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literatura de testemunho

Passagens ñ Homenagem
a Walter Benjamin,
instalaÁ„o de Dani
Karavan montada no Museu
de Arte de Tel-Aviv em 1997

junho/99 - CULT 39
...die Narbe der Zeit dist‚ncia que nÛs descobrimos entre a diante de fatos (inenarr·veis) como
tut sich auf... linguagem que nÛs disp˙nhamos e essa tambÈm ñ e com um sentido muito mais
ìAbend der Worteî experiÍncia que, em sua maior parte, nÛs tr·gico ñ a percepÁ„o do car·ter inima-
nos ocup·vamos ainda em perceber nos gin·vel dos mesmos e da sua conseq¸ente
...a cicatriz do tempo nossos corpos. Como nos resignar a n„o inverossimilhanÁa. Continuando a passa-
abre-se... tentar explicar como nÛs havÌamos gem acima, Antelme afirma ainda: ìEssa
ìAnoitecer das Palavrasî chegado l·? NÛs ainda est·vamos l·. E, desproporÁ„o entre a experiÍncia que nÛs
PAUL CELAN no entanto, era impossÌvel. Mal comeÁ·- havÌamos vivido e a narraÁ„o que era
vamos a contar e nÛs sufoc·vamos. A nÛs possÌvel fazer dela n„o fez mais que se
ìH· dois anos, durante os primeiros mesmos, aquilo que nÛs tÌnhamos a dizer confirmar em seguida. NÛs nos defront·-
dias que sucederam ao nosso retorno, comeÁava ent„o a parecer inimagin·vel.î vamos, portanto, com uma dessas reali-
est·vamos todos, eu creio, tomados por Robert Antelme abre com essas pala- dades que nos levam a dizer que elas
um delÌrio. NÛs querÌamos falar, final- vras o seu relato sobre a sua experiÍncia ultrapassam a imaginaÁ„o. Ficou claro
mente ser ouvidos. Diziam-nos que a nos campos de concentraÁ„o nazistas que ent„o que seria apenas por meio da
nossa aparÍncia fÌsica era suficientemente ñ na qualidade de um dos primeiros ñ ele escolha, ou seja, ainda pela imaginaÁ„o,
eloq¸ente por ela mesma. Mas nÛs jus- redigiu j· em 1947 (com o tÌtulo Lí espËce que nÛs poderÌamos tentar dizer algo
tamente volt·vamos, nÛs trazÌamos humaine). Essa passagem descreve o delas.î
conosco nossa memÛria, nossa expe- campo de forÁas sobre o qual a literatura O testemunho se coloca desde o inÌcio
riÍncia totalmente viva e nÛs sentÌamos de testemunho se articula: de um lado, a sobre o signo da sua simult‚nea neces-
um desejo frenÈtico de a contar tal qual. necessidade premente de narrar a sidade e impossibilidade. Testemunha-se
E desde os primeiros dias, no entanto, experiÍncia vivida; do outro, a percepÁ„o um excesso de realidade e o prÛprio teste-
parecia-nos impossÌvel preencher a tanto da insuficiÍncia da linguagem munho enquanto narraÁ„o testemunha

A literatura do trauma
M·rcio Seligmann-Silva

A literatura de testemunho, conceituada a partir dos relatos de sobreviventes dos


campos de concentraÁ„o nazistas, se articula como tens„o entre a necessidade de
narrar a experiÍncia da barb·rie e a percepÁ„o da insuficiÍncia da linguagem
diante do horror ñ redimensionando a relaÁ„o entre literatura e realidade,
salientando o car·ter traum·tico de toda experiÍncia e pondo em xeque a equaÁ„o
pÛs-moderna que transforma a histÛria em ficÁ„o. Este ìDossiÍî ñ concebido e
organizado pelo professor e ensaÌsta M·rcio Seligmann-Silva ñ analisa o papel da
literatura de testemunho na histÛria dos gÍneros liter·rios, a possibilidade da
poesia e da cultura depois de Auschwitz, a tarefa dos historiadores do Holocausto
e a formulaÁ„o de uma Ètica da memÛria a partir da obra do escritor Primo Levi.
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uma falta: a cis„o entre a linguagem e o ìopÁ„oî entre a ìliteralidadeî e a ìficÁ„oî pode testemunhar; todos o podem. E, por
evento, a impossibilidade de recobrir o da narrativa. Nesta encruzilhada encon- outro lado, o ìrealî È ñ em certo sentido,
vivido (o real) com o verbal. O dado inima- tramos v·rias das principais questıes que e sem incorrer em qualquer modalidade
gin·vel da experiÍncia concentracion·ria est„o na base da literatura de testemunho. de relativismo ñ sempre traum·tico.
desconstrÛi o maquin·rio da linguagem. Tentemos discutir alguns desses pontos. Pensar sobre a literatura de testemunho
Essa linguagem entravada, por outro lado, implica repensar a nossa vis„o da HistÛria
sÛ pode enfrentar o real equipada com a O real e o trauma ñ do fato histÛrico. Como lemos em
prÛpria imaginaÁ„o: por assim dizer, sÛ Georges Perec ñ autor de W ou a memÛria
com a arte a intraduzibilidade pode ser Literatura de testemunho È um da inf‚ncia ñ, ìo indizÌvel n„o est· escon-
desafiada ñ mas nunca totalmente sub- conceito que nos ˙ltimos anos tem feito dido na escrita, È aquilo que muito antes
metida. com que muitos teÛricos revejam a a desencadeouî. A impossibilidade est·
ìAli onde cessa a filosofia, a poesia relaÁ„o entre a literatura e a ìrealidadeî. na raiz da consciÍncia. A linguagem/
tem de comeÁarî, afirmou Friedrich O conceito de testemunho desloca o escrita nasce de um vazio ñ a cultura, do
Schlegel no limiar do sÈculo XIX, criti- ìrealî para uma ·rea de sombra: teste- sufocamento da natureza; o simbÛlico, de
cando justamente a falta de imaginaÁ„o munha-se, via de regra, algo de excepcio- uma reescritura dolorosa do real (que È
dos filÛsofos contempor‚neos a ele. Para nal e que exige um relato. M·rtir ñ no vivido como um trauma).
esse pensador de Iena, a imaginaÁ„o est· sentido de alguÈm que sofre uma ofensa Aquele que testemunha se relaciona
no centro do nosso entendimento. J· para que pode significar a morte ñ vem do de um modo excepcional com a lingua-
a testemunha de um evento-limite, como grego ìmarturî, testemunha. Devemos, gem: ele desfaz os lacres da linguagem
o assassinato em massa perpetrado pelos no entanto, por um lado, manter um que tentavam encobrir o ìindizÌvelî que
nazistas, coloca-se ñ ou melhor: impıe- conceito aberto da noÁ„o de testemunha: a sustenta. A linguagem È antes de mais
se ñ uma quest„o incontorn·vel: a n„o sÛ aquele que viveu um ìmartÌrioî nada o traÁo ñ substituto nunca perfeito e

Reprodução do livro After Auschwitz (Northern Centre for Contemporary Art, Londres)

Memorial em Treblinka,
projetado por Adam Haupt e
Franciszek Duszenko,
edificado em 1964 com 17 mil
pedras de granito dispostas em
torno de um obelisco,
representando um cemitÈrio

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Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust (editora Prestel, Munique)

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¿ esquerda, The Holocaust (1984),
escultura ao ar livre de George Segal,
no Lincoln Park, S„o Francisco (EUA)

satisfatÛrio ñ de uma falta, de uma agora deixa de se submeter a uma ordem negacionistas de Auschwitz e simples-
ausÍncia. O mesmo Perec afirma ainda: contÌnua e passa a se estruturar a partir mente evita a reflex„o sobre o ìespaÁoî
ìsempre irei encontrar, em minha prÛpria das in˙meras ìinterrupÁıesî que cons- entre a linguagem e o real.
repetiÁ„o, apenas o ˙ltimo reflexo de uma tituem o cotidiano moderno. N„o È fora de contexto, ali·s, recordar
fala ausente na escrita, o esc‚ndalo do Evidentemente, na medida em que que Lacan descreveu a constituiÁ„o do
silÍncio deles [os pais de Perec, assassinados tratamos da literatura de testemunho simbÛlico como um passo anterior ‡
pelos nazistas] e do meu silÍncio... A lem- escrita a partir de Auschwitz, a quest„o constituiÁ„o do ìreal, na medida em que
branÁa deles est· morta na escrita; a es- do trauma assume uma dimens„o e uma este constitui o ‚mbito do que fica fora
crita È a lembranÁa de sua morte e a intensidade inauditas. Ao pensar nessa da simbolizaÁ„oî. Para ele ìo que n„o veio
afirmaÁ„o de minha vidaî. literatura, redimensionamos a relaÁ„o ‡ luz do simbÛlico aparece no realî (nas
A experiÍncia traum·tica È, para entre a linguagem e o real: n„o podemos palavras de Lacan: ìCe qui níest pas venu
Freud, aquela que n„o pode ser totalmente mais aceitar o vale-tudo dito pÛs-mo- au jour du Symbolique, apparaÓt dans le
assimilada enquanto ocorre. Os exemplos derno que acreditou ter resolvido essa RÈelî). O real resiste ao simbÛlico,
de eventos traum·ticos s„o batalhas e complexa quest„o ao afirmar simples- contorna-o, ele È negado por este ñ mas
acidentes: o testemunho seria a narraÁ„o mente que ìtudo È literatura/ficÁ„oî. Ao tambÈm reafirmado ex negativo. O real se
n„o tanto desses fatos violentos, mas da pensarmos Auschwitz fica claro que mais manifesta na negaÁ„o: daÌ a resistÍncia ‡
resistÍncia ‡ compreens„o dos mesmos. do que nunca a quest„o n„o est· na transposiÁ„o (traduÁ„o) do inimagin·vel
A linguagem tenta cercar e dar limites existÍncia ou n„o da ìrealidadeî, mas na para o registro das palavras; daÌ tambÈm
‡quilo que n„o foi submetido a uma forma nossa capacidade de percebÍ-la e de a perversidade do negacionismo que
no ato da sua recepÁ„o. DaÌ Freud des- simboliz·-la. como que ìcoloca o dedo na feridaî do
tacar a repetiÁ„o constante, alucinatÛria, drama da irrepresentabilidade vivido pelo
por parte do ìtraumatizadoî, da cena ìObservaÁ„o do sobrevivente. Este vive a culpa devido ‡
violenta: a histÛria do trauma È a histÛria cis„o entre a imagem (da cena trau-
de um choque violento, mas tambÈm de
significado ausenteî m·tica) e a sua aÁ„o, entre a percepÁ„o e
um desencontro com o real. (Em grego, Saul Friedl‰nder, um dos maiores his- o conhecimento, ‡ disjunÁ„o entre signi-
vale lembrar, ìtraumaî significa ferida.) toriadores da Shoah (ìcat·strofeî, em he- ficante e significado.
A incapacidade de simbolizar o choque braico, termo que prefiro utilizar por n„o Primo Levi abriu o seu livro Os
ñ o acaso que surge com a face da morte ter as conotaÁıes sacrificiais incluÌdas em afogados e os sobreviventes ñ uma das mais
e do inimagin·vel ñ determina a repetiÁ„o Holocausto), resumiu o estado atual das profundas reflexıes j· escritas sobre o
e a constante ìposterioridadeî, ou seja, a pesquisas sobre esse evento com as pala- testemunho ñ lembrando a incredulidade
volta aprËs-coup da cena. vras: ìTrÍs dÈcadas aumentaram o nosso do p˙blico de um modo geral diante das
… interessante notar que Freud desen- conhecimento dos eventos em si, mas n„o primeiras notÌcias, j· em 1942, sobre os
volveu o seu conceito de trauma, entre a nossa compreens„o deles. N„o pos- campos de extermÌnio nazistas. E mais,
outros textos, em Para alÈm do princÌpio do suÌmos hoje em dia nenhuma perspectiva essa rejeiÁ„o das notÌcias diante de seu
prazer (1920), um trabalho que inicia com mais clara, nenhuma compreens„o mais ìabsurdoî fora prevista pelos prÛprios
uma reflex„o sobre o car·ter acidental e profunda do que imediatamente apÛs a perpetradores do genocÌdio. Estes esta-
excepcional do acidente traumatizante, guerra.î O trabalho de luto que realiza- vam preocupados em apagar os rastros
mas que depois se ocupa em descrever as mos com relaÁ„o ‡ Shoah ñ um trabalho dos seus atos, mas sabiam que podiam
pulsıes estruturais (eros e ñ sobretudo! ñ d˙bio, fadado a sempre recomeÁar, muito contar com a incredulidade do p˙blico
tanatos) com base em termos muito seme- mais melancolia que propriamente luto diante de barbaridades daquela escala.
lhantes. Portanto, a leitura que Walter ñ, Fridl‰nder compara ao que Maurice Levi lembra a fala de um SS aos prisio-
Benjamin fez desse texto de Freud ñ no Blanchot denominou de ìobservaÁ„o do neiros narrada por Simon Wiesenthal:
seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire significado ausenteî. Portanto, o ìparaÌso ìSeja qual for o fim desta guerra, a guerra
(1939) ñ e que normalmente È vista como liberal do ceticismo espertalh„oî ñ na ex- contra vocÍs nÛs ganhamos; ninguÈm
uma apropriaÁ„o indevida do conceito press„o de Gertrud Koch ñ, que nega a restar· para dar testemunho, mas, mesmo
freudiano de trauma, por alarg·-lo existÍncia do real (em vez de negar apenas que alguÈm escape, o mundo n„o lhe dar·
demais, de certo modo est· in nuce em a existÍncia de uma determinaÁ„o ˙nica e crÈdito... Ainda que fiquem algumas
Freud. Para Benjamin, o choque È parte ontolÛgica do mesmo), serve de guarda- provas e sobreviva alguÈm, as pessoas
integrante da vida moderna: a experiÍncia chuva para as idÈias dos (in)famosos dir„o que os fatos narrados s„o t„o mons-

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Reprodução do livro After Auschwitz Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

Nesta p·gina e na
p·gina oposta,
o Monumento contra
o Fascismo,
em Hamburgo-Harburg

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Reprodução do livro After Auschwitz Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

Antimonumento foi concebido para desaparecer


O Monumento contra o Fascismo em Hamburgo-Harburg, na Alemanha, de autoria do casal Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, È na verdade um anti-
monumento: o pilar de aÁo de 12 metros de altura e recoberto por uma pelÌcula de chumbo foi instalado em 1986 e depois, aos poucos, enterrado no
seu pedestal atÈ desaparecer por completo em 1993. O p˙blico participou da obra escrevendo no monumento com cinzÈis: palavras antifascistas, mas
tambÈm neonazis. Os Gerz expressaram a necessidade e a impossibilidade da memÛria literalizando o dito de Nietzsche: ìFora com os monumentos!î

truosos que n„o merecem confianÁa: morte ñ o indizÌvel por excelÍncia: que a outro. Esses conceitos n„o s„o simples-
dir„o que s„o exageros e propaganda toda hora tentamos dizer ñ recebe nova- mente antÌpodas, existe uma modalidade
aliada e acreditar„o em nÛs que nega- mente o cetro e o impÈrio sobre a lingua- do esquecimento ñ como Nietzsche j· o
remos tudo, e n„o em vocÍs. NÛs È que gem. O simbÛlico e o real s„o recriados sabia ñ t„o necess·ria quanto a memÛria
ditaremos a histÛria dos Lager (campos na sua relaÁ„o de m˙tua fertilizaÁ„o e e que È parte desta. O geÛgrafo Paus‚nias
de concentraÁ„o).î exclus„o. narra que, na BeÛcia, o rio do Esque-
A memÛria ñ assim como a lingua- cimento, o Lete, corria ao lado da fonte
MemÛria e narraÁ„o gem, com seus atos falhos, torneios de da MemÛria, MnemÛsina. Segundo os
estilo, silÍncios etc. ñ n„o existe sem a antigos, as almas bebiam do rio Lete para
Auschwitz pode ser compreendido se livrar da sua existÍncia anterior e pos-
sua resistÍncia. Elie Wiesel, que resolveu
como uma das maiores tentativas de redigir o seu relato testemunhal, Nuit, dez teriormente reencarnar em um novo
ìmemoricÌdioî da histÛria. A histÛria do anos apÛs a libertaÁ„o do Campo de corpo (como se lÍ em VirgÌlio, Eneida,
Terceiro Reich, para Levi, pode ser ìrelida ConcentraÁ„o de Auschwitz ñ portanto, VI, 713-716).
como a guerra contra a memÛria, falsi- apÛs dez anos de silÍncio e de resistÍncia Para o sobrevivente, a narraÁ„o com-
ficaÁ„o orwelliana da memÛria, falsi- ‡ memÛria ñ, narra-nos que o seu teste- bina memÛria e esquecimento. Primo
ficaÁ„o da realidade, negaÁ„o da reali- munho nasceu de uma promessa que ele Levi afirma que n„o sabe se os testemu-
dadeî. Os sobreviventes e as geraÁıes fizera na sua noite de chegada a Aus- nhos s„o feitos ìpor uma espÈcie de
posteriores defrontam-se a cada dia com a chwitz. Jamais je níoublierai cette nuit, la obrigaÁ„o moral para com os emudecidos
tarefa (no sentido que Fichte e os rom‚n- premiËre nuit de camp qui a fait de ma vie ou, ent„o, para nos livrarmos de sua
ticos deram a esse termo: de tarefa infinita) une nuit longue et sept fois verrouillÈe, memÛria: com certeza o fazemos por um
de rememorar a tragÈdia e enlutar os mor- ìNunca me esquecerei dessa noite, a impulso forte e duradouroî. Jorge Sem-
tos. Tarefa ·rdua e ambÌgua, pois envolve primeira noite do campo que fez da minha prun, que foi libertado de Buchenwald
tanto um confronto constante com a cat·s- vida uma noite longa e sete vezes seladaî. em 11 de abril de 1945, compÙs o seu
trofe, com a ferida aberta pelo trauma ñ e, Como Harald Weinrich nos chama testemunho sobre a sua experiÍncia no
portanto, envolve a resistÍncia e a supe- atenÁ„o no seu belÌssimo livro Lethe. Kunst Lager apenas em 1994. A explicaÁ„o para
raÁ„o da negaÁ„o ñ, como tambÈm visa und Kritik des Vergessens (Lete. Arte e crÌtica esse ìatrasoî, esse aprËs-coup, est· clara
um consolo nunca totalmente alcanÁ·vel. do esquecimento), Elie Wiesel utilizou a no texto: Semprun optara pelo esque-
Aquele que testemunha sobreviveu ñ dupla negativa para a sua promessa ñ cimento. GraÁas a LorËne, ele narra em
de modo incompreensÌvel ñ ‡ morte: ele ìnunca me esquecereiî ñ em vez da forma Lí Ècriture ou la vie, ìque n„o sabia de nada,
como que a penetrou. Se o indizÌvel est· afirmativa: ìvou me lembrarî. que nunca soube de nada, eu voltei para a
na base da lÌngua, o sobrevivente È aquele A memÛria sÛ existe ao lado do esque- vida. Ou seja, para o esquecimento: a vida
que reencena a criaÁ„o da lÌngua. Nele a cimento: um complementa e alimenta o era o preÁoî.

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Por outro lado a modalidade da me- nÛs estamos ao lado do t˙mulo deles, gens mnemÙnicas descortinando as idÈias
mÛria da cat·strofe tem uma longa tra- porque atÈ isso os assassinos negaram a por detr·s das imagens.
diÁ„o no judaÌsmo ñ uma cultura marcada eles.î Escritura e morte se reencontram Essa anedota que est· na origem da
pelo pacto de memÛria entre Deus e seu aqui nos livros de memÛria, mas agora tradiÁ„o cl·ssica da arte da memÛria deixa
povo: um n„o dever· esquecer-se do outro. no sentido oposto, ou seja, n„o mais da entrever de modo claro n„o apenas a pro-
A religi„o judaica È antes de mais nada morte como estando na base da lingua- funda relaÁ„o entre a memÛria e o espaÁo,
estruturada no culto da memÛria. Suas gem, mas sim na medida em que o texto e portanto notar em que medida a me-
principais festas s„o rituais de rememo- deve manter a memÛria, a presenÁa dos mÛria È uma arte do presente, mas tambÈm
raÁ„o da histÛria (no Pessah a leitura da mortos e dar um t˙mulo a eles. a relaÁ„o entre a memÛria e a cat·strofe,
Haggadah traz a histÛria do  xodo com o entre memÛria e morte, desabamento.
intuito de transportar as geraÁıes posterio- Em portuguÍs, note-se, fica acentuada a
res ‡quele evento; no Purim recorda-se a Cat·strofe e a arte dialÈtica Ìntima que liga o lembrar ao
salvaÁ„o dos judeus da perseguiÁ„o de da memÛria esquecer, se pensarmos na etimologia
Haman; no casamento judaico, em um ato latina que deriva o ìesquecerî de cadere,
de luto, um copo È quebrado para recordar, O texto de testemunho tambÈm tem
cair: o desmoronamento apaga a vida, as
em meio ‡ comemoraÁ„o, a destruiÁ„o do por fim um culto aos mortos. N„o por
acaso esse culto est· na origem de uma construÁıes, mas tambÈm est· na origem
Templo e a impossibilidade de reparo ñ o das ruÌnas ñ e das cicatrizes. A arte da
tikkun na tradiÁ„o da mÌstica judaica ñ antiq¸Ìssima tradiÁ„o da arte da memÛria
ou da mnemotÈcnica (ars memoriae). Vale memÛria, assim como a literatura de tes-
desta perda). temunho, È uma arte da leitura de cica-
A Tor·, como È conhecido, È mantida a pena recordar nesse contexto a anedota
acerca do poeta SimÙnides de Ceos (apr. trizes. (Georges Perec, ali·s, narra na sua
atual graÁas aos seus coment·rios midra- obra autobiogr·fica a import‚ncia que ele
chÌsticos. O filÛsofo norte-americano 556-apr.468 a.C.), considerado o pai
dessa arte, e que foi narrada, entre outros, atribuÌa a uma cicatriz no seu l·bio su-
Berel Lang aproximou de modo particu- perior, uma marca de ìuma import‚ncia
larmente feliz a literatura sobre a Shoah por CÌcero (De oratore II, 86, 352-354),
por Quintiliano (11,2,11-16) e por La capitalî que ele nunca tentou dissimular.
e a tradiÁ„o do coment·rio bÌblico: em Outra revelaÁ„o para nÛs central no seu
ambos os casos trata-se de uma reatua- Fontaine. Nessa anedota, SimÙnides È
salvo do desabamento de uma sala de livro È um plano de redigir um livro que
lizaÁ„o, de uma recepÁ„o aprËs-coup de
banquete onde se comemorava a vitÛria justamente deveria se chamar Les lieux
algo que nunca pode ser totalmente com-
do pugilista Skopas. O que nos importa [Os locais ] ñ ìno qual eu tento descrever
preendido/traduzido. O comentador,
nessa histÛria È o que se sucedeu apÛs essa o devir, no decorrer de doze anos, de doze
assim como o que compıe seu testemu-
cat·strofe. Os parentes das vÌtimas n„o lugares parisienses aos quais, por uma
nho, tenta preencher os espaÁos abertos
conseguiram reconhecer os seus fami- raz„o ou outra, estou particularmente
no texto/histÛria, sabendo que essa tarefa
liares mortos que se encontravam total- ligadoî. Walter Benjamin realizara em
È infinita, e, mais importante, com a
consciÍncia de que a leitura È perpassada mente desfigurados sob as ruÌnas. Eles parte esse projeto ñ tendo Berlim como
por um engajamento moral, por um recorreram a SimÙnides ñ o ˙nico sobre- topos ñ nos seus textos autobiogr·ficos
compromisso Ètico com o ìoriginalî. vivente ñ que graÁas ‡ sua mnemotÈcnica Inf‚ncia berlinense e CrÙnica berlinense.)
A necessidade de testemunhar Ausch- conseguiu se recordar de cada partici-
witz fica clara se nos lembrarmos dos pante do banquete, na medida em que ele EstÈtica e Ètica
in˙meros livros de memÛria redigidos logo se recordou do local ocupado por eles. A Mas voltemos por ˙ltimo ao tema
apÛs aquela tragÈdia. Os chamados Yizkor sua memÛria topogr·fica procedia inicial da ìinimagibilidadeî da Shoah, ‡
Bikher n„o s„o nada mais do que uma conectando cada pessoa a um locus (ou sua inverossimilhanÁa. Para Aharon
continuidade tanto da tradiÁ„o topos: daÌ se ver a mnemotÈcnica como Appelfeld ñ um judeu da Bucovina, local
iconoclasta judaica como da outra face um procedimento topogr·fico, como a de origem de outros dois escritores centrais
dessa tradiÁ„o: a da escrita e a da narraÁ„o descriÁ„o/criaÁ„o de uma paisagem mne- na literatura de testemunho: Paul Celan e
como meio de manter a memÛria. Em mÙnica). A memÛria topogr·fica È tam- Dan Pagis ñ ìtudo o que ocorreu foi t„o
um desses livros podemos ler: ìO livro bÈm antes de mais nada uma memÛria gigantesco, t„o inconcebÌvel, que a prÛpria
memorial que ir· imortalizar as memÛ- imagÈtica: na arte da memÛria conectam- testemunha via-se como uma inventora. O
rias dos nossos parentes, os judeus de se as idÈias que devem ser lembradas a sentimento de que a sua experiÍncia n„o
Pshaytsk, servir·, portanto, como um imagens e, por sua vez, essas imagens a pode ser contada, que ninguÈm pode
substituto do t˙mulo. Sempre que nÛs locais bem conhecidos. Aquele que se entendÍ-la, talvez seja um dos piores que
tomarmos este livro, nÛs sentiremos que recorda deve poder percorrer essas paisa- foram sentidos pelos sobreviventes apÛs a

46 CULT - junho/99
Reproduzido do catálogo Passages – Homage to Walter Benjamin, Tel-Aviv Museum of Art
guerraî. J· AristÛteles, o primeiro grande
teÛrico da recepÁ„o das obras de arte, dizia
na sua PoÈtica: ìDeve-se preferir o que È
impossÌvel, mas verossÌmil, ao que È
possÌvel, mas n„o persuasivoî (1460a). E
Boileau, no sÈculo XVII, escreveu ecoan-
do AristÛteles: ìO espÌrito n„o se emo-
ciona com o que ele n„o acreditaî (Arte
poÈtica, III, 59). Os primeiros documen-
t·rios realizados no imediato pÛs-guerra,
extremamente realistas, geravam esse
efeito perverso: as imagens eram ìreais
demaisî para serem verdadeiras, elas
criavam a sensaÁ„o de descrÈdito nos
espectadores. A saÌda para esse problema
foi a passagem para o estÈtico: a busca da
voz correta. A memÛria da Shoah ñ e a
literatura de testemunho de um modo geral
ñ desconstrÛi a Historiografia tradicional
(e tambÈm os tradicionais gÍneros liter·-
rios) ao incorporar elementos antes reser-
vados ‡ ìficÁ„oî. A leitura estÈtica do
passado È necess·ria, pois essa leitura se
opıe ‡ ìmusealizaÁ„oî do ocorrido: ela
est· vinculada a uma modalidade da
memÛria que quer manter o passado ativo
no presente. Em vez da tradicional represen-
taÁ„o, o seu registro È do Ìndice: ela quer
apresentar, expor o passado, seus fragmen-
tos, cacos, ruÌnas e cicatrizes. N„o sÛ na
literatura, tambÈm nas artes pl·sticas
percebe-se esse percurso em direÁ„o ao
testemunho, ao trabalho com a memÛria
das cat·strofes (lembremos apenas das
obras de Cindy Sherman, Anselm Kiefer,
Samuel Back e Francis Bacon). As
fronteiras entre a estÈtica e a Ètica tornam-
se mais fluidas: testemunha-se o despertar
para a realidade da morte. Nesse despertar
na e para a noite ñ como dizia Walter Ben-
jamin: ìa noite salvaî ñ despertamos an- SaÌda para a luz, parte do monumento
Passagens, construÌdo por Dani Karavan em
tes de mais nada para a nossa culpa, pois homenagem a Walter Benjamin no cemitÈrio de
Portbou, na Espanha (fronteira com a FranÁa),
nosso compromisso Ètico estende-se ‡ local onde o filÛsofo se suicidou em 1940
morte do outro, ‡ consciÍncia do fato de que
a nossa vis„o da morte chegou tarde
demais.
Márcio Seligmann-Silva
professor de teoria literária na PUC-SP, autor de Ler o livro
do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética e
tradutor de O conceito de crítica de arte no romantismo alemão,
de Walter Benjamin, e de Laocoonte, de G.E. Lessing – todos
pela editora Iluminuras

junho/99 - CULT 47
No conto autobiogr·fico ìA morte O homem era um profeta, escreve Wiesel, queando o acesso para um compartilha-
do meu paiî, no livro Holocausto: Canto de e sabia o seu destino. O sobrevivente n„o mento da sua experiÍncia. Porque seus
uma geraÁ„o perdida, o escritor Elie Wiesel resistiu com armas, n„o ajudou os contos falam sempre da impossibilidade
dilacera-se na d˙vida sobre rezar ou n„o companheiros; tampouco se salvou por de entender e de comunicar. ìTalvez
o kadish, a reza judaica dos mortos, no suas prÛprias forÁas. Foi um milagre. algum dia alguÈm explique como, no
anivers·rio da morte de seu pai, assas- Esses dois contos de Elie Wiesel s„o nÌvel humano, Auschwitz foi possÌvel;
sinado pelos nazistas. O eixo principal bastante significativos n„o apenas de sua mas, no nÌvel de Deus, Auschwitz cons-
da narrativa est· na revolta do homem obra, mas de uma recorrente e dominante tituir· para sempre o mais desnorteante
diante do que Wiesel chama de ìausÍncia abordagem da memÛria do Holocausto. dos mistÈriosî, escreveu Wiesel.
de Deusî, que teria tornado possÌvel o … como se Wiesel nos dissesse que n„o È Como entender que Wiesel ñ escritor
genocÌdio. possÌvel reconhecer uma dimens„o hu- e prÍmio Nobel da Paz, tornado o
Rezar o kadish, buscar Deus, escreve mana no nazismo, humano no sentido de homem-memÛria do Holocausto, cuja
Wiesel, constituiria o mais duro protesto entender o nazismo na histÛria, que n„o È voz È ouvida sempre que se trata da viola-
diante da sua ausÍncia. Em ìA morte do possÌvel reconhecer homens nos nazistas. Á„o dos direitos humanos ñ afirme a im-
meu paiî, o conflito central de Wiesel È Essa idÈia È compartilhada por alguns dos possibilidade de comunicar? Nas pala-
com Deus. N„o h· conflitos entre ho- mais conhecidos historiadores e filÛsofos vras de Wiesel, ìos eruditos e filÛsofos de
mens. Os judeus n„o reagem e n„o se do pÛs-guerra, como Saul Friedlander e todos os matizes que tiverem a opor-
revoltam contra os nazistas, e estes encar- George Steiner. tunidade de observar a tragÈdia recuar„o
nam uma espÈcie de mal teolÛgico, sobre- Essa recusa de um plano histÛrico de ñ se forem capazes de sinceridade e
humano. Em outro conto, o desfecho se compreens„o faz com que ao mesmo humildade ñ sem ousar penetrar no ‚ma-
d· no plano divino. Um judeu deportado tempo que Wiesel insista na necessidade go do assunto; e, se n„o o forem, a quem
de trem foge ìmilagrosamenteî do vag„o. de lembrar e de contar, ele acabe blo- interessar„o as suas conclusıes grandi-

MemÛria e
histÛria do
Holocausto Roney Cytrynowicz

A Torre das Faces, no United States Holocaust Memorial Museum

52 CULT - junho/99
loq¸entes? Por definiÁ„o, Auschwitz fica qualquer reaÁ„o das vÌtimas, negando ‡s No plano ideolÛgico, os nazistas se
alÈm do seu vocabul·rioî. Esta frase pode prÛprias vÌtimas, atÈ a consumaÁ„o ˙ltima consideravam soldados biolÛgicos que
ser entendida como uma ruptura pro- da sua prÛpria morte, que elas seriam estavam executando uma miss„o que a
funda entre os planos da memÛria e da assassinadas. prÛpria natureza se encarregaria de fazer
histÛria. Nas c‚maras de g·s atingiu-se o contra as ìraÁasî consideradas inferiores,
Os sobreviventes do Holocausto, co- limite m·ximo de capacidade fÌsica de em um processo de ìseleÁ„o naturalî.
mo Wiesel, sentem uma solid„o insupe- matar com o m·ximo de n„o-envolvi- Para o nazismo, a histÛria era luta de raÁas
r·vel, como se a memÛria constituÌsse um mento pessoal dos prÛprios nazistas e e eles estavam fazendo ìbiologia apli-
peso terrÌvel do qual jamais se est· livre. A m·xima possibilidade de negaÁ„o da cadaî. Eram mÈdicos, como mostrou
histÛria (entendida como o ofÌcio do morte e posterior destruiÁ„o dos vestÌgios. Robert Jay Lifton, que faziam todo o
historiador) jamais os ampara, n„o importa As vÌtimas recebiam cabides numerados processo de ìseleÁ„oî na entrada dos
quantos livros sejam escritos ou centros para encontrar as roupas apÛs o ìbanho campos e operavam as c‚maras de g·s.
de documentaÁ„o organizados. Apenas o de desinfecÁ„oî. Dentro das c‚maras de Todo o processo de extermÌnio foi medi-
curso da memÛria suspende tempora- g·s era calculada uma luz para atenuar o calizado segundo uma concepÁ„o euge-
riamente a ang˙stia. A ruptura ou dist‚ncia p‚nico. O Zyklon B foi utilizado apÛs nista, central no nazismo, de que matar
entre histÛria e memÛria pode ser enten- testes com v·rias tipos de g·s. Uma judeus significava manter a sa˙de do
dida ñ como uma hipÛtese ñ a partir de novilÌngua utilizada pela burocracia ìcorpo arianoî, associada ‡ propaganda
uma aproximaÁ„o histÛrica que pesquise impedia qualquer referÍncia direta ‡ milenarista e anticomunista de que matar
a prÛpria concepÁ„o e execuÁ„o do exter- morte: assassinato em massa era ìtrata- o povo judeu era a salvaÁ„o do ìReich de
mÌnio nazista. O processo de genocÌdio mento especialî, c‚maras de g·s eram Mil Anosî.
dos judeus europeus foi concebido e ìcasas de banhoî, ìbanho de desinfecÁ„oî, Diante do processo de dissimulaÁ„o
executado, entre 1941 e 1945, para evitar ìaÁıesî ou ìtratamento apropriadoî. e negaÁ„o da morte, as vÌtimas sofriam

O genocÌdio dos judeus foi concebido


para evitar a reaÁ„o das vÌtimas e o
envolvimento pessoal dos nazistas,
eliminando os vestÌgios dos assassinatos,
provocando nos sobreviventes um efeito
de estranhamento em relaÁ„o ‡ vida fora
Fotos/Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

dos campos de extermÌnio e conferindo


ao historiador a tarefa de recuperar
memÛrias e fragmentos individuais que
tornem compreensÌvel a gram·tica de uma
ideologia que organizou o plano
sistem·tico de destruiÁ„o de um povo
Entrada do campo de concentraÁ„o de Auschwitz

junho/99 - CULT 53
um processo ainda mais violento de ìEste mundo n„o È este mundoî poderia possibilidades de destruiÁ„o neste
estranhamento. Tudo era conduzido na ser a frase dita por todos os sobreviventes. sÈculo.
mais absoluta ìordemî e ìnormalidadeî; ìQuem n„o esteve ël·í jamais vai poder A partir do trabalho de historiadores,
n„o havia Ûdio, mas sim uma burocrati- entenderî, dizem muitos sobreviventes psicanalistas e pesquisadores de ciÍncias
zaÁ„o limite da morte. Em Eichmann em Trabalhando em um document·rio do sociais, compreendemos hoje significa-
JerusalÈm, Hannah Arendt mostrou que exÈrcito brit‚nico sobre campos de con- tivamente mais do que ao fim da guerra,
a personalidade emblem·tica do nazismo centraÁ„o e de extermÌnio ao final da se pensarmos em Breviaire de la haine, de
È Eichmann, o burocrata cumpridor de Segunda Guerra Mundial, o cineasta Leon Poliakov e depois em Raul Hilberg,
ordens, um ìvazio de pensamentoî, sem Alfred Hitchkock, ao encarar a vis„o de e estudos mais especÌficos como Robert
Ûdio pelas vÌtimas. Isso È muito mais valas com milhares de cad·veres em Jay Lifton, sobre mÈdicos e medicina
perturbador do que perceber os nazistas Bergen Belsen, decidiu filmar de forma nazista, em Martin Broszat, George L.
como o mÈdico de Auschwitz, Mengele, que a c‚mera deslizasse das testemunhas Mosse, Arno Mayer, Martin Gilbert,
que suscita explicaÁıes do tipo ìloucura que olhavam em direÁ„o ‡s valas sem sobre o n„o bombardeio de Auschwitz
coletivaî ou do nazismo como a ìlou- operar nenhum corte de imagem. Para pelos aliados, o trabalho ˙nico sobre os
curaî de lÌderes como Hitler e Mengele. Hitchkock, aquelas imagens eram t„o ciganos de Grattan Puxon e Donald
Em um filme alem„o sobre o julgamento terrivelmente inÈditas que era preciso fil- Kenrick, entre dezenas de estudos
dos carrascos de um campo de concen- mar sem truques, para que nunca alguÈm decisivos.
traÁ„o vÍ-se a esposa de um guarda contar pudesse acusar as cenas de montagem. Os sobreviventes testemunharam
como era boa a vida na casa a poucos me- De certa forma, a memÛria e o teste- fatos que n„o tÍm paralelo na histÛria,
tros das c‚maras de g·s, o amor do marido munho negam o acesso do historiador a fatos para os quais nenhuma experiÍncia
pela filha, os cuidados com o jardim. uma aproximaÁ„o racional do nazismo pessoal pode contribuir para um enten-
Como pode o sobrevivente retomar a e do Holocausto. Entre memÛria e dimento coletivo. Na memÛria reside,
vida no mundo, ressignific·-la, retomar histÛria parece haver, em certos mo- portanto, muitas vezes, um presente sem
os vÌnculos e os laÁos que alicerÁam uma mentos, uma impossibilidade de comu- codificaÁ„o, sem atualizaÁ„o possÌvel do
vida corriqueira em um mundo que se nicaÁ„o, conforme os contos de Wiesel. conhecimento e da experiÍncia. Sem tra-
tornou, repentina e inexplicavelmente, do O que est· em quest„o com Auschwitz diÁ„o, escreveu Arendt, que selecione e
ponto de vista subjetivo, inteiramente n„o È a morte individual, que pode ser nomeie, que transmita e preserve, parece
estranhado? Uma visita ao campo de contada pela memÛria, mas o genocÌdio n„o haver nenhuma continuidade consci-
extermÌnio de Auschwitz-Birkenau e aos de um povo executado por um Estado ente no tempo e, portanto, humanamente
campos de concentraÁ„o, como Dachau, moderno no coraÁ„o da Europa em falando, nem passado nem futuro, mas
revela a inaceit·vel proximidade fÌsica pleno sÈculo XX. Ao historiador cabe apenas o ciclo biolÛgico. E o que pode
dos campos com a vida cotidiana polo- recuperar as memÛrias e os fragmentos ser mais desesperador do que isso? N„o
nesa ou alem„. Onde estava a fronteira individuais e torn·-los compreensÌveis, devemos esperar do testemunho que ele
entre o genocÌdio e as tramas do coti- a ele cabe superar a barreira do intan- explique algo, nÛs n„o devemos lhe fazer
diano? Esta fronteira nunca existiu, mas gÌvel para entender a organizaÁ„o do perguntas, apenas garantir-lhe o direito
a experiÍncia do sobrevivente È a de que Estado alem„o a partir de 1933, para en- de falar, de contar.
ele teria sido deportado para outro pla- tender a gram·tica interna da ideologia, A solid„o do sobrevivente È a dor de
neta, tamanha a sensaÁ„o de isolamento e sua potÍncia, em que esferas da vida descobrir-se em um mundo em que tudo
falta de sentido do que estava ocorrendo. social e psicolÛgica ela atua, a emer- tem a mesma aparÍncia, homens, carros,
ìO verdadeiro horror dos campos de gÍncia desta ideologia na histÛria da mÈdicos, caminhıes, chuveiros, e n„o
concentraÁ„o e de extermÌnio reside no Alemanha e da Europa e como ela se poder entender como tudo isso transfi-
fato de que os internos, mesmo que consi- apossou do Estado e como este orga- gurou-se em uma gigantesca m·quina de
gam manter-se vivos, est„o mais isolados nizou, pela primeira vez na histÛria, um morte. … dor pela sensaÁ„o de absoluto
do mundo dos vivos do que se tivessem plano sistem·tico de destruiÁ„o de todo isolamento em um mundo no qual seres
morrido, porque o horror compele ao es- um povo. O nazismo condensou em grau humanos ñ m·xima semelhanÁa ñ torna-
quecimentoî, escreveu Hannah Arendt. m·ximo ñ atÈ agora conhecido ñ as ram-se assassinos de um povo. Pode-se

54 CULT - junho/99
BIBLIOGRAFIA
Literatura de testemunho
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TraduÁ„o de Sidney Rosenfeld e Stella Rosenfeld, Nova York, Schocken Books, 1990.
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ï Nuit et brouillard, de Jean Cayrol. Paris, Fayard, 1997.
compreender Elie Wiesel. … como se sua ï Cristal, de Paul Celan. TraduÁ„o de Cl·udia Cavalcanti. S„o Paulo, Iluminuras, 1999.
ï Sete rosas mais tarde. Antologia poÈtica, de Paul Celan. TraduÁ„o de Jo„o Barrento e Y.K.
fala fosse o sentido da sua vida. Porque
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n„o importa mais o que ele conta, e muito ï A dor, de Marguerite Duras. TraduÁ„o de Vera Adami. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
menos sua descrenÁa na possibilidade de ï Ver: Amor, de David Grossman. Trad. de Nancy Rosenchan. RJ, Nova Fronteira, 1993.
contar. Importa apenas falar (ouvir), ï Di·rio do gueto, de Janus Korczak. TraduÁ„o de Jorge Rochtlitz. S„o Paulo, Perspectiva, 1986.
como a manter-se vivo, falar para si mes- ï A tabela periÛdica, de Primo Levi. Trad. de Luiz S. Henriques. RJ, Relume-Dumar·, 1994.
mo que se est· vivo, que se sobreviveu e ï … isto um homem?, de Primo Levi. TraduÁ„o de Luigi del Re, Rio de Janeiro, Rocco, 1988.
buscar restabelecer algum tipo de vÌnculo ï Os afogados e os sobreviventes, de Primo Levi. Trad. de Luiz S. Henriques. RJ, Paz e Terra, 1990.
com a idÈia de que existe uma huma- ï A trÈgua, de Primo Levi. Trad. de Marco Lucchesi. S„o Paulo, Companhia das Letras, 1997.
ï Se n„o agora, quando?, de Primo Levi. Trad. de Nilson Moulin. S.P., Cia. das Letras, 1999.
nidade fundada em leis como ìN„o
ï W ou a memÛria da inf‚ncia, de Georges Perec. Trad. de Paulo Neves. S.P., Cia. das Letras, 1995.
Assassinar·s!î. ï Am I a murderer?: Testament of a jewish ghetto policeman, de Calel Perechodnik. TraduÁ„o de
Em muitos de seus contos, Wiesel n„o Frank Fox, Boulder (Colorado, EUA), Westview Press, 1996.
escreve para comunicar, mas para n„o ï LíÈcriture ou la vie, de Jorge Semprun. Paris, Gallimard, 1994.
deixar morrer, para si mesmo, seu prÛprio ï Maus, de Art Spiegelman. S„o Paulo, Brasiliense, 1995.
testemunho, garantia de continuidade, de ï Os di·rios de Victor Klemperer, trad. de Irene Aron. SP, Companhia das Letras, 1999.
vida. A literatura È o testemunho de sua
prÛpria sobrevivÍncia. NÛs precisamos
Ensaios
que o sobrevivente conte sem com- ï Quel che resta di Auschwitz. Líarchivio e il testimone, de Giorgio Agamben. Turim, Bollati
Boringhieri Editore, 1998.
partilhar e ele precisa que nÛs escutemos ï Arbeit am nationalen Ged‰chtnis, de Aleida Assmann. Frankfurt a. M., Campus Verlag, 1993.
sem indagar. ï Zeit und Tradition. Kulturelle Strategien der Dauer, de Aleida Assmann. Kˆln, Bˆhlau, 1998.
MemÛria e histÛria devem se ï Shoah. Formen der Erinnerung, org. de Nicolas Berg. Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1996.
respeitar, mesmo que se desencontrem. ï Trauma. Explorations in memory, org. de Cathy Caruth. Baltimore/Londres, Johns Hopkins
A histÛria deve resgatar as histÛrias de University Press, 1995.
vida, as dores e as intensidades subjetivas, ï Reflections of nazism: An essay on kitsch and death, de Saul Friedl‰nder. Bloomington, Indiana
mas jamais pode recusar a aproximaÁ„o University Press, 1991.
com a mais (aparentemente) incom- ï Probing the limits of tepresentation. Nazism and the final Solution, org. de Saul Friedl‰nder.
Cambridge, Massachusetts/Londres, Harvard University Press, 1992.
preensÌvel destruiÁ„o. … preciso que cada ï The longest shadow in the aftermath of the Holocaust, de Geoffrey Hartman. Bloomington,
documento da barb·rie seja recuperado, Indianapolis, Indiana University Press, 1996.
estudado, criticado, entendido, conser- ï Twilight memories. Marking time in a culture of amnesia, de Andreas Huyssen. N. Y., Routledge, 1986.
vado, arquivado, publicado e exposto, de ï La Shoah et les nouvelles figures mÈtapsychologigues de Nicolas Abraham et Maria Torok, de F·bio
forma a tornar a histÛria uma forma Landa. Paris, Lí Harmattan, 1999 (o tÌtulo ser· lanÁado no Brasil pela Editora Unesp)
presente de resistÍncia e de registro digno ï Act and idea in the nazi genocide, de Berel Lang. Chicago/Londres, University of Chicago Press, 1990.
dos mortos, muitos sem nome conhecido ï Holocaust testimonies. The ruins of memory, de Lawrence L. Langer. New Haven/Londres, Yale
e sem t˙mulo. Entender cada vez mais University Press, 1991.
ï Preempting the Holocaust, de Lawrence Langer. New Haven/Londres, Yale Universityu Press, 1998.
como Auschwitz tornou-se realidade ï Testimony: Literature, psychoanalysis, history, de Dorie Laub e Shoshana Felman. Londres,
histÛrica È um imperativo para com- Routledge, 1991.
preender o horror que reside no centro ï Les lieux de mÈmoire, org. de Pierre Nora. Paris, Gallimard, 1984.
da histÛria deste sÈculo e sustentar a resis- ï Pulsional. Revista de Psican·lise, n˙meros 116/117, dez. 1998/ jan. 1999. (DossiÍ sobre
tÍncia contra o horror que nunca deixa ìCat·strofe e RepresentaÁ„oî organizado por Arthur Nestrovski e M·rcio Seligmann-Silva)
de se aproximar. ï Breaking crystal. Writing and memory after Auschwitz, org. de Efraim Sicher. Urbana/Chicago,
University of Illinois Press, 1998.
ï Em face do extremo, de Tzvetan Todorov. Trad. de Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu
Dobr·nszky. Campinas, Papirus, 1995.
Roney Cytrynowicz
historiador, doutor em história pela USP, autor de Memória
ï Les assassins de la mÈmoire. ìUn Eichmann de papierî et autres essais sur le rÈvisionisme, de Pierre
da barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Vidal-Naquet. Paris, La DÈcouverte, 1987.
Guerra Mundial (Edusp), e escritor, autor do volume de contos ï Art of memory, de Francis A. Yates. University of Chicago Press, 1974.
A vida secreta dos relógios e outras histórias (Scritta)
ï The texture of memory: Holocaust memorials and meaning, de James Young. New Haven/Londres,
Yale University Press, 1993.
junho/99 - CULT 55
ì...um texto belo e verdadeiro, homem? È sem d˙vida alguma ìO canto de o car·ter lacunar da memÛria de Primo e sua
verdadeiro como unicamente a Ulissesî, onde o narrador autobiogr·fico Primo ang˙stia em tentar juntar os fragmentos da me-
ficÁ„o pode ser...î faz uma interpretaÁ„o do canto XXVI do Inferno mÛria representam a sublime mÌmese liter·ria
Emmanuel LÈvinas com a finalidade de ensinar a lÌngua italiana a da tentativa de elaborar posteriormente o trau-
seu colega de deportaÁ„o Pikolo. ma: Levi relata que, para escrever o capÌtulo
Na obra de Primo Levi h· dois temas, ou O interessante deste capÌtulo È que o Ulisses todo, levou a meia hora do intervalo do almoÁo
melhor, duas referÍncias liter·rias marcantes: A do texto de Dante È um herÈtico e rebelde, que na firma onde trabalhava como quÌmico. O
Divina ComÈdia de Dante Alighieri e a BÌblia, desafia a ira dos deuses sabendo estar fadado ‡ narrador alcanÁa, nesse contexto impossÌvel,
mais precisamente, o Antigo Testamento. morte. Ulisses, cujo parentesco com o prota- uma nova intuiÁ„o para interpretar o texto:
Ambos remetem ‡ quest„o da Ètica, central na gonista de Homero È muito remoto, quer alcan- ìAlgo de gigantesco que eu mesmo vi sÛ agora,
literatura de testemunho. O tÌtulo de seu Áar o conhecimento e a virtude. ìSeu projeto na intuiÁ„o de um momento, talvez o porquÍ
primeiro e mais famoso livro narra a experiÍncia explorador nasce de um ato de vontade indi- de nosso destino, de nosso estar hoje aqui...î.
do autor no campo de concentraÁ„o de vidual, de um estado de insatisfaÁ„o, de um
Auschwitz: … isto um homem? (Se questo Ë un sentimento de insaciabilidade que culmina no Shem· Israel
uomo de 1947). O tÌtulo originalmente proposto vislumbre da montanha do paraÌso e na sentenÁa As alteraÁıes no tÌtulo do poema colocado
por Levi foi Afogados e sobreviventes (Sommersi e infernalî, nas palavras de Guilhermo Giucci como epÌgrafe de … isto um homem? s„o tambÈm
salvati), que se tornou posteriormente tÌtulo de (Viajantes do maravilhoso). O texto de Levi pode algo muito significativo, j· que o poema possui
seu ˙ltimo livro, publicado em 1986. Pelo que ser lido como uma dupla met·fora, pois o inferno um estilo fortemente bÌblico. Seu tÌtulo ori-
o prÛprio autor afirma, os afogados do tÌtulo do campo de concentraÁ„o se apresenta mais ginal era Salmo, na primeira vers„o (1946),
aludem a um verso do sexto canto do Inferno, e monstruoso e unheimlich (ìsinistroî, n„o-fami- quando o texto foi publicado ainda em ca-
a Divina ComÈdia como um todo est· presente liar) do que a prÛpria fonte liter·ria. Por outro pÌtulos separados numa revista. Na ediÁ„o de
nos dois livros. Ademais, o capÌtulo mais lado, o valor Ètico da impossÌvel operaÁ„o de 1947, o tÌtulo do poema mudar· para Se questo
impressionante e significativo de … isto um traduÁ„o (para Pikolo que n„o entende o italiano), Ë un uomo (idÍntico ao tÌtulo do livro), atÈ ser

A Ètica da
memÛria Andrea Lombardi

Na obra do escritor italiano Primo Levi, que escreveu livros fundamentais


sobre a experiÍncia de Auschwitz, coexistem uma Ètica pragm·tica e
uma Ètica da leitura que remonta ao modelo de exegese permanente da
tradiÁ„o judaica, cujo apelo ao livre-arbÌtrio est· na raiz do anti-semitismo
Na p·gina oposta, Shulamite (1983), tela de Anselm Kiefer
56 CULT - junho/99
mudado novamente, na colet‚nea de poemas de Jacob e Shem· È interpretado como o texto E o coment·rio do Talmud acrescenta: ìA
A ora incerta, para Shem·. O tÌtulo Numa hora que funda a noÁ„o de testemunho, pois se liga ‡ ⁄ltima letra da primeira palavra de Shem· e a
incerta se origina do famoso poema de Co- afirmaÁ„o de um Deus ˙nico: ˙ltima letra da ˙ltima palavra Ehad do versÌculo
leridge, The rime of the ancient mariner, e ìO Midrash conta que Jacob reuniu ao quatro se acham escritas na Torah com letras
simboliza a ang˙stia oriunda da compuls„o ‡ redor de sua cama todos os filhos e antes de grandes. O exegeta Baal Haturim faz notar que
repetiÁ„o do ato de contar a prÛpria histÛria, abenÁoar fez-lhes esta ˙ltima pergunta: ëMeus essas duas letras compıem a palavra ed, o que
estabelecendo uma significativa analogia entre filhos! Estais bem firmes na vossa crenÁa num significa testemunho. Cada um de nÛs, recitando
testemunha e escritor: ìDesde ent„o, numa hora ˙nico Deus?í. Como resposta, os filhos levan- a Shem·, testemunha a divinidade do Eterno e
incerta,/ Essa agonia retorna:/ Enquanto n„o taram suas m„os ao cÈu e disseram: ëShema aceita o jugo de seu reino.î
narrar minha f·bula medonha/ Esse coraÁ„o Yisrael. Ouve, Israel (Jacob)! O Eterno È nosso
em mim continuar· ardendoî, que se tornar· Deus, o Eterno È umí!.... A frase da Shem‡ Duas perspectivas da Ètica
a epÌgrafe de A trÈgua, um relato da aventura ficou desde ent„o como a profiss„o de fÈ do
do narrador Primo em sua volta para a It·lia judaÌsmo, seu princÌpio m·ximo e a conden- A literatura de testemunho ñ e n„o
apÛs a libertaÁ„o do campo pelas tropas saÁ„o de seus ideais. Essas palavras foram as unicamente os textos de Levi ñ se caracteriza
soviÈticas. A escolha n„o È casual: Shem· Israel ˙ltimas pronunciadas pelos m·rtires israelitas pela presenÁa constante do tema da Ètica, de
ìrepresenta a profiss„o de fÈ pela tradiÁ„o que caÌram em todas as geraÁıes ëAl kidush forma direta ou indireta, com ou sem
religiosa judaica, seu princÌpio m·ximo e a Hashemí (pela santificaÁ„o do nome de Deus referÍncias ‡ BÌblia. Tome-se como exemplo a
condensaÁ„o de seus ideaisî (segundo A Lei de de Israel). ëShema Yisrael, Hashem ElohÈnu recente publicaÁ„o de Se n„o agora, quando?, o
MoisÈs e as ëHaftarotí do Rabino Meir Matzliah Hashem Ehadí (O Eterno È nosso Deus, o ˙nico livro de ficÁ„o dos quatro escritos por
Melamed). O texto de Shem· È formulado pela Eterno È um) ... em qualquer idioma que ouÁas, Primo Levi sobre o tema. Em seu PÛsf·cio o
primeira vez em GÍnesis, 49. Num coment·rio mesmo que n„o compreendas o que ouves... autor declara: ìN„o tive como meta escrever
que se apÛia no do Talmud, aparecem dois deve penetrar directamente no teu coraÁ„o e na uma histÛria real, mas reconstruir o itiner·rio,
elementos interessantes: Levi È um dos filhos tua alma.î plausÌvel, porÈm imagin·rio, de um desses

junho/99 - CULT 57
bandos.î O tÌtulo do livro remete a uma frase sariamente È idÍntica ‡ noÁ„o de Ètica que se variante... de algo que podemos chamar de
atribuÌda ao rabino Hilel, do sÈculo I, e indica a origina da perspectiva do leitor e da leitura. ëespÌrito judaicoí, ëpensamento judaicoí, ëma-
urgÍncia do imperativo moral na tradiÁ„o Por outro lado, mesmo realizando uma neira judaica de ver o mundoíî. Sua conclus„o
judaica. Hilel teria afirmado, segundo fonte do leitura laica de seus textos (em v·rias entrevistas em relaÁ„o ao fundador da psican·lise È que
Talmud: ìN„o faÁa aos outros aquilo que vocÍ Levi reafirma seu agnosticismo), teremos de ìFreud retÈm do judaÌsmo algo que È tambÈm
mesmo combate; esta È toda a Tor·. O resto È admitir que o Deus de Shem· apresenta um conseq¸Íncia dos complexos processos histÛ-
coment·rio. Essa frase contÈm toda a Tor·, o elemento dram·tico que poder· ser lido como ricos e sociais que afetaram os judeus da Europa
restante È coment·rio...î (Sergio Sierra. La um Deus do texto, hipÛtese que o crÌtico Harold Central no sÈculo XIX: a idÈia de que o judaÌsmo
lettura ebraica delle Scritture). O texto atribuÌdo Bloom atribui aos cabalistas (em Cabala e crÌtica), È, essencialmente, uma Ètica.î (p. 28).
a Hilel, fundador de uma escola que ter· muita um elemento de interesse enorme para a crÌtica … extremamente significativo que em
influÍncia na tradiÁ„o judaica, mostra uma contempor‚nea. Trata-se do mesmo Deus que Freud haja, como efeito do anti-semitismo
impressionante analogia com o pensamento se manifesta em  xodo 3, 14 e que responde ‡ nazista, um consciente deslocamento de sua
crist„o. pergunta sobre seu nome, formulada pela identidade em relaÁ„o a sua prÛpria tradiÁ„o
Em relaÁ„o ‡ Ètica, as observaÁıes de Levi primeira e ˙nica vez em todo o texto do Velho familiar e cultural: de alem„o para judeu, analo-
apontam para problem·ticas novas, antes n„o Testamento. A resposta, altamente enigm·tica, gamente ao que relatam muitos dos autores da
examinadas, verdadeiras descobertas: a situaÁ„o- È a seguinte: ìSerei tudo aquilo que ser·.î literatura de testemunho: ìMinha lÌngua È
limite, segundo sua descriÁ„o, deixa aflorar uma Contrariamente ‡ opini„o manifestada por alem„ ñ afirma ele em 1930 ñ, minha cultura,
ìzona cinzentaî da Ètica para efeito de um Martin Buber (em seu texto MoisÈs), que afirma minha formaÁ„o s„o alem„s e eu me via
julgamento posterior: tratar-se de ìuma frase realmente pronunciadaî, espiritualmente como alem„o atÈ perceber o
ìUma zona cinzenta, cujas bordas s„o inde- o texto pode ser lido como uma met·fora no crescimento do preconceito anti-semita na Ale-
finidas, que separa e ao mesmo tempo re˙ne os horizonte hermenÍutico do judaÌsmo: o manha e na ¡ustria alem„; desde ent„o, prefiro
dois campos dos senhores e dos escravos (...). momento de simbolizaÁ„o da invenÁ„o- denominar-me judeu.î Para Primo Levi, a
Quanto mais dura È a opress„o, tanto mais introduÁ„o da escrita na tradiÁ„o ocidental. Essa quest„o se apresenta em termos an·logos:
difusa entre os oprimidos a disponibilidade em reinterpretaÁ„o simbÛlica (pois a escrita alfa- ìAdaptei-me ‡ condiÁ„o de judeu unicamente
colaborar com o poder... ñ N„o existe propor- bÈtica j· existia na Època a que se refere o relato como efeito das leis raciais, promulgadas na It·-
cionalidade entre a piedade que provamos e a bÌblico) ir· se contrapor de forma evidente ao lia em 1938..., e da deportaÁ„o em Auschwitz.î
extens„o da dor que suscita essa piedade: uma relato da invenÁ„o da escrita descrito por Plat„o Ou, expresso de forma mais contundente:
˙nica Anne Frank suscita mais comoÁ„o do que no Fedro. Os dois mitos relatados em textos ìAdmiti ser judeu: em parte pelo cansaÁo, em
as in˙meras que sofreram como ela, mas cujas diferentes (que correspondem a contextos parte por uma irracional teimosia provocada
imagens permaneceram na sombra.î diferentes), ambos fundantes dentro da tradiÁ„o pelo orgulho...î, segundo afirmar· o narrador
Se o narrador autobiogr·fico È testemunha, ocidental, n„o sÛ provÍm de perspectivas autobiogr·fico Primo Levi em A tabela periÛdica,
ser· o leitor posterior a ser induzido a tomar o diferentes, como podem ser tomados como base ao relatar sua pris„o anterior ‡ deportaÁ„o para
lugar do juiz: ìEm quem lÍ (ou escreve) hoje a para visıes opostas: otimista e libertadora, a Auschwitz.
histÛria dos Lager, È evidente a tendÍncia, ali·s a vis„o de MoisÈs fundamenta a exegese da escrita Segundo o historiador LÈon Poliakov (em
necessidade, de dividir o mal e o bem, de poder em permanente tens„o com a oralidade; O mito ariano), a definiÁ„o especÌfica de judaÌsmo
tomar partido, repetindo o gesto de Cristo no JuÌzo pessimista e conservadora, a vis„o de Thoth no no contexto do sÈculo XX se d· como um
Universal [grifo meu]î (Afogados e Sobreviventes, Fedro estabelece um limite e desautoriza o texto produto original do anti-semitismo. Nesse sen-
p. 25). Note-se: nas Notas do segundo volume escrito, atribuindo-lhe o efeito de favorecer o
tido, portanto, a prÛpria definiÁ„o de ìformaÁ„o
das Obras de Levi consta: ìrepetindo o gesto esquecimento. Os atributos dessa nova ìdesco-
culturalî, utilizada por Mezan, deveria ser, por
de Cristo no JuÌzo Universal de Michelangeloî bertaî atribuÌda a MoisÈs ser„o idÍnticos ‡
sua vez, reinterpretada segundo um modelo de
funÁ„o da escrita para o leitor contempor‚neo:
[grifo meu], que desloca a observaÁ„o de Levi exegese permanente, caracterÌstico da prÛpria
seu poder È criador (ou m·gico), ela È eterna e
para o universo Ètico crist„o (analogamente ‡ tradiÁ„o judaica. O conceito de judaÌsmo do
onipotente, ou seja, possui os atributos de Deus.
citada frase de Hilel). sÈculo XX ter· de ser submetido a uma
Isso nos leva ‡ hipÛtese de que existem duas reinterpretaÁ„o a partir da afirmaÁ„o de uma
perspectivas da Ètica para tratar dos textos de O que È judaÌsmo? suposta tradiÁ„o indo-germ‚nica de cunho
Levi e nos textos da literatura de testemunho: Em segundo lugar, convÈm deter-se na nazista, cujo produto final ser· o genocÌdio.
por um lado, uma referÍncia (implÌcita ou problem·tica da definiÁ„o de judaÌsmo, tanto Como n„o ver que os ìjudeusî n„o constituem
explÌcita) a um Deus da justiÁa, que inspira (ou em relaÁ„o aos textos de Levi quanto em relaÁ„o um povo, n„o possuem uma lÌngua comum,
deveria inspirar!) nosso comportamento como aos textos que formam a literatura de testemu- n„o est„o unificados pela crenÁa em Deus, nem
cidad„os. Trata-se de uma Ètica pragm·tica, nho em geral. Renato Mezan formula a se- h· um Estado que afirme a pretens„o de
cujos efeitos afetam nossa cidadania de seres guinte pergunta em Psican·lise e judaÌsmo: representar todos eles? O ìjudaÌsmoî pode assim
humanos, aquela que inspira nosso compor- Resson‚ncias: ìO que significa, para os judeus, vir a significar metaforicamente o ìretorno do
tamento cotidiano, mas que n„o neces- o ser judeu?î A definiÁ„o que ele d· È ìuma recalcadoî (ou do reprimido?) na tradiÁ„o

58 CULT - junho/99
Grazia Neni/Divulgação

ocidental, ou seja uma das respostas ‡ pergunta favor·veis ‡ ruptura nessa tradiÁ„o (dentro de
implÌcita sobre nossa prÛpria origem (posta e uma substancial continuidade) È dada pela
negada por Nietzsche) e remete a uma luta tradiÁ„o hassÌdica, assim como a relata Martin
ferrenha contra a democracia interpretativa que Buber nas HistÛrias do Rabi. Nela, os sucessores
o mito mosaico no texto bÌblico introduz. do Baal Shem Tov entram quase que perma-
A tradiÁ„o judaica expressa, entre outros nentemente em conflito com seus mestres e
elementos, a negaÁ„o da existÍncia de limites precursores.
na interpretaÁ„o, pois reconhece, incentiva e O anti-semitismo pode ser interpretado
postula uma interpretaÁ„o infinita. A indagaÁ„o como brutal, radical e monstruosa oposiÁ„o ‡
sobre o judaÌsmo pode ser considerada j· uma interpretaÁ„o infinita, manifestada a partir da
resposta ‡ quest„o radical posta por Adorno e, irritaÁ„o de Plat„o contra os sofistas e os poetas
ao mesmo tempo, ‡ pergunta acerca de nossa em sua Rep˙blica. Posteriormente, a reflex„o
identidade ocidental. SÛ È possÌvel escrever platÙnica-crist„ dos padres da Igreja ir· alimentar
poesia, literatura, refletir sobre Ètica, depois de essa oposiÁ„o, que se manifestar· na rejeiÁ„o
Auschwitz, indagando acerca do lugar do judaÌs- veemente da liberdade interpretativa infinita
mo em nossa tradiÁ„o. Em outras palavras: so- (notadamente contra a Cabala), afirmada reite-
mos todos meio judeus (pois nosso outro lado È, radamente por pensadores do porte de Pico della
com certeza, grego ou greco-crist„o). Mirandola, na RenascenÁa, e Friedrich Schleier-
De fato, coexistem duas vertentes dentro macher, no sÈculo XIX. O anti-semitismo
da tradiÁ„o ocidental: uma tradiÁ„o filosÛfica e nazista poderia representar uma das manifes-
religiosa greco-crist„, ontolÛgica ou essencialista taÁıes dessa oposiÁ„o e a falta da reflex„o acerca
(segundo an·lise de Jacques Derrida em de suas causas permite a repetiÁ„o de atos per-
Gramatologia e A farm·cia de Plat„o), e uma versos e extremos. N„o se trata de uma mani- O escritor italiano e judeu Primo Levi
tradiÁ„o exegÈtica fundamentada num Deus do festaÁ„o obrigatÛria. N„o h· determinismo
texto, produto simbÛlico da introduÁ„o da nisso. Nesse sentido, o anti-semitismo pode ser
escrita, como descrito no texto do Antigo tomado como radicalizaÁ„o, modelo-limite da
Testamento, que apresenta a relaÁ„o entre orali- opÁ„o de impedir ou simplesmente limitar (mais
dade e escrita de maneira diametralmente oposta ou menos radicalmente, de forma mais ou
‡ vis„o contida no Fedro de Plat„o. A tradiÁ„o menos brutal) a liberdade e, particularmente, a
judaica antecipa o ponto de vista defendido pela liberdade de interpretaÁ„o.
crÌtica contempor‚nea, ou seja, afirma a centra- Sendo assim, a indagaÁ„o acerca da definiÁ„o
lidade do leitor no ato interpretativo, d· Ínfase de literatura de testemunho poder· originar dois
‡ oralidade ñ uma quest„o pertinente, a este pontos de vista igualmente produtivos para um
propÛsito, È a do por que Plat„o introduziu um trabalho de recuperaÁ„o da histÛria passada e
mito egÌpcio, evidentemente fundamentado na recente: ptoriamente em Shem· e no  xodo 3, 14.
vis„o antidemocr·tica dos sacerdotes tebanos 1. A literatura de testemunho apresenta em Consequentemente, ir· se originar uma inda-
em relaÁ„o ao uso da lÌngua e de seu poder, em forma liter·ria o momento de elaboraÁ„o do gaÁ„o sobre a Ètica do livre-arbÌtrio, fundamen-
vez de utilizar mitos gregos, bem mais prÛxi- trauma dos sobreviventes do genocÌdio e ter· tada ma interpretaÁ„o do texto do Velho Tes-
mos de seu contexto. como modelo o trabalho propriamente psica- tamento citado.
A mesma tradiÁ„o exegÈtica baseada no nalÌtico. Estando repletos de referÍncias ‡ O primeiro ponto de vista torna-se, assim,
Deus do texto admite e incentiva uma possi- BÌblia, sejam elas religiosas, histÛricas, culturais o ponto de partida de uma Ètica pragm·tica ou do
bilidade infinita de interpretaÁ„o, o que leva a e hermenÍuticas, os textos que a compıem comportamento, pois sua referÍncia È um Deus da
uma reelaboraÁ„o interpretativa do prÛprio remetem necessariamente ‡ problem·tica do justiÁa. O segundo ponto de vista poderia cons-
conceito de tradiÁ„o, ao menos em sua vers„o judaÌsmo como conceito surgido no sÈculo XX tituir-se num primeiro passo para definir uma
cabalista ou hassÌdica. Efeito desse percurso È a partir da oposiÁ„o ao anti-semitismo, com as Ètica da leitura ou da literatura como Ètica da
que o texto examinado ir· sugerir o caminho implicaÁıes j· vistas, o que remete a uma ìauto- memÛria, que evoca a cena prim·ria da escrita.
interpretativo. Caso contr·rio, qualquer an·lise an·liseî da tradiÁ„o cultural e ‡ relaÁ„o entre Essa Ètica da leitura se identifica evidentemente
ir· tornar-se uma confirmaÁ„o tautolÛgica de tradiÁ„o judaica e tradiÁ„o greco-crist„. com a Ètica do livre-arbÌtrio, que esse Deus do
suas prÛprias premissas metodolÛgicas. Nesse 2. De um ponto de vista especificamente texto defende, como ampliaÁ„o do espaÁo de
sentido, n„o È pertinente nem produtiva uma hermenÍutico, a literatura de testemunho pode liberdade interpretativa, que em ˙ltima ins-
definiÁ„o ìontolÛgicaî do conceito de ìjudaÌs- ser vista como designaÁ„o daqueles textos que t‚ncia se torna uma Ètica da liberdade.
moî (ou seja, v·lida para todas as Èpocas e todas tÍm como referÍncia, de forma direta ou in-
Andrea Lombardi
as correntes). Um bom exemplo de atitudes direta, o Deus do texto proclamado perem- professor de literatura italiana da USP

junho/99 - CULT 59
NinguÈm pode tornar-se aquilo filmes foram rodados e uma peÁa teatral O motivo da recepÁ„o ampla e
que ele encenada. Desde a sua publicaÁ„o, o seu positiva que o livro mereceu È simples: a
n„o pode encontrar nas suas autor n„o parou de dar palestras nas obra testemunhal de Wilkomirski È, de fato,
memÛrias. melhores universidades europÈias e uma das mais impressionantes reali-
Jean AmÈry norte-americanas. Wilkomirski vive em zaÁıes no gÍnero. NinguÈm sai incÛlume
Thurgau, na SuÌÁa, e tambÈm tem sido da leitura desse livro. O seu leitor fica
Existe uma identidade que pode ser freq¸entemente solicitado a falar nas impregnado por um paradoxal e ater-
estabelecida sem recurso ‡ nossa escolas, desse e de outros paÌses, para rorizador ìexcesso de realidadeî. Ao lÍ-
memÛria? N„o È verdade que cada um È contar a histÛria da sua vida. lo, n„o podemos deixar de refletir sobre a
o que È, porque acredita, por assim dizer, O livro Fragmentos narra a histÛria da humanidade e sobre os seus limites; sobre
na histÛria da sua vida? Se nossas aÁıes sua inf‚ncia mais remota ñ entre os trÍs e a Ètica e a maldade humana. Sobre a
s„o garantidas apenas por traÁos de os sete anos de idade ñ passada nos cam- morte e sobre a dor como realidades oni-
memÛria, inscritos na nossa mente e na pos de concentraÁ„o nazistas de Majda- presentes e incontorn·veis. Nunca um
memÛria da nossa coletividade, como nek e Auschwitz, na PolÙnia. Ali os testemunho das atrocidades nazistas tinha
podemos ter uma garantia quanto ‡ leitores se confrontam com o ìlimite do atingido o detalhamento que essa obra
verdadeira identidade/histÛria de cada humanoî, melhor dizendo, com a mais contÈm.
um? Um evento que abalou o mundo das bestial brutalidade de que o homem È O livro se estrutura todo com base nos
letras nos ˙ltimos meses e que envolve a capaz. CrianÁas s„o assassinadas com a fatos histÛricos. Ele È antes de mais nada
trajetÛria de um livro pode nos ajudar a mesma facilidade com que se acende um um documento da barb·rie. Tanto o autor
refletir sobre essa fragilidade da nossa isqueiro ou se mata uma mosca. Infantes no posf·cio como o texto da orelha da ediÁ„o
identidade. de um ano de idade famintos comem seus brasileira informam sobre a vida de
Poucas obras de literatura tiveram prÛprios dedos. Wilkomirski narra seus Wilkomirski. Ficamos sabendo que ele n„o
uma carreira t„o vertiginosa como o livro fragmentos de memÛria de modo caÛtico, apenas È m˙sico e construtor de instru-
Fragmentos de autoria de Binjamin porque, como ele afirma, trata-se de uma mentos, mas tambÈm um pesquisador do
Wilkomirski editado no Brasil no ano memÛria longÌnqua da sua primeira Holocausto (ou da Shoah, termo acade-
passado pela Companhia das Letras. inf‚ncia que, alÈm do mais, foi siste- micamente e politicamente mais correto
Publicado em 1995, j· foi traduzido para maticamente negada e ìcensuradaî por para indicar o assassinato de cerca de seis
mais de doze lÌnguas. Com base nele, trÍs seus pais adotivos suÌÁos. milhıes de judeus pelos nazistas).

Os fragmentos
de uma farsa M·rcio Seligmann-Silva
Livro de Binjamin Wilkomirski, que foi considerado um dos exemplos
m·ximos da literatura de testemunho e foi resenhado por M·rcio Seligmann-
Silva na CULT 11, È na verdade uma obra ficcional que, ao ser lida como
invenÁ„o liter·ria, se transforma em artefato de m·-fÈ e de estÈtica duvidosa
60 CULT - junho/99
Wilkomirski x Doessekker ìapenas na condiÁ„o de turistaî. Ele nasceu necess·ria: ela È tecida tanto como uma
em 12 de fevereiro de 1941. Esse ˙ltimo forma de se ìlibertarî do passado como
O jornal suÌÁo Weltwoche publicou dado, ali·s, o prÛprio Wilkomirski tambÈm tambÈm se desdobra como um penoso
duas reportagens, em 27 de agosto e em 3 afirmou no ìposf·cioî do seu livro, mas logo exercÌcio de construÁ„o da identidade. Ela
de setembro de 1998, que logo se tornaram acrescentando: ìEssa data, porÈm, n„o È uma narraÁ„o necess·ria tanto em
o epicentro de um dos maiores esc‚ndalos coincide com a histÛria de minha vida ou termos individuais como tambÈm ñ
da vida liter·ria dos ˙ltimos anos. Nelas com minhas lembranÁas. Tomei medidas pensando universalmente ñ deve fun-
lia-se de modo inequÌvoco: ìOs Fragmentos legais contra essa identidade decretada. A cionar como um testemunho para a
de Binjamin Wilkomirski, a obra suÌÁa que verdade juridicamente atestada È uma coisa; posteridade. Ela È um ato subjetivo e
mais faz sucesso atualmente, s„o uma a verdade de uma vida È outra.î Por que isso objetivo, psicolÛgico e Ètico.
ficÁ„o.î O autor dessas reportagens, o haveria de ser assim È o que Ganzfried Wilkomirski, ali·s Bruno Doessekker,
escritor e jornalista Daniel Ganzfried, È comeÁou a se perguntar. Afinal de contas, a como est· escrito na sua caixa de correio,
filho de judeus h˙ngaros e autor de um SuÌÁa È uma paÌs civilizado, sobretudo no sabe muito bem disso. Ele sabe em que
romance, Der Absender (O Remetente), que tange ‡ burocracia: dificilmente medida ele poderia desarmar os seus
sobre a segunda geraÁ„o dos sobreviventes alguÈm nasceria e viveria cinq¸enta anos leitores com a sua narraÁ„o articulada do
da Shoah, e, logo, n„o teria motivos nesse paÌs sem deixar traÁos. Ganzfried por ponto de vista de quem passou pelo
pessoais ou polÌticos para ìdesmontarî a assim dizer n„o aceitou o postulado ñ inferno. Apenas apÛs as pesquisas de
obra de Wilkomirski. coerente dentro do universo, digamos, de Ganzfried percebemos em que medida nÛs
No seu extenso trabalho, ele conta um Kafka ñ segundo o qual existem duas nos abrimos de modo sentimental e n„o
como a partir de uma simples reportagem verdades: uma ìda vidaî e outra ìjuridi- suficientemente racional para essa lite-
sobre Wilkomirski aos poucos ele foi camente atestadaî. Ele iniciou o confronto ratura. De agora em diante os estudiosos
desvendando a criaÁ„o e invenÁ„o do entre os traÁos de memÛria criados por da Shoah ser„o mais cautelosos.
personagem Binjamin Wilkomirski. Wilko- Wilkomirski/Doessekker e os ñ n„o menos O jornalista Ganzfried descobriu que
mirski chama-se na verdade Bruno criados ñ do paÌs onde ele sempre viveu. Wilkomirski/Doessekker tinha ainda um
Doessekker. Para Wilkomirski, cada um tem ìa sua outro nome quando veio ao mundo. Ele È
Bruno Doessekker n„o È judeu ou de verdade, a sua verdadeira vidaî e pode na verdade um filho ilegÌtimo de Yvonne
origem judaica: ele conheceu os campos de narr·-la. No caso dos sobreviventes da Berthe Grosjean que foi parar em um
concentraÁ„o de Auschwitz e Majdanek Shoah, essa narraÁ„o È sempre penosa e orfanato em Adelboden e que, finalmente,

Foto do livro-objeto
ControvÈrsia
iconoclasta II,
de Anselm Kiefer

junho/99 - CULT 61
de concentraÁ„o Majdanek ñ, que ele
perdera de vista desde a guerra. O
reencontro de ambos, pai e filho, no
aeroporto foi cheio de emoÁ„o e
Wilkomirski declarou ent„o a um
repÛrter da AP: ìNÛs possuÌmos recor-
daÁıes em comum. Eu ainda vejo na
minha memÛria diante de mim como o
meu pai foi levado em direÁ„o ‡ c‚mara
de g·s.î Quando alguns meses depois o
livro Fragmentos foi lanÁado, Wilkomirski
j· n„o se chamava mais ìBrunoî, mas sim
ìBinjaminî (nome do filho desaparecido
de Morocco). Mais estranho ainda: a sua
histÛria narrada em Fragmentos n„o fala
nada sobre esse reencontro com o pai em
Israel. No livro, Wilkomirski conta como
seu pai foi assassinado pela milÌcia let„,
esmagado por um carro. Por algum
motivo, Morocco deixara entrementes de
reconhecer em Wilkomirski o seu filho e
este teve de encontrar um outro pai para
a sua histÛria.
Wilkomirski, confrontado com esses
fatos, se limitou a falar em uma cons-
piraÁ„o armada contra ele. Para ele,
Ganzfried ñ que perdeu seus pais no
Terceiro Reich ñ seria simplesmente
alguÈm da ìsegunda geraÁ„o (de sobre-
viventes) que sofreu o destino do pai e
foi atingido psiquicamente por uma
inf‚ncia e uma juventude difÌceis. Eu
acho ñ continua Wilkomirski ñ que ele
necessita de um substituto da figura
Imagens de ControvÈrsia iconoclasta II, de Anselm Kiefer (1980) paterna que ele possa destruir e tornar
respons·vel pelo seu desastreî! A sua
editora, a Judische Verlag ñ que È
foi adotado pelo casal Doessekker em ìoutraî vida, a fictÌcia, de um ìsobre- propriedade da toda-poderosa editora
1945. O casal de ricos mÈdicos que adotou viventeî de Auschwitz. alem„ Suhrkamp ñ, recusou-se a
a crianÁa conseguiu mudar o seu nome Como se j· n„o bastassem as provas comprovar a veracidade dos fatos
ainda antes do inÌcio da sua vida escolar. trazidas a p˙blico pela corajosa narrados no livro. Unseld ñ o presidente
Bruno ent„o deixou de se chamar Grosjean reportagem de Daniel Ganzfried, na da Suhrkamp ñ afirmou que isso n„o È
e passou a atender pelo nome de ediÁ„o de 22 de setembro do Frankfurter parte da sua responsabilidade.
Doessekker. A Senhora Grosjean morreu Allgemeine Zeitung, Lorenz J‰ger trouxe James Young, um renomado pes-
em 1981; os seus pais adotivos em 1985. mais um dado que funcionou como um quisador dos monumentos dedicados ‡
Bruno Doessekker estudou em Zurique, golpe definitivo na farsa armada por memÛria do Holocausto, considerou a
tornou-se m˙sico e È pai de trÍs crianÁas. Wilkomirski/Doessekker. Ele recordou obra em quest„o ìum testemunho mara-
Um dado da sua biografia tambÈm È digno que em 21 de abril de 1995 uma histÛria vilhosoî. Diante das descobertas que
de nota: ele estudou histÛria em Genebra. emocionante foi publicada em um jornal justamente negam ‡ obra a qualificaÁ„o
A sua paix„o pela histÛria È comprovada berlinense. O clarinetista Bruno de um testemunho no sentido tradicional
tambÈm pelo enorme arquivo que ele Wilkomirski de Zurique viajara para deste termo, ele se limitou a afirmar que
organizou sobre o tema: o que deve ter Israel para reencontrar o seu pai Jaacov o ìvalor liter·rioî da obra n„o fica aba-
servido de ajuda para a compilaÁ„o da sua Morocco ñ um sobrevivente do campo lado desse modo!

62 CULT - junho/99
Como ler os Fragmentos como se se Ser· que um sobrevivente dos campos m·ticas que povoavam as mentes das suas
tratassem de uma ficÁ„o? … sÛ tentar para de concentraÁ„o seria capaz de afirmar algo pacientes.
que o leitor se depare com uma obra que semelhante? Charlotte Delbo, uma sobre- Raul Hilberg foi um dos poucos
n„o funciona mais e atÈ mesmo beira o vivente, de fato, escreveu na epÌgrafe da sua leitores que desconfiou da veracidade do
mau gosto: o que se espera e se acha trilogia Auschwitz et aprËs que ìhoje, eu n„o conte˙do dos Fragmentos desde a primeira
admissÌvel na leitura de uma obra auto- estou certa se o que eu escrevi È verdadeî; leitura. Quando ele encontrou Wilko-
biogr·fica de um menino que conheceu mas, em seguida ela acrescentou: ìEu estou mirski em um congresso na universidade
Auschwitz e Majdanek torna-se ime- certa de que È verÌdico.î Para o sobre- de Notre Dame (EUA), perguntou se a
diatamente m· literatura de ficÁ„o. vivente, a realidade do campo de concen- obra era uma ficÁ„o. O autor negou
Existe uma excelente literatura de traÁ„o È t„o intensa que vai alÈm daquilo enfaticamente. Hilberg, o maior especia-
ficÁ„o sobre o Holocausto, como È o caso que normalmente denominamos de verda- lista na histÛria da Shoah, estranhou
de um famoso texto de Zvi Kolitz (Yossel de: pelo simples motivo que Auschwitz vai diversos ìfatosî narrados no livro, que
Rokover volta-se para Deus), que narra os alÈm dos nossos padrıes (superados!) de para ele s„o incompatÌveis com os dados
˙ltimos momentos de um judeu no gueto humanidade, de Ètica, de cultura etc. histÛricos.
de VarsÛvia. O filÛsofo LÈvinas afirmou Wilkomirski, pelo contr·rio, parece Hilberg foi astuto ao constatar a
que esse texto de Kolitz È ìverdadeiro satisfazer-se ñ sem relut‚ncia ñ com uma armadilha armada por Doessekker. Ele
como unicamente a ficÁ„o o pode serî. concepÁ„o ìpÛs-modernaî absolutamente aproveitou a polÍmica para condenar de
Cada gÍnero liter·rio possui as suas relativista quando se trata de estabelecer a um modo geral o que ele denomina de
ìregrasî, propıe um determinado ìjogoî distinÁ„o entre o real e a ficÁ„o. Ruth Kl¸ger, ìverdadeiro culto do testemunhoî. N„o
com o leitor. Sabemos que n„o existe uma outra sobrevivente do Holocausto, posso, no entanto, compartilhar desse seu
autobiografia ìpuraî, sem ìcorreÁıes respondeu a essa postura de Wilkomirski desprezo pela literatura testemunhal. A
estÈticasî, que ela È apenas uma cons- com as seguintes palavras: ìA mentira n„o literatura de testemunho deve mais do que
truÁ„o motivada pelo que vivemos. se torna literatura sÛ por causa da boa-fÈ nunca ser lida de modo sÈrio. Mas uma
O caso em quest„o È peculiar. Se o dos leitores.î coisa deve ficar clara. Aqueles que negam
livro Fragmentos È composto apenas ìao Resta saber como Doessekker chegou a existÍncia de Auschwitz n„o tÍm por
modoî de uma autobiografia, ele deixa ‡ idÈia de criar essa sua autobiografia que se alegrar com a descoberta dessa
de ter um efeito estÈtico: e ganha apenas fictÌcia. H· alguns anos uma australiana farsa. Com o passar dos anos, a realidade
um teor amoral. Mas isso n„o È t„o fizera o mesmo. Uma vez descoberto o da Shoah torna-se n„o mais distante, mas
simples. Devemos fazer uma distinÁ„o embuste, ela disse que escolhera esse tema sim cada vez mais prÛxima graÁas ‡s
clara: Wilkomirski/Doessekker joga de por saber que conseguiria muita pesquisas histÛricas e tambÈm aos
um modo equivocado na medida em que publicidade com ele. Talvez encontremos testemunhos, escritos ou gravados e
ele assume perante o mundo uma falsa aÌ uma resposta. conservados nos in˙meros arquivos de
identidade. Ele deve ser condenado, creio, Por outro lado, Doessekker trabalhou vÌdeos com testemunhos espalhados pelo
n„o por causa da sua obra, mas sim por intensamente junto a terapeutas (e mundo. O nosso sÈculo se identifica e ser·
ter simulado de m·-fÈ essa identidade. Se historiadores) que utilizam a tÈcnica de identificado com Auschwitz. Se a ìrea-
a sua obra continua a ter ou n„o um valor ìterapia para recuperar a memÛriaî lidadeî descrita por Wilkomirski/Does-
estÈtico, mesmo apÛs a descoberta da (ìrecovered memory therapyî). Nessa sekker È terrÌvel e insuport·vel, a dos cam-
farsa, È uma outra quest„o que cada um terapia, parte-se dos fragmentos de pos de concentraÁ„o era muito pior. As
deve decidir individualmente. memÛria dos pacientes que passaram por crianÁas pequenas n„o tiveram a sorte de
Mas o prÛprio Wilkomirski/Does- traumas ñ normalmente de cunho sexual saÌrem vivas.
sekker parece tambÈm ter seguido a saÌda ñ para ent„o tentar remontar toda a sua Consultei, entre outros, os seguintes artigos de jornal para

pelo ìestÈticoî, proposta por Young, ten- histÛria/identidade. Aparentemente esse redigir este ensaio: Jonathan Kozol, “Children of the Camp”,
Nation (28.10.1996); Wolfgang Benz, “Deutscher Mythos”, Die
tando encobrir assim ou desculpar a sua mÈtodo ñ diga-se de passagem, muito em Zeit (03.09.1998); Daniel Ganzfried, “Die geliehene Holocaust-

farsa. Numa declaraÁ„o ao jornal suÌÁo moda ñ pode levar a uma confus„o entre Biographie”, Weltwoche (27.08.1998); Lorenz Jäger, “Hystorie
[sic]: Wilkomirskis Erinnerung” , Frankfurter Allgemeine Zeitung
Tages-Anzeiger podemos ler: ìCada leitor ìreconstruÁ„oî e ìconstruÁ„oî ex nihilo. (07.09.1998); Daniel Ganzfried, “Fakten gegen Erinnerung”,

pode deduzir do posf·cio do livro que os Mas como escapar dessa encruzilhada? Weltwoche (03.09.1998); Jörg Lau, “Ein fast perfekter Schmerz”,
Die Zeit (17.09.1998); Daniel Ganzfried, “Bruchstücke und
meus documentos n„o coincidem com as O prÛprio Freud, ali·s, que a princÌpio Scherbenhaufen”, Weltwoche (24.09.1998); Lorenz Jäger,

minhas memÛrias. A uma identidade direcionou a terapia psicanalÌtica no “ Gutgläubig. Die Zwei Wilkomirskis” , Frankfurter Allgemeine
Zeitung (22. 09.1998); Hans Saner, “Wilkomirskis Wahl”,
suÌÁa mal costurada eu sÛ posso opor sentido de iluminar a cena de abuso Weltwoche (01.10.1998); Silke Mertins, “Von der Sehnsucht,

essas memÛrias. Isso estava claro desde o (sexual) de suas pacientes histÈricas, aos Opfer zu sein”, die tageszeitung (10.10.1998); Helmut
Schmitz, “Wilkomirski beharrt auf Identität”, Frankfurter
princÌpio. Os leitores sempre estiveram poucos foi deixando esse mÈtodo de lado. Rundschau (27.10.1998); Nicolas Weill, “La mémoire

livres para aceitar o meu livro como Ele percebeu a dificuldade de se suspectée de Binjamin Wilkomirski”, Le Monde (23.10.1998); e
Lionel Richard, “Une dangereuse imposture”, Le Monde
literatura ou como documento pessoal.î estabelecer a ìrealidadeî das cenas trau- Diplomatique (Novembro, 1998).

junho/99 - CULT 63

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