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A Narrativa Intrínseca em "Natal del Rey" de Conrado Silva

Chapter · July 2015

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1 author:

Rodolfo Coelho de Souza


University of São Paulo
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Ilza Nogueira
Fausto Borém
(Editores)

SÉRIE CONGRESSOS DA TEMA

Ilza Nogueira, Organizadora O pensamento musical criativo: teoria, análise


e os desafios interpretativos da atualidade
Volume I Série Congressos da Tema, 1

Salvador
UFBA
2015
Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical
Este livro é uma publicação da
TeMA – Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical

Diretoria Executiva
Ilza Nogueira
sumário
Presidente
APRESENTAÇÃO
Cristina Capparelli Gerling
Vice-Presidente O Pensamento musical criativo: tradição e transgressão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Antenor Ferreira Corrêa Ilza Nogueira
Secretário
Alex Pochat PARTE I - ANÁLISE MUSICAL NA CONTEMPORANEIDADE
Tesoureiro
Rodolfo Coelho de Souza
01. Em Busca da música: linguagem, análise e cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19
Editor Lawrence Kramer
Alex Pochat (Trad.)
Conselho Editorial da Série Congressos da TeMA
Ilza Nogueira (Editora) 02. Música e narrativa desde 1900: o desafio hermenêutico da análise
Carlos Almada contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Norton Dudeque Michael Klein
João Pedro Oliveira Alex Pochat (Trad.)
Paulo Costa Lima
Maria Alice Volpe
PARTE II - TEORIAS DO COMPOR:
Ficha Técnica do Volume 1 A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA
Editores: Ilza Nogueira e Fausto Borém
Projeto gráfico e editoração: Quartel Design (www.quarteldesign.com) 03. A Produção de teoria composicional no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Liduino Pitombeira
Imagem fotográfica da capa: “Vina”, instrumento de Walter Smetak. Foto de Alexandre Espinheira, edição
de Cássio Nogueira (Coleção Walter Smetak - exposição: “Smetak - Alquimista do Som”, Solar Ferrão - 04. A Narratividade intrínseca em Natal del Rey de Conrado Silva . . . . . . . . . . 90
Diretoria de Museus - IPAC / SECULT / Governo Estadual da Bahia). Rodolfo Coelho de Souza

Copyright © 2015 by TeMA 05. Referencialidade e desconstrução: tendências composicionais da música


paraibana de concerto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .106
Sistema de Bibliotecas - UFBA Marcílio Onofre
06. A obra musical enquanto sistema-obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
O Pensamento musical criativo: teoria, análise e os desafios interpretativos da
atualidade / Ilza Nogueira e Fausto Borém (Editores). - Salvador: UFBA, 2015 . Fernando Cerqueira
250 p. : il. - (Congressos da TEMA ; 1)

PARTE III - ANÁLISE MUSICAL COMO DISCURSO CRÍTICO


“Ensaios derivados dos congressos da Associação Brasileira de Teoria e
Análise Musical - TeMA”
ISBN 978-85-8292-042-8
07. Crítica e criatividade a partir da visão de Ernst Widmer . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Paulo Costa Lima
1. Música. 2. Teoria musical. 3. Música - Análise e Crítica. 4. Composição 08. Perspectivas de um formalismo musical enacionista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
(Música). I. Nogueira, Ilza. II. Borém, Fausto. III. Associação Brasileira de Teoria e
Análise Musical.
Marcos Vinício Nogueira

CDD - 780.9 09. Escuta, multiplicidades, singularidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .166


Carole Gubernikoff
Apoio 10. Teoria musical: analisando estrutura, estilo e contexto . . . . . . . . . . . . . . . . . .176
Paulo de Tarso Salles
PARTE IV - VOCABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO
E SUA PROBLEMÁTICA
11. Observações sobre música e linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .191
Lawrence Kramer
Ilza Nogueira (Trad.)
12. O Tradutor enquanto construtor de pontes entre culturas . . . . . . . . . . . . . 196
Cristina Capparelli Gerling
13 O Uso da linguagem na análise musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Acácio Piedade
14 Aspectos sobre a tradução de vocabulário teórico-analítico: o caso das
traduções de obras teóricas de Arnold Schoenberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Norton Dudeque

PARTE V – EXPECTATIVAS PARA A TEORIA DA MÚSICA


NA ATUALIDADE AGRADECIMENTOS
5 Por quê teoria da música? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Michael Klein Ao CNPq, à Fundação CAPES e à FAPESB, pelo patrocínio.
Ilza Nogueira (Trad.)
Aos autores, pela autorização para esta publicação.
16 O Estudo de música como roteiro de vida: apreensões e ilusões . . . . . . 224
Manuel Veiga
Ao Conselho Editorial, pela colaboração.
17 O Sentido da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
Paulo Costa LIma

NOTAS SOBRE OS AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243


O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

meios, a estética da música programática do período romântico. Afinal a relação


a Narrativa inTRÍNSECA em entre música eletroacústica e rádio ou cinema sonoro sempre foi de profunda
intimidade, bastando lembrar que a maioria dos recursos de tratamento sonoro
Natal del Rey de Conrado Silva usados na música eletroacústica foi inventada para a produção de trilhas sonoras
de rádio e cinema.
Rodolfo Coelho de Souza Desenvolvimentos recentes na teoria da significação musical aplicados aos dis-
cursos musicais têm enfatizado aspectos negligenciados anteriormente nas teorias
da narratividade, entre eles a capacidade dos discursos musicais de suportarem
1. Introdução uma narratividade intrínseca. A narratividade que chamamos de intrínseca seria
A música eletroacústica, não podendo se valer dos recursos formais que ser- aquela que não depende de programas literários, teatrais ou cinematográficos
viram à estruturação da música instrumental no passado, precisou inventar seus previamente elaborados sobre os quais os sons seriam montados. Num certo
próprios artifícios técnicos e retóricos para conferir forma a seus discursos sono- sentido essa proposta incorpora elementos conceituais importantes tanto dos
ros. Uma das primeiras iniciativas, particularmente no âmbito dos compositores primórdios seriais quanto dos concretos da música eletroacústica, porque enfati-
de música eletrônica ligados ao Estúdio de Colônia na Alemanha, foi adaptar o za tanto o rigor lógico na construção do discurso, como acontece no serialismo,
modelo do serialismo ao tratamento dos novos materiais sintéticos. Não era, to- como a necessidade do material gerar por si mesmo a forma do discurso, como
davia, uma proposta abrangente, que pudesse servir aos interesses de todos os acontece na música concreta. A novidade é que o processo narrativo aqui pos-
compositores, nem sequer somente os do período, e por isso aquela proposta tulado é entendido como uma teleologia na sucessão de eventos, um efeito de
se esvaiu na medida em que também declinava o prestígio do serialismo como causalidade entre as partes do discurso que resulta num efeito organizador equi-
método de composição consagrado aprioristicamente. valente ao papel que, no passado, foi desempenhado pelas formas musicais, fixas
Na música concreta francesa, muitos compositores partiram de uma premissa ou idiossincráticas.
diferente, apostando que o material por si mesmo seria capaz de gerar a forma Observe-se, porém, que as pesquisas sobre este tópico têm ainda um longo
da composição. Forma e conteúdo deveriam formar uma unidade indissolúvel, a caminho a percorrer. Novas teorias sobre a narratividade musical, desvinculadas
forma sendo uma consequência inelutável do material, assim como o David de da tradição da música programática, têm sido propostas apenas recentemente.
Michelangelo teria resultado de um espírito imanente que habitaria o mármore Na musicologia europeia, o texto mais influente na retomada da questão da nar-
em que foi talhado, bastando ao escultor libertá-lo da pedra bruta. ratividade foi o de Eero Tarasti que em seus estudos de semiótica musical dedica
De fato essas duas abordagens da composição eletroacústica continuam in- um alentado capítulo à narratividade em Chopin, analisando duas de suas obras
fluentes ainda hoje, produzindo muitas vezes resultados admiráveis. Entretanto, na (Tarasti 1994, p.138-180). Não obstante sua filiação à semiótica de Greimas, suas
segunda metade do século XX, cresceu a percepção de que outros princípios de conclusões resultaram bastante semelhantes às de outros analistas anglo-saxões
organização do discurso eletroacústico também seriam frutíferos. que, em estudo desenvolvidos concomitantemente, seguiam a semiótica de Pier-
Entre essas novas tendências cresceu o interesse pelos aspectos narrativos ce. Nesse contexto aparece, no mesmo ano da publicação do texto de Tarasti, a
sugeridos pelos sons tratados eletronicamente. Na difusão radiofônica, novos gê- proposição de Hatten (1994, p.73) de que no repertório musical seria possível
neros começaram a surgir, particularmente o teatro radiofônico, que eventual- identificar certos gêneros expressivos, correlacionados aos tipos literários do lí-
mente misturava enredos literários com música eletroacústica. Outras vezes a rico, do épico e do dramático. Esta linha de investigação constituiu um notável
música eletroacústica chamava para si a responsabilidade integral de tecer a nar- avanço para o reconhecimento na música de características expressivas que im-
rativa, como um cinema sem imagens, em certo sentido recuperando, com outros pregnariam de algum modo os processos formais, gerando alguns tipos caracte-

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rísticos de discurso com capacidade narrativa. qual se relaciona diretamente a obra analisada de Conrado Silva – em relação à
Talvez ainda mais empenhado em estudar o tema da narratividade musical questão da narratividade percorreu o sentido oposto ao do título de Kermann:
encontrava-se naquele momento Michael Klein que já publicara um artigo preli- de início os compositores fizeram um grande esforço para fugir da narratividade,
minar sobre o tema no início dos anos 90 (Klein, 1991). Klein amadureceu natural- mas progressivamente foram se interessando novamente por ela como elemento
mente sua abordagem quando seus estudos sobre a intertextualidade na música organizador do discurso musical.
levaram-no a considerar a narratividade como sendo intrinsicamente associada Sabemos que a música feita a partir de sons gravados e transformados, como
à relação intertextual. Em um capítulo sobre a lógica do sofrimento na Quarta é o caso de Natal del Rey, teve sua fundamentação, tanto teórica como prática,
Sinfonia de Lutoslawski, Klein (2005, p.108) propõe sólidas fundações para seus alicerçada na produção de Pierre Schaeffer, tanto em seus textos como em suas
outros trabalhos em narratividade, que culminariam nos celebrados artigos em composições. O princípio da Escuta Reduzida – que já suscitou intermináveis
que aplica, com muita perspicácia, o conceito de narratividade intrínseca às bala- polêmicas e, entretanto, permanece para os seguidores de Schaeffer como um
das e noturnos de Chopin (Klein 2004 e 2009). Finalmente, como o último autor princípio fundamental, quase dogmático – induz naturalmente o compositor de
a destacar entre os que têm se empenhado em desenvolver os diversos aspectos música concreta a se afastar das intenções narrativas, na medida em que ele afeta
teóricos do conceito de narratividade, deve-se mencionar Byron Almén que pro- diretamente o processo de significação musical ao buscar eliminar as denota-
põe, entre outros avanços teóricos relevantes, uma detalhada tipologia para se ções e as conotações na ordem do simbólico, conforme definição desse termo
analisar a relação entre tópicos musicais e narratividade (Almén, 2008, p.78). na semiótica de C. S. Peirce. Esvaziar completamente numa obra musical o nível
Saliente-se, entretanto, que todos esses trabalhos, que tem desenvolvido re- simbólico ou a Terceiridade de Peirce, que ele acreditava ser o fim último de todo
centemente a teoria da narratividade e suas aplicações analíticas foram majorita- processo de significação, produz como resultado imediato a impossibilidade de se
riamente dedicados à música instrumental de compositores bastante estudados ter uma leitura narrativa do discurso musical.
do passado, como Beethoven e Chopin, exceção feita aos estudos de Klein sobre Portanto a música eletroacústica, em seus primeiros anos, lutou uma árdua
Lutoslawski. A possibilidade de se aplicar os novos conceitos de narratividade à batalha para se afastar da narratividade, que era vista como um obstáculo à sua
música eletroacústica de compositores contemporâneos permanece um terreno constituição como linguagem musical – provavelmente com bons motivos, se con-
inexplorado que nos propomos a começar a adentrar neste trabalho. siderarmos que a estética da música absoluta norteou a música de concerto du-
Nesse sentido, a hipótese que guiará nossa análise de Natal del Rey de Conrado rante a maior parte do século vinte – e a consequente aceitação de seus produ-
Silva, seguindo uma metodologia adaptada das propostas de Klein e Almén, é que tos pouco familiares como sendo de fato música. Por isso pode parecer estranho
a forma dessa composição resulta de um processo imanente de narratividade querer tratar a narratividade na música eletroacústica como algo relevante para
intrínseca. esta obra de Conrado Silva. E mais ainda, associá-la a um compositor que, pelo
que nos consta nunca se manifestou abertamente em defesa do princípio da nar-
ratividade como importante para sua música.
2. A evolução da narratividade na história da música
A questão da narratividade está, em última instância, diretamente relacionada
eletroacústica à questão da significação musical. Desse modo estamos assumindo que existiria
Um notório artigo de Joseph Kermann, eminente musicólogo recentemente algum tipo de semântica atuando na linguagem musical, ou pelo menos na lingua-
falecido, intitulado How we got into analysis, and how to get out, sugere-me uma gem musical de certa música eletroacústica, em oposição ao pensamento domi-
abordagem ao problema da narratividade na música eletroacústica. Não para tra- nante ao longo do século vinte que defendeu a tese da incapacidade da música de
zer à pauta aquela discussão sobre os propósitos da análise, mas para constatar comunicar qualquer tipo de conteúdo semântico. As argumentações nesse senti-
que a música eletroacústica, especialmente na sua corrente concreta – com a do eram muitas vezes acompanhadas de relatos de casos pitorescos que tinham

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como corolário a máxima “não perguntem a um compositor o que ele quis dizer to em que estava pintando, não tenha pensado nas histórias que conto sobre
com sua música”. Há, por exemplo, o relato de um episódio de Beethoven a quem meus quadros. A maioria delas aparece depois, quando tento entender o que eu
um ouvinte teria perguntado o que ele queria dizer com uma sonata que acabara desenhei, ou muito depois, quando estou conversando com um comprador. Mas
de executar ao piano, ao que ele teria respondido sentando-se novamente ao isso não significa que a relação dessas histórias com os quadros seja falsa. Ambas
piano e tocando a mesma sonata outra vez. nascem da mesma fonte, a minha imaginação, não importando a ordem com que
A fábula de Beethoven é instigante, mas em contraposição a ela gosto de con- elas afloraram à minha consciência. Ambas estavam lá no fundo do inconsciente à
tar outra história sobre fatos que presenciei muitos anos atrás e que envolvem espera do momento certo para se manifestar. Concluindo, ele disse: “não impor-
um pintor bem sucedido no mercado de artes plásticas. Eu costumava frequentar ta o momento em que se tomei ciência dessa relação que sempre existiu entre
seu atelier porque tirava lições valiosas do seu métier profissional. Eu o via ex- elas, porque essa relação faz parte do que me constitui como pintor”. Posso lhes
perimentar soluções, descartar soluções, colocar de lado trabalhos inacabados à assegurar que a técnica desse pintor, para quem o visse trabalhando, parecia mui-
espera de uma solução ao impasse que o impedia de dar continuidade ao projeto to concentrada apenas no material, no rigor da construção imagética, nas cores,
e tudo aquilo me ensinava a manusear ideias e materiais, um tipo de experiência nas texturas, nas formas que, se não eram abstratas, beiravam os limites da não
que serviria tanto para uma obra visual como para uma composição musical. Mas representação. Entretanto, paradoxalmente, quanto mais abstrato fosse o quadro,
também me impressionava a maneira como ele recebia em seu estúdio possíveis mais fascinante era a narrativa ficcional inspirada pelas imagens que brotava de
compradores de sua arte. Ele deixava o olhar do visitante vagar solto pelas obras seus lábios.
acabadas que ele mantinha espalhadas pelos cantos ou penduradas nas paredes, Note-se, porém, que este relato, que buscou ilustrar a relevância das narrativas
até que o possível comprador demonstrasse interesse por uma delas. Só então para a interpretação das obras de arte, mencionou apenas narrativas extrínsecas
ele se aproximava e fazia um comentário vago. Quase sempre o potencial com- ao objeto artístico. Não obstante, defendemos que existem muitos casos em que
prador respondia então com alguma indagação ou arriscava uma interpretação do as narrativas são intrínsecas ao discurso da própria obra e podem ser lidas no
quadro. O meu amigo pintor não se fazia de rogado. Pegava o mote e começava próprio objeto, a partir de referências culturais compartilhadas, ou eventualmente
a contar uma história. Uma longa história, uma história sempre nova e fascinante, com a colaboração de alguns indícios externos.
que se relacionava das mais variadas maneiras às imagens que ambos contempla- Afirmamos acima que a música concreta propôs de início um esforço cons-
vam. Acreditem: depois disso a venda era certa. Podia haver alguma barganha, mas ciente para se libertar do episódico. Nascida nos estúdios de rádio a partir da
o comprador havia sido fisgado pela relação entre as imagens e a história, a qual gravação de sons usados na sonoplastia radiofônica e cinematográfica, o esforço
ele iria repetir aos que visitassem sua casa onde a pintura estaria exposta, omitin- para fazer aqueles sons serem ouvidos como objetos musicais exigiu que fossem
do e acrescentando detalhes conforme sua imaginação. Se o comprador fosse ou- tratados, distorcidos, filtrados, até que sua identidade original estivesse suficien-
tro, e o comentário diferente, haveria outra história para ser narrada pelo pintor. temente turvada para que os apreciássemos como matéria prima de uma nova
Essa experiência me convenceu da importância das narrativas feitas sobre as linguagem musical. Podemos dizer que o propósito daquela música seria equi-
obras de arte, mesmo que elas pareçam ter pouco ou nada a ver com sua gesta- parar-se aos ideais da música absoluta instrumental ou aos da pintura abstrata,
ção. Uma vez perguntei a esse pintor se ele de fato tinha pensado naquela histó- não figurativa. Para isso compositores e técnicos inventaram um arsenal de ar-
ria quando pintou o quadro. Ele me respondeu de modo sagaz: se você estudar tifícios que permitiam manipular a matéria sonora distorcendo deliberadamente
história da arte saberá que a grande maioria dos quadros famosos continha uma sua identidade inicial. Esse princípio de velamento, a chamada escuta reduzida, foi
narrativa que os contemporâneos sabiam ler, mesmo que hoje ela pareça pouco questionado já pela geração seguinte à de Schaeffer. Red Birds de Trevor Wishart é,
relevante para nosso contexto cultural, como o são tantas histórias da mitologia possivelmente, a obra mais citada como o marco divisor de águas na contestação
ou histórias bíblicas. Entretanto, continuou ele, é muito provável que, no momen- daquele princípio. Mas não creio que o exemplo de Wishart deva ser invocado

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aqui como relevante para a análise de Natal del Rey. O problema de Wishart é todavia, que se reconhecer que esses estudos bem sucedidos tem se concen-
bastante diferente, pois se trata da criação de um subgênero específico de teatro trado primordialmente na música romântica instrumental, traçando um paralelo
sonoro radiofônico para o qual a narratividade extrínseca é elemento essencial. contrastante entre um possível ideário de narratividade na música absoluta em
Uma vez que o nosso problema é o da narratividade intrínseca deve-se supor contraposição ao projeto da música do futuro de Wagner e Liszt. Ainda assim,
que estamos tratando de um repertório que continua a querer se afastar das partindo dessa experiência sedimentada, nossa hipótese é que sua metodologia
narratividades extrínsecas, dos programas, do episódico, ou mesmo das ficções pode ser estendida até a música contemporânea, e possivelmente à música ele-
que ajudam a vender quadros ou músicas. Entretanto não há como negar que troacústica. Acreditamos que neste gênero haveria muito a ganhar desenvolven-
persiste no imaginário do ouvinte contemporâneo a influência do projeto român- do-se análises com um foco na narratividade intrínseca. Apresentei recentemente
tico da música programática que dependia de uma narratividade extrínseca. Por em um simpósio na University of Edinburgh uma primeira tentativa nesse sentido
outro lado, a crítica musical, prevalentemente imbuída no século XX dos ideais aplicada à minha própria música (Coelho de Souza 2012) e apresento aqui uma
da música absoluta, assevera que o projeto da música programática nunca atingiu nova empreitada nesse sentido, dedicada agora à música de Conrado Silva.
os resultados que almejava. Isso pode ser verdade, mas o próprio interesse que
agora ressurge sobre o fenômeno da narratividade testemunha em favor de certo 3. Em busca de uma metodologia para
grau de sobrevivência daquele projeto.
a análise da narratividade
Ao longo dos anos de magistério de composição percebi que o exercício da
A teoria exposta por Álmen, no estudo mais extenso publicado até agora so-
música concreta é uma ferramenta formidável para introduzir o jovem composi-
bre o problema da narratividade musical (Almén 2006), apoia-se em uma série de
tor nos problemas da manipulação do material musical. Na composição de música
paradigmas conceituais que, na hierarquia do discurso, são anteriores ao nível da
instrumental há um vício que precisa ser superado, que é a tendência do jovem
narrativa: a teoria dos tópicos de Ratner, a teoria de tropos e gêneros expressivos
compositor de escrever apenas notas no papel, como se elas representassem ou
de Hatten, e marginalmente, a intertextualidade de Klein. Sua hipótese original
contivessem automaticamente a essência de uma música. A manipulação dos sons
mais relevante é que se reconheça que um conflito percebido no âmago no
concretos ensina a se ouvir a música antes de eventualmente anotá-la, e ensina
material sonoro é o motor propulsor que desencadeia um processo teleológico,
também que é na manipulação dos sons que se concentra a arte e o métier do
o qual, através de oposições dialéticas, cria um vetor de significado que permite
compositor. A escrita deve ser sempre uma decorrência da compreensão auditiva.
ao discurso musical estruturar-se como narrativa sem a necessidade de recorrer
Exatamente por isso sou crítico dos projetos de jovens compositores que partem
a um programa externo. Disto decorre que, em última instância, o processo de
do princípio de que a música a ser composta vai contar uma história previamente
narratividade musical substitui o conceito de forma musical. Para Almén a palavra
elaborada. Geralmente isso não funciona. O que acaba sendo produzido é uma
chave é conflito, ou seja, conflito entre materiais musicais.
série desconexa de sons episódicos cujo sentido dependeria de sua associação
com um discurso imagético ou literário. A rigor não há nada de errado nisso, mas Para se entender melhor a natureza do conflito desenvolvido por Conrado Sil-
um compositor deve aspirar a que sua música tenha uma linguagem autônoma, va em Natal del Rey1 é relevante descrever um pouco do contexto em que a peça
capaz de gerar sentido por seus próprios meios e só por eles. foi composta. O material desta peça foi recolhido pelo próprio compositor em
uma festividade folclórica. Por acaso presenciei a gravação do material quando ela
Por isso falo aqui de narratividade intrínseca no sentido renovado que os estu-
foi feita em 1978, com um simples gravador portátil de fita cassete, durante uma
dos sobre o tema têm assumido nas últimas décadas nos estudos de Klein (1991,
Festa de Reis que acontece anualmente na cidade de São João del Rey, em Minas
2004, 2005, 2010), Tarasti (1994), Hatten (1994) e Almén (2006), entre outros.
Gerais. Naquele ano ocorria em paralelo um Curso Latino de Música Contempo-
Esses estudos demonstram como certos processos discursivos, que chamaremos
de narratividade intrínseca, podem substituir o conceito de forma musical. Há, 1 A obra pode ser ouvida em CD no Volume 1 da série dedicada à compositores eletroacústicos brasileiros da
SBME – Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica.

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rânea, patrocinado pela Secretaria de Cultura daquele município. Registre-se que Para perceber a riqueza de alternativas possíveis no desenvolvimento de uma
Conrado Silva era um dos diretores do curso, além de um dos professores. Como ideia é preciso localizar o conflito requerido pela teoria de narratividade de Al-
estava muito envolvido com o curso me parece pouco provável que no momento mén. Em Natal del Rey o conflito surge a partir do próprio material quando ele
da gravação ele tivesse em mente utilizar aquele material para a composição de é transformado por distorções progressivas e regressivas da gravação original da
uma obra eletroacústica. A ideia deve ter prosperado quando, no ano seguinte, festividade folclórica. O processo de velamento e desvelamento das fontes sono-
ele foi convidado para fazer uma residência no estúdio de música eletroacústi- ras desenvolve, na linguagem da música concreta, um discurso de narratividade
ca de Bourges, na França. Os complexos processamentos sonoros que se ouve intrínseca que, em nossa interpretação, elabora a seguinte metáfora: o gradual
nessa obra requeriam recursos sofisticados para a época e certamente foram desaparecimento das manifestações culturais do folclore, como representantes de
trabalhados no estúdio de Bourges. A mixagem final, entretanto, só foi terminada uma herança de um passado imemorial, é parcialmente resgatado pelos resíduos
em 1980 em seu estúdio particular de São Paulo, onde os recursos técnicos eram de lembrança que permanecem em nossa memória individual.
consideravelmente mais limitados, embora suficientes para lhe permitir organizar Devemos ressaltar que, desde o início da peça, a maneira como os materiais
com esmero a sobreposição, justaposição e ordenação dos fragmentos processa- são apresentados não é ingênua. O compositor organiza cuidadosamente o palco
dos na França. no qual o drama se desenrolará, introduzindo individualmente, com deliberada
Klein desenvolve um conceito de intertextualidade que recusa o limite da parcimônia, cada tipo de amostra de som que remete a uma fonte sonora dife-
historicidade para que se estabeleçam relações de leitura intertextual entre duas rente. A cena gravada, em seu conjunto, parece unificada. De fato parece haver
obras (Klein 2005). Uma mera audição atenta, que não requer nenhuma ferra- uma unidade, mas essa unidade é imaginária, pois depende de fazermos uma
menta analítica sofisticada, já nos permite afirmar que, segundo o ponto de vista reconstituição mental da cena original em que os materiais sonoros teriam sido
da intertextualidade de Klein, podemos reconhecer uma significativa sincronicida- coletados. Na verdade nada garante que o foram. Há materiais que poderiam ter
de entre duas composições terminadas no mesmo ano de 1980: Natal del Rey de sido inseridos ali artificialmente, tal como o faz rotineiramente o cinema ao re-
Conrado Silva e a mais famosa Any resemblance is purely coincidental de Charles construir o ambiente sonoro de uma cena, permitindo aos artistas de sonoplastia,
Dodge. Ambas as peças rejeitam o princípio da escuta reduzida uma vez que o folley ou efeitos que concebam um universo sonoro que nunca esteve reunido
reconhecimento da fonte do material sonoro usado é importante para a compre- no mesmo espaço físico. Portanto, embora a cena auditiva que o compositor
ensão do sentido da peça. E ambas usam materiais de forte conteúdo simbólico, nos apresenta pareça coesa, ela é na verdade apenas uma coleção sequencial de
tratados de forma semelhante, utilizando uma estratégia progressiva que evolui materiais bastante distintos: um apito, uma conversa ininteligível de um grupo de
entre o velamento e o desvelamento dos materiais originais. Isso nos permite pessoas, a afinação de uma viola, fragmentos de acordes tocados por uma sanfona,
reconhecer que, de acordo com Hatten (1994), elas devem pertencer ao mesmo o impulso de um chocalho metálico, o pulso regular e sincopado de um conjunto
gênero expressivo, identificado como um arquétipo caro ao iluminismo: a traje- de tambores folclóricos, um fragmento de canto agudo de mulheres, etc.
tória “das trevas para a luz”, tantas vezes utilizada, por exemplo, por Beethoven. Como dissemos acima, esta representação de uma cena do mundo real não é
Isso implica que a peça de Conrado contém uma narrativa implícita, ainda que ela nada senão uma mera representação, porque favorece uma sequência particular
tivesse sido apenas copiada de um paradigma da tradição. Porém, encontrar um de eventos, começando com o apito, que representa uma chamada de atenção, e
rótulo e encaixar uma determinada peça numa certa categoria taxonômica pode progride apresentando uma série de fragmentos sonoros desconexos de fontes
ser um bom começo, mas não é suficiente como análise, pois a mesma história sonoras diferentes cuja única relação é o pressuposto imaginário de que eles re-
pode ser recontada com materiais e contextos diferentes, com detalhes diferen- tratam uma mesma cena de origem. A quantidade e a veracidade dos fragmentos
tes, resultando em obras muito diversas, ainda que compartilhem um mesmo não importam. Importa é o efeito metonímico. O conjunto da cena é representado
modelo. pelas suas partes. Trata-se, portanto, do uso poético da fórmula clássica da figura de
linguagem da parte pelo todo.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

O que poderíamos chamar de ‘primeira frase’ nesta peça de música concreta ideias contrastantes.
termina com o equivalente a uma cadência (localizar “Articulação I” na Figura A música que acontece neste novo espaço sonoro é muito simples. São apenas
2) marcada por um súbito golpe de chocalho que interrompe a sequência con- batidas de tambor, em andamento lento que ressoam naquele novo espaço largo
tínua de eventos sonoros. É importante ressaltar que a peça de Conrado Silva e desolado, sofrendo pequenas alterações em seu espectro sonoro que parecem
apresenta uma fraseologia cuidadosamente organizada. Os recursos técnicos que resultar da sutil aplicação de filtros de frequência. O compositor não tenta escon-
conferem direcionalidade ao discurso ou realizam interrupções cadenciais são der que estes sons são derivados, através de uma transformação eletroacústica
completamente diferentes daqueles da música instrumental, entretanto têm em bastante radical, de amostras sonoras que já foram ouvidas no início da peça.
comum certos princípios energéticos derivados da nossa experiência perceptual Um eco distante e débil do canto feminino pode ser ouvido atrás das batidas de
do mundo físico. Por exemplo, um ganho gradual de energia que resulta de um au- tambor. Esta é uma ideia essencial para o efeito de contraste na peça. É uma ideia
mento gradual de dinâmica ou intensidade sonora conduz a audição de uma frase muito mais abstrata do que a primeira ideia, a que chamamos de primeiro tema.
em direção ao seu final. Na música instrumental esse ganho de energia pode ser Neste segundo momento, ou segundo tema, um mundo interior é colocado em
a tensão crescente de uma progressão harmônica, enquanto na música concreta oposição ao mundo exterior previamente ouvido.
pode ser um adensamento progressivo da textura. Os recursos são diferentes,
O conflito está assim colocado: um espaço que representa o universo do real,
mas os resultados equivalentes. Um súbito impulso sonoro seguido de silêncio,
do mundo exterior (que chamaremos de A) e outro espaço que representa o
isto é, um alto contraste energético, é uma solução recorrente para a interrupção
universo de um mundo interior, feito de ecos, distorções e ressonâncias (que
do discurso e a consequente obtenção de um efeito cadencial. Exatamente por
chamaremos de B). Como conciliar estes espaços sonoros diferentes que, entre-
isso aquela primeira sequência de eventos sonoros pode ser comparada à expo-
tanto, são habitados pelas mesmas amostras sonoras, ainda que manipuladas por
sição de um primeiro tema em uma forma instrumental clássica.
recursos eletroacústicos diferentes? Nas figuras 2 a 4 abaixo apresentamos sono-
Novos materiais aparecem depois da conclusão da primeira frase. Esses materiais gramas cartesianos que representam a variação de intensidade sonora em relação
retratam um conjunto de tambores tocando um ritmo sincopado que, não obstan- ao tempo. Sobre eles demarcamos os eventos formais que estamos descrevendo.
te, tem uma estrutura de marcha, em quadratura, tal como vemos na Figura 1. Este recurso aos sonogramas é recomendado por Simoni (2006) como uma for-
ma eficiente de visualização das análises de música eletroacústica.
Seis episódios se seguem, apresentando um discurso de desenvolvimento que
elabora os materiais dos respectivos espaços sonoros A e B. No Episódio 1 (ver a
Figura 1: Esquema rítmico dos tambores Figura 2) o compositor desenvolve materiais do tipo A, com pouca transformação.
A seguir são ouvidos sons de sanfona que se sobrepõe ao dos tambores, mas Estamos sendo lembrados da procedência dos sons que retratam o espaço do
eles desaparecem tão logo emergem sons de chocalho. A dinâmica da percussão mundo externo.
cresce até um clímax e em seguida se desvanece quando emerge o canto de uma O Episódio 2 (ver também a Figura 2) desenvolve um material similar ao que
voz distante. ouvimos no espaço B, com um tratamento de ressonância e distorção semelhante,
Esta passagem representa uma mistura de tópicos, de acordo com a teoria dos embora de alguma maneira este episódio pareça diferente porque o grau de fil-
tópicos de Ratner e Hatten (1994). Participam dessa mistura o estilo de marcha, tragem é ainda mais radical. Em conjunto os episódios 1 e 2 formam uma espécie
o estilo de danças sincopadas do reisado e o estilo vocal cantábile. A voz nos de função formal de ritornelo da exposição, inclusive recorrendo ao expediente
conduz a um espaço sonoro completamente diferente, um espaço que é vazio, das pequenas variações de efeito apenas ornamental que disfarçam a redundân-
amplo e muito ressonante. Não obstante sua aparente simplicidade, esta passa- cia excessiva. Por outro lado, a tradição da música instrumental ensina que esse
gem realiza uma função formal importante. Ela faz o papel de transição entre duas tipo de repetição da exposição é um recurso retórico muito efetivo para que o

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ouvinte compreenda e absorva plenamente a natureza do conflito proposto na Após uma Ponte (ver a Figura 4) em que os materiais se entrecruzam (usan-
exposição de dois temas contrastantes. do a técnica de cross-fade), segue-se o último episódio. Esse Episódio 6 (ver
O Episódio 3 (ver ainda a Figura 2) parece inicialmente que se trata de uma também a Figura 4) é uma longa seção em que o compositor se concentra em
mera variação do espaço sonoro A, mas logo emerge uma conversa parcialmen- distorcer eletronicamente os sons de percussão, tornando-os cada vez mais
te inteligível, o que não havia acontecido antes. Reconhece-se também ao fundo ruidosos. Do ponto de vista do processamento eletrônico é um momento cli-
uma melodia folclórica cantada por mulheres, com uma instigante de presença de mático pois as distorções assumem a sua feição mais radical.
um novo registro que trará implicações para o que se segue.
A próxima seção pode ser chamada de Retransição (ver a Figura 4) uma vez
que funciona como um retrógrado da transição. Ela começa com um silêncio
súbito que é seguido de batidas de tambores transformadas por um novo tipo
de distorção que produz sons ainda mais metálicos. Lentamente a distorção é
eliminada e a sonoridade original do conjunto de tambores é desvelada. A pa-
lavra “capoeira” pode ser ouvida, mais ou menos distintamente, diversas vezes.
O efeito narrativo é, simbolicamente, que o mundo interior teria emergido ao
Figura 2: Sonograma de Natal del Rey entre 0’ e 3,5’ mundo exterior.
O Episódio 4 (ver a Figura 3) traz para a superfície as vozes femininas com timbre Finalmente vem a seção final, que chamamos de Coda (ver ainda Figura 4),
de voz de garganta, no registro agudo, cantando a impregnante melodia folclórica, pois ali se dá a resolução do conflito da peça que permanecera pendente. Ou-
que lembra uma cantilena religiosa, da qual ouvimos fragmentos anteriormente. Essa vem-se vozes humanas e falas, com diversas saudações tais como “Ora Viva!” e
melodia é progressivamente distorcida e transposta artificialmente para um registro outras conversas ordinárias que são arrematadas por um singelo fade out. Desse
de frequências muito agudas. A sonoridade áspera beira o desagradável. Um forte
modo o universo de real supera, derradeiramente, o universo do imaginário, ou
súbito (indicado como “Articulação 3” na Figura 3) marca o início do próximo epi-
seja, o mundo exterior ordinário prevalece sobre o mundo interior das fantasias.
sódio.
Uma batida de tambor e um apito, ambos em pianíssimo, marcam o fim da peça,
O Episódio 5 (ver as Figuras 3 e 4) elabora um material similar a B, mas em pianís-
traçando um arco formal com o princípio.
simo. Neste episódio o material é transposto para um registro grave, em oposição ao
episódio anterior que havia nos levado aos agudos. Gradualmente impulsos sonoros
ruidosos derivados do som do conjunto de tambores interferem na cena sonora.

Figura 4: Sonograma de Natal del Rey entre 6,5’ e 12’

Figura 3: Sonograma de Natal del Rey entre 3’ e 6,5’

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4. Conclusão Klein, Michael. 1991. “Musical Narratology: a Theoretical Outline”. Indiana Theory Review, vol.
12: 141-162.
Nossa principal conclusão é que a narratividade intrínseca de Natal del Rey __________. 2004. “Chopin’s 4th Ballade as Musical Narrative”. Music Theory Spec-
depende da resolução de um conflito entre as amostras gravadas e suas transfor- trum 26/1: 23–56.
mações, assim como da resolução de um conflito entre dois espaços sonoros: o __________. 2005. Intertextuality in Western Art Music. Bloomington: Indiana University Press.
primeiro que representa o real e o mundo ao redor do ouvinte, e um segundo __________. 2010. “Ironic Narrative, Ironic Reading”. Journal of Music Theory, 53/1: 95–136.
espaço, distante, quase surreal e abstrato que representa o mundo interior do
Simoni, Mary. 2006. Analytical Methods of Electroacoustic Music. New York: Routledge.
ouvinte. Esta oposição contrasta, portanto, dois universos sonoros, o primeiro
exterior, que é colocado em oposição a outro, interior.
A tragédia simbólica e ideológica que fundamenta esta narrativa musical de
Conrado Silva é que o universo exterior de folguedos folclóricos está condenado
ao desaparecimento à medida que o apetite de expansão da civilização moderna
destrói os valores das culturas tradicionais folclóricas ao longo de seu caminho.
Estas manifestações culturais permanecerão apenas em nossas memórias, no es-
paço mental interno de nossas experiências vividas, como reminiscências distorci-
das semelhantes aos materiais do espaço B que ressoam em nossas mentes.
Não posso deixar de mencionar, finalmente, que esta é uma pesquisa em
andamento sobre a narratividade na música eletroacústica de Conrado Silva. O
primeiro propósito desta comunicação preliminar é prestar uma homenagem ao
compositor e professor Conrado Silva, recentemente falecido. Todos aqueles que,
como eu, foram seus alunos, podem dar testemunho sobre sua generosidade
como ser humano e como intelectual que deixou inúmeras contribuições signi-
ficativas para a cultura latino-americana. A avaliação crítica dessa contribuição é
uma missão a ser cumprida.
Referências
Almén, Byron e Pearsall, Edward. 2006. Approaches to Meaning in Music. Bloomington:
Indiana University Press.
Coelho de Souza, Rodolfo. 2012. “Recycling Musical Topoi by Electroacoustic Means in
‘What Happens Beneath the Bed while Janis Joplin Sleeps?’.” Proceedings of the International
Conference on Music Semiotics (In memory of Raymond Monelle), University of Edinburgh.: 284-
291.
Hatten, Robert S. 1994. Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpre-
tation. Bloomington: Indiana University Press.
Kerman, Joseph. 1980. “How We Got into Analysis, and How to Get out”. Critical Inquiry, Vol.
7, No.2: 311-331.
Klein, Michael L. 2005. Intertextuality in Western Art Music. Bloomington: Indiana University
Press.

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