana,. o implícito leitor), se regala a apontar o cenário grandioso. A câmera
Pensa em Jerusalém sempre divina, encontra-se excessivamente afastada e percebe-se um paulatino mo-
Morre feliz, deixando sobre a estrada vimento de aproximação para a área anunciada.
O marco miliário dumaossada7 •
A soberana insciência da llatureza, corolário da infinita amplidão
e, em seguida, esta sextilha de "Sub tegmine fagi": desértica, torna supérfluas distinções pela ausência de qualquer ponto
de· referência, da mínima situação ou recorte no ·tempo. Os "astros"
E à tarde, quando o sol- condor sangrento- são "espumas de ouro", e o "mar" exibe "constelações" sidéreas. Há
No ocidénte se aninha sonolento, a defrontar-se apenas dois infinitos, mas impossível é saber "qual dos
Como a abelha na flor••• dois é o céu, qual o oceano".
E a luz da estrela trêmlili re irmana
Co'a f<?~ira noturna da cabana,
Somente na quarta estrofe é que surge o primeiro indício do po-
Que acendera o pastorS . der humano, com o desabalar a toda vela do brigue altaneiro:

. em que, ao lado da expansão quase ilimitada do espaço, o poeta, ante- . 'Stamos em pleno mar••• Abrindo as velas
cipando-se a um recurso hoje banal de rrwntage cinematográfica, Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
opera a absorção da "luz da estrela" pela "fogueira noturna da caba- Como roçam na vaga as andorinhas•••
na", com a conseqüente construção de uma admirável equaç!ío signifi-
cativa. o quadro s6 encontra paralelo em Camões, nos versos imperecí-
É, todavia, nas partes I, 11 e III9 do genial poema "Tragédia no veis:
Mar", conhecido geralmente por "O Navio Negreiro", onde esta sen-
sibilidade para o cinema, avant fi1r.age, se mostra apurada ao máximo. Já no largo Oceano navegavam,
Dificílimo é ao leitor conter o pasmo ante o faro certeiro com que As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Castro Alves espacializa a linguagem e a instala na visualidade. Das naus as velas côncavas inchando;
Em tomada panorâmica, desdobra-se, de começo, a incomensu- Da branca escuma os mares se mostravam
rável vastidão do mar, focalizado a tremenda distância. É o império Cobertos, onde as proas vão cortando
absoluto da colossalidade natuIal,.vazia de qualquer traço anímico•. As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Pr6teu são cortadas.
(Os Lusfadas, Canto primeiro, XIX)
'Stamos em pleno mar••• Doido no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta- De retomo a Castro Alves, as interrogações que se lerão adiante
E as vagas após ele correm••• cansam
mostram bem que ainda.é apreciável a distância que guarda o narrador
Como turba de infantes inquieta.
em relação ao descampado líquido por onde dispara aembarcação:

Donde vem? onde vai? Das naus errantes


Quem sabe o rumo se é tãO grande o espaço? ••
7. Id.,ibid.,p.20(5.
Neste saara os corcéis o p6leyantam,
8. Id., ibid., p.28.
Galopam, voam, mas não deixam traço•••
9. Id•• ibid., pp. 180 l' ss.
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A determinação do rumo, como se vê, revela-se ainda tarefa Na linha desse intento de desaceleração da narrativa, do ânimo de
possível Pode-se tão-s6 intuir o deslocamento, bem como COllJeC:turar suspendê-la graças a um hiato digressivo, é intercalada a se-
a felicidade de quem, lá, se oferece o espetáculo do panorama. Já .gunda parte, em ~ue, co~ a mu~ça de metro - do decassílabo her6i-
ensejam, todavia, discriminações c6smiéas. Não há lugar mais ..• co para o redondilho maIor -, assIm como do esquema es~6fico - ~o
confusões entre' o embaixo e o em cima. quarteto para a décima -, são obtidas, d:, um s6 golpe" vaneru:de ,e di-
latação da expectativa. Sucedem-se, entao, quatro lépIdas estânCIas, a
'. Bem feliz quem ali pode nest'hora terceira a exibir a metáfora célebre sobre a Inglaterra.
Sentir deste painel a majestade! •••
Embaixo - o mar••• em cima - o finnamento •••
E no mar é no céu - a imensidade••• Que importa do nautà o berço,
Donde é filho, qual seu lar? ••
Ama a cadência do verso
Chegam, agora, a sensibilizar os ouvidos do narrador uns
Que lhe ensina o velho mar!
de música que lhe parecem de cristalina pureza e doçura. Cantai! que a morte é divina. ••
Resvala o brigue à botina
Oh! que doce harmonia traz·me a brisa! ••• Como um golfinho veloz.
Que másica suave ao longe soa! Presa ao mastro da mezena
Meu Deus! Como é sublime um canto ardente Saudosa a bandeira acena
Pelas vagas sem fim boilmdo à toa! Às vagas que deixa após.

o poeta, então, solta as rédeas à imaginação, presu.m4J.do na sua Do Espanhol as cantilenas


candidez e predisposição sempre positiva para com a vida, um cru~ Requebradas de langor,
zeiro de alvoroçantes júbilos, com todos os participantes possuídos .de Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
irradiante comunhão e amizade.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
Homens do mar! Ó rudes marinheiros - Terra de amor e traição-
Tostados pelo sol dos quatro mundos! Ou do golfo no regaço
Crianças que a procela acalentara Relembra os versos do Tasso
No berço destes pélagos profundos! Junto às lavas do vulcão.

Esperai! Esperai! Deixai que eu beba' O Inglês - marinheiro frio


Esta !)elvagem livre poesia. •• Que ao nascer no mar se achou-
Orquestra - o mar que ruge pela proa, (porque a Inglaterra é um navio
O vento que nas cordas assobia. •• Que Deus na Mancha ancorou)
Rijo entoa pátrias gl6rias,
Súbito, insinua-se o primeiro pressentimento sinistro, não confi- Lembrando orgulhoso histórias
De Nelson e de Abuquir•••
gurado ainda de maneira indici~dora, mas já suficientemente tenaz para O Francês - predestinado-
induzir o narrador a tomar emprestadas as asas do albatroz e pôr-se Canta os louros do passado
no encalço da nau, no propósito de descerrar o mistério. E os loureiros do porvir•••
N~ há dúvida de que nisso vai muito da sagacidade narrativa do
artista, a redobrar a tensão emocional do leitor pela ocultação, a sOne- Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
gação, de incidentes decisivos do relato. Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Por que foges assim, barco ligeiro? Homens, que Fídias talhara.
Por que foges do pávido poeta? •• Vão cantando em noite clara
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Versos que Homero gemeu. ••
Que semelha no mar doido cometa.•• •••Nautas de todas as plagas!
Vós sabeis achar nas vagas
Albatroz! Albatroz! águia do oceano, As melodias do céu...
Tu, que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço! Nunca é demais louvar-se a elegância, o esmero até, em que se
Albatroz! Albatroz! dá·me estas asas •••
vaza a expressão desse ágil intennezzo, oom linhas lapidares, tais como
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"festam ainda traços outros que muito êonípartil.ham da nossa visão


"'Resvala O brigue à bolina I Como um golfmho veloz." Ou, "Do Es- atuáI. Temos em mente, por exemplo, a teatralidade pública moderna;
panhol as cantilenas I Requebradas de langor, I Lembram as moças ." .o tom de reportagem lírica ou épica; a poesia para as massas à Maia-
morenaS, I As andaluzas em flor." Por Ínn, "Os marinheiros Helenos,· k6vsk:i, "Aragon, Sandburg, MacLeish, Yevtuschenko ou Ginsberg; a'
I Que a vaga iônia criou,". " predominância da dimensão coletivista, quase um retorno a certa ilÍl-
Em momento algum, não obstante, Castro Alves perde de vista o pessoalidade arcádica ou medieval (em que pese ao egotismo de Cas-
vector espacial, responsável pela verdadeira estruturação do poemi" tro Alves); comunicabilidade imediata; presença de llIDà dinâmica:
Isso l claramente conÍmnado pela introdução da parte m, cuja imanente 'que obriga o leitor a retificar constantemente o- seu tempo
ção única é ensejar o emprego da técnica cinemática que vimos ras- pessoal; imagética expansiva, irradiante; instantaneidade do registro
treando, com a final demarcação, pela objetiva, do centro iluminado, da reaIidâ.de, mercê da fusão plena do percepto e do hom610go mental;
do alvo nuclear há tantó antevisto, e a tomada em close-up do palco manipulação dos valores sonoros numa escala orquestral; gosto da
onde se vai desenrolar a tragédia. monumentalidade; a poesia ao ar livre e a insubmissão aos preconcei-
Como Castro Alves, na época, não podia lançar mão, digamos, de "Tropismo irrefreável para a liberdade.
um helic6ptero, não lhe sobra outro recurso senão convocar 'uma "á-"
As imperfeições da obra de Castro Alves - e seu nUmero não é'
guia do oceano", o albatroz, para descender, equilibrado nela, até as
pequeno - decorrem mais das debilidades do romantismo brasileiro do
vizinhanças da nave. " .
'que das insuficiências compreensíveis em quem viveu apenas vinte e
Desce do espaço imenso, 6 águia do oceano! quatro anos. As falhas mais sérias nada têm que ver com suas trans-
Desce mais, inda mais••• não pode o olhar humano, gressões - saborosíssimas, por sinal- da norma gramatical esteada em
Como o teu, mergulhar no brigue voador••• ridículos critérios puristas. As acusações que se lhe t:azem, por outro
lado, de imitador de Victor Hugo, Byron, Lamartine, Reine etc., não
Porém que vejo aí..• que quadro de amarguras!
. resistem a uma reflexão séria. O decisivo não são os pontos ti!! contato
Que canto funeral! ••• que tétricas figuras!
Que cena infame e vil! ••• Meu Deus! meu Deus, que horror! e afinidades que ele inequivocàmente guarda com esses luminares,
mas a maneira segundo a qual os utiliza como matéria-prima de suas
Fica meridianamente patenteada a estratégia espacial de Castro excepcionais criações artísticas. Camões praticou esse tipo de indus-
Alves, elegendo, entre múltiplos ângulos de abordagem da cena, o trialização, e o praticaram Whitman e Fernando Pessoa e Mallarmé e
mais audacioso e difícil. pe fato, é um sensacional desafio que o poeta T. S. Eliot e Pound.
se lança o decidir-se a devassar os acontecimentos que estão a trans- Suas falhas mais ostensivas são a univocidade, certo verismo in-
correr no brigue, através de uma perspectiva vertical de estonteantes gênuo, a quase ausência do implícito no seu idioma. O símbolo rara-
efeitos. E que troféus memoráveis colhe na realização da proeza, que mente é construído. Predomínio da ret6rica inflacionada. Sensibilida-
esplêndido triunfo acrescenta a seus louros! de indisciplinada. O abandono, não raro de olhos fechados, ao arre-
São sobremodo conhecidas as estrofes que compõem as partes IV batamento da criação. A ausência do senso do risco, como alguém que
e seguintes _para justificar uma glosa aqui. Nosso objetivo, aliás, no ainda não chegara a pensar a emoção e ainda não fora colhido nas
presente trabalho, não é incursionar pelo estrato temático do poema, malhas do demônio da inteligência lírica.
~ pôr bem em realce certos lineamentos estruturais da tecnologia Era um ·instintivo, mas como nascera - novo Mozart - à sombra
lírica de Castro Alves. do prestígio dos deuses, sua inspiração se encarnava numa ciência
No intuito de dilatar o campo de relações intersemi6ticas em que subjacente, numa sabedoria inarticuIada e, tal um .JIércules menino,
estamos tentando inserir a obra do poeta, seria lícito lembrar que o fez render-se a seus pés o monstro da perfeição, da imperecibilidade
expediente de ocultar ao máximo tolerável o verdadeiro núcleo trági- das formas. ,
co de "O Navio Negreiro", se aparenta com o suspense criado por E - edificai-vos! - foi um rapazelho imbuído de altíssimo senso
Beethoven, na parte inicial da Quinta Sinfonia, opus 67. Através de ético. Abraçou, com todo o fogo de sua juventude, a mais perigosa.
cíclicas vagas de· massas sonoras, que se sucedem e avolumam sem das causas, na época: a erradicação da lepra escravagista do corpo de
atingir um clímax, consome-se em ansiedade o ouvinte sempre derro- sua pátria. O radicalismo democrático, a fidelidade incondicional à li-
tado na sua busca de um ponto de definição. S6 bem mais tarde é que . berdade que ele destemidamente exibia como um brasão, erigiram-no
o Mestre consente em revelar o tom dominante - dó menor - em tor-
no do qual gravitará o maravilhoso sistema planetário de haImonias.
num símbolo, cujo alcance, a nós brasileiros, aponta para muito além
do domínio exclusivo da Literatura. Ele continua a ser uma advertên-
Num nível mais especificamente ideativo, suporte dos d,ados que cia à consciência do nosso país no sentido de nos colocannos à altura
se poderia chamar de informacionais, os textos de nosso autor mani-
ACOPLAGEMNO ESPAÇO
41. Guiiherme de Almeida e a
responsabilidades que nos fronteiam como integrantes Perícia Criadora
uma nação em que a dignidade humána segue ainda ofendida peja
mnJtissocu1ar ignomfnia da fome, do analfabetismo, da opressão colo-
niaIista e da despolitização•
. . Eis por q~, mesmo a um professor de Literatura que, ao
uma apreciação da poesia de Castro Alves, tapto se desdobrou em·
zelos MI'3- não se situar fora dos valores e padrões artísticos, é impos-
sível deixar de concluir que o traço distintivo de sua obra é a genero-
sidade, acolhido o termo com tudo que implique dádiva humana e
confraternização entre as criaturas.
Estamos tão habitUados com a mesquinharia do sentimento indi,;,
vidualista dos dias atuais que est:ranhan1os a generosidade em. poesia.
.. Eu mesmo experimentei um sobressalto ao tomar conhecimento
de toda

São sinais inquietantes dos tempos. Releiamos Antônio de Castro


Alves.

Em importante estudo; "Língua e Literatura", inserto em A Lin-


guagem - Introdução ao Estudo da F aJa1, o grande lingüista Edward
Sapir, intrigado com a existência de obras refratá..'":ias ao transplante
para idioma estranho, ao passo que outras convidam plenamente a is-
so; postula a ocorrência de dois tipos ou níveis de produções do espí-
rito: uma arte generalizada, não lingüística, que se pode transferir sem
perda para um meio verbal diverso, e uma arte intrinsecamente ·lin-
güística que se recusaria àquele transporte.
Esteia-se o sábio na verificação de que a literatura flutua na lin-
guagem como em um meio que apresenta a peculiaridade de estratifi-
car-se em dois lençóis: o conteúdo latente da linguagem - nosso re-
gistro intuitivo da experiência - e a conformação particular de uma
língua dada - O modo específico como se manifesta o referido regis-
tio.
Nessa ordem de idéias, "a literatura que se funda principalmente,
embora nunca. de maneira plena, naquele primeiro nível fundamental-
. uma peça de Shakespeare, digamos -, é traduzível sem maior perda de
caráter. Se se move, de preferência, no plano de cima - e bom exemplo
seria um poema de Swinburne -, é praticamente intraduzíveL Ambos
esses tipos de expressão literária podem ser grandes ou medíocres".
Sabe-se que o apanágio da expressão literária é o seu timbre in-
dividual, concreto. lludir-se-ia, contudo, quem julgasse que a sua sigm-
~o constitua função imediata das singularidades acessórias do

1. Cf., op. cit., Rio de .Janeiro. Instituto Nacional do Livro, 1954. Tradu-
ção deI. Matoso Câmaralr.

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