Você está na página 1de 139

A LINGUAGEM E SEU FUNCIONAMENTO

Incorporando as noções de social e histórico,


a autora busca distinguir o estabelecido do
não estabelecido e questionar a consciência dessa
distinção no homem quando este produz linguage
O livro analisa os discursos político, pedagógico
religioso, da história e também questões do
discurso feminino e de educação indígena.
Faz também um estudo discursivo de aspectos
relacionados com a leitura.
Eni Pukinelli Orlandi
R>ntE ~
Coleção: Linguagem/Crítica ENI PULCINELLI ORLANDI
Direção: Charlotte Galves
Eni Pulcinelli Orlandi
Conselho Editorial : Charlotte Galves
Eni Pulcinelli Orlandi (presidente)
Marilda Cavalcanti
Paulo Otoni

DOAÇÃO/HE-ctENCIAS HUMANAS E EDUCACAO


-----
Registro No.434.338 Da.ta.: 03-03-2008

Autor:ORLANDI , ENI P.

TllJlo:A LI NGUAGEM E SEU FUNCIONAMENTO .. .

Doador:DIVERSOS
Preço:,00 A LINGUAGEM
E SEU FUNCIONAMENTO
FICHA CAT ALOGRAFICA
As formas do discurso
2.ª EDIÇAO REVISTA E AUMENTADA
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Orlandi, Eni Pulcinelli .


079L A linguagem e seu funcionamento : as formas do
2 . ed. discurso / Eni Pulcinelli Orlandi. - 2. ed. rev. e ~um.
- Campinas, SP : Pontes, 1987.
Linguagem / Crítica
Bibliografia.
l. A nálise do discurso 2. Sociolingüística: I. Tí-
tulo. II. Título : As formas do discurso. III. Série.
CDD-401.41
87-0940 -401 .9

lndices para catálogo sistemático:


1 . Análise do discurso : Com unicação : Linguagem 401. 41
\r\ \ \
>
2 . Discurso : Análise : Comunicação : Linguagem
3. Sociol ingüística 401. 9
401. 41
\ 1987
Copyright © Eni Pulcinelli Orlandi

Capa:
Criação: Geraldo Porto
Fotografia: Paulo Germani

Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães

Revisão: Ana Lígia Magnani Para o Edu


e para a Pat,
Carlos César Trausula
duas paixões.
Ernesto Guimarães

PONTES EDITORES
Rua Dr. Quirino, 1230
Telefone: (0192) 33-2939
Campinas - SP

Não adianta querermos ser claros.


A lógica não convence, a explicação nos cansa.
O que é claro não é preciso ser dito .
1987
Impresso no Brasil Noturnidade, de Cassiano Ricardo.
ÍNDICE

Apresentação 9
Introdução à Segunda Edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
O discurso pedagógico: a circularidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Para quem é o discurso pedagógico? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
A lii:guagem em revista: a mulher-fêmea . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
O discurso da história para a escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Algumas considerações discursivas sobre a educação indígena . . 81
A sociolingüística, a teoria da enunciação e a análise do discurso
(convenção e linguagem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Funcionamento e discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
O sentido dominante: a literalidade como produto da história 135
Tipologia de discurso e regras conversacionais 149
Uma questão da leitura: a noção de sujeito e a identidade do
leitor ... . ... . ....... . . ........... .. ....... . .. ... 177
A produção da leitura e suas condições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Leitura: de quem, para quem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Sobre tipologia de discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
O discurso religioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
A fala de muitos gumes (as formas do silêncio) 263
APRESENTAÇÃO

Para alguns, o já-dito é fechamento de mundo. Porque estabelece,


delimita, imobiliza. No entanto, também se pode pensar que aquilo
que se diz, uma vez dito, vira coisa no mundo: ganha espessura, faz
história. E a história traz em si a ambigüidade do que muda e do que
permanece.
Não me proponho a resolver esse impasse, que se expressa através
da tensão entre o retorno e o avanço, entre o que restringe e o que
alarga, entre o que já é e o que pode ser, entre o mesmo e o dife-
rente. Ao contrário, mantenho a tensão como motivo da minha refle-
xão. Embora, na ilusão da onipotência, não deixe de tentar a espe-
cificidade, o único, o definido.
Tendo como objeto de estudo a experiência de linguagem, a
prática do dizer, coloco alguns conceitos, alguns princípios teóricos
e metodológicos, algumas técnicas de análise como constantes e pro-
curo explorar as conseqüências a que elas podem levar-me em cada
pretexto que tomo para a reflexão, como, por exemplo, a literalidade,
as regras conversacionais, a tipologia do discurso, a convenção, o pro-
cesso de leitura.
Nesse percurso, coloco-me no próprio centro do risco que é a
tensão entre o já-dito e o a-se-dizer. Assim, aceito passar pelos mesmos
lugares, procurando o que me leva a conhecer alguma coisa a mais a
respeito dos objetos provisoriamente tomados para a reflexão, como
o discurso pedagógico, o discurso da história, a questão da educação
indígena, a argumentação, o discurso religioso e outros.
Se o objeto de estudo em que me detenho é de caráter múltiplo
e indeterminado, o objetivo, entretanto, é sempre um: incorporar as

9
noções de social e de história, distinguir o estabelecido d 0 não-
estabelecido e questionar a consciência (o senti'mento)
dessa distinção
no homem, quando este produz linguagem.

. Como_ a área ~m que se inserem esses estudos é a da análise de


d1sc~rs~, nao podena prescindir do compromisso com o fragmentá .
o multi lo ·· , · . . no,
. . p ' ~ ~rov1sono. O que leva ao reconhecimento da falta de INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO
hm1tes categoncos, que se poderia pretender,
entre um método de
demonstração científico e outras formas de conhecimento outros De certo modo, rever um livro coloca, de forma radical, a questão
modos de reflexão sobre a produção da linguagem. ' que anunciei na Apresentação, acerca do mesmo e do diferente: pode-
se mudar quase tudo e, ao mesmo tempo, se pode manter o texto o
No domínio da linguagem em geral e não só n
, . ' o espaço do mais perto possível da escrita primeira. Preferi manter, tanto quanto
p~eh~o, como pretende um clássico poeta inglês, parece dizer-se uma possível, a relação com a escrita original, porquer dependendo das
so c01sa, sempre a mesma, usando-se o já usado, vestindo-se de novo mudanças, já seria outro livro.
as velhas palavras, "For as the sun is daily new and old ... "
Nessa revisão, portanto, só fiz as mudanças que considerava
Qual é a extensão dessa ilusão, se é uma ilusão? essenciais, e acrescentei dois textos: um sobre leitura e um sobre
discurso acadêmico e discurso político, por sentir que faziam falta.
Campinas, abril de J 983. Por seu lado, essa Introdução tem a finalidade de acrescentar
uma fala explicativa que permita ao leitor situar-se em relação ao que
é a Análise de Discurso (que notaremos AD).
- ·-
Na história da reflexão sobre a linguagem, a AD aparece como
uma forma de conhecimento cisionista. Ela se constrói não como uma
alternativa para a Lingüística .....:_ que é a ciência positiva que descreve
e explica a linguagem verbal humana - mas como proposta crítica
que procura justamente problematizar as formas de reflexão estabe-
lecidas.
Assim, ao mesmo tempo e.!!!... ~e pressupõe a Lingüística: a AD
abre um campo de questões no interior da própria Lingüística e que
re ere o conhecimento da linguagem ao conhecimento das formações
sociais.
Daí resulta o que podemos chamar seu "nomadismo". Não há
um acúmulo científico fixo, no que diz respeito à teoria, à definição
de seu objeto e método ( s) : a cada passo a AD redimensiona seu
objeto, revalia aspectos teóricos e se relaciona criticamente com seu(s)
método(s).
§. essa sua condição de existência crítica ~g1e a torna mais fe-
cunda. Nem poderia deixar de ser assim, para uma forma de conhe-
10
11
·imcnto que, como diz Foucault (1969), se propõe "fazer uma
hi tória dos objetos discursivos que não os interrasse na profundidade sua relação com a exterioridade. Considera que, se a situação é
comum de um solo originário, mas desenvolvesse o nexo das regula- constitutiva, ela está atestada no próprio texto, em sua materialidade
ridades que regem sua dispersão". O frag1!1entário, o disperso, o in- (que é de natureza histórico-social).
completo, o não-transparente. Eis o domínio da reflexão discursiva. Tampouco se trata para a AD - como para a Hermenêutica -
Crítica ao mesmo tempo ao objetivismo abstrato (que advoga a de encontrar, ou melhor, extrair um sentido do texto. A AD visa
onipotência do sistema, o da autonomia da língua) e ao subjetivismo menos a interpretação do que a compreensão do processo discursivo.
idealista (em que domina a onipotência do sujeito e do território-livre Quer dizer : ~ AD problematiza a atribuição de sentido ( s) ao texto,
da fala) ~- assu!!_le a posição de que se deve pensar um objeto ao procurando mostrar tanto a materialidade do sentido como os pr o-.·
mesmo tempo social e histórico, em que se confrontam sujeito e siste-
illã:O discurso. --
cessos de constituição do sujeito, que instituem o funcionamento
-
discursivo de qualquer texto. , '

Dissemos que a AD é cisionista. A meu ver, i~o se deve a dois ~


Desse modo, embora pressuponha a Lingüística, se distingue deÍa
em pontos cruciais, pois não é nem uma teoria descritiva, nem uma
teoria explicativa. A AD ~retende uma _teoria crítica CJlle trata dª
determinação histórica dos processos de significação. Não estaciona
-
motivos.
Primeiro, por ue n!!ip.a realidade social ~ histórica como a noss,a,
em que se é obngado a reconhecer que sempre se ?cupam determina-
nos produtos como tais . Trabalha com os processos e 'as condições de das posições • (e não outras) no _s.Qnflit constituth1 0 das reJações
produção da linguagem. Condiciona, por isso, a possibilidade de se · sociais, não se pode fazê-lo neutramente, ou seja, sob a ilusão de J

encontrarem regularidades à remissão da linguagem à sua exterioridade que não se está tomando posição nenhuma ~ Des~odo a D
(condições de produção) . procura problematizar continuam.ente-a ericiê.o.clit enqu~nto evi-
dênciás) e explicitar o seu caráte ideológico , /
Ao colocar c~Jundamental o fato de que há uma relação n~­
.cessária da linguagem com o contexto de sua produção, a AD tem de Em segundo lugar, porque as críticas que se voltam contra a AD
~~lar-se sobre o campo das ciências sociais sem deixar de consti- • constituem formas contínuas de anexação e de revisão de sua capaci-
tuir sua unidade no interior da teoria lingüística. Nela se juntam, pois', dade explicativa. Também quanto à AD, a "Razão Ocidental (razão
com alguma especificidade, a(s) teoria(s) das formações sociais e jurídica, religiosa, moral e política, tanto quanto científica) não con-
a(s) teoria(s) da sintaxe e da enunciação. sentiu ( ... ) em concluir um pacto de coexistência pacífica ( . . . )
senão sob a condição de anexá-la às suas próprias ciências ou a seus
Em rela ãQ.. às ciências humanas, por sua vez, a AD também próprios mitos .. . " (Althusser em: Marx e Freud, Freud e Lacan,
propõe um deslocamento no tratamento do texto: este s~ apresen.ta· Graal, Rio 1984).
~ m?numento e não como documento.
Assim também a AD é objeto de tentativas de anexação por
- -
Este seu deslocamento em relação às Ciências Humanas consiste
por seu lado, ~a r_~cusa da chamada Análise de Conteúdo ' clássica":
parte da Lingüística, representada pela Pragmática (integrada), pelas
Teorias da Enunciação ou pelas considerações da Argumentação ( des-
aquela que to~a o texto apenas como pretexto e o atrave~sa só pã;a politizadas, sob a forma de conversação). Isto é: a AD tem relações
demonstrar o que já está definido a priori pela situação. Na Análise importantes com a Pragmática, a Enunciação e a Argumentação, mas
de Conteúdo ? texto aparece como documento, que se toma só inclui, nessas relações, a consideração necessária do ideológico, ao
como ilustração da situação em que foi produzido, situação esta já / a~ar que 'não há discurso sem..._syjeito nem sujeito sem ideologia/
constituída e caracterizada de antemão. A AD faz justamente o movi- As tentativas de integração da Análise do Discurso tendem a apagar
mento contrário: ao considerar que a exterioridade é constitutiva, ela essa dimensão ideológica e a anexar o discursivo como um apêndice
parte do texto, da historicidade inscrita nele, .para atingir o modo de (secundário) ao lingüístico (central) .
12
13
Enquanto projeto de conhecimento, enquanto proposta de uma
teoria crítica sobre a linguagem, a AD defende-se dessas "reduções"
(disciplinações) através de seu cisionismo. Podemos mesmo dizer que
o cisionismo é constitutivo da cientificidade da AD. ·
Prática grávida de uma teoria em parte silenciosa (Althusser,
id.) a AD não tem outro modo de se constituir senão pela sua dester-
ritorialização ( cf. Courtine, "Chroniques de l'oublie Ordinaire'', Sedi- O DISCURSO PEDAGÓGICO:
ments, n. 0 1, Montreal, 1986). A CIRCULARIDADE*
Considerando a AD como um modo de apreender "as formas
textuais do político", Courtine ( op. cit.) dirá que ela te~de a eclipsar- ·
se, em função de um duplo apagamento: a) o encobrimento da relação INTRODUÇÃO
de dominação política e b) o esquecimento do movimento de pensa-
mento que analisa a dominação política. Partindo da supos1çao de que se poderiam_ distinguir três tipo ~
de discurso, em seu funcionamento - discur~o lúdico, discurso polê- _
Segundo o mesmo autor, essa vontade de esquecimento tem sua mico e discurso autoritáriq - procuraremos caracterizar o discurso
emergência sedimentada ao mesmo tempo no terreno científico e no pedagógico (_DP), tal qual ele se q_presenta atualmente, como um.
domínio político: a eclipse da razão crítica, que toma, na política, a d!Scurto autoritário.
forma do pragmatismo. Nas ciências humanas, de acordo com este
autor, o "valor operacional, prático, instrumental da razão apaga seu O critério, para a distinção dos três tipos de discurso, podemos_
valor crítico; a observação suplanta os saberes gerais; o fato desqua- encontrá-lo tom ãlldo cõino base o referente e os participantes do
lifica a interpretação; o especialista se levanta frente ao intelectual". discurso, ou seja, o objeto do discurso e os interlocutores. Considera-
Os pesquisadores "encontram a terra firme das coisas e os rigores do mos q~ há dois processos - o parafrástico e o polissêmico - que são
cálculo". O desejo de acabar com o político, diz Courtine, se encarna constitutivos da tensão que produz o texto ( Orlandi, 197 8). Podemos
em uma razão disciplinar e instrumental, na renovação do positivismo. tomar a polissemia enquanto processo que representa a tensão cons-
tante estabelecida pela relação homem/mundo, pela intromissão da
O texto de Courtine, na verdade, coloca-nos em estado de reflexão prática e do referente, enquanto tal, na linguagem. Nesse sentido,
chamando a atenção para o que considero a questão crucial para a . podemos caracterizar os três tipos de discurso da seguinte maneira :
AD: embora, na AD, a prática preceda a teoria (em parte silenciosa), o discurso lúdicQ. é aquele em· que o seu objeto se mantém presente
se eliminarmos da AD a concepção de trabalho teórico, perdemos a enquanto tal 1 e os interlocutores se expõem a essa presença, resul-
sua função crítica e não nos restará senão sua função instrumental. tando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o
Esta, por sua vez, reduziria a AD ao academismo disciplinar. Como non-sense). O discurso polêmico mantém a presença do seu objeto,
não é esta a vocação da AD, podemos dizer que o trabalho teórico é sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram
tão constitutivo da AD quanto seu cisionismo e a inclusão necessária dominar o seu referente, dando-lhe uma direção, indicando perspecti-
da reflexão sobre o ideológico. vas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na
Eis, enfim, três fundamen~ para a AD ~ a teoria, a crítica e a polissemia controlada (o exagero é a injúria). No discurso autoritário,
ideolog@. o referente está "ausente", oculto pelo dizer; não há realmente inter-
,..--
* Texto apresentado na mesa-redonda "Linguagem e Educação", no XX Semi·
Campinas, outubro de 1986. nário do GEL, 1978. Posteriormente, foi publicado na Série Estudos, n.0 6,
Uberaba, 1978.
1 . Isto é, enquanto objeto, enquanto coisa.

14 15
locutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia con- no DP, aparece como algo que se deve saber. Entretanto, parece-nos
tida (o exagero é a ordem no sentido em que se diz "isso é uma que, enquanto discurso autoritário, o DP aparece como discurso do
ordem'', em que o sujeito passa a instrumento de comando). Esse poder, isto é, como em R. Barthes, o discurso que cria a noção de
discurso recusa outra forma de ser que não a linguagem. erro e, portanto, o sentimento de culpa, falando, nesse discurso, uma
voz segura e auto-suficiente. A estratégia, a posição final, aparece como
Considerando-se que o DP se insere entre os discursos do tipo o esmagamento do outro. Nesse sentido, poderíamos dizer que A ensi-
autoritário, procuraremos caracterizá-lo enquanto tal. na B = A influencia B.
A estratégia básica das questões adquire a forma imperativa,
AS FORMAÇÕES IMAGINARIAS: isto é, as questões são questões obrigativas (parentes das perguntas
O QUEM, O O QUb, O PARA QUEM retóricas). Exemplo: exercícios, provas, cuja formulação é: "Respon-
da . .. ?". São questões diretas a que se dá o nome de "questões
Analisando-se o esquema que constitui o percurso estrito da co- objetivas".
municação pedagógica, temos: O esquema da imagem dominante - IB(R) - aparece de-
clinado segundo uma gradação de autoritarismo, desde IB (IA(R)),
1 Quem j 1 Ensina 1OQuê1 1 Para Quem 1 Londe 1· IB(IA(IB(IA(R)))) até a forma mais autoritária, da hipertrofia da
i i i i i autoridade, isto é, do professor: IA (A), ou seja, a imagem que o
professor tem de si mesmo. O que produz um discurso individuali-
Imagem Inculca Imagem do Imagem Escola
do referente do
zado em seu aspecto estilístico e de perguntas diretas e sócio-cêntricas:
professor
(A) i aluno i "Não é verdade?", "Percebem?'', "Certo?", etc.
Metalinguagem (B) Aparelho
(Ciência/Fato) Ideológico
(R) (X) ~ NSINAR

Que pode ser representado como segue: Mais do que informar, explicar, influenciar ou mesmo persuadir,
A ensina R a B em X ensinar aparece como inculcar.

Procuraremos, pois, .analisar essas variáveis (A, R, B, X) tendo Podemos caracterizar a inculcação através de vários fatores
em vista a função de ensinar. próprios ao discurso e que fazem parte da ordem social em que
vivemos. Vejamos esses fatores:
Se utilizarmos a técnica de imagens (formações imaginárias) de
Pêcheux, tal como ele a define em sua AAD (Pêcheux, 1969), temos
no esquema seguinte o que deveria ser a imagem dominante do DP: 1 - A quebra de leis do discurso, tais como as enunciadas por O.
Ducrot ( 1972): o interesse, a utilidade ou a lei da informatividade
IB(R) *
1 . 1 - A lei da informatividade diz que: se se quer informar é
A questão que s.e constituiria na estratégia básica do DP deve-
2 preciso que o ouvinte desconheça o fato que se lhe aponta. Veremos
ria ser a pergunta pelo referente (R), isto é, o objeto do discurso, que, aqui mesmo, no item 3.b, como o DP lida com essa lei.
1 . 2 - Lei do interesse: lei geral do discurso segundo a qual
* Imagem que B (o aluno) faz de R (referente).
2 . Trabalharemos aqui com o esquema de pergunta-resposta por considerarmos
não se pode falar legitimamente a outrem senão daquilo que possa
que o circuito do ensino passa pelo movimento criado pela questão. interessar-lhe.

16 17
1. 3 - Lei da utilidade: lei "psicológica" segundo a qual não 2 - O "é porque é"
se fala somente por falar, mas porque há uma utilidade em fazê-lo.
Em virtude dessa concepção utilitarista da linguagem considera-se ra- A apresentação de razões em torno do referente reduz-se ao "é
zoável indagar, para cada ato de fala, os motivos que poderiam tê-lo p rque é". E o que se explica é a razão do "é porque é" e não a razão
suscitado. do objeto de estudo. Nesse passo ,temos no DP duas características
Além dessas leis gerais válidas para o comportamento lingüístico bastante evidentes. Ao nível da linguagem sobre o objeto, o uso de
em geral, há uma regulamentação para cada categoria de atos de fala. d iticos, a objetalização ("isso"), a repetição, perífrases. Ao nível da
Por exemplo, para ordenar exige-se uma certa relação hierárquica entre metalinguagem, definições rígidas, cortes polissêmicos, encadeamen,.
quem ordena e quem obedece; para interrogar, há também a exigên- los automatizados que levam a conclusões exclusivas e dirigidas. Daí
cia de certas condições, e o direito de interrogar, exercido por uma u estranheza de um discurso que é diluidor e diluído, em relação ao
autoridade, converte-se em poder de ordenar e, logo, não pode ser objeto, ao mesmo tempo em que apresenta definições categóricas e é
atribuído indistintamente. ·xtremamente preciso e coerente, ao nível da metalinguagem.
Para cada uma das leis gerais pode-se fazer corresponder um
- A cientificidade
tipo particular de subentendido. No DP, entretanto, o que há é mas-
caramento. A transmissão de informação e fixação são consideradas obje-
Mantida a regulamentação para o ato de interrogar e de ordenar tivos do DP. Até o momento falamos do tipo de "informação" (com-
- uma vez que o professor é uma autoridade na sala de aula e não portamento) que ele "transmite" (inculca). Gostaríamos, agora, de
só mantém como se serve dessa garantia dada pelo seu lugar na ful ar sobre a natureza dessa "informação". E sua característica está
hierarquia - , o recurso didático, para mascarar a quebra das leis m que ele se pretende científico. O estabelecimento da cientificidade
de interesse e de utilidade, é a chamada motivação no sentido peda- do DP pode ser observado espeCialmente em dois pontos: a) a me-
gógico. Essa motivação aparece no DP como motivação que cria inte- l;ilinguagem e b) a apropriação do cientista_feita pelo professor.
resse, que cria uma visão de utilidade, fazendo com que o DP apre-
sente as razões do sistema como razões de fato. Ex.: no léxico, o uso Ll) A metalinguagem
das palavras "dever'', "ser preciso'', etc.
Nas formações imaginárias que citamos mais acima - por exem- A metalinguagem tem um espaço (institucional) para existir.
plo, IB(IA(R)) - podemos incluir a mediação do "dever": 1 que B Vejamos essa relação da metalinguagem com seu espaço, no DP.
deve ter da 1 que A deve ter do R, etc. Assim como, pela quebra das O conhecimento do fato fica em segundo plano em relação ao
leis de discurso, o que temos é ainda a mediação: a desrazão cede ·onhecimento da metalinguagem, da forma de procedimento, da via
lugar à mediação da motivação que cria interesse, utilidade, etc. Essa de acesso ao fato. Na realidade, não há questão sobre o ·objeto do
motivação tem validade na esfera do sistema de ensino e deriva dos di scurso, isto é, seu conteúdo referencial, apresentando-se assim um
valores sociais que se lhe atribui. H caminho: o do saber institucionalizado, legal (ou legítimo, aquele
Em um e outro caso, temos sempre a anulação do conteúdo refe- que se deve ter). O conteúdo aí é a forma (artefato) e se aponta
rencial do ensino e a sua substituição por conteúdos ideológicos mas- a forma como réplica do conteúdo. Através da metalinguagem, o que
. carando as razões do sistema com palavras que merecem ser ditas se visa é a construção da via científica do saber que se opõe ao senso-
_por si mesmas: isto é o conhecimento legítimo . As mediações são ·ornum, isto é, constrói-se aí o reino da objetividade do sistema. O
sempre preenchidas pela ideologia. objeto aparece refletido nos recortes de uma metalinguagem que se

18 19
constrói com maior ou menor especificidade, dividindo espaços dentro nem da história das diferentes formulações dos mesmos problemas
da instituição: ·olocados pelos fatos. Desconhece-se a história dos conceitos, ou
melhor, que os conceitos têm uma história.

í ~~~!~~~~=
Nessa perspectiva de escolaridade, as questões não se podem
dizer nem verdadeiras nem falsas pois não se trata de explicar fatos

l
mais específica: distinção de Sintaxe mas de se mostrar a perspectiva de como podem ser vistos. No en-
disciplina e métodos: Estruturalismo tanto, ao que é fortuito e ocasional (a perspectiva) atribui-se um esta-
Transformacionalismo i uto de necessidade, através da avaliação que a escola produz, insti-
etc.
tuindo um conhecimento que é considerado valorizado ou, em outras
palavras, um saber legítimo.
Matemática
mais ou menos específica: distinção
das ciências: { Geografia
Lingüística
etc.
b) O professor-cientista

O professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem


Racionalidade, objetividade, que se e}\plicite sua voz de mediador. Há aí um apagamento, isto é,
sistematicidade; 11paga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento
menos específica: distinção Experiência, sensibilidade, d cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele conhecimento.
Ciência/Fato (Escola/fora dela): subjetividade, ocasionali- A opinião assumida pela autoridade professoral torna-se definitória
dade, (e definitiva).
etc.
Pela posição do professor na instituição (como autoridade con-
vcnien temente titulada) e pela apropriação do cientista feita por ele,
Cada coisa é posta em seu devido lugar e assim se perde a noção dizer e saber se equivalem, isto é, diz que z = sabe z. E a voz do saber
do todo do saber, sua unidade. As divisões são estanques e a perda fula no professor.
da unidade é recuperada em um out~o conceito que toma seu lugar:
Poderíamos, então, perguntar: o que é o aluno e o que é o pro-
o da "homogeneidade". A homogeneidade é criada a partir da insti-
f 'SSor? O aluno é idealmente B, isto é, a imagem social do aluno (o
tuição. Ê no espaço da instituição que o conhecimento é homogêneo,
que não sabe e está na escola para aprender), e o professor é ideal-
pois a instituição do saber como um todo (o sistema de ensino, tendo
mente A, isto é, a imagem social do professor (aquele que possui o
no cume a Universidade) abriga todas as divisões. Essas divisões se
suber e está na escola para ensinar). Ê assim que se "resolve" a lei
agrupam: sala, aula, série, disciplina, nível (primário, médio supe-
da informatividade e, de mistura, a do interesse e utilidade: a fala do
rior), faculdade, universidade.
professor informa, e, logo, tem interesse e utilidade. O professor diz
É dessa perspectiva de metalitiguagem que se podem entender <1ue e, logo,sabe que, o que autoriza o aluno, a partir de seu contato
questões do tipo: posso dizer com minhas palavras? Cuja resposta é: ·om o professor, a dizer que sabe, isto é, ele aprendeu.
ou não pode, ou, mais benevolentemente, se diz que pode para depois
A distância entre a imagem ideal e o real é preenchida por pre-
se recusar essa linguagem e substituí-la por outra "mais adequada" .
unções, mediação essa que não é feita no vazio mas dentro de uma
Além disso, formulam-se, através de metalinguagem da época, ordem social dada com seus respectivos valores. As mediações se suce-
. problemas clássicos, de maneiras diferentes, sem que se tenha cons- dt.:m ent mediações provocando um deslocamento tal que se perdem de
ciência disso, uma vez qu~ não se trata de uma reflexão sobre fatos, vista os elementos reais do processo de ensino e aprendizagem.

20 21
Podemos citar, por exemplo, o material didático, que tem esse Através de que ação a escola faz isso? A escola atua através da
caráter de mediação e cuja função sofre o processo de apagamento convenção: o costume que, dentro de um grupo, se considera como
(como toda mediação) e passa de instrumento a objeto. Enquanto válido e está garantido pela reprovação da conduta discordante. Atua
objeto, o material didático anula sua condição de mediador. O que através dos regulamentos, do sentimento de dever que preside ao DP
interessa, então, não é saber utilizar o material didático para algo. e este veicula. Se define como ordem legítima porque se orienta por
Como objeto, ele se dá em si mesmo, e o que interessa é saber o ma- máximas e essas máximas aparecem como válidas para a ação, isto é,
terial didático (como preencher espaços, fazer cruzinhas, ordenar se- como modelos de conduta, logo, como obrigatórias. Aparece, pois,
qüências, etc.). A reflexão é substituída pelo automatismo, porque, aa como algo que deve ser. Na medida em que a convenção, pela qual a
realidade, saber o material didático é saber manipular. escola atua, aparece como modelo, como obrigatória, tem o prestígio
da legitimidade.
Entre a imagem ideal do aluno (o que não sabe) e a imagem
ideal do professor (o que tem a posse do saber que é legitimado pela E a escola é a sede do DP. Em última instância, é o fato de
esfera do sistema de ensino) há uma distância fartamente preenchida estar vinculado à escola, isto é, a uma instituição, que faz do DP
pela ideologia. aquilo que ele é, mostrando-o em sua função: um dizer instituciona-
lizado, sobre as coisas, que se garante, garantindo a instituição em
que se origina e para a qual tende. É esse o domínio de sua circula-
A ESCOLA (O ONDE): ridade. Circularidade da qual vemos a possibilidade de rompimento
A REPRODUÇÃO CULTURAL, A LEGITIMIDADE através da crítica B.
Finalmente, como a nossa supos1çao é a de que o que caracte-
Podemos ler em Bourdieu ( 197 4) que a escola é a sede da re- riza o DP é a elisão (ilusão?) do referente através de mediações que
produção cultural e o sistema de ensino é a solução mais dissimulada rompem o percurso do dizer e se transformam em fins em si mesmas,
para o problema da transmissão de poder, pois contribui para a repro- consideramos que um estudo importante a ser feito é o da função
dução da estrutura das relações de classe dissimulando, sob a aparên- referencial para o DP.
cia da neutralidade, o cumprimento dessa função. Além disso, a defi-
nição da escola em sua função de transmissão da informação acumulada
(definição tradicional) dissocia sua função de reprodução cultural de BIBLIOGRAFIA
sua função de reprodução social, aparecendo como colaboradora que
harmoniza a transmissão de um patrimônio cultural que aparece como BOURDIEU, P. - A Economia das Trocas Simbólicas, Perspectiva, São ·Paulo,
1974.
bem comum. No entanto, há uma correspondência entre a distribuição ..DUCROT, O. - Dire et ne pas Dire, Herrnann, Paris, 1972.
do capital cultural e do capital econômico e do poder entre as dife- ORLANDl, E. - "Protagonistas do/no Discurso", Foco e p,·essuposição, Série
rentes classes: a posse de bens culturais, e que uma formação social Estudos 4, Fista, Uberaba, 1978.
seleciona como dignos de serem possuídos, supõe a posse prévia de PÊCHEUX, M. - Analyse Autom atique .1u Discours, Dunod, Paris, 1969.
um código que permite decifrá-lo. E assim instala-se uma circulari-
dade: só os possui o que já tem condições de possuí-lo. Por outro lado,
a escola tem uma função de dissimulação: apresenta hierarquias sociais
e a reprodução dessas como se estivessem baseadas na hierarquia de
"dons", méritos ou competências e não como hierarquia fundada na
afirmação brutal de relações de força. Convertem hierarquias sociais
· em hierarquias escolares e com isso legitimam a perpetuação da 3. Desenvolvemos este aspecto de ruptura em relação ao DP dominante em
ordem social. "Para quem é o DP'', neste volume.

22 23
PARA QUEM É O DISCURSO
PEDAGÓGICO*

INTRODUÇÃO

Inicialmente, procurarei explicitar minha concepção de lingua-


gem, situar o que entendo por discurso e, tipicamente, por discurso
pedagógico (DP).
Posso considerar a linguagem como um trabalho. No sentido de
que não tem um caráter nem arbitrário nem natural, mas necessário.
E essa necessidade se assenta na homologia que podemos fazer entre
linguagem e trabalho, i . e., considerando que ambos são resultados
da interação entre homem e realidade natural e social, logo, mediação
necessária, produção social.
Quando falamos em mediação, gostaríamos de dizer que não
pensamos essa mediação no sentido de colocar a linguagem como
instrumento, mas pensamos, antes, a mediação como relação consti-
tutiva, ação que modifica, que transforma.
Ainda que pareça pseudonatural, umai vez que o produtor da
linguagem não possui seu controle, ainda assim sua naturalidade não
é natural nem sua arbitrariedade arbitrária, pois encontra sua moti-
vação na forma social, no sistema de produção a que pertença (Rossi-
landi, 1975).
O estudo da linguagem não pode, pois, nessa perspectiva que
adotamos, estar apartado da sociedade que a produz. Então, os pro-
cessos que entram em jogo na constituição da linguagem são processos
· histórico-sociais, e seria interessante acrescentar que, em se tratando

* Esse texto foi apresentado em ' uma mesa-redonda da 32.ª Reunião da SBPC
(1980). .

25
de processos, não consideramos nem a sociedade como um dado nem Cada formação ideológica, segundo Cl. Haroche (Haroche et
a linguagem como um produto. alii, 1971), "constitui um conjunto complexo de atitudes e represen-
tações que não são nem individuais nem universais mas se reportam,
Em decorrência dessa perspectiva é que vemos a Análise do Dis-
mais ou menos diretamente, às posições de classe em conflito umas
curso como uma região privilegiada porque o discurso pode ser visto
·:.:om as outras". Dessas formações ideológicas, fazem parte, enquanto
justamente como a instanciação do modo de se produzir linguagem,
componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas.
isto é, no processo discursivo se explicita o modo de existência da
linguagem que é social. Segundo essas considerações, a relação entre as condições
sócio-históricas e as significações de um texto é constitutiva e não
Especificando agora esta noção, considero o discurso (M. Pêcheux,
1969) não como transmissão de informação mas como efeito de sen- . secundária.
tidos entre interlocutores, enquanto parte do funcionamento social Por isso tudo, de acordo com os autores citados acima, falar
geral. Então, os interlocutores, a situação, o .contexto histórico-social, é outra coisa que produzir um exemplo de gramática. As formações
i. e., as condições de produção, constituem o sentido da seqüência discursivas são formações componentes das formações ideológicas
verbal produzida. Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da e que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição
sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e dada em uma conjuntura dada.
isso faz parte da significação. Como é exposto por Pêcheux, há nos
mecanismos de toda formação social regras de projeção que estabele- As palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação
cem a relação entre as situações concretas e as representações dessas discursiva para outra. Assim, não são somente as intenções que deter-
situações no interior do discurso. É o lugar assim compreendido, en- minam o dizer. Há uma articulação entre intenção e convenções
quanto espaço de representações sociais, que é constitutivo da signi- sociais.
ficação discursiva. É preciso dizer que todo discurso nasce de outro Há uma seleção em relação aos_ meios formais que uma língua
discurso e reenvia a outro, por isso não se pode falar em um discurso oferece, seleção feita pelo falante que vai delimitando o que diz e,
mas em estado de um processo discursivo, e esse estado deve ser conseqüentemente, tudo o que seria possível dizer. Porém, o sujeito
compreendido como resultando de processos discursivos sedimentados, não se apropria da linguagem num movimento individual: há uma
institucionalizados. Finalmente, faz parte da estratégia discursiva pre- forma social de apropriação da linguagem em que está refletido
ver, situar-se no lugar do ouvinte, antecipando representações, a partir o modo como ele o fez, ou seja, sua ilusão de sujeito, sua interpe-
de seu próprio lugar de locutor, o que regula a. possibilidade de res- lação feita pela ideologia.
postas, o escopo do discurso.
Teoricamente, e em termos bastante gerais, podemos dizer que
Considerando-se ainda, no estudo da linguagem, o processo que
a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes
reúne o eu e o outro, na simultaneidade falante-ouvinte, podemos
processos: o parafrástico e o polissémico. Isto é, de um lado, há
chegar à articulação social entre interlocutores e deriva daí a possi-
um retorno constante a uma mesmo dizer sedimentado - a pará-
bilidade de se apreender a ilusão subjetiva que muitas vezes está re-
frase - e, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o
fletida, e não criticada, nas teorias lingüísticas: o sujeito que produz
rompimento. Esta é uma manifestação da relação entre o homem e
linguagem também está reproduzido nela, acreditando ser a fonte ex-
o mundo (a natureza, a sociedade, o outro), manifestação da prática
clusiva de seu discurso, quando, na realidade, retoma um sentido
preexistente. e do referente na linguagem. Há um conflito entre o que é garantido
e o que tem de se garantir. A polissemia é essa força na linguagem
Essa ilusão de ser a fonte de sentido se desfaz se atentarmos ao que desloca o mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão
fato de que, para ter sentido, qualquer seqüência deve pertencer a básica do discurso, tensão entre o texto e o contexto histórico-social:
uma formação discursiva que, por sua vez, faz parte de uma formação o conflito entre o "mesmo" e o "diferente" ( Orlandi,~ 1978 )., ~ entre
ideológica, determinada. · a paráfrase e a polissemia. lo.. ;; i<>: ~
26 27
Não há, pois, razão para se considerar o discurso como mera frase de base· a frase com o verbo ser (definições). Do ponto de
transmissão de informação mas, antes, devemos considerá-lo como vista de seu referente, o DP seria puramente cognitivo, inform~cional.
efeito de sentidos (Pêcheux, 1969). Dessa maneira, o social aparece No entanto, a prática. E essa tipologia que tematiza essa neutra-
em relação à linguagem, na sua força contraditória : porque o social lidade não me foi suficiente, na minha reflexão sobre o DP, enquan-
é constitutivo da linguagem, esta se sedimenta (ilusão do sujeito), to eu mesma faço parte da escola. Minha experiência me mostrava
e porque é fato social, ela muda (polissemia). outra coisa que essa neutralidade suposta. Criei outra tipologia. A de
O que é, então, o DP? Eu o tenho definido como um discurso que existem, fundamentalmente, três tipos de discurso em seu funcio-
circular, isto é, um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se namento : o lúdico, o polêmico e o autoritário. O critério para a
garante, garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende: distinção está na relação entre os interlocutores e o referente, isto
a escola. O fato de estar vinculado à escola, a uma instituição, por- é, na suas condições de produção.
tanto, faz do DP aquilo que ele é, e o mostra (revela) em sua função. De acordo, então, com a dinâmica das condições de produção
Bourdieu ( 1974) trata da escola como sede da reprodução teremos os vários tipos de discurso, tal como os definimos em "O Dis-
cultural, e o sistema de ensino como sendo a solução mais dissimu- curso Pedagógico: a Circularidade": no discurso lúdico, há a expan-
são da polissemia pois o referente do discurso está exposto à presença
lada para o problema da transmissão de poder, ao contribuir para
dos interlocutores; no polêmico, a polissemia é controlada uma vez
a reprodução da estrutura das relações de classe mascarando sob a
que os interlocutores procuram direcionar, cada um por si, o refe-
aparência da neutralidade o cumprimento dessa função. Indo mais rente do discurso e, finalmente, no discurso autoritário há a conten-
além, Marilena Chauí, na Folha de S. Paulo de 29 de junho (1980), ção da polissemia, já que o agente do discurso se pretende único
diz que mais que a reprodução da ideologia dominante, das estru- e oculta o referente pelo dizer.
turas de classe e das relações de poder, a educação agora é tomada
pelo seu aspecto econômico mais imediato, sendo a função da escola A reversibilidade na relação dos interlocutores pode :fazer parte
do critério de distinção desses tipos de discurso, ou melhor, desses
reproduzir a força de trabalho. Diz ela: "hoje a educação é encarada
funcionamentos discursivos: o discurso autoritário procura estancar
imediatamente como capital, produção e investimento que deve gerar
a reversibilidade; o lúdico vive dela; no polêmico, a reversibilidade
lucro social". Como a escola faz isso? se dá sob condições.
A escola se institui por regulamentos, por máximas que apare- Gostaria de explicitar, nesse momento, que, ao colocar entre
cem como válidas para a ação, como modelos. Ela atua pelo prestígio os tipos de discurso o discurso lúdico, isso não contraria a hipótese,
de legitimidade e pelo seu discurso, o DP. Quando falo em DP estou feita no início, da linguagem vista como trabalho. A forma como
falando em um tipo de discurso. Tipo, aqui, em relação a outros, utilizamos a noção de trabalho, isto é, como mediação, inclui o
como o jornalístico, o teológico etc. E a empresa· tipológica é uma lúdico. No entanto, a maneira como o trabalho se dá em uma forma-
retórica: um tipo de discurso é uma configuração de traços formais ção social determinada pode excluir a possibilidade do lúdico, depen-
associados a um efeito de sentido caracterizando a atitude do locutor dendo das características desta formação.
face a seu discurso e através deste face ao destinatário (Marandin,
1979). E como é este DP? Em sua definição seria um discurso Procurando caracterizar o DP, pudemos observar que tal qual
neutro que transmite informação (teórico ou científico), isto é, carac- ele se mostra atualmente em uma formação social como a nossa,
terizar-se-ia pela ausência de problemas de enunciação: não teria ele se apresenta como um discurso autoritário, logo, sem nenhuma
sujeito na medida em que qualquer um (dentro d.as regras do jogo neutralidade.
evidentemente) poderia ser seu sujeito (credibilidade da ciência), e
onde existiria a distância máxima entre emissor e receptor (não O DP se dissimula como transmissor de informação, e faz isso
haveria tensão portanto) , tendo como marca a nominalização e como caracterizando essa informação sob a rubrica da científicidade. O esta-

28
belecimento da cientificidade é observado, segundo o que pudemos O sistema de ensino atribui a posse dessa metalinguagem ao
verificar, em dois aspectos do DP: a meta-linguagem e a apropria- professor, autorizando-o. O professor, por sua vez, se apropria do
ção do cientista feita pelo professor. cientista e se confunde com ele sem se mostrar como voz mediadora.
Apaga-se o modo pelo qual se faz essa apropriação do conhecimen-
O problema da metalinguagem se funda no tratamento do refe- to do cientista tornando-se, o professor, detentor daquele conheci-
rente, isto é, o conhecimento do fato fica subsumido no DP pelo mento. Como o professor, na instituição, é autoridade convenien-
conhecimento de uma certa metalinguagem: fixam-se' as defi~iÇões temente titulada, e como ele se apropria do cientista, dizer e saber
e excluem-se os fatos . O referente é um referente discursivo: são con- se equivalem. O professor é institucional e idealmente aquele que
ceitos elaborados naquele ou em outros discursos, enunciados implí- possui o saber e está na escola para ensinar, o aluno é aquele que
citos. A citação de outros discursos pode ser ou não explicitada no não sabe e está na escola para aprender. O que o professor diz se
DP, o que torna mais difícil decidir sobre os limites dele e as vozes converte em conhecimento, o que autoriza o aluno, a partir de seu
que falam nele. Na realidade, . não há questão sobre o objeto do contato com o professor, no espaço escolar, na aquisição da metalin-
discurso, isto é, seu conteúdo referencial. Através da metalinguágem guagem, a dizer que sabe: a isso se chama escolarização.
estabelece-se o estatuto científico do saber que se opõe ao senso
comum, isto é, constrói-se com a metalinguagem o domínio da obje- Na interlocução, o DP se caracteriza pela quebra de leis discur-
tividade do sistema. O DP utiliza, dessa maneira, uma linguagem sivas, como as enunciadas por Ducrot: interesse, informatividade e
que dilui seu objeto ao mesmo tempo em que se cristaliza como utilidade. A quebra dessas leis se resolve pela motivação pedagógica
metalinguagem: as definições são rígidas, há cortes polissêmicos, e pela legitimidade do "conhecimento" escolar (daí sua utilidade)
encadeamentos automatizados que levam a conclusões exclusivas escorada na idéia de que há um desenvolvimento no processo escolar,
(Ex.: uso do verbo ser nas definições "X é . .. " ). As questões paralelo ao da maturação do aluno. Enquanto ele for aluno "alguém"
não são verdadeiras nem falsas, pois a apresentaçào das razões em resolve por ele, ele ainda não sabe o que verdadeiramente lhe inte-
torno do referente se reduz ao é-porque-é. O que se explica é a razão ressa, etc. Isso é a inculcação. As mediações, nesse jogo ideológico,
do é-porque-é e não a razão do objeto de estudo. Outra função da se transformam em fins em si mesmas e as imagens que o aluno vai
metalinguagem, segundo o que observamos, é produzir recortes no obje- fazer de si mesmo, do seu interlocutor e do objeto de conhecimento
to, recortes esses refletidos dentro do sistema de ensino em sua totalida- vão estai dominadas pela imagem que ele deve fazer do lugar do
de; desde recortes mais gerais até os mais específicos (disciplinas, professor.
métodos, ciência/fato), desde os mais ·teóricos até os mais concretos Pelo lado do aluno (nessa caracterização do DP), há aceitação
ª
(Humanas, Exatas, 1. série, 2. ª série, salas de aula diferentes, etc.). e exploração dessas representações que fixam o professor como au~o­
E o sistema de ensino é essa fragmentação toda em que o conceito
ridade e a imagem do aluno que se representa o papel de tutelado.
de unidade cede lugar ao de homogeneidade e com ele se tranqüiliza
Desenvolvem-se aí tipos de comportamento que podem variar desde
técnica e burocraticamente sob o pretexto de níveis de especialização.
o autoritarismo mais exarcebado ao paternalismo mais doce.
Não se trata, então, da explicação dos fatos, mas de se determinar
a · perspectiva de onde devem ser vistos e ditos. A essa perspectiva,
e pela avaliação que a escola estabelece, atribui-se um estatuto de
PROPOSTA
necessidade (de dever) e se institui, dessa forma , um conhecimento
valorizado, um saber legítimo. Nesse saber, através dessa metalin-
Como encaminhar uma pos1çao crítica diante dessa caracteriza-
guagem, tudo se achata. Isto é, se torna óbvio o que é complexo
ção do DP? Seria, talvez, torná-lo um discurso polêmico.
e se. complica o que é óbvio. Há uma indistinção feita pela lingua-
gem escolar que se presta a uma função tranqüilizante: não há Falei anteriormente que há uma relação entre a formação dis-
sustos, dúvidas ou questões sem resposta. Assim se constrói o saber cursiva e a formação ideológica, e insisti no fato de que um discurso
devido, o saber útil (vale perguntar: para quem?) . é efeito de sentidos e não transmissão de informação.

30 31
O jogo ideológico está na dissimulação dos efeitos de sentido Da parte do aluno, uma maneira de instaurar o polêmico é exer-
sob a forma de informação, de um sentido único, e na ilusão dis- cer sua capacidade de discordância, isto é, não aceitar aquilo que o
cursiva dos sujeitos de serem a origem de seus próprios discursos. texto propõe e o garante em seu valor social: é a capacidade do aluno
de se constituir ouvinte e se construir como autor na dinâmica da
Ora, há um compromisso da linguagem com o processo histórico
interlocução, recusando tanto a fixidez do dito como a fixação do seu
social; os efeitos de sentido têm origem na constituição dos interlo-
lugar como ouvinte. Ou seja, é próprio do discurso autoritário fixar
cutores e do contexto como elementos da significação. Como a so-
o ouvinte na posição de ouvinte e o locutor na posição de locutor.
ciedade, tal qual ela se apresenta hoje, é dividida, o sentido distri-
Negar isso não é negar a possibilidade de ser ouvinte, é não aceitar
buído não é só múltiplo ele está despedaçado e a aparência de unidade
a estagnação nesse papel, nessa posição.
é dada pelo sentido garantido, o sentido sedimentado, institucionali-
zado, o dominante. Se a ideologia dominante coloca, então, certos Seria oportuno fazer, nesse passo, uma observação a respeito da
pressupostos, certos i1nplícitos, é preciso interferir na constituição dos noção de sujeito. Como considero que a apropriação da linguagem é
sentidos assim construídos. constituída socialmente, esse sujeito do qual falo não é, pois, o sujeito-
em-si abstrato e ideal, mas o sujeito mergulhado no social que o
O autoritarismo está incorporado nas relações sociais. Está na
escola, está no seu discurso. Pois bem, uma forma de interferir no
envol~e, e preso, pois, da contradição que o constitui. Por isso prefiro
caráter autoritário do DP é questionar os seus implícitos, o seu cará- a noção de processo, de interlocução.
ter informativo, sua "unidade" e atingir seus efeitos de sentido. Com Desse ponto de vista, diria que considero inadequada a termi-
os implícitos, o discurso coloca algumas "informações", :informações nologia que distingue condições de produção e condições de recepção,
que aparecem como dadas, predeterminadas, e não deixa espaço para pois acredito que a noção de condições de produção. abrange, com~ U~
que se situe a articulação existente entre o discurso e o seu contexto todo a emissão e a recepção. Se distinguimos emissão e recepçao e
mais amplo. Esses implícitos prendem os interlocutores no espaço do por ~ma questão de fato e não de direito. Isto é, tanto emissor quanto
instituído. Especificamente, em relação ao DP, uma forma não auto- receptor são, de direito, produtores da instância de interlocução, ambos
ritária é explicitar o jogo dos efeitos de sentido em relação a "informa- interagem simultaneamente, embora, de fato , cada um tenha seu t~mpo
ções" colocadas nos textos e dadas pelo contexto histórico-social. de atuação. Ainda desse ponto de vista, gostaria de nota.r que ha um
deslize teórico na lingüística, deslize este que se caractenza por co~s­
Do ponto de vista do autor (professor) uma maneira de se colo-
tituir uma lingüística, feita do ponto de vista do locutor. Essa hn-
car de forma polêmica é construir seu texto, seu discurso, de maneira güística, no meu parecer, generaliza para a caracterização · da natu-
a expor-se a efeitos de sentidos possíveis, é deixar um espaço para a reza da linguagem, isto é, considera como fundamental al~o que,
existência do ouvinte como "sujeito" 1 . Isto é, é deixar vago um espaço no entanto é um dos modos de funcionamento dela: aqmlo que
para o outro (o ouvinte) dentro do discurso e construir a própria chamo de ~m funcionamento discursivo e cuja sedimentação sócio-
possibilidade de ele mesmo (locutor) se colocar como ouvinte. Ê saber histórica resulta em um tipo. Assim toda a linguagem é vista sob a
ser ouvinte do próprio texto e do outro. perspectiva do que vejo como discurso auto:itário.. Isso_ porque se
desarticula o característico da interlocução que e a articulaçao locutor /
l. Em um curso de pós-graduação (UNICAMP) sobre o Discurso da História, ouvinte e as outras articulações que daí decorrem, constituindo dico-
Maria Irma Hadler Coudry e Silma R. C. Leite apresentaram, como traba- tomias: Do interior de uma de suas perspectivas, a do eu-locutor, se
lho final, uma dissertação em que falam sobre o caráter informacional do
di,s curso em que "são jogadas informações sem efeitos de sentido" e con- generaliza o olhar, absolutizando-a.
trapõem a ele "um texto em que existe um jogo de 1sentidos X informações", E dentro desses limites que venho considerando a homologia
- mostrando que é deste movimento que nasce o espaço que dá lugar para a
incorporação do leitor como sujeito. Distinguem o texto em que há "espaço entre linguagem e trabalho, visando os funcionamentos discu~sivos.
para o re-fazer do percurso do autor" daqueles em que não existe esse Não coloco em causa a especificidade da linguagem em relaçao ao
espaço. trabalho, considero entretanto que a homologia estabelecida entre

32 33
essas duas noções me permite observar melhor esse aspecto da lin- educação. Ficam entretanto, a meu ver, certos pontos passíveis de
guagem que se pode ver através do funcionamento discursivo: pensar discussão a respeito de ideologia. Por exemplo, quando a ideologia é
a prática discursiva junto às práticas sociais em geral. vista como estando dentro de nós, encontramos a afirmação: "ela
está dentro de nós talvez porque tenhamos boas intenções". Concordo
Segundo Benveniste (197 6), "a polaridade das pessoas é na
linguagem a condição fundamental .. . "; mais adiante ele diz que "essa em que ela esteja dentro de nós, mas, do meu ponto de vista, cla
polaridade não significa igualdade nem simetria: ego tem sempre uma prescinde de nossas intenções. Sejam boas ou más. Não vejo essas di-
posição de transcendência quanto a tu; apesar disso nem um dos dois visões. E o "talvez" usado na expressão (talvez porque tenhamos boas
termos se cçncebe sem o outro". A partir daí este autor desenvolve intenções) revela, em termos de análise de discurso, agora voltadas
uma análise que, considerando a apropriação da língua pelo sujeito para o próprio texto de Marilena, urna questão que podemos fazer-lhe:
falante, destaca as formas lingüísticas que revelam a subjetividade na que voz é essa que fala em seu discurso? É uma voz crítica. E em que
linguagem 1 que organizam as relações espaciais e temporais em torno lugar se coloca essa voz? É ainda nessa direção que gostaria de
do "sujeito tomado como ponto de referência". Mas como "nenhum comentar outra passagem desse texto: "Quem portanto está excluído
dos dois termos se concebe sem o outro", o que propomos é que se do discurso educacional?". Ao que Marilena responde: os professo-
considere o outro pólo, o do ouvinte, e se procure suas marcas, as res e os estudantes. Pois bem, como ato de linguagem, é o poder de
formas lingüísticas que revelam seu papel. E se há, pois, formas lin- decidir, e concordo com Marilena quando diz que nós, professores,
güísticas que marcam a presença do ouvinte dentro do texto, a forma estamos excluídos desse dizer-ato-decisão quando se trata do discurso
polêmica pode ser construída através dessas marcas, justamente opon- do poder que se pronuncia sobre a educação definindo seu conteúdo,
do-se ao discurso que, ao lidar com essas marcas, constrói no texto o sua forma, seu sentido, sua finalidade. Mas gostaria de acrescentar
aprisionamento do outro no escasso lugar que lhe é atribuído pelo que, enquanto professores, não estamos excluídos do dizer-ato-decisão
discurso autoritário. quando se trata do trabalho pedagógico. Trata-se, então, em relação
ao discurso educacional, de atuarmos criticamente, nas duas direções,
É essa dinâmica de papéis que caracterizaria a possibilidade do
em relação aos que nos cristalizam (os que se pronunciam sobre a
discurso polêmico, e, junto a isso, haveria a recuperação do objeto
educação) e aos que nós, reprodutoramente, cristalizamos (em nosso
da reflexão, isto é, dos fatos, dos acontecimentos, encobertos pela
trabalho de educação). Também não vejo o procedimento autoritário
fixidez desse tipo de discurso que é o autoritário. Onde está a lingua-
como o de simples e pura exclusão, trata-se antes de dominação, e o
gem está a ideologia. Há confronto de sentidos, a significação não é
imóvel e está no processo de interação locutor-receptor, no confronto dominador não exclui o dominado, o incorpora como tal.
de interesses sociais. Portanto, dizer não é apenas informar, nem De um lado, portanto, deve-se questionar os implícitos, os lo-
comunicar, nem inculcar, é também reconhecer pelo afrontamento cutores, o conteúdo, a finalidade, o sentido dado ao ensino pelo DP
ideológico. Tomar a palavra é um ato dentro das relações de um do poder e, de outro, fazer a mesma coisa com o discurso que nós
grupo social. reproduzimos internamente rio trabalho pedagógico. Isto é, questionar
Há, em relação à escola, uma seleção que decide, de antemão, as condições de produção desses discursos.
quem faz parte dela e quem não faz, quem está em condições de se Quando Marilena fala do professor, diz que "uma pedagogia crí-
apropriar desse discurso e quem não está. Há, entretanto, um outro tica deveria interrogar esse risco cotidiano! de onde vem e por que
processo, interno, que não é o da simples seleção mas o dó esmaga- vem a sedução do tornar-se 'guru', de onde vem o por que vem em
mento do outro. nós e nos alunos o desejo de que haja um mestre, o apelo à figura de
Há um artigo de Marilena Chauí, na revista Educação e Socie- autoridade?". Gostaria de acompanhar isso que Marilena diz com
dade (1980), onde há colocações fecundas sobre o problema da uma observação: mesmo que críticos (quando o somos) nós estamos

34 35
fixadosi pela instituição enquanto professores: Não acompanhamos o auto-suficiente do locutor; em outro momento há a ambigüidade 3 de
aluno, ficamos nu·mesmo lugar e esse lugar é o que nos aponta como falantes sem ouvintes: à força de tentar resistir aos que procuram nos
professores (mestres, "gurus"). Daí o risco da cristalização. Não é relegar à posição de apenas ouvintes (e ouvintes de discursos já cris-
abstrata essa vontade da autoridade, ela é claramente marcada na talizados), deixamos de ouvir mesmo os nossos pares, o que não nos
relação de ensino. ajuda a deslocar efetivamente a relação de dominação. E há um ter-
ceiro momento, é o momento crítico, aquele em que se estabelece uma
Uma outra coisa que Marilena traz à tona com muita proprie- relação menos hierarquizada entre interlocutores, o da disputa pela
dade é a questão da maturidade e imaturidade atribuídas aos que posse da palavra.
participam do processo da educação. Em outro lugar desse trabalho,
falo sobre o aluno como tutelado; aqui, nesse passo, gostaria de fixar Da primeira vez em que expus algumas dessas idéias, a respeito
minha atenção no que Marilena diz (p. 29 da revista citada): "se do DP, como discurso autoritário, foi-me feita uma questão, pelo
fizermos falar o silêncio da imaturidade o discurso sobre a imaturi- colega R. Ilari: seria o autoritarismo um mal de raiz do DP? Hoje,
dade permanecerá intacto?". A vontade é a de considerar a pergunta eu diria, o DP, sendo um discurso institucional, reflete relações insti-
como pergunta retórica e responder "Não", e pronto. Mas eu gostaria tucionais das quais faz parte; se essas relações são autoritárias, ele
de ver isso de uma outra maneira, isto é, o sentido é também o será autoritário. O seu mal de raiz é, pois, refletir a ordem social na
qual existe. Mas como essa não é uma relação mecânica, alguma
resultado de uma situação discursiva, uma espécie de intervalo entre
enunciados efetivamente realizados. Esse intervalo nãa é um vazio ' é' coisa escapa e é sempre possível a crítica. Mais ainda, nada nos impede
. .

antes, o espaço ocupado pelo social. Nesse sentido, · as lacunas consti- de imaginar uma sociedade sem escola. E volto ainda uma vez à fala
da Marilena: "Não seria mais rica uma pedagogia que levasse a sério
tutivas da ideologia são os implícitos, os pressupostos, não são silên-
o fenômeno da consciência contraditória? ( ... ) trata-se de uma peda-
cios. Não há separação entre o silêncio do oprimido (da imaturidade)
gogia capaz de criar condições (o que pode ser obra tanto dos alunos,
e o discurso do opressor (da maturidade) . Dentro de um está o outro
quanto dos professores, quanto de todos) para que a descoberta possa
e se sussurram. Coloco, portanto, a disputa a nível de explicitação de
acontecer" ( Chauí, 19 80) . E aí perguntamos: se levarmos ao limite
pressupostos, aquilo que garante o texto em sua legitimidade, se já
essa questão, podemos dizer que a criação dessas condições pode ser
não se está de acordo com ela.
obra de todos (em sentido amplo e não no do conjunto de professores
Ainda em relação a essa questão do silêncio, a minha posição é e alunos) e portanto não é preciso que a escola ocupe esse lugar, esse
a de que não acredito que apenas não se esteja dizendo o suficiente. espaço. Ou, dito · de outra forma, para quê a escola como lugar
Não se está ouvindo o necessário. Nem há separação entre essas coisas, privilegiado para essa descoberta? Isso para o caso de realmente
e vejo nisso um processo. Há um momento no processo do discurso podermos imaginar uma outra sociedade. No entanto, nossa realidade
pedagógico ou outro discurso (autoritário?) qualquér em que o outro é a presente e a minha proposta atual é a de buscarmos, professores e
ouve no esmagamento, tentando reproduzir, repetir, copiar 2 a voz alunos, um DP que seja pelo menos polêmico e que não nos obrigue a
nos despirmos de tudo que é vida lá fora ao atravessarmos a soleira da
2 . Lourenço Chacon J. Filho, em um trabalho do curso de pós-graduação porta da escola.
(UNICAMP), abordando algumas conseqüências do autoritarismo no DP,
analisou trabalhos, provas e redações de alunos pré-vestibulandos. Ele mos- exemplo, outro texto em que há problema de consistência de registro quan-
tra como o aluno, ao copiar, imitar o que o professor faz com a linguagem, do, em um texto coloquial, aparece abruptamente o estilo formal: . "Água
produz textos estropiados. Ex. : "o texto está mostrando situações que se és tu o alimento mais importante da terra".
encontram numa sociedade relativamente de nível econômico precário, justa- 3 . Ambigüidade: porque o fato de se negar como ouvinte pode ser tratado
mente pelo qual no texto diz que; trabalhadores misturam com malandros, como a recusa da cumplicidade com um certo dizer mas também como a
o bar logo, lotou etc.'',. em que há problema de coesão textual e, por negação pura e simples do outro, o que é também um ato autoritário.

36 37
BIBLIOGRAFIA

BENVENISTE, E. - "Da Subjetividade na Linguagem'', Problemas de Li~güís­


tica Geral, Cia. Ed. Nacional/EDUSP, São Paulo, 1976.
BOURDIEU, P. - A Economia das Trocas Simbólicas, Perspectiva São Paulo
1974. ' '
CHAUí, M. de Souza - "Ideologia e Educação'', em Educação e Sociedade,
CEDES, Cortez Ed., Autores Associados, Ano II, n.º 6, 1980.
HAROCHE, Cl.; Hl~NRY, P. & PÊCHEUX, M. - "La Semantique et la A LINGUAGEM EM REVISTA:
C<;mpure Saussunenne: Langue, Langage, Discours", em Langages, n.º 24,
D1d1er/Larousse, Paris, 1971.
A .MULHER-FÊMEA *
MAR~NDIN, J. M. - "Problêmes d'analyse du discours; essai de description du
D1scours Français sur la Chine'', Langages, n. 0 55, Larousse, Paris, 1979.
ORLANDI, E. P. - "Protagonistas do/no Disc:.urso'', Série Estudos 4 Uberaba Um ninho de contradições: a mulher tem de ser casta esposa e
1978. ' ' eficiente messalina. As palavras são carregadas de sentidos: uma
PÊCHEUX, M. - Analyse Automatique du Díscours, Dunod, Paris, 1969. deusa é tudo isso e uma fêmea também o é. Mas não se usa indife-
ROSSI-L~ND!, F. - "A Linguagem como Trabalho e como Mercado" cm rentemente deusa e fêmea.
Sem10log1a ~ Lingüística Hoje; organização de Carlos Henrique Esc~bar,
Rio de Janeiro, Pallas S/ A., 1975. É verdade que alguns tropeços explodem em uma Medéia ou uma
Antígone. Mas isso é o clássico, que se aplaude enquanto fato vivido
na literatura, espaço delimitado pelo brilho do palco e o sombrio
conforto das poltronas.
Há uma distância fafta entre o que o homem sonha e o que o
homem faz. E o que tem a lingüística a ver com isso? A lingüística,
vista de um certo modo, talvez, não tenha nada. Mas a linguagem,
essa, necessariamente, tem. A tentativa é a de procurar levar a lingüís-
tica tão longe quanto o sugerir seu compromisso com a linguagem. E
se falamos "linguagem" e não língua, fala, uso, norma, etc., não o
fazemos sem uma intenção: essas distinções a que se submete a lin-
guagem, no mínimo, têm-se mostrado barreiras a uma compreensão
harmônica, global, do fato lingüístico. Olhar a linguagem, através das
grades analíticas, é tapar a significação com a peneira. Do lado de
fora, sempre fica algo essencial, um resto mais determinante do que o
que se conseguiu aprisionar. Processa-se a dicotomização, em lin-
güística, para se encontrar unidade, invariança. Ora, a unidade e a
invariança da língua, quando não é conseqüência do tratamento técnico
e normativo ao qual se circunscreve a linguagem (para a construção ·
da gramática), origina-se de um modo unificante de se considerar o
signo, quando na verdade o signo existe enquanto plasticidade, em
seu caráter mutável. Uma unidade di:11âmica, na qual convivem contra-

* Texto publicado. na Série Estudos 3, Uberaba, 1977.


38
39
dições, não comporta a fixidez em que a estacionam os que a tomam A diferença salta aos olhos, na curiosa conclusão do químico: se fossem
como produto (dado), quando seria mais conforme tomá-la como compradas no mercado de produtos químicos, as substâncias para
processo. compor um corpo masculino custariam Cr$ 90 milhões. Para o corpo
da mulher, entretanto, os gastos subiriam para nada menos que
~ssas considerações tampouco são novas, e esse tipo de preo-
Cr$ 264 milhões. Seria preciso alguma intuição feminina para prever
cupa~ao - .º de apreender o momento da existência da linguagem -
que a mulher acabaria custando mais caro?
te~ sido objeto de reflexão de muitos lingüistas. Poderíamos aí distin-
guir, de um lad~, os ~ue ela~oram teorias em que visam à recuperação
~o falante, da situaçao do discurso, do texto, do ~ocial, como consti- 2.0 Texto: Nova, n. 0 42, março de 1977 (Cr$ 15,00)
tutivos da lipguagell! (ou dos atos de linguagem) propondo modelos '.'A colecionadora de culpas" de Flávia Amaral.
par~ a aná!ise, e, de _outro, os que, indo mais além, propõem a crítica O simples papel da mulher já implica muitas culpas.
da ideologia como via para uma lingüística realmente explicativa (ou
o que se chama Crítica Lingüística) e que recusa a lingüística a~alítica Por ter sido sempre mais limitada do que o homem, pela própria
como explicativa.
educação, até o aumento de opções de vida resulta em incertezas,
Nesse nosso trabalho, mais do que discutir essas diferentes ten- insegurança e culpa. Hoje, a mulher pode escolher entre trabalhar ou
dênci.as, int.eressa-nos tomar a linguagem (verbal) como lugar de não, casar ou não, limitar ou não o número de filhos. Quando opta
c??fhto so~ial. Pretendemos fazer isso através de manifestações espe- por alguma coisa, sente como tendo sido em detrimento de outra.
cificas da linguagem, ou seja, artigos de revistas para homens (Status) Raramente acredita que agiu corretamente.
e para mulheres (Nova), que falam de mulheres. Aquela que opta por uma carrerira ' julga-se carente de femini-
lidade, ainda que uma coisa nada tenha a ver com a outra. Aquela que
cumpre seu papel tradicional, de esposa dependente, acaba se envol-
· 1. 0 Texto: Status, n. 0 32, março de 1977 (Cr$ 25,00) vendo · em crises igualmente dolorosas porque a sensação de depen-
"O status do marido e o preço do corpo feminino" dência também gera culpa. E ela acha que deve ser sempre agradável,
gentil e fiel àquele que a sustenta. Tanto num caso como em outro,
Muita gente duvida de que o feminismo seja o caminho certo sente-se sempre em "dívida".
~ara tornar mais felizes as mulheres. Mas é difícil negar que afinal' a Por outro lado, crescendo num mundo em que a imagem da
igualdade de direitos para homens e mulheres seja uma possibilidade mulher é a de "eterna sacrificada", um mundo que louva a abnegação
futura quase inevitável. Será que os direitos idênticos trarão a felici- (e negação) feminina, ela não consegue ainda se sentir digna quando
dade para todos? Para as mulheres, pode ser. Para os homens, a coisa . atende a seus próprios anseios. Talvez amanhã essa abertura de opção
se complica. Segundo o estudo de uma mulher, a socióloga americana passe a integrar sua condição de ser humano. E tanto homens como
Ma~i~ LaLiberté Richmond, os homens enfrentam terríveis problem~s mulheres aprenderão a viver sem culpa, alternando papéis de depen-
sociais quando cedem à pressão feminista. Abandonando seu habitual dência e independência, num relacionamento de troca, em função das
status de chefe da casa, o homem se vê compelido ~ procurar cor~­ própria necessidades. Nesse dia pode ser possível ter seus momentos
de comando e submissão, de adulto e de criança, sem ser preciso pedir
p.en~ações para esta perda de prestígio doméstico. Para alguns espe-
desculpas por cada gesto.
cialistas, todo esse jogo é apenas um problema social, superável co~ a
transfarmação dos padrões culturais. Para outros, entretanto, as dife-
renças entre homens e mulheres são mais básicas, de natureza bioló- Em um primeiro passo, vamos transcrever os textos, explicitan-
gica. Para provar este ponto de vista, o químico suíço Peter Jten do, nas pontuações e nas relações entre frases, os operadores que
p~ocurou determinar, recentemente, quais as substâncias que com- fazem as ligações, colocando os enunciados em uma ordem de domi-
poem o corpo masculino e quais as que formam a anatomia feminina. nância. Esta ordem, entretanto, ficará prejudicada, uma vez que, na

40 41
transcrição, obedecemos à linearidade, e a relação entre frases pode ser Considerando que os segmentos são formados por "trabalhar ou
de expansão (um enunciado domina diretamente dois ou mais enun- não, casar ou não'', etc., temos o desdobramento: B ou B', C ou C',
ciados) e de saturação (um enunciado é dominado por dois ou mais D ou D'.
enunciados).

Vejamos exemplos da análise pela dominância:


, ''.Por ter s!d~ ~~m_pre mais limitada do que o homem", "pela
~ropna ed~caçao , ate o momento de opções de vida resulta em
mcertezas, msegurança e culpa".
1.0 segmento B Por um problema prático, que é o do espaço, e um menos
prático, que é. o do objetivo desse trabalho, não faremos a repre-
2. 0 segmento e sentação, em gráfico, das dominâncias, e traba1haremos em um nível
3.0 segmento A parcial, isto é, o da transcrição linear, privilegiando, então, não a
dominância mas a explicitação dos operadores. Guardaremos a ordem
As letras A, B, C, indicam a ordem de dominância. Então, tere~
da dominância quando for possível.
mos, com os operadores indicados nos parênteses :
Vejamos, pois, os textos, nessa reescrita, de acordo com a domi-
(porque) nância e os operadores:
A >B
.J, (por causa de) 1.0 Texto (Status)
e
Muita gente duvida de (que) o feminismo seja o caminho certo
Depois, temos:
(para) tornar mais felizes as mulheres, (mas) é difícil negar (que)
"Hoje, a mulher pode escolher (entre) "trabalhar ou não'', afinal a igualdade de direitos para homens e mulheres seja uma possi-
"casar ou não", "limitar ou não o número de filhos". bilidade futura quase inevitável; (no entanto) será (que) os direitos
idênticos trarão a felicidade para todos (?) Pode ser (que tragam)
:B um exemplo de expansão, pois um enunciado domina vá- para as mulheres (mas) a coisa se complica para os homens (porque)
rios outros.
os homens enfrentam terríveis problemas sociais (quando) cedem à
l .° segmento A pressão feminista (segundo) o estudo de uma mulher, a socióloga
americana Marie LaLiberté Richmond (porque) o homem se vê com-
2.º segmento = B
pelido a procurar compensações para esta perda de prestígio domés-
3.º segmento e tico (quando) abandona seu habitual status de chefe da casa (e) todo
4.º segmento esse jogo é apenas um problema social (que é) superável com a trans-
D
formação dos padrões culturais para alguns especialistas (entretanto)
Temos: as diferenças entre homens e mulheres são mais básicas e de natureza
biológica para outros (e) o químico suíço Peter Iten procurou deter-
B

~ f
(e) minar recentemente quais as substâncias (que) compõem o corpo
A (entre)
(e)
e masculino e quais as (que) formam a anatomia feminina (para) provár
D este ponto de vista (e) a diferença salta aos olhos na curiosa .conclusão
42
43
do químico (pois) as substâncias custariam 90 milhões (para) com- ADJETIVOS, QUANTIFICADORES, CIRCUNSTANCIAIS
por um corpo masculino (entretanto) os gastos subiram para nada
menos que 264 milhões para o corpo da mulher (se) fossem compra- o que é bastante evidente é a indeterminação carreada por esses
das no mercado de produtos químicos (logo) seria preciso alguma elementos lingüísticos. Essa indeterminação, porém, segue um plano:
intuição feminina (para) prever (que) a mulher acabaria custando
mais caro? No discurso de Status, é uma indeterminação que grifa o argu-
mento negativo, em relação ao feminismo. Vejamos:
2. 0 Texto (Nova) Muita ge~te duvida: Quem são? Não há especificaçã~ .. Basta que
haja muita gente que duvide do caminho do feminismo.
Hoje a mulher pode escolher entre trabalhar ou não (,) casar ou
não (,) limitar ou não o número de filhos (mas) por ter sido sempre mais felizes as mulheres: isto é, as mulheres já sã~ .felizes, trata-.se,
mais limitada do que o homem (por causa) da educação (até(mesmo)) pois, de um grau (talvez exorbitante) de felicidade. Isto fl~a
o aumento de opções de vida resulta em incertezas, insegurança e culpa claro quando, ao falar não da mulher mas de todos, a expressao
(porque) sente (que( como) ) tendo sido em detrimento de outra é felicidade para todos, logo, sem quantificação alguma.
(quando) opta por alguma coisa (e) raramente acredita (que) agiu é difícil negar: não faz uma negação direta, que seria "é inegável"·
corretamente (e) aquela julga-se carente de feminilidade (porque)
opta por uma carreira (ainda que) compreenda (que) uma coisa possibilidade futura quase inevitável: é uma ~ossibilidad~, e se ~ão
nada tem a ver com a outra (e) aquela acaba. se envolvendo em crises bastasse, em termos de indeterminação, ~ futur~ e, ~ quase i°:e-
igualmente dolorosas (porque) cumpre seu papel tradicional de vitável. Não se trata pois de uma necessidade histonca. O hoje,
esposa dependente (porque) a sensação de dependência também nessa perspectiva, não se discute.
gera culpa (e) ela acha (que) deve ser sempre agradável, gentil e fiel
direitos idênticos: por que não direitos iguais? Porque . o c?ntra-
àquele (que) a sustenta (e) ela sente-se sempre em dívida tanto num argumento é 0 biológico e aí se é obrigado a recusar a identidade.
caso como no outro (por outro lado = e) ela não consegue ainda se
sentir digna (quando) atende a seus próprios anseios (porque) cresce terríveis p~oblemas sociais: o problema da mulher é mais felicidade,
num mundo (em que) a imagem da mulher é a de "eterna sacrificada" o do homem é terrível e é social.
(e no qual) mundo (que) louva a abnegação (e negação) feminina
habitual status de chefe da casa: o social é o status, mas é habitual,
(mas) talvez amanhã essa abertura de opções passe a integrar sua
não tem causas sociais mais determinadas. Traz uma perda que
condição de ser humano (e) tanto homens como mulheres aprenderão ·
a viver sem culpa (e) alternando papéis de dependência e indepen- também é adjetivada: perda de prestígio doméstico. Até aí, esta-
dência, num relacionamento de troca · (e) em função das próprias mos em casa. . . E 0 que é terrível (terríveis problemas) é "ser
necessidades (então) nesse dia pode ser possível ter seus momentos compelido a procurar compensações" para esta perda ~e pres-
de comando e submissão, de adulto e de criança (sem = e não) ser tígio. Não se determina que compensações. (no ~lural)_ sao e_ssas
preciso pedir desculpas por cada gesto. e se são de caráter social; nem mesmo diz se e preciso, afinal,
sair de casa para encontrar compensações. Aqui não se adjetivam
Ob,servando os textos, podemos considerar, principalmente, duas
espécies' de elementos lingüísticos: as palavras e as construções. Veja- as compensações e tampouco se as quantifica.
. mos, inicialmente, as palavras enquanto classes e, depois, a sua pressão feminista: e não pressão feminina, deslocando, assim, do fato
constru~ão no texto. para o movimento de opinião.
Gostaríamos de destacar, aqui, enquanto funções, os adjetivos, alguns especialistas, outros (especialistas) : usa-se o prestígio. da ya-
os quantificadores, os circunstanciais, os substantivos e verbos, e lavra "especialistas" sem a necessidade ?~ ~utras d~t~:mmaçoes.
caracterizar alguns aspectos de sua ocorrência no texto. Mas a quantificação "alguns' coloca a divisao de opimoes. Inclu-

44 45
sive, é interes,sante a citação de nomes próprios, Maria LaLiberté da tal intuição. E, é claro, a construção da frase no condicional
Richmond e 'Peter Iten, que, nesse contexto soam muito falsa- e com interrogação reforça esse aspecto.
mente. Marie (socióloga americana?) e... P~ter (nome próprio curiosa conclusão: o que significa curiosa, qual é seu peso em termos
bastante comum), em que o sobrenome de Marie__:_ LaLiberté -
de conclusão? O conjunto do texto preenche esse sentido.
não parece sem motivação.
recentemente: afirma a novidade da notícia, sem dar determinações
padrões culturais: generalizados, sem especificidade alguma.
temporais. Em termos de argumentação, reforça a idéia de que
todo esse jogo: o jogo, aí, refere-se ao social e vem bastante indeter- hoje não há possibilidade de igualdade.
- minado: aquilo que foi dito faz parte de "todo esse jogo é
se fossem compradas no mercado de produtos químicos: esse cir-
apenas um problema social", enquanto as diferenças "são mais
custancial é o apoio de toda a argumentação e faz a virada do
básicas'', de natureza biológica. O social aí é superficial (apenas)
social e do biológico para o econômico. Notando-se, ainda, que,
mas esse "apenas social" causa proqlemas terríveis para: os
aí, o mais caro não é o de prestígio mas o menos econômico, o
hom~ns. Como veremos mais adiante, o mais básico, biológico,
adqmre características econômicas. desperdício, o inviável.
No discurso de Nova, também há uma indeterminação, mas,
natureza biológica: não é sem motivo que biológico esteja adjetivando
natureza, isto é, algo mais básico. Não se falou em problema de desta vez, o caráter dessa indeterminação é o da subjuntividade. Obser-
natureza social mas em jogo que é apenas social. vemos esse aspecto:

químico suíço: assim como as clínicas suíças têm muito prestígio, simples papel da mulher: simples indetermina papel e da mulher não
um químico suíço deve ser argumento que convence pelo simples especifica que mulher, ao contrário, generaliza.
fato de ser suíço. muitas culpas: indeterminação da linguagem subjetiva.
corpo masculino: curiosa formação de adjetivo para homem, enquan- alguma coisa: é nome indeterminado e alguma não especifica.
to para mulher surge a forma analítica "corpo da mulher" e seu
correlato "anatomia feminina". Para perceber essa diferença de · seu papel tradicional: esse tradicional aparece definido em outra parte
usos é preciso se ir para o contexto em que aparecem essas duas do texto; trata-se do papel de esposa dependente, o que, aliás,
formações: "substâncias que compõem o corpo masculino" e "as fica claro ao longo do discurso. O passado que continua no
que formam a anatomia feminina". A diferença de verbos com- presente é dito com precisão; a indeterminação e a subjuntivida-
por /formar ligada à que existe entre corpo/anatomia mostra de aparecem quando se fala em futuro e em opção.
bem a perspectiva de dentro, de cerne, de essencial (para o
homem) e a de fora, da forma como periferia, do superficial crises dolorosas: indefinição e subjetividade que contrasta com "os
(para a mulher). Corpo então é algo único,. quanto às substân- terríveis problemas sociais" alegados pelo texto de Status: pro-
cias, .e quando o presenteiam à mulher o fazem de fora (o corpo blemas/ crises, sociais (terríveis)/ dolorosas.
da mulher) . ou como objeto: "o status do marido e o preço do · abnegação feminina: parceira da intuição feminina, essa formação
.corpo feminino". sintagmática é também cristalizada, assim como, para o homem,
nada menos que Cr$ 264 milhões: a avaliação é reforçada, nesse caso, há cristalizações como "a responsabilidade do chefe de família" ,
enquanto para o homem se anuncia o preço sem determinações. por exemplo. Soa estranha "a abnegação masculina" assim como
a "intuição masculina". E não é apenas um problema de "som".
alguma intuição feminina: o feminino mais uma vez, como usualmen-
. te, adjetiva "intuição", e o alguma, em sua indeterminação, su- seus próprios anseios: tautologia em "próprios" e "seus" que pode-
gere "nenhuma'', o que torna ainda mais pejorativo o alcance riam dar uma forte determinação à expressão, se o nome ao qual

46 47
se referem não fosse "anseios". São próprios e são seus, mas que Podemos observar que há uma relação entre os substantivos de
anseios são esses? um lado, e adjetivos, quantificadores e circunstanciais, de outro, rela-
ção essa que está caracterizada da seguinte maneira:
condição de ser humano: trata-se também de uma cristalização, sem
determinação alguma, quando se procura caracterizá-Ia. Aqui, a) Quando o substantivo determina, os outros elementos o inde-
ela se indetermina em si mesma. A magia da palavra. terminam: alguns especialista, terríveis problemas, apenas um pro-
blema social, simples papel da mulher, etc.
próprias necessidades: quais são essas necessidades? São próprias.
Nesse dia: total indeterminação. b) Quando o substantivo tem um caráter de indeterminação, os
outros elementos realçam a indeterminação, determinando-a: alguma
cada gesto: sugere que sejam todos. Mas quais? Aqueles ditados pelas intuição, sensação de culpa, seus próprios anseios, possibilidade futura
opções mas também os da atitude tradicional. quase inevitável, etc.
Queremos ainda observar que, do ponto de vista dos circunstan- Esse é o jogo da indeterminação nos dois textos. E o verbo não
ciais, há dois fatores essenciais de intermediação e subjuntividade: a foge a essa característica. _Quando não é circunstanciado - no sentido
temporalidade e as diferentes ordens de razões. da indeterminação - o proprio verbo é impreciso: sentir, não conse-
guir, a coisa se complica, é difícil negar, ·quando atende, etc. Incluímos,
temporalidade: já (implica culpas), sempre (sempre mais limitada,
nesse jogo de indeterminação, o uso de formas compostas do verbo -
sempre agradável, sempre em dívida, etc.), hoje/talvez amanhã
por ter sido sempre, sente como tendo sido, se vê compelido a pro-
(indeterminação na oposição), quando, nesse dia, raramente.
curar, etc. - e o uso das formas subjuntivas - se fossem compradas,
diferentes ordens de razões: no discurso de Status, a oposição (para ainda que compreenda, seja, etc.
a mulher/para o homem, segundo alguns especialistas/segundo
outros) circ1mscreve o valor da igualdade entre homem e mulher
à relatividade de diferentes pontos de vista. No discurso de Nova, CONSTRUÇÕES
há a tentativa de mostrar lados diferentes mas a linguagem se
debate confusamente no mesmo ponto de vista. Mesmo quando Por essa primeira fase da análise, podemos constatar que contam
procura distinguir dois tipos de mulher, a que casa e a que se as palavras e a maneira como elas acontecem no texto. A maneira
como elas acontecem no texto inclui não só as suas ligações entre si,
dedica a uma carreira, os dois lados se confundem no uso de um
mas um aspecto . mais geral que chamaremos construção. Na constru-
operador que expressa bem essa falta de nitidez das diferenças:
ção estão esses modos de ligação entre as unidades e o modo de
o operador também.
organização delas no texto. Não esquecendo, todavia, que cada unida-
de também tem seu valor em si e que, quando falamos em organiza-
SUBSTANTIVOS E VERBOS ção, essa não é vista como oposição entre elementos, mas como inte-
gração dos elementos numa totalidade. E a diferença de que são
Em Status, temos os seguintes substantivos, no conjunto dos capazes é a existente em relação ao dito e o que poderia ser dito, isto
quais há o domínio do substantivo status: gente, caminho, mulheres, é, as formações parafrásticas que margeiam todo o texto.
h<;>mens, possibilidade, felicidade, todos, problemas, compensações, No primeiro texto - o da revista Status - a nossa entrada para
especialistas, jogo, padrões, diferenças, substâncias, gastos, intuição. o nível da construção é feita através de duas formas:
~m Nova, . são os seguintes, com o domínio do substantivo culpa:
mcertezas, msegurança, alguma coisa, aquela, a outra coisa, sensação, a) Por entretanto em: "Para o corpo da mulher, entretanto, os
mundo, imagem, anseios, abertura de' opções, papéis, necessidades, gastos subiriam para nada men,qs que Cr$ 264 milhões". As outras
. nesse dia, momentos, desculpas, gesto. caracterizações - da mulher, subiriam, nada menos - são amarradas

48 49
quando, através de "entretanto", são referidas ao corpo masculino. compostas ou subjuntivas e, temporalmente, indeterminadas. Vacilam.
A partir daí, deve-se procurar determinar a direção da argumentação, E não é só no aspecto temporal que há vacilação. As referências ao ·
e essa direção, que é a da construção do texto, leva-nos a detectar espaço do texto, ao espaço dos argumentos também são confusas.
qual é seu apoio. E o encontramos, em uma forma circunstancial, Encontraremos em b essa vacilação no espaço.
em b.
b) Por outro lado, crescendo num mundo em que a imagem
b) Se fossem compradas no mercado de produtos químicos. Uma da mulher é a de "eterna sacrificada", etc.
suposição, de caráter comercial, sustenta a objetividade da argumen-
tação. E o que foi colocado antes - químico suíço, problemas sociais, Todos os elementos são carregados de indefinição: crescendo,
de natureza biológica - fica reduzido a uma condição (se fossem) mundo, imagem, eterna, etc. E a forma que os introduz, "Por outro
que transforma o argumento da diferença básica em diferença de . Jado", não indica realmente um outro lado, continua o mesmo lado.
mercadoria.
De um lado, a que opta pela carreira e a que cumpre o papel
O artigo estaria. justificado pelo seu tom de ironia. E, justamente tradicional e, de outro lado, a que atende seus próprios anseios e
no nível da construção, podemos verificar mais um fator: o da ordem não se sente digna. Em que esta última difere da que opta pela car-
dos enunciados. O que passa por irônico, aceitável, no texto, quando reira? Não é outro lado. O tempo todo é um só e mesmo lado. E o
colocado na transcrição exata de sua ordem (a da dominância das outro lado, no texto, não é espaço, é tempo: talvez amanhã.
frases , a ordem canônica) aparece como encadeamento grosseiro de
razões. Esta é a base da argumentação. Nesse sentido, podemos rela- Perguntando pelo hoje, nessa confusão de lados e de tempos,
cionar a ordem, a construção, com fatores de estilo e verificarmos, chegamos à razão da indeterminação e ao que seria o argumento
pois, que o estilo não é indiferente ao que se diz, ao como se diz, às básico do texto: "hoje, a mulher pode escolher entre trabalhar ou não,
intenções do locutor e à sua localização em uma determinada ordem casar ou não, limitar ou não o número de filhos".
social. A ironia é um argumento. Pela análise da dominância de frases, podemos verificar que o
,•
No segundo texto - da revista Nova - alguns elementos da operador "entre" incide sobre "ou, ou, ou" mas isso não é suficiente
construção também são reveladores. para caracterizar a opção para os elementos que estão separados por
vírgula e corresponderiam ao operador e. Então, temos:
a) Em "até o aumento de opções resulta em incertezas, inse-
gurança e culpa", até representa um fator relevante na ordem dos
Hoje a mulher pode optar
.enunciados com relação à argumentação. Passado pela ordem de entre trabalhar ou não
dominância, podemos verificar que esse "até" antecede - e no texto (e)
sucede - "Hoje a mulher pode escolher entre trabalhar ou não, entre casar ou não
casar ou não, limitar ou não o número de filhos". O que nos autoriza (e)
a restituir operadore.s para "até" (até = mas mesmo), que se faz da entre limitar ou não o número de
seguinte forma : filhos

"mas por ter sido sempre mais limitada do que o homem mesmo o O que nos dá a falsa idéia de que pode optar entre todas essas
aumento de opções resulta em incertezas, insegurança e culpa". possibilidades quando, de fato, há uma hierarquia estabelecida. Da
forma como está formulada, a construção explicita a opção ao nível
Essa ordem restitui um pouco de determinação à indeterminação
horizontal (ou) e deixa indefinido o nível vertical (e) . Por exemplo,
desse elemento "até". Esse estilo é que chamamos "subjuntivo", isto é,
a mulher pode "não casar (e) não trabalhar (e) não limitar o número
dilui-se em impressões, em formas (principalmente as do verbo)
51
50
de filhos?" A forma, como estão enunciadas as opções, as indefine e, estiverem inscritos lingüisticamente no texto. Ambos os textos tratam
por isso, mantém os conflitos encobertos, criando uma falsa repre- do feminismo. Tomaremos a definição de feminismo como elemento
sentação de opções. A ilusão da possibilidade total de opções (em que organiza os e~ementos dos quais falamos até o momento.
abstrato) nasce, no texto, do jogo dos operadores (entre, ou, e). Na
·verdade esse problema que aparece apenas como um problema de
Primeiro Texto (Status):
construção lingüística, é uma escamoteação de uma dificuldade real.
Por exemplo, uma mulher que quer "trabalhar (e) casar (e) ter
filh?s" enfrenta o problema social da existência, ou não, de creches. torna mais felizes as mulheres
Formuladas de forma vaga, as opções não se calçam de condições possibilidade futura
reais e mantêm a hierarquia já estabelecida, ideologicamente. duvida que traga a felicidade para todos
igualdade de direitos para homens e mulheres
E a subjuntividade é isso: mais do que em fatos, a argumen-
(direitos idênticos)
tação se indetermina num talvez amanhã de alternância de papéis de
Feminismo problema social: abandono do status e perda do
dependência e independência, de comando (?) e submissão (?), em
prestígio doméstico; necessidade de compen-
função das próprias necessidades (quais?). O texto aparecerá como
sações
frouxo e indeterminado, entre um hoje (que é ontem também) inde-
problema biológico (direitos idênticos) : substân-
sejável e um talvez amanhã que não se sabe muito bem qual será.
cias, para as mulheres, custam mais caro.
Não se refere a fatos, mas a sensações, não se refere a deveres e
Corpo = mercadoria
direitos que estejam ou não sendo cumpridos, se refere a sentimento
de culpa.
Não é por acaso que o primeiro texto - Status, cujo interlo- Segundo Texto (Nova): J
cutor ideal é homem - usa argumentos baseados em uma razão
(pretensamente) das ciências exatas e no segundo - Nova, que tem opções : trabalhar ou não, casar ou não, limitar
como interlocutor ideal a mulher - os argumentos utilizados são das ou não o número de filhos
ciências humanas. Isso também é ideológico. integração de sua condição de ser humano
alternância de papéis de dependência e indepen-
Na análise dos dois textos podemos observar que nada na lin- feminismo dência, num relacionamento de troca, em
guagem é indiferente ao sentido: as palavras, a construção, a ordem, função das próprias necessidades
o tom, o estilo. Com isso, fazemos um estudo que leva em conta os não sentimento de culpa, para as mulheres
diversos aspectos do contexto (lingüístico). Gostaríamos de alargar distribuição do poder: comando e submissão al-
essa perspectiva, através da introdução de um novo elemento nesse ternados
estudo: o da situação (contexto social).
Podemos distinguir, subjacentes a esses dois textos, em função do
Essa passagem não se fará sem intermediário:_ construiremos contexto social, os seguintes componentes:
uma rede 1 em que organizaremos os elementos lingüísticos junto a -
uma perspectiva social. Não se trata de uma relação de simples a) base da relaçao homem-mulher
co-ocorrência de fatores lingüísticos e sociais, mas em que o social é b) direitos
determinante. No entanto, só atribuiremos importância aos fatos que c) deveres
d) igualdade
l . Esse procedimento nos foi sugerido pela colocação de Halliday da rede e) causa das diferenças
semântica enquanto intermediária entre o social e o gramatical ( 1976) . 9 evolução dos padrões culturais

52 53
Vejamos como ocorrem, em cada texto, esses componentes: f') hoje: sentimento de culpa quando opta, e quando não
opta.
Primeiro Texto:
f") amanhã : alternância de papéis sem sentimento de culpa.
a) Base da relação homem-mulher: status de chefe da casa.
b) Direito: Não estão muito claros, nesse segundo texto, os deveres e os
b') homem: chefe da casa. direitos da mulher, mas se mantém, quanto ao homem, o dever de
b") mulher:? sustentar a mulher e, quanto à mulher, o direito de ser sustentada.
c) Deveres:? O trabalho remunerado aparece, pois, como diferença fundamental.
d) Igualdade: igualdade de direitos (ser chefe da casa). Pelos dois textos, podemos chegar à seguinte conclusão: o homem é
e) Causa da diferença: o preço das substâncias que formam o chefe da casa porque trabalha. E ssa afirmação, que é carregada de
corpo masculino e as que formam a anatomia feminina; o que, se- toda uma ideologia do sistema capitalista que não é possível discutir
gundo o texto, é uma diferença de natureza biológica. aqui, não está expressa em nenhum dos textos, como tal. Fica difuso
f) Evolução dos padrões culturais: o conceito de trabalho, porque, nos textos, tampouco se distinguem
f') hoje: quando cedem às mulheres, têm problemas de pres- as diferentes classes. Há, então, superposição de dois problemas: o
tígio doméstico e são compelidos a procurar compen- da distinção de sexos e o da distinção das classes sociais. Poderíamos
sações. perguntar se a mulher rica e a mulher pobre têm as mesmas possibi-
f") amanhã: "não dá para negar que seja uma possibilidade lidades de opções em relação ao trabalho. Ou, ainda, que mulheres
quase inevitável". Ao falar da mudança dos padrões podem optar entre "trabalhar ou não"? Os textos camuflam as distin-
culturais, não especificam o que é igualdade nessa pos- ções: falam para (de) "todas" as mulheres e reduzem as dificuldades
sibilidade futura quase inevitável. ao complexo de culpa ou ao preço de substâncias. E se, aqui, não
Segundo Texto: pretendemos discutir o conceito e o valor social do trabalho, não dei-
a) Base da relação homem-mulher: papéis sociais num relacio- xaremos de refletir a respeito dos valores que estão presentes nesses
namento de troca em função das próprias necessidades, no futuro. artigos, enquanto publicações de revistas especializadas. Para isso,
Hoje: casamento. abandonamos o domínio daquilo que está inscrito, sob a forma grama-
b) Direitos: tical, na linguagem, para olharmos para o que transborda dela.
b') homém: casar ou não, trabalhar (ou não), limitar ou Na observação da determinação entre o lingüístico e o social,
não o número de filhos.
dissemos que nada_do que está na linguagem é indiferente ao sentido.
b") mulher tradicional: ser sustentada.
Agora, gostaríamos de acrescentar que, por outro lado, o sentido é
mulher que opta: trabalhar ou não, casar ou não, limi-
indiferente à linguagem. E isto é a polissemia.
tar ou não o número de filhos .
.c) Deveres: Não são apenas as palavras e as construções, o estilo, o tom que
c') homem : sustentar a mulher. significam. Há aí um espaço soéial que significa. O lugar social do
c") mulher: abenegação, ser agradável, gentil, fiel, ser eter- falante e do ouvinte, o lugar social da produção do texto, a forma de
na sacrificada e o complexo em relação à carreira sugere distribuição do texto, o valor da revista como parte do mecanismo
que os deveres estão ligados à feminilidade (?). da indústria cultural, tudo isso significa. Por trás do texto, em sua
d) Igualdade: alternância de papéis. sustentação, está a idéia da família e a veiculação dessa idéia pela
e) Causa das diferenças: educação que limita. indústria cultural. Trata-se do problema da reprodução e das relações
f) Evolução dos padrões culturais: econômicas, trata-se da divisão do trabalho. Mais do . que de informa-

54 55
ções, um texto está prenhe de sentidos e, no caso da indústria cultural, São revistas especializadas: para homens e para mulheres. Mas,
mais do que informação, existe a persuasão, o nivelamento de opinião se diferem em seus objetivos imediatos, não se distinguem quando
e a ideologia do sucesso. vistas como publicações de massa, em sua burocratização de produ-
ção. A comercializaçãG, o ritmo das publicações, a preocupação com
Os textos escolhidos ao acaso - apenas compramos, no mesmo
o efeito, o consumo imediato, a variedade sistematizada, não levam
dia, exemplares recentes de cada revista - pertencem a publicações
específicas. à produção de um texto realmente interessado em formar opinião,
em indicar vias reais para a solução de conflitos (ou, pelo menos, sua
O artigo "O status do marido e o preço do corpo feminino" está compreensão) .
na revista Status. Essa revista tem 154 páginas de ótimo papel, fotos
e composição muito bem cuidadas. A variedade de artigos é bem Dessa perspectiva, podemos dizer que ambos os textos pertencem
ampla: cartas, entrevistas, críticas, economia, literatura, política in- à mesma formação discusiva, isto é, têm a mesma relação com a ideo-
ternacional (com Paulo Francis, é claro), ficção, estória em quadri- logia. Não diferem.
nhos fofocas, Ibrahim Sued (falando de gente de status) e tudo isso
muito bem distribuído entre magníficas fotos de nus femininos. O ar- Em ambos os textos não temos o novo, mas mudança exterior
tigo que escolhemos pertence a uma seção chamada Periscópio. O da mesma coisa: a indeterminação do problema homem-mulher. Em
Periscópio não vem assinado e trata de uma mistura de pequenas um deles - Status ~ o problema é colocado de forma irônica, no
notícias como os incríveis métodos anticoncepcionais da moralista era outro - Nova-, embora o tom seja sério, pretendendo ser guia para
vitoriana, os arquivos secretos sobre as aventuras homossexuais de o desamparo da mulher, os conflitos aparecem confusamente, como
figurões americanos, a explicação científica para a maior virilidade sensações, e se resolvem em um talvez amanhã, isto é, se resolvem em
dos homens de países ensolarados e as ·muitas dicas e informações de aparência. Nesse ponto cumpre bem o papel de revista: o imaginário
4 seções diferentes: "Nos bastidores do poder", "As tendências de é real e o real é imaginário. E a mulher sonha e fica feliz com. seu
Status", "Brasil de fora para dentro" e "As invenções do mês". O complexo de culpa. Aliás, no final do artigo, · em uma parte que não
contexto, pois, em que está o artigo que fala da mulher, traz o tom analisamos, a "autora" conclui: "aceitando que tem limites, descubra
das "curiosidades" (no texto sobre a mulher, como vimos, chega-se a o que pode fazer, dentro desses limites".
uma "curiosa" conclusão).
Todas essas características da publicação compõem o sentido do
O texto "O simples papel da mulher já implica culpas" faz parte texto. Assim como o lugar que o leitor ocupa socialmente determina
de um artigo mais amplo, "A colecionadora de culpas'', de Flávia a leitura que faz dele. A ilusão de que é sujeito do que se diz, e do que
Amaral, e está na revista Nova. Essa revista tem 114 páginas e se se compreende, na indústria cultural, está nisso: a sociedade é dividida
compõe de artigos, reportagens várias ("Nathalie e Bob", "O que há e o sentido distribuído não é só polissêmico: está despedaçado. O
de novo sobre alergia'', "Pepita Rodrigues: de repente o sucesso!'', fato de existirem outros textos que garantem - no sentido de forma-
"Confesso que vivi: Pablo Neruda", etc.), Moda e Beleza, Ficção e rem um processo discursivo - o que é dito nesses dois especifica-
Sempre em Nova (informações sobre atualidades em livros, cinemas,
mente, sedimenta certos sentidos e institucionaliza o dizer. Cria "con-
discos, compras, horóscopo). O artigo que escolhemos está junto com.
~enso'', opiniões comuns.
outros artigos como : "Um homem conta sua primeira experiência
sexual", "As armadilhas que o dinheiro prepara'', "A adúltera perante Pelo procedimento que seguimos, fizemos o seguinte percurso:
a lei", "Poluição sonora", "O mito do orgasmo múltiplo", "Homens
passivos e como lidar com eles", etc. São artigos que pretendem "edu- 1.0 ) Análise de palavras
car a mulher para a vida", levá-la a se situar nesse mundo tão caótico. 2.º) Análise de construções
E não é por acaso que a revista se chama Nova (a "nova" mulher, 3.º) Construção de uma rede semântica, intermediária entre o
a "nova" compreensão da vida, etc.). social e o gramatical

56 57
4.0 ) Consideração da produção social do texto como constitu-
tiva de seu sentido.
Ao deixarmos, intencionalmente, de lado, a discussão das ten-
dências e modelos, criamos um espaço de questões que faz parte do
trabalho do lingüista e que ele deve responder. Uma das questões,
que fazemos, nesse passo, é a seguinte: como caracterizar o lingüís-
tico, na medida em que deslocamos seus limites 2 , considerando neces- O DISCURSO DA HISTÓRIA
sário esse deslocamento, quando se trata do sentido? PARA A ESCOLA *

BIBLIOGRAFIA
Este trabalho representa a exploração parcial dos resultados de
ADORNO, T. & MORIN, E. - La Industria Cultural, Ariel, Barcelona, 1973.
um curso de pós-graduação, em Análise do Discurso (l.º semestre
HALLIDA Y, M. A. K. - "La Sémantique ~t la Syntaxe dans une Grammaire
de 1980), em que me propus a análise de livros didáticos de História
Fonctionelle'', Sémantique et Logique, Mame, Paris, 1976. · do Brasil, mais especificamente,. a análise de textos didáticos da cha-
PÊCHEUX, M. - Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969. mada "3.ª República'', ou seja, do período que começa em 1964 e
PONZIO, A. - Producción Linguística y Ideologia Social, Albero Editor, Ma- vem até nossos dias ( 1983). Esses textos didáticos de história formam
drid, 1974. o material sobre o qual incidiu a análise. Como se tratava de um
YOLOSHINOV, V. - El Signo ldeologico y la Filosofia dei Lenguaje, Nueva curso que tinha como objetivo a prática da análise de discurso e a
Visión, B. Aires, 1976. reflexão sobre problemas que derivam dessa prática, tomei estrategi-
camente dois pretextos para delimitar o escopo da análise: um pretexto
teórico, que foi a reflexão sobre a tipologia e um pretexto analítico,
o de considerar os tipos de discursos referido e referidor. Para a apre-
sentação desse trabalho, limitar-me-ei a explorar uma das dimensões
da análise, qual seja, a que incide sobre tipologia e, em termos de
marcas lingüísticas, sobre a relação verbo, advérbio e sujeito em por-
tuguês. Alguma observação a respeito de discurso referido será feita
apenas ocasionalmente.
Devo dizer, inicialmente, que na consideração do contexto, a
lingüística desenvolve seu projeto, de forma cada vez mais abrangen-
te, em 3 níveis: em um primeiro momento considerou-se o que cha-
mamos contexto lingüístico, isto é, um elemento em sua relação com
outros, tendo em vista a estrutura da frase; em um segundo momento
explorou-se a relação frase-situação, e entrou no foco das atenções o
contexto situacional. Daí derivam as grandes aquisições feitas através
da reflexão sobre enunciação: o falante, o enunciado e, através dele,
a relação com o mundo, com o ouvinte. Em um terceiro momento, a
2. Discutimos esse problema, situando a necessidade da consideração do social unidade a ser considerada é o texto, não estaticamente, mas como
na linguagem - enquanto sociolingüística - em "Os Protagonistas do/no processo de significação em que também entram os elementos do con-
Discurso" e "O Social e o Lingüístico", em Foco e Pressuposição, Série
Estudos 4, Uberaba, 1978.
* Texto publicado na Série Estudos 7, Uberaba, 1981.

58
59
texto situacional. Essa terceira é a proposta da análise de discurso em me mais adequado tomar trechos de textos diferentes que tratassem
que encontramos dois saltos: um quantitativo, se assim se pode dÍzer de um mesmo assunto, uma vez que só o estudo comparativo de
ou. seja, do ?ível segmentai (a passagem frase-texto) e outro quali~ textos poderia me levar a uma caracterização de funcionamentos dis-
ta,hv?, ou SeJ~, ª. ~ons!der.ação. do texto como unidade complexa ( di- cursivos distintos, que era o que eu procurava.
nam1ca) de s1gmf1caçao, implicando as condições de sua realização,
Dissemos mais acima que o pretexto teórico para essa reflexão
uma vez que o texto, nesta perspectiva, não se define como uma soma
foi a tipologia. Consideramos que a atividade de dizer é "tipologizan-
de frases Cf1 + f2 + ... fu = T) mas é de outra natureza.
~e", ou seja, todo falante quando diz algo o diz estabelecendo uma
. Será, então, a consideração do texto, enquanto unidade signifi- "fisionomia" para seu discurso de tal forma que, ao analisar, podemos
cativa, que estará nos ocupando nesta análise. Por outro lado, não reconhecer essa fisionomia como um tipo, ou melhor, eu diria que essa
serão quaisquer espécies de textos, mas textos de livros didáticos de "fisionomia" representa um funcionamento discursivo. Funcionamento
História do Brasil. porque não se trata de um modelo que o falante procura preencher -
um tipo - mas de uma atividade estruturante de um discurso deter-
Eis a indicação dos livros de que tiramos os textos:
minado, por um falante determinado, para um interlocutor determina-
1) Borges Hermida (B. H.), História do Brasil III, Cia. Editora do, com finalidades específicas. E é assim, procurando um funciona-
Nacional, São Paulo, 1979. mento discursivo 'específico, que vamos estudar o texto didático.
2) Marlene e Silva (M.S.), História do Brasil, 6.ª série, Ibere, A questão é, pois, na caracterização desse funcionamento discur-
São Paulo, 1975.
sivo específico, que é o do texto didático, encontrar marcas formais
3) Francisco Silva e Pedro Ivo Bastos (P. l.) História do Brasil que explicitem sua fisionomia, seu funcionamento. As dificuldades, no
série Sinopse, Moderna, São Paulo, 1979. ' '
entanto, são muitas. Se atentarmos para as classificações existentes a
4) Esau e Gonzaga (E. G.), História do Brasil para Estudos respeito de tipos de discurso, veremos que há uma grande variedade
Sociais (com Organização Social e Política), 6.ª série do 1.º grau de critérios e que há, em relação ao fenômeno discurso observável,
Ed. Saraiva, São Paulo, 1977. '
uma mistura, um cruzamento de características. Isso também se deve
5) A. Souto Maior (S. · M.), História do Brasil (para o ensino ao fato de que se trata de processo discursivo e não de unidades cris-
de 2. 0 grau e vestibulares), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1977.
talizadas. Em nosso trabalho, tratamos de duas "espécies" de discurso,
6) Francisco Alencar, Lúcia Carpi e Marcos Vinicius Ribeiro isto é, trabalhamos no cruzamento do discurso didático e histórico.
(A C. R.), História da Sociedade Brasileira, 2.º grau, Ao Livro
Técnico, Rio de Janeiro, 1979. Acrescente-se a essas variedades aquela que tenho proposto, que é a
que distingue o polêmico, o autoritário e o lúdico e que também orien-
7) Luís Koshiba, Denise M. F. Pereira (K. P.), História do
Brasil, Atual Editora, São Paulo, 1979. ta esse trabalho.
A partir de que momento dizemos que um discurso é .de tal ou
Desses livros, tomamos certos trechos, isto é, os que tratam de
"eleição indireta" e, paralelamente, o relato do fim de um mandato e tal tipo, ou melhor, representa tal ou tal funcionamento discursivo?
início de outro. Fixamos, então, nossa atenção na maneira como se Depende das condições. E a noção de condições torna-se híbrida e
tomava posse do poder,. sem eleições. O fato de termos privilegiado nela se misturam: intenções do locutor, quadro institucional, dados
certos trechos deve-se a uma questão de organização d'o material sócio-históricos, expressão do sujeito face a outro sujeito. Eu poderia,
ana~isado e da quantidade de dados que se ofereciam. Há vários pro- nesse passo, repetir Voloshinov ( 197 6), que .diz que a significação está
cedimentos possíveis em análise de discurso. Poderia ter-me limitado na interação entre locutor e receptor, havendo sempre modalização
a um texto, na íntegra, e procurado as marcas que o caracterizavam. apreciativa. E é essa interação que pretendo observar no texto. E no
Assim, poderia analisar palavras ou frases-de-base que determinassem lugar dessa interação, desse confronto, que, para mim, se caracteriza
alguma especificidade do texto. Porém, para meus objetivos, pareceu- o funcionamento discursivo.

60 61
Analisaremos, como foi dito mais acima, os trechos que tratam b) O primeiro presidente eleito, da terceira república, foi o
da eleição indireta e conseqüências, isto é, a questão da posse do po- Marechal Castelo Branco.
der em 1964 e a sucessão nos períodos subseqüentes, os Atos e as c) Em Brasília de acordo com a revolução ocupou o cargo de
mudanças na Constituição.
Presidente da República o deputado Ranieri Mazzili.
Fica clarô; em uma leitura atenta dos textos, que, a partir de d) Uma Junta Militar passou a governar até tomar posse o
1964, toda substituição no poder se fez com mudanças nas regras novo Presidente, eleito ainda em 1969, o general Médici.
do jogo, tendo sempre havido necessidade de se mexer em regras
2) (M. S.)
para se preparar a posse do sucessor. Mudavam a cena e o ato
O processo sucessório não é automático. Essa mudança de regras a) O Senado declarou a vacância do cargo presidencial.
que corresponde à sucessão está explicitada, por exemplo, no seguin- b) A 9 de abril, os ministros milita.res, general Artur da Costa
te texto de Koshiba ,e Pereira (K. P.): "A fim de preparar a tran- e Silva, o brigadeiro Correia de Mello e o Almirante Augusto Rade-
sição a Junta Militar realizou uma reforma constitucional, incorpo- .maker, que formavam o Alto Comando da Revolução, decretaram
rando no texto da constituição o AIS e demais atos nos artigo 182". o Ato Institucional n. 0 1 que tornava indiretas as eleições para
a presidência da república. No dia 11 de abril de 1964 é eleito pell}
Uma outra impressão que nos fica da leitura atenta de vários Congresso Nacional o general Humberto de Alencar Castelo Branco.
textos, mesmo sem a análise, é a de que se evitam as afirmações
categóricas, como, por exemplo, ainda em (K. P.), o texto com 3) (P. I.)
duas negações: "Apesar das medidas tomadas pela Junta Militar, a) Assumia a Presidência, em caráter provisório, mais uma
a escolha do sucessor de Costa e Silva não se deu sem atritos na vez, o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili.
área militar". Podemos dizer que essa também é uma característica b) A estruturação da nova ordem político-administrativa que
dos textos de história desse período. Pois bem, a partir dessa forma se instalava no país iniciou-se com a edição pelo alto comando revo-
iµdireta ou atenuada de se falar das eleições indiretas, da mudança lucionário (general Artur da Costa e Silva, Almirante Augusto Rade-
de regras no processo sucessório e de outros fatos a ele ligados, a maker e brigadeiro Correia de Mello), do "Ato Institucional n. 0 1"
partir da impressão de que essa história, em parte dos textos anali- (9 / 4/64). O documento preservava, de uma forma geral, a Consti-
sados, era contada de maneira fortuita, procuramos alguma marca tuição de 1946 e estabelecia, entre outras coisas que ( . . . ) a eleição
que nos levasse a uma caracterização lingüística desse discurso.
do novo presidente seria feita pelo Congresso dois dias após a publi-
O que nos pareceu óbvio, num grupo de textos, foi a descaracteriza-
ção ou acobertamento do sujeito da história. E verificamos que isso cação do Ato.
se dá através de um jogo de linguagem que afeta basicamente a c) No dia 15 de abril, assumiu a pr~sidência o marechal
relação do verbo com o sujeito, o uso de datas, dos locais e das Humberto de Alencar Castelo Branco.
circunstâncias, sob a forma de adjuntos ou orações adverbiais. d) Em 27 de outubro de 1965, foi editado o Ato Institucio-
Notamos também que há textos em que não há essa indeterminação, nal n. o 2, no qual entre várias disposições ( .. . ) determinava-se
essa descaracterização, e isso nos permitiu distinguir espécies, ou que o presidente seria escolhido por eleições indiretas.
melhor, funcionamentos diferentes de textos didáticos de história. e) Novos Atos Institucionais foram editados no governo Caste-
Vejamos os textos que falam de eleição indireta: lo Branco.
1) (B. H.) f) No mesmo dia da posse entrou em vigor a Emenda Consti-

a) Ainda em Abril de 1964, foi publicado o Ato Institucional


tucional de 1969.
que estabeleceu, para a escolha do Presidente da República, a eleição 4) (E. G.)
indireta: o Presidente não seria mais eleito pelo voto de todos os a) A 30 de outubro reunia-se para eleger o novo presidente,
eleitores (eleição direta) mas pelo voto dos deputados e senadores. general E . G. Médici , ·cujo mandato deverá estender-se até 1974.

62 63
b) No impedimento do Presidente, ·-assumiu o poder uma Junta vadas até o dia 31 de janeiro de 1966. Dentre essas medidas desta-
Militar, integrada pelo Ministro 'do Exército, Ministro da Marinha cavam-se a eleição indireta para presidente da República, poderes
e Ministro da Aeronáutica. 1 ao novo presidente para que decretasse estado de sítio por trinta
1
dias e suspensão das garantias constitucionais. .
c) Em 24 de_ janeiro de 19,67 era promulgada a Nova Cons-
c) No dia seguinte à promulgação do Ato Institucional, o ma-
tituição e dois meses depois tomava posse o novo presidente, mare-
rechal Humberto de Alencar Castelo Branco seria eleito pelo Con-
chal Artur da Costa e Silva. \
gresso para exercer a suprema magistratura do pais.
d) Assim, a 11 de abril del 1964, deputados federais e sena-
1 d) A eleição de Negrão de Lima, na Guanabara, e Israel Pinhei-
dores elegiam o militar cearensF, Marechal Castelo Branco, um. ro, em Minas Gerais, ambos candidatos da oposição, originou ime-
dos líderes do Movimento de ~arço, à Presidência da República. diata reação da linha dura que, pressionando o presidente, obteve
e) Durante esse curto governo, Mílton Campos, Ministro da a promulgação do Ato Institucional n.0 2 pelo qual os partidos são
Justiça, redigiu o Ato lnstituciom~l n. 0 1, posto em vigor pelo Alto dissolvidos, restabelece-se o direito às cassações, além de se deter-
Comando Revolucionário, comgosto pelos novos ministros da minar que as eleições para a presidência da República deveriam
Guerra, Aeronáutica e Marinha, respectivamente, General Artur da ser indiretas.
Costa e Silva, Brigadeiro Francisqo de Assis Correia e Mello, Almi- 6) (A. C. R .)
rante Augusto Rademaker. a) Com a vitória do movimento militar, o Comando Supremo
f) Determinava essa lei que seria mantida provisoriamente a da Revolução editou o Ato Institucional n.~ 1, suspendendo as
garantias constitucionais e estabelecendo um prazo de 60 dias para
Constituição de 1946, com algumas modificações em seu texto.
cassar mandatos e direitos políticos.
. . . Determinava também que o novo presidente e vice-pre~iden­ b) Politicamente, o projeto do general Castelo Branco, esco-
te deveriam ser eleitos pelo Congresso, a fim de completar o qüin- lhido como Presidente, incluía o fortalecimento do Executivo e a
qüênio J ânio Quadros - João Goulart. segurança do Estado, para a qual foram criados órgãos como o
Serviço Nacional de Informação (SNI).
g) Novas reformas políticas foram postas em prática: pelo Ato
c) A escolha do Presidente da República que até 1964 era
Institucional n. 0 2, de 21/10/65, determinou-se que as eleições
um fato partidário e eleitoral, passou a ser encarada sob o ângulo
para a presidência deveriam ser indiretas, através do Congresso
da Segurança Nacional, com a decisão nas mãos do Alto Comando
Nacional.
Militar.
h) A 2 de abril de 1964 declarava-se vaga a Presidência da d) A intervenção militar liquidava não só à regime populista
República que seria provisoriamente ocupada pelo Sr. Ranieri Maz- mas a própria expressão política direta da burguesia; isto é, o siste-
zili. (1-4-64 a 15-4-64) . ma de partido.
5) (S. M.) e) No início de 1967, o Congresso foi reaberto - desfalcado
a) Dando continuidade ao processo revolucionário, foi eleito de alguns parlamentares - e aprovou uma nova Constituição, elabo-
pelo Congresso, a 3 de outubro de 1966, o marechal Artur da Costa rada por Juristas do Governo.
e Silva. f) A Arena o elegeu no Congresso Nacional, pois o processo
b) O Alto Comando da Revolução vitoriosa, compooto. pelo era indireto, segundo a Constituição.
general Artur da Costa e Silva, Almirante Augusto Rademaker e g) Foi nessas condições jurídico-políticas que se deu o cresci-
Brigadeiro Correia de Mello, promulgaria no dia 1O de abril um Ato mento econômico conhecido como "milagre brasileiro".
Institucional que mantinha a const~tuição de 1946 e as constituições h) Foi no governo Médici que chegou ao seu auge o modelo
estaduais e impunha uma série de medidas que deveriam ser obser- político e econômico brasileiro.

64 65
7) (K. P.) que determinava tal coisa. O presidente eleito foi tal." O Alto Coman-
a) Dessa maneira, em 15 de abril de 1964, torna-se presidente do decreta, edita, põe em vigor, e é o Ato que estabelece, torna indi-
o chefe do Estado-Maior do Exército, o general Humberto de Alen- retas as eleições. Esse passa-passa de autoria encontra sua forma
car Castelo Branco. explícita no texto de (E. G.) : Mílton Campos redige, o Alto Coman-
b) Logo após a queda de J. Goulart formaram-se dois poderes do põe em vigor e essa lei (o Ato) determina que o novo presidente
paralelos: um civil, representado pelo Congresso, e outro, militar, e o vice deveriam ser eleitos pelo Congresso e o Congresso elege.
representado pelo "Comando Revolucionário", integrado pelo General. Esse é o encadeamento a que nos leva a escrita sobre eleições indiretas,
c) A incompatibilização de alguns setores civis da "revolução", o que nos leva a pensar que não só as eleições que são indiretas.
com o poder militar, deu-se de forma muito clara em 27 de outubro Temos também uma exemplo interessante no texto de (S. M.) quando
de 1964, com a edição do Ato Institucional n. 0 2, que dissolveu os trata do AI-2: a eleição na Guanabara e em Minas provoca reação na
partidos políticos existentes e estabekceu a eleição indireta para linha dura que pressiona o presidente e obtém a promulgação do Ato
a presidência da República. que determina que as eleições sejam indiretas.
d) No dia 3 de outubro de 1966 ele foi eleito pelo Congresso, Pela observação dessa escrita, podemos dizer que o que se
composto apenas de fiéis arenistas. Quanto ao MDB, justificou sua mostra é a transitividade das relações de poder, representada lin-
abstenção para não "coonestar uma farsa". güisticamente por um certo modo de dizer. São mediações que fun-
e) Pedro Aleixo, vice-presidente, foi impedido de assumir a cionam em relação ao agente.
presidência tal a desconfiança dos militares em relação aos civis. Junto a essa transitividade, há uma ocultação do autor, do
Obs.: Por uma questão de espaço não colocamos aqui todos os sujeito que pode ser atribuída a vários fatores como censura, auto-
trechos analisados. Na medida em que formos expondo nossa análise censura e até mesmo cumplicidade com o poder dominante mas, de
faremos referência a outros trechos desses mesmos autores. forma geral, resulta, como toda vez em que aparecem mediações em
um processo, em um jogo ideológico de ocultação e de legitimação.
Já em uma primeira aproximação desses textos é possível uma
divisão que distingue os cinco primeiros dos dois últimos: os cinco A esse respeito, é notável a diferença do modo de dizer (e, logo, dos
primeiros são episódios, cronológicos, factuais enquanto os últimos efeitos de sentido) distinto estabelecido, em relação ao grupo de
são mais interpretativos, dando mais realce ao processo do que aos textos A, pelo penúltimo texto (A. C. R.), pertencente ao grupo B,
fatos. Nesse sentido, o último é uma variação do penúltimo, no sen- que diz: "a escolha do Presidente da República que até 1964 era um
tido de que alia à interpretação a factualidade, o episódico, constituin- fato partidário e eleitoral, passou a ser encarada sob o ângulo da
do assim uma subdivisão: Segurança Nacional, com a decisão nas mãos do Alto Comando Mi-
litar". Essa linguagem mais precisa é possível porque ao invés do jogo
Grupo A: (B. H.) , (M. S.) , (P. I.), (E. G.), (S. M.).
de ocultação de sujeitos através de recortes episódicos, os autores
Grupo B: B (A. C. R.)
desse texto p·a rtem para a explicitação do processo político e do jogo
B' (K. P.) . de poder, mostrando a posição determinante da segurança nacional,
Vejamos os textos do grupo A. isto é, a política da segurança nacional como estratégia do regime.
O último texto (K. P.) do grupo B (variante B') coloca como os
Em relação ao agente determinante das eleições indiretas, além grupo A as mediações, em que o Ato assume as funções · de sujeito
da indiferenciação do Ato Institucional n. 0 1 e n.° 2 - nem sempre "que dissolve partidos e estabelece eleições indiretas", mas, ao mesmo
está claro em qual se estabeleceu que as eleições para presidente seriam tempo, em termos de interpretação, de processo, mostra que isso vem
indiretas - há uma estratégia sintática para a atribuição de agente: da "incompatibilização de setores civis da revolução com o poder
coloca-se a data, o verbo na passiva ou na forma impessoal e a posse militar", indicando os agentes e restituindo os fatos ao processo de
do presidente vem diluída. "No dia tal do ano tal fo~ publicado o ato quem fazem parte, o que é próprio do grupo B.

66 67
Do ponto de vista lexical,-llá verbos que funcionam para a inde-
de presidente: (E. G.) "Em 24 de janeiro de 1967 era promulgada a
terminação. Podemos lembrar, por exemplo, no texto do grupo A,
nova constituição e dois meses mais tarde tomava posse o novo
que escolher (ou indicar) o presidente e eleger o presidente não são
presidente Marechal Artur da Costa e Silva"; (S. M.) " . . . fez diver-
sinônimos, ao contrário, expressam tarefas de autorias diferentes
sas emendas à Constituição de 1967, delas resultando o texto que
embora haja um jogo entre elas no texto: (P. I.) "O Alto Comando
entrou em vigor a 30 de outubro de 1969, data da posse do general
das Forças Armadas escolheu o General E. G. Médici, comandante
G. Médici". Isto é, nos dizeres dos textos do grupo A não se faz uma
do III Exército, para presidente da República. . . Em 30 de outubro
tylação explícita entre a mudança na/ da Constituição e a sucessão no
de 1969 tomou posse o presidente Médici e o vice-presidente A.
pbder e tampouco se explicita a natureza das mudanças ("preserva
Rademaker, eleitos indiretamente pelo Congresso Nacional". Ou, como d~ forma geral a de 1946", "essas mudanças", "diversas mudanças") .
no exemplo do texto de (S. M.): "Poucos dias depois, o comandante
do III Exército, General E. G. Médici, foi indicado pelo Alto Coman- Os textos do grupo B explicitam o que está implícito nos textos
do das Forças Armadas como candidato à sucessão. . . ao mesmo do grupo A, por isso podemos dizer que são menos indeterminados :
tempo que o Almirante A. Rademaker foi apresentado como candi- (A. C. R.) "Do ponto de vista jurídico a situação continuava proble-
dato . .. " Ainda do ponto de vista lexical, não deixa de ter interesse mática: coexistiam a Constituição e o Ato que negava vários capítulos
amenidades como: "Declarava-se vaga a presidência da república", ~a Carta Magna. O Estado de fato superava o Estado de Direito";
"O Senado declarou a vacância do cargo", ou, em formas enfraque- (K. P.) "A Constituição de 1967 incorporava as prerrogativas auto-
cidas, em geral com sujeitos pospostos, ou adjuntos adverbiais - fitárias conferidas ao Executivo pelo AI2 e surgiu aliada à Lei de
como analisaremos a seguir - temos a posse do poder com expressões Imprensa (fevereiro de 67) e à Lei de Segurança Nacional. O novo
como: (S. M.) "assumiram as responsabilidades presidenciais . . . ", presidente assumia então com poderes praticamente ilimitados, con-
"eleito pelo Congresso para exercer a suprema magistratura do país", Jieridos a ele por essas leis, o que levou a oposição a denunciar a
(E. G.) "No impedimento do presidente, assumiu o poder uma Junta institucionalização da ditadura". Deve-se notar em relação a esse últi-
Militar". mo texto que ele incorpora o discurso da oposição, citando-o.
A história do arbítrio vai se dizendo, nos textos do grupo A, Pudemos observar, nessas estratégias de dizer, a relação do verbo
através dessa linguagem indefinida: (S. M.) ~·A 31 de agosto os ~om seu sujeito e também o funcionamento lexical de certos verbos.
ministros militares anunciaram oficialmente ao país que o presidente Gostaria, agora, de observar os advérbios.
Costa e Silva, gravemente enfermo, vítima de um derrame cerebral,
não tinha condições de governar e que a situação política impedia a Se fizermos uma leitura dos textos que foram analisados até
transferência do poder para o vice-presidente Pedro Aleixo, como aqui, veremos que é bastante homogêneo o uso de advérbios: datas,
previa a Constituição de 1967 ." Observe-se a vaga afirmação "a situa- locais e modos. E desde já podemos adiantar que o uso de datas e
ção política impedia" comparada à interpretação feita por (K. P.), do locais é bem mais freqüente nos textos do grupo A.
grupo B, em relação a esse mesmo fato: "Pedro Aleixo, vice-presi-
Comecemos por um exemplo .claro acerca da função do advér-
dente, foi impedido de assumir a presidência, tal a desconfiança dos
militares em relação aos civis". bio: (B. H. ). "Em Brasília de acordo com a revolução ocupou o cargo
de Presidente da República o deputado Ranieri Mazzili". Há aí dois
Além disso, um dos pontos interessantes a se notar é a referên- adjuntos adverbiais: "Em Brasília" e "de acordo com a revolução".
cia à Constituição. Na leitura dos textos do grupo A, pudemos obser- Observando-se o texto em que aparecem (obra citada, p. 139) pode-
var que há sempre uma Constituição que é preservada apesar das mo- mos perceber que o uso da referência ao lugar faz parte de uma série
dificações: (P. I.) "O documento preservava, de uma forma geral, a de citações, de mesma natureza, resumindo acontecimentos distribuí-
Constituição de 1946 e estabelecia que .. . ". Chega-se, assim, à "con-
dds geograficamente: em Minas, no Rio, em Brasília. Essa referência
fecção de uma nova Constituição" em 1967 e a uma emenda consti-
geográfica tem a função textual de estabelecer o escopo do discurso,
tucional em 1969. Essas mudanças de Constituição antecedem mudança
isto é, sua área comum de significação, aquilo que dá unidade ao
68
69
discurso, amarra suas partes. As datas também têm essa função. Por funcionamento; o mais importante é o que chamamos de relevo do
exemplo: (B. H.) "Ainda em abril de 64 foi publicado o Ato Insti- advérbio: é o fato do advérbio vir ou não em posição enfática, em
tucional. .. "; ( P. I.) "No dia 15 de Abril, assumiu a presidência ... "; relação aos outros elementos do texto .
. M(S.) "A 9 de abril, os ministros decretaram ... " :f: de se notar,
Em relação aos textos do grupo A, temos:
entretanto, que ao lado dessa função estrutural, tanto as datas, como
a indicação de lugares, têm outra função textual importante: trata-se 1 ) O circunstante, isto é, o advérbio, em relação ao relevo, pode
do fato de que essas indicações locativas ou temporais, aliadas à voz vir em realce. :É o caso das ocorrências de local e datas. Do ponto de
passiva ou, na voz ativa com posposição de sujeito, ou ainda com vista de sua função textual essas ocorrências criam o efeito de sentido
verbo acompanhado de partícula "se'', têm a função, nos textos do que resulta na ilusão da informação imparcial dos acontecimentos, em
grupo A, de indeterminar ou obscurecer a relação com o sujeito ou sua objetividade. Na realidade, a colocação em realce, do local e/ou
agente. Por uma questão prática não nos cabe aqui fazer uma lista de data, permite a indeterminação do sujeito ou ocultação do agente
exemplos, mas as obras citadas no início desse trabalho podem ser
'. através da posposição do sujeito, ou do uso da passiva sem agente.
consultadas para comprovar esse fato .
2) Vimos também que, em relação ao relevo, ao contrário do
Vejamos agora a análise do adjunto "de acordo com a revolu-
item 1, o advérbio pode aparecer como elemento sem importância,
ção". "Revolução" aí está por Forças Armadas, Comando Militar,
etc. Do ponto de vista da estrutura da frase, esse adjunto permite que sem posição de realce. É o caso dos textos em que o adjunto adverbial
a posposição do sujeito obscureça o agente real da tomada de posse: oculta o agente, isto é, o contém.
"de acordo com a revolução" = "a revolução determinou (permitiu) 3) Como variante dessa última observação, temos advérbios que,
que ocupasse o cargo o deputado Ranieri Mazzili". Existe aí, velada, embora não ocultem o agente, pois este está expresso, passam por
uma estrutura de causatividade: A faz B fazer C. Podemos ligar essa informações marginais quando, na verdade, representam a área de
estrutura causativa ao problema mencionado mais acima acerca das
significação decisiva para se distinguir um grupo de textos do outro.
medições, lembrando que, aqui, se alia à causatividade um outro fator
Vejamos o exemplo: (E. G.) "Determinava essa lei que seria mantida
que é o da indeterminação, acobertamento do agente. Podemos citar
outros exemplos, como : (P. 1.) "A estruturação da nova ordem ... provisoriamente a Constituição de 1946 com algumas modificações no
iniciou-se com a edição pelo Alto Comando Revolucionário. . . do seu texto". Se tirarmos os adjuntos grifados teremos: "Determinava
Ato Institucional n. 0 1 (9/4/64" = "O Alto Comando Revolucioná- essa lei que seria mantida a Constituição de 1946" o que modificaria
rio edita o Ato que inicia a nova ordem". É ainda no adjunto adver- totalmente o sentido do texto. Agora, se tirarmos os circunstantes de
bial que está o real agente em um exemplo como: (P. 1.) "Novos Atos suas posições e lhes dermos outras funções, teremos: "Essa lei modi-
Institucionais foram editados no governo Castelo Branco". ficava o texto da Constituição de 1946 e a tornava provisória". Nesse
caso, teríamos uma paráfrase do texto inicial mas que se colocaria
Há também um fator a se observar que é a relação entre adjun-
tos adverbiais e orações adverbiais. Os adjuntos que são nominaliza- no outro grupo de textos, o grupo B.
ções de orações adverbiais - "no impedimento do presidente" = Esse jogo de realce, ou seja, o relevo do advérbio, serve para,
"porque o presidente estava impedido", "com a edição pelo Alto nos textos do grupo A, caracterizar a indeterminação como base dessa
Comando" = "O Alto Comando editou", etc. - são formas que formação discursiva.
tornam diluída a função de agente. Nos textos do grupo A são fre-
Como funciona o advérbio nos textos do grupo B? Esses textos
qüentes as ·nominalizações desse tipo.
não apresentam, como característica, o obscurecimento do agente, ou
'Em resumo, em relação aos advérbios, segundo o que pudemos sua indeterminação. O uso de datas e locais é pouco freqüente nos
observar, podemos afirmar que o seu funcionamento é determinante textos B e um pouco mais freqüente em B'. Em ambos, como para
para a caracterização do discurso didático de história. E, no seu os textos do grupo A, o advérbio tem a função de determinar o escopo

70 71
do discurso, quando se refere a locais ou datas já mencionados. Nos leva a indagar sobre o que finalmente é simbólico em _relação ao
textos B', os advérbios partilham, além dessa característica de amarrar ritual da posse, dada a provisoriedade de Mazzili. . . A ordem, pois,
o texto, dar sua unidade, às vezes também a de posposição de sujeito, é constitutiva do sentido.
como nos textos do grupo A. O que, entretanto, distingue esses textos
Para os textos do grupo B observamos que, embota também
é o fato de que, para os textos do grupo B (inclusive B'), o uso de
haja inversões - menos freqüentes e mais atenuadas do que as do
formas adverbiais não serve ao jogo do relevo na direção em que o
grupo A - , dominam os encaixes e não as inversões, o que resulta em
fazem os textos do grupo A, isto é, em direção à indeterminação.
um maior número de orações do tipo explicativo, restritivo, causal, etc.
Podemos observar isso nos exemplos que seguem: (A. C. R.) "Foi
nessas condições jurídico-políticas que se deu o crescimento econô~ Seria interessante lembrar os cas9s em que o problema da ordem
mico conhecido como 'milagre brasileiro"', "Foi no governo Médici e do encadeamento não afeta apenas adjuntos ou orações, mas atinge
que chegou ao seu auge o modelo político e econômico brasileiro". unidades mais amplas como períodos e parágrafos. :E: o caso de certas
Nesses exemplos, podemos verificar que os advérbios são colocados datas, citações de locais - como já observamos - mas também o de
em destaque pelo artifício sintático "f:. . . que", que serve, justamente, partículas como "ainda", "assim" e outras expressões que têm. função
para estabelecer o foco nos advérbios. Não se trata, pois, de um jogo no encadeamento do discurso e que merecem um estudo mais apro-
de indeterminação, ao contrário, é algo que precisa, determina. A fundado. Ficam, também, à margem desse trabalho advérbios que eu
informação dada pelo advérbio não fica, aí, lateral. chamaria de modalizadores ou apreciativos e que revelam claramente
a posição do locutor em relação ao que ele diz e para quem ele diz.
Vejamos, agora, o que se passa com a ordem dos elementos. São advérbios como "realmente'', "provavelmente'', etc., que têm uma
Como pudemos observar em "A linguagem em revista: a mulher- função diretamente apreciativa. No entanto, pelo que analisamos, po-
fêmea", o que passa por ironia ou mesmo razoável na ordem inversa, demos generalizar a afirmação de que o advérbio, assim como outros
quando restituído à ordem canônica, se apresenta como encadeamento elementos - como pronomes, tempo verbal, etc. - , é um lugar de
grosseiro de razões pouco sutis. Aqui, a ordem inversa, junto aos contato entre locutor e destinatário. Quando se diz "provisoriamente",
outros fatores de que tratamos, serve de reforço, no grupo de textos "simbolicamente", está-se avaliando, opinando, da mesma forma que
A, à indeterminação do agente: (S. M.) "Dando continuidade ao quando se usam datas para se obscurecer a relação com o a~ente,
processo revolucionário, foi eleito pelo Congresso, a 3 de outubro de ou qualquer outra . das formas que analisamos. Isso nos leva a afirmar
1966, o Marechal Artur da Costa e Silva". Colocando-se na ordem que a distinção de elementos privilegiados na enunciação (como os
canônica, haveria, no mínimo, um problema em relação à atribuição shifters) tende a ser corroída, se passamos para a análise de discurso.
do adjunto: "O Marechal Artur da Costa .e Silva foi eleito pelo Con-
gresso a 3 de outubro de 1966 dando continuidade ao processo revo-
lucionário". CONCLUSÕES PARCIAIS

Alie-se a esse problema de ordem o fato de que os advérbios Podemos utilizar, nesse passo, a noção de formação discursiva
são tidos como elementos de maior liberdade na posição, em rela- ( cf. p. 26) . A formação discursiva se constitui na remissão que pode-
ção aos outros elementos da frase, e podemos perceber que isto repre- mos fazer de todo texto a uma formação ideológica, de tal forma que
senta um jogo significativo na obtenção de certos efeitos de sentido. .seu sentido (do texto) se define por essa relação. Isso quer dizer que
Vejamos o exemplo: (S. M.) "No dia 15, o presidente provisório Ra- dependendo da inserção do texto em uma ou outra formação discursi-
nieri Mazzili entregaria simbolicamente a faixa presidencial aq novo va, pode-se observar uma variação de sentido, pois há diferenças nas
presidente". Em relação à ordem ou incidência do advérbio, podemos relações distintas que cada formação discusiva mantém com a forma-
dizer que aí está dito que a entrega é simbólica e não, como seria .ção ideológica. Desse modo, a formação discursiva determina o que
esperado, que a faixa é simbólica. Isso pode criar um efeito de sentido pode e o que deve ser dito a partir de uma certa região da formação
- que se cria toda vez em que há alteração na ordem - que nos social, a partir de um certo contexto sócio-histórico. Quer dizer, todo

72 73
texto tem sua ideologia, e podemos determinar a relação do texto Podemos ver aí, pois, um critério para distinguir as formações
com a ideologia através da caracterização da formação discursiva da discursivas A e B. Para precisar ainda mais essa distinção, acrescen-
qual ele faz parte. Pelo que pudemos constatar em nossa análise, tamos que B leva em conta o fato de que as ações fazem paite de um
podemos remeter os textos do grupo A a uma formação discursiva processo e a formação discursiva A, ao contrário, data e localiza os
que, por sua vez, é distinta da formação discursiva constituída pelos acontecimentos, segmentando-os. Seria a diferença, em termos de en-
textos do grupo B (e B'). cadeamento, entre uma série (grupo A) e uma seqüência (grupo B)
de acontecimentos.
Uma coisa está clara: na formação discursiva constituída pelo
grupo A há uma grande dificuldade na atribuição (recuperação?) de Essas observações nos levam a propor que, pela transitividade
um sujeito, um agente para os fatos narrados. Dificuldade esta, talvez, que é comum às diferentes formações discursivas de que tratamos
paralela à de se pensar o sujeito da história. O sujeito da história fica aqui, consideremos o discurso da história como um discurso transitivo
diluído e lingüisticamente isto se mostra pela causatividade, que é (nas atuais condições sócio-históricas). Entretanto, como essa mesma
feita de mediações. configuração discursiva - que é o discurso transitivo - tem uma
distinção interna, tanto em re1ação ao corte feito no encadeamento
Mesmo quando se trata dos textos do grupo B, em que são colo-
como à importância dada ao processo ou ao fato, somos levados a
cados os agentes - como a Segurança Nacional, por exemplo - ,
distinguir as duas formações:
não se pode fugir do que chamo transitividade das ações (ou cansa-
tividade) e conseqüentemente temos o estilo transitivo. Isto, ao meu A) Episódico ou factual;
ver, se deve ao fato de que o poder é transitivo, isto é, as relações de B) Interpretativo ou processual.
poder em uma sociedade como a nossa, são necessariamente transi-
Acrescentamos a essa distinção uma outra característica que é
tivas, de causatividade, porque representam o sistema de hierarquias:
a do relevo do advérbio, isto é, o fato de que, no grupo A , o relevo
A faz B fazer C. E, entretanto, na análise das circunstâncias, em seus serve à indeterminação e, no grupo B, à determinação, e temos um
implícitos, que encontramos as determinações mais decisivas para o quadro mais completo da caracterização dessas duas formações dis-
texto, daí a importância dos advérbios. E nesse caso A e B se distin- cursivas.
guem, uma vez que a escrita dos textos do grupo A, ao contrário do
grupo B, indetermina. Resta-nos dizer que o que é próprio do discurso da história é
que seja transitivo e não que seja episódico. O "episodismo" é uma
Na causatividade, há encadeamento, e o corte, feito pelo discurso, das formas que ele pode ter, além de ser transitivo, e, como pudemos
na disposição dos elementos encadeados, configura formações dis- observar, esse episodismo é fator de indeterminação.
cursivas diferentes. Exemplo: A. O Alto Comando (oculto sob a
Pelo que analisamos, pudemos determinar o modo como operam
forma de adjunto adverbial) fez o presidente fazer o Ato fazer X. B.
os tipos de advérbios - temporal e de lugar, e modal (Mattoso Câ-
A política de segurança fez Castelo fazer X.
mara, 1975) - em relação às duas formações discursivas A e B.
Esses recortes diferentes representam momentos diferentes do
Para os discursos do grupo A, os advérbios de tempo e lugar
processo e o privilégio de um ou outro momento desemboca em uma
dão o escopo do discurso, ao mesmo tempo em que obscurecem ou
diferença textual relevante, do ponto de vista do efeito de sentido 1 •
indeterminam os agentes; os modais, nesses caso, em geral, contêm,
implicitamente, os agentes, ou, junto aos verbos, indeterminam os
1 . A esse respeito gostaria de me referir a conversas que tive com Cláudia
Lemos sobre o problema do momento da segmentação, ou seja, do recorte sujeitos.
feito na estrutura causativa, e, também, a conversas com Jesus Durigan
O uso do advérbio no grupo B, é diferente do grupo A. Pri-
sobre a consideração do processo no texto narrativo. Essas conversas confir-
mam, em domínios distintos dos considerados na presente análise, alguns meiramente porque, como já dissemos mais acima, eles se distinguem
dos meus pontos de vista. Aqui fica meu agradecimento. pelo relevo. Por outro lado, o .uso de advérbios (temporais e de lugar)

74 75
1.
é menos freqüente e, quando usados, não são artifícios para se elidir tica o que denominei "estilo subjuntivo", isto é, aquele que se inde-
o sujeito ou o agente. Exemplo: (K. P.) "No dia 3 de outubro, ele termina através do uso de subjuntivos e partículas como "talvez ama-
foi eleito pelo Congresso". Quando não aparece o sujeito, os advér- nhã'', "quem sabe um dia", etc. Creio que, de alguma forma, existe
bios servem para remeter, situar o que se narra em um contexto mais uma relação entre o que chamei de estilo subjuntivo e o estilo transi-
amplo. Quanto aos advérbios modais, o seu funcionamento é de mesma tivo do grupo A (fortuito, indeterminado, episódico) e isso tem a
natureza dos anteriores, isto é, servem para precisar circunstâncias e ver com o que Pêcheux (1975) trata como relação entre formação
não para ocultar os agentes. discursiva e formação ideológica. Essas considerações, entretanto,
ficam aguardando uma reflexão mais rigorosa.
Essa conclusão acerca do funcionamento do advérbio serve tam-
bém para os outros fatos observados, uma vez que são fatos que Pretende-se que o discurso da história seja um discurso objetivo,
estão ligados ao seu funcionamento. Merecem, sob esse aspecto, um em que os acontecimentos se narram a si mesmos. Já Paul Veyne
comentário, estruturas sintáticas das quais falamos rapidamente quan- ( 1971) fala da história não como ciência, mas como narrativa de
do analisamos o problema da ordem dos elementos. Nos textos do · acontecimentos, romance verda~eiro ( sublunar). É uma intriga e o
grupo A, e ainda em direção à indeterminação, podemos dizer que a fato não é nada sem sua intriga. Não é, entretanto, um gênero lite-
estrutura dominante é a que separa elementos centrais e elementos rário pois, na história, o romance é verdadeiro. É nessa perspectiva
marginais: ou o advérbio é central e ele indica datas e locais ou ele que inserimos nosso trabalho. o que pudemos verificar, comparando
é marginal e, ao conter, oculta os agentes. Nos textos do grupo B, a os textos, ou melhor, as formações discursivas, mostra que o que
estrutura dominante não distingue elementos centrais e marginais, pois temos é uma visão parcial, fragmentária. Mais ainda, em termos de
trata, antes, de relações causais e explicatiyas. linguagem, pudemos observar que a perspectiva pela qual se olha o fato
é constitutiva dele, e o que temos, enquanto formações discursivas
distintas, são essas l3erspectivas. Os fatos não se narram a si mesmos,
CONCLUSÃO GERAL ·E PROVISóRIA são narrados por um certo autor, de uma certa perspectiva, de uma
certa maneir;:i, para um certo público. Não são opiniões diferentes
De uma forma geral, o que foi possível estabelecer com esse sobre os mesmos objetos; os autores se interessam por objetos dife-
trabalho de análise de discurso? rentes. Segundo Paul Veyne, o que se tem o hábito de considerar um ·
acontecimento histórico único explode em urna multidão de objetos
Antes de tudo, quero lembrar que não foi o discurso da história de conhecimento.
que foi anali'sado, mas o discurso dos livros didáticos de história, de
um certo período. Para se caracterizar o discurso da história ·seria Corno se trata do discurso didático, há um cruzamento entre este
necessária outra análise que tornasse textos de história sem finalidade e o histórico. Urna vez que se considera o discurso pedagógico o de
pedagógica, escolar. Além disso, didático aí não deve ser tomado em pura informação - embora saibamos que ele não é isso - o cruza-
seu sentido mais abrangente, mas naquele que recobre apenas o que mento desses dois tipos de discurso daria corno produto o discurso
eu chamo de pedagógico, isto é, o didático quando referido (regulado) mais ascético na hierarquia dos discursos. · Pela análise que fizemos,
a um uso institucional, ou seja, a escola. Logo, é o discurso escolar podemos mostrar que não é isso que se passa. Ao compararmos textos
de história. Feitas essas ressalvas, passemos a expor algumas conclu- diferentes, verificamos que as estruturas sintáticas, segundo as quais
sões provisórias a que pudemos chegar. a frases são reconstruídas nos diferentes textos, revelam que eles
significam diferentemente. Isso porque há urna relação, entre o dito e
O dicurso didático de história tem a forma [ (advérbio), A faz
o implícito, que .estabelece relações entre o texto, o autor, o leitor e
B fazer C ... ] .
que constitui o sentido do texto. Essa relação, a partir dos resultados
A respeito da causatividade de que já falamos, e do estilo transi- a que chegamos em nossa análise, se mostra pela existência de um
tivo, gostaria de lembrar que, analisando o discurso sobre mulher, ·jogo de sujeitos (e de sua ocultação), relativos aos três níveis consi-
pude destacar o funcionamento discursivo que tem como caracterís- derados no início deste trabalho (o lingüístico, o situacional e o

76 77
textual): o sujeito do enunciado (Castelo B~anco, o Ato Constitu- discursiva do grupo A é do tipo autoritário e a do grupo B é a do tipo
cional, etc.); o sujeito da enunciação (o autor, com sua perspectiva) ; polêmico. Não deixando de ressaltar que não há tipos puros de dis-
e o sujeito dado pelo texto (a Segurança Nacional, o Alto Comando, curso e, logo, essa. afirmação só é válida em termos de características
etc.). Há uma dinâmica na relação entre esses sujeitos ao longo dos pensadas do ponto de vista de seu funcionamento dominante e não
textos, mas, em relação aos dois tipos de formação discursiva - A
1
fundamental, essencial. E isso pode ser observado na proximidade que
e B - apontados, é possível se perceber a i1entidade (pu o gênero) existe entre o discurso do grupo B ou seja B' (K. P.), e o discurso
do Quem e do Para Quem deles. . · (P. I.) do grupo A. É, portanto, uma questão de dominância e não
. , . se atentar ao probllema d as vozes, ou se1a, de característica fundamental.
Para isto e, necessano .
do discurso referido e referidor. Os textos que analisamos não se Pode-se fazer um paralelo entre os textos do grupo A e o Pri-
apresentam como discurso referido ou referidor stricto sensu. Mas se meiro Grau do Sistema Escolar, uma vez que a maioria desses textos
pensarmos em sentido lato, podemos dizer que todo discurso é ao se endereça a ele. Os do grupo B são indubitavelmente textos para o
mesmo tempo referidor e referido: referidor, pois contém s~mpre uma Segundo Grau. Isso supõe uma distinção, suspeita, do ponto de vista
análise de outros discursos, responde a outros ; referido, porque é pedagógico, que é a de que, em termo_s do desenvolvimento do aluno,
sempre produzido no interior de instituições que possuem regras pre- primeiro é preciso dar dados (datas, locais, fatos isolados) e só depois
cisas que determinam quem deve falar, sobre que tema, em que mo- levá-lo à interpretação, à compreensão do processo.
mento, etc. e, logo, se encontra encaixado em sistemas referidores,
tendo ou não uma forma lingüística ( Guespin, 197 6).
BIBLIOGRAFIA
Assim, podemos dizer que o discurso da história, ao colocar em
relação o que foi dito e o que foi feito, é um lugar privilegiado de CÂMARA Jr., & L. MATTOSO - História e Estrutura da Língua Portuguesa,
confronto de vozes. A partir daí podemos, pela análise feita, definir Padrão, Rio de Janeiro, 1975 .
algumas características do Quem e do Para Quem: GUESPIN, L. - "Introduction", Langa.ges, n.0 41 , Larousse, Paris, 1976.
PbCHEUX, M. & FUCHS'- "Mises au Point et Perspectives à Propos de l'Ana-
Formação discursiva representada pelo grupo A: o "Quem" re- lyse Authomatique du Discours", Langages, n. 0 37, Paris, 1975.
presenta a voz da "revolução", isto é, a história contada do ponto de VEYNE, P. - Comment On Écrit L 'Histoire, Seu il, Paris, 1971.
vista dos que estão no poder. A sua forma é: "A revolução diz que". VOLOSHINOV, V. N. - El Signo ldeologico y la Filosofia del Lenguaje, N . V.,
O "Para Quem" é o aluno, vista a escola como reprodutora. Esta Buenos Aires, 1976.
afirmação não pretende atribuir nada aos autores, só diz que seus
textos são reprodutores.
Formação discursiva representada pelo grupo B : o "Quem" re-
presenta uma voz modulada, ou modalizadora no sentido de que
procura se colocar do ponto de vista qos que não estão no poder,
mas não identifica um lugar explícito (quando cita o discurso da
oposição parece ocupar esse lugar). De toda forma, parece se definir
basicamente por não representar a voz da "revolução". A sua forma é :
"Nós dizemos que . . . ". O "Para Quem" é o aluno, vista a escola como
lugar de crítica.
Nesse sentido, esse nosso trabalho definiria as duas formações
discursivas - em relação à nossa proposta de classificação dos dis-
cursos em polêmicos, autoritários e lúdicos - dizendo que a formaçãb

78 79
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DISCURSIVAS
SOBRE A EDUCAÇAO INDÍGENA *

INTRODUÇÃO

A leitura d.o material disponível sobre educação indígena, a que


tive acesso 1, levou-me imediatamente à questão: qual a concepção
de linguagem que ·orienta todos esses trabalhos? Mais ainda, e em
conseqüência disso, que relação com a linguagem os "educadores"
indígenas estão atribuindo ·aos índios, ou seja, qual é a concepção de
linguagem que é atribuída ao índio e que deriva da do seu educador
branco? A meu ver, a não explicitação da concepção de linguagem
do educador (ocidental) coloca esta concepção como geral, como
única (a pressuposta), e por isso torna desnecessário o conhecimento
da do índio.
Quer se distinga alfabetização e educação indígena, quer se
discuta, no interior da alfabetização, qual deva ser a língua (indígena
ou "nacional") da alfabetização, quer se considere se é uma técnica
de escrever apenas que deve ser ensinada ou se a dimensão da escrita
é de outra ordem e que vai além da técnica, etc. - todas essas
discussões têm a ver com alguma concepção de linguagem. Ademais,
em relação aos trabalhos que li, embora os autores não reflitam sobre
suas concepções de linguagem, sempre se referem, explícita ou impli-

* Quero agradecer a contribuição valiosa da leitura da versão inicial desse


trabalho feita por Yonne Leite, Bruna Franchetto e Ruth Montserrat. Agra-
deço também a Mércio Pereira Gomes. Texto apresentado no Congresso da
ABA, São Paulo, 1982.
1. Basicamente : A Questão da Educação Indígena (CPI), Educação Indígena
e Alfabetização (B. Melià) e xerox esparsos de uma ou outra iniciativa
isolada. Devo acrescentar que considero admirável a publicação da CPI,
pois me permitiu uma visão ampla e sistemática do problema da Educação
Indígena. A postura crítica que assumo nesse trabalho nasce antes das
qualidades e não dos defei*>s daquela publicação.

81
citamente, à distinção entre o dominador (ocidental) e o dominado de uma análise que procura ver em seu objeto - o discurso - a
(índio). Não se distinguiriam também em relação a suas concepções relação com a exterioridade que o constitui. O discurso, então, visto
de linguagem? A não reflexão sobre essa distinção, eu creio, é que faz dessa perspectiva, é menos transmissão de informação do que efeito
com que, apesar de todos os cuidados, alguma coisa não desejada de sentidos entre locutores, sendo considerado como ação social, o u
acabe se reproduzindo nesses discursos sobre educação indígena. E seja, como parte do funcionamento social geral. O contexto histórico-
essa coisa n.ão desejada leva sempre a impasses. Esse é o sintoma. E, social, a situação, os interlocutores - isto a que chamamos tecnica-
emprestando agora o discurso a P. Clastres (1978): "sempre o en- mente de condições de produção - constituem a instância verbal
contro entre o Ocidente e os selvagens serviu para repetir sobre eles produzida, ou seja, o discurso. Portanto, o discurso não é fechado
o mesmo discurso". Esse "mesmo" - que se mostrava como impasse em si mesmo e nem é do domínio exclusivo do locutor: aquilo que
- me chamou a atenção na leitura dos textos sobre educação indígena. se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social do qual
Desse "mesmo" posso apontar, basicamente, dois pontos comuns: se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos, etc. Isso
a) a afirmação de que a nossa escola apresenta uma série de dificulda- tudo - que se articula como formações imaginárias - pode ser ana-
des para o índio (e não se fala se apresenta dificuldades já para nós), lisado na relação existente entre as formações discursivas e a formação
a
b) afirmação de que se deve ouvir o índio. ideológica dominante.
Tratando, então, do que poderia chamar o discurso sobre (da?) Não falamos apenas para "formar sentenças'. As palavras mudam
educação indígena, considero relevante a colocação de algumas de sentido ao passarem de uma formação discursiva para outra:
observações que parte desses pontos críticos que acabo de enunciar. compare-se o sentido da palavra "nação" na formação discursiva oci-
Para tanto, retomarei algumas afirmações que faço em outros traba- dental e na do índio. Isso acontece porque, ao passar de uma forma -
lhos e que esclarecem minha concepção de linguagem e de discurso ção discursiva para outra, altera-se a relação com a formação
pedagógico. ideológica.
Pode-se considerar a linguagem de várias maneiras - linguagem Essas afirmações acerca do funcionamento do discurso levaram
como instrumento de comunicação, linguagem como produto da his- à formulação de uma noção de sujeito menos formal, ou melhor, me-
tória, etc. - e cada uma dessas concepções de linguagem terá suas
nos idealista. Há uma contradição na constituição do sujeito: o sujeito
conseqüências teóricas e metodológicas próprias.
da linguagem não é o sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente.
De minha parte, tenho me proposto a considerar a linguagem 'Pensar que somos a fonte do sentido do que dizemos constitui o que,
como interação, ou melhor, como um modo de ação que é social. em análise de discurso, se chama a "ilusão discursiva do sujeito"
Em suma, como trabalho. A homologia que tenho procurado estabe- ( Pêcheux, 197 5), uma vez que há a interpelação do indivíduo cm
lecer entre trabalho e linguagem se baseia no fato de que ambos não sujeito pela ideologia. Isso quer dizer que os sentidos que produzi -
têm um caráter nem arbitrário nem natural e assentam sua necessidade
mos não nascem em nós. Nós os retomamos.
no fato de serem produção social, interação entre homem e realidade
(natural e social) . A linguagem, então, entendida como mediação Gostaria, ainda, de observar que o processo do ouvinte, isto
necessária, não é instrumento, mas é ação que transforma. Dessa da leitura, é equivalente, ou seja, o entendimento - a atribuição ou
forma, não podemos estudá-la fora da sociedade, uma vez que os reconhecimento de sentidos - deve ser referido às condições de
processos constitutivos da linguagem são histórico-sociais. Resta produção (o lugar social, a relação de discursos, etc.) da leitura.
observar que, nessa relação, não consideramos nem a sociedade como
De forma geral, então, na perspectiva do discurso, a linguagem
dada, nem a linguagem como produto: elas se constituem mutua-
não aparece apenas como instrumento de comunicação ou transmi ssão
mente.
de informação, ou suporte de pensamento, mas como lugar de co n-
Assim, a perspectiva da análise de discurso é uma perspectiva flito, de confronto ideológico, e em que a significação se apresenta
interessante para se observar esse processo de constituição, pois é o em toda sua complexidade.

82 83
Em relação ao conceitó de discurso, resumidamente, fica como significa que o uso da linguagem está polarizado para o lado da
princípio bási~o que todo discurso deve ser referido às condições de paráfrase, do "mesmo". Vale dizer: o discurso autoritário é o discurso
sua produção. do mesmo e isto está refletido, de alguma forma, na concepção de
linguagem que temos, na forma dos estudos de linguagem, nos moldes
de análise propostos, etc. Este é um deslize ideológico que faz com
O DISCURSO PEDAGÓGICO COMO DISCURSO AUTORITARIO que se atribua à natureza da linguagem em geral algo que é histórico
e se dá em relação à dominância de um tipo de discurso, numa certa
Segundo o que pudemos observar em nossas análises anteriores, formação social.
a partir dessa concepção de linguagem e de discurso, o que caracte-
Gostaríamos de lembrhr, aqui, que a distinção entre os tipos
riza o discurso pedagógico é o fato de estar vinculado à escola, à
não é rígida, havendo uma gradação entre um tipo e outro. A relação
instituição em que se origina e para a qual tende: isso lhe dá um
entre eles não é de exclusão mas de dominância.
caráter circular.
Por outro lado, pode-se distinguir tipo e funcionamento discursi-
A partir da reflexão de que toda vez que dizemos algo o fazemos
vo ( cf. p. 145). Os tipos seriam, de acordo com essa distinção, dife-
estabelecendo uma fisionomia, uma configuração para nosso discurso
rentes funcionamentos discursivos que se sedimentam. Isso se dá pelo
- de tal maneira que é possível para os interlocutores reconhecer
processo histórico de legitimação das formas de dizer em que a
essa configuração - procurei elaborar uma tipologia. Distingui, assim,
linguagem é instituída. Disso resulta que as diferentes situações de
nessa tipologia, três tipos de discurso: discurso lúdico, discurso polê-
· linguagem são reguladas: nãb se diz o que se quer, em qualquer situa-
mico e discurso autoritário ( cf. p. 15).
ção, de qualquer maneira.
O apoio dessas considerações está na colocação de que há dois
O discurso pedagógico não foge a essa dinâmica de tipos: tal
processos fundamentais na linguagem: o da polissemia e o da pará-
como existe atualmente na nossa sociedade, o DP é um discurso
frase. A polissemia se define como multiplicidade de sentidos e a
paráfrase como sendo formulações diferentes para o mesmo sentido. autoritário: sua reversibilidade tende a zero (não se dá a palavra),
À articulação entre polissemia e paráfrase é que atribuo o jogo entre há um agente único (aquele que tem o poder de dizer), a polissemia
o mesmo e o diferente na linguagem, e é este jogo que está na base da é contida (se coloca o sentido único), o dizer recobre o ser (o refe-
tipologia que estabeleci. Então, no discurso autoritário, temos a pola- rente está obscurecido).
rização da paráfrase, no lúdico a da polissemia e o polêmico é aquele
Esse discurso aparece como transmissor de informações e com
em que melhor se observa o jogo entre a paráfrase e a polissemia,
o estatuto de cientificidade.
entre o mesmo e o diferente.
Esse estatuto científico do DP se constrói como já tivemos a
Em uma sociedade como a nossa, tenho observado que o lúdico
oportunidade de dizer, pela metalinguagem e pela apropriação do
é o desejável, é o que vaza, pois o uso da linguagem por si mesma,
cientista feita pelo professor. Pela metalinguagem: o conhecimento do
ou seja, pelo prazer - atestado pela linguagem e não pelo psicológico
fato é· substituído pelo conhecimento de uma metalinguagem, que é
- , entra em contraste com o uso para finalidades mais imediatas,
considerada legítima. É assim que se constrói o saber legítimo, que
comprometidas com a idéia de eficiência e resultados práticos. No
nasce da apropriação do cientista feita pelo professor: o professor
lúdico a informação e a comunicação dão lugar à função poética e
torna-se representante do conhecimento sem que se mostre como· ele
à fáti~a. Assim, em nossa sociedade, segundo o que temos conside-
incorpora a voz que fala nele (o professor está no lugar do). A voz
rado, o lúdico é ruptura, ocupa um lugar marginal, ao contrário do
do professor é, por extensão da do cientista, a voz do saber. O aluno
polêmico e do autoritário.
realiza sua escolaridade no espaço da escola, no contato com · o
Podemos mesmo afirmar que, pelas análises que fizemos, o tipo professor e, a partir desse contato, está autorizado a diter que
de discurso dominante · na nossa sociedade atual é o autoritário. Isso aprendeu.

84 85
Como o discurso pedagógico é um discurso autoritário, não são O DISCURSO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INDlGENA
relevantes para as suas condições de significação a utilidade, a infor-
matividade e o interesse do destinatário. Dado que a função é a Vejamos agora o que se passa em relação à educação indígena.
inculcação, a não relevância desses aspectos se resolve pela motivação
pedagógica e pela legitimidade do saber escolar. A escola cumpre, As características que atribuímos ao DP - na nossa escola -
dessa forma, sua função social, a da reprodução. e que o mostram como discurso autoritário são as que vimos criticadas
nos textos sobre educação indígena: não interesse, não utilidade,
Vale ressaltar, a essa altura, que esse mecanismo de reprodução homogeneidade, etc. A nossa proposta de uma postura crítica, e da
pode ser visto de uma forma menos técnica na relação entre conhe- possibilidade de um discurso polêmico seria ela mesma possível e
cimento e reconhecimento. Eu diria, então, que o conhecimento pode desejável para a educação indígena?
se fazer de maneira conflituosa, com rupturas. Na escola, isso é
Ao invés de responder a essa questão ' vamos colocar uma outra :
"apaziguado". Não há por que temer. O conhecimento escolar é o que quando se diz "é preciso se ouvir o índio", estar-se-ia, num paralelo
tranqüiliza: nós nos reconhecemos no saber que é considerado desejá- com o que acabamos de dizer para o discurso pedagógico na nossa
vel pelos nossos pares e isso nos é garantido pela reprodução social. escola, respondendo ao autoritarismo e conseqüentemente dando um
O legitimado e o legitimável coincidem. Esse é mais um aspecto da lugar, um espaço para o outro, permitindo a reversibilidade, as rela-
circularidade do discurso pedagógico e, mais do que isso~ é um aspecto ções simétricas, etc.? Temo que apenas em parte. Trata-se ainda de
que compõe a nossa identidade social. uma questão de etnocentrismo; trata-se da "necessidade de exercer-
mos nosso discurso científico sobre as outras culturas" ( Clastres,
A proposta que fizemos, nas análises que visam à caracterização 1978). As palavras que usamos têm um compromisso com a ideolo-
do discurso pedagógico, foi a de transformar esse discurso autoritário gia. Cabe-nos, em uma posição crítica, desconfiar dos conceitos, ou
em um discurso crítico: questionar os implícitos, o caráter informativo, seja, situá-los na sua história.
a unidade do DP e atingir seus efeitos de sentido. Do ponto de vista
do professor, deixar um espaço para a existência do "ouvinte" como O que queremos dizer com "ouvir o índio?". Acho que pode
haver aí uma declinação cristã ocidental dessa expressão. Então, o
sujeito, isto é, se dispor à reversibilidade, à simetria, saber ouvir. Da
autoritarismo não cede magicamente o lugar a um outro discurso, mas
perspectiva do aluno, questionar o que o discurso garante em seu
se transmuda em paternalismo: "ouvir o índio para modificá-lo". E
valor social, questionar os pressupostos que garantem o texto em sua o modelo em direção ao qual se quer a modificação é o da cultura
legitimidade, explorar a dinâmica da interlocução, recusando a crista- ocidental: o adulto letrado. E ainda uma questão de identidade social: '
lização do dito e a fixação do seu lugar como ouvinte. Observando-se nós gostamos de nos reconhecer no outro. O que a gente não conhece
que tomar a palavra é um ato dentro das relações de um grupo social. (reconhece) incomoda, por isso é importante fazê-lo à nossa própria
Em suma, de acordo com nossa posição, ser crítico, tanto pelo imagem. Não se consídera que ouvir o índio pode modificar-nos. E
lado do locutor quanto do ouvinte, é questionar as condições de modificar-nos pode significar sair da posição . "compreensiva" e assu-
produção desses discursos. Nessas condições de produção, é determi- mir o conflito, assumir a diferença. Eu lembraria aqui o que diz
nante a presença e função da escola, que é o lugar próprio do discurso Clastres sobre o etnocentrismo ao mostrar que este "mediatiza todo
pedagógico. Uma perspectiva que tenho apontado, em termos de uma olhar sobre as diferenças para identificá-las e finalmente aboli-las". A
crítica radical, é a da reflexão sobre a necessidade da escola, isto é, nosso ver seria fundamental, na educação indígena, assumir as dife-
coloco como desejável a possibilidade de uma outra sociedade, sem renças como diferenças e não como desigualdades, isto é, não hierar-
escola. Porque se a proposta é a de uma pedagogia que seja capaz quizar as diferenças porque a referência para a hierarquização é
de criar as condições para que se descubram as contradições, a criação cultural e nela exercemos nosso etnocentrismo (o nosso "mesmo").
dessas condições pode ser obra de todos e não de alguns especialistas: De uma forma mais sistemática, gostaríamos de fazer, nesse
não é preciso que a escola seja o lugar dessa descoberta. passo, algumas propostas que contribuíssem para uma definição do

86 87
que seria "ouvir o índio" sem paternalismos, aceitando, assumindo e contato, de modo que ele possa dar a seus problemas encaminha-
procurando manter, tanto e quando possível, a diferença. Sem esque- mento apropriado. Não se trata, então, de fazer isso por eles: ou em
cer que a situação de ensino é situação de contato e este é o traço nome deles pois seria uma apropriação ind~vida (seria ser no lugar
próprio das suas condições de produção. de). A proposta é a de deixar espaço para que eles elaborem sua
relação com o ensino 2 •
Um exemplo do que queremos dizer pode ser dado em relação
O ENCAMINHAMENTO DE ALGUMAS PERSPECTIVAS à necessidade, ou não, de um lugar especial para a escola, uma sede.
Creio que, dependendo das características da comunidade indígena,
1 . Relação do índfo com o ensino. pode ser interessante críar situações sociais cilracteristicamente peda-
Há diferenças quanto ao conceito de educar e suas modal~dades. gógicas, como acontece em nossa sociedade. Isso porque, e esse é um
~orno é feita (ou seria) a educação indígena em situação homogênea, aspecto muito relevante para toda a reflexão sobre educação indígena,
isso é, pelos seus pares? O índio é educado para o prazer de viver, a situação de ensino é uma situação de contato, ou seja, transcultural.
segundo o que li em Melià (1979). Não podemos dizer se isso se Assim, pode ser uma nossa tarefa nos apresentarmos com nossas for-
passa exatamente dessa forma entre os índios, mas, em relação à mas institucionais. Porém, à imputação da pureza do índio (xinguano,
nossa cultura, sabemos que não é essa a função da nossa escola. Por o puro, o natural) corresponde, maniqueisticamente, a imputação da
outro lado, os métodos de ensino indígena parecem ser diferentes, caricatura da nossa cultura (e vice-versa). Em termos de educação,
onde a imitação pelo exemplo ganha uma importância muito grande. isso se traduz por . uma imagem monolítica da escola-padrão, como se
A educação é múltipla e contínua· e a aprendizagem não tem modali- não houvessem diferenças, críticas e contradições no interior de nossa
dades formalizadas ou institucionalizadas, pelo menos tal como o são sociedade em relação à nossa escola, como se fizéssemos parte dessas
as nossas. Vivendo, vão-se educando; a aprendizagem é feita pelo jogo, contradições. Ouvir o índio não é reproduzir nele a ideologia do do-.
minador. Ouvir o índio que já tem contato e que já está ao alcance
há um alto grau de espontaneidade, as etapas são diferentes das nossas,
dos mecanismos de reprodução, ao pedir uma escola igualzinha à
todos aprendem de todos, as distinções são pelo sexo e pela idade.
nossa 3 , não significa reproduzir automaticamente para ele uma situa-
Nós temos muitas divisões (especialidade, profissionalização, alasses, ção com a qual já não estamos de . acordo. Acho que aí devemos
cursos, níveis, etc.), visamos à homogeneidade e nossa educação é assumir nossa posição crítica (se somos críticos), porque se trata
generalizante. Normalmente, o propósito da nossa educação é a eomo- de distinguir se estamos ouvindo o índio ou a yoz do branco que
geneização e o método é a inculcação. Como seria para o índiq? fala nele. Carregamos nossas contradições na tensão do contato em
Quaisquer que sejam essas diferenças, há uma violência que que se instala a educação indígena.
exercemos no contato, necessariamente: a nossa educação visa não só Por outro lado, não se trata, eu creio, considerando a diferença
a reproduzir, mas sobretudo reproduzir a desigualdade (abolindo as que existe entre sua forma de educação - múltipla e contínua - e
diferenças sob o simulacro da unidade). Se isso é um problema dentro a nóssa - que visa à homogeneidade e é entregue a especialistas - ,
de nossa própria cultura, o será muito mais claramente quando vai em não se trata de fazermos uma arremedo da nossa para que seja "aces-
direção a outra cultura, assimilando-a. 1
sível'', como cos~umamos dizer. Esse, a meu ver, é outro engano
Na situação - e não nos esqueçamos que, dadas as grandes
diferenças da idade do contato nos diferentes grupos indígenas, a varia- 2. Lula, na fundação da ANDES, falou sobre a necessidade de se dar ao ope-
rário o mesmo direito de acesso às informações, e estes as elaborariam de
ção de atitude pode ser muito grande, desde a que se aproxÍma mais acordo com as necessidades de sua classe.
da cultura deles até a que está mais próxima da nossa - ser críticos 3. Isso nos dá uma pista interessante: é menos a escola com seus conteúdos e
em relação à nossa educação não significa aderir à deles mas colocar mais a escola (material, com carteira, quadro-negro etc.) como objeto
com clareza as diferenças. Ser críticos em relação a "ouvir o ~ndio" cultural, símbolo da nossa cultura que interessa ao índio. ~ "dessa" escola,
seria deixar-lhe a possibilidade de refletir sua própria experiência de desse símbolo, que ele quer se apropriar.

88 89
etnocêntrico. O método do arremedo se justifica com o argumento de sujeito que procura adquirir conhecimentos e não apenas um indivíduo
que assim se faz "para facilitar". Creio que é preferível enfrentar a bem ou mal disposto a adquirir uma técnica particular. A questão para
dificuldade mesmo, porque o que resulta dessa facilidade é uma coisa ela, então, é a seguinte: na interação entre o sujeito e o objeto de
sem cara, em que aparecemos disfarçados. Ê melhor aparecermos com conhecimento, que caminho percorrer para compreender as caracte-
o que é nosso e deixar para eles o modo de entrar. 4 Eles não dominam rísticas, o valor e a função da escrita, por exemplo, quando é a escrita
a instituição escola, ou suas confradições. Essa é a nossa experiência. o objeto de sua atenção? Ela procura discernir quais são os processos
E é nossa experiência que podemos colocar à disposição deles, apre- de aprendizagem mostrando que esses processos podem, . em suas
sentar-lhes, dar-lhes a conhecer. Se eles quiserem. A partir daí, como etapas, ir por vias insuspeitadas e que não começam de zero. Por
anteriormente, eles elaborarão sua experiência. exemplo, a criança não sabe ler mas tem idéias acerca das caracte-
rísticas que deve possuir um texto para permitir um ato de leitura; a
2 . Ouvir o índio é reconhecer que ele tem hipóteses sobre a
criança tem hipóteses acerca da quantidade suficiente (mais ou menos
linguagem, é focalizar, na relação com a linguagem, suas atitudes.
3) de letras que deve ter o que se lê; tem a hipótese de que deve haver
Ê reconhecer que se está diante de um sujeito, intelectualmente ativo,
variedade de caracteres; em certo momento, distingue número, letras,
que procura adquirir conhecimento, que se coloca problemas e que
pontuação; distingue o que está escrito e o que se pode ler; aparece
trata de resolvê-los segundo sua própria metodologia.
um momento em que as propriedades do texto passam a ser relevan-
O aprendiz tem idéias, teorias, hipóteses que põe continuamente tes, etc. A autora mostra também que muitas vezes não se trata de
à prova frente à realidade e que confronta com as idéias dos outros. se ensinar a fazer uma distinção, em termos de escrita, por exemplo,
Ê um sujeito que aprende basicamente através de ações sobre os mas a tornar consciente uma distinção que o aprendiz já sabe fazer
objetos do mundo e que constrói suas próprias categorias de pensa- (pela experiência da oraliãade). Em suma, podemos dizer que o
mento ao mesmo tempo em que organiza seu mundo. método apropriado é o da explicitação. Assim, a obtenção do conhe-
cimento é resultado da própria ação do sujeito. Para E. Ferreiro,
Ao se admitir que o aprendiz tem uma metodologia, admite-se trabalhando no interior de uma teoria piagetiana, um sujeito ativo é
também que os métodos de ensino são diferentes dos processos de aquele que compara, exclui, ordena, categoriza, reformula, comprova,
aprendizagem; assim, o que se está dizendo é que aquele que ensina formula hipóteses, reorganiza, etc., em ação interiorizada (pensa-
já encontra um sujeito com sua própria metodologia e a metodologia mento) ou efetiva.
proposta por quem ensina pode favorecer, estimular ou bloquear a Paralelamente à importância de se reconhecer todo esse pro-
metodologia do aprendiz. O que o mestre não pode fazer é desco- cesso, como o faz E. Ferreiro, creio que se deveria dar ênfase também
nhecer a metodologia do aprendiz. à distinção daquilo que nos processos cognitivos é específico ao nível
Um trabalho em que isso aparece com clareza é o de Emília de conceptualização próprio do aprendiz e o que é conhecimento so-
Ferreiro sobre alfabetização (Ferreiro, 1979). Ela parte do princípio cialmente transmitido.
de que além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, há um Um outro fator importante, e que é constitutivo do processo de
aprendizagem, é que, na situação de contato entre culturas diferen-
4. Um exemplo interessante citado é o dos Navajos em The lndian Student,
de Nancy Modiano. Antes da criança ir para a es·cola, eles davam uma tes, a relação entre elas é marcada, isto é, há uma cultura que é
festa, fingiam bater na criança com uma varinha e diziam "agora você pode dominante e a outra d~minada . Esses aspectos, e outros de cunho
ir para escola e apanhar". A criança era preparada não para a dor mas social, atravessam os processos de aprendizagem mas nem sempre são
para a noção de que um adulto poderia agredir uma criança. Isso era feito
pelo cerimonial mais do que por palavrais. Esse cerimonial representa uma
levados em conta .
forma do índio elaborar, organizar o seu contato com o ocidental, o seu
Exemplo: Segundo informações que tive através \de Ruth Mont-
conhecimento da cultura ocidental. Nós chamaríamos a criança e faríamos
um longo discurso (didático) acerca dos costumes da outra cultura. Nossa serrat, um índio miki, em atividade espontânea, observando a pro-
forma (verbal) e a deles (cerimonial) de elaboração são diferentes. fessora, enquanto esta escrevia uma carta, começou a fazer rabis-

90 91
cos em um papel. Estes rabiscos eram feitos de baixo para cima Entre outras coisas, eu creio, isso se deu porque a nomeação
e da direita para a esquerda. Esses movimentos são os que ele usa apareceu numa situação discursiva clara, explícita. Não era só uma
para fazer o cesto e outras atividades manuais. Não é, pois, um total palavra fora de contexto, era o próprio ato de nomear através da
acaso. E isso devia ser levado em conta, quando o ensinamos a escrita, que se desvendou naquela situação. A escri,ta é um "substitu-
escrever com movimentos que vão da esquerda para a direita e que to" (Ferreiro, 1979) e é preciso estabelecer com clareza a natureza, o
são lineares. Quando a professora solicitou a esse índio que lesse os mecanismo da "substituição". Isso, do meu ponto de vista, só se faz
rabiscos que ele havia feito, ele enunciou só nomes (jabuti, mato, levando em conta a situação, o uso.,
onça, etc.). Isto também é interessante observar porque representa
A unidade no ensino da linguagem, do meu ponto de vista, deve
uma hipótese desse índio sobre leitura e escrita: só se lêem (se es-
ser o texto e deve-se tratar não só da organização do discurso, de
crevem) nomes.
aspectos como os tratados pelas regras do tipo conversacional, mas
Então, para se responder em que língua alfabetizar, que função também das condições dos atos de linguagem (pergunta e resposta,
tem (terá) a escrita em sua cultura, de que unidades partir (palavra, etc.) assim como de fatores que atinjam a relação das formações
som, texto, etc.), é preciso se conhecer os processos de aprendiza- discursivas com as formações ideológicas (as diferenças sociais cor-
gem para propor um método compatível (isto é, é preciso se conhecer respondendo a diferenças de poder de palavra, etc.). Tratar, em suma,
· a cabeça do índio) . Saber os momentos cruciais, os conflitos cogni- das condições de produção da linguagem. Isso significa que se •::!nsi-
tivos, as perturbações, para propor modos de avançar no sentido de naria, assim, o uso da linguagem e não só a gramática. Ainda aqui o
uma estruturação. Essa seria a ajuda metodológica possível. que se pretende é que ao , explicitar sua concepção de linguagem e a
3 . Não se identificando linguagem com gramática a nível das diferença em relação à do índio, não se faça para eliminar a diferença
concepções gerais da linguagem, também não se pode conceber o ou para assimilá-la.
ensino da língua só como ensino de gramática. Além das regras, há
4. A narrativa, o mito, o discurso lúdico.
os valores sociais atribuídos às regras, há o contexto histórico-social,
há a situação que é constitutiva da linguagem. Não se trata, portanto, Como considero que a unidade significativa é o texto, procurei
só de gramática, trata-se de algo que inclui a capacidade específica do ter algum contato com textos indígenas. Só me foi possível ter acesso
uso de regras formais constituídas, no entanto, pela relação com o a certos textos escritos: as narrativas (S. I. L., 1979). Uma leitura
contexto de situação e que se poderia chamar, em geral, de "compe- superficial me leva a afirmar que é diferente, em estrutura e função,
tência comunicativa". Há princípios discursivos que devem ser leva- das nossas narrativas.
dos em conta: o que se fala, como se fala, em que situação, quem
Segundo Melià, o mito é um lugar privilegiado para o índio se
conta uma história, etc., e fatos mais complexos relativos ao uso de
entender a si mesmo. Esse lugar privilegiado que é o mito é também
línguas diferentes em contato, ou seja, regras de uso em situação de
o lugar da diferença. Diferença que também encontramos quando
bilingüismo, etc.
procuramos entender a relação entre o verbal e o cerimonial, por
Exemplo: Ainda segundo informações de Ruth Montserrat, a exemplo, tal com a exemplificada na nota 3 desse trabalho. Essas
professora fazia grandes esforços para ensinar a palavra borboleta diferenças, nos apontam a entrada para se poder entender a concepção
(kaatai) . Desenhava uma borboleta e escrevia o nome ao lado. A de linguagem que eles têm e perceber a diferença entre a sua concep-
dificuldade para a aprendizagem era grande e o resultado pequeno: ção e a nossa.
os índios repetiam mecanicamente. Um dia, entrou uma bo~boleta
na classe, e a professora aproveitou o fato de que eles começaram Retomemos o discurso lúdico. Como dissemos, em nossa socie-
a falar kaatai e refez o procedimento: escreveu kaatai na lousa e fez dade não há lugar para o lúdico. É o que vaza, é ruptura, é o que está
o desenho. Eles descobriram rapidamente qual era o procedimento e no poético e no fático. No poético, dada a polissemia, no fático, pelo
o generalizaram para outras palavras. "estar com", pelo jogo da interlocução.

92 93
Não deve ser esse lugar marginal o do lúdico, na cultura indí- Seria interessante, finalmente, observar que ao falar dessa dife-
gena. E isso se pode notar pelo que dissemos mais acima sobre o rença, assim como ao falarmos, mais acima, das diferenças em relação
lugar privilegiado das narrativas, do mito, da relação entre o verbal e ao processo de educação, não pretendemos estar afirmando que, na
o cerimonial ,etc. Clastres ( 1978) nos diz que o canto dos Guaiaqui cultura indígena, só existe o lúdico ou que o lúdico não tem função
"ilustra de modo exemplar a relação geral do homem com a lingua- social nenhuma, ou que, na educação indígena, não há relação entre
gem" . Ele mostra como pelo canto se chega à consciência de si mesmo saber e poder, etc. Isto é, não pretendemos estar, no confronto, apon-
como EU. "O homem existe para si em e por seu canto, ele mesmo tando a "outra" (a diferente) como ideal. Ao criticarmos uma não
é o seu próprio canto: eu canto, logo existo." Mais ainda, Clastres vai estamos apontando a outra como modelar. O desequilíbrio necessário
mostrar como "separadas de sua natureza de signos as palavras não se da nossa exposição se deve ao fato de conhecermos bem a nossa e de
destinam a nenhuma escuta, são elas mesmas seu próprio fim, e para estarmos perguntando pela outra.
quem as pronuncia se convertem em valores ( . . . ) a linguagem não
deixa, no entanto, de ser o lugar do sentido: o metassocial não é
absolutamente o infra-individual, o canto solitário do caçador não é CONSIDERAÇÕES GERAIS
o discurso de um louco e suas palavras não são gestos ( . . . ) O que
ele nos convida a escutar é que falar não é sempre colocar o outro Em conclusão, dada a diversidade dos grupos, os estágios das
em jogo, que a linguagem pode ser manejada por si mesma e que ela diferenças sociais dos diferentes grupos, assim como a qualidade e a
não se reduz à função que exerce: o canto guaiaqui é a reflexão em idade do contato, que sempre são diferentes, não é possível se falar
si da linguagem, abolindo o universo social dos signos para dar lugar em um projeto geral, mas é necessário se estabelecerem certos prin-
à eclosão do sentido como valor absoluto ( ... ) A linguagem do cípios para se refletir em cada prática, em relação a cada grupo, etc.
homem civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para E esses princípios são princípios que pode;m ser levantados, atestados,
ele apenas um puro meio de comunicação e informação ( . . . ) As considerados e criticados por domínios de conhecimento co~o a Etno-
culturas primitivas, ao contrário, mais preocupadas em celebrar a lingüística, a Psicolingüística, a Análise de Discurso, etc., uma vez
linguagem do que en1 servir-se dela, souberam manter com ela essa que a questão da educação indígena abrange problemas que incluem
relação interior que é já em si mesma aliança com o sagrado. Não os mais variados aspectos: sócio-culturais (desde a forma da sala de
há para o homem primitivo linguagem poética, pois sua linguagem já aula e a disposição dos colegas até a concepção de educação), etno
é em si mesma um poema natural em que repousa o valor das pa- (sócio) lingüísticos (dialetos, variação, relação do verbal e cerimo-
nial, bilingüismo, etc.) , cognitivos (metodologia, hipóteses sobre a
lavras".
linguagem, processos de aprendizagem, etc. ), discursivos (a relação
Isso tudo me leva à reflexão sobre o discurso lúdico que, como o dos interlocutores e da situação com o que é dito, a forma e a função
caracterizei, é o contraponto para o autoritário e o polêmico. Creio do mito, da narrativa, as regras do discurso, os tipos de discursos,
que aí está uma contribuição importante para a reflexão sobre a edu- etc.). Nesse sentido, na especificidade do domínio da área em que
cação indígena: à diferença de nossa sociedade - em que o discurso desenvolvo minha reflexão, que é a área do discurso, é que considero
autoritário é o dominante, o polêmico é o que se pode instituir a um passo inicial muito importante o da reflexão sobre a função do
partir da crítica, e o lúdico é ruptura - a cultura indígena acolhe o
discurso lúdico na cultura indígena: como aparece, qual a sua relação
lúdico. Essa, creio, é a melhor entrada .para a compreensão da edu-
com situações discursivas específicas como o cotidiano, o político e
cação indígena e o ponto· inicial para a construção de uma metodolo-
gia apropriada. Porque essa é uma diferença importante: o lugar as festas, ou seja, o funcionamento do discurso lúdico na distinção
ocupado pelo lúdico na cultura indígena instaura uma convivência entre.o privado e o público, etc. Não só para a cultura indígena, mas,
com a linguagem que, acreditamos, é diferente da nossa. em retorno, para a melhor compreensão do funcionamento dos tipos

94 95
de discurso e sua relação com a natureza da linguagem, em qualquer
cultura. O que pode nos levar a uma reavaliação crítica dos conceitos
com os quais operamos.

BIBLIOGRAFIA

CLASTRES, PIERRE - A Sociedade contra o Estado, Francisco Alves, Rio de A SOCIOLINGüíSTICA, A TEORIA DA
Janeiro, 1978. ENUNCIAÇÃO E A ANALISE DO DISCURSO
Comissão Pró-índio, São Paulo, A questão da Educação Indígena, São Paulo,
Brasiliensç, 19 81.
(CONVENÇÃO E LINGUAGEM) *
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. - Los Sistemas de Escritura en el Desar-
rollo dei Nino, Siglo Veintiuno, México, 1979.
B. MELIÀ - Educação Indígena e Alfabetização, Ed. Loyola, S. Paulo, 1979. INTRODUÇÃO
PbCHEUX, M. & FUCHS, M. - "Mises au Point et Perspectives à Propos de
l'Analyse Automatique du Discours", em Langages, n.0 37, Paris, 1975. Para se responder a determinadas questões colocadas pela lin-
SIL - Lendas Mundurukus, vol. 3, Brasília, 1979. güística - por exemplo: · como entender a variação em língua, qual
o domínio das mudanças em língua, como significar - , "fatos que
concernem diretamente à natureza da convenção na linguagem, deve-
mos questionar o uso lingüístico e deslocar o estudo para o domínio
da sociolingüística, entendida aqui em seu sentido amplo. As tenta-
tivas de explicar o funcionamento da linguagem somente ao nível da
lingüística imanente, ou seja, condicionar os fatores de uso aos fatores
internos ao sistema lingüístico, se mostram parciais e não satisfazem
um olhar mais abrangente e mais explicativo sobre a linguagem.
Entretanto, não se trata de propor uma teoria sociolingüística
que se constitua de uma teoria lingüística (sintaxe e fonologia) com
parâmetros sociológicos que se teria que formalizar adequadamente
(B. Schlieben-Langue, 1977) .
Que existe uma relação entre língua e sGciedade, é fato que se
tornou senso comum nos estudos sociolingüísticos. Menos corriqueiros,
mas também já incluídos no pensamento lingüístico, se encontram os
conceitos de interação (intercurso social) e trabalho. Porém não faz
sentido colocar-se a anterioridade de um desses elementos, pois o que
existe é simultaneidade (Benveniste, 197 4).
Quanto à natureza da relação entre eles, diversas têm sido as
perspectivas, desde se considerar que esses elementos apenas co-ocor-
rem, como se considerar que existe uma causalidade entre eles. Pode-

* Texto publicado na Série Estudos 6, Uberaba, 1981.

96 97
mos citar aufores que estão nq campo dessas distinções: Whorf, para cesso de produção, a historicidade e o sujeito. A fala, que historica-
quem o homem vive rodeado pelo mundo tal qual a linguagem o mente precede a língua, é individual, ocasional, da qual ele exclui
representa; Sapir, para quem a linguagem interpenetra a experiência; qualquer referência ao social. O histórico e o social, em Saussure,
Bernstein, para quem a estrutura social dá origem às formas lingüísti- estão dicotomizados.
cas ou códigos distintos e estes códigos transmitem essencialmente a
Saussure, apoiando-se na caracterização abstrata da língua, des-
cultura e, desta forma, constrangem o comportamento; para Labov,
vinculou-a daquilo que é propriamente social e histórico. Quando fal a
a estrutura social se reflete na linguagem e só o estudo da linguagem
do caráter convencional da linguagem, toma, da convenção, apenas
no contexto social revela seus aspectos fundamentais.
seu caráter arbitrário (e abstrato), e deixa de lado o que haveria de
Pelo que vemos, tanto no domínio das perspectivas da sociolin- mais caracterizador em seu aspecto social. A arbitrariedade, em
güística como no domínio de autores, encontramos diversidade. Saussure, está implicada pela noção de valor. Essa noção, a de val or,
é bastante criticada por autores que, como F. Rossi-Landi ( 1975) ,
A lingüística e a sociologia encontram-se no mesmo plano ana-
definem a linguagem como produção e situam a produção lingüística
lítico: o dos sistemas e instituições. Quando nos perguntamos pela
na produção social geral. Segundo esse autor, ao separar o produto
natureza da relação entre linguagem e sociedade, seria, no entanto,
lingüístico de sua produção social, Saussure leva ao fetichismo verb al,
banal presumir o isomorfismo: a um determinado tipo de estrutura ·
em sua teoria do valor lingüístico (Orlandi, 1978).
social acompanharia determinado tipo de estrutura lingüística. Pode-
ria ser mais fecundo partir do condicionamento recíproco desses dois Ainda segundo Rossi-Landi, deve-se encarar a linguagem como
tipos de estrutura em duas direções: consideraríamos, então, o con- trabalho e as línguas como produtos desse trabalho. O problema ela
dicionamento lingüístico da sociedade - a língua cria identidade - arbitrariedade aparece, assim, analisado dessa perspectiva: o que é
e o condicionamento social da língua - a estrutura da sociedade está produto do trabalho humano se contrapõe tanto ao que é natural quan-
"refletida" na estrutura lingüística. Ainda assim, estaríamos conside- to ao que é arbitrário, ainda que pareça natural ou arbitrário uma vez
rando relações que permanecem exteriores ao fato lingüístico. Melhor que o produtor não possui o seu controle. É assim que a língua deve
seria não se observar estaticamente os tipos de sistemas que se estuda, ser vista. A representação que produz o reflexo da realidade na língua
o social e o lingüístico, mas olhar-se a partir de uma teoria geral da é trabalho lingüístico. Em suma, a língua não é só um instrumento,
nem um dado, mas um trabalho humano, um produto histórico-social.
atuação que, entre outras coisas, tratasse da relação entre ações não-
lingüísticas e lingüísticas (Schlieben-Langue, idem). Se partirmos do fato de que as línguas só existem na medida em
que se acham associadas a grupos humanos, podemos chegar à con-
A questão decisiva para a sociolingüística está em como consi-
cepção de que, na língua, o social e o histórico coincidem. Trata-se
derar aquilo que é socialmente constitutivo da linguagem. Nessa pro-
sempre de ação (trabalho) humana. Nem a sociedade nem as línguas
cura, devemos retomar a afirmação de Saussure, segundo a qual a
se modificam autonomamente. São os atos dos homens que tomam
língua é um fato social. E o que é fato social para Saussure? Em
parte delas que as vão transformando. O caráter histórico da língua
termos teóricos, deriva da sociologia de Durkheim ( cf. Doroszewski,
está em ser ela um fato social no qual entram o caráter de processo,
"Quelques Remarques sur les Rapports de la Sociologie et la Linguis-
a intervenção da memória, a relativa estabilidade do sistema e da s
tique: E. Durkheim et F. De Saussure, in Cassirer, 1969). É repre-
funções sociais e normas de comportamento. As convenções es tão
sentação coletiva (exterior ao indivíduo), dotada de um poder de
estreitamente ligadas ao caráter histórico da língua. Podemos, pela
coerção em virtude do qual os fatos sociais se impõem ao indivíduo, e
perspectiva do estudo da língua como ação (trabalho), recuperar a
têm por substrato e suporte a consciência coletiva. Em termos de
sua historicidade assim como sua função social.
análise lingüística, essa caracterização da língua como fato social leva
à dicotomização, à separação do que é abstrato (social) e o que é Tomando-se como critérios, para a definição da convenção
concreto (individual). Ou seja, à distinção Língua/Fala. Saussure (Landesman, 1972), a regularidade, o aspecto teleológico, seu caráter
toma, pois, a língua como um produto social do qual exclui o pro- arbitrário, e o fato de não ser acidental podemos concluir que, pclu

98 99
caracterização da linguagem como trabalho e da língua como produto sócio-econômica). Correspondentemente, para o lingüista, há a possi-
histórico social, confirmam-se os critérios da regularidade e do aspecto bilidade de uma prática crítica, que não discuta concepções de lin-
teleológico. A sua não-causalidade remete-se, entretanto, não ao jogo guagem no vazio, mas em situações histórico-sociais específicas ( cf.
das intenções, mas ao fato de ser mediação necessária (produto da Labov (1976) e Pêcheux (1969)).
história), e a sua arbitrariedade não aparece como arbitrária, mas
motivada pelo sistema de produção a que pertence (produto do tra- A língua, em si, não existe. Assim como também é ficção a língua
balho). A convenção, assim, se caracteriza pelo seu' conteúdo social homogênea. Faz parte da própria essência da língua revestir-se de
e pela sua historicidade. É nesse sentido que entendemos que a lin- concretizações históricas determinadas, como o português, o francês,
guagem é convencional. o alemão, o inglês, etc. Este é o conceito de língua histórica. Bourdieu,
visando a questão da legitimidade, trabalha o conceito de língua
oficial.
O PONTO DE VISTA DA SOCIOLINGütSTICA O critério para se distinguirem as línguas não é nem a inter-
compreensibilidade, nem as características estruturais. Um grupo de-
Vários desses aspectos que abordamos não fazem parte da refle- terminado a leva e vive na consciência de sua identidade. Essa cons-
xão lingüística, pois, dentro de uma perspectiva convencional do ciência da identidade pode ser puramente histórica ou ideal (exemplo :
estudo da linguagem, parte-se de posições estabelecidas como as de Occitan) ou pode corresponder a uma sociedade política e econômica.
que: se estudam as constantes, o sistema é homogêneo, é autônomo, Na maior parte das vezes se apóia na unidade política, econômica,
sincrônico, etc. cultural. A vida em comum consolida certos traços característicos da
Esse automatismo com que a lingüística foi-se fazendo reflete língua e a delimita, na coesão para dentro e na distinção, para fora
o automatismo que se imputava à linguagem. No entanto, não falta- (B. Schlieben-Langue, idem).
ram lingüistas que alertassem para esses aspectos mais dinâmicos da Essa língua individual histórica constituída pela consciência de
linguagem. Por exemplo, Sechehaye ("La Pensée et la Langue - Ou seus falantes não é homogênea, como supõem o estruturalismo e o
comment concevoir le rapport organique de l'individuel et du social transformacionalismo . A homogeneidade atribuída à língua é abstra-
dans le langage'', in Cassirer, 1969), distingue a invenção lingüística ção. A língua individual concreta é heterogênea. Em dois sentidos:
(instrumento que o homem cria para as suas necessidades) e o seu a) porque apresenta vários subsistemas; b) porque cada falante dispõe,
uso automático. Segundo ele, falar não é puro reflexo, mas o uso até certo ponto, de vários subsistemas.
ativo de uma língua consiste em fazer apelo a hábitos adquiridos e o Um dos autores que trabalhou mais explicitamente sobre a
reflexo desempenha um papel preponderante. O ato automático (ilusão questão da heterogeneidade da língua é Labov. Ele critica a homoge-
do sujeito, pseudonaturalidade) se substitui ao ato consciente. Então, neidade, considerando que não é necessário que a distinção sistema/
pode-se falar pensando palavras sem que o pensamento das coisas manifestação do sistema recubra a distinção invariança/variação e a
esteja verdadeiramente em movimento. Não indo às causas primeiras de social/individual. Coloca a possibilidade de tomar como centro de
do pensamento, o ato de linguagem torna-se um reflexo de valor essen- estudo o caráter sistemático da variação lingüística, rejeitando a rela-
cialmente social, que responde simplesmente ·às situações estereotipa- ção entre estrutura e homogeneidade. Para ele, a heterogeneidade é
das das vida comum. Fazendo a crítica a esse uso automático, Ponzio normal e constitui o resultado natural dos fatores lingüísticos funda-
(197 4), consciente da manipulação exercida pelo sistema social sobre mentais. Para esse autor, um aspecto importante da competência lin-
o falante ,propõe o que chama desalienação lingüística, caracterizan- güística é a aptidão de se empregarem regras variáveis e que só pode
do-a como realização da possibilidade crítica e da intervenção respon- ser demonstrada por um estudo aprofundado da língua no seu em-
sável no processo de elaboração dos códigos sociais, isto é, a tomada prego (contexto social). Procura, pois, um nível de estrutura variável.
da palavra, a eliminação da propriedade privada lingüística (reestru- Os julgamentos categóricos, de que na língua só existem unidades
turação total da realidade histórico-social presente e desalienação funcionais invariantes, são ingênuos. A ausência de permutações esti-

100 101
lísticas e sistemas de comunicação estratificados é que se revelaria dis- estariam na semântica? A sintaxe teria função mediadora? As desi-
funcional (Weinreich, 197 6). Labov distingue as variações sociais, gualdades fonéticas teriam função simbólica? Estas são questões que
que caracterizam discursos de subgrupos, com normas veladas, opos- aguardam resposta.
tas às normas da correção gramatical explícita, e as variações estilís-
Trata-se, do ponto de vista da sociolingüística, pois, de se per-
ticas, que são a adaptação da linguagem do locutor ao contexto ime-
diato ao seu ato de fala. guntar como está distribuído o saber geral de uma sociedade dividida
em grupos e estratificações sociais. As convenções estão relacionadas
A situação da variação, pois, é normal e a heterogeneidade é aos grupos e é à heterogeneidade dos grupos que se deve referir seu
coerente. Desde que não se pense estrutura e homogeneidade, é pos- estudo.
sível construir instrumentos formais para o tratamento da variação,
A chamada competência lingüística inclui muitos outros fatores
inerente à comunidade lingüística e, então, a estruturação interna da
que não apenas os estritamente lingüísticos. Tomando como base a
variação se revela.
comunicação, que é essencialmente social, abrem-se perspectivas para
Labov define a comunidade lingüística como um grupo de pes- o estudo da linguagem concreta.
soas que compartilham um conjunto de normas comuns com respeito
A semântica de A. Schaff ( 1966), que não prescinde do conceito
à linguagem e não comei um grupo de pessoas que falam do mesmo
de comunicação, coloca marcos importantes acerca da natureza da
modo. A relação com a língua é fator primordial do conhecimento
linguagem e sua relação com o pensamento e a realidade. A comu-
lingüístico. Daí a afirmação de que conhecer uma língua não é apenas
nicação efetiva, segundo ele, é antes de tudo compreensão (condição
conhecer as formas engendradas pela gramática, mas também o valor
necessária, mas não suficiente), mas além de se compreender um
social· atribuído a elas.
enunciado da mesma maneira, para que haja comunicação efetiva é
Nesse passo, é que podemos compreender que o uso lingüístico preciso que os interlocutores partilhem as convicções relativas a ele.
implica atitudes, ou seja, avaliações em relação à língua. E, embora
Portanto, pelo desenvolvimento que vimos fazendo, ao estrita-
uma língua apresente muitos subsistemas, vem acompanhada de uma
mente lingüístico, quando pensado concretamente, juntam-se premissas
rede de avaliações homogêneas. Dentro de uma mesma sociedade, as
sociais, atitudes, convicções, que fazem parte do ato da linguagem, da
atitudes são homogêneas. Como situar esse fator, isto é, o saber em
comunicação. Não podemos recusar esses fatores como constitutivos.
torno da língua? Acerca de todos os objetos da vida diária, e também
É, pois, em direção à competência comunicativa que vão os estudos
acerca da língua, se dá um saber cotidiano (senso comum) que é
sociolingüísticos.
determinado por uma rede de estruturas de relevância (o falar de
prestígio, o estigmatizado) , As avaliações estão em estreita dependên- Um setor específico da sociolingüística americana, representado
cia das circunstâncias sociais da comunidade em questão. Fazem parte por Hymes ( 1974), a partir dos conceitos de competência e perfor-
da identidade do grupo e, conseqüentemente, de sua adaptação a suas mance, vê a necessidade de se introduzir o conceito de competência
normas. comunicativa, dada a polissemia do conceito de performance. A com-
petência comunicativa compreenderia todas as regras de comunicação,
Em geral, pode-se falar em diferenças diatópicas (regionais),
inclusive as da competência gramatical, e acrescentaria as de perfor-
diastráticas (camadas sociais) e diafásicas (funções e estilos)
mance, isto é, permitiria decisões também acerca da aceitabilidade,
(Schlieben-Langue, 1977). Assinalam-se, então, diferenças fonéticas,
sob quatro formas: se um ato lingüístico é possível, se é realizável, se
sintáticas, mas com dificuldade se podem comprovar as diferenças
é apropriado e se é realizado de fato. É uma competência que com-
semânticas. São apenas de conotação trazidas por diferentes âmbitos
preenderia também regras sociais que descrevem como. se utiliza a
da experiência ou é a própria significação do signo que se modifica
competência gramatical adequadamente em situações de interação.
de um grupo a outro? Questão bastante relevante para a lingüística,
na medida em que discute a relativa cor..stância da relação semiótica, Indo mais long~, encontramos a elaboração teórica de Habermas
isto é, da relação expressão/conteúdo. As desigualdades primárias que considera uma competência comunicativa que tematiza a faculdade

102 103
dos falantes de entenderem-se em diálogos. Não se trata aqui, como no sua conduta por ele age impropriamente, quer dizer, deve aceitar inco-
desenvolvimento das GT, do estabelecimento correto de enunciados modidade ,inconveniências enquanto a maioria do grupo conta com a
em dependência de certas varáveis, mas da descrição de atos lingüís- subsistência do costume e dirige por ele sua conduta.
ticos dialógicos.
A ação social pode orientar-se, quanto aos seus participantes,
O que se torna cada vez mais claro, levando-se em conta a pela representação de uma ordem legítima. A probabilidade de que
heterogeneidade das línguas e seu caráter histórico, é que se deve isso ocorra de fato se chama validade da ordem em questão. E é pela
repensar a relação entre o falar e o sistema da língua, percurso agora validade que se distinguem a convenção e o direito do costume. A
feito no sentido inverso: não como as línguas se deformam na sua validade de uma ordem significa algo mais que a regularidade deter-
realização, mas como chegam a se institucionalizarem as atuações da minada pelo costume. Entram aí o regulamento e o sentimento de
"fala", isto é, como se chega a aceitá-las comumente numa sociedade; dever. Há ordem quando a ação se orienta por máximas que podem
como sua sistematização alcança certo peso próprio e como podem-se ser assinaladas. E há validade quando a orientação de fato por essas
máximas tem lugar porque em algum grau significativo - quer dizer
modificar em novas atuações. Ou, como se estabelecem e como se
em um grau que pese praticamente - aparecem válidas para a ação,
modificam as convenções.
isto é, como obrigatórias ou como modelos de conduta. Aparecem como
As unidades lingüísticas devem ser concebidas como unidades algo que deve ser. A ordem que aparece com o prestígio de ser obri-
que se fazem históricas e que são basicamente recuperáveis na reali- gatória e modelo é a que aparece com o prestígio da legitimidade. A
zação. Por esse caminho, pode-se atingir o que é constitutivo. E legitimidade, por sua vez, pode estar garantida: a) de maneira íntima
nesse caminho encontramos o discurso. Por isso, vemos como uma (afetiva, racional em face de valores, religiosa), b) pela expectativa
de determinadas conseqüências externas (de determinado gênero) . A
perspectiva futura, muito desejável, a articulação da sociolingüística
ordem legítima pode chamar-se:
com a Análise do Discurso. Mantendo suas diferenças.
- Direito: quando está garantida externamente pela possibili-
.dade de "coação" exercida por um '.'quadro de indivíduos" instituído
O PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA com a missão de obrigar a observância dessa ordem ou castigar sua
transgressão.
As convenções são de natureza social e só uma teoria da ação
- Convenção: quando sua validade está garantida externamen-
social em sentido amplo pode dar conta do seu papel na constituição
te pela possibilidade de que, dentro de um determinado grupo, uma
do ato de linguagem. conduta discordante provoca "reprovação" geral e praticamente
Weber ( 1964), considerando, na ação social, o uso, o costume, sensível.
a convenção e o direito, mostra a existência de trânsito entre esses A convenção é o costume que, dentro de um grupo de pessoas,
conceitos, mas os distingue. se considera como válido e está garantido pela reprovação da con-
O uso se define como a probabilidade de uma regularidade na duta discordante.
conduta, quando e na medida em que essa probabilidade, dentro de A submissão à convenção não tem caráter livre. Se exige muito
um grupo, está dada unicamente pelo exercício de fato . seriamente do indivíduo, como obrigação ou modelo. A convenção é
O uso deve chamar-se costume quando o exercício de fato re- costume estamental e a punição tem conseqüências eficazes e sensíveis
pousa em uma estabilidade duradoura. O costume aparece como uma (mais do que as jurídicas) pela ação dos membros do próprio esta-
norma não garantida exteriormente. Nesse sentido, o costume carece mento. A eficácia da repressão reside em que os meios repressivos
de "validade", ninguém exige que se o tenha em conta. A estabilidade não são entregues a um quadro de pessoas instituído, mas ao próprio
do costume se apóia essencialmente no fato de que quem não orienta grupo, e que se mostra como individual.

104 105
As ordens são garantidas de modo externo e de modo interno dane jamais à une convention identiquement reçue entre partenaires"
(representações normativas de caráter ético; valores morais, crenças). (p. 59) . Isto é, em B~~eniste, não separamos, no semiótica, os con-
ceitos de unidade, sistema, instituição social, significância.
As atribuições da validade legítima a uma ordem determinada
se dá : pela tradição (validade do que sempre existiu), crença afetiva Do outro lado, no semântico, encontramos o discurso contínuo,
(o exemplar), crença racional baseada em valores, mérito do esta- praticado pelo indivíduo, produtor de mensagens. E, aí, não há su-
tuído positivamente em cuja legalidade se crê. A validade pode valer cessão de unidades que se identificam separadamente, pois é o sentido,
como legítima em virtude de um pacto ou por outorga (por autori- · concebido globalmente, que se realiza e se divide em signos particula-
dade) . Hoje, a forma de legitimidade mais corrente é a crença na res (palavras); não é uma adição de signos que produz o sentido.
legalidade. Em geral a adesão à ordem está determinada pelas situa- Em resumo, podemos dizer que, nesse texto, Benveniste coloca
ções de interesse de todas as espécies e pela mistura de vinculação à o convencional no domínio do semiótica : o signo existe e é reco-
tradição e idéias de legitimidade. . nhecido como significante pelo conjunto dos membros da comuni-
E aqui reencontramos as características · atribuídas à convenção dade lingüística e evoca para cada um, mais ou menos, as mesmas
na análise da linguagem: o aspecto teleológico (os interesses e o gru- associações e as mesmas ~posições. Do outro lado, a ordem semântica
po), a hitoricidade (a tradição) e a sua motivação na forma social (a se identifica ao mundo da enunciação e ao universo do discurso. Have-
legitimidade). rá aí lugar para o convencional?

Pelo que podemos observar, uma teoria lingüística que busque Observando a distinção, feita pelo autor, entre o semiótica (que
o que de social é constitutivo da linguagem e que se mostre como deve ser reconhecido) e o semântico (que deve ser compreendido) ,
teoria da ação não pode prescindir da reflexão sobre a ação social em vemos que a enunciação, processo mediador do . semântico, se define
geral, colocando a ação lingüística junto à ação não-lingüística. Nessa como um processo de apropriação, enquanto realização individual.
perspectiva, não se pode estudar o ato lingüístico sem estudar o ato
A linguagem aparece, então, como a possibilidade da subjetivi-
social em geral. dade e o discurso como provocando a emergência da subjetividade.
É o locutor no exercício do discurso que se apropria das formas que
a linguagem propõe e às quais ele refere a sua pessoa definindo-se a
O PONTO DE VISTA DA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO
si mesmo (como eu) e ao parceiro (como tu). Nessa perspectiva o
processo do eu é semântico, é histórico, enquanto o tu permanece no
Vejamos como é tratado o problema da convenção pela teoria nível semiótica. Benveniste diz que temos "no locutor a vontade de
da enunciação. referir pelo discurso e no outro a possibilidade de correferir identica-
Podemos depreender, os estudos de Benveniste (1974), em sua mente no consenso pragmático que faz de cada locutor um colocutor".
distinção entre semiótica e semântico ( cf. Semiologie de la Lang~e) Assim, o interlocutor, enquanto tal, é possibilidade estabelecida pelo
que a língua se apresenta, em todos o~ seus aspectos, como uma semiótica e, quando se faz semântico, se faz locutor. É só nesse sentido
dualidade: instituição social, é praticada pelo indivíduo; discurso con- que vemos um contato entre o semiótica e o semântico, mas que não
se faz como passagem, e é dissimétrico. Nesse sentido, o quadro figu-
tínuo, é composta de unidades fixas.
rativo da enunciação - as duas figuras em posição de participantes
O semiótica, nessa dualidade, compreende o domínio que se que são alternativamente protagonistas da enunciação - aparece como
refere ao fato da língua ser instituição social e composta de unidades cenário para que o eu represente seu papel. E a concepção dialética
fixas (o domínio do sistemático). E aí está o convencional. Ao dis- do eu-tu (indivíduo e sociedade) proposta por Benveniste (197 6) em
cutir a natureza das unidades nas artes de figuração e na língua, o "Da Subjetividade na Linguagem (p. 287) desaparece: o que há é
autor diz que, ao contrário da língua, "la signifiance de l'art ne renvoie um eu que subsume um tu, pois este só se faz presente se se torna um

106 107
eu. O estatuto da enunciação é, no mínimo, obscuro e disso decorre Além disso, segundo Pêcheux, essas reg1oes são atravessadas por
uma série de dificuldades na interpretação dos planos de Benveniste. uma teoria da subejtividade, de natureza psicanalítica (que deverá
Ao demonstrar que não há correspodnência nem de natureza ser explicitada) em que uma das questões centrais é a de leitura, do
nem de estrutura entre os elementos constitutivos da língua e os efeito-leitor como constitutivo da subjetividade.
constitutivos da sociedade, Benveniste distingue dois níveis nas enti- Ao distinguir os. três níveis (o lingüístico, o discursivo e o ideo-
dades língua e sociedade: o nível histórico e o fundamental. Conclui lógico-cultural), Pêcheux deixa claro que a AD - que tem como
pela relação entre língua e sociedade no nível fundamental. Exclui, objeto a análise não subjetiva do sentido - passa por uma fase de
portanto ,o histórico. E o social, que é considerado, é um social geral, análise lingüística.
fundamental, de princípio. Que, na relação com a linguagem é por
ela determinado -- enquanto relação de sistemas semióticos - e Qual o estatuto dessa análise em relação ao discurso? Essa aná-
mesmo, mais do que isso, é contido pela linguagem. Não· há nada lise lingüística é de natureza morfo-sintática. Mas o recurso a um
parecido com as determinações histórico-sociais de que estamos fa- semantismo implícito não está excluído.
lando ,a não ser quando Benveniste fala na língua como sistema pro- Uma das maneiras de se ver o discurso é a que faz dele o sintoma
dutivo, no interior da sociedade: produz sentido, produz enunciações 1 de uma crise interna à lingüística, no domínio da semântica, em par-
cria objetos lingüísticos que são introduzidos no circuito da comuni- ticular. E é, realmente, nesse domínio, que as dificuldades se apre-
cação. Nesse passo, se exploraria mais o aspecto funcional da rela- sentam com toda sua intensidade. As regras sintáticas aplicadas na
ção linguagem/ sociedade. Mas Benveniste diz que para isso é neces- AD, segundo Pêcheux, introduzem subrepticiamente o recurso ao sen-
sário puxar mais longe a teoria, para tornar as comparações frutuosas, tido. No entanto, é preciso distinguir entre essa semântica e aquela
e afirma que ali foi possível dar apenas uma primeira aproximação. que é proposta pela análise do dis~urso . .
E aí ficamos. A semântica discursiva é a análise científica dos processos carac-
terísticos de uma formação discursiva, que deve dar conta da articula-
ção entre o processo de produção de um discurso e as condições em
O PONTO DE VISTA DA ANALISE DO DISCURSO (AD) que ele é produzido. Não é uma semântica lexical, e deve ter como
objeto os processos de arranjo dos termos em uma seqüência dis-
Procura-se uma passagem entre enunciação e enunciado, entre cursiva e em função das condições em que a seqüência discursiva é
língua e fala, etc. E talvez daí derive a dificuldade. Ao invés disso, produzida. A semântica lingüística é uma semântica formal. Segundo
poder-se-ia deslocar a distinção para o nível língua/ discurso, como fez Pêcheux (idem) essa semântica ainda não está feita. Seria "uma teoria
Pêcheux ( 1975), considerando a língua como condição de possibili- do funcionamento material da língua na sua relação com ela mesma,
dade do discurso. isto é, uma sistematicidade que não se opõe ao não sistemático (lín-
gua/fala), mas que se articula sobre processos".
O quadro epistemológico colocado por Pêcheux, para a análise
do discurso, se apresenta como a articulação de três regiões do conhe- Para se perceber bem a natureza dessa proposta de Pêcheux,
cimento científico: deve-se lembrar a crítica que ele faz às teorias da enunciação que,
segundo ele, refletem, na teoria, a ilusão do sujeito.
1) Materialismo histórico como teoria das formações sociais e
suas transformações, aí compreendida a teoria da ideologia. Com a distinção entre semântica formal e semântica discursiva,
segundo Pêcheux, é possível atingir o lugar específico da língua que
2) A lingüística como teoria ao mesmo tempo dos mecanismos
corresponde à construção do efeito-sujeito. Através da articulação
sintáticos e dos processos de enunciação.
entre semântica discursiva/ semântica lingüística (ou formal), a aná-
3) A teoria do discurso como teoria da determinação histórica lise não reproduziria esse efeito e, ao mesmo tempo, reconheceria
dos processos semânticos. sua existência no objeto de estudo. \

108 109
Voltando, pois, à nossa colocação inicial, o lingüístico e o dis- Dessa forma, é sob · essa perspectiva que é vista a convenção: a não
cursivo permanecem distintos. São necessariamente heterogêneos, mas acidentalidade e o aspecto teleológico derivam da relação estabelecida,
não se trata de uma distinção estanque, sem uma passagem. Como diz no quadro teórico de Pêcheux) entre formação discursiva e formação
Pêcheux, as sistematicidades da língua não existem sob a forma de um ideológica.
bloco homogêneo de regras organizadas à maneira de uma máquina A "arbitrariedade" resulta do fato de haver uma relação entre o
lógica. A fronteira que separa o lingüístico e o discursivo é sempre discurso e o sistema de produção no qual existe.
colocada em causa em toda prática discursiva, e é próprio da relação
entre língua e discurso que as regras fonológicas, morfológicas e sin- O critério da regularidade é mais complexo porque pressupõe a
táticas - que são as condições materiais de base sobre as quais se relação entre o lingüístico e o discursivo, relação essa ainda sujeita a
desenvolvem os processos discursivos - sejam objeto de .recobri- muita controvérsia.
mentos e de apagamentos parciais. Daí a proposta da AD de uma
Assim como na sociolingüística se percebeu que a variação é
teoria não subjetiva da enunciação, pois o lingüístico e o discursivo
sistemática e funcional, a AD procura tipificar os discursos das dife-
se comunicam. Não da maneira colocada por alguns autores (como
rentes formações discursivas, procura destacar constantes justamente
Maingueneau, 1976), em que o texto é uma unidade de um nível de
no lugar em que o lingüístico e o social se articulam (no discurso).
análise superior (à frase) que faz parte da língua, embora concorde-
Não se trata de opor enunciação / enunciado, sistema/ discurso, mas os
mos com a autora quando ela recusa a idéia de que, dada a diversidade
sistemas de signos são tomados no jogo das formações discursivas que
das ideologias dos locutores, da variação do contexto, se não manti-
são reflexos e condições das práticas sociais.
vermos a existência de uma base lingüística comum, teremos um plura-
lismo heterogêneo de microlínguas. Como Pêcheux, ao invés de nível Podemos, então, reavaliar alguns conceitos, a partir da reflexão
superior de análise, preferimos ver essa relação como a existente entre desses domínios do estudo da linguagem.
condições materiais de base e processo. Em suma, trabalhar com a
Pelo que podemos concluir, a sociolingüística, a teoria da enun-
noção de funcionamento.
ciação, e a AD, trabalhando com a exterioridade que envolve a
O conceito básico para a AD é o de condições de produção. linguagem, o fazem de maneiras distintas. Na sociolingüística, trata-se
Essas condições de produção caracterizam o discurso, o constituem e de se visar à relação entre o social e o lingüístico, através do reflexo,
como tal são objeto da análise. Essa modificação na perspectiva do desde uma concepção mais periférica do que seja "refletir" até uma
objeto traz consigo a necessidade de se ver a enunciação não como concepção mais abrangente (competência comunicativa). Na teoria
desvio mas como processo constitutivo da matéria enunciada. da enunciação trata-se da determinação entre o funcional (enuncia-
ção) e o formal (enunciado). A análise do discurso procura estabe-
Em Benveniste é o sujeito que se apropria da linguagem, num lecer essa relação de forma mais imanente, considerando as condições
movimento individual. Nesse passo, podemos dizer que, pela consi- de produção (exterioridade, processo histórico-social) como constitu-
deração fundamental das condições de produção na AD, não é o tivas do discurso.
sujeito (locutor) que se apropria, mas há uma forma social de apro-
priação da linguagem em que está refletida a ilusão do sujeito, isto é, . Devemos acrescentar que a análise do discurso não prescinde de
sua interpelação feita pela ideologia. É nesse jogo do lugar social e uma teoria de enunciação, ao contrário, procura constituí-la, ainda que
dos sentidos estabelecidos que está representada a determinação his- diversamente à perspectiva de, por exemplo, Benveniste; isto é, pro-
tórico-social do discurso. cura constituí-la como teoria não-subjetiva.

Retomando-se os critérios do que é convencional, podemos dizer Por outro lado, algo que até o momento· foi pouco explorado e
que, pela análise do discurso, recupera-se ·o processo histórico-social. merece uma maior atenção é a relação da análise do discurso com a

110 111
sociolingüística, uma vez que os pontos comuns na consideração do ORLANDI, E. - "O Lingüístico e o Social" em Foco e Pressuposição, Série
Estudos 4, pp. 75:so, 1978.
objeto de que tratam são evidentes, como pudemos observar por este PÊCHEUX, M. - Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969.
nosso estudo. Mais do que isso, sabemos que o termo sociolingüística PONZIO. A. - Producción Lingüística e Ideologia Social, Albero Editor,
recobre trabalhos extremamente diversos - etnografia da comunica- Madrid, 1974.
ção, variação lingüística, relação com a linguagem e até mesmo análise PÊCHEUX, M. el alii - "Analyse du Discours, Langue et Idéologie", Langages,
de discurso - ou seja, trabalhos que tratam da análise da linguagem n. 0 37, Paris, 1975.
no contex~o. Há, pois, um domínio de interesses comuns, em que a ROSSI-LANDI, F. - "A Linguagem como Trabalho e como Mercado'', em
Semiologia e Lingüística Ho je, Rio de Janeiro, 1975.
sociolingüística já estabeleceu sistematizações bastante claras. Tratar-
SCHAFF, A. - lntroducción à la Semántica, Fondo de Cultura Económica,
se-ia, pois, para a AD, de refletir sobre essas sistematizações de uma México, 1966.
outra perspectiva, de sua perspectiva. SCHLIEBEN-LANGUE, B. - lntroducción a la Sociolingüística, Gredos, Ma-
drid, 1977. ·
Além disso, refletir sobre a questão da discussão metodológica WEBER, M. - Economia y Sociedad, 1, Fondo de Cultura Econó~ica, México,
estabelecida pela sociolingüística que, a partir de Labov, se define 1964.
como uma lingüística, pode ser bastante fecundo para um domínio WEINREICH, S., citado por LABOV em Sociolingu istique, Minuit, Paris, 1976.
coino o da AD que procede, atualmente, a uma vigorosa reavaliação
crítica de conceitos estabelecidos por uma lingüística que já podemos
chamar de Lingüística Tradicional (ou imanente, ou hors-contexte).
Finalmente, pensando-se essas modificações, na reflexão lingüís-
tica acerca das funções da linguagem, podemos afirmar que não basta
dizer que a função fundamental não é apenas informar, acrescentando-
se que não é apenas a comunicação, ou apenas a persuasão. É também
o reconhecimento pelo confronto ideológico. É, pelo menos, tudo isso.
E o mistério da linguagem talvez esteja em ser fundamentalmente tudo
isso e não ser prioritariamente nenhuma coisa.

BIBLIOGRAFIA

BENVENISTE, E. - Problemas de Lingüística Geral, Nacional, São Paulo,


1976.
- - -- - -. Problémes de . Lingüistique Générale, II, Gallimard, Paris, 1974.
1974.
BOURDIEU, P. - Le Fetichisme de La Langue, xerox.
CASSIRER, E. et alii - Essais sur /e Langage, Miriuit, Paris, pp. 99-109, 1969.
HYMES, D. - Foudations in Sociolinguistics, U. P. P., Philadelphia, 1974.
LABOV, W. - Sociolinguistique, Minuit, Paris, 1976.
LANDESMAN, ·eh. - Discourse and its Presupositions, Yale University Press,
• London, 1972.
MAINGUENEAU, D. - Initiation aux Méthodes de l'Analyse du Discours,
Problemes et Perspectives, Hachette, Paris, 1976.

112 113
FUNCIONAMENTO E DISCURSO*

INTRODUÇÃO

Não vou disfarçar meu ponto de vista, nem vou tentar provar
que a ciência é neutra. E puxo a sardinha pro meu lado, ao citar como
entrada para esse trabalho um poema de Adélia Prado (1977) :

"Minha mãe cozinhava exatamente:


Arroz, feijão roxinho, molho de bliltatinhas,
Mas cantava".

Que análise lipgüística imanente pode dar conta do sentido desse


mas? Do sentido, não. Dos sentidos. Entre cozinhar e cantar se
passa toda uma vida. Que qualquer mulher pressente nesse mas. E
que muitos homens entendem. E (mas) explicam.
Também não dá para analisar esse mas considerando ·o texto
como "uma seqüência lingüística fechada sobre ela mesma, porém é
necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de
um estado definido de condições de produção" ( Pêcheux, 1969) .
Tentemos, então, ver isto na perspectiva de uma ciência da lin-
guagem que não se defina como uma lingüística imanente.
Para essa reflexã9, considerarei, pois / a linguagem como lugar
de debate, de conflito/ E, em termos da estratégia da composição do
meu texto, trabalharei com (e sobre) paráfrases. Esse vai ser, por
assim dizer, meu modus operandi.
Não é entretanto, um acaso, esse uso de paráfrases. Em uma
mesa-redonda sobre Foco e Pressuposição (Orlandi, 1978), coloquei
a necessidade de se discutir, ou melhor, se definir o lugar da paráfrase

* Texto publicado em Estrutura do Discurso, IEL, UNICAMP, 1981.

115
nas teorias da linguagem, sob dois aspectos: tanto quando a utilizamos cação, é o lugar mais adequado para se observar o fenômeno da lin-
como procedimento heurístico como quando a consideramos como guagem. Porque parto da totalidade e não das partes segmentadas,
fato li~g~ístico. ~ue deve ser explicado. 1Sob esse último aspecto, seria isto é, procedo analiticamente.
necessano defmH sobretudo o jogo entre o mesmo e o diferente
Á odemos aqui adotar a definição de Guespin ( 1971) : "Um olhar
tensão ~ntre o uno e o múltiplo. Isso porque, a meu ver, a paráfras~
lançado sobre um texto do ponto de vista de sua estruturação em
e a polissemia são os dois grandes processos da linguagem: a matriz
e a fo~te do sentido, respectivamente. Processos esses que aparecem língua faz dele um enunciado. Um estudo lingüístico das condições de
domesticados nos modelos lingüísticos, enquanto sinonímia (paráfra- produção desse texto fará df le um discurso". Como em Saussure, o
se) e ambigüidade (polissemia)/ ponto de vista cria o objeto/

Nesse trabalho, estarão unidas as duas coisas, isto é, a paráfrase f noção fundamental é a de funcionamento. Quer dizer, do ponto
como processo heurístico e como fato lingüístico a ser explicado. de vista da análise do discurso, o que importa é destacar o modo de
funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento
não é integralmente lingüístico, uma vez que dele fazem parte as
PRIMEIRA PARTE condições de produção, que representam o mecanismo de situar os
protagonistas e o objeto do discurso/
Inicio, então, este trabalho, com duas afirmações que procurarei
fundamentar durante a exposição: A) uma afirmação ao nível meto- b iria, pois, a partir dessa reflexão sobre a análise do discurso
dológico e B) uma afirmação ao nível da análise. como ponto de vista, que esse ponto de vista - diferente do da lin-
güística estabelecida - instaura um objeto diferente. E é esse objeto de
A) Uma afirmação ao nível metodológico:Á análise de discurso( conhecimento, diferente do da lingüística, que se está pretendendo
acredito, não é um nível diferente de análise, quando pensamos níveis
descrever e explicar através da análise do discurso/
como o fol1ético, o sintático ,o semântico :É, antes, um ponto de vista
diferente/ Isto é, o problema é antes de tudo metodológico/ Pode-se / Assim, posso dizer que os operadores (articuladores) de dis-
trabalhar, na perspectiva da análise de discurso, com unidades de curso o são a partir do ponto de vista. Isso significa que, em termos
vário~ níveis - palavras, sentenças, períodos, etc. - sob o enfoque de estruturação discursiva, as unidades que concorrem para isso não
d.º. ~1curso. Isso não significa que essas unidade não tenham a espe- o fazem por sua essência mas por seu modo de funcionamento. ·Um
c1flc1dade de seu nível - isto é, lexical, morfológico, sintático semân- operador pode ser operador d~ frase (lingüí~tico, portan~o) ou di
tico - mas sim que a perspeejiva discursiva1 também é co~stitutiva discurso, dependendo da maneira corrio anahso seu func10namentl".
delas, também fornece dados. f
Então, não é um unidade de nível diferente, nem categoria dife-
Explicitaria esse ponto de vista dizendo que, nesse tipo de análise,
rente. Por isso se podem analisar unidades de qualquer nível ou
olha-se através do texto enquanto unidade significativa. Pensando-se
qualquer tipo de categoria, sob a perspectiva do discurso. Vamos tomar,
aqui o texto. não como unidade formal, mas ragmáti~ ou stjã,
aquela em CUJO processo de significação também entram o eleliíêirtos como exemplos, resultados de uma análise sobre o discurso da história:
do contexto situacionay.' Dessa forma, po~;o ili;;. que texto e discurso · a) Categoria: advérbio
se equivalem, entretanto em níveis conceptuais diferentes: discurso é
Nível: morfossintático
conceito teórico e metodológico e texto é conceito analítico. Por isso
é, possível tr.atar um tex~o. sob my ros aspectos que não o discursivo ~ No entanto, fizemos uma análise do advérbio em seu funciona-
a1 texto e discurso se distmgueiy ( cf. gramática de texto). mento discursivo. E isso trouxe modificações, isto é, essa análise de-
E:~ resumo.' diria que, do ponto de vista analítico, na perspectiva
monstrou que a perspectiva do discurso é capaz de revelar aspectos
da analise do discurso, o texto visto, pois, como unidade de signifi- do advérbio que passam despercebidos em um outro tipo de análise.

117
116
Por exemplo, pela análise que fizemos, ficou claro que o adjunto SEGUNDA PARTE
adverbial pode indicar o agente - "com a morte de Costa e Silva
subiu ao poder . .. " - o que determinava, nos textos que analisamos, Vejamos, agora, as seguinte paráfrases:
um certo estilo de dizer da história. ( 1 ) Com a ida para São Paulo, no fim de semana, você atrapa-
b) Categoria: conjunções subordinadas lhará seus estudos.
Nível: sintático (orações adjetivas/ orações adverbiais)
(2) Se você for para São Paulo no fim de semana, você atrapa-
Nesse mesmo trabalho, em que analisamos o advérbio, observa- lhará seus estudos.
mos também que o uso de adjetivas, distinto do uso de adverbiais,
( 3) :É porque você vai para São Paulo no fim de semana que
concorreu para o estabelecimento de estilos discursivos diferentes.
você atrapalhará seus estudos.
São paráfrases. Mas como determinar os limites entre o sentido
de uma e de outra? Do nosso ponto de vista não há o mesmo no
~/'

diferente, isto é, formas diferentes significam diferentemente. E per-
guntamos: qual é a diferença?
/?/ ~ ---> (~)-;>(~)--->
ÍJo ponto de vista dá Análise de Discurso, a mera repetição já
adverbiais adjetivas
significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo
Em uma estrutura (adverbiais) a expansão se faz com elemen- discursivo. Quando digo a mesma coisa duas vezes, há um efeito de
tos centrais e marginais. Na outra (adjetivas), há o que chamaria sentido que não me permite identificar a segunda à primeira vez, pois
de expansão linear, o que determina um mapeamento diferente do são dois acontecimentos diferentes / .
escopo e da progressão do discurso . Isto também concorre para que Nas paráfrases acima, não se trata nem mesmo de mera repe-
se constituam estilos diferferttes. Logo, não importa o nível ou a cate- tição e é inegável que existem diferenças propriamente lingüísticas,
goria das unidades, nessa perspectiva. Importa o funcionamento delas sintáticas: nominalização (1), oração condicional (2) e explicativa
no discurso. ( 3). Como, no processo de enunciação, todo elemento sintático tem
:É inegável, por outro lado, que, em relação à significação, o um contorno singificativo, é preciso procurar a ·diferença de sentido
laço que liga o discursivo e o lingüístico é bastante complexo. instaurada pela diversidade dessas construções.

O lingüístico e o discursivo são distintos, mas não são estanques Assim, ao visarmos o funcionamento dessas formas, pode-
na sua diferença. A separação entre o lingüístico e o discursivo é mos considerar a segunda afirmação desse trabalho:
colocada em causa em toda prática discursiva, pois há uma relação B) Uma afirmação ao nível da análise propriamente dita: a
entre eles: é a relação que existe entre condições materiais de base e diferença de construções tem sempre uma razão que não é a simples
processo. Isto é, funcionamento. diferença de informação mas sim de efeitos de sentido.
/Por exe~plo, no caso da indústria cultural, o texto está prenhe
A língua, assim, aparece como condição de possibilidade do
discurso.
de outros sentidos que não a informação, efeitos esses tais como a
Em geral, em termos metodológicos, podemos dizer que a re- persuasão, o nivelamento de opinião, a ideologia de sucesso, a homo-
lação da Lingüística com a Análise do Discurso é a da "aplicação" geneização, ·etc/ No discurso pedagógico, como tivemos a ocasião de
(Marandin, 1979). mostrar, temos a inculcação. E assim por diante.

118 119
O fato de não se considerar apenas a informação no discurso, 1 ) Os efeitos de sentido são produzidos por mecanismos tais
embora não neguemos que também faça parte importante, evita uma como o dos registros, o dos tipos de discurso sem esquecer o fato de
certa simplificação que é reducionista frente a natureza e ao funcio- que o lugar dos interlocutores significa. Essa é uma esp~cificidade:
namento da linguagem. nas marcas de interlocµção - em que os sujeitos falam ·de seus fo-
gares - há vestígios da relação entre a formação discursiva e a for-
Aí incluímos, por exemplo, o fato de que, se não considerar- mação ideológica ( cf. p. 26) .
mos apenas a informação, não incorremos em afirmações mais ou
menos dogmáticas como aquelas que muitas vezes eliminaram falan- f vamos observar os mecanismos de efeito de sentidos, tais como
tes de sua língua materna: afirmações do tipo "Essa frase não existe enunciamos acima, utilizando para isso jogos de paráfrases./
em português" dita de uma frase realizada por algum falante natl.vo.
Vejamos alguns grupos:
Essa afirmação deriva do fato de que se considera, nessas teoria, que
a linguagem não é diretamente observável. Mais ainda, se funda na 1.0 grµpo
crença de que aquilo que é observável não é. ( 4) Determinava essa lei que seria · mantida, provisoriamente .a
Constituição de 1946 com algumas modificações no seu texto.
Fazendo-se um paralelo, uma posição que leve em conta apenas
a informação pode chegar, em relação ao discurso, a afirmações se- ( 5) Essa lei modificava o texto da Constituição de 1946 e a
melhantes às acima citadas em relação às frases, como: "este texto tornava provisória.
não é um texto", isto dito, por exemplo, de um texto de redação es- Há uma diferença de sentido entre ( 4) e (5) que · deriva da
colar que não se enquadre em um certo modelo, como por exemplo o diferença de formações discursivas ( FD) . Ou melhor, invertendo-se
de Halliday (com os elementos de coesão, sem pensar o outro lado do a perspectiva, o funcionamento discursivo é tal que essas diferenças
modelo, que ele apontou e não desenvolveu, que é o da consistência de construção estabelecem as que existem entre uma FDl, cuja carac-
de registro), uma vez que a definição do texto, nesse modelo, repousa terística é a indeterminação, e uma FD2, em que há determinação,
na existência de certos elementos que o constituem. como tivemos ocasião de mostrar em "O discurso da história para a
Não negàrrios a necessidade de se construir uma matriz do que escola" .
seja um texto, inas essa matriz deve poder acolher as diferenças sem Há ainda o fato de que essas formações têm estilos diferentes.
apelar para a noção de erro. E a noção de erro tem muito a ver com
o caráter informativo da linguagem, quando ele é absolutizado. Essa 2. 0 grupo
noção de erro deriva das concepções da linguagem que caracterizam, Vejamos as paráfrases:
tal como a transformacional, uma competência lingüística completa- ( 6) Trabalha bem mas é preto.
mente apartada das condições de uso. ( 6. 1) Trabalha bem e é preto.
Nossa perspectiva é a que privilegia o uso, de tal forma que, para ( 6. 2) Trabalha bem apesar de ser preto.
nós, um texto é um texto porque assim se define no uso da linguagem. (7) Saiu mas volta já.
Como dissemos mais acima, a visão através da competência- aquela (7. 1) Saiu e volta já.
em que a teoria produz os dados - tende, de um lado, a desrespeitar ( 8) Cozinha mas canta.
a existência do fenômeno como tal, e, de outro, a absolutizar a função ( 8 . 1) Cozinha apesar de cantar.
da informação, imobilizando a linguagem fora de sva multiplicidade. ( 8 , 2) Cozinha e canta.
Nessa mesma perspectiva crítica, entraria, a nível de discurso, A natureza das diferenças em relação a esses exemplos é variada.
qualquer posição normativa que deixasse de lado a observação de Mas podemos perceber que, em alguns desses usos, "e" equivale a
que um discurso não é apenas transmissão de informação, mas efeito "mas", a "apesar de". De meu ponto de vista, é uma diferença que
de sentidos. deriva do registro. Vejamos como interpretar isso.

120 121
Em seu trabalho sobre o "se" hipotético/ Geraldi (1981), a diferença de sentido derivada de suas condições de uso, fosse ela do
meu ver, relaciona três conc~tos - o de raciocínio, o de esque- domínio do registro ou outra qualquer.
ma sintático e o de relação/ -, operando com eles a nível da dis-
Vejamos agora outro grupo de paráfrases :
tinção dos usos do "se". A partir daí, pode dizer que um "se" pode
expressar relação causal, mas também concessiva, etc. Assim como, 3. 0 grupo
em relação às conjunções, poderia dizer que "e" significa "apesar de'', Nessas paráfrases tratarei de exemplos com conjunções, obser-
a parti r da equivalência das relações. Segundo esse mesmo caminho vadas por Eduardo Guimarães em "Argumentação e Pressuposto"
de reflexão, posso dizer que, como o "e" pode ocupar o lugar de "mas" (1980) e "Algumas Considerações sobre a Conjunção embora"
e de outras conjunções, e como podemos observar que a freqüência ( 1981) . Tal trabalho se faz dentro de uma perspectiva argumentativa
de seu uso se distribui de maneira específica pelos diferentes grupos (Vogt, 1980) com o exemplo: "Embora não quisesse fez o trabalho".
sociais, a diferença instaurada é uma diferença de registro. O que, de Ele nos servirá de referência para um estudo feito da perspectiva da
nosso ponto de vista, :nos leva a dizer que "e", então, não significa análise do discurso, no tratamento de algumas questões de argumenta-
"apesar de" pois tem um efeito de sentido que o impregna e que ção. Como nos interessava a relação com a ideologia, procuramos
deriva da diferença de registro (ele diz isso porque seu registro é exemplos com marcas ideológicas muito claras.
baixo, ele diz isso mas quer dizer aquilo. etc.).
- ~( 9) Embora trabalhe bem é preto. A
Não desconhecemos, entretanto, que a noção de registro tem ~(10) Trabalha bem mas é preto.
sido caracterizada de maneira estática sem levar em conta a dinâmica FP !1iC11) Embora seja preto trabalha bem. --11---+-~ 1
da interlocução. Não é do registro assim caracterizado que estamos ~(12) É preto mas trabalha bem. - - B A
(13) É preto embora trabalhe bem. 1
- ----L._ ,_
falando, mas de uma outra concepção, relacionada com a de estilo,
(14) Trabalha bem embora seja preto. _ _ _ ______,1?.__.I
tal como é formulada por Pierre Encrevé, interpretando os trabalhos
(15) Cozinha mas canta.
de Labov, na introdução ao livro Sociolingüistique (W. Labov, 1976): (16) Embora cozinhe, canta.
"Curiosamente, Labov não formula uma das lições principais desta (17) Embora cante, cozinha.
pré-enquete, que concerne ao style schifting do grupo observado ( . . . )

r Sua língua varia segundo o estatuto social do interlocutor (clientela)


e no sentido da variedade da língua associada a este estatuto. Dito de
outra forma, a variação estilística - pois é tipicamente uma - tam-
Essas paráfases , trabalham com exemplos em que há, do ponto
de vista da ideologia, uma distinção : do exemplo (9) ao (14) a
marca ideológica que opõe trabalho/preto é mais categórica e, menos
bém é socialmente determinada, ela é a resposta do locutor (ou antes categórica talvez, mas também existente, é a que opõe trabalhar/can-
do grupo de locutores) à coerção simbólica exercida pelo interlocutor tar em relação à mulher, nos outros exemplos.
na relação (presumida) que este último tem com a "norma legítima"/ fom seu trabalho "A litotes: uma abordagem conversacional'',
j O que confirma nossa interpretação da variação estilística na enquete Eduardo Guimarães ( 1980) diz que há certos traços ideológicos -
por entrevista como tradução de uma relação social e não de uma além dos sintáticos e entoacionais - que devem ser considerados nas
relação psicológica{ Observe-se, nesse texto, o deslocamento do "so- figuras. Nós diríamos que não só as figuras mas o léxico em geral,
cial" em relação a Labov . .Social aí aparece, segundo nossa interpre- pode estar marcado por traços ideologicamente interpretáveis. Entre-
tação (e nossa proposta), não como um dado produto, mas como pro-
tanto, como pudemos observar nas relações trabalho-cor e trabalho-
cesso de produção, ou seja, interação, instância de interlocução.
sexo há necessidade de se considerar que as marcas podem ser mais
A diferença de "registro" é, então, constitutiva do sentido. E, ou menos categóricas, ou melhor, de naturezas diferentes porque são
assim, também diríamos em relação aos usos equivalentes de con- de diferentes regiões da ideologia. Essa diferença se deve às caracte-
junções, que, do nosso ponto de vista, apresentariam sempre alguma rísticas das formações ideológicas, e deriva das condições de produçã{.

122 123
Então, em relação a estas paráfrases, poderia dizer que, nelas, concorrem para a determinação do estilo. O que significa, então, que
· em geral, as diferenças não são de registro. São diferenças de argu- a argumentação também concorre para a existência de marcas formais
.mentação mas de natureza diferente. E é nesse passo que podemos ver que definem o estilo do texto.f
a relação entre funcionamento discursivo e argumentação.
Além da argumentação, há outros mecanismos que definem o
2) A diferença entre (9) e (10), de um lado, e (11) e (12), de estilo, como aquele que determina o uso de subjuntivos, como tive
outro, é uma diferença de funcionamento discursivo que distingue ocasião de observar no texto sobre mulheres ou o uso de advérbios no
Formações Discursivas (FD), como a observada no 1.0 grupo de lugar de agentes, segundo o queyu~e analisar nos textóS' história.
paráfrases.
Todos esses mecanismos caracterizam o estilo e dão a forma
fA. formação ideológica é a mesma: a que distingue preto e bran- interna da formação discursiva.
co, em termos racistas. Ainda a que dissesse "traball\a_ bem porque
é preto" estaria no interior da mesma ordem racista./-1ma formação 3 )/ A_s diferentes par~frases _estabelecem diferentes relações de
ideológica diferente não necessitaria da referência a cor quando fala interlocuçao. Nas construçoes e/stao as marcas com que o sujeito se
de trabalho e sua qualidade/ o recorte equivalente para a mulher é a representa e ao seu interlocutor
relação sexo e capacidade oe pensar (nos moldes cartesianos). Para / Pêcheux diz que o fato de pertencer a uma ou outra formação
se verificar isso basta substituir, nos exemplos citados, "trabalha bem" discursiva muda o sentido de uma palavra. Tomemos, por exemplo, a
por "pensa" e "preto" por "mulher". Eles se recobrem exatamente. palavra "necessidade": no discurso do patrão e no do empregado têm
O recorte em relação a sexo-trabalho não se faz exatamente como sentidos diferentes. Eu poderia dizer que essa é uma visão de fora
para trabalho-cor; tem a sua especificidade. Daí a fecundidade do para dentro (da ideologia para a linguagem). Invertendo agora a
verso de Adélia que permite uma muti,e!icidade de sentidos. Sem es- perpectiva, eu diria - de dentro para fora - que há marcas formais
quermos que no texto de Adélia háa inda um advérbio "exatamente" que caracterizam as formações discursivas/
que carrega o texto de outros efeitos de sentido.
/ Na relação entre o dito e o não dito, quando pensamos certas
Então, o que se pode verificar em relação à argumentação é que paráfrases, podemos vy aí o mecanismo de diferenciação interna das
a orientação da argumentação, isto é, os resultados para que aponta formações discursivas
- que chamo de dimensão pragmática da argumentação, ou seja,
em (9) e -( 1O) o preto não consegue o emprego e em ( 11) e (12) ) ssa inversão de perspectivas, isto é, das marcas para a ideologia,
ele consegue - junto às marcas ideológicas lexicais é que podem só me foi possível, em minhas análises, a partir do momento em que
caracterizar formações discursivas distintas entre si. Isto é, a orienta- passei a operar com o conceito de funcionamento discursivo. Elaborei
ção da argumentação e as marcas ideológicas lexicais indicam farma- esse conceito a partir dos princípios teóricos propostos por Pêcheux e
ções discursivas distintas. A argumentação deixada a si mesma não através dele pude empreender uma análise de marcas formais que me
o faria. remetessem à formação ideológica. Nesse sentido considero relevante
para qualquer análise de discurso a observação disso que chamo seu
Por outro lado, a diferença entre (9) e (10) é uma diferença funcionamento/
de funcionamento discursivo que resulta em uma diferença de estilo:
Isso porque a progressão do texto em ( 9) e em ( 10) é diferente. E / O funcionamento discursivo - segundo a definição estabelecida
aí entram em consideração dois conceitos: o de texto como unidade na análise sobre o discurso da história acima referido - é a atividade
de significação e o fato que se deve contar com as condições de pro- estruturante de um discurso .determinado'. po_r um falante, ?eterp inado,
dução. Se, nó outro, caso, a argume11tação é vista em relação à distin- para um interlocutor determmado, com fmahdades espec1f1casf
ção das formações discursivas, aqui\ a Formação Discursiva (FD) é
vista sob o seu aspecto interno, o da progressão do texto em uma
j Em um discurso, então, não só se representam os interlocutores,
mas tamb~m a relação que eles m~ntêm com ª. for~açã~ ideológica.
direção: há marcas formais que apontam uma direção, no texto, e E isto esta marcado no e pelo func10namento d1scurs1vo.f

124 125
j 4) Carlos Yogt e Iara Frateschi, (1978), mostram que o inter- há traços retóricos - sintáticos e semanticos - que caracrenzam a
locutor pode estar representado coni.o "espelho" ou corno "abismo" : antecipação no discurso. Às vezes, explicitamente: "você vai pensar
"No primeiro caso o narrador assimila a imagem do interlocutor à sua que sou indiscreta" Ia (Ib( a) ) 2 • Outras vezes não aparece explicita-
própria .. . "r; "No segundo caso, o Outro é o pólo: nada pode ser mente, mas resutla no que denominei estilo.
omitido . .. " .
Ju diria, nessa direção, que, para o locutor, o seu interlocutor ou
concorda ou não concorda com ele (ou é seu cúmplice ou seu adver-
Então, a antecipação diz respeito a um mecanismo mais com-
plexo que o de discordar e concordar .Quando digo que o locutor
supõe o que o outro vai pensar, estou dizendo, em termos discursivos,
sário) ; daí a posição do locutor ser a de influenciar, transformar, que ·o locutor pretende saber a relação existente entre o que o inter-
inculcar, etc. ' locutor vai dizer e o seu. lugar, e isto vai constituir o seu próprio (do
Ít'odo esse mecanismo está assentado no que Pêcheux chama locutor) dizer.
antecipação, que é um processo sobre o qual se funda a estratégia do A antecipação pode dizer respeito à variável locutor, interlocutor
discurso e que é de natureza argumentativa. ou objeto (referente) do discurso. Daí termos :
Pela antecipação, o locutor experimenta o lugar de seu ouvinte,
a. partir de seu próprio lugar 1 : é a maneira como o locutor representa
as representações de seu interlocutor e vice-versa . As variações da
interlocução são definidas pelo funcionamento da instituição que mol-
da o discurso: um sermão,r a conversa, urna exposição, são dife- A dominância de um tipo de variável em termos de imagem ·-
rentes desse ponto de vista.
Ib (a) ou Ib(b) ou Ib(r) - é que vai determinar os usos argumen,..,\
f:.,lém disso, importa notar que o mecanismo de respostas é afeta- tativos do locutor.
do pelas antecipações. Há "decisões antecipadoras" do locutor, sancio-
nadas pelos valores que precedem as eventuais respostas do ii:terlo-
f Isso tudo é ainda sobredeterminado pelo tipo de discurso : auto-
ritário, polêmico ou lúdico. Não escolho formas lingüísticas no vazio,
cutor. Como resposta, o ouvinte pode apoiar ou bloquear ~[ discurso
por intervenções diretas ou indiretas, verbais ou não verbais Jf mas porque quero estabelecer esta ou aquela relação - lúdica, polê-
mica, autoritária - com meu interlocutor.
/ A antecipação do que o outro vai pensar é constitutiva do dis-
curso, a nível das formações imaginárias. Ainda retomando Pêcheux, Portanto, caracterizam esse procedimento argumentativo de an-
gostaríamos de acrescentar que a antecipação lida com a distância, tecipação a posição do locutor, a do interlocutor assim como o tipo
presumida pelo locutor, entre ele e . seu interlocutor : "assim se en- de relação de interlocução estabelecida, segundo o tipo de discurso/
contram formalmente diferenciados os discursos em que se trata para
A diferença produzida pela argumenta_ção em relação à estratégia
o orador de transformar o ouvinte (tentativa de persuasão, por exem- de discurso que fundamenta a antecipação é que, a nosso ver, é do
plo) e aqueles em que o orador e seu ouvinte se identificam (fenômejl.O
funcionamento discursivo e vai concorrer - além dos outros proces-
de cumplicidade cultural, "piscar de olhos" manifestando acordo) J E
sos - para a caracterização dos diferentes estilos. A diferença entre
1. Uma visão funcionalista recente da sintaxe (estrita) explica que a ordena- ( 9) e (1 O) é dessa natureza, isto é, é diferença de estilo: textos produ-
ção - S-V-0 - é determinada, nas línguas naturais, pela percepção optimal, zidos na direção apontada por ( 9) ou ( 1O) são textos diferentes quan-
o produtor concebendo o interlocutor antecipadamente. As regularidades to ao estilo, e refletem uma relação específica de interlocução.
são cristalizações desse procedimento de antecipação. Segundo Cláudia Le-
mos, isso pode ser visto em autores como D . I. Slobin ("The Repeated
Pattern between Transparency and Opacity in Language") e T. Vennemann 2. 1 = imagem, a = locutor, b = ouvinte; r = referente.
( 1973 ), "Explanation in Syntax'', em Kimball, ed ., Syntax and Semantics, la(lb(a)) = imagem que o locutor faz da imagem que o ouvinte faz do
vol. 2, New York Academic Press. locutor.

126 127
Os exemplos ( 13) e ( 14) estão relacionados, respectivamente, / O mecanismo da argumentação, visto do ponto de vista que aqui
com os exemplos (9) e (11) através de uma modificação na ordem. · proponho, resulta numa diferença do funcionamento discursivo, como
Essa modificação acarreta uma diferença na argumentação que se deve dissemos, e essa diferença, mostra o jogo da interação, de interlocução,
ao mecanismo da topicalização. Em ( 13) o argumento mantido é o no texto.
tópico, e em ( 9), não é. A mesma relação existindo entre ( 14) e ( 11). A relação entre o mecanismo da argumentação e a distinção de
Por outro lado, há uma relação entre ( 13) e ( 1O) que também formações discursivas é complexa. Não é uma relação unívoca: dife-
decorre desse mecanismo de topicalização: em ( 13) o argumento renças nos meca.nismos de argumentação não instauram automatica-
negado é o tópico e em (10) o argumento mantido é o tópico. Fora mente diferentes formações discursivas. A argumentação pode, ao
essa diferença, ( 13) e ( 1O) se equivalem argumentativamente. A contrário, servir para manter a relação com a mesma formação
mesma relação existe entre ( 14) e (12) . discursiva, dando-lhe apenas uma outra dinâmica interna. "Renova"
Essas diferenças, do ponto de vista de minha análise, se inscre- argumentos para reforçar a mesma configur~ção ideológica. Nesse
veriam entre as diferenças estilísticas. Eu diria, então, que certos caso, não instaura outra formação discursiva. /
'efeitos de sentido - e que são de natureza estilística - derivam do 5) Gostaria de fazer ainda úma outra observação. Trata-se do
jogo entre tópico e argumentação. fato de, ao falar na antecipação, isso ser entendido como o processo
f sse jogo se faz sob a' forma da co-ocorrência, isto é, o meca- que permite a tirania do ouvinte, a dominância do interlocutor como é
nismo, ou melhor, a estruturação de processos semânticos de topi- visto pela retórica. Não vejo assim essa coisah,ml ermos de discurso,
calização e de argumentação são da mesma ordem e não se excj uem, o que vejo é realmente um processo de interaçãf- ,
ao contrário, convergem para produzir certos efeitos de sentido!i'
Indo mais longe, podemos dizer que topicalizar é argumentar,
/o mecanismo da antecipação coloca o ouvinte como constitutivo
mas não desvaloriza com isso o papel (e a posição) do locutor; acre-
se pensarmos ambos como representando formas de interação entre dito, antes, em momentos diferentes d~ mesmo processo. O locutor
interlocutores. está impregnado do ouvinte e vice-versa/ J e um dos pólos vejo o outro.
(''O!';;\ Oqueemantl
, 'dº~nãoétópico
i tópico / Nesse ponto, me distanciaria das metáforas de espelho e abismo
(13) - (9) e (14) - (11)
@,{ e proporia o paralelo com as chamadas tragédias do destino duptr/-
por exemplo a Antígone - em que se apresentam duas consumações
, . é mantido
( 13) _ (1 O) e (14) - (12) @ @ Top1co~ é negado - no caso, a de Antígone e a de .Creonte. Há um sentido de totali-
dade que amarra os dois personagens de tal man~ira que só a consu-
Então, em A pode-se tomar como ponto de vista a argumenta- mação dos dois destinos instaura a necessidade trágica: a condenação
ção e acrescentar-se que o argumento que é mantido é tópico ou não ue Antígone e a queda de Creonte estão indissoluvelmente ligadas.
€ ·tópico. Em B, pode-se tomar como ponto de vista o tópico e acres- Continuando o paralelo, podemos dizer que nessa tragédia, e nas
centar que este ou ~ mantido ou é negado. de destino duplo em geral, a razão de Antígone, em ação, justifica o seu
~ / são, de forma geral, três coisas que presidem a argumentação em contrário, Creonte. E a razão de Creonte, em ação, justifica o seu con-
termos de discurso: relação de forças (lugares "sociais" e posição rela- . trário, Antígone. Isto porque cada µma delas é parcial em relação ao
tiva no discurso), relação de sentido (o "coro de vozes" em um dizer; centro comum que seria a substância que está cindida nas duas ordens
a relação que existe entre os vários discursos) e a antecipação (que de razão. Nesse processo de bipolarização contraditória, estamos
examinamos mais detidamente neste trabalho) . Esses fatores derivam sempre no movimento que vai de Antígone para Creonte e de Creonte
das condições de produção do discurso, constituindo formações ima- para Antígone. Nem sequer podemos dizer que haja um debate : cada
ginárias. 1 um é absoluto em sua esfera, eles não discutem suas razões, nem

128 129
negam as razões, do outro. Eles persistem em si mesmos, por isso se A tipologia que propusemos deriva de considerações sobre a
limitam. Nem por isso deixa de haver progressão. E é o todo que enunciação, ou seja, da interação entre locutor e ouvinte,1 .ua relação
nos dá essa progressão para um fim obscuro 3 . com o objeto de discurso e, através dele, com o mundo Pois bem,
os tipos de discurso que consideramos são cristalizações e funciona-
Voltemos agora para o processo de interlocução, visto pela pers-
mentos discursivos distintos: o discurso lúdico, o autoritário e o polê-
pectiva de discurso. Creio que há em relação aos personage~s do mico. Um critério importante para o reconhecimento desses tipos é a
discurso também essa bipolaridade contraditória: há uma umdade reversibilidade, isto é, a troca de papéis entre locutor e ouvinte: o
que se revela na situação recíproca dos dois e na sua relação ~om discurso autoritário procura estancar a reversibilidade, o lúdico vive
um "ponto comum". Esse centro comum não é algo estabelecido, dela e no polêmico a reversibilidade se dá sob condiçõei' Em resumo,
cristalizado, é o que se dá (faz) no processo de interação, é o texto pois, são essas as formas da interação na interlocuçã7
visto como processo de significação e não seria, pois, como o visto na
Tipo, então, enquanto cristalização de funcionamento discursivo,
tragédia, uma substância. é · "uma configuração de traços formais associados a um efeito de
-/3,m suma, não se trata de pender nem para o lado do loc~tor, sentido caracterizando a atitude do locutor face a seu discurso e atra-
nem para o do ouvinte, mas perceber sua inter-relação. Resta .ainda vés desse face ao destinatário" (J. M. Marandin, 1979).
a observar que o que vai contar não é a i~agem ~o ou~r~ - p sicolo- /oi a partir dessa definição que procurei construir a tipologia que
gizante - mas a do lugar do outro no discurso (ideologica)/ considero mais fecunda para a reflexão acerca do discurso como o
6/ Retomando a análise das diferenças através da . paráfrase e concebo, isto é, lugar social, espaço particular entre o individual e o
universal, logo, lugar de debate, de confronto. Interação. Desloquei,
da caracterização dos múltiplos tipos de diferença, falta-nos explicitar
entretanto, naquela definição de tipo, o que se refere à "atitude do lo-
o lugar da tipologia nisso tudo. cutor face ao destinatário ... ". Do meu ponto de vista é a relação de
Para nós, todo esse funcionamento discursivo está atravessado interlocução enquanto interação que deve ser considerada e é ela a base
pela tipologia. Sobredeterminado por ela. Então, essas ~arcas ~starão da tipologia que propus. Mais do que na enunciação, a tipologia que
determinadas pela atividade estruturante, que determma o tipo de proponho tem base na relação da formação discursiva com a ideo-
relação: autoritária, polêmica ou lúdica. Isso, no entanto, não é um lógica. /
dado anterior. :É o que se trata de definir na própria relação de inter- De toda forma, o que pensamos é que qualquer que seja a
locução. Quando se estabelece uma relação de interlocução, se propõe, orientação da argumentação, ela tem de se estabelecer segundo os
mas não se define a priori se isso é uma brincadeira, uma discussão ou tipos de discurso como os descrevemos mais acima. E isso é uma ma-
é uma "ordem". E aí está o conflito, o debate que determina toda nifestação do que chamo de sobredeterminação da tipologia e afetará
forma de interação verbal 4 • A escolha de um "mas" ou de um "embo- a argumentação.
ra" de uma "explicativa" ou de um "adjunto" depende dessa atividade (7) Em relação à argumentação podemos, enfim, dizer que ela
tipificante que se constitui a partir das condições de produção. / concorre para a distinção de estilos e de formações discursivas, mas
Retomando o que já desenvolvemos, em outros trabalhos, acerca não é o único mecanismo que o faz, isto é, o conceito de funciona-
de tipologia, procuraremos esclarecer melhor o que pretendemos com mento discursivo é, do meu ponto de vista, mais amplo do que o de
a sobredeterminação atribuída ao processo tipológico. argumentação. /
lém disso, há, como dissemos acima, a sobredeterminação, em
3. Essas observações são o resultado de um trabalho que fiz quando alu~a
do prof. J. Cavalcante de Souza, na área complementar do curso de pos- relação a todos esses mecanismos, da atividade estruturante que cha-
graduação na USP em 1975. mamos tipologia do discurso e que se constitui em qualquer funcio-
4. O tipo é, por assim dizer, "negociado". namento discursivo./

130 131
f>Enfim, podemos afirmar que essas considerações
vem no que Pêcheux (1975) chama de semântica discursiva. Por aí
inscre- s~ 9) Por fim, podemos fazer uma generalização em relação à tipo-
logia. A forma como defino tipo e sua relação com o funcíonamento
podemos procurar entender melhor a relação do trabalho analítico com discursivo permite dizer que, assim como construímos a tipologia que
a operacionalização de conceitos tais como formação discursiva, for- distingue discurso autoritário, lúdico e polêmico, uma vez que privi-
mação ideológica, condições de produção/ · legiamos um certo tipo de relações, assim também podemos entender
1/A formação discursiva é caracterizada pelas marcas estilísticas outras tipologias sob esse aspecto.
e tipológicas que se constituem na relação da linguagem com as con- /funtão a distinção entre narração, dissertação, descrição pode ser
dições de produção. De outro lado, podemos dizer que o que define vista como derivando de diferentes relações de interlocução também.
a formação discursiva é sua relação com a formação ideológica. O mesmo se dando com a tipologia que distingue discurso teórico,
Assim, podemos Pf rceber como se faz a relação das marcas formais científico, político, jornalístico, jurídico, etc.
com o ideológico ..(Podemos fazer o percurso nos dois sentidos: o que
Toda tipologia, então, pode ser vista como tendo a relação de
vai do ideológico para as marcas formais ou destas para aquele. Isso
interlocução, isto é, a interação falante-ouvinte, como básica para o
só é posível, entretanto, mantendo-se o conceito de Formação Dis-
reconhecimento das configurações de traços formais que a caracteri-
cursiva como mediador.
zam. O que as distingue entre si, do meu ponto de vista, é algo que
FUNCIONAMENTO DISCURSIVO
tem a ver com / caracterização social dessas relações enquanto rela-
ções simbólica~. Mas essa é uma outra história que espero contar em
Marcas formais Delimitações uma outra vez.

1 -·
-!, -!, 1
Funcionamento BIBLIOGRAFIA
discursivo:
Condições tipologia e estilo FD FI GERALDI, W. - "Notas para uma tipologia lingüística dos Períodos Hipotéti-
de ~ (argumentação, ~· Formação ~ Formação cos", Série Estudos 7, Uberaba, 1981.
Produção registro, Discursiva Ideológica GUESPIN, A. - Langages, n. 0 23 , Larousse, Paris, 1971.
indeterminação ou GUIMARÃES, E. - "A litotes: uma abordagem conversacional", Anais III,
determinação, etc.) ticà, Rio, 1980.
- - -- -. "Argumentação e ·Pressuposto", Encontro Nacional de Lingüís-
Mediação -- 1 Lingüística, Rio, 1980.
----~. "Algumas considerações sobre a conjunção embora", Série Es-
tudos 7, Uberaba, 1981.
O percurso pode ser feito nos dois sentidos e isto, metodologi-
LABOV, W. - Sociolinguistique, Minuit, Paris, 1976.
camente, corresponde a um procedimento que tem implicações fortes MARANDIN, J. M. - "Problêmes de l'Analyse du Discours. Essai de Descrip-
para a análise e a teoria do discurso: esse percurso f(!ito nos dois tion Du Discours Français sur la Chine'', Langages, n. 0 55, Larousse,
sentidos, ou melhor, as duas visões - de dentro para fora e vice- Paris, 1979.
versa - são complementares, isto é, delimito ci conjunto de marcas ORLANDI, E. - "Protagonistas do/ no Discurso", !976, posteriormente publica-
do na Série Estudos 4, Uberaba, (p. 32), 1978.
pertinentes, relevantes para uma formação discursiva, pela visão de . Pí?.CHEUX, M. - Analyse A utomatique du Discours, Dunod, Paris, (p. 16) ,
fora para dentro e, ao mesmo tempo, · descrevo as marcas que vão 1969.
caracterizar as formações discursivas, de dentro para fora, analisando PÊCHEUX, M. et alii _: "Analyse du Discours, Langue et Idéologie", Langages,
o funcionamento discursivo ( cf. a distinção entre marcas e proprie- n.0 37, Paris, 1975.
PRADO, A. - O Coração Disparado, Coleção Poeisis, Nova Fronteira, Rio de
dades, pp. 244/245) . Janeiro, 1977.
/De um lado, as marcas são definidas pela sua relação com a VOGT, C. & FRATESCHI, T. - "Funções do narratário nas narrativas orais de
ideologia; de outro, derivam das condições de produção do discurso. · experiênda pessoal'', Estudos Lingiiísticos, 2, GEL, 1978.
VOGT, C. - Linguagem Pragmática e Ideologia, H ucitec, São Paulo, 1980.

132
133
O SENTIDO DOMINANTE: A LITERALIDADE
COMO PRODUTO DA HISTÓRIA *

"O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber"
(G. Rosa, Tutaméia)

INTRODUÇÃO

/Háescolhas que determinam a forma que tem uma situação de


linguagem: uma mesa-redonda, uma exposição, uma palestra, uma
conversa, discussões, etc;f
Nas situações acadêmicas, tem-me parecido que o não dito, isto
é, a margem do dizer que é constituída pela relação com o que foi
dito, é que acaba sendo mais fecunda. Porque faz parte da incomple-
tude e se faz desejo. Ainda em volta disso, eu diria que, mesmo na
eiência, o prazer de dizer tudo não chega aos pés do desejo de
compreender um pouco. Jogo perigoso entre o dizer e o compreender.
Mas que longe da exigência formal eu me dou o direito de jogar.
O móvel inicial desse trabalho foram algumas reflexões acerca de
uma mesa-redonda sobre tópico que me deixou muita coisa a refletir.
Como discordância e como concordância. Assim, essa é uma intro-
dução para dizer alguma coisa sobre o que se tem dito sobre tópico 1 .

>1<Essa é a versão original e reduzida de um trabalho que, mais desenvolvido,


foi apresentado no Encontro Nacional de Lingüística da PUC-Rio de Ja-
neiro (1981). Pareceu-me mais adequada esta primeira versão para esta pu-
blicação, poi·s é a que está na base de outros dos meus trabalhos como o de
"Tipologia e regras conversacionais'', por exemplo.
1 . Não se trata, entretanto, de mero acaso, essa escolha. Parte, · antes da
minha curiosidade pelo que se tem chamado "criação" na linguagem e
parte também da reflexão sobre o excelente trabalho de Eunice Pontes, "Da
Importância do Tópico em Português". Da mesa-redonda, a respeito de
tópico e comentário, participaram Eunice Pontes, Luiz Carlos Cagliari e
Eduardo Guimarães. Gostaria de esclarecer que as críticas que faço ao

135
Mais especialmente, me proponho a comentar o compromisso Podemos, a partir deles, distinguir criatividade e produtividade.
ideológico que se assume com diferentes teorias da linguagem no
tratamento desses fenômenos lingüísticos. O que estou chamando de
/A criação, em sua dimensão técnica, é reiteração de processos
já cristalizados pelas instituições. Toma já de início, a linguagem como
compromisso ideológico é o fato de, mesmo ao se criticar uma teoria produto. Segundo o que eu disse, então, essa "criatividade" mantém ·
da linguagem, na verdade estar-se reproduzindo seus pressupostos o homem num retorno constante a um mesmo espaço dizível: a pará-
quando se opera com os fatos. A nível crítico - explícito - se recusa frase . A isso se pode chamar produtividade./
a teoria mas se a reabsorve a nível de análise, implicitamente.
Mas a paráfrase convive em tensão constante com outro pro-
Em relação à noção de tópico, eu perguntaria: não se está seg- cessb : a polissemia. A polissemia desloca o "mesmo" e aponta para
mentando tópico ao modo como se segmenta Sujeito/Predicado, ainda a ruptura, para a criatividade: presença da relação homem-mundo,
que sob a luz da pragmática? intromissão da prática na/ da linguagem, conflito entre o produto, o
Para falar disso ficarei em torno de dois pretextos: o da natureza institucionalizado, e o que tem de se instituir. :É o que pode ser visto
do recorte e o da abrangência da análise. por um estudo da linguagem que se volte para o uso, para o IJ."ocesso,
para a interação. A tensão constante com o que poderia seT
jA1gumas considerações que estão na base das reflexões que pro-
curarei expor têm sua origem na definição de Foco de Sgall (197 5). IA paráfrase é considerada, na lingüística, co~o a "matriz do
Segundo esta definição, há no discurso informações novas que se sentido". Segundo nossa perspectiva, a polissemia é a "fonte do sen-
apoiam J m conhecimentos anteriores partilhados · pelos agentes do tido" uma vez que é a própria condição de existência da linguagem.
discurso Se o sentido não fosse múltiplo não haveria necessidade do dizer.
Matriz ou fonte de sentido, o importante é que esses dois processos são
A análise do discurso, ao definir o dizer como efeito de sentidos igualmente atuantes, são igualmente determinantes para o funciona-
entre locutores, desloca a importância atribuída à inform~ção. :f: o mento da linguagem/
que passaremos a expor, em seguida, problematizando essa definição
de foco. / Os modelos que levam em conta o social podem atingir essa
mc(dulação de linguagem: sua expansão e sua contensão. A polissemia
é regulada, ou melhor, polissemia e' paráfrase se limitam reciproca-
DOIS PROCESSOS: A POLISSEMIA E A PARÁFRASE mente. E, a meu ver, os modelos que lidam com essa modulação são
os que levam em conta o social, ou l'eja, os que fazem o percurso da ·
/!:e acordo com a perspectiva da análise de discurso, é criticável linguagem e72 sua prática: os modelos funcionalistas e os de análise
o modo de se considerar a linguagem, ou como produtora (e o mundo de discurso/ Pragmáticos.
é dado) ou como produto (e a linguagem é dada). Pode-se, então, 6 uando tratamos do problema do "novo" e do "dado" em lin-
optar por uma forma de considerar a linguagem no momento de sua güística, a distinção dos modelos que fazem o percurso linguagem-
existência como tal, ou seja, justamente como discurso. Nesse caso, ociedade em relação aos que fazem o seu percurso transitando entre
pode-se observar sua dinâmica através do jogo qué existe entre os seus linguagem-pensamento 2 vem à tona necessariamente. Por exemplo,
processos de constituição. De nossa ; arte, destacamos dois desses veja-se o "novo" que é gerado, na ·Gramática Transformacional, a
processos: a polissemia e a paráfrase. partir das regras recursivas: a produção de um número infinito de
frases. Além disso, mesmo nos modelos em que se trata de considerar
modo como se segmenta tópico-comentário nasce antes da fecundidade do us funções da linguagem, em seu conjunto, não há garantias de que
trabalho da: Eunice. Preocupou-me, isso sim, a discussão possível a res-
peito da progressão do discurso e das retomadas e repetições que subjazem 2 . Benveniste, quando coloca, como propriedade fundamental da linguagem,
às noções de Tópico e Comentário. E é esse ponto específico que aqui a constituição da subjetividade, parece considerar a linguagem de um nível
discuto, na perspectiva da análise de discurso, que assumo. em que esses dois percursos não se excluem, ao contrário, se conjugam.

136 137
'1 novo, nessa perspectiva, não é. exclusividade do foco nem
/ se esteja utilizando o mesmo conceito de "novo". Daí a necessidade,
a meu ver, de disting~ir criatividade e produtividade e de se situar a · precisa ter um lugar em um segmento da linguagem. É intervalar. É
relação entre o processo parafrástico e ? polissêmico, isto .é, considerar o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciados ef eti-
a relação entre o mesmo e o diferente( vamente realizados. Esta margem, este intervalo não é um vazio, é o
espaço configurado pelo social. Efeito de sentido. Multiplicidadet '

A NATUREZA DO CONHECIMENTO
E O CONCEITO DE INFORMAÇÃO O TEXTO E OS RECORTES:
A LINGUAGEM COMO INCOMPLETUDE
j Os estudos que não consideram as con~ições de !'rod_:ição d?
discurso não se dão conta de que os conhecimentos nao sao parti- Á ois bem, é ainda essa mesma noção de informação - factual
lhados pelos agentes do discurso mas sim que esses conhecimentos e mensurável -- que vejo presente nas considerações sobre tópico e
são socialmente distribuídos / Os agentes. do discurso - que são ~u~ei­ comentário quando se fala sobre a delimitação do tópico (em relação
tos que têm seus lugares n-ã ordem social - podem ocupar pos1çoes a suas marcas sintáticas, semânticas) e sobre o encadeamento do
diferentes, e mesmo polêmicas, dentro de formações discursivas di- discurso (em que se ~oloca o tópico em relação com aquilo que é
ferentes(
Quanto à natureza desses conhecimentos (Ponzio, 197 4), pode-se
da sintaxe transformacional, diria que
a forma do segmentai, do informativo
J
retomado ou repetido). b nesse sentido que, embora críticos à teoria
está pres~nte na .análise sob
. .
distinguir entre saber (técnico) e conhecimento (domínio teórico) o
que nos permite delimitar melhor· o conceito de informação nova. f A ultrapassagem desse nível segmentai, caudatário do distribu-
Além disso, é preciso se considerar o lugar social dos interlocutores. cidnalismo, se faz considerando-se que a unidade de significação é
o texto./ .
fo falante "sabe" a sua língua mas nem sempre tem o "conheci-
mento" do seu dizer : o que diz (ou compreende) tem relação com o t en~o a noção de texto que estamos colocando · como nuclear
seu lugar, isto é, com as condições de produção de seu discurso, com para a operacionalização dos conceitos, em termos de análise dis-

cursil~ravés
a dinâmica de interação que estabelece na ordem social em que ele
vive. Lu~ar, aliás, que é o lugar próprio para se observar aquele dessa noção, entendida como unidade diferente, em
que fala.f .
natuf:za, da soma de frases - como conceito que acolhe o processo
~ A partir da consideração do lugar social dos interlocutores, pode- de interação e a relação com o mundo pela (e na) linguagem - nos
mos dizer que os conhecimentos podem ser "comuns" mas não "iguais". instalamos no domínio da significação como multiplicidade (polisse-
Há desigualdade na distribuição dos conhecimentos, não há partilha. mia, efeito de sentidos) e não como linearidade informativa!
Essa desigualdade é jogada na interlocução.
Duas passagens se fazem: em termos de operação, a passagem
Há um jogo entre explícito e implícito que instaura aquilo que se da segmentação para o recorte; em termos de unidades, a passagem da
pode considerar como conhecimento 11tribuído por(a) um ou outros frase para o texto.
inteilocutor. Não é um dado, é uma construção.
Deixa-se o domínio da distribuição de segmentos por uma bem
Então, a noção de informação nova, aquela que é gramaticalmen-
menos "objetiva" (positiva) relação de partes com o todo. E aí se
te explícita, que revela a intenção de comunicação do locutor, fica define o "recorte".
circunscrita àquilo que, no lingüístico, é factual e mensurável. E o que
interessa, quando pensamos o discurso, é a possibilidade dos múlti- ~ recorte é uma unidade discursiva: fragmento correlacionado
plos sentidos e não a informação factual e mensurável. V de linguagem - e - situação.

138 139
/ ..
sob a forma da interação social, como a colocamos. Principalmente,
texto é o todo que orgarúza os recortes. E esse todo tem com-
o que quero ressaltar é que com essa idéia de incompletude apaga-se,
promisso com as tais condições de produção, com a situação dis-
em relação aos turnos, o limite que separa o meu dizer e o do o.utro.
cursiva. Essa situação instaura um espaço entre enunciados efetiva-
Não vejo essa coisa como algo linear e cronológico: alguém fala, eu
mente realizados, espaço que, como dissemos mais acima, não é vazio retomo e completo, o outro retoma e completa, etc. ão recortes feitos
mas social (inter acional) ./ de maneira bem menos organizada e linear. O espaço e tempo da lin-
A idéia de recorte remete à noção de polissemia e não à de in- guagem so/' outros. É nisso que os modelos tropeçam com sua segmen-
formação. Os recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução, talidade/
aí compreendido um espaço menos imediato, mas também de inter- Um exemplo do problema do recorte foi-me dado por uma orien-
locução, que é o da Jdeologia. tanda 3 que me relatou a dificuldade que teve em fazer o recorte 4 que
Assim, não há por que partir de modelos que segmentem ao estabelece o "tópico" na seguinte situação: ela queria saber,/ de uma
estilo de modelos formais (S-V-0 ou S-P ou SN-SV). As retomadas amiga, acerca de um livro que teria sido dado a essa amiga. No
e repetições também nada têm a ver com esse esquema. Essa maneira en.tanto, como ela só sabia o nom~ do livro mas não sabia ao certo
de tratar o tópico seria a que sobrepõe esquemas de Tópico-Comentá- quem o teria dado nem se o livro teria sido dado para essa amiga
rio (T-C) a esquemas de Sujeito-Predicado (S-P) mas não os ultra- mesmo, colocava-se o seguinte problemas: começar por onde? Pelo
passa. E a sintaxe - se se fala nela a. essas alturas - não pode ser livr~? (Sabe o livro X?) Pelo nome do amigo? (Sabe o Z?) A 'amiga
uma sintaxe horizontal, linear. Ela é sintaxe de texto, segundo a defi- poderia desconhecer ambos ·e não serviria como apoio para estabe-
nição de texto que propusemos mais acima, sendo · pois preciso se lecer o ponto de contato. E aí está, a meu ver, uma das funções impor-
determinar, através dos recortes, como as relações textuais são repre- tantes do tópico: estabelecer um começo, um ·lugar na incompletude.
sentadas. E, certamente, não será uma extensão da sintaxe da frase. J,sse lugar pode ser qualquer um e isso é "negociado", para se usar
f um termo muito usada; quando se fala em interação. Para mim, mais
Voltando ao problema do que é retomado, em termos de tópico e do que negociação, é confronto, é reconhecimento, é jogo de inter-
comentário, quero acrescentar que os recortes que se faz são determi-
nados por muita coisa mais que a frase que foi dita antes e tem
subjetividade e pode até mesmo chegar a ser disputa (conflito j
pouco a ver com o esquema ·Sintático SN-SV. O recorte é pedaço. Não
é segmento mensurável em sua linearidade. A ESTRUTURAÇÃO DOS PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO
E OUTROS CONCEITOS AFINS
Exemplo:
X: Maria apanha do marido. Procurando, de forma ainda superficial, estabelecer uma relação
Y: As mulheres, elas ainda vão ter de lutar muito para mudar entre essas unidades distintas, poderia dizer que não há, mesmo dessa
perspectiva, oposição entre conceitos tais como Sujeito-Predicado e
um pouco essa herança histórica. Tópico-Comentário, etc. Se tomarmos tanto o S-P como o T~C em
~· que foi ·retomado? Que conhecimentos são partilhados? Que relação às condições de produção da linguagem, eles se definem como
informação "nova" está aí? I estruturação de processos de significação distintos, mas que são da
Não há algo dado, ao qual acrescento, quando retomo. Penso 3 . Maria Augusta de Matos Bastos, na preparação de uma tese no domínio do
que a incompletude é a condição da linguagem. Não adianta querer discurso pedagógico. Agradeço a ela a oportunidade do exemplo.
4. Maria Fausta Castro· Campos, em uma mesa-redonda sobre Representação
estancá-la em compartimentos que se preenchem a cada turno da e Ling'uagem, em dezembro de 1980, organizada pelo CLE UNICAMP,
interlocução. Acho mais interessante a proposta da Gestalt que vê apresentou um trabalho chamado Linguagem, Operação e Representação
nisso o jogo do todo e partes, de fundo e forma. Acredito, no entanto, onde, falando sobre princípios estruturantes da construção de justificativas,
fala dos recortes em relação aos elos de cadeias causais.
que não é suficiente falar em todo e partes. É preciso ver esse jogo
141
140
mesma ordem e não são exclusivos. O que há é o jogo de um processo ~ o problema da estruturação de processos que nos remete ao
em relação aos outros. O problema se dá quando se privilegia o con- problema da segmentação ou do recorte. É nesse nível que vejo loca-
ceito de informação, por exemplo, e se hierarquiza sintático e pragmá- lizada a relação do sintático e do pragmático.
tico. Aí, embora teoricamente distintos, na delimitação das marcas
formais acaba havendo sobreposição do sintático ao pragmático, o que, Essa distinção de níveis, tais c9mo especifico acima, não fecha
do meu ponto de vista, é redutor. cada nível em si mesmo: não se pode verificar a estruturação de um
processo semântico sem se pensar o próprio processo semântico, e
Além disso, o jogo entre processos semânticos distintos não tem sem pensar o mecanis1tío semântico geral d,a linguagem.
. 1
de ter necessariamente a forma de dominância. Em relação à articula-
ção do tópico e comentário, penso que não há necessariamente domi- Por outro lado, ·S(\ ,tomo, por exemplo, a sintaxe, também terei
nância do processo T-C sobre o de Argumentação e vice-versa. Para o mecanis.m~ .sint, 'tico, 0 processo si'Iltático e a estruturação do
mim, são "processos" de mesma natureza e que se misturam, podendo processo smtatlco.
co-ocorrer ou não, produzindo um certo efeito de sentido. .Úostaria ainda de acrescentar que, tal como se tem estabelecido
Com isso não pretendo dizer que não possa hàver dominância de nos Ístudos da linguagem, no domínio semântico, a paráfrase é o
certos processos sobre outros, dadas certas circunstâncias. Mais ainda, conceito dominante da lingüística segmentai, enquanto a polissemia
diria que esse jogo de dominância pode explicar muitos mecanismos estaria mais ligat a uma lingüísticá de recortes e de texto (como o
gerais da linguagem. Eu mesma, mais adiante, lançarei m§o desse definimos a~im.a) ~aí ~s estudos de paráfrase se revestirem sempre de
jogo de dominância para situar o problema da multiplicidade de sen- um certo dtstnb ctonahsmo e de ser a prova de comutação a mais
. tidos. No entanto, parece-me, não é o caso quando se trata da arti- usada no estruturalismo fonológico e sintático, e também a que de-
culação entre tópico e argumentação, como acabo de observar. Para monstra maior fragilidade nos estudos da significação. f
mim, T-C e Argumentação devem compor um outro nível de meca-
Portanto, quanto ao conceito de recorte, em relação ao de seg-
nismo mais geral que, este sim, deve-se articular em termos de domi-
mentação, creio ter localizado a manipulação teórica desses conceitos
nância com outro mecanismo. No nível específico do T-C ·e Argumen-
(operatórios) em relação a teorias que privilegiam a informação, a
tação creio que o que há é uma relação de combinação, de composição
e não de dominância. Não alternam, co-ocorrem. função representativa da linguagem, privilegiando assim o percurso
psíquico - linguagem/pensamento - em detrimento de outros per-
G::reio que se está usando indiferentemente certos termos que se cursos (linguagem/ sociedade), de outras funções (expressiva, fática,
devicAfi distinguir segundo níveis teóricos. Teríamos, então, a seguinte etc.), de outras operações (recoites, etc.). É assim que se tem privi-
distinçao:
legiado um aspecto do sintático: o . segmenta!.
Mecanismos semânticos gerais: nesse nível é que devemos pensar
a tipologia, a história, a relação do discursivo e do lingüístico, e outros
que resta determinar. OS SENTIDOS POSSÍVEIS:
Processos semânticos: no presente trabalho considerei um desses 0 PROCESSO, O PRODUTO, A HISTóRIA
processos que seria a relação polissemia e paráfrase; pode-se pensar,
talvez, como processo, a argumentação no sentido retórico e outros · '"través da idéia de recortes - tomando o texto como unidade
processos como as estratégias de relação, 'a textualidade, etc. de significação - recupera-se o conceito de polissemia. Ao se de-cen-
tralizar o conceito de ~nformação, em favor do de interação e de
Estruturação de processos semânticos: Argumentação no se7 ido
confronto de interlocutores no próprio ato de linguagem,. torna-se
restrito (orientação argumentativa), a articulação T-C, S-P, 5 etc '
necessário pensar o sentido em sua pluralidade. Dessa maneira não se
5. Tratei mais explicitamente disso na análise de conjunções enquanto opera- mantém a noção de um sentido literal em relação aos outros sentidos,
dores de discurso, em· "Funcionamento e Discurso". isto é, os efeitos de sentido que se constituiriam no uso da linguagem.

142 14
Não há um centro, que é o sentido literal, e suas margens, que são os ALGUMAS CONSEQüf:NCIAS
efeitos de sentido. Só há margens. Por definição, todos os sentidos
são possíveis e, em certas condições de produção, há a dominância de Se rompemos com a tradição lingüístiça podemos considerar a
um deles. O sentido literal é um efeito discursivo. multiplicidade de sentidos como inerente à linguagem, e considerarmos
básicos os conceitos de interação, de processo constg.utivo e de con-
O que existe, é um sentido dominante que se institucionaliza fronto de interlocutores no próprio ato de linguagem/ Chegamos assim
como produto da história: o "literal". No processo que é a interlo- a algumas coseqüências que passarei a enumerar.
cução, entretanto, os sentidos se recolocam a cada momento, de forma
múltipla e fragmentária. J/. 1 Conseqüência teórica : a literalidade é produto da história. A
teefrÍ; do discurso é a teoria da./1eterminação histórica dos processos
Desse modo, penso revisitar Saussure ( 1962). A relação entre o semânticos (Pêcheux, 1975) 6 ;
sincrônico e o diàcrônico, visto segundo as colocações que fiz, não mais
recorta a de língua e fala. A língua aqui - o sistemático, o institucional b) Conseqüência metodológica : se não é de um sentido nuclear
que derivo os vários sentidos mas. se, ao cont1:o_ário, trata-se de veri-
- é o histórico: é o produto, como quer Saussure, "depósito". A fala é
ficar como, entre os vários sentidos, um (ou mais) se tornou o domi-
o processo, instância de constituição da linguagem. O "princípio de
nante, as regras que servem para derivar sentidos perdem seu valor
classificação" de Saussure fica, assim, deslocado pois tem seu lugar metodológico 7 • Além disso é preciso considerar outras funções, outras ·
no processo, logo, na fala. O que Saussure diz da língua como fato operações na análise da linguagem. Por exemplo, em termos de fun-
social, sempre me pareceu complicar-se em relação aos conceitos de ções, é preciso levar em conta funções como a conativa, a fática, a
sincronia e diacronia. Visto agora esse problema de acordo com os expressiva · como tão importantes (ou mais) do que a cognitiva ou
Cõnceitos de pfõCeS'so e produto, podemos dizer que o deslize, em referencial. Operações como a segmentação e a distribuição perdem
. Saussure, é o que se dá entre o conceito de língua enquanto "princí- sua importância em relação à de recortar seqüências textuais. O per-
pio de clas~ificação" (processo) e o de língua enquanto "instituição" curso psíquico (linguagem/ pensamento) dá lugar para o percurso
(produto)/ A língua é vista, então, de um lado, como atividade consti- social (linguagem/ sociedade) , etc.
tutiva e, de outro, como língua oficial/ O conceito de social, em
c) Conseqüência analítica: parte-se do múltiplo, do observável
Saussure, é que permite esse deslize, porque o social é um social visto
e se procuram as condições que estabelecem a dominância de um ou
como dado, produto, enquanto a fala é vista como individual e não
outro sentido; parte-se, pois, do funcionamento, do uso e não de uma
interacional. fA língua, para Saussure, é um produto social do qual
forma abstrata; faz-se, portanto, como diz Voloshinov (1976), do
exclui o processo de produção, a historicidade, o sujeito. A fala, por
texto (da palavra) o documento fundamental da linguagem
outro lado, é individual, ocasional, histórica mas nada tem de social.
f.ntão, em Saussure, o histórico e o social também estão dicotomiza-
dos, e a nossa posição é a de que não se pode separar o histórico e O ABRANGENTE E O DETALHE
o socialf
p que eu gostaria de propor aqui, então, é o deslocamento de / Não há, or definição, então, um centro e uma margem. Há
multiplicidade E é assim, finalmente, que entendo o processo dis-
conceitos - como língua e fala, sincronia e diacronia - para os de
produto e processo, A relação que existe entre eles é uma relação 6. Observar a lingüística histórica que tem trabalhado no percurso da evolu-
mais complexa do que a que colocamos aqui e deve merecer, na ção, privilegiando as cristalizações. Nesse sentido, a Lingüística Histórica
lingüística, uma atenção especial. Por enquanto, basta-nos lembrar que é a história da língua oficial (idioma histórico) .
7 . Desenvolvi ·esse aspecto, o da multiplicidade, e as conseqüências metodo-
não são estanques mas se intF,rcomunicam sendo parte de uma coisa lógicas da consideração da polissemia como inerente à linguagem, em
só: a produção da linguagemf . "Tipologia de discurso e regras conversacionais", neste volume.

144 145
ORLANDI, E. - "Protagonistas do / no Discurso", Séries_ Estudos 4, pp. 30-41
cursivo, os efeitos de sentido (sem pensar um centro do qual partem,
1978a.
mas como possíveis), as famílias parafrásticas que se formam ao longo
do dizer (na relação do dito/não dito mas que &e poderia dizer). É Pí:CHEUX, M. - Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969.
nesse sentido que vejo a afirmação de que uma análise que leve em - - - - - -. "Mises au Point et Perspectives à PrÓpos de !' Analyse Auto-
conta as condições de produção da linguagem, o processo de interação matique du Discours", Langages, n. 0 37, pp. 7-81, 1975. •
- isto é, a relação de interlocução e a circunstância em que se rea- PONTES, E. - "Da Importância do Tópico em Português, ' comunicação apre-
liza - é uma análise mais abrangente. Logo, não se trata de ana- sentada no V Encontro de Lingüística, Rio de Janeiro.
lisar um maior número de fatos, ou de pegar no foco "explicativo" da
PONZIO, A. - Producción Lingüística y Ideologia Socia l, A. Corazon Ed.,
teoria um maior número de fenômenos . Trata-se de ir mais fundo na Madrid, 1974.
natureza da linguagem. Não há como opor a essa abrangência uma
maior especificidade do estudo em detalhe, aquele que diz sacrificar a SAUSSURE, F. - Cours de Linguistique Générale, Payot, Paris, 1962.
abrangência à especificidade, por exemplo, da sintaxe (em sua relação SGALL, P. - "Conditions of Use of Sentences and a Semantic Representation
com a pragmática). A oposição, tampouco, é a do pormenor em of Topicand Focus", em Formal Semantics of Natural Language, Cam-
relação ao todo - pois eu poderia dizer que trabalho o pormenor bridge, University Press, pp. 297-31 2, 1975.
pensando o todo, posição típica do estruturalismo. Volto a repetir: VOLOSHINOV, V. N . - EL Signo Ideológico y la Filosofia dei La.nguaje,
trata-se da relação entre o ponto de vista e a natureza da linguagem. Nueva-Visión, Buenos Aires, 1976.

Um estudo mais abrangente, a essa altura dos estudos da lingua-


gem, é aquele que vai mais fundo na sua natureza, ou seja, é aquele
que perde menos de sua multiplicidade, sua complexidade. É aquele
que ousa aceitar que não há hierarquias, não há categorias estritas, ou
níveis que possam servir de suporte para explicitar o que não dá para
explicitar, nem simplificar o que não dá para simplificar, ou clarear o
que, por natureza, se faz obscuro .
A idéia de movimento, a de fragmento, a de múltiplo, a de fugaz,
não devem meter medo. E o lingüista não precisa se obrigar a outros
escritos que não sejam ensaio~

BIBLIOGRAFIA

DUCROT, O. ~ La Preuve et le Dire, Mame, Paris, 1973.


GUIMARÃES, E. - "Estratégias de Relação e Estruturação do Texto", Em
ORLANDI, E. et alii, Sobre a Estruturação do Discurso, Campinas, IEL,
UNICAMP, 1981.
GUIMARÃES, E. - 'Tópico-Comentário e Argumentação". Texto inédito apre-
sentado em mesa-redonda no IEL, UNICAMP, da qual participaram Euni-
ce Pontes, Luiz Carlos Cagliari e o autor. 198lb.
HALLIDA Y, M. A. K. - "Language Structure and Language Function'', em
JOHN L YONS, 1970.
LYONS, J. - New Horizons in Linguistics, Penguin Books, London, 1970.

146 147
TIPOLOGIA DE DISCURSO E
REGRAS CONVERSACIONAIS*

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

E, afora este mudar-se cada dia,


outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda mais como soía." .
L. V. Camões

INTRODUÇÃO

De certa forma, pode-se dizer que a lingüística tem tido seus


tropeços. Neste trabalho, partirei de dois deles que, no final, são
apenas um.
a) O primeiro para o qual apontarei - e do qual já tratei de .
passagem em outros textos - é o da lingüística feita a partir do ·
locutor. :b o que se pode ver, por exemplo, em Benveniste (1974 e
1976), em que se trabalha o privilégio do falante, ou seja, a perspecti-
va pela qual se considera o "eu" e o "outro" dá-se pelo enfoque
do "eu".
Não é só de Benveniste essa posição. Ela pode ser vista através
de toda a teoria de enunciação.
Quando se contesta essa posição, que teoriza a dominância
(transcendência, diz Benveniste) do eu sobre o tu (e, em Benveniste,

* Gostaria de agradecer aos· colegas do IEL cuja convivência me tem sido


muito fecunda. Em especial, gostaria de agradecer a Eduardo Guimarães
pela contribuição valiosa na discussão de problemas de semântica e pragmá-
tica, e a Cláudia Lemos cujo trabalho me levou a uma elaboração mais
precisa do conceito de interação. Este texto foi apresentado no Encontro
Internacional de Filosofia da Linguagem, UNICAMP, 1981.

149
do semiótica sobre o semântico), se o faz através da retórica, em da informação. Isto é, de um lado, a partir da representação, pensu-s
que o privilégio agora cai do outro lado, o do ouvinte. E, então, se vê o percurso psíquico da linguagem (relação pensamento/linguagem ) s h
toda manifestação de linguagem através da tirania do tu. o aspecto formal e, de outro lado, do ponto de vista funcional o per-
curso social da linguagem é pensado sob o enfoque da comunicação
Transcendência do eu ou tirania do tu são modos diferentes de enquanto informação.
manter as divisões: semitótica/semântica; intenção/convenção; pro-
dução/ recepção; dizer/ compreender; percurso psíquico/percurso so- Do meu ponto de vista não é tudo essa placidez: há tensão,
cial; representação/ comunicação, etc. confronto, reconhecimento e mesmo conflito na tomada da palavra. Há
tensão entre o texto e o contexto (social, histórico-social). Há tensão
Quando Benveniste fala da intersubjetividade - polaridade das entre interlocutores : tomar a palavra é um ato social com todas suas
pessoas- aponta para a possibilidade de se ultrapassar essa divisão, implicações. E se há sentido em se falar em dois "eus" é no sentido de
embora não o faça na medida em que fica nas primeiras aproximações. que há conflito na constituição dos S1;ljeitos.
Partindo, pois, do conceito de intersubjetividade, mas me afas- :É já um adquirido da lingüística, em relação à pragmática, se
tando dela - na medida em que propõe a transcendência do eu - , dizer que a linguagem é um modo de ação, mas gostaríamos de
procuro o lugar da interação, isto é, da simultaneidade do falante e incorporar a essa visão da linguagem como modo de ação o fato de
ouvinte no processo da interlocução. Processo que reúne o eu e o outro que esse modo é interacional e a ação, ou então a interação de que
na sua relação: dialética de reconhecimento ou conjuntura da inter- se fala, é social e, logo, com características próprias mas que se rela-
locução. cionam com as ações sociais em geral.
Como 'a apropriação da linguagem é social, os sujeitos da lingua- Pois bem, as· regras de discurso que até agora foram estabelecidas
gem não são abstn~tos e ideais, mas estão mergulhados no social que são carregadas dos tropeços que acabamos de citar, isto é, são regras
os envoJve, de onde deriva a contradição que os define.
que supõem uma relação homogênea, simétrica e estável entre inter-
Cada um sendo, ao mesmo tempo, o seu "próprio" e o "comple- locutores, isto é, consideram dois locutores bem formados, cuja inten -
mento" do outro, os interlocutores constituem-se na bipolaridade con- ção é a da comunicação (informação) e quase sempre eles se alternam
traditória daquilo que, por sua vez, constituem: o texto (o discurso) - pela transcendência do "eu" - em turnos sucessivos, em toda
enquanto sua unidade. linearidade.
A ssumindo essa posição, não se estará privilegiando nem o lo- Segundo o que suponho, e que procurarei demonstrar aqui, gene-
cutor nem o ouvinte, mas a relação que os constitui: a instância da raliza-se para a caracterização da linguagem toda o que seria próprio
interlocução, a interação. de um tipo de discurso.
Segundo V oloshinov ( 197 6), a interação verbal é a realidade
Várias críticas foram feitas à elaboração das . regras de discurso·
fundamental da linguagem. A palavra é um ato de duas caras: está
a partir das máximas de Grice (H. P. Grice, 1975). Essas críticàs
tão determinada por quem a emite como por aquele para quem é
emitida. Ê produto de relação recíproca. Uma palavra é território par- incidem sobre vários aspectos: sobre a variação dessas regras em
tilhado pelo emissor e pelo receptor. relação às várias culturas; ao fato delas serem normativas ou consti-
tutivas; ao fato de se poderem reduzir à relevância, etc. Eu procurarei
Passemos para a observação seguinte. incorpor.ar essas críticas, ao mesmo tempo em que procurarei mostrar
b) O segundo tropeço é o da consideração da linguagem priori- que a variação, a que essas regras estão sujeitas, do meu ponto d
tariamente em sua função representativai informacional. vista, não deriva só de diferenças culturais ou outras, mas de dik -
Tem-se considerado a função representativa como a essencial, a renças que se originam no fato de haver vários tipos de discurso. A
que define a linguagem. Daí se pensar a corpunicação sob o enfoque isso eu chamaria variação inerente.

150 151
A PROPOSTA DE UMA TIPOLOGIA Por outro lado, ou justamente por isso, essa tipologia deveria
também acolher o .outro lado da variação: o das formas e sentidos
Creio que a noção de tipo é necessária como princípio de clas- diferentes. Daí ter como características a interação e a polissemia.
sificação para o estudo do uso da linguagem ou seja, do discurso. Temos afirmado que um tipo de discurso resu.lta do funciona-
Para se tratar da variação no domíniQ do discurso, necessita-se mento discursivo, sendo este último definido como a atividade estru-
metodologicamente da noção de tipo, assim como tem-se colocado turante de um discurso determinado, para um interlocutor deter-
para vários autores - de que trataremos mais adiante - a necessidade minado, por um falante determinado, com finalidades específicas.
da noção de regras de discurso, de máximas conversacionais, de pos- Observando-se, sempre, que esse "determinado" não se refere nem ao
tulados ou de condições de atos de fala. número, nem à presença física, ou à situação objetiva dos interlocuto-
res como pode ser descrita pela sociologia. Trata-se de formações
Além de ser uma necessidade metodológica para a análise de imaginárias, de representações, ou seja, da posição dos sujeitos nó
discurso, o estabelecimento da tipologia tem a ver com os objetivos discurso (M. Pêcheux, 1969). Ou, como diz Voloshinov (1976):
específicos da análise que se estiver empreendendo e com a adequação "Organização social e época são limites que o ideal do destinatário
ao exemplar de lingw:1gem que é objeto da análise. Isto quer dizer que não pode ultrapassar: a fala se constrói entre duas pessoas socialmente
as tipologias são, por assim dizer, de aplicação relativa, podendo ter organizadas. Na ausência de um destinatário real, se pressupõe um.
uma maior ou menor generaliqade. Esse não é entretanto um destinatário abstrato, um, homem 'em si'.
Ao analisar o discurso pedagógico, estabeleci uma tipologia que Vemos isso através do meio social concreto que nos r'odeia. Pressupo-
não derivava de critérios presos diretamente à noção de instituição, mos certa esfera social típica e estabilizada para a qual se orienta a
ou seja, a normas institucionais, como é definido o discurso religioso criatividade ideológica da ·nossa própria época e grupo social". :B nesse
em relação ao jornalístico, jurídico, etc. Também não me interes- sentido que usamos "determinádo".
sava uma distinção cujo critério fossem as diferenças entre domínios Consideramos além disso, que a atividade de dizer é tipificante:
de conhecimento como as que existem entre discurso científico, dis- todo falante quando diz algo a alguém estabelece uma configuração
curso literário, discurso teórico, etc. Interessavam-me característi- para seu discurso. Não há discurso sem configuração como não há fala
cas que já estivessem pressupostas, no interior de cada um desses sem .estilo. Da perspectiva da atividade, não se trata de um modelo
tipos. Por outro lado, ainda que possuindo um certo grau de genera- que o falante preenche, mas sim de uma configuração que ele esta-
lidade, não me atraía a distinção de tipos como dissertação, descrição, belece: não é um dado anterior, é o que se' define na própria interação.
narração, conquanto partissem de características formais, estrutu- Porém, enquanto resultados, enquanto produtos, os tipos são crista-
rais, etc. lizações de funcionamentos discursivos distintos. Há pois, relação entre
a atividade e produto do dizer e assim os tipos passam a fazer parte
Além do nível de generalidade da tipologia que eu procurava, das condições de produção do discurso. Por exemplo, com o uso e a
interessavam-me sua dimensão histórica e seu fundamento social en- sedimentação, funcionamentos discursivos que se configuram como
quanto capaz de absorver o conceito de interação. discurso jornalístico ou discurso jurídico, etc., ganham legitimidade, se
Dessa forma, essa tipologia, a meu ver, devia dar conta da relação institucionafü.&m historicamente e passam a contar nas condições de
linguagem/ contexto, compreendendo-se contexto em seu sentido es- produção, como tipos cristalizados que retornam ao processo da in-
trito (situação de interl()cução, circunstâócia de comunicação, instan- terlocução, como modelos. O produto se repõe como processo.
ciação de linguagem) e no sentido lato ( determillações histórico-sociais, A partir de que momento dizemos que um discurso é de tal ou
ideológicas, etc.). tal tipo, representa tal ou tal funcionamento discursivo?
Em suma, essa tipologia devia incorporar a relação da lingua- A tipologia que estabelecemos distingue: discurso lúdico, dis-
gem com suas condições de produção. curso polêmico e discurso autoritário. Os critérios para o estabeleci-

152 153
menta dessa tipologia derivam das características que enunciamos mais eficiente da linguagem voltado para fins imediatos, práticos, etc., como
acima, ou seja, a interação e a polissemia. Da primeira resulta o acontece nos discursos autoritário e polêmico. Nesse sentido, eu diria
critério que leva em conta o modo como os interlocutores se consi- que não há lugar para o lúdico em nossa formação social. O lúdico é
deram : o locutor leva em conta seu interlocutor de acordo com uma o que "vaza'', é ruptura. /
. certa perspectiva, não o leva em conta, ou a relação entre interlocuto- . Em relação à função referencial e, conseqüentemente, ao pro-
res é qualquer uma? Ainda sob esse aspecto, entra o critério da rever- blema da verdade, eu diria que a função referencial, no lúdico, é a
sibilidade que, afinal, é o que determina a dinâmica da interlocução:
menos importante. São mais importantes a poética e a fática por
segundo o grau de reversibilidade haverá uma maior ou menor troca
causa, respectivamente, da maneira como se dá a polissemia e por
de papéis entre locutor e ouvinte, no discurso. O outro critério tem a
causa da reversibilidade nesse tipo de discurso. No polêmico a relação
ver com a relação dos interlocutores com o objeto do discurso: o
com a referência é respeitada: a verdade é disputada pelos interlocuto-
objeto de, discurso é mantido como tal e os interlocutores se expõem
res. No autoritário a relação com a referência é exclusivamente deter-
a ele; ou está encoberto pelo dizer e o falante o domina; ou se
minada pelo locutor : a verdade é imposta. No lúdico não é a relação
constitui na disputa entre os interlocutores que o procuram dominar.
com a referência que importa: até o non sense é possível.
Desse mecanismo, ou seja, dessa forma de relação com o objeto do
discurso é que podemos derivar o critério da polissemia: haverá uma Ainda pensando-se em funções da linguagem há um aspecto
maior ou menor carga de polissemia de acordo com essa forma de importante em relação à tipologia e que deriva no domínio do dis-
relaçãO'. Daí termos os tipos de discurso como segue: curso de uma função que tem seu homólogo no domínio lingüístico:
trata-se da metacomunicação. Tal como a função metalingüística, a
iscurso lúdico: é aquele em que a reversibilidade entre inter-
metacomunicação aponta para si enquanto tal. Daí que um fator im-
loc;utores é total, sendo que o objeto do discurso se mantém como
portante no funcionamento discursivo dos tipos é que eles se mostram
tal na interlocução, resultando disso a polissemia aberta. o exagero como tais, isto é, o dizer lúdico diz isto é um jogo (G. Bateson, 1955),
é o non sense. o polêmico se diz disputa e o autoritário se diz autoritário. Essa fun-
Discurso polêmico: é aquele em que a reversibilidade se dá sob ção metacomunicativa se deve ao fato dos tipos serem configurações
c~rtas condições e em que o objeto do discurso está presente, mas sob que se constituem na interlocução.
perspectivas particularizantes dadas pelos participantes que procuram Em relação à tensão entre os dois grandes processos - a pará-
lhe dar uma direção, sendo que a polissemia é controlada. O exagero frase (o mesmo) e a polissemia (o diferente) - que consideramos
é a injúria. ser o fundamento da linguagem, diríamos que o discurso lúdico é o
Discurso autoritário: é aquele em que a reversibilidade tende a pólo da polissemia (a multiplicidade de sentidos), o autoritário é o da
zero, estando o objeto do discurso oculto pelo dizer, havendo um paráfrase (a permanência do sentido único ainda que nas diferentes
agente exclusivo do discurso e a polissemia contida. O exagero j a formas) e o polêmico é aquele em que melhor se observa o jogo entre
ordein no sentido militar, isto é, o assujeitamento ao comando. / o mesmo e o diferente, entre um e outro sentido, entre paráfráse e
polissemia. Dada a tensão, o jogo, entre o processo parafrástico e o po-
O discurso polêmico seria aquele que procura a simetria, o
autoritário procura a assimetria de cima para baixo e o lúdico não lissêmico, que estabelece uma referência para a constituição da tipo-
colocaria o problema da simetria ou assimetria. logia, cada tipo não se define em sua essência mas como tendência,
isto é, o lúdico tende para a polissemia, o autoritário tende para a
Tal como é caracterizado, o discurso lúdico se coloca como paráfrase, o polêmico tende para o equilíbrio entre polissemia e
contraponto para os outros dois tipos. Isso porque, em uma formação paráfrase.
soeial como a nossa, o lúdico representa o desejável. O uso da lin-
guàgem pelo prazer (o lúdico), em relação às práticas sociais em geral, Devemos observar, em geral, que esses tipos de discurso não
no tipo de sociedade em que vivemos, contrasta fortemente com o uso têm de existir necessariamente de forma pura. Há mistura de tipos e,

154 155
além disso, há um jogo de dominância entre eles que deve ser obser~ concebemos a linguagem. Logo, o texto equivale a ato de linguagem
vado em cada prática discursiva. Isso significa que é preciso analisar na medida em que instaura uma f arma de interação e não como
o funcionamento discursivo para se determinar a dinâmica desses tipos: extensão do conceito de ato do nível do enunciado.
às vezes todo o texto é de um tipo, às vezes seqüências se alternam em
diferentes tipos, outras vezes um tipo é usado em função de outro, Seria interessante se chamar aqui a atenção para considerações
outras vezes ainda eles se combinam, etc. A noção de tipo não fun- de ordem teórica e metodológica, relativas ao desenvolvimento dos
ciona como um porto-seguro, isto é, não creio que se deva - como estudos da linguagem e à proposta dos três tipos de discurso.
usualmente tem ocorrido - uma vez estabelecida uma noção, endu- O deslize que apontamos no início desse trabalho, e que · se
recê-la categoricamente, estagná-la metodologicamente, perdendo assim caracteriza por constituir uma lingüística feita do ponto de vista do
a sua plasticidade, a sua provisoriedade, enquanto matéria de co- locutor, vai se caracterizar, em relação aos tipos, por generalizar para
nhecimento. a caracterização da natureza da linguagem algo que é próprio de um
Um exemplo do caráter não categórico da tipologia pode ser visto modo de funcionamento dela. Assim, toda linguagem é vista sob a
na seguinte situação de linguagem. dominância do eu, do agente exclusivo da linguagem, da contenção
da polissemia, etc.
X e Z estão em um carro, parados em um posto de gasolina e,
. enquanto esperam encher o tanque, todos que estão também no carro O que acontece é que - sob a égide do Discurso Autoritário -,-
conversam ruidosamente, falando ao mesmo tempo. O barulho e a se desarticula o característico da interlocução que é a articulação
confusão irritam Z. Como X tem o hábito de brincar com Z, dá-se o locutor-ouvinte, assim como se rompem as outras articulaçõés que daí
seguinte diálogo: decorrem e que se organizam sqb a forma de dicotomias. No interior
dessas dicotomias, se passa a olhar através de um de seus pólos - o
X: Z, se você estivesse em um mato sem cachorro, o que faria? do eu locutor, o da produção, o da intenção, o do percurso psíquico,
Z: Eu calava a boca. o da representação, etc. - colocando-o como fundamental. Primeiro
se dicotomiza e depois se iguala tudo através de um dos lados. Dessa
Esta é uma situação de linguagem que é complexa quanto à di- forma, o parcial se absolutiza. E a forma do discurso autoritário f:>assa
nâmica de tipos, pois há no exemplo uma combinação de discurso a ser a forma da linguagem em geral. Conseqüentemente, essa lingüís-
lúdico e autoritário. tica, que assim se faz, tende a privilegiar a função referencial, a in-
Finalmente, em relação à tipologia, gostaríamos de acrescentar formação, a paráfrase.
que, ao considerar os tipos como modos de ação; estamos conside-
rando que o texto todo, enquanto unidade de significação (logo, o
discurso) , equivaleria a um ato de linguagem, na medida em que ins- DISCURSO, TEXTO, DIALOGO
taura uma forma de interação. Mas não são ação como os atos de
linguagem são considerados a nível de enunciados. Isto quer dizer que Alguns conceitos merecem, nesse passo, nossa atenção: o de
não posso considerar o discurso autoritário como o ato de ordenar, o discurso, o de texto e o de diálogo.
polêmico como o ato de perguntar e o lúdico como o ato de dizer. O uso que estou fazendo do conceito de discurso é o da lingua-
Essa posição representaria um enorme reducionismo. Primeiro, por- gem em interação, ou seja, aquele em que se considera a linguagem
que seria restringir a linguagem a três atos fundamentais; segundo, em relação às suas condições de produção, ou, ditCY de outra forma,
porque a relação .do material lingüístico com a ação realizada ficaria . é aquele em que se considera que a relação estabelecida pelos inter-
extremamente . delimitada. Conseqüentemente se teria que apelar para locutores, assim como o contexto, são constitutivos da significação de
a noção de derivação a partir de três atos fundamentais, o que seria que se diz/ Estabelece-se, assim, pela noção de discurso, que o modo
incompatível com a idéia de multiplicidade que é a maneira como de existência da linguagem é social: lugar particular entre língua

156 157
(geral) e fala (individual), o discurso é lugar social. Nasce aí a pos- que o discurso é tomado como conceito teórico e metodológico e o
sibilidade de se considerar a linguagem como trabalh9 texto, em contrapartida, como o conceito analítico correspondente.
Há, portanto, uma relação necessária entre eles.
Falar em discurso é falar em condições de produção e, em
relação a essas condições, gostaríamos de destacar que, como o ex- Se considero o texto nesta perspectiva teórica estabelecida pelo
posto por Pêcheux ( 1979), são formações imaginárias, e nessas for- discurso, não basta dizer que o texto .é a unidade de análise, mas sim
mações contam a relação de forças (os lugares sociais dos interlo- que texto é a unidade complexa de significação, consideradas as con-
cutores e sua posição relativa no discurso), a relação de sentido (o dições de sua realização. É então uma unidade de análise não formal ,
coro de vozes, a intertextualidade, a relação que existe entre um mas pragmática.
discurso e os outros) a antecipação (a maneira como o locutor re- O texto pode ter qualquer extensão: pode ser desde uma simples
presenta as representações do seu interlocutor e vice-versa). palavra até um conjunto de frases. O que o define não é sua extensão
Em relação a essas formações imaginárias e aos fatores que mas, o fato de que ele é uma unidade de significação eiii relação à
contam nelas, devemos lembrar a ilusão subjetiva que é constitutiva situação.
do sujeito falante, isto é, o fato de que ele produz ling\lagem e também Pensando-se o texto no processo da interlocução, podemos tomá-
está reproduzido nela, .acreditando ser a fonte exclusiva do seu dis- lo como o centro comum, a unidade que se faz no processo de inte-
curso quando, na verdade, o seu dizer nasce em outros discursos. · ração entre falante e ouvinte. Em termos de interação, portanto, pode-
.Do ponto de vista discursivo, as palavras, os textos, são partes de mos dizer que o domínio de cada um dos interlocutores, em si, é
formações discursivas que, por sua vez, são partes de formação ideo- parcial e só -tem a unidade no/do texto. Essa unidade - o texto -
lógica. Como as formações discursivas determinam o que pode e deve é unidade do processo de significação, é a totalidade da qual se parte
ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada, assim na análise da estruturação do discurso. ·
é que se considera o discurso como fenômeno social.
Lembrando Voloshinov (197 6), eu diria que o texto é o enun-
Segundo o que temos proposto, a análise de discurso não é um ciado como entidade total. O enunciado completo que, como ele diz,
nível diferente de análise, se consideramos níveis como o fonético, o na lingüística (imanente) fica a cargo de outras disciplinas: a retórica
sintático, o semântico. É, antes, um ponto de vista diferente. Podem-se e a poética. A noção de discurso, no entanto, como a colocamos mais
analisar unidades de vários níveis - palavras, frases, períodos - na acima, acolhe essa entidade.
perspectiva da análise de discurso. Essas unidades não perdem a espe-
cificidade de seu nível - lexical, morfológico, sintático, semântico - Nesse passo, podemos fazer um paralelo entre a noção de texto
- como centro comum que se faz na interlocução - e diálogo, dizen-
mas, ao olhàrmos pela perspectiva da análise do discurso, veremos
do que sua unidade (do diálogo) é a do teJÇto, isto é, não é só da
novas determinações que revelarão aspectos discursivos dessas uni-
ordem de um dos interlocutores ou do outro~ É interação. Indo mais
dades. além, e invertendo agora a perspectiva dessa afirmação, diria que a
O ponto de vista da análise de discurso é diferente do da lin- relação dialógica é básica para a caracterização da linguagem: o coh-:-
güística estabelecida e, por isso, instaura um objeto diferente. Esse ceito de discurso se assenta sobre a relação dialógica na medida em
objeto, que é um objeto de conhecimento, é o discurso como o vimos que é constituído pelos interlocutores, ou seja, todo texto supõe a
relação dialógica, se constitui pela ação dos interlocutores. Teremos,
caracterizando, enquanto interação.
então, diferentes espécies de texto, segundo as diferentes formas de
Nessa mesma perspectiva consideramos que a unidade da análise relação que se estabelecerem entre locutores: um comício, uma con-
de discurso é o texto. versa, uma aula, etc.
O que caracteriza a relação entre discurso e texte é o seguinte: Pensando-se a linguagem como processo, e fazendo do uso
eles se equivalem, mas em níveis conceptuais diferentes. Isso significa o documento lingüístiço essencial, reflexo da situação social, a idéia-

158 159
de diálogo está na base de qualquer reflexão sobre a linguagem unidade a partir da qual os segmentos se organizam. Aliás, por não
(Voloshinov, 1976). Assim, as noções de texto, discurso e diálogo, se tratar de segmentos que se sucedem linearmente, quando se trata
nesse trabalho, se equivalem. Mas se distinguem de conversa, debate, de texto, propomos falar em recortes que o todo organiza . .Deixamos,
sermão, etc., que, estas, são situações particulares de discurso (texto, assim, o domínio do distribucionalismo (relação dos segmentos) e
diálogo) e têm, com o discurso, a relação de espécie para gênero. entramos em um outro campo teórico, emJque a noção de recorte nos
remete à situação de interlocução, e, de forma mais abrangente, a
Tenho observado com certa insistência, que o conceito · de uni- particularidades que derivam da ideolegia. Há, então, um domínio de
dade, de totalidade, não implica, em relação ao que estamos caracte- indeterminação na constituição da unidade textual.
rizando, o conceito de completude. Dito de forma mais direta: ao
considerar o texto como unidade de significação não estou dizendo que
esta unidade, que se faz pelos vários (dois ou mais) interlocutores, SENTIDO LITERAL E EFEITOS DE SENTIDO:
por isso é completa. Não diria, então que o sentido, parcial na ordem UMA QUESTÃO DA HISTORIA
de cada um dos interlocutores, é completo quando tomamos o centro
comum (texto) que se constitui com (e por) eles. O texto tem unida- Postula-se sempre um sentido literal e seus efeitos. A questão
de, mas a relação das partes com o todo - quando se trata de texto - para a análise do discurso incide sobre o estatuto do sentido literal,
é complexa. O texto não é a soma de frases e não é tampouco soma de uma vez que o discurso é definido não como transmissão de infor-
interlocutores. Na constituição do texto entram elementos menos de- mação, mas como efeito de sentidos entre locutores (M. Pêcheux,
terminados, menos mensuráveis que segmentos Iiiieares e número de 1969) . Se já se considera, de partida, que o contexto, as condições
interlocutores. Como o texto é um espaço, mas um espaço simbólico, . de produção são constitutivas do sentido, a variação é inerente ao
não é fechado em si mesmo: tem relação · com o contexto e com os próprio conceito de sentido.
outros textos. A intertextualidade pode ser vista sob dois aspectos:
primeiro, porque se pode relacionar um texto com outros nos quais Em termos de condições de produção, entra também em consi-
ele nasce e outros para os quais ele aponta; segundo, porque se pode deração a noção de contexto histórico. Dessa forma, passam a contar
relacioná-lo com suas paráfrases (seus fantasmas), pois sempre se desde determinações no contexto mais imediato (ligados ao momento
pode referir um texto ao conjunto de textos possíveis naquelas condi- da interlocução) como as do contexto mais amplo (como a ideologia).
ções de produção. A intertextualidade é, pois, um dos fatores que Portanto, se pensarmos o contexto como constitutivo, qualquer
constituem a unidade do texto. variação relativa às condições de produção é relevante para a. signi-
Por outro lado, observando-se os turnos de uma conversa, em ficação. Daí podermos citar como mecanismos de efeitos de sentido
que o processo da interlocução aparece em sua forma mais direta, desde o lugar social do locutor, ou o registro (enquanto estilo que
diríamos que não há compartimentos estanques que se preenchem a aponta uma identidade social que tem unta função significativa), até
cada turno dos interlocutores. Na verdade, não creio que haja uma relações menos diretas como é a da formação discursiva com a for-
sucessão linear, mas simultaneidade, o que redunda em não haver mação ideológica.
um limite claro que separa o dizer de um e o dizer do outro. Nem Os diferentes contextos não estão no mesmo plano. Eles con-
há segmentos que se juntam linearmente para formar uma unidade trastam entre si e isso pode ser visto, segundo Voloshinov (197 6), no
maior. Ao contrário, a linguagem tem como condição a incompletude, diálogo (conversa) : em uma seqüência de conversa, com os interlo-
e seu espaço é intervalar. Intervalar nas duas dimensões: a dos inter- cutores A e B, em duas linhas (A e B) uma mesma palavra pode
locutores e a da seqüência de segmentos. O sentido é intervalar. Não figurar em dois contextos mutuamente antagônicos. Em nossa tipo-
está em um interlocutor, não está no outro: está no espaço· discursivo logia, seria um exemplo de discurso polêmico.
(intervalo) criado (constituído) pelos/nos dois interlocutores. Assim
como não está em um segmento, nem em outro, nem na soma de Os diferentes contextos não estão um ao lado do outro, linear-
todos os segmentos que constituem um texto determinado. Está na mente, como se um nada tivesse com o outro: os contextos se en-

160 161'
contram em constante tensão, interação e mesmo conflito. Ê o que cução a cada momento. E é essa relação dinâmica, é esse movimento
dissemos mais acima quando falamos da sucessão não linear dos tur- entre processo e coisa produzida que constitui a linguagem. Consc··
nos, e da incompletude. qüentemente, o sentido literal, considerado dessa perspectiva, é o se-
Tratando-se das condições de produção, uina forma de se inte- dimentado, o oficial.
grar, na consideração do sentido, além do contexto, o aspecto histó- Como a sedimentação de processos se faz em termos de domi-
rico, é através da reflexão sobre a relação entre o lingüístico e o nância em relação a determinadas condições de produção, a tipologia
discursivo. tem um papel fundamental: é ela que determina o jogo de domi-
Como, segundo Pêcheux ( 197 5), não há separação categórica nância, isto é, é ela que determina a forma que terá a relação de um
entre lingüístico e discursivo, a relação entre eles é a que existe ~ntre dos sentidos com os outros possíveis.
condições materiais de base (lingüístico) e processo (discursivo) .
A tipologia que estabeleci funciona da maneira que segue, no
Tomando essa afirmação em nossa perspectiva, podemos dizer jogo de dominância: no discurso lúdico a relação de dominância de
que as condições materiais de base resultam, por sua vez, de pro- um sentido com os outros, enquanto seus ecos, se faz de maneira a que
cessos discursivos sedimentados. Então, lingüístico (produto) e dis- se preserve o máximo de ecos; no discurso polêmico se disputa algum
cursivo (processo) se recobrem e, em cada prática discursiva, a fron- sentido procurando-se privilegiar um ou outro; no discurso autoritário
teira que os separa é colocada em c.ausa: aqui~o que é processo dis- se procura absolutizar um sentido só, de tal maneira que ele não se
cursivo sedimentado - logo, produto - se faz processo de inter- torne apenas o dominante, mas o único. Ê a isso que me referia, quan-
locução e assim indefinidamente. Há um movimento contínuo entre do, em outra parte desse trabalho, dizia que, no discurso lúdico, a
produto e processo. polissemia é aberta (veja-se, por exemplo, a poesia), no polêmico é
Se se considera que a variação é inerente ao sentido, uma vez controlada (veja-se um debate) no autoritário é contida (vejam-se
que o contexto é constitutivo dele, abandona-se a posição que privi- definições estritas em argumentos de autoridade) .
legia a hipótese de um sentido nuclear, mais importante hierarquica-
mente (sentido literal) em relação aos outros (efeitos de sentido). Não O que queremos asseverar, nesse nosso trabalho, é que se esta-
belecemos que a função primeira da linguagem não é a informação e
é, pois, preciso se manter a idéia de um centro de sentido e suas
se tomamos o texto como unidade significativa constituída pela inte·
margens (contextuais). Dessa forma, todos os sentidos são de . direito
ração, não há por que se considerar um sentido literal e seus efeitos:
sentidos possíveis. Em certas condições de produção, há, de fato,
há múltiplos sentidos, há polissemia. Em certas condições de produção,
dominância de um sentido sem por isso se perder a relação com os
um sentido se torna dominante e adquire estatuto de literalidade.
outros sentidos possíveis. ·
A sedimentação de processos de significação, em termos de sua Essa nossa posição, no entanto, não é a que encontramos nos
dominância, se dá historicamente: o sentido que se sedimenta · é aquele autores que passaremos a comentai: e que constituem o ponto de par-
que, dadas certas condições, ganha estatuto dominante. A instituciona- tida para a avaliação do recurso às regras conversacionais, no domínio
lização de um sentido dominante sedimentado lhe atribui o prestígio dos estudos pragmáticos da linguagem.
de legitimidade e este se· fixa, então, como centro: o sentido ·oficial
(literal).
POSTULADOS, MAXIMAS, LEIS DE DISCURSO:
Por outro lado, o produto dessa sedimentação, dessa institucio-
SUA FUNÇÃO METODOLóGICA
nalização é que pode ser visto como a história da língua: a história
dos sentidos cristalizados é a história do jogo de podei; da/na lin-
A partir da leitura de textos como "Logic and Conversation"
guagem.
(M. Grice, 1975), "Conversational Postulates" (D. Gordon; G .
Do ponto de vista da história se podem apreender os produtos Lakoff, 1973), "Les Lois du Discours" (Ducrot, 1979) e "Speech
como tal, mas, enquanto processo, o sentido se constitui na interlo- Acts" (J. Searle, 1972) e "Le Sens Littéral" (J. Searle, 1979), pode-

162 163
mos chegar a algumas afirmações a respeito da função metodológica zadas e as generalizadas e mostra como as generalizadas são difíceis
do que eu chamaria, em geral, de regras conversacionais. de ser distinguidas das convencionais (que são interpretadas apenas
Uma vez que nos interesa, como dissemos no item anterior, o a partir do sentido convencional, sem a intervenção do contexto) .
estatuto do sentido literal, observaremos; nesses autores, qual é. a Trata-se de um uso de precisões mais ou menos apropriadas que, na
relação que existe entre ele, o contexto e as regras. atribuição de sentido feita pelo interlocutor, corresponderão a certas
~xpectativas, a certas presunções.
Em Grice, temos claramente o processo da interpretaçã-9' · áo
sentido incidindo sobre a relação sentido-contexto-máximas (com suas Em Lakoff e Gordon, temos a inferência de atos de fala através
implicaturas) . Esse sentido sobre o qual incidem as regras é o sentido de postulados que agem sobre os sentidos e os contextos. Eles falam
convencional. em sentido normal e sentido transmitido diferente, ou sentido primeiro
e sentido inferido conversacionalmente, etc. Há, então, de seu ponto
Distinguindo as implic:;ituras conversacionais das convencionais de vista, "regras particulares, postulados de conversação que determi-
e mostrando que as conversacionais estão ligadas a certos traços gerais nam o sentido que um enunciado transmite, sendo dado o conteúdo lite-
do discurso, Grice coloca o princípio geral - Princípio Cooperativo ral do enunciado e o contexto no qual é emitido". Dizem ainda que há
- e as quatro categorias - da quantidade, da qualidade, da relação regras de gramática, determinando a distribuição dos morfemas, que
e do modo - sob uma oú outra das quais cairão máximas e submá- ·dependem do sentido transmitido das frases (e não do sentido lite-
ximas mais específicas. ral). Nesses autores a noção de inferência é central: toma-se a noção
O princípio cooperativo diz: faça sua contribuição conversacional de inferência relativa a uma classe de contextos e se juntam postulados
tal como é requerida, no estágio em que ocorre, pelo propósito ou de conversação para obter implicações de conversação pertinentes para
direção aceita da troca de fala na qual você está engajado. E as esta classe de contextos. Resta ainda a observar a respeito de Lakoft
máximas são: e Gordon que, para eles, então, esses postulados devem fazer parte da
teoria da gramática. Daí incluírem essa relação nas regras de t.ransde-
1 ) faça sua contribuição tão informativa quanto é requerido rivação: Lª implica conversacionalmente Lb.
(pelos propósitos concernentes da troca); 2) não faça sua contribui-
ção mais informativa do que é requerido; 3) tente fazer sua contri- Searle relativiza o sentido literal - resguardando, entretanto,
bunção tal que seja verdade; 4) seja relevante; 5) seja claro. sua existência - considerando como constitutivo desse sentido uma
espécie de contexto que ele chama de "suposições prévias". Essas
Algumas leis são mais urgentes de serem observadas que outras suposições introduzem o conhecimento de mundo. No entanto, pre-
(por exemplo, é menos grave ser prolixo do que ser falso), algumas servando o sentido literal, ele mostra que a introdução das "suposições
só funcionam quando outra opera (espécie de pré-requisito). No en- prévias" não afeta o princípio da exprimabilidade, nem a existência
tanto, segundo Grice, deve-se tratar todas com a mesma importância. do sentido literal (embora o relativize) e nem tampouco perturba a
relação entre' sentido literal de um lado e, de outro, o metafórico,
Mesmo Grice diz que há outras espécies de máximas: estéticas,
a ironia, as implicaturas e a distinção entre atos de fala diretos e
sociais, morais, etc. Além disso, ele mesmo também diz que a el\un- indiretos. Essa diferença se mantém porque ele continua distinguindo
ciação das regras depende do fato de que a finalidade buscada seja a a interferência dessa espécie de contexto - as suposições prévias -
eficácia máxima de troca de informação e se deveria estendê-la, ou de um outro tipo de contexto, isto é, ele continua distinguindo, de
seja, generalizar o esquema de regras para .abranger fins gerais como um lado, as suposições prévias e, do outro, o contexto de enunciação
o desejo de influenciar ou orientar os outros. Isto é, o próprio Grice por um locutor (sentido _literal =F sentido da enunciação). Como a
coloca os limites do domínio das máximas que formula. noção de sentido literal se aplica relativamente a um conjunto de supo-
sições prévias, as condições de verdade da frase variarão segund~ as
Por outro lado, e esse é um aspecto que nos interessa bastante, variações dessas suposições. Generalizando, ele diz que o que acontece
esse autor distingue, nas implicaturas conversacionais, as particulari- em relação às condições de verdade (frases indicativas) também ocor-

164 165
re com as conc11ções de obediência (frases imperativas) e condições ao mesmo tempo todos os componentes da situação; "primeiro extrai
de realização ( frases optativas) : há suposições e variação para todos certos elementos com a ajuda dos quais constrói, pela especificação
esses casos. da significação, um primeiro sentido que, em seguida a essa escolha,
A representação, segundo essas colocações, se efetua sobre o desempenha o papel de sentido literal; depois faz agir, sobre este,
fundo de suposições que não são e, na maior parte . dos dasos, não outros componentes que, junto às leis de discurso, engendram um
podem ser representadas como parte da representação ( co~teúdo se- sentido segundo" (Ducrot, 1979).
mântico da frase) ou como pressuposições desta porque as suposições De maneira geral, então, nesses autores, podemos dizer que a
são em número indefinido e toda tentativa de representá-las dá lugar função metodológica das regras conversacionais é a seguinte : dados
a novas suposições. Mais ainda, não há meio de eliminar essa depen- um sentido literal e um contexto, pode-se determinar através da regra
dência do sentido literal do contexto porque outras formas não con- a variação de sentido. Essa função é interpretativa, ou seja, a de
vencionais de intencionalidade das quais depende o sentido literal - derivar do sentido literal as variações de sentido, ·regulando a ação
e Searle cita o exemplo da percepção - dependem dessas suposições. dos contextos.
Isto é, no caso da percepção, por exemplo, ."aspectos puramente vi-
suais da experiência não produzirão um conjunto de condições de
satisfação senão sobre o fundo de um conjunto de suposições prévias POR UMA RETÓRICA INTEGRADA
que não fazem elas mesmas parte da experiência visual" (J. Searle,
1979). "' Como as diferentes elaborações de regras conversacionais têm,
Quer dizer, as suposições prévias são fundamentais e onipre- em geral, como origem, as máximas de Grice, isto é, as formulações
sentes. . de regras desse tipo têm como referênda o trabalho de Grice, também
o tomaremos como referência em relação às críticas.
Para Ducrot, tal qual para Searle, já há a inclusão de um tipo
de contexto no sentido literal, ou melhor, Ducrot distingue significa- Inicialmente, podemos lembrar as observações de que as regras
ção - (com as instruções), sentido literal (instanciação referencial e . seriam prototípicas e, nesse sentido, se pensadas em relação a dife-
argumentativa que produz um primeiro esboço de sentido) e varia- rentes culturas, haveria uma variação a que estariam sujeitas (E. O.
ções ou efeitos de sentido. Mantém também a distinção entre ato de Keenan, 197 6). Além dessas, haveria as críticas que consideram que
fala primitivo e derivado, mostrando que o contexto age duas vezes; as máximas estariam subsumidas pela máxima da relação (D. Wilson
na primeira, ao constituir o sentido literal e, depois, o contexto incide e D. Sperber, 1979). Outros discutem o fato de serem as máximas
uma segunda vez - sobre o sentido literal - derivando do sentido normativas e não constitutivas (F. Flahault, 1979). Outros, ainda,
literal as variações de sentido. Nessa segunda vez é que se torna . criticam o princípio cooperativo, avaliando sua dimensão sociológica.
necessário o apelo às leis de discurso que, para Ducrot, são normati- Uma outra forma de criticar as máximas é dizer que elas ficam só em
vas, isto é, são normas impostas pela coletividade lingüística ao ato de torno dos imp!Ícitos e que elas deveriam servir também para explicar
enunciação. As leis regulam a ação das situações sobre o lingüístico. como é determinado o explícito.
As realidades semânticas (significação e sentido literal) anteriores· Todas essas críticas têm sua razão e contribuem em alguma
à ação das. leis de discurso contêm já indicações relativas ao .que coisa para a melhor compreensão da linguagem em ato. Gostaríamos
se pode fazer quando se cumpre a enunciação; .é a pragmática inte- de, incorporando-as, fazer algumas observações a respeito das regras,
grada; segundo Ducrot. O recurso às leis serve para isolar .as pressu- partindo dos tropeços dos quais falamos no início deste trabalho. Além
posições primitivas (uma vez que podem existir subentendidos) . . O · disso, procuraremos fazer observações que coloquem o problema da
papel das leis, já que há uma pragmática ao nível da frase, é mos- variação das regras como inerente ao funcionamento· da linguagem.
trar como esta pragmática virtual se realiza e se diversifica segundo · Uma primeira observação se · refere ao fato de que as regras se
a situação de enunciação. E há uma hierarquia: não se faz íntervir fundam na natureza informativa da linguagem. Ainda que se alargu~

166 167
e se considere a argumentação (como em Ducrot) ou a linguaiem en- · regras conversacionais que perde sua função metodológica, e, conse-
quanto ato ( corrio em Searle), ainda assim, na aplicação das regras,
qüentemente, acontece o mesmo com o princípio cooperativo, com o
se privilegia a informação, na medida em que se opera com a litera- qual os efeitos das máximas devem estar de . acordo. Resta-nos, então,
lidade. Em relação ao princípio cooperativo de Grice, diríamos, então,
discutir a natureza do contexto que é considerado pelos autores.
que, como ele se sustenta na concepção de que o fundamental é a
informação, nós o deslocaríamos, dizendo, inicialmente, que, segundo Há, pelo que pudemos entender, dois tipos de contexto que são
nossa perspectiva, a sustentação do princípio não poderia sei:- a infor- considerados na interpretação dos sentidos (dizemos interpretação e
mação mas sim o afrontamento, o reconhecimento pela inter1ção (a
• . 1
não constituição, pois é assim que trabalham os autores, uma vez qu1;;
conjuntura da interlocução). Além disso o propósito em uma troca de tratam de derivação de sentido) : o contexto-1 para Ducrot e Searle
fala, segundo o que pensamos, não é aceito mas reconhecido. Assim e o contexto-2 para todos esses autores. O contexto-1 é, para Ducrot,
como, pelo jogo da antecipação, não é possível dizer que há um saber o responsável pela pragmática integrada, e para Searle _este contexto
partilhado, mas sim atribuído. É na dinâmica das atribuições que se é constituído pelas suposições prévias. Em geral, a esses contextos po-
dá a troca de fala. Ora, mesmo quando se diz "sentido atribuído" se deríamos chamar contextos pragmáticos. O segundo contexto é o con-
o faz como se houvesse uma distinção estrita na relação falante-ouvin- texto retórico (do nível da enunciação). De uma forma geral, então,
te: o falante produz sentido e o ouvinte atribui. No entanto, pela ante- as regras conversacionais permitiriam calcular, ou interpretar, ou deri-
cipação, sabemos que não é assim que as coisas se passam e, além var o sentido, dado o contexto retórico. E aí entra nossa proposta.
disso, pela ilusão subjetiva do falante sabemos que os sentidos produ- Como consideramos qualquer espécie de contexto como constitutiva
zidos não nascem no locutor, o que significà que· a ação do locutor do sentido, como distinguir as suposições prévias, ou as instanciações
também inclui atribuição de sentido.
referenciais e argumentativas, de outros contextos? Eu diria que essa
Todos os autores a que nos referimos colocam que o processo de dificuldade de distinção nasce da ação corrosiva da noção de contexto,
interpretação dos enunciados depende de fatores tais como: isto ê, uma vez que se considere alguma espécie de contexto como
Sentido literal constitutiva (sejam as suposições prévias, seja a pragmática integrada)
fica difícil delimitar a separação entre um e outro tipo de contexto. Um
Contexto exemplo disso pode ser observado na dificuldade que tem Grice em
Regras . conversacionais distinguir implicatura convencional e implicatura conversacional gene-
ralizada. O que nos leva, em relação às suposições prévias, a perguntar
Pelo que pudemos observar, esses autores, ém geral, a partir de como distinguir o que elas representam em termos de bom-senso e os
certo momento, colocam que há um tipo de contexto que é suplementar limites em relação ao senso comum ( Gramsci, 1966, Debrun, 1979),
e não constitutivo. Isto peri:nite manter a distinção:
à ideologia, que representa o contexto amplo. Ou, de outra forma,
Sentido. ~iter_a.l derivado, indireto, efeitos de sentido. como estabelecer teoricamente os limites do contexto que é relevante
para a significação, já que consideramos que a palavra tem tantos sen-
Paralelamente, as leis ou regras conversacionais aparecem como
tidos quantos são os contextos do seu emprego.
instrumentos de derivação e não de constituição de sentidos.
Paralelamente, se apagamos os limites entre sentido literal e deri-
Então, fazendo agora observações que dizem respeito mais de
vações ou efeitos de sentido, como fica a distinção entre implícito e
perto aos objetivos desse trabalho, passaremos a falar sobre 9.proble-
ma da consideração do sentido . literal .e do contexto. explícito? Não se trataria mais de dar conta do implícito, tratar-se-ia
de dar conta do jogo entre implícito e explícito, uma v:ez que estes
Sé não consideramos - como no item "Sentido literal e efeitos não seriam fixos como tais, ou, dito de outra forma, aquilo que é
de sentido: uma questão da história" - a existência do sentido literal implicitado ou explicitado depende~fa do contexto, da ação de inter-
do qual derivam os efeitos de sentido, ·é o centro mesmo da noção de locução.
168
169
Uma forma lingüística, como a palayra necessidade, dita por assim, a retórica integrada. O modo de fazer isso é através da noção
X numa situação X', e dita por Z numa situação Z', pode acontecer de tipo, pois ele subsume a noção de contexto mais amplamente, isto
de tal forma que X pode implicitar em X' o que Z explicita em Z' e é, tal como as regras, o tipo especifica a ação do contexto. sem no
vice-versa. E o uso, a relação com a situação que estabelece aquilo 1
entanto excluir elementos importantes da interlocução.
que será o explícito e o implícito.
Caracterizamos a tipologia, incorporando a noção de modo de
Assim, não é um dado definitivo aquilo l}lle é contexto-1 e con- ação, isto é, ação que é interação entre locutores e que tenha carac-
texto-2, ou seja, pragmática e retórica, se não distingo sentido literal terísticas específicas, mas que se comunique com 1as ações sociais em
e efeitos de sentido. geral. Dessa forina, a noção de tipo absorve a de contexto e a de
polissemia, constituindo, em relação às regras conversacionais, um
Na interlocução, o jogo de explícitos e implícitos faz parte do
espaço teórico diferente.
confronto, isto é, a impíicitação pode ser a mesma para os interlo-
cutores ou pode ser disputada na própria interlocução. E isso que se Os modos de ação, ou as formas de interação, segundo o que
passa, quando se fala: o que você está querendà dizer com isso? Dessa propusemos na tipologia que estabelecemos, são três: polêmico; lú-
forma, está-se desvelando, na conversa, o jogo entre o explícito e o dico e autoritário. Cada um deles constitui o sentido das formas lin-
implícito. güísticas. Usa-se uma forma procurando configurar um tipo (um modo
de interação) e porque procura-se constituir esse modo de .interação,
Não negamos que existam o implícito e o explícito, o problema
a forma passa a ter o sentido que o tipo pode nela constituir.
é que a sua delimitação se dá na interlocução e no · contexto, isto é,
tem de ser referida ao que, no item "Sentido literal e efeitos de sen- Faremos, a seguir, algumas observações a respeito da relação da
tido: uma questão da história", consideramos como a instituição do tipologia com os atos de fala e com as regras conversacionais.
sentido dominante. Dadas certas condições, em que um sentido se
Em relação aqs atos de fala, tal como os formula Searle (J. Searle,
coloca como dominante ("literal") delimita-se (na e pela interlocução)
1972), podemos dizer que a proposta da tipologia coloca duas possi-
aquilo que é implícito e o que é explícito. E como é a relação entre
bilidades. Uma delas é a de que a concepção de ato de fala não inclui
os dois que os delimita, podemos dizer que todo explícito determina
implícitos e vice-versa. o lúdico, uma vez que o discurso lúdico, tal como é caracterizado,
desloca a noção de literalidade. A outra possibilidade é condicionar
Outra conseqüência dessa nossa proposta, .a de integrar o con-- os atos à teoria dos tipos, ou seja, fazer um estudo dos atos na pers-
texto retórico, é que fica perturbada a relação entre atos de fala di- pectiva da teoria dos tipos. Nessa medida, o estabelecimento dos tipos
retos e indiretos (ou derivados) . Se os sentidos são múltiplos não há especificaria as condições de significação de tal maneira que ficaria
derivação de sentidos, ao contrário, o que pode haver é a insthuição estabelecido como seriam observadas as condições de realização dos
de um deles como dominante. atos.
A questão que colqca o problema dessa relação entre tipos e
PRINCf PIOS E CONDIÇÕES DE SIGNIFIÇAÇÃO atos é a seguinte: uma ordem (uma promessa, etc.) é uma ordem (uma
promessa, etc.) em qualquer mundo? Retorna, aqui, como vemos, a
Toda essa reflexão tem a ver com o estatuto, ou a natureza, do questão da natureza das suposições prévias e da literalidade.
contexto que é constitutivo da linguagem.
Não é por acaso que, para questionar a natureza da relação
Consideramos que não só o contexto-1 (ou pragmático) é que entre a tipologia e os atos, nos referimos ao discurso lúdico. Entre
deve ser lévando em conta, mas também o contexto-2 (ou retórico). O os tipos, ele funciona realmente como contraponto e repressenta ~
que, do nosso ponto de vista, seria não distinguir estritamente as di- pedra-de-toque em relação às funções da linguagem. Porque o lúdico
mensõ.es semântica, pragmática e retórica, ou seja, proporíamos, desloca a relação referencial e pode modificar as condições de verdade

170 171
(para frase indicativa), condições de obediência (para frase impera- Logo, como a noção de tipo é capaz de instaurar o escopo da
tiva) e condições de satisfação (para frase optativa). Exemplo: brincar relevância e, além disso, toma o lugar metodológico das regras con-
de ordenar, em linguagem, é ordenar? yersacionais, creio que o melhor em relação à sistematização do uso
é se falar em condições de significação do discurso, e não em regras.
Essas nossas considerações têm a ver com o que dissemos acima Os tipos de discurso é que fazem variar essa condições de significação.
sobre a diferença entre os tipos e os atos enquanto modos de ação. E, como o propósito, ou direção do discurso, também é determinado
Os tipos estabelecem o quadro de relevância para o discurso; uma pelo tipo, e como o conceito de interação é que se coloca como funda-
vez estabelecido, ele desloca a relação referencial se a sua relação for mento, torna-se metodologicamente inoperante o princípio cooperativo.
com o mundo real ou um mundo ·possível. Isso se dá porque, como
dissemos anteriormente, pelo processo da metacomunicação, o dis- Em suma, a noção de tipo estabelece a relevância e é através
curso se mostra como lúdico (isso é um jogo, é uma brincadeira). da relevância que se estabelecem as condições de significação do
Uma vez que se aponta como tal, na sua esfera, o lúdico não joga texto.
necessariamente com a oposição verdadeiro ou falso, pois há nele Resta ainda observar que há articulação entre as diferentes tipo-
um outro espaço possível: o do fingir ou enganar, na relação de inte- logias, as diferentes situações de discurso, de tal forma que importa
ração que ele estabelece. o como estas se articulam para a caracterização da configuração do
Em relação a regras conversacionai~, o que podemos concluir é discurso.
o seguinte : quando na relação de interlocução se negocia o modo de
Exemplo: discurso polêmico - conversa ou aula, etc.
interação - autoritário, lúdico ou polêmico - , se estabelece, pelo
jt;uídico, político, etc.
tipo de discurso que se contrata, aquilo que vai ser pertinente. Daí,
em nossa perspectiva, se manter somente o que Grice coloca na máxi- teórico, científico, etc.
ma da relação: a relevância. Então, para nós, a questão da relevância, oral ou escrito
embora. várie segundo o tipo de discurso, se mantém. etc.

Assim, a noção de . recorte (que, como dissemos, desloca a de Podemos especificar, além do tipo (enquanto atividade estru-
segmentação) é a operação que representa a maneira· de instaurar a turante), alguns princípios gerais que conduziram nossa reflexão sobre
pertinência, a relevância. A relevância se faz no texto enquanto este é a função das regras e as condições de significação que derivam desses
a unidade, a totalidade que organiza os recortes. Há, no texto enquan- princípios. Passaremos a enumerá-los de acordo com o que desenvol-
to totalidade, uma variação interna que se mostra em subunidades que vemos nesse trabalho.
são as seqüênc~as. Tanto a noção de tipo com a de relevância podem-se
Princípios: os contextos são constitutivos do discurso; não há
aplicar às seqüências, importando, fio entanto, como as seqüências se
organizam no todo do qual são partes. um sentido central definido previamente e sentidos marginais; o texto
enquanto unidade de significação se constitui ·na interlocução; há
Cada tipo de discurso estabelece a relevância de fatores signifi- movimento entre as formas da linguagem que se sedimentam e o pro-
cativos de mnneira específica. As máximas da quantidade, da qua- cesso de produção da lingüagem, movimento entre o lingüístico e o
lidade, do modo, não se mantêm com o mesmo papel teórico que discursivo; a informação não é a única nem a mais· importante função
desempenham na teoria de Grice. Isto é, elas perdem sua importância, da linguagem, quando esta é definida como modo de ação.
embora possam aparecer ocasionalmente como requisitos especificados
pela relevância na consideração da significação. Por exemplo, o dis- Condições de significação: o contexto histórico-social enquanto
curso pedagógico, enquanto discurso autoritário, é .um discurso para o capaz de refletir o movimento entre o lingüístico e o discursivo; a
qual não é relevante . a verdade ou falsidade, dado o é-porque-é do relação do implícito e do explícito; a relação de forças; a relação de
discurso pedagógico, em que n~o há razões de fato. sentidos; a antecipação; a relação do texto com os textos possíveis

173
172
KEENAN, E. O. - "The Universality of Conversational Postulates", em Lan-
naquele contexto; a relação de dominância de um sentido sobre os
gua.ge in Sodety, n. 0 5, pp. 67-80, 1976.
outros possíveis.
P:BCHEUX, M. - Analyse Automatique du Discours, Dunod,. Paris, 1969;
Se observarmos bem o que f?i enumerado, percebemos que cons- "Mises au Point et Perspective,s à Propos ·de l'Analyse Automatique du
titui o que se chama condições de produção de um discurso. Assim, ·Discours", em Langages, n. 0 37, pp. 7-80, 1975.
podemos dizer que as condições de significação são a especificação, SEARLE, J. F. - Les Actes de Langage, Hermann, Paris, 1972; "Le Sens
para cada texto, de suas condições de prÕdução. Littéral'', em Langue Française, ·n. 0 42, pp. 34-47, 1979.

Para terminar, gostaríamos de dizer que a função metodológica VOLOSHINOV, V. N. - El Signo Ideologico y la Filosofia del Lenguaje,
da tipologia que estabelecemos pode ser interpretada em sua versão . Nueva Visión, Buenos Aires, 1976.
forte ou em sua versão fraca. Pela versão forte, diríamos que esses WILSON, D. & SPERBER, D. - "Remarques sur l'Interprétation des Énoncés
tipos de discurso - polêmico, lúdico e autoritário - têm uma gene- selon Paul Grice", em Communications, n. 0 30, pp. 80-93, 1979.
ralidade tal que, partindo de certos princípios, determinam ·as condi-
ções de significação para qualquer discurso. Pela versão fraca, diría-
mos que há sempre necessidade de uma tipologia na qual se inscrevam
os princípios e as condições de significação para um discurso e a
tipologia que f<Stabelecemos seria uma das tipologias possíveis, em seu
nível de generalização.

BIBLIOGRAFIA

BATESON, G. - "Play Signals and Meta-Comunication", em Psychiatric Re-


search Reports, n. 0 2, pp. 39-51, 1955.

BENVENISTE, E. - Problemes de Linguistique Générale II, Gallimard, Paris,


1974 (Problemas de Lingüística Geral, EDUSP/Cia. Editora Nacional,
São Paulo, 1976).

_DEBRUN, M. - "Gramsci: O Porquê do Bom-Senso", em Manuscrito III


n. 0 1, outubro, 1979.

DUCROT, O. - "Les Lois du Discours", em Laf!gue française, n. 0 42, pp.


21-33, 1979.

FLAHAULT, F: .,..--. "Le Fonctionnement de la Parole", em Comínunications,


n. 0 30, pp. 73-79, 1979.

GORDON, D. & LAKOFF, G. - "Postulats de Conversation", Langages,


n. 0 30, pp. 32-54, 1973.

GRAMSCI, A. - Concepção .Dialética da História, Ed. Civilização Brasileira,


Rio de Janeiro, 1966.

GRICE, H . P. - "Logic and Conversation", em Speech Acts, vol. III, Syntax


and Semantics, ed. Peter Cole e Jerry, L. Morgan, pp. 41-58, 1975.

174 175

UMA QUESTÃO DA LEITURA: A NOÇÃO DE


SUJEITO E A IDENTIDADE DO LEITOR*

INTRODUÇÃO

O propósito deste estudo é sugerir, aos que trabalham com


leitura, que há certos aspectos da linguagem, observados pela análise
de discurso, que podem ser levados em conta na reflexão sobre o
processo da leitura.
Há um autor (Marandin, 1979) que diz que a análise de dis-
curso "está partida entre duas tentações contraditórias: um ideal cien-
tífico, mais exatamente de prática científica na descrição de seu objeto,
e uma apreensão totalizante na definição de seu objeto, o discur-
so ( . .. ) Ora, a linguagem não é um conceito mas uma noção fluida
subsumindo um nevoeiro de fatos e causalidades (enunciação, deter-
minações históricas, sociais, etc.)" . Daí a afirmação de que a análise
de discurso é uma "colagem teórica" (dado o empréstimo selvagem de
noções a corpos teóricos heterogêneos) e uma "bricolage prática";
mas, ainda segundo esse mesmo autor, essas colagens e bricolages
são possíveis por causa de um certo número de teses (implícitas) sobre
a língua, a enunciação, a história: "essas teses regulam as metodolo-
gias de descrição e dão um sentido aos resultados que produzem".
Não cremos que este autor esteja muito longe d~ verdade.
Também não cremos que algum analista de discurso ~e pretenda
"cientista" no rigor estrito da palavra. No entanto, acreditamos que
a análise de discurso pode ser vista como uma forma de conheci-
mento da linguagem.
Negando-se a ser uma . análise de conteúdo e se propondo como
uma lingüística - distinguindo-se assim das práticas tradicionais de
análise de texto - à. análise de discurso está estabelecendo sua meto-

* Texto publicado em Cadernos 14, PUC, São Paulo, 1982.

177
dologia. Ainda que, ao contrário das teorias clássicas da linguagem, e deslocamentos de conceitos operatórios. Por exemplo, pelas teorias
a .sua prática tenha caminhado mais rápido que a teoria 1 . Disto tudo formais que se aplicam a analisar a língua, não nos parece que seria
resulta, a nosso ver, a falta de precisão de certos conceitos. Diríamos possível distinguir um discurso de outro, e essa distinção é funda-
mesmo que certas noções - tais como as de sujeito, imagem~ formação· mental para a análise1 de discurso. Trata-se, então, de se procurar
discursiva, texto, discurso, etc. - . são ainda bastante nebulosas. f: na. apreender a singularidade sem, evidentemente, perder de vista a pos-
prática das análises que esses conceitos adquirem nitidez e se colocam sibilidade de se construir a sua generalidade.
criticamente· em relação à constituição da teoria. E é também na prá-
tica que a análise de discurso acaba revelando aspectos da linguagem Diríamos, pois, que o discurso da análise de discurso não deve
que não seriam conhecidos através de outras perspectivas. ser tal que reproduza o discurso da lingüística clássica, porque ele é .
realmente outra forma de ver a linguagem. O estranhamento, então,
O esforço da precisão é muito necessário. Mas aí surge um pri- faz parte. Não é sem razão que temos proposto, provisoriamente, o
meiro problema: precisar conceitos não significa estabelecer uma outra ensaio. Não é sem motivo que preferimos, às vezes, aceitar que há
linguagem que não a que a análise de discurso se propõe, porque essa coisas na linguagem que não são tão "claras e distintas". Não é de
outr.a linguagem ("precisa") pode ser a linguagem do mesmo, ou seja, qualquer precisão que necessita a análise de discurso, isto é, essa
a da lingüística imanente e que não inclui o discursivo. precisão deve ter um lugar certo. Não há precisão em "abstrato. Depen-
de do "lugar" de que se olha. E o que se pode chamar de metafórico,
Desde Saussure, sabemos, em lingüística, qual é a relação entre quando se fala de certas definições e conceitos utilizados em análise
a metalinguagem e seu objeto. Que uns prefiram uma metalinguagem de discurso, pode muitas vezes ser apenas u.m uso polêmico da lingua-
a outra é natural. Porém, o uso de cada uma terá conseqüências espe~ gem e, por isso, intencional e justamente sujeito a discussões, no
cíficas importantes. Dessa forma, se há um sentido em se dizer que propósito de se chegar a formulações mais definidas.
a precisão de conceitos é necessária - e acreditamos nessa necessida-
de - é o de que se trata de uma precisão que se deve estabelecer Resumindo, diríamos que a análise de discurso, tal como se apre-
sobre suas próprias bases e não a partir de outras metalinguagens. senta hoje, pode ser vista como uma forma de conhecimento da
Cremos mesmo · que a operacionalização de conceitos na análise de linguagem que procura constituir sua metodologia e suas técnicas. Daí
discurso não poderá ter a rigidez de outros domínios da lingüística. resultam seu caráter exploratório, sua relativa imprecisão e a falta
Dadas as propriedades de seu objeto - em que entram em conside- de um modelo acabado de análise. Mas, se lhe falta uma teoria fechada,
ração fatores como o contexto, as condições de produção, etc - nem por isso se deixam de ter sistematizações: há princípios teóri.cos
deverá haver uma maior flexibilidade na forma como se opera com e metodológicos muito bem assentados, como, por exemplo, o de se
esse conceitos. Ou seja, lidar-se-á com instruções e não procedimen- levar em conta, na constituição da linguagem, as suas condições de
tos estritos, com regularidades e não regras, etc. O que nos leva a essas produção; há procedimentos já claramente delineados, como, por
afirmações é o fato de considerarmos que há uma distinção radical exemplo, o de se considerar a distinção entr~ :Superfície lingüística, o
entre a descrição de uma língua - que visa fornecer as regras que · objeto discursivo e o processo discursivo e a maneira de se passar de
permitem construir toda frase da língua - e a descrição de um dis- um a outro através de diferentes etapas de análise (Pêcheux, 1975);
curso - cujo objeto é descrever uma seqüência real única não repetí- há propostas de modelos e de teorias que se procuram fundamentar.
vel (instância histórica da linguagem). · · E, quanto ao aspecto efetivo dos resultados de análise, já é inegável
que a perspectiva da análise de discurso tem revelado aspectos da
O estatuto da lingüística (o de aplicação), na análise de dis- linguagem que não seriam passíveis de reflexão e sistematização em
curso, é complexo e implica uma série de reformulações, reavaliações outras perspectivas. Isto é, o ponto de vista da análise de discurso
revela novas propriedades do objeto que se analisa.
1 . Não estamos aqui negando a dinâmica entre a teoria e prática em outros
domínio.s dos estudos da linguagem; estamos pensando, antes, no processo Assim, nos colocamos aqui dois objetivos: um que chamaría-
predominante de uma ou outra em momentos diferentes da evolução de mos de interno e outro, externo. O objetivo externo é procurar dar
cada ciência ou disciplina. · alguma contribuição para a reflexão sobre a leitura. O objetivo in-

178 179
Afirmaríamos, assim, que, enquanto objeto teórico, o texto n o
temo é buscar tornar mais claras certas noções e explicitar certos pro-
é um objeto acabado. Enquanto objeto empírico (superfície lingUf
cessos que podem ser observados pela análise de discurso: as noções
tica), o texto pode ser um objeto acabado (um produto) com começo,
são as de leitor e sujeito; o processo é o da interação que constitui a
meio e fim. No entanto, a análise de discurso lhe devolve sua incom-
leitura, processo esse fundado na noção de texto, tal como o com-
pletude, ou seja, a análise de discurso reinstala, no domínio dos limit s
preendemos.
do texto, enquanto objeto empírico, as suas condições de produçuo.
Do ponto de vista de suas condições de produção, o texto tem
ALGUNS PRINC1PIOS K NOÇÕES relação com a situação e com outros textos, o que lhe dá um carát ·r
não acabado. Não vamos, entr~tanto, nesse trabalho, explorar mal
De direito, segundo o ponto de vista que adotamos, não se ~xtens~mente os aspectos do que podemos chamar intertextualidad
pode distinguir estritamente entre condições de produção e condições (relação do texto com outros textos) e implichação (relação do dito
de recepção do discurso. Isto é, embora, de fato, o momento da com o não dito) . A questão que fazemos é: como o texto representu
escrita de um texto e o momento de sua leitura sejam distintos, na o que consideramos ser o espaço discursivo? Ou seja, em uma anális
escrita já está inscrito o leitor · e, na leitura, o leitor interage com o que busca o movimento, a dinâmica da interação constitutiva da lin-
autor do texto. Por isso, preferimos falar, em geral, em condições de ,. guagem, como recuperar o processo da leitura? Sendo isto feito com
produção de um texto, considerando que estas condições incluem a condição de se ver na leitura não só a aplicação de uma técnica mas,
locutor e receptor. Daí, então, se poder fafar, sem que isto pareça es- preferentemente, um confronto de interlocução.
tranho, em condições de produção da leitura do texto. Nossa perspecti-
Em refação às condições de produção - situação, contexto
va é, pois, a de que a leitura é produzida.
histórico: social, interlocutores - podemos privilegiar, por uma qu 'S·
Tomando a definição pragmática que temos proposto para · texto, tão prática de trabalho, um de seus aspectos. :É o que faremos ,
consideramos que o texto é o lugar, o centro comum que se faz no nisto que constituirá nosso recorte, procuraremos refletir sobre a rela-
processo de interação entre falante e ouvinte, autor e leitor. ção entre interlocutores como um dos fa:itores que constituem o pro-
Observando-se a dinâmica de interação que existe entre falante cesso da leitura. Assim, podemos observar a instanciação da lingua-
e ouvinte sob a forma de bipolaridade contraditória - querendo com gem, examinando ·a relação que se faz entre quem escreve (o autor)
isso dizer que de um dos pólos (o do autor) nos colocamos no lugar e quem lê (o leitor).
do outro (o do leitor) e vice-versa - podemos concluir que o domínio
de cada um dos interlocutores, em si, é parcial. Sua unidade é a uni-
dade do/ no texto. A CARACTERIZAÇÃO DA LEGIBILIDADE
,..,
Mais ainda, pensando-se o texto como unidade complexa de
significação - consideradas suas condições de realização ---:- e pro- O modo como se vê um texto, ou seja, o julgamento que o leitor
curando caracterizá-lo em termos de processo de interação, podemos faz diante de um texto, deixando-se de lado sua avaliação propri n-
ainda observar que o texto não é uma unidade completa, pois sua . mente estética e considerando-se sua legibilidade, pode ser expres,
natureza é intervalar. Sua unidade não se faz nem pela soma de inter- assim: esse texto é claro e entendi tudo, esse texto é obscuro e n o
locutores nem pela soma de frases . O sentido do texto não está em entendi nada, esse texto é confuso e entendi um pouco, esse texto
nenhum dos interlocutores especificamente, está no espaço discursivo claro mas ... , etc. Resumiríamos essa variação de julgamentos acer ·
dos interlocutores; também não está em um ou outro segmento isola- da legibilidade do texto em uma oposição básica: o texto é bem •s-
do em que se pode dividir o texto, mas sim na unidade a partir da qual crito/o texto não é bem escrito. Em termos de resultado, isto acarr -
eles se organizam. Daí haver uma característica indefinível no texto
taria também duas possibilidades, no limite: compreend,~-se/não s
que só pode ser apreendida se levarmos em conta sua totalidade, sua
compreende o texto.
unidade.
181
180
Para tratar disso, pensando-se as condições de produção da lei- · do texto como objeto acabado, mas já se incluem elementos como os
tura, pode-se perguntar se, ao se fazer esse julgamento, leva-se para o tópicos discursivos, na reflexão sobre a legibilidade.
nível do texto o julgamento do nível gramatical. Neste nível, conside- Pécora ( 1977), estudando o período, através de uma perspec-
ram-se julgamentos como: esta sentença é gramatical agramatic'al (em tiva pragmática, trata de três hipóteses de pesquis~ principais: "primei-
referência à gramática) e su~ extensão aceitável/não aceitável (fe- ro, a de que o período teria por função a organização das relações a
nômeno intuitivo), o que também podemos resumir, dizendo que a serem estabelecidas, de tal modo a favorecer a explicitação do racio-
sentença pode ser considerada bem formada/mal formada. O que cínio. Segundo, os problemas encontrados em sua realização estariam,
perguntamos, então, é se haveria uma relação entre bem formado a conseqüentemente, ligados a mecanismos discursivos de argumentação.
nível gramatical e bem escrito a nível discursivo. Imediatamente, pelo Terceiro, as relações estabelecidas no interior do período seriam for-
que viemos dizendo a respeito de texto, já poderíamos responder que
.necidas pelo senso comum".
não, pois são julgamentos de natureza diferente, sobre objetos dife-
rentes. O julgamento de gramaticalidade é feito sobre sentenças (com Já Osakabe (1977), fazendo considerações que levam em conta
suas características próprias) e é do nível gramatical. O julgamento a unidade de interlocução, ao analisar a questão das provas de argu-
que incide sobre o bem escrito é feito sobre o texto (com suas con- mentação, distingue coesão (que é relativa a índices, a marcas for-
dições de produção) e é do domínio do discurso. Isto é, no julgamento mais) e coerência (que se refere à consistência de significado, sendo
do texto entram elementos menos definíveis do que o são as marcas um valor lógico 2 ). Essa distinção, assim como as reflexões de Pécora .
formais. sobre o período, embora estejam voltadas para a produção do texto,
Entretanto, não se podem desconsiderar fatores como a boa for- já nos permitem consi_derar a legibilidade do texto em função de outros
mação de sentenças na constituição da legibilidade do texto. Muitos elementos que não apenas suas marcas formais explícitas.
autores têm-se dedicado a estudar a capacidade de leitura de um
·ne nossa parte, gostaríamos de pensar a legilibilidade de um texto
texto, sua legibilidade, em função do uso adequado de marcas for-
mais a nível de sentenças. Indo mais além, outros autores - como não apenas como conseqüência direta e unilateral da escrita. Consi-
Halliday e Hasan ( 197 6) por exemplo - falam da interpretabilidade deramos que todos esses elementos, que são colocados pelos diferentes
(distinta da inteligibilidade) do texto em relação à sua coesão interna. autores, têm sua importância e são necessários para a caracterização
Halliday e Hasan reconhecem também a necessidade de se estudar a da legibilidade. Porém, gostaríamos de acrescentar que, de um lado,
consistência de registro, ou seja, caracterizam . o texto como sendo a legibilidade não é uma questão de tudo ou nada mas uma questão
coerente sob esses .dois aspectos: coerente com relação ao contexto de de graus, e, de outro, gostaríamos de dizer que a legibilidade envolve
situação (consistente em registro) e coerente consigo mesmo (coeso). outros elementos além da boa formação de sentenças, da coesão textual,
Embora reconhecendo a necessidade de se considerarem esses dois da coerência. Ou, dito de outra forma, um texto pode ter todos esses
aspectos, Halliday e Hasan ( 197 6) dedicaram-se ao estudo da coesão, elementos em sua forma optimal e não ser compreendido. Do nosso
deixando de lado, como característica da textualidade, a consistência ponto de vista, então, é preciso se considera~, no âmbito da legibili-
de registro, que é o que define a substância do texto, o que ele signi-
dade, a relação do leitor com o texto e com o autor, a relação de
fica. Assim, não dá para se analisar o próprio processo de interação
da leitura, pois, na perspectiva da coesão e na da boa formação das interaçã; que a leitura envolve.
sentenças, fica-se no texto como objeto acabado, produto finito.
2. Segundo Osakabe: " ... a argumentação constitui um tipo de raciocínio,. ·
Outros trabalhos, como o de Perini (1980), estudam a relevân- que se realiza pela língua natural. E por isso ela pode aparecer em qual-
quer texto produzído nesse tipo de língua. ·Se sua a~arência lógic~ ~ão
cia da sinalização de tópicos do texto para a legibilidade do mesmo. exige um rigor matemático, não pode ela, no entanto, dispensar um mm1mo
Segundo este autor, "um texto mal sinalizado dá menos do que de- de exatidão lógica, um mínimo de pertinência entre o tipo de prova e a
veria ao leitor, fazendo maiores exigências ao seu uso de conheci- tese que se intenta assumir. Isso peló próprio efeito que se pretende obter
mento prévio do assunto". Cremos que, também nesse trabalho, trata-se no ouvinte".

182 183
Assim, a não compreensão ou compreensão 3 do texto não tem unidade, totalidade que organiza suas partes. Sem o contexto e a
de ser, necessariamente, atribuída a ele, em si mesmo. Por exemplo, / relação definida do leitor com a situação, ou seja, sem os elementos
em relação a um piesmo texto, tomado como produto, X pode achá-lo que unificam o processo da leitura, que a configuram, n_ão há o dis~an­
obscuro, Y achá-lo claro e Z achá-lo mais ou menos. claro. Aí está ciamento ~~cessário para a leitura, e o leitor perde o acesso ao sentido.
um aspecto importante da legibilidade de um texto. Este é um ponto f: isso que se dá quando o leitor lê palavra p.or palavra, sentença por
que gostaríamos de firmar nesse trabalho, e a maneira de fazê-lo é sentença, e não apreende o sentido global do texto, ou se pergunta, no
tratar dos interlocutores, aprofundar um pouco mais a questão da final de uma leitura: "o que é que devo entender disso?". Segundo o
presença do outro no texto, a partir da relação que se estabelece com que pensamos, esses são problemas que dizem respeito à relação do
a maneira como o outro (o leitor) foi fixado, e como esse outro (o leitor com a situação que envolve a leitura.
leitor) se representa no próprio processo da leitura. Em suma, pensar Segundo alguns autores 4 isso se 1dá porque sem uma distância
a relação entre o leitor virtual (inscrito no texto) e o leitor real. mínima o leitor não pode prever, ante~ipar. Gostaríamos de acrescen-
tar que, dado a fato de que, segundo nossa definição de texto, o espaço
discursivo não é linear, e como a progressão do texto não se faz por
O LEITOR E ALGUNS ASPECTOS DAS CONDIÇÕES acúmulo mas também por retomadas, isto é, há constituição perma-
DE PRODUÇÃO DA L~ITURA nente do que se diz e do que já foi dito 5 , assim, a não compreensão
do texto se deve também ao fato de não se poder voltar atrás e refazer
Uma primeira forma de abordagem da maneira como o leitor percursos, quando não há distância suficiente. O que, em suma, signi-
se representa, no processo de leitura, pode ser observada pelo fato fica dizer que, sem distância não se pode apreender o texto em sua
de que a leitura é seletiva, isto é, há vários modos .de leitura, que totalidade e sem a apreensão da totalidade não há acesso ao sentido
podem ser caracterizados, de forma geral, da seguinte inaneira: a) o
do texto.
que tem relevância para o leitor é a relação do texto com o autor (seria,
por exemplo, o modo de leitura que responde à questão: "o que o Mais amplamente, há um outro aspecto importante da represen-
autor quis dizer?") ; b) a relevância é a da relação do te:Xto com outros tação do leitor no processo da leitura. O outro, isto é, o leitor, na
textos (seria, por exemplo, a leitura comparativa) ; c) · a relevância é medida em que lê, se constitui, se representa, se identifica. A questão
a da relação do texto com seu referente (seria, por exemplo, a leitura da compreensão não é só do nível da informação. Faz entrar em conta
que responde à questão: "o que o texto diz de x?"); d) a relevância o processo de interação, a ideologia. A tensão, o confronto existente é
é a da relação do texto com o leitor (seria a explicitação do papel do
aquele que podemos observar quando perguntamos pelo interlocutor
leitor, respondendo à questão: "o que você entendeu?"). Há, certa-
qo texto. Há um interlocutor que é constituído no próprio ato da .·
mente, vários modos de leitura e suas correspondentes estratégias. O
que procuramos fazer acima, sucintamente, foi colocar algum critério escrita. Assim, na medida em que o h;terlocutor (o leitor real) já
para o estabelecimento de modos de leitura baseado na forma como o encontra um outro, um leitor constituído (o leitor virtual) no texto,
·leitor · se representa no processo de leitura, de forma seletiva. Isto é, começa o debate. Se pensamos a escrita como se constituindo na inte-
procuramos estabelecer uma referência para a sua seletividade. ração, podemos observar o jogo existente entre o leitor virtual e o
leitor real.
Há um outro fator que pode ser considerado sob o aspecto com
que o leitor ·representa sua relação com a situação e o contexto. 4. Chegou-nos às mãos, um pouco tardiamente, um desses textos: "Lectures
Contexto, aqui, considerado não enquanto contexto lingüístico, mas et Linéarité" de Daniel Coste (xerox). Colocamos esta nota, apesar de
sim como textual, isto é, aquele em que consideramos o texto em sua não termos i;1dicações mais precisas, porque achamos que este autor coloca
uma direção interessante para a reflexão sobre a leitura.
5. Este aspecto é trabalhado por° ·Edurado Guimarães, em uma comunicação,
3. Preferimos falar em compreensão para não distinguir, como Ha11iday e
'Tópico-Comentário e Argumentação na constituição do texto", apresentada
Hasan (1976), entre os fenômenos de inteligibilidade e interpretabilidade,
Para nós, a compreensão engloba os dois fenômenos. rio VI Encontró Nacional de Lingüística, PUC, Rio de Janeiro, 1981. Nesse

184 185
A leitura é o momento crítico da constituição do texto, é o mo- ou seja, a imagem que se faz do aluno de tal ida?e, tal c~ass:, tal curso,
mento .privilegiado da interação, aquele em que os interlocutores se tal instituição. Diante do interlocutor real, o discurso e feito ou para
identificam como interlocutores e, ao se constituírem como tais, desen- reproduzi-lo (se ele se aproxima do virtual) ou para transformá-lo
cadeiam o processo de significação do texto. (se ele difere do leitor virtual), uma vez que a escola tende para
A relação entre o leitor virtual e o real pode ter uma maior ou a homogeneização. Como o discurso pedagógico, em geral, como
menor distância, podendo o leitor real coincidir ou não com o leitor o caracterizamos, é um discurso autoritário, ele não leva em conta
virtual. Nesse passo, gostaríamos de dizer que, quando falamos de as condições de produção da leitura do aluno, fazendo com que o
leitor real e virtual não estamos nos referindo ao problema da discor- aluno re.al e o virtual coincidam sem que se opere uma mudança ·
dância ou concordância. Esses outros fatores também têm seu .papel nas condições de produção. O que, em última instância, nos leva a
na legibilidade, mas quando falamos em leitor real e virtual estamos . dizer que o discurso pedagógico não dá importância à compreensão:
pensando no aspecto elementar do acesso ao sentido. A disco'rdância ou o aluno já tem as condições favoráveis ou ele decora, repete,
ou concordância já se faz sobre um sentido reconhecido ou atribuído imita. Essa é a qualidade de sua identidade de leitor, ou seja, é assim
ao texto., que o aluno se coloca no lugar do interlocutor desejado. Quer dizer,
mesmo na perspectiva pedagógica que se faz em relação a um aluno-
flaverá uma variação grande na relação entre autor e leitor, padrão, não se usam estratégias discursivas capazes de modificar as
dependendo da distância entre o leitor real e o virtual, se considera- condições de produção de leitura do aluno para que ele chegue a se
mos os diferentes tipos de discurso. Gostaríamos de observar, em aproximar desse aluno-padrão.
geral, uma forma dessa variação, ·e que inscreveríamos na retórica.
Aí está um problema que se insere no domínio da legibilidade e
Quando a distância é tal que leva à não compreensão do texto, pode-
que pouco tem a ver com sentenças bem ou mal formadas, ou com
mos dizer que, do ponto de vista do autor, sua estratégia pode ter
coesão. Tem a ver com a relação entre formações discursivas e ideo-
duas direções: mudar o interlocutor ou mudar de interlocutor. Isto,
lógicas, com funcionamentos discursivos que se definem em um outro
de acordo com um princípio da teoria da retórica, que é o de pedir
espaço que o propriamente lingüístico. Tem a ver com a consideração
ao orador que se adapte ao seu auditório. Assim como, diríamos, há
do discurso enquanto processo de interação.
do lado do leitor o princípio de levar em conta a disposição do autor.
Esse é um acordo (provisório ou não) que faz parte do processo da Do ponto de vista do leitor, há ainda um aspecto retórico inte-
leitura. ressante a se observar: dizer-se que não se entendeu um texto, quando
se é considerado um bom leitor, pode significar que se está dizendo
Especificando o que dissemos acima sobre a mudança de inter- que o texto é obscuro ou mal escrito. Por essa via poder-se-ia obs~r~ar .
locutor, diríamos que se trata de uma estratégia muito usada em todo um aspecto de implícitos da relação de leitura, mas que aqui fica
discursos em que as pessoas "se reconhecem pela palavra", ou seja, apenas como sugestão e que representa um outro domínio em relação
o discurso que tem o interlocutor já definidamente delineado. Nesse aos fatos que estamos aqui observando.
caso, havendo incompreensão, só pode haver mudança de auditório.
:E: o caso extremo de identificação ou exclusão. A NOÇÃO DE SUJEITO: O AUTOR E O LEITOR
Em relação à outra possbilidade que é a de mudar o interlocutor, , Gostaríamos de concluir (provisoriamente) este trabalho, fazen-
queremos com isso dizer que se podem mudar as condições de pro- do algumas considerações a respeito da noção de sujeito.
dução da leitura. Podemos refletir sobre isso a partir do discurso pe-
Há uma contradição inerente à noção de sujeito que vem da
dagógico. Este discurso tem como interlocutor um aluno-tipo, virtual,
relação entre identidade e alteridade e que se constituem mutua-
mesmo Encontro, Angela Kleiman apresentou a comunicação "O desen-
mente. :E: um movimento que, ao marcar a identidade, atomiza, por-
volvimento de estratégias de leitura na criança". É um trabalho que incorpo- que distingue, e, ao ~esmo tempo, integra, porque esta é sempre feita
ra fatores discursivos. de uma relação.

186 187
Essa contraditoriedade é pensada na análise de discurso em dois mos seria: o discurso caboclo para o pesquisador é ainda o discurso
lugares especialmente: a) pela ilusão do sujeito de que ele é a fonte caboclo? Suas características são diferentes do discurso caboclo para
de seu dizer quando na verdade o seu dizer nasce em outros; b) pela o caboclo (simetria) de tal forma que configurariam outro tipo · de
relação existente entre a formação discursiva e a formação ideológica. discurso? Do nosso ponto de vista, diríamos que é o discurso caboclo
Isto é, essa contraditoriedade deriva do fato de que há a interpelação para o. pesquisador (ou para o branco), ou para o caboclo, etc., mas
do indivíduo em sujeito feita pela ideologia. é ainda o discurso caboclo. Assim, também não mudamos completa-
mente nosso discurso nem nos transformamos eni outros, ou seja, não
Isso resulta no deslocamento da centralidade do sujeito, deslo-
perdemos nossa identidade em cada relação de linguage1? dif~rente. O
camento este que é apreendido pela própria noção de discurso, ou,
·q ue há. é uma modulação do nosso discurso e da nossa identidade nas
como diz Maingueneau (1976) : "o conceito de discurso despossui o
diferentes relações. Essa modulação se faz em direção ao para quem
sujeito falante de seu papel central para integrá-lo no funcionamento do discurso e a contraditoriedade, então, é a seguinte: o sujeito é o
dos enunciados, dos textos, cujas condições de possibilidade são siste-
mesmo e é diferente simultaneamente.
maticamente articuladas sobre formações ideológicas";
É ainda essa contraditoriedade que pode nos servir para com-
Por isso, para nós, ser na linguagem é ser-se estranho, isto é, preendermos e refutarmos a observação b. A relação de linguagem é
ser sujeito, em termos de discurso, é ser fora-de-si, é dividir-se. interação; não há apagamento na constituição do sujeito de tal, modo
Segundo Slakta (1971), "O indivíduo concreto é constituído ao que, o que lhe é mais próprio, desapareça. Ao contrário, ha uma
mesmo tempo como eu pela língua e interpelado como sujeito pela tensão constante nesta constituição: o sujeito de linguagem é ele mesmo
ideologia ( ... ) A ideologia aparece como um processo de comunica- e o complemento do outro, ao mesmo tempo.
ção implícito que determina as práticas (discursivas e outras) dos Resumiríamos essas objeções dizendo que a relatividade da noção
' indivíduos constituídos em sujeitos".
de sujeito não é absoluta. Não se deve enrijecê-la em nenhum dos
De forma geral, podemos dizer que o sujeito da linguagem não é pólos: nem no pólo individual, nem no social. Daí não se poder afir-
um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a mar, segundo o que cremos, nem um sujeito absolutamente dono de
apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo si, nem um sujeito totalmente determinado. pelo que lhe vem de fora.
enquanto ·tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma O espaço da subjetividade na linguagem é tenso.
social dessa apropriação .. Por outro lado, o mesmo ·pode ser observado em relação ao
Essas afirmações, em relação à noção de sujeito, podem nos leitor. Há o exagero para mais: a) qualquer leitura é boa, pois cada
levar a algumas conseqüências em vista da noção de autor e de leitor. leitor compreende de acordo com suas condições de produção de
. De um lado, em relação ao autor, podemos fazer duas observações leitura. Há o exagero para menos; b) nenhuma leitura é boa, só o
~ que representam o exagero para mais, e o exagero para menos, respec- autor tem o domínio completo do que diz. Essas duas afirmações,
tivamente. Ambos os exageros. são interpretações pessimistas: a) Há que também constituem interpretações pessimistas, têm a ver com a
1.im sujeito para cada situação; b) não há sujeito nenhuni, por causa identidade do leitor.
da determinação social. Ou seja, tanto em a como em b está em causa
Em relação a a diríamos que as leituras são múltiplas, mas não
a identidade do autor.
são tais que qualquer uma é boa. Há uma relação de interação que
O caso de a pode ser exemplificado com o fato de que assumi- · regula as possibilidades de leitura. O autor também é levado em conta
mos papéis e discursos diferentes quando falamos com pessoas dife- e isso também faz parte das condições de produção de leitura. .
rentes, em situações diferentes, etc. Seria interessante lembrar aqui
o trabalho de Romualdo ( 19 81 ) , em que se analisam relações dis- O jogo entre a paráfrase - que nesse caso seria a reprodução do
cursivas assimétricas. O resultado da análise . caracteriza o discurso que o autor quis dizer, o reconhecimento do sentido dado pelo autor
caboclo falado para o pesquisador (assimetria) . A questão que faría- - e a polissemia - que seria a atribuição, pelo leitor, de outros sen-

188 189
tidos ao texto - é articulado, isto é, a relação existente entre pará- Com respeito à relação entre formação discursiva e formação
frase e polissemia se coloca como autolimitativa, uma dá os limites da ideológica, resta-nos especificar que, como o lugar que os interlo-
outr,a. ·Assim, na relação do leitor com o texto, dependendo das dife- cutores ocupam numa formação social e, logo, na sua relação com a
rentes formas de interação estabelecidas (ou tipos de discurso como ideologia, é constitutivo de seu discurso, isto é, constitui aquilo que
o polêmico, autoritário ou lúdico), temos desde o simples reconhe- eles significam, a interação entre autor e leitor do texto está marcada
cimento do que o autor quis dizer, ou então a imposição de um sentido por essa relação. Assim, a posição entre leitor e autor pode variar
único que é atribuído pelo leitor ao texto (sem levar em conta seu desde a maior harmonia até a maior incompatibilidade ideológica, o
autor), até leituras que permitem uma variação de sentidos de maneira que vai constituir a compreensão do texto, uma vez que, ·como vimos,
bastante ampla. a leitura é produzida.
Na 'versão pessimista da interpretação da noção de sujeito, que Finalmente, pode-se, então, concluir que são vários os fatores
coloca que nenhuma leitura é boa, estaríamos lidando com a posição que devem ser levados em conta em relação à legibilidade de um texto
de que só o autor tem domínio completo do que diz. A esse respeito e que colocam as exigências do nível gramatical e -<lo nível da coesão
podemos também observar que essa afirmação pode ser relativizada textual como, talvez, necessárias, mas, certamente, não s~ficientes.
levando-se em conta o processo de interação que é . constitutivo do Resta como perspectiva um estudo mais sistemático e aprofundado dos
discurso; especialmente; se pensarmos que o autor, necessariamente, .
fatores que agrupamos sob a rubrica das condições de produção da
constitui sua escrita na relação com um interlocutor. Esse espaço de leitura.
interlocução, essa incompletude que faz parte da linguagem é funda-
mental para a leitura.
Ainda em relação ao domínio do autor sobre o texto, podemos BIBLIOGRAFIA
acrescentar que sua relatividade vem do fato de que o texto tem
COSTE, D .. - "Lecture et Linéarité", xerox.
relação com outros textos e com as condições em que se produz, como
HALLIDA Y, M. A. K. & HASAN - Cohesion in English, Longman, London,
tivemos ocasião de observar anteriormente. Dessa forma, um t_exto 1976.
pode significar mesmo o que não faz parte da intenção de significação MAINGUENEAU, D. - lnitiation aux Méthodes de l'An·a[yse du Discours,
de seu autor (ilusão discursiva do sujeito). Hachette, Paris, 1976.

Seria ainda interessante notar que, pela leitura, em relação à MARANDIN, J. M. - "Problemes de l'Analyse du Discou~s. Essai de Descrip-
tion du Discours Français sur la Chine'', Langa.ges, n. 0 55, Larousse, 1979.
noção de sujeito, inverte-se a perspectiva do mesmo e do outro, ou 0

OSAKABE, H. - "Provas de Argumentação", Cadernos de Pesquisa, Fundação


seja, na leitura o outro é o autor. Com isso poderíamos caracterizar a .Carlos Chagas, 1977.
própria leitura como um discurso, o que deve trazer conseqüências . PÊCHEUX, M. - Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969.
fecundas para o estudo da leitura, mas que não nos cabe explorar aquL - - - - ; FUCHS, C. - "Mises au Point et Perspectives à Propos de L' Ana-
lyse Automatique du Discours", Langages, n. 0 37, Larousse, Paris, 1975.
PÉCORA, A. ·A. B. - "Estudo do período, numa proposta pragmática", Cader-
·. OBSERVAÇÕES FINAIS nos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, 1977.
PERINI, M. - "Tópicos Discursivos e aLegibilidade dos Textos'', xerox, 1980.
Em suma, pela consideração das condições de produção e pela ROMUALDO, J. A. - "Assimetria no diálogo: relação entrevistador/entrevista-
definição de texto como constituído pelo processo d~ interação, do'', comunicação apresentada no Encontro Internacional de Filosofia da
Linguagem, UNICAMP, Campinas, 1981.
relativiza-se. a noçãü de sujeito e isso tem conseqüências, como pude-
SLAKTA, D. - "Esquisse d'une Théorie Lexico-Sémantique : pour une analyse
mos Il;Otar, tanto sobre a caracterização do autor como a do leitor e; d'un texte politique (Cahii;:rs de Doléances)", Langages, n. 0 23, Didier-La-
por extens'ão, sobre o precesso de leitura. rousse, Paris, 1971.

190 191
A PRODUÇÃO DA LEITURA
E SUAS CONDIÇÕES*

O QUE :É A LEITURA

Já podemos considerar como um adquirido, na perspectiva da


análise de discurso, o fato de que a leitura é produzida ( cf. p. 180).
Dessa forma, nosso objetivo, nesse estudo, é o de estabelecer,
colll alguma precisão, fatores que constituem as condições de produ- .
ção da leitura.
Para esse objetivo, uma postura produtiva é a de considerar que
a leitura é o momento crítico da constituição do texto, pois é o mo-
mento privilegiado do processo da interação verbal: aquele em que
os interlocutores, ao se identificarem como interlocutores, desenca-
deiam o processo de significação.
Em outras palavras: é na sua interação que os interlocutores
instauram o espaço da discursividade. Autor e leitor confrontados
definem-se em suas condições de produção. Os fatores que consti-
tuem essas condições é que vão configurar o processo da leitura.

O DETERMINADO E O INDETERMINADO:
A CONDIÇÃO DA LEITURA

Antes de enumerar alguns desses elementos, gostaríamos de


lembrar que estamos tratando a leitura na perspectiva do discurso.
Assim, uma noção relevante é a de social, uma vez que o conceito
de discurso define um lugar entre "a singularidade individual e a
. .
universalidade" (Pêcheux, 1969).
O discurso, então, é conceito intermediário que se coloca no lugar
em que se encontram tanto a manifestação da liberdade do locutor

* Texto publicado em L eitura» Teoria e Prática, n. 0 1, Porto Alegre, 1983.

193
quanto a ordem da língua, enquanto seqüência sintaticamente correta. tra' -os termos principais, ou destrói os argumentos. Assim é que o
E isto se dá não em abstrato, mas "como parte de um mecanismo em processo discursivo não tem, de direito, um início: o discurso se esta-
fundonamento, isto é, como pertencente a um sistema de normas nem belece sempre sobre um discursivo prévio ( ... ) " (Pêcheux, idem).
puramente individuais nem globalmente universais, mas que deriva da
Além disso, compõe também a noção de intertextualidade o fato
estrutura de uma ideologia política e, logo, correspondendo a um
de que um texto tem relação com outros (suas paráfrases) que pode-
certo lugar no interior de uma formação social dada" (Pêcheux, idem).
riam ter sido produzidos naquelas condições e que não o foram.
Isso tudo nos permite conceber o funcionamento 1 do discurso, Assim, aquilo que se poderia dizer e não se disse, em condições deter-
desde que se leve em conta as s:uas condições de produção. O que minadas de produção, também constitui o espaço de discursividade
significa dizer que a noção de funcionamento remete o discurso à sua daquelas condições.
exterioridade, necessarü1mente. No modelo de Pêcheux, estaria aí incluída a relação de forças,
Essa relação com a exterioridade, com a situação - contexto pela qual se liga o locutor ao lugar social do qual diz.
de enunciação e contexto sócio-histórico - mostra o texto em sua Não podemos deixar de observar que a noção de implícito -
incompletude. que. abrange pressupostos e subentendidos - inclui a relação com a
intertextualidade mas é mais abrangente, uma vez que contam também
Entendemos como incompletude o fato de que o que caracteriza outras determinações de situação, além das intertextuais que mencio-
qualquer discurso é a multiplicidade de sentidos possível. Assim, o namos.
texto não resulta da soma de frases, nem da soma de interlocutores:
Tudo isso faz parte da relação de interação que a leitura esta-·
o(s) sentido(s) de um texto resulta(m) de uma situação discursiva,
belece. Considerar as condições de produção da leitura é trabalhar
margem de enunciados efetivamente realizados. Esta margem - este
fundamentalmente com essa espécie de indeterminação: a incomple-
intervalo - não é vazio, é o espaço determinado pelo social. tude do texto.
Podemos colocar como reveladores da incompletude toda espécie Levar em conta a intertextualidade, na leitura, é refletir (e tornar
de implícitos. Chamaríamos, aqui, a atenção para uma espécie de im- operacional) sobre o fato de que o ( s) sentido ( s) de um texto pas-
plícito que deriva da intertextualidade. sa ( m) pela sua relação com outros textos. Vejamos o que se pode
A noção de intertextualidade é uma noção complexa. Segundo levar em conta, quando se pensa a incompletude.
essa noção, sabemos que um texto tem relação com outros textos nos Em relação à incompletude, não se trata de considerar o texto
quais ele nasce (sua matéria-prima) e/ou outros para os quais ele como matriz com lacunas que são preenchidas pelo leitor. O que
aponta (seu futuro discursivo). expressaríamos dizendo que a natureza da incompletude não é lacunar
mas intervalar.
Na análise. de discurso proposta por Pêcheux, estaria aí caracte- O texto, objeto acabado 2 , constitui uma totalidade com começo,
rizada a relação de sentidos: "assim, tal discurso envia a tal outro, meio e fim. A natureza de sua incompletude é outra. Ela deriva de
frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou de que ele 'orques- sua relação com as condições de produção, ou seja, da relação com
a situação e com os interlocutores.
- 1 . A noção de funcionamento é básica para se entender a possibilidade de O texto é incompleto porque o discurso instala o espaço da
sistematização dos elementos constitutivos da significação de um discurso.
O deslocamento da. noção de função para funcionamento é, segundo Pêcheux, intersubjetividade, em que ele, texto, é tomado não enquanto fechado
condição para que se constitua qualquer ciência que trata do signo. No do· em si mesmo (produto finito) mas enquanto constituído pela relação
rnínio da análise do discurso, segundo esse mesmo autor, isso se dá, ou seja, · de interação que, por sua vez, ele mesmo instala.
"os fenômenos lingüísticos de dimensão superior à frase podem efetivamente
ser concebidos como um funcionamento, mas com a condição de acrescentar 2. A propósito da distinção do texto enquanto objeto empírico e enquanto
imediatamente que esse funcionamento não é integralmente lingüístico" objeto teórico, fizemos algumas observações mais específicas em "Urna
(Pêcheux, idem). questão da leitura: a noção de sujeito e a identidade do leitor'', neste vofüme.

194 195
Resgatado da perspectiva da fü;iguagem como instrumento de lise de discurso, é que vemos a sua contribuição para a área de produ-
comunicação, o texto não é o lugar de informações - completas ou ção e leitura. Ou seja: ao explicitar o funcionamento desse fenômeno
a serem preenchidas - mas é processo de significação, lugar de lingüístico a que chamamos discurso, ao mostrar como um texto fun-
sentidos. ciona, o analista de discurso fornece subsídios metodológicos para a
É esse confronto de sentidos que nos interessa observar na inte- prática de produção e leitura. Sem esquecer que o traço essencial desse
ração da leitura. funcionamento é a relação do texto com os outros textos, com a situa-
ção, com os interlocutores, ou seja, com suas condições de produção.
Dadas as características da incompletude, tal como acabamos
de colocar, nesse processo de interação da leitura, não creio que, Dessa forma, não desconhecendo que, já de início, ao conside-
diante de um texto, se parta apenas de sua indeterminação (corno se rarmos a leitura como interação, há uma seletiyidade que revela o
existissem lacunas) para a sua determinação (uma vez preenchidas as modo de leitura assumido pelo leitor, gostaríamos de abordar algumas
lacunas). É mais complicado que isso : questões que têm corno função esclarecer elementos constitutivos das
condições de produção de todo discurso. Visamos assim contribuir
a) Partimos da aparente determinação do texto enquanto pa~a a reflexão sobre a legibilidade 3 . Essas questões se fazem em
produto. torno das seguintes noções:
b) Recuperamos o processo que o indetermina. Tipo
c) Pousamos provisoriamente na determinação. Contexto e Sujeito
d) Retornamos para a indeterminação que é o confronto com Leitura Parafrástica e Leitura Polissêmica
o outro, isto é, o autor.
O que nos leva a distinguir dois planos segundo os quais seguimos
NOÇÃO DE TIPO
diferentes percursos em relação à indeterminação:

A. Ponto de vista do Essa noção - a de tipo - deve ser entendida em função de sua
texto como objeto } ~eterminação ~ Indeterminação ~ Determinação relação com funcionamento, considerando-se, agora, este último de
acabado · uma maneira mais espeeífica, como o venho definindo: o funciona-
J, ' J, --li'
mento é a atividade estruturante de um discurso determinado, por um
texto fechado texto referido uma leitura
em si mesmo às condições de determinada falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalida-
produção des específicas. Sem esquecer que, no discurso, trata-se do jogo de
formações imaginárias e, portanto, esse "determinado" utilizado na
B. Ponto de vista
das Condições } Indeterminação ~ Determinação ~ Indeterminação definição, a respeito dos interlocutores, não se refere a um falante em
de Produção si mas à sua posição no discurso, através de regras de projeção '1 : Para-
' J, ' t J, lelamente, tampouco se trata, ao se falar em discurso determinado,
múltiplas contexto produto
de um todo fechado em si mesmo, mas de um estado de processo dis-
leituras específico, que se repõe
possíveis leitor como processo, cursivo, logo, um fragmento de um continuum.
específico, outras leituras.
modo específico 3. Mantemos aqui o conceito de legibilidade tal como o estabelecemos no
de leitura, etc. estudo sobre leitura citado na nota 2.
4. As regras de projeção, de acordo com Pêcheux (op . cit., 1969), estabele-
Tendo, pois, essas afirmações como base, e considerando, tal cem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) nos mecanis-
mos da formação social e as posições (representações dessas situações) no
como Pêcheux, ·a noção de funcionamento como central para a aná- discurso.

196 197
Devemos ainda observar que, pela relação entre processo e pro- "No dia 15 de abril, assumiu a presidência o marechal Humberto de
duto, consideramos que o tipo (produto) é funcionamento discursivo Alencar Castelo Branco".
(processo) que se cristaliza historicamente, dada a dinâmica das
Nesse exeinplo, podemos constatar a presença simultânea de:
condições de produção. Dessa forma, certas configurações se institu-
cionalizam e se tornam típicas, constituindo, historicamente modelos a) um sujeito do enunciado: Castelo Branco (Médici, etc.);
para o funcionamento de qualquer discurso. '
b) um sujeito da enunciação: os autores dos livros didáticos de
Por outro fado, de acordo com a perspectiva na qual nos colo- história que analisamos;
camos, todo dizer é, necessariamente, configurado, e, logo, pode ser
referido a um tipo. c) um sujeito textual: a Segurança Nacional (o sistema econô-
mico, o desenvolvimento a qualquer preço, etc.).
Conseqüentemente, nas condições de produção da leitura, ou
seja, na relação de interação que a leitura (envolve) estabelece, já Como, nos textos que analisamos de História do Brasil havia
está inscrito um tipo. muita inversão de sujeito, voz passiva sem agente, construções com
Faz paFte da estratégia de leitura levar em conta o tipo não de sujeito indeterminado, etc., já se tornava difícil mesmo o reconheci-
forma estanque mas na sua relação com o funcionamento discursivo. mento do sujeito a nível do enunciado.
A consideração do tipo como parte das condições de produção é Por outro lado, sem uma certa explicitação da função do sujeito
fundamental, pois, segundo hipóteses que vimos desenvolvendo, a da enunciação, isto é, da presença do autor na constituição do texto
relevância de fatores que constituem as condições de significação de - que, no caso, era a da perspectiva pela qual a histórfa era contada
qualquer dizer é determinada pelo tipo de discurso. - , não se chega ao sujeito da enunciação. Podemos citar, como
exemplo da variação dessa perspectiva, o fato de que, em alguns
Aquilo que é relevante em um tipo de discurso pode não sê-lo
textos, os autores falavam do ponto de vista de quem estava no poder,
em outro. E isto, evidentemente, compõe a legibilidade de um texto,
· em outros textos os autores se colocavam como representando a voz
quando se pensa a legibilidade em relação ao uso efetivo da linguagem
e não apenas como propriedade imanente do texto. da oposição, etc.

Na leitura, entra, então, a capacidade do leitor em reconhecer Dessa forma, pudemos considerar o funcionamento de dois dos
os tipos de discurso e, conseqüentemente, em estabefocer a relevância · três níveis de sujeito do discurso. Resta um terceiro nível: o nível do
de certos fatores e não outros para a significação do texto em questão. sujeito textual.
A identificação do sujeito nesse nível, acreditamos, depende da
A NOÇÃO DE CONTEXTO E SUJEITO apreensão da unidade do texto. Daí ser este um nível de· mais difícil
Tenho considerado, no funcionamento discursivo, três classes, ou acesso à compreensão, dada a necessidade da interpretação global da
melhor, três níveis de sujeito: · unidade, ou seja, da percepção do texto como um todo.
- O sujeito do enunciado, que deriva da análise do contexto Como temos afirmado, com insistência, nesse nível (o · textual)
lingüístico. entra em consideração o fato de que todo texto é necessariamente
- O sujeito da enunciação, que deriva da análise do contexto incompleto. Está em causa, então, a relação do texto com outros textos
de situação. (a intertextualidade), a relação do texto com a experiência do leitor
- O sujeito textual, que deriva da consideração do texto como tanto em relação à linguagem como em relação ao seu conhecimento
um todo, isto é, do contexto textual. de mundo, sua ideologia, etc.
Para ilustrar essa distinção de níveis, poderia citar um exemplo, Para a leitura de qualquer nível de sujeito, merece -também meó-
extraído da análise de textos de História do Brasil para a escola: ção o fato de que existem diferentes tipos de leitores.

198 199
Um fator que pode caracterizar os tipos de leitores é sua expe- Se observamos isso, quanto aos tipos de discurso, o mesmo pode
riência de linguagem. Então, o leitor, com certo grau de escolaridade, ser observado em relação aos níveis de sujeitos: em relação ao sujeito
é suposto incluir, em suas condições de produção da leitura, sua rela- do enunciado, podemos dizer ·.que a polissemfa é menos ampla; em
ção com a gramática, sua capacidade de análise lingüística, sua capa- relação ao sujeito textual é mais ampla, etc.
cidade de distinguir formas-padrão, etc. Ou seja, sua competência
gramatical escolar faz parte de sua relação com a linguagem e, con- Podemos chegar assim a uma caracterização geral, dizendo que
seqüentemente, deve compor as condições de sua leitura. a leitura parafrástica e a polissêmica não se . distinguem de form~ ~s­
tanque mas gradualmente. Dependendo, entre · outros fatos, da d1stih-
Quanto aos diferentes níveis de sujeito, acreditamos que deve ção de tipos e de níveis de sujeitos, o grau de inferência implicada na
haver explicitação desses diferentes níveis, e o acesso a eles corres- leitura pode variar amplamente, desde um ponto mais baixo - o que
ponde a níveis diferentes de leitura. Dominar o nível de sujeito textual, caracteriza a leitura parafrástica - ·até ·o mais alto - o da leitura
por exemplo, demonstra que não basta se entender palavra por pala- polissêmica. Afirmação esta que é bastante compatível com a caracte-
vra, também não basta se entender sentença por sentença, se não se rização que fizemos da leitura como produzida. Isto é, há sempre ação
apreende o texto em sua unidade. por parte do leitor, ou melhor, a leit~a é processo d~ ~nter~?ãº;
·Assim, com a explicitação desses níveis, já podemos determinar Logo, mesmo no reconhecimento de sentido (leitura parafrasttca) J.ª ha
como alguns elementos das condições de produção estão inscritos no inferência. O que pode haver, isso sim, são gtaus diferentes de ~nfe-
processo de leitura. rência.
Além disso, a função de cada um dos níveis de sujeito, assim Se preferimos falar em leitura parafrástica e leitura polissêmica
como a maneira com que se dá a dinâmica de sua inter-relação, varia _ ao invés de leitura assimilativa e leitura criativa, por exemplo -
de acordo com os diferentes tipos de discurso: num conto de fadas foi para deslocar a distinção já marcada entre, de um lado, a leitura
deve ser diferente da observada em uma dissertação científica; em como recepção (assimilativa) e, de outro, a leitura como alta capa-
um discurso lúdico, deve ser diferente da observada em um discurso
cidade individual de imaginação (criativa) . Do nosso ponto de vista,
polêmico, etc.
nem há só recepção nem concordamos com o uso que se tem feito da
Isto deve corresponder a estrat_égias de leitura diferentes, que noção de criatividade, principalmente no âmbito escolar.
correspondem a diferentes modos de interação na leitura, correspon-
dente aos diterentes tipos de discursos. Dentro da idéia de produção da leitura, preferimos distinguir
diferentes graus de inferência e compreensão, entre o pólo mais para-
frástico e o mais polissêmico.
LEITURA PARAFRASTICA E LEITURA POLISSi?,MICA Quando falamos em graus, toda.via, não queremos levar a crer
que a distinção existente é só quanti~afr:a. Deve haver um~ corr:_s-
Cremos que esses diferentes níveis de sujeitos e esses diferentes
pondente distinção de natureza, quahtat1va portanto, que amda nao
tipos de discurso é que vão determinar, entre outras coisas, o grau de
pudemos formular mais precisamente. Talvez por_isso, se devesse falar
relação entre o que chamamos leitura parafrástica, que se caracteriza
pelo reconhecimento (reprodução) do sentido dado pelo autor, e em espécies diferentes de inferência e não em gràus.
leitura polissêmica, que se define pela atribuição de múltiplos sentidos Outro aspecto, a se observar, é o de que esta distinção não deve
ao texto. nos levar a atribuir uma espécie de valoração, de tal forma que o pólo
Em um discurso lúdico, por exemplo, a leitura polissêmica se polissêmico apareça, sempre, como o privilegiado, ~m. detrimen~o do
faz em maior grau, em um autoritário, em grau menor; em um· dis- parafrástico. Isso depende das condições e · dos ob1ettvos da leitura,
curso poético é maior a possibilidade da leitura polissêmica, em .um isto é, da forma de interação que ela estabelece. Já que, como sabemos,
discurso científico é menor, etc. há modos de leitura, ou,.seja, a leitura é seletiva.

200 201
Assim, a leitura mais adequada pode ser, circunstaricialmente, a Assim, se estaria trabalhando com a leitura em um nÍvel mais
mais parafrástica: por exemplo, a leitura ortodoxa escolar de um exigente do que o das simples estratégias:
texto científico quando se objetiva reproduzir o que o autor disse (o De acordo com o que pudemos observar acerca da l~itura na
que é relevante, então, é o dizer do autor). escola, não se tem procurado modificar as condições de pro9ução de
Nem por isso, deve-se esquecer que a leitura parafrástica coloca leitura do aluno: ou ele já tem as tais condições (como as tem o leitor
menos do conhecimento extra-texto (conhecimento de mundo, do ideal que é o padrão) ou ele é obrigado a decorar, imitar, repetir.
jogo de poder, de outros textos, etc.) do que a leitura polissêmica. , . - , . 1

Mais do que lhe fornecer estrategias, entao, e preciso permitir


. . •

Haverá, no entanto, um limite sempre difídl de ser estabelecido, que ele conheça como um texto funciona, enquanto unidape prag-
na leitura, que é o que separa o dito da espécie de não dito que é . mática. 1

constitutivo da significação do texto. Desse modo, há uma decisão De posse do conhecimento dos mecanismos discursivos, ·o alun~
feita pelo leitor em .relaçãq àquilo que não está dito no texto e que o terá acesso não apenas à .possibilidade de ler como o professor lê.
constitui. Mais do que isso, ele terá acesso ao processo da leitura em aberto.
Aí está um limite que, tanto para menos (que é o risco da leitura E, ao invés de vítima, ele poderá usufruir a indeterminação, colocan-
parafrástica) quando para mais (que é o risco da leitura polissêmica) do-se como sujeito de sua leitura.
é muito difícil de ser explicitado: ·aquilo que é o mínimo que o texto
"diz" e aquilo que ele já não "diz", considerando-se a intertextualidade,
os implícitos em geral, etc. BIBLIOGRAFIA
Para avaliar a dificuldade dessa delimitação, basta lembrar que P:E.CHEUX, M . ...._ Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969.
há uma variação histórica, isto é, em relação ao mesmo texto, há
leituras que são possíveis hoje, por exemplo, e que não o foram em
outras épocas. Isso nos mostra que a ação do contexto abrange mais
do que os fatores imediatos da comunicação, em sua situação momen-
tânea. E nos indica também que as condições de produção da leitura
abrangem mecanismos bastante complexos e que não se resolvem na
imediatez de relações escolares mal colocadas.

UMA SUGESTÃO PARA A ESCOLA-

Finalmente o que propomos é que se explicite o funcionamento


desses elementos na constituição da leitura, para que se possa desen-
volver, no ensino, as formas de leitura mais adequadas e mais con-
seqüentes.
Dessa maneira se estaria incluindo, nas condições de produÇão
da leitura, o conhecimento de mecanismos discursivos ,que fazem parte
do uso da linguagem. Estar-se-ia dando elementos para que o apren-
diz trabalhasse explicitamente com o que se tem chamado · compe-
tência discursiva.
203
202
LEITURA: DE QUEM, PARA QUEM?

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é disc~ir os determina,ntes sociais de


classe do leitor, que atu~m sobre as condições de ensino da leitura,
se pretendemos que este ~nsino seja coerente com uma pedagogia de
transformação 1 .
Como discutir isso de forma simples, para fornecer subsídios
para a reflexão sobre o ensino de leitura, sem que esta simplicidade
seja ingênua ou redutora e que, além disso, não seja demagógica mas
seja política?
Nossa proposta é a de tomar explícitos certos fatores centrais
para a discussão da escola em sua relação com os conflitos sociais. Em
termos discursivos isso significa situar o "o que", o "de quem" e o
"para quem" da leitura, em nosso sistema ~ ensino.

I. Primeira Parte: ALGUNS DADOS, SUJEITOS A REFLEXÃO

A) A natureza da relação entre as classes

O problema que se coloca, antes de tudo, é o de saber qual é-a


relação entre as classes sociais e, mais especificamente, como essa
relação se dá quando se trata da educação.
Como forma de ilustração, vou considerar essa relação em termos
históricos.

1. Este texto foi apresentado em uma mesa-redonda do IIl Cole, em 1984,


realizado em Campinas. O texto-gerador, de Magda Soares, perguntava
justamente pelos determinantes sociais de classe do leitor.

205
O dispo~itivo feudal visava manter, regularmente, as ordens sepa- É pois, ainda no interior dessas finalidades ourguesas que esta-
radas, isto é, mantinha separada a ordem dominante, traduzindo-a, mos discutindo 2 • -

através da retórica da religião e do poder, para as for~as específicas Daí se poder considerar que ler e escrever antes podem favorecer
de representações e imagens próprias aos diversos grupos dominados. a exploração dos seres humanos mais do que sua iluminação. Trata-
Em relação à linguagem, pode-se dizer que o mosaico dos falares
se, então, sem muito otimismo, de se observar o que a educação pro-
permanecia, assim como nas monarquias absolutas, tão intocáveis como
duz em relação aos direitos e aos deveres do cidadão. Sem esquecer
o corpo do rei.
que mesmo os direitos são respostas às faltas produzidas pelo próprio
Ao contrário do feudalismo, a dominação burguesa desenvolve sistema (o direito é o direito de remediar a falta).
processos de interpenetração das classes dominadas, transformando a
fixidez das ordens em terreno de confronto de diferertças. Em relação . Considerando, portanto, que há absorção e reinstalação de dife-
à questão lingüística, inaugura-se a "política da língua": a constituição renças, no jogo da "igualdade", a minha posição é a seguinte: na
da língua nacional através da alfabetização; aprendizagem e utilização medida em que surge o projeto de uma escola democrática, no inte-
legal da língua nacional. Desenvolvendo, assim, o que havia começado ri.or da sociedade capitalista, devemos detectar o que essa escola reins-
com as empresas da cristianização da Igreja Medieval, continuado ' tala como diferença.
com ·os inícios do colonialismo (as gramáticas dos missionários) e a Sem esquecer que, ao se alargar o olhar além de soluções
constituição dos Estados Nacionais. restritas ao percurso pedagógico, se deverá, necessariamente, encarar
A característica das revoluções burguesas é, pois, absorver as o fato de que, em relação às cÍiferenÇas de classe, a educação é apenas
diferenças para universalizar as relações jurídicas, no momento em um elemento entre muitos outros de uma política efetiva de justiça
que se universalizam a circulação do dinheiro, das mercadorias e dos social e nem é o mais importante ou maís decisivo deles.
trabalhadores "livres". E para se tornarem cidadãos (e urbanos) os Procurar determinar, em relação à educação, em que outro lugar
sujeitos têm de se livrar dos particularismos históricos que os entra- se instala (se reorganiza) a diferença é fundamental para se deter-
vam: seus costumes locais, suas concepções ancestrais, seus precon- minar como deve ser essa outra forma de ensino, a da escola demo-
ceitos e sua língua materna. crática. Dessa maneira, ao se reivindicar a igualdade, não se estará
Nessa perspectiva - da interpenetração das classes e da absor- apenas ocultando novas diferenças, mas explicitando-as.
ção das diferenças - é que chegamos ao jogo de palavras existente O pressuposto de que parto é o de que a educação é uma educa-
em relação aos conceitos de "liberdade" e "igualdade": a burguesia ção de classe, e à questão "De quem é a Educação?" podemos res-
sempre proclama o ideal da igualdade ao mesmo tempo em que orga- ponder : é da classe dominante do sistema capitalista, com suas fina-
niza uma desigualdade real. lidades.
Um exemplo disso é a divisão política no ensino da gramática, Isso nos leva ao segundo ponto da reflexão que é .um desdobra-
por volta de 1880, na França: ao mesmo tempo em que colocava a mento desse primeiro.
educação como direito de todos, a· classe dominante tinha acesso ao
bilinguismo (o ensino da língua francesa sobre o modelo do latim) B) O domínio dos instrumentos: o discurso da classe-média
enquanto, para as massas, fornecia uma gramática truncada, fundada
sobre a lógica da frase simples. Começo por dizer, sem preâmbulos, que a afirmação de que é
preciso o acesso à totalidade do conhecimento da classe dominante
A absorção da diferença, então, supõe, antes de tudo, que ela
seja reconhecida, isto é, reproduzida, reorganizada em algum outro . 2. Essas observações de cunho histórico foram elaboradas a partir da leitura
lugar. · de La Langue Introl!vable (F. Gadet, M. Pêcheux, 1981).

206 207
P.ª~ª que haja transformação é uma afirmação de classe. Mais espe- Ensinar, em si, não é nem deixa de ser arbitrário. O que cons-
c1f1camente: da classe-média. Que não deixa de ser romântica e incon- titui essa arbitrariedade é a ideologia que pode presidir a prática peda-
seqüente na medida em que propõe a tomada desse conhecimento e gógica. Por sua vez, é bom enfatizar, o saber, em si, não é, nem deixa
não faia quem pode e em que condições sociais isso pode se dar. de ser legítimo. A sua categorização, como forma legítima ou não,
Além disso, penso que o acesso à totalidade desse conhecimento não depende das condições histórico-sociais em que ele se configura.
é, talvez, necessário e inuito menos suficiente para a transformação.
Pelo menos para uma transformação que não tenha a direção já dada Em relação às classes populares, caberia se perguntar qual a
pela classe dominante. relação dessas classes com esse conhecimento, com a linguagem, com
a escola?
No interior do discurso que propõe o acesso ao conhecimento
detido pela classe dominante - ou que se atribui a ela - viaja o Como fica essa relação, dado o modo como nossa sociedade se
relaciona com o saber letrado? Esse saber não é partilhado mas distri-
discurso do poder e da exclusão. Nesse discurso, ou se tem o saber
buído socialmente, de tal forma que não basta tê-lo, uma vez que é
dominante, ou só resta o saber menos abstrato, menos rigoroso,
preciso tê-lo de uma certa maneira, isto é, é preciso tet o status atri-
rebaixado, o da facilidade. Saber nenhum, portanto. Cria-se, assim,
buído a ele (Por exemplo: qual o valor atribuído ao supletivo; ao
um falso dilema, pois se torna categórica a distância entre saber e curso por televisão? etc.). Nesse sentido, o "o quê" (o que se aprende,
não saber, entre ser igual ou ser menos, etc. o que se lê) não é o que importa, o que importa é o "quem" e o
Para mim, não é uma questão de tudo ou nada. Há o saber "onde". Há um valor intrínseco à própria escolaridade que atribui
dominante e há outros que sequer foram formulados. Há formas de legitimidade ao saber. Haverá sempre escolas diferentes que reinstalam
saber que . são diferentes e que têm funções sociais distintas. O fato as diferenças (Exemplo : escola pública/ escola particular).
de que se atribuem diferentes estatutos epistêmicos a essas formas de Cabe, então, aqui a questão: quando as classes populares passam
saber não está desvinculado do fato de que, dada a divisão social, há a dominar algum instrumento da classe dominante o que acontece?
formas diferentes de conhecimento: legítimas e não legítimas, o que Mudam as finalidades da antiga dominação? A apropriação . do instru-
equivale a dizer legitimadas ou não pelo poder dominante. Quando se mento transforma o instrumento ou aquele que dele se utiliza? Ou
adere ao conhecimento legítimo, se desconhece a luta de classes, a os dois? Qual o sentido dessa transformação? Depende do instrumento
luta pela validade d.as diferentes formas. e depende do modo de apropriação. Veremos o que se passa com
a educação.
O discurso da classe média passa por cima dessa distinção: in- ·
Para alguns, o que acontece é que aumenta a autoridade da classe
corpora a legitimidade e procura as formas competentes que levam à
dominante; para outros, a educação pode provocar, nos dominados,
apropriação do conhecimento legítimo. Esse discurso é adequado para
a insastifação com a própria condição de vida, já que se considera que
a classe-média, tanto que, quando se fala na crise da escola, está-se
a educação é uma via eficaz para a formação da consciência crítica.
falando sobretudo da crise da eficácia das formas institucionais do
Estes diriam, pois, que através da leitura se tem acesso ao saber, e
saber para esta classe.
pelo domínio do saber se podem explicitar os mecanismos do funcio-
Trata-se, assim, nesse discurso da classe-média, não do acesso ao namento da sociedade. Digamos que as duas coisas acontecem: au-
conhecimento, como se diz com neutralidade, mas da apropriação do menta a autoridade do Estado mas, ao mesmo tempo, se cria a
conhecimento legítimo, que lhe é necessário, em sua condição de possibilidade da consciência crítica.
':lasse. Fie~ à margem, toda outra forma de conhecimento, que sequer E, aí, o que podemos perguntar a nós mesmos, se pretendemos
e reconhecida como tal e com a qual não se opera. Reivindica-se o uma escola crítica, é que finalidades nós mesmos privilegiamos em
direit? a t_er o conhecimento legítimo sem discutir seus pressupostos, relação a esse instrumento, quando ensinamos: ler para subir na vida?
ou seJa, nao se procura transformar a relação com esse conhecimento Para ser crítico? Nem vou discutir se, pela escola, dá para subir na
nem se discute sua legitimidade (legítimo para quem?). '
vida. E para ser crítico? ·
208 209
Tomamos nossa profissão pelo verdadeiro e dessa forma, na rela- Quando o povo usa um bem cultural diferentemente do previsto,
ção com nossa profissão, reforçamos o mito pelo qual se sustenta não há falta de entendimento do significado cultural (não é por que
o sistema do qual fazemos parte. Entretanto, procurando ser tão cr.í tica o povo é ignorante). Ao usá-lo diferentemente, ele está se apropriando
quanto possível, eu faria duas observações: de um espaço que .a rigor não lhe pertence e recriando nele as suas
1 .. Não há relação automática, mecânica, entre "ter o domínio formas de sociabilidade, de acordei com suas necessidades e concep-
da cult~ra'',
e "ser crítico"; ções. Revela-se, assim, a discrepância entre a força transformadora
2 . Há aí, suposta, a supervalorização de um instrumento da do uso efetivo e as imposições restritivas dos regulamentos (Exemplo:
cultura, a escrita, e, via escrita, a do saber letrado, ao passo que se o uso do Museu do lpiranga, citado por A.A. Arantes, 1981).
pode considerar que a oralidade também permite o conhecimento No discurso da classe-média, tachamos de ignorância o que é,
e a crítica. muitas vezes, uma forma de resistência cultural.
Como disse anteriormente há vanas formas de conhecimento e
não apenas a oficial, estabelecida segundo as regras do jogo da classe Essas reflexões tndicam que o modo de leitura das classes popu-
dominante, na escola. Além disso, o problema não é de quantidade, l~res pode ser distinto do da classe dominante, sem lhe ser inferior.
de extensão. Para a mobilização do conhecimento (legítimo ou não) Em suma, em relação à distinção entre classes populares/classe
em torno do homem e sua vida não é preciso se apossar da totalidade dominante, eu ficaria na tensão existente entre elas: não penderia,
dessas formas de saber (a ilusão da completude). Em termos de em abstrato, nem para a dominação do saber erudito nem para '!
~eitura, por exemplo, eu diria que não é necessário dominar todos os
absolutização do saber popular, já que essas são formas que convivem
produtos (todas as grandes obras) mas sim saber o processo de sua
em conflito em nossa sociedade, com suas diferentes esferas de atuação.
produção.
Por outro lado, o leitor vai se formando no decorrer de sua No que concerne ao discurso da classe-média, que diz que é
existência, em suas experiências de interação com o universo natural, preciso se apossar da totalidade da cultura dominante para se libertar
cultural e social em que vive. A leitura é um àto cultural em seu (eles querem dizer "dominar"), a resposta pode ser a de que é preciso
sentido amplo, que não se esgota na educação formal tal como esta se explorar as contradições do que vem implícito nesse discurso da
tem sido definida. Deve-se considerar a relação entre o leitor e o classe-média.
conhecimento, assim como a sua reflexão sobre o mundo. Eu diria
que o conhecimento tem caminhos insuspeitados. Ninguém tem a fór- Logo, a meu ver, há dois níveis d~ reivindicações, em relação
mula da descoberta, de como se chega ao conhecimento e à crítica.
à classe dominante: a) de um lado, deve=se reivindicar politicamente
a apropriação dos seus instrumentos de conhecimento; b) de outro,
O que proponho é que se relativize a importância do conheci- deve-se, efetivamente, elaborar formas de conhecimento crítico que
mento legítimo, pois, mudar a relação com esse conhecimento pode não são meras reproduções de formas dé conhecimento legítimo, mas
significar a negação da escola como detentora do conhecimento letra- que derivem de um conhecimento efetivo do aprendiz, em suas çon-
do redentor, em que ler e· escrever não tem originado um saber atuante, dições 3. Como fazer isso? Não reproduzindo, através do discurso
não tem desencadeado uma práxis, nem contribuído para a transfor- professoral (e similares) a distinção estrita entre conhecimento legí-
mação dessa realidade social da qual estamos falando. Realidade timo e não legítimo; promover o discurso da legitimidade das várias
em que o saber legítimo acumulado sequer consegue evitar a fome formas de conhecimento, dando um espaço real para a elaboração
da grande parte da população. Mudar essa relação significa não dessas outras formas de conhecimento com suas distintas funções
extrapolar o -valor do saber acumulado nas bibliotecas, embora se
re}vindique o acesso a elas. O conhecimento legítimo se apresenta
3 . Quero crer que a própria burguesia, na sua ascenção, inaugurou formas de
como um conhecimento no passado, pronto, acabado e no entanto conhecimento que não eram mera apropriação do conhecimento aristocrá-
ele está se fazendo continuamente, e na relação entre dominador e tiCo. Por outro lado, a forma de apropriação deve ter sido minimamente
dominado. Ele é a marca de uma diferença. determinada pela burguesia.

210 211
Na observação desse princ1p10 é que, em meus trabalhos sohr
sociais; fazendo com que esse espaço de élaboração represente efeti- leitura, tenho proposto: l.º) que se considere que a leitura é produ:d d 1
vamente um espaço real de poder de decisão. Caso contrário, se estará e 2.º) que se atente às suas condições de produção. E ssas condiç
produzindo uma escola democrática domesticàda pelo poder dominante. certamente serão diferentes, não só em relação às diferenças d
O que nos leva a dizer, em relação à apropriação dos instrumentos classe social, às diferenças ideológicas, mas de histórias pessoal d
da classe dominante, que é a forma, o modo de acesso a eles que grupo etc.
determina a qualidade de sua apropriação e define as suas conse- O estabelecimento das condições de produção de leitura pr l nd
qüências. A sociedade capitalista tem interesse em conceder o direito ser uma forma de se operar com a diferença sem absorvê-la.
ao saber para manter sua força de trabalho em bom estado de funcio-
namento. Daí construir a imagem da igualdade de direitos. Essa é a Tenho feito o levantamento de vários aspectos das condiçt
imagem que ela quer dar de si mesma. Para (}Xplorar as possíveis de produção de leitura que explicitam o funcionamento do texto (do
contradições que vêm imbutidas nesse interesse, e nessa imagem, é discurso).
preciso que as classes populares possam estabelecer, minimamente, Ao saber como o texto funciona, espero que o aluno-leitor po. 1
as condições em que se dá essa apropriação. E não deixar, como se ler não apenas como o professor lê mas descubra o processo da 1 itur 1
faz predominantemente, que lhe dêem o produto e a receita de como em aberto, podendo se construir como sujeito . de sua leitura.
consumi-lo. Que é o modo que a classe dominante tem de não deixar
as classes populares colocarem suas marcas nos "produtos culturais". Nessa perspectiva, então, como operar com a variação dos s ntl
dos nas diferentes leituras de um texto (leitura polissêmica) ao n~
II. Segunda Parte: AS CLASSES POPULARES E AS HISTóRIAS mo tempo em que a disciplina escolar, e institucional em geral, impt
DA LEITURA a reprodução de sentidos previstos para ele (leitura parafrástica)'l
A resposta está em um método que forneça um critério pnro
A relação de interação (leitor/texto/autor) estabelecida na esco- se traçar o limite entre aquilo que o leitor não chegou a compre ntl r
la, tem como mediador o professor. Uma vez que, segundo a ideologia
(limite mínimo do que se pode esperar que seja compreendid )
escolar, o professor é que tem a leitura que se deve fazer (a boa
aquilo que já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo) .
leitura, a legítima) , essa relação, além de ser, na maioria das vezes,
Isso significa decidir, de um lado, se uma leitura é possível, , 1
heterogênea, é, necessariamente, .assimétrica: o saber do professor e
seus objetivos é dominante em relação ao saber e objetivos do aluno. outro, se ela chega a ser, pelo menos, razoável.

Dada, pois, essa relação de interação da leitura escolar (na esco- A minha posição é a de que a leitura não é possível ou razoáv 1
la, para a escola ou de acordo com o padrão escolar), e dado o fato em si. Quer dizer, não há leituras previstas por um texto, em gorul,
de que essa relação produzirá uma transformação, cabe perguntar como se ele fosse um objeto fechado em si mesmo, auto-sufici nt .
qual a direção, qual o sentido dessa transformação? Quando, na escola se fala sobre o sentido do texto se está ocultando
o fato de que há sentidos estabelecidos para ele.
Esse sentido, creio, deve-se originar no espaço dado ao aluno
para que ele mesmo elabore sua relação com a leitura, ou seja, é Considero que toda leitura tem sua história. O que prop nho
preciso não tirar seu poder de decisão, não pretender estar no seu é que o possível e o razoável,. em relação à compreensão do t xto
lugar. Isso significa seguir o mais elementar princípio pedagógico que se definam levando-se em conta essas histórias: a história de 1 ituru
diz que o processo de aprendizagem do aluno é distinto do método do texto e a história de leituras do leitor ( Orlandi, 19 85) .
de ensino proposto para ele. Uma vez que ele tem seu processo de
Leituras possíveis em certas épocas não o são em outras. Nó
aprendizagem, o método de ensino deve apenas servir para lhe propi-
lemos diferentemente um mesmo texto em épocas, condições, dif •
ciar condições para que . seu processo se desenvolva. O método não
deve se sobrepor (sufocar) ao processo, mas se articular com ele. rentes.

21
212
A legitimação do processo histórico da leitura - que sentidos reproduzir a mesma leitura, através dos anos, e apesar dos leitores
atribuir ao texto, ou, como o texto deve ser compreendido? - se e de suas classes sociais. Assim, pelo conceito de autoridade, há um
f~z .de formas va~iadas, nas diferentes instituições, através de espe- · deslize entre a função crítica e a censura: o leitor fica obrigado a
ciahstas, de autondades: na Igreja Cristã, a leitura competente está reproduzir o seu modelo de leitura, custe o que custar. O que, em
a cargo do teólogo, no Direito, do jurista, na Escola, do professor. geral, custa a sua capacidade de reflexão.
O professor, por sua vez, ou representa a voz do crítico ou a do livro Se esses fenômenos podem ser observados como sistemáticos na
didático adotado. 1
produção da leitura, o ensino desta deve operar com eles. Uma suges-
Esse processo de legitimação resulta em que há um caráter previ- tão pedagógica seria os professores proporer,n uma organização curri-
sível em relação à leitura: há leituras previstas para o texto pois o cular que permita que o aluno trabalhe em sua própria história de
crítico, ao mesmo tempo em que avalia a importância do texto, leituras. Desafiar a sua compreensão e ao mesmo tempo lhe fornecer
fixa-lhe um sentido, uma leitura. as condições para que esse desafio seja assumido de forma conse-
qüente. E para isso não se pode prescindir da convivência múltipla,
Por outro lado, todo leitor ..tem sua história de leituras. O con- aberta e total com textos, ou seja, bibliotecas, arquivos, coleções,
junto de leituras feitas por um leitor específico é um aspecto relevante recortes etc. que devem estar à inteira disposição dos alunos. Tendo
que configura a sua compreensibilidade (capacidade de compreender) acesso a um material variado, e que ele ajuda a constituir como
diante de um texto. material didático, terá também uma visão crítica dele e a consciência
As leituras já feitas por um leitor específico dirigem - podem da provisoriedade e da validade desse material enquanto instrumento
alargar ou restringir - a compreensã9 do texto. Essa é a contrapar- para o conhecimento de algo.
tida, para .º leitor, da sedimentação histórica de sentidos e do fato Enfim, com essas condições de ensino, e· aberto um espaço para
de que todo texto tem relação com outros (intertextualidade). que o aluno-leitor elabore suas experiências de leituras, a partir de
Com relação ao que é previsível na leitura (a história de leituras suas condições de vida, esse aluno determinará a f9rma de apropriação
do texto), o professor pode modificar as condições de produção de desse instrumento que é a leitura, o que permitirá que, sendo ele das
leitura do aluno de duas maneiras: a) de um lado, propiciando-lhe classes populares, essa classe se construa e se representa em sua histó-
que construa sua história de leituras; b) de outro, estabelecendo, ria de leituras que a classe dominante desconhece 4 •
quando necessário, as relações entre os diferentes textos, resgatando,
assim, a história dos sentidos deles.
BIBLIOGRAFIA
Mas há o outro lado da questão: a imprevisibilidade (a história
de leituras do leitor). Há algumas leituras previstas mas há muitas ARANTES, A. A. - O que é cultura popular, Primeiros Passos, Brasiliense, São
leituras possíveis. Ou seja: as leituras têm suas histórias no plural. Paulo, 1981.
BRANDÃO, C. R. - Casa de Escola, Papirus, Campinas, 1983.
Na transformação das condições de produção do aprendiz im- GADET, F. & PÊCHEUX, M. - La Langue lntrouvable, Maspero, Paris, 1981.
porta cuidar-se para que não se petrifiquem essas leituras previstas ORLANDI, E. - · "As histórias da leitura'', Leitura: Teoria e Prática, Merca-
em detrimento da descoberta, da leitura nova, que deve . acontecer do Aberto, Porto Alegre, 1985.
tanto quanto possível.
4. Quando apresentei este texto, perguntaram o que estávamos considerando
Isso só pode se dar, a nosso ver, se se enfatizar o papel da como classe dominante, classe-média e classes populares. Eu diria que,
história de leituras do leitor e se não absolutizar o previsto através relativamente ao problema da escola e ao conhecimento "legítimo", a cl_asse
do conceito de autoridade: o da leitura competente. dominante é a que não precisa desse conhecimento para se legitimar; a
classe-média é a que. precisa do conhecimento legítimo para se reproduzir
No esquema reprodutor, a melhor leitura tem sido aquela feita (ou ascender) e a classe popular é a que está excluída, ou seja, já sabe que
por uma autoridade x, que é tomada como modelo estrito. Daí se não lhe adianta essa .f orma de conhecimento.

214 215
SOBRE TIPOLOGIA DE DISCURSO*

A FUNÇÃO METODOLóGICA
. DO CONCEITO DE TIPO

A análise de discurso, levando em conta as condições de uso


da linguagem, procura apreender a singularidade desse uso - isto ·é,
procura distinguir um discurso de outro - ao mesmo tempo em que
visa a constiufr uma generalidade - isto é, a inserção desse uso
particular, desse discurso, em um domínio comum. Objetivos à pri-
meira vista contraditórios e que revelam um dilema na constituição
do objeto da análise de discurso.
De um ponto de vista ingênuo, eu diria que esse dilema nasce
do fato de que, tratando-se do discurso, não podemos excluir as
determinações concretas que o caracterizam e, ao mesmo tempo, não
podemos nos perder nessa concretude (empirismo?), ficando ao sabor
dos fatos, de tal forma que cada discurso seja um discurso sem nada
a ver com os outros. Essa atomização negaria qualquer possibilidade
de sistematicidade do objeto e, conseqüentemente, a própria possibi-
lidade da análise. A melhor. réplica (descrição, simulação, etc.) do
objeto, a esse nível, é o próprio objeto. Daí, creio - e agora o dizendo
de uma forma menos ingênua - , se coloca a necessidade metodo-
lógica do estabelecimento de uma (ou várias) tipologia(s) de discurso.
Eu · diria, então, que o tipo, em análise de discurso, tem a mesma
função classificatória, metodológicá, que têm as categorias na análise
lingüística. :É princípio organizador: primeiro passo para a possibili-
dade de se generalizarem certas características, se agruparem certas
propriedades e se distinguirem classes.

* Texto apresentado no VII Encontro Nacional de Lingüística da PUC, Rio


de Janeiro, 1982.

217
Essa possibilidade - qual seja a da sistematização - está inscrita a) contexto lingüístico (ou co-texto)
na própria definição de discurso e na sua (do discurso) necessária b) contexto textual
inserção na ideologia.
c) contexto de situação
Por definição, toda formação discursiva se caracteriza por sua c1 ) no sentido estrito: contexto imediato, de enuncia~ão
relação com a formação ideológica, de tal modo que qualquer "forma- c2 ) no sentido lato: contexto sócio-histórico, ideológico
ção discursiva deriva de condições de produção específicas" (Pêcheux,
A forma mais abrangente de estabelécer uma tipologia, segundo
197 5). Essa afirmação traz no bojo a contraditoriedade da noção de
nossa perspectiva, é a que inclui a referência ao contexto no sentido
sujeito, que é a marca da análise de discurso: os processos discursivos
não têm sua origem no sujeito, embora eles se realizem necessaria- lato.
mente nesse sujeito. Daí o fato de se considerar a intertextualidade
a relação de um discurso com outros discursos existentes e a relação
O TIPO COMO FATOR DAS CONDIÇÕES
de um discurso com outros discursos possíveis, isto é, com suas pará- ·
DE PRODUÇÃO DA ANALISE
frases, ou c9m o domínio dos seus implícitos. Em suma, a relação do
dito com o não dito, mas que se poderia dizer, naquelas condições.
Isto é possível considerando-se não os discursos fechados em si mes-
o que ocorre, normalmente, é que todas as análises. de discurso
supõem uma tipologia. Isto significa, a meu ver, duas co~sas: a~ ~ue
mos, nem como propriedades de um locutor observado fora de qual-
a tipologia é condição necessária da análise e b) que o tipo esta ms-
quer determinação histórico-social, mas considerando-se os discursos
crito nas condições de produção do discurso sob dois aspectos: enquan-
como estados de um processo discursivo. Dessa forma é que se pode
to modelo e enquanto atividade.
entender o dizer de Pêcheux de "que os. fenômenos lingüísticos de
dimensão superior à frase podem efetivamente ser concebidos como Daí ser a tarefa do analista, e~ grande parte, a de explicitação
um funcionamnto, mas com a condição de acrescentar imediatamente do tipo de discurso. que constitui o seu material de análise.
que este funcionamento não é integralmente lingüístico, no sentido
No entanto de acordo com o que tenho observado na leitura de
' atual desse termo, em referência ao mecanismo de colocação dos
análises de disc~rso em geral, raros são os analistas que explicitam a
protagonistas e do objeto do discurso que nós chamamos de 'condi-
tipologia que está implícita na análise. Disso decor~e tanto o desco-
ções de produção' do discurso" ( 1969). Isto é, a sistematização deriva
nhecimento da função da tipologia em análise de discurso, quanto o
da relação com a exterioridade.
desconhecimento dos diferentes critérios que instituem as diferentes
Essa exterioridade, que chamamos de condições de produção, se- tipologias.
gundo a perspectiva que adotamos, deve incluir tanto fatores da situa- Dito isso, esse meu trabalho pode ser visto como uma reflexão
ção imediata ou situação de enunciação (contexto de situação, no sobre as condições de produção da análise. A análise podendo então,
sentido estrito) como os fatores do contexto sócio-histórico, ideológico ser vista como um discurso, ou melhor, como uma leitura que se cons-
(que é o contexto de situação, no sentido lato). A distinção dessas titui em determinadas condições. Dessas condições, privilegiarei um
duas espécies de contexto de situação - o imediato, ou de enuncia- de seus aspectos, que é o uso (pressuposto ou explícito) de uma (ou
ção, e o amplo ou sócio-histórico, ideológico - está refletida nas dife- mais) tipologia ( s).
rentes formas com que se constituem as diversas tipologias. O que
A meu ver, o fato de se usar uma ou outra .tipologia dá um a
significa dizer que pensar a sistematicidade do objeto da análise de
direção à análise. Diante de um material a ser analisado, o f,ato d~ se
discurso é refletir sobre a questão da tipologia e, necessariamente, so-
utilizar uma ou outra tipologia resultará em um recorte que e seletivo,
bre o estatuto das diferentes espécies de contexto.
isto é, que salientará este ou aquele dado, este ou aquele traço. Acre-
De nossa parte, temos procurado estabelecer distinções opera- ditamos ainda que a escolha da tipologia não se faz "em abstrato"
cionais, relativas ao contexto, sob a forma das seguintes distinções: mas deriva da concepção de discurso do analista, da sua posição em

218 2 19
relação ao problema da ideologia, do modelo de análise que utiliza Já em Dubois, o que temos é a distinção entre discurso didático
do domínio de conhecimento no qual se insere, etc. Exemplos: as aná~ e discurso polêmico. Segundo esse autor, o discurso didático é carac-
lises que Marilena Chauí faz supõem a relação entre um discurso ideo- terizado como invariante de base, produto da atividade cognitiva. Esta-
lógico e um. discurso crítico, que são tipos que resultam do confronto ria tão próximo quanto possível da descrição gramatical da compe-
contra-ideologia/ideologia; quando se analisa um discurso jurídico, se tência: descrevendo-se a língua, descreve-se um tipo de discurso cujo
supõe sua distinção em relação ao político, ao religioso, etc. , sujeito de enunciação está ausente. Seu oposto, segundo esse autor,
é o discurso polêmico, no qual há falsificação de uma tese oposta, em
Poder-se-ia resumir, de forma geral, isso tudo, dizendo-se que a
que há marcas específicas de enunciação. De forma geral, Dubois
escolha da tipologia, na análise, deriva dos objetivos da análise pro-
colocará o discurso didático como invariante - com nominalizações,
posta. Além disso, na relação com os objetivos, entra um outro fator,
frase de base com o verbo ser, sem marcas pronominais, etc. - em
também decisivo, que é o da natureza do texto. Assim, são esses dois
relação ao qual se deverão formular as diferentes regras que permi~
fatores em sua relação que consideramos como dominantes na escolha
da tipologia que vai fazer parte das condições de produção da análise: tirão construir os outros tipos de discurso.
o objetivo da análise e sua relação com a natureza do texto que é o Creio que podemos ver essa distinção como um subproduto da-
objeto da análise. São esses fatores, em sua relação, que determinam quela estabelecida entre o gramatical e o contextual, entre a função
a tipologia adotada na análise de qualquer disc_urso. referencial e as outras funções da linguagem, entre o subjacente e o
superficial, entre a base e a derivação, entre a informação central e os
efeitos de sentido, etc. Nessa proposta, há postulação de um tipo cen-
COMO, NA ANALISE DE DISCURSO, tral (ideal?) e suas derivações. Ainda em Dubois, temos a distinção
SE TEM DEFINIDO AS TIPOLOGIAS de tipos de discurso segundo distinções da enunciação: a tensão, a
distância, a modalidade e a transparência (Dubois, 1969).
Maingueneau (1976) diz que a anáfüie de discurso tem por espe-
cificidade procurar construir modelos de discurso articulando estes 'B interessante observar como os objetivos da análise determinam
modelos sobre condições de produção. Ele coloca, então, dois extre- fortemente a forma da tipologia adotada. Partindo da distinção dos
mos, que considera como obstáculos simétricos na teoria do discurso: quatro conceitos .,...-- distância (a atitude do sujeito falan~e. face, ao seu
discursos muito complexos para os quais a relação com as condições enunciado), modalização (a adesão, a marca que o su1eito da a seu
de produção seria delicada, e discursos muito difusos em que a relação enunciado), tensão (relação estabelecida entre o sujeito falante e o
com as condições de produção seria imediata demais. São, pois, esses, interlocutor) e transparência (maior ou menor transferência do sujeito
os dois tipos extremos: o muito complexo e o muito difuso. Como da enunciação, do locutor, sobre o receptor) - L. Courdesses ( 1971)
exemplificação desses dois tipos extremos, ele cita o discurso teológico chega à caracterização dos discursos de Blum e Thorez. São dois tipos:
- que praticamente nada tem a ver com as condições de produção o de Blum (P. Socialista), que ela caracteriza como sendo mais mar-
mais imediatas e em que os textos remetem a outros textos e não à cado pela enunciação, isfo é, mais tenso, mais modalizado, menos trans-
situação - e o discurso ordinário cotidiano ou conversa - que tem parente e em que há menor distância na atit~de do sujeito em re~aç~o
muito a ver com a:s condições de produção mais imediatas. Como ao seu enunciado; e o de Thorez (P. Comumsta) em que a enunciaçao
ponto de equilíbrio, cita o discurso político, onde há uma articulação é menos marcada, isto é, mais transparente, menos modalizada, menos
harmônica entre discurso e condições de produção. tensa, e em que há maior distância. Ao primeiro, ela chamará discurso
político tradicional e ao seu oposto, o de Thorez, ela chamará discurso
Em Benveniste ( 1966), os tipos representam, na verdade, dife- político didático. Por que chamar de tradicional? Por que não chamar
rentes planos da enunciação: discurso/história. O tipo é definido, en- de polêmico, como em Dubois, e opor então polêmico a didático?
tão, enquanto modo de enunciação. A tipologia aparece, assim, como Parece-me que isto se deve aos objetivos da análise e à posição (pre-
necessária para se dar conta de diferenças formais da língua: as dos ferência) da analista frente aos partidos, dos quais ela analisa, os dis-
tempos do verbo em francês. cursos: o nome "tradicional" - em vez de "polêmico" - leva a uma

220 221
desvalorização do discurso dos socialistas. O que nos leva, mais uma social da interação verbal realizada através da enunciação. Para ele,
vez, a refletir sobre as condições de produção da análise, e a caracte- um tipo de discurso demonstra o modo como as formas da língua rea-
rização das tipologias. gem a certas características de ordem social. Toma, então, o discurso
Em Guespin ( 197 6), temos uma referência explícita e direta ao citado como exemplar desse modo. Segundo Voloshinov, o discurso
problema da tipologia. Partindo da idéia de que a categorização, na citado põe às claras o modo como a enunciação de outrem é incorpo-
ciência do discurso, é relativamente intuitiva, uma vez que se está na rada ao discurso interior e não pode ser estudado fora dessa perspectiva
fase pré-taxonômica dessa ciência, ele afirma que as categorias são de interação, como, aliás, não Q pode nenhum fato lingüístico. O dis-
emprestadas e metafóricas. Dessa maneira, ele coloca a tipologia de curso citado mostra a maneira dinâmica pela qual a enunciação de ou-
discursos como necessária mas futura. Enquanto as categorias que trem é apreciada e assimilada. Nessa perspectiva, tendo como critério
descrevem o discurso, diz ele, "forem filosóficas (ex.: ontologia/ideo- o modo de enunciação, ele vai distinguir o discurso direto, o indireto
logia) ou retóricas (ex. : didático/ polêmico) se está condenado ao e o indireto livre. Ilustra a forma como o contexto social atua nos es-
artefato". Daí esse autor concluir que o que é preciso categorizar é quemas da língua e como a língua organl.za o ideológico. Indo mais
o que faz com que um discurso funcione e não o julgamento que se além, Voloshinov vai vincular cada uma das formas de discurso a um
pode fazer sobre ele. Aponta então o movimento ·que existe em direção contexto sócio-econômico: o discurso direto é dominante no século
a uma nova tipologia: aquele que se define na relação do discurso XVII na Rússia e na França; o discurso indireto é dominante no Re-
com as formaçõs discursivas, ou seja, "tipificar os discursos das dife- nascimento e o discurso indireto livre é o dominante no século XX.
rentes formações discursivas, isto é, destacar a dominantes de seu
Um desenvolvimento dessa tipologia é feita por J. Rey-Debove
funcionamento". Não aponta essa possibílidade sem mostrar seu cui-
(1971) que considera três modos de dizer, segundo o discurso citado:
dado ao se trabalhar com as formações discursivas pois, segundo Gues-
a) modo do como ele diz (intertextualidade: diálogo com outros tex-
pin, há o perigo de um certo simplismo na delimitação provisória dessas
formações. Aponta como exemplos da fase pré-taxonômica alguns tra- tos), b) o modo do como se diz (discurso com encadeamento de luga-
balhos: o de Marcellesi com o discurso da individualização; Gardin, res-comuns, dicionário de idéias recebidas: código lingüístico que o
na perspectiva de Voloshinov, que evoca o problema da responsabili- eu não assume completamente) e c) o modo do como eu digo (cita-
dade ideológica, com a oposição "discurso patronal público" (polifô- ções de si mesmo: se opõe ao como se diz, violenta o código das uni-
nico) e "discurso sindical público" (a conquista do discurso); Cour- dades lingüísticas ao mesmo tempo que a ideologia). Ainda uma outra
desses e o discurso de enunciação por "eu" (Blum) e de enunciação forma de se considerar a distinção, relativa ao discurso citado é a que
por "nós" (Thorez). Ele mesmo, por sua vez, propõe um outro nível assume que todo discurso é ao mesmo tempo referido e referidor.
típico, o das configurações enunciativas não retóricas "onde a enuncia- Referidor, porque contém sempre uma análise dos outros discursos,
ção nã.o está mais no desvio em relação ao enunciado, mas deve ser responde sempre a um outro discurso e prevê outro (é a questão da
vista como processo constitutivo da matéria enunciada, o que implica intertextualidade). Referido, porque é sempre no interior de institui-
que seja repensada a noção de embrayeur". Em resumo, podemos dizer ções que possuem regras precisas - que determinam quem pode falar,
que a proposta de Guespin é a de que "antes de qualquer progresso sobre que tema, em que momento, etc. - que os discursos são produ-
tipológico, é preciso que a pesquisa, ao menos no quadro estreito do zidos; logo, se encontram encaixados em sistemas referidores (tendo
discurso político, faça um giro pelos funcionamentos discursivos". ou não uma forma lingüística) .
Uma tipologia bastante utilizada é a que se refere ao discurso Além desses, temos em J. S. Grumbach (1975) um estudo siste-
citado. É a que vemos, por exemplo, em Gardin (1976), ou ainda, na mático da tipologia proposta por Benveniste. Ela procura chegar a al-
menção feita por. Benveniste sobre o discurso indireto como um terceiro gumas conseqüências, que esgotariam a proposta daquele autor, colo-
tipo em relação à distinção discurso e história (1966). Na análise de cando várias formas de discurso (oral, escrito, terceira pessoa no pre-
discurso, é retomada, em geral, segundo a formulação feita por Vo- sente, primeira pessoa no passado, etc.) no escopo em que ele distin-
loshinov ( 1976). Para este autor, a substância da língua é o fenômeno gue discurso/história. Reflete, então, sobre outras formas como o

222 223
qualquer programa escolar. Podemos dizer que os critérios em que
discurso teórico e poético. No discurso teórico, procura diferenciar dis-
se baseia são, em linhas gerais, a possibilidade de generalização (e
curso ideológico e discurso científico, através do critério da explicita-
não-generalização) e a transformação da realidade criada (ou não-
ção (ou não) dp intertexto.
transformação). Para essa caracterização, ou suas variáveis, a noção
Em relação à distinção do discurso ideológico, devemos observar de tempo e de acontecimento têm sido referências fundamentais. Quan-
que há, em geral, duas tendências em análise de discurso: a) ~ de co_n- do digo que esta tipologia é historicamente marcada, quero dizer que
siderar que, dada a relação necessária do discurso com a ideologia, ela deve ter nascido de uma necessidade metodológica específica cuja
não se coloca a possibilidade de se distinguir um discurso ideológico; origem e importâcia deriva de uma época determinada. Valeria a pena
e b) a posição contrária a essa que é a de afirmar a existência de um um estudo que pudesse determinar as condições sóCio-históricas do
discurso ideológico distinto. E nesse caso (b) também há duas manei- estabelecimento dessa tipologia. Pois é, sem dúvida, uma tipologia que
ras de fazê-lo . De um lado, os que consideram a oposição discurso se caracteriza pela constância e generalidade. É do domínio da lite-
ideológico/ discurso crítico (ou contradiscurso, etc.). De outro, os que ratura no tratamento do texto. Há, entretanto, vários estudos atuais
consideram o discurso ideológico como um tipo de discurso ao lado de feitos da perspectiva da análise de discurso. É uma tipologia que tem
outros como o político, o jurídico, o religioso, etc. N'a maior parte uma força didática considerável. Outra tipologia que podemos consi-
das vezes, os que assim o fazem, definem o ideológico como sendo derar como sendo dessa mesma espécie é a que distingue os gêneros,
obscuro, irracional, o que mascara, etc. :É o caso, por exemplo, de O. no interior do domínio literário.
Reboul (l 980). Esse autor, após fazer criteriosamente essa distinção, Um outro autor que também trabalha, de forma explícita, sobre
acaba por afirmar, ao mesmo tempo, que não há um tipo puro de dis- a tipologia de discurso é Marandin ( 1979). Segundo esse autor, "não
curso e, logo, há mistura do ideológico com os outros, o que acaba por há lima tipologia de discurso, mas diversas espécies de tipologias que,
obscurecer a distinção colocada no início. No entanto, resta o valor sob o acobertamento de um termo único e de um objeto aparentemente
metodológico dessa distinção como um recurso, até certo ponto pro- semelhante, trocam seus resultados ou · suas problemáticas próprias".
dutivo, nas análises. A nossa posição é a de que todo discurso deve Ele considera, inicialmente, duas espécies de tipologias: a ideal (de
ser referido a uma formação ideológica, isto é, há uma relação neces- Sumpf, de Dubois) e a sacio-lingüística (de Marcellesi, de Guespin).
sária entre discurso e ideologia. Todas têm em comum o fato de "repousar em um esquema comum:
Merece atenção, aqui, a espécie de tipologia que distingue discurso a noção de enunciação". Mas diferem na forma como definem, ou
político, jurídico, religioso, jornalístico, etc. É uma tipologia que se delimitam, as condições de produção: de forma típica (relação entre
coloca de forma consensual. Ela é referida à existência de instituições. locutor e destinatário) e histórica (lugar e época em que o discurso é
Uma variação dessa tipologia é a que coloca a distinção entre domínios emitido) . Ainda segundo Marandin, a tipologia do discurso se pretende
(institucionais) do saber: discurso filosófico, científico, poético, etc. "o lugar de proposições teóricas autônomas sobre o discurso". Isto é,
Essa também, parece-me, é uma tipologia consensual, isto é, tácita e procura-se a especificidade de categorias de discurso. Pensando-se, en-
geral. O problema, a meu ver, em relação a essas espécies de tipologia, tretanto, os tais critérios subjacentes às tipologias - que é um dos
é que já partem de distinções apriorísticas, dadas de acordo com um objetivos colocados como proposta inicial desse trabalho - podemos
critério já estabelecido alhures: ou pela sociologia, ou pela teoria do perceber que há heterogeneidade quanto às categorias utilizadas. E
conhecimento, etc. O critério, que já vem dado, é herdado pela análise Marandin propõe a reflexão acerca de algumas espécies de tipologias:
de discurso como tal. o tipo classificatório (o estudo de Meleuc sobre a máxima, 1965), o
extremo ( Courdesses e os discursos de Bium e Thorez, 1971), o ideal
Outra tipologia, a meu ver historicamente bastante marcada, é
(Dubois e o discurso polêmico e didático, 1971) e o típico (Gardin e o
a que distingue narração, descrição, dissertação. Também é geral,
discurso patronal e sindical, 1976). Finalmente, esse autor f~z a crí-
consensual. E está subjacente às outras tipologias ou, em geral, se
combina com elas. É uma distinção tipológica que está presente em tica dessas tipologias por considerar que elas repetem "em sua dupla

225
224
referência a Harris e a Jakobson/Benveniste" a dicotomia fundo/for- à relação entre registro e estilo. E, segundo o que tenho observado, o
ma, conteúdo/expressão. Mais do que isso, a tipologia "opera a mesma estilo 1 e o tipo são os fatores que caracterizam qualquer funciona-
operação que a velha retórica ( . . . ) as categorias que ela empresta ou mento discursivo, definindo, assim, as formações discursivas.
estabelece ( ... ) enviam a uma concepção estruturalista da sociedade,
Em relação à sociolingüística, seria interessante observar que, a
de suas funções e de seu instrumento favorito: a linguagem". A partir partir do conceito de variaçã9 social. e estilística e através da noção
dessa crítica, parece-me, o que ele propõe é que se busquem critérios de registro, pode-se estabelecer uma clara distinção de discursos: o
disci,usivos (do discurso como tal) para o estabelecimento ,d a(s) tipo- discurso formal e o informal (Labov, 1976).
logia(s).
Uma outra distinção, dessa vez de natureza pragmática, é a que
Mais ~diante, procurarei mostrar como, na tipologia que formulei, se faz entre discurso planejado/não planejado (Ochs, 1979). Segundo
levo em conta essa necessidade: a de buscar critérios que derivam da Ochs, essa distinção é do domínio da psicologia. Toma como critério
concepção de discurso como tal e não da sociologia, da retórica ou as noções de previsão e organização prévia do discurso em relação a
da lingüística, etc. Sem esquecer que o que interessa dos locutores sua expressão. É uma tipologia que envolve considerações a respeito
é sua ação lingüística e o que interessa da ideologia é aquilo com que da educação formal, do comportamento característico de adultos de
o texto tem a ver. uma determinada classe social, assi~ como da relação entre a lingua-
gem da ciiança e a do adulto. Do ponto de vista das marcas formais,
coloca que os usos mais planejados da linguagem incluem o uso de
OUTRAS PERSPECTIVAS TIPOLóGICAS . estruturas sintáticas complexas e artifícios discursivos mais formais. É
uma distinção que está subjacente a outras, como as que distinguem:
Em geral, podemos destacar espécies diferentes de tipologias dado escrita/ oral; conversa/ conferência, etc.
que seus critérios derivam de diferentes teorias do uso da linguagem:
da teoria da enunciação, da sociolingüística, da pragmática, etc. Paralelamente, uma forma de tipologia hoje muito explorada pela
etnolingüística, pelos etnometodologistas e pela pragmática em geral é
Gostaria de citar, inicialmente, Halliday (1976), cuja definição a que distingue a situação-escrita e a situação-oral.
de registro permite uma distinção tipológica. Para ele, o registro é
definido por "traços lingüísticos tipicamente associados com uma con- Em relação à pragmática, e pensando-se o contexto momentâneo
figuração de traços situacionais. Quanto mais especificamente se pode .da enunciação em relação às regras conversacionais, temos, ainda, as
caracterizar o contexto de situação, mais especificamente se podem distinções que derivam de diferentes situações de linguagem: conversa,
predizer as propriedades do texto nessa situação". Ele mostra, então, aula, palestra, defesa de tese, defesa jurídica, etc. Essas todas são situa-
que o registro define a substância do texto (o que o texto significa), ções reguladas e com formas típicas. As formas citadas são apenas algu-
pois o registro é "um contexto de significados, a configuração de mode- mas de uma possibilidade muito ampla de situações e que são objeto
los semânticos que são tipicamente delineados em condições específi- de estudo de análises sociológicas (Schegloff, 1973), de análises de
cas, junto a palavras e estruturas que são usadas na realização desses discurso, de análises pragmáticas.
significados". Nesta definição de registro, encontramos os requisitos Creio que se faz necessária, aqui, a menção à distinção de códigos
que são necessários para o estabelecimento da tipologia: a caracteriza- proposta por Bernstein (197 5) : código restrito e código elaborado.
ção do texto em relação às suas condições (a relação com a exterio- Para ele, a estrutura lingüística dá origem a formas lingüísticas ou
ridade) e a especificação das propriedades do texto, nessas condições. códigos distintos. Os códigos são causados pela estrutura social, ex-
Não pretendo com isso afirmar que Halliday estabelece assim uma pressam-na e ao mesmo tempo a regulam. Para esse autor, o sistema
tipologia. Aliás, a noção de registro, como veremos, é uma noção que
permite, em geral, esse tipo de aproximação. Isso se deve, a meu ver, 1. A esse respeito, é interessante a leitura de D. Tannen (1981).

226 227
lingüístico constitui um atributo da estruturá social. O fato de esse autor A DISTINÇÃO TEXTO E DISCURSO E SUA FUNÇÃO
pôr a distinção a nível de códigos, entretanto, não nos permite colo- NA CONSTITUIÇÃO DA TIPOLOGIA
cá-lo ao lado dos outros que, de uma forma ou outra, contribuem para
uma elaboração tipológica, de discurso. Não se trata de tipos de dis- Em 'nossos estudos de análise de disc11rsn temos proposto ~
distinção entre texto e drscurso. Essa distinção se mostrou neces-
curso mas de códigos diferentes o que) de nosso ponto de vista, resuita
em conseqüências metodológicas totalmente diferentes. sária para empreendermos análises de discurso com o controle de
alguns procedimentos operacionais.
Há ainda distinções que remetem a diferenças de classe: discurso
d~ classe média, da alta burguesia, etc. Ou diferentes tipos estabeleci- Dado o fato de que o conceito de discurso é um conceito teó-
rico e cuja delimitação é impossível de ser feita em termos práticos
dos pelas divisões sociais em geral: da mulher, do homem, do negro,
de análise, pois não existe um discurso, mas um estado de um pro-
do caboclo, etc. Assim como há distinções de discurso que remetem
cesso discursivo; dado, ainda, o fato de que os processos discur-
à ideologia em geral: o discurso dominante e os outros que se relacio-
sivos se delimitam e se definem na sua inclusão em formações que,
nam com ele no processo de dominação. Sem esquecer; também, as por sua vez, se definem em sua relação com formações ideológicas,
distinções em termos de profissões : o discurso médico, o terapêutico, pareceu-nos necessário criar essa distinção - texto/discurso -
o dos economistas, etc. para que pudéssemos operar, na análise, com uma unidade delimitá-
Se acrescentarmos, a todas essas múltiplas possibilidades de se vel. Daí termos considerado o discurso como conceito teórico e meto-
considerarem tipos, o fato de que a cada tipo se podem fazer corres- dológico e texto como seu equivalente, sua contrapartida, em um
plano conceptual · distinto, ou seja, analítico.
ponder subdivisões, ou seja, subtipos, podemos ver que há uma imen-
sa complexidade tipológica. O cuidado é evitar que essa complexidade Fazendo um paralelo eu diria que, assim como, na gramática
impeça um melhor conhecimento do objeto de trabalho, um melhor transformacional o objeto de explicação é a competência e a unidade
domínio do discurso. Isso porque é fácil cair no risco das subcatego- de análise é a sentença, na análise de discurso, o objeto da explicação
rizações cada vez mais estritas e sutis, que farão de cada discurso um é o discurso e a unidade de análise é o texto. E, como há uma relação ·
tipo único. Isto está longe de levar à sistematização do objeto de necessária entre eles, as propriedades detectáveis do texto são aquelas
análise. E, segundo Maingueneau (1976), o número de corpora é que o constituem enquanto visto na perspectiva do discurso.
infinito mas os tipos de discursos analisáveis não o são. Há relação O texto reflete essa duplicidade de sua constituição: enquanto
entre os discursos, relações de aliança, inclusão, antagonismo, etc, objeto teórico, o texto não é um objeto acabado; enquanto objeto
Há, então, necessidade de se buscar invariantes na constituição do empírico, o texto pode ser um ob~to acabado (um produto) com
corpus. E isso é possível porque se toma êomo referência a homo- começo, meio e fim. Quando o consideramos ,na perspectiva da aná-
geneidade das condições de produção sendo que o discurso aparece lise de discurso, lhe devolvemos sua incompletude, pois o referimos
como o resultado da articulação de uma pluralidade mais ou menos a suas condições de produção.
grande de estruturações transfrásticas em função das condições de Lendo A. A. Bouacha e D. Bertrand (1981) pude perceber
produção. Por outro lado, segundo esse mesmo autor, um texto que essa distinção - texto/discurso - tem um alcance que afeta
constitui uma totalidade lingüística específica além da soma das fra- também o problema da tipologia. Partindo da mesma idéia de que
ses que o constituem, mas supõe a existência de uma língua, de uma o discurso é objeto teórico, esses autores vão dizer que "a relação
base lingüística comum (não é o caso de pensar uma multiplicidade texto-disc;urso pode ser apreendida de múltiplas maneiras; é que com
de microlínguas) . Assim, há várias escalas de complexidade entre as efeito os textos produzidos e difundidos no interior de uma forma-
estruturas discursivas e as da língua: há tipos de éstruturação discur- ção social dada ( .. . ) são por assim dizer os lugares de manifes-
siva mais gerais (como a narrativa, a argumentativa, o diálogo, etc.) tação de uma pluralidade de sistemas de coerção; eles são 'atraves-
até mais particulares. sados' .por leis que derivam de ordens diferentes de determinação e

228 229
funcionamento·'. Os autores mostram, então, que "o texto, enquanto , Procurando enfatizar o aspecto interacional da linguagem e ·a
traço escrito2 de uma atividade de produção, envia necessariamente relação existente entre processo e produto, tenho estabelecido uma
a discurso, construção teórica elaborada a partir de categorizações distinção entre tipo e funcionamento discursivo: os tipos (produtos)
heterogêneas sobre o texto : categorizações que são retóricas ( dis- são a cristalização de funcionamentos (processos) definidos na pró-
curso didático, polêmico, etc.), metalingüísticas (discurso referen- pria relação de interlocução. ·
cial, cognitivo, etc) que podem também incidir sobre classes de Uma vez que, segundo o que desenvolvemos, o ato de dizer é
textos (discurso político, científico, etc.) . tipificante, decorre que o funcionamento discursivo se define como
Dessa forma, encontro mais uma determinação operacional pa- atividade estruturante. Assim, tomando como referência o processo, as
ra a distinção de texto-discurso que vinha fazendo: as tipologias são configurações se estabelecem no (e pelo) ato de dizer. Dada ~ institu-
elaboradas a partir de categorizações heterogêneas sobre o texto e cionalização da linguagem, ou seja, o fato de que há um processo de
são da ordem do discurso, ou seja, representam uma construção legitimação histórica das suas formas - pois elas são disciplinadas
teórica. O conceito de funcionamento, entretanto, permite uma di- - os tipos se estabelecem como produto dessa institucionalização e
nâmica, uma passagem entre esses conceitos, não os estagnando em se fixam como padrões. Dessa forma, eles entram como tipos nas
uma relação unilateral: através da idéia de funcionamento - que condições de produção de qualquer discurso: o produto (tipo) se
venho definindo como atividade estruturante do discurso - . texto e recoloca como processo.
discurso se determinam mutuamente, são interdependentes. Dessa É assim que, também, em relação ao tipo, se pode incorporar
forma, é possível procurar no texto o que faz com que ele funcione, a noção de história. A essa noção de história se atribui uma dinâ-
e é essa sua qualidade discursiva; paralelamente, é no texto, na sua mica quando se ·Considera a relação entre conceitos como os de
materialidade específica (seus traços) que se constitui a discursivi- processo e produto: aquilo que é tipo (produto) se constitui como
dade. Considerados dessa forma, talvez se evitem categorizações um dos fatores que entram nas condições de produção de um funcio-
heterogêneas. namento discursivo (processo) que, por sua vez, determina os traços
pertinentes que podem vir a constituir novos tipos ou a confirm~r
(reproduzir) a forma estabelecida do tipo.
UMA TIPOLOGIA ESPECIFICA
Gostaria ainda de lembrar, aqui, que a noção de tipo, na sua
Não pretendo retomar aqui toda a formulação da tipologia. In- relação com funcionamento, é fundamental para a semântica discur-
teressa-me, apenas, fazer comentários a respeito da concepção de siva pois o tipo determina a relevância de certos fatores que cons-
tipos que desenvolvi em meu trabalho (cf. p. 154). tituem as condições de significação da linguagem. É o tipo que re-
Além das distinções tais como texto e discurso, como abordei córta o contexto de situação, estabelecen~o o domínio da significação
acima, procurei levar em conta outros fatores como o de que a ti- do que se diz.
pologia deve-se constituir internamente à noção de discurso e se Os critérios para o estabelecimento da tipologia que propuse-
estabelecer sobre critérios que derivem dessa noção. De acordo, mos - discurso polêmico, lúdico e autoritário - derivam da noção
então, com a noção de discurso que adotei, a tipologia que propus de interação e de polissemia. Assim, com o conceito de interação,
considera como constitutiva a relação com as condições de produ- procuramos incorporar a dimensão histórica e social da linguagem e,
ção, com a formação ideológica. por outro lado, através do conceito de polissemia, procuramos enfa-
Esse é um fenômeno geral em relação às tipologias de discur- tizar a idéia de pluralidade de formas e sentidos diferentes da
so: a cada definição de discurso que, por sua vez, deriva de uma linguagem.
concepção de linguagem distinta, se propõe uma certa metodologia Ainda nessa perspeétiva de se resguardar o princípio da multi- ·
e uma. espécie distinta de tipologia. plicidade como característica da linguagem, é que consideramos que
os tipos não se distinguem de forma estanque, havendo uma grada-
2. "Traço escrito'', aqui, é usado a propósito do texto como unidade produzida,
em oposição à atividade de produção. ção entre um tipo e outro. Por outro lado, há, entre eles, relação de

230 231
aliança, de inclusão, de conflito, .de determinação, e outras espécies pelo seu caráter interpretativo (B). Estas formações, por sua vez, nos
de relação que devem ser observadas- pela análise do funcionamento remetiam a dois tipos de discurso: (A) o autoritário e (B) o polê-
discursivo e que fazem com que o tipo, finalmente, se caracterize por mico. Evidentemente, essas passagens se fazem por mediações.
uma relação não absoluta mas de dominância. Dadas certas condi-
ções de produção, um discurso, um estado do processo discursivo, é, Assim como, em relação à aplicação da tipologia, deve-se man-
por exemplo, predominantemente lúdico ou polêmico ou autoritário. ter uma grande flexibilidade, também se deve ter o mesmo cuidado em
relação à interpretação dessa (ou qualquer outra) tipologia. A sua
Além do conceito de dominância, o outro conceito que gosta- interpretação deve levar em conta as condições de produção dos textos
ríamos de introduzir, nessa reflexão sobre tipologia, é o conceito de analisados e a relação com a formação ideológica. Isto quer dizer que,
tendência. Isto é, não acredito que os tipos se definem em-si, mas na interpretação das características do texto que o situam em uma for-
em sua tendência. Assim, na tipologia que estabelecemos e que se mação discursiva e não outra, não podemos prescindir do contexto
sustenta na reflexão sobre os processos parafrásticos e polissêmicos, sócio-histórico. Por exemplo, ainda utilizando como dado a análise
em sua tensão, os diferentes tipos se definem por tender para um do discurso da História do Brasil para a escola, o fato de se atribuir
do pólos ( o lúdico tende para o polissémico; o autoritário tende uma relação com a ideologia - quando reconhecemos nos textos
para o parafrástico) ou para o equilíbrio tenso entre os dois pólos do grupo (A) as marcas de indeterminação do sujeito - não nos
(o discurso polêmico). Não se definem, pois, categoricamente, mas leva a atribuir automaticamente a mesma relação a textos com as
relativamente aos pólos para que tendem. mesmas marcas de indeterminação produzidos em outras condições.
Ainda em relação à tipologia que estabelecemos, gostaríamos Assim, a indeterminação do sujeito nos textos de história de 1964
de dizer que se podem relacionar tipo, funcionamento discursivo e a 197 4 (que foi o período que analisamos) pode derivar de vários
forrr.iações discursivas. fatores (como a censura, a autocensura e até mesmo a posição ao
lado dos · que estão · no poder) e significam, de qualquer forma, uma
Temos tomado o conceito de formação discursiva - aquilo posição autoritária diante do leitor que é impedido de refazer o per-
que se deve e se pode dizer em determinadas condições de produção curso do dizer. Em outras condições de produção (de enunciação e
- como um conceito mediador. Mediador no sentido de que é con- sócio-históricas), não determinar o sujeito pode significar a desmisti-
figurado por certas marcas, certos traços formais ao mesmo tempo ficação da noção de herói, por exemplo. Portanto, a interpretação dos
em que é definido por sua relação com a formação ideológica. Quer dados obtidos pela aplicação da tipologia tem de ser referida ao con-
dizer, é através da caracterização dos funcionamentos discursivos texto. Os dados não têm um sentido único, nem constituem uma
que podemos determinar as formações discursivas que, por sua vez, evidência em si.
são definidas pela sua relação com a formação ideológica 3 • Foi assim,
Finalmente, gostaríamos de chamar a atenção para um problema
por exemplo, que pudemos caracterizar, em relação ao discurso da
metodológico importante que nos surgiu ao procurarmos estabelecer
História do Brasil para a escola, a relação entre certos textos e a tipo-
uma tipologia. Ao se distinguir tipos e funcionamentos discursivos, se
logia: o funcionamento discursivo dos textos nos levaram a distinguir
não se considerar essa distinção na perspectiva da relação produto/
dois grupos deles - A e B - com seu caráter de determinação ou
processo, pode-se cair no risco de se estar lidando, agora a nível do
indeterminação, segundo o uso que se fazia dos advérbios. Esses dois
uso, com a dicotomia modelo abstrato e uso concreto de forma estrita,
grupos, assim caracterizados, nos remetiam, por sua vez, a duas for-
ou seja, se estaria reproduzindo a dicotomia modelo/ocorrência (lín-
mações discursivas que se caracterizavam ou pelo episodismo (A) ou
gua/fala), agora internamente ao domínio do uso da linguagem. É
ainda uma questão de níveis de abstração. A forma que encontramos
3 . A definição de formação discursiva, de formação ideológica e a caracte-
rização de sua relação está em "Para quem é o discurso pedagógico?'',
de evitar a dicotomização categórica foi pela noção de processo.
neste volume. A colocação da noção de formação discursiva como media- Procuramos os processos mais gerais que vão se dar diferentemente
dora, em "Funcionamento e discurso". nos diferentes discursos, sendo os tipos cristalizações .de processos

232 233
(funcionamentos), historicamente sedimentados. Além disso, os tipos algo dinâmico, que é o processo discursivo. Daí propormos que não
têm como base para o estabelecimento dos critérios a relação de inte- se desvincule o estudo dos tipos de sua relação com o funcionamento
ração dos interlocutores. discursivo, já que não há uma essência que define o tipo.
De toda forma, também essa tipologia que propomos, em relação Podemos generalizar para todas as espécies de tipologias os con-
a sua relativa generalidade, está sujeita ao mesmo condicionamento ceitos de tendência, de dominância e de processo que utilizamos em
de qualquer outra: sua aplicabilidade está regulada pelos objetivos relação aos tipos lúdico, polêmico e autoritário.
da análise em sua relação com a natureza do texto a ser analisado. Em relação à sua qualidade e às suas marcas formais, os dis-
Essa é uma tipologia entre as várias possíveis, em seu nível de gene-
cursos não se definem por um traço exclusivo. Em termos de sua
ralização. A decisão acerca de seu uso depende das condições de pro-
constituição formal, o que determinará o tipo de discurso é o modo
dução da própria análise que se estiver empreendendo. Se nós a elabo-
como esse traço aparece em um discurso, em relação às suas condi-
ramos é por termos necessidade de alguns de seus critérios e por con-
ções de produção. Por isto é preciso se observar o funcionamento
siderarmos que essa tipologia nos oferece uma perspectiva fecunda
discursivo e se trabalhar com a noção de processo. Assim, o que
para a exploração das propriedades que encontramos nos discursos e
na ideologia. define o discurso é como o .traço se estabelece no funcionamento
discursivo.
Ao observar, por exemplo, o discurso religioso, podemos dizer
CONCLUSÃO que não há uma marca exclusiva desse discurso; pudemos verificar
que as antíteses, que são muito presentes nesse discurso, também o
Toda análise supõe uma tipologia, logo ela faz parte das condi- são, entre outros, no discurso teórico; o imperativo, que é muito
ções de produção de qualquer análise. Por outro lado, os critérios de comum no discurso religioso, também o é no discurso da propaganda
constituição das diferentes tipologias são heterogêneos e revelam, como e em qualquer discurso em que haja "doutrinação"; os performativos
dissemos, a concepção de linguagem e de discurso que se adota, assim que têm uma função importante (as fórmulas religiosas )nesse discurso
como a espécie de contexto que se está considerando. tam:bém o têm no discurso jurídico, etc. Assim, certas características
A heterogeneidade de critérios resulta numa grande variedade que se costumam atribuir a um certo discurso estão presentes também
e complexidade de tipologias de discurso. Acreditamos, no entanto, em outros. Do ponto de vista da relação entre formações discursivas
que a tipologia tem uma· função metodológica fundamental de siste- e formações ideológicas, isso se explica pelo fato de que os discursos
matização dos diferentes discursos: é um ponto de encontro entre o se sustenta~ mutuamente, por isso compartilham marcas. De um lado,
singular e o geral. Por isso é que, procurando refletir sobre a capaci- não há tipos puros de discurso e, de outro, ~á inclusão, aliança, sobre-
dade de generalização de propriedades a partir da noção de tipo, determinação e toda espécie de relação, de cruzamentos, entre os
chegamos a concluir que as tipologias, elas mesmas, têm uma gene- discursos, assim como há, pelo processo de metacomunicação, o uso
ralidade relativa e o que conta em seu estabelecimento e sua aplicação de um discurso pelo outro. Portanto, por todas essas espécies de rela-
é o objetivo da análise em relação à natureza do texto. ção entre discursos, características que são tidas como típicas do
A interpretação de qualquer tipofogia também não deve ser feita discurso religioso, por exemplo, podem ser encontradas em certas
de forma automática. Isto é, os resultados da aplicação de uma tipo- canções populares ou em certas poesias, ou no discurso cotidiano, ou
logia devem ser referidos ao contexto sócio-histórico do texto que no científico, etc.
foi objeto da análise,. pois esses resultados não sãô evidentes por si. Nesse passo, gostaríamos de introduzir a distinção entre as marcas
Como última observação, gostaríamos de lembrar que, de qual- (traços) e as propriedades do discurso. Segundo a distinção que esta-
quer maneira, todo tipo é produto histórico, ou seja, cristalização de mos estabelecendo, as marcas dizem respeito à organização do discurso

234 235
.e as propriedades têm a ver com a totalidade do discurso e sua relação O que explicita o estatuto da lingüística na análise de discurso,
com a exterioridade. ou seja, o fato de que a relação entre a lingüística e a análise de
discurso é a de aplicação.
Assim, para se caracterizar um tipo de discurso é preciso se
determinar qual é sua(s) propriedade(s) e depois referir as marcas O que temos são processos gerais que se cruzam de várias ma-
a essa ( s) propriedade ( s) . neiras e que fazem com que um discurso tenda para uma certa forma
típica, dada a dominância (saliência) de um de seus fatores em deter-
Tomando como exemplo o discurso religioso, tal como vimos minadas condições de produção. O analista de discurso procurará
fazendo, podemos dizer que a propriedade do discurso religioso é a determinar o modo como os processos gerais estão presentes num fun-
não-reversibilidade entre os planos (temporal e espiritual) e a con- cionamento discursivo determinado. A sua tarefa, em relação à tipo-
seqüente ilusão de reversibilidade que se dá pela profecia, pela visão, logia, ao explicitar a dominância desse ou daquele traço, dessa ou
pela performatividade das fórmulas religiosas, etc. Como é a voz de daquela propriedade, nas estruturações de um discurso, é remeter essa
Deus que fala em seu representante, faz também parte da proprie- dominância à configuração de um típo, enquanto produto histórico.
dade desse discurso o fato de que p.ão há autonomia desse represen- E os tipos, vistos como produto, representam o cruzamento determina-
tante em relação a Sua voz. do, isto '..é,, específico, dos processos discursivos gerais sedimentados.
Retomando, finalmente, a distinção das diferentes concepções de
Essas nossas considerações indicam que não adianta dizer que
conte:icto - lingüístico, textual e situacional (de enunciação e histó-
se usa mais um esquema gramatical ou outro (imperativo, nega- rico-social) - colocada no início desse estudo, podemos concluir que
ção, antítese, etc.) para se caracterizar Um discurso em relação a as diferentes tipologias se definem como diferentes formas de consi-
outro. Falar desses esquemas não significa nada se não sabemos a derar, ou de incorporar, as diferentes noções de contexto em suas
função deles em relação à propriedade do discurso que é objeto de diversidades.
nossa análise.
A observação das marcas (esquema gramatical) pode nos indicar
procedimentos relevantes para a descoberta da(s) propriedade(s) . Mas BIBLIOGRAFIA
é só ao referir o esquema gramatical constituído pelas marcas à pro-
priedade é que estaremos caracterizando o discurso em sua especifi- BENVENISTE, E. - Probleme:r -de Linguistique générale, Gallimard, Paris,
1966.
cidade. Isso vale dizer que, sem a consideração do funcionamento do
BERNSTEIN, B. - Langage et Classes Sociales, Minuit, Paris, 1975.
discurso em suas condições de produção, não há possibilidade de BOUACHA, A. A. & BERTRAND, D. - Lectures de Récits, Belc, Paris, 1981.
distingui-lo, pois o estabelecimento da propriedade do discurso é o COURDESSES, L. - "Blum et Thorez en Mai 1936: Analyses d'Énoncés'',
estabelecimento do funcionamento típico de suas condições de pro- Langue Française, 9, Larousse, Paris, 1971.
dução. DUBOIS, J. - "Analyse de Discours", Langages, n. 0 13, Larousse, Paris, 1969.
- - - - - . "Avant-propos" a: Marcellesi, J. B. - Le Congres de Tours,
Isso tudo nos leva a considerar, na caracterização típica dos Herman, Paris, 1971.
discursos, três fatores, em sua relação: a situação, o texto e a gra- GARDIN, B. - "Discours Patronal et Discours Syndical'', Langages, n. 0 41,
mática. Como podemos exemplificar através do Discurso Religioso, Larousse, Paris, 1976.
como segue: GRUMBACH, J. S. - "Pour une typologie des discours", em Langue, Discours,
Société, Seuil, Paris, 1975.
GUESPIN, L. - "Types de discours, ou fonctionnements discursifs?", Langages
41, Larousse, 1976.
situação texto gramática
HALLIDAY, !\1. A. K. & HASAN - Cohesion in English, Longman, Londres,
não reversibilidade dos planos antítese negação 1976.
(espiritual e temporal) LABOV, W. - Sociolinguistique, Minuit, Paris, 1976.

236 237
MAINGUENEAU, D. - Initiation aux Méthodes de l'Analyse du Discours,
Hacll.ette, Paris, 1976.
MARANDIN, J. M. - "Problemes de l'Analyse du Discours. Essai de Des-
cription du Discours Français sur la Chine", Langages, n. 0 55, Larousse,
Paris, 1979.
MELEUC - "Recherches Sémantiques'', Langages, n. 0 1, Larousse, Paris, 1965.
OCHS, E. - "Planned and Unplanned · Discourse" em Discourse and Syntaxe,
vol. XII, Academic Press, 1979.
P~CHEUX, M . - Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969. O DISCURSO RELIGIOSO
"Mises au Point et Perspectives à Propos de l' Analyse Auto-
matique du Discours'', Langages, n. 0 37, Larousse, Paris, 1975.
REBOUL, O. - Langage et Idéologie, PUF, Paris, 1980. INTRODUÇÃO: A NOÇÃO DE REVERSIBILIDADE
REY-DEBOVE, / . -·"Notes sur une interpretation antonymique de la littérarité:
le mode du comme je dis", Littérature, 4, 1971. Tenho colocado a noção de reversibilidade como um dos crité-
SCHEGLOFF, E. & SACKS, H . - "Opening up clossings", Semiotica, 4, Mou- rios subjacentes à tipologia na qual distingo os discursos polêmico,
ton, 1973. lúdico e autoritário. ~ entendo reversibilidade como a troca de papéis
TANNEN, D. - "The Machine-Gun Question: an example of conversational na interação que constitui o discurso e que o discurso constitui.
style'', Journal of Pragmatics, 5, 1981.
VOLOSHINOV, V. - El Signo Ideologico y la Filosofia dei Lenguage, Nueva,
Visión, Buenos Aires, 1976.
Pela noção de reversibilidade, proponho não fixar de forma !
categórica o locutor no lugar do locutor e o ouvinte no lugar do
ouvinte. Em minha perspectiva, esses pólos, esses lugares, não se
definem em sua essência mas quando referidos ao processo discursivo :
um se define pelo outro, e, na sua relação, definem o espaço da
discursividade.
Pois bem, buscando as determinações que caracterizam essa no-
ção - a de reversibilidade - procurei tomá-la como um dos parâ-
metros na definição do discurso religioso em suas propriedades.
Coloco, então, como posição inicial dessa reflexão; que a reve0
sibilidade é a condição do discurso.
Ao propor a reversibilidade como condição do discurso, procuro
estabe ecer ~,_liem :-iiSa inamica_na elação- de--· interlóc_gç"}iü,'Ô
discurso não se dá, não prossegue, não se constitui. Isso, no entanto,
não significa que todÕ discurso se estabelece na harmonia dessa con-
dição. Como já tive ocasião de observar, o discurso polêmico a realiza
segundo certas condições (a dinâmica da tomada da palavra) e o
discurso autoritário busca anular essa possibilidade. Quanto ao dis-
curso lúdico, gostaria de dizer que ele pode suspender essa condjção,
uma vez que é um discu'rso que está no limiar da concepção de lin-
guagem como dialogia. ·É um discurso que, enquanto limite, aponta
para duas possibilidades mais radicais. Como nesse tipo de discurso
há um deslocamento, de um lado, em direção ao fático, e, de outro,

238 239
em direção ao poético, as duas. possibilidades radicais se revelam O objeto de nossa reflexão, nesse trabalho, pode ser considerado,
nessa duplicidade: no fático, há em relação à reversibilidade, o exage- em termos tipológicos, na perspectiva do discurso autoritário. Então,
ro para mais, ou seja, o centro desse discurso tende para a troca de o que procurarei mostrar aqui é a forma que a ilusão da reversibilidade
papéis em si (o prazer do bate-papo) ; no poético, a relação com a adquire nesse tipo de discurso, o religioso.
reversibilidade tende para menos, ou seja, o que importa é a lingua-
gem em si (o prazer de dizer, o sentido absoluto). O hiper-social
(fático) e o hipo-social (poético): ambos vão além do esperado.
A DEFINIÇÃO DO DISCURSO RELIGIOSO
Todas as formas de discurso, entretanto, têm como parâmetro
essa noção e, em se tratando do discurso autoritário, gostaríamos de
observar que, embora não haja reversibilidade de fato, é a ilusão da Althusser ( 197 4) dá, como exemplo da estrutura formal de
reversibilidade 1 que sustenta esse discurso. Isso porque, embora o qualquer ideologia, a ideologia religiosa cristã. Para tal, ele reúne em
discurso autoritário seja um discurso em que a reversibilidade tende um discurso fictício "o que ele diz não só nos seus testamentos, nos
a zero, quando é zero o discurso se roinpe, desfaz-se a relação, o seus teólogos, nos seus sermões, mas também nas suas prática, nos
contato, e o domínio (o escopo) do discurso fica comprometido. Daí seus rituais, nas suas cerimônia e nos seus sacramentos". Ele constrói,
a necessidade de se manter o · desejo de torná-lo reversível. Daí a então, esse discurso fictício religioso como um exemplar que funciona
ilusão. E essa ilusão tem várias . formas nas diferentes manifestações como um "dicionário" discursivo. Como, para ele, o · termo central,
çlo discurso autoritário. decisivo, é a noção de sujeito, as duas teses conjuntas que sustentam
A questão da reversibilidade traz como conseqüência necessária sua argumentação na análise desse exemplar são: a) só existe prática
co_nsideraçã? do outro critério que. tem~s tilizado para a dist~nção através e sob uma ideologia; b) só existe ideologia através do sujeito
de tipos de discurso: trata-se da polissemia. Podemos, então, afumar e para sujeitos.
1 que o discurso autoritário tende à monossenÍa, uma vez que esse dis-
\ curso se caracteriza pela polissemia contida, estancada. Entretanto, · Segu°ildo esse autor, "Deus define-se portanto a si mesmo como
, também ·em relação à monossemia, não podemos afirmar que o sujeito por excelência, aquele que é por si e para si (Sou Aquele que
discurso autoritário é .um discurso monossêmico mas sim que ele tende ':É) e aquele que interpela seu sujeito ( ... ) eis quem tu és: és Pedro".
para a monossemia. Isto porque todo . discurso é incompleto e seu Mais ainda, todo "indivíduo é chamado pelo seu nome no sentido
sentido é intervalar: um discurso tem relação com outros discursos é passivo, nunca é ele que dá a si próprio o seu nome". O indivíduo
constituído pelo se contexto imediato de enunciação e pelo conte~to não nomeia nem a si próprio nem a Deus; por outro lado, Deus
~istó~ic?-social, _e se institui na ~elação entr~ formações · discursivas e nomeia, não é nomeado.
)
ideologicas. Assim sendo, o sentido (os sentidos) de um discurso es-
\ capa(m) ao domínio exclusivo do lócutor. Poderíamos, então, dizer Althusser destaca ainda - ao haver interpelação dos sujeitos
que todo discurso, por definição, é polissêmico, sendo que o discurso com uma identidade pessoal - o fato de que há uma condição abso-
\;utoritário tende a estancar a polissemia. luta para se pôr em cena sujeitos religiosos cristãos: só existe essa
multidão de sujeitos religiosos possíveis porque existe um Outro
~orno a q_uestã?) d~ reversibilidade está necessariamente ligada à
Sujei:o único absoluto. O autor passa então, a distinguir o Sujeito dos
questao da ,pohssem; a, ao falarmos na ilusão da reversibilidade, esta-
remos também_faíando nas condições de significação do discurso auto- sujeitos vulgares / Deus é o Sujeito e os homens são os seus inter-
r ritário, ou seja, no seu caráter tendencialmente monossêmico, ou sua · locutores-interpeÍ~dos, os seus espelhos, os seus reflexos (não foram
pretendida monossemia. criados à .Sua imagem?).
Mostrando a n~cessidade do desdobramento do . Sujeito em sujei-
1 . Gostaria que a palavra "ilusão" fosse entendida aqui antes coi:no sentimento
do que como engano. tos, e do próprio Sujeito em sujeito-Sujeito (o dogma da Trindade),

240 241
Althusser procura mostrar como a estrutura de toda ideologia é espe- em que fala a voz de Deus: a voz do padre - ou do pregador, ou,
cular e duplamente especular: submete os sujeitos ao Sujeito e dá-lhes, eiiigeral, de- qualquer repres~se~- - é- a voz de Deus.
no Suj'eito, garantia de que é efetivamente deles e Dele que se trata.
Tomaremos, como referência, sobretudo o discurso religioso
A estrutura duplicada da ideologia assegura, segundo Althusser: cristão - particularmente o católico. E o objetivo desse nosso estudo
é justamente o de instituir um parâmetro exploratório, a partir do
a) a interpelação dos indivíduos como sujeitos;
qual se poderão observar as formas da religião em geral, ou seja, as
b) a sua submissão ao Sujeito; diversas maneiras que o homem tem de se relacionar com o sobre-
c) o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre natural. - ---- - -
os próprios sujeitos e, finalmente, o reconhecimento do sujeito por
ele próprio; Por exemplo, e variando-se inclusive de cultura, eu perguntaria
se, no caso dos índios, o pajé pode ser considerado um representante,
d) a garantia absoluta de que está tudo bem, assim, e que; na
qual é o estatuto da sua voz na comunidade indígena, qual é a nat.u-
condição de os sujeitos reconhecerem o que eles são e de se condu-
reza da relação do pajé com a voz do sobrenatural, etc. Ou seja,
zirem de acordo, tudo correrá bem. Assim seja!
quando dizemos que este nosso trabalho procura estabelecer um parâ-
Temos, então, por essas relações de sujeito: o reconhecimento, metro exploratório, não estamos propondo que se desconheçam (nem
a identidade, o apaziguamento. se supervalorizem) as diferenças, ao contrário, esta é uma forma de
/
se elaborar uma sistematização para se poder reconhecer as diferenças
A partir dessas reflexões, podemos entender que a definição de quando e se elas existirem. Creio que dessa forma pqderemos chegar à
sujeito aponta para duas direções: a de ser sujeito e a de assujeitar-se. distinção de características que são próprias ao discurso religioso em
No sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre - um geral e a outras que são particulares a certas espécies de discurso
centro de iniciativa, autor e responsável por seus atos - e um ser
religioso. Para tal é necessário que se façam, posteriormente, estudos
submetido - sujeito a uma autoridade superior, portanto desprovido
comparativos. A nossa intenção, repito, foi estabe_lecer, a partir da
de toda liberdade, salvo a de aceitar livremente a sua submissão.
formulação. de certos conceitos e certos procedimentos, um parâmetro
De acordo com Althusser, "o indivíduo é interpelado como su- cuja função é exploratória.
jeito (livre) para que aceite (livremente) a sua sujeição ( ... ) . Só
existem sujeitos para e pela sua sujeição". :E: assim que se expressa o Partindo então, da caracterização do discurso religioso como
livre arbítrio, em sua duplicidade: sujeitos submetidos ao Sujeito/su- quele e;-que fala a voz de Deus, começaria por dizer que, no dis-
"\ urso religioso, há um desnivelamento fundamental na relação entre /:>(
jeitos reconhecidos
. pelo Sujeito. O que nos leva a afirmar quev o con-
teúdo da ideologia religiosa se .constitui de uma contradição, uma vez cutor e ouvin e: o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) . e o
\._que a noção de livre arbftrio traz, em si, a de coerção~ ( ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens). Isto é, locutor
e ouvinte pertencem a duas· ordens de mundo totalmente diferentes e
Em relação à coerção, não é nem necessário dizer que não se afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua rela-
trata de força ou coerção física, pois a ideologia d_etermina o espaço ção: o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de
de · sua racionalidade pela linguagem: o fiincionamento da ideologia acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todo-pode-
transforma a força em.direito_ e a obediência em dever (0. Reboul, i roso; os ouvintes são humanos, logo, mortais, efêmeros falíveis, finitos,
· 1980). A religião constitui um domínio privilegiado para se obse ar \___dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens.
esse funcionamento a 1aeologia - dado;--entre oUtras- coíSas, o lugar
atribuído à Palavra. Dessa assimetria original vão decorrer, como veremos, várias
outras, porque a desigualdade imortalidade/mortalidade instala, para
Para os objetivos desse trabalho, e pensando essa relação de os homens, a relação vida/morte e dessa relação nasce a necessidade
sujeitos e Sujeito, vamos caracterizàr o discurso religioso como aquele
- -
de salvação ra a vita eterna.
\
lo
móvel para a salvação é a fé.
'.

242 243
A assimetria, que assim se constitui, caracteriza a tendência para Procuramos distinguir o modo dessa representação nos diferen-
a não-reversibilidade:;.1 os homens não podem ocupar o lugar do Lo- tes tipos de discurso e pudemos perceber que a distinção repousa na
cutor porque este é ovlugar de Deus . Portanto, essa relação de inter- maior ou menor autonomia do representante em relação à voz que
locução, que ~onstitui o discurso religioso, é dada e fixada, segundo fala nele 2 • O que nos leva a afirmar que há, pois, diferentes graus de
a assimetria j autonomia.
( Assim, em relação ao político, há uma maior independência: o
) político não só é autônomo em relação à voz do povo como ele pode
MODOS DE REPRESENTAÇÃO E OBSCURIDADE
até mesmo criar, inventar a voz do povo que lhe for mais convenien-
'\ te. Desde que lhe seja atribuída legitimidade. É assim que se cria o
/ .Pensando-se o mecanismo de incorporação de vozes, tal como
onsenso. Há, pois, um grau de autonomia razoável.
/ colocamos na definição do discurso religioso - uma voz que se fala
1 na outra da qual é representante - podemos fazer um paralelo entre . Em relação ao professor, há uma relativa autonomia, no sentido
\ o discurso religioso e outros tipos de discurso: de que, ao incorporar o saber, o professor pode elaborar, manipular,
modificar relativamente o saber estabelecido.
1 a) no discurso religioso: a voz de Deus se fala no padre;
,
1 b) no discurso político : a voz do povo se fala no político; Poderíamos observar, dessa forma, os diferentes tipos de dis-
......
c) no discurso pedagógico: a voz do saber se fala no professor; curso. Importa-nos aqui, principalmente, o discurso religioso . .Visto
nesta perspectiva, podemos dizer que o disc~rso _Jeligioso não apre-
d) no discurso terapêutico: a voz da natureza (saúde) se fala
no médico; senta nenhuma autonomia, isto é, o representante da voz de Deus
não pode modificá-la de forma alguma.
e) no discurso da história: a voz dos fatos se fala no histo-
riador. Há regras estritas no procedimento com ·que o representante se
apropria da voz de Deus: a relação do representante com a voz é
Poderíamos estender esse mesmo procedimento de análise do
regulada pelo texto sagrado, pela Igreja, pelas cerimônias.
mecanismo de incorporação da voz para todos os outros tipos de
discurso. Dada a forma da representação da voz, e dada a assimetria
fundamental que caracteriza a relação falante/ouvinte no discurso re-
Essa é, para nós, a forma da mistificação: em termos de discurso, ligioso, mntém-se a distância entre o dito de Deus e o dizer do homem,
é a subsunção de uma voz pela outra (estar no lugar de), sem que ou seja,~ão (diferença?) entre ~ significação divina e
se mostre o mecanismo pelo qual essa voz se representa na outra. O a linguagem humana, separação essa que deriva da dissimetria entre
apagamento da forma pela qual o representante se apropria da voz é os planos. E assim se mostra e se mantém a obscuridade dessa signi-
que caracteriza a mistificação. ficação, inacessível e desejada 3 .
Em outras palavras, a subsunção de uma voz pela outra é o "cgmo Uma vez que há obscuridade, há sempre a possibilidade das dife-
se" desses discursos. Segundo o qu~ pensamos, devemos distinguir rentes interpretações (leituras) das palavras (do texto), mas essas
esse "como se" do "faz-de-conta". O "faz-de-conta" se constitui da diferenças observam um regulamento categórico: além de um certo
relação com o imaginário. Ao contrário, quando falamos de "como limite, elas são consideradas transgressões, instituem novas seitas, são
se", estam s tratando não da relação com o imaginário mas com o cismas, etc.
simbólico. j, Logo, com o domínio da disciplina e das instituições.
Assim, qu ndo digo que a voz de Deus se fala no padre, é "como se" 2. Agradecemos aqui as colocações feitas em conversa pessoal, por Luiz Hen-
rique Lopes dos Santos, a respeito do papel da representação.
Deus falasse: a voz do . adre- é- i_voz de Deus. Essa é a forma da 3 . Eis uma importante função do esoterismo: porque não se compreende,
representação, ou s , ~lação simbólic ) deve-se crer e obedecer.

244 245
sagrado 5 • Em geral, distingue-se o discurso teológico do religioso por
A interpretação própria da palavra de Deus é, pois, regulada.
ser aquele mais formal e este mais .informal. ·
Os sentidos não podem ser quaisquer sentidos: o discurso religioso
tende fortemente para a monossemia. No cristianismo, enquanto reli- A propriedade que estamos considerando na caracterização do
gião institucional, a interpretação própria é a da Igreja, o texto próprio discurso religioso é a reversibilidade, e, com respeito a esta proprie-
dade, o que acontece é que, ·mesmo quando há relação direta com o
é a Bíblia, que é a revelação da palavra de Deus 4 , o lugar próprio para
sagrado, a não-reversibilidade se mantém, mantendo-se a dissimetria.
a palavra é determinado segundo as diferentes cerimônias. A reversibilidade não está em se poder falar também, ou se poder falar
Como, também em relaçãq_ à_inter_pretação das palavras, deve- diretamente(!O eu-cristão pode falar diretamente com Deus mas isto

-
mos atentar para assimetria dos plano~ s regras são referidas às
duas ordens de mun o, o temporal e o es iritual. _
não modifica o seu poder de dizer, o lugar de onde fala. O que, em
análise de linguagem, significa que não se alterou o estatuto jurídico
do locutor.
Segundo essa assimetria, os agentes da interpretação são de duas
A própria fala é ritualizada, é dada de antemão. Há fórmulas
espécies: pa._ra se falar com Deus, mesmo quando se caracteriza essa relação
- Na ordem temporal, a relação com o sagrado, por exemplo de fala pela familiaridade, pela informalidade. Isso porque, quando
no catolicismo, se faz pelos representantes da Igreja: o Papa, o Bispo, se fala com Deus, se o faz por orações ou por expressões mais ou
menos cristalizadas (como: ó meu Deus! faça com que ... ) .
os Padres.
Então, o informal, o espontâneo, · nessa relação de interlocução,
- Na ordem espiritual, a relação se faz pelos mediadores: Nossa
tem suas formas já dadas, sendo que essa espontaneidade não afeta a
Senhora, os Santos. reversibilidade. A dissimetria se mantém pois se mantém a mesma
Nessa distinção, deve ocupar lugar à parte Jesus Cristo: sendo qualidade da relação, não havendo alteração do estatuto jurídico dos
o Deus que habitou entre os homens, não é nem representante nem interlocutores: de um lado, temos sempre a onipotência divina, de
outro, a submissão humana. Não se alterou o poder de dizer.
mediador. Sua natureza é particular, pois, embora seja a parte aces- /

sível de Deus, é o próprio Deus. Como a dissimetria se mantém é preciso que os homens, para
serem ouvidos por Deus, se submetam às regras: eles devem ser bons,
puros, devem ter mérito, ter fé, etc. É preciso, pois, que eles assumam
DISCURSO TEOLóGICO, DISCURSO RELIGIOSO a relação da dualidade, a relação com o Sujeito diante do qual a alma
religiosa se define: esses sujeitos, para serem ouvidos, assumem as
Todas essas observações, se considerarmos a distinção entre qualidades do espírito, qualidades do homem que tem fé.
discurso religioso e teológico, estariam situadas mais no domínio do Por isso tudo, não vemos como necessário, para nossos obje-
teológico. Isso se considerarmos o teológico como o discurso em que tivos, distinguir entre discurso teológico e discurso religioso, uma vez
a mediação entre a alma religiosa e o sagrado se faz por uma sistema- que essa distinção não afeta a característica da não-reversibilidade.
tização dogmática das verdades religiosas, e onde o teólogo, eÍe mes- Não nos devemos esquecer, entretanto, que se trata de noções com-
mo, aparece como aquele que faz a relação entre dois mundos: o plexas que abrigam, em seu interior, fenômenos bastante controversos.
mundo hebraico e o mundo cristão. Em oposição a este, o discurso Como os que podem ser vistos nas considerações feitas, por exemplo,
religioso seria aquele em que há uma relação espontânea com o
5. Essa é uma distinç:ão que me foi dada, informalmente, por Marilena Chauí.
4. É interessante se observar que as religiões de conversão (de exclusão) são Essa autora, certamente, dá outras determinações a essa distinção. Desta-
as religiões que têm escrita. As religiões de culturas sem escrita, e que só se camos esse aspecto por considerarmos a sua relevância para a caracterização
efetuam por rituais, são mais ecléticas (cf. Goody, 1968). da noção de reversibilidade, que é a que nos interessa nesse trabalho.

246 247
r
por um autor como Gramsci. E são algumas dessas considerações que terialismo da religião popular e a especulação idealista dos teólogos.
gostaríamos de trazer, de passagem, para essa nossa reflexão. A contradição entre os termos dessa oposição é que caracteriza a
religião (católica) e a assemelha às doutrinas utópicas.
Segundo Gramsci (1966a), sob a homogeneidade ideológica, exis-
te na religião - enquanto conjunto cultural - uma subdivisão para- Segundo Portelli ( 1974), "A linha teórica de Gramsci, desde
lela aos grupos sociais afetados. Qualquer religião é, na realidade, os escritos da juventude aos Quaderni, se baseia em duas críticas
uma multidão de religiões distintas e, muitas vezes, contraditórias. constantes: a do materialismo positivista e a do idealismo especula-
Tomando o domínio do catolicismo, ele coloca a existência de um tivo. Essa dupla crítica culmina na análise da religião: esta é, com
catolicismo de campone'Ses, um catolicismo de mulheres, um catoli- efeito, a síntese desses dois erros teóricos".
cismo de intelectuais, por sua vez velado e incoerente.
Dessa forma, ao concordar com o que diz Gramsci e ao consi-
Essa heterogeneidade social e ideológica é que explica que, no derar a importância de sua dupla crítica na reflexão sobre religião, a
interior de uma mesma religião, podem-se distinguir a teologia e a nossa proposta é, como já dissemos, a de não distinguir de forma
religião popular. A teologia - Jl.O catolicismo - se manifestará como estanque o discurso religioso do teológico: preferimos trabalhar no
a filosofia da religião, como a concepção da hierarquia eclesiástica interior da tensão que os constitui em sua relação. Se assim fizermos,
(dos intelectuais da religião) ; a religião popular forma o essencial da podemos, só para ficar em um exemplo, observar a forma como a
ideologia que compõe o folclore e o senso-comum. Da religião do religião popular lida com os representantes e mediadores (promessas,
povo fazem parte, segundo Gramsci: formas precedentes do catoli- milagres, ex-votos) que é distinta daquela como os teólogos se posi-
cismo atual, movimentos heréticos populares, superstições científicas cionam diante dos mesmos, embora partam de um ponto comum.
vinculadas a religiões do passado, etc.
Paralelamente, não se pode desconhecer que há multiplicidade
também quanto às formas e funções da religião. ESPlRITO E fl:

Podemos observar que, para Gramsci, a religião abarca duas No escopo dos dualismos que caracterizam a religião, temos;
dimensões: a de concepção de mundo e a de atitude prática. ainda em Gramsci, uma importante contribuição: a que coloca a
No âmbito da concepção de · mundo é que podemos ver a rela- concepção religiosa das relações entre Homem e Natureza. Essas re-
ção entre filosofia, senso comum e folclore: "o senso comum é o lações, segundo ele, são puramente negativas, uma vez que ambos se
folclore da filosofia e se acha sempre na metade do caminho entre o referem a mundos diferentes: a natureza (o mundo exterior) se
folclore verdadeiro e próprio (quer dizer tal como se o considera apreende como uma realidade objetiva, material, enquanto se consi-
comumente) e a filosofia" ( 1966b). dera, na relação com Deus, o homem como puro ·espírito, indepen-
O senso comum é, assim, para Gramsci, o termo médio: o dente do mundo material.
folclore é a concepção de mundo das classes subalternas e a filosofia Esse é um dualismo que irá compor, com suas características,
é a ordem intelectual das classes fundamentais. os demais já enumerados. A caracterização desse dualismo - homem/
A partir da distinção entre intelectual e popular, a dualidade
concepção de mundo que corresponde a cada religião. Distingue, então, em
da ideologia 6 religiosa pode ser ilustra~a pela oposição entre o ma- relação à religião, duas atitudes totalmente opostas: quando esta representa
uma necessidade - a ativa, do cristianismo primitivo, a do protestantismo
6. Segundo Gramsci, o estudo das ideologias política e religiosa é necessário - e quando tem a forma de "ópio do povo" - a passiva e conservadora do
porque elas constituem as formas principais de concepção de mundo. cristianismo jesuítico, em que esgotou sua função histórica e só se mantém
Deve-se pois estudar a relação entre o sistema religioso e o sistema político por artifícios e/ou por repressão. Uma - a ativa - fornece a base ideo-
em cada formação social. Entretanto, segundo Portelli ( 1974), o interesse lógica para uma ação positiva, a outra - a passiva - representa uma
principal de Gramsci está mais centrado na dimensão prática do que na ideologia "inútil".

248 249
natureza, espírito/matéria - torna possível a articulação entre a Então, a fé, sendo um dom divino e se submetendo ao espaço
ordem temporal e a espiritual. Já que, como vimos, para a relação religioso determinado pela Igreja e suas leis, longe de negar, é mais
com o Sujeito, a alma religiosa deve assumir as qualidades do espírito. um fator que comprova a não-reversibilidade;
Com esse dualismo, teremos um quadro aproximado como segue: Feitas essas considerações, podemos agora determinar as formas
da ilusão da reversibilidade.
Plano Humano / Plano Divino
Ordem Temporal / Ordem Espiritual
sujeitos / Sujeito AS ,.FORMAS DA ILUSÃO DA REVERSIBILIDADE
____--.;> Espírito
Homem...=::::;matéria Deus De modo geral, dadas as dualidades e a intransponibilidade das
...,
diferenças, a ilusão da reversibilidade, que anunciamos no início desse
Observando-se esse quadro de dualismos, podemos dizer que trabalho, se dá pela visão, pela profecia, pela performatividade das
.t: a articulação entre o h~mem e Deus se faz através da ~ ão de fórmulas religiosas, pela revelação.
espírito. Essa é uma passagem e, para entendê-la, é preciso referi-la
a uma outra noção, a de fé. A ilusão é a da passagem de um plano a outro, de um mundo
a outro.
Entre as qualidades do espírito está a fé, que é o móvel para a
salvação. Isto é, dada a condição humana em relação a Deus, dada Diríamos que essa ilusão pode ter duas direções: de cima para
a separação indicada por essa condição (o pecado existe), a fé é a baixo, isto é, Deus partilha com os homens suas propriedades; de
possibilidade de mudança, é a disposição de mudar em direção à baixo pata cima, ou seja, o homem se alça até Deus. Essas são as
salvação. formas de ultrapassagem.
Interpretando-se a fé ·com referência à assimetria, podemos dizer O caso em que o homem é que vai até Deus, e assim alcança
que a fé não a elimina, isto é, não é capaz de modificar a relação de suas qualidades · atemporais (onipotência, onipresença, eternidade,
não-reversibilidade do discurso religioso: a fé é uma graça recebid'a onisciência, etc.), é o da profecia, da visão, do misticismo. É a: parti-
de Deus pelo homem. A fé remove montanhas. O homem, com fé, lha do movimento de baixo para cima: aí estão o profeta, o vidente,
tem muito mais poder, mas como a fé é um dom divino, ela não o místico. "
emana do próprio homem; lhe vein de Deus.
Inversamente, o movimento de cima para baixo, aquele em que
Um outro aspecto importante da fé,. a ser observado, é o fato Deus desce até os homens e partilha com eles suas qualidades divi-
de que a fé .é que distingue os fiéis dos não-fiéis, os convictos dos nas, é o caso ·em que se consideram as fórmulas religiosas em seu
não-convictos. Logo, é o parâmetro pelo qual se delimita a comuni- caráter performativo: a infalibilidade do Papa, a possibilidade de
dade e constitui o escopo do discurso religioso em suas duas forma- ministrar sacramentos, a consagração na missa, as bênçãos, etc. Aí
ções características: para os que crêem, o discurso religioso é uma estão: o Papa, os Bispos, os Padres, etc.
promessa, para os que não crêem é uma ameaça.
Visto nesta perspectiva, o milagre é a confirmação da ilusão da
A fé é um dos parâmetros em que se assenta o princípio da reversibilidade, da passagem de um plano a outro: nele se juntam a
exclusão. E o espaço em que se dá a exclusão é a Igreja: os que interferência divina e a inexplicabilidade da ciência dos homens 7 •
pertencem a ela (os que acreditam) e os que não pertencem (os que ·
não acreditam). É a Igreja que atribui os sacramentos, é ela que tem 7. A respeito da caracterizàção do milagre: "Milagre e Castigo Divino", de
a palavra da revelação, a leitura correta do texto sagrado, etc. f Alba Zaluar, em Religião e Sociedade, n. 0 5, 1980.

250 251
Qualquer que seja a forma da ilusão, trata-se sempre de uma transforma naquele do qual ele ocupa o lugar. Então, dadas certas
ilusão produzida e mantida dentro de regras, e confirmando, em últi- condições, o representante passará a falar do lugar próprio. Por
ma instância, a dissimetria dos planos em que se . constitui. exemplo, suficientemente munido de seu diploma, e tendo o estatuto
jurídico que lhe compete, o antes-aluno falará do lugar do professor,
Se tomarmos, como exemplo, os performativos, veremos que
que, então, lhe será próprio. O mesmo se dá com o juiz, o político, etc.
há regras estritas para que esses atos de linguagem se constituam
efetivamente em performativos: as fórmulas religiosas, para ter vali- Por esse mecanismo de apropriação eles acabam por ser confundidos
dade, têm de ser usadas em situação apropriada e be.m configurada. com o próprio saber, com a própria justiça, etc. No entanto, isso não
Para realizar esses atos, é preciso estar investido de uma autoridade se dá no caso do discurso religioso. O representante, ou seja, aquele
dada, ou pelo menos reconhecida, pelo poder temporal, em condições que fala do lugar de Deus transmite Suas palavras. O representa legi-
muito bem determinadas, em situações sociais bastante ritualizadas. timamente, mas não se confunde com Ele, não é Deus 8 • Essa, do
como acontece nas situações em que se diz, por exemplo, "Eu te meu ponto de vista, é a expressão fundamental da não-reversibilidade.
batizo", ou "estão casados", ou então, em relação a orações que, para E daí deriva a "ilusão" como condição necessária desse tipo de dis-
ter validade, devem ser feitas em condições precisas. curso: o como se fosse sem nunca ser.
O poder da Palavra na religião é evidente. O · mecanismo da per-
formatividade atesta esse poder de forma clara. IA performa~
ULTRAPASSAGEM E TRANSGRESSÃO:
da linguagem está ligada intimamente a uma ".isãd da.Jiií~
A VONTADE DO PODER ABSOLUTO
ã ção. Não c omo ação derorrente o falar mas como ação estrutural-
mente (organicamente) inscrita no próprio ato de falar. E o exame
Como a relação com o sagrado revela, entre outros fatores, a
desse mecanismo resulta na confirmação .da dissimetria de que esta-
mos tratando ao longo desse trabalho: relação do homem com o poder, no ca~o, com o poder absoluto, a
ilusão da reversibilidade toma apoio na vontade de poder. Essa von-
__.j:
...___D_e_us_(_S_u_je_it_o_)_ J homens (sujeitos) tade aponta para a ultrapassagem das determinações (basicamente de
tempo e espaço) : ir além do visível, do determinado, daquilo que é
Institui, interpela, ordena, Respondem, pedem,
aprisionamento, limite. Ter poder é ultrapassar. E ter poder divino é
regula, salva, condena, etc. agradecem, desculpam-se,
exortam, etc. ultrapassar tudo, é não ter limite nenhum, é ser completo.
Temos estado observando a ilusão da reversibilidade no interior
Pela distinção colocada acima podemos ver confirmada a ex- do maniqueísmo instalado pela própria religião.
pressão da diferença do estatuto jurídico entre os interlocutores, pela
diferença das ações que instituem ao dizer. O que nos leva, mais uma Se, de um lado, a ilusão da reversibilidade cria o sentimento de
vez, a reconhecer que o poder da palavra está bem distribuído e regu- identidade com Deus, através de mecanismos próprios (de que trata-
mos no item anterior), apresentando-se assim como uma forma legí-
lado na relação entre o homem e Deus.
tima de ultrapassagem, há o outro lado, que caracteriza a forma ile-
Refletindo a respeito da forma de representação de que esta- gítima dos mecanismos impróprios, que já não se apresenta então
mos tratando, em relação à condição da reversibilidade (ou não-rever-
sibilidade), devemos lembrar que ser representante, no discurso reli- 8 . A incompreensão desse mecanismo, c.o locada no âmbito das diferenças
gioso, é estar no lugar de, não é estar no lugar próprio. culturais, é atestada por uma fala indígena, do tucano Carlos Machado, do
· ·- Alto Rio Negro ( 1982): "o padre era um ser imortal para o índio, não
À í está uma diferença fundamental entre o discurso religioso e morria. Tanto que era ser imortal para nós que foi um choque quando os
primeiros padres faleceram. Já que eles mesmos se diziam pregadores da
outros: nos outros discursos a que nos referimos, esses lugares são . palavra de Deus, para nós eles eram imortais". Eis uma diferença do ·
\ disputados e a retórica é uma retórica de apropriação. O sujeito se domínio das regras discursivas.

252 253
como ultrapassagem mas como transgressão. Esta também é uma
forma de experimentar o lugar do poder absoluto. E é nessa relação E a própria Huston, nesse mesmo trabalho, que nos diz q\}e a
com o poder que reside o prazer de transgredir. blasfêmia nasce da contradição, não entre termos, mas no interior de
uma só e mesma palavra. Essa contradição deriva do maniqueísmo,
À transgressão, por sua vez, pode ser ou uma quebra das regras da concepção dual do mundo, da distinção corpo e alma, etc. Isto é,
do jogo - tal como a blasfêmia, a heresia, o pecado - ou a usurpa- o sentimento religioso é fortemente ambivalente e essa ambivalência
ção do lugar, tal como o pacto com o diabo. é que está presente no mecanismo da blasfêmia: pode-se dizer "Deus"
Quanto a esse último temos um exemplar na literatura, que é o ou "Diabo" na mesma' situação, preenchendo o mesmo papel semân-
caso de Mefistófeles, ou nas formas de loucura, como o caso Schroeber. tico. E com a condição de "ter decretado uma distância infinita entre
Deus e o Diabo que se pode confundi-los num fim regressivo e trans-
Todas essas formas de transgressão, se observarmos bem, são gressivo: o prazer de blasfemar, para o cristão, deriva da energia
formas de tentar ocupar um lugar nunca ocupado, ou ocupável, pois conservada graças ao percurso instantâneo de um trajeto infinito".
ao se tomar o lugar, se se exclui. Entre um e outro. Entre Deus e o Diabo. E _pela palavra.
Seria interessante um estudo próprio a cada espécie de trans- Ou seja, vender a alma ao diabo é o outro lado da refação com -
gressão, para se conhecer assim a sua qualidade, em relação ao o poder absoluto, com o sagrado. A expressão limite do maniqueís-
mecanismo da ilusão da reversibilidade, tal como o estabelecemos para mo - ou está comigo ou está contra mim - não deixa lugar para
as formas legítimas, ou ultrapassagem. meio termo. Por isso, não podemos deixar de apontar para esse outro
Vejamos o caso da blasfêmia, por exemplo. Em um estudo mag- lado que constitui a ilusão da reversibilidade. Pelo menos no domínio
nífico sobre interdições, Nancy Huston (1980) mostra como, dado do cristianis~o, em que o homem, no espaço determinado pelo desejo
o lugar atribuído à Palavra, a blasfêmia tornou-se preocupação obses- de partilhar do poder ilimitado só tem essa escolha: entre o. bem e o
siva para o cristianismo. Segundo ela, sendo a blasfêmia a apropriação mal, entre estar ao lado de Deus ou vender a alma ao seu contrário.
do inapropriável, um seu traço fundamental é a gratuidade: não muda
nada, não traz nada, não prejudica nenhum ser humano. Essa gratui-
dade reside no exercício de uma li_b erdade e por isso é um pecado NO COTIDIANO E EM QUALQUER FORMA
atroz: o blasfemo ultraja Deus gratuitamente, por pura malícia. E
como ele o ultraja? Nomeando-o, usando seu nome em vão. Sendo a Mas também podemos observar a vontade de poder absoluto, a
nomeação uma maneira de aproximação, um sinal de domesticação, aspiração aos dons divinos, a passagem dos limites, fora do domínio
ela pressupõe a compreensão do objeto e, porque é sempre-já simbó- do maniqueísmo. E aí podemos entender o prazer do ilimitado sem ter
lico, Deus escapa à compreensão, não devendo ser nomeado. Ou, de dividir entre o bem e o mal. E é dessa forma que entendo uma
como vimos mais acima, segundo Althusser, o ato de nomear está afirmação como a de O. de Andrade ( 1926) : "O carnaval no Rio é
submetido a regras da relação Sujeito/ sujeitos, à interpelação dos o acontecimento religioso da raça".
sujeitos pelo Sujeito. _ O sentimento religioso, o misticismo, a relação com aquilo que
Interpretando o procedimento da blasfêmia, que é considerado representa o não-limite (Deus), não está fechado nú espaço dos tem-
por Huston, agora sob nosso enfoque, veremos que a gratu_idade apon- plos religiosos ou nas formas institucionais da religião. Está espalha-
tada pela autora, como componente dessa forma de transgressão (pe- c____do pelo ~otidi~no._ Adquire múltiplas forma,s e acompanha o ho~emj
cado), deriva justamente da relação com a não-reversibilidade e a em seu dia-a-dia. As vezes de forma grave, as vezes de forma hermcà,
vontade de ultrapassá-la, ou seja, nasce do desejo de transgredir a às vezes de forma mais explícita, outras mais disfarçadas, etc~ E se
dissimetria dos planos. Assim, onde Huston diz "Essa gratuidade re- encontra sua manifestação, a da ilusão da reversibilidade, em qualquer
side no exercício de uma liberdade", eu diria "Essa gratuidade reside fragmento de linguagem. Só para exemplificar, colocaremos um, en-
no exercício de uma liberdade que se quer sem limites". contrado casualmente na revista Veja n.° 736 (outubro de 1982) : "O
grande divertimento de quem escreve uma novela é brincar de ser
254
255
Deus durante seis meses, explica Manoel Carlos prometendo muito do discurso. Segundo o que penso, a propriedade tem mais a ver com
suspense até o momento em que tirar (vai tirar mesmo?) Abel de seu a totalidade do discurso e sua relação com a exterioridade, enquanto
purgatório". Os novelistas se colocam· entre o.s criadores e, estes, a marca diz respeito à organização do discurso.
indubitavelmente, aspiram atravessar limites. Há uma referência explí-
cita a essa aspiração em um verso de um poeta jovem, de doze anos,
(}A propriedade que caracteriza o discurso religioso é a Iião-re~ 1
J
versibilidade entre os planos temporal e espiritual e a conseqüente
presente no Fantástico (outubro), que diz: "Ser poeta é ser Deus". ilusão de reversibilidade com suas formas determinadas. Faz ainda
Ou, para citar algo mais forte, temos a afirmação de Nietzsche, segun- parte dessa propriedade o fato de que a voz de Deus é. que fala em
do a qual, se houvesse um Deus, ele não suportaria não ser Deus. Mas seu representante. Dessa forma, não há, pois, nenhuma autonomia
jornalistas também gostam de deixar entrever sua familiaridade com do representante em relação à voz que ele representa. Em termos
o dizer religioso, e, ao citar a palavra divina, se apropriam (ou se be- dessa representação, resta dizer que é importante se lembrar que o
neficiam) um pouco do prestígio desse dizer: "O golpe de 64 nos representante, ainda que legítimo, jamais se apropria do lugar do qual
deformou. Não culpo os pichadores de muro do Museu. Eles - al- fala, ou seja, jamais muda seu estatuto jurídico de interlocutor, seu
guém já falou uma coisa assim antes? - não sabem o que fazem" poder de dizer.
(Tarso de Castro, Folha de S. Paulo, outubro de 1982). Poderíamos
alongar aqui o número de citações, indefinidamente. Então, as formas que a ilusão da reversibilidade toma - pela
ultrapassagem e pela transgressão - configuram o funcionamento
Além das referências, mais ou menos explícitas, ao desejo da desse discurso. E, segundo o que dissemos, isso pode ser visto através
reversibilidade, nos vários fragmentos de linguagem, podemos também da relação do homem com o poder: em Deus o poder absoluto/no
encontrar propriedades do discurso religioso presentes em muitos homem, a vontade desse poder.
outros tipos de discurso que não o religioso: no literário, no jorna-
lístico, no jurídico, na propaganda, etc. Segundo nossa hipótese, isso Quanto aos traços, .às marcas,· desse discurso, podemos procurá-
se dá porque os discursos se relacionam, se comunicam entre si, se los a partir da dissimetria entre os dois planos. Resulta, então, que o
sustentam mutuamente. Há relaçõ'es de inclusão, de determinação, de que se pode apreender imediatamente, no texto, é o uso de antítese),
interdependência entre eles. que é a forma semântica correspondente à dissimetria. A '!Ytttese,
por sua vez, se apóia no mecanismo gramatical da negação. Como os
Há ainda, o uso que um discurso pode fazer das propriedades do mundos --:-- temporal e espiritual - são opostos e afetados de um
outro discurso. Há uma relação de fundamentação recíproca entre valor hierárquico, a negação tem um efeito invertido, quando referida
os diferentes tipos de discurso. Todas essas possibilidades de relação · às diferentes ordens do mundo:
nos levam a afirmar que os discursos não se distinguem entre si de
forma categórica mas segundo seu funcionamento. Aquilo que con- Temporal Espiritual .
sideramos como propriedade do discurso religioso pode ser encon- /
trado, por exemplo, em uma música como "Força Estranha" de morrer para viver
Caetano Veloso, ou em poesias, como acontece freqüentemente. Pode não ver para ver
ser encontrado em um discurso político, ou no editorial de um jornal. perder-se para salvar-se
Enfim, em qualquer outro tipo de discurso. etc.

Do ponto de vista pragmático, o mecanismo geral da negação


A RELAÇÃO ENTRE AS PROPRIEDADES é o sim pressuposto no ouvinte. Então, a retórica do discurso religioso
E AS MARCAS NO DISCURSO RELIGIOSO é a que se pode denominar a retórica da denegação, ou seja, a negação
da negação. Isso porque, pela caracterização da dissimetria, o ouvinte
Creio que se deva distinguir entre propriedade e marca (ou tra- (o homem) acumula os valores negativos e, entre eles, o de que nas-
ço) . Esta é uma distinção muito importante para o domínio da teoria ceu com o pecado, e o pecado é o não a Deus. Assim, o discurso
\

256 257
religioso, para afirmar o que é positivo,. deve negar o negativo, ou Evidentemente, esta é uma forma superficial de falar . na distin-
seja, deve negar o sim pressuposto, do homem, ao pecado (que é ção das partes desse discurso. Dados os objetivos desse nosso trabalho,
negação). entretanto, procuramos não entrar em considerações detalhadas a res-
É ainda a retórica da denegação, agora referida ao problema da
peito dessas distinções. Além de nos termos atido à forma ortodoxa
fé - disposição para mudar em · direção à salvação - , que explica a do discurso religioso, sem especificarmos suas variações.
configuração típica das grandes partes de várias espécies de discurso É ainda sob a forma de enumeração qu~ gostaríamos de chamar
religioso. Essas grandes partes, diríamos, se organizam segundo o se- a atenção para outros traços do discurso religioso: o uso do impera-
guinte esquema: tivo e do vocativo, enquanto formas próprias de discursos em que
Exortação Enlevo - Salvação exista doutrinação; o uso de metáforas que são; depois, explicitadas
por paráfrases (sobretudo nos sermões), pois, .como o dizer religioso
Em relação à Exortação, podemos distinguir os seguintes com- é obscuro, e sempre são possíveis muitas leituras, as paráfrases indi-
ponentes característicos: cam a leitura própria para a metáfora; procedimento análogo a esse
a) A identificação dos sujeitos entre si, uma vez que para trans- é o das citações em latim que depois são traduzidas por perífrases
formar é preciso, antes, se reconhecer na igualdade. A característica extensas e explicativas, aproveitando-se o máximo de efeitos de sen-
desse processo de identificação peide ser observada no exórdio do tido (religiosos) sugeridos pela diferença de língua; o uso de perfor-
sermão: "Caríssimos irmãos!". Diferente, por exemplo, de outros tipos
mativos; o uso de sintagmas cristalizados (as orações), etc.
de discurso que começam por "camaradas" ou "meus senhores, mi-
nhas senhoras", etc. Dessa forma são atribuídas diferentes identidades. Em termos da caracterização das uni.dades textuais, podemos
b) A quantificação, que significa, na realidade, .a delimitação ainda citar a função importante de certas formas típicas do discurso
da comunidade: separa-se o "nós'', os "aqueles que" constitutivos dos religioso como a Parábola, ou o uso de certos temas que também são
que fazeni parte, dos outros que são excluídos. típicos desse discurso, como a vida eterna, a provisoriedade do ho-
c) A denegação. mem, etc.
Se tomarmos agora a parte que denominamos Enlevo, veremos Enfim, podemos dizer que todas essas formas que enumeramos
que ela corresponde à identificação com os propósitos divinos; mais são marcas formais do discurso religioso. Essas marcas podem derivar
o
do que isso, é no enlevo que se dá procei;so de ultrapassagem de que . de qualquer nível de análise lingüística (fonológico, morfológico, sin-
falamos mais acima, ou seja, é nesta parte que se pode expressar a tático, semântico) ou de unidades de qualquer extensão (fonema,
ilusão da reversibilidade. morfema, palavra, sintagma, frase, enunciado, partes do texto, texto).
Quanto à parte que chamamos Salvação, ela se constitui do pe-
dido feito pelo representante 9 , ou do agradecimento apresentado pelo
t. Resta falar de uma característica do discurso religioso que tem
C/

ouvinte, ou seja, o fiel, a alma religiosa. ~. · a ver com a relação .entre o texto e suas condições de produção. Tra-
ta-se do fato de que uma característica forte que é atribuída, princi-
9. Um acontecimento inusitado, em relação às regras do discurso religioso palmente, ao discurso teológico é a. intertextualidçide. A intertextua-
católico, foi relatado pela revista Veja (7 de julho de 1982): quando um lidade se define pela remissão de um texto a outros textos para que
padre, a certa altura da missa, que rezava a convite do governador France- ele signifique. Assim, podemos definir o discurso teológico como um
lino Pereira, propôs que se elevassem orações pelos irmãos, Padre Gouriou e
Camio, presos e· condenados pela justiça militar, um general, presente ao discurso sobre outro discurso. Com isso, pretendemos dizer que o
ofício, interpelou o padre com as seguintes palavras: "Um momento, por discurso teológico, ao contrario da conversa cotidiana ordinária,
. favor. Isto que está para se passar aqui é inadmissível. Os amigos do gover- pouco tem a ver com o seu contexto imediato de enunciação, ou seja,
nador estão aqui para homenageá-lo e o senhor não está comportando-se de
maneira adequada, ·usando essas palavras o senhor cria um problema para . com a situação imediata em que de se dá. Aparece como um "comen-
nós". tário" ao texto de origem.

258 259
Segundo nossa perspectiva, esse caráter fechado do discurso teo- Podemos, mesmo, chegar a uma forma geral e abstrata da argu-
lógico, ou religioso, em geral se deve à não-autonomia do represen- mentação desse tipo de discurso, considerando-se .a retórica da dene-
tante em relação à voz que fala nele. Há um dizer, obscuro, sempre-já gação, a dimensão da negatividade constante na religião:
dito, que se fala para os homens. Para todos os homens. Para este
discurso, então, a situação imediata só entra como motivo (ilustração?)
Aquele que ,_.X, Y
para se redizer a significação divina.
porque
Fica, então, estabelecida a existência de marcas que caracterizam
Aquele que X, ,_. Y
o discurso religioso assim como também existem, como explicitamos
mais acima, propriedades que o definem. A condição para que as Sendo X do plano temporal e Y do plano espiritual.
marcas (traços) caracterizem o discurso religioso é que elas sejam Condição: ter fé para se salvar.
referidas à ( s) sua ( s) propriedade ( s).
O que nos leva ,a essa conclusão é o fato de que · os traços não
UMA PROPOSTA
são exclusivos de um só tipo de discurso, ao contrário, são comuns
a vários: o imperativo também é abundante no discurso da propa- Em análise de discurso, essas formas abstratas são prod';ltivas,
ganda, a antítese também é característica do discurso teórico, os per- ·antes, pelo caminho que fazemos para chegar até elas, e,- depois, pelo
formativos são importantes no discurso jurídico, a intertextualidade retorno imprescindível que devemos fazer delas até os fatos de dis-
tem sua função relevante também no discurso político, etc. curso. São, assim, menos um resultado em si do que um instrumento
A forma como os traços são usados em relação à propriedade de trabalho. Aquilo que, no percurso para sua descoberta, ficamos
de um tipo de discurso é que o caracteriza, o define. Assim, deter- .conhecendo sobre o fµncionamento do objeto ('discurso), que é o
min~r a forma dessa relação ·entre traços e propriedades é estabelecer alvo de nossa análise, é, creio, mais revelador.
o funcionamento discursivo específico.
Por outro lado, ainda em relação ao funcionamento do disc.urso,
Segundo o que pudemos observar no discurso religioso, podemos há uma diferença entre as marcas e as propriedades que gostaríamos
especificar a relação entre os três fatores que, de acordo com nosso de colocar, enquanto hipótese de trabalho. Segundo o que pudemos
ponto de vista, o caracterizam: a assimetria entre os planos temporal observar, há uma maior variação quanto às marcas, em relação às
e espiritual e a não-reversibilidade; o uso de antíteses; e o mecanis- diferentes espécies de discurso religioso: diferentes religiões, diferentes
mo da negação. A partir desses fatores, podemos est_abelecer o se- práticas, diferentes rituais, diferentes cerimônias, podem fazer variar
guinte esquema para a caracterização do discurso religioso: amplamente as marcas dos discursos que caracterizam. Entretanto,
ainda segundo essa mesma perspectiva, haveria uma estabilidade maior
situação texto gramática em relação à propriedade que define o discurso religioso, ou seja, a
assimetria entre os planos antítese negação não-reversibilidade dos planos e · a conseqüente ilusão da reversibili-
espiritual e temporal parábola perífrase dade. Isso não significa que a propriedade não sofra variação nenhu-
(não-reversibilidade) metáfora paráfrase .ma, mas sim que, relativamente às marcas, a propriedade se mantenha
l
propriedade
etc.
~· traços V
etc.
com mais constância ..
Como dissemos no início desse estudo, o parâmetro para a nossa
reflexão foi a ideologia religiosa cristã, ou mais especificamente, a
Esse seria o esquema correspondente à forma ortodoxa ·do dis~ católica. Então, a nossa proposta é justamente a de alargar a reflexão
curso religioso cristão. sobre o discurso religioso, tomando esses instrumentos - pr.oprie-

260 261
dades, marcas e formas - como subsídios para o estudo de outras
espécies desse tipo de discurso e para a análise de fatos desses dis-
cursos em suas diferentes práticas.
Nesse sentido é que colocamos como próxima etapa desse nosso
trabalho a análise do discurso missionário entre os índios.

)
BIBLIOGRAFIA A FALA DE MUITOS GUMES*
(As Formas do Silêncio)
ALTHUSSER, L. - Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Biblioteca de
Ciências Sociais, Ed. Presença, Portugal, e Liv. Martins Fontes, Brasil,
1974.
ANDRADE, O. - Manifesto Antropofágico, São Paulo, 1926.
INTRODUÇÃO
GOODY, J. - Literacy in Traditional Societies, J. Goody Ed., University Press,
Cambridge, 1968. Vou iniciar essa reflexão, a partir de dois pontos que são antes
GRAMSCI, A. - Il Materialismo Storico e la Filosofia di B. Croce, Ed. Einaudi, seus pretextos que seu objeto.
Turim, 1966a. ,
- - - - - . Gli Intellectuali e l'Organizazione dei/a Cultura, Ed. Einaudi, O primeiro é o de que o silêncio, tanto quanto a palavra, tem
T urim, 1966b. suas condições de produção; por isso, dada a diversidade dessas, o
HUSTON, N. - Dire et Interdire, Payot, Paris, 1980. sentido do silêncio varia, isto é, ele é tão ambíguo quanto as palavras.
MACHADO, C. - "Fala de Dois Tucanos aos Participantes do Simpósio'', em
Das Reduções Latino-Americanas às Lutas Indígenas Atuais, E . Hoornaert O silêncio imposto pelo opressor é exclusão, é forma de dominação,
( org.), Ed. Paulinas, São Paulo, 1982. enquanto que o silêncio proposto pelo oprimido pode ser uma forma
PORTELLI, H. - Gramsci y la Cuestion Religiosa, Ed. Laia, Barcelona, 1974. de resistência. Ambos produzem uma ruptura, no caso, desejada. Por
REBOUL, O. - Langage et Idéologie, PUF, Paris, 1980. outro lado, o silêncio pode produzir uma ruptura não desejada. Ins-
ZALUAR, A. - "Milagre e Castigo Divino'', em Religião e Sociedade, n. 0 5,
Tempo e. Presença Edit., Rio de Janeiro, 1980.
creve-se nesse caso aquilo a que se chama ruído da comunicação
(ou seja, a comunicação mal sucedida): Há ainda a ruptura categó-
rica entre interlocutores ocasionada pela destruição do contato: é o
silêncio radical.
Essas observações levam-nos pois a afirmar que, como as pala-
vras, ·também o silêncio não é transparent~.
O segundo ponto é o de que a fala é silenciadora, em vários níveis.

Considerando que a função mais ·própria do autoritarismo não


é impedir que as pessoas digam o que querem .mas sobretudo obrigá-
las a dizer o que não querem (Barthes, 1976), podemos afirmar que
às relações de poder interessa menos calar o interlocutor do que abri-

* Conferência apresentada em Curitiba, no II Encontro de Semiótica ( 1985).

262 263
gá-lo a dizer o que se quer ouvir. A isso chamamos a injunção ao Passemos à análise de alguns modos de existência desse fato em
dizer 1 . diferentes funcionamentos discursivos.
É preciso observar que ao dizermos isso não estamos em con- Resta-nos dizer que essa análise procura tornar explícitos alguns
tradição com o que dissemos antes, pois silenciar não é o mesmo que mecanismos constitutivos daquilo a que temos denominado uma retó-
calar o interlocutor. rica do oprimido ( Orlandi, 1984), mecanismos estes observados, no
presente estudo, da perspectiva do opressor.
A fala pode ser silenciadora quanto ao que se diz. Em certas .con-
dições, se fala para não se dizer certas coisas, para não se permitir
que se digam coisas que causam transformações limites, ou melhor,
A FALA DESSA GENTE SÉRIA
como diria Caetano, para não se dizer (ou deixar dizer) as outras
palavras. Nesse sentido, a fala é silenciadora enquanto domínio do A crítica ao uso da palavra "competência" já foi feita de sobejo
mesmo. e por gente que conhece do riscado.
Esse processo de silenciamento produzido pela fala pode ter
Mesmo o discurso popular já desmistificou o peso desse conceito
vários sentidos, com efeitos variados e finalidades bastante diversas.
que vem agora, em seu cotidiano, acompanhado de certa ironia. :R
Nesse estudo, procuraremos observar apenas alguns desses efei- assim que o povo lida com essas palavras, que servem para impres-
tos, com suas finalidades. Vale lembrar que dada a heterogeneidade sionar (e pressionar), quando elas se desgastam.
da linguagem e a multiplicidade de seus mecanismos de funcionamento
Não desconheço que o uso dessa noção teve, na sua origem, uma
e de seus usos distintos, este trabalho representa apenas uma explora-
função crítica. O problema é que não acredito que as palavras falam
. ção parcial de um fato discursivo.
por si; elas falam pelos homens que as empregam. Como as condições
Quando afirmo . que a fala é silenciadora em vanos níveis, refi- de vida do homem estão encravadas nas relações de poder - nunca
ro-me ao fato de que este não-dizer pode ter a natureza do implícito se está suficientemente longe de seu exercício - é por aí que passa
tratado, por exemplo, pela psicanálise (operando com o conceito de o uso das palavras e os seus muitos sentidos. E não passa impune-
inconsciente), pela retórica (nas teorias da argumentação) ou pela mente. Assim, não é por acaso que a noção de competência esteve
análise de discurso (refletindo a noção de ideologia) . (é) tão ao gosto dos tecnocratas.
São várias as estratégias usadas para não dizer. Nesse trabalho o que pretendo dizer com isso é que não é suficiente fazer a
interessam-me aquelas em que para silenciar se diz algo diferente, crítica apenas na origem de um uso. Na linguagem, a crítica é um
ou se diz o contrário. exercício cotidiano.
Levando-se em conta que ·a linguagem é basicamente dialógica, Mas não é essa noção que tomaremos como objeto de nossa
podemos dizer que ao silenciar sobre algo, o locutor prende o inter- reflexão. Queremos discutir uma outra, aparentada a esta e, como
locutor no quadro discursivo limitado por esse .silêncio. Esse com- esta, especializada em processos de exclusão e de atribuição de pres-
promisso instituído pelo enunciador poderá, ou não, ser cumprido tígios e poderes. Com a vantagem, e o agravante, de que esta outra
pelo interlocutor. palavra tem um uso menos marcado e mais generalizado do que a
palavra competência. É a palavra SÉRIO.
1 . O ditádo "Quem cala consente", nessa perspectiva, é menos um ditado
favorável ao conflito (como poderia parecer) do que um convite ao assen- o modo como se usa esta palavra mostra~.nos qual é sua função,
timento, já que quem expõe suas razões (ainda que contrárias) pode. ser
convencido. do ponto de vista ideológico.

264
Ê muito freqüente o fato de que as pessoas se digam sérias. Essa 2 . A reprodução do conhecimento institucionalizado que vem
é uma categoria que passou a ser enunciada de forma insistente no dos centros legitimados. E como há centros de prestígio incontestável,
mundo acadêmico e, uma vez que se supõe que todo trabalho deve quanto mais perto desses centros, mais sério 2 •
ser sério, nos perguntamos qual o sentido dessa insistência em se enun- 3 . A articulação com outras categorias como a do "difícil", isto
ciar a seriedade. é, quanto mais difícil, mais sério e, pela ideologia burguesa, mais
desejável.
As regras de funcionamento desse dizer poden;i indicar uma res-
posta. Observemos algumas dessas regras: 1 . Ê preciso que o enun- 4. A soma de atributos que sustentam a autoridade do enun-
ciador não se refira diretamente à própria seriedade, ou seja, não se ciador. Por exemplá, o atributo de "exigente" 3 •
diz "eu sou sério"; 2. é tolerável dizer-se da seriedade do próprio O que é mais característico do conteúdo dessa categoria é que
trabalho "Meu trabalho é sério"; 3 . mas o melhor mesmo é falar da ela desloca para o sujeito do trabalho intelectual o que deveria estar
seriedade (ou não) do trabalho do outro "O trabalho de fulano é voltado para o produto dele, isto é, o conhecimento. Assim, há um
sério" e 4. mais eficaz é falar diretamente da seriedade do outro: · deslize ideológico pelo qual se faz um julgamento do sujeito e não
"Fulano é (não é) sério". Se fala, portanto, do outro. 'uma crítica do trabalho.

O resultado desse funcionamento discursivo é múltiplo Jª que, Resulta desse funcionamento a existência de um mediador que
no mesmo ato, o enunciador elimina um adversário (dito não sério), . deveria se apresentar como crítico mas que se apresenta como juiz e
ou partilha com um eleito (dito sério) a sua cota de prestígio e, em que acaba, finalmente, ·por passar de juiz a censor.
qualquer dos casos, cobre-se a si mesmo do manto da seriedade. Ou Dessa forma, essa é uma voz silenciadora que impede a dis- ·
seja, ao falar da seriedade do outro, o enunciador está pressupondo cussão e a discordância porque divide compacta e homogeneamente
sua própria seriedade (dessa forma, inquestionável) . o universo de validade desse discurso: de um lado, o juiz (o centro)
e, de outro, o consenso suposto.
Esse é um dos vários modos de se exercer a vontade pessoal.
Como o discurso da competência, o discurso da seriedade é uma fala Constitui ainda o funcionamento do discurso da seriedade o fato
de chefe, dita do lugar da autoridade, seja ela real ou presumida de que, ao se erigir em figura de juiz; o enunciador desloca o foco
como tal. da observação colocando-se, ele próprio, fora de discussão.
Esse é um dos silêncios produzidos. O outro silêncio - que
Esse uso corresponde a uma forma de arregimentação de poder incide não sobre o enunciador mas sobre seu alvo _:_ afeta, sobretudo,
que funciona da seguinte maneira: aqueles a quem o enunciador de- o princípio da autoria, isto é, desliga o autor de seu produto (meca-
nomina sérios, a) passam a ter de justificar (acatar e reproduzir) a nismo de expropriação) .
categorização e a agir de acordo com os princípios da seriedade que
lhe é imputada (dever de obediência); b) reconhecem o enunciador 2 . Na Lingüística, por exemplo, um centro atual são os Estados Unidos, de
como aquele que os nomeou e, portanto, se assujeitam a ele. preferência a Califórnia e, com toda a certeza, algum departamento que é
mais sério que outros.
Este mecanismo legitima a autoridade do enunciador, uma vez 3. Talvez valesse a pena comentar o que se tem considerado o "pacto corrupto".
que reproduz as características da categoria que el~ nomeia e, no Embora se possa estar. de acordo com a crítica que reflete sobre o "pacto
corrupto" no sistema educacional (não se ensina nada e não se exige nada)
mesmo movimento, exclui os . discordantes. creio que se deva cuidar para não se deixar enganar quanto à natureza
desse pacto. Não é um acordo feito a partir da falta do saber, é antes pro-
Vejamos qual é o conteúdo desta categoria "seriedade". duzido pelo excesso de poder e a formação de grupos fechados, que se limi-
tam em seus confrontos. Sem esquecer que , também há "pactos corruptos"
1 . A reprodução dos modelos legitimados. com a "seriedade".

266 267
Uma vez que se coloca como guardião do espaço intelectual, o Como sabemos, essas condições são constitutivas do discurso.
enunciador oficial se apreseu+:t como seu porta-voz. Indo mais além, Assim, o sentido que atribuímos ao discurso da seriedade, tal como
a mediação acaba por se exercer não apenas entre os diferentes sujei- o fizemos, tem de ser necessariamente referido a essas condições.
tos desse espaço mas entre o autor e seu próprio trabalho, qualifi- O momento histórico do discurso da seriedade a que nos refe-
cando ou desqualificando sua autoria sob o pretexto da seriedade. rimos é o dos últimos dez anos aproximadamente ( 1974-19 84) . Mo-
Aí também se exerce, pois, a voz silenciadora. mento que se caracteriza por relaçõe~ extre~amente autoritári~s.
Enfim, quando desqualifica a legitimidade, pelo discurso da se- Além disso, a situação em que observei o funcionamento desse dis-
seriedade, o mediador: curso é o ambiente acadêmico. Não desconhecemos a crise produzida,
por unia determinada política educacional, em nosso sistema de ensino.
1 . Exerce uma forma de apropriação do trabalho do outro na "Crise" esta caracterizada por concepções de saber e· de ensino bas-
medida em que, enquanto , sujeito legítimo (juiz) ele se pronuncia tante arbitrárias, pouco refletidas e sequer discutidas em sua realidade.
de um lugar sério (o que deve ser) e ocupa esse lugar.
°É, assim, nessas condições e na tensão dos conflitos gerados por
2. Impede que se reconheça que daquele lugar (do sujeito dito esse sistema que procuramos entender o discurso da seriedade.
não-sério) se possa formular um saber que tenha validade. Mais do Enfim, gostaria de mencionar um fato que considero extre~a­
que isso, de forma categórica, silencia, de antemão, a própria possi- mente relevante. para que se compreendam as condições e o sentido
bilidade de discutir essa produção .categorizada como não-séria. que se pode atribuir a esse discurso que acabamo~ de analisar. Tr.a-
Dessa forma, o discurso da seriedade realiza tanto o objetivo ta-se da questão da socialização do saber. Ou se1a, enquanto a cir-
do silenciamento como o da injunção ao dizer: de um lado, silencia culação do saber não seja tal que o produto do trabalho intelectual
e, de outro, obriga a reprodução do discurso instituído (o do mesmo). possa adquirir a objetividade do produto 4 as relações intelectuais se
darão no espaço dos confrontos pessoais e de autoridade e não no
Fazendo um paralelo com o que diz Foucault (1971), a respeito dos resultados do trabalho e de discussões e discordâncias produtivas.
da verdade, eu diria que o que se disc~te não é se o discurso é (ou E é isto finalmente que constitui uma característica central do Discurso
não é) sério, mas se considera, antes, se ele está (ou não) no sério. da Seriedade.
Esta categorização é, assim, ponto de partida e de chegada, pois se
não está no sério, o trabalho nem é discutido por estar desqualificado,
e se está no sério é indiscutível porque legítimo. O DISCURSO DA NOVA REPÚBLICA:
CONCILIAR PARA GOVERNAR
Referir à palavra de muitos gumes significa, aqui, mostrar que
no interior da vida acadêmica, ainda que os intelectuais se queiram Tomando como referência o discurso intitulado Nova República 5 ,
críticos, a própria forma de exercer essa função acaba por reproduzir feito por rancredo Neves, no dia 15 de novembro de 198~·.e?1 Vitó-
a mesma arbitrariedade que, em _outras condições, seriam o objeto ria na União Parlamentar Interestadual (UPI), faremos inicialmente
mesmo de sua crítica. al~umas considerações a respeito da denominaç~o "Nova ;1le~ública"
Até aqui procedemos a uma análise que incidiu sobretudo sobre e, depois, faremos algumas observações a respeito do propno texto
o modo de funcionamento desse discurso referindo-nos sobretudo às
4 . A. Giannotti em uma conferência sobre . Leitura e Universidade (IEL,
circunstâncias de sua enunciação: a função do locutor, a mediação, UNICAMP, '1984) fez uma bela exposição sobre essa questão e a do
o deslize da função crítica para a censura etc. ensino público.
5. Infelizmente, não conseguimos o texto integral do di~curso, que tem 15
Cabe-nos, agora, dizer alguma coisa a respeito das condições só- páginas. Trabalhamos com a reprodução, em jornais, · de segmentos dele;
' cio-históricas em que se produz o discurso da seriedade. Isto, evidentemente, produz já um efeito no trabalho.

268 269
que inaugura esse discurso que chamaremos a Discurso da Nova Re- As denominações variam mas são homogêneas. O conceito de
pública, ou o Discurso de Vitória. Discurso esse que deu origem ao "ditadura" não parece ser um conceito histórico que se aplique aos
uso, diríamos, indiscriminado, da palavra "Novo" adjetivando não só regimes de governo. Da mesma forma que, no discurso da história do
atos políticos mas administrativos e mesmo acontecimentos da vida Brasil, em geral, não se fala em "golpe" mas em revolução.
cotidiana. Tudo é "Novo", desde então.
E nesse contexto que vemos Tancredo nómear a Nova República.
Refletindo sobre o processo pelo qual se instala o nome Nova
República, pudemos constatar que, historicamente, temos quatro for- Nova República porque não é Velha, Nova República porque
mas básicas de denominar os períodos históricos que vão de 1889 não é a República Nova, etc. Podemos imaginar as várias associações
até 1984. que se peidem fazer a partir da comparação com os vários períodos.

1. Logo após a Proclamação da República (1889) temos a Entretanto, o que é preciso dizer é que esse nome Nova Repú-
Jovem República, denominação que se aplica aos inícios do novo blica evita, sobretudo, que se diga que o período imediatamente ante-
regime político para distingui-lo da fase anterior, ou seja, o Império. rior (1964/1984) foi o de ~ma ditadura militar. Sugere mesmo que
Visto, porém, da atualidade, o período da República que vai de sua pro- também foi uma República (a 3.ª, uma fase da Contemporânea etc.).
clamação até os anos 30 é chamado República Velha: Alguns autores
distinguem, na República Velha, dois períodos: até 1894 (República Portanto, um dos aspectos fundamentais desse ato de :Q.omear
da Espada) e depois de 1894 (República das Oligarquias). Em se- é o silêncio que ele cria. Podemos, então, perguntar: o que este nome
guida temos a Era de Vargas (1930/1945) com o Estado Novo silencia? Duas coisas, fundamentais:
(1937/1945). Após a Era de Vargas, temos o período denominado
1. Silencia a crítica sobre a ditadura; darser, de alguma forma,
República ou República Contemporânea (1946/1984).
conivente.
· 2 . Outra forma de nomear esses. períodos é a que distingue
apenas três: A República Velha (1889/1930), o Estado Novo 2 . Silencia a possibilidade de se discutirem outros modelos po-
(1930/1945) e a República Nova (1946/1984 ). líticos. Pela adjetivação Nova República coloca o elemento determi- ·
nado (a República) como pressuposto. Daí propor .de toda forma o
3 . Uma terceira forma é a que usa numerais para distinguir continuismo. Ou seja, pode-se discutir se deve ser Nova oú não, mas_
períodos: l.ª República (1889/1930), 2.ª República (1945/1964) não coloca em discussão se deve ou não ser República, nem discute
e 3.ª República (1964/1984). Essa é uma forma muito comum em o que é realmente uma República.
livros didáticos do 1.. 0 e 2. 0 graus.
Tanto em relação ao item 1. como ao 2. resulta que a Nova
4 . Finalmente, temos uma forma mais simples que distingue
República se propõe como uma passagem e não uma ruptura.
apenas a República Velha (1889/1930) e a República Contemporâ-
nea (1930/1984). O enunciador se coloca como representante e, ao dar nomes,
interpreta a história. Cumpre assim sua função med_iac;lora: gerencia
Vale a pena observar que há autores que chamam a Era de
os conflitos, administra as passagens das formas de governo para ·que _
Vargas de República Nova (1930/1945), e República Contemporâ-
tanto as passagens quanto os conflitos não existam fora de uma certa
nea ao período que vai de 1946 a 1984.
ordem e de um certo controle.
Entretanto, qualquer que seja a variação que distingue, em algum
Como tática, esse discurso embarca o movimento político ei.n
detalhe, o procedimento de atribuição desses nomes, somos levados
a concluir por eles que, no Brasil, depois do Império só tivemos Re- ·uma certa interpretação da história. E faz isso através do discurso
públicas. Com altos e baixos, mas sempre Repúblicas; o que nos dá da conciliação, apresentando-se como mediador. Cabe, então, per-
uma visão uniforme da vida política brasileira deste século. guntar: mediador de quem e em nome de quem?

270 271
Vejamos como a retórica do texto, junto ao ato de nomear, deração"; fala-se em recuperar a "mística da cidadania" e s~ acres-
preenche essa interpretação histórica que Tancredo instituiu pela no- centa que as "Forças Armadas e a República vivem indissoluvelmente
meação. vinculadas ( ... ) daí ser imperioso criarmos uma Nova Replíblica,
forte e soberana, para que nossas Forças Armadas não sejam nunca
Ao silenciar a crítica sobre a ditadura, ele se pronuncia contra
o ajuste de contas que rotula de "revanchismo" e "represália": "Minha desviadas de sua destinação constitucional''.
formação democrática ( . . . ) não foi e jamais será marcada por re"'. Para não se falar em ditadura, fala-se em "Constituinte". Para
vanchismo e represálias". se falar no período anterior à República, fala-se nas "malogradas ins-
Administrada pelo discurso da conciliação, a passagem sem con- tituições atuais".
flitos é proposta (prometida) para os antigos governantes. Uma ga- Para se referir ao que vai mudar no dia 15 · de março, se diz:
rantia. Em nome do povo brasileiro, ele acaba por ser mediador dos "a posse do presidente eleito vai marcar, no dia 15 de março, uma
antigos governantes. ·
fase de ordem, de paz, de moderação, de participação e de progresso" 6 •
Ao falar em moderação - "O Brasil sempre ofereceu a mode- Não seria a fase da democracia? E ela não se oporia à ditadura? Isso
ração como motor de seu progresso, inspirador de suas ações e do não se diz.
seu engrandecimento" - coloca-a como proposta daqueles que pode-
riam pretender o revanchismo (o povo, o Brasil). Os militares, eu Ao falar de Figueiredo, ele o faz através da figura de D. Pedro II
perguntaria, foram moderados? No entanto, no texto está dito que (mais uma vez a menção ao Império) e não de um ditador: " ... dom
o Brasil sempre ofereceu moderação. Mais uma vez silencia sobre a Pedro II mereceu o culto histórico da posteridade precisamente por-
ditadura. que soube fazer de seu país uma democracia". Sem esquecer que a
construção "soube fazer de seu país uma democracia'.' é uma alusão
O viés do discurso está em que, silenciando sobre a ditadura, a às palavras de Figueiredo: "eu hei de fazer desse país uma demo-
conciliação se exerce em mão única: a questão da justiça histórica e cracia".
política frente a ditadura, nesse discurso que silencia a respeito dela,
é transformada em revanchismo. Através desse viés se fixa um sen- Cabe aqui uma observação. Há uma história. de nossa história
tido e se dá uma direção à história. (talvez de outras também) que insiste em dar a si mesma uma
certa direção: são sempre os nossos governantes que, "generosamen-
Este sentido fixado está centrado, ao longo do texto, na palavra te", nos concedem mudanças, liberdade (abolição), etc. Tancredo
República. reproduz esse sentido da história, quando, comparando Figueiredo
No texto, Tancredo fala muito raramente em democracia e a D. Pedro, os iguala na mesma qualidade: um saberá, como o outro
quando o faz é em referência a D. Pedro II e a Figueiredo. Por que soube, "fazer de seu país uma democracia". Assim se cumpre a pro-
não insiste na tematização da democracia? Porque o silêncio sobre messa: ganharemos a liberdade sem ruptura e sem conflitos (sangren-
democracia e sobre ditadura é o mesmo, é coextensivo. tos?). Com ordem e progresso.
Ao falar em República (Nova) partilha a visão homogeneizante É ainda a menção ao Império e a passagem para a República
de que após o Império sempre tivemos Repúblicas. E podemos verifi- que está presente no seguinte segmento de texto: "Como o fizeram
car, pela análise do Discurso de Vitória, que a polarização explícita em 1889, prego o direito de o povo eleger diretamente seus gover-
e básica só se dá entre a República e o Império. nantes, em todos os níveis, estabelecendo que só existe um império,
Nos outros casos, usam-se eufemismos para designar o .que não
6 . Observar a inserção, entre "ordem e progresso", de "paz, moderação, parti-
é a Nova República. Para se opor ao que deveria ser chamado dita- cipação" que definem, assim, a diferença entre o que veio antes e a Nova
dura, e não o é, fala-se contra a "centralização" e em favor da "Fe- República.

272 273
que é o império da lei, e só um soberano, o povo brasileiro". Deslo-
ca-se o sentido de império (com letra minúscula) mas não se diz ciámento que está na sua origem e que é produzido pela catalização
nada sobre a ditadura. instituída pelo nome .República." Ou seja, esse discurso não reconhece
mas opera com a noção de ditadura. Essa noção é ao mesmo tempo
As referências e os termos de comparação são sempre com o suposta e silenciada: é esse mecanismo que sustenta o efeito discur-
Império para não trazer ~ cena, além da democracia como já dissemos, sivo da retórica da conciliação produzida pelo discurso da Nova · Re-
termos como os das eleições diretas, mobilização popular etc. pública.
Em suma, o que a fala da Nova República faz é instituir um Finalmente, e para não deixar de levar em conta as várias ins-
espaço de discursividade onde, de um lado, se silenciam discursos tâncias das condições de produção do Discurso de Vitória, devemos
que falariam da ditadura ou de outras formas de governo e, 'a o mesmo lembrar que ele foi feito em meados de novembro de 1984 e que a
tempo, se garante que alguns sentidos e só eles circulem, e aí circulem tarefa de mediador que naquele momento Tancredo cumpriu foi a de
necessariamente. evitar um golpe e tranqÚilizar os militares a respeito de sua impu-
nidade.
Também para o Discurso da Nova República temos a articulação
da função silenciadora e da injunção ao dizer, como formas do exer-
cício do poder da lingu~gem: a produção de seus muitos gumes.
ALGUMAS OBSERVAÇÕES FINAIS
Uma expressão sintomática desse mesmo discurso é a de "entu-
lho_ aut?+itário". :É- uma expressão que se insere no modo de signifi- O que nos mostra a reflexão sobre essas duas formas de funcio-
caçao maugurado pela nomeação Nova República. Caberia, pois, namento do discurso é que à categoria de mediador não é transpa-
perguntar o que silencia essa expressão. rente. Ao contrário, o mediador tem uma função decisiva na consti-
tuição das relações de poder. Ser mediador, no domínio do discurso,
De um lado, esconde - por ser "entulho" - o fato de ser o
é fixar sentidos, é organizar as relações e disciplinar os conflitos.
· resultado histórico (e não o resto casual como ·sugere) de um regime
Além disso, essa reflexão também nos indica que o ato de nomear
político. De outro, ao dizer autoritário, silencia o fato de que esse
tem implicações ideológicas decisivas.
resultado - autoritário - foi produzido pelo regime ditatorial. Não
é só resto e não é apenas autoritário. A fala instaura os espaços de silêncio. Pudemos, então, observar
alguns fatos relativos à delimitação do que é dito e do que é silenciado
Vale a pena destacar aqui, a necessidade de se remeter a defini-
ção de autoritarismo ao seu contexto. nos diferentes discursos. Constatamos que aquilo que é o não-dito se
instala de modos diferentes nos diferentes funcionamentos discursivos.
Essa não é uma noção que se aplique de forma automática sendo Esses modos puderam ser observados justamente devido à função si-
preciso, então, ter em conta a redimensionalização de seu uso em rela- lenciadora da fala, ou seja, pela forma como cada discurso, ao dizer,
ção aos diferentes regimes políticos em que se produz. Em suma, o não diz exatamente o contrário mas de qualquer forma dirige o inter-
autoritarismo pode ser produzido em um regime totalitário e também locutor para um outro lado.
em uma democracia. Isto está silenciado na expressão "entulh~ auto- Diríamos que o ·sentido está sempre no viés. Ou seja, para se
ritário".
compreender um discurso é importante se perguntar: o que ele não
Esse efeito discursivo silenciador - a respeito da ditadura, está querendo dizer ao dizer isto? Ou: o que ele não está falando,
quando se centra a retórica na idéia de República - tem ainda uma quando está falando disso?
outra característica importante, tal como veremos. No primeiro caso que analisamos (o da gente séria), o enuncia-
O discurso da Nova República silencia o que veio antes - a di- dor parece estar falando da seriedade, mas está se 'apropriando do
tadura - mas, ao mesmo tempo, ele significa sobretudo por esse silen- princípio da autoria. Temos, então, aí, no domínio do poder intelec-
tual, o desejo dá autoria.
274
275
No segundo caso, (o da República) o locutor parece estar fa-
lando da República mas está silenciando sobre a ditadura. Nesse caso,
no domínio · do poder político, temos o desejo do comando.
À guisa de conclusão, provisória, gostaria de lembrar um chiste
acerca da generosidade cristã e do paternalismo (ouvido em um filme
americano de que não lembro o nome). Após ser objeto de intenso
trabalho de conversão que resultou em vão, um não-cristão convicto
disse à propósito de sua comunidade: "Aqui ninguém precisa amar o
próximo. Podemos deixá-lo em paz".
Eis a palavra de muitos gumes em pleno funcionamento que,
em última instância, revela ainda o fato de que, ao pretendermos estar
voltados para os outros, estamos ainda, e sempre, voltados para nós
mesmos. Impulso narcísico que certamente é matéria para outras re-
flexões, no domínio da psicanálise.

BIBLIOGRAFIA

HAROCHE, Claudine - Faire dire, vouloir dire, P.U.L., Paris, 1984.


FOUCAULT, M. - L'Ordre du Discours, Gallimard, Paris, 1971.
BARTHES, R. - Leçon, Gallimard, Paris, 1976.
ORLANDI, E. - "O discurso dos representantes indígenas: uma retórica do
oprimido", Cadernos de Lingiiística Aplicada, IEL, Campinas, 1986.

276

Você também pode gostar