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Coleção Debates

Dirigida por J. Guinsburg


anatol rosenfeld
TEXTO/CONTEXTO I
SBD-FFLCH-USP

I IIIIIIIIIIIIII I IIIIII IIII IIIIIII


272080

Equipe de realização — Revisão: Geraldo Gerson de Souza; Produção: EDITORA PERSPECTIVA Ricardo W. Neves, Sérgio Coelho e Adriana

Garcia.
DEDALUS - Acervo - FFLCH
Quando a alma fala, já nãó fala a alma.

FRIEDRICH ,SCHILLER
20900005851

5a edição
ISBN 85-273-0073-7

Direitos reservados à
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Avenida Brigadeiro Lufs Antônio, 3025
01401-000 - São Paulo - SP -Brasil
Telefone: (011) 885-8388
Fax: (011) 885-6878
1996
desajustadas. Como sempre na obra de Kafka, a
narração é ambígua. 'O artista confessa que, no fundo,
gostaria de ajustar-se e de comer, mas, infelizmente, não
encontrou nunca a comida que lhe apetecesse. Muito
característico é também o fato de que se trata de um
artista um tanto histriônico: ele desempenha a sua asce-
se diante de amplo público. A novela tem implicações
sociológicas e metafísicas que exigem, para interpretá-
Ias, amplo desenvolvimento. Ela se assemelha, na
temática, ao Tonto Kroeger, de Thomas Mann. novela
que Kafka amava. Mas o processo da narração
expressionista distorce de tal modo o contexto que mal
se reconhece a semelhança fundamental.

A COSTELA DE PRATA DE A. DOS ANJOS


Ao ler-se os poemas de Augusto dos Anjos, o que de
imediato chama a atenção é naturalmente a sedução dir-se-ia
erótica que sobre ele exercem os terrnos cien tíficos. Termos de
certa forma exóticos (ainda que não se trate, no contexto da
língua portuguesa, propriamen- te de estrangeirismos), de
modo que se pode falar, usando uma expressão de Theodor
Wiesengrund Ador- no, de uma espécie de "exogamia
lingüística meno até certo ponto análdgo, ligado a uma
visão se-

(I) No n9 83 do suplemento literário de O Estado de São Paulo, Ruggero-


Jacobbi dedicou, um estudo aos Minima Moralia de Th. W. Adorno.

262 263 melhante do mundo e do homem. se verifica no. ex- da criação, o porco, o homem" (Benn), o "filho do pressionismo alemão. "Foi o jargão de uma
classe pro- carbono e do amoníaco" (Augusto). Esse "feixe de fissional, a linguagem médica. . . que marcou o mo- monadas • bastardas" desagrega-se em
"o tato, a vista, o mento crítico em que se iniciou a literatura alemã mo- ouvido, o olfato e o gosto", aparecendo numa tasca derna . . . " Esta afirmação de um
filólogo (Walter até a "mandíbula inchada de um morfético" (Augusto), Jens) refere-se particularmente a Gottfried Benn que enquanto nas tavemas -de Benn "os
dentes verdes (de publicou em 1912 um volume de• poesias com o título um rapaz) . acenam a uma conjuntivite" (pertenMorgue. Refere-se ainda —
acentuando mais a temá- cente a uma moça) — ambiente -"poético", aliás, que tica que a s terminologia — a Georg Heym de quem com citação especial do "Dr.
Benn" foi transferido ppr quase ao mesmo tempo saiu uma espécie de poema George Grosz para uma das suas caricaturas. Essa poeem prosa com o título
Autópsia, descrição de horri- sia sadomasoquista lança o desafio do radicalmente pilante beleza, da dissecação de um cadáver. Trakl, feio à face do pacato
burguês, desmascarando, pelo ao mesmo tempo, sussurrava versos que continham vi- deformação hedionda; a superfície harmônica e açusões de. uma
humanidade de "Cara 'quebrada". cujos ca- caradà de um' mundo intimamente podre. Não só o minhos desembocam em "negra putrefação". Quem
ser humano, também a palavra e a metáfora tradicicE não se lembraria da temática essencial de Augusto dos nais desintegram-se ante o impacto dessa poesia.
SurAnjos? "A nossa • doença, dizia Heym. é vivermoà no ge, ao lado da montagem do termo técnico no contexto fim- de uma era. num crepúsculo que se
tornou' tão da língua tradicional a' dissociação pelo kingüisticasufocante que quase já não se pode suportar a exala-. mente heterogêneo — uma metafórica
grotesca, "mação do apodrecimento" (em acepção mais literal, essa rinista", que opera com o incoerente. No mundo de palavra — e seus sinônimos a
— talvez seja a mais fre- Augusto dos Anjos, mundo em que o verme é o opeqüente na poesia do autor brasileiro). rário das' ruínas e em que o próprio ar
sedesagrega (Os Augusto dos Anjos nasceu em 1884, Benn Doentes,' IV), o luar já não é dos namorados, visto em 1886 e Trakl e G. Heym em 1887. Todos.ser
"da cor de um doente de icterícia"; a lua, "paracom exceção de Benn, morreram por volta de 1914. lelepípedo quebrado", é cercada de astros que -reduHá
naturalmente diferenças profundas, de forma e zem "os céus . . . a uma epiderme de sarampo". Neste • substância,. entre cada qual desses poetas de uma
só mundo reina a "matilha espantada dos iiétintos", o geraçãO e, em especial, entre os três alemães e o bra- calçamento copia "a polidez de um
Crânio .calvo" e a sileiro. Mas há; sem que se queira fazer de Augusto sombra transforma-se em "pele de rinoceronte".
dos Anjos um expressionista (movimentó do qual di- Sem dúvida, o frisson galvanique dessa'
poesia tem ficilmente pode ter tido notícia), coincidências notá- sua raiz na
concepção baudelairiana de uma arte que veis. particularmente entre este e Benn.
ainda do horroroso e feio, . da fosforesêência da po'Em conexão
com a terminologia clínico-cienúfica dridão, tira uma beleza artifiCial e alexandrina, :hau: — que, sem ser monopólio desses dois poetas, é
por rindo seus melhores efeitos- do fascínio excitante. proeles usada com insistência excepcional- • surge em' vocado por motivos e
vocábulos "chocantes", isto é, ambos os casos o que se poderia chamar uma poesia causadores de "choques". O termo
exótico em par-
de necrotério lia qual se disseca ê - desmonta "a glória ticular, inserido 'no campô• do -vocabulário' familiar,

264 265 passa a ser. núcleo irradiador de tensões. Da mesma de": "Eu voltarei, cansado da árdua liça, À
substânforma 'como as palavras, o mpndo de Augusto dos An- cia inorgânica primeva" (Augusto). Se Benn
canta a jos é, por assim' dizer, na sua essência, proparoxítono, célula viscosa no lü dos pantanais, Augusto prefere
esdrúxulo, dissonante. À semelhança. do que ocorre ser "semelhante aos zoófitas e às lianas" e à "lárva na "dermatologia
lírica" de Benn, e unem-se fria". • Ao fim exalta, com Buda e Schopenhauer, o na sua poesia o impulso lírico e
científico. As propo- Nada, único recurso para escapar "do supremo inforsições matemáticas e a
palavra arústica, diria Benn, túnio de ser alma" e para não ser martirizado pelo morsão as únicas
"transcendências verbais": "o resto é cego da- consciência (a influência de Schopenhauer pedir
chope". Daí o esforço de tornar iricamente sobre Augusto dos Anjos afigura-se muito mais proprodutivo o termo
técnico, o neologismo e, no caso defunda do que a de Haeckel e Spencer; alguns dos seus Benn, o estrangeirismo. Este
é particularmente "cho- maiores poemas, como Nu Forja e A Floresta parecem cante" na língua alemã que, nos últimos
séculos, não inimagináveis sem a assimilação do pensamento do ficonseguiu concluir uma pax romana com o vocabu-
lósofo alemão) 2 .
lário alienígena, principalmente greco-latino, ao ponto Mas esse panteísmo místico, .expressão, em última de haver cerca de um
milhão de tais terrnos não ver- análise, do anseio profundo da unidade, pureza e inonaculizados, dos quais boa parte é "sentida"
como es- cência perdidas, se de um lado almeja a regressão à etertranha pelo alemão, dando em especial ao purista cada
na calma do Nada, de outro lado exalta toda a evovez um pequeno frisson galvanique.lução até os graus mais elevados da
espiritualizpção e A "unidade dialética" de lirismo e ciência corres- do intelectualismo. Há também um cansaço "de viver ponde a
atração polar entre o impulso místico e o in- na paz de Buda" (As Cismas do Destino) e uma astelectualismo. Através de
um verdadeiro sincretismo piração de desenvolvimento triunfal até ao ponto em lingüístico, Augusto dos Anjos consegue casar,
unir, que, agora precisamente pelo pensamento, o poeta se rimar "apostema" e "Iracema", "goitacazes" e "an- "desencarcera" da
"obscura forma humana" para entrues", forçando a coincidentia oppositorum decontrar, por assim dizer vindo do outro lado
ou "de "sânie" e "perfume". Na "putrescível crusta do tegu- cima", o nirvana na "imortalidade das Idéias". E com mento
que me cobre os peitos", Augusto sente bater grande precisão chama esse desencarceramento pela "toda a imbrtalidade da
substância". Em ambos os"cerebralização progressiva" (Benn) de "manumissão poetas há uma dolorosa experiência do
dualismo: "ca- schopenhaueriana", isto é, libertação pela inteligência. tástrofe esquizóide", dissociação, da unidade
originalpela contemplação "desinteressada" (isenta da- tortura em Eu e mundo, sujeito e realidade objetiva (Benn);
dos desejos e da vontade) das idéias platônicas, -para e "antagonismos irreconciliáveis", a "gula negra das"Arrancado
das prisões carnais,/ Viver na luz dos asantinomias", "cóleras dos • dualismos implacáveis" tros imortais,/ Abraçado com
iodas as estrelas". Ago(Augusto). Daí a ânsia de superar esse insuportávek ra o "quietismo sonolento" das formas inferiores da
estado de fragnentação por uma vivência atávico-re- vida. é de súbito "obnóxio"; o poeta dirige-se contra a gessivat pela
"comunhão frígia", a "regressão talás- A temática da dissoluçãb no "lodo", da volta ao estado larvar
sica", volta ao nirvânico "país de loto" (Benn) ou pela vezes e à inconsciência, simbolizado pela , numa água), espécie tem precedentes de regaço no cósmlco-matemo simbolismo, p. (muitasex. em
"saudade da monera" e da "pátria da homogeneida- Jules no jovem Laforgue, Brecht assfduo e em leiEr-'.de. muitaS 'obras Schopenhauer, de Hermann da
mesmaHesse contaminadasforma como pelo simbologia da tprofunda.

266 267
Ê evidente que todas essas
antinomias; tensões. e angústias
aparentemente irreconciliáveis se refletem
com grande precisão no contraste entre a
"língua" e a linguagem especializada.
Alguns anos antes de se manifestar na
Alemanha o movimento expressionista,
Hugo von Hofmannsthal, num famoso
escrito, dissera: "As palavras se
desintegravam na minha boca. como
cogumelos mofados". Augusto dos Anjos,
poucos anos depois e à semelhança de
Benn, buscava a palavra de dura e firme
consistência, a palavra que não
participasse da corrupção para que, deste
modo, pudesse tanto melhor exprimir e
superar as visões da podridão. Ambos
encontraram esta palavra na linguagem
cienúfica, particularmente das ciências
biológica e fisioló-• gica. Não se- tratava
apenas de criar choques fascinantes através
da inserção de neologismos e termos
técnicos no corpo "mofado" da língua
poética tradicional. Essa terminologia
esotérica, o" Turbilhão 'de tais fonemas
acres / Trovejando grandíloquos
massacres"., que nos fere as "auditivas
portas", é expressão dos "ligamentos
glóticos precisos" e supera a semântica
bárbara dos Seres inferiores (pense-se nos
versos que se referem ao latir dos cães).
Exatos como fórmulas ma-

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temáticas, mas mesmo tempo de efeito encantatório como um
ritual coreográfico, tentam traduzir a "imortalidade das idéiag".
Cabe-lhes exprimir e promover a "abolição", o
desencarceramento da obscura -forma humana, a libertação do "numenalidade do Não-Ser", pela Idéia — enfim pelo infra
apodrecimento, através de um artificialismo mental que não participa da transumano. Entre todos os ter- mos deste gande poeta não exi
decomposição de tudo que é orgânico. Não buscava esse "minerálogo" da um: o termo médio
pureza virginal, ávido de "rutilância fria" em meio dos pantanais. para quem
"Deus resplande-
cerá dentro da poeira / Como 'um gasofiláceo de diamante", não buscava
Augusto dos Anjos no termo duro e artificial o que o vocábulo histórico, já
amolecido pelo bafo de tantos pulmões doentes, não lhe poderia dar? Sem
dúvida se pode aplicar ao termo técnico o que se disse certa vez do
estrangeirismo: é como a costela de prata que se introduz no corpo
lingiifstico. Ou como o exprime Th. W. Adorno: é um elemento anorgânico
que interrompe o contínuo orgânico da língua, arrebentando-lhe o turvo
conformismo.
O termo especializado é, precisamente em' conseqüência da sua
artificialidade esotérica, um elemento alienígena que revela, através da sua
alienação radical e sem concessões, a alienação encoberta da língua histórica'
que, etn determinado momento, já não exprime a "coisa" e, atrasada, se
alheia dos em plena Augusto dos Anjos fala muitas
vezes da angústia da palavra e, certa vez, da esperança de poder "inventar. . .
outro instrumento" para reproduzir o seu sentimento (Versos de Amor). E
que em determinada fase — no caso de Augusto na fase pré-modernista — a
língua fradicional se transforma em prisão, mas prisão familiar e por isso
despercebida. Enganando-nos acerca do seu efeito isolador (prque ela nos
separa da realidade interna e externa), corrompe • a expressão da verdade. O
termo técnico, arbitrário, "desumano" e coisificado como é, leva tal situação
de alheamento até as suas últimas conseqüências, radiéa-

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ao extremo e incorpora-a conscientemente pela montagem na oficina
língiiística. Desta forma pua a revelar a situação, desmasearando- 270
a como língüfstico". E assim acaba contribuindo, mais uma vez, para que o
poeta possa desencarcerar-se dele e da obscura forma humana e trocar a ' 'forma
de homem / Pela imortalidade das Idéias".
A exogamia
SBD 1 FFLCH 1 lingüística de Augusto dos
Anjos corresponde USP uma "desumana" paixão
exogâmica por Seção: BC Tombo: 272080 tudo que
não faça parte da Aqulslção: Compra/ RUSP corrupta
triba • humana: EDUSP/ 22668 pela
monera, pela
Data: 18/08/06 Preço: 26,4

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