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Cinema, escrita e escultura: A metáfora do tambor na construção da identidade -

Volker Schlöndorff, Günter Grass e Juan Muñoz

Introdução:

Para mí, lo que ves no es lo que parece.(MUÑOZ, 2001)

Wax Drum, 1988 Self-Portrait, 1995

Se a produção artística de Juan Muñoz é, não só vasta, como variada, incluindo trabalhos de
escultura, instalações, pintura, rádio, teatro, poesia, ensaios, é igualmente inquietante, sob o
ponto de vista do espectador.

A inquietação prolonga-se na presença presente do “agora”. “Agora”, que tanto fascinou Muñoz
e ele próprio justifica, através das suas palavras, deste modo:

(...) “el ahora es el ahora perfecto” (...) Percepción, yuxtaposión, un instante de sentido...Probablemente
quieran decir que “el ahora” es un ideal, una opción, un presente escogido. Me gusta porque tiene que ver
con la liberdad y porque contradice al destino.(...) Percepción...”el ahora” en cuanto futuro aplazado
indefinidamente. (…) Yuxtaposición...como “el ahora”...”el ahora” como condición de la que no se puede
escapar, (…) el ahora perfecto”...Un instante de sentido...(MUÑOZ, 2009)

O ‘agora’, como temporalidade única que, enquanto ideal, é condição de qualquer produção
artística e de qualquer processo de receção do objeto artístico. O ‘agora’ é sempre o lugar onde
artista e espectador se reúnem, em silêncio e som, em movimento e imobilidade.

Um dos temas recorrentes em Muñoz é também o silêncio/som, tendo produzido diversas obras
com desenhos e esculturas de orelhas, a que se seguiram vários tambores, quer em instalações e
em relação com personagens, quer isoladamente ou em ligação uns com os outros. Wax Drum,
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de 1988, por exemplo, surge isoladamente e tem espetado na sua pele uma tesoura, negando a
sua dupla possibilidade funcional de emitir som e ser audível.

A violência visceral da tesoura espetada na pele do tambor evoca a perfuração brutal da


membrana do tímpano do ouvido interior, criando uma ferida profunda que, quando
realizada, destrói a dupla possibilidade do som e da audição. (WAGSTAFF, 2008)

Sete anos mais tarde, Muñoz escreve no canto de uma fotografia sua, em que surge como
“tamborilero”, Self-portrait. De perfil, olhando o seu gesto de tocar a pele do tambor que traz
seguro a tiracolo, concentrado no seu gesto de segurar as baquetas que rufam, inaudivelmente.

Self-Portrait, evoca igualmente o romance de Günter Grass “Die Blechtrommel”, adaptado ao


cinema em 1979 por Volker Schlöndorf, e onde os diálogos são directamente adaptados do
livro, pelo próprio Grass. Diz Sheena Wagstaff:

Apesar de ser absurdo estabelecer uma ligação literal entre a história de Oskar e Muñoz
enquanto tocador de tambor, o artista estava claramente fascinado pelo epigramático
estilo literário de Grass e admirava a sua capacidade de sintetizar a narrativa através da
hábil condensação do tempo ficcional. Num caderno datado de 1983, copiou
meticulosamente um parágrafo de Grass: “Escrevo o tempo comprimido, escrevo o que
está [...] submerso por outra coisa, o que está ou parece estar ao lado de outra coisa,
enquanto, despercebido, algo que já não parecia estar ali mas estava escondido e por
essa razão ridiculamente duradouro, não está exclusivamente presente – o medo, por
exemplo. G. Grass” (WAGSTAFF, 2008)

No entanto, e apesar do ponto de vista de Sheena Wagstaff, parece existir (sobretudo através da
citação anotada por Muñoz) uma ligação narrativa entre os trabalhos de Muñoz, o livro e filme
“O Tambor”, através de uma re-a-presentação da própria estrutura destas diferentes narrações: o
espaço enquanto presença, o tempo enquanto presente.

A ligação existente entre a escrita/narrativa, a imagem/fotografia, desenho, escultura, filme, o


som e a sua ausência, através da imposição do silêncio, quer pela destruição do meio que
permite a sua existência (o rompimento violento da pele do tambor), ou pela suspensão do gesto
na imagem que fixou o instante (a fotografia), pontuam e sublinham a existência da metáfora
representadas por Wax Drum e Self-Portrait e “O Tambor”.

Que “eus” são estes, lançados por Muñoz, no tabuleiro da re-a-presentação? Neste retorno que
traz à presença no agora, outros de um mesmo? Que fábula contam ao espectador, que é um
“eu” no “agora” da presença das “diferentes” obras presentes?

Não é certo que estas interrogações conduzam imediatamente a um perguntar ou reflexão, por
parte dos diferentes artistas, sobre a identidade. Aliás, em qualquer produção artística, a
pergunta pela identidade é assumida pelo artista enquanto artista e também enquanto espectador,
no próprio processo criador/produtivo e, decerto, esta inquietante imagem auditiva (Wax Drum,
Selfportrait), por vezes inaudível, dominada pelo silêncio que permite o reconhecimento do som
(não é a música a combinação de sons e silêncios? não é a escrita a adição de letras e espaços
vazios? não é a estátua a interrupção/suspensão do movimento e o agora fixado no tempo que
flui?) e que adentro se vai revelando, fragmentariamente, no seu trabalho, seja uma resposta.

Como escreve Muñoz, sobre o seu epíteto tantas vezes repetido de “contador de histórias”:

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“Historias

Lo interessante no era contar historias/sino realmente fabular...como si al/contar fábulas, al hablar de lo


fabuloso,/construirlo...

Uno busca colocarse en un tiempo que/ni es histórico ni ahistórico sino ajeno./En un espacio que no es
lugar alguno y sin/embargo de él se sabe que está fuera”(MUÑOZ, 2009)

A narrativa, ou a fábula, para Muñoz, é um modo espácio-temporal de presença presente, que se


desprende do artista/produtor: sai, literalmente, como de um artesão, das suas mãos, da sua voz.
O artista “contador de histórias” constrói outros tempos, expressos em rítmicas marcas na
memória, nos sentidos, no corpo (daí não ser nem histórico nem ahistórico, pois percorrido por
ritmos impressos, marcados, a espaços irregulares de “vazios”, silêncios, imobilidades) através
de fragmentos empilhados e colecionados (como o trapeiro de Baudelaire) alteridades de
instantes percorridos numa contínua exterioridade que ouve sons e silêncios e vê movimentos
suspensos na mais imediata e concreta receção percetiva.

I - O Tambor de Oskar Matzerat:

No livro Die Blechtrommel, (O Tambor), Günter Grass, narra a história de Oskar: um rapazinho
que, quando nasce, decide querer crescer até ao seu terceiro aniversário, ao ouvir a sua mãe
dizer que nessa altura lhe oferecerá um tambor, e no aniversário dos seus três anos de idade,
após ter a alegria do cumprimento da promessa materna, decide intencional e voluntariamente,
parar de crescer.

Cuando el pequeño Óscar cumpla tres años, le compraremos un tambor.

Por un buen rato estuve reflexionando y comparando la promesa materna y la paterna.


Mientras, observaba y escuchaba (...) sólo la perspectiva del tambor de hojalata me retuvo
en aquella ocasión de dar a mi deseo de volver a la posición embrionaria en presentación
cefálica una expresión más categorica.(GRASS, 1987)

Aos três anos a decisão sobre a sua vida e identidade:

(…)me aferré a mi tambor y, a partir de mi tercer aniversario, ya no crecí ni un dedo


más; me quedé en los tres años, pero también con una triple sabiduría; superado en la
talla por todos los adultos, pero tan superior a ellos; sin querer medir mi sombra con la
de ellos, pero interior y exteriormente ya cabal, en tanto que ellos, aun en la edad
avanzada, van chocheando a propósito de su desarrollo; comprendiendo ya lo que los
otros sólo logran con la experiencia y a menudo con sobradas penas; sin necesitar
cambiar año tras año de zapatos y pantalón para demostrar que algo crecía.

Con todo —y aquí Óscar ha de confesar algún desarrollo—, algo crecía, no siempre por
mi bien, y acabó por adquirir proporciones mesiánicas. Pero ¿qué adulto, entonces,
poseía la mirada y el oído a la altura de Óscar, el tocador de tambor, que se mantenía a
perpetuidad en sus tres años? (GRASS,1987)

O filme de Volker Schlöndorff, exibe estas decisões vividamente. Poucas são as palavras ditas,
face ao poder quase absoluto de sugestão da imagem em movimento, que congela por instantes,
também na nossa retina, a vontade determinada de Oskar. A sua súbita imobilidade e

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prolongado silêncio, enquadrados em grandes planos do seu rosto, onde o intenso olhar azul
dominam o espectador: Oskar como uma estátua domina e congela/suspende o instante. 1

Poder-se-á delinear a identidade de Oskar unicamente através das suas decisões iniciais? Viver
para ter um tambor, e no dia em que o tem tornar-se “eternamente criança”?

O nome, a paternidade, a nacionalidade e naturalidade, além do aspeto físico e caraterísticas


psicológicas, crê-se, em geral, serem parte do que nomeamos “Eu”, como se de um bilhete de
identidade existencial e essencial se tratasse:

Nome: Oskar Matzerath

Paternidade: Alfred Matzerath (natural da Renânia) ou Jan Bronski (natural de Bissau, território
polaco) – (9.48’-10.38’) e Agnes Koljaiczek/Matzerath (fruto de uma relação acidental entre
uma Cassubiana (Ana Bronski/Koljaiczek - con los cachubas no hay modo de moverlos: ellos han de
quedarse siempre y aguantar la cabeza, para que otros les puedan dar en ella, porque nosotros no somos ni
polacos de veras ni bastante alemanes, y si se es cachuba, nadie queda contento, ni los unos ni los otros,
porque lo que quieren es precisión.(GRASS,1987) e um Polaco (Josef Koljaiczek - Koljaiczek era un
incendiario, y un incendiario recurrente. Porque a continuación y por espacio de algún tiempo, en toda la
Prusia Occidental los aserraderos y los parques de madera fueron proporcionando uno tras otro pasto
frecuente a la explosión flagrante de los sentimientos patrióticos polacos. (GRASS, 1987) – (1.50’-
3.34’)

Nacionalidade: Polaco e Alemão (?)

Naturalidade: Dantzig (Gdansk, atualmente)

Também Günter Grass nasceu na cidade de, então, Dantzig, sendo filho de pais católicos
polaco-alemães, em Outubro de 1927, seis anos antes da anexação pelos nazis, daquele Estado,
em 1933.

Como determinar a identidade de Oskar? Na delimitação de um território marcado por


características nacionais comuns? Numa espécie de espírito e conjunto de práticas nacionalistas,
já que é visível o surgimento do nazismo e as simpatias (ou empatias) que vai desenvolvendo na
maior parte dos adultos que fazem parte da vivência de Oskar? Existem inclusive adultos de
referência que se convertem ao nazismo, como o seu pai (?) Alfred Matzerath, de quem ele diz:
Matzerath, digo, ingresó el año treinta y cuatro —o sea, pues, reconociendo relativamente temprano las
fuerzas del orden— en el Partido, a pesar de lo cual sólo había de llegar a jefe de cédula. (GRASS,1987)

Também o músico – trompetista – seu vizinho, que toca à janela, no início do filme, “A
Internacional”, se converte ao nazismo:

Borracho y tendido entre las sabanas, podía tocar su trompeta en forma


extraordinariamente musical y dar gusto a mi tambor. Pero, en mayo del treinta y ocho,
abandonó la ginebra y anunció a la faz del mundo: «¡Ahora empieza una nueva vida!»
Se hizo músico del cuerpo montado de la SA (GRASS,1987)

ou o judeu Markus, o dono da loja de brinquedos que assegurava a substituição da pele do seu
tambor quando estava rasgado, que decide ser batizado, suicidando-se depois, assumindo-se

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Cenas do filme: 10.39’ – 12.48’ e 13.59’ – 18.17’

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nesse ato simbólico como judeu. Mas, no final da guerra, aquando da chegada dos russos,
destroem todas as suas identidades do passado, os vestígios materiais do que momentaneamente
foram, procurando o esquecimento, através do fogo ou do autossacrifício:

Al sentir Matzerath la insignia del Partido entre los dedos, el terror fue subiéndole de
punto. En cuanto a mí, ya con las manos libres, no quise ser testigo de lo que Matzerath
hiciera con el bombón. Demasiado preocupado para dedicarse a la caza de los piojos,
Óscar se disponía a concentrarse de nuevo en las hormigas, cuando percibió un rapido
movimiento de la mano de Matzerath, lo que le hace decir ahora, ya que no alcanza a
recordar lo que pensó entonces: hubiera sido más sensato guardar tranquilamente
aquella cosa redonda y de colores en la mano cerrada.

Pero él quería deshacerse de ella y, a pesar de su acreditada fantasía de cocinero y


decorador del escaparate de la tienda de ultramarinos, no se le ocurrió más escondrijo
que el de su cavidad bucal. (...)

Mientras mi presunto padre se tragaba el Partido y moría, yo aplasté, sin quererlo ni


darme cuenta, un piojo que momentos antes acababa de agarrarle al
calmuco.(GRASS,1987) (59.31’ – 2ª Parte)

Procurar a identidade nacional de Oskar, ou dos seus interlocutores, é cair no meio de um


labirinto. Como escreve Bauman:

A ideia de “identidade”, e particularmente de “identidade nacional”, não foi


“naturalmente” gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa
experiência como um “fato da vida” auto-evidente. Essa ideia foi forçada a entrar na
Lebenswelt de homens e mulheres modernos – e chegou como uma ficção. Ela se
solidificou num “fato”, num “dado”, precisamente porque tinha sido uma ficção, e
graças à brecha dolorosamente sentida que se estendeu entre aquilo que aquela ideia
sugeria, insinuava ou impelia, e ao status quo ante (o estado de coisas que precede a
intervenção humana, portanto inocente em relação a esta). A ideia de “identidade”
nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de
transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões
estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia. (BAUMAN, 2005)

A ideologia nazi surge precisamente como “unificadora”, reunindo em seu torno todo o “povo
alemão”, oferecendo a possibilidade de concretizar um futuro glorioso: os arianos, finalmente
elevados à sua condição de povo de gestas heroicas; eis a ficção em que prontamente se
acredita! A cisão dolorosa entre polacos, cassubianos e alemães, seria elidida. Os mais fortes
decidiam mais uma vez qual a nacionalidade que convém. A identidade nacional é claramente
exposta, quer no livro, quer no filme, como ...agonística e um grito de guerra. (BAUMAN, 2005)

No entanto, Oskar não se envolve com o nazismo: a cena em que escondido, debaixo da tribuna,
provoca uma irremediável confusão na manifestação nazi, tocando tambor em ritmo de
compasso de três tempos, mostra a sua indiferença (52.45’-56.59’) relativamente ao regime
político.

El tambor ya lo tenía yo en posición. Con celestial soltura hice moverse los palillos en
mis manos e, irradiando ternura desde las muñecas, imprimí a la lámina un alegre y
cadencioso ritmo de vals, cada vez más fuerte, evocando Viena y el Danubio, hasta que,
el primero y el segundo tambor lasquenetes se entusiasmaron con mi vals, y también los
tambores planos de los muchachos mayores empezaron como Dios les dio a entender a
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adoptar mi preludio. Claro que entre ellos no dejaba de haber unos cuantos brutos,
carentes de oído musical, que seguían haciendo bumbum, bumbumbum, cuando lo que yo
quería era el compás de tres por cuatro, que tanto le gusta al pueblo. Ya casi estaba Óscar
a punto de desesperar, cuando de repente cayó sobre la charanga la inspiración, y los
pífanos empezaron, ¡oh Danubio!, a silbar azul. (GRASS, 1987)

A música que a todos reúne em alegre baile é “An der schönen blauen Donau”, de
Johann Strauss filho, mais conhecida pelo nome de “Donauwalzer”, ou “Danúbio Azul”.
Esta valsa, muitas vezes considerada como hino nacional austríaco, foi uma encomenda
do governo prussiano, enquanto ocupava a Áustria. Johann Strauss, no entanto, só a
compôs após a separação da Áustria da Alemanha. É pois, simultaneamente, um grito de
independência. Este grito é unificador na manifestação nazi, apresentada no filme: qual
então a nacionalidade dos intervenientes, do “povo alemão”? ...a “naturalidade” do
pressuposto de que “pertencer-por-nascimento” significava, automática e inequivocamente,
pertencer a uma nação foi uma convenção arduamente construída – a aparência de “naturalidade”
era tudo menos “natural” (BAUMAN, 2005) Alias, a afirmação da avó de Oskar, mais acima,
é prova dessa ausência de naturalidade...

A Oskar, todas as manifestações de “nacionalismo” são indiferentes:

bajo la tribuna, por dentro, detrás de una placa de madera, encontró lugar y abrigo suficiente
para poder saborear con toda tranquilidad el encanto acústico de una manifestación política, sin
que lo distrajeran las banderas ni los uniformes le ofendieran la vista. (GRASS, 1987)

Ainda que esteja presente, ainda que observe as transformações politicas, mantém um
distanciamento evidente, unicamente marcado pelo compasso do seu tambor.

Tudo é visto pelos seus olhos através das suas memórias: perceções do passado e sentimentos
que se mantêm vivos no momento em que escreve as suas “memórias”. Se no filme, Oskar
surge como a “voz off” que nos vai contando a sua história, no livro, está internado num
sanatório e escreve às escondidas, com a cumplicidade de Bruno, um funcionário que lhe
compra as folhas em branco. Quer a narração, quer a diegese, encontram um ponto de vista que
garante, em simultâneo, a distância que permite a descrição dos acontecimentos, e a
proximidade necessária para os tornar convincentes e realistas.

Em qualquer um dos media, Oskar mostra-nos, enquanto espectadores, que ele próprio, ainda
que narrador da sua história, tem um ponto de vista coincidente com o nosso: ele é também
espectador dos acontecimentos históricos, pessoais, quotidianos. A “noite de cristal”, em que
assiste ao incêndio da sinagoga de Dantizg mostram esta duplicidade de modo evidente e o
distanciamento que essa duplicidade cria. (1.20.46’....)

Érase una vez un negociante en ultramarinos que un día de noviembre cerró su tienda, porque en
la ciudad ocurría algo, tomó de la mano a su hijo Óscar y se fue con él, en el tranvía de la línea número 5,
hasta la Puerta de la calle Mayor, porque allí, lo mismo que en Zopot y en Langfuhr, ardía la sinagoga.
Había acabado ya casi de arder, y los bomberos vigilaban que el incendio no se extendiera a las otras
casas. Frente a los escombros, gente de uniforme y de paisano iba amontonando libros, objetos del culto y
telas raras. Se prendió fuego al montón, y el negociante en ultramarinos aprovechó la oportunidad para
calentarse los dedos y los sentimientos al calor del fuego público. Pero su hijo Óscar, viendo a su padre
tan ocupado y enardecido, se deslizó disimuladamente y corrió hacia el pasaje del Arsenal, intranquilo por
sus tambores de hojalata esmaltados en rojo y blanco.

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Érase una vez un vendedor de juguetes que se llamaba Segismundo Markus y vendía, entre otros,
tambores de hojalata esmaltados en rojo y blanco. Óscar, al que acabamos de mencionar, era el principal
comprador de dichos tambores, porque era tambor de profesión y no podía ni quería vivir sin tambor. Eso
explica que se fuera corriendo de la sinagoga en llamas hacia el pasaje del Arsenal, porque allí vivía el
guardián de sus tambores; pero lo encontró en un estado que en lo sucesivo o al menos en este mundo le
había de imposibilitar seguir vendiendo tambores. (GRASS, 1987)

A única coisa que conta, para Oskar, é o seu tambor e a possibilidade de, sabendo da sua
destrutibilidade, continuamente o poder renovar. O seu tambor dá-lhe a segurança negada pelo
corte do cordão umbilical, tal como as saias da sua avó esconderam o seu avô da polícia e a ele
próprio quando procurava refúgio e consolo. Quando a identidade perde as âncoras sociais que a
faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais
importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso.
(BAUMAN, 2005)

Como pensar então a questão da alteridade na criação/compreensão da identidade? A que “nós”


pode Oskar pertencer quando na família, nos vizinhos, nos colegas da escola, nunca se reviu? O
tambor Oskar, o anão Oskar, o estranho e diferente Oskar, está só. Todos são diferentes de si.
Todos? (43.45’-45.36’)

Bebra, o anão que vê pela primeira vez no circo é como ele: também decidiu parar de crescer e,
como ele, é músico: toca em copos de vidro. (47.20’-48.30’) O vidro que Oskar consegue
quebrar com o seu grito.(21.55’-23.00’)

É a Bebra que Oskar, pela primeira vez, confessa como se vê a si próprio:

Sabe usted, señor Bebra, prefiero contarme entre los espectadores, y dejo que mi
modesto arte florezca a oscuras, lejos de todo aplauso, pero soy el último en no aplaudir
las exhibiciones de usted—. El señor Bebra levantó su dedo arrugado y me amonestó:
—Excelente Óscar, haced caso a un colega experimentado. Nosotros no debemos estar
nunca entre los espectadores. Nuestro lugar está en el escenario o en la arena. Nosotros
somos los que hemos de llevar el juego y determinar la acción, pues en otro caso son
ellos los que nos manejan, y suelen tratarnos muy mal. (GRASS, 1987)

A conflitualidade inerente à determinação da identidade torna-se clara na metáfora


espectador/actor, como de resto existe presente em todo o filme ou livro, na tensão sempre
visível entre narrador/espectador. Tal como Janus, a identidade do Eu só pode ser tomada na sua
ligação ao Outro. Como a imagem que se reflete no espelho: a nossa e a que dos outros vemos.
(1.03.50’-1.04.51’)

Como sublinha Bauman, através da citação de Lars Dencik:

As afiliações sociais – mais ou menos herdadas – que são tradicionalmente atribuídas


aos indivíduos como definição de identidade: raça...gênero, país ou local de nascimento,
família e classe social agora estão se tornando menos importantes, diluídas e alteradas
nos países mais avançados do ponto de vista tecnológico e econômico. Ao mesmo
tempo, há a ânsia e as tentativas de encontrar ou criar novos grupos com os quais se
vivencie o pertencimento e que possam facilitar a construção da identidade. Segue-se a
isso um crescente sentimento de insegurança...(BAUMAN, 2005)

Ainda que a diferença entre o desenvolvimento tecnológico e económico seja hoje claramente
distinto daquele que é retratado nos filme e livro, a adequação é evidente, tal como o que Bebra
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diz a Oskar gera um sentimento se não de insegurança, pelo menos de inquietude. Aliás, quando
todas as referências afetivas que ainda ligam Oskar ao lugar onde vive (a morte da mãe, do
suposto pai Jan Bronski, o seu primeiro amor casa com o seu pai Alfred Matzerath e tem um
filho com ele – já que a dúvida sobre a paternidade também é exposta), a única possibilidade é
juntar-se aos “atores” seus iguais em “deformidade”: os que não quiseram crescer ou nasceram
anões.

Essa inquietude é também transmitida ao leitor/espectador. A inclusão de Oskar na trupe de


atores que entretêm as tropas nazis, com espetáculos de circo em que cada um expõe os seus
dotes naturais e deformidades, mais não é que uma ilusão. Os espectadores são observados,
mimetizados pelos atores. O espetáculo é a encenação dessa ilusão, é a re-a-presentação do
efémero, do grotesco, do estranho, que provocam o medo da solidão.

Oskar é um anão. Oskar é um rapaz com corpo de três anos e que vai somando aniversários.
Oskar é um anão que toca tambor. Oskar toca tambor e a tudo é in-diferente, exceto ao seu
tambor. Ele e o seu tambor são um: Nunca, ni cuando más propenso me siento a la indulgencia para
conmigo mismo, puedo hacer a un lado esta idea: mi tambor, ¿qué digo?, yo mismo, el tambor Óscar .
(GRASS, 1987)

Como Oskar e tambor são um só, está disposto a tudo enfrentar para manter essa unidade, e
disso depende a sua própria vida:

Óscar, al que acabamos de mencionar, era el principal comprador de dichos tambores,


porque era tambor de profesión y no podía ni quería vivir sin tambor. Eso explica que se
fuera corriendo de la sinagoga en llamas hacia el pasaje del Arsenal, porque allí vivía el
guardián de sus tambores. (GRASS, 1987)

Oskar escolheu viver ao ouvir a voz da sua mãe, no momento do seu nascimento, dizer que lhe
ofereceria um tambor. A audição dessa voz permanece enquanto toca tambor. O seu ouvido é
“sensível”, sendo uma característica que ele próprio identifica como distintiva. Aliás, é a
audição que liga fisicamente, fisiologicamente, os filhos às mães. Oskar não foge à regra:

Para decirlo de una vez, fui de esos niños de oído fino cuya formación intelectual se
halla ya terminada en el momento del nacimiento y a los que después sólo les falta
confirmarla. Y si en cuanto embrión sólo me había escuchado imperturbablemente a mí
mismo y había contemplado mi imagen reflejada en las aguas maternas, con espíritu
tanto más crítico atendía ahora a las primeras manifestaciones espontáneas de mis
padres bajo la luz de las bombillas. Mi oído era sumamente sensible, y aunque mis
orejas fueran pequeñas, algo plegadas, y pegadas, pero no por ello menos graciosas, es
el caso que conservo todas y cada una de aquellas palabras tan importantes ahora para
mí, porque constituyen mis primeras impresiones. Es más, lo que captaba con el oído lo
ponderaba al propio tiempo con ingenio agudísimo, y después de haber reflexionado
debidamente sobre todo lo que había escuchado, decidí hacer esto y aquello y no hacer,
en ningún caso, eso y lo otro.(GRASS, 1987)

A audição, o tambor,(tambor e ouvido estão igualmente organicamente ligados no seu


funcionamento fisiológico) são a ligação de Oskar ao seu cordão umbilical. São o seu retorno
ao conforto, à segurança do ventre materno. A sua recusa de crescer, a sua indiferença face ao
exterior, que se manifesta na sua postura de espectador dos outros, do mundo e e si próprio, são
a sua proteção (mas também resistência) face à impossibilidade de retorno ao ventre materno. O

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ventre materno que se materializa no tambor, e a consciência da impossibilidade de aí retornar,
no grito. Ustedes ya lo habrán adivinado: el objetivo de Óscar consiste en el retorno al cordón
umbilical...(GRASS, 1987)

É essa a identidade procurada e nunca alcançada, delimitada, dominada, preenchida. Os


fragmentos da sua memória evocam-na nostalgicamente sob a forma de narração/ficção
biográfica distanciada, somente materializada pelo tambor, símbolo, fetiche, gesto escrito e
performativo dessa união identitária, procurada no silêncio do ventre materno e destruída pelo
primeiro grito, que se repete, desta feita destruidor. A ficção é a sua própria identidade.

No entanto, no livro, conta-nos Oskar:

Al rememorar hoy, tendido o sentado en su cama metálica pero tocando su tambor en


cualquier posición, el pasaje del Arsenal, los garabatos de las paredes de los calabozos
de la Torre de la Ciudad, la Torre misma y sus instrumentos aceitados de tortura, los tres
ventanales del foyer del Teatro Municipal con sus columnas y otra vez el pasaje del
Arsenal y la tienda de Markus para poder reconstruir los detalles de una jornada de
septiembre, Óscar evoca al propio tiempo a Polonia. ¿La evoca con qué? Con los
palillos de su tambor. ¿La evoca también con su alma? La evoca con todos sus órganos,
pero el alma no es ningún órgano.

Y evoco la tierra de Polonia, que está perdida pero no está perdida. Otros dicen: pronto
perdida, ya perdida, vuelta a perder. Aquí donde me encuentro buscan a Polonia con
créditos, con la Leica, con el compás, con radar, con varitas mágicas y delegados, con
humanismo, jefes de oposición y asociaciones que guardan los trajes regionales en
naftalina. Mientras aquí buscan a Polonia con el alma —en parte con Chopin y en parte
con deseos de revancha en el corazón—, mientras aquí se rechazan las particiones de
Polonia de la primera a la cuarta y se planea ya la quinta, mientras de aquí se vuela a
Polonia por la Air France y se deposita compasivamente una pequeña corona allí donde
en un tiempo se levantaba el ghetto, mientras de aquí se buscará a Polonia con cohetes,
yo la busco en mi tambor y toco: perdida, aún no perdida, vuelta a perder, ¿perdida en
manos de quién?, perdida pronto, ya perdida, Polonia perdida, todo perdido, Polonia no
está perdida todavía.(GRASS, 1987)

A nostalgia do retorno a casa, ao lar materno e o eterno retorno... Quem é Oskar? No preguntéis a
Óscar quién es! Ya no le quedan palabras. (GRASS, 1987)

O silêncio é o limite da narrativa, do gesto na sua suspensão, do fim da escrita da determinação


impossível da identidade.

II - Os Tambores de Juan Muñoz

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Basta um olhar, para ver que a imagem que Muñoz oferece de si, escolhida entre outras
certamente, é uma imagem, como diria Walter Benjamin, dialética, onde o “agora” encontra o
“outrora” e ilumina o sentido da imagem presente, através da linguagem. Só as imagens
“autênticas” têm este poder dialético, esta capacidade de fazer explodir o sentido pela sua
presença. É por isso que o olhar do espectador não se limita a ver, mas recorda, liga imagens,
encontra-lhes significado.

O próprio Muñoz numa entrevista/conversa com Adrian Searle, em 1992, afirma que tudo o que
faz tem antecedentes e que não se pode negar nem uma tradição, nem a sua própria memória.
Memória que vai buscar imagens, referências, signos, também ao ser espanhol, mas que
caminha para além ou aquém do lugar de nascimento.

Por supuesto, está claro que todo lo que uno hace tiene antecedentes (...) Sé que todos
los artistas se entroncan en una tradición. Sé que no puedo escapar de ninguna manera
de mi propria memoria y del territorio que da forma a mi pasado. Pero, por otra parte,
tengo la sensación de que, para el presente cada vez es más importante y pertinente
decir que cualquier obra de arte se relaciona del mismo modo, y quizá con mayor vigor,
con una conversación más global que con la especificidad de una determinada nación.
(...) Lo fundamental es que el arte español tiene un cierto dramatismo (...) En la
tradición artística española, lo que es un tema permanente, algo constante, no es tanto el
propio teatro como su dramatismo. (MUÑOZ, 2009)

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Aliás, essa ligação é admitida por vários comentadores da obra de Muñoz e, no caso concreto do
Selfportrait, escreve Sheena Wagstaff:

..essa imagem lembra um outro “autorretrato” – a capa original da autobiografia de Luís Buñuel, O meu
último suspiro, publicada em 1983, que apresenta o autor como um tocador de tambor na sua aldeia natal,
a aldeia aragonesa de Calanda. Tal como Buñuel as documenta, nas celebrações da Páscoa em Calanda,
cerca de 2000 pessoas a tocar tambor improvisam um ritual de 36 horas até a pele dos tambores ficar
ensopada com o sangue das mãos...(WAGSTAFF, 2008)

Sheena Wagstaff fala de um acontecimento a que os Caladenses chamam o “Rompido”:

Es un espectáculo estremecedor. Cientos de tambores y bombos suenan duran el


Viernes y Sábado Santo, poniendo una nota trágica en la celebración de la Semana
Santa (...)

No hay durante estos días silencios en Calanda. La Semana Santa se vive bajo el eco
profundo, palpitante y misterioso del sonido de los redobles de tambores. Y en el fragor
de la percusión, con su ritmo atávico, desfilan las procesiones, las penitentas, los
“putuntunes”, las hebreas y sibilas, los pasos y las Cofradías. Se evocan autos
sacramentales y el pueblo conmemora con piedad la muerte del Redentor.

La calles de Calanda quedan convertidas en un sentimiento que irradia fe, tradición y


amor por la tierra. Las cuadrillas interpretan las marchas y repiquetes en desafíos que
engrandecen la comunicación. Todo es estruendo y resonancias. Hasta que llega el
momento final con el recuerdo, el éxtasis y el silencio melancólico que marca el cese
definitivo de la percusió 2

Mas, se Muñoz não enjeita influências diversas, oriundas da sua “cultura de nascimento”,
também reconhece influências do quotidiano e da sua própria época, que moldam o seu
trabalho:

No se puede separar la actividad visual de ser un artista del resto...del contexto cultural
que te impregna cada día. Los artistas, como qualquier otra persona, pasan mucho
tiempo leyendo, escuchando música e todo eso, y las historias que lees, en un periódico
o en un relato popular, se convierten en parte del tema de tu trabajo. (MUÑOZ, 2009)

Tal como Buñuel, Muñoz saiu de Espanha e viveu vários anos em Londres, onde completou a
sua formação, assim como em Nova Iorque, Roma e Boston, e, como tal, a sua obra está em
diálogo com referências que são globais, universais.

Mas ambos coincidem em buscar uma imagem de si próprios num ritual identificado como
espanhol. Ou será universal? Transcendendo fronteiras e culturas? Desde os rituais dionisíacos,
origem do teatro grego, os tambores exaltam os sentidos e elevam à divindade, permitindo pelo
extâse a que conduzem, à união com a natureza. Ou como diz Oskar, o tambor:

He oído tocar el tambor a conejos, a zorros y marmotas. Tocando el tambor, las ranas
pueden concitar una tempestad. Dicen del pájaro carpintero que, tocando el tambor,
hace salir a los gusanos de sus escondites. Y finalmente, el hombre toca el bombo, los
platillos, atabales y tambores. Habla de revólveres de tambor, de fuego de tambor; con
el tambor se saca a la gente de sus casas, al son del tambor se las congrega y al son del

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http://www.semanasantaencalanda.com/

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tambor se la manda a la tumba. Esto lo hacen, tocando el tambor, niños y muchachos.
Pero hay también compositores que escriben conciertos para cuerdas y batería. Me
permito recordar la Grande y la Pequeña Retreta y señalar asimismo los intentos de
Óscar hasta el presente: pues bien, todo esto es nada comparado con la orgía
tamborística que en ocasión de mi nacimiento ejecutó la mariposa nocturna con las dos
sencillas bombillas de sesenta vatios. Tal vez haya negros en lo más oscuro del África, o
algunos en América que no han olvidado al África todavía; tal vez les sea dado a esas
gentes rítmicamente organizadas poder tocar el tambor en forma disciplinada y
desencadenada a la vez...(GRASS, 1989)

O ritmo, o toque do tambor, o que de mais orgânico há em todos nós: a batida cardíca, o que nos
faz viventes, o que acalma os bebés ao colo das suas mães. O tambor como metáfora da origem
da vida? No caso de Oskar, parece ser assim. Em Muñoz, o artista é mediador no processo de
significação. A identidade é uma identidade construída, tal como o poeta é “um fingidor”, o
escultor Juan Muñoz é um criador de “artifícios”. Através da narrativa silenciosa, conta histórias
ao espectador, ou como ele próprio diz, cria “cenografias” (..sólo creo la escenografia para que la
imaginación pueda desarrollarse. (MUÑOZ, 2009)

Luis Buñuel, Mí último suspiro

Comparando ambas as imagens, para que Sheena Wagstaff chama a atenção, são, no entanto, as
diferenças, mais que as semelhanças: Muñoz está de perfil, com o rosto a olhar o tambor e na
penumbra, absorvido no seu próprio gesto, que se diria suspenso. Buñuel mostra-se
frontalmente, no acto de tocar e embora não olhe o espectador, embora olhe para o “fora-de-
campo”, a concentração no acto é clara: ele toca! Quanto a Muñoz, toda a encenação figurativa,
conduz o olhar do espectador ao gesto suspenso que a-presenta a presença do silêncio.

Há, no Selfportrait, uma encenação, uma “narrativa encenada”, que começa logo na
intencionalidade com que escreve, pelo seu próprio punho, o “título” da fotografia. Existem,
fotografias de cada um de nós que nos favorecem mais que outras, fotografias de que gostamos
mais que de outras, e fotografias que oferecem. a quem as vê, a nossa presença (Roland Barthes
fala desta presença no seu livro A Câmara Clara) e verdadeira parecença.

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Na entrevista a Adrian Searle diz:

...la presencia es algo que quizá nunca se produzca realmente (...) En realidad no
recuerdo haber sido nunca capaz de retratar la presencia, del mismo modo que no creo
que se pueda llegar a retratar la muerte; son dos cosas que están prácticamente fuera del
alcance del arte. Así que uno sólo puede relacionarse con ellas a través de su doble, de
su opuesto, de lo que sea que haya ocurrido o vaya a ocurrir, de la falta del momento
preciso en que se está allí. Sólo como espectador, durante una décima de segundo, se
puede tener la sensación de estar mirando algo.MUÑOZ, 2009)

Wax Drum, 1988

Um tambor pendurado. Sem alguém que o toque. Uma tesoura que lhe perfura a pele. Para que
ele não toque. Uma tesoura que perfura o tambor, no ouvido, para que ele não ouça. A sua
função eliminada. Resta, mais uma vez o silêncio.

Muñoz criou várias instalações em que usa tambores e, em nenhuma o tambor presente a-
presenta, a sua função: o som.

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The Prompter, 1988

“O ponto”, é o nome desta instalação. Um anão, escondido pelo proscénio, com os olhos
fechados e a boca cerrada, sem texto para ler, e ao fundo, encostado à parede, em equilíbrio
instável, num chão cujo um padrão geométrico cria a ilusão de movimento, um tambor, cuja
pele é a reprodução do padrão do chão. Mais uma vez o silêncio. Como diz Muñoz desta
instalação: ...frente a la casa no hay público, ni obra, tan solo hay un espectador situado en el centro del
escenario, inmóvil, en suspensión, tratando de no olvidar algo.(MUÑOZ, 2009)

Seated Figures with Five Drums, 1996

Tambores que não são tocados, nem olhados, pois as figuras têm os olhos tapados com uma
“película”, como se tivessem propositadamente colado algo nos seus olhos. São estátuas, em
silêncio, com tambores que não tocam, não são ouvidos, nem vistos.

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Many Drums, 1994

Em Many Drums, Muñoz dispõe cinco tambores diferentes, presos numa parede, tapados por
uma grade metálica com buracos. Os tambores estão aprisionados, como no interior do ouvido,
não se lhes pode tocar: o silêncio mantém-se.

O silêncio e a imobilidade. Só a visão do espectador é possível. O ser de uma estátua. A


identificação do autor com o seu trabalho. A identificação do autor/escultor com o espectador. O
instante-cristal de sentido...Como em Jerusalém de Mia Couto: a afinação é a do silêncio.

Escreve Muñoz:

Cuando hablamos de artes temporales parece que prejuzgamos que todas las obras de
arte estáticas no guardan relación con el tiempo. Pero para mí, de alguna manera,
aunque resulte paradójico, en cierto sentido la existencia de una estatua aparece (en el
momento en que le prestas atención) idéntica a la existencia de un ser vivo.

El filósofo Emmanuel Lévinas se refiere precisamente a eso: habla del instante de una
estatua “en su futuro eternamente suspendido”, y dice que “ese instante inmóvil de la
estatua le debe su agudeza a que no es indiferente a la duración”(MUÑOZ, 2009)

Mais à frente, para esclarecer o que diz, fala da sua experiência na rádio:

Tuve la sensación de que la experiencia de estar encerrado en una caja de cristal


insonorizada, hablando al vacío, es lo que más se acercava a la emoción que quería
representar en mí obra escultórica. Escribo un texto y lo leo sin pensar en nadie en
concreto o alguién que viaja en coche a altas horas de la noche, pero sín saber quién es,
ni me importa, pero sé lo extraño que es escuchar tu propria voz fuera de tu proprio
cuerpo.(MUÑOZ, 2009)

No silêncio e na imobilidade, dá-se a presença e na sua peça radiofónica Will it be a likeness, de


1996, diz:

...era melhor observar quadros na rádio do que fazê-lo na televisão. No ecrã de televisão
nada está parado e esse movimento faz com que a pintura deixe de ser pintura. Na rádio
não vemos nada mas podemos escutar o silêncio. E cada pintura tem o seu próprio
silêncio. (...) Também cada borboleta tem o seu silêncio especial. Porque às vezes é
mais fácil compreender um som como silêncio, tal como uma presença, uma presença
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visível, se expressa às vezes com mais eloquência através do seu desaparecimento.
(MUÑOZ, 2008)

Muñoz fala de pintura neste texto, mas tudo o que diz fala igualmente da sua escultura, dos seus
tambores silenciosos e silenciados, imóveis e impossíveis de tocar. Não há músico que deles
possa extrair som. No entanto, oferecem-se-nos, estão aí lançados, são objectos reais, presentes,
a-presentados e coincidem na sua parecença ilusória: o espectador vê-os imediatamente como
tambores. Mas não o são, são a presença de uma ausência, a imobilidade dos gestos, o som do
silêncio, . Como no Selfportrait, há uma parecença entre o músico e o escultor, mas o músico
não está lá, nem o escultor...

Uma parecença é um dom, alguma coisa deixada para trás e escondida e mais tarde
descoberta quando a casa está vazia...Quando está escondida, evita o tempo. O que quer
dizer com “evita o tempo”? Confunde o tempo, se preferir. (...) Uma parecença é um
dom e mantém-se inconfundível, mesmo quando escondida atrás de uma máscara. Uma
parecença pode ser apagada. Hoje, Che Guevara vende camisolas, é só isso que resta da
sua parecença. Tem a certeza? [Silêncio] De certeza? [Silêncio] (...) Aumentem o
volume do silêncio e ouvirão os flocos a cair na neve espessa... A última
parecença...(MUÑOZ, 2008)

O tambor, o tamborileiro, não são o lugar do eu de Juan Muñoz, são o lugar do “eu” da própria
escultura. São o ser, o “ser-aí”, sob o disfarce da metáfora, da oposição, do simbólico. Ao som
visto, opõe-se o som ouvido, ou antes nunca ouvido, só o silêncio está presente. Ao movimento
do rufar das baquetas, opõe-se a imobilidade do gesto, ou a ausência das próprias baquetas. Ao
olhar directo do artista para o espectador, opõe-se um tamborileiro na penumbra e de perfil, que
olha ensimesmado e em silêncio o seu próprio gesto, ou o próprio objeto de re-a-presentação, é
também ele espectador como nós, e como nós, participa da encenação e do artifício da
parecença. O que se “joga” é o lugar, o estatuto, a natureza, a identidade da escultura ela
própria.

«Frente a la escultura no hay descanso. Para entender sus temblores o rabias, hay que obedecer a su señal
de atención. Sentirla habitando el signo de su interrogante. (MUÑOZ, 2009)

Olhão, 3 de Agosto de 2009

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III – Bibliografia:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. RJ. Jorge Zahar. 2005.

GRASS, Günter, El Tambor de hojalata, Biblioteca de Plata, Círculo de Lectores, 1987

Juan Muñoz uma retrospectiva, Museu Serralves. Porto. 2008.

MUÑOZ, Juan, Writings/Escritos, Ediciones de la Central, Museo Nacional Centro de Arte


Reina Sofia, Mayo 2009

Permítaseme una imagen…Juan Muñoz. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Turner.
Fundación Banco Santander.Madrid. 2009.

Filmografia:

Schlöndorff, Volker. “Die blechtrommel”

Siteografia:

http://www.semanasantaencalanda.com/ , a 01/08/09

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