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ANÁLISE SÊMICA DE QUATRO POESIAS DE AUGUSTO DOS ANJOS1

Eliandro Gimi Ramos Coelho2

RESUMO

Com embasamento teórico na descrição semântica de Pottier, o presente


artigo fixar-se-á na identificação dos semas, sememas absolutos e
arquissememas em quatro poesias de Augusto dos Anjos, escritor
brasileiro que se encontra no chamado (por alguns) período pré-
modernista, já que a obra (para outros) é a soma de “ismos” e várias
tendências, compreendido da segunda metade do século XIX e do início
do século XX. Para tanto, fazer-se-á estudos sêmicos e posteriores
análises.

PALAVRAS-CHAVE

Sema, semema, arquissemema.

Neste artigo, seguindo a nomenclatura da descrição semântica de B.

Pottier, se construirá o alicerce do referencial teórico necessário para que se alcance

1
Trabalho apresentado à disciplina de Lingüística III, sob orientação da Prof. Conceição Aparecida
Kindermann.
2
Acadêmico do Curso de Letras, Semestre VIII, UNISUL - Campus Araranguá / SC
os objetivos traçados mentalmente, os quais se tratam dos traços pertinentes (semas)

e seu conjunto constitutivo (sememas), da obra poética de Augusto dos Anjos,

contida, sabe-se, em quatro poesias escolhidas para posterior análise.

Segundo Pottier (apud LOPES, 19977, p. 264):

sabe-se que não existem duas cadeiras idênticas. Isso não impede que as
pessoas se ponham de acordo quando falam sobre cadeiras, o que
demonstra existir uma série de traços pertinentes na noção desse objeto,
série essa que é conhecida pelos vários falantes da mesma língua.

Com isso, o estudo de Pottier abre caminhos à “visões diferentes” de

um mesmo objeto para determinados falantes de uma comunidade. Mas havendo

concord6ancia entre todos os falantes de que certas características são lembradas (não

se atendo aos traços pertinentes), os objetos que forem tomados para análise

apresentariam traços variáveis. Como afirma Pottier (++ LOPES, 1977, p. 265): “Em

primeiro lugar, certas características recebem sempre uma resposta “sim” (+), ao

passo que outras recebem “sim” ou “não” (+/-). Isso se deve à presença eventual de

traços adicionais (...).”

Se se usar a afirmação de Pottier (1977), transcrita acima com o objeto

estante, por exemplo, ter-se-á características inerentes ao objeto em questão, mas

também se terá traços pertinentes a outros objetos que se aproximem da finalidade da

mesma, ou melhor, do mesmo campo semântico.

Em um artigo intitulado “Sobre arquissemema, arquilexema e etc” de

Darcília Simões, o quadro abaixo apresenta a análise do objeto estante

(exemplificando melhor o parágrafo anterior.


S1 S2 S3 S4 S5 S6 S7
MÓVEL COM PORTAS COM COM GAVETAS PARA PARA PARA
PRATELEIRAS LIVROS LOUÇAS ROUPAS
ESTANTE + + + - + + -
ARMÁRIO + + + + - + +
ARCA + + + - - + -

A análise apresentada no quadro acima por Simões no já citado artigo, foi

também efetuada por Pottier (1977), com um outro objeto, mas de resultados

semelhantes por se tratar de objetos pertencentes ao mesmo campo sem6antico,

analisando os semas pertinentes, no caso de Pottier, “cadeira”, “poltrona”,

“tamborete”, “canapé” e “pouf”.

Com a análise de objetos diferentes, porém do mesmo campo e que

mantêm traços constantes, depara-se com o chamado arquissemema, que para Pottier

(1977), denomina-se como um sema que abrange determinado campo semântico.

Após o estudo da descrição semântica de Pottier, lançar-se-á, com base

nos conceitos vistos, uma identificação dos semas (unidade mínima de significação),

em quatro poesias de Augusto dos Anjos, sabendo-se que, ao se alcançar o

arquissemema, a compreensão e a visão do objeto em estudo terá, não somente no

campo da Lingüística como também no campo da Literatura, uma edificação de

entendimento e descoberta relevantes.

ANÁLISE SÊMICA DE QUATRO POESIAS DE AUGUSTO DOS ANJOS


Na seqüência, dirigir-se-á às análises, dando movimento acerca das

considerações da descrição semântica de Pottier.

A) Poesia (1): “Psychologia de um vencido”

Eu, filho do carbono e do ammoniaco, / Monstro de escuridão e rutilancia, /


Soffro, desde a epigénesis da infancia, / A influencia má dos signos do
zodiaco. / Profundissimamente hipocondriaco, / Este ambiente me causa
repugnancia.../ Sobe-me á boca uma ancia análoga á ancia, / Que se escapa
da boda do cardiaco. / Já o verme - este operario das ruinas - / Que o sangue
das carnificinas / Come, e á vida, em geral, declara guerra, / Anda a espreitar
meus olhos para roêl-os, / E há de deixar-me apenas os cabelos, / Na frialdade
inorgánica da terra! (ANJOS, Augusto dos. In: Augusto dos Anjos: Poesia e
Prosa. São Paulo, Ática, 1977 p. 64).

s1: depreciação da existência

“Eu, filho do carbono e do ammoniaco,

Monstro de escuridão e rutilancia,”

s2: desilusão perante a vida

“Soffro, desde a epigénesis da infancia,

A influencia má dos signos do zodiaco.”

s3: a terra como lugar de sofrimentos

“Profundissimamente hipocondriaco,

Este ambiente me causa repugnancia...


s4: angústia de estar vivo

“Sobe-me á boca uma ancia análoga á ancia,

Que se escapa da boda do cardiaco.”

s5: o destino de toda a matéria humana

“Já o verme - este operario das ruinas -

Que o sangue das carnificinas

Come, e á vida, em geral, declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roêl-os,”

s6: o homem reduzido ao nada espiritual

“E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgánica da terra!”

Semema Absoluto de “Psychologia de um vencido”

Sa = s1+s2+s3+s4+s5+s6

B) Poesia (2): ”Soneto (Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 mezes
incompletos.
2 Fevereiro 1911)”

Aggregado infeliz de sangue e cal, / Fructo rubor de carne agonisante, / Filho


da grande força fecundante / de minha bronzea trama neuronial, / Que poder
embryológico fatal / Destruiu, com a synergia de um gigante, / Em tua
morphogénese de infante / A minha morphogénese ancestral?! / Porção de
minha plásmica substancia, / em que logar irás passar a infância, /
tragicamente anonymo, a feder?!... / Ah! Possas tu dormir, féto esquecido, /
Pantheisticamente dissolvido / na noumenalidade do NÃO SER! (ANJOS,
Augusto dos. In: Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa. São Paulo, Ática, 1977
p. 67).

s1: depreciação da existência

“Aggregado infeliz de sangue e cal,

Fructo rubor de carne agonisante,”

s2:

s3:

s4:

s5: o destino de toda a matéria humana

“Porção de minha plásmica substancia,

em que logar irás passar a infância,

tragicamente anonymo, a feder?!...”

s6: o homem reduzido ao nada espiritual


“Ah! Possas tu dormir, féto esquecido,

Pantheisticamente dissolvido

na noumenalidade do NÃO SER!”

s7: questionamento sobre a causa da morte

“Que poder embryológico fatal

Destruiu, com a synergia de um gigante,

Em tua morphogénese de infante

A minha morphogénese ancestral?!”

Semema Absoluto de “Soneto”

Sa: S1+S5+S6+S7

C) Poesia (3): “Solitario”

Como um fantasma que se refugia / Na solidão da natureza morta, / Por traz


dos ermos tumulos, um dia, / Eu fui refugiar-me á tua porta! / Fazia frio, e o
frio que fazia / Não era esse que a carne nos conforta... / - Cortava, assim
como em carniçaria / O aço das facas incisivas corta! / Mas tu não vieste ver
minha Desgraça! / E eu sahi, como quem tudo repelle, / - Velho caixão a
carregar destroços - / Levando apenas na tumbal carcassa / O pergaminho
singular da pelle / E o chocalho fatidico dos ossos! (ANJOS, Augusto dos. In:
Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa. São Paulo, Ática, 1977 p. 85).

s1: depreciação da existência


“Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por traz dos ermos tumulos, um dia,

Eu fui refugiar-me á tua porta!”

s2: desilusão perante a vida

“Mas tu não vieste ver minha Desgraça!

E eu sahi, como quem tudo repelle,

- Velho caixão a carregar destroços -“

s3: a terra como lugar de sofrimentos

“Fazia frio, e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos conforta...

- Cortava, assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!

s4:

s5:

s6: o homem reduzido ao nada espiritual


“Levando apenas na tumbal carcassa

O pergaminho singular da pelle

E o chocalho fatidico dos ossos!”

Semema Absoluto de “Solitario”

Sa: S1+S2+S3+S6

D) Poesia (4): “Budhismo moderno”

Tome, Dr., esta tesoura, e... córte / Minha singularissima pessoa. / Que
importa que a bicharia rôa / Todo o meu coração, depois da morte?! / Ah!
Um urubu pousou em minha sorte! / Tambem, das diatomáceas da lagôa / A
cryptógrama cápsula se esbroa / Ao contato de bronca dextra forte! /
Dissolva-se, minha vida / Igualmente a uma célulla cahida / na aberração de
um ovulo infecundo; / Mas o aggregado abstracto das saudades / Fique
batendoi nas perpetuas grades / Do ultimo verso que eu fizer no mundo!
(ANJOS, Augusto dos. In: Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa. São Paulo,
Ática, 1977 p. 84).

s1:

s2: desilusão perante a vida

“Tome, Dr., esta tesoura, e... córte

Minha singularissima pessoa.”

s3: a terra como lugar de sofrimentos


“Ah! Um urubu pousou na minha sorte!

Tambem, das diatomáceas da lagôa

A cryptógrama cápsula se esbroa

Ao contato de bronca dextra forte!”

s4: agonia de estar vivo

“Mas o aggregado abstacto das saudades

Fique batendo nas perpetuas grades

Do ultimo verso que eu fizer no mundo!”

s5: o destino de toda a matéria humana

“Que importa a mim que a bicharia rôa

Todo o meu coração, depois da morte?!”

s6: o homem reduzido ao nada espiritual

“Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célulla cahida

na aberração de um ovulo infecundo;”

Semema Absoluto de “Budhismo moderno”


Sa: S2+S3+S4+S5+s6

Assim, tem-se o seguinte quadro:

SEMAS 1 2 3 4 5 6 7
Poesia 1 + + + + + + -
Poesia 2 + - - - + + +
Poesia 3 + + + - - + -
Poesia 4 - + + + + + -

Arquissemema: S6

CONSIDERAÇÕES SOBRE O RESULTADO DO ESTUDO SÊMICO

Como visto, baseando-se na descrição semântica de Pottier, teve-se, a partir

da análise das quatro poesias de Augusto dos Anjos a confirmação do pessimismo do

poeta frente a condição humana.

Constatou-se, então, à luz do, arquissemema único (no caso da presente

análise), “o homem reduzido ao nada espiritual”, que Augusto dos Anjos, além de

depreciar o existir e aspirar a morte, concentra (com base nos quatro sonetos analisados),

sua total desilusão pelo ser humano através de um “eu” poético crivado de ceticismo e

anulação de sua pessoa, sintetizadas em combinações de elementos químicos e

obscuridade, mesclados a fatalismo das leis naturais.

Ao “reduzir o homem ao nada espiritual”, Augusto dos Anjos serve-se de

metáforas contundentes como: “Dissolva-se, portanto, minha vida / Igualmente a uma


célulla cahida / Na aberração de um ovulo infecundo”, aproximando-se facilmente da

estilística dos aforismos utilizados por Nietzsche, impregnando assim, os textos de idéias

concisas e ásperas, que unidas a métrica rígida, as aliterações e as rimas sistemáticas,

tornam a obra do poeta paraibano, falecido aos trinta anos de idade, vítima de

pneumonia, uma obra singular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOPES, Edward. Fundamentos da lingüística contemporânea. São Paulo: Cultrix,


1977.

REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa.. São Paulo: Ática, 1977.

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