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IMPULSO, Piracicaba, v. 16, n. 41, p. 1-111, set./dez. 2005

Impulso, Piracicaba, 16(41): 9-12, 2005 1


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO – IEP PrintFit Soluções


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Presidente do Conselho Diretor Capa: JORGE HENRIQUE
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"Cem Anos de Jean-Paul Sartre" / "One Hundred Years of Jean-Paul Sartre"
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Editorial

SARTRE

Jean-Paul Sartre teria completado cem anos em 21 de junho de


2005. O fato de ele ter falecido em 1980 não impediu que várias ce-
lebrações fossem realizadas em seu aniversário. Durante 2005, inte-
lectuais, artistas e pessoas ligadas à academia em várias partes do
mundo têm dedicado simpósios, montagens teatrais, seminários, do-
cumentários e até mesmo festas regadas a bolo e champagne em ho-
menagem ao grande pensador francês. Também no Brasil, talvez
com menos pompa e circunstância, pode-se testemunhar algumas
iniciativas, entre as quais a presente edição da revista Impulso.
A introdução da seção temática sobre Sartre, assinada pelos or-
ganizadores deste número, Márcio Danelon e Sílvio Gallo, bem como
a nota biográfica de Michel Rybalka (curador dos escritos de Sartre),
já nos dão um panorama geral sobre a vida e obra do filósofo francês.
Aqui nos limitaremos, portanto, a conferir um panorama geral desse
denso número, apresentando rapidamente os textos e seus autores.
O núcleo temático se inicia com artigo de Juliette Simont, que
busca contestar a crítica feita a Sartre, segundo a qual seu livro Cri-
tique de la Raison Dialectique “é a falência mais relutante da história
da filosofia”. Opondo-se a tal crítica, ela afirma ser necessário consi-
derar o pensador francês como alguém que tenta articular o universal
e o particular de forma única e também contraditória. Em seu artigo,
Luís Antônio Contatori Romano nos mostra o impacto da viagem de
Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil, em 1960, dedicando-se à aná-
lise dos artigos publicados em jornais brasileiros e os debates suscita-
dos durante sua visita. Mauricio Langon, por sua vez, dialoga com
Sartre de modo poético, mas também corajoso, ao tomar o caso em
que o pensador francês procura por um amigo seu em um café para
questionar a pretensão de intelectuais e filósofos de entrar em cena
(nos cafés, na sala de aula, nas conferências), sem “colocar-se em seu
devido lugar” e despirem-se de suas pretensões. Márcio Danelon cri-
tica a concepção subjetivista de educação, a qual define o processo pe-
dagógico como a formação do sujeito por meio da construção do seu

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Eu. Após uma detalhada leitura de La Transcendence de l’Ego em con-


traponto com L'Être et le Néant, Danelon conclui que a consciência
é sempre posicional e busca seu sentido fora dela mesma, o que, por
sua vez, contradiz a primazia dada ao sujeito no processo educativo.
Já Sílvio Gallo e Walter Matias Lima se dedicam à pergunta sobre o
anarquismo de Sartre, respondendo-a positivamente com base na bi-
ografia e em duas entrevistas do intelectual francês. Os autores real-
çam as afirmações do filósofo francês contra o totalitarismo, a moral
cristã e outras perspectivas totalizantes do ser e da existência, des-
montadas em L'Être et le Néant. Concluem que Sartre não somente
refletiu, mas também agiu sob o moto de uma moral anarquista. Essa
seção termina com o texto no qual o próprio Sartre, em entrevista a
R. Fornet-Betancourt, M. Casañas e A. Gomes em 1979, estabelece
uma relação direta entre anarquia e moral. Agradecemos a Fornet-Be-
tancourt, amigo de outras paragens e editor da revista Concordia, pela
permissão para a publicação dessa entrevista na Impulso.
A seção “Conexões Gerais” traz mais dois textos, distintos e ao
mesmo tempo complementares. Ao se dedicar a questões literárias e
estéticas referentes ao fin-de-siècle – tanto o final do século XIX quan-
to do século XX –, os dois, em certo sentido, dialogam com proble-
máticas caras ao pensamento de Sartre. Em “Autodomínio e a forma
variável”, Dale Wilkerson mostra que a palestra de Nietzsche sobre
os fragmentos de Heráclito já antecipa o que o filósofo alemão en-
contra depois em Platão: o paradigma grego na cultura e na filosofia.
Em “A contemporaneidade da Matriz”, Marcelo Cizaurre Guirau
realiza uma leitura política da trilogia Matrix, amparando-se em Ja-
meson, Zizek e críticos culturais. Conclui que, ao confundir escolhas
e fins, exagerar na abstração, buscar identificar um grande inimigo
comum e tentar transcender o individualismo por meio de relações
sentimentais, os filmes Matrix expõem os limites de nossa cultura
atual, incapaz de criar uma consciência social coletiva.
Esta edição é fechada por Márcio Aparecido Mariguela e sua
resenha do livro Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios,
de Franklin Leopoldo e Silva. Na realidade, poderia também ser um
ponto de entrada para a leitura deste número, pois, em diálogo crí-
tico com o livro de Franklin Leopoldo e Silva, Mariguela tece im-
portantes considerações sobre a relação entre filosofia e literatura,
demarcando e problematizando, assim, o movediço terreno sobre o
qual o pensamento de Sartre e os artigos aqui publicados se baseiam.

AMÓS NASCIMENTO
Editor Científico da Impulso

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...............................
Núcleo Temático
Thematic Section
Apresentação / Foreword
Sartre, Pensador Multitemático
Sartre, Multithematic Philosopher
MÁRCIO DANELON – UFU, Uberlândia/MG
SÍLVIO GALLO – Unicamp, Campinas/SP 9
Nota Biográfica
Biographical Note
MICHEL RYBALKA – WUSTL, St. Louis/MO 13
Indivíduo e Totalização: a dialética e seu resto
Individual and Totalization: dialectic and its rest
JULIETTE SIMONT – ULB, Bruxelas/BE 17
Literatura Popular: diálogos com Sartre no Brasil
Popular Literature: dialogues with Sartre in Brazil
LUÍS ANTÔNIO CONTATORI ROMANO – FPM, Itu/SP 27
Filosofar en Escena
To Philosophize in the Scene
MAURICIO LANGON – AFU, Uruguay/UR 39
A Crítica Sartriana à Subjetividade e suas
Implicações no Conceito de Educação como
Formação do Sujeito
Sartre’s Critique on Subjectivity and its Implication in
the Concept of Education as Formation of the Subject
MÁRCIO DANELON – UFU, Uberlândia/MG 47 Summary
Sumário
Sartre: anarquista?
Sartre: anarchist?
SÍLVIO GALLO – Unicamp, Campinas/SP
WALTER MATIAS LIMA – UFAL, Alagoas/AL 61
Anarquia e Moral: entrevista com Jean-Paul Sartre
Anarchy and Morality: interview with Jean-Paul Sartre 75
...............................
Conexões Gerais
General Connections
Autodomínio e a Forma Variável: a palestra
de Nietzsche sobre Heráclito
Self-mastery and the Variable Form: Nietzsche’s
Heraclitus Lecture
DALE WILKERSON – UNT, Texas/TX 81

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A Contemporaneidade da Matriz: sobre alguns


temas políticos nos filmes da trilogia Matrix
Contemporaneity of the Matrix: on some political
themes in the Matrix trilogy movies
MARCELO CIZAURRE GUIRAU – USP, São Paulo/SP 89
...............................
Resenhas & Impressões
Reviews & Impressions
Filosofia e Literatura: tensão e interlocução
Philosophy and Literature: tension and dialogue
Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios
de Franklin Leopoldo e Silva
MÁRCIO APARECIDO MARIGUELA – UNIMEP, Piracicaba/SP 101

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


EDITORIAL NORMS 105

NOSSOS CONSULTORES DE 2005


OUR CONSULTANTS 111
Summary
Sumário

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Núcleo Temático
Thematic Section
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Apresentação
Foreword

Sartre, Pensador
Multitemático
SARTRE, MULTITHEMATIC
PHILOSOPHER

Comemora-se, em 2005, o centenário do nascimento do filósofo


francês Jean-Paul Sartre, certamente um dos mais significativos e repre-
sentativos pensadores do século XX. Das correntes filosóficas então
emergentes, destaca-se o existencialismo como, talvez, aquela que melhor
sintetizou o contexto histórico-cultural da Europa em meados daquele
século. Sartre foi, com toda a certeza, um dos principais representantes
dessa corrente, mas também aquele que melhor difundiu as teses exis-
tencialistas, utilizando as mais distintas formas de linguagem: filosófica,
literária e teatral. Dessa maneira, retirou o existencialismo da academia e
MÁRCIO DANELON
colocou-o na rua, em meio às pessoas que, embora distantes das discus- Universidade Federal de
sões acadêmico-filosóficas, mostravam-se preocupadas com a própria Uberlândia (UFU)
existência. madanelo@unimep.br
Nascido em 1905, Sartre foi filho de um século (in)tenso até a me-
dula, em que as contradições imanentes à condição humana produziram SÍLVIO GALLO
movimentos instauradores de rupturas sociais. Emergiram das crises da- Universidade Estadual de
quele período situações que produziram movimentos sociais importan- Campinas (Unicamp)
tes, como a Revolução Russa, mas também projetos políticos que leva- gallo@unicamp.br
ram a humanidade a duas guerras mundiais. Distante daquela revolução,
mas carnalmente próximo dessas guerras, Sartre viveu o drama de pre-
senciar a Europa e o projeto de uma civilização próspera – tese tão apre-
goada no final do século XIX e início do XX – implodirem a partir do pró-
prio umbigo.
O momento histórico de uma Europa duplamente destruída, mui-
to menos em sua dimensão material, mas especialmente nas vidas coti-
dianas de pessoas comuns, é particularmente profícuo às teses existen-
cialistas de Sartre. Conceitos importantes na filosofia sartriana – como
facticidade, liberdade, projeto e situação – encontram, no drama exis-
tencial do sujeito europeu burguês que presencia a destruição de seu
mundo, o cenário para o seu desenvolvimento. Peças de teatro como Ba-
ríona e As Moscas retratam, por meio desses conceitos e com linguagem

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camuflada para despistar a censura nazista, a situação da França ocupada


e subjugada pelas tropas alemãs.
Sartre dedicou-se à filosofia, sobretudo à metafísica e à ética, bem
como à antropologia, trabalhando no contexto do referencial teórico-
metodológico da fenomenologia. Influenciado por Husserl, o fundador
do método fenomenológico, levou às últimas conseqüências o princípio
de intencionalidade da consciência, instituindo a tese da nadificação da
consciência em oposição à substancialização da consciência, promovida
pelo conceito husserliano de ego transcendental. Com uma perspectiva
bastante original no que tange à estrutura da consciência arquitetada na
dualidade da consciência reflexiva e pré-reflexiva, o chamado Sartre fe-
nomenólogo propõe uma saída ao problema de a regressão ao infinito da
consciência ser consciente de que é reflexiva do mundo. Ao apresentar a
consciência pré-reflexiva – intencional, portanto – como condição da re-
flexão sobre o mundo, estanca essa regressão ao infinito, já que nada há
antes dessa consciência pré-reflexiva.
Após a Segunda Guerra Mundial, volta-se para o problema da his-
tória, num movimento que o aproxima do marxismo. Começa, então, o
desenvolvimento de seu projeto de junção teórica do existencialismo
com o marxismo, como um novo ferramental teórico na compreensão
tanto do ser humano, como um ser individual, quanto do sujeito inserido
numa coletividade que se encontra nos meandros da história. Esse pro-
jeto culmina com a produção da obra Crítica da Razão Dialética, na dé-
cada de 1960, além de inúmeros artigos sobre suas visitas à União Sovié-
tica e à Cuba.
Afora a sua dedicação à filosofia, Sartre foi também um importante
literato do século passado, tendo se dedicado a escrever romances, nove-
las e diversas peças teatrais – que ele mesmo montou e dirigiu –, além da
obra Freud além da Alma, base para o roteiro de filme com o mesmo tí-
tulo. Escreveu ainda diversas críticas literárias, depois organizadas e pu-
blicadas nos dez volumes intitulados Situations.
Pode-se classificar Sartre como um pensador multitemático. Como
ficou expresso anteriormente, ele transitou por diversas áreas das ciências
humanas: com a filosofia, pela vertente fenomenológica e marxista; pela li-
teratura, com romances como A Náusea e Caminhos da Liberdade; pelo te-
atro, com a peça Entre Quatro Paredes, entre inúmeras outras. Produziu es-
tudos biográficos sobre Genet e Flaubert, além de diversos comentários
sobre literatura, música e cinema.
Não tendo sido um filósofo acadêmico (jamais trabalhou na uni-
versidade francesa, apenas um curto período como professor de liceu),
tornou-se um fenômeno de mídia, sempre presente nos jornais franceses,
por exemplo, na ocasião de sua influência marcante no movimento estu-
dantil francês, em meados da década de 1960. Foi um dos responsáveis
pela fundação da revista de esquerda Les Temps Modernes. Laureado com

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o Prêmio Nobel de Literatura, recusou-se a recebê-lo, por considerá-lo


um empreendimento burguês e imperialista.
Na UNIMEP, a obra de Sartre tem sido foco de análise de uma série
de projetos de pesquisa, financiados pelo Fundo de Apoio à Pesquisa
(FAP) da Universidade e pelo CNPq, entre 1999 e 2005. Desenvolvidos
pelos professores Márcio Danelon e Sílvio Gallo, contaram com vários
bolsistas de iniciação científica da Filosofia e de cursos afins. Da Licen-
ciatura em Filosofia partiu também a iniciativa de propor à revista Im-
pulso este número temático. Trata-se de fato de uma política, presente no
curso de Filosofia, de buscar parcerias, no interior da universidade e em
espaços externos a ela, com o objetivo de consolidar uma cultura filosó-
fica na UNIMEP.
Já compromissada com uma tradição de publicação de temas filosó-
ficos – como os números temáticos sobre Freud, por conta do centenário
de publicação da obra Interpretação dos Sonhos, sobre Nietzsche, em vir-
tude dos cem anos de sua morte, e sobre Kant, pelos dois séculos de seu
nascimento – e inspirada na obra deste pensador multitemático, a revista
Impulso apresenta este número em comemoração ao centenário de nas-
cimento de Jean-Paul Sartre.
Esta edição da Impulso traz estudos sobre os diferentes temas abor-
dados na trajetória intelectual do filósofo francês, com artigos sobre sua
filosofia (tanto na fase existencialista quanto na marxista, discutindo in-
clusive a pertinência de tal distinção), sua posição política, sua literatura,
suas relações com a música e sua viagem ao Brasil. Merece ainda especial
destaque a publicação de uma entrevista concedida pelo filósofo, já ao fi-
nal de sua vida, comentando suas concepções políticas e os aspectos éti-
cos do anarquismo. Reúnem-se aqui textos escritos por pesquisadores da
obra de Sartre, brasileiros e estrangeiros. A todos, os nossos agradeci-
mentos por terem respondido ao nosso convite.

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Nota Biográfica
BIOGRAPHICAL NOTE* 1

JEAN-PAUL SARTRE
Paris, 21 de junho de 1905 / 15 de abril de 1980

“Velar nesta noite sobre todos os fronts da inteligência” (segundo


Audiberti).12 Sartre foi, sem dúvida, durante o século passado, como o di-
zia F. Mauriac, o contemporâneo capital, aquele que é encontrado em to-
das as encruzilhadas da cultura. Dedicado incansavelmente à escrita desde
a infância, ideologicamente criador, ele representa esse exemplo único de
um homem que construiu, ao mesmo tempo, uma grande obra literária
e uma intensa produção filosófica, com base em sua existência pessoal e
sob o signo da liberdade. A inteira obra em sua diversidade está marcada
por essa coerência, sem que se possa falar de sistema. Sartre praticou qua-
se todos os gêneros de escrita: ficção, filosofia, teatro, biografia, autobio-
grafia, ensaios de todos os tipos, cadernos de anotações, jornalismo, cor-
respondência... e se engajou forte e convictamente nos grandes debates
de seu tempo. Num plano geral, a comparação com Voltaire (sugerida
pelo general De Gaulle) ou com Victor Hugo não é incongruente.
Seu pai, oficial da marinha, faleceu prematuramente. Sartre foi MICHEL RYBALKA
educado pela mãe e pelo avô, o qual fazia parte da família Schweitzer. Washington University in
Durante os anos de estudos no Liceu Henri-IV (Henrique IV) e, depois, St. Louis (WUSTL)
m.rybalka@wanadoo.fr
na escola normal superior, Sartre liga-se a seus pequenos companheiros
(petits camarades) Paul Nizan e Raymond Aron – que constituem tam-
bém o objeto de uma comemoração nacional – e se encontra com Mau-
rice Merleau-Ponty. Em 1929, tem uma aproximação capital com Simo-
ne de Beauvoir e é recebido pela primeira vez no círculo filosófico. Em
seguida, constitui, ao redor de si e de Simone de Beauvoir, uma família,
da qual farão parte, entre outros, as irmãs Kosakiewicz, Jacques-Laurent
Bost, Michelle Vian e Arlette Elkaïm (que se tornará sua filha adotiva).
Convocado pelo Exército, em setembro de 1939, foi feito prisioneiro
em junho do ano seguinte. Após o retorno do cativeiro, funda o grupo
Socialisme et Liberté (Socialismo e Liberdade) e se engaja na resistência
intelectual. Mais tarde, buscando uma terceira via entre gaulismo e co-
munismo, cria um partido, o Rassemblement Démocratique Révoluti-
onnaire (União Democrática Revolucionária), que não teve êxito.
Nos anos 1940, aproxima-se de Albert Camus, com o qual, sob a
irrupção da Guerra Fria, rompe, em 1952, de modo estrondoso, antes de

*1 Adaptado, com a autorização do autor, do site <http://www.jpsartre.org/article.php3?id_article=12>.


Tradução do francês: FRANCISCO COCK FONTANELLA (UNIMEP/SP).
1
2 Nota do Editor (N. E.): Jacques Audiberti (1899-1965), escritor e dramaturgo francês.

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se separar também de Merleau-Ponty. Seis anos mais tarde, opõe-se à che-


gada do general De Gaulle ao poder e denuncia as torturas na Argélia. As-
sina, em 1960, o Manifesto dos 121 e, quatro anos depois, tendo publi-
cado Les Mots (As Palavras), recusa o prêmio Nobel de Literatura. Parti-
cipa dos acontecimentos de maio de 1968 e, durante algum tempo, en-
coraja os movimentos esquerdistas. Seus últimos anos foram marcados
por uma cegueira crescente e pela enfermidade. Assim, não pôde mais se
exprimir, a não ser por entrevistas. Sua morte, causada por edema pulmo-
nar, aconteceu em 15 de abril de 1980. Seu cortejo fúnebre foi seguido, em
Paris, por cerca de 50 mil pessoas. Vários volumes importantes, particu-
larmente os “Cadernos de anotações da guerra bizarra” e a correspon-
dência com Simone de Beauvoir, sem contar o curto, mas precioso Vérité
et Existence (Verdade e Existência), foram publicados após a sua morte.
Ataques virulentos atribuíram incansavelmente a Sartre erros polí-
ticos. Entretanto, ele permanece o autor francês mais estudado e comen-
tado de nossa época. Roland Barthes dizia ser necessário tomar o trem de
Sartre e, bem recentemente, escritores como Bernard-Henri Lévy, Jac-
ques Derrida, Julia Kristeva, Alain Robbe-Grillet e Philippe Sollers ma-
nifestaram interesse à sua obra. Textos de Sartre, em bom número, tor-
naram-se clássicos. Em literatura: La Nausée, Le Mur e Les Mots (A Náu-
sea, O Muro e As Palavras); em filosofia: La Transcendance de L’Ego,
L’Être et le Néant e Critique de la Raison Dialectique (A Transcendência do
Ego, O Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética). Huis Clos (A Portas
Fechadas) teve sucesso excepcional e foi encenado milhares de vezes, ao
passo que peças como Les Mouches (As Moscas) e Les Mains Sales (As
Mãos Sujas) continuam freqüentemente reapresentadas. A mise en scène
por D. Mesguich mostrou a grande força teatral de Le Diable et le Bon
Dieu (O Diabo e o Bom Deus) e é possível descobrir, em edição da
Pléiade, a peça teatral Le Mystère de Noël, Bariona (O Mistério de Natal,
Bariona), composta Sartre durante seu cativeiro na Alemanha. O estudo
sobre Flaubert, L’Idiot de la Famille (O Idiota da Família), é de grande
riqueza, mas permanece como um continente a ser explorado, por causa
de suas dimensões. Fazemos ainda menção especial ao conto de fadas “Le
chasseur d’âmes” (“O caçador de almas”), que Sartre inseriu em seu ro-
mance juvenil Une Défaite (Uma Desfeita).
Simplificando, podem-se distinguir três grandes períodos na evolu-
ção de Sartre. Até 1939, ele se vê como o homem solitário em sua liber-
dade, na sua existência diante das coisas e das imagens. Influenciado por
Husserl e Heidegger, descobre a fenomenologia. Porém, seguindo a tra-
dição de seu país e se aproveitando do lado existencial da língua francesa
(visível, por exemplo, na forte diferença gramatical entre pessoa e objeto),
ele adapta a fenomenologia numa filosofia mais pública e aberta: o exis-
tencialismo. Coloca, então, o acento na existência individual, considerada
irredutível, na realidade humana e no vivido hic et nunc (aqui e agora).
Desde 1939 até 1968, Sartre aborda os problemas do indivíduo dian-
te do grupo e proclama a necessidade do engajamento: “é preciso fazer al-

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guma coisa daquilo que os outros fizeram de nós”. Durante esse período,
que pode ser definido como o da igualdade, torna-se o representante do
existencialismo francês em todo o mundo e empreende uma série de vi-
agens: primeiro, aos Estados Unidos, depois, a URSS, China, Brasil, Japão,
Oriente Médio etc. Assume posturas cada vez mais políticas e chega mes-
mo a acompanhar posições do partido comunista, de 1952 a 1956, rejei-
tando-as, em seguida, sem hesitação. Lê Marx e Freud, escreve biografias
(Baudelaire, Genet, Mallarmé) e começa, ao mesmo tempo, seu estudo
sobre Flaubert e sua autobiografia. Opõe-se energicamente às guerras da
Indochina, da Argélia e do Vietnã. Para ele, o engajamento torna-se tarefa
permanente, assumindo-a com todos os instrumentos de protesto: ma-
nifestos, apelos, petições, declarações públicas e manifestações de rua.
A partir de 1968, surge com uma filosofia da fraternidade, confir-
mada em seus últimos entretenimentos com Benny Lévy, em L’Espoir
Maintenant (A Esperança Agora), que permanece, porém, em grande par-
te não articulada. Assim, Sartre terá seguido a evolução inscrita na divisa
da República Francesa: Liberté, Égalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade,
Fraternidade). Seu existencialismo é uma estética-filosofia em movimen-
to para tempos de crise, com pontos comuns com o barroco, o roman-
tismo e, nos dias de hoje, o pós-modernismo – contrário, desse modo,
aos períodos da ordem, ou seja, o classicismo e o estruturalismo. Sartre
não renunciou a um profundo pessimismo: “Somos sub-homens à pro-
cura de nossa humanidade”, nos diz. Esse pessimismo, entretanto, não
exclui o realismo (por exemplo, aquele da famosa frase: “O inferno são
os outros”) e dá lugar à esperança. São testemunhos disso: o seu ativismo
incessante em favor dos direitos humanos e seus textos sobre a questão
judaica, negritude (Orfeu Negro), descolonização, Terceiro Mundo, o
problema basco, política etc. Por outro lado, sua colaboração com Simo-
ne de Beauvoir o coloca em relação com o movimento feminista. Em
2005, uma grande exposição na Bibliothèque Nationale e uma quinzena
de colóquios na França e no estrangeiro buscam acentuar a contribuição
histórica de Sartre e discernir quais são as perspectivas abertas por sua
obra para melhor compreendermos nossa pós-modernidade.32

Dados do autor
Doutor pela Universidade da Califórnia, Los Angeles, e
professor de literatura francesa na Washington
University. É o principal curador dos escritos de Sartre,
juntamente com Michel Contat, com quem, também,
escreveu e organizou a obra Les Ecrits de Sartre pela
Editora Gallimard, traduzida para diversas línguas.

Recebimento: 6/abr./05
Aprovado: 3/jun./05

23 A respeito dessas atividades, cf. o site <www.jpsartre.org>.

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Indivíduo e Totalização:
a dialética e seu resto
INDIVIDUAL AND TOTALIZATION: DIALECTIC
AND ITS REST* 1
Resumo Bernard-Henri Lévy afirma, em Le Siècle de Sartre, a existência de dois
Sartres (um emergindo com a filosofia do sujeito, em La Transcendence de l’Ego
e L’Être et le Néant; outro advindo da descoberta da história e da produção da
Critique de la Raison Dialectique), criticando esse segundo e a dimensão dialética
de seu pensamento, caracterizada na tese de que a Critique de la Raison
Dialectique “é a falência mais relutante da história da filosofia”. Tais argumentos
justamente são discutidos neste texto, na tentativa de transcendê-los, apontando
a complexidade dialética do pensamento sartriano. Apresenta-se, assim, uma
interpretação de que os temas indivíduo/totalização têm, na concepção de Sartre,
desde o começo, a mesma oscilação, se aprofundando e repartindo, sem,
contudo, sofrer qualquer mutação radical. Por fim, propõe-se, contra a dualidade
filosófica de Sartre defendida por Lévy, o argumento da dialética conceitual no
pensamento sartriano, ou um só Sartre – certamente contraditório (portanto, em
equilíbrio instável) e que faz ouvir seus argumentos sobre, ao mesmo tempo, a
singularidade do universal e a universalização do particular.
Palavras-chave DIALÉTICA – HISTÓRIA – SARTRE – SUJEITO – TOTALIZAÇÃO – JULIETTE SIMONT
UNIVERSAL. Université Libre de
Bruxelles (ULB)
jsimont@ulb.ac.be
Abstract Bernard-Henri Lévi asserts, in Le Siècle de Sartre, the existence of two
Sartres (one emerging with the philosophy of the subject, in La Transcendence
de l’Ego and L’Être et Le Néant; and another arising from the discovery of
history and production of Critique de la Raison Dialectique), criticizing the
latter and the dialectical dimension of his thought, characterized in the idea that
the Critique de la Raison Dialectique “is the most reluctant failure of the history
of Philosophy”. Such arguments are discussed in this article, in an attempt to
transcend them, pointing out the dialectic complexity of Sartrian thought. Thus,
it is presented an interpretation that the themes of individual/totalization have,
in Satre’s conception, since the beginning, the same oscillation, deepening and
dividing, without, nevertheless, suffering any radical mutation. Finally, it is
proposed, against de philosophical duality of Sartre defended by Lévy, the
argument of the conceptual dialectic in Sartrian thinking, or just one Sartre –
certainly conflicting (thus, in an unstable balance) and that makes his arguments
heard, at the same time, about the singularity of the universal and the
universalization of the particular.
Keywords DIALECTIC – HISTORY – SARTRE – SUBJECT – TOTALIZATION –
UNIVERSAL

*1 Tradução do francês (Individu et Totalisation: la dialectique et son reste): FRANCISCO COCK FONTA-
NELLA (UNIMEP/SP).

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N
osso tempo gosta de escandir a passagem do tempo.
Este ano, repetimos, Sartre teria completado seu cen-
tésimo aniversário natalício. Faleceu há 25 anos. Tam-
bém ressuscitou faz cinco: na passagem do milênio, em
janeiro de 2000, o livro de Bernard-Henri Lévy1 contra-
dizia a famosa predição de Foucault (“O século será de-
leuziano”) e defendia, com ímpeto e talento filosóficos
cheios de sedução, que o século passado havia sido o de
Sartre. Fomos, então, seduzidos, mas também tomados por uma perple-
xidade considerável: é que nós, sartrianos, aprendíamos junto com a
ressurreição de Sartre o longo eclipse ao qual ele acabava de dar fim. Se res-
suscitava com estrondo, é porque “estivera morto”. Ingenuamente não nos
tínhamos dado conta disso. Para a minha geração, que não o conhecera vi-
vo, no sentido empírico do termo – pois, nessa época, não estávamos em
idade de filosofar, ou quase não –, ele não tinha mesmo estado jamais tão
vivo quanto depois de sua morte: descobríamos, com efeito, graças ao tra-
balho de Arlette Elkaïm-Sartre e de alguns outros, novos conjuntos mas-
sivos de textos. A obra póstuma, imensa e multiforme, fazia nascer um
novo dia para os livros publicados pelo próprio Sartre, esclarecia sua gê-
nese, permitia traçar entre eles continuidades mais refinadas e diferenciá-
los por variações e tensões mais precisas. O tempo da filosofia, vida inin-
terrupta do sentido, usando outras palavras, não coincidia com os fortes
motes com que a ocasião nos assaltava: morte empírica de Sartre, morte
simbólica de Sartre, ressurreição e retorno de Sartre... Não importa! O sé-
culo de Sartre era bem-vindo e em mais de um aspecto sacudia salutarmen-
te nosso repouso, talvez demasiado pacífico, no reino dos conceitos.
Amei o livro de Bernard-Henri Lévy, escrevi em outro lugar.2 Mas
há uma dimensão do pensamento de Sartre que esse livro antes mata do
que vivifica: a dimensão dialética. Lévy não se desliga dela e a repetiu bem
recentemente: a Crítica da Razão Dialética “é a falência mais relutante da
história da filosofia”.3 É esse diagnóstico peremptório que eu gostaria de
discutir aqui.
SINGULARIDADE DO UNIVERSAL, UNIVERSALIZAÇÃO DO SINGULAR
O penhor dialético é, por excelência, a relação do indivíduo à tota-
lização. Sartre, desde que a historicidade se lhe impôs, isto é, desde a
guerra de 40-45, manifestou a ambição de pensar juntamente a liberdade
individual e a experiência coletiva da história, sem renunciar a nenhum
dos dois termos. A historicidade é, a princípio, a consciência de ser arre-
batado com os outros num período de agitações; dito de outro modo, a
consciência de que a existência individual é “governada até os mínimos
detalhes por forças obscuras e coletivas”.4 No entanto, essa noção de
impotência revela-se já uma superação, pelo menos possível, da impotên-

1 LÉVY, 2000.
2 SIMONT, 2000.
3 LE POINT, n. 1.687, 13/jan./05, p. 138.
4 “Qu’est-ce que la littérature?”. In: SARTRE, 1999, p. 227.

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cia, da qual ela é consciência. E Sartre martela, cava uma linha de fuga no conceito universal que
tanto quanto o nós, que, num primeiro momen- ele pretende ultrapassar, exatamente como no ar-
to, a constatação de despossessão coletiva, o eu, o gumento do mentiroso introduz-se algo indizível,
meu, são retomada e assunção: “Se estou mobili- pelo fato de aquele que o sustenta pertencer ao
zado numa guerra, essa guerra é minha guerra”.5 conjunto por ele visado.9 Eis uma constante da
Quanto à relação entre indivíduo e totali- obra, encontrada bem mais tarde no outro extre-
zação histórica, a tese de Bernard-Henri Lévy, mo, no terceiro tomo de O Idiota da Família: im-
resumida grosseiramente, parece-me coincidir possível, diz Sartre, falar de uma História da Hu-
com seu conceito geral dos dois Sartres: o jo- manidade como história de um mesmo sujeito. A
vem, o bom era o Sartre individualista, que, na verdade é que a Humanidade “não existe”; “aqui-
mesma proporção da preponderância que ele re- lo que existe é uma série infinita, cuja lei é a re-
conhecia à individualidade, compreendia a histó- corrência, definida precisamente por esses ter-
ria de modo pessimista e cético, como “inter- mos: o homem é o filho do homem”.10 Além dis-
minável e amplamente insensata”.6 O Sartre ma- so, relendo-se por inteiro a passagem das Questões
duro, o da Crítica, o mau, cujos primeiros deli- de Método, da qual extraem-se as citações que aca-
neamentos podiam ser decifrados desde os bo de evocar, percebe-se que Sartre não está se ex-
Cadernos para uma Moral, é o Sartre que cons- pressando como hegeliano, tornando suas as ca-
tata ter falhado quanto a Hegel, revirando, con- racterísticas do “sistema”, e sim que ele nos fala de
seqüentemente, todo o dispositivo: a História, Hegel, e de modo bastante descritivo.
de agora em diante decifrada de maneira otimis- A respeito de Hegel, ao qual ele continua a
ta, tem um fim, no duplo sentido da palavra: o opor Kierkegaard, que, longe de se achar integra-
teleológico de um objetivo e o conclusivo de um do sem remédio à totalização suprema, prosse-
término. Esse fim (nos dois sentidos do termo) gue sendo uma alternativa, como Hugo, irre-
é o encantamento da reconciliação e os indivídu- cuperável em sua subjetividade: “Kierkegaard
os, de agora em diante, não possuem outro des- tem razão contra Hegel, tanto quanto Hegel
tino senão o de se integrar ao processo e se tem razão contra Kierkegaard”.11 Dá-se o mes-
apressar em realizá-la. Nessa perspectiva, Lévy mo em “O universal singular”: Sartre sugere re-
cita uma página das Questões de Método em que, conciliar Kierkegaard e Marx, e Lévy conclui que
segundo ele, Sartre assume que “somos integra- “claramente significa reinscrever o primeiro no
dos vivos à totalização suprema”, que “nossos espaço do saber absoluto e dar, pois, ‘numa boa’,
despedaçamentos, as contradições que causam a razão a Hegel contra ele”.12 Essa orientação
nossa infelicidade, são momentos que se colo- unívoca e integradora da dialética é tão clara as-
cam para serem superados”.7 Na concepção de sim? A última palavra do texto, aqui também,
Sartre, então, as maiúsculas se imporiam, espe- possui antes um sentido duplo, ou dois gumes:
cialmente os grandes Hs, aqueles dos quais agora “singularidade do universal e universalização do
estão providos a História e a Humanidade – “é o singular”.13 Esse espaço de indizibilidade, essa
parti pris de o homem contra os homens”.8 reversibilidade do arrazoado é precisamente
Ora, as coisas não são tão simples assim. aquilo pelo qual me parece que Sartre não aban-
Desde os Cadernos por uma Moral, Sartre insiste donou “as dialéticas decapitadas”14 e os torni-
na impossibilidade de falar da Humanidade, ou da quetes da sua juventude em proveito de uma
espécie humana, em tanto que universal: é que o Aufhebung triunfal, como sustenta Lévy. Indiví-
“definidor faz parte do definido” e tal inclusão 9 SARTRE, 1983, p. 73.
10 Idem, 1988b, p. 433.
5 SARTRE, 1994, p. 639. 11 Idem, 1986, p. 24.
6 LÉVY, 2000, p. 578. 12 LÉVY, 2000, p. 573.
7 SARTRE, 1986 e 1985a, p. 22. 13 “L’universel singulier”. In: SARTRE, 1972, p. 190.
8 LÉVY, 2000, p. 529. 14 “Merleau-Ponty”. In: idem, 1964, p. 270.

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duo/totalização, na minha interpretação, é desde autonomia, uma lucidez atemporal e sem ancora-
o começo no pensamento de Sartre a mesma os- gem; esse por si está situado, inclinado pelas cur-
cilação, que nada faz senão precisar-se, aprofun- vaturas de um mundo que não escolheu, onde
dar-se, repartir-se diferenciadamente às vezes, existe com tal corpo, em meio a tais complexos
mas sem jamais sofrer mutação radical. de utensílios e envolvido por certas circunstâncias
Gostaria de abordar essa indivisibilidade em históricas – parisiense para os ocupantes alemães,
dois níveis: primeiro, o do “não importa quem”, europeu para os asiáticos e negros, e patrão para
na medida em que é envolvido pela História e, ao os trabalhadores, por exemplo.
mesmo tempo, a ultrapassa, a totaliza e, por isso Por sua vez, Lévy diria, sem dúvida: certa-
mesmo, a destotaliza. Depois, o do indivíduo de mente, mas naquela época do pensamento sartri-
exceção, no qual a História se envolve e se tota- ano, a situação não era outra que não a face da
liza ela própria, tornando-o, por essa razão, ex- sombra da liberdade, sua parte de non-sens (sem
cepcional e se fazendo acontecer por intermédio sentido), e ele não dependia senão de esclarecê-la,
dele, segundo o movimento chamado por Sartre, de lhe dar sentido e, por isso mesmo, de se livrar
a partir da Crítica, de encarnação, e da qual Stalin dela. Uma situação como tela de fundo da liber-
e Flaubert constituem dois exemplos distintos. dade individual, como guarda-jóias da sua liber-
Tratando-se de “não importa quem” ou do tação. Com efeito, é dessa dimensão que dá tes-
“grande homem”, uma dialética se entretece for- temunho a fórmula maravilhosamente provocan-
temente, podendo anunciar-se da seguinte forma: te que abre “A república do silêncio”: “Jamais fo-
o homem se faz fazendo a história que o faz. mos mais livres que sob a ocupação alemã”.15
Gostaria de mostrar que esse tipo de fórmula cir- Acontece que a insuportável pressão histórica co-
cular, que formiga na obra de Sartre, caracteriza- locava mais agudamente a questão da liberdade,
se justamente por isso: ela jamais se torna rotun- de modo que “nós estávamos a bordo do conhe-
da – como exigiria a dialética de tipo hegeliana, cimento, o mais profundo que o homem pode ter
que lhe imputa Lévy. Ela comporta, desde sempre de si mesmo”.16 Entretanto, a outra face da rela-
e para sempre, uma tensão indizível, resto e resí- ção está também presente, não mais a de rompi-
duo inassimiláveis, falsa reciprocidade indutora mento e lucidez, mas a de colagem desesperado-
de deformações. ra, de compromisso inevitável – que a Crítica da
Razão Dialética irá mais tarde explorar sob a de-
SOB A OCUPAÇÃO, UM HOMEM QUE VALE POR
TODOS E QUE VALE POR NÃO IMPORTA QUEM signação de contrafinalidade e de prático-inerte.
Ao falar de “não importa quem”, estamos Em “Paris sob a Ocupação”, essa idéia é ame-
nos referindo a Sartre sob a Ocupação. Esse Sar- drontadora: “Não podíamos dar um passo, nem
tre ainda gloriosamente individualista (porque os comer, nem mesmo respirar, sem nos tornar
efeitos do calor humanista, que, segundo Lévy, cúmplices do ocupante... A menor das nossas ati-
ele reencontra no Stalag não se manifestam ime- vidades servia ao inimigo, que se tinha abatido so-
diatamente: são uma bomba de efeito retardado, bre nós; colava suas ventosas em nossa pele e vi-
um vírus de longa incubação). Esse Sartre escri- via em simbiose conosco. Não se formava em
tor de um grandioso e estrondoso “carnaval do nossas veias uma gota de sangue, sem que ele não
espírito”, intitulado O Ser e o Nada. Esse Sartre tomasse sua parte”.17
já nos falava de liberdade situada, pois, segundo Essas duas dimensões são verdadeiras de
sua própria interpretação, a irrupção súbita da maneira semelhante: 1. a liberdade do indivíduo
historicidade o motivou a se afastar da influência revelava-se exemplarmente a ela mesma, nessa si-
husserliana e da fenomenologia pura, a assimilar tuação de opressão exacerbada; 2. o inimigo avan-
Heidegger e escrever o tratado de ontologia
15 “La république du silence”. In: SARTRE, 1999, p. 11.
fenomenológica. É normal que o por si, do qual 16 Ibid., p. 12.
trata a mencionada ontologia, não seja uma pura 17 “Paris sous L’Occupation”. In: idem, 2003, p. 36.

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çava mascarado; a opressão, invisível, não aparen- vidual, a uma práxis constituinte, no caso, a de
te e difusa tirava-lhes o sentido das ações mais Stalin, o “soberano”.
anódinas, mais embrionárias, e o simples fato de A defasagem e a inadequação do livre e do
sobreviver equivalia a colaborar. Em outras pala- necessário, do individual e da totalização, do lú-
vras, o indivíduo é envolvente e envolvido, a his- cido e do alienado podem reduzir-se por essa si-
tória é envolvida e envolvente, sem que se possa tuação de integração máxima, pela unidade vo-
decidir sobre a orientação dessa relação. Retomar luntarista, que vem de algo alto e exige que o
as duas dimensões num só movimento é dizer o campo prático de cada um seja a especificação do
seguinte: não há situação senão para uma liberda- campo total e que a liberdade individual (resis-
de totalizante, que dela se arranca, mas não há tente ou aderente, maltratada ou encorajada pelo
totalização a não ser de uma situação multidi- soberano) defina-se necessariamente em relação
mensional, fibrosa (retomando um termo de Sar- ao plano? O longo desenvolvimento consagrado
tre), com suas inércias, seus pesadumes, sua por Sartre a Stalin visa, ao contrário, mostrar que
sedimentação de escolhas passadas, que curva, quanto mais a dialética é aprisionada, mais ela é
cola e desvia a liberdade, tanto quanto a suscita. furada. A associação do grande homem, ou do
grande monstro, à época que ele involucra, é de
O SOCIALISMO NUM SÓ PAÍS
incompletude, deformação, reciprocidade falsa,
Deixemos os qüidans aprisionados pelo
exatamente como aquele do “não importa quem”
curso do mundo e que, ao mesmo tempo, o do-
para a conjuntura histórica que o envolve. Por
minam, jamais seguros de saber exatamente
que Stalin antes que Trotsky? Essa questão não
quando o dominam e quando são por ele domi-
fica sem resposta, sem resposta compreensível.
nados, talvez ocupados em colaborar, justamente Stalin não é um acidente e não se pode dizer que,
quando se acreditam resistentes (como os em- na situação a que chegou, a revolução não exigia,
pregados das linhas férreas, mencionados por para fechar sua unidade, nada diferente, nada de
Sartre, em “Paris sob a Ocupação”, e cujo “zelo mais específico que um homem (qualquer que
em defender nosso material servia à causa ale- fosse ele), que um soberano indeterminado. As
mã”), oscilando sempre entre necessidade masca- circunstâncias (o isolamento da URSS, cercada
rada e liberdade soberana. E defrontemo-nos a pelo capitalismo, seu estado de subdesenvolvi-
uma outra configuração inteiramente diferente, mento etc.) requeriam, ao contrário, um tipo de
aquela em que a História por si só se envolve homem determinado, um militante oportunista e
num indivíduo, chamada indiferentemente por dogmático, penetrado pela peculiaridade da expe-
Sartre de sociedade diretorial ou ditatorial, nota- riência russa, antes que um intelectual radical e
damente a URSS do stalinismo e do slogan “O so- internacionalista.
cialismo em um só país”. Aqui, a relação do que Mas, nesse sentido, a ação dessa idiossin-
Sartre considera, na Crítica da Razão Dialética, crasia determinada sobre a história que o chama é
entre a dialética constituinte (a práxis individual) nela mesma indeterminada. Em outras palavras, o
e a dialética constituída (os conjuntos práticos, sobreacréscimo de necessidade e de unidade que
sem realidade ontológica própria, resultantes da um processo histórico em via de desagregação
imbricação da multiplicidade das práxis e da sua tenta se dar por intermédio de um indivíduo (ou,
inscrição na matéria trabalhada) parece inverter- o que dá no mesmo, a tomada que tal desagrega-
se. A práxis constituída, ou seja, o devir da revo- ção histórica provida de certas características ofe-
lução, ameaçado de recaída na serialidade, tenta rece a esse indivíduo dotado de vontade de a reu-
restituir uma unidade, “retornar à matriz que o nificar e conferir-lhe uma necessidade) não atinge
produziu”,18 isto é, à práxis constituinte ou indi- senão a contingência: “Stalin não é seu próprio
fundamento; sua facticidade o constitui como
18 Idem, 1985b, p. 224. um certo indivíduo entre outros, que não tira de

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si mesmo as razões de suas diferenças (em relação gular, elucidado depois da proto-história da pri-
aos outros); portanto, a práxis total de uma so- meira infância, que se pode compreender “o lia-
ciedade está penetrada, até as suas camadas mais me de interioridade orgânica retido como indis-
profundas, por essa contingência”.19 É a equação pensável, quando se diz de um escritor que ele ex-
pessoal de Stalin que o conduz aos comandos da pressa seu tempo”.23 Criado sem amor por uma
URSS (militante limitado, inculto e pragmático), mãe eficaz e frígida, que não o havia desejado, ob-
mas é também ela (na medida em que provém de jeto e não destino dos cuidados pelos quais cons-
tal infância, de tal meio) que, sedimentada num titui-se a relação primeira a outrem e ao mundo,
traço de caráter – a inflexibilidade, cujo propósito Flaubert carece da valorização fundamental que
primeiro e original não era promover a indus- torna possível a ação – e o projeto. E eis que, des-
trialização forçada de um país subdesenvolvido – de as origens, cai na passividade, no sentimento
, faz com que sua práxis “não possa ser adaptada desesperante da contingência, em poucas pala-
à sua tarefa, mas somente mais ou menos desa- vras, na desvalorização generalizada, que se tor-
daptada”. Stalin “faz demais ou nem tanto”; o fe- nará mais tarde, para o escritor maduro e ranco-
chamento efetivo da URSS “não exigia levar ao ab- roso, filho dessa primeira infância mal-amada, tal
surdo o isolamento cultural”;20 e “dez milhões de raiva universal do gênero humano, expressa em
toneladas de ferro fundido obtidos pela ameaça e Madame Bovary, e na qual a burguesia poderá di-
pelas medidas de coerção sangrentas (execuções, luir e exorcizar seu crime (“O autor e o leitor se
campos de concentração etc.) não são em ne- entendem como ladrões na feira; é que eles têm,
nhum caso comparáveis a dez milhões de tonela- um e outro, o mesmo cuidado: cada um quer es-
das de ferro fundido atingidas na mesma perspec- quecer e fazer esquecer uma história, destruindo
tiva e por um governo autoritário, mas sem a historicidade das sociedades humanas”).24
medidas coercitivas”.21 Desse modo, Stalin, o
A dialética é aqui absolutamente capciosa;
realizador implacável da integração, revela-se
não deixa escapar mais nada dos seus filamentos,
igualmente o resíduo inassimilável, o inepto resto
ramificando-se até os recônditos quase indizíveis
contingente que destotaliza a totalização pirami-
da existência para aí inserir a inteligibilidade na
dal da qual é o pico. Aqui também, no suposto
época e na compreensão que ela se dá de si mes-
cúmulo do fechamento, a dialética escapa.
CERTAS VIDAS QUEIMAM COMO SE FOSSEM O ma? Não. Aqui também há um elemento irredu-
NYLON; OUTRAS, COMO O CARVÃO QUE CHOCA tível da singularidade: por mais compreensível
SUAS CINZAS que seja essa última, por mais significante como
Nesse sentido, O Idiota da Família repre- expressão de sua época, por mais longe que se
senta um empreendimento mais radicalmente to- possa ir na resposta à questão “O que se pode sa-
talitário, se, com efeito, a infância de Stalin não ber de um homem hoje?” – com a qual Sartre ini-
devesse, segundo Sartre, ser levada em conta, ao cia O Idiota da Família –, a sua singularidade, en-
responder à questão “por que Stalin?”, se somen- tretanto, difere irredutivelmente da época em
te tivesse de se considerar, nessa perspectiva, o questão, e isso pelo regime próprio da sua tem-
“passado revolucionário da pessoa”, se a infância, poralização. A época, ou o todo, não difere por
em sua particularidade inassimilável, “separação natureza do indivíduo ou da parte (ela é, como
que se coloca por si”,22 era justamente o que ex- ele, finita, infinitamente finita, estilhaçada pela
pulsava Stalin de seu empreendimento de unifica- recorrência ou pelas generalizações, como foi as-
ção da época. Segundo Flaubert, ao contrário, é sinalada anteriormente). Daí uma dialética e uma
bem pelo sabor insubstituível de um vivido sin- relação recíproca; o indivíduo, como finitude,
19
age na perspectiva de sua morte ou contra ela
Ibid., p. 214.
20 Ibid., p. 233.
21 Ibid., p. 217. 23 Idem, 1988b, p. 420.
22 Ibid., p. 227. 24 Ibid., p. 426.

22 Impulso, Piracicaba, 16(41): 17-25, 2005


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(assume os limites do seu empreendimento ou, o ponto de partida, o menor possível e o mais
ao contrário, doa-se a seus sucessores, toma com desnudado, a certeza sensível; e a Ciência da Ló-
antecipação precauções para que ela continue gica, do que há de mais magro entre os enuncia-
post mortem); e a época não é outra coisa a não dos filosóficos, a palavra ser, ser puro sem nenhu-
ser o modo segundo o qual esses empreendi- ma determinação. Depois dessa fase tábula rasa,
mentos se mesclam e sua relação à sua limitação trata-se de construir, de dotar essa individualida-
não significa senão a confluência e a divergência de minimal de estruturas, as quais, sem modificar
dessas ações, senão os mortos que a perfuram e na mesma medida seu estatuto ontológico, de
os vivos que a continuam. nada lhe dão consistência – em poucas palavras,
Inversamente, como finitude fundada so- desdobrar as categorias do Ensaio de Ontologia
bre a finitude dos agentes históricos, ela [a dialé- Fenomenológica. Em seguida, cabe passar daí a
tica] possui, como temporalização mais vasta que outro extremo, ao universal, ainda que no estudo
a deles, uma singularidade a influir sobre eles, das condições de possibilidade da história: como
aliená-los, liberá-los ou sugerir-lhes um destino. compreender, em conseqüência, que a individua-
Uma vez que um indivíduo exprime sua época de lidade é a única realidade ontológica, que há, en-
maneira exemplarmente significante (como Flau- tretanto, conjuntos práticos em que as individuali-
bert), isso significa que a temporalização indivi- dades transbordam, se alienam, se perdem? En-
dual e a da época têm uma mesma curva. Porém, fim, a síntese: manter junto o mais individual da
não há razão para que essas temporalizações se individualidade – aquilo compreendido de mais
desenrolem ao mesmo tempo, nem no mesmo concreto, com base nas categorias ontológicas – e
ritmo. Flaubert foi, em razão da sua neurose sub- a dialética histórica. Dito em outros termos, pôr
jetiva, oráculo de uma neurose objetiva, tornada, em evidência como o gosto insubstituível de um
anos mais tarde, o pathos da época. Quando esse vivido – o de Flaubert – pode “assinar” a história.
pathos e essa época desaparecem na sua singulari- TRÊS TEMPOS DE MARCHA HEGELIANA:
A INDIVIDUALIDADE (TESE), A HISTÓRIA
dade (com o advento da Segunda República), ele
(ANTÍTESE), E A SUA CONCRETUDE RECÍPROCA –
lhes sobreviverá, e se sobreviverá, imbecil, conti- UM HOMEM, UMA ÉPOCA (SÍNTESE)
nuando a trajetória de uma temporalização desde Tal movimento, no entanto, é também pro-
já inútil e sem respondente. Essas acelerações, es- fundamente anti-hegeliano, porque sem ultrapas-
ses retardos, essas não-coincidências são aquilo sagem, e da qual todas as mediações não têm por
que faz a vida da dialética e, ao mesmo tempo, o sentido, finalmente, a não ser validar a tese, apro-
que a impede de se constituir em instância inte- fundando-a: o indivíduo sempre irredutível, irre-
gradora das individualidades, pois ela não é outra cuperável. Como se Sartre houvesse percorrido,
coisa que a inclinação de suas acelerações e de por sua própria conta, esse trajeto da verdade,
seus retardamentos. cujo princípio resume em O Idiota da Família: “A
EM TODO CASO, A DIALÉTICA FOGE, verdade não é inteligível senão ao termo de um
A INDIVIDUALIDADE RESISTE longo erro vagabundo; administrado desde o iní-
Era hegeliano o itinerário de Sartre? For- cio, não é senão um erro verdadeiro”.25 Em ou-
malmente poderia parecer que sim. Trata-se de tras palavras, será necessário produzir a inteligibi-
partir da individualidade, e de uma individualida- lidade da história, esse monstro, para então che-
de esvaziada de todos os pressupostos que a gar ao ponto de partida: a liberdade individual.
acompanham e a habitam comumente: a cons- EPITÁFIO A UM AMIGO DESAPARECIDO
ciência fenomenológica, esse nada, esse arranjo Um exemplo dessa história acontecida –
contingente em direção a um mundo igualmente hegeliana enquanto acontecida –, mas anti-hege-
contingente (A Transcendência do Ego, o artigo liana em seu teor próprio (inultrapassabilidade
sobre a intencionalidade e A Náusea). Desse mo-
do, A Fenomenologia do Espírito tomava por base 25 Idem, 1988a, p. 142.

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do indivíduo)? Voltemos à querela Sartre/Ca- nálise existencial, em O Ser e o Nada: tratava-se


mus a propósito de O Homem Revoltado, mo- aí de compreender a pessoa como totalidade, isto
mento emblemático, segundo Lévy.26 Sartre, de é, de jamais parar diante da facticidade dos dese-
acordo com Lévy, em sua “Resposta a Albert Ca- jos e das inclinações isoladas (meu amigo “gosta
mus”, não tem razão nem humana nem politica- de canoagem”29), mas de reencontrar “sob os as-
mente; são a arrogância e o desprezo que domi- pectos parciais e incompletos do sujeito a verda-
nam politicamente o dogmatismo militante, deira concreção, que não pode ser senão a tota-
além desse oportunismo de o fim justificando os lidade do seu élan em direção ao ser”.30 O gosto
meios, contra o qual precisamente foi escrito O pelas homenagens fúnebres e o gosto da canoa-
Homem Revoltado (é o que Camus chama de gem não são a mesma coisa?
rejeição do historicismo). Em contrapartida, ele Sartre talvez seja duplo. Partilhado, incapaz
tem razão metafisicamente: uma filosofia do não de, como indivíduo e totalização, escolher e,
revela-se mais propícia à revolta de uma filosofia quem sabe, de modo paradigmático naquele ano
do sim, um pensamento da antifysis é mais sub- de 1952, vê serem publicados tanto a “Resposta
versivo que um pensamento da feliz aquiescência a Albert Camus” e “Os comunistas e a paz” –
cósmica. A raiz do marronnier27 contra os ci- dois textos atordoantes e militantes, se tanto –,
prestes de Alger, a náusea e o decaimento morno como também o Santo Ginete, pelo seu teor, um
dos “viventes” contra os corpos das praias, sal- hino à libertação individual. No entanto, mesmo
picados de sal, dourados pela alegria do sol. E a quando duplo, é um, e sujeito a um devir, duran-
homenagem vibrante a Camus, escrita por Sartre te o qual os termos do despedaçamento se repar-
na ocasião da morte de seu amigo? Trata-se da tem diferentemente. Oito anos se passam, morre
marca, segundo Lévy, desse duplo Sartre: do pri- Camus e Sartre lhe escreve um epitáfio lumino-
meiro, que prossegue vivendo sob o segundo, no
so. Por quê? Ele tinha um gosto para esse gênero
segundo, no mau, no militante, que continua a
de exercício? O jovem Sartre não havia ainda
emitir em surdina uma amplidão diferente de
morrido e não inspirava remorsos no novo Sar-
ondas, faz-se entender imediatamente e faz calar
tre? Ou, outra hipótese, porque Sartre, durante
o outro Sartre. O primeiro Sartre renasce oito
esses oito anos, chegou, porque escreveu a Críti-
anos após a querela, na qual o segundo havia
ca da Razão Dialética, elaborou a tecnologia con-
adotado a pior das posturas dialéticas, e ressurge
ceitual, que lhe parecia faltar em O Homem Re-
num epitáfio, num desses epitáfios para o amigo
voltado. Porque essa técnica dos conceitos, du-
desaparecido, da qual tem “o segredo e o gos-
rante o seu engendramento, funde em razão a
to”.28 Reconhece, então, a Camus tudo aquilo
intuição de Camus.
que ele o havia recriminado cruel e injustamente,
oito anos antes: a lucidez, a pureza, a intransi- A história, essa entidade gigante, em pro-
gência, a exigência moral. veito da qual o militante quer se despossuir de si
mesmo, não existe. Em vão ela insiste, monstruo-
Para explicar essa reviravolta, não há outro
sa, inchada, desviante, ogra; em vão se metamor-
modelo que aquele proposto por Lévy, o dos
dois Sartres, das duas freqüências de emissão, foseia por meio de tantos e tantos avatares, não
que não cessam de se perturbar uma a outra? pode fazer que não seja unicamente da práxis in-
Esse segredo e esse gosto dos epitáfios para o ami- dividual em que ela busca sua consistência. E tal-
go não significam outra coisa a não ser qua- vez seja porque fez a prova conceitual da impos-
lificações que fazem sofrer, tratando-se de Sar- sibilidade do hiperorganismo, que Sartre está pre-
tre? Lembremos as páginas consagradas à psica- sentemente a ponto de ver com outros olhos as
proclamações veementes, às quais dedicava-se
26 LÉVY, 2000, p. 408s.
27 Nota do Tradutor (NT): espécia de castanheira. 29 SARTRE, 1994, p. 648.
28 LÉVY, 2000, p. 417. 30 Ibid., p. 649.

24 Impulso, Piracicaba, 16(41): 17-25, 2005


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oito anos antes: nessa piscina cheia de lama e de lhões de mortos aos quais a História não cessa de
sangue que é a História, deve-se mergulhar de fazer água e se destotalizar sem remédio, sobre
corpo e bens. Tatear a água com a ponta do pé, esses milhões de buracos que esburacam a His-
como faz Camus, é brincar de mocinha friorenta. tória e a impedem de jamais ser hegeliana.
Presentemente, Camus aparece como um símbo- Um só Sartre, certamente contraditório, em
lo, uma espécie de épura dessa individualidade equilíbrio perpetuamente instável sobre essa linha
irrecuperável, a qual nenhuma História poderá da crista na qual se falam, ao mesmo tempo, a sin-
superar. E se sua morte parece a Sartre um escân- gularidade do universal e a universalização do par-
dalo, não é somente por seu caráter acidental e ticular. Mas vítima de uma contradição que não
particular – um homem jovem é contrariado ab- cessa de se remodelar pela construção dos concei-
surdamente, uma desunião de amigos transfor- tos. Para retornar à verdade daquilo que, na juven-
ma-se repentinamente em destino, em separação tude de Sartre, era verdade administrada desde o
irrevogável –, e sim porque, no segundo tomo da princípio – portanto, erro verdadeiro –, só existe,
Crítica, no qual trabalha, terá refletido sobre a só importa a liberdade individual. E a de Camus
morte, “puro e simples déficit”,31 sobre esses mi- foi exemplar. Dizê-lo não é somente se compra-
zer num exercício de estilo, nem se abandonar aos
31 SARTRE, 1985b, p. 322. remorsos, na dor de uma perda por morte.

Referências Bibliográficas
LÉVY, B.-H. Le Siècle de Sartre. Paris: Grasset, 2000.
SARTRE, J.-P. Situations III. Paris: Gallimard, 2003.
______. Situations II. Paris: Gallimard, 1999.
______. L’Être et lê Néant. Paris: Gallimard, 1994.
______. L’Idiot de la Famille I. Paris: Gallimard, 1988a.
______. L’Idiot de la Famille III. Paris: Gallimard, 1988b.
______. Questions de Méthode. Paris: Gallimard, 1986.
______. Critique de la Raison Dialectique I. Paris: Gallimard, 1985a.
______. Critique de la Raison Dialectique II. Paris: Gallimard, 1985b.
______. Cahiers pour une Morale. Paris: Gallimard, 1983.
______. Situations IX. Paris: Gallimard, 1972.
______. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964.
SIMONT, J. “‘Siècles, voici mon siècle, solitaire….’.. Réflexions sur Le Siècle de Sartre de Bernard-Henri Lévy ”. Les
Temps Modernes, n. 608, mar./abr./maio, 2000.

Dados da autora
Doutora em filosofia e pesquisadora qualificada do
Fundo Nacional de Pesquisa Científica da Bélgica.
Autora de vários estudos consagrados ao
pensamento filosófico de Sartre publicados na
revista Les Temps Modernes. É autora, também, de
Jean-Paul Sartre. Un demi-siècle de liberté (Bruxelas:
De Boeck Université, 1998) e “Essai sur la quantité,
la qualité, la relation chez Kant, Hegel, Deleuze. Les
fleurs noires de la logique philosophique”.

Recebimento: 13/abr./05
Aprovado: 10/jun./05

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LUÍS ANTÔNIO
CONTATORI ROMANO
Literatura Popular: diálogos Faculdade Prudente
de Moraes (FPM)
com Sartre no Brasil contatori_romano@yahoo.com.br

POPULAR LITERATURE: DIALOGUES WITH


SARTRE IN BRAZIL
Resumo Este ensaio procura reconstituir a polifonia motivada pelas declarações
de Sartre sobre literatura popular e engajada, em algumas de suas comunicações
com intelectuais, estudantes e jornalistas, durante sua passagem pelo Brasil, em
1960.
Palavras-chave LITERATURA POPULAR – SARTRE – EXISTENCIALISMO – CRÍTICA
LITERÁRIA – TEORIA LITERÁRIA.

Abstract This essay attempts to reconstitute the polyphony motivated by the


declarations of Sartre on popular and engaged literature, in some of his
communications with intellectuals, students and journalists during his visit to
Brazil in 1960.
Keywords POPULAR LITERATURE – SARTRE – EXISTENTIALISM – LITERARY
CRITIQUE – LITERARY THEORY.

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INTRODUÇÃO

A
o propor um trabalho de doutorado, cujo objetivo era re-
constituir a passagem de Sartre e de Simone de Beauvoir
pelo Brasil, em 1960, deparei-me com um enorme volu-
me de material bibliográfico, sobretudo periódicos. Co-
mecei a pesquisa por arquivos da Unicamp e pela Biblio-
teca Mário de Andrade, em São Paulo. Depois ela se es-
tendeu por arquivos e bibliotecas do Rio de Janeiro, Re-
cife e Salvador. Mais de cem matérias jornalísticas foram
localizadas em periódicos da época, além de textos mais recentes, que
contribuíram para a tarefa de reconstituição, à luz projetada pelo tempo,
do significado dessa visita.
Dentre esse material jornalístico, alguns artigos de autores célebres,
como Benedito Nunes, Sábato Magaldi, Gilles Granger, Alceu Amoroso
Lima, Adolfo Casais Monteiro, José Guilherme Merquior, Gérard Le-
brun e Luiz Roberto Salinas Fortes, entre outros, discutem a fundo a re-
cepção no Brasil que tiveram o teatro, a literatura, a filosofia e as idéias
políticas do pensador francês. Outros desses textos constituem material
informativo sobre o itinerário de Sartre e de Simone de Beauvoir; os de-
mais contribuem para preservar a memória de suas atividades mundanas,
sendo, nesse sentido, essencialmente importantes crônicas de Nélson
Rodrigues para o jornal Última Hora, de Paulo Mendes Campos à revista
Manchete, de José Condé para o Correio da Manhã e de Mauritônio Mei-
ra para o Jornal do Brasil.
Talvez seja relevante destacar que o Brasil parecia exercer enorme
fascínio sobre o imaginário de Sartre e de Simone de Beauvoir, mesmo
antes de surgir a real oportunidade de viajarem ao País, entre 12 de agosto
e 21 de outubro de 1960. A viagem realizou-se a convite de Jorge Amado,
que programou uma série de atividades para o casal de intelectuais fran-
ceses no Brasil. Mas, como nada os prendia sem que o escolhessem, às ve-
zes fugiam das garras do cuidadoso cicerone. Por exemplo, Sartre aceitou
deslocar-se para Araraquara, onde, numa então pequena Faculdade de Fi-
losofia, fez sua única conferência no País sobre as relações entre existen-
cialismo e marxismo, motivada por uma pergunta do professor Fausto
Castilho. Ao se despedirem do cicerone Jorge Amado, viajaram solitários
para a Amazônia e retornaram a Recife, onde Sartre desejava reencontrar
uma recente e fugaz paixão brasileira, Cristina Tavares.
Na correspondência de Simone de Beauvoir ao escritor norte-ame-
ricano Nelson Algren, podemos encontrar uma amostra desse imaginário
sobre o Brasil. Em carta de 14 de dezembro de 1950, diante dos perigos
da Guerra Fria, ela considerava a possibilidade de viver aqui: “O Brasil,
opulento, onde se admira a cultura francesa, talvez fique meio neutro. Se-
ria um caso a considerar, como exílio”.1 Novamente, em 14 de janeiro de

1 BEAUVOIR, 2000, p. 383.

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1951, Simone escrevia sobre esse seu desejo: que nós pensamos, quando escrevemos um livro,
“Creio que no Brasil poderemos ganhar algum que poderemos realizar a concordância dos espíri-
dinheiro dando aulas, conferências etc., pois os tos (...), sejam eles estrangeiros ou apenas nacio-
brasileiros são ricos e muitos deles falam francês, nais, a respeito do que é dito, narrado, sobre a des-
crição psicológica ou social que existe no interior
mas sei que o começo seria difícil”.2 Esse ima-
do romance que o escritor fez, do mesmo modo
ginário, ao que tudo indica, nem sempre a reali-
que, por exemplo, nas ciências, uma lei científica,
dade encontrada no Brasil chegou a confirmar. experimentalmente provada, realiza a concórdia
O presente ensaio configura-se como um dos espíritos. (...) A ele (ao livro) não pode interes-
recorte em meio à profusão de atividades desses sar a realidade popular porque o povo já não mais
intelectuais franceses no Brasil para tratar de um existe na França. Existem meios, classes, subgrupos
dos temas mais debatidos por aqui, motivado por no interior das classes. Mas não existe povo. E nes-
declarações de Sartre: a proposta de uma literatu- tas condições, (...) a maneira de pôr os problemas
ra popular. Aliás, o pretexto de sua visita ao Brasil num romance, na França, ou a maneira mesma de
foi participar, a convite de Jorge Amado, do I escrever ou abordar certas questões, é sempre na
Congresso Brasileiro de Crítica e História Lite- base de um plano universal, como se existissem não
franceses, brasileiros, ingleses, mas um homem uni-
rária, que se realizou em Recife. Porém, a despei-
versal, em toda parte igual.3
to de ser esperado para a sessão de abertura, Sar-
tre apenas chegou para o fórum de encerramento. Sartre coloca à assistência uma questão so-
Além de sua participação durante esse congresso, bre a possibilidade de que no Brasil exista uma li-
o filósofo-literato procurou colocar em debate o teratura popular. Acreditava que aqui, diferente-
tema da literatura popular em conferências pro- mente da França e de outras velhas nações bur-
nunciadas em Salvador e no Rio de Janeiro e em guesas européias, o desenvolvimento industrial
debates com intelectuais e artistas em São Paulo.
não teve ainda tempo de criar zonas de separação
LITERATURA UNIVERSAL E LITERATURA POPULAR
absolutamente distintas entre certas camadas do
Parece que, ao apresentar a proposta de
povo, e que, por conseguinte, existe ainda uma uni-
uma literatura popular, Sartre não estava preocu- dade popular, que esta burguesia menos desenvol-
pado com sua permanência, com o valor que lhe vida e menos velha não pode (porque não é prova-
seria reconhecido através dos tempos. O que im- velmente ainda suficientemente numerosa) mono-
portava, naquele momento de seu pensamento, polizar a literatura. Que, de fato, é necessário pro-
era a função prática da literatura, a orientação a curar uma literatura, procurar um público para os
ser promovida para a ação das camadas populares. livros que se escrevem no povo mesmo.4
Tendo em vista esse objetivo, o homem de letras,
UMA LITERATURA PARA O POVO
engajado, pode, inclusive, lançar mão de temas Poderíamos então considerar que, ao falar
clássicos, reelaborá-los – como ele próprio fez na de literatura popular, o pensador referia-se a uma
peça As Moscas, ao transpor o mito de Orestes literatura produzida “no povo mesmo”. Entre-
para a França ocupada. tanto, percebemos, na seqüência de seu pronun-
Em seu pronunciamento no congresso de ciamento, que não podemos ter certeza disso –
Recife, Sartre afirma que a literatura francesa é re- muito provavelmente Sartre também não a tives-
conhecidamente universal, pois o escritor francês se –, pois ele parece entender que a literatura deve
se preocupa com problemas do homem em geral, ser feita para o povo, falar de sua realidade con-
o que nem poderia ser diferente, pois considerava creta e respeitar seus anseios:
que na França já não existia o povo:
Desse modo, no momento presente, o escritor se
Nós temos, pois, na França, uma literatura do tipo encontra em posição de procurar a realidade mesma
universal. E o que se entende por isto? Quer dizer
3 CRÍTICA e História Literária, 1964, p. 278-279.
2 Ibid., p. 388. 4 Ibid., p. 282.

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de seu público, e não de impor ao público o que ele, tores, informações que os presentes não soube-
escritor, pensa sobre ele mesmo, suas tristezas, suas ram precisar.7
misérias, suas ambições. Ele deve dar a este público
Wilson Martins procurou ressaltar a com-
o que este público pede que lhe seja dado, isto é,
plexidade da nossa literatura e a diversidade do
seus desejos populares, as infelicidades populares,
as ambições populares, os seus mitos, os seus cos-
público: Jorge Amado e Érico Veríssimo, embora
tumes. O que significa, por conseguinte, algo de in- representassem ambientes opostos, eram os es-
teiramente singular e concreto, ligado a toda a rea- critores mais lidos. Jorge Amado atribuiu ao per-
lidade nacional brasileira. nambucano Ariano Suassuna o mérito de ser um
Do que resulta que a literatura popular, num caso escritor que parte de temas populares e consegue
como este, é ao mesmo tempo uma literatura atingir a burguesia, os trabalhadores e superar o
nacional – pois as duas caminham paralelamente. regionalismo, pois, naquele momento, o Auto da
Trata-se de uma literatura com a qual se escreve Compadecida estava sendo representado na Ar-
para o povo e sobre o povo, e que se torna marca- gentina, no Paraguai e na Tchecoslováquia.
damente particular a este povo, no caso o povo Por sua vez, Adolfo Casais Monteiro levan-
brasileiro. Um povo em vias de se constituir nação.
tou uma questão a respeito do sujeito dessa lite-
Em suma, a personalidade nacional torna-se o ob-
jeto da literatura.5
ratura popular apregoada por Sartre. Para ele, o
que poderia existir seria uma aspiração de escri-
Sartre ressalta que essa literatura encontra o tores, sempre de formação burguesa, a se identi-
universal por outro caminho, à medida que, ficar com o povo. Em três artigos, publicados na
numa sociedade na qual não houve tempo de se imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, o crí-
cristalizar uma estratificação social nos moldes tico português retomou o tema da possibilidade
franceses, o escritor pode se identificar com o de uma literatura popular.8 Na assistência, Cléa
povo, falar de seus problemas, pois na origem é Brasileiro trouxe o problema da literatura popu-
ainda povo. Nesse sentido, num país em luta lar para um plano mais concreto, ao questionar a
contra o subdesenvolvimento, a literatura teria a responsabilidade do escritor em relação a um pú-
função de mover esse público a tomar consciên- blico, como o brasileiro, ausente pelo analfabetis-
cia de seus problemas e de suas possibilidades. Se- mo e pela impossibilidade de adquirir livros. Essa
ria esse o papel que o escritor começava a desem- colocação foi posteriormente referida e elogiada
penhar em Cuba,6 país visitado por Sartre e Si- pelo próprio Sartre, durante conversa com os jor-
mone, a convite de Fidel Castro e Che Guevara, nalistas, e retomada pela crítica na imprensa per-
poucos meses antes da vinda ao Brasil. Sartre pa- nambucana.9
rece pactuar com a idéia de que deve haver uma A UTILIDADE DO CONGRESSO DE RECIFE É
vanguarda a guiar o povo na compreensão de sua QUESTIONADA
realidade até a dita revolução redentora. A realização de um congresso de crítica lite-
EXISTE UMA LITERATURA POPULAR NO BRASIL? rária, com a presença de Jean-Paul Sartre, numa
Depois da exposição de suas idéias em Re- típica cidade de Terceiro Mundo como Recife, ge-
cife, convencido de que os congressistas perten- rou larga polêmica na imprensa nacional. Nos
ciam a um campo popular, Sartre propôs um de- próprios jornais pernambucanos surgiram críticas
bate sobre a existência, no Brasil, de uma litera- à sua organização e ao afinamento entre os seus
tura que correspondesse à expressão da realidade objetivos e as intenções que trouxeram Sartre ao
nacional, que fosse popular. Além disso, pediu es- Brasil. Aníbal Fernandes sugeriu que Sartre teria
clarecimentos sobre as solicitações do público vindo ao País muito mais interessado em conhe-
brasileiro e da dimensão do nosso universo de lei- 7 Ibid.
8 MONTEIRO, 10/set./60 (republicado pelo Correio da Manhã, em
5 Ibid., p. 282. 24/set./60) e 8/out./60.
6 “ESCRITOR deve atingir povo...”, 16/ago./60. 9 “ESCRITOR deve atingir povo...”, 16/ago./60.

30 Impulso, Piracicaba, 16(41): 27-37, 2005


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cer novas paisagens do que em discutir temas lite- ao encerramento, talvez acreditassem que a sus-
rários. Para esse autor, o interesse do filósofo na- peita geral tivesse se confirmado: Sartre não se
quele momento voltava-se à grande reportagem, dignaria a vir a uma pobre universidade “de pro-
mencionando a série de artigos sobre Cuba pu- víncia”. Monteiro alegou que, justamente por ser
blicados no France-soir, jornal que, apesar de não um congresso nessas condições, deve ter interes-
ter uma linha política afinada com a de Sartre, sado ao filósofo. Disse ainda que, a despeito do
atingia um grande público. Este parecia, então, pouquíssimo tempo que Sartre passou na reu-
esperar uma nova seqüência de reportagens, des- nião, sua participação foi o seu melhor momento,
sa vez sobre o Brasil, o que não se concretizou.10 pois ele procurou integrar-se à realidade do País,
Fernandes parte do raciocínio de Sartre so- levantando questões sobre literatura brasileira.
bre Cuba11 para questionar a utilidade de um Mas lamentou a ausência de diversos críticos que
congresso de crítica literária numa cidade em que poderiam ter enriquecido o debate, citando no-
50% da população era analfabeta – apesar da exis- mes como Augusto Meyer, Amoroso Lima, An-
tência de três universidades. E retoma a coloca- tonio Candido, Sérgio Milliet, Álvaro Lins,
ção de Cléa Brasileiro, durante tal evento, acerca Franklin de Oliveira, Otto Maria Carpeux e Ca-
valcanti Proença.14
da situação do autor em face do público12 para
apresentar a seguinte questão: “Se não temos pú- O fio condutor das preocupações de Mon-
teiro era com a definição de literatura popular,
blico para ler os livros, como pensar primeiro
proposta por Sartre aos escritores brasileiros. No
num Congresso de Crítica, antes de formar o
entanto, antes de tudo, procurou esclarecer a ex-
maior número de leitores para esses livros?”.13
pressão engagement,15 empregada por Sartre para
Diferentemente pensava o crítico portu- definir o papel do escritor em face das questões
guês Casais Monteiro, que, em seus artigos, fala- sociais envolvendo o seu público. Alertou para o
va sobre a importância do evento como fator de fato de que essa expressão não devia ser entendi-
descentralização da cultura brasileira. Entretanto, da no sentido de “compromisso” ou de “alista-
reclamava da pouca cobertura dada pela imprensa mento”, tal como traduzida pela imprensa brasi-
do Sul aos debates, atribuindo-o às rivalidades re- leira, e sim como “participação” do escritor na so-
gionais e à incredulidade sobre a vinda de Sartre lução dos problemas da sociedade em que vive, na
ao Brasil. Alguns congressistas já haviam deixado qual deveria tornar-se elemento ativo. Para Mon-
Recife quando o filósofo chegou, pois, próximo teiro, a idéia de compromisso parecia ser o que
Sartre sempre combatera, haja vista sua condena-
10 “Parece que ultimamente a grande reportagem passou a interessá-lo,
sobremodo, pois tendo passado um mês em Cuba (irá passar outro no
ção à agressão soviética à Hungria. O “compro-
Brasil, o que é quase nada) apressou-se a oferecê-la a um jornal de vasta misso” implica pactuar, ao passo que o engage-
tiragem como France-soir, que lança na rua todos os dias mais de um
milhão de exemplares e não adota a sua linha filosófica ou política.
ment, ou “participação”, pressupõe liberdade.
Levando em conta, porém, a personalidade do autor, um dos maiores Nesse sentido, o escritor deveria lutar pela liber-
escritores contemporâneos, em torno de um assunto jornalístico pal-
pitante, e ainda que divergindo dele, o popular vespertino parisiense
dade e pela revolução socialista.
não hesitou em divulgá-lo, em nome daqueles mesmos princípios de A LITERATURA POPULAR COMO “ARTE
liberdade, que nos Estados Unidos e nos países de índole democrática SUPERIOR”
leva escritores, jornalistas e homens públicos a comentar e a criticar,
livremente, a política governamental” (FERNANDES, 17/ago.60). Como vimos, durante o congresso de Re-
11 “Ora, falando de Cuba na sua grande reportagem do France-soir
cife, Sartre quis saber se existia uma literatura po-
(Ouragan sur le sucre) o sr. Sartre, que é um filósofo, toma os ares de
um propagandista da Liga contra o analfabetismo, ao dizer: ‘Aprender pular no Brasil. Wilson Martins nem Jorge Ama-
a ler é aprender a julgar. Para que o povo empobreça é preferível do, ou qualquer um dos presentes, conseguiram
mantê-lo na ignorância. Assim não lhe ensinaram nada. Para começar,
não lhe deram sequer escolas’” (idem, 18/ago./60). lhe dar uma resposta satisfatória. Segundo Mon-
12 “Muito se teria admirado o sr. Sartre se viesse a saber da pequena cir-
teiro, não se sabia exatamente o que é uma lite-
culação dos jornais do Recife, levando em conta que esses jornais cir-
culam também no interior e em outros Estados do nosso Nordeste”
(ibid.). 14 MONTEIRO, 3/set./60.
13 Ibid. 15 Ibid.

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ratura popular, pois o assunto foi apresentado No artigo “Ainda Sartre”, Monteiro afirma
por Sartre, mas não lhe foi perguntado o que o fi- que o pensador francês se preocupava com a li-
lósofo realmente pensava sobre ele. Monteiro teratura popular por ser um problema que não
tece reflexões sobre quem poderia ser o autor havia sido resolvido pelo realismo socialista, tra-
dessa literatura e quem haveria de ser o seu pú- tado por Sartre como expressão do dogmatismo
blico, pois “o povo”, da maneira como essa ex- stalinista.19 E em “Literatura e povo”, procura
pressão parece ter sido entendida pelos congres- discutir os princípios da arte do realismo socia-
sistas e pela imprensa, era uma realidade que não lista. De acordo com ele, essa arte assume como
existia no Brasil: princípio a idéia de que a solução dos problemas
Há realmente uma questão de palavras a elucidar, sociais suprimiria tudo quanto não é “positivo”
antes de mais nada. Precisamos eliminar as associa- na literatura, que receberia sua validade da ex-
ções de idéias expressas, por exemplo, no sentido pressão da “saúde social”. Os aspectos negativos
que damos a “popularizar”, que vem a ser o de “tor- da vida social ou individual apenas teriam lugar
nar mais acessível”. Ora, não se trata de popularizar no romance histórico. Entretanto, obras antigas
a literatura, mas de saber o que seria a literatura
perduram, mas não pela expressão de uma reali-
dum povo inteiro, quer dizer, aceite, reconhecida
por um povo inteiro, e não apenas expressão duma
dade social, o que
classe, e só por ela consumida. Ora, nós estamos na pode fazer-nos prever que as grandes criações esté-
fase em que o escritor burguês escreve sobre o povo
ticas do futuro mundo socialista não serão funda-
– mas ele não é o povo. E em que, também, o povo
mentalmente (isto é, esteticamente) caracterizadas
não o lê, porque não sabe ainda ler; de onde só po-
pela relação que mantenham com os “problemas”
demos concluir que é cedo para se pôr realmente o
resolvidos por tal sociedade. O que nos permite, as-
problema da literatura em termos socialistas.16
sim, pensar que a arte “superior” que podemos con-
Monteiro parece remeter a possibilidade de ceber, para quando o povo inteiro nela se ache ex-
uma literatura popular para o plano de uma so- presso, e o povo inteiro a possa apreciar, estará mui-
ciedade ideal: seria a literatura possível num mun- to longe de ser literatura “social” em que sempre (e
do verdadeiramente socialista em que o leitor erradamente) pensamos ao abordar tais questões.20
médio se tornaria mais exigente.
Prossegue o crítico português em suas
Em outro artigo,17 o crítico português con-
considerações sobre literatura: “a literatura é uma
sidera que o problema essencial para a definição
expressão do homem concreto, válida (ou seja,
de literatura popular está no fato de que não se as-
bela, pois é esta a espécie de validade própria das
sociou a idéia de popular à de arte superior. Ele pa-
rece querer reforçar a colocação do tema no âm- obras de arte) somente quando exprime de fato a
bito de uma sociedade ideal, pois, se possível de autenticidade da experiência humana – seja esta
ser realizada, essa “arte superior” seria a expressão qual for”.21 Porém, suas reflexões não resolvem
dos problemas de um povo inteiro e acessível a os problemas deixados em aberto por Sartre. Pri-
ele como um todo; caso contrário, “não poderá meiramente, porque Monteiro admite que a vali-
deixar de haver uma literatura ‘de classe’, de e para dade estética da obra possa existir mesmo quan-
uma classe – quer isso seja implicado por diferen- do o escritor exprime uma experiência pessoal,
ças propriamente socioeconômicas, ou então idéia que entra em conflito com as declarações de
porque, mesmo com identidade de educação, ha- Sartre, no Brasil, sobre os escritores franceses
veria sempre as diferenças de gosto para estabele- nada terem a dizer de novo, pois apenas se preo-
cer, pelo menos, classes... estéticas”.18 cupam em tratar experiências individuais.

16 Idem, 10/set./60. 19 Idem, 24/set./60.


17 Idem, 8/out./60. 20 Idem, 8/out./60.
18 Ibid. 21 Ibid.

32 Impulso, Piracicaba, 16(41): 27-37, 2005


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Ademais, Monteiro desloca o tema da pers- mas parece ter sido apresentada como instru-
pectiva assumida pelo filósofo: já havia sugerido22 mento de conscientização. Nesse caso, não po-
que a literatura popular somente seria possível deria ser “difícil”, mas teria de mostrar-se acessí-
numa sociedade ideal e, em outro artigo,23 apre- vel a um povo em condições ainda precárias de
senta-a como arte esteticamente superior. Assim, educação. Parece, portanto, pertinente imaginar
transfere a possibilidade de uma literatura popu- que essa literatura não poderia ser feita pelo pró-
lar para a realidade de uma sociedade em processo prio povo, mas pelo escritor burguês identificado
revolucionário, quando fossem criadas condições com ele.
para tal literatura ser uma “literatura difícil”. Nes- CRÍTICAS À PROPOSTA DE ENGAJAMENTO
DO ESCRITOR
se sentido, sua conclusão só poderia ser a de que
A proposta de que o escritor brasileiro de-
a qualidade estética – e, portanto, a validade – de
veria fazer literatura popular de teor nacionalista
uma arte socialista não se poderia conhecer, pois
foi retomada por Sartre em vários de seus pro-
“tal sociedade não existe em parte alguma do nunciamentos no Brasil e também no diálogo
mundo”.24 que com ele manteve a inteligência nacional por
Apesar de o filósofo não ter definido, em meio da imprensa. Parecem válidas as críticas fei-
seus pronunciamentos no Brasil, o que entendia tas pelo poeta Ferreira Gullar e pelo romancista
por uma literatura popular, afirmou que ela deve- Carlos Heitor Cony, ao censurarem-no por sua
ria ser nacionalista, no sentido de representar os proposta conduzir ao juízo de que seria preferível
problemas do País e conduzir o público à ação o mau romance com boa mensagem ao bom ro-
transformadora. Afinal, Sartre apresenta a pro- mance apenas preocupado em falar do homem.
posta para o Brasil tal como ele o conheceu em Ferreira Gullar percebeu a ingenuidade de
1960, com suas graves contradições econômicas e Sartre na sugestão de uma literatura popular e de
sociais e acentuada diversidade cultural. Para o fi- soluções políticas em moldes cubanos para o Bra-
lósofo, a possibilidade de uma literatura popular sil, sem levar em consideração nossa diversidade
não estaria restrita a uma sociedade socialista, cultural e nossas diferenças regionais. Afirma o
poeta maranhense: “no Brasil, existe um contras-
22 “O problema do Recife: a literatura ‘popular’. Por que interessa a
te flagrante entre as grandes cidades e o resto do
Sartre investigá-la? Porque, evidentemente, a sua consciência duma
crise na literatura francesa, e o predomínio de preocupações, digamos, País”.25 Por isso, o Brasil não cabe numa defi-
sociológicas, na fase atual do seu pensamento, lhe impõe a busca de nição tão simples de subdesenvolvimento como
uma solução para o problema que não foi de modo algum resolvido
pelo realismo socialista, o qual não passa duma expressão do dogma- Cuba, pois, se grande parte do País vive em con-
tismo stalinista aplicado à estética; ao mesmo tempo, não vê, na litera- dições de miséria, outra porção dialoga com a
tura ‘burguesa’ (por exemplo, no ‘novo romance’ dos Robbe-Grillet,
Butor etc.) maneira de se restabelecer a possibilidade dum romance cultura contemporânea e está integrada à vida
universal; isto é, do povo para o povo: não o romance expressão duma moderna. Em conseqüência, também os escrito-
classe, e ‘feito’ por ela, mas o do ‘povo’ e feito por...
Ora eis o obstáculo, parece-me: feito por quem? Eu podia ter escrito res brasileiros não podem caber nesse modelo de
‘feito pelo povo’. Mas quer isso dizer alguma coisa? Quem é o povo? uma literatura nacionalista – que Sartre receitava
Mas a possibilidade de se dar resposta à pergunta de Sartre implicava
precisamente que houvesse ‘o’ povo e uma literatura para ele implicava aos escritores de países subdesenvolvidos.
precisamente uma realidade que também no Brasil não existe, e por Além disso, Ferreira Gullar coloca em dú-
isso mesmo ninguém lhe deu resposta satisfatória. Se lhe tivesse dado
teria sido uma mentira. É que, de fato, a renovação do romance que vida a eficácia prática da literatura nacionalista:
por exemplo a literatura dos Estados Unidos parecia constituir, de há “não seria mais útil ao homem entregar-se à ação
quarenta para trinta anos, era uma literatura de ‘oposição’. Era a bur-
guesia condenando as ‘maravilhas’ da suposta civilização americana. política de fato que fazer literatura?”.26 E cita o
Não era talvez, e isso é da maior importância, uma revolta no individu- exemplo do teatro nacionalista que se pretendia
alismo, no sentido ‘liberal’ da palavra. Era, sem dúvida, uma reivindica-
ção dos valores humanos contra a escravização ao tecnicismo. Mas não fazer no Brasil, cujo público, na verdade, era bur-
era uma literatura socialista, porque, se a palavra pode vir a ter sentido, guês, porque o proletariado não lhe teria acesso
será o que ganhe numa sociedade socialista, coisa que é ainda do domí-
nio da utopia” (idem, 10/set./60).
23 Idem, 8/out./60. 25 GULLAR, 6/set./60.
24 Ibid. 26 Ibid.

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cultural e econômico. O poeta discute também as Em contraposição a essa literatura popular


implicações estéticas da proposta de Sartre: que receitava, o filósofo procurou definir a lite-
ratura burguesa:
Além do mais, esse ponto de vista de Sartre pode
levá-lo, logicamente, a preferir um mau romance Os escritores da literatura burguesa que continuam
nacionalista a um bom romance, que trate apenas a insistir na sua tecla dão mostras de seu fracasso.
do homem, de sua vida, de seus problemas ínti- Os temas já se esgotam. E eles não têm mais nada
mos. Passaríamos a julgar as obras pela sua mora- a dizer. A formação própria de tais escritores já se
lidade e voltaríamos às fábulas bem-pensantes. apresentava viciada desde a origem em face ao que
Mas Sartre já se ocupou amplamente de Faulkner
chamamos de “humanidades burguesas” a que os
e Jean-Genet.27
mesmos são levados a estudar. O mundo hodierno
Carlos Heitor Cony encarou a proposição reclama uma literatura de unidade do povo, exigida
de Sartre aos escritores brasileiros como uma ati- pelas condições do próprio país, afastando-se
tude de colonialismo intelectual. Questionou aquela denominada burguesa em virtude das me-
lancolias e desesperos patenteados. A literatura
também a supervalorização da responsabilidade
burguesa, em síntese, é a literatura da solidão, do
atribuída por Sartre ao escritor: a missão especial
individualismo e do desespero que a nada conduz.
do escritor teria como pano de fundo a idéia de A única solução, a literatura desejada só poderá ser
que o intelectual é superior aos outros homens? aquela arrancada do povo e sintonizada com os an-
De acordo com Cony, “ninguém pode ser res- seios desse mesmo povo.31
ponsável no lugar dos outros, cada qual tem a sua
dose intransferível e (essa sim) inalienável”.28 Como se percebe nesse pronunciamento, a
LITERATURA POPULAR, FOLCLORE E chamada literatura burguesa tem suas caracterís-
REGIONALISMO NORDESTINO ticas delineadas por Sartre (o que já fora feito em
Também durante a sua passagem pela Qu’est-ce que la Littérature?). Porém, ele não de-
Bahia, o principal tema tratado por Sartre foi a li- finiu quem seria o autor dessa literatura “deseja-
teratura popular. Ele voltou a considerar que a li- da”, “arrancada do povo”, expressão cujo sentido
teratura deve refletir mais o meio que o indiví- permaneceu vago. Embora tivesse conhecido,
duo. Contudo, parecendo preocupado com a em Pernambuco e na Bahia, formas de “literatura
colocação de Cléa Brasileiro no congresso de Re- popular”, como a oral dos repentistas e a de cor-
cife, teria dito que antes é preciso alfabetizar o del, teve, em Salvador, a preocupação de salientar
povo para que possa ler uma nova literatura, en- que, apesar de ter notado “na Bahia um ambiente
tão inteiramente popular: “É preciso ensinar o muito propício a esse gênero que aconselha,
povo a ler para depois poder ler uma nova litera- deve-se ter a cautela de não copiar o folclore, que
tura que seria então inteiramente popular”.29 também é falso”.32 Não era, portanto, a literatura
Atentemos para o fato de Sartre, a confiar folclórica que ele preconizava como a literatura
na imprensa baiana, ter usado apenas o verbo ler, popular “desejada”.
e não escrever, ao falar da relação entre povo e li- O crítico Nélson Werneck Sodré reconhe-
teratura. Essa visão do povo como leitor, e não ce, no romance regionalista nordestino, um gê-
como produtor de literatura, é reforçada pela nero ancorado nas narrativas de tradição oral, no
matéria de outro jornal baiano, ao afirmar que “causo”, de fácil compreensão. Entretanto, esse
Sartre “não se afastou da tese de que a literatura gênero não deve ser confundido com a literatura
deve ser realizada em função do povo e jamais folclórica, que Sartre diz não corresponder à lite-
afastada dele”.30 ratura popular por ele proposta. Isso porque o re-
27
gionalismo nordestino, que pretere a estética da
Ibid.
28 CONY, 1.º/out./60.
29 “SARTRE, na reitoria...”, 18/ago./60. 31 Idem.
30 “A LITERATURA popular...”, 18/ago./60. 32 “SARTRE, na reitoria...”, 18/ago./60.

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forma em função da narrativa documental, segue recolocou a questão no plano estético, também
um plano consciente de denúncia, visando, por- ninguém lhe perguntou.34
tanto, à transformação da realidade social: SARTRE NO RIO: UM MODELO DE LITERATURA
POPULAR PARA O BRASIL
Como os outros romancistas nordestinos – salvo Em entrevista coletiva à imprensa, na Fa-
Graciliano Ramos – José Lins do Rego é um docu- culdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro,
mentarista, além de memorialista. O romance nor- ao ser indagado sobre a posição do escritor, Sartre
destino do pós-Modernismo – que representou voltou a salientar uma diferença, já enunciada em
fase curiosa no desenvolvimento da literatura bra- Recife, entre o papel desse agente nos países sub-
sileira – foi acentuadamente documentarista: infor- desenvolvidos, em luta pela emancipação, e na
mou sobre a vida regional, reconstituiu-a, denun- Europa. Naqueles, os escritores deviam se liber-
ciou suas mazelas, forjou um libelo, válido como tar da influência estrangeira e voltar-se para os
tal, sem dúvida, mas frágil como arte literária. Esse problemas específicos e concretos de seus povos.
nível de documentário, em que o romance nordes- A tarefa seria revelar ao público a sua real situação
tino se manteve e de que se alimentou, era assim e o seu campo de possíveis. Citou o exemplo de
como uma espécie de estágio pré-artístico, de etapa Cuba, onde, dizia, a população das cidades se es-
preliminar, como se tivesse sido atribuída a alguns pantou com a miséria em que vivia o homem do
escritores a missão preliminar de reunir o material campo, situação que, embora próxima, era desco-
bruto. Nota-se isso desde A Bagaceira, em que falta nhecida por aquela. O articulista Villela Neto re-
até a estrutura de romance. José Lins do Rego faz o sume a concepção de literatura revelada por Sar-
relatório da vida no engenho e o da transformação tre na entrevista:
do engenho em usina; Jorge Amado faz o relatório
da vida na zona do cacau e em Salvador. São exce- A verdadeira posição do escritor é mostrar, fazer
lentes documentaristas. Sob certos aspectos, os ro- conhecer as necessidades do país, pouco importa se
mances que escrevem servem ao estudo sociológico sob o ponto de vista de um nacionalismo crítico ou
das regiões indicadas; passagens, episódios, proble- se por obra nacionalista. Contar e descrever como
vive o seu povo, revelar a verdade e desmascarar as
mas, poderão até incorporar-se, como categorias
mistificações que se criam sobre uma pretendida in-
históricas, à análise do desenvolvimento da socieda-
capacidade ou impossibilidade dos países se servi-
de regional de que tratam: a transformação do en-
rem por si mesmos de seus recursos e possibilida-
genho em usina, a conquista, desbravamento, apro- des nacionais. E esses livros devem ir “partout” (por
priação das terras do cacau.33 todos os cantos). Que no Brasil, por exemplo, os
habitantes do Rio Grande do Sul ou de São Paulo
Num processo de transformação social, saibam como vivem os trabalhadores da Amazônia,
numa sociedade em que o povo tem acesso res- ou os do cacau, em Ilhéus.35
trito à literatura, estaria Sartre querendo dizer
que caberia ao escritor de origem burguesa iden- Ainda no Rio de Janeiro, Sartre pronun-
ciou a conferência “Estética da literatura popu-
tificar-se com o povo para dele “arrancar” os
lar”, na Faculdade Nacional de Filosofia, em 26
problemas e as possíveis soluções e elaborá-las?
de agosto. Nela, voltou a afirmar, como já havia
Afinal, o povo seria o objeto dessa literatura,
como tema, e também sujeito, na medida em que 34 “O problema parece-me estar em que não se associou ainda, num

se percebesse representado nela? Ou, poderia esforço de esclarecimento, a idéia de ‘popular’ à de ‘arte superior’. Este
‘superior’ não seria necessário, e só está aqui para ficar bem claro que é
constituir, em países em luta contra o subdesen- de arte ‘mesmo’ que se trata. Foi pena que, tendo-lhe perguntado tanta
volvimento, inclusive em sujeito, como autor coisa, a imprensa não tenha querido saber de Sartre o que ele realmente
pensava do problema. E por isso mesmo ele só aqui figura por ter
dessa literatura? Sartre não deu tais respostas; no levantado, e não como autor de nenhuma resposta, que não deu, por-
entanto, como salientou Casais Monteiro, que que toda a gente lhe perguntou (fora os disparates) aquilo a que ele já
respondera em toda a sua obra, mas ninguém quis saber o que ainda
não disse” (MONTEIRO, 8/out./60).
33 SODRÉ, 1970, p. 102. 35 VILLELA NETO, 31/ago./60.

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feito em Recife e Salvador, que a literatura popu- quer que seja, sem sentir o seu prolongamento no
lar tem no povo ao mesmo tempo o seu sujeito futuro. A dimensão do futuro deve ser, entretan-
e o seu objeto. Segundo ele, escrever para o povo to, a mais próxima possível do presente. Essa é
é muito mais difícil do que para uma classe, uma das tarefas da literatura popular, a única que
como faz a literatura burguesa – o problema que legitima hoje o papel do escritor”.38
se apresenta ao escritor é saber quais os meios de INSUFICIÊNCIA DE INTERLOCUTORES SOBRE A
que dispõe para dar ao leitor a idéia de que o des- LITERATURA BRASILEIRA
tino humano está, exclusivamente, nas mãos do Embora a seqüência dos pronunciamentos
próprio homem. de Sartre em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e
São Paulo mostre interessante evolução de sua
Segundo Sartre, o povo busca na literatura
percepção sobre a complexidade da realidade bra-
a expressão de sua realidade nacional e cultural.
sileira, é pena que seu conhecimento de nossa li-
Arrisca outra receita para o caso do Brasil:
teratura continuasse bastante restrito, pois parece
A literatura deve interpretar os acontecimentos po- que os interlocutores que encontrou por aqui
pulares, mas na perspectiva histórica em que esses pouco contribuíram para que ele o ampliasse. Tal-
acontecimentos se desenvolvem. No Brasil, por vez as rivalidades regionais tenham sido fatores
exemplo, creio que uma literatura popular deve ex- limitadores à presença de críticos do Sul do País
pressar, necessariamente, os problemas e as nos diálogos sobre literatura popular, desencade-
contradições do país em luta contra o subdesenvol- ados no Recife, com base nos pronunciamentos
vimento. Fora disso não há literatura popular, pois de Sartre. Talvez hajam sido insuficientes os con-
se limitaria ao que é exótico, ao anedótico.36 tatos com críticos literários no Rio de Janeiro e
Sartre pensava que a literatura popular em São Paulo. Assim, não foram mencionadas a
apresenta problemas estéticos novos. A necessi- Sartre as obras de um escritor como Graciliano
dade de exprimir a totalidade de uma realidade Ramos ou de poetas como Murilo Mendes, Car-
contraditória era, para ele, um problema novo, los Drummond de Andrade ou João Cabral de
Melo Neto. Ao menos em parte significativa de
não colocado pela literatura clássica ou burguesa:
seus textos, esses autores inserem preocupações
“Existe um problema estético da literatura popu-
com a identidade nacional39 e a questão da soli-
lar a que poderíamos chamar de horizontal, qual
dariedade40 – tão pertinentes ao pensamento de
seja o de representar a totalidade de uma situação,
Jean-Paul Sartre – ou representam, de forma tão
e um outro problema, que poderíamos chamar de
crua e tão bela (embora, naquele momento, o fi-
vertical, não menos importante: o de buscar no
lósofo não estivesse preocupado com a beleza), a
passado o condicionamento do homem presente
solidão da paisagem e a miséria nordestina,41 com
e mostrar suas perspectivas futuras”.37
a qual ele teve contato em suas andanças por Per-
Sartre defendia que a literatura burguesa nambuco, Bahia e Ceará.
não pode representar essa dupla presença do pas-
sado e do futuro no presente em transformação, 38 Ibid.
porque se fixa a uma época estanque. Exemplifica 39 Nesse contexto, a Canção do Exílio, de Murilo Mendes, foi publi-
cada na década de 1930.
esse raciocínio para o caso do Brasil: “É impossí- 40 De Carlos Drummond de Andrade: Sentimento do Mundo, publi-

vel, por exemplo, que um brasileiro veja o que cado em 1940, e A Rosa do Povo, em 1945.
41 Grande parte da obra poética de João Cabral de Melo Neto foi
publicada nas décadas de 1940 e 1950, inclusive Morte e Vida Severina,
36 “SARTRE leva uma multidão...”, 27/ago./60. que, poucos anos depois da visita de Sartre, iria se consagrar, inclusive
37 Ibid. na França, em montagem musicada por Chico Buarque de Holanda.

Referências Bibliográficas
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BEAUVOIR, S. de. Cartas a Nelson Algren. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

36 Impulso, Piracicaba, 16(41): 27-37, 2005


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______. L’Être et le Néant. Bibliothèque des Idées, N.R.F. Paris: Gallimard, 1973.
______. Les Mouches. Théâtre, N.R.F. 20.ª ed. Paris: Gallimard, 1947.
“SARTRE leva uma multidão à filosofia e faz a defesa de uma literatura popular”.Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
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______. Memórias de um Escritor. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
VILLELA NETO. “Jean-Paul Sartre não crê na coexistência pacífica mas só na colaboração”. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 31/ago./60.

Dados do autor
Doutor em teoria literária pela Unicamp, autor
da obra A Passagem de Sartre e Simone de
Beauvoir pelo Brasil em 1960, originariamente
tese de doutorado publicada, em 2002,
pela Editora Mercado de Letras/Fapesp.
Professor nas Faculdades Hoyler e na
Faculdade Prudente de Moraes.

Recebimento: 13/abr./05
Aprovado: 18/ago./05

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Filosofar en Escena
TO PHILOSOPHIZE IN THE SCENE* 1
Resumen En un texto anterior, “De sabihondos y suicidas”,12 interrogué a ese
filósofo (Sartre, 1943) que mira y escribe, para hacer actuar a otros, desde el
espacio en que está para actuar. Aquí me pregunto por el fracaso en nosotros del
proyecto del compromiso del intelectual, desde este futuro de Sartre en que los
filósofos latinoamericanos “somos invisibles”.23 Releo al Sartre que pasea su
mirada nadificadora sobre un café, y propongo otro lugar para el filósofo: el de
un parroquiano más, procurando transformar la escena para que puedan
interactuar todos. Quedarse donde se está y pensar con quienes se está.
Ganaremos la escena real del lugar filosófico en que estamos, con los demás
esclavos, ninguneados como fondo, en el fondo de la caverna, para pensar a fondo
este aquí y ahora, que incluye lo intempestivo y lo utópico, lo conflictivo y el
disenso, lo interior y lo exterior, lo particular y lo universal. Entonces, podremos
salir de visita y dialogar con otros. Como en el café con Pessoa que imagino. MAURICIO LANGON
Palavras-clave FILOSOFÍA – ESCENA – ESCENARIO – SARTRE, JEAN-PAUL – Asociación Filosófica del
PESSOA, FERNANDO – PEREDA, CARLOS. Uruguay (AFU)
mlangon@adinet.com.uy
Abstract In a previous text, “De sabihondos y suicidas”, I questioned Sartre
(1943), who looks and writes, from the space in which he is about to act, to make
others act. Here, I ask about the failure, in us, of the intellectual compromise
project, from this future of Sartre in which the Latin American philosophers “are
invisible”. A read again the Sartre that passes his nothingness look over a coffee
shop, and propose another place for the philosopher: the one of another
parishioner, trying to change the scene so that everyone can inter-act, stay where
they are, and think with whom they are. We will win the real scene of the
philosophical place where we are, with the other slaves, nenhuneados as a rear, in
the rear of the cavern, to think deeply this here and now, that includes the
intempestive and the utopian, the conflictive and the dissent, the interior and the
exterior, the particular and the universal. Hence, we can go out and dialogue with
others, as in the coffee shop with Pessoa that I imagine.
Keywords PHILOSOPHY – SCENE – SCENARIO SARTRE, JEAN-PAUL – PESSOA,
FERNANDO – PEREDA, CARLOS.

*1 Tendo por base a comunicação ao Colóquio “Sartre y la cuestión del presente” (Montevidéu, 2-3/ago./04.
Universidad de la República, Universidad de París-8). Revisão do espanhol: JUAN CARLOS BER-
CHANSKY (UNIMEP/SP)
12 LANGON, 2005.
23 PEREDA, 2000.

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1
En el “resumen” decía que me pareció interesante cuestionar al
filósofo desde el espacio, desde la escena en que está para actuar,
al filósofo que primero mira y después escribe letra y música,
para hacer actuar a otros en el modo del interpretar. Es decir,
para que otros le sigamos, hablando, leyendo y escribiendo.
Anunciaba, entonces, mi “interpretación” a partir de textos que
tenían en común referirse al café, espacio íntimo y abierto, pri-
vado y público. Mi intención era reflexionar sobre la dirección de
distintos puntos de vista intelectuales referidos a la sociedad, metafori-
zada en el escenario del café.
Pero ocurre que ya hice eso. Está escrito. Ahora se trata de seguir...

2. Sigo, entonces,... con un “Cuento para niños futuros”, de Carlos


Vaz Ferreira: “Dios hizo el espacio y el Diablo hizo el tiempo. Dios creó
el Universo con los seres felices y sanos; los astros brillando... Entonces
el Diablo hizo el tiempo y los seres empezaron a envejecer, los astros a
apagarse, y vinieron la desarmonía, el dolor y la muerte”.3
Quisiera interrogar el apagamiento de la idea sartreana del compro-
miso del intelectual, desde este futuro de Sartre (agregado por el Diablo)
en que los filósofos en América Latina – según Carlos Pereda – “somos
invisibles”, ocupamos un “no lugar”.
Contra esa invisibilidad, se ha propuesto terapias. Que implican
pro-yectar hacia futuros escenarios la trayectoria previsible de las tenden-
cias actuales a la invisibilización, para desviarla hacia un escenario desea-
do, con filósofos visibles.
Pero se me ocurre necesario este análisis previo: preguntarnos por
el fracaso del proyecto sartreano en nosotros, por los caminos que – des-
de aquel afán de compromiso – nos han llevado a estos escenarios des-
comprometidos, a estos escenarios sin filósofos, a estos escenarios no
filosóficos y aun antifilosóficos. Y que nos han llevado también a estos
filósofos sin escenario. Es decir, preguntarnos qué le hizo el diabólico
tiempo al divino espacio de los intelectuales comprometidos de mediados
del siglo XX. Preguntarnos el por qué y el cómo de la corrupción actual
de sueños pasados, bien puede ayudarnos a prevenir desgastes futuros de
proyectos actuales.

3. Retomo, pues, el texto de Sartre: aquél en que entra con retraso


al café, a buscar a su amigo Pedro, y organiza al café como fondo indi-
ferenciado en que recaen y se diluyen personas y cosas para que la forma
Pedro pueda aparecer. Pero como Pedro no está, sobre el café nadificado
como fondo se desliza la forma-nada Pedro. Y Sartre concluye: “mi es-
pera ha hecho llegar la ausencia de Pedro como un acontecimiento real

3 VAZ FERREIRA, 1963, p. 470. Cierto que, para Vaz Ferreira, esto es “injusto con el tiempo”, el único
recurso “para evitar la creencia en la mortalidad del alma”, pues bastaría suponer “que el tiempo estuviera
en distintos momentos para las distintas personas” (p. 471).

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concerniente a este café. Es un hecho objetivo, to y a la fama? ¿No es, por ventura, el modo en
ahora, que yo haya descubierto esa ausencia”.4 que solemos entrar a nuestras aulas? Con la me-
Retomo mi lectura. El filósofo entra al es- jor intención del mundo, claro.
cenario del café (digamos, de la sociedad, del Es con la mayor convicción y con el más
mundo) precedido de una idea, plenamente cons- decidido compromiso que entramos a “dar”
tituida en algún otro lugar. Como la realidad ha nuestras clases para liberar a nuestros alumnos,
desairado su expectativa, como su idea no se ve- público cautivo, atrapado en ese teatro al que en-
rifica, se venga nadificándolo todo. Cabe imagi- traremos y al que usaremos para emanciparlos,
nar la salida airada y el portazo. Y la exclamación enseñándoles los caminos del conocimiento y de
resentida: ¡Pero si yo he hecho llegar un aconte- la autonomía... Sin embargo, no los liberaremos
cimiento real que les concierne a ustedes y que yo de ese escenario ni de la seducción de nuestros li-
he descubierto! bretos y actuaciones.
Con esta nadificación de los otros, con esta Aprendimos demasiado bien. Asumimos
afirmación propia que ningunea a los demás, en nuestro mirar el ansia de ser vistos. Vemos los
oculta su decisión de desresponsabilizarse por el diversos espacios sociales como lugares que nos
retraso que provoca el fracaso de su proyecto, y son ajenos, como escenarios que nos necesitan
oculta su decisión de no procurar otro proyecto aun sin saberlo, que esperan nuestra actuación,
(como buscar a Pedro en otra parte, o decidir pe- ésa que estamos dispuestos a regalarles. Tratamos
dirle disculpas mañana, o sentarse a tomar un café de cubrir la distancia que nos separa de esos es-
con otros, o solo...). pacios, pero vamos a ellos a satisfacer necesidades
Que no sorprenda, entonces, que el café (el nuestras.
mundo, la sociedad), ningunee a su vez al filósofo Sería bueno, entonces, preguntarnos por el
que sólo ha entrado para confirmar su idea, para modo de ver nuestra relación con la sociedad que
reafirmarse, que no acepta contradicción alguna y consiste en “ir de afuera” y “querer entrar” para
que se va muy enojado porque las cosas no son que nos confirmen, nos reconozcan, nos escu-
como él quiere, porque le resisten... chen, nos sigan.
Es que esa relación que establece Sartre con Modo que supone ocultar nuestro estado,
el café, esa propuesta de modo de entrar el filó- supone no “ver” y no reflexionar sobre el lugar
sofo en la sociedad, produce otra nadificación: la donde estamos cuando estamos afuera (“en ese
propia exclusión. Y la exclusión de sus futuros, azul de frío”) queriendo entrar. No pensamos el
como lo somos nosotros, los filósofos latinoa- lugar desde donde pensamos cuando decidimos
mericanos actuales, preocupados por nuestra in- entrar a la sociedad para encontrar (o para negar)
visibilidad en la escena pública. a nuestro “Pedro”. No es que el escenario en que
se generan nuestras ideas, el espacio donde sur-
4. Nosotros, ¿acaso no seguimos tratando gen nuestras expectativas y nuestras ansias de ser
de entrar del mismo modo a diversos escenarios, vistos, sea un no lugar, es, más bien, que lo pro-
demasiado a menudo?, ¿no vamos en el modo de tegemos cuidadosamente de toda crítica. No sea
“entrar de afuera”, para ser vistos, para ser ilumi- que tengamos que analizarnos nosotros mismos,
nados por las candilejas en nuestra actuación me- no sea que la falta sea nuestra y no de los espacios
recedora de aplausos? ¿No es ése el modo en que y personas que nos son refractarios, que no nos
queremos entrar, demasiado habitualmente, a una dejan entrar, que no nos quieren escuchar.
revista especializada, a las “conversaciones de la
humanidad”, a la comunidad filosófica interna- 5. Tal vez el café – ese espacio identitario en
cional, a la televisión... caminos al reconocimien- que interactúan en escena olores, colores, sabo-
res, sonidos, sensaciones térmicas, cosas y perso-
4 SARTRE, 1943, p. 44-45. nas – se resiste a ser destruido, a hacerse escena-

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rio para la actuación de otro, a amoldarse a las ex- nuestro afán de visibilidad no es deudor también
pectativas de otro, a complacerlo. Se resiste a ser de la razón arrogante. Preguntarme si con supe-
Pedro, a hacerse otro para satisfacer al filósofo. rar esos vicios y cumplir con esas condiciones
Tal vez no está tan mal que nos rechace la podremos reorientarnos en el sentido de la fór-
escena pública. Tal vez se defiende en su identi- mula con que Pereda las resume (pero que a mí
dad irreductible cada espacio social que se resiste se me hace que las trasciende): “¡A los proble-
a ser utilizado como escenario para nuestra actua- mas, a los problemas mismos!”. ¿No será que,
ción. Tal vez nuestras clases son un constreñi- para poder enfrentar “los problemas mismos”,
miento para los estudiantes, una camisa de fuer- nos son necesarias más bien condiciones previas
za. Tal vez nuestras clases no sean problematiza- de ubicación y modestia, situarnos de otro modo
doras, pero quizás siempre son un obstáculo para en escena, menos preocupados por nuestra insig-
nuestros alumnos, son un problema para ellos, a nificancia y más dispuestos a encarar los proble-
ser disuelto, o resuelto, o eludido, o destrozado, mas de todos?
o pisoteado... Y, por tanto, nuestro obstaculizar-
los resulta ser fuente de otro filosofar, que se ejer- 7. Otros han sabido entrar. No deberíamos
ce pese a nosotros, contra nosotros, que se ejerce tener celos de su éxito. No deberíamos envidiar a
rechazándonos. Al menos en la medida en que los visibles, a esos pulcros todólogos cuyos ros-
ese rechazo (esa nada a que se nos reduce) es re- tros iluminados vemos cotidianamente en las
sistencia y respuesta ante la nadificación que pro- pantallas televisivas de nuestras casas, parlotean-
ducimos nosotros, es respuesta al problema do doctamente sobre cualquier cuestión, frente a
filosófico que genera en otros nuestra ansia de la admirada mirada de algún periodista que le
protagonismo. Y puede que resulte más filosófica arroja preguntas mudas para su lucimiento, como
su resistencia que nuestra ansia. Al menos, ambas flores a su paso. No deberíamos emular la acción
partes resultamos indiferenciadas en nuestra na- de estos visibles que han sabido construirse reno-
dificación.. Esta escena conflictiva exige repensar vados pedestales, cátedras y púlpitos y han fabri-
el lugar del filósofo. cado un auditorio mudo y sin rostro, ninguneado
receptor pasivo de su sabiduría y pretendida jus-
6. Carlos Pereda avanza en este camino al tificación de su poder.
reflexionar sobre nuestras falencias cuando de- No deberíamos envidiarlos ni imitarlos
tecta que nuestra invisibilidad, además de causas porque el escenario en que se constituyen hunde
externas, tiene causas internas: “malos hábitos in- a todos los demás en el fondo indiferenciado de
telectuales”, entre los que destaca “tres graves vi- la nada, porque hacen de los espacios públicos un
cios de la razón arrogante”: el “fervor sucursale- lugar para el lucimiento privado, porque queda
ro”, el “afán de novedades” y los “entusiasmos reservado a ellos el lugar de la palabra y la acción,
nacionalistas”. No voy a explicar y discutir estos y porque – al ignorar la palabra y la preguntabili-
vicios: su mera enunciación es explícita. dad del público – resultan descomprometidos de
Sí, quisiera subrayar la idea de razón arro- sus propias palabras y actos, que deben dejar caer
gante. Y preguntarme si efectivamente alcanzará en la nada, al desresponsabilizarse por sus even-
para superarla con portarnos mejor, superar vi- tuales errores, fracasos o consecuencias.
cios, expresarnos mejor (como, por ejemplo, lo Parecería que son herederos del Sartre que
hacen los ensayistas). Preguntarme si realmente busca a su Pedro. Pero no del Sartre que asume
se trata de ser más “entradores”. Preguntarme si compromisos y responsabilidades. Parece que
será suficiente con que nuestros trabajos cum- heredan más bien una presunta misión que hunde
plan condiciones de frescura, particularidad, pu- sus raíces en las profundidades más recónditas de
blicidad e interpelación. Preguntarme si no de- la Colonia, que viene a descubrirnos para salvar-
beríamos antes ubicarnos de otra manera; si nos, y que – como nadifica y ningunea geografías,

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espacios, culturas y personas – genera su propia asumir una imagen falsa del filósofo; una imagen
nada o se condena a producir obras de domina- indeseable por antifilosófica. Hay que cambiar
ción, de muerte o de suicidio. esa imagen. No es nuestro problema, competir
Soy injusto con estos “intelectuales compa- con otros por ocupar el lugar de la visibilidad que
triotas”, porque no inventan ellos la estructura de nadifica, ésa es, más bien, nuestra tentación. Tan-
relaciones de poder en que necesariamente se to más fuerte y peligrosa cuanto más logra hacer-
mueven para tener éxito, más bien ella los cons- nos creer que no somos nadie si no ninguneamos
tituye (o los lleva a tener que constituirse) en ese a los demás; cuanto más logra hacernos creer que
lugar visible donde quedan ubicados en una po- sólo podemos surgir del magma indiferenciado
sición tal que reclama la respuesta nadificadora del fondo y ser alguien a condición de ver a los
del “fondo” que los determina como “chantas”. demás como si no fueran nadie.
Aunque no lo sean. Aunque muchos de ellos Que si advertimos que ir a los problemas
cuenten con una sólida formación, tengan una mismos es ir a los problemas que comparten las
prolongada y notable actuación académica o una personas de determinada época y lugar, entonces
importante obra édita, que se hunden con ellos las angustias de la corporación de los filósofos
en la nada. por su falta de visibilidad, son un pseudo proble-
No se trata de emularlos. Se trata de gene- ma que obstaculiza “ir a los problemas mismos”.
rar otras alternativas de posicionamiento en esce- En esta perspectiva tal vez sea posible tam-
na. No sólo para los filósofos. También para ellos. bién reencontrarnos con el Sartre hombre de
café, que desde su ser nada descubre el poder des-
8. Escenarios con filósofos visibles, no. realizante de la libertad, que sólo ubicada en la
Hay que poner en escena otras relaciones, más realidad compartida, nadificada como fondo,
filosófica. puede posibilitar la construcción de escenas por
El lugar del filósofo debe ser otro que el de donde pase la acción efectivamente transfor-
una visibilidad nadificadora. Y, de hecho, es otro. madora.
Pero no es el del profeta que vuelve como extran- Se trata de proponer y de ganar, para los fi-
jero a su tierra y es rechazado. No es el del maes- lósofos de hoy, otro modo de estar; que el entrar
tro que ha asomado la nariz fuera de la caverna y o el salir. Un estar dentro que no obligue a dis-
vuelve con toda su iluminación a ser asesinado. tinguirse, a separarse del fondo para ser el único
No es el del resentido ni el del envidioso. Es el de actor entre tanta nada, y que no habilite la solu-
un esclavo entre otros, desde siempre encadena- ción emigrante. Quedarse donde se está y pensar
do. Es el de un parroquiano más, sentado en una con quienes se está. Ser como los otros y con los
mesa del café, compartiendo con los otros los otros; hacer actuar y actuarse. Aceptar el lugar
obstáculos y procurando transformar filosófica- filosófico dónde está ahora el filósofo: tan ningu-
mente la escena de modo que en ella puedan in- neado, marginado, invisibilizado como cualquier
teractuar todos en vistas a encarar los problemas otro parroquiano; tan en el fondo de la caverna
realmente. como los otros esclavos... Menos mal: estamos
La cuestión ha estado mal planteada, el pro- ganando una escena real.
blema de nosotros, filósofos latinoamericanos, Y esto obliga a reformular la escena. Mi-
no es ser invisibles sino afanarnos por lograr vi- rarla desde otro punto de vista. Pensarla desde el
sibilidad. Si algún problema nos es específico es fondo. Pensarse en el fondo. Verse evaluado por
que no hemos sabido ubicarnos en nuestro espa- esa ojeada superficial y rápida de ese impertinen-
cio, instalar una escena filosófica en nuesto café, te visitante que te desprecia al constatar, como si
en nuestra sociedad. Nos hemos desubicado al fuera un gran acontecimiento, lo que ya sabías

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desde siempre, que no sos Pedro; que no lo es- todo lo utópico; lo conflictivo y el disenso; lo in-
tabas esperando; que no te importa que se vaya. terior y lo exterior; lo particular y lo universal.
Aunque también podrías invitarlo a tu mesa y Y, entonces, se podrá salir. Para ir de visita
consolarlo, ayudarlo a procesar su frustración, a y entrar en diálogos con otros. También con los
ver si se toma un café, si él también recupera un que no están pero integran la escena. Como es-
papel de actor, no de autor o guionista; un papel te...
de parroquiano. 9. CAFÉ CON PESSOA
Recuerdo la sorpresa de encontrar en un
Capaz que si filosofamos en escena, empe-
café a alguien que yo no esperaba: Fernando Pes-
zamos a superar esa ya vieja “invisibilidad ante
soa, en persona, sentado a su mesa en su café de
nuestros colegas e incluso ante los propios estu-
Lisboa. Pessoa no está; y sin embargo yo, que es-
diantes”, que proviene de que, como nos magni- toy de paso, y que no tengo ninguna relación pre-
ficamos, ni escuchamos ni leemos a nuestros via con ese café, como infinidad de gente, estoy
maestros, ni a nuestros colegas, ni a nuestros es- invitado a tomar un café con él.
tudiantes y por eso nos nadificamos y ellos nos Pessoa está ausente para siempre del café y
nadifican y así sucesivamente, en una especie de del mundo, definitivamente fuera de todo espa-
sólida no tradición. Porque al constituirnos todos cio. En ningún lugar la presencia actual de Pessoa
en el fondo indiferenciado de un interior podría- es plenitud de ser. La insistente ausencia de Pes-
mos colaborar en la construcción de las relacio- soa, esa ausencia que sólo tiene fuerza por la an-
nes filosóficas de nuestra escena interior, que in- terior presencia – hoy imposible – del poeta que
cluye el compartir con otros, no sólo todo eso de frecuentaba ese café, esa ausencia dolorosa e irre-
la convivialidad, sino también eso de “no pensar versiblemente recalcada por el bronce eterno de
más en mí” y empezar a pensar juntos, con toda la estatua, funda la existencia y la persistencia de
la fuerza de un buen debate filosófico, de esos ese café: le da consistencia, lo hace ser, lo organi-
za como espacio humano.
que empiezan por respetarse y por buscar en co-
mún alguna verdad y algún bien. Al mismo tiempo, afirma la existencia de
Pessoa. El metal no lo hace cosa: lo personifica
Y, entonces, capaz que alguien viene a visi-
para que su voz siga resonando en el café que per-
tarnos de afuera, y lo dejamos entrar, y lo mete- sonaliza y que se resiste a reducirse a amontona-
mos en nuestra discusión, que no es cosa de no miento de cosas y se constituye como escenario
dejarnos interpelar y de no vernos también con para lo humano.
ojos de otros. Porque no digo “vivir en contra de La ausencia plena de Pessoa confirma mi
cualquier ilustración, ignorando la ciencia y gol- existencia pasajera y me regala la libertad con que
peando a las mujeres”; digo, estar adentro cons- acepto su invitación y me siento a tomar, despa-
truyendo escenas filosóficas, incluyendo en este cito, un café con Pessoa, a estar un rato juntos en
aquí y ahora, por tanto, todo lo intempestivo y escena.

Referências Bibliográficas
DISCÉPOLO, E.S. Cafetín de Buenos Aires (tango; música: Mariano Mores). Buenos Aires, 1948.
LANGON, M. “De sabihondos y suicidas”. Sofós, n. 49, año XVI, abr./05 (1.ª parte, p. 23-30; 2.ª parte, en prensa, n.º
50).
PEREDA, C.“¿Qué puede enseñarle el ensayo a nuestra filosofía?”.Fractal, n. 18, año IV, v. V, jul./set./00, p. 87-105.
SARTRE, J-P. L'Être et le Néant. Paris: Gallimard, 1943.

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VAZ FERREIRA, C. “Cuento para niños futuros”. In: Obras Completas, t. XX, Inéditos. Montevidéu: Cámara de Repre-
sentantes, 1963, p. 469-472.

Dados do autor
Professor de filosofia na Asociación Filosófica
del Uruguay e no Instituto de Profesores Artigas
(IPA/Montevidéu). Doutorando em filosofia na
Paris VIII/França.
Recebimento: 13/abr./05
Aprovado: 3/jun./05

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A Crítica Sartriana à
Subjetividade e suas
Implicações no Conceito de
Educação como Formação
do Sujeito
SARTRE’S CRITIQUE ON SUBJECTIVITY AND ITS
IMPLICATION IN THE CONCEPT OF
EDUCATION AS FORMATION OF THE SUBJECT*
1 MÁRCIO DANELON
Universidade Federal de
Uberlândia (UFU)
Resumo Tomando por base a premissa da educação como formação do sujeito danelon@faced.ufu.br
na construção do Eu, este texto tem por objetivo apresentar as reflexões de
Sartre, particularmente em A Transcendência do Ego, sobre o processo de
substancialização da consciência proposta pela filosofia de Descartes. A
conclusão sartriana, apoiada no princípio fenomenológico da consciência
posicional, é a constatação do vazio absoluto da consciência, não havendo,
portanto, um sujeito – substância – a ser formado pela educação.
Palavras-chave CONSCIÊNCIA – EDUCAÇÃO – FORMAÇÃO – NADA – SARTRE.

Abstract From the premise of education as formation of the subject in the


construction of the Ego, the aim of this paper is to present Sartre’s reflections,
extracted mainly from La Transcendende de l’Ego, in which he talks about the
process of substantialization of the conscience as proposed in Descartes’
philosophy. The Sartrian conclusion, based on the phenomenological principle of
a positional consciousness, affirms the absolute emptiness of conscience.
Therefore, there is no subject – substance – to be formed by education.
Keywords CONSCIENCE – EDUCATION – FORMATION – NOTHING – SARTRE.

*1 Este texto foi produzido no contexto de desenvolvimento do projeto de pesquisa “O Conceito de


Nada e a Ética dos Fins em Jean-Paul Sartre”, que contou com financiamento do FAP (Fundo de Apoio à
Pesquisa da UNIMEP), ao qual dirijo meus sinceros agradecimentos.

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INTRODUÇÃO

A
relação entre educação e subjetividade, entendida como
formação ou condensação no sujeito de um Eu, é alinha-
vada pela tessitura da antropologia – já que o sujeito é o
objeto da educação – numa associação histórica entre
educação e antropologia, mediada pela noção de subjeti-
vidade, constituindo um solo bastante profícuo para a
fundamentação da tese clássica de que a educação con-
siste num processo de formação do sujeito. A formação
do sujeito implica a construção do Ego, caracterizado pelo conceito de
subjetividade. Nesse caso, a educação significa esse processo em que se
dará a formação do Eu do indivíduo inserido numa coletividade. Mesmo
a etimologia da palavra educação1 guarda, em seu significado, a idéia de
transição desde um lugar caracterizado pelo inacabado, pelo transitivo –
momento ainda em que a pessoa não se formou como ser autônomo,
consciente de si e de seu papel social ou mesmo dotado de uma raciona-
lidade esclarecida – para o lugar da autonomia de si, da responsabilidade,
da racionalidade capaz de produzir um saber de si e do mundo, da cons-
ciência de si e de seu papel na coletividade. Em suma, as teorias da edu-
cação se constituíram num processo de formação da imagem do homem:
educar é formar uma imagem-ideal de homem.2
Podemos, também, encontrar a premissa da educação como forma-
ção do sujeito naquilo que se convencionou chamar de romance de forma-
ção, ou seja, obras de literatura que vinculavam idéias pedagógicas, presen-
tes especialmente no iluminismo dos séculos XVIII e XIX. Nesse caso, os
romances de formação representam um “aprendizado, na medida em que
o herói constrói, a partir de um telos (uma meta) interior, a sua própria
personalidade e seus princípios de ação moral”.3 É exatamente esse senti-
do de formação da personalidade do sujeito que designamos pelo termo
educação como formação do Eu ou da subjetividade. A obra Emilio, de
Rousseau, talvez seja o exemplo mais acabado do romance de formação,
já que o autor narra todo o percurso em que se forma o caráter ou a per-
sonalidade do Emílio, desde o seu início, aos dois anos de idade, até os 25
anos, quando, segundo Rousseau, Emílio está formado e pronto para ocu-
par seu espaço na sociedade. Assim, etapa por etapa, Rousseau, na voz do
preceptor – condensando autor-narrador –, descreve de que maneira se dá
a formação do indivíduo. Essa formação do sujeito Emílio condiz com a
idéia de educação como condução, com o modo de levar de um lugar ao
outro, já que Emílio efetiva a passagem4 de um estado de natureza para a
racionalidade autônoma e a civilidade política.

1 Em sua etimologia, educação procede do latim ex-ducere, que significa o ato de levar, de conduzir de um
lugar para o outro.
2 Cf. GILES, 1983, p. 59-93.
3 FREITAG, 2001, p. 68.
4 Ibid., p. 75.

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O conceito de educação como formação ele se forma no bojo da possibilidade da cons-


humana terá ligações bastante estreitas com a ciên- ciência que pensa a si mesma, ou seja, que realiza
cia da educação, denominada pedagogia, que dele o movimento de distanciar-se de si e produzir um
se avizinharia em meados do século XIX. A educa- conhecimento de si. É assim que, em Descartes, a
ção como formação do sujeito ganha o sentido de consciência se autotematiza. Tal processo instau-
formação da subjetividade no contexto das ciên- rado pelo cogito desemboca naquilo que caracte-
cias humanas. Ou seja, com base na constatação riza o sujeito moderno: a sua subjetividade ou a
cartesiana do cogito, portanto, de um sujeito que substancialidade da consciência na idéia de Eu.
pensa a si mesmo, e consiste em sujeito e objeto Essa subjetividade é o ponto fixo procurado por
do saber, emerge o objeto de conhecimento que Descartes para fundamentar sua teoria: “Depois
irá constituir as ciências humanas. Como a peda- que Descartes estabeleceu de forma indubitável a
gogia se inscreve no plano da busca pelo carimbo existência do Eu pensante, o fundamento da ciên-
da cientificidade, ela faz do sujeito moderno seu cia, representado por essa certeza, parece ter sido
objeto de pesquisa. Sua preocupação é, então, a atingido de forma definitiva. A subjetividade ga-
formação do Eu, da personalidade ou da subjetivi- nha os contornos de um incondicionado que res-
dade apoiada nas relações de ensino e aprendiza- ponde às exigências de um ponto fixo e seguro”.6
gem, das quais faz uso de outras ciências humanas, O Eu pensante tornou-se, então, a premissa
notadamente a psicologia e a sociologia. teórica e o objeto de estudo das ciências huma-
Assim, a importância, para a educação, do nas. A pedagogia como ciência da educação, por
papel desempenhado pelo pressuposto teórico da sua vez, se estabelece no bojo dessas ciências, ins-
subjetividade ou do Eu é reconhecida pelos teó- creve-se no território da vontade de verdade,7 en-
ricos dessa ciência. Tanto aqueles que entendem tendida como aquela dos processos que se orga-
ser a educação formadora, quanto os que, por ou- nizam como educação. Tomando o sujeito mo-
tro lado, denunciam-lhe a “formatação” exercida derno, portanto, a subjetividade, e suas relações
sobre o sujeito partem do pressuposto de um Eu de ensino e aprendizagem, a pedagogia tornou-se
que assume o figurino de objeto desse processo. um saber de cunho científico acerca do sujeito da
Assim, a perspectiva de um Eu representado em educação: “Para que a Pedagogia pudesse ousar
objeto da educação não é indiferente. Muito pelo reivindicar um estatuto científico, foi necessário
contrário, as áreas do saber utilizadas pela peda- que os saberes se constituíssem enquanto repre-
gogia,5 como a psicologia da educação, a sociolo- sentação do real e que o próprio homem se fizes-
gia da educação e até as metodologias, partem da se alvo de representação, através das ciências hu-
premissa de que há um sujeito da educação. manas. Só quando ele próprio torna-se objeto
Nesse sentido, ao formular a teoria de uma científico é que se pode arriscar fazer ciência so-
consciência pensante e, para além disso, substan- bre sua formação”.8
cializar tal consciência num sujeito que pensa e A pedagogia emerge, nesse cenário, como
existe, Descartes tornou-se um divisor de águas a um saber científico sobre o sujeito moderno e
formular as bases epistemológicas para a suas relações ensino/aprendizagem. Esse saber
emergência das ciências humanas no século XIX. sobre o sujeito é exatamente o processo de for-
A teoria cartesiana do cogito instaura a possibili- mação do sujeito, ou seja, a pedagogia produz um
dade de emergência do sujeito moderno, já que saber sobre os mecanismos em que ocorre a for-
mação do indivíduo. Tal qual os romances de for-
5 “Quando um psicólogo investiga ou atua no campo educacional, ele mação, ela produz um saber sobre a formação do
aplica aí os conceitos e métodos da Psicologia e os resultados são de sujeito ou, em outras palavras, sobre a constitui-
ordem psicológica. O mesmo ocorre com a Sociologia, a Economia
etc. A Pedagogia integra os enfoques parciais dessas diversas ciências
em razão de uma aproximação global e intencionalmente dirigida aos 6 SILVA, 1993, p. 58.
problemas educativos e, nesse caso, os saberes dessas ciências conver- 7 GALLO, 1997, p. 112.
tem-se em saberes pedagógicos” (LIBÂNIO, 2004, p. 38). 8 Ibid., p. 97.

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ção da subjetividade. A escola manifesta-se, as- ção de Ego herda o problema da consciência, de
sim, como um espaço, por excelência, de forma- maior amplitude, exatamente porque tal noção
ção da subjetividade, de construção do sujeito, de insere-se na temática do Ego. Na abertura de A
produtora de pessoas. Dito de outra maneira, de Transcendência do Ego, encontramos: “Para a
como o sujeito, mediado pelo saber pedagógico, maior parte dos filósofos,12 o Ego é um ‘habitante’
constrói um saber sobre si mesmo: “como a pes- da consciência. Alguns afirmam a sua presença for-
soa humana se fabrica no interior de certos apa- mal no seio das Erlebnisse (experiência interna) co-
ratos (pedagógicos, terapêuticos) de subjetiva- mo um princípio vazio de unificação. Outros – psi-
ção. A dimensão mais geral da educação que este cólogos na maior parte – pensam descobrir a sua
trabalho pretende reconsiderar tem a ver com a presença material, como centro dos desejos e dos
antropologia da educação, isto é, com as teorias e atos, em cada momento da nossa vida psíquica”.13
práticas pedagógicas enquanto produtoras de Contra esse princípio de análise do Eu, Sartre
pessoas”.9 Desse modo, propõe sua desconstrução da possibilidade de um
no vocabulário pedagógico (...) utilizam-se muitos
princípio egológico infestar a vida humana. Nesse ca-
termos que implicam algum tipo de relação do su- so, o discurso sartriano, como veremos, inscreve-se,
jeito consigo mesmo: “autoconhecimento”, “auto- também, num cenário de reflexão sobre a consciên-
estima”, “autocontrole”, “autoconfiança”, “autono- cia, uma vez que nela está a argumentação da defesa
mia”, “auto-regulação” e “autodisciplina”. (...) to- da existência do Ego. É a consciência, pois, o cenário
dos esses termos se consideram como antropologi- em que se dará a disputatio das argumentações sartria-
camente relevantes na medida em que designam nas de deslocamento da noção de Ego da consciência
componentes que estão mais ou menos implícitos para o mundo.14
naquilo que para nós significa ser humano: ser uma
“pessoa”, um “sujeito” ou um “eu”.10 12 Os interlocutores fundamentais de Sartre, em A Transcendência do
Ego, e que defendem o postulado de um Ego na consciência são, fun-
Propomos, neste opúsculo, resgatar tal pre- damentalmente, Descartes, Kant e Husserl. Com relação a Descartes,
Sartre toma a intuição cartesiana do cogito ergo sum como o princípio
missa epistemológica de um Eu, tão caro à educa- constituidor do Ego na consciência. Assim, o pensar, atitude eminen-
temente da consciência, pressupõe um Eu que pensa, sendo assim que
ção, e colocá-la à luz da interpretação sartriana de o Ego habita a consciência cartesiana. Sobre isso, afirma Sartre: “O
um Eu desenvolvido pelo filósofo francês, notada- cogito de Descartes e de Husserl é um fato. Ora, é inegável que o
cogito é pessoal. No ‘Eu penso’ há um Eu que pensa. Atingimos aqui o
mente em A Transcendência do Ego, de 1936, con- Eu na sua pureza e é precisamente do cogito que uma ‘Egologia” deve
siderada a obra que lançou Sartre como pilar nos partir” (idem, 1994b, p. 49). Em O Ser e o Nada, ele diz: “O erro do
racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela
círculos de estudiosos da filosofia fenomenológica. primazia da existência sobre a essência, não poderia ser substância. A
consciência nada tem de substancial, é pura ‘aparência’, no sentido de
DO EGO TRANSCENDENTAL À TRANSCENDÊNCIA que só existe na medida em que aparece” (idem, 1999 p. 28). Para Sar-
DO EGO: A CRÍTICA DE SARTRE À SUBJETIVIDADE tre, Husserl é, também, depositário dessa tese da existência de um Eu
E SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO na consciência, como verificamos na afirmação: “[Husserl] Depois de
ter considerado que o Eu [Moi] era uma produção sintética e transcen-
A reflexão sartriana em torno da problemá- dente da consciência, retornou, nas Ideen, à tese clássica de um Eu
transcendental que estaria como que por detrás de cada consciência,
tica do Eu inscreve-se numa elaboração filosófica que seria uma estrutura necessária dessas consciências cujos raios cai-
cujo postulado é a consciência instância demarca- riam sobre cada fenômeno que se apresentasse no campo de cada aten-
ção” (ibid., p. 46-47). Quanto a esse mesmo aspecto, Consciência de Si
dora da natureza humana.11 Nesse sentido, o de- e Conhecimento de Si traz: “Para já, é necessário entender que não há
senvolvimento da desconstrução sartriana da no- nada na consciência que não seja consciência. Não há conteúdo de
consciência; não há, o que, na minha opinião, é o erro de Husserl,
sujeito por detrás da consciência, ou como uma transcendência na
9 LARROSA, 1999, p. 37. imanência” (idem, 1994a, p. 101).
13 Idem, 1994b, p. 43.
10 Ibid., p. 38. 14 Sartre não nega a existência de um Ego, porém, o problema está no
11 A consciência como ser do ser humano: “A consciência não é um
fato de situar esse Ego na consciência humana. Dessa feita, para ele, o
modo particular de conhecimento, chamado sentido interno ou Ego situa-se fora da dimensão humana, mais precisamente no mundo
conhecimento de si: é a dimensão de ser transfenomenal do sujeito” como um objeto de apreensão da consciência transcendental do
(SARTRE, 1999, p. 22). “Reduzimos as coisas à totalidade conexa de homem: “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciên-
suas aparências, e depois constatamos que as aparências reivindicam cia nem formal nem materialmente: ela está fora, no mundo; é um ser
um ser que já não seja aparência. O ‘percepi’ (percebido) nos remeteu do mundo, tal como o Ego de outrem” (ibid., p. 43). O Ego está mais
a um ‘percipiens’ (aqueles sujeitos que percebem), cujo ser se nos reve- para um objeto da consciência reflexiva do que para habitante da consci-
lou como consciência” (ibid., p. 29). ência.

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Para esse filósofo, a consciência não se de- ment).18 Ou seja, a consciência posicional equi-
fine como uma plenitude fechada em si, opaca e vale a um estourar para o mundo, conforme
maciça, a ponto de ser uma realidade que se “Uma idéia fundamental da fenomenologia de
basta. Pelo contrário, ele bebe, fielmente, do Husserl: a intencionalidade”:
princípio da fenomenologia husserliana, segun-
do a qual a consciência manifesta-se como po- Você sabe muito bem que a árvore não estava em
você mesmo, que não podia fazer entrar em seu es-
sicional: “Com efeito, a consciência define-se
tômago sombras e que o conhecimento não podia,
pela intencionalidade. Pela intencionalidade, ela sem desonestidade, comparar-se com a posse. Ao
transcende-se a si mesma, ela unifica-se escapan- mesmo tempo, a consciência purificou-se, é clara
do-se”.15 Ora, dizer que a consciência é posici- como um grande vento, e nada há nela, exceto um
onal significa que ela toma o objeto que está movimento para fugir, um deslizamento fora de si;
fora dela, no mundo, como objeto para a cons- se por milagre você entrasse “dentro”de uma cons-
ciência: “O objeto é transcendente às consciên- ciência, seria arrastado por um turbilhão e lançado
cias que o apreendem e é nele que se encontra fora, perto da árvore, em plena poeira, pois a cons-
sua unidade”.16 ciência não tem “interior”; ela não é nada [mais]
O mesmo princípio fenomenológico da que o exterior dela própria, e é essa fuga absoluta e
essa recusa a ser substância que a constituem como
consciência posicional é retomado em 1947,
consciência.19
numa palestra, à Sociedade Francesa de Filosofia,
intitulada Consciência de Si e Conhecimento de Si: E, mais adiante, nesse mesmo texto, ele
afirma:
Ora, se retornamos, num movimento perfeitamen-
te cartesiano, ao próprio cogito para o interrogar a Imagine de imediato uma série ligada de estouros
respeito de seu conteúdo, verificamos, por um lado, que nos arrancam de nós mesmos, que não dei-
que toda consciência é consciência de qualquer coi- xam sequer um “nós mesmos” o tempo necessá-
sa, o que significa que o objeto não está na consci- rio para se formar atrás deles, mas que nos lan-
ência a título de conteúdo, mas que ele está fora çam, pelo contrário, para além deles, dentro da
dela como algo intencionalmente visado. A consci- poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as
ência não é nem vazia nem plena; ela não tem nem coisas; imagine que somos expulsos dessa manei-
de ser preenchida nem de ser esvaziada; ela é pura e ra, rejeitados, abandonados pela própria natureza
simplesmente consciência do objeto.17 num mundo indiferente, hostil e teimoso; você
terá, assim, compreendido o sentido profundo da
A consciência implica, assim, a premissa de descoberta que Husserl exprime nessa frase fa-
que ela é posicional do mundo. Em outras pala- mosa: “Toda consciência é consciência de qual-
vras, a consciência é abertura para os objetos sol- quer coisa”.20
tos no mundo, e o mundo todo está necessaria-
mente fora da consciência. Nela nada existe se- A reflexão ontológica sobre o princípio
não um atirar-se para fora, para os objetos, para o fenomenológico da intencionalidade da cons-
mundo. A consciência é, portanto, consciência ciência é também descrita em O Ser e o Nada, pu-
blicado em 1943. Nele encontramos o resultado
do mundo.
da maturação filosófica de Sartre, quando ele in-
Para Sartre, a proposição fenomenológi- sere a intencionalidade numa dimensão da onto-
ca husserliana de intencionalidade e abertura
da consciência para o mundo é literariamente 18 Nas palavras de Sartre: “A consciência e o mundo surgiram simulta-

representada pela idéia de estouro (éclate- neamente: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essên-
cia, relativo a ela. É que Husserl considera a consciência um fato
irredutível que nenhuma imagem psíquica pode representar. Exceto,
15 Ibid., p. 47. talvez, a imagem rápida e obscura do estouro” (idem, 1998, p. 10).
16 Ibid., p. 47. 19 Ibid., p. 10.
17 Idem, 1994a, p. 99. 20 Ibid., p. 10-11.

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logia antropológica21 do ser do ser humano. É no não-substancialização da consciência, ou de que a


contexto, então, de uma análise antropológica consciência é vazia de todo conteúdo.
que Sartre recupera o princípio da intencionalida- Se, de acordo com o princípio da fenome-
de de Husserl, ao afirmar, em O Ser e o Nada: nologia, a consciência é sempre posicional, então
“Toda consciência, mostrou Husserl, é consciên- ela sempre tem por seu ser um objeto que não é
cia de alguma coisa. Significa que não há consci- ela mesma. Dito de outra forma, ao visar os ob-
ência que não seja posicionamento de um objeto jetos que estão no mundo, a consciência deflagra
transcendente, ou, se preferirmos, que a consci- a percepção de que em-si ela nada pode encontrar,
ência não tem ‘conteúdo’”.22 Posteriormente, ele exatamente por estar todo o mundo fora dela. É
conclui: “Toda consciência é posicional na medi- isso que implica a lei da intencionalidade da cons-
da em que se transcende para alcançar um objeto, ciência: a existência no mundo da consciência
e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto pressupõe a possibilidade de ela ser. “Como a
há de intenção na minha consciência atual está di- consciência não é possível antes de ser, posto que
rigida para o exterior, para a mesa; todas as mi- seu ser é fonte e condição de toda possibilidade,
nhas atividades judicativas ou práticas, toda a mi- é sua existência que implica sua essência. Eis o
nha afetividade do momento transcendem-se, vi- que bem exprime Husserl falando de sua ‘neces-
sam a mesa e nela se absorvem”.23 sidade de fato’.”25
Quanto a esse aspecto, Sartre parte do prin- Para Sartre, a intencionalidade da consciên-
cípio de intencionalidade proposto pela fenome- cia traz em seu bojo o fato de o mundo estar fora
nologia de Husserl, mas dele faz uso para efetivar da consciência, ou de que ela é sempre ausência:
a sua crítica ao fundador do método fenome- “Toda consciência é falta de... para”,26 ou, ainda,
nológico, notadamente a conclusão husserliana de que ela não tem conteúdo por ser abertura
sobre a substancialização da consciência por meio para o mundo atrás de sua essência: “O primeiro
do conceito de Ego transcendental.24 Assim é que, passo de uma filosofia deve ser, portanto, expul-
para além do Ego transcendental, de Husserl, sar as coisas da consciência e restabelecer a ver-
Sartre propõe uma transcendência do Ego, ou seja, dadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a
um ego que se efetiva no atirar-se para fora de si, consciência como consciência posicional do
no transcender-se, no ultrapassar a si rumo aos mundo”.27 Em A Transcendência do Ego, a cons-
próprios projetos. A transcendência do Ego é, exa- ciência, ao ser abertura para o mundo, entende os
tamente, o estouro da consciência para o mundo objetos como realidades transcendentes a ela, por
fundado no princípio de intencionalidade. Nesse estarem fora dela. Nessa medida, é também cons-
cenário de crítica, Sartre introduz sua premissa da ciência de si mesma: “Com efeito, a existência da
consciência é um absoluto porque a consciência
21 Sobre a perspectiva de Sartre ter desenvolvido uma antropologia está consciente dela mesma. Isso quer dizer que o
existencial de bases fenomenológicas, pode-se conferir, no estudo de tipo de existência da consciência é o de ser cons-
István Mészáros, A Obra de Sartre: busca da liberdade: “Pois, em sua
filosofia, estamos envolvidos diretamente com o homem que se inter-
ciência de si. E ela toma consciência de si enquan-
roga a respeito de seu próprio projeto que tenta ocultar de si mesmo, to ela é consciência de um objeto transcendente”.28
com todas as ambigüidades, subterfúgios, estratégias de má-fé e circu-
laridade implicadas. Por isso é que a ‘ontologia fenomenológica’ sartre-
O objeto não está na consciência como
ana deve ser concebida como uma antropologia existencial que se constituindo uma realidade que a habita; pelo
funde com preocupações morais e psicanalíticas práticas nesse ‘novo contrário, ele está no mundo.29 O fato de a cons-
tratado das paixões’ e, assim, ‘circularmente’, enrosca-se em si mesma
fundamentando-se precisamente pelas mesmíssimas dimensões exis- ciência ser abertura para o objeto pressupõe to-
tenciais que afirma fundamentar. Em conseqüência, tentar eliminar a mar consciência de que é consciência desse objeto
antropologia existencial da ontologia fenomenológica de Sartre, a fim
de torná-la ‘formalmente consistente’, seria equivalente à futilidade e
ao absurdo de tentar a quadratura do círculo” (MÉSZÁROS, 1991, p. 25 Ibid., p. 27.
172-173). 26 SARTRE, 1994b, p. 153.
22 SARTRE, 1999, p. 22. 27 Idem, 1999, p. 22.
23 Ibid., p. 22. 28 SARTRE, 1994b, p. 48.
24 Sobre a crítica sartriana à subjetividade transcendental de Husserl, 29 Segundo Sartre, “Uma mesa não está na consciência, sequer a título
conferir as reflexões de Juliette Simont, Jean-Paul Sartre: um demi- de representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela etc.” (idem,
siècle de liberte (SIMONT, 1998, p. 25-28). 1999, p. 22).

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transcendental: “o objeto está face a ela com a sua ciso acrescentar que esta consciência de consciên-
opacidade característica, mas ela, ela é pura e sim- cia [...] não é posicional, o que quer dizer que a
plesmente consciência de ser consciência desse consciência não é para si mesma seu objeto. O seu
objeto, é a lei de sua existência”.30 Torna-se impe- objeto está, por natureza, fora dela e é por isso
rativo sublinhar a necessidade de a consciência ser que, por um mesmo ato, ela o põe e o apreende”.33
consciência do objeto, na medida em que a apre- Em O Ser e o Nada, esse filósofo expõe a
ensão ontológica do objeto mundano pela cons- mesma tese: “Em outros termos, toda consciên-
ciência reflexiva é possível, se souber que é cons- cia posicional do objeto é ao mesmo tempo cons-
ciência desse objeto. É isso que mais tarde Sartre ciência não-posicional de si”.34 Posteriormente,
quer dizer, quando afirma, em O Ser e o Nada: em Consciência de Si e Conhecimento de Si, en-
Contudo, a condição necessária e suficiente para contramos: “Mas a consciência de qualquer coisa
que a consciência cognoscente seja conhecimento implica necessariamente, sob pena de cair no in-
de seu objeto é que seja consciente de si como sen- consciente, uma consciência de si. Permito-me
do este conhecimento. É uma condição necessária: aqui indicar-vos que porei sempre este ‘de’35 en-
se minha consciência não fosse consciência de ser tre parênteses; é um sinal36 tipográfico”.37 E ain-
consciência de mesa, seria consciência dessa mesa da: “Designaremos tal consciência como cons-
sem ser consciente de sê-lo, ou, se preferirmos,
ciência do primeiro grau ou irrefletida”.38 O mes-
uma consciência ignorante de si, uma consciência
inconsciente – o que é absurdo.31 mo argumento da necessidade de uma cons-
ciência não-posicional de si, ou irrefletida, é
Por outro lado, o fato de a consciência de- desenvolvido também em O Ser e o Nada:
ver ser consciência de si, ou seja, ter consciência
de que é consciência do mundo impõe que seja Se conto os cigarros dessa cigarreira, sinto a revela-
não posicional a si mesma. Em outras palavras, a ção de uma propriedade objetiva do grupo de cigar-
consciência é posicional do mundo, mas, por sê- ros: são doze. Esta propriedade aparece à minha
lo, é consciência de si, ou consciência não posicio- consciência como propriedade existente no mundo.
nal de si mesma.32 Nas palavras de Sartre: “é pre- Posso perfeitamente não ter qualquer consciência
posicional de contar os cigarros. (...) E, todavia, no
30 Ibid., p. 48.
31 Ibid., p. 23. 33 Ibid., p. 48.
32 Isso explica por que, se a consciência fosse posicional do mundo e 34 Idem, 1999, p. 24.
de si mesma, deveria haver outra consciência que não fosse posicional 35 “Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova cons-

de si, e, assim, cairíamos numa regressão ao infinito, de uma consciên- ciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência
cia de consciência, de consciência etc. É o que atesta Sartre: “Se, ao de alguma coisa” (ibid., p. 25).
contrário, nós consideramos que eu ignoro neste momento que existo, 36 Esse artifício tipográfico utilizado por Sartre para diferenciar a cons-
que estou tão absorto que, ao interromperem a minha leitura, me per- ciência pré-reflexiva da consciência reflexiva não deve ser visto superfi-
guntarei onde estou, mas que a minha leitura implica talvez a consciên- cialmente, como mero detalhe que não afere qualquer novidade
cia da minha leitura, a consciência da minha leitura não pode então substancial na filosofia sartriana. Muito pelo contrário, é um pormenor
pôr-se como a consciência do livro diante de mim. Diremos, portanto, que exerce papel diferenciador no estudo sobre a consciência humana.
que se trata de uma consciência não-condicional ou não-tética. É indis- Vejamos: como vimos, a consciência intencional é abertura para o
pensável manter esta consciência se queremos evitar o regresso ao infi- mundo. Isso quer dizer que ela é consciência do objeto que está no
nito” (idem, 1994a, p. 100). Quanto a esse aspecto, podemos ver, mundo. Porém, mais do que isso – e esse é o ponto nevrálgico de tal
também, as análises de Pedro M. S. Alves, na introdução à edição por- artifício tipográfico –, essa consciência é consciência de si mesma, ou
tuguesa de A Transcendência do Ego: “E esta tese da principialidade e seja, é consciência de que é consciência do objeto. O fato de ser cons-
da autonomia do nível irrefletido tem, na verdade, alguma plausibili-
ciência de consciência não significa que ela seja objeto reflexivo para si
dade. Ela permite, nomeadamente, resolver o clássico problema da
mesma ou, então, que existam duas consciências. Diferentemente, a
regressão ao infinito que está supostamente envolvida em toda e qual-
tese da consciência de significa, por um lado, que ela é ao mesmo
quer consciência de si. É que, se não operarmos a distinção entre cons-
ciência atemática ou não-tética de si e reflexão, ou consciência tética de tempo consciência do objeto e de si mesma, e, por outro, transparente
si mesmo, torna-se então impossível compreender como é que alguma para si mesma, translúcida, ou seja, não tem conteúdo. Vejamos a inter-
vez algo como uma consciência de si se pode efetivar. E isto porque, se pretação de Moutinho: “Sartre utiliza um artifício para referir-se a esse
consciência de si significasse já um estar em face de si como objeto de fato: ele fala em consciência de algo que é também consciência (de) si,
um ato de reflexão, então o próprio ato reflexivo, na exata medida em colocando esse último entre parênteses. Com isso indica que não se
que é consciência de um objeto que lhe faz face mas não ainda consci- trata de uma consciência que põe a si mesma como tema, que visa a si
ência reflexiva de si mesmo, seria novamente um ato irrefletido que mesma reflexivamente, duplicando-se a si própria, mas sim daquela
exigiria uma outra reflexão dotada da mesma estrutura e assim sucessi- mesma consciência de algo que é afinal translúcida para si” (MOUTI-
vamente, de tal modo que a completa consciência de si exigiria um NHO, 1995, p. 48).
número infinito de condições para se consumar” (ALVES, P.M.S. 37 SARTRE, 1994a, p. 99.

“introdução”, in: idem, 1994b, p. 11). 38 Idem, 1994b, p. 48.

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momento em que estes cigarros revelam-se a mim car”? Muitas vezes, a educação pressupõe um Eu
como sendo doze, tenho consciência não-tética de que deve receber os conhecimentos necessários à
minha atividade aditiva. (...) Ao mesmo tempo, a formação do sujeito. Assim, a finalidade da edu-
consciência não-tética de contar é condição mesma cação é, invariavelmente, a constituição de um su-
de minha atividade aditiva.39
jeito autônomo, cidadão e capaz de usar suas ha-
Mais à frente nesse texto, ele afirma que bilidades na vida cotidiana. Com base nesse pre-
“toda existência consciente existe como cons- ceito, enfim, a formação do Eu e a aquisição do
ciência de existir. Compreendemos agora porque conhecimento representam dois pilares do obje-
a consciência primeira de consciência não é posi- tivo da educação.
cional: identifica-se com a consciência da qual é A despeito disso, para Sartre não há um
consciência”.40 Para ele, a consciência não-tética Eu43 a habitar a consciência: “Nós perguntamos:
de si é a condição de possibilidade para que a há lugar para um Eu numa tal consciência? A res-
consciência seja consciência do mundo. Em ou- posta é clara: evidentemente que não”.44 Vista
tras palavras, para que a consciência seja abertura desde o olhar fenomenológico de Sartre, a possi-
reflexiva ao mundo, ela precisa da consciência bilidade de um Eu habitar a consciência traz em
não posicional para se constituir. Essa é a lei da seu bojo a própria destituição da consciência.
consciência e a única possibilidade de ela ser algo: Isso porque o Eu, sendo uma estrutura interna
“Esta consciência (de) si não deve ser considera- fechada45 em si, sendo pura identidade, a ponto
da uma nova consciência, mas o único modo de de o sujeito autodefinir-se pela forma “Eu sou as-
existência possível para uma consciência de alguma sim, calmo, nervoso, solitário etc.”, institui na
coisa”.41 Em A Transcendência do Ego, lemos: consciência uma densidade fechada que não é lhe
“Chegamos, portanto, à seguinte conclusão: a própria, pois arranca dela aquilo que tem de mais
consciência irrefletida deve ser considerada autô- precioso: sua abertura para o mundo e sua possi-
noma. É uma totalidade que não tem necessidade bilidade de ser. Em outras palavras, a possibilida-
nenhuma de ser completada”.42 de de um Eu, com sua demarcação identitária que
Demarcado o terreno da antropologia sar- faz com que a consciência seja exatamente “isso”:
triana, verificamos que a consciência é sempre plena, cheia de si mesma, engessada e delimitada
posicional, ou abertura para o mundo. Mas essa à sua condição de estourar para o mundo. É isso
consciência do mundo apresenta, como condição que Sartre quis dizer com a afirmação de que um
à sua constituição, uma consciência de ser cons- Eu habitando a consciência significa um centro
ciência do mundo ou, na terminologia de Sartre, de opacidade46 na consciência.
a consciência posicional necessita de uma consci-
A concepção fenomenológica da consciência torna
ência não-posicional (de) si. Dito isso, podemos
totalmente inútil o papel unificante e individuali-
voltar à nossa questão inicial: haveria, nessa cons-
zante do Eu. É, ao contrário, a consciência que tor-
ciência não-posicional, um Eu? Teria essa cons- na possível a unidade e a personalidade do meu Eu.
ciência pré-reflexiva, que é a nossa condição de
ser, um Ego objeto da formação educacional? 43 Sobre o postulado sartriano de uma consciência sem Ego, podem ser

Essa consciência não-tética seria dotada de um observadas as análises de MOUILLIE, 2000, p. 32-40.
44 SARTRE, 1994b, p. 48.
Eu constitutivo do objeto da educação? Sabemos 45 Diferente da consciência que é abertura para o mundo.

o quanto a educação prescinde de um Eu a ser 46 O Eu é um centro de opacidade na consciência, pois, para Sartre, é
um Em-si que invade e infesta a consciência com seu princípio de iden-
educado, exatamente porque ela repetitivamente tidade, sua opacidade. O Eu, por ser um Em-si, é maciço: “como pólo
se coloca a pergunta sobre “quem se deve edu- unificador, o ego é Em-si e não Para-si” (idem, 1999, p. 156). Sobre o
Em-si, O Ser e o Nada, Sartre afirma: “Nesse sentido, o princípio de
identidade, princípio dos juízos analíticos, é também princípio regional
39 Idem, 1999, p. 24. sintético do ser. Designa a opacidade do ser-Em-si. (...). O ser-Em-si
40 Ibid., p. 25. não possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a um
41 Ibid., p. 25. juízo, uma lei, uma consciência de si. O ser-Em-si não tem segredo: é
42 Idem, 1994b, p. 57. maciço” (ibid., p. 39).

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O Eu transcendental não tem, portanto, razão de tida, já que os objetos não puderam ser percepcio-
ser. Mas, além disso, este Eu supérfluo é nocivo. Se nados senão por esta consciência e lhe permanecem
ele existisse, arrancaria a consciência de si mesma, relativos. Quanto a esta consciência, não se deve
dividi-la-ia em cada consciência como uma lamela pô-la como objeto da minha reflexão; ao contrário,
opaca.47 é preciso que eu dirija a minha atenção para os ob-
jetos ressurgidos, mas sem a perder de vista, man-
E mais adiante nesse texto, Sartre continua: tendo com ela uma espécie de cumplicidade e in-
ventariando o seu conteúdo de modo não-posicio-
Com efeito, o eu, com a sua personalidade, por
nal. O resultado não oferece dúvidas: enquanto lia,
mais formal e abstrato que o suponhamos, é como
havia consciência do livro, dos heróis do romance,
que um centro de opacidade. (...) Se, por conse-
mas o Eu não habitava esta consciência, ela era so-
guinte, se introduz essa opacidade na consciência,
mente consciência do objeto e consciência não-po-
destruímos com isso a tão fecunda definição que há
sicional dela mesma.50
pouco dávamos, cristaliza-mo-la, obscurecemo-la,
ela já não é uma espontaneidade, ela traz nela mes- Ele avança, então, na idéia sobre a não exis-
ma como que um germe de opacidade.48 tência de um Eu na consciência irrefletida:
Assim, a opacidade do Eu é nociva à cons- Visto que, portanto, todas as recordações não-refle-
ciência, pois congela a abertura e, portanto, a pos- xivas da consciência irrefletida me mostram uma
sibilidade de a consciência ser, numa definição to- consciência sem eu, visto que, por outro lado,
talizada que a aprisiona num modo de ser impró- considerações teóricas baseadas na intuição de es-
prio ao ser da consciência. No texto Consciência sência da consciência nos levaram a reconhecer que
de Si e Conhecimento de Si, Sartre sustenta a o Eu não podia fazer parte da estrutura interna das
noção de opacidade do Eu na consciência, ao afir- “Erlebnisse”, temos, portanto, que concluir: não há
mar: “O fato de dizer que ela não é habitada por Eu no plano irrefletido.51
um Ego tem essencialmente o significado seguin- Esse texto traz ainda a mesma conclusão:
te: é que um Ego, como habitante da consciência, “Assim, o estudo puramente psicológico da cons-
é uma opacidade na consciência”.49 A instauração ciência ‘intramundana’ leva-nos as mesmas con-
de um Eu na consciência traz a ela a fissura em clusões que nosso estudo fenomenológico: o eu
seu ser abertura para o mundo, num estratagema não deve ser procurado nem nos estados irrefle-
coagulado ou numa identidade que desvirtua a tidos de consciência nem por detrás deles”.52 To-
consciência de seu ser. Em síntese, se um Eu é mando por base essas considerações sartrianas,
possível na consciência, aponta Sartre, então a faz-se jus afirmar que não existe um Eu para a
premissa fundamental do existencialismo de que educação, ou melhor, não há um Eu habitante em
a existência precede a essência esvai-se na densi- nossa consciência que se constituiria no objeto
dade do Eu, que, portanto, a desvirtua, transfor- do processo educacional. Se a educação pressu-
mando-a na premissa do idealismo de que a es- põe, como condição de possibilidade, um sujeito
sência – aqui o Eu – precede a existência. a ser educado e formado numa certa quantidade
Em A Transcendência do Ego, Sartre dá-nos de habilidades, então ela é um processo estéril,
exemplos de que o Eu é impossível à consciência pois não há um Eu a ser educado e formado.
pré-reflexiva: Por outro lado, conforme vimos, a cons-
Por exemplo, eu estava, mesmo agora, absorvido na ciência pré-reflexiva é condição de possibilidade
minha leitura, a minha atitude, as linhas que eu lia. de a consciência apreender, pela reflexão, o mun-
Vou assim ressuscitar não só estes detalhes exterio- do que se abre para a intencionalidade: “Assim,
res, mas uma certa espessura da consciência irrefle- não há primazia da reflexão sobre a consciência

47 Idem, 1994b, p. 48. 50 Idem, 1994b, p. 51.


48 Ibid., p. 49. 51 Ibid., p. 52.
49 Idem, 1994a, p. 101. 52 Ibid., p. 58.

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refletida: esta não é revelada a si por aquela. Ao a consciência reflexiva, pode abstrair todo o
contrário, a consciência não-reflexiva torna pos- mundo que está fora da consciência.
sível a reflexão: existe um cogito pré-reflexivo A consciência pré-reflexiva tem como es-
que é condição do cogito cartesiano”.53 Em se- trutura dever ser consciência de ser consciência
guida, Sartre afirma: “A reflexão é o Para-si do mundo, o que, por sua vez, implica ser cons-
(consciência) consciente de si mesmo. Como o ciência (de) consciência, condição de possibilida-
Para-si já é consciência não-tética (de) si, costu- de da consciência reflexiva. Essa é, da ótica sartri-
mamos representar a reflexão como uma cons- ana, a consciência que apreenderá conceitualmen-
ciência nova, que surge bruscamente, apontada te o mundo dos objetos. Podemos, então, per-
para a consciência refletida e vivendo em simbi- guntar se não seria essa consciência reflexiva o
ose com esta”.54 lugar no qual encontraremos o Ego, matéria-pri-
Em A Transcendência do Ego, ele descreve a ma dos saberes pedagógicos e necessários, por-
mesma estrutura dual da consciência: “Ora o in- tanto, para a formação do sujeito?59
teresse desta tese parece-nos ser o de pôr em re- De fato, para Sartre, o Eu é objeto unica-
levo um erro muito freqüente dos psicólogos: mente da consciência reflexiva: “Ninguém sonha
consiste ele em confundir a estrutura essencial negar que o Eu apareça numa consciência refleti-
dos atos reflexivos com a dos atos irrefletidos.55 da”.60 Ele também afirma: “O Ego aparece à re-
Ignora-se que há sempre duas formas de existên- flexão como um objeto transcendente que realiza
cia possível para uma consciência”.56 E concluí- a síntese permanente do psíquico”.61 E, finalmen-
mos, então, com Sartre: “Neste caso a estrutura te, “O Ego é um objeto apreendido, mas também
completa da consciência é a seguinte: há um ato constituído pelo saber reflexivo. É um foco virtual
irrefletido de reflexão sem Eu que se dirige para de unidade e a consciência constitui-o no sentido
uma consciência reflexiva”.57 É da parte da cons- inverso ao que a produção real segue: o que é pri-
ciência reflexiva que podemos apreender aquilo meiro realmente são as consciências, através das
que habita o mundo.58 É graças a uma consciên- quais se constituem os estados, depois, através
cia não-tética, ou seja, que não coloca a si mesma destes, o Ego”.62 Nesse sentido, a possibilidade da
como objeto, que a consciência de segundo grau, emergência de um Eu na interioridade humana
circunscreve-se na dimensão da consciência que
53 Idem, 1999, p. 24. reflete e apreende o mundo pela reflexão.
54 Ibid., p. 208.
55 A despeito de postular a existência de dois modos possíveis de a Mas voltemos à questão anteriormente ela-
consciência se manifestar, Sartre estipula uma certa hierarquia entre borada: é possível, então, um Eu na consciência
eles. Ou seja, para Sartre, a primazia é sempre da consciência pré-refle-
xiva sobre a consciência reflexiva, pois ela é condição de possibilidade reflexiva? É possível à nossa consciência reflexiva
para a reflexão. “A definição do refletido não é o ser ele posto por uma apreender um Eu em sua interioridade? De novo,
consciência? Mas, além disso, como admitir que o refletido é primeiro
com relação ao irrefletido? Sem dúvida, pode conceber-se, em certos a resposta de Sartre é negativa, ou seja, a consci-
casos, que uma consciência apareça imediatamente como refletida. ência reflexiva não pode apreender em si um Eu
Mas mesmo então o irrefletido tem prioridade ontológica sobre o
refletido” (idem, 1994b, p. 57). Além do irrefletido ter autonomia que habite essa consciência. Isso porque a refle-
sobre o refletido, é também condição de possibilidade da reflexão, xão é fraturada em sua possibilidade de abarcar a
conforme Bornheim: “Mas se se compreender o homem como um
ser-no-mundo, esse mundo não pode ser esquecido nem mesmo pro- totalidade do objeto, ou seja, é incapaz de produ-
visoriamente; e se o cogito reflexivo está condicionado pelo pré-refle- zir um conhecimento sobre a realidade mundana
xivo, então o plano do pensamento deve ceder o seu lugar a uma
experiência existencial concreta – uma experiência que permita atingir e, muito menos, portanto, do próprio sujeito. Por
o sentido da existência em seu ser-no-mundo” (BORNHEIM, 2000, outro lado, a consciência reflexiva não pode
p. 19).
56 SARTRE, 1994b, p. 56.
57 Ibid., p. 55. 59 A esse respeito, Sartre levanta a questão: “Temos, portanto, razões
58 A este respeito, segundo Sartre: “O Estado aparece à consciência para perguntar se o Eu que pensa é comum às duas consciências sobre-
reflexiva. Ele dá-se-lhe e constitui o objeto de uma intuição concreta. postas ou se ele não é antes o da consciência refletida” (ibid., p. 50-51).
Se odeio Pedro, o meu ódio de Pedro é um estado que posso apreender 60 Ibid., p. 52.
pela reflexão. Este estado está presente diante do olhar da consciência 61 Ibid., p. 65.
reflexiva, ele é real” (ibid., p. 59). 62 Ibid., p. 69.

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apreender o Eu simplesmente porque o Eu não pensar que tenho um tal Eu (Moi). O erro não se
está na consciência – nem na pré-reflexiva quan- comete, aliás, ao nível do juízo, mas antes já no ní-
to, como agora vemos, na reflexiva –, e sim no vel da evidência pré-judicativa. Esse caráter duvido-
mundo, como um objeto. so de meu Ego – ou mesmo o erro intuitivo que co-
Diante de uma realidade que habita o mun- meto – não significa que tenho um Eu (Moi) ver-
do – o ódio, por exemplo –, a consciência refle- dadeiro que ignoro, mas somente que o Ego visado
xiva irá apreender os estados desse ódio, ou seja, traz em si mesmo o caráter da dubitabilidade (em
certos casos o da falsidade).66
irá produzir conceitos e conhecimento sobre o
ódio. Nesse sentido, pergunta Sartre, seria a mes- A partir daí, fica claro que para Sartre o Eu
ma coisa dizer, pela consciência reflexiva, o que o não habita nem a consciência pré-reflexiva, como
ódio é, e pronunciar a seguinte sentença: “Eu
vimos, nem a consciência reflexiva. A despeito
odeio Pedro”? Evidentemente, na segunda sen-
disso, o Eu é real, ou seja, existe, para Sartre.67
tença está implicada uma transposição para o in-
Nesse sentido, o problema do Eu não é sua a
finito que o ódio em si não corrobora.
existência, mas o lugar em que podemos situá-lo
Quanto à reflexão, afirma Sartre: “Não é
para a consciência reflexiva. O eixo de análise em
preciso mais nada para que os direitos da reflexão
torno da temática do sujeito muda, então, de fo-
sejam singularmente limitados: é certo que Pedro
me repugna, mas é e ficará para sempre duvidoso co. Não é no sujeito que devemos procurar o Eu,
que eu o odeie. Com efeito, esta afirmação extra- mas no mundo,68 como um objeto do mundo,
vasa infinitamente o poder da reflexão”.63 E pros- pois o Eu é um habitante do mundo, como qual-
segue: “Desse modo, a reflexão tem um domínio quer outro objeto. “Tal qual é o Eu (Moi) perma-
certo e um domínio duvidoso, uma esfera de evi- nece-nos desconhecido. E isso pode compreen-
dências adequadas e uma esfera de evidências ina- der-se facilmente: ele dá-se como um objeto.
dequadas”.64 Para ele, não há um Eu que habite a Portanto, o único método para o conhecer é a
nossa consciência reflexiva e que possa vir a ser observação, a aproximação, a espera, a experiên-
aprendido por algum tipo de reflexão. cia.”69 E mais adiante: “O Ego não é proprietário
da consciência, ele é o objeto”.70 Em O Ser e o
Ora, nós perguntamos: quando uma consciência
Nada, encontra-se o mesmo argumento:
reflexiva apreende o Eu penso, entrega-se ela à apre-
ensão de uma consciência plena e concreta agluti- Não posso ser objeto para mim mesmo porque sou
nada num momento real de duração concreta? A
o que sou; abandonado aos meus próprios recursos,
resposta é clara: o Eu não se dá como um momento
o esforço reflexivo rumo à dissociação resulta em
concreto, como uma estrutura perecível da minha
fracasso; sempre sou recuperado por mim. E quan-
consciência atual; ele afirma, ao contrário, a sua per-
manência para lá desta consciência e de todas as do afirmo ingenuamente que é possível que eu seja
consciências e – se bem que, certamente, ele não se um ser objetivo sem me dar conta disso, pressupo-
pareça com uma verdade matemática – o seu tipo de nho implicitamente, por isso mesmo a existência do
existência aproxima-se muito mais do das verdades outro; porque, como eu poderia ser objeto se não
eternas do que do da consciência.65 fosse para um sujeito.71

E mais à frente nesse texto: 66 Ibid., p. 67.


67 Em suas próprias palavras: “Devemos concordar com Kant que ‘o
Eu Penso’ deve poder acompanhar todas as nossas representações”
Por exemplo, posso ver com evidência que sou co- (ibid., p. 43). E mais adiante: “O cogito de Descartes e de Husserl é a
lérico, invejoso etc., e, no entanto, posso enganar- verificação de um fato” (ibid., p. 49).
68 “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência
me. Dito de outro modo, posso enganar-me ao
nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do
mundo, tal como o Ego de outrem” (ibid., p. 43).
63 Ibid., p. 60-61. 69 Ibid., p 72.
64 Ibid., p. 60-61. 70 Ibid., p. 78.
65 Ibid., p. 53. 71 Idem, 1999, p. 347.

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Se o Eu não está na consciência como um tanto, não o viso como se pudesse ser-me dado
habitante, e sim no mundo, o lugar em que é pos- um dia, mas, ao contrário, como algo que me
sível apreendê-lo é no outro sujeito, ou melhor, o foge por princípio e jamais me pertencerá”.75 E
meu Eu está no outro na medida em que ele tem continua: “Assim, sou meu ego para o outro no
a posse desse Eu. meio de um mundo que escoa em direção ao ou-
tro”.76 O outro é quem fornece os elementos pa-
Serei eu preguiçoso ou trabalhador? Decidirei, sem ra, da minha consciência reflexiva, emergir um
dúvida, se me dirigir àqueles que me conhecem e
Eu: “E a presença sem intermediário desse sujeito
lhes perguntar sua opinião. (...) Mas seria inútil di-
é a condição necessária de qualquer pensamento
rigir-me diretamente ao Eu (Moi) e tentar benefici-
ar de sua intimidade para o conhecer. Pois é ela, ao
que tento formular a meu respeito”.77
contrário, que nos barra o caminho. Assim, “co- Por fim:
nhecer-se bem” é, fatalmente, tomar sobre si o pon- O outro detém um segredo: o segredo do que sou.
to de vista de outrem, quer dizer, um ponto de vista Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e esta
forçosamente falso.72 possessão nada mais que a consciência de meu pos-
suir. E eu, no reconhecimento de minha objetivida-
Isso leva a crer que o homem está conde-
de, tenho a experiência de que ele detém esta cons-
nado à impossibilidade de conhecer seu próprio ciência. A título de consciência, o outro é para mim
Eu, pois este foi-lhe arrancado de sua própria aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo,
consciência e jogado no mundo. Além disso, esse aquele que faz com que ‘haja’ um ser que é o meu.78
Eu do sujeito que está jogado e habita o mundo
é, também, objeto para uma outra consciência No entanto, além de esse sujeito estar des-
posicional e abertura para, entre outras coisas, tituído de sua identidade, de seu Eu, ele é refém
meu Eu, objeto dessa consciência. do outro, na medida em que o outro detém o se-
No capítulo sobre a alteridade, em O Ser e gredo do Eu do sujeito. Isso dificulta ainda mais
o Nada, Sartre desenvolve essa temática da cons- a possibilidade de substancialização do Ego, pre-
tituição do meu Eu pelo outro.73 Assim, os ho- so ao olhar do outro, por excelência aquele que
mens que transitam pela rua não passam de ob- detêm o segredo do ser do ser humano.
jeto para a consciência: “Estou em um jardim pú- Um Eu estabelecedor do sujeito da Educa-
blico. Não longe de mim há um gramado e ao ção não poderia ser encontrado no interior do
longo deste gramado, assentos. Um homem pas- homem. Este está fadado a conviver com o nada
sa perto dos assentos. Vejo este homem e capto- de seu ser. Se existe a possibilidade, mesmo que
o ao mesmo tempo como um objeto e como um seja um mito, de educar instituindo uma subjeti-
homem”.74 vidade ou formando um Eu, este deveria ser bus-
cado no mundo, como um objeto. Nesse caso, a
Como sou habitante do mundo, e desti-
educação deveria buscar no outro o Eu do sujeito
tuído de um Eu, estou, por princípio à mercê do
que está passando pelo processo educativo, po-
outro. Desse outro do qual emergirá o meu Eu,
rém, isso é um absurdo. Como resultado, o ob-
exatamente porque este é objeto da consciência
jeto da educação se desmancha no ar, esvai-se,
reflexiva do outro: “com efeito, meu ego está se-
perde-se no mundo como um sopro.
parado de mim por um nada que não posso pre-
CONCLUSÃO
encher, posto que o apreendo enquanto não é Exposto o itinerário sartriano de descons-
para mim e existe por princípio para o outro; por- trução do sujeito efetivado, particularmente em
72
A Transcendência do Ego, constatamos que a pos-
Idem, 1994b, p. 73.
73 O outro é o constituidor de meu Eu que está no mundo porque o “
outro é o ser ao qual não volto minha atenção. É aquele que me vê e 75 Ibid., p. 336.
que ainda não vejo; aquele que me entrega o que sou como não-reve- 76 Ibid., p. 336.
lado, mas sem revelar a si mesmo” (idem, 1999, p. 346). 77 Ibid., p. 348.
74 Ibid., p. 329. 78 Ibid., p. 454-455.

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sibilidade de um Eu habitar a consciência humana que autômato, segurando a bandeja com um espé-
é estéril. A condição humana é a de ser um ser- cie de temeridade de funâmbulo, mantendo-a em
do-mundo, jogado em meio ao mundo, engolin- equilíbrio perpetuamente estável, perpetuamente
do-o por meio da consciência reflexiva. interrompido, perpetuamente restabelecido por li-
geiro movimento do braço e da mão. Toda sua con-
O ser humano deve, então, conviver com o
duta parece uma brincadeira. Empenha-se em enca-
nada de seu ser, com a sua consciência, que, sen- dear seus movimentos como mecanismos regidos
do posicional, é cheia de nada. O nada é a marca uns pelos outros. Sua mímica e voz parecem meca-
patente existência humana. Assim, o homem está nismos, e ele assume a rapidez e presteza inexorável
condenado à perpétua busca de preenchimento das coisas. Brinca e se diverte. Mas brinca de quê?
desse ser, pura nadificação, pois está destituído de Não é preciso muita coisa para descobrir: brinca de
sua identidade, de seu Eu, de seu Ego. Diante ser garçom (...). Vemos quantas precauções são ne-
desse nada que desertifica a realidade humana, o cessárias para aprisionar o homem no que é, como
homem toma atitudes que materializam a tenta- se vivêssemos no eterno temor de que escape, ex-
tiva de ser um ser diferente do ser que é, ou seja, travase e iluda sua condição. Acontece que, parale-
um ser pleno de si, uma identidade absoluta ao lamente, o garçom não pode ser garçom, de imedi-
modo do ser-Em-si. ato e por dentro, à maneira que esse tinteiro, esse
copo é copo. (...) E é exatamente o sujeito que devo
De acordo com Sartre, em face das nega-
ser e não sou. Não porque não o queira ou seja ou-
ções daquilo que o homem é, este toma uma ati- tro. Sobretudo, não há medida comum entre o ser
tude: “As atitudes de negação com relação a si da condição e o meu.83
permitem nova pergunta: o que deve ser o ho-
mem em seu ser para que lhe seja possível negar- Sartre afirma que essa é uma atitude de má-
se?”.79 Ante o nada de seu ser, o homem toma a fé, exatamente porque o sujeito é destituído de
“atitude de má-fé”.80 “Aceitemos que má-fé seja uma identidade e, portanto, povoado pelo nada,
mentir a si mesmo”, propõe o autor.81 A má-fé mas ele mente para si, brincando de ser alguma
aparece na realidade humana exatamente porque coisa.
o homem é estéril de um Eu e não consegue viver Com base nesse instrumental sartriano, po-
a facticidade de seu ser ter sido roubado pelo ou- demos levantar as seguintes questões: não seria a
tro. Se a identidade fosse real na vida humana, a educação uma atitude marcada, em seu bojo, de
atitude de má-fé não teria função de existir: “Se o má-fé? O processo educacional, quando visa for-
homem é o que é, a má-fé seria definitivamente mar um sujeito, quando os saberes pedagógicos
impossível”.82 produzem uma subjetividade ou um Eu, não es-
Diante do nada de seu Eu, o sujeito toma taria agindo de má-fé, fazendo a pessoa enganar a
uma atitude de ser alguma coisa, uma atitude de si mesma? Ou, ainda, em face do nada do sujeito,
má-fé, uma vez que ele nada é e projeta ser algo. a educação não contribuiria para a má-fé, ao se
Em outras palavras, mente para si mesmo, como propor como caminho para a formação de um su-
nesse exemplo: jeito? O homem que se propõe pela educação for-
Vejamos este garçom. Tem gestos vivos e marcados, mar seu ser – a subjetividade do ser advogado, por
um tanto precisos demais, um pouco rápidos de- exemplo – não age de má-fé, e a educação não se
mais, e se inclina com presteza algo excessiva. Sua revelaria, nesse caso, o fiel da balança dessa má-fé?
voz e seus olhos exprimem interesse talvez dema- Voltemos a Sartre: “O aluno atento que
siado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta- quer ser atento, o olhar preso no professor, todo
se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe-se lá ouvidos, a tal ponto se esgota em brincar de ser
79
atento que acaba por não ouvir mais nada”.84 Não
SARTRE, 1999, p.92
80 Ibid., p. 92-93.
81 Ibid., p. 93. 83 Ibid., p.105-106.
82 Ibid., p 105. 84 Ibid., p. 107.

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estaríamos agindo de má-fé, ao brincar de ser es- com má-fé, ao brincar de ser professor? E a edu-
tudante, por exemplo, de filosofia? O professor, cação não seria o fio condutor da proliferação da
diante do nada de seu Eu, não estaria atuando má-fé?

Referências Bibliográficas
BORNHEIM, G. Sartre. Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000.
BURDZINSKI, J.C. Má-fé e Autenticidade. Ijuí: Editora Unijuí, 1999.
FREITAG, B. O Indivíduo em Formação. 3.ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
GALLO, S.D.O.“Repensar a educação: Foucault”.Filosofia, Sociedade e Educação. Marília: Unesp/Marília, n.o 1, 1997.
GILES, T.R. Filosofia da educação. São Paulo: Editora E.P.U, 1983.
LARROSA, J. “Tecnologias do eu e educação”. In: SILVA, T.T. da. (org.). O Sujeito da Educação. 3.ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1999.
LEOPOLDO E SILVA, F. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Editora Moderna, 1993.
LIBÂNIO, J.C. Pedagogias e Pedagogos: para quê. 7.ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2004.
MÉSZÁROS, I. A Obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Editora Ensaio, 1991.
MOUILLIE. Sartre: conscience, ego et psychè. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
MOUTINHO, L.D.S. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.
RENAUT, A. Sartre: le dernier philosophe. Paris: Éditions Grasset, 1993.
SARTRE, J.-P. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1999.
______. “Une idée fundamentale de la phénoménologie de Husserl: l’ intencionnaliaté”. In: ______. Situations Phi-
losophiques. Paris: Gallimard, 1998.
______. Consciência de si e Conhecimento de si. Lisboa: Edições Colibri, 1994a.
______. A Transcendência do Ego. Lisboa: Edições Colibri, 1994b.
SIMONT, J. Jean-Paul Sartre: um demi-siècle de liberte. Bruxelas: De Boeck & Larcier, 1998.

Dados do autor
Graduado em filosofia, mestre em filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas) e
doutor em educação pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).

Recebimento: 15/abr./05
Aprovado: 11/ago./05

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SÍLVIO GALLO

Sartre: anarquista? Universidade Estadual de


Campinas (Unicamp)
gallo@unicamp.br
SARTRE: ANARCHIST?
WALTER MATIAS LIMA
Resumo Sartre foi um dos mais influentes filósofos do século XX. Militante de Universidade Federal de
causas políticas e sociais, não se filiou a nenhum partido político. O que este Alagoas (UFAL)
artigo faz é buscar em sua obra, tanto no período existencialista quanto no waltermatias@ig.com.br
marxista, indícios de sua aproximação com o anarquismo. A razão disso é que,
por duas vezes, em entrevistas, o filósofo afirmou-se anarquista. E tais indícios
são encontrados, seja em sua defesa de uma moral autônoma e libertária seja em
sua discussão em torno da revolta.
Palavras-chave SARTRE – ANARQUISMO – POLÍTICA.

Abstract Sartre was one of the most important philosophers of the 20th century.
Militant of political and social issues, he was never a member of any political
party. This paper aims to search in Sartre’s works, both in the existentialist and
Marxist periods, evidences of his proximity with Anarchism. The reason is that
in two moments, in interviews, he presented himself as an anarchist. These
evidences are found, both in his defense of a moral and libertarian autonomy, and
in his discussion on the subject of revolt.
Keywords SARTRE – ANARCHISM – POLITCS.

Impulso, Piracicaba, 16(41): 61-73, 2005 61


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O homem é livre para comprometer-se, mas


não é livre a menos que se comprometa
a ser livre.
SARTRE, 1960

J
ean-Paul Sartre foi, sem dúvida alguma, um dos mais im-
portantes intelectuais militantes franceses do século XX.
Próximo dos comunistas, com toda a agitação da política
francesa desde os anos 1930, jamais se filiou ao partido,
tendo sido duro crítico do stalinismo. A partir dos anos
1960, aproximou-se dos grupos maoístas.
Assim, podemos identificar uma filiação política de
Sartre? Anarquista, talvez? É certo que ele também nun-
ca se engajou no movimento anarquista francês. No en-
tanto, em pelo menos duas oportunidades, declarou-se anarquista: uma
delas, logo no início dos anos 1970, quando gravou uma longa entrevista,
em seu apartamento – apresentada aqui no Brasil pela TV Cultura, anos
atrás, com o título Sartre por Sartre. Em certo momento dessa longa en-
trevista, Sartre e Simone de Beauvoir, relembrando sua militância política,
dizem-se anarquistas, uma vez que tinham em mente uma sociedade sem
Estado e jamais haviam se filiado ao Partido Comunista Francês (PCF),
rumo seguido pela quase totalidade dos intelectuais franceses de esquer-
da. A segunda vez em que Sartre assumiu-se como anarquista foi numa
das últimas entrevistas concedidas próximo de sua morte, quando já es-
tava bastante doente, meses antes de seguir para o hospital e do qual ja-
mais sairia. Essa entrevista vem publicada, ao fim deste artigo, nesta edi-
ção da Impulso.
O pensamento sartriano é afirmador da liberdade e contrário a to-
dos os totalitarismos. Mostra ao homem como ele é submisso – lembre-
mos que Sartre viveu no entre-guerras, foi combatente na II Grande
Guerra e participou da Resistência Francesa e de todos os grandes acon-
tecimentos políticos do pós-guerra –, mas não que ele deva ser submisso.
A obra de Sartre é uma constatação da condição abjeta do homem, não
um sistema moral. O reconhecer-se submisso, inútil, sem sentido pode
ser o primeiro passo para que o indivíduo se engaje na existência, assu-
mindo uma práxis libertária como ser-no-mundo. Neste artigo, procura-
remos destacar, das diversas fases da obra sartriana, pontos capazes de
justificar filosoficamente sua filiação ao anarquismo ou, pelo menos, suas
contribuições filosóficas importantes para pensar o anarquismo e a ação
política libertária em nossos dias.
UMA MORAL AUTÔNOMA E LIBERTÁRIA
Em princípio, trabalharemos com os conceitos desenvolvidos em
L’Étre et le Néant (O Ser e o Nada), que teve sua primeira edição francesa

62 Impulso, Piracicaba, 16(41): 61-73, 2005


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em 1943, quando Sartre possuía 38 anos de idade. o mundo dos objetos – o ser “em-si” – e numa
No entanto, nos cadernos de seu diário de guer- consciência, transparente, reflexiva – o ser “para-
ra,1 escritos entre 1939 e 1940, já notamos os te- si”. Não vejamos aqui, entretanto, o dualismo
mas fundamentais, o núcleo conceitual a gestar a psicofísico a cortar a filosofia clássica de Platão a
obra, que, segundo o próprio Sartre, já estava sen- Descartes, com sua res cogitans e sua res extensa;
do escrita. Ela apresenta como subtítulo Ensaio na perspectiva sartriana, o meu “eu” como cons-
de Ontologia Fenomenológica, mostrando de an- ciência absoluta não possui ou habita um corpo
temão que o objetivo do filósofo é o estudo do que lhe serve de prisão, mas eu sou um corpo, na
ser, e seu caminho, a fenomenologia. Nosso des- mesma medida em que sou uma consciência.
taque será para a questão da moral e da liberdade, O em-si está cheio de si mesmo, é aquilo
da qual parece ser possível extrair importantes as- que é, absoluta identidade. Desse modo, não
pectos para o anarquismo. pode conhecer a alteridade: jamais verá algo que
A moral cristã ocidental funda-se, genealo- não seja ele mesmo; o em-si jamais perceberá o
gicamente, no decálogo de Moisés. Com base outro como outro. O para-si, por outro lado, é
nessas leis, toda formulação adquire autoridade aquilo que não é; em outras palavras, o para-si
divina; os valores na moral cristã são, pois, valores afirma-se pela negação. Sua consciência de si
absolutos com uma fundamentação metafísica. mesmo advém do fato de perceber o outro como
Ao ter de agir individual e socialmente conforme não sendo ele mesmo. O para-si não conhece a
regem esses valores, o homem vê sua existência identidade, nunca será idêntico a si mesmo, pois
condicionada e não é, portanto, livre. Jean-Paul seu reconhecimento dá-se na negação da imagem
Sartre insurge-se contra esses valores absolutos, alheia como a sua própria. É um ser que só se co-
afirmando que a liberdade deve ser o único e su- nhece como reflexo, jamais como “si-mesmo”:
premo valor do homem. ele não conhece aquilo que Sartre chama de ipsei-
A conhecida afirmação de Dostoievski, em dade, o ser si mesmo. Em-si e para-si existem
Os Irmãos Karamazovi, de que “Se Deus está como distância, mas nunca separados: ser reflexi-
vo por excelência, o puro em-si é a negação do
morto, tudo é permitido” parece fundar a ética
homem; por outro lado, também a idéia de uma
sartriana, embora uma análise mais apurada mos-
consciência pura, desencarnada, absoluta não
tre que sua reflexão não passa por aí. Deixando de
procede – seria justamente o conceito de Deus.
lado a discussão em torno da existência de Deus,
Sartre mostra que a questão moral não é uma re- O homem é um ser bisonho, uma aberra-
alidade do âmbito da divindade – supondo sua ção da natureza. O absurdo de sua situação só
existência concreta –, por ser um problema estri- pode ser expresso por um paradoxo: o homem é
tamente humano, com existência apenas em uma “unidade dual”; não é nem apenas corpo
meio a homens. nem somente consciência, e a exclusão de qual-
quer uma dessas duas instâncias seria a negação
Para compreender a fundamentação dessa
de sua própria condição de homem. Seu ser é
moral humana, faz-se necessária, como preâmbu-
uma união de contrários: a consciência é o ser da
lo, uma brevíssima incursão pela antropologia
negação, o em-si é o ser da afirmação; dialetica-
sartriana que aparece em O Ser e o Nada. Valen-
mente, o homem é uma síntese, mas uma síntese
do-se da terminologia hegeliana, Sartre apresen-
ainda não resolvida, uma perpétua luta interna
ta-nos o ser do homem dividido em um corpo sem possibilidade de trégua e, não conseguindo
opaco a si mesmo, que não se percebe, habitando transcender essa luta, ele se angustia.
1 Nem todos os cadernos desse diário escrito pelo filósofo no front da
Mas qual a razão dessa inglória batalha sem
IIGuerra Mundial, servindo como oficial de comunicações, foram trégua e sem possibilidade de vencedores? Por
encontrados e uma coletânea irregular daqueles disponíveis foi publi-
cada no Brasil sob o título Diário de uma Guerra Estranha. Cf. SAR-
que o ser humano não aceita sua condição cindi-
TRE, 1983a. da e tenta selar a cisão? O que distancia em-si e

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para-si? O que preenche a brecha entre o corpo e satisfazê-la. Como exteriorização, ela se dá por
a consciência? A resposta é simples: em-si e para- certos meios, visando alguns fins, que são o pró-
si são distanciados pelo nada que jamais permite prio assunto do debate acerca da moral. Em seu
seu encontro. Nesse sentido, Sartre afirma que é diário de guerra, Sartre anota a questão: sendo a
pelo ser do homem que o nada vem ao mundo; moral um sistema de fins, a que fim deve dirigir-
é apenas pelo ser do homem que aparece a nega- se a ação do homem? A um fim seu, próprio, in-
ção, por ser ele um “vazio de ser”. Fonte da ná- terno ou a um fim determinado exteriormente?
usea diante da existência e da angústia de ser, o Em outras palavras, a moral como fundamenta-
homem desespera-se, quando percebe jamais po- ção da ação humana deve ser autônoma ou hete-
der preencher esse vazio. O desejo secreto e irre- rônoma?
alizável do humano é ser Deus: em-si/para-si, Os fins como tais são devir, têm sua exis-
consciente/inconsciente de si ao mesmo tempo; tência apenas como futuro; mas, ao mesmo tem-
um ser sem espaços. Na inútil e desesperançada po, são como que atirados, lançados para a reali-
busca de preencher o vazio, de negar a negação, dade humana presente, reclamando sua realização
sendo afirmação plena, o homem faz-se projeto,
imediata, aqui e agora. Desse modo, só a realida-
lança-se ao futuro. Pensar e agir são duas formas,
de humana pode ser ela mesma seu próprio fim,
ou melhor, duas tentativas de anular o angustian-
pois torna-se realidade concreta apenas no devir,
te nada de seu ser.
no contínuo realizar-se, nunca estando pronta e
Outra característica da consciência é a fa- acabada (isso se deve ao fato de ser o homem um
culdade da imaginação, a capacidade de escapar a
ser que se faz a si mesmo). A realidade humana
si mesma, de projetar-se no futuro, em meio a
está sempre no futuro, ela é seu próprio sursis, seu
seus outros possíveis. Segundo Sartre, essa parti-
próprio distanciamento.
cularidade da consciência de poder sair de si faz
com que exista a vontade. A estrutura da vonta- Por ser a moral decorrente, ação que, por
de, por seu lado, fundamenta-se no ato da sua vez, se fundamenta na vontade só possível de
transcendência, no ir além de si e do objeto. existir em seres finitos e limitados, apenas tem
Como transcendência, a vontade só pode ter lu- sentido falar em uma moral estritamente humana,
gar no mundo, em meio a uma infinidade de ob- nunca numa moral divina ou numa moral de ani-
jetos, pois o ato de transcender pressupõe algo a mais; no primeiro caso não há a finitude humana,
ser transcendido. A vontade apresenta-se, pois, ao passo que aos segundos falta a transcendência
como um ser-no-mundo, mas como um “ser-pa- da consciência. A moral é uma realidade “humana,
ramudar-o-mundo”, pois implica uma transfor- demasiado humana”, para parafrasear Nietzsche,
mação ou, pelo menos, um desejo de mudança. e é um problema exclusiva e especificamente hu-
A existência, no homem, da faculdade da mano. Assim, Sartre responde à questão posta no
vontade ampara-se no fato de ele constituir um diário: a ação humana só pode dirigir-se para um
ser imperfeito, que busca na transcendência, no fim interno, puramente humano. A única moral
ir-além, a sua realização, a sua plenitude. O fun- possível é a moral da autonomia.
damento da vontade é a necessidade humana de Em O Ser e o Nada, Sartre desenvolve uma
preencher-se, de buscar sua identidade constru- análise do ser do valor. De fato, essa análise é
indo-se, fazendo-se homem a cada momento, lu- uma retomada do trabalho já desenvolvido em
tando desesperadamente contra sua bisonha con- suas anotações no diário de guerra, em especial
dição de ser fraturado. A vontade original é o de- dos conceitos em torno do problema da vonta-
sejo de cobrir as distâncias que a consciência ins- de. Em sua concepção, valor e vontade apresen-
taura em nosso ser. tam a mesma estrutura ontológica. Se nós se-
A ação humana aparece, pois, como impli- guirmos as trilhas dos moralistas clássicos, que
cação direta da vontade, tentativa encarnada de vêem no valor algo que, ao mesmo tempo, é in-

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condicional e não é, o ser do valor parece esca- , mas nenhuma consciência será moral pelo sim-
par-nos, sendo incaptável: ples fato de ser consciência.
Por outro lado, sendo parte da estrutura da
O valor é, pois, incaptável: se o tomamos como ser,
consciência, os valores nunca poderão ser abso-
corre-se o risco de desconhecer totalmente sua ir-
lutos universais, mas serão sempre criações parti-
realidade e fazer-se dele, como os sociólogos, uma
existência de fatos entre outros fatos. Neste caso, a
culares, individuais. Sartre diz que é preciso aban-
contingência do ser mata o valor. Mas, ao contrário, donar aquele “espírito de seriedade” que nos faz
se não se tem olhos senão para a idealidade dos va- tomar os valores como dados e transcendentes,
lores, deles será tirado o ser; e, sem o ser, desmo- absolutos, bons em si mesmos e, portanto, cau-
ronam.2 sadores do bem. Uma moral fundada nesses va-
lores é uma moral de “má-fé”, pois estamos rece-
Sartre defende que a consistência do ser do bendo uma orientação externa, estamos enganan-
valor não está em ser posto, ser dado, e sim, por do a nós mesmos. A “má-fé”, para Sartre, é o
outro lado, ser aquilo através de que um ser auto-engano, é agir segundo uma imagem abstra-
transcende seu próprio ser. Poderíamos dizer, ta e alheia, e não de acordo com a afirmação do
então, que o valor é o ser que permite a vontade, nosso próprio ser. A “má-fé” pode ser vista como
é o seu motor e, em conseqüência, o impulso da o veículo pelo qual as ideologias nos dominam;
ação humana. Não sendo o valor algo dado, ab- resulta do terror da consciência que se percebe
soluto, com o qual nos defrontamos, mas o mo- como falta, sem identidade, e consiste no assumir
tor da transcendência e veículo da vontade, per- de identidades falsas que nos dão uma tran-
cebe-se, mais uma vez, a impossibilidade, na qüilidade enganosa.
perspectiva sartriana, de uma moral heterônoma Os valores não são abstratos, transcenden-
que vise fundar normas e leis em valores absolu- tes: nós próprios os inventamos. Isso quer dizer
tos e abstratos, como a moral cristã; só podemos que somos nós mesmos que damos sentidos às
falar em moral autônoma, libertária, apoiada na nossas vidas; e esse sentido por nós escolhido é
ação individual. nosso valor: a falta que buscamos completar para
O valor é, para Sartre, a ausência da totali- a nossa realização, nos vários momentos de nos-
dade que preencheria o ser, ou melhor, a falta para sa existência. Impossível não perceber, aqui, um
que seja alcançada a realidade e a plenitude de ser. eco de Nietzsche e de sua Genealogia da Moral.
Assim, o para-si, a consciência não existe diante O único valor para o homem é, então, a realida-
do valor, como acontece ante o objeto na relação de humana, pois tudo o que ele faz é a constru-
de conhecimento (sujeito-objeto), pois o valor ção de sua realidade, de sua vida. Por querer ser
faz parte da própria estrutura do ser da consciên- seu próprio fundamento – não poderia ser ne-
cia, é uma característica interna de seu ser. Esse nhum outro –, a realidade humana é profunda-
fato aparentemente simples traz conseqüências mente moral.
extremamente importantes para o terreno moral, Sem o mundo, sem o homem, nunca have-
porque não pode existir uma consciência reflexi- rá valor: eis a nossa conclusão básica. As conse-
va que seja, em seu desvelamento, consciência qüências políticas são bastante claras: o valor
moral pelo simples fato de ser consciência, uma metafísico é uma abstração irreal usada com fina-
vez que seu próprio aparecimento é o desvela- lidades ideológicas de manipulação das consciên-
mento do valor – falta absoluta – como consti- cias e da realidade humana. Desde a aurora dos
tuição de sua estrutura. Os valores podem, pois, tempos históricos, legisladores morais de todos
ser ou não objeto da atenção de minha consciên- os matizes nada mais fizeram do que aviltar a li-
cia – contemporaneamente sendo sua estrutura – berdade humana em nome de um poder absoluto
e da exploração. Sua ação sempre foi facilitada
2 Idem, 1981a, p. 145. pela angústia existencial que sentimos diante do

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nada de nosso ser e, para fugir a ele, aderimos – aquele nada existente no miolo do ser do ho-
de “má-fé” – a qualquer identidade externa que mem, esse nada que faz com que a realidade hu-
nos é oferecida pelos ideólogos de plantão. Em mana seja um perpétuo devir: o homem não é, o
nosso íntimo, porém, sabemos que essa homem faz-se a cada momento.
tranqüilidade conseguida com a identificação so- O ser do homem apresenta-se como a en-
cial – heterônoma – é falsa, e é a coragem de carnação da liberdade. Não um livre-arbítrio con-
abandoná-la que fundamenta algumas revoluções cedido por Deus, mas liberdade como o funda-
– não todas, pois muitas são uma nova forma de mento mesmo, como estrutura de ser, modo de
exploração ideológica externa – e resgata a digni- ser. Não importa se existe ou não um Deus: já
dade humana em nossa autonomia. mostramos que mesmo que ele exista, nunca po-
LIBERDADE E AÇÃO: UMA MORAL CONCRETA derá ser o nosso legislador moral. O homem está
O sentido por nós escolhido para a vida só, abandonado, solto no mundo; não tem nada
será o nosso valor, e a escolha é a própria afirma- nem ninguém em que se apoiar; nada há que le-
ção do valor escolhido. Obviamente, escolhemos gitime o seu comportamento, tirando-lhe a res-
sempre o bem, ou melhor, aquilo que julgarmos ponsabilidade; há apenas sua liberdade, sua esco-
ser o nosso bem. Mas escolhemos a nós mesmos, lha e a responsabilidade pelos seus atos também é
tomamos a nossa própria realidade como nosso toda sua.
valor. Afirmamos, dessa maneira, que nosso bem Essa existência em meio a outros, o fato de
é a nossa própria realização. Mas o fato de eu es- ser um ser-com-os-outros traz, porém, novas im-
colher a mim mesmo como homem implica mi- plicações. Por um lado, minha auto-imagem é o
nha escolha por toda a humanidade, pois não meu aparecer-para-o-outro, e a forma pela qual o
existe homem abstraído do mundo e da socieda- outro me percebe é uma preocupação constante.
de. Ao me realizar, estou realizando toda a huma- Na famosa peça teatral Hui-Clos – Entre Quatro
nidade e, assim, o bem que escolho para mim de- Paredes, no Brasil –, há a famosa conclusão exis-
ve, necessariamente, ser o bem para o outro, pois, tencialista de que “o inferno são os outros”. Po-
se não realizo a humanidade, estou negando a demos dizer que essa subjetividade nos remete a
mim mesmo como homem.3 um “modo fascista de ser”: de repente, fazemos
A ética sartriana significa uma revolução na uma imagem do outro e tentamos impor-lhe que
ética tradicional. Nesta, os fins definem os atos aja de acordo com essa imagem subjetiva por nós
humanos, devendo ser fundados em valores ab- construída. Por outro lado, fica a questão da res-
solutos; na visão do filósofo francês, por outro ponsabilidade e da escolha: escolhendo-me, esco-
lado, são os atos humanos que definem os seus lho a todos, e sou responsável não apenas por
fins e os seus meios; a ação (decorrente da esco- mim, mas também pelos outros. Na verdade, o
lha) nada mais é do que a expressão da liberdade. complicador da questão é, novamente, a “má-fé”
Se os fins, os valores são definidos pelos atos (li- e a utilização ideológica dessa fraqueza de ser que
berdade), então podemos afirmar que a liberdade é o homem; num contexto de autonomia coletiva
é a própria fundamentação dos valores. Devemos e de um desenvolvimento social das liberdades
atentar aqui para o fato de que, em Sartre, a liber- individuais, ela tende a ser diferente, embora Sar-
dade não é uma essência, mas simplesmente tre não a tenha examinado.
Mas, voltando, pode-se afirmar que nenhu-
3 O humanismo radical de Sartre aproxima-se muito de um “retorno
crítico” ao humanismo renascentista. Essa concepção da escolha indi-
ma moral estabelecida pode, na verdade, dar indi-
vidual como escolha coletiva por toda a humanidade lembra bastante cações de uma decisão a priori, indicações sobre o
um poema do poeta inglês John Donne, que sintetiza a posição renas-
centista, For whom the bells tolls. Ela começa afirmando que “homem
que e como fazer. Sartre diz que o mundo não
algum é uma ilha” e termina com algo mais ou menos assim: “cada nos manda sinais, nós é que temos de descobrir o
homem que morre deixa-me diminuído/pois sou parte da humani-
dade/portanto nunca perguntes/por quem os sinos dobram/eles
sinal em nossa escolha: o sinal é a nossa liberdade.
dobram por ti”. Na conferência que acabou publicada sob o título

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O Existencialismo é um Humanismo, o filósofo correntes da própria obra. Estética e moral sub-


mostra o exemplo de um estudante que o procu- traem-se, assim, ao reino dos apriorismos para
ra pedindo conselhos. O rapaz está atormentado fundarem-se na posterioridade.
com a idéia de ir para a guerra, pois, ao mesmo Uma questão importante: não existindo va-
tempo em que se sente impelido a fazê-lo, preo- lores e padrões morais preestabelecidos, como
cupa-se com a situação da mãe, que lhe é muito podemos determinar o valor dos atos e das esco-
apegada e depende dele. O jovem procura indica- lhas? A resposta está, novamente, na liberdade.
ções de como agir e justificativas morais para a
Se for a liberdade a fundamentar a escolha, esta
sua ação; tenta, inconscientemente, abdicar de
será mais valiosa quanto mais livre tiver sido o ato
sua responsabilidade para com a mãe, para com a
de escolher. Ou seja, o grau de liberdade implica-
pátria e para consigo mesmo, em nome de valores
externos justificadores de sua ação. De forma do nos atos é que determina o seu valor.4
aparentemente rude, Sartre responde-lhe que a Se a vida é um compromisso constante, um
única coisa a ser dita é que ele aja de acordo com suceder contínuo de escolhas, ser moral não é
a sua liberdade; escolha o que escolher, essa op- submeter-se às regras, mas transgredi-las, fundar
ção será o seu valor, e a responsabilidade pela sua e afirmar a liberdade. A obra literária de Sartre
ação e pelas conseqüências que ela poderá susci- está farta de exemplos dessa moralidade libertária
tar será também única e exclusivamente sua. impregnando a existência cotidiana. Talvez um
Nessa “rudeza” do filósofo, e mesmo em dos melhores seja o que é representado por Ma-
sua “não-resposta” – a rigor, ele não deu uma res- thieu Delorme, um dos personagens centrais da
posta, não no sentido esperado pelo jovem –, re- trilogia Os Caminhos da Liberdade, na cena que
side um respeito básico por este. Sartre recusa-se fecha o primeiro romance da série, A Idade da
a ser um legislador moral, pois estaria contribuin- Razão. Delorme, um jovem e confuso professor
do para que o jovem agisse de “má-fé”, além de es- de filosofia, perambula pela vida ao longo do ro-
tar também, ele próprio, agindo de “má-fé”, ao as- mance e descobre, nos lances finais, que Marcele,
sumir-se como algo que não é. No incitar o jovem sua amante, está grávida. Sucede-se uma série de
à escolha reside a verdadeira moralidade concreta. pressões sociais, da família, dos amigos, mesmo
Não havendo valores absolutos, não existe dos desconhecidos, para que ele se case com ela.
sentido em criticar uma moral de base divina e O problema é que ele não sabe se a ama ou se sua
pretender fundar uma nova moral em valores ou- relação é apenas uma comodidade. Quando to-
tros, mas também apriorísticos e absolutos. Nes- dos estão certos de seu casamento, repentina-
sa mesma conferência, Sartre critica um grupo de
mente ele rompe com Marcele, sai da cidade e
laicos franceses que, em 1880, pretenderam supri-
lança-se à vida, contrário a tudo e a todos, cons-
mir Deus, mas fundaram uma nova moral abso-
ciente da imagem que os outros terão dele, mas
luta em outros valores absolutos, criando uma so-
ciedade policial com uma série de normas a serem fundando a sua liberdade nessa escolha inusitada.
seguidas. Destruíram uma farsa, colocando outra 4 Parece estranho falar, no contexto sartriano, em grau de liberdade,
no lugar, cuja máscara diferia da anterior apenas posto que esta é ausência de ser. A escolha é, por definição, resultado
pela decoração; o sujeito a usá-las permanecia o da liberdade... Talvez fosse melhor falar de grau de consciência com
que a escolha é feita, mas como a consciência é liberdade, acaba dando
mesmo. A moral será sempre libertária, ou não no mesmo. É o psicopedagogo Michel Lobrot quem faz uma distinção
será moral, pois seu fundamento único reside interessante acerca das formas de liberdade, em seu livro A Favor ou
Contra a Autoridade (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977), que, de
nessa ausência de ser a que chamamos liberdade. certo modo, parecem complementar Sartre. Distingue ele três tipos de
liberdade: a basal, a adaptativa e a criativa. A primeira seria aquela de
Segundo Sartre, construir uma moral é que fala Sartre, e não existe em graus; já as duas outras dependem das
como pintar um quadro: o que há a fazer será condições materiais em que as escolhas são feitas, levando em conta os
determinantes sociobiológicos, e podem ser mais ou menos livres.
aquilo que for feito, nada existe a priori. Os va- Infelizmente, não há espaço aqui para discorrer sobre as concepções de
lores estéticos, como os morais, serão aqueles de- Lobrot – o leitor interessado pode procurar a obra aqui citada.

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Estar na “idade da razão” não é assumir afirmar que as ditaduras, os totalitarismos e, de


uma suposta maturidade e agir no seio de uma resto, a própria “democracia moderna”, enquanto
moral estabelecida, sendo reconhecido social- limita a escolha ao domínio do voto e da repre-
mente por seus pares, mas agindo na mais pura sentatividade e defende a submissão das mino-
“má-fé”. Estar na “idade da razão” é negar o es- rias, são, todos, absolutamente imorais. Um sis-
tabelecido, fundar sua liberdade e sua própria tema político moral deveria fundar-se na convi-
moral. Outro exemplo interessante encontra-se vência libertária de todos os indivíduos da comu-
no conto “A infância de um chefe” (da obra O nidade; obviamente, tal sistema é ainda devir –
Muro), no qual Sartre desenvolve algo assemelha- para não dizer utopia... –, estando ainda por ser
do a uma psicanálise da construção de uma per- construído com a existencialização de nossas li-
sonalidade autoritária, desde a infância. berdades.
Já em O Ser e o Nada, vemos o caso do be- MORAL E REVOLTA
bedor solitário e do condutor de povos. O que os O existencialismo, notadamente o de Sar-
diferencia? Nada mais do que o grau de liberdade tre, inventou um estilo: a recusa de sínteses dou-
com que foi escolhido esse modo de ser. Desde trinárias. Tal atitude será mantida em toda a
que tenha livremente escolhido viver dessa ma- construção da Crítica da Razão Dialética. Para
neira, o bêbado pode ser mais autêntico que o lí- Sartre, trava-se um combate duvidoso no âmbito
der. Por outro lado, o líder, em sua vã agitação, da política; contudo, uma tomada de posição é
poderá estar negando sua liberdade e a si próprio, necessária para a construção de uma práxis que
ao negar a liberdade de seus seguidores, ao passo contenha um mínimo de coerência e leve a uma
que o beberrão responde apenas por si. atividade, na política empírica, caracterizada pela
Tais são, muito resumidamente, as con- denúncia resoluta de tudo o que fira a dignidade
siderações de Sartre sobre a moral. Delas pode- da liberdade da pessoa, como sujeito singular ou
mos extrair importantes conseqüências no âmbi- coletivo.
to político. A principal, pensamos, é a seguinte: Trata-se, agora, de buscar o sentido da his-
se a realidade humana é moral, e essa realidade é tória, isto é, desvendar a verdade manifestada por
a liberdade, serei profundamente imoral se agir meio de ações inevitavelmente livres dos homens.
contra as escolhas, se tentar negar a liberdade do No entanto, no que diz respeito à Critique de la
outro. Assim como já sustentava o anarquista
Raison Dialectique, essa busca não será feita pela
Mikhail Bakunin, no século XIX, Sartre assume
inserção única no cogito existencial, muito menos
que minha liberdade só é capaz de se dar em meio
pela recusa da filosofia da história em seu conjun-
à liberdade dos outros.5 Desse modo, podemos
to, como expresso em O Ser e o Nada. É a busca
5 Bakunin polemiza com Rousseau, que vê na liberdade um fator natu-
dos princípios que determina a inteligibilidade da
ral, procurando demonstrá-la como fator socialmente construído. história.
Assim, a sociedade – o outro – não é um empecilho à minha liberdade,
mas o único meio de seu desenvolvimento. Um pequeno trecho de Pode-se afirmar que a descoberta da histó-
Bakunin: “Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres huma- ria por Sartre começa a ser esboçada a partir de
nos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liber-
dade é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação. 1947, quando ele escreve Qu’est-ce que la Littéra-
Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, de
forma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me
ture?. Essa descoberta é marcada por vários acon-
cercam, e mais extensa e ampla for sua liberdade, maior e mais pro- tecimentos da época, que levarão à temática do
funda se tornará minha liberdade. Ao contrário, é a escravidão dos
homens que põe uma barreira na minha liberdade ou, o que é a mesma sentido da história. Esta torna-se a questão pre-
coisa, é sua animalidade que é uma negação de minha humanidade por- mente nas décadas de 1940 e de 1950, na França.
que, ainda uma vez, só posso considerar-me verdadeiramente livre,
quando minha liberdade, ou o que quer dizer a mesma coisa, quando a Intelectuais engajados em torno da revista Les
minha dignidade de homem, meu direito humano, que consiste em Temps Modernes, como Raymond Aron, Simone
não obedecer a nenhum outro homem e a só determinar meus atos de
acordo com as minhas próprias convicções, refletidos pela consciência de Beauvoir, Michel Leiris, Maurice Merleau-
igualmente livre de todos, me são confirmados pela aprovação de Ponty, Jean Paulhan, Albert Camus, Claude Le-
todos. Minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de
todos, se estende ao infinito” (BAKUNIN, 1983, p. 32-33). fort e Jean-Paul Sartre, elaboram uma constante

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crítica de desconfiança a tudo o que se aproxime Sartre procura construir uma crítica que
de doutrina, buscando na ação comprometida o ofereça conteúdo ao vazio em que caíra a esquer-
empenho em descobrir a verdade do tempo em da não comunista. A atitude de comprometimen-
que estão inseridos. São intelectuais distantes – to como “companheiro de viagem” dos comunis-
em oposição – do pensamento cristão e da dialé- tas torna tal crítica uma avalanche de textos que
tica marxista, no sentido da dogmática em que o confluirão em torno do marxismo, como enten-
marxismo tornou-se no interior do PCF. São, de Sartre, e na busca da inteligibilidade da história
também, intelectuais que não contam com o como a tendência de uma sociedade que se quer
apoio de forças sociais institucionalizadas, por transparente e realiza a história pelo exercício de
exemplo, organizações políticas. uma liberdade situada.
Com a deflagração da Guerra Fria, a partir Na Crítica isso é possível, porque o ponto
de 1950, a situação mundial endurece, levando os nodal em que se processa todo conhecimento re-
pensadores a tomar posição diante dos aconteci- ferido por toda ação, no qual se elabora toda in-
mentos, o que provoca uma dissensão na revista teligibilidade teórica e prática, é o sujeito ou, me-
Les Temps Modernes. A repercussão do macar- lhor, a intersubjetividade e a reciprocidade. E o
thismo nos Estados Unidos, a crise desencadeada sujeito não é uma substância, no sentido meta-
pela Guerra do Vietnã, a repressão colonial em físico, mas um devir, isto é, todo existente é um
Madagascar, a descoberta de campos de trabalho amálgama de imanência e transcendência: cons-
forçado na União Soviética e o comportamento tante superação de si e invenção diária, ação ne-
agressivo do PCF contra o poder da IV República gadora, porque objetivo de si por meio do outro
em todas as instâncias tornam árdua e arriscada a que não é ele. Ou seja, o sujeito é liberdade e luta,
defesa da verdade e da liberdade. Os membros da é revolta contra a alienação e a reificação.
revista assumem posturas diversas em relação aos Para Sartre, a alienação atinge todos os do-
acontecimentos da época, o que justifica as dis- mínios da sociedade moderna, pois o não reco-
sensões e os rompimentos de várias amizades, nhecimento de si que o trabalhador tem diante
como a de Sartre/Camus ou a de Sartre/Merleau- do produto de seu trabalho causa o alheamento
Ponty. do homem como espécie e o estranhamento no
Em 1958, após cinco anos da morte de Sta- nível da intersubjetividade. Isso porque o homem
lin, desencadeia-se a prática da “coexistência pa- perde sua condição de homem para tornar-se,
cífica”, em substituição à Guerra Fria. Contudo, como trabalhador alienado, um indivíduo que
o que ficou conhecido por “processo de desesta- não encontra condições imediatas para a supera-
linização” não significou necessariamente nenhu- ção da escassez e, conseqüentemente, não conse-
ma mudança política de base, podendo ser exem- gue exercer a liberdade como projeto, nem indi-
plificado pela investida das tropas soviéticas con- vidual nem coletivo. Assim, a alienação opõe-se à
tra a insurreição popular húngara de 1956, o con- práxis, ao reduzir o indivíduo à própria condição
tinuado partidarismo do PCF e a política de de prático-inerte (objeto), ou melhor, de utensí-
submissão à URSS no problema com a Argélia. lio. Alienado, o indivíduo não encontra espaço
Tais acontecimentos marcam a necessidade, em para a liberdade e, uma vez que a práxis é em si
Sartre, de escrever sobre os fundamentos teóri- mesma dialética, não há liberdade onde não se
cos do “marxismo prático”, resultando na elabo- luta para a construção de relações de compreen-
ração da Crítica da Razão Dialética. Esse texto é são da própria ação, isto é, não pode haver dialé-
também uma resposta a Maurice Merleau-Ponty, tica sem liberdade e, por conseguinte, não existe
por seu livro As Aventuras da Dialética, tanto liberdade onde não se luta contra a escassez.
quanto o despertar de Sartre de seu “sono dog- Sartre aponta para a caracterização do fazer
mático”, proporcionado também por Merleau- histórico, no qual os relacionamentos humanos
Ponty na leitura de Humanismo e Terror. não podem determinar-se exclusivamente pelas

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interpretações economicistas, pois a ação dos transformadas pelo transtorno do campo social, se
indivíduos está vinculada a uma apreensão funda- integram em novas ações coletivas, executadas no
mental do encontro entre os sujeitos (do reco- contexto de novas exigências, e descobrem novos
nhecimento e da reciprocidade). Isso o leva a valores.6
mostrar que os indivíduos estão inseridos numa O processo de alienação é fruto do desvir-
relação primeira de reconhecimento, isto é, a tuamento de uma relação de reciprocidade e re-
existência do ser humano coloca-o numa asso- conhecimento fundamentais para a construção
ciação imediata com os outros seres humanos, do homem como humano. Defender valores sem
primeiramente de reconhecimento, em que o refleti-los com base nos determinantes que cons-
indivíduo não pode tratar o outro como objeto tituem o campo ético, e sem pensar as condições
sem antes reconhecê-lo como sujeito, isso acon- sociohistóricas e culturais que o ensejam, é admi-
tecendo antes de toda relação de reificação. tir explícita ou implicitamente a institucionaliza-
O prático-inerte insere o sujeito numa re- ção da alienação, elevando-a à hipóstase como si-
lação de alienação, inclusive na vivência intersub- tuação definitiva do processo de reificação.
jetiva, pois desde o momento em que o trabalho, De acordo com Sartre, uma das maiores di-
entendido como o desenvolvimento dialético e ficuldades do homem é a efetivação do ethos mo-
inteligível da práxis humana, é apenas vivido derno determinada, entre outros aspectos, pela
como o produtor – isto é, o trabalhador – de prá- crise dos universais, no âmbito da ética. Tal ques-
ticos-inertes, até mesmo os valores, no sentido tão passa também pela constatação de que a atual
ético e, também, moral, são vividos inseridos no sociedade é um mundo sem paidéia, resultante da
processo de alienação: coisificação dos próprios valores.
o valor não é a alienação do fim ou da objetividade A luta contra a escassez é igualmente a bus-
realizada, é o da práxis mesma. Ou, se se prefere, é ca de uma relação de conciliação entre os sujeitos
a práxis descobrindo a inércia sem reconhecê-la, históricos, uma vez que a produção do prático-
inércia da qual está afetada pelo ser prático-inerte inerte lança o indivíduo num mundo de utensí-
do agente prático. O que significa, segundo o pon- lios que passa a ser mais poderoso que o homem,
to de vista da ética, que os valores estão unidos à tornando-o, dessa forma, objeto de alienação. E
existência do campo prático-inerte. (...) Todo siste-
as relações intersubjetivas, por sua vez, tornam-se
ma de valores repousa sobre a exploração e a opres-
relações de estranhamento, em que os sujeitos se
são; todo sistema de valores é negação efetiva da ex-
ploração e da opressão (inclusive os sistemas aris- tratam não como pessoas, no que diz respeito à
tocráticos, se não explicitamente, pelo menos por ética, mas como objetos, e os valores éticos, por
sua lógica interna); todo sistema de valores confir- serem também expressão da coisificação e por
ma a exploração e a opressão (inclusive os sistemas tornarem-se relativos, deixam de ser a expressão
construídos pelos oprimidos, se não pela intenção, da garantia da condição de sujeito que o ser hu-
ao menos na medida em que são sistemas); todo mano deve possuir.
sistema de valores, enquanto que está sustentado Entretanto, dado que os valores éticos pas-
por uma prática social, contribui direta ou indireta- sam a ter correlação imediata com o antagonismo
mente a pôr em seu lugar dispositivos e aparatos entre modo de produção e relação de produção,
que chegado o momento (...) permitirão que se ne-
os sujeitos que se alheiam nessa dialética da trans-
gue esta opressão e esta exploração; todo sistema de
valores, no momento de sua eficácia revolucionária, formação da matéria não exercem a liberdade
deixa de ser sistema e os valores deixam de ser va- como a expressão consciente de si e dos outros,
lores, porque obtinham esse caráter de sua insupe- não sendo capazes de reflexão crítica e de reco-
rabilidade, e as circunstâncias, ao transformar as es- nhecimento da existência dos outros como sujei-
truturas, as instituições e as exigências, os transfor- tos éticos iguais a eles, criando a dicotomia entre
mam em significações superadas; os sistemas se re-
absorvem nas organizações que têm criado, e estas, 6 SARTRE, 1960, p. 302-303.

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o sujeito moral e os valores morais. Uma das de revolta. Assim, podemos dizer que uma das ca-
soluções para essa dicotomia está no conceito de racterísticas da revolta, para esse filósofo, é revelar
reciprocidade, empregado por Sartre. a singularidade da experiência por meio da inter-
Tal conceito adquire conotação ontológica, pretação filosófica e literária, mostrando que a li-
porque a interpretação da liberdade insere-se na berdade só existe ao preço de uma revolta.7 Mas
dinâmica da dialética da intersubjetividade. Sartre tornamos a perguntar: por que a revolta, hoje?
destitui a liberdade de toda conotação de uma Nas atuais democracias, na “sociedade da
prática a ser delimitada espacialmente, no sentido imagem” ou do “espetáculo”, o que justifica a
de poder ter um limite que se reduza aos espaços tentativa de repensar a noção de revolta é a exces-
das associações meramente econômicas dos siva carga normalizadora que tem como particu-
indivíduos, por exemplo, quando algumas pesso- laridade principal a exclusão do poder e da pes-
as dizem que a liberdade delas começa quando soa. Na sociedade liberal, ninguém vigia, nin-
termina a dos outros, ou o direito delas termina guém castiga, pois todos são, ao mesmo tempo,
quando inicia o dos outros.
vigiados. No lugar da punição, a normalização.
Se a relação humana é de reconhecimento e Permanecem apenas as punições disciplinares e
reciprocidade prévios, antes da instituição de uma administrativas, que reprimem, que normalizam
relação alienada, a liberdade não começa nem ter-
todo o mundo, e nas quais encontramos o terro-
mina como se fosse realizada no âmbito da pro-
rismo das técnicas de adiamento. Criam-se, as-
priedade privada, mas torna-se justamente o en-
sim, técnicas também de regulação, o que enseja
contro dos indivíduos. É o encontro de duas ou
a teatralização midiática da vida. Onde havia
mais liberdades que caracteriza a relação de inter-
“leis”, agora imperam as “medidas” (leia-se: “me-
subjetividade. Os homens nunca estão a sós uns
didas provisórias”), pois passíveis de recursos e
com os outros: o relacionamento intersubjetivo
e, por conseguinte, o exercício da liberdade evi- adiamentos, de interpretações e, muitas vezes,
dencia-se por um conflito ontológico entre os fraude. Essa tendência excessiva à normalização
sujeitos. Mas é justamente esse conflito que pos- abre, também, o espaço-tempo do pervertível: na
sibilita a realização da liberdade, uma vez que o ausência de um responsável-culpado, encontra-
enfrentamento do outro como o outro que é di- mos a repressão administrativa e a ocultação do
ferente (mas não desigual, nem desigual por ser “crime” que se torna espetáculo midiático.
diferente), podendo ser integrado numa dimen- Contra esse estado de coisas, a obra sartria-
são de reciprocidade e fazendo parte das condi- na põe-se como significação da revolta. Inclusive
ções histórico-sociais em que os sujeitos estão in- a revolta como ato pedagógico e a pedagogia
seridos, caracteriza a dinâmica de uma práxis que como prática de revolta. Insurgir-se contra o
quer lançar o indivíduo num mundo de reconhe- opressor poder dos homens sobre os próprios
cimento mútuo, em que cada um encontra, to- homens. Nesse caso, a pedagogia aparece como a
mando por base o reconhecimento, as condições possibilidade do sujeito de “objetalizar” a história
da criação de novos processos de subjetivação, e a intersubjetividade (em processos de singulari-
confluindo singularidade e coletividade, superan- zações), a relação mesmo-outro, assumindo o ne-
do as reificações. gativo e a contradição como inerentes à educação.
Cremos que Sartre constrói uma antropo- A pedagogia – assim como o processo educativo
logia filosófica e uma filosofia social que signifi- – pode ser entendida (e defendemos isso) como
cam uma hermenêutica da práxis. Toda a Crítica hermenêutica da práxis educacional e negativida-
da Razão Dialética sugere essa perspectiva. de desmistificadora, uma vez que essa é uma das
Uma das marcas do tema da revolta, em características da revolta: a desmistificação.
Sartre, está na sua constante perspectiva interpre-
tadora e entendemos a interpretação com um ato 7 Cf. idem, 1974.

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Pensando com Sartre, a educação é a práxis damental que a define, auto-afirmação diante do
que ajuda os homens a sair de sua inércia, levan- ser acabado.
do-os a totalizar, eles próprios, suas respectivas Quando propõe o anarquismo como vida
práxis, em vez de sofrer “a totalização reificada”, moral, para a nossa atualidade, faz surgir a neces-
“alienada” dos objetos. Assim, refletir, desmisti- sidade de “humanizar” o homem, de arrancá-lo
ficar, reunir e não esquecer sua presença concre- de sua inércia natural, ajudando-o a “totalizar” ele
ta, sua experiência psíquica, nem o momento próprio suas respectivas práxis, em vez de sofrer
concreto da história em que se encontram, man- o mundo reificado, do que chamou de prático-
tendo permanente questionamento, é o que põe inerte. Daí um dos sentidos para revolta, inclusi-
uma atividade pedagógica como interpretação ve revolta moral e práxis educativa: rejeição da
revoltada da educação. Tal educação que se quer, autoridade, do poder e, de certo ponto de vista,
também, desmistificadora e insere-se numa prá- prenunciando Foucault,9 do poder como gover-
tica política que se recusa como espetaculariza- nabilidade. Pois, como dizia Sartre, “o homem
ção da vida e da morte, ensejando um processo deve se inventar todos os dias”.
dialético de superação das condições ideológicas Para encerrar, podemos afirmar que, em
e alienantes, nas quais encontram-se os sujeitos Sartre, a finalidade do homem, e de todo ato mo-
da educação.8 ral, é a libertação humana. Isso fica claro, como
procuramos mostrar, tanto em O Ser e o Nada
Certamente, a experiência pessoal de Sartre
quanto na Crítica da Razão Dialética. Há algo
revela-se como uma situação, uma luta por situ-
mais libertário que isso? Dessa forma, embora
ar-se dentro da situação, com o fim de superá-la. Jean-Paul Sartre jamais tenha militado em grupos
Essa experiência, contudo, não é tão pessoal, tão anarquistas, pensamos ser possível aproximá-lo
alheia ao comum dos mortais. Sartre viveu em sua da tradição de pensamento libertário. O que ter-
experiência a intersubjetividade e o projeto fun- mina por não soar tão estranho, quando lemos a
8 Sabemos que Sartre não desenvolveu análises filosóficas sobre o fenô-
entrevista Anarquia e Moral, publicada a seguir.
meno educacional, mas queremos destacar a potencialidade de seu
pensamento para tal empreendimento, embora não esteja no escopo 9 Cf., por exemplo, Michel FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade. São
deste artigo. Paulo: Martins Fontes, 1999.

Referências Bibliográficas
BAKUNIN, M. Textos Escolhidos. Porto Alegre: L & PM, 1983.
BORNHEIM, G. Sartre. Metafísica e existencialismo. 2.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1984.
BURDZINSKI, J.C. Má-fé e Autenticidade. Ijuí: Unijuí, 1999.
FERREIRA, V.“Da fenomenologia à Sartre”.In: SARTRE, J.-P. O Existencialismo é um Humanismo. Lisboa: Presença, s/d.
FLYNN, T.R. Sartre, Foucault and Historical Reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1997.
JEANSON, F. Sartre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
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RENAUT, A. Sartre: le dernier philosophe. Paris: Grasset, 1993.
SARTRE, J.-P. Verdade e Existência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
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_____. Diário de Uma Guerra Estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983a.
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_____. O Muro. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982b.


_____. El Ser y la Nada. 6.ª ed. Buenos Aires: Losada, 1981a.
_____. A Idade da Razão. São Paulo: Abril Cultural, 1981b.
_____. El Idiota de la Familia. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1975.
_____. On a Raison de se Révolter. Paris: Gallimard, 1974.
_____. Las Palabras. Buenos Aires: Losada, 1966.
_____. Situations. London: Hamish Hamilton, 1965.
_____. Crítica de la Razón Dialéctica (2 t.). Buenos Aires: Losada, 1963.
_____. Critique de la Raison Dialectique. Paris: Gallimard, 1960.
_____. L’Être et le Néant. Paris: Gallimard, s/d.
_____. Sursis. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
_____ et al. Marxismo e Existencialismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

Dados dos autores


SÍLVIO GALLO
Professor da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
licenciado em filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC-Campinas), mestre e doutor em
educação (filosofia da educação) pela Unicamp.
WALTER MATIAS LIMA
Professor da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL), graduado em filosofia e mestre em filosofia
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
doutor em educação (filosofia da educação)
pela Unicamp.

Recebimento: 13/abr./05
Aprovado: 10/jun./05

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Anarquia e Moral: entrevista


com Jean-Paul Sartre
ANARCHY AND MORALITY: INTERVIEW WITH
JEAN-PAUL SARTRE * 1

Entrevista concedida a R. FORNET-BETANCOURT,


M. CASAÑAS e A. GOMES.
Publicada originalmente na revista espanhola de
filosofia Concordia, n.º 1, 1982

Tivemos a seguinte conversa com Jean-Paul Sartre, no dia 1.o de no-


vembro de 1979, em seu modesto apartamento parisiense, em frente à
torre Montparnasse. Na ocasião, pudemos compartilhar com o filósofo
uma hora de inquietação intelectual, viva e vivificante, no curso da qual
sentimos a preocupação dele com o futuro moral do homem – no sentido
de ser autenticamente homem no futuro. Estamos convencidos de que a
concepção sartriana de anarquia como vida moral pode muito bem sig-
nificar um chamamento à conversão desse homem que realizamos na fi-
gura do homem-poder (contra-homem), nos parecendo oportuno, e ne-
cessário, dar a conhecer o conteúdo essencial dessa conversa.

Pergunta: Você tem se declarado anarquista, isto é, partidário de uma


“sociedade sem poder”. Portanto, parece que o sentido dessa declaração não
tem sido bem compreendido. Você poderia precisar seu pensamento em re-
lação a esse assunto?
J-P. Sartre: Eu me declaro anarquista porque tenho tomado a pala-
vra anarquia em seu sentido etimológico, sociedade sem poder, sem Es-
tado. O anarquismo tradicional não tentou construir uma sociedade se-
melhante; a sociedade que o movimento anarquista tem procurado cons-
truir é demasiado individualista. Mas o que é uma sociedade que não pos-
sui poderes?
Devemos propor esse problema com base em três aspectos diferen-
tes. Como ponto de partida, precisamos examinar que tipo de sociedade
é possível construir sem poder ou, em todo caso, sem o poder do Estado.
Precisamos compreender que estamos o mais longe possível de tal socie-
dade. Há formas de poder existentes em todas as partes, que pesam sobre
cada homem – poderes coletivos, judiciais. O sentido da sociedade anar-
quista é o de uma sociedade na qual o homem não tenha poder sobre o
homem, senão sobre os objetos. Nas sociedades atuais o homem é con-

1* Traduzido por WALTER MATIAS LIMA (UFAL/AL).

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siderado como objeto, como um meio, e a riqueza, como um fim. Trata-


se, no momento, de construir grupos que tentem viver e pensar fora do
poder, procurando destruir a idéia de poder no vizinho. Comunidades
que exercem poder sobre as coisas, mas jamais sobre os homens.
Por outro lado, não esperamos ver a desaparição do Estado, não
mais que nossos filhos, talvez nossos bisnetos o verão desaparecer. A
questão é, pois, saber como deve viver, nos dias de hoje, um anarquista.
Nesse sentido, a anarquia é para mim uma vida moral (a esse propósito,
eu acrescentaria que não tenho escrito senão livros de moral). O anar-
quista coloca a seguinte questão: como viver numa sociedade que tem
poderes? É preciso, por conseguinte, ensaiar subtrair-se o mais possível
a todos os poderes sociais, pôr em questão as formas de ação do poder
a serem descobertas em nós mesmos. Isso é fácil: devemos trabalhar, o
mais possível, com os outros.
Seria necessário construir comunidades em que se poderá, até onde
for possível, viver livremente, como os anarquistas desejariam viver. Co-
munidades de 25, 50, 30 ou 10 pessoas, que estabeleceriam entre si ver-
dadeiras relações, sem nenhuma autoridade de uns sobre os outros. Co-
munidades fundadas no amor, e não necessariamente no sexo: amor filial,
maternal, entre camaradas. Na perspectiva do amor é onde se devem es-
tabelecer as relações das pessoas entre si. Contudo, tais comunidades não
poderiam ser eternamente anarquistas, porque a polícia, o exército, as leis
do Estado em que elas se estabeleceriam subsistiriam, todavia, e as vigi-
ariam para que o Estado fosse respeitado.
Na Alemanha e na França existem sociedades desse tipo, nas quais
as pessoas vivem, trabalham e fazem amor juntas. Essa é a base possível
em que começará um movimento anarquista, que é o futuro, que não é
para hoje, que não será o partido e no qual as relações entre poder e ação
serão diferentes das existentes no seio dos partidos. A ação anarquista
tende a ser conquistada nos partidos sem massas, sem hierarquias, em que
talvez alguns reflitam mais acerca das questões, mas nos quais as decisões
serão sociais, isto é, a tomada de decisões se fará socialmente. O que se
pode fazer agora é criar possibilidades para os homens viverem livres com
outros homens, pois não se pode viver livre sozinho. Trata-se de ser o
mais transparente possível para cada um, para o seu vizinho. Abandonar
o poder é aproximar-se da transparência total.

Pergunta: O que você entende por transparência?


Sartre: A transparência é um sinônimo do amor, é o conhecimento
que cada um tem do que faz e pensa o homem que está ao seu lado. O
olhar poderá afetar a transparência, isto é, atravessar a pessoa até o seu co-
ração e ver o que há em sua consciência. O olhar suporia reciprocidade
e, com isso, ultrapassar a separação das consciências.
Transparência significa a luta contra os poderes: a vida é comuni-
dade; já as relações sexuais, como as considero, são algo moral. O único
fim que cada um deve ter é o homem, isto é, que o homem não é, todavia,

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o homem. Trata-se de nos transformarmos, pou- aparição de Cristo fez nascer a vida subjetiva, o
co a pouco, em homens. O homem é o fim ab- elemento essencial do pensamento cristão. Antes
soluto para os homens. do cristianismo não havia tal vida. Por ela o ho-
mem tenta recuperar sua objetividade, isto é, cada
Pergunta: Isso quer dizer que o homem é ab- homem tende a entender-se como a unidade da
soluto? subjetividade e da objetividade, ao passo que, an-
Sartre: O homem não é o absoluto, e sim o tes, uma estava separada da outra. Agora temos
seu fim absoluto, porque ser homem é ser moral. de explicar aos seres humanos dois aspectos, ne-
Cabe ao homem viver moralmente, pois o ser nhum dos quais dominando o outro: eles expres-
mais profundo, secreto, do homem é ser moral. sam as mesmas intenções – compreendidas no
sentido fenomenológico.
Pergunta: Isso significa que a liberdade do
homem sempre é liberdade moral? Seria, assim, a Pergunta: Como você entende a afirmação
liberdade o valor superior? do homem como paixão inútil?
Sartre: A liberdade em si não é um valor, Sartre: É uma realidade que permanece ver-
senão que ela escolhe o que decide como valor dadeira para muitos seres humanos, mas existe
absoluto. Ela é valorizada. A liberdade mesma um esforço para fazê-la desaparecer na prepara-
não é um valor, mas uma realidade metafísica. ção de uma ação. Por outro lado, a relação de pai-
xão com ação é um dos fundamentos da moral.
Pergunta: Em que sentido devemos tomar a
afirmação de que a liberdade é uma realidade Pergunta: Existe uma relação entre o ideal
metafísica? ontológico de O Ser e o Nada e o ideal moral (so-
Sartre: No sentido de uma realidade trans- ciedade anarquista)?
cendental: é a realidade que se ama em cada um,
Sartre: O ideal ontológico era falso: não
é a origem, a salvação. Cada homem deve ser pro-
existe síntese possível do em-si e do para-si. De-
duto da comunidade e de uma realidade livre.
vemos buscar melhor a síntese da objetividade e
da subjetividade, pois a objetividade do homem
Pergunta: Partindo dessa visão de liberdade,
não é a do objeto.
o que significa o poder compreendido como nega-
ção da liberdade?
Sartre: O poder é uma das formas essen- Pergunta: Você crê que a experiência da fini-
ciais do mal. tude condiciona as relações humanas?
Sartre: Sim, certamente, mas não tenho
Pergunta: Como você definiria, nos dias de abordado esse problema. Atualmente penso as
hoje, sua moral? relações humanas com base no que chamamos
Sartre: Seria uma moral da esperança, pois a mutualidade, ou seja, a relação primeira com o
esperança é um valor, uma vez que a realidade da outro e dos outros comigo. Ela supõe a recipro-
sociedade anarquista não é para amanhã. cidade, posto que nós não somos dois, como
quando se diz que há dois vasos. É uma relação
Pergunta: Mas como unir essa idéia à afir- recíproca; primitivamente é uma mutualidade.
mação de que a história é um absurdo?
Sartre: A história não é absurda, eu não Pergunta: A mutualidade provém de uma
penso assim. Disse isso, mas, quando o fiz, não experiência mística?
pensei o bastante. Ela tem um sentido, e isso se Sartre: Não. Ela não pertence à mística, e
pode ver ao se observar aquilo em que a socieda- sim à racionalidade. Tudo o que existe é racional,
de se tem tornado: há um progresso, desde a épo- no sentido de que forma parte de um conjunto
ca dos romanos até hoje em dia. Por exemplo, a definido de princípios e que se chama realidade.

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Conexões Gerais
General Connections
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Autodomínio e a Forma
Variável: a palestra de
Nietzsche sobre Heráclito
SELF-MASTERY AND THE VARIABLE FORM:
NIETZSCHE’S HERACLITUS LECTURE * 1
Resumo Um exame da palestra de Nietzsche sobre Heráclito revela um
paradigma pré-platônico, que se tornou alvo da transvalorização cultural de
Platão. O Heráclito de Nietzsche volta a sua energia intelectual interiormente, DALE WILKERSON
em busca do domínio de si e agindo sobre o instinto agonal do mundo grego, University of North
geralmente produtor de formas prósperas e suas variações. Nietzsche encontra a Texas (UNT)
expressão desse paradigma helênico nos fragmentos de Heráclito, exaltando a dalew@unt.edu
harmonia de todas as coisas em desarmonia consigo mesmas (diapheromenon).
Uma breve análise da obra de Platão confirma que o chamado paradigma helênico
é ordenado com o estabelecimento de um eidos invariável.
Palavras-chave AGON – CULTURA – FLUXO – HELENISMO – PLATÃO – PRÉ-
SOCRÁTICO.

Abstract An examination of Nietzsche’s Heraclitus lecture reveals a Pre-Platonic


paradigm that had become the target of Plato’s cultural transvaluation.
Nietzsche’s Heraclitus turns his intellectual energy inwardly, searching for
mastery of the self and acting upon the Greek world’s agonal instinct, generally
productive of flourishing forms and their variations. Nietzsche finds expression
of this “Hellenic” paradigm in Heraclitus’ fragments exclaiming the harmony of
all things “at variance with themselves” (diapheromenon). A brief look at Plato’s
work confirms that the so-called Hellenic paradigm is disposed with the
establishment of an invariable eidos.
Keywords AGON .–. CULTURE .–. FLOWING .–. HELLENISM .–. PLATO .– PRE-
SOCRATIC.

*1 Tradução do inglês para o português: NUNO COIMBRA MESQUITA (USP/SP).

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INTRODUÇÃO ÀS FONTES E AO TEMA


DO TRABALHO

D
o início a meados da década de 1870, Friedrich Nietzsche,
lecionando na Universidade de Basel, preparou uma série
de palestras que examinavam a retórica e a filosofia no
mundo antigo. Elas foram reunidas e publicadas em ale-
mão – no abrangente Nietzsches Werke: Kritische Gesamt-
ausgabe – e, não surpreendentemente, esse material esti-
mulou algum interesse entre os leitores de língua inglesa.
Enquanto tento demonstrar a importância dessas pales-
tras pré-platônicas nos estudos de Nietzsche, no que se segue examinarei
particularmente a realizada por esse filósofo sobre Heráclito, argumen-
tando que, em Heráclito, Nietzsche encontra a expressão mais clara do
paradigma grego como desenvolvido na cultura grega antes de Platão.
Com esse paradigma, os gregos mais antigos justificaram a produção
criativa e a variação de formas via a disputa interiorizada.
Examinarei, então, esse paradigma pré-platônico e suas várias ca-
racterísticas, incluindo a interiorização das energias intelectuais do mun-
do grego, o aparecimento de variações formais produzido por essa inte-
riorização, a relação diapheromenon-sympheromenon estruturando as
manifestações de formas e o instinto agonal apoiando todas essas qua-
lidades. Começarei por observar a afinidade de Nietzsche por Heráclito,
cuja resistência aos modos cotidianos de seus contemporâneos antigos
soaram um acorde familiar ao leitor não-moderno auto-entendido da
modernidade.
A AFINIDADE DE NIETZSCHE PELA EXTEMPORANEIDADE E
PELA INTERIORIZAÇÃO
Podemos ver uma prova da afinidade de Nietzsche por Heráclito na
maneira com que o retrato efésio é pintado, com um matiz extemporâneo,
acentuando o agon de Heráclito com traços convencionais. Nietzsche
compara Heráclito com Anaxágoras, por exemplo, que postulou uma in-
teligência externa (Nous) dirigindo o desenvolvimento de todas as for-
mas. Ao contrário, Heráclito resistiu à separação iminente dos pensa-
mentos da mente e da matéria, intuindo, antes, uma coerência interna e
a necessidade de todas as coisas.1 Tal resistência mostra que “Heráclito
ainda mantém uma atitude originariamente helênica (urhellenische), isto
é, internalizante, em relação a esses assuntos. A oposição entre a matéria
e o não-material simplesmente não existe, e isso é exato”.2
Na visão de Nietzsche, a chamada internalização do espírito e da
matéria de Heráclito mostrou-se consistente com suas investigações inte-
riorizadas de si, por meio das quais ele tentou se apropriar do jeito de ser
de todas as coisas: o Logos. Por essa razão, Heráclito (como Nietzsche)

1 NIETZSCHE, 2001, p. 72; e 1995, p. 279.


2 Ibid.

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menosprezava o “conhecimento humano como ciências naturais da Antiguidade, começando por


mera ‘historia’ em contraste à sua própria ‘sophia’ Anaxímenes e se desdobrando por Anaxágoras e
interiorizada”.3 Enquanto Heráclito buscava o Demócrito. Teorias antigas relativas à Natur-
autoconhecimento, afirma Nietzsche, ele produ- wissenschaft desenvolvem-se contra Heráclito, de
zia o maior tipo de insight intelectual – sophia –, acordo com Nietzsche, formulando um conceito
ao passo que aqueles que buscavam fatos exter- de materialismo que radicalmente exclui todas as
nos, ao contrário, produziam “mera historia” em formas intuitivas de autodomínio.7
montes aleatórios.4 A ênfase de Nietzsche na agon entre He-
Contrariamente àqueles que conhecem e, ráclito e seus contemporâneos chama a atenção
portanto, dominam a si, o mero conhecedor de para uma importante característica da era trágica.
fatos externos é obrigado, enfim, a buscar da Os filósofos pré-platônicos mais notáveis, na
mesma maneira um senhor para dirigir, ordenar e avaliação de Nietzsche, competiam entre si no
tornar significativo o acúmulo do coletor. Logo, palco da narrativa cultural do mundo grego. Em
embora seja bem possível coletar uma maior vas- seus momentos mais exemplares, a forma pré-
tidão de conhecimento externalizando a força in-
platônica estava em desacordo consigo mesma,
telectual, o que será coletado nesse caso parecerá
Nietzsche parece dizer, ao voltar suas energias
insignificante sem uma visão construtora de for-
interiormente, dominando a si mesma pela com-
ma, melhor cultivada mediante a força de um
petição e encontrando significado nisso. Essas
olhar interiorizado.5
lutas produziram variações formais do instinto
Conseqüentemente, podemos estar corre-
cultural do mundo grego e, ao cultivar esse ins-
tos em supor que o imperativo profético “conhe-
tinto, os filósofos pré-platônicos afirmaram a
ce-te a ti mesmo” guiou não só as indagações de
medida da grandeza como tal. Tais competições
Heráclito sobre Physis, mas também os estudos
promoviam o autodomínio por todo o mundo
de Nietzsche sobre a cultura e o pensamento gre-
grego, ao focalizar energias para o desenvolvi-
go. Nietzsche quase admite, na palestra sobre
mento cultural, permitindo à sociedade grega, na
Heráclito: “o sábio focaliza sua visão no Logos
em todas as coisas. Ele caracteriza seu próprio fi- visão de Nietzsche, responder apropriadamente
losofar como uma autobusca e uma investiga- a esses desafios intelectuais que acompanharam a
ção”.6 Por essas razões, Nietzsche desafia leituras morte dos velhos deuses.
que colocam Heráclito no desenvolvimento das Heráclito resistiu ao desenvolvimento anti-
místico do materialismo grego que acompanhou
3 Podemos também notar a importância para Nietzsche da interioriza- essa morte – um desenvolvimento que culminou
ção no contexto social. Em “O Estado Grego”, ele argumenta que tal
concentração interiorizada de força em disputas políticas e artísticas no relativismo de Demócrito e dos sofistas. Ele
auxilia o desenvolvimento de uma “verdadeira cultura”, dando à “soci- também recusou as doutrinas místicas e pessi-
edade tempo para germinar e ficar verde em toda a parte, para que
possa deixar que o florescer radiante do espírito brote” (“The Greek mistas de Anaximandro e aqueles que seguiram
State”, idem, 1994, p. 182). De acordo com Nietzsche, o aparecimento seu afastamento do mundo da eterna luta.8 Assim
de tal “espírito” mede o crescimento do ceticismo e do pessimismo na
sociedade, um crescimento sintomático da exteriorização e o esforço como suas rejeições à “historia”, e às tendências
das energias para promover auto-interesses como são estreitamente
interpretados. Resumindo, a concentração interiorizada de força pro-
penetrantes das ciências naturais, a visão de He-
duz tipos saudáveis e prósperos, ao passo que a projeção de energia ráclito sobre a mística religiosa foi sintomática de
para fora meramente acumula indiscriminadamente, levando, muitas
vezes, a uma expansão insignificante de conhecimento, bens e dimen-
um caráter extemporâneo: “Observamos uma
são geral. Idem, 1966, p. 32. forma inteiramente variante (verschiedene Form)
4 Idem, 2001, p. 56; e 1995, p. 264.
5 Isso é o que Zaratustra, de Nietzsche, parece sugerir, me parece, de uma autoglorificação superhumana (über-
quando adverte que “aquele que não consegue obedecer a si mesmo menschlichen) (...) [que] não contém nada reli-
será comandado”, porque é da “natureza dos seres vivos” obedecer
algo (idem, 1969, p. 137). Cf. também idem, 1997, aforismo 188, sobre
o imperativo de obedecer. 7 Idem, 2001, p. 44; e 1995, p. 251.
6 Idem, 2001, p. 56; e 1995, p. 264. 8 Idem, 2001, p. 44; e 1995, p. 252.

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gioso; ele vê fora de si somente o erro, a ilusão, ticamente alega que o efésio “rejeita ser (Seiende).
uma falta de conhecimento”.9 Ele conhece apenas o tornar-se, o fluir. Considera
O que Nietzsche não diz, nessa análise da a crença algo persistente como um erro e uma to-
extemporaneidade de Heráclito, mas que dificil- lice”, acrescentando a esse pensamento: “aquilo
mente permanece oculta, é que, para ele, a desin- que se torna é algo em eterna transformação”.11
tegração do pensamento grego posterior, em vá- Nietzsche argumenta que a base de apoio à
rias facções religiosas e científicas, antecipa um visão de mundo de Heráclito foi primeiramente
colapso similar que ameaça seu mundo no século cultivada no paradigma helênico que dá conta do
XIX depois da morte de Deus. aparecimento e da alteração de formas por meio
Como remédio a essa barbárie, o jovem de estruturas formais. Como vimos, numa con-
Nietzsche propõe desenvolver “uma verdadeira cepção de mundo heraclitiana, uma disputa inte-
cultura” com a concentração interiorizada de riorizada é produtiva de tudo aquilo que prospera.
energias intelectuais, cultivando o ethos de tipo Ao longo da referida palestra, Nietzsche
grego do autodomínio, promovendo o que mais sublinha a visão de mundo de Heráclito, ao tecer
tarde chamaria de espírito livre e reconhecendo o habilmente os fragmentos existentes dos textos
seu lugar numa cultura próspera.10 Aparentemen- dos filósofos pré-platônicos, encontrando quatro
te, apenas essa forma poderia unificar a cultura de pontos principais: 1. todas as formas existentes
maneira a ordenar os impulsos da sociedade pela são eternamente “tornar-se”; 2. todo o tornar-se
religião e pelo conhecimento. Ao exibir o tipo de é igualmente justificável; 3. as formas estão em
autodomínio produzido somente por esse exem- desacordo consigo mesmas e essa tensão interior
plo de disputa interna, Heráclito representa, para cria uma harmonia estrutural; 4. o “fogo” nos dá
Nietzsche, um modelo exemplar de humanidade a metáfora mais apropriada para entender essas
e capaz de justificar toda a cultura helênica. relações. Heráclito exibe melhor o paradigma
AUTODOMÍNIO NUM MUNDO HERACLITIANO grego no fragmento D51 (que Nietzsche posi-
Nietzsche descobriu que perspectivas ex- ciona mais ou menos na metade de sua palestra):
temporâneas da modernidade poderiam ser “aquilo que está em desacordo consigo mesmo
alcançadas entendendo-se as maneiras pelas quais (diapheromenon) concorda consigo mesmo
os gregos promoviam a cultura e o autodomínio (sympheromenon)”.12
com a interiorização. Ele adquire tal argumento Para perceber inteiramente a interpretação
lendo os filósofos pré-platônicos, especialmente de Nietzsche sobre a visão de mundo heraclitia-
Heráclito, e identificando com esses um paradig- na, as várias conotações do termo grego diaphero
ma diferente do esquema transmitido à moderni- são importantes: na linguagem grega coloquial,
dade por Platão. No paradigma heraclitiano, for- diaphero pode significar literalmente induzir ou
mas e estruturas formais estão sempre em fluxo, carregar (phero) contra. Portanto, no fragmento
ao passo que relatos fundacionais do ser como de Heráclito D51, diaphero poderia querer dizer
um eidos imutável e absoluto são “ficções vazias”. induzido a estar em desacordo com ou simples-
Na palestra sobre Heráclito, Nietzsche entusias- mente discordar, no sentido de diferir. No caso
9
desse fragmento, entretanto, o verbo está na voz
Idem, 2001, p. 55; e 1995, p. 263. Nietzsche afirma que Heráclito
também rejeitou os “princípios científicos” e a doutrina dos números,
associada ao nome de Pitágoras, assim como os estilos de vida luxuo- 11 Idem, 2001, p. 62-63; e 1995, p. 270-271.
sos dos contemporâneos desse filósofo grego. Todas essas rejeições 12 Idem, 2001, p. 66; e 1995, p. 274. Nietzsche traduz para o alemão
estavam ligadas, afirma Nietzsche, como também a recusa de Herá- apenas alguns desses fragmentos e, às vezes, apenas parcialmente. Sua
clito do “excitamento religioso de seu tempo”, que agora tinha come- tradução parcial de D51 segue: Indem das All auseinandergehe, komme
çado a influir sobre uma facção dos seguidores de Pitágoras para reagir es wieder mit sich selbst zusammen, wie die Harmonie des Bogens u. Der
contra os teóricos dos números que também adotaram seu nome. Leyer. Uma tradução completa para o inglês (aqui passada para o por-
Idem, 2001, p. 48; e 1995, p. 256-257. tuguês) é dada (sem comentários) no texto de Whitlock: “As pessoas
10 Esse remédio é prescrito em muitos dos primeiros trabalhos de não entendem como aquilo que está em desacordo consigo mesmo
Nietzsche. Cf., por exemplo, o artigo “On the Uses and Abuses of concorda consigo mesmo. Existe uma harmonia no arquear para trás,
History for Life”, idem, 1983, p. 2.10. como nos casos do arco e da lira”.

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do meio (representado pelo omenon), o que sig- o império se fez distinto (diaphero) dos Estados
nifica que suas ações se encaixam entre as menores.13 Assim, diaphero afirma a medida da
articulações ativas e passivas do verbo. Assim, o grandiosidade como tal, dando a todos os parti-
caminho do dia-pher-omenon significa que a en- cipantes um lugar na estrutura da forma coletiva.
tidade aludida está simultaneamente agindo con- A própria análise de Nietzsche sobre os
tra si mesma, numa intenção interiorizada, e rece- fragmentos diapheromenon de Heráclito sugere
bendo aquela ação de si mesma. que esse conceito explica melhor como um
Essa cosmologia explica as formas mais bai- mundo em disputa também pode estar em esta-
xas da “guerra de todos contra todos” no Estado do de harmonia. Naturalmente, acha extraordi-
de natureza, antes de a ordem ser imposta por nário Heráclito ter justificado uma existência re-
uma vontade que se prova a mais forte. Nem to- pleta de luta, reveses e sofrimento, ao buscar a
das as mostras de coisas-em-desacordo-consigo- causa de todo o tornar-se no processo de um mo-
mesmas, entretanto, precisam ser abertamente vimento diapheromenon-sympheromenon: “Esse
hostis. Numa estrutura saudável, a forma auto- é um dos feitos conceituais mais grandiosos: a
dominada promoverá a sublimação do instinto disputa como uma realização contínua de uma
agonal – variando o engajamento formal dos par- justiça unificada, legítima e razoável, uma noção
ticipantes se tornando via a interiorização. A me- produzida do fundamento mais profundo do ser
dida da saúde, então, significa que aquilo-que- grego”.14
está-em-desacordo-consigo-mesmo contém seu O paradigma que Nietzsche aprende dessa
próprio imperativo moral: deve buscar eterna- investigação não se pensa ser uma invenção de
mente maneiras novas e mais apropriadas de “tra- Heráclito; ele simplesmente oferece, de acordo
var a guerra” de seu próprio tornar-se. com o filósofo alemão, a voz mais clara e refina-
No esquema heraclitiano, todos os seres lu- da daquilo que vem do fundamento mais profun-
tam desse jeito. Enquanto tais disputas podem do do ser grego. A articulação de Heráclito nasce
produzir vários graus de definição, e até uma hi- das indicações formais, de Homero e de Hesío-
erarquia geral entre formas emergentes, a produ- do, de e variações sobre o instinto agonal: “pelo
ção e a identificação destas influenciarão o enga- Ginásio, competições musicais e vida política,
jamento formal global de competidores e essa in- Heráclito tornou-se familiarizado com o para-
fluência variará a estrutura global do engajamen- digma (Typische) desse polemos. A idéia da justi-
to. Nesse processo, a disputa torna-se mais ou ça-guerra é o primeiro pensamento especifica-
menos sublime, ao passo que essas mudanças mente helênico na filosofia, o que significa dizer
promovem vantagens, sustentando as partes mais que ele se qualifica não como universal, e sim
fortes e estabilizando a estrutura como um todo. como nacional”.15
Um entendimento heraclitiano de como a Nietzsche alega aqui que o instinto agonal
luta é justificada mostra outra maneira de que os em funcionamento nos mitos dos poetas antigos,
gregos comumente usavam o termo diaphero: e conceitualizado nos fragmentos diapheromenon
para ressaltar o limite da distinção. Aqui, o dia de Heráclito, inspira uma cosmologia nacional,
transmite a noção de “para o outro lado” ou “de em vez de universal. Ao fazê-lo, coloca em evi-
uma parte à outra”, no sentido que dia-phero sig- dência a visão de que o paradigma fundado no po-
nifica o “passar para outro lado” ou “passar de lemos é sintomático da perspectiva grega e de sua
uma parte à outra” de algo até o aparecimento. É relação com o instinto antigo do autodomínio
assim que Tucídides, por exemplo, usa o termo através da estrutura diapheromenon de todos os
para introduzir o discurso fúnebre de Péricles e, seres. A alegação de que essa idéia é especifica-
ao recitá-lo, louvar o império ateniense e seus
13 THUCYDIDES, 1991, p. ii, 37-ii, 39-ii, 40-ii e 43.
costumes – quando Péricles afirma que a grandi- 14 NIETZSCHE, 2001, p. 64; e 1995, p. 272.
osidade ateniense é mais aparente nas formas que 15 Idem, 2001, p. 64; e 1995, p. 272.

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mente helênica significa, para Nietzsche, que ela No livro I de República, Platão faz uma dis-
antecede Platão e, em alguns pontos, articula o tinção similar entre as discussões do filósofo, Só-
paradigma que se tornará o foco da inimizade crates, e o sofista, Trasímaco, quando o primeiro
deste filósofo pelo estilo grego. Nas páginas re- alega que a vida injusta não pode ser a melhor,
manescentes desse artigo, portanto, tentarei porque “qualquer coisa em desacordo consigo
mostrar como Platão luta para eliminar esse pa- mesmo (diapheresthai) deve se tornar seu próprio
radigma helênico. inimigo, bem como de todos os que são justos”.19
A TRANSVALORIZAÇÃO ANTI-HELÊNICA DE Assim, a estrutura diapheromenon paradigmática
PLATÃO: DOMÍNIO DA FORMA EXTERNA apoiando o politeísmo nos retratos do mundo
De fato, Nietzsche não está sozinho ao ar- grego dos deuses é estendida por Platão, em Re-
gumentar que Platão busca fundamentalmente pública, para a representação sobre a vida política
retrabalhar o paradigma grego no qual formas ateniense de Trasímaco, que pretendia articular a
emergem mediante a variação e a disputa. Hans- visão geral de todos os sofistas e polímatas.
Georg Gadamer, por exemplo, reconheceu que Platão parece sugerir, então, que as várias
“Platão primeiramente ergueu a contracons- visões sofísticas, poéticas e materialistas do mun-
trução para o fluxo universal (heraclitiano) para do grego mostram-se não apenas imorais, como
sublinhar seu pensamento do eidos”.16 De acordo também incorretas, na medida em que são co-
com a alegação de Gadamer, a noção de Platão de mensuráveis com a estrutura diapheromenon-
uma forma (eidos) a priori, absoluta, imutável e sympheromenon descrita em Heráclito D51. Pla-
fundacional é primeiramente concebida (como tão veio a adotar essa posição primeiro ao reco-
também alegou Nietzsche) antieticamente, con- nhecer que todas aquelas visões de mundo ex-
tra a visão mais antiga, que sustentava que as for- pressas por seus predecessores, aparentemente
mas desenvolvem-se eternamente através de es- em contradição consigo mesmos, uniram-se, já
tados agitados de variação. Gadamer encontra que simplesmente variaram os instintos agonais
tais objeções de Platão expressas acentuadamente do mundo grego de maneiras compatíveis com o
em O Sofista (242e) e em O Banquete (187a) e, paradigma mais geral. Concluiu, então, que o
para um apoio adicional a essa leitura, examinarei agon fundacional desse modo grego era moral-
três outras citações: uma do Eutifron e as outras mente repreensível, pois parecia apoiar a visão
duas dos livros I e II de República. que acentuava, e até facilitava, a volatilidade do
mundo físico, a aleatoriedade e a falibilidade.
Em Eutifron, Platão distingue o filósofo do
poeta, quando Sócrates alega (contra as crenças Nessa leitura, o platonismo pretendia subs-
tradicionais) que os deuses não podem estar “em tituir um eidos externo, fundacional e invariável
desacordo entre si” (diapheromenon).17 A posi- por uma estrutura incerta de formas variáveis or-
ção aqui é que os poetas incorretamente repre- ganizando-se de sua própria concentração interi-
sentam os deuses e que sua cosmologia tradicio- orizada de energia. Na imagem de um eidos ex-
nal oferece pouca orientação moral. No livro II terno e fundacional, encontramos a semente do
de República, ademais, Sócrates mais tarde corri- monoteísmo no Ocidente e, de acordo com as
críticas abjetas de Nietzsche, a maior ameaça ao
ge esses erros com um retrato dos deuses “como
desenvolvimento de formas mais saudáveis e suas
eles realmente são”: bons, estáveis, não responsá-
estruturas.20
veis pelo mal, seguros em todos os sentidos e
“menos propensos do que qualquer coisa a des- Com poucas exceções, a história inicial do
viarem-se de sua própria forma (eidos)”.18 Ocidente, e sua guinada subseqüente para a
modernidade, tem se direcionado, na visão de
16 GADAMER, 2001, p. 38-39.
17 PLATÃO, 1990, p. 7bs. 19 Ibid., p. 352a.
18 Idem, 1985, p. 380d. 20 NIETZSCHE, 1974, aforisma 143.

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Nietzsche, pelo gosto de Platão pelo domínio de vêm diminuindo o senso de ação da humanidade,
uma forma duradoura e externa. Ao tentar siste- enquanto corrompe seus instintos pelo poder, ao
matizar uma construção moral executável, que ponto em que a compreensão dela sobre o valor
organizasse relações, definindo, classificando e de suas ações, de sua necessidade de agir criativa
trazendo à ordem diferenças eternas pré-agonais, e grandiosamente e de sua responsabilidade por
Platão desafiou suposições culturais de sua época, fazê-lo têm vacilado.
retrabalhando o chamado paradigma helênico, de Resumindo, ao falhar, em momentos chave
modo a estabelecer a supremacia de seu próprio
de nossa história, na lembrança de que somos nós
esquema.21
que fazemos distinções de modo a tornar nossas
A FORÇA DE NIETZSCHE NO PENSAMENTO DO
PRESENTE vidas significativas, e que somos capazes de fazê-
A tarefa de reconhecer o verdadeiro caráter las ao dominar nossos impulsos pelo poder com
das formas e de suas variações jorra luz sob inú- a interiorização da energia intelectual e cultural,
meras questões que, sob certos aspectos, nos le- também esquecemos nossos papéis em criar
vam a retomar o começo do pensamento da tra- aqueles padrões e objetivos que dão às nossas vi-
dição ocidental. O que significaria, poderíamos das significado real. Assim, perdemos o poder
perguntar, ser humano em um paradigma de for- natural de moldá-los às nossas necessidades. Tal
mas variantes? Como o viver sob tal visão de análise, entretanto, não precisa nos levar ao pessi-
mundo influenciaria o modo que as pessoas nor- mismo. A verdadeira força trazida por Nietzsche,
malmente se vêem? com sua palestra sobre Heráclito é a esperança de
De fato, já estamos experimentando essa que espíritos livres do futuro possam recuperar o
mudança enfaticamente. Nietzsche alega que o sentido que a humanidade tem de quem é ela e da
ser humano é, primordialmente, um ser autocria-
sua capacidade de se tornar novamente senhora
dor, autotransformador e autodominador e que a
de si. Por essas razões, uma grande quantidade de
modernidade freqüentemente o aliena de suas ca-
energia intelectual vem sendo direcionada no úl-
pacidades naturais. Esse erro e sua longa história
timo século (e corretamente) a problemas que di-
21 Enquanto Keith Ansell-Pearson reconheceu, nas primeiras obras de zem respeito a alienação, identidade, significado e
Nietzsche, uma afinidade por uma “concepção clássica de Estado”, a propósito – os mesmos que Nietzsche tinha
maior diferença, de acordo com aquele autor, entre a concepção polí-
tica de Nietzsche e o modelo clássico descrito por Platão é a da ação. identificado como os que a modernidade encara-
“O problema de Platão para Nietzsche é que ele falhou em reconhecer va no século XIX e que tentou resolver, ao retra-
a base artística de sua própria filosofia e a apresentou como verdade
eterna e objetiva” (ANSELL-PEARSON, 1994, p. 76). balhar o pensamento dos gregos antigos.

Referências Bibliográficas
ANSELL-PEARSON, K. An Introduction to Nietzsche as Political Thinker. Cambridge: Cambridge University Press,
1994.
GADAMER, H.-G. The Beginning of Knowledge. Trad. Rod Coltman. New York: Continuum, 2001.
NIETZSCHE, F.W. The Pre-Platonic Philosophers. Trad. Greg Whitlock. Urbana and Chicago: University of Illinois
Press, 2001.
______. Beyond Good and Evil. New York: Penguin, 1997.
______. Nietzsches Werke: Kritische Gesamtausgabe. Fritz Bornmann e Mario Carpitella (eds.) (parte 2, v. 4). Berlin
and New York: Walter de Gruyter, 1995.
______. On the Genealogy of Morality. Keith Ansell-Pearson (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
______. Untimely Meditations. Trad. R.J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
______. Gay Science. Trad. Walter Kaufmann. New York: Vintage, 1974.
______. Thus Spoke Zarathustra. Trad. R.J. Hollingdale. Penguin Books, 1969.

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______. The Portable Nietzsche.Walter Kaufmann (ed.). New York: Viking, 1966.
PLATÃO. Euthyphro. Trad. Harold North Fowler. Cambridge/Massachusetts: Loeb/Harvard University Press, 1990.
______. Republic. Trad. Sterling and Scott. New York: Norton, 1985.
THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War. Trad. C.F. Smith. Cambridge/Massachusetts: Loeb/Harvard Uni-
versity Press, 1991.

Dados do autor
Ph.D Lecturer, Dept. of Philosophy University
of North Texas (UNT)

Recebimento: 23/jul./04
Aprovado: 2/dez./04

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A Contemporaneidade
da Matriz: sobre alguns
temas políticos nos filmes
da trilogia Matrix
CONTEMPORANEITY OF THE MATRIX:
ON SOME POLITICAL THEMES IN THE
MATRIX TRILOGY MOVIES
Resumo Este trabalho procura fazer uma leitura política dos filmes da trilogia
Matrix. Para tanto, mobiliza o repertório teórico-analítico da crítica dialética,
especialmente aquele desenvolvido pelo crítico americano Fredric Jameson.
Acredito que tal abordagem crítica possibilite um entendimento da obra como MARCELO CIZAURRE
objeto de cognição da realidade sociohistórica da qual emerge. E busco GUIRAU
explicações históricas para a estrutura formal da obra estudada, além de focalizar Universidade de
alguns fenômenos históricos codificados em forma alegórica nos filmes objeto São Paulo (USP)
dessa análise. Entre eles, estão: o sentimento de inevitabilidade que permeia a cizaurre@usp.br
idéia de progresso, o fenômeno da perda da realidade característico do discurso do
pós-modernismo, o enfraquecimento da consciência de classe e a ausência de
projetos coletivos que proponham uma sociedade diferente.
Palavras-chave MATRIX – CRÍTICA DIALÉTICA – JAMESON.

Abstract This work is an attempt to read politically the films from the Matrix
trilogy. In order to do this, we will use the theoretical-analytical repertoire of the
dialectic critique, especially those created by the American critic Fredric
Jameson. We believe that this kind of critical approach can offer a better
understanding of the work of art studied, opening the possibility of transforming
this work into an object of cognition of a given social-historical reality. We tried
to find historical explanations to explain the formal structure of these films. We
focused on some historical phenomena, which are, as we believe, codified in
allegorical form in the movies studied. Among them, there are: a feeling of
inevitability, which is a characteristic of the post-modern discourse; the
weakening of the idea of class-consciousness and the absence of collective
projects that propose a different society.
Keywords MATRIX – DIALECTIC CRITIQUE – JAMESON.

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INTRODUÇÃO

O
enorme sucesso comercial da trilogia Matrix não é
novidade no mundo das superproduções hollywoo-
dianas. Mas Matrix difere da maioria dessas super-
produções em vários aspectos, sendo o mais rele-
vante deles um certo estranhamento e inquietude
que o universo ficcional apresentado na tela desper-
tou nos espectadores. Dessa inquietude surge a ne-
cessidade de reflexão, o que pode explicar, em parte,
a grande quantidade de material escrito sobre esses filmes. É claro que a
sede insaciável de lucros da indústria cultural também contribui na pro-
dução de mais materiais sobre a trilogia.
Muito do que foi escrito sobre Matrix são tentativas de encontrar
explicações filosóficas, religiosas ou científicas para o universo ficcional
criado nos filmes. Alguns artigos procuram refletir sobre as reais possi-
bilidades de todos nós fazermos parte de uma Matrix. Toda essa agitação
teórica ao redor dos filmes demonstra que, mesmo de maneira distorcida,
o público percebe que neles se problematiza uma consideração sobre a
nossa própria realidade social.
Embora em níveis de cognição diferentes, os espectadores da trilo-
gia “sentem” que aquilo colocado na tela também diz respeito ao coti-
diano deles. A dificuldade em aproximar a Matrix ficcional do chão social
do qual ela se originou é um indício da complexidade de criar diagnós-
ticos sobre a realidade, característica de nosso mundo globalizado. A pró-
pria trilogia, com suas falhas e incoerências, é sintoma disso.
Quando os elementos do nosso cotidiano social já não se mostram
suficientes para explicar o funcionamento do mundo, a cognição da rea-
lidade torna-se cada vez mais difícil. A diversidade de explicações sobre
Matrix, do budismo à engenharia genética, é um sinal dessa dificuldade
em encontrar elementos que expliquem o mundo atual. Matrix, com sua
variada gama de referências culturais (kung-fu, budismo, mitologia grega,
cristianismo etc.), é exemplo disso.
Encontrar um método de interpretação capaz de ler a realidade so-
cial de um dado momento histórico impressa na obra de arte é, hoje em
dia, tarefa das mais relevantes aos estudos culturais. Para ser eficiente,
esse método deve transformar a obra estudada em objeto de cognição da
realidade, de modo a possibilitar a visualização e a conceituação de certos
fenômenos, que, presentes de maneira difusa no cotidiano social, apre-
sentam enorme dificuldade de apreensão para a consciência individual,
mas encontram formas pelas quais se tornam visíveis em certos objetos
artísticos.
Neste trabalho, pretendo analisar alguns aspectos da trilogia Ma-
trix, utilizando a abordagem teórica elaborada por Fredric Jameson.
Creio que ela oferece um instrumento de análise capaz de ler o conteúdo
sociopolítico com a qual todo objeto artístico está invariavelmente con-

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taminado. Dada a quantidade de possibilidades que “tem sido colocado sobre os seus olhos para
interpretativas oferecidas pela trilogia, concen- cegá-lo da verdade (...) de que você é um escra-
tro-me em dois aspectos que julgo dignos de vo”, é plausível compará-la com o espetáculo,
atenção: a maneira como os filmes dão forma a que, segundo Guy Debord, é a “conservação da
um sentimento de inevitabilidade, que permeia a inconsciência na mudança prática das condições
nossa vida social e dificulta a emergência de pro- de existência”.1 De acordo com esse autor, “O
jetos alternativos ao atual sistema; o esboço de espetáculo na sociedade corresponde à fabricação
uma realidade “desconectada” desse sistema e concreta da alienação”.2
como a luta para “libertar-se” é organizada (dico- É constante, no filme, a presença de telas de
tomia, presente nos filmes, entre agência coletiva
televisão. Em alguns momentos, vemos a mesma
e individual).
cena reproduzida em várias telas (por exemplo,
O QUE É A MATRIX? na do interrogatório de Neo pelo agente Smith,
Quem procurar na trilogia Matrix uma res-
no primeiro filme). Quando Neo encontra o Ar-
posta precisa para tal pergunta encontrará apenas
quiteto, vemos várias cenas vividas pelo herói até
indefinição. Não é de espantar o fato de que mui-
tos dos artigos já escritos sobre esses três filmes aquele momento da trilogia reproduzidas nas te-
tentam buscar tal resposta. A indefinição do que las. E também a imagem de Neo em telas dentro
é a Matrix está contida na fala de Morpheus: “A de telas, num instante de grande suprematismo
Matrix está em toda parte. Ela está toda ao nosso visual.
redor. Você pode senti-la quando você vai ao tra- O primeiro contato de Neo (e do especta-
balho, quando você vai a igreja, quando você paga dor) com o deserto do real se dá por meio da
os seus impostos. Ela é o mundo que tem sido imagem de um televisor. Nesses momentos, a ir-
colocado sobre os seus olhos para cegá-lo da ver- realidade é elevada à décima potência: vemos
dade (...) de que você é um escravo”. imagens da Matrix (irreais) por meio de telas de
Sabemos ainda, pela colocação de Mor- televisão, na tela do cinema ou da televisão (es-
pheus, que a Matrix é um sistema criado com o pectador). Todas essas camadas de irrealidade co-
objetivo de controlar os humanos e transformá- locam o espectador numa posição de distancia-
los em baterias humanas: “A Matrix é um mundo mento da “verdade” no filme, o que amplia a des-
de sonho gerado por computador, construído confiança a respeito do que é verdade ou mentira
para nos manter sob controle, a fim de transfor- no universo ficcional construído em Matrix (é re-
mar o ser humano nisso [nesse momento, o per- levante observar que o primeiro encontro de
sonagem Morpheus mostra uma pilha]”. Neo com o deserto do real aconteceu num pro-
Partindo do pressuposto teórico de que ne- grama que funciona semelhante a Matrix).
nhuma obra de arte pode se desligar do seu con- Essa irrealidade exacerbada deve ser anali-
texto sociohistórico, podemos afirmar que a Ma- sada do ponto de vista da crise de figurabilidade
trix descrita nos filmes dá forma, mesmo que dis- do mundo pós-moderno. Com a quase elimina-
torcida e imprecisamente, a algo presente na so- ção das fronteiras geográficas (os avanços nas
ciedade contemporânea. O filme Matrix pode ser tecnologias de comunicação diminuíram as dis-
visto como uma alegoria da exploração do traba-
tâncias) pela expansão do capital, a realidade já
lhador pelo capital. Nele, seres humanos têm suas
não pode ser explicada apenas com a observação
energias sugadas, enquanto, inconscientes para
dos elementos contidos na paisagem local. A ver-
essa verdade, vivem uma vida ilusória gerada para
dade do mundo é, assim, dispersa nas ondas de
mantê-los sob controle.
informação que circulam pelo globo diariamente.
A Matrix pode ser vista como uma repre-
sentação do mundo do espetáculo. Retomando a 1 DEBORD, 1997, p. 21.
definição de Morpheus, de que ela é um mundo 2 Ibid., p. 24.

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Nesse contexto, o potencial de narrativização3 da Ao contrário de Marx, que acreditava na noção de


nossa sociedade é constantemente diminuído. fetiche como um objeto real cuja presença estável
ofusca sua mediação social, seremos forçados a afir-
Essa crise da figuração afeta também as ca-
mar que o fetichismo atinge seu apogeu precisa-
tegorias do espaço. No mundo globalizado, o es-
mente quando o fetiche em si é ‘desmaterializado’,
paço já não contém as explicações de si mesmo. transformado numa fluida entidade virtual ‘imate-
Ele é expandido até o nível da abstração. Repre- rial’; o fetichismo do dinheiro há de culminar com
sentar essas novas categorias do espaço é um de- sua passagem à forma eletrônica, quando desapare-
safio com o qual os artistas do nosso tempo têm cerem os últimos vestígios de sua materialidade –
de se confrontar (mesmo que inconscientemen- somente nesse estágio ele será capaz de assumir a
te), quando desejam, de algum modo, recriar fic- forma de uma presença espectral indestrutível.5
cionalmente a realidade. Nos filmes aqui estuda-
dos, esse novo espaço abstrato encontra forma na Será essa uma previsão pessimista?
idéia da Matrix. A Matrix é um mundo todo que não é na-
Hoje em dia presenciamos um novo está- da. Está em todo lugar (“A Matrix está em toda
gio do capitalismo, em que a dessubstancialização parte”) e em lugar nenhum. Recusa qualquer de-
do capital atinge níveis de abstração nunca vistos finição – segundo Morpheus: “infelizmente, nin-
antes. Essa alteração na base econômica desenca- guém pode ser informado do que é a Matrix”. As
deia uma série de mudanças na existência social linhas de códigos que escorrem em telas verdes a
cotidiana. O capital, mola propulsora das relações mostram, mas ela continua invisível para nós. O
sociais nas sociedades capitalistas, surge agora personagem Cypher explica por que só é possível
vê-la em códigos: “A quantidade de informação é
como uma força invisível, cuja presença permeia
muito grande para decodificar a Matrix”.
a vida de todos, mas é experimentada apenas
como um vago sentimento de que há algo con- Os espectadores não conseguem ver o que
trolando e determinando a nossa vida. Em Ma- acontece dentro da Matrix olhando para essas te-
trix, Morpheus expressa essa vaga sensação quan- las verdes, mas alguns personagens podem fazê-
do tenta explicar a Neo a razão do encontro de- lo. Aqui, o filme falha em fornecer uma explica-
les: “Você está aqui porque você sabe de algo. O ção plausível para justificar a capacidade desses
que você sabe você não pode explicar, mas você personagens de ver imagens por meio dos có-
sente isso. Você tem sentido isso a sua vida intei- digos. Quando perguntado sobre como conse-
ra: tem algo errado com o mundo. Você não sabe guem enxergar além dos códigos, Cypher diz que
o que é isso, mas isso está lá, como uma farpa na eles já se acostumaram a estes, que eles nem mes-
sua mente, deixando você louco. É esse senti- mo os vêem mais. A explicação não é suficiente
mento que trouxe você até mim”. para convencer-nos de que seres humanos como
nós podem ver imagens naquelas linhas de có-
Para Slavoj Zizek, “a verdade definitiva do
digos que deslizam sobre as telas verdes.
universo desespiritualizado e utilitarista do capi-
talismo é a desmaterialização da ‘vida real’ em si, Essa “falha” do filme deve ser analisada
que se converte num espetáculo espectral”.4 como um “momento de verdade”, em que os li-
Qualquer semelhança entre essa descrição da mites da figuração são expostos. Ela aponta, no-
nossa realidade e a Matrix do filme não é mera vamente, para a crise de figuração que verifica-
coincidência. Zizek antecipa um futuro seme- mos em nosso presente histórico. O espaço-abs-
lhante ao cenário pintado na idéia da Matrix: trato figurado pela Matrix não se dá ao olhar co-
mum, o que explica a maneira como o filme não
3 Conceito que designa a capacidade de uma sociedade de contar his- permite que nós, espectadores, vejamos por meio
tórias sobre si mesma, bastante utilizado pela crítica materialista, como das telas verdes. No entanto, os personagens
podemos ver nas obras de Walter Benjamin e de Fredric Jameson, por
exemplo.
4 ZIZEK, 2003, p. 28. 5 Ibid., p. 52.

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conseguem enxergá-la nesses códigos, fato que são: escolhemos entre estes, sem dúvida, mas difi-
não é devidamente explicado justamente porque cilmente se poderia dizer que temos alguma in-
a figuração atinge, nesse instante, o seu limite: fluência na escolha efetiva de qualquer deles.6
como conceber esse olhar capaz de ver o espaço-
A questão das escolhas é de fundamental
abstrato por intermédio dos códigos?
importância para a análise dos filmes, mas será
A figuração desse olhar-decodificador do tratada mais adiante.
espaço-abstrato não se dá por impossibilidades
O mercado, como a Matrix do filme, oferta
históricas, exigindo, assim, do filme uma explica-
uma ilusão de liberdade cuja verdadeira intenção
ção simples e imprecisa sobre como “nós nos
é controlar e domesticar as forças produtivas da
acostumamos aos códigos”. Resumindo: essa ex-
sociedade, a fim de explorá-las. Ele se apresenta
plicação simples e imprecisa é colocada, no filme,
como uma força estruturante, cuja função é ga-
como alternativa à impossibilidade formal de fi-
rantir a livre circulação de mercadorias, possibili-
gurar algo que não está dado na sociedade – um
tando um crescimento e um desenvolvimento
olhar-decodificador apto a ver o espaço-abstrato.
que, sem a sua mediação, poderiam ser ameaça-
A condição de possibilidade para a explicação
dos pela inconstância do homem: “A ideologia do
dada no filme é, portanto, a inexistência desse
mercado assegura-nos que os seres humanos es-
olhar na nossa realidade social.
tragam tudo quando tentam controlar seu desti-
O dilema presente na concepção da figura-
no (‘o socialismo é impossível’), e que é uma fe-
ção da Matrix pode ser posto dessa maneira: é
licidade possuirmos um mecanismo interpessoal
preciso encontrar um modo de os personagens
– o mercado – capaz de substituir a arrogância e
verem o que ocorre dentro dela. Se isso fosse fei-
o planejamento humanos, e de substituir por
to com simples telas de computador que mos-
completo decisões humanas”.7
trassem a Matrix como o espectador a vê, a figu-
ração de um espaço-abstrato se revelaria compro- Essa “ideologia do mercado” é figurada, em
metida, pois as imagens estariam lá, postas facil- Matrix, na dicotomia entre a infalibilidade das
mente ao olhar, conferindo certa concretude, máquinas e a ineficiência humana. Quando
ainda que questionável, a esse espaço. A solução Cypher falha em sua missão de liquidar com os
da Matrix vista por meio dos seus códigos solu- tripulantes do Nabucodonosor, o agente Smith
ciona esse problema, mas cria um novo: como fa- comenta: “nunca mande um humano para fazer
zer os personagens enxergarem mediante esses um trabalho de máquina”.
códigos? Chegamos aqui ao limite da figuração Num momento crucial da trilogia, Neo
do espaço-abstrato no filme. A explicação do confronta o Arquiteto, criador da Matrix. Este
“hábito” entra nesse ponto para tentar preencher, conta a Neo que as imperfeições na Matrix são
de algum jeito, esse vazio na figuração (o que vai conseqüências das incorreções inerentes à natu-
na contramão das conseqüências do hábito). reza humana. Mais ainda, para superar a rejeição
É possível ver a Matrix como uma alegoria dos humanos ao programa, criou-se um “progra-
do mercado. Este, como ela, também está em ma intuitivo” (a Oráculo). Ele identificou a solu-
todo lugar, embora a sua presença paire como ção para 99% dos casos: oferecer uma possibili-
uma fantasmagoria. Como a Matrix, o mercado dade de escolha, mesmo que apenas experimen-
oferece uma ilusão de liberdade, de livre iniciativa tada num nível próximo à inconsciência. Esse
e livre arbítrio, quando, na verdade, “defeito” da natureza humana (a necessidade de
poder escolher) garantiria a aceitação do progra-
Em seu uso geral, o mercado, como conceito, rara- ma da Matrix e a conseqüente submissão total do
mente tem qualquer relação com a escolha ou a li- homem às máquinas. E é precisamente essa “fa-
berdade, uma vez que estas nos são todas determi-
nadas de antemão, quer falemos de novos modelos 6 JAMESON, 1996, p. 284.
de automóveis, brinquedos ou programas de televi- 7 Idem, p. 291.

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lha” do comportamento humano que faz com xar que a profecia se cumpra? Aqui vemos o pa-
que Neo opte pelo resgate de Trinity, em vez da radoxo da escolha já feita expressar-se claramen-
salvação de Zion. te. A escolha oferecida por Morpheus não existe:
Podemos observar, em toda a trilogia, o de- não há outra opção para Neo senão tomar a pí-
senrolar de um intrincado jogo entre escolha e fi- lula vermelha.
nalidade (choice e purpose, respectivamente, no Essa contradição interna do personagem
filme). A escolha faz parte do reino da liberdade, Morpheus volta a aparecer quando ele, diante das
do indivíduo e de sua possibilidade de agência, ao afirmações de Merovigian, de que tudo é deter-
passo que a finalidade pertence ao rígido universo minado pelas leis da causalidade (causality), as re-
das determinações. Feitas essas observações, po- bate, defendendo a possibilidade de escolha:
demos afirmar que escolha e finalidade são con- “Merovigian: existe apenas uma constante uni-
ceitos diametralmente opostos. versal: causalidade (...) ação, reação, causa e efeito
Aqui jaz um dos “momentos de verdade” / Morpheus: Tudo começa com uma escolha”.
de Matrix. Nos filmes, esses dois conceitos apa- Que escolha tem alguém que exerce um pa-
recem inter-relacionados e, por vezes, parecem se pel na encenação de uma profecia? Como a pró-
complementar. De tal união nasce um paradoxo: pria Oráculo salienta, Morpheus acredita tão obs-
a escolha predeterminada. A trilogia começa com tinadamente na profecia, que nem ela pode con-
uma escolha: Neo precisa decidir entre as pílulas vencê-lo do contrário. Em Matrix Reloaded, ele
vermelha e azul – uma falsa escolha, pois, se op- reafirma a sua crença, discursando para o grupo
tasse pela pílula azul, não haveria filme e a profe- que ajudará Neo a chegar à Fonte: “'Não existem
cia não se realizaria. acidentes. Nós não chegamos aqui por acaso. Eu
Neo é o personagem que mais acredita na não acredito em acaso. Eu não vejo coincidências.
possibilidade de escolha: Eu vejo finalidade. Eu acredito que é nosso des-
Morpheus: Você acredita em destino, Neo?
tino estar aqui hoje. Esse é o nosso destino”.
Neo: Não. Outros personagens defendem a idéia da fi-
Morpheus: Por que não? nalidade como único motor dos acontecimentos.
Neo: Eu não gosto da idéia de que eu não controlo É o caso do agente Smith, que, libertado por Neo
a minha vida. no primeiro episódio da trilogia, converte-se em
um vírus que ameaça a própria existência da Ma-
Mesmo diante da profecia do Oráculo, de trix. Ele atribui à finalidade a conexão estabeleci-
que morreria caso tentasse resgatar Morpheus, da entre ele e Neo:
Neo não hesita em agir: “Eu acredito em algo. Eu
acredito que posso trazê-lo de volta”. Ele o faz, O que importa é que tudo que acontece, acontece
mas a profecia se cumpre: Neo morre. Logo em por uma razão... Nós não estamos aqui porque so-
seguida, outra profecia se torna realidade: o Orá- mos livres. Nós estamos aqui porque não somos li-
culo havia dito que Neo não era o escolhido, mas vres. Não há como escapar da razão, nem como ne-
que poderia sê-lo em outra vida. Assim se dá no gar a finalidade, porque, como nós dois sabemos,
sem finalidade não existiríamos. É a finalidade que
filme, quando Neo ressuscita.
nos criou. A finalidade nos conecta. A finalidade
O paradoxo da escolha predeterminada que nos impulsiona, que nos guia, que nos dirige. É
manifesta-se mais explicitamente no persona- a finalidade que nos define. É ela que nos liga.
gem Morpheus. Durante toda a trilogia, ele é o
personagem que mais cegamente acredita na Smith reconhece o caráter repressor do
profecia. Já que estava tão irremediavelmente conceito de finalidade: “Nós não estamos aqui
convencido de que Neo era o escolhido, por que porque somos livres. Nós estamos aqui porque
lhe oferece a possibilidade de recusar-se a ingres- não somos livres”. Essa limitação da liberdade in-
sar na batalha contra a Matrix, e, assim, não dei- dividual representada pela idéia de finalidade é

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novamente problematizada nas falas do persona- neralizado de que atingimos o último estágio do
gem Keymaker (o Chaveiro). Ele acredita na fi- desenvolvimento “natural” da humanidade. O ca-
nalidade das ações como determinação: “Nós só pitalismo representaria, nesse sentido, o ápice da
fazemos o que estamos destinados a fazer” é a história humana, em que o modo de produção
sua resposta a um agente prestes a executá-lo. coincidiria, segundo tal visão, com as disposições
Quando Niobe pergunta como sabe tanto sobre “naturais” inerentes ao homem. Um índice desse
a Fonte, o Keymaker responde: “Eu sei porque sentimento de inevitabilidade predominante em
devo saber. Essa é a minha finalidade. Essa é a ra- nosso tempo pode ser visto, em Matrix, no fato
zão de eu estar aqui, a mesma razão de estarmos de que, em nenhum momento da trilogia, se co-
todos aqui” (Matrix Reloaded). gita a possibilidade de destruir as máquinas por
Logo em seguida, adverte o grupo que ata- completo. Na verdade, ocorre o oposto: toda a
cará com Neo de que “Se um falhar, todos fa- luta travada ao longo dos filmes culmina com um
lham”. Se todos estão lá para exercer seus papéis “acordo” de paz com o inimigo.
na concretização da profecia, isso significa que o Esse vazio de projetos coletivos é denun-
sucesso da missão já está garantido antes de seu ciado por Zizek, quando ele lamenta “o triste fato
início, o que exclui qualquer possibilidade de er- de nós, nos países do Primeiro Mundo, acharmos
ro. Novamente, o paradoxo da escolha predeter- cada vez mais difícil até mesmo imaginarmos
minada se mostra presente. Mesmo que algum uma causa pública ou universal pela qual
imprevisto aconteça (e de fato acontece), ele não estivéssemos prontos para sacrificar a vida”.8
impedirá a conclusão da missão, pois o erro já es-
tava previsto nessa determinação maior, chama- Um genuíno projeto de resistência não en-
da, no filme, de profecia. Não há, portanto, ne- contra figuração, nem nesse nem em muitos ou-
nhuma possibilidade de escolha ou de alteração tros objetos artísticos, pois a sua concepção não
do resultado final dessa missão. está dada na sociedade. O que resta é uma “poé-
A crença cega na finalidade funciona, nos tica da resistência”, manifesta de diferentes for-
filmes, como uma explicação geral para fatos cujo mas em obras de arte de todo tipo. Da política
esclarecimento exporia uma série de problemas das identidades dos anos 1960 para cá, a frag-
da figuração. Os poderes de Neo, por exemplo, mentação da “luta principal” em diversas micro-
são vistos como parte da realização da profecia, políticas tem resultado num crescente apagamen-
dispensando, assim, qualquer reflexão lógica so- to da visão de um objetivo maior, concebido co-
bre sua origem e suas condições de existência. letivamente e abrangendo a maior parte da so-
Como podemos constatar na fala do Conselhei- ciedade. Para Zizek, a resistência constitui, nos
ro: “Eu não tenho absolutamente nenhuma idéia dias de hoje, um discurso hegemônico, que pre-
de como você é capaz de fazer algumas coisas que judica o surgimento de um projeto alternativo
você faz, mas eu acredito que existe uma razão genuíno, coletivamente elaborado:
para isso também”.
As implicações políticas dessa crença obsti- A atitude hegemônica de hoje é a da “resistência” –
nada na profecia são das mais relevantes para uma toda a poética das multidões marginais dispersas, as
análise que vise a estabelecer relações entre a obra sexuais, étnicas, e de estilos (gays, doentes mentais,
prisioneiros...) “resistem” a um misterioso Poder
e o seu contexto sociohistórico.
(em maiúscula) central. Todos “resistem” – desde
Vivemos num tempo de escassez de proje- os gays e lésbicas até os survivalists da direita – en-
tos políticos coletivos que se coloquem como al- tão, por que não inferir a conclusão lógica de que
ternativas ao sistema vigente. Presenciamos, hoje esse discurso da “resistência” é a norma hoje e,
em dia, o domínio absoluto e praticamente in- como tal, o principal obstáculo à emergência do
contestado do capitalismo financeiro mundial,
cuja conseqüência ideológica é o sentimento ge- 8 ZIZEK, 2003, p. 56.

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discurso que realmente colocaria em questão as re- Duas “falhas” chamam a atenção na figura-
lações dominantes.9 ção do inimigo: 1. o filme nunca explica qual é a
real ameaça que Smith representa para os huma-
Em Matrix, essa “poética da resistência” fi- nos; 2. isso explicaria o fato de as máquinas (seres
gura-se na dicotomia entre o universo humano e guiados pelo raciocínio lógico, e não por valores
o mundo das máquinas. A resistência é organiza- éticos) terem cumprido a sua promessa de não
da contra uma ameaça comum: o domínio das destruir Zion, mesmo depois de resolvido o pro-
máquinas. A consciência de classe nasce da loca- blema Smith. Mais uma vez, essas “falhas” na fi-
lização e do reconhecimento da força que ameaça guração indicam uma dificuldade histórica de dis-
a sobrevivência do grupo. Mesmo a consciência cernir o Outro contra o qual a consciência de
de classe do grupo hegemônico está submetida a classe possa emergir.
essa regra: a classe dominante tem sua coesão de A resistência, em Matrix, oscila entre a
grupo reforçada, na medida em que sua classe agência coletiva e a individual. Neo, o escolhido,
opositora amplia a sua força. carrega toda a responsabilidade pela salvação do
Para Fredric Jameson, “em uma vida social mundo humano, como Cypher observa: “Que
fragmentada – ou seja, essencialmente em todas responsabilidade! Você está aqui para salvar o
as sociedades de classes – o impulso político da mundo”. Neo encarna sozinho toda a possibili-
luta de todos os grupos entre si nunca pode ser dade de agência humana contra as máquinas – se-
imediatamente universal, mas deve sempre ser gundo a Oráculo, “Se você não pode encontrar a
necessariamente direcionado ao inimigo da clas- resposta, então eu temo que talvez não haja ne-
se”.10 Seguindo essa premissa, podemos dizer que nhum amanhã para nenhum de nós” e “essa noi-
em momentos históricos em que o Outro (o ini- te, o futuro dos dois mundos estará nas suas
migo da classe) está oculto ou não pode ser to- mãos, ou nas dele [Smith]”.
talmente identificado, a consciência de classe é Apesar de ser o escolhido e, portanto, o
reduzida. É o que acontece nos nossos dias, com único responsável pela sobrevivência da espécie,
o atual estágio de desenvolvimento do capital fi- Neo é, por diversas vezes, salvo por Trinity. No
nanceiro, em que o Poder central que comanda primeiro filme, ela o salva de ser morto por um
nossas vidas é uma força invisível e incognoscível. agente e ainda o ressuscita com sua declaração de
amor. No segundo, Trinity o resgata da estação
O desafio atualmente enfrentado pela
de trem, de onde ele nunca poderia escapar so-
consciência de classe em identificar um inimigo
zinho. O problema da “consciência de classe” fi-
comum é problematizado em Matrix. Inconsci-
gurada em Matrix é ela ser fortemente apoiada
entemente, ele está presente nos filmes, na ma-
nas necessidades e nos desejos individuais dos
neira como a resistência age e na figuração do
personagens.
“grande inimigo”. Um indício desse fato é a exis-
Uma trama de relações pessoais garante a
tência de dois inimigos distintos (Smith, inimigo
coesão do grupo. Neo resgata Morpheus mais
de Neo e das máquinas) e as próprias máquinas.
por amizade do que pela importância desse
Se o Outro figurado no filme fossem as
“companheiro” para o grupo. Trinity resgata o
máquinas, o que Smith seria? O duelo final entre
seu amado Neo, e não um membro importante
Neo e Smith coloca este último como o inimigo
da resistência. Niobe salva o seu Morpheus, e não
central. E as máquinas? São elas que escravizam
o grande líder do grupo. Zee luta mais pelo seu
os humanos; no entanto, vemos ao final uma ali-
Link do que pela salvação de Zion etc. Essa teia
ança entre Neo e as máquinas para combater um
funciona como elemento de coesão da resistên-
inimigo comum (Smith).
cia. A sobrevivência dos humanos é citada, algu-
9 Ibid., p. 85.
mas vezes, como objetivo último da união do
10 JAMESON, 1992, p. 300. grupo. Porém, o que predomina são as ligações

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sentimentais entre os seus integrantes. Isso é ex- CONCLUSÃO


plicitado na escolha de Neo ao chegar à Fonte: Este trabalho foi uma tentativa de ler poli-
entre salvar Zion e a humanidade ou salvar Trini- ticamente as “falhas” na figuração contida na tri-
ty, ele prefere ficar com Trinity. logia Matrix. Elas expõem os limites da imagina-
Pode-se propor uma objeção a essa leitura, ção histórica de uma sociedade e, como tais, ofe-
afirmando que essa trama de relações pessoais recem ao crítico a oportunidade de visualizá-los
serve apenas aos interesses comerciais do filme, mais claramente do que a simples observação da
assim como as inúmeras cenas de ação e de luta. realidade social permitiria. Das “falhas” analisa-
Realmente, o modelo dramático hollywoodiano das, temos:
por excelência privilegia o drama pessoal. Mas,
em Matrix, o drama pessoal ultrapassa as frontei- 1. a confusão entre escolha e finalidade (o
ras do privado, com claras repercussões na esfera paradoxo da escolha predeterminada):
do público. Isso é explicitado na já mencionada sintoma do sentimento de inevitabilida-
cena da escolha de Neo por Trinity, seu amor, e de presente na sociedade, essa mistura
não por Zion. de conceitos opostos expõe a morte da
Feita essa observação, chegamos à con- agência no mundo pós-moderno;
clusão de que as ligações sentimentais que pro- 2. figuração de um espaço-abstrato e falha
porcionam a coesão do grupo poderiam ser lidas
em figurar um olhar-decodificador des-
como um sintoma do enfraquecimento da cons-
se espaço: sinal do nível de abstração as-
ciência de classe. A falta de objetivos comuns
sumido pela nossa realidade nesse mo-
para mobilizar grande parte da sociedade em tor-
mento histórico de total controle do ca-
no de um projeto coletivo de ação e a dificuldade
pitalismo financeiro global;
histórica de identificar um Outro que viabilize o
fortalecimento da consciência de classe são as 3. incoerências na figuração do “inimigo”:
condições de possibilidade que dão sustentação a indício da ausência, em nosso mundo,
essa leitura. da figura de um “Outro” claramente
As relações pessoais que, em Matrix, man- definido;
têm o grupo unido e motivam suas ações tornam 4. teia de relações sentimentais que unem
visível a impossibilidade histórica de dar figurabi- a resistência e orientam a sua ação: sin-
lidade a um projeto verdadeiramente coletivo. Se toma do enfraquecimento da cons-
não existem razões claras para justificar o sacrifí- ciência de classe e da falta de projetos
cio por uma “causa”, cada um acaba se sacrifican- coletivos.
do pelas suas próprias razões (o amor, no caso de
Neo e Trinity e de Zee e Link, e a amizade, entre Uma leitura que privilegie a interpretação
Neo e Morpheus, por exemplo). O comandante política do texto é de essencial importância nos
Lock sabe ser “difícil para qualquer homem arris- tempos atuais. O crítico, assim procedendo, po-
car a sua vida, especialmente se ele não entende a derá contribuir para o debate de questões perti-
razão”(Matrix Reloaded). nentes à sociedade.

Referências Bibliográficas
DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
JAMESON, F. “O Pós-modernismo e o Mercado”. In: ZIZEK, S. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996.

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______. O Inconsciente Político. São Paulo: Ática, 1992.


ZIZEK, S. Bem-vindo ao Deserto do Real! São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

Dados do autor
Mestrando do curso de Estudos Lingüísticos
e Literários em Inglês da FFLCH da Universidade
de São Paulo (USP)

Recebimento: 17/jan./05
Aprovado: 21/jun./05

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Resenhas & Impressões


Reviews & Impressions
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Filosofia e Literatura:
tensão e interlocução
PHILOSOPHY AND LITERATURE:
TENSION AND DIALOGUE

Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios


de FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Col. Biblioteca de Filosofia/Marilena Chauí (dir.),
Floriano Jonas César (org.).
São Paulo: Editora Unesp • 2004 • 260p. • ISBN 85-7139-515-2

O
Ser e o Nada e A Náusea são duas das obras funda-
mentais publicadas por Jean Paul Sartre, em seu tra-
balho como escritor. Podemos designar o primeiro
livro como obra filosófica e o segundo como obra
literária. Tal designação implica a possibilidade de
marcar dois campos de saber (literatura e filosofia),
partindo daí uma série de argumentos para dispor as
relações entre eles. Na história da filosofia, encon-
tramos múltiplos exemplos de escritores que produziram obras filosófi- MÁRCIO APARECIDO
MARIGUELA
cas e, ao mesmo tempo, literárias. O filósofo dinamarquês Sören Kierke-
Universidade Metodista de
gaard – que, na primeira metade do século XIX, transitou com desenvol- Piracicaba (UNIMEP)
tura entre os dois campos – é apontado como o fundador do movimento mariguel@unimep.br
existencialista, marco histórico da aurora da filosofia francesa nos anos
1950-1960.
Pode-se afirmar que uma das marcas mais evidentes do existenci-
alismo foi justamente estabelecer uma sólida interlocução entre a escrita
filosófica e a literária. Sartre é certamente a estrela mor do movimento,
ao publicar extensa obra, analisada de diferentes perspectivas. Numa de-
las está o trabalho do prof. Franklin Leopoldo e Silva: estabelecer uma
“relação de complementação recíproca entre filosofia e literatura”, a fim
de analisar o “projeto sartriano de pensar a ordem humana: a compreen-
são da existência como condição e da contingência com seu horizonte-
limite” (p. 12).
É com o propósito de examinar o projeto sartriano que Leopoldo
e Silva define sua posição para identificar os elementos centrais da relação
entre filosofia e literatura (“obra ficcional”): “entendemos que o centro
de irradiação desse projeto determina a relação entre filosofia e literatura
como uma vizinhança comunicante, e é responsável pela diferença e pela
adequação recíproca dos dois modos da dualidade expressiva. Com isso,

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queremos dizer que a expressão filosófica e a ex- Daí deriva o tema central do projeto sar-
pressão literária são ambas necessárias em Sartre triano: liberdade e história, questão ética funda-
porque, por meio delas, o autor diz e não diz as mental. Se “a escrita é um exercício de liberdade
mesmas coisas” (p. 12). que somente se completa apelando para a liber-
A posição do autor é a de que Sartre diz a dade do outro, o leitor” (p. 20), então o ato lite-
mesma coisa de maneiras diferentes. Exemplo: “a rário é marcado pelo problema ético. Aqui o au-
compreensão das vivências individuais pela via da tor estabelece uma analogia que me parece deci-
ficção só atinge o plano da existência concreta siva para a leitura dos capítulos que compõem o
porque insere o drama existencial particular na livro resenhado: “é como se a exigência incondi-
estrutura universal do ser da consciência” (p. 13). cionada da obra constituísse, entre o autor e os
Não se trata de buscar uma “relação de identida- leitores, reais e possíveis, aquilo que Kant deno-
de absoluta” entre filosofia e literatura, e sim de mina uma comunidade dos fins. O caráter in-
estabelecer a “vizinhança comunicante”: entendi- condicionado da obra de arte, invocado por
da pelo autor como uma “passagem interna” en- Kant, é para Sartre o apelo à liberdade” (p. 20).
tre os dois campos: “haveria uma forma de passar Limito-me aos argumentos da “Introdu-
de um a outro que seria uma via interna, sem que, ção”, pois demonstram com precisão a monta-
nesse caso, a comunicação direta anulasse a dife- gem do livro – com dois capítulos (I e IX) publi-
rença” (p. 13). É assim que o autor constata que cados em 2000 e os demais inéditos – e indicam
tal passagem não está dada: é preciso construí-la ao leitor a construção da perspectiva de leitura do
para afirmar a concretude do universal (filosofia) projeto sartriano. Os comentários de A Náusea
e a universalidade do particular (literatura). (cap. III – “Existência e contingência”) são exem-
O autor renuncia, assim, a outra perspec- plares para compreender a chave de leitura pro-
tiva de leitura, que consiste no seguinte pressu- posta pelo autor, ao analisar a questão ética como
posto: a literatura de Sartre ilustra teses filosófi- ponto de passagem entre filosofia e literatura, e,
cas. “Se a literatura não serve apenas para ilustrar sobretudo, entender o que chamou de dualidade
teorias filosóficas e se, no entanto, há uma iden- de expressão para Sartre desenvolver a questão éti-
tidade profunda entre as duas instâncias de ex- ca. Por sua vez, o título da “Conclusão” aponta a
pressão” (p. 12), então é possível pensar o pro- tese central do livro: “Práxis: a literatura como
jeto sartriano a partir dessa “vizinhança comuni- compreensão ética da realidade humana”.
cante”. O ponto que permite a passagem interna Um aspecto problemático pareceu-me ser
de um campo a outro é perfurado pela questão o de situar a relação/distinção entre Sartre e Ca-
ética, pois considera que a ética configura a base mus (cap. IX), no que diz respeito a arte, subjeti-
intencional de tudo o que Sartre escreveu. Na li- vidade e história. O livro entra na polêmica e di-
teratura, Sartre fez experiências de “exemplifica- lacerante ligação Sartre-Camus pelo tema da his-
ções concretas da teoria, mas como algo que tória e comenta os impasses no solo dos mal-en-
aponta para o equilíbrio (instável?) entre o tra- tendidos. Exemplo: “O que Camus desejaria
tamento teórico e o exame da particularidade vi- (sic) que Sartre entendesse é que, se aceitamos a
vencial” (p. 17). Para esse argumento, o autor natureza apenas por via da mediação da história,
encontra justificativas no artigo de Sartre, Que é então é como se matássemos a natureza no ato
a Literatura?, no qual o pensador francês assu- mesmo de incorporá-la ao nosso pensamento”
miu o propósito de vivenciar – o que chamou de (p. 228).
“questões de nosso tempo” – problemas filosó- Os escritos do prof. Franklin Leopoldo e
ficos (como é possível fazer-se homem na histó- Silva tornam público o seu trabalho docente na
ria?) em experiências ficcionais – os romances. USP – onde é responsável pela disciplina história

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da filosofia contemporânea – e reafirma a neces- turas de Sartre. Que o centenário de seu nasci-
sária extensão entre o trabalho de pesquisa e de mento possa encontrar no livro resenhado um
ensino, possibilitando, assim, instaurar outras lei- brinde histórico.

Dados do autor
Psicanalista e professor de história da filosofia
contemporânea no curso de Filosofia da
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

Recebimento: 5/jun./05
Aprovada: 21/jun./05

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


EDITORIAL NORMS
PRINCÍPIOS GERAIS
1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas
nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do espaço de cada edi-
ção a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apresentando os artigos temáti-
cos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunicações”, para textos curtos e fora
dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e “Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas e
comentários em geral.
2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.
Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.
3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s)
autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Científico-Editorial e por processo anônimo de
avaliação por pares (blind peer review), com consultores não remunerados, especialmente
convidados, cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
• cumprimento das presentes Normas para Publicação.
5. Encaminhamento para SUBMISSÃO DE ARTIGO à Comissão Científico-Editorial da IMPULSO: (a)
três cópias impressas do artigo, acompanhadas de arquivo eletrônico gravado em disquete, devida-
mente padronizados conforme estas Normas, constando de uma delas os dados completos do(s)
autor(es) e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação); (b) fornecer também bre-
víssimo currículo do(s) autor(es); (c) e ofício do qual conste:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua(am),
endereço para correspondência, telefone fax e e-mail e uma cópia do texto gravada em dis-
quete.
• em caso de mais que um autor, indicar o o nome daquele que será responsável pelos contatos
com a Editora e que receberá os exemplares da revista e as separatas, conforme especificado
no item 9 desta Norma.
6. ETAPAS de trâmite dos artigos: (a) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela são
designados como pareceristas, estes dois últimos por processo blind peer review; (b) recebidos de
volta tais pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avalia-
ção final: “indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (c) em carta ao(s)
autor(es), são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceris-
tas; (d) se indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Edi-
tora: os trechos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será

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entregue em papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado
pelos pareceristas; (e) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus res-
pectivos arquivos eletrônicos em suas extensões originais; (f) antes da impressão, o(s) autor(es)
recebe(m) versão final do texto para análise.
7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gramati-
cais, adequações estilísticas e editoriais).
9. Não há remuneração pelos trabalhos. Por artigo, o(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da
revista e 10 (dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com
desconto de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a
preço de custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA
10. Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o
conteúdo do texto;
• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado
ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e má-
ximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar os
entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro co-
mentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano; total
de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem resenha-
dos, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição
na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpo
do texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),
após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME
do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-
cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.

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CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro
centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior
por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicando
o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3 Subseqüentes
citações da mesma obra devem ser referenciadas abreviadamente, utilizando-se expressões latinas.4
Se, repetido o autor, mas com outra obra, utiliza-se “idem”.5
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publi-
cação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no fim
do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por
“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número da
edição. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.:
ROMANO, G.“Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996.
EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ª ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas:
Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.
• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPANHÓIS. Ex.: MA-
CHADO DE ASSIS, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.; RODRÍGUEZ LARA, J.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, introduzir a nova
obra da seguinte forma:
______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:
Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.
• AUTOR CITADO EM SUA OBRA DE OUTRO AUTOR: APUD (citado por)
Ex.: SOUZA apud MARTINS, 1990, p. 215

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data.Ex.:
REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• NO TODO:
TÍTULO DO PERIÓDICO. Local de Publicação (cidade): Editora, volume, número, mês e ano
VEJA. São Paulo: Editora Abril, v. 31, n. 1, jan. 1998.
• ARTIGOS DE REVISTA:
AUTOR DO ARTIGO.6 “Título do artigo”. Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do
volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês** e ano.
ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”.Revista Brasileira de Saúde, São
Paulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.

3 FARIA, 1996, p. 102.


4 Ibid., p. 102.
5 Idem, 2000, p. 117.
6 Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.
** Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo
precede a data.

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• ARTIGOS DE JORNAL:
AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do
caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.
OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”.O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de
esporte, p. 7.

DISSERTAÇÕES E TESES
AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de
concentração). Instituição, local.
RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-
dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:
• sobrenome e nome do autor;
• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);
• data de acesso.
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso:
10/dez./1998.
Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso:
6/dez./1998.
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999. Verbete “Abolicionistas”. CD-rom.
Artigo de origem eletrônica
CRUZ, U.B. “The Cranberries: discography”. The Cranberries: images. Fev./1997. <http://www.ufpel.tche.br/~
bira/cranber/cranb_04.html>. Acesso: 12/jul./1997.
OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acesso:
6/dez./1998
Livro de origem impressa
LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/
tolerati.htm>.
Livro de origem eletrônica
GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~guay/
Paradigm/McLuhan.html>. Acesso: 10/dez./1998.
KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. <http://www.english.upenn.edu/~afilreis/50s/kristol-
endofi.html>. Acesso: 7/ago./1998.
Verbete
ZIEGER, H.E. “Aldehyde”. The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks.
Boston: Grolier, 1992.
“Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica. 29/mar./1997. http://www.
eb.com:180.

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E-mail
BARTSCH, R. <abnt@abnt.org.br> “Normas técnicas ABNT - Internet”. 13/nov./1998. Comunicação pessoal.
Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)
ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso: 2/set./1997.
Lista de discussão
SEABROOK, R.H.C. <seabrook@clark.net> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.
village.virginia.edu>. Acesso: 22/jan./1994.
FTP (File Transfer Protocol)
BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/
pub/asb/papers/deviance-chi-94>. Acesso: 4/dez./1994.
Telnet
GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet
lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso: 5/dez./1994.
Newsgroup (Usenet)
SLADE, R. <res@maths.bath.ac.uk> “UNIX Made Easy”. 26/mar./1996. <alt.books.reviews>. Acesso: 31/mar./1996.
11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comis-
são Científico-Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
12. Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.
13. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a
garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas.
(a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as
dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto;
não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRAFIAS: com
bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”; (c) GRÁFICOS e
DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de indicação para publicação, essas ilus-
trações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de seus programas origi-
nais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras, gráficos e mapas, caso
sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convenções
precisam aparecer em sua área interna.

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NOSSOS CONSULTORES
OUR CONSULTANTS
2005

ANDRÉA MORENO – UFV/MG JUAN CARLOS BERCHANSKY – UNIMEP/SP


ÁUREA MARIA GUIMARÃES – Unicamp/SP JÚLIO BURDZINSKI – Unijuí/RS
CARLOS ROBERTO JAMIL CURY – PUC/MG LEILA MIRTES SANTOS DE MAGALHÃES –
SESI/DF
CARMEN LÚCIA SOARES – Unicamp/SP
LÍDIA MARIA RODRIGO – Unicamp/SP
CELSO JOÃO FERRETI – FCC/SP
LUÍS ANTONIO GROPPO – Unisal/SP
CHRISTIANE LUCE GOMES – UFMG/MG
LUIZ DAMON SANTOS MOUTINHO – UFPR/PR
DANIEL JONES – UBA/Argentina
LUIZ GONZAGA GODOI TRIGO – USP/SP
EDUARDO MENDIETA – Suny at Stony
Brook, Estados Unidos MARCOS CÉZAR DE FREITAS – PUC/SP
ELIÉZER RIZZO DE OLIVEIRA – Unicamp/SP MARIA DE LOURDES DE ALBUQUERQUE
EUSTÁQUIA SALVADORA DE SOUSA – UFMG/MG FÁVERO – UCP/RJ

GABRIELE CORNELLI – UNIMEP/SP MATTHIAS LUTZ-BACHMANN – Universität


Frankfurt, Alemanha
GIOVANINA GOMES DE FREITAS OLIVIER –
Université Laval, Canadá MIRIAM PASCOAL – PUC/SP

HÉLDER FERREIRA ISAYAMA – UFMG/MG NELSON CARDOSO AMARAL – UFG/GO

HELOÍSA H. BALDY DOS REIS – Unicamp/SP RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES – Unicamp/SP

HENRIQUE CAHET – UFSC/SC ROSELI PACHECO SCHNETZLER – UNIMEP/SP

JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES – Embai- SÍLVIO RICARDO DA SILVA – UFV/MG


xada Brasileira, Bulgária
SURAYA CRISTINA DARIDO – Unesp/SP
JOÃO CARLOS NOGUEIRA – PUC/SP
VALQUÍRIA PADILHA – UFSCar/SP
JOÃO FERREIRA DE OLIVEIRA – UFG/GO
VICTOR ANDRADE DE MELO – UFRJ/RJ
JOSÉ DO NASCIMENTO – UCDB/MS
VIRGÍNIA CAMILOTTI – UNIMEP/SP
JOSÉ MARIA PAIVA – UNIMEP/SP
WALTER KOHAN – UERJ/RJ

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