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Contempla
Como no esplendor do sol cadente
Reluzem, rodeadas de verdura,
Essas choças na serra desparzidas!
Recua o astro e cede, o dia acaba,
Mais longe corre o sol dar nova vida.
Oh! não me erguer da terra asa nenhuma
Para seguir atrás dele, sempre, sempre!
Veria, em eterna tarde radiosa,
Aos pés tranqüilo o mundo, as altas serras
Todas em fogo acesas, fundos vales
Em plácido repouso, e em veios de oiro
O arroio de prata serpeando.
De monte agreste os escarpados córgãos
A divina carreira não sustaram;
Abrir-se-ia o mar, co'os seios tépidos,
Ao atônito olhar. - Lá vai sumir-se
O deus enfim nas orlas do horizonte;
Mas nova aspiração em mim acorda:
Sigo avante a beber-lhe a luz eterna,
Tendo o dia ante mim e atrás a noite,
Os céus sobre a cabeça, aos pés as ondas.
O ALBATR OZ E O CHINtS
não vê, porque vive dentro dos limites do saber convencional. A par-
tir desse episódio e da embriaguez sensorial causada pelo mundo
visível, Fausto estará pronto para fazer com Mefistófeles (que vai sair
de dentro do cachor ro) o pacto que permit irá as experiências vitais,
encarnadas na recuperação da mocidade e no amor de Margarida.
Portanto, a levitação imaginária serviu para estabelecer a relação do
espírito com a natureza, que ele aceita como realidade tangível, não
descartada por uma superação mental, como em ELEVAÇAo, de Bau-
delaire. O devaneio graças ao qual parece dissolver-se na paisagem
tem um encant ament o que afina com a movimentação alegre do
domingo de Páscoa, configurando uma poesia de abertura e expan-
são, depois do fechamento soturn o na sombria «câmara gótica, es-
treita, de alta abóbada': como diz a marcação da cena precedente.
O ALBATROZ E O C HJNtS
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(... )
J'irai, je gouterai les plantes du rivage,
Et peut-être en mon sein tombera le breuvage .
Qui change en dieu des mers les mortels engloutis.
Não, não basta mais a rocha longínqua na qual meus dias, consu-
midos em contemplar os mares, nutriram em meu peito um amor
que me arrasta a seguir cegamente a atração das ondas a~arg~s
(... ) Irei, provarei as plantas da marinha e talvez em meu peito cai-
rá a beberagem que muda em deus dos mares os mortais afogados.
Assim, a terra é o quinhão que lhe foi dado, enquanto o mar é a mi-
ragem de outros destinos que viriam substituir o primeiro. As duas
forças se contrabalançam, e como a redação não terminou a antino -
mia não se resolveu e o poema permanece quebrado, como expressão
das aspirações contraditórias. Justamente na medida em que é ina-
cabado, GtAuc us nos põe no coração de uma "binomia" (para apro-
veitar o conceito de Álvares de Azevedo), funcionando como símbo-
lo das divisões interiores que lutam à busca de unidade e permane-
cem como tensões sem solução. ("Duas almas habitam no meu pei-
to", diz Fausto. ) Nas duas partes do poema há versos de uma potên-
cia misteriosa e fulgurante, como podemos ver, além dos transcritos,
no trecho onde o poeta compara o seu amor pelo mar ao amor que
arranca do seio das rochas a fonte, transformada em débil regato que,
movido por atração irresistível, corre até perder-se nas ondas como
num abismo desejado:
19 O ALBAT ROZ E O CHINU
O amor, que no seio das rochas mais duras desperta do sono a fonte
dos regatos, abala as águas frágeis com o desejo do mar, conduzindo-
ª rumo à luz pelos veios escuros, e que, precipitando a queda e seus
murmúrios, acaba os seus esforços no procurado abismo, é o meu.
Esse magnetismo que arranca das rochas a água atraída pelo mar apa-
rece simetricamente na segunda parte do poema em relação à terra,
onde forças encarnadas em entidades mitológicas regem o crescimento
das raízes e o curso das fontes que garantem a fecundação dos campos:
O ALBATROZ E O CHIN~S 20
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ma a volúpia do estudo no escritório, onde o espírito se sente garan-
tido pela mediação do saber consagrado, ou seja, aquilo de que Faus-
to procura escapar. A medita~o no ambiente fechado a que me refi-
ro não é essa reclusão banal do Sancho Pança-Wagner, mas uma con-
centração criadora que precisa pôr o mundo exterior entre parênteses
para obter os frutos mais preciosos do espírito.
Baudelaire, que nos deu exemplos de poesia orientada para o es-
paço aberto, real e imaginário, pode dar outros desse segundo tipo,
pois raros souberam como ele representar a magia do aposento, seja
descrito como cenário de atos do amor, seja transformado em ambien-
te fantástico pela combinação rara dos pormenores, como no sone-
to SPLEEN, onde uma constelação bizarra é formada pelo gato inquieto,
o espectro do poeta morto, a lenha gemendo na lareira, o relógio
fanhoso,- enquanto no baralho enxovalhado o valete de copas con-
versa soturno com a dama de espadas. Essa composição insólita
exprime o poder de arbítrio com o qual a poesia sabe criar mundos ar-
tificiais, que não parecem a realidade tangível do Fausto ou de GLAU-
cus, mas uma outra, inventada.
Neste sentido há n'As flores do mal um poema, PAISAGEM, que pa-
rece teoria da invenção poética. Ele abre a parte do livro intitulada
QUADROS PARISIENSES e, aliás, se chamava PAISAGEM PARISIENSE na pu-
dada a um poem a que transfere o enca ntam ento para uma capit
al tu-
mult uosa manifesta a radicalidade da revol ução estética de Baud
elaire.
Posto no alto da mans arda o poet a cont empl a a fábrica, as cham
inés,
os camp anári os acum ulado s debaixo do céu, "que faz sonh
ar com a
eternidade". São estímulos novos para sonh os perenes, que Faus
to e 0
pasto r de GLAucus tiveram com relação ao camp o, ao mar, à
floresta.
E é curioso verificar que a paisagem urba na se mist ura aos aspec
tos da
natureza para gerar uma nova fisio nomi a do mun do, pois o
poeta vê
se acenderem ao mesm o temp o a estrela vésp er (natu reza) e
a lâmpa-
da na janela (cultura), bem com o registra o "eca ntam ento pálid
o da
lua" ao lado dos "rios de carvão" que sobe m para o céu. E assim
vai
vendo as variações assumidas ao long o das estações por esse
mund o
novo engastado no velho; mas com a cheg ada do inverno, separ
a-se
bruscamente dele:
su a im ag in aç ão e a m et áf or
a se to rn a re ali da de . O conf
ina
ba liz ou , po rta nt o, a su bs tit. . _ . .
u1 ça o da re ali da de ob se rv mento sun.
ad a p
da de ela bo ra da . · e1a reali-.
O M ot im , esbravejando em vã
o so b a m in ha janela, não me
guer a cabeça da escrivaninh fará er-
a, pois estarei mergulhado na
evocar a Pr im av er a po r m ei volúpia de
o da vo nt ad e, de pu xa r um
ra do m eu co ra çã o e de faz sol para fo-
er co m m eu s pe ns am en to s
atm os fe ra tép id a. ardentes uma
) ALBATROZ E O CHINtS
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O ALBATROZ E O CHJNtS
3o
Se for como suponho (pode não ser), estamos ante uma estrutura
de paradoxo gerada pelas tensões de significado, levando a crer que,
ao contrário do enunciado, ou em concorrência com ele, este poema
de 1864 propõe de certo modo no subsolo um roteiro que Mallarmé
seguiria depois até o fim, cada vez mais envolto nas suas brumas, e
que poderia ser resumido pelo poema que leu num jantar da revista
La Plume, em 1893, cinco anos antes de morrer. É o famoso SALUT,
onde parece registrar a sua responsabilidad e de inovador (pois está
no leme da embarcação que representa a poesia), prevendo três pos-
sibilidades que esperam quem se abalançar ao trabalho de fazer ver-
sos: solidão (vinda da incompreensão ), desastre (devido à incapaci-
dade de realizar a tarefa proposta) ou êxito (que brilha como estrela
a estimular a navegação arriscada):