Você está na página 1de 314

Revista da

ABRALIN
Associação Brasileira de Linguística
R454 Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística.
Vol. I, n. 1 (junho 2002) - . - São Carlos, SP: UFSCar, 2015.

Volume XIV, n.2 (jul./dez. 2015)


Semestral
ISSN 2178-7603

1. Linguística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral.


3. Palavra - Linguística. I. Universidade Federal de São Carlos.
II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título.

CDD: 415

Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548


Revista da

ABRALIN
Associação Brasileira de Linguística
ISSN 2178-7603

Revista da ABRALIN Volume XIV Número 2 Jul./Dez. de 2015


Revista da
ABRALIN
Associação Brasileira de Linguística
Conselho Editoral
Ana Luiza Artiaga Motta (UNEMAT) Márcia Cançado (UFMG)
Ana Maria Zilles (UNISINOS) Marco Antonio Martins (UFSC)
Aracy Graça Ernst Pereira (UFPEL) Marcus Antonio Rezende Maia (UFRJ)
Beth Brait (USP/PUC-SP) Marília Ferreira (UFPA)
Bethânia Mariani (UFF) Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP)
Bruna Franchetto (UFRJ) Maria Carlota do Amaral Paixão Rosa (UFRJ)
Charlotte Marie C. Galves (UNICAMP) Maria da Graça Krieger (UNISINOS)
Denize Elena Garcia (UNB) Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ)
Dermerval da Hora (UFPB) Maria Helena Moura Neves (UNESP/Makenzie)
Diana Luz Pessoa de Barros (USP/Makenzie) Maria Inês Pagliarini Cox (UFMT)
Dominique Maingueneau (Université Paris IV) Maria José Foltran (UFPR)
Eduardo Roberto J. Guimarães (UNICAMP) Maria Luiza Braga (UFRJ)
Elias Alves de Andrade (UFMT) Maria Marta Pereira Scherre (UNB)
Eni de Lourdes P. Orlandi (UNICAMP/UNIVAS) Pablo Arantes (UFSCar)
Esmeralda Vailati Negrão (USP) Pedro Navarro (UEM)
Fátima Cristina da Costa Pessoa (UFPA) Renato Basso (UFSCar)
Fernanda Mussalim (UFU) Roberto Leiser Baronas (UFSCar);
Gessiane Lobato Picanço (UFPA) Rodolfo Ilari (UNICAMP)
Ida Lucia Machado (UFMG) Rosane de Andrade Berlinck (UNESP/CAr)
Ieda Maria Alves (USP) Ruth Elisabeth V. Lopes (UFPR)
Johannes Anguermüller (EHESS- Paris) Sheila Grillo (USP)
Kátia Menezes de Sousa (UFG) Sirio Possenti (UNICAMP)
Leda Bisol (PUC-RS) Sonia Cyrino (UNICAMP)
Letícia Maria Sicuro Corrêa (PUC-RIO) Sophie Moirand (Université Paris III)
Loredana Limoli (UEL) Suzy Lagazzi (UNICAMP)
Luiz Carlos Cagliari (UNESP-CAr) Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)
Luiz Carlos Travaglia (UFU) Thaís Cristófaro Silva (UFMG)
Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP) Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Marcelo Módulo (USP) Vanice Sargentini (UFSCar)
Maralice de Souza Neves (UFMG) Wander Emediato (UFMG)

Revisão e Normalização de Textos Capa e Projeto Gráfico - Lúcio Baggio


Roberto Leiser Baronas Formatação - Patricia Mabel Kelly Ramos
Comitê Editoral
Editor Chefe Editor Adjunto Editor Adjunto e
Roberto Leiser Baronas Teresa Cristina Wachowicz Representante junto ao SER-UFPR
UFSCar UFPR Luiz Arthur Pagani - UFPR

Universidade Federal de São Carlos – UFSCar


Campus São Carlos
Rodovia Washington Luís, km 235 - SP 310
São Carlos–SP–Brasil / CEP: 13.565-905
Telefone: +55 (16) 3351 8358 (Departamento de Letras)
Fax: +55 (16) 3351-2081 - Email: baronas@ufscar.br
Nota do editor
É com muita alegria que socializamos ao público leitor interessado
em questões científicas de linguagem a Segunda Edição de 2015 da
Revista da Associação Brasileira de Linguística, volume XIV, número
02. Trata-se de uma edição organizada pelos Professores Roberto
Leiser Baronas e Mônica Baltazar Diniz Signori, ambos da UFSCar e se
debruça sobre os estudos discursivos: um dos campos mais profícuos das
humanidades latino-americanas. A edição em questão segue fielmente a
política editorial da revista que é dar visibilidade e circulação irrestrita
à pesquisa linguística competentemente engendrada no Brasil, pelos
linguistas brasileiros, nas mais diversas escolas e domínios dos estudos
linguísticos.
Embora a primeira edição da Revista da Abralin tenha sido publicada
em 2002, nenhuma de suas edições foi dedicada integralmente aos estudos
discursivos. Este número se refere a alguns dos textos das conferências
e mesas redondas realizadas por ocasião do V Colóquio da Associação
Latino-Americana de Estudos do Discurso – ALED, realizado no
Brasil em maio/junho de 2014: http://www.aledbrasil.ufscar.br/.
Dos 19 trabalhos apresentados em mesas redondas e conferências,
publicamos neste número 16 textos. Fica o nosso agradecimento muito
especial aos pareceristas, que em meio a tantas atividades acadêmicas,
encontraram tempo para emissão de seus pareceres: avaliação essencial
para a qualificação cada vez mais sofisticada da revista. Deixamos um
agradecimento especial aos alunos da UFSCar Daniel Perico Graciano;
Lívia Beatriz Damaceno e Júlia Lourenço Costa da USP pela sua ajuda
na (e)laboração dos resumos e dos abstracts.
Esta edição é carinhosamente dedicada a uma grande discursivista
brasileira, falecida em 14 de julho último, um pouquinho antes de
completar 56 anos de idade: a Profa. Dra. Carme Regina Schons. Carme
era professora na Universidade de Passo Fundo - UPF - em Passo Fundo
– RS e atuava no Curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em

5
Letras da UFP. Entre tantas coisas belíssimas que nos deixou, ela nos
mostrou com mestria singular que “aí está a delícia de transitar pelos
saberes da AD: a cada novo “fim” vislumbramos “novos” inícios ou
reinícios”.

Roberto Leiser Baronas


Editor da Revista da Abralin
São Carlos, UFSCar, julho de 2015.
Apresentação

A Análise de Discurso de orientação francesa - um “front científico


original” (Guespin, 1976) - se notabilizou ao longo de suas mais de quatro
décadas de existência, no interior das humanidades, como um poderoso
dispositivo de leitura de diferentes praticas discursivas, fundado sobre
uma teoria do discurso1, marcada em sua gênese pela linguística, pelo
marxismo e pela psicanálise. Na sua fase de constituição, final dos anos
sessenta do século passado2, sobretudo na geografia francesa em que
o “campo do signo” dava seus últimos suspiros e o “canto do cisne”
começava a ecoar, privilegiou o discurso político e o sindical. Depois,
no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, em distintos lados
do Atlântico, se configurando dessa maneira numa “aventura teórica
apátrida” (Paveau, 2010) e (re)afirmando o postulado que todo o
dizer tem história(s) em confronto de classes, de lugares sociais, de
estilos, passou a tomar como objeto de leitura distintas materialidades
discursivas3. Atualmente, por conta mesmo de uma mudança no regime
das materialidades e das plataformas dos discursos4, a AD passou a
1
Uma das características mais marcantes do dispositivo teórico metodológico da Análise do
Discurso é que esse dispositivo está o tempo todo revendo os seus pressupostos teóricos
também os seus procedimentos de análise.
2
A Análise do Discurso irrompe na geografia francesa em 1969 com a publicação do livro
Analyse Automatique du Discours - AAD69. Esse livro, segundo Niels Helsloot et Tony Hak (2001,
p. 15), “s’appuie sur une critique des formes traditionnelles d’analyse de contenu et d’analyse de texte. Ces
analyses présupposent un sujet (l’analyste ou les « codeurs ») apte à « lire » le sens d’un texte. Pêcheux veut
justement éviter de s’en remettre au sujet lecteur puisqu’il en résulte inévitablement une lecture idéologique. On
doit cependant reconnaître que les analystes de contenu se préoccupaient eux aussi du rôle de l’intuition dans
l’analyse”.
3
No entendimento de Pêcheux (1983, p. 54), “il ne s’agit pas d’une lecture plurielle […] où un sujet
jouerait à multiplier des points de vues pour mieux s’y reconnaître. C’est une lecture où un corpus stratifié et
hétérogène est articulé en profondeur et où, en fonction de cette lecture, sa structure même se modifie. Il s’agit d’une
sorte de lecture ou le sujet qui lit sera responsable du sens qui se déchiffre et il en sera en même temps dépossédé.
L’interprétation suit alors les traces de l’interdiscours qui, en tant que telles, sont préconstruites et parcourues”.
4
No entendimento de Jean-Jacques Courtine (1999, p. 12), “não se faz a mesma Análise do
Discurso político [religioso?; pedagógico?; sindical?], quando a comunicação política consiste
em comícios reunindo uma multidão em torno de um orador e quando toma a forma de talk-
shows televisivos aos quais cada um assiste em casa. Também não se faz a mesma Análise do

7
privilegiar também a leitura das mais distintas práticas discursivas, isto
é, ampliou seu campo de atuação para múltiplos terrenos de trabalho.
Neste número da Revista da Abralin, o XIV 02 de 2015, apresentamos
um pequeno recorte do que vem se pesquisando atualmente em termos
de estudos discursivos não somente no contexto brasileiro, mas também
no francófono e no espanhol americano. Os textos aqui reunidos
foram inicialmente expostos oralmente por renomados pesquisadores
brasileiros, franceses e hispano-americanos por ocasião do V Colóquio
de Estudos do Discurso da Associação Latino-Americana de Estudos do
Discurso ALED-Brasil, realizado na Universidade Federal de São Carlos
– UFSCar, no período de 29 a 31 de maio de 2014. A temática do evento
foi justamente descrever as múltiplas possibilidades de novos canteiros
de trabalho engendradas com base nas mais diferentes ferramentas dos
estudos do discurso.
O presente número está dividido em cinco partes, que representam
metonimicamente alguns dos novos canteiros de trabalho com o discurso:
“Discurso e Análise do Discurso”; “Discurso e intervenção social”;
“Discurso e novas materialidades”; “Discurso e web” e “Discurso e
novos diálogos téorico-metodológicos”.
Inaugura a primeira parte o artigo “Las metáforas epistemológicas de
los sentidos en Bajtín: ver, oir, hablar (discurso, cuerpo, transcendencia)”
de autoria de Tatiana Bubnova da Universidade Autônoma do México. Na
sequência, Dominique Maingueneau da Université Sorbonne Nouvelle –
Paris 3 – Paris – França apresenta o artigo “O que pesquisam os analistas
do discurso”. Finaliza essa primeira parte, o artigo de Sírio Possenti da
UNICAMP “O que os analistas do discurso pesquisam”.
Inicia a segunda parte o artigo de Diana Luz Pessoa de Barros da
USP e da Universidade Presbiteriana Makenzie “Dominação, trapaça

Discurso independentemente dos preconceitos, das compartimentalizações sociais e ideológicas,


das polêmicas antigas ou recentes; tudo isso exerce suas restrições sobre o discurso das ciências
humanas, na escolha de seus temas, na definição dos objetivos, na produção de recortes formais
[e na (re)criação de categorias conceituais]”.

8
e conhecimento pela linguagem”. Encerra essa segunda parte o artigo
“Discursos de inovação e as urgências da sociedade: reflexões acerca
do dispositivo de segurança em Michel Foucault” de Kátia Menezes de
Sousa da UFG.
A terceira parte é iniciada por Ida Lúcia Machado da UFMG com o
artigo “A narrativa de vida como materialidade discursiva”. Na sequência,
Fernanda Mussalim da UFU apresenta o artigo “Uma análise discursiva
do Choros 10 de Villa-Lobos”. Depois, Anna Flora Brunelli da UNESP-
Ibilce apresenta o texto “Cenas validadas e estereótipos no discurso
da auto-ajuda”. Finaliza essa terceira parte o trabalho “A ilustração: da
representação como interpretação do simbólico” de Roselene de Fátima
Coito da UEM.
“Discurso e web: as múltiplas faces do facebook” de Wander Emediato
da UFMG inaugura a quarta parte. Na sequência, Pedro Navarro da
UEM apresenta o texto “Dispositivo e governo da velhice no discurso
da web”. Vanice de Oliveira Sargentini da UFSCar apresenta o texto
“Discurso político e redes sociais”, finalizando essa quarta parte.
A quinta parte é inaugurada pelo texto “Discurso e lexicometria” de
Dirceu Cléber Conde da UFSCar. Na sequência, Glaucia Muniz Proença
Lara da UFMG apresenta o texto “Aforização e acontecimento: por um
diálogo entre Análise do discurso e Semiótica tensiva”. “Metodología
de la investigación en Lingüística: reflexiones y propuesta” de Maria
Laura Pardo da Universidade de Buenos Aires – UBA - dá sequência a
essa parte. Finaliza o número o artigo “O Rizoma na base d’O trenzinho
caipira” de Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori,
ambos da UFSCar.

Roberto Leiser Baronas e Mônica Baltazar Diniz Signori


Organizadores

9
SUMÁRIO

ARTIGOS

1. DISCURSO E ANÁLISE DO DISCURSO

LAS METÁFORAS EPISTEMOLÓGICAS DE LOS SENTIDOS EN BAJTÍN:


VER, OIR, HABLAR (DISCURSO, CUERPO, TENSCENDENCIA) .....................15
Tatiana Bubnova - Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM-México)

O QUE PESQUISAM OS ANALISTAS DO DISCURSO ...............................................31


Dominique Maingueneau - Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 – Paris – França

O QUE OS ANALISTAS DO DISCURSO PESQUISAM.......................................... 41


Sírio Possenti - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

2. DISCURSO E INTERVENÇÃO SOCIAL

DOMINAÇÃO, TRAPAÇA E CONHECIMENTO PELA LINGUAGEM ........... 53


Diana Luz Pessoa de Barros - Universidade de São Paulo (USP) - Universidade Presbiteriana
Mackenzie

DISCURSOS DE INOVAÇÃO E AS URGÊNCIAS DA SOCIEDADE:


REFLEXÕES ACERCA DO DISPOSITIVO DE SEGURANÇA EM MICHEL
FOUCAULT ................................................................................................................... .......73
Kátia Menezes de Sousa - Universidade de Goiás (UFG)

3. DISCURSO E NOVAS MATERIALIDADES

A NARRATIVA DE VIDA COMO MATERIALIDADE DISCURSIVA ...............95


Ida Lucia Machado - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO CHOROS 10 DE VILLA-LOBOS ...............109


Fernanda Mussalim - Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
CENAS VALIDADAS E ESTEREÓTIPOS NO DISCURSO DA
AUTO-AJUDA....................................................................................................................123
Anna Flora Brunelli - Universidade Estadual Paulista (UNESP-Ibilce)

A ILUSTRAÇÃO: DA REPRESENTAÇÃO COMO INTERPRETAÇÃO


DO SIMBÓLICO ..............................................................................................................149
Roselene de Fátima Coito - Universidade Estadual de Maringá (UEM)

4. DISCURSO E WEB

DISCURSO E WEB: AS MÚLTIPLAS FACES DO FACEBOOK .........................171


Wander Emediato - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

DISPOSITIVO E GOVERNO DA VELHICE NO DISCURSO DA WEB .........193


PEDRO NAVARRO - Universidade Estadual de Maringá (UEM)

DISCURSO POLÍTICO E REDES SOCIAIS .............................................................215


Vanice de Oliveira Sargentini - Universidade Fereral de São Carlos (UFSCar)

5. DISCURSO E NOVOS DIÁLOGOS TÉORICO-METODOLÓGICOS

DISCURSO E LEXICOMETRIA ..................................................................................235


Dirceu Cléber Conde - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

AFORIZAÇÃO E ACONTECIMENTO: POR UM DIÁLOGO ENTRE


ANÁLISE DO DISCURSO E SEMIÓTICA TENSIVA ...........................................255
Glaucia Muniz Proença Lara - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

METODOLOGÍA DE LA INVESTIGACIÓN EN LINGÜÍSTICA:


REFLEXIONES Y PROPUESTA .................................................................................271
Maria Laura Pardo - Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina)

O RIZOMA NA BASE D’O TRENZINHO CAIPIRA.............................................289


Daniel Perico Graciano - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Mônica Baltazar Diniz Signori (Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
ARTIGOS

1. DISCURSO E ANÁLISE DO DISCURSO


THE EPISTEMOLOGICAL METAPHORS OF THE
SENSE IN BAKHTIN: SEE, HEAR, SPEAK (SPEECH,
BODY, TRANSCENDENCE)

LAS METÁFORAS EPISTEMOLÓGICAS DE LOS


SENTIDOS EN BAJTÍN: VER, OÍR, HABLAR
(DISCURSO, CUERPO, TRASCENDENCIA)

Tatiana BUBNOVA
Universidade Autónoma do México - (UNAM)

RESUMO
Aborda este artigo as singularidades da concepção bakhtiniana da linguagem, que
permite considerar como condições próprias da comunicação aspectos como simultaneidade,
responsabilidade e totalidade. Com base nesses princípios, examinam-se os sentidos corporais
como instrumentos de conhecimento, comunicação, compreensão e reflexão. Sob esse ponto
de vista, observa-se como esses sentidos ocupam um lugar diferenciado na semiologia e,
projetando-se para além das dimensões linguísticas, na filosofia.

ABSTRACT
This article approaches the singularities of Bakhtin’s conception of language, which allows
to consider aspects such as concurrency, responsibility and totality, as very conditions of
communication. Based on such principles, bodily senses are examinated as instruments of
knowledge, communication, comprehension and reflection. From this perspective, we can also
understand how these senses occupy a different semiological place, projecting themselves beyond
linguistics dimensions, in philosophy.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; filosofia da linguagem; estudos bakhtinianos.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 15-30, jul./dez. 2015


Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

KEYWORDS
Discourse; philosophy of language; bakhtin studies.

Hay una intensa interacción entre el yo y el otro en todo


aquello con lo que nos expresamos hacia el exterior (y
por consiguiente para el otro); del cuerpo a la palabra
manifestamos lucha (honesta o llena de mutuo engaño),
equilibrio, armonía (como un ideal), un ingenuo desaire
recíproco, un deliberado desprecio del uno por el otro,
desafío, desconocimiento intencional (el “hombre del
subsuelo”, que “no hace caso”), etcétera. Reiteramos que
esta lucha está presente en todo con lo que el ser humano
se expresa (se revela) a sí mismo hacia fuera, para los
otros: del cuerpo a la palabra, incluyendo la palabra
última, confesional. (Bajtín)

Introducción
Bajtín (y/o su círculo) se consideran precursores de la pragmática
y de la sociolingüística, dos disciplinas subsidiarias de la lingüística y
la semiótica, ciencias a su vez experimentales y prácticas. Pero quisiera
recordar que Bajtín propuso, no una lingüística, sino una metalingüística1
(o translingüística, modificación terminológica introducida por Todorov)2.
Esta disciplina estudiaría las relaciones dialógicas (intersubjetivas y
sociales) generadoras del sentido en el discurso a nivel pragmático, en
la lectura del texto cultural, en la comunicación. Pero no se trataba solo
1
A juzgar por los comentarios incluidos a las Obras reunidas en siete tomos, el término Bajtín
lo tomó de Benjamin Whorf (1996, 641-642).
2
Si la lingüística tradicional estudia la lengua indiferentemente respecto de los sujetos sociales
o individuales que la hablan, la metalingüística bajtiniana estudiaría las relaciones concretas
entre hablantes generadas en una situación dialógica, las que repercuten en la comprensión y la
producción del sentido.

16
Tatiana Bubnova

de eso: al incluir los aspectos emocionales y volitivos que trascienden


lo meramente textual, excluidos por cierto del análisis lingüístico motu
proprio, al equiparar el enunciado verbal con el acto mediante la idea de la
responsabilidad/responsividad, señalaría el (incómodo) nivel ontológico
de la comunicación. “Ser es comunicarse”, lo repite insistentemente. “El
objeto de las ciencias humanas es el Ser expresivo y hablante” (Bajtín
1996, 8). Las relaciones mencionadas personalizadas son de orden
ético y derivan del acto, en el sentido específico que el pensador ruso
le confiere. Pero la ética puede ser concebida no como la fuente de
los valores, sino como el modo de relacionarse con los valores (Bajtín
1986,158, comentario). El propósito de esta reflexión es el de señalar
las singularidades de esta concepción del lenguaje, que considera los
aspectos como simultaneidad,3 responsabilidad (concreta y ontológica a
la vez) y totalidad4, como condiciones propias de la comunicación entre
la gente. El ser humano pensado como ente corporal y fisiológico por
una parte, y como social, comunicativo, reflexivo y aun teórico, dotado
de voluntad y sentimiento, representa adecuadamente esta simultaneidad
de los aspectos estudiados tradicionalmente por separado. Los sentidos
corporales como instrumentos de conocimiento, comunicación,
entendimiento y reflexión cobran de este modo un lugar especial en
esta peculiar semiología. Más aun, hacen que el concepto mismo del
cuerpo se proyecte hacia una dimensión en la que no suele interesarse la
lingüística, sino en todo caso la filosofía.5

3
De la dimensión pragmática y ontológica del acto.
4
Como co-presencia de los aspectos pragmático-cognitivo, ético y estético en el acto.
5
Los estudiosos rusos (p. e. M. L. Gasparov) señalaron la brecha que se forma entre la
cientificidad del enfoque lingüístico-filológico y la cualidad especulativa del enfoque filosófico
bajtiniano (“la rebelión de un lector que se afirma a sí mismo a costa de las autoridades que le
han sido impuestas”, Gaspárov 35). Ordinariamente, los investigadores se limitan a seguir solo
una de las líneas señaladas (la “cientifizante” o la “metafísica”), como si la otra no existiese.
Aquí insisto en señalar que Bajtín suele unir en una “totalidad” de lo humano lo cotidiano y
lo filosófico, al concebir la vida como la generación permanente del acto ético. ¿Contradice
irremediablemente la materialidad y la socialidad del signo a la “responsabilidad ontológica”? Es
lo que prefiero poner a consideración de los teóricos del discurso.

17
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

Uno
El ser humano se manifiesta en el mundo (inter)actuando, realizando
actos “éticos”, y este hecho determina su “humanidad” (cf. Clark y
Holquist 1984). Esto quiere decir que, ante todo, nuestra existencia
concreta es única e irrepetible; luego, ocupamos en el mundo concreto
y singular un lugar asimismo único y singular, de modo que solo a
nosotros nos corresponde actuar desde este único lugar, y nadie más
puede realizar este acto por nosotros: poseemos una óptica única,
en el sentido directo y metafórico a la vez, gracias a nuestra posición
específica espacio-temporal.6 Además, mi pertenencia y participación7
en este mundo, a través de la interacción con otros sujetos, garantiza,
si no es que me impone, mi “no coartada en el ser”, mi compromiso
–aceptado conscientemente o rechazado, pero inevitable— con lo que
sucede en el mundo.
Esta situación convierte todo lo que yo hago en presencia y con la
sanción del otro –su inexorable presencia en mi vida es otra condición de
posibilidad de la mía— en un acto ético, postupok, un proceder consciente
(no instintivo sino intencional). Mi sentimiento, mi pensamiento, mi
estado de ánimo, mi deseo, mi visión, mi palabra que se oye o se lee,
son también actos éticos condicionados por la presencia de la alteridad.
Todos los valores que tienen importancia para mí proceden de esta
relación con el otro, arraigada en un mundo espacio-temporal (histórico,
social) concreto. Tiempo y espacio determinados, proyecciones
6
Que no menoscaba, de modo alguno, nuestra determinación biológica y social, nuestra
pertenencia a género, grupo, sociedad, etc.
7
La participación, el pensamiento participativo es, en Bajtín, ante todo el carácter holístico
de la visión del mundo, que no excluya de su racionalización y especulación ningún aspecto
ni territorio en el cual se desarrolla la existencia humana. En concreto, significa una unidad
primaria de los aspectos ético, estético y pragmático-cognitivo en la unidad del sujeto y su acto.
Desde luego este modo de pensar tiene su origen en las tres Críticas de Kant, y constituye a
su vez una nueva “crítica”. Por ejemplo, el marxismo, para Bajtín, ha sido un intento, aunque,
para el filósofo ruso, fallido, de una filosofía participativa (materialismo dialéctico, materialismo
histórico, economía política).

18
Tatiana Bubnova

emocionales y volitivas convergen en este punto único de la existencia,


para darle un sentido concreto a mi posición y actuación participativa en
el acontecimiento del ser: encuentro único e irrepetible con el mundo
en su radical alteridad. Así mi vivencia única y singular del mundo se
convierte en una vivencia real y responsable.8

La unidad del espacio no puede hallarse más que en el engranaje, del


uno con el otro, de los dominios sensoriales (Merleau-Ponty 237).

En este contexto del acto interactivo, una vez más, la ética no es


fuente de los valores sino el modo de relacionarse con los valores.
Todo esto constituye una arquitectónica concreta del acto ético, que se
estructura mediante las relaciones: yo-para-mí, yo-para-otro, otro-para-
mí. En este pequeño sistema de actitudes, y a partir de él, se generan
los valores que surgen dentro de la relación con el otro (tan concreto
como yo) y que compartimos --¿responsablemente?— con los otros.
La responsabilidad inherente al acto posee una dimensión ontológica,
trascendente, hace que el acto participe con lo “eterno” (cf. Merleau-
Panty). Bajtín lo expresa en términos de la “no coartada en el ser”. Se
diría que “ser en el mundo” compromete.
El sentido de la vista de este modo, viene a ser partícipe, con los demás
sentidos, de la comunicación (verbal o, mejor, discursiva), cuyos actos
se convierten, así, en actos éticos. Veo, por lo tanto trato de comprender
y juzgo. El compromiso con la “realidad” hace que nuestros actos
sean acontecimientos (eventos) del ser, encuentros ontológicos del autor

8
El ser humano es el punto de partida y el centro en que convergen los valores de la visión
estética. “Toda la tópica valorativa [axiológica] y toda la arquitectónica de la visión habrían sido
otros si en el centro axiológico no se situara el hombre. Si yo contemplo el cuadro de la muerte
y de un repudio totalmente justificado de un ser humano, el único amado por mí, este cuadro
será muy distinto de cuando el hombre que muere me resultara a mí valorativamente indiferente”
(1986, 128). [Todas las traducciones del ruso están realizadas por mí especialmente para este
texto (TB)].

19
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

creador del acto con el héroe-realidad.9 Somos autores responsables y


responsivos de nuestros actos.
Paul de Man adivina también la dimensión ontológica del pensamiento
bajtiniano: como en Lévinas, Dios cada vez se dice “sociedad”; como en
Heidegger, está presente en el descubrimiento de la alteridad ontológica
del lenguaje; o se define como una ideología laica si bien mesiánica,
como para compararlo, quizás falsamente, con Walter Benjamin.
(Las metáforas epistemológicas bajtinianas están tomadas del
instrumental de la teoría literaria o estética, pero son herramientas para
pensar al ser humano en su singularidad, frente a los demás seres.)

Dos
Se trata de “metáforas epistemológicas” (Iris Zavala, siguiendo al
parecer a Umberto Eco, aplica esta característica a los textos de Bajtín)
relacionadas con el cuerpo y la percepción: escuchar y oír, mirar y ver,
mirada y visión. Escuchar y mirar se refieren al proceso de interacción;
oír y ver señalan a la primera etapa de la comprensión. Marcan también
actitudes éticas, por ejemplo las relacionadas con el testimonio y la
veridicción: “solamente diré lo que oí y vi”.
Paul de Man se acerca al problema de la verdad desde una posición
materialista: hecho y ficción se aproximan como resultado de la división
social del trabajo. La posibilidad de tal mediación aparece insertada
en la misma producción textual. Puesto que el texto no sobreentiende
realmente aquello que dice, es ficción, pero es ficción de tal índole que
se convierte en un hecho en manos de una comunidad capaz de leerlo
(Paul de Man, “Dialogue and Dialogism”).

9
“Héroe”: “realidad” recibida y aceptada por el arte (verbal); forma en que la realidad existe en
una obra de arte. Dado que existe una “tensión emocional y volitiva de la forma” (PLE 14), con
su carácter activo, el autor se encuentra en permanente diálogo con la realidad, mediante una
elaboración de una forma estética. La arquitectónica del acto estético se construye a partir las
diversas posibilidades de esta relación. Cf. Bonetzkaya 1996, 157. de

20
Tatiana Bubnova

La idea de una radical alteridad o exotopía, en la interpretación


de De Man permite que se sobrepongan las imágenes de visualidad y
audibilidad: la sobreposición de la radical exterioridad de la mirada sobre
la radical heterogeneidad de la voz.
No obstante, en nuestro oficio las más veces estamos frente a un
texto: tejido de letras en papel, combinación de signos de un paisaje
cultural, etc. Bajtín propone ver y visualizar la idea.

Idea en forma de una imagen, idea que puede ser vista (Bajtín 1996,
365).

Las voces implican posiciones ideológicas, con sus modulaciones


y entonaciones; ‘posición’, ‘postura’ son vocablos que implican la
espacialidad. No soy la primera que observó la posibilidad de oír la
imagen y ver la voz, lo intercambiable de estas metáforas. Por ejemplo,
las ideologías como refracciones de voces sociales y como visiones
del mundo reclaman para su mejor comprensión las dos metáforas.
Las dos convergen en la palabra: como en el contexto bajtiniano no
se marca una radical diferencia entre la oralidad de la comunicación y
su forma perdurable, la escritura, resultan intercambiables los valores
generados por medios distintos pero unidos gracias a la necesidad de
la comunicación: la imagen de la voz y el sonido de la letra. Las ideas
acerca del valor social y personalizado de la entonación en el acto de la
comunicación se basan en este sobreentendido.
Ambos, imagen social de la voz ideológica y el estilo entonacional
personalizado de la letra, como tengo la intención de recordarlo,
convergen en una visión holística10 de la realidad del ser humano: mundo
como territorio donde actúan sujetos interrelacionados en complejas
configuraciones intersubjetivas y/o sociales, en una vida concebida como
generación permanente del acto ético. La responsabilidad está arraigada en el
acto y solo así válida, y así conduce a la imposibilidad de una coartada
10
Cf. En Merleau-Ponty: “plenitud del ser”, “experiencia integral”, “todos los sentidos son
espaciales” (M-P 233).

21
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

ontológica: no hay álibi en el ser.11


Los seres humanos contamos solo con un cuerpo capaz de entrar
en interacción con el otro, y con la palabra que este cuerpo es capaz de
articular: lo que pasa en la vida interior solo puede manifestarse en la
palabra (es mediante la palabra como se lleva a cabo la introspección), pero
la palabra es una creación colectiva de estas interioridades insondables
(conceptualmente, desde luego), dotadas de cuerpo, que somos los seres
humanos. Se trata de la mediación entre el mundo exterior y los procesos
internos, fijada en la palabra. El diálogo, como advierte Bajtín, involucra
“del cuerpo a la palabra”; el diálogo, quiero adelantar, es la existencia
misma del “espíritu”.
Los sentidos están atravesados por la palabra, aunque se refieran a
procesos fisiológicos. Nuestro cuerpo que es visto y apreciado por el
otro en el espacio exterior a nosotros; nuestra “alma”, aprehendida y
reconocida en la dimensión temporal por el otro; nuestro espíritu, que
expresa nuestra relación con la radical alteridad del mundo en un diálogo
capaz de aprehender lo infinito ante la indudable finitud del cuerpo: el
diálogo existencial, proceso en que estamos comprometidos mientras
vivamos, y que no tiene un fin visualizable para nosotros. La palabra (la
comunicación discursiva) es una semiosis dialógica que se proyecta hacia
la eternidad (del “gran tiempo”). Misma que solo en la palabra ha sido
expresada o, si se prefiere, aludida, señalada, hecha posibilidad.12
Yo también soy: esta afirmación de la subjetividad de un yo que reconoce
la primogenitura del otro implica múltiples facetas del pensamiento
acerca de la significación de ser humano y sus mismas condiciones de
posibilidad, en el mero centro de las cuales se encuentra la mencionada
11
En castellano, los verbos ser y estar permiten una nítida diferenciación entre la dimensión
pragmática del acto de estar en el mundo espacio-temporal, histórico y concreto, y el hecho de
ser transhistórico del gran tiempo, ontológico de la metafísica, transcendental que remite a las
posibilidades de la cognición en el sentido kantiano, etc.
12
“[L]a palabra es precisamente el acto por el que se eterniza la verdad. Es, en efecto, manifiesto
que la palabra no puede considerarse como un simple vestido del pensamiento, ni la expresión
como la traducción en un sistema arbitrario de signos de una significación ya clara de por sí”
(Merleau-Ponty 397).

22
Tatiana Bubnova

relación entre el otro y el yo, y el otro para mí se encuentra en un


lugar privilegiado, puesto que yo llegué a un mundo donde él ya estaba
esperándome. Él (ella) fue quien me recibió por primera vez y me pudo
ver a mí en mi totalidad material, me dirigió la palabra y me dijo por
primera vez cómo soy. Vio mi aparición primera, mi nacimiento, mi
principio, que me es a mí en cuanto tal, absolutamente inaccesible. La
mirada del otro y su palabra me envuelven a mí como a una totalidad, me
establecen las fronteras de mi cuerpo, asignan un valor a mi presencia
tanto física como moral y social.

Como el cuerpo inicialmente se va formando dentro del


(seno) cuerpo materno, así la conciencia del ser humano
se despierta envuelta en la conciencia ajena. (Bajtín 1979,
342).

En la relación que yo mantengo con el otro, este otro tiene desde


siempre una determinada ventaja sobre mí, que se debe a esta posibilidad
de ver en mí aquello que es inaccesible a mi propia mirada: un “excedente
de visión”, que permite activar la visión estética de mi yo como un todo.
Es difícil que yo me la pueda asignar sin la participación de la instancia
de la alteridad. Y yo veo al otro y tengo también ventaja sobre su yo, de
manera simétrica: veo el total del exterior, accesible al sentido de la vista,
física y moral (moral, pero una vez más desde el exterior, el cual connota
lo social: fundo, repito o expreso una valoración social).

Problema de la comprensión. La comprensión como


visualización del sentido, pero no fenomenológica, sino
en cuanto una visión del actual sentido de la vivencia y
de la expresión, la visión del fenómeno intrínsecamente
semantizado, por así decirlo, fenómeno que da cuenta de
sí mismo (самоосмысленное явление, Bajtín 1996, 9).

23
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

Tres
Pero además de esta visualización exterior, tenemos –se supone—
una visión interior. Desde la teología medieval por lo menos (¿san
Agustín como precursor?), reconocemos en nuestro fuero interno al
“hombre interior”. La introspección, como técnica de la visualización
interna, como proceso de auto-observación, de reconocimiento de
nuestras fallas, recaídas y búsquedas ansiosas de una verdad intrínseca,
nos fue heredada como técnica confesional para dar cuenta, mediante
la palabra, a nosotros mismos de nuestros actos. El mundo interior es
inaccesible al otro real, no está sujeto a su observación tan inmediata
como sucede en los dominios compartidos del afuera. La posibilidad
de un futuro abierto y de la inexistencia, para mí desde dentro, de una
conclusión definitiva es garantía para seguir viviendo. “Para vivir, hay
que concebirse a sí mismo como inacabado, abierto para sí […]; hay que
anticiparse a sí mismo axiológicamente” (Bajtín 1979, 14). La muerte
para mí no existe debido a mi necesidad estética del otro: lo asegura
Bajtín y de una manera afín lo plantea Merleau-Ponty, filósofo de la
percepción. Mi muerte como evento final y conclusivo de mi existencia
(estética),13 con la consiguiente ventaja de dar clausura moral a mi yo,
también pertenece al otro.

Cuatro
La fundación del yo por el otro, en los parámetros y medidas
establecidas por el otro, contiene en sí el peligro de encerrar al sujeto en el
marco de una imagen estética fija, sin desarrollo posterior ni avance, a un
yo intrínseco que no mide tan solo por la exterioridad sus posibilidades
13
‘Perfecto’ es acabado; nuestra vida interior es por principio inacabada; por ende, la perfección,
que solo puede como cualidad asignarse por el otro, frena el proceso interior que por definición
tiene un futuro y, al clausurar, “mata”. He aquí el origen del reclamo feminista al sexo opuesto,
que busca “perfección” sobre todo externa. La condición del trato fáustico con el demonio, de
acuerdo con Goethe, es también la de querer detener el instante por su belleza, esto es, la muerte.

24
Tatiana Bubnova

de crecimiento y sentido para sí mismo. La actitud estética que incluye


en sí misma la necesidad de una totalización, de un englobamiento, de
una conclusión artística, es potencialmente portadora de la muerte para el yo
intrínsecamente inacabado, como si fuera un objeto que se valora. En
esta actitud está implicado un juicio estético que además contiene otro
juicio, de índole moral. “El proceso creativo es siempre un proceso de la
violencia llevada a cabo por la verdad sobre el alma” (Bajtín 1996, 67).
El ser humano se encuentra con la verdad acerca de sí mismo como con
una fuerza mortal conclusiva.
Hay otro aspecto: la otredad inexorable que constituye nuestra
posibilidad de existencia funda en nuestro interior una alteridad alterna/
interna, que puede o no puede identificarse con el “interior hombre”
de san Agustín, de los neoplatónicos y de la Inquisición (cuyo precepto
para sus pupilos era la permanente introspección bajo la tutela y la
atenta mirada del Santo Oficio). La confesión, oral o escrita, ha sido
uno de los aspectos de la práctica religiosa que pasó a formar parte de
procedimientos literarios. Desde el punto de vista de género literario,
la picaresca es uno de los múltiples modelos confesionales; la obra de
Dostoievski incluye ampliamente la introspección y la confesión como
estructurante del sujeto.

Falsedad y mentira que se transparentan inevitablemente


en la relación mutua con uno mismo. La imagen externa
del pensamiento, del sentimiento, la imagen externa del
alma. No soy yo quien mira desde mi interior y con mis
propios ojos sobre el mundo, sino que yo miro a mí
mismo con los ojos del mundo, con ojos ajenos; estoy
poseído por el mundo. Aquí no existe la ingenua totalidad
de lo extrínseco y lo intrínseco. Espiar la imagen de uno
vista por otros. La ingenuidad en el deseo de fundir a sí
mismo y al otro en la imagen dentro del espejo. Hay un

25
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

excedente del otro. No poseo un punto de vista sobre


mí mismo desde el exterior, carezco de enfoque para mi
propia imagen intrínseca. Desde mis ojos me observan
los ojos ajenos (Bajtín 5:71).

Cinco
Así, pues, en el centro de la concepción bajtiniana del mundo se
encuentra la comunicación intersubjetiva y social principalmente
discursiva. Hay quienes le atribuyen a esta visión panlingüística de
Bajtín la pretensión idealista de que en que el mundo existe solo en el
lenguaje, principio definido por la tendencia a reducir todos los objetos,
incluyendo las instituciones sociales, a los procesos de la conciencia.
Desde luego, esto no es correcto.14 Donde existe la alteridad radical del
mundo existe la oposición entre el yo como cuerpo-vivencia interna y
el otro como cuerpo externo para mí, como una primera realidad. El
cuerpo de un sujeto que posee una clara ventaja sobre mi yo porque le
pertenece la valoración objetiva de mi totalidad, inaccesible a mí que solo
dispongo de mi interior. Mis ojos internos son capaces de una visión
especulativa pero alcanzan reproducir una representación imaginaria de
mi interioridad.
Paul de Man relaciona justificadamente el modelo bajtiniano, tanto
filosófico como literario, con el “discurso perseguido” (Leo Strauss),
caracterizando así el habla indirecta o palabra ajena, punto central de
la metalingüística bajtiniana. Desde este punto de vista, las fábulas son
proto-modelos de la novela, prosopopeyas. Aunque decir las verdades
inefables, imposibles de decir o no dichas todavía por razones más
diversas, siempre ha sido la tarea de la creación verbal, en particular
de la poesía lírica. Qué paradoja, diría un atento lector de Bajtín, esta
interpretación hace colisionar la concepción de la prosa del autor ruso
14
“Estudiar la palabra en sí misma dejando de lado su orientación fuera de sí misma es tan
absurdo como estudiar una vivencia psicológica fuera de aquella realidad hacia la cual va dirigida
y que la que determina a esta vivencia.” (PLE 105)

26
Tatiana Bubnova

con su versión de lo poético, porque en la prosa se usa poner la versión


propia de la verdad en boca ajena, lo cual produce efectos inesperados de
ironía y autoparodia. Y en la poesía la distancia entre la verdad profunda
y su expresión formal supuestamente se acorta.

Por lo general el auditorio potencialmente materialista ejerce una


presión sobre la dimensión ontológica del lenguaje y la comunicación
en la concepción de Bajtín. La contraparte equipolente de esta presión
eminentemente social vendría desde un fundamentalismo que pretende
identificar la dimensión ontológica con su propia versión de la religiosidad
institucionalizada. Ciertos conceptos conocidos por la cultura, el mito y
la creación estética son metáforas epistemológicas, instrumentos de la
cognición usados por el entendimiento. Metáforas, pero no del todo,
como había dicho Bajtín de la polifonía.

La “visión del mundo” también implica una metáfora epistemológica.


Por otra parte, la contemplación estética está también en juego. “Traduzco
al lenguaje de una cosmovisión abstracta aquello que fue objeto de una
visión artística vívida y concreta, convirtiéndose en un principio formal
[…] Dostoievski convirtió al espíritu –la extrema postura semántica de
la persona— en el objeto de una contemplación estética, supo ver el
espíritu de manera tal cómo antes de él sabían ver tan solo al cuerpo y al
alma del ser humano” (5, 345).
En la obra del círculo de Bajtín, la visión del mundo es un concepto
relacionado con la mediación lingüístico-discursiva concebida como
‘refracción’: otra metáfora epistemológica relacionada con lo visual,
procedente de la física.

La síntesis de esta postura filosófica que funde lo ético y social con


lo perceptivo-epistemológico, para obtener lo artístico-estético: “[…]la
visión artística de Dostoievski: […] las visiones del mundo encarnadas en

27
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

voces” (5, 354). “La encarnación de la voz en el cuerpo” está destinada


a representar el pensamiento mediante las voces, entendiendo la voz
como la posicionamiento de la idea encarnada en el mundo” (5, 364).
El diálogo se representa mediante el cuerpo con todos sus sentidos;
es otra referencia bajtiniana con la misma idea: “El héroe de Dostoievski
participa en el diálogo universal con todo, mediante todo su ser: mediante
la palabra, mediante el acto ético, mediante su rostro, ojos, cuerpo,
mediante cada gesto, mediante su silencio, incluso mediante su muerte
(suicidio) […] La expresividad de Dostoievski es expresividad dialógica”
(5, 368). El discurso de esta manera se complementa con los recursos
semánticos extraverbales de entonación, gesto, acto material, incluso
silencio (“taciturnidad”) significativo. Todos estos signos, símbolos,
indicios y señales son de naturaleza material, igual que los signos
lingüísticos.
La materialidad de este mundo no nos exime de la riqueza afectiva y
estética y del orden ético generado por la comunicación entre seres en la
plenitud de lo humano. Esta plenitud que antropológicamente nos define
a través de las sutilezas que se expresan mediante conceptos anticuados
de alma/cuerpo/espíritu destinados a describir la complejidad del
hombre que actúa al unísono con el otro su semejante, en un acto que
bien puede ser descrito como práctica social, pero este último término
no parece incluir la complejidad aludida.

La expresión comunicativa se concibe como materia semantizada


(“plena de sentido”, осмысленная), o bien sentido materializado,
elemento de la libertad que ha compenetrado la necesidad dialéctica
o necesariedad dialógica del “deber ser”. La carne externa y la carne
interna para el amor (милование) incluyen metafóricamente el afecto
más importante en nuestras culturas. Donde está el amor está el alma:
ambos elementos, imprescindibles en un mundo concebido como
espacio para la comunicación/comunión. Y no se ha mencionado aquí

28
Tatiana Bubnova

otro aspecto inherente al pensamiento bajtiniano: la risa como expresión


de la libertad, la seriedad como su opuesto.
Ahora bien, nos encontramos en un momento crucial de nuestra,
digamos, “evolución”, cuando el sentido de la vista está cambiando
nuestra relación con el mundo. La “lectura” del mundo está mediatizada
por las reproducciones hechizas multiplicadas y alteradas —
manipuladas—, que en el mejor de los casos nos condicionan para una
determinada interpretación. En el peor, ya no constituyen texto ni ofrecen
información, sino que tienden a la entropía. “Leemos”, supuestamente,
las imágenes infinitamente repetidas y reproducidas unilateralmente,
pero ¿cuál es el proceso de la comprensión que involucra este supuesto
acto de interacción con no se sabe qué? ¿En qué forma participamos
con el otro? ¿Se da algún encuentro ontológico en este territorio social y
subjetivo que reclama esta predominancia de la imagen visual? El cambio
lo estamos sintiendo todos, su análisis ha sido y está siendo anticipado
desde por lo menos la escuela de Francfort, no obstante estamos en un
umbral en el cual la vida tal vez siga siendo la realización permanente
del acto ético, pero esta interpretación rigorista de la vida derivada de
las ideas del pensador ruso se antoja cada vez menos significativa. Esta
situación nos enfrenta al reto de una nueva comprensión y un nuevo
modelo de comunicación que nos libere de la visualidad obsesiva, en
medio del cambio tan drástico que estamos experimentando.

Referencias
BAJTÍN, Mijaíl M. Estética de la creación verbal [en ruso], Iskusstvo,
Moscú, 1975.
______. Obras [en ruso], vol. 5, ed. Russkie Slovari, 1996.
______. “En el gran tiempo”, en: Isupov, Bajtinología [en ruso], p.
7-9, 1995.

29
Las Metáforas Epistemológicas de Los Sentidos en Bajtín: Ver, Oír, Hablar
(Discurso, cuerpo, trascendencia)

BONETSKAIA, N. K., “Anotaciones sobre «Autor y héroe…»”, en:


Isupov, Bajtinología [en ruso], p. 239-287, 1995.

CLARK, Katerina, and Michael Holquist, “Architectonics of


Answerability”, en: Mikhail Bakhtin, Harvard University Press,
Cambridge, Massachusets and London, England, p. 62-94, 1984.

GASPAROV, M. L., “M. M. Bajtín en la cultura rusa del siglo XX”


[1979, en ruso], en: K. G. Isupov (ed.), Mijaíl Bajtín: pro et contra [en
ruso], vol. II, San Petersburgo, Editorial del Instituto Cristiano Ruso de
Ciencias Humanas, p. 33-36, 2002, .

ISUPOV, K. G. (ed.), Bajtinología. Investigaciones, traducciones,


publicaciones [en ruso], Aleteia, San Petersburgo, 1995. (Bajtinología).

MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenología de la percepción,


trad. Jem Cabanes, Ediciones Península, 3ª ed., Barcelona, 1994.

TODOROV, Tzvetan, Mikhaïl Bakhtine le principe dialogique,


Éditions du Sueil, Paris, 1981.

ZAVALA, Iris, La posmodernidad y Mijaíl Bajtín, trad. Epicteto Díaz


Navarro, Espasa-Calpe, 1991.

Recebido em 30/11/2014 e Aceito em 22/03/2015.

30
WHAT IS ANALYSED BY DISCOURSE ANALYSTS?

O QUE PESQUISAM OS ANALISTAS DO DISCURSO?

Dominique MAINGUNEAU
Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 – Paris – França

RESUMO
Para responder a pergunta formulada no título deste artigo, serão considerados os próprios
termos a partir dos quais a questão se elabora. Inicialmente, dividem-se os analistas do
discurso em três grupos: o primeiro, em que se incluem pesquisadores de formação filosófica;
o segundo, que é o constituído pelos pesquisadores que utilizam o “método qualitativo”,
os discursivistas; e, por fim, o terceiro grupo, composto por pesquisadores de ordem sócio-
histórica ou psicológica. Com os grupos assim organizados, busca o artigo compreender o que
os analistas do discurso pesquisam, como o fazem e como esses estudos contribuem para as
construções sociais.

ABSTRACT
To answer the question made on the title of this article, it will be considered the own terms
on which the question is elaborated. Initially, discourse analysts will be divided in three
groups: the first group, includes researchers with philosophical background; the second group,
is constituted by researchers that use the “qualitative method”; and, lastly, the third group
consists of researchers with social-historical or psychological background. With the groups
organized in such manner, this article aims to comprehend what the discourse analysts
research, how they carry they research and how these studies contribute to social constructions.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; Análise de discurso e pesquisas e análise de discurso.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 31-40, jul./dez. 2015


O que Pesquisam os Analistas do Discurso?

KEYWORDS
Discourse, Discourse analysis and Discourse analysis researches.

Introdução
Responder à pergunta “o que pesquisam os analistas do discurso?” é
particularmente embaraçoso, sobretudo quando se pratica, como é meu
caso, análise do discurso há muito tempo: quanto mais o tempo passa,
mais esta atividade me parece enigmática. Uma forma de contornar esta
dificuldade é retomar os próprios termos da questão proposta. Dois
elementos chamam minha atenção: “os analistas do discurso” e “o que
pesquisam…”.

1. Os três grupos
Evocar “os analistas do discurso” não pressupõe que haja um grupo
bem definido e homogêneo? Ora, isso não tem nada de evidente. Muito
esquematicamente, parece-me que se pode, na realidade, repartir os
pesquisadores em análise do discurso em três grupos distintos, deixando
claro que o mesmo indivíduo pode, segundo as circunstâncias, passar de
um a outro.
Em um primeiro grupo pode-se incluir os pesquisadores cuja visada
é de ordem filosófica ou para-filosófica. Os questionamentos ligados ao
discurso lhes permitem refletir sobre temas como o poder, a diferença
sexual, a subjetividade, a escritura, a dissidência, o pós-colonialismo... É
particularmente este o caso dos que se filiam à “Theory” pós-estruturalista.
Pode-se mencionar, por exemplo, nos EUA, o nome de Spivak, que,
no cruzamento da análise do discurso, da análise textual, da filosofia,
do feminismo e do marxismo, se empenha em criticar os paradigmas
ocidentais. Pode-se igualmente pensar, no domínio das ciências políticas,

32
Dominique Maingueneau

na teoria da hegemonia, defendida por Laclau e Mouffe, que se apóiam


em uma teoria da fixação do sentido em um sistema de diferenças; sua
definição de discurso está bem distante daquela da grande maioria dos
analistas do discurso, para os quais o discurso é, antes de mais nada, um
conjunto de dados textuais. Pode-se ver isso na definição que Laclau
propõe para o termo “discurso”:

We call articulation any practice establishing a relation


among elements such that their identity is modified
as a result of the articulatory practice. The structured
totality resulting from the articulatory practice, we will
call discourse. The differential positions, insofar as they
appear articulated within a discourse, we will call moments.
By contrast, we will call elements any difference that is not
discursively articulated. (Laclau, 1985 : 105)

Chamamos de articulação a qualquer prática que estabelece


uma relação entre elementos tais que sua identidade é
modificada como resultado da prática articulatória. À
totalidade estruturada que resulta da prática articulatória,
chamamos de discurso. Às posições diferenciais, antes
de aparecerem articuladas em um discurso, chamamos
momentos. Por contraste, chamamos elemento a qualquer
diferença que não esteja discursivamente articulada
(Laclau, 1985: 105)

Esta orientação para-filosófica está presente desde as origens dos


estudos de discurso. Na França, a partir dos anos 1960, coexistiram
abordagens linguísticas (que dominam no número especial da revista
Langages n°13) e abordagens que tinham um olhar essencialmente crítico
e filosófico, como o de Michel Foucault ou o de Michel Pêcheux; este
último, em particular, visava fundar “uma teoria do discurso como teoria

33
O que Pesquisam os Analistas do Discurso?

geral da produção dos efeitos de sentido”, uma teoria que “não pode
de forma alguma substituir uma teoria da ideologia, nem uma teoria do
inconsciente, mas que pode intervir no campo dessas teorias” (Pêcheux,
1969: 110). É Pêcheux quem coloca “intervir” em itálico: a análise do
discurso “intervém”, ela não se deixa encerrar em nenhuma disciplina
constituída, nem mesmo pela que tem a ideologia como objeto.
No segundo grupo de discursivistas, pode-se incluir os que utilizam
a análise do discurso como “método qualitativo” disponível na caixa
de ferramentas das ciências sociais. Eles trabalham, de fato, no interior
de quadros que foram definidos pela disciplina à qual eles pertencem
(geografia, sociologia, ciências políticas…) e seu objetivo principal não
é enriquecer os conceitos e os métodos que utilizam, mas ter acesso a
“realidades” fora da linguagem. O risco de tal uso da análise do discurso
é o de apagar, ou, ao menos, borrar a fronteira entre o estudo do discurso
e as técnicas típicas da análise do conteúdo (content analysis), sendo que a
distinção entre análise do discurso e análise do conteúdo teve um papel
importante na fundação da análise do discurso. Pêcheux, por exemplo,
produziu uma crítica sem concessões à análise do conteúdo, à qual
reprovava a pretensão de “chegar ao sentido do texto atravessando sua
estrutura lingüística” (1969: 4). Encontram-se palavras próximas a estas
em Fairclough, que recusa “uma tendência a considerar a linguagem
transparente, (…) a crer que o conteúdo social dos dados linguísticos
pode ser lido sem prestar atenção à linguagem propriamente dita” (2001
[1992]: 20).
O terceiro grupo de analistas do discurso que eu distinguiria é
constituído pelos pesquisadores que se esforçam por manter um
equilíbrio entre a reflexão sobre o funcionamento do discurso e a
compreensão de fenômenos de ordem sócio-histórica ou psicológica.
A maior parte deles tem forte ancoragem nas ciências da linguagem. É
este grupo que fornece, de certa forma, a base para a análise do discurso,
distinta da teoria do discurso ou do simples método qualitativo.

34
Dominique Maingueneau

2. O que pesquisam
A segunda dificuldade que a questão posta levanta se deve à
ambiguidade da expressão “o que pesquisam ...”1. Ela pode, de fato,
referir-se às motivações pessoais dos pesquisadores ou às motivações
que o fato de praticar análise do discurso implica. Certamente, seria
muito interessante interrogar-se sobre as motivações de ordem social
ou psicológica que animam os analistas do discurso em um lugar e em
um momento dados, mas é a segunda interpretação que parece impor-se
aqui. O problema é que eu duvido que se possa atribuir uma finalidade
unívoca às pesquisas em análise do discurso, que permitiria justificar
sua existência e a maneira pela qual são conduzidas. Para melhor fazer-
me compreender, faço uma comparação com a categoria do gênero do
discurso.
Quando se aborda um gênero de discurso, considera-se comumente
que um de seus constituintes essenciais é sua finalidade: tal gênero tem
tal(is) finalidade(s) que justificaria(m) sua existência e explicaria(m)
seu funcionamento. Certamente, um gênero de discurso não pode ser
praticado se os atores sociais não lhe atribuem alguma finalidade, mas
isso não significa que a existência de um gênero de discurso se reduza às
diversas finalidades que lhe são atribuídas. O gênero de discurso é uma
realidade sócio-histórica, uma instituição que ultrapassa as interpretações
que os atores sociais lhe dão, em função de seus próprios interesses.
De maneira comparável, pode-se dizer que a análise do discurso existe
independentemente de cada pesquisador, que é um espaço que se pode
identificar no campo do saber; precisamente, os analistas do discurso
definem seus posicionamentos pela maneira pela qual atribuem uma
finalidade a este espaço. A este respeito, é significativo que a análise do
discurso não descenda de um fundador único, ao qual se poderia atribuir
um projeto que definiria sua finalidade, mas da convergência de correntes
1
A ambiguidade é mais óbvia em francês (ce que cherchent), pois “chercher” significa tanto
‘procurar’, ‘buscar’ quanto ‘pesquisar’ (N. do T.).

35
O que Pesquisam os Analistas do Discurso?

muito diversas. O resultado dessa convergência não pode ser definido


por um projeto do qual elas seriam o desdobramento, mas como o
espaço profundamente incerto no qual “se desfaz o laço aparentemente
tão forte entre palavras e coisas”, para retomar uma expressão célebre de
A Arqueologia do saber de M. Foucault (1969: 66/56 – tradução brasileira)
A análise do discurso, antes de ser qualquer coisa de cuja finalidade
cada posicionamento tenta se apropriar, é, de fato um sintoma de que
uma sociedade participa de um certo mundo. Da mesma forma que se
poderia caracterizar a sociedade grega antiga como uma sociedade na
qual existia a retórica, poder-se-ia definir a sociedade contemporânea
como uma sociedade na qual se estuda o “discurso”. Esta atividade não
veio preencher uma falta prévia, encarregar-se de tratar de fenômenos
até então negligenciados, como se o mundo das coisas esperasse que
haveria um interesse por um setor até então apenas esboçado, por falta
de visibilidade e de pesquisadores para estudá-lo. Se a análise do discurso
emergiu é porque se produziu uma transformação na configuração do
saber: a análise do discurso não “exporta” seus procedimentos para a
sociologia, a história, a psicologia..., e estas não “importam” nada da
análise do discurso, a não ser na medida em que são já trabalhadas pelo
que tornou a análise do discurso possível.

3. Controlar os poderes do discurso


Queira-se ou não, os estudos de discurso estão amarrados ao
movimento da “tecnologização do discurso” (Fairclough), este
empreendimento multiforme que pretende analisar os poderes do
discurso para melhor controlá-los. De fato, ao lado das pesquisas
universitárias às quais nós nos aplicamos, existe uma multiplicidade de
técnicas de controle da linguagem: formalização dos procedimentos
de interação entre empregados e clientes ao telefone, tratamento
automático de massas documentais de todos os tipos, estudo das

36
Dominique Maingueneau

produções verbais com fins educativos ou psicoterapêuticos, conselhos


em comunicação destinados a todos os que tomam a palavra em público,
elaboração de programas de informática de análise e de produção de
textos de múltiplos gêneros etc. Jamais na história da humanidade houve
tanta preocupação em estudar o discurso. Fato sintomático, os canais
de televisão multiplicam as emissões nas quais “especialistas” analisam
as falas das personalidades públicas, em particular dos políticos. Assim,
quanto mais se multiplicam os lugares de colocação em espetáculo dos
signos, tanto mais se multiplicam as colocações em espetáculo da análise
desses signos.
Entre as pesquisas propriamente acadêmicas e essas múltiplas práticas
de estudo do discurso, a fronteira é indecidível; ela é continuamente
negociada. Como a língua, segundo o legendário Esopo, o estudo do
discurso pode ser a melhor ou a pior das coisas.

4. Uma abertura ilimitada


A análise do discurso participa também de nossa contemporaneidade
pelos corpora que pode fornecer: da conversação ao curso universitário,
do grafite ao tratado de metafísica. Pela primeira vez na história da
humanidade, qualquer produção verbal é assim passível de uma leitura
especializada, privilégio até então exclusivo dos textos prestigiosos.
Uma liberdade que tem seu avesso: dado que tudo é susceptível de ser
analisado, é necessário empregar grandes esforços para justificar que se
destrinche tal objeto.
No momento em que a análise do discurso apareceu, nos anos 1960,
em matéria de estudo de textos havia uma espécie de divisão tácita
do trabalho: as faculdades de letras analisavam os textos prestigiosos,
prestando atenção especial ao “estilo”, e, portanto, aos recursos
lingüísticos mobilizados pelo escritor; por sua vez, os departamentos de
ciências humanas ou sociais se dedicavam a textos de baixo prestígio, aos

37
O que Pesquisam os Analistas do Discurso?

“documentos” que não eram considerados passíveis de uma abordagem


estilística e que só eram estudados porque continham indicadores que
davam acesso a realidades extralinguísticas. Os textos que os primeiros
abordavam eram objeto de verdadeiros comentários; tratava-se de textos
consagrados, singulares, legados pela Tradição, que eram analisados
por meio de métodos normatizados (para os literários, por exemplo,
o comentário composto, o comentário estilístico, a explicação de
textos...). Por sua vez, os textos que as faculdades de ciências sociais
consideravam eram desprovidos de prestígio: entrevistas, questionários,
massas documentais de todos os tipos mobilizavam técnicas que
derivavam das diversas variantes da análise do conteúdo. Tratava-se de
extrair e de estruturar a informação que os documentos considerados
reveladores de realidades psicológicas ou sociais exteriores continham.
A análise do discurso converteu o olhar sobre estes “documentos”: eles
foram beneficiados, desde então, por uma atenção comparável àquela
que mereciam os textos estudados nas faculdades de letras, mas em um
quadro teórico e metodológico muito diferente. Certamente, desde muito
tempo os filólogos estudaram com cuidado tanto os grafites dos muros
de Pompeia ou os livros as cadernetas dos escribas egípcios quanto as
epopéias ou os textos jurídicos medievais. Mas, se os enunciados triviais
são objeto de tanta atenção, é porque eles são raros, são documentos que
testemunham algum estágio antigo da língua ou dos costumes de alguma
civilização perdida. Nada disso ocorre com os analistas do discurso, que
se dão como objeto a própria diversidade do discurso.
No século XVII, qualificava-se de “crítica” o estudo racional dos
textos antigos e, em particular, a Bíblia: o texto sagrado era então tratado
como um texto profano. Pode-se pensar aqui na Histoire critique du vieux
Testament (1678), de Richard Simon. A sua maneira, a análise do discurso
também tem força crítica: tomando-os como discurso, ela relaciona os
textos tradicionalmente prestigiosos a suas condições de possibilidade.

38
Dominique Maingueneau

Conclusão
Quando se pergunta o que pesquisam [cherchent] os analistas do
discurso, pergunta-se naturalmente o que sua tarefa tem de específico.
Mas não se poderia esquecer que a análise do discurso partilha também
os interesses do conjunto das ciências humanas, às quais ela oferece
um observatório privilegiado: através das instituições discursivas que
torna possíveis e que a tornam possível, qualquer sociedade pode
ser apreendida como uma certa regulação da palavra (produção,
circulação, arquivamento). Estudar a emergência, o funcionamento ou
as transformações de um gênero de discurso é abrir uma janela para os
processos de construção das identidades e do sentido social.
A análise do discurso se situa em um lugar singular, na intersecção
da linguagem, da sociedade e da psique. Poder-se-ia dizer que é uma
disciplina “angélica”, que se desdobra no cruzamento do conjunto das
ciências humanas e sociais e entre as palavras e as coisas. Mas o anjo,
sabemos, é às vezes tentado a sair de seu papel auxiliar, a ocupar o lugar
do rei. Trata-se de uma ambivalência que mostra a duplicidade do termo
“discurso”, que oscila entre valor empírico, quanto gira em torno da
categoria do texto ou do agrupamento de textos (“os discursos”) e valor
especulativo maiúsculo (“o Discurso), quando é o conjunto da sociedade
que está submetido a sua ordem. Esta ambivalência é constitutiva dos
estudos de discurso.

Referências
LACLAU, Ernesto & Chantal Mouffe. Hegemony and Socialist
Strategy. Towards a Democratic Radical Politics (London: Verso). 1985.

FAIRCLOUGH, Norman. [1992]. Discurso e mudança social (Brasilia:


Editora Universidade de Brasilia), trad. de Discourse and Social Change
(Oxford, UK, & Cambridge, MA: Polity Press & Blackwell), 2001.

39
O que Pesquisam os Analistas do Discurso?

FOUCAULT, Michel. 1969. A arquelogia do saber. Trad. de Luiz Felipe


Baeta Neves, 7 Edição, Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2008.

PÊCHEUX, Michel. 1969. Análise automática do discurso: uma


introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Eni P. Orlandi (et all). 3 Ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999.

Tradução: Sírio Possenti


Recebido em 12/11/2014 e Aceito em 30/03/2015.

40
WHAT THE DISCOURSE ANALYSTS ANALYSE?

O QUE OS ANALISTAS DE DISCURSO PESQUISAM?

Sírio POSSENTI
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP / CNPq / FEsTA)

RESUMO
Este artigo apresenta, basicamente, um mapeamento de trabalhos desenvolvidos por analistas
do discurso, com o intuito de responder à questão explicitada no título. Esse levantamento
se constitui a partir da observação das pesquisas que se realizam no Brasil no âmbito das
problematizações relevantes para a Análise do Discurso. São examinadas as práticas de
abordagem, as correntes e tendências mobilizadas, buscando-se informaçõese m programas de
eventos e em sumários de livros e revistas, considerando que essas fontes podem fornecer uma
representativa amostra dosesforços de investigação empreendidospelos estudiosos do discurso.

ABSTRACT
This article presents, basically, a mapping of researches conducted by discourse analysts, in
order to answer the question explicit in the title. This survey is founded on the observation
of researches that take place in Brazil on relevant problematizations in discourse analysis
scope. The practices approaches are examined, the array and trends are mobilized, seeking
information in event programs and summaries of books and magazines, considering that
these sources can provide a representative sample of the research efforts of discourse scholars.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; Análise de discurso e pesquisas e análise de discurso.

KEYWORDS
Discourse, Discourse analysis, research and discourse analysis.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 41-49, jul./dez. 2015


O que os Analistas do Discurso Pesquisam?

A pergunta é obviamente ampla. Só poderia ser adequadamente


respondida, ou melhor, uma resposta só faria de fato sentido, se fosse
possível que todos os analistas do discurso pudessem ter contato com
todos os trabalhos que se inscrevem no campo, que ora são mais e ora
menos “análise”, ou se todos fossem capazes, sem sofrer, de ter contato
com o que fazem os outros, o que nem sempre se deixa de fazer apenas
por falta de tempo, mas também pelo conforto que é ler ou reler ou
ouvir de novo o que é mais familiar.
Mas, por mais que haja diversidade nos trabalhos em AD, ela não é
infinita. Todas as teorias que se inscrevem sob este nome têm alguma
coisa em comum, embora cada uma veja as outras especialmente pelas
diferenças. Assim, pode-se chegar a alguma generalização.
A questão proposta poderia ser atacada de duas formas: a)
informando sobre as grandes linhas; b) prestando particular atenção aos
temas tratados, lendo os trabalhos, ou acreditando que seus títulos sejam
bons indícios.
De certa forma, o texto de Maingueneau neste volume é um exemplo
da primeira decisão. Não vou, evidentemente, repetir a estratégia. Nem
por isso me dedicarei à segunda, que exigiria tempo demais (talvez
perdido). Farei algo intermediário, correndo todos os riscos de desenhar
um panorama um pouco falso.
O “método” que vou seguir é, brevemente, o de mapear temas com
base em alguns programas de congressos e em alguns sumários de livros
e revistas que reúnem trabalhos de analistas do discurso.
Antes, faço uma espécie de retrato da AD tal como praticada no
Brasil. O que penso que me autoriza a arriscar este esboço são algumas
práticas, especialmente duas: a de leitor profissional, especialmente
por dois aspectos, que considero relevantes, quais sejam a de membro
de comitês editoriais, papel que me leva a ler anualmente um bom
número de artigos submetidos; e a de ex-membro do Comitê de Letras
e Linguística do CNPq, situação que me permitiu não só conhecer

42
Sírio Possenti

projetos de pesquisa individuais e coletivos, como também os pareceres


emitidos sobre eles.
Sumariamente, parece-me que a situação pode ser descrita como
segue.
A AD é a área mais procurada dentre as diversas da linguística. Nos
congressos, é sempre a que conta com o maior número de participantes.
Em muitos programas de pós-graduação, é a área com mais candidatos.
Além disso, há analistas de discurso em todos os departamentos de
Letras e de Linguística de todas as universidades e faculdades com
alguma importância.
Trata-se provavelmente de um dos efeitos de uma dupla representação
da pesquisa com linguagem: a) que não vale muito a pena fazer “pesquisa
pura”; que a língua “em si” deixou de ser um objeto relevante (como
para Chomsky e Saussure); b) que a pesquisa deve tratar de algum tema
socialmente “quente”.
Um sintoma interessante dessas tendências é que mesmo “linguistas
de texto” frequentemente referem-se a seu campo como “textual-
discursivo”, como se “textual” não fosse suficientemente prestigioso
ou não oferecesse matéria para pesquisas relevantes. No fundo, trata-
se de outra maneira de expressar o desconforto de falar da língua: é
preciso falar da cognição, da sociedade, evocando ou não, efetivamente,
ferramentas da psicologia ou da sociologia.
Esta expansão produz muitos efeitos positivos, mas paga o
preço de uma perigosa vulgarização. Muitos trabalhos se inscrevem
na AD, mas não passam de comentários ou de paráfrases dos textos
analisados, por um lado; ou são militância com pouca análise, por outro
– trabalhos frequentemente apenas criticam os posicionamentos dos
textos “analisados”. Acrescente-se que há muito ecletismo: teorias que
disputam o campo são tratadas como se se somassem; alternativamente,
são apenas expostas lado a lado, sem a devida avaliação, nas introduções
dos trabalhos.

43
O que os Analistas do Discurso Pesquisam?

As grandes correntes em vigor podem ser associadas a nomes:


Pêcheux, Foucault, Bakhtin, Maingueneau, Charaudeau, embora algumas
sejam designadas por seus nomes, especialmente a semiótica e a análise
do discurso crítica.
Há forte tendência em estudos de multissemiose ou multimodalidade
(termos que indicam uma filiação, em geral), ora considerando a verbo-
visualidade, ora apenas imagens (fotos, capas de revistas, documentários,
filmes). O movimento decorre em parte da influência da Internet e
do fato de que os corpora midiáticos são cada vez mais comuns. Nem
sempre a abordagem é suficientemente analítica. Nem sempre há teorias
explícitas para “leituras” das imagens ou relacionando texto e imagem. A
ACD, a semiótica e Maingueneau tratam mais claramente desta questão,
embora não da mesma forma. Lê-se muito “como se pode ver, a imagem
mostra...”, como se uma imagem não demandasse interpretação.
Há uma generalizada “atualização” entre os semioticistas e os
estudiosos de Maingueneau, um autor vivo que continua produzindo.
Eventualmente, suas teses são “aplicadas” (aforização etc.) com pouca
atenção aos contextos históricos, o que o autor leva muito a sério (sempre
destaca que certos fenômenos são da mídia, outros da internet, outros
da literatura etc., mas não faz isso para mencionar diferentes corpora e
sim para destacar sua historicidade). Mas eventualmente se esquece este
aspecto da análise.
Sendo Bakhtin, Foucault e Pêcheux autores falecidos, seus seguidores
se dedicam, genericamente, a dois tipos de trabalho: reatualizar as teorias
propostas, o que eventualmente significa ora reler ora discutir e fazer
circular textos inéditos. Mas há muita “aplicação”, sem elaboração, de
teses clássicas a novos corpora (a rede, as imagens, a mídia...), nem
sempre óbvias.
Os temas mais constantes em AD são clássicos: discursos sobre
ou de grupos minoritários, definidos conforme relevância regional,
eventualmente; analisam-se temas polêmicos (e as próprias polêmicas),

44
Sírio Possenti

como as questões de gênero; em geral, questões socialmente quentes


(discursos políticos, violência / intolerância); a internet tem exercido
grande atração, havendo alguns temas destacados em projetos;
eventualmente, com o mesmo viés teórico, como se o tipo de corpus
fosse irrelevante.
Algumas questões teóricas são postas na mesa. Por exemplo, defende-
se ou combate-se a aproximação com as questões da cognição, que, no
fundo, retoma um debate sobre a natureza do sujeito, em geral, e do
lugar do sujeito do discurso, em particular, destacando-se nos extremos
as posições descendentes de Pêcheux e as francamente cognitivas, com
definições ora mais ora menos sofisticadas (frames e scripts, por um
lado, posições como as de van Dijk e Moirand, por outro – não que
sejam idênticas).
Poder-se-ia só celebrar o que acontece. Bastaria chamar atenção para
o número de programas de pós-graduação nos quais a área ocupa posição
de destaque, o número de pesquisadores atuantes, a quantidade de livros
que se produzem e se traduzem, a quantidade de eventos exclusivos e
a participação em eventos de lingüística (promovidos pelas associações
que têm a palavra no nome), e mesmo de outras áreas, a “influência” na
educação, ou no debate sobre educação (escrita e leitura, novas mídias
etc.).
Mas isso seria apenas dizer o óbvio. Talvez parecesse um pouco
ufanista. Não é meu temperamento. Parece necessário chamar atenção
para alguns problemas.
A falta de debates, de controvérsias acadêmicas; tal situação faz com
que cada grupo atue em torno de sua teoria predileta e trate, eventualmente,
de questões preferenciais, sem levar em conta a possibilidade de que
outras teorias tenham proposto novos conceitos ou tratado melhor de
certas questões; eventualmente, trabalhos começam do zero, como se
ninguém tivesse proposto determinada questão ou conceito e tratado de
certos temas; há uma perda de trabalho;

45
O que os Analistas do Discurso Pesquisam?

Obras coletivas são em geral uniformes e muito repetitivas, porque


cada autor se sente na obrigação de reapresentar suas crenças (imagine-
se um físico ou um biólogo começando seu trabalho com a apresentação
de si, dizendo que segue teorias que aceitam o elétron ou os gens... ou
que acreditam em experimentos);
Resenhas são em gerais amigáveis (a não ser nos raros casos em que
alguém decide resenhar um “adversário”, quando parece haver obrigação
de por em relevo as diferenças, mas apresentadas como “defeitos”);
Diria que há menos interesse em “descobrir verdades” do que em
fortalecer grupos, o que é mais característico das ideologias do que das
teorias, embora estas não estejam isentas de traços daquelas, tanto em
seus pressupostos quanto em sua prática.

Em seguida, menciono alguns temas, com base em revistas, livros


e programas de congressos, sem nenhuma pretensão de exaustividade.
Trata-se de indícios, mas, para freqüentadores de literatura e de eventos, é
mais ou menos óbvio que os dados a seguir são bastante representativos.
Começo mencionando a programação de comunicações do evento
que hoje se encerra. Cito a programação de uma sessão, um exemplar da
diversidade de temas:

▪▪ Cartas do leitor em Nova Escola: uma análise dialógica


▪▪ Discursos do sucesso: a produção de sujeitos e sentidos do
sucesso no Brasil contemporâneo
▪▪ Da moda do corpo ao corpo da moda: descontinuidades
discursivas sobre o sujeito “gordo”
▪▪ Mídia e juridicização do cotidiano: por uma análise dos crimes
passionais na imprensa escrita brasileira do século XX
▪▪ O museu da Língua Portuguesa e o discurso dominante sobre a
língua no Brasil

46
Sírio Possenti

Veja-se em seguida uma indicação dos temas tratados nas


apresentações do GT de Análise do Discurso na ANPOLL de 2014. Em
vez de citar títulos de trabalhos, cito a divisão em grandes “áreas”, que
foram:

▪▪ História das idéias linguísticas


▪▪ Diferentes materialidades significantes ma história
▪▪ Ideologia e inconsciente
▪▪ Subjetivação e processos de identificação
▪▪ Discurso na WEB

Segue-se uma lista de trabalhos apresentados em um dos simpósios


do 62º seminário do GEL

▪▪ Midium e cenografia na constituição da paratopia criadora


▪▪ Revista Estilo – a “transmidiação” discursiva da idéia de
estilo, da agência bancária para plataforma online
▪▪ Ritos genéticos editoriais: a imagem do revisor de textos inscrita
nos processos de edição
▪▪ Estereótipos e circulação: o caso dos personagens infantis de
tiras cômicas
▪▪ Considerações sobre o funcionamento da fórmula discursiva
“cultura de paz” no mercado editorial brasileiro

Agora, uma amostra do sumário de volume recente da revista


Cadernos de Linguagem e Sociedade (UnB):

47
O que os Analistas do Discurso Pesquisam?

▪▪ Atos de fala e lei


▪▪ Perigo, cuidado, atenção: a comunicação linguística de risco em
advertências de produtos
▪▪ O discurso jurídico como estratégia de governamentalidade do
corpo com deficiência
▪▪ Decisão judicial e pressão cidadã: uma análise crítica de “Fora
Micarla”
▪▪ Análise crítica do discurso de pronunciamentos da polícia militar
durante manifestações populares

Segue-se uma amostra do sumário de um livro (Orlandi, Discurso em


análise: sujeito, sentido, ideologia):

▪▪ Análise do discurso e contemporaneidade científica


▪▪ Documentário: acontecimento discursivo, memória e
interpretação
▪▪ Quando a fala falha: materialidade, sujeito, sentido
▪▪ Uma tautologia ou um embuste semântico-discursivo: País rico
é pais sem pobreza?

Os dados estão longe de ser exaustivos, mas afianço que constituem


uma amostra representativa. Pode-se anotar, mesmo sem citar fontes
(isso tem a ver com as práticas mencionadas no início), que, sob o rótulo
de análise do discurso, estudam-se temas dos mais variados e sob guarda-
chuvas teóricos bem diversos.
O que pode permitir duas avaliações alternativas do campo: uma,
bastante comum na prática, embora nem sempre tematizada, trata as
diferenças no campo como elas são tratadas em outros discursos, como
o político e o religioso: há os bons e os maus, os certos e os errados.

48
Sírio Possenti

Cada grupo se vale e constrói uma memória específica, eventualmente


reverencia heróis e condena hereges. A outra trata as diversas tendências
como fatos históricos; diante delas, eventualmente assume-se uma posição
eclética; em outros casos, compõem-se pontos de vista, aproximam-se
autores; ainda em outros, reconhece-se a diversidade, mas se faz uma
escolha entre as teorias que circulam no campo.
Nos últimos tempos, seja para salvar uma perspectiva, seja para
criticá-la, menciona-se com freqüência o Dicionário de Análise do Discurso,
coordenado por Charaudeau e Maingueneau, que pode ser considerado
um mapa do campo, segundo um ponto de vista, ou como incluindo
“cidades” que não devem ser visitadas, conforme outro viés.
Talvez uma solução seja a proposta por Maingueneau (Discours et
analyse du discours, Paris, Armand Colin, 2014), segundo o qual seria
mais adequado chamar ao campo de estudos do discurso e tratar a análise
do discurso como uma disciplina desse campo, que inclui, por exemplo,
a análise da conversação, sendo que esta, por sua vez, não é tratada da
mesma maneira por todas as teorias).
Evidentemente, esta sugestão é exatamente isso, uma sugestão. Se
aceita, começará uma guerra para decidir que é, afinal, faz análise e quem
se dedica a estudos.
Chamem Freud!

Recebido em 23/11/2014 e Aceito em 13/03/2015.

49
ARTIGOS

2. DISCURSO E INTERVENÇÃO SOCIAL


DOMINATION, CHEAT AND KNOWLEDGE BY
LANGUAGE

DOMINAÇAO, TRAPAÇA E CONHECIMENTO


PELA LINGUAGEM

Diana Luz Pessoa de BARROS


Universidade Presbiteriana Mackenzie
Universidade de São Paulo (USP) Diversitas (CNPq)

RESUMO
Neste estudo a intenção é mostrar as várias facetas daquilo que em geral é chamado de
dominação pela linguagem ou de poder da linguagem, e qual o papel dos estudiosos da
linguagem, e do discurso em especial, no tratamento da questão. Essa questão será examinada
na perspectiva dos estudos do discurso em geral e da semiótica discursiva de linha francesa em
particular (Greimas, 2014, Greimas e Courtés, 2008), pois é na língua em uso, no campo
dos discursos que a dominação ocorre, que o poder se manifesta, e é lá também que ele pode
ser contestado ou aligeirado. Nosso ponto de partida nessas reflexões são três autores que, em
seus escritos, por caminhos diferentes, mas que muitas vezes se cruzam, tratam do poder da
linguagem: Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Mia Couto.

ABSTRACT
In this study we aim to demonstrate the many aspects of what it is called domination by
language or power of language and what is the roles of researchers of language, especially
those of the discourse field, in the treatment of such subject. This question will be examined
under the perspective of discourse studies and the French discousrsive semiotics, in particular
(Greimas, 2014, Greimas e Courtés, 2008), because it is in the language in use, in the field
of discourse, that occurs domination, that power manifest itself, it is where it can be contested
or hasted. Our starting point in this reflection comes from three authors who treat the power

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 53-71, jul./dez. 2015


Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

of language in different ways, though, in some aspects, these different paths intersect: Roland
Barthes, Mikhail Bakhtin and Mia Couto.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; linguagem; poder.

KEYWORDS
Discourse; language; power.

Introdução
Neste estudo a intenção é mostrar as várias facetas daquilo que em
geral é chamado de dominação pela linguagem ou de poder da linguagem,
e qual o papel dos estudiosos da linguagem, e do discurso em especial, no
tratamento da questão. Essa questão será examinada na perspectiva dos
estudos do discurso em geral e da semiótica discursiva de linha francesa
em particular (Greimas, 2014, Greimas e Courtés, 2008), pois é na língua
em uso, no campo dos discursos, que a dominação ocorre, que o poder
se manifesta, e é lá também que ele pode se contestado ou aligeirado.
Nosso ponto de partida nessas reflexões são três autores que, em seus
escritos, por caminhos diferentes, mas que muitas vezes se cruzam, tratam
do poder da linguagem: Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Mia Couto.
Organizamos o artigo em duas partes: na primeira discutimos o poder
da língua e dos discursos, na perspectiva desses autores, examinando os
caminhos que propõem para escapar dessa dominação - a trapaça na
língua, a polifonia, o plurilinguismo ou o multilinguismo; na segunda,
procuramos mostrar o papel dos estudiosos do discurso na explicitação
do poder dos discursos e na busca da inserção e da intervenção social,
pela produção de conhecimento sobre essas questões em geral e sobre
a dominação sócio-histórica e ideológica dos discursos, em especial.
Também na segunda parte desta exposição, os três autores mencionados
marcam o lugar de partida.

54
Diana Luz Pessoa de Barros

1. Dominação e trapaça
Roland Barthes, em sua Aula (1980) no Collège de France, discute
três aspectos da questão que nos ocupa: é na linguagem e, em especial,
na língua que o poder se inscreve; um idioma se define menos pelo que
ele permite dizer do que por aquilo que ele obriga a dizer (retomando
Jakobson); a língua em uso, o discurso, está preso à fatalidade do poder.
O autor diz:

É, com efeito, de poder que se tratará aqui, indireta mas


obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder
como se ele fosse um: de um lado aqueles que o têm,
de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder
fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos
agora que é também um abjeto ideológico, que ele se
insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas
instituições, nos ensinos, mas em suma que ele é sempre
uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os
demônios? [...] Adivinhamos então que o poder está
presente nos mais finos mecanismos de intercâmbio
social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos,
mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos
espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações,
nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos
impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo de
discurso de poder todo discurso que engendra o erro e,
por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.
Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos
a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira
guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um
combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é
simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso,

55
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam


uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente
reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão
dessa resistência, dessa ubiquidade é que o poder é o
parasita de um organismo trans-social, ligado à história
inteira do homem, e não somente à sua história política,
histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde
toda eternidade humana, é a linguagem – ou, para ser
mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. [...]
Jakobson mostrou que um idioma se define menos
pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele
obriga a dizer. Em nossa língua francesa (e esses são
exemplos grosseiros), vejo-me adstrito a colocar-me
primeiramente como sujeito, antes de enunciar a ação
que, desde então, será apenas meu atributo: o que faço
não é mais do que a consequência e a consecução do que
sou; da mesma maneira, sou obrigado a escolher sempre
entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo
me são proibidos; do mesmo modo, ainda, sou obrigado
a marcar minha relação com o outro recorrendo quer
ao tu, quer ao vous: o suspense afetivo ou social me é
recusado. (p. 10-13)

Barthes exemplifica o poder da linguagem com o sistema linguístico


que nos obriga a dizer, e que submete o discurso ao poder da língua.
Ainda que assim dominados, o discurso, seus produtores e seus
estudiosos podem, segundo o autor, fazer uso de algumas estratégias
para escapar, ao menos em parte, dessa dominação da linguagem, “ligada
à história inteira do homem”. Dessa forma, para “ouvir a língua fora do
poder”, Barthes diz que é necessário pagar o “preço do impossível”, e
“trapacear” a língua, com a literatura:

56
Diana Luz Pessoa de Barros

Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem


super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear
com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar,
essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução
permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim:
literatura. (p.16).

Mikhail Bakhtin (1970, 1981, 1986, 1988 e 1992), por sua vez, fala
de outra forma de dominação pela linguagem, igualmente fatal e sem
escapatória, a da ideologia, e aponta outra direção ou trapaça, também
na linha do impossível, para essa “fuga” dos poderes dos discursos, a
da multiplicidade de vozes e valores, no dialogismo e na polifonia. Em
estudos anteriores (Barros, 1994 e 1996; Barros e Fiorin, 1994), que,
em parte, retomamos aqui, examinamos já algumas dessas questões. O
princípio dialógico permeia a concepção de Bakhtin de linguagem e,
quem sabe, de mundo, de vida. O autor concebe o dialogismo como
característica essencial ou princípio constitutivo da linguagem e condição
do sentido do discurso. O dialogismo, assim concebido, define o texto
como um tecido de muitas vozes, ou de muitos textos ou discursos, que se
entrecruzam, respondem umas às outras ou polemizam entre si. Se nos
discursos (ou textos) falam vozes diversas que mostram a compreensão
que cada classe ou segmento de classe tem do mundo, em um dado
momento histórico, esses discursos são, por definição, ideológicos. As
afirmações sobre o caráter dialógico e, consequentemente, ideológico
do discurso, entendido como lugar de elaboração e de difusão de
ideologia, fazem muitas vezes acreditar, por oposição, no caráter neutro
do sistema da língua. Não é essa a posição de Bakhtin (ver também,
sobre a questão, Fiorin, 1988). Para Bakhtin, no sistema da língua se
imprimem historicamente as marcas ideológicas do discurso: “o discurso

57
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

reflete as mais imperceptíveis alterações da existência social” (1986: 46).


Nesse caso, deve-se reconhecer que os traços impressos na língua, a
partir dos usos discursivos, criam em seu interior choques e contradições
que fazem o autor afirmar que em todo signo se confrontam índices
de valor contraditório e que, em suma, o signo se torna a arena onde
se desenvolve a luta de classes. Uma mesma língua produz, portanto,
discursos ideologicamente opostos: classes sociais diferentes utilizam um
mesmo sistema linguístico, de acordo com seus valores e antagonismos.
Da língua, assim definida, surgem os discursos ideológicos que, na maior
parte das vezes escolhem um dos polos, um dos valores, e procuram
mascarar o dialogismo constitutivo da linguagem ou suas contradições,
como veremos a seguir, ao tratar da questão da polifonia.
O dialogismo, entendido como o diálogo entre os muitos textos da
cultura, que se instala no interior de cada texto e o define, é, em geral,
apontado como o princípio que costura o conjunto das investigações de
Bakhtin. O texto é o ponto de intersecção de muitos diálogos, cruzamento
de vozes oriundas de práticas de linguagem socialmente diversificadas.
Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, procuramos em nossos
estudos distinguir dialogismo e polifonia, reservando o termo dialogismo
para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso,
e empregando a palavra polifonia para caracterizar certo tipo de texto,
aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são ouvidas
muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os
diálogos que os constituem. Em outras palavras, o diálogo é condição
da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos,
segundo as estratégias discursivas acionadas. No caso dos textos
polifônicos, as vozes se mostram, no dos monofônicos, elas se ocultam
sob a aparência de uma única voz. Monofonia e polifonia de um discurso
são, dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentos
discursivos que se utilizam em textos, por definição, dialógicos. Os
textos, como vimos, são dialógicos porque resultam do embate de muitas

58
Diana Luz Pessoa de Barros

vozes sociais, mas podem produzir efeitos de polifonia, quando essas


vozes ou algumas delas se deixam escutar, ou de monofonia, quando o
diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. Com essa distinção
separam-se os discursos autoritários dos discursos poéticos. Considera-
se discurso autoritário aquele em que se abafam as vozes dos percursos
em conflito, em que o discurso se cristaliza e se faz discurso da verdade
única, absoluta, incontestável. Assume-se e aceita-se o poder inerente
à linguagem. Nesse caso, para retomar o diálogo apagado e contestar a
“verdade” construída e imposta são necessários outros textos que, pela
interdiscursividade ou intertextualidade, recuperem a polêmica escondida
e os choques sociais. A censura nos regimes autoritários é, entre outros,
um meio de impedir que se retome o diálogo perdido. Discurso poético,
por sua vez, é aquele que instala, internamente, graças a uma série de
mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e as contradições
dos conflitos sociais. Considera-se poético qualquer discurso - poesia,
pintura, dança e outros - que apresente as características polifônicas
mencionadas. Reencontramos aqui, por outros caminhos, a trapaça da
literatura defendida por Barthes.
Barthes e Mia Couto retomam também questões que dizem respeito
ao preconceito e à intolerância em relação aos usos da linguagem, à
variedade linguística, às línguas diferentes, à oralidade. A resposta a
essas discriminações está no plurilinguismo ou no multilinguismo,
como temos procurado também apontar em nossos estudos sobre os
discursos preconceituosos e intolerantes (Barros, 2008a, 2008 b, 2011,
2013). Nesses estudos, mostramos que os contratos de diversidade e de
pluralidade - contratos de multilinguismo, de mistura, de mestiçagem,
de diversidade sexual, de pluralidade religiosa - podem transformar
discursos intolerantes e preconceituosos em discursos de aceitação
social, em que as diferenças coexistem, e que esses discursos são outras
formas de resistência à dominação linguística.

59
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

Barthes trata, sobretudo, da variação linguística e da necessidade de


se falar várias línguas, no interior de um mesmo idioma. Em sua Aula
(1980), ele diz:

Censura-se, frequentemente o escritor, o intelectual, por


não escrever a língua de “toda a gente”. Mas é bom que
os homens, no interior de um mesmo idioma – para nós
o francês - tenham várias línguas. Se eu fosse legislador
[...], longe de impor uma unificação do francês, quer
burguesa, quer popular, eu encorajaria, pelo contrário,
a aprendizagem simultânea de várias línguas francesas,
com funções diversas, promovidas à igualdade. [...]
Essa liberdade é um luxo que toda sociedade deveria
proporcionar a seus cidadãos: tantas línguas quantos
desejos houver: proposta utópica, pelo fato de que
nenhuma sociedade está ainda pronta a admitir que
há vários desejos. Que uma língua, qualquer que seja,
não reprima outra: que o sujeito futuro conheça, sem
remorso, sem recalque, o gozo de ter a sua disposição
duas instâncias de linguagem, que ele fale isto ou aquilo
segundo as perversões, não segundo a Lei. (p. 24).

Essas várias línguas francesas ou, no nosso caso, várias línguas


portuguesas – do Nordeste e de São Paulo, da cidade e do campo, dos
falantes cultos e dos iletrados –, “promovidas à igualdade”, como diz ele,
seriam o luxo da liberdade e evitariam preconceitos e intolerâncias em
relação à linguagem e ao “diferente”, em geral.
Mia Couto (2011: 11-24), em um belo texto intitulado “Línguas
que não sabemos que sabíamos”, apresentado em um congresso
internacional de literatura, em Estocolmo, diz coisas fundamentais para
nossa discussão:

60
Diana Luz Pessoa de Barros

Num congresso que celebra o valor da palavra, o tema


de minha intervenção é o modo como critérios hoje
dominantes desvalorizam palavra e pensamento em
nome do lucro fácil e imediato. Falo de razões comerciais
que se fecham a outras culturas, outras línguas, outras
lógicas.[...] O que fez a espécie humana sobreviver não foi
apenas a inteligência, mas nossa capacidade de produzir
diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias
de hoje por um sistema que escolhe apenas razões de
lucro e facilidade de sucesso. Os africanos voltaram a ser
“os outros”, os que vendem pouco e os que compram
ainda menos. Os autores africanos que não escrevem
em inglês (e em especial os que escrevem em língua
portuguesa) moram na periferia da periferia, lá onde a
palavra tem de lutar para não ser silêncio. (p.13) [...] O
sociólogo indiano André Béteille escreveu: “Conhecer
uma língua nos torna humanos, sentir-mo-nos a vontade
em mais que uma língua nos torna civilizados”. Se isto
é verdade, os africanos – secularmente apontados como
os não-civilizados – poderão estar mais disponíveis para
a modernidade do que eles próprios pensam. Grande
parte dos africanos domina mais do que uma língua
africana e, além disso, falam uma língua europeia. Aquilo
que é geralmente tido como problemático pode ser,
afinal, uma potencialidade para o futuro.[...] De qualquer
modo, um futuro civilizado passa por grandes e radicais
mudanças neste mundo que poderia ser mais nosso.[...]
Esse homem do futuro deveria ser, sim, uma espécie de
nação bilíngue.[...] O que advogo é um homem plural,
munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua
que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que
nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que

61
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça


ser asa e viagem. Ao lado de uma língua que nos faça
ser humanidade, deve existir uma outra que nos eleve à
condição de divindade. (p.23 e 24).

O autor, em boa parte na mesma direção de Roland Barthes,


insiste no caráter imprescindível da diversidade e da pluralidade - do
multiculturalismo e do multilinguismo -, como condições da civilização,
da modernidade e do desenvolvimento futuro. Retoma também a
importância de “um homem plural, munido de um idioma plural”,
que sabe línguas que não sabia que sabia, e que, com essa pluralidade
linguística, tal como proposto por Barthes com a trapaça literária da
língua, pode driblar o poder da linguagem e ser, ao mesmo tempo, raiz e
asa, humanidade e divindade.
É fácil perceber a diferença de concepção desses autores da daqueles
que constroem discursos preconceituosos e intolerantes, em que, em
lugar de usar estratégias para trapacear o poder da língua, utilizam
procedimentos para manter e reforçar a dominação, pela linguagem,
do “outro”, do “diferente”. São discursos contrários à diversidade,
à pluralidade, ao multiculturalismo, ao plurilinguismo, à agregação
(Landowski, 2012) das diferenças:

Africanos descendem de um ancestral amaldiçoado


por Noé (Deputado Federal Marco Feliciano, Twitter,
30/03/2011). O caso do continente africano é sui generis:
quase todas as seitas satânicas, de vodu, são oriundas de
lá. Essas doenças, como a Aids, são todas provenientes
da África (Marco Feliciano, UOL Notícias, 31/03/2011).

William Johnson, presidente do American Freedom


Party, listado como grupo de ódio pelo SPLC, defende
a proibição de casamentos entre brancos e negros e

62
Diana Luz Pessoa de Barros

o separatismo, a fim de criar uma “nação branca”.


“Diversidade e multiculturalismo são sinônimos de
genocídio branco. Eu quero que nossas escolas primárias
tenham só crianças loiras, de olhos claros, crescendo e
aprendendo a ser boas para a comunidade. Eu não quero
que nos tornemos o Brasil”, disse Johnson, por telefone,
à Folha. (Folha de S. Paulo, 15/06/2014, A16)

Hoje qualquer suposto preconceito contra cariocas,


nordestinos e baianos deixou de existir, porque virou
Pós Conceito! Bando de fdp que destruíram nosso país
e a economia por migalhas! Desejo do fundo do coração
que sejam tomados pela desnutrição, que seus bebês
nasçam acéfalos, que suas crianças tenham doenças que
os médicos cubanos não consigam tratar, que o Ebola
chegue ao Brasil pelo Nordeste e que mate a todos! Só
outra arca de Noé pra dar jeito! (publicado no Facebook
de Regina Zouki Pimenta, em 27 de outubro de 2014).

Poderíamos comentar que, de novo, “lá vem o Seu Noé, comandando


o batalhão”...

2. Dominação e saber
Se na primeira parte deste artigo, procuramos apontar algumas
formas de construir discursos que driblem o seu poder – a literatura,
o plurilinguismo, a polifonia –, trataremos agora do papel dos estudos
do discurso na produção de conhecimento sobre o poder da linguagem,
como mais um caminho para, pelo saber sobre a dominação, atenuá-
la, aligeirá-la. Os mesmos autores, Barthes, Bakhtin e Mia Couto dão
também algumas pistas para que os estudiosos do discurso cumpram

63
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

esse papel de produzir saberes que contribuam para a aceitação, a


inclusão e a intervenção social.
Barthes (1980), como vimos, propõe como caminho para “ouvir a
língua fora do poder” driblar a dominação e “trapacear” a língua, com
a literatura. Mostra, porém, também outra direção, para, como diz ele,
ao menos “aligeirar” o poder, a dos estudos discursivos, no seu caso,
semiológicos:

Já que este ensino tem por objeto, como tentei sugerir, o


discurso preso à fatalidade de seu poder, o método não
pode realmente ter por objeto senão os meios próprios
para baldar, desprender, ou pelo menos aligeirar esse
poder. (p. 43).

O nosso trabalho como estudiosos do discurso é, portanto, uma


utopia, que não nos preserva da dominação (Barthes, 1980: 25), já que
o discurso está “preso à fatalidade de seu poder”, mas, podemos tornar
essa dominação mais leve. Daí a proposta de Barthes de começar por
examinar, por conhecer o poder da língua e de seus discursos: “A língua
trabalhada pelo poder: tal foi o objeto dessa primeira semiologia.” (p.33).
Bakhtin indica também algumas direções para os estudiosos do
discurso ao definir o texto como objeto das ciências humanas (Barros,
1996: 23-26), ao afirmar que a especificidade das ciências humanas está
no fato de que seu objeto é o texto (ou o discurso) (1992: 31). Para ele,
as ciências humanas se voltam para o homem enquanto produtor de
textos, ou seja, o homem se constrói como objeto de estudos nos ou por
meio dos textos. As ciências humanas distinguem-se, assim, das ciências
exatas e biológicas que examinam o homem “fora do texto”. Por isso
mesmo, o método nas ciências humanas é, para Bakhtin (1986: 131-132),
a “compreensão respondente”, a interpretação, dialógica por definição:
nas ciências exatas e biológicas, procura-se conhecer um “objeto”, nas

64
Diana Luz Pessoa de Barros

ciências humanas, interpretar ou compreender um “sujeito”, produtor de


textos. Daí, para o autor (Bakthin, 1992: 403), as ciências não humanas
se apresentarem como uma forma monológica do conhecimento:

As ciências exatas são uma forma monológica do


conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e
pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele
que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala
(pronuncia-se). Diante dele há a coisa muda. Qualquer
objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser
percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito
como tal não pode ser percebido e estudado a título de
coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo
sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento
que se tem dele só pode ser dialógico.

Cabe, portanto, ao estudioso dos discursos (e dos demais estudos


das humanidades), segundo Bakhtin, não emudecer o homem, dar-lhe
voz.
Além disso, Bakhtin recusou tanto o formalismo, quanto o
ideologismo na análise textual (Todorov, 1981: 37, 58), o primeiro por
cortar as relações do texto com a sociedade, o segundo por ignorar que
o texto tem estrutura própria e por não integrar a realidade social com
a organização linguística. O risco do ideologismo tem sido, em geral,
maior entre os estudiosos de Bakhtin e, para dele escapar, é preciso, com
os meios desenvolvidos pelas diferentes teorias do discurso, buscar as
formas, as estratégias, os procedimentos que fazem de um texto, mesmo
dialogicamente constituído, discursos monofônicos e polifônicos.
Procedimentos diversos expõem ou escondem as variadas perspectivas
do discurso, os diálogos intertextuais ou interdiscursivos. Com o exame
dessas estratégias, outras vozes se farão ouvir nessa busca do estudioso

65
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

do discurso de aligeirar a dominação pela linguagem e de dar voz ao


sujeito das ciências humanas. O caminho, nos escritos de Bakhtin, está
claramente apontado e tem sido percorrido por estudiosos do discurso
de diferentes perspectivas e por muitos daqueles que explícita ou
implicitamente deram seguimento às reflexões do autor. É, portanto,
tarefa dos estudiosos do texto e do discurso o exame dos procedimentos
e estratégias inumeráveis e diversificados de construção de discursos
autoritários e poéticos, de produção de efeitos de monofonia e de
polifonia discursiva. Esse saber contribui para a promoção da igualdade
linguística e social.

Considerações finais
Em estudos sobre os rumos da semiótica no Brasil e na América
do Sul (Barros, 2007, 2009 e 2012) procuramos mostrar que, além de
concorrer para o desenvolvimento teórico e metodológico da disciplina,
uma das preocupações centrais dos semioticistas que desenvolveram
suas pesquisas nessa região foi sempre a de explicar os processos de
significação do homem e da sociedade americanos, construir suas
identidades, apontar seus traços universais e particulares. Com isso, em
todos os países, foram desenvolvidas pesquisas em etnossemiótica, em
sociossemiótica, em comunicação de massa, em política cultural, em
literatura oral. São estudos que, como os demais estudos do texto e do
discurso, se ocupam, em geral, da língua em uso e, portanto, em estreita
relação com a história, a sociedade, a cultura. Resultam daí os grandes
desenvolvimentos que tivemos no exame dos discursos poéticos em
geral, e dos literários em particular, dos discursos da canção, dos discursos
das gramáticas e dicionários, dos discursos didáticos e pedagógicos, dos
discursos da crítica de arte, dos discursos publicitários e das mídias em
geral, dos discursos intolerantes e preconceituosos, dos discursos de
comunicação social e de massa, dos discursos míticos, dos discursos

66
Diana Luz Pessoa de Barros

sobre a memória, dos discursos psicanalíticos, dos discursos políticos,


dos discursos sociais sobre os negros e os índios, dos discursos religiosos,
sobretudos das novas religiões que em nosso país se desenvolveram
enormemente, e assim por diante.
Em trabalhos diversos, apontamos o fato de que os diferentes estudos
do texto e do discurso trouxeram novas posturas e objeto aos estudos da
linguagem a partir da segunda metade do século XX, e de que o fizeram
com fundamentos diferentes, em quadros teóricos diversos. Insistimos,
porém, em que há um ponto de vista comum a tais estudos: eles ocupam
o espaço vazio entre posições bem definidas e separadas pelos estudos
linguísticos anteriores, e tratam assim, ao mesmo tempo, do social e do
individual, da argumentação e da informação, da intersubjetividade e
da subjetividade, da organização do discurso e do dialogismo. Por isso
mesmo, esses estudos ocasionaram mudança de posicionamento nos
estudos da linguagem e atribuíram a eles novos papéis: estabeleceram
diálogos com outras teorias e favoreceram o alargamento do objeto.
Os estudos da linguagem, graças aos do discurso, caminham assim para
a multidisciplinaridade e para o exame de outras linguagens, além da
verbal.
Dessa forma, os estudos do discurso tiveram e têm um papel digno
de nota entre os estudos linguísticos, pois romperam com a tradição
de estabilidade desses estudos e recuperaram a instabilidade própria
da linguagem, e, com isso, estabeleceram ou retomaram diálogos com
outras disciplinas e campos do conhecimento, tais como a retórica, a
teoria e a crítica literária, os estudos de comunicação e de marketing,
a antropologia, a história, a sociologia, e outras áreas e disciplinas.
Estamos prontos, portanto, para o papel que estudiosos como Barthes,
Bakhtin e Mia Couto nos atribuíram de produzir conhecimento sobre
o poder da linguagem, sobre as estratégias discursivas de manutenção
e exacerbação dessa dominação ou de seu mascaramento, em discursos
discriminatórios, preconceituosos, intolerantes, de exclusão e de

67
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

incitação à violência, entre outros, e também sobre os procedimentos


de construção de discursos contrários aos da dominação, ou seja, de
discursos de aceitação e intervenção social. São, nesse caso, os discursos de
agregação, de multilinguismo, de mistura, de mestiçagem, de diversidade
sexual, de pluralidade religiosa, em que os “diferentes” deixarão de ser
vistos como animalizados, antinaturais, anormais, doentes, feios, imorais.
Esses novos discursos, em que as diferenças coexistem e dialogam entre
si, são formas também de resistência à dominação linguística, ao poder
da linguagem.
Os estudiosos do discurso no Brasil, entre os quais estão os
semioticistas, têm contribuído para o conhecimento da cultura e da
sociedade do país e para a construção dos discursos de aceitação e
intervenção social, mas há ainda muito a ser feito. Por que apenas os
historiadores devem falar dos “heróis nacionais” ou os sociólogos, dos
sem-terra? Há outra perspectiva, outro ponto de vista, outro objeto,
portanto, como diria Sausurre, construído pelos estudiosos do discurso
(e pelos semioticistas) no exame dos discursos dos sem-terra ou sobre
eles, do separatismo ou do racismo. E só o estudioso do discurso
pode dar conta de descrever e explicar esse novo objeto (respondente,
sujeito produtor de texto e por ele construído). Nesse quadro, cabe ao
semioticista e ao estudioso do discurso em geral (Barros, 2013):
▪▪ examinar os discursos sociais e culturais do país, em busca de
definições, de identidade, de formas de representação, de sentido
enfim;
▪▪ buscar desenvolvimentos teóricos e metodológicos, que possam
dar respostas aos desafios de uma sociedade multilíngue e
pluricultural, ou seja, de uma sociedade da “mistura”, e não da
“triagem” (Zilberberg, 2007), de uma sociedade mestiça e que
tem a mestiçagem como patrimônio;
▪▪ institucionalizar a semiótica discursiva e outros estudos do
discurso como disciplinas universitárias, o que favorece a

68
Diana Luz Pessoa de Barros

pesquisa, o ensino e a formação muito necessária de estudantes


nessas áreas.

Reiteramos, como última consideração, que são os estudiosos do


discurso que podem mostrar a dominação pela linguagem, produzir
saberes sobre o poder da lingua e dos seus discursos, e ensinar que é
possível trapacear a língua, aligeirar a dominação, fazer ouvir vozes em
conflito e construir discursos de aceitação e de intervenção social.

Referências
BAKTHIN, Mikhail. La Poétique de Dostoïevski. Paris: Seuil, 1970.
______. Le discours dans la vie et dans la poésie. In: TODOROV,
T. Mikhail Bakthin. Le príncipe dialogique. Paris: Seuil, p. 181-216, 1981.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
1986. (original russo de 1929).
______. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. São
Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação.


In: D. L. P. de Barros e J. L. Fiorin (orgs.) Dialogismo, polifonia,
intertextualidade. Em torno de Bakthin. São Paulo: EDUSP, p. 1-10, 1994.
______. Contribuições de Bakthin às teorias do texto e do discurso.
In: C. A. Faraco, C. Tezza e G. de Castro (orgs.) Diálogos com Bakthin.
Curitiba: Editora da UFPR, p. 21-42, 1996.
______. Rumos da Semiótica. Revista Todas as Letras, v. 9, p. 12-23,
2007.
______. Discurso, indivíduo e sociedade: preconceito e intolerância
em relação à linguagem. In: P. Navarro (org.) O discurso nos domínios da
linguagem e da história. São Carlos: Claraluz, p. 71-16, 2008a.

69
Dominação, Trapaça e Conhecimento pela Linguagem

______. Preconceito e intolerância em gramática do português. In:


D. L. P. de Barros e J. L. Fiorin (orgs.) A fabricação dos sentidos – estudos em
homenagem a Izidoro Blikstein. São Paulo: Humanitas, p. 339-363, 2008b.
______. O papel dos estudos do discurso. In: D. da Hora, E. F. Alves
& L. C. Espíndola (orgs.) ABRALIN - 40 anos em cena. João Pessoa:
Editora Universitária, p. 118-154, 2009.
______. A construção discursiva dos discursos intolerantes. In: D.
L. P. de Barros (org.). Preconceito e intolerância. Reflexões linguístico-discursivas.
São Paulo: Editora Mackenzie, p. 255-270, 2011.
______. A semiótica no Brasil e na América do Sul: rumos, papéis e
desvios. RELIN, 20 (1), p. 149-186, 2012.
______. Política e intolerância. In: O. N. Fulaneti e A. M. Bueno
(orgs.). Linguagem e política: princípios teórico-discursivos. São Paulo: Contexto,
p. 71- 92, 2013.

BARROS, D. L. P. de e FIORIN, J. L. (orgs.) Dialogismo, polifonia,


intertextualidade. Em torno de Bakthin. São Paulo: EDUSP, 1994.

FARACO, C. A., TEZZA, C. e CASTRO, G. de (orgs.) Diálogos com


Bakthin. Curitiba: Editora da UFPR, 1996.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980.

COUTO, Mia. Línguas que não sabemos que sabíamos. In: E se


Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, p. 11-24, 2011.

GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido II. São Paulo: Nankin;


EDUSP, 2014. (original francês de 1983, Paris: Seuil).

GREIMAS, A. J. e COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo:


Contexto, 2008 (original francês de 1979).

70
Diana Luz Pessoa de Barros

LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. Ensaios de sociossemiótica.


São Paulo: Perspectiva, 2012. (original francês de 1997, Paris: PUF).

TODOROV, Tzvetan; BAKTHIN, Mikhail. Le príncipe dialogique.


Paris: Seuil, 1981.

Recebido em 12/11/2014 e Aceito em 30/03/2015.

71
DISCOURSES OF INNOVATION AND SOCIETY
EMERGENCIES: REFLECTIONS ON SAFETY
DEVICE ON MICHEL FOUCAULT

DISCURSOS DE INOVAÇÃO E AS URGÊNCIAS


DA SOCIEDADE: REFLEXÕES ACERCA DO
DISPOSITIVO DE SEGURANÇA EM MICHEL
FOUCAULT

Kátia Menezes de SOUSA1


Universidade Federal de Goiás (UFG/FAPEG2)

RESUMO
Este trabalho busca promover uma reflexão acerca das possibilidades de resistência ao
biopoder, noção que é abordada a partir de concepções formuladas por Michel Foucault. Com
base em leituras da obra do filósofo francês, considera-se a população como campo de atuação,
e os dispositivos de segurança como instrumentos. A partir dessas orientações, elabora-se o
problema da tendência à incitação de discursos de inovação, que se articulam como uma reação
aos problemas que a sociedade contemporânea enfrenta.

ABSTRACT
This paper aims to promote a reflection about the resistence possibilities to biopower, a notion
that will be considered from the conception formulated by Michel Foucault. According to
the readings of the French philosopher’s work, the population is understood as action field
and the safety devices as instruments. From these guidelines, the problem of the tendency to
incitement of discourses of innovation is elaborated, articulated as a reaction to the problems
that contemporary society faces.
1
Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.
2
Bolsista de Pós-Doutoramento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 73-91, jul./dez. 2015


Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

PALAVRAS-CHAVE
Discurso, poder e resistência.

KEYWORDS
Discourse; power and resistance.

Diante da proposta de realizarmos um trabalho que contemplasse


o tema “Discurso e intervenção social” e que, também, pudesse se
configurar como resultado parcial de nossos estudos no projeto de
Pós-Doutoramento, intitulado “dispositivos de segurança e inovação na
atualidade: os discursos, os saberes e as relações de poder na produção
de subjetividades”, é que elaboramos este texto com o objetivo de
refletirmos acerca das possibilidades de resistência ao biopoder, que
tem, como campo de atuação, a população e, como instrumentos, os
dispositivos de segurança. Para isso, tomamos, de Michel Foucault,
algumas noções, tais como enunciado, biopoder, dispositivo e segurança,
para a problematização da tendência à incitação de discursos de
inovação, que surgem como forma de enfrentamento ou de contorno
dos problemas que atingem a sociedade na atualidade.
A leitura de Foucault, mais especificamente em A Arqueologia do saber,
redireciona o nosso olhar para o enunciado como unidade de análise da
língua e dos sentidos possibilitados. Nos termos de Deleuze (2005), a
análise arqueológica de Foucault suscita uma problemática que explicita
uma teoria do enunciado como teoria-prática das multiplicidades.
Problematizar o fato de um enunciado poder ser realizado e não um
outro em seu lugar nos remete à análise de outros enunciados, mesmo
pertencendo a outras formações discursivas, e a outros momentos e
espaços, que autorizam a existência daquele enunciado como verdadeiro.
É por meio de enunciados que os indivíduos são objetivados; é,

74
Kátia Menezes de Sousa

também, com a circulação dos enunciados que eles são transformados


em sujeitos, permitindo que os discursos funcionem como técnicas de
subjetivação, atuando nos processos de (des)identificação dos sujeitos e
na constituição das identidades coletivas que incluem esses sujeitos e que
também os excluem.
Foucault recorre à metáfora da rede para demonstrar que o enunciado
é sempre um acontecimento, porque está ligado à articulação de uma
palavra e, ao mesmo tempo, a uma existência remanescente no campo de
uma memória, ou na materialidade de qualquer forma de registro. A ideia
de rede tem configurado os sentidos das ações das novas tecnologias e da
Ciência e Inovação. O enunciado, nos termos de Foucault (1995), é único
como todo acontecimento, porém aberto à repetição, à transformação,
à reativação, por estar ligado tanto às situações que o provocam, quanto
a outros enunciados que o precedem e o seguem. Essa capacidade de
transformação, reativação, de surgir como acontecimento, parece ser o
fundamento que define as práticas de inovação. Portanto, em termos de
reflexão sobre a linguagem, tal fundamento já tinha sido considerado,
mas como uma propriedade do enunciado.
Mesclando discursos de diferentes esferas do saber, a inovação passa
a ser, supostamente, o veículo de transformação de conhecimento em
riqueza e melhoria da qualidade de vida das sociedades contemporâneas.
Como práticas que se instauram nas mais variadas instâncias do
conhecimento, as técnicas de inovação foram institucionalizadas,
recebendo um estatuto de legalidade ao serem definidas e caracterizadas
em legislação própria por meio da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro
de 2004, denominada «Lei da Inovação»3, que reflete a necessidade de
o país contar com dispositivos legais eficientes que contribuam para o
delineamento de um cenário favorável ao desenvolvimento científico,
tecnológico e ao incentivo à inovação. Conforme o Ministério da

3
Lei de Inovação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004
2006/2004/Lei/L10.973.htm>.

75
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

Ciência e Tecnologia (MCT)4, o desafio de se estabelecer no país uma


cultura de inovação está amparado na constatação de que a produção de
conhecimento e a inovação tecnológica passaram a ditar crescentemente
as políticas de desenvolvimento dos países. A lei oficializa, assim, práticas
que já estavam em desenvolvimento, conforme as necessidades de
atendimento aos problemas da sociedade, fazendo com que a inovação,
de resultado alcançado, passe a ser meta inicial, obrigatória, na produção
de conhecimento.
Os enunciados, para Foucault (1995), passam por uma reatualização,
e isso é visível na emergência dos enunciados que identificam e
configuram o caráter de inovação na atualidade. Para definir enunciado,
Foucault recorre a construções como: “a sua capacidade de circulação e
de troca”, para caracterizar o valor que qualquer enunciado carrega; “sua
possibilidade de transformação na administração de seus raros recursos
e de sua pobreza enunciativa”, para mostrar que o enunciado é resultado
de um trabalho de melhoria do produto com o aproveitamento positivo
dos parcos recursos; “um bem”, para concluir que o enunciado é um
objeto de luta, de poder.
Um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados,
e esse campo associado é constituído pelo conjunto das formulações a
que o enunciado se refere, seja para repeti-las, seja para modificá-las
ou adaptá-las, ou se opor a elas, ou para falar de cada uma delas; não
há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros
enunciados (FOUCAULT, 1995). O enunciado se encontra relacionado
com seus sujeitos, seus objetos, seus conceitos. Foucault (1995) esclarece
que o enunciado está ligado a um conjunto de domínios, em que os
objetos podem ou não aparecer, a uma determinada posição que pode
e deve ocupar o indivíduo para ser seu sujeito, a certos esquemas
discursivos que permitem a construção de conceitos, como também
sua transformação ou substituição, que serão formulados por meio de
4
Sobre a Lei de Inovação. Disponível em < http://www.mct.gov.br/index.php/content/
view/8477.html>

76
Kátia Menezes de Sousa

enunciados para que possam ser chamados de seus pelos objetos. Os


enunciados remetem a um meio institucional, às práticas não discursivas,
sem o qual os objetos surgidos nesse lugar não poderiam ser formados,
e nem o sujeito que fala desse lugar.
Pelo que se lê sobre a divulgação de Ciência e Tecnologia, a palavra
que resume a ação fundamental das práticas científicas e de inovação
na atualidade é relação (associação, conexão). Por isso, consideramos
o caráter de novidade do enunciado na noção formulada por Foucault,
ao tratá-lo como unidade do discurso, da análise reflexiva das palavras
e das coisas e como via de possibilidade de existência dos saberes e do
exercício do poder.
O enunciado como multiplicidades práticas garante o exercício da
inovação que aparece como argumento para a divulgação de produtos
que vão desde aqueles voltados para a saúde, passando pela beleza,
longevidade e pelo bem-estar, até aqueles que oferecem o luxo e a
sofisticação. Relativamente à saúde, por exemplo, as clínicas e hospitais
têm oferecido não só o tratamento de doenças, mas diagnósticos mais
precisos, novas tecnologias, comodidade, conforto e até sofisticação,
marcada pela arquitetura do prédio. É o que se lê em um anúncio
publicitário que traz a imagem externa de um hospital e informa: “A
fachada tem linhas dinâmicas. A nova saúde de Pernambuco também”.5
O anúncio mostra que o espaço do hospital incorporou as características
de outros espaços, acompanhando a máxima da inovação.
Assim, ouve-se falar de “tecidos inteligentes” que inovam por
possuírem componentes digitais da eletrônica e da computação
embutidos em sua estrutura. Fazem parte da “tecnologia vestível”,
como é designada em sua instância de enunciação. Como informa o site
Wikipédia6, “o campo da integração entre fibras têxteis e componentes
eletrônicos avançados é por vezes chamado ‘fibertrônica’”. A inovação,
por ter em sua base a relação entre diferentes formações discursivas,
5
Disponível em: http://www.linkpropaganda.com.br/linktrabalhos/hospital-miguel-arraes-2/
6
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tecido_inteligente>

77
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

produz enunciados com uma nova materialidade linguística, recriando


termos para nomear seus novos objetos.
A moda aparece também relacionada ao meio ambiente, à ideia
de sustentabilidade, como pode ser visto em textos que tratam da
“Ecomoda”. A inovação ganha existência na interação entre moda e meio
ambiente pelo fato de colaborar com as “preocupações recorrentes [...]
da ideologia do ‘ecologicamente correto’. A indústria têxtil – um setor
significativo da economia brasileira – aderiu à “onda verde” e, atualmente,
a moda ecológica é responsável por movimentar entre R$ 270 e R$
362 milhões por ano.7” Esse é o motivo nobre, que é explicitado num
primeiro momento e que garante o status de inovação. Mas outro motivo
aparece em segundo plano, que é o relativo ao lucro pelo movimento
significativo da economia. Aqui também a materialidade linguística passa
por um processo de recriação, colocando em cena construções como
ecomoda, onda verde, biojoias, etc.
Seguindo essa linha, podemos tomar conhecimento da existência
de uma academia denominada Fit 4 Christ (em forma para Cristo),
como se pode ler na notícia que circulou em 20088: “Igrejas nos EUA
oferecem cursos de ginástica para salvar corpo e alma”. Conforme os
líderes religiosos entrevistados, “ser um bom cristão e se empanturrar
de hambúrguer e batata frita não é um comportamento harmônico,
devemos cuidar do nosso corpo, que é o templo de Deus, levar uma vida
saudável é um modo de crescer em Cristo e glorificá-lo continuamente”.
Faltaria espaço para demonstrar com exemplos o vasto alcance
empreendido pelas tecnologias de inovação, seja em produtos, processos
ou serviços. Elas se fazem presentes no atendimento aos clientes, na
preparação e realização de viagens turísticas, nos serviços bancários,
por exemplo, com enunciados como: “O Banco investe forte no Brasil
e faz isso investindo em sustentabilidade”. A indústria e o comércio
7
Disponível em: <http://vivapernambuco.com.br/site/index.php/blogs/2-blog-01/2401-
moda-ecologica-estimula-consumo-consciente>
8
Disponível em: < http://estilo.uol.com.br/ultnot/2008/05/27/ult3617u4768.jhtm>.

78
Kátia Menezes de Sousa

automobilístico são um exemplo interessante de investimento em


tecnologias de inovação, pois as empresas tiveram de investir forte
em inovação para garantir a participação no movimento sustentável, o
conforto, o bem-estar, a comodidade, a facilidade e o requinte aos clientes.
A busca pela inovação fez com que os carros fossem especificados como
trajes: básico, de série, acessórios, etc. O carro básico, sem opcionais de
séries, foi chamado de “pelado” em anúncio recente. Uma propaganda
usou como slogan a frase “60 anos de inovação”.
A inovação como meta inicial e não como resultado de ações atende
a uma forma de exercício do poder que vai se configurando a partir
do final do século XVIII, denominado por Foucault como biopoder
por ser exercido sobre o homem-espécie. A busca pelo bem-estar, pela
felicidade, longevidade e segurança faz parte das estratégias de controle
da população, formuladas dentro do biopoder, que, em sua atuação, se
encarrega da vida. É a vida e não a imposição da morte que lhe dá acesso
ao corpo da população, é pela possibilidade de viver mais e melhor
que a população vai se submetendo ao controle do biopoder. Seu
funcionamento visa à vida, mas a morte está sempre pairando os discursos
sobre os cuidados com a vida; é a morte anunciada nas prescrições
de como viver bem e por mais tempo. Trata-se de uma tecnologia de
poder que vai implantar mecanismos com funções diferentes daquelas
dos mecanismos disciplinares, pois trabalha com previsões, estimativas,
estatísticas, medições globais. Em seu exercício, o biopoder produz
paradoxos, conforme Foucault (1999), difíceis de serem contornados,
já que o objeto e o objetivo dessa tecnologia é a vida, os perigos devem
ser eliminados. Os perigos estão na própria população e sua eliminação
está diretamente ligada ao fortalecimento da espécie. A população é o
objeto de atuação do biopoder e seus instrumentos são os dispositivos
de segurança, conforme Foucault (2008).
A noção de dispositivo não se liga a um significado corriqueiro nos
escritos do filósofo, pois se trata de uma construção trabalhada teórica

79
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

e analiticamente para demonstrar que o poder não está localizado em


nenhum ponto específico da estrutura social, mas que há poderes e que
eles funcionam, antes, como uma rede de dispositivos ou de mecanismos
à qual nada ou ninguém escapa. Para o autor (2003), o poder não existe; o
que existe são práticas ou relações de poder, o que significa compreender
que o poder é algo que se exerce, efetua-se e funciona discursivamente.
Ao expor o projeto de seu curso Em defesa da sociedade, Foucault
(1999) explica que sua tentativa é mostrar como os diferentes operadores
de dominação se apoiam uns nos outros, remetem uns aos outros, valem
em sua multiplicidade, determinam os elementos sobre os quais incidem,
fabricam sujeitos, funcionam como dispositivos. Respondendo a uma
questão sobre o que queria dizer com o termo dispositivo, Foucault
(2014) esclarece que o considera como de natureza essencialmente
estratégica, o que pressupõe uma certa manipulação das relações de
força, uma intervenção racional e organizada nestas relações de força,
seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las,
estabilizá-las, utilizá-las. O dispositivo, portanto, estaria inscrito em um
jogo de poder, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem,
mas que igualmente o condicionam. Resumindo, seriam as estratégias de
relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por
eles.
Fazendo comparações entre a sociedade disciplinar, que continuará
fornecendo suas estruturas, e a de segurança, Foucault (2008) vai
mostrar que a disciplina trabalha num espaço vazio, artificial, que vai
ser inteiramente construído, e a segurança vai trabalhar com algo já
dado na disposição do espaço, maximizando os elementos positivos e
minimizando o que é risco e inconveniente. A segurança vai trabalhar
com probabilidades, procurando estruturar a polifuncionalidade das
cidades, considerando um futuro, o que pode vir acontecer. Assim, ela
vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos possíveis,
mas que devem ser regularizados dentro de um contexto multivalente e

80
Kátia Menezes de Sousa

transformável. Conforme Foucault (2008), vinculados ao problema da


segurança está uma técnica e um espaço próprio que pressupõe uma
série de acontecimentos possíveis. A ideia de meio, que diz respeito
à distância de um corpo a outro, passa a significar o suporte e o
elemento de circulação de uma ação. O meio aparece como um campo
de intervenção em que, em vez de atingir os indivíduos como uma
multiplicidade de organismos, de corpos capazes de desempenhos, vai
atingir, precisamente, a população, uma multiplicidade de indivíduos que
são e que só existem biologicamente ligados à materialidade dentro da
qual existem.
A reflexão acerca do funcionamento dos dispositivos de segurança na
atualidade brasileira pode ser tecida, por exemplo, com base em pesquisa
realizada pelo Datafolha em 2012, publicada na Folha de São Paulo por
meio de uma matéria especial sob o título “DNA Paulistano 2012”9.
Já no título da matéria, a referência à identidade dos paulistanos como
DNA remete aos sentidos de uma constituição biológica do indivíduo.
O DNA é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções
genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos
os seres vivos, armazenando informações necessárias e regulando seu
uso. Como DNA, a população de São Paulo aparece como uma massa
homogênea de seres vivos. A manchete permite perceber que a população
cobra por mais segurança em diferentes domínios: “Levantamento do
Datafolha mostra que aumentou o número de moradores da classe B
e com formação superior na capital paulista; insegurança dispara tanto
entre pobres quanto entre ricos”. A matéria traz números sobre vários
itens que compõem o dispositivo de segurança de uma cidade (crimes,
higiene, drogas, saúde, alimentação, trânsito, etc.). Para exemplificar,
tomamos os dados da pesquisa sobre higiene:

9
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/dnapaulistano/>. Acesso em
29/05/2013.

81
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

Com 20% do total de respostas, “limpeza, coleta de lixo e sujeira na cidade”


apareceram como o item campeão de reclamações, na frente de segurança pública
(12%) e buracos de rua (11%).
Segundo o mecânico F. S., 29, a “maldição do centro é que tem o lixo mais rico
da cidade”. Isso atrai usuários de crack, “recicladores de mão cheia”.
“Eles passam os dias abrindo sacos de lixo para garimpar dentro deles alguma
coisa de valor. E vão deixando um rastro de detritos”, protesta C. N., 67, encanador.
Segundo ele, a situação já era ruim, mas piorou nos últimos tempos, com as
intervenções da prefeitura e do Governo do Estado na região.

Num primeiro momento, a higiene aparece como um elemento


isolado da segurança pública, configurando-se como problema maior
quanto à ordem urbana. As entrevistas mostram a existência de uma
relação entre a falta de limpeza e o consumo de drogas, que, no Brasil,
é um problema de polícia. A fala de um dos entrevistados denuncia
também a contradição entre o lixo rico e a sujeira da cidade, ou seja,
quanto melhor e mais variado o lixo, maior é a possibilidade de sujeira
e de delinquentes. Os depoimentos apontam para a limpeza da cidade,
mas não de seu lixo, que não pode deixar de existir, que é “rico”, e sim
dos indivíduos que burlam as regras, não só da limpeza urbana, mas
de saúde e de integridade moral e civil, ou seja, dos indivíduos que não
participam da população. Esses indivíduos constituem o grupo de risco,
nos termos de Foucault (2008), o indicativo de perigo iminente.
Outro fato que chama a atenção é a intervenção do Estado10 ter
contribuído para a piora da situação do lugar. A intervenção, ação que
integra o dispositivo, não garantiu a segurança do local. Nesse sentido,
Foucault (2014) esclarece que o dispositivo engloba um duplo processo:
por um lado, processo de sobredeterminação funcional, pois cada
efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de
ressonância ou de contradição com os outros, e exige um reajustamento
10
Trata-se do projeto de revitalização do entorno da estação da Luz que incluiu a derrubada do
Shopping Luz [especializado em confecções populares].

82
Kátia Menezes de Sousa

dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado,


processo de preenchimento estratégico perpétuo.

Considerando que dispositivo seja um termo técnico essencial do


pensamento de Foucault, Agamben (2009) explica que não se trata de
um termo particular, que se refira somente a esta ou àquela tecnologia do
poder, a esta ou àquela medida de segurança, mas à rede que se estabelece
entre esses elementos. O autor ainda acrescenta que seria possível definir
a fase atual da consolidação capitalista como uma gigantesca acumulação
e proliferação dos dispositivos, pois não há um só instante na vida dos
indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum
dispositivo. E lança uma pergunta (de que modo podemos enfrentar essa
situação e qual estratégia usar?), para em seguida respondê-la: “Não se
trata simplesmente de destruí-los, nem, como sugerem alguns ingênuos,
de usá-los de modo justo” (AGAMBEN, 2009, 42), pois, na raiz de
cada dispositivo, está um desejo humano de felicidade, e a captura e a
subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência
específica do dispositivo. Os dispositivos de segurança são mecanismos
heterogêneos que trabalham no nível dos acontecimentos por meio
das contradições construídas como garantia de sua manutenção, que
prevê mudanças, adaptações e reaproveitamentos. Os mecanismos
dos dispositivos de segurança controlam, vigiam, invadem, mas são
desejados, reivindicados e conquistados como forma de garantia de uma
vida mais tranquila e feliz.
Agamben (2009, p. 35), ainda, sintetiza a noção, demonstrando que
o dispositivo diz respeito “a um conjunto de práticas e mecanismos
(ao mesmo tempo linguísticos e não-linguísticos, jurídicos, técnicos e
militares) que têm o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter
um efeito mais ou menos imediato”. Como dispositivo de segurança, os
efeitos desencadeados por suas técnicas escapam a seu próprio controle
que a tudo e a todos quer controlar, e as contradições tornam-se visíveis,

83
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

exigindo que outros discursos sejam mobilizados para a solução do


efeito não esperado.
No texto “Por uma teoria do poder destituinte”, proferido em
uma palestra em Atenas, em novembro de 2013, Agamben sugere a
hipótese de que o paradigma governamental na Europa de hoje não
é democrático e nem político. A noção de política foi substituída pelo
conceito de segurança, e lembra a fórmula “por razões de segurança”
que opera em todos os domínios da sociedade, para defender a ideia
de que vivemos num estado de exceção, já que as razões de segurança
são hoje a tecnologia permanente de governo. Tal tecnologia ganha
força, principalmente, com a reação política aos atentados ao World
Trade Center em setembro de 2011, que, conforme Thomas Lemke
(2014), deixa claro que o arsenal legal não é suficiente para proteger a
população contra os perigos. É preciso suspender os direitos básicos
em nome da garantia geral de segurança. Assim, o estado de exceção,
como diagnosticado por Agamben, está se tornando, nas democracias
ocidentais, o sistema de governo normal.
O controle surge de todos os lados e impõe o autocontrole,
reconfigurando as funções da vigilância, que não é mais uma forma de
punir, mas de precaver dos perigos da cidade. As câmeras ocupam todos
os espaços urbanos na atualidade e funcionam como instrumento do
dispositivo de segurança construindo a sensação de estar fora do risco.
Mesmo que, para alguns ou para algumas instituições, elas se constituam
como invasoras da privacidade, a tendência é a de que, diante de qualquer
perigo, as pessoas se convençam da sua utilidade. Acabamos, assim,
por estender para os espaços públicos as tecnologias antes restritas aos
presídios.
A sensação de insegurança alimenta o medo, mas o medo garante
o funcionamento dos dispositivos de segurança. É pelo medo que eles
asseguram sua existência. O medo de ser vítima de crimes é o que mais
ocupa os espaços das mídias por meio das notícias que apontam para uma

84
Kátia Menezes de Sousa

violência generalizada na sociedade. Além de funcionar pelo medo, com


exemplos, estimativas, prognósticos e estatísticas, o dispositivo, com base
nos mesmos dados, oferece as formas de segurança, os aconselhamentos
para a conquista do bem-estar, da saúde e da tranquilidade. Ao mesmo
tempo em que se apresenta como promessa de felicidade, instaura
barreiras que imobilizam pelo medo.
Nesse sentido, o medo ordena também o lucro, estimulando o
consumo e, ao mesmo tempo freando-o. Tenta inibir, por exemplo, o
consumo de certos alimentos, mas, pela construção da insegurança,
incentiva o consumo de produtos de vigilância e blindagem, e para
o isolamento. É o caso das barreiras físicas construídas ao redor das
residências, escolas, fábricas, etc., que impõem o isolamento nas cidades.
Isolamento que se tornou produto de consumo para obtenção da
segurança. Para seu consumo, um pacote de outros produtos é exigido:
cercas, muros, câmeras de vigilância, alarmes, guardas armados, etc.
Construtoras e imobiliárias fazem um uso produtivo do medo para
vender segurança em seus empreendimentos. Esse é um item obrigatório
nos lançamentos imobiliários que são divulgados por meio de diferentes
suportes midiáticos. Contudo, o paradoxo, como já apontado por
Foucault (2008), é constitutivo dos dispositivos, e enunciados são
possibilitados pela rede discursiva que constrói o objeto segurança
na atualidade. De acordo com Thomas Lemke (2014), a visão atual
de autoempreendimento promete opções e oportunidades múltiplas
para consumir, mas exige o cálculo e a estimativa de riscos constantes,
estabelecendo, assim, um medo permanente de fracasso. O medo é um
instrumento para cultivar um senso de suscetibilidade e vulnerabilidade.
No contexto do governo neoliberal, sustenta Lemke (2014, p. 118),
o medo é a base e o motivo para constituição do sujeito responsável,
confiável e racional, que é distinto de um bárbaro, e “divide a sociedade
em grupos homogêneos, grupos sociais, grupos étnicos, religiosos ou
econômicos de iguais que são governados pela pressuposição de não-
periculosidade”.

85
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

A trama discursiva dessas estratégias une pontos que produzem tanto


a expectativa de uma vida segura quanto o medo dos acontecimentos
futuros, e a mídia, em suas variadas formas, atua diretamente na
produção desse paradoxo. O medo conduz a constantes buscas por
precauções contra os perigos já detectados pelos saberes, tais como “o
fumo, a obesidade, o fast food, o sexo sem proteção ou a exposição aos
raios solares” (BAUMAN, 2009, p. 53-54), e garante o funcionamento
dos dispositivos de segurança. A segurança das pessoas torna-se, dessa
forma, o argumento determinante para qualquer estratégia de marketing,
decisivo para os projetos políticos e campanhas eleitorais, fundamental
na guerra pelos índices de audiência dos meios de comunicação de massa.
A segurança procura trabalhar na realidade, fazendo os elementos da
realidade atuarem uns em relação aos outros, através de uma série de
análises e de disposições específicas.
No Brasil, assistimos, principalmente, desde junho de 2013, a
manifestações populares batendo de frente com a violência do Estado,
conforme Edson Teles (2014), autorizada pela democracia e legitimada
por parcelas conservadoras da sociedade. O Estado trata esta ação
como questão de segurança pública, dentro da doutrina do inimigo
(vândalo, baderneiro, falso manifestante, o desordeiro) e os movimentos
tratam de ocupar e expandir o espaço público. Na lógica do Estado, as
estatísticas formam um padrão para a tomada de decisão e faz crescer
em importância a ideia do risco e das políticas públicas do possível.
A estratégia é diminuir os riscos, mas não se trata de acabar com as
desigualdades e sim de encontrar a estabilidade necessária, fazendo com
que a população se engaje voluntariamente.
Contudo, paradoxalmente, esse apelo constante à população
acaba autorizando práticas, também, de exceção frente aos riscos e aos
perigos do momento, fazendo com que os ideais de direita, silenciados
pelo Estado Democrático de Direito que nasce com o fim da ditadura
militar com a promessa de desfazer as injustiças do passado, se insurjam

86
Kátia Menezes de Sousa

como forma de resistência às exigências da democracia e à normatização


de práticas sociais transformadas em leis. O Estado de Direito, com
explica Teles (2014, p. 186), se organiza “justamente sobre a normatização
das práticas sociais e, deste modo, instituem direitos, as leis e regulam
as sociabilidades por meio do ordenamento jurídico”. Há um excesso
do biopoder, conforme Foucault (1999), e um excesso de leis. François
Ewald (1997, p. 206), escrevendo sobre “Foucault e a atualidade”,
formula: “Eu imagino que Foucault teria se interessado pelos Estados
Unidos do politicamente correto”. Politicamente correto, que defende os
direitos humanos e luta contra a discriminação das minorias, utilizando,
muitas vezes, as mesmas técnicas de policiamento e censura sobre a
língua, de filtragem das palavras já utilizadas por governos autoritários.
Teles (2014) fala de uma terapia social, opção legitimada como política
de Estado com as democracias contemporâneas, por meio do consenso
fabricado pelo e em torno do discurso dos direitos humanos, que opera
a construção de um léxico, no qual antigos termos são ressignificados
diante de novas teorias ou ideias, e coloca a democracia como o regime
da eficiência, da justiça, da proteção à vida, capaz de desfazer as
injustiças do passado. Ainda, conforme Teles (2014, p. 184), “é a marca
da submissão do político ao ordenamento, justificada pela ideia de que
a regra é preferível ao autoritário, pois possibilita a liberdade civil”, “a
felicidade dos homens no mesmo espaço onde se imagina sua submissão
às regras”. Os Direitos Humanos, que se transformam, no século XX
em discurso e ação de resistência contra a opressão, paradoxalmente,
se estendem dos movimentos sociais para ocupar novos lugares, nas
convenções, nos eventos em que reúnem especialistas, nas políticas
públicas, tendo os seus discursos utilizados, também, para legitimar
violações de direitos por parte dos governos democráticos.
O apelo constante à população sobre os riscos e perigos das
manifestações de ruas, a violência urbana, de um modo geral, produz
também um desejo de retorno à ordem militar, aos valores morais e

87
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

cristãos, ao isolamento e punição daquele que é tido como diferente,


e abre possibilidades para que entre em cena uma nova vítima, a elite
de direita, que como “cidadão de bem”, quer preservar sua família,
sua propriedade, sua circulação dentro da moral e dos bons costumes
antigos, que, na concepção dos Direitos Humanos, já estavam sendo
superados. Como instauramos uma democracia em que a vítima é
impedida de ser agente de seu problema, e justamente por isso é vítima,
pois deve ser representada, a classe de maior poder aquisitivo, diante
da construção dos discursos da insegurança incontornável, se coloca
no lugar de vítima, lutando também por seus valores higienistas, que
só estavam adormecidos, mas esperando o primeiro sinal de falha das
práticas sociais regulamentadas pelo estado de direitos humanos para
virem à tona justificados pela emergência do momento. Durante este
ano temos assistido a diversas manifestações que explicitam o caráter de
intransigência da direita no Brasil em relação a vários pontos julgados
como solucionados em relação à religião, à homossexualidade, ao papel
da mulher, à mistura de indivíduos de diferentes classes, à presença
de pobres em locais tidos como exclusivos da elite. Na Europa pós-
crise, também, o Estado de segurança, com sua vocação em normatizar,
desencadeia o retorno às formas autoritárias de solução para inseguranças
da contemporaneidade. Em notícia recente podemos ler em um site de
notícia: “As eleições para o parlamento europeu começaram hoje. [...]
A preocupação é com a extrema-direita que está crescendo muito por
lá e, nessa onda, vem junto o aumento da intolerância, a rejeição aos
imigrantes, o preconceito religioso, o racismo. A eleição acontece num
momento em que a União Europeia é questionada e vive uma crise de
identidade”11.
Essas considerações constituem uma tentativa de problematização
da atualidade que não se fecha com este breve texto, mas que se configura
11
Disponível em <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/05/comecam-
eleicoes-para-o-parlamento-europeu.html>.

88
Kátia Menezes de Sousa

como possibilidade de integrar as reflexões sobre o excesso de leis para


regulamentar as demandas sociais, que colocam a democracia como o
regime que submete a prática política às técnicas de ordenamento e que
adota a regra para não parecer autoritário. A urgência em responder aos
problemas da população, técnica do dispositivo de segurança, acaba por
colocar em funcionamento o dispositivo de inovação, que entra em cena
para a busca de solução de problemas como a violência, a uso de drogas,
epidemias, etc. e para a conquista de melhores resultados na qualidade
e majoração da vida. Os dispositivos de poder, dessa forma, cumprem
sutilmente seus objetivos, controlando e ditando os modos de fazer,
mas aparecem como mecanismos de apoio, de garantia de saúde, bem-
estar e segurança, justificando as ações filantrópicas e sociais, muitas
vezes invasivas, mas capazes de construir a sensação de segurança e de
oferecer dados, números, estatísticas, mostrando outras urgências para o
aprimoramento dos dispositivos. As necessidades justificam a existência
dos dispositivos de poder que devem ser constantemente inovados.
Dessa forma, o discurso de inovação é ferramenta fundamental
nas sociedades de segurança, operando nas tecnologias de informação,
vigilância e exterminação dos perigos, nos discursos dos direitos
humanos e das transformações sociais, mas, também, ampliando a
eficiência, precisão e o alcance das práticas autoritárias já conhecidas,
mas que começam a emergir renovadas. De acordo com Lemke (2014),
podemos detectar uma espécie de remoralização dos discursos políticos
e sociais, que definiram, no passado, os comportamentos perigosos e
de riscos, como forma de justificar as intervenções políticas, sociais e
militares que fazem a distinção entre o bom e o mau, entre o amigo e o
inimigo. A obsessão por controle, produtividade e lucro constrói uma
democracia de efeito moral que pode até atenuar o sofrimento social,
mas anula a possibilidade de reflexão e crítica acerca das possibilidades
de estar no mundo e de construção de subjetividades que permitam
também a desidentificação.

89
Discursos de Inovação e as Urgências da Sociedade: Reflexões Acerca do Dispositivo de
Segurança em Michel Foucault

Referências
AGAMBEN, G. Por uma teoria do poder destituinte. Atenas, Instituto
Nicos Poulantzas e Juventude do SYRIZA, 16.11.2013. Entrevista
Pública. Disponível em http://5dias.wordpress.com/2014/02/11/
por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/. Acesso em
01.03.2014.
______. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Chapecó: Argos, p. 25-51, 2009.

BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2009.

BRASIL. Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004/2006/2004/Lei/
L10.973.htm>. Acesso em: 04.04.2013.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.

EWALD, F. Foucault et l’actualité. In: Dominique, F. et al. Au risque


de Foucault. Paris: Centre Pompidou, 1997.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1995.
______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
______. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
______. O jogo de Michel Foucault. In: MOTTA, M. B. da (org.)
Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Ditos e Escritos IX.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

90
Kátia Menezes de Sousa

LEMKE, T. Os riscos da segurança: liberalismo, biopolítica e medo. In:


VACCARO, S. e AVELINO, N. (org.). Governamentalidade/Segurança.
São Paulo: Intermeios; Brasília: Capes, 2014.

TELES, E. Democracia de efeito moral. Movimentos sociais e


governabilidades em conflito. In: VACCARO, S. e AVELINO, N. (org.).
Governamentalidade/Segurança. São Paulo: Intermeios; Brasília: Capes,
2014.

Recebido em 30/11/2014 e Aceito em 11/03/2015.

91
ARTIGOS

3. DISCURSO E NOVAS MATERIALIDADES


LIFE OF NARRATIVE AS MATERYALITE
DISCURSIVE

A NARRATIVA DE VIDA COMO MATERIALIDADE


DISCURSIVA

Ida Lucia MACHADO


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – (CNPq)

RESUMO
Como nova materialidade discursiva propomos as narrativas de vida que podem ser estudadas
a partir de certos conceitos da análise do discurso. Neste artigo explicamos o porquê de nossa
preferência pelo sintagma narrativa de vida no lugar de outras terminologias, tais como
“biografias ou autobiografias”. Entre outras particularidades, acreditamos que a narrativa
de vida aparece em diferentes situações e gêneros. Assim, mostraremos sua presença no gênero
prefácio, abordando um curioso texto que autodenega seu gênero e onde o sujeito-comunicante
(autor) ao desvelar/esconder seu “eu”, graças a seu modo lúdico de escrever, deixa transparecer
fagulhas ou lembranças de sua vida longe da fama que seu trabalho lhe trouxe. De modo
panorâmico, avaliaremos a situação histórico-conceitual desse sujeito-prefaciador e os meios
estratégicos e argumentativos através dos quais ele atua em seu texto, tentando sempre se
equilibrar ou se ajustar face ao “outro”, seu leitor, para obter determinados fins.

ABSTRACT
We propose life narratives as a new discursive materiality that can be studied from the
perspective of certain concepts of discourse analysis. In this article, we explain our preference
for the syntagm life narrative instead of other terminology such as “biographical” or
“autobiographical studies”. Among other unique features, we believe that the life narrative

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 95-108, jul./dez. 2015


A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

appears in different situations and genres. We therefore show its presence in the preface genre,
addressing a curious text that denies its gender and where the subject-communicator (author),
in revealing/hiding his “self,” thanks to his lucid way of writing, reveals sparks or memories
of his life far removed from the fame that his work has brought him. In a panoramic overview,
we evaluate the historical and conceptual situation of the subject-prefacer and the strategic
and argumentative methods through which he acts in his text, always trying to balance or
adapt himself in relation to the “other,” his reader, in order to accomplish certain objectives.

PALAVRAS-CHAVE
Análise do Discurso. Narrativas de vida. Prefácio. Estratégias comunicativas.

KEYWORDS
Discourse analysis, Life narratives, Preface, Communicative strategies

Introdução
A narrativa de vida pode ser considerada como uma das novas
materialidades discursivas que fizeram sua aparição nas últimas duas décadas
no âmbito dos estudos discursivos1 e por ele foram bem acolhidas.
Esse campo de pesquisas chegou até nós de modo quase que
inesperado, após a leitura do livro Storytelling, de Christian Salmon (2007),
no qual buscávamos informações sobre o discurso político em geral. No
entanto – como seu título bem o mostra – este livro propõe sobretudo,
uma interessante e inovadora reflexão sobre os fenômenos e alcances
estratégicos da narrativa.
Antes de Salmon, os conceitos de narratividade de Genette (1972,
1983) por nós estudados, bem como o modo de organização narrativo do
discurso, de Charaudeau (1992) já tinham feito seu caminho e nunca nos
abandonaram.
1
Este artigo é fruto de uma comunicação apresentada em uma mesa redonda intitulada
“Discurso e novas materialidades” da qual participamos, no V Colóquio da ALED,
realizado na UFSCAR/SP, de 29 a 31 de maio de 2014.

96
Ida Lucia Machado

Dessa forma, os três supracitados autores, cada um a sua maneira,


conduziram-nos à abordagem dessa nova materialidade discursiva. As
narrativas contam histórias, mas fazem mais que isso: elas detêm uma
maneira de persuasão poderosa e que pode ser mais forte que a de muitas
argumentações lógicas. O contador de histórias tem uma visada narrativa
destinada ao seu receptor, visada esta que é sempre ou quase sempre
impregnada de mistério, de encantamentos ou mesmo de sortilégios.
No domínio da análise do discurso sabe-se que nenhum ato de
linguagem é aleatório e todos contêm um fim comunicativo preciso. No
caso das narrativas, suas visadas buscam também influenciar os sujeitos-
receptores, sua maneira de pensar ou de aceitar determinado relato;
assim agindo, elas vão levar tais sujeitos – leitores ou ouvintes - um
pouco hipnotizados, a aceitar as estratégias que elas contêm. Narrar é
pois uma arte.
O sintagma narrativa de vida que nos chegou através Bertaux
(1997) veio preencher nossas expectativas como linguista discursiva e
pesquisadora, por dois motivos: em primeiro lugar, tal sintagma está
ligado a uma teoria específica, cujas origens diferem das que guiam os
trabalhos daqueles que se dedicam aos estudos de autobiografias, na
esteira de Lejeune (1971), por exemplo. Melhor explicando: o récit de
vie ou relato de vida ou ainda história ou narrativa de vida, tem por base a
sociologia e a antropologia. Ora, a teoria de análise do discurso que nos
interessa, a Semiolinguística de Patrick Charaudeau (1983, 1992) mesmo
fortemente fundamentada na linguística discursiva buscou também,
para sua complementação, conceitos oriundos da psicologia social, da
sociologia e da antropologia. Logo, o encontro entre narrativa de vida e
Semiolinguística nos parece natural, se levarmos em conta os pontos em
comum presentes nas origens das duas teorias.
Ao assumir o supracitado sintagma – mesmo quando ilustramos
nossa pesquisa, vista como um todo, com excertos de autobiografias
ou biografias – estamos querendo demarcar um território que não
coincida forçosamente com o de pesquisadores que só buscam dados

97
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

concretos referentes a datas e acontecimentos na vida daquele-que-se-conta.


É claro, não descartamos o fator tempo e espaço em nossos estudos; apenas
queremos dar uma maior ênfase aos atos de linguagem construídos
por certos narradores que têm como objetivo primeiro o de alinhavar
diferentes partes de suas vidas em uma tentativa de formar um todo
mais ou mentos coerente, que possa ser transmitido a alguém; e, como
objetivo segundo, todo um leque de opções, conforme os diferentes
casos: narrar sua vida para realizar um balanço dos acontecimentos de
uma existência e verificar se ela valeu ou não a pena; justificar alguma ação
cometida que ainda cause remorsos no sujeito-comunicante ou autor da
narrativa; desabafar; dar um exemplo de conduta para a posteridade,
etc. Ou então, pura e simplesmente: narrar pelo prazer e para exercer
essa bela arte de contar histórias e legar ao outro –ouvinte ou leitor – a
habilidade de construir histórias.
Curiosamente, o ato de falar-de-si pode surgir quando menos se
espera e onde menos se espera, como veremos ao longo do artigo.

1. Um campo original para a atividade de falar-de-si-


mesmo
De modo geral, a narrativa de vida ocorre quando um entrevistador
solicita a uma pessoa que lhe conte sua vida ou parte desta ou exponha seus
sentimentos pessoais sobre um determinado assunto, por ela vivenciado.
Geralmente este trabalho é assumido por historiadores, antropólogos,
sociólogos e psicólogos sociais. Os relatos constituem uma base para
pesquisas que revelam ou buscam respostas para diferentes dados: como
um ser ou um grupo de seres se habitua a um novo país, quais seus
comportamentos em determinadas ocasiões, ou então, como no caso
de Paraná (2008) com seu livro Lula o filho do Brasil, como foi a infância
de um brasileiro pobre, que venceu na vida e se tornou um político que
ocupou o cargo de Presidente do país.
Mas, a narrativa de vida pode surgir em momentos inesperados: com

98
Ida Lucia Machado

o auxílio de alguma imaginação, certos sujeitos-falantes têm habilidade


para transformar o cotidiano e romanceá-lo ao transmitir aos seus
eventuais ouvintes pequenos fatos que lhes ocorreram em um dia de
vida; assim, alguns conseguem transformar uma simples ida ao centro
da cidade, em um dia de rush, em uma quase epopeia moderno-urbana.
Enunciados que misturam efeitos de ficção e de realidade
(CHARAUDEAU, 1992, p. 695-696) aparecem também em escritos
cujo objetivo seria a priori outro: o de transmitir uma pesquisa, um
conhecimento. Tomemos como exemplo o caso da Introdução de uma
tese, em que o autor conta parte de sua vida - fora da academia- para
poder justificar o porquê da análise do discurso em sua pesquisa. Após
discorrer sobre seu percurso nos cursos de graduação e mestrado o
pesquisador em pauta revela o seguinte:

[...] minha prática profissional do fazer cênico ficcional


seguia concomitante à pesquisa acadêmica que iniciava.
Uma influenciando a outra: a pesquisa nascendo de
minha experiência prática, se caracterizando pela busca
de um percurso teórico-prático, em que o objeto de
estudo seria a prática artística baseada na investigação
dos aspectos que estabelecem a comunicação com o
espectador. (CORDEIRO, 2012, p. 12)

Ora, quem não souber nada sobre a vida de Cordeiro, verá que se
trata de alguém cujo percurso de vida se liga ao teatro, ao desempenho
cênico: o sujeito-narrador que escreve o segmento acima desvela ou
revela, de modo sutil, o fato de ser um artista que busca nos estudos
discursivos, fundamentos teóricos para a realização de uma pesquisa
envolvendo sua profissão. Nesta citação, não há a exposição tradicional
ou esperada de uma narrativa de vida, mas, apenas alguns fragmentos
textuais onde o autor revela seu duplo ethos: o de ator e o de analista do
discurso. O leitor é assim informado sobre a identidade desse ser que

99
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

escreve e que busca entender/justificar suas escolhas.


Assim vemos a narrativa de vida: como algo que pode surgir em
momentos inesperados. E aqui voltamos a falar de sua aparição em um
prefácio2 escrito por um literato para um livro contendo trechos literários.
Estamos nos referindo ao escritor argentino Jorge Luis Borges e ao seu
curto prefácio em um curioso livro intitulado - em sua tradução para o
francês - Livre des préfaces3 (1980). Além da preocupação com a narrativa
de si entremeada à análise do discurso, partimos assim da ideia que, ao
se auto-prefaciar ou ao prefaciar um outro, certos autores deixam pistas
que nos remetem às suas narrativas de vida e ao seu trabalho acadêmico
ou intelectual.
A capa e contracapa do pequeno livro supracitado de Borges são
um convite a todos os analistas do discurso que se interessam pela
narrativa de vida. Tentamos assim averiguar se a linguagem utilizada
nesta publicação continha sentimentos e ações do eu-escritor-prefaciador
que, talvez, tenham se misturado a outros vindos de seu eu-íntimo. É o
que veremos no próximo segmento.

2. O prefácio do Livre des Préfaces


Na perspectiva da análise do discurso, observemos, o estilo desse
hábil e astucioso eu-narrador que Borges constrói. Eis sua atuação neste
primeiro fragmento do Prefácio do Livro dos prefácios:

(i) Creio que é inútil afirmar que este “Prefácio dos


Prefácios” não é um superlativo vindo do hebreu como
o Cântico dos Cânticos, A Noite das Noites ou o Rei dos Reis.
Trata-se simplesmente de uma página de introdução a
2
Como fizemos no artigo “O Prefácio visto como uma prática discursiva onde diferentes vidas
e obras se entrecruzam”, que no momento em que escrevemos se encontra no prelo, onde
analisamos um prefácio concebido pelo linguista Pottier em 1980.
3
Conservamos o título francês já que trabalhamos com a versão francesa do livro. Porém, todos
os excertos aqui analisados e que foram numerados de (i) a (vi) serão por nós traduzidos.

100
Ida Lucia Machado

um conjunto de prefácios escolhidos pelo editor Torres


Agüero et cujas datas vão de 1923 a 1974. Uma espécie
de prefácio elevado ao quadrado, como diríamos.
(BORGES, Préface des Préfaces in: Livre de préfaces, Paris:
Gallimard, 1980, p. 11.)

O eu do sujeito-prefaciador convoca um outro eu para zombar do gênero


em questão. É quase como se o sujeito-comunicante dissesse : não
gosto de prefácios, são sempre meio ridículos e este meu também, a não ser que eu
escape dessa imposição genérica...pela ironia. E é o que Borges faz. Ou seja:
o prefácio que começa por se nomear, com certa pompa, Prefácio dos
prefácios o que poderia apontar para uma modalidade apreciativa-positiva
(MACHADO, 2001, p.70-71) é na verdade, fruto de uma zombaria, de
uma autoderrisão...O eu-prefaciador brinca com as palavras através da
ironia, que aparece, no referido título, representada pela antífrase.
A ironia é polifônica, pois reúne duas vozes, uma que é a do
enunciador que ironiza e outra que é a do enunciador que sustenta o
texto (DUCROT, 1984, p. 171-233). Assim, o prefácio em tela leva a
marca da auto denegação: ele diz mas não diz, ele é sério mas zomba de si.
Notamos que (i) não escapa aos efeitos ficcionais dos quais fala
Charaudeau (1992, p.695-696). O leitor é engajado a ler um prefácio
que não seria um prefácio, um prefácio que se autodenega e que anuncia
textos que não terão a suprema validade de outros: os grandiosos textos
evocados. Porém, nova modalidade apreciativa de caráter irônico
atravessa o enunciado como um todo: o axiológico grandiosos é fruto de
uma construção hiperbólica que pode ser atribuída também à voz do eu
ou enunciador-irônico, que sorrateiramente, se introduz no parágrafo.
Por meio desse estilo lúdico de conceber um prefácio, o eu-
prefaciador tenta estabelecer um contrato com seu receptor, para
embarcá-lo em um labirinto ao afirmar que seu prefácio “[...] é mais uma
página de introdução a uma série de prefácios que nem foram por mim
escolhidos, mas sim por meu editor”, editor cujo nome é citado a seguir,

101
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

como uma referência real, que pode ser comprovada. (i) como primeiro
segmento do prefácio examinado, consegue assim reunir os já falados
efeitos de real e de ficção.
Seguindo o teórico Gasparini (2008, p. 235) podemos afirmar que
a ficção em si oferece ao autor um grande espaço literário de liberdade
e criação, enquanto que o relato de vida, puro e simples, deveria a priori
travar o autor, que se engaja em um contrato onde deve dizer algo mais
ou menos real. Mas a linguagem, na maior parte dos casos, quando
colocada em prática, sempre coloca em evidência essa curiosa mistura
de efeitos: efeitos que levam ao factual, efeitos que levam a um mundo
criado pela imaginação.
Ora, um prefácio, é bem verdade, não é um relato de vida no sentido
amplo, mas, diante desse auto-prefácio que não é prefácio ousaremos um
pouco e iremos considerá-lo como uma quase narrativa de vida, ou em
outras palavras, uma narrativa que deixa transparecer alguns traços da
essência profunda da escritura borgiana.
O narrador-borgiano parece querer proteger sua liberdade de palavra
pois assume seu discurso somente até certo ponto. Poderíamos até
afirmar que “[...] ele fabrica então um dispositivo romanesco defeituoso,
notoriamente insuficiente para dissimular sua presença na narrativa. Ele
sabota sua camuflagem e cria condições para o mal entendido genérico”.
(GASPARINI, 2004, p. 235, trad. nossa)
Ou, como já foi dito: o narrador-borgiano zomba da seriedade um
pouco ingênua que acompanha o gênero prefácio.
Voltemos os olhos para mais um fragmento discursivo de Borges,
que não faz parte do Livro dos Prefácios, mas de outra produção borgiana
que a este livro foi atrelada, talvez por uma ironia editorial: trata-se
de um pequeno ensaio de autobiografia de Borges, intitulado Essai
d’autobiographie, colocado nas páginas finais do mesmo livro.

(ii) [...] Comecei a escrever aos seis ou sete anos. Tentei


imitar autores clássicos da língua espanhola – Miguel

102
Ida Lucia Machado

de Cervantes, por exemplo. Compus em um péssimo


inglês uma espécie de manual sobre a mitologia clássica,
sem dúvida um plágio de Lemprière. Foi, eu acho, meu
primeiro empreendimento literário. Meu primeiro conto
era uma história maluca, escrita à maneira de Cervantes
– um romance de cavalaria fora de moda, intitulado La
Visera Fatal. (BORGES, Essai d’autobiographie in: Livre des
Préfaces, 1970, p. 278.)

Mesmo em (ii) que pertence a uma outra forma genérica que o


prefácio, notamos também a presença da autoderrisão borgiana. O
eu-irônico toma distância do eu que sustenta o enunciado e assim pode
criticá-lo sem piedade: imitador, plagiador, pretensioso. Além disso,
temos aqui uma espécie de metadiscurso que mobiliza esse poder que
tem a linguagem de se voltar contra ela própria e contra o texto que ela
está construindo. Na vida do sujeito-comunicante Borges, tal modo
de escrever acabou por se tornar uma prática, uma quase religião. Uma
maneira de se encarar o mundo e os outros. No âmbito da análise
do discurso, isso indica um modo de se comunicar com o outro e de
influenciá-lo. Vejamos como: o escritor delega ao seu eu-narrador a tarefa
de impregnar seus ditos e escritos com uma visada argumentativa já por ele
desejada, enquanto autor ou sujeito-comunicante.
O que queremos enfatizar com isso é simples: o eu do Ensaio Biográfico
ou o eu de um prefácio que desvela fragmentos da vida do indivíduo
Borges, é um eu desdobrado, cindido, dividido.
E, no caso específico de (ii). Quem diz que tudo se passou como o eu-
narrador aqui revela? Ninguém. O eu-narrador mais que uma representação
fiel do vida do escritor é um ser-de-papel, ou seja: é fruto de algo que
realmente deve ter acontecido e de algo que só a subjetividade e o estilo
do escritor poderiam trazer à tona.
Deixando um pouco o caso Borges de lado. Toda narrativa de vida
implica em uma escolha. Existem fatos que foram realmente vividos

103
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

e experimentados por diferentes indivíduos reais: para transcrevê-los


aciona-se um eu, que, conforme sua vocação, pode ser dramático, irônico,
moralista, etc. e que vai deixar suas marcas de estilo na narrativa de vida
onde irá atuar. E tais marcas podem aparecer em vários espaços de
escrita ou em vários gêneros que, sem grandes pretensões genealógicas,
contam fatos da vida de um indivíduo empírico. Elas são visíveis na
autobiografia, naturalmente, mas podem aparecer em poemas, pinturas,
letras de música, etc. E logo, também, em prefácios.
Isso dito, voltemos ao prefácio borgiano. Eis outro fragmento dele
retirado:

(iii) No Congresso de Tucumán, tínhamos decidido


fundar, como nos Estados Unidos, uma tradição nossa,
que nos fosse própria. Procurá-la no país que havíamos
deixado nos pareceu um contrassenso evidente;
procurá-la em uma hipotética cultura indígena teria
sido não somente impossível mas absurdo. Voltamo-
nos, fatalmente, para a Europa e mais particularmente
para a França. [...] Além do sangue e da linguagem que
são também tradições, era a França, mais que qualquer
outra nação que nos marcara. [...] (BORGES, Préface des
préfaces, in: Livre des préfaces, p. 1970, p. 12)

E é com uma suave e nostálgica ironia que Borges faz com que seu
eu-narrador mescle fatos de sua vida passada, de seus arroubos juvenis
ao seu prefácio. Aqui ele revela, de forma sintética, mas profunda, seu
amor pela França e ao mesmo tempo, seu eu dividido como todos os eus
daqueles que amam dois países.
Certos leitores serão assim levados a se identificar com o eu-narrador
de (iii). Eis aí uma interessante estratégia de captação do narrador dirigida
a certos receptores, e, logo, uma estratégia de persuasão que os levará a
prosseguir a leitura do prefácio.

104
Ida Lucia Machado

Assistimos em (iii) a encenação de um caso de dimensão argumentativa,


que, como explica Ruth Amossy (2006, p.32-37) pode perpassar por
diferentes enunciados que não foram concebidos, a priori, com o fim
de exercer uma função argumentativa. Mas que, pela sábia colocação
de palavras, pelo encadeamento dos fatos, pela própria história que é
contada, persuadem o receptor da validade dos escritos e conseguem
atingir seu pathos. A atitude de ser apátrida de Borges bem como sua
enfática declaração de amor pela França são sedutoras para quem tem
sentimentos semelhantes em relação a esse país.
O sintagma dimensão argumentativa parece ter encontrado uma variante
em Charaudeau (2013, p. 21). Discorrendo sobre o que seria ideal em
uma campanha eleitoral, o teórico afirma que esta deve conter ideias
simples e estratégias persuasivo-sedutoras, ou seja: estratégias que terão uma
aparência lógica, tendo porém a emoção como pano de fundo. Com a
inclusão do conceito de enunciados persuasivo-sedutores em sua teoria,
Charaudeau cria um novo espaço para suas ideias sobre a argumentação,
ampliando aquele que apresenta na Grammaire du sens et de l’expression
(1992, p.779-833), onde o modo de organização argumentativo se mostra
inteiramente baseado na persuasão e esta seria um sinônimo para uma
argumentação fundada somente em categorias lógicas.
Voltemos a Borges. O autor sente a necessidade, entre didatismo e
ironia de explicar o que seria um prefácio. Assim:

(iv) Ninguém até agora, que eu saiba, formulou uma


técnica do prefácio. Esta lacuna não é grave, já que sabemos
todos o que é um prefácio. Este, a maior parte das vezes
se assemelha a um discurso de fim de banquete ou a uma
oração fúnebre e nele abundam hipérboles gratuitas que
o leitor, que não é bobo, toma por exigências de estilo.
[...] Mas há casos em que o prefácio [...] expõe e comenta
um estética. O prefácio de Montaigne aos seus Ensaios,

105
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

emocionado e lacônico, é a mais bela página desse livro


admirável.[...] (BORGES, Préface des préfaces, in: Livre
des préfaces, p. 1970, p. 13.)

Em (iv) assistimos mais uma vez, a crítica de um eu-irônico ao gênero


prefácio e a vários prefaciadores do mundo afora. E também o desejo
acentuado de Borges de denegar o que ele próprio está fazendo, um
prefácio em um Livro dos Prefácios, uma mise en abîme por excelência. E,
mais que isso: outra estratégia argumentativa sustentada pelo eu-narrador-
irônico.
A ironia é ambígua: tal eu não afirma que a obra de Montaigne é
muito longa e cansativa, ele apenas diz que o curto prefácio desta seria a
parte em que Montaigne mais consegue emocionar o leitor, pois é onde
ele revela mais seus sentimentos. Assim, alguns prefácios contem a arte
de desvelar escondendo o seu autor.
O próximo e penúltimo fragmento mostra, no entanto, que o próprio
sujeito-comunicante, o grande escritor Borges, teme ainda a atitude do
receptor diante das afirmações de seu irônico eu-narrador:

(v) Um prefácio, quando é bem sucedido, não deve ser


uma espécie de brinde e sim uma forma lateral da crítica.
Não sei qual julgamento favorável ou desfavorável
merecerão os meus, que reúnem tantas opiniões sobre
tantos anos. (BORGES, Préface des préfaces, in: Livre des
préfaces, p. 1970, p. 13.)

Notamos aqui a presença da emoção e como que uma leve fratura


na armadura de intelectual do renomado escritor. E essa fratura pode
levar o leitor a ali sentir uma ligeira auto-revelação do escritor, uma parcela
de sua narrativa de vida.
Mas...que o leitor não se iluda. Em seu constante jogo de gato com
rato, eis que surge este outro fragmento quase no fim do prefácio:

106
Ida Lucia Machado

(vi) A releitura dessas páginas esquecidas me levou


a imaginar o plano de um outro livro, mais original e
melhor, que eu proponho a quem o queira escrever.
(BORGES, Préface des préfaces, in: Livre des préfaces, p.
1970, p. 123.)

Mais uma vez, assistimos ao desenrolar do jogo irônico da ironia,


como estratégia de escritura e de comunicação com o receptor.
Seja como for, a arte de Borges faz com que um simples prefácio seja
um argumento de peso para chamar a atenção do leitor para o que virá
nesse pequeno livro. Em primeiro lugar, ele lança o mistério de um livro
esquecido. Em segundo lugar, ele imagina o plano de um livro que não
escreveu. E que pode muito bem ser o que o leitor tem em suas mãos.
Quem é o eu compositor do livro denegado? Qual o seu propósito?
Sem nos estendermos sobre o fato e concentrando-nos na análise do
discurso, diremos que é apenas um: o de semear em um simples e curto
prefácio estratégias de persuasão que possam influenciar e engajar o leitor
em um jogo lúdico de leitura. E que, nesse jogo, são evidentes os sinais de
uma polifonia que tenta, mais que em outros textos de outros prefácios,
multiplicar os diferentes pontos de vista do eu que comanda a narrativa
e do eu que a assume e permite ainda a intrusão de outro eu, o irônico...
Na verdade, é isso que buscamos, já há algum tempo: a razão de
ser de um prefácio e o desejo do ser-prefaciador de nele inserir a marca
registrada de seu estilo e fragmentos de sua história de vida que poderão
ou não coincidir com os escritos do livro prefaciado, conforme os casos.

Referências
AMOSSY, R. L’Argumentation dans le discours, 2e. édition, Paris:
Armand Colin, 2006.

BERTAUX, D. Le récit de vie. Paris: Nathan, 1997.

107
A Narrativa de Vida como Materialidade dDscursiva

BORGES, J.L. Livre de préfaces – suivi de Essai d’autobiographie. Paris:


Gallimard, 1980.

CHARAUDEAU, P. Langages et Discours. Paris: Hachette, 1983.


______. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.
______. La conquête du pouvoir. Paris: L’Harmattan, 2013.

CORDEIRO, M. A imagem do ator. A construção do ethos ficcional.


Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
da FALE/UFMG, Belo Horizonte, 2012.

DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.

GASPARINI, P. Est-il Je? Paris: Seuil, 2004.

GENETTE, G. Figures III. Paris, Seuil, 1972.


______. Nouveau discours du récit. Paris: Seuil, 1983.

LEJEUNE, P. L’Autobiographie en France. Paris: Armand Colin,


1971.

MACHADO, I.L. Breves considerações sobre índices de


modalização & práticas de leitura. In: Caligrama Revista de Estudos
Românicos, número 6, 2001, p.63-78.

PARANÁ, D. Lula, o filho do Brasil, 3a. edição. São Paulo: Fundação


Perseu Abramo, 2008.

SALMON, C. Storytelling. La machine à fabriquer des histoires et à


formater les esprits. Paris: Ed. de la Découverte, 2007.

Recebido em 23/11/2014 e Aceito em 13/03/2015.

108
A DISCURSIVE ANALYSIS OF CHOROS N.10 BY
VILLA LOBOS

UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO CHOROS N.10 DE


VILLA LOBOS1

Fernanda MUSSALIM2
Universidade Federal de Uberlândia (UFU/CNPq)

RESUMO
Neste artigo, pretendo tratar da relação linguagens/discurso a partir da perspectiva teórica da
análise do discurso de linha francesa, mais especificamente, a partir de algumas postulações
de Dominique Maingueneau. O intuito primordial será demonstrar a produtividade dessa
teoria no tratamento de corpora de natureza não verbal. Para tanto, irei me ocupar da análise
de uma música erudita, a saber, o Choros 10, composto em 1926 por Villa-Lobos, músico
vinculado ao grupo dos primeiros modernistas.

ABSTRACT
This paper aims to discuss the relation between languages/discourse from the theoretical
perspective of French Discourse analysis, more specifically, from the postulates of Dominique
Maingueneau. The primary focus will be demonstrate the productivity of this theory in the
treatment of non-verbal corpora. With this in mind, the corpus used here is the piece Choros
n.10 by Heitor Villa Lobos, part of the series of 14 Choros, composed in 1926. Villa
Lobos was a musician and one of the first Brazilian modernists’ pioneers.
1
Agradeço ao CNPq pelo apoio concedido.
2
Professora da Universidade Federal de Uberlândia. Líder do Grupo de Pesquisa Círculo de
Estudos do Discurso (CED-UFU) e membro do Centro de Pesquisa Fórmulas e Estereótipos:
teoria e análise (FEsTA-UNICAMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq - nível
2. Homepage: www.fernandamussalim.com.br / e-mail: fmussalim@gmail.com

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 109-122, jul./dez. 2015


Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; música; teoria musical.

KEYWORDS
Discourse; music; music theory.

Primeiras considerações
Neste artigo, pretendo tratar da relação linguagens/discurso a
partir da perspectiva teórica da análise do discurso de linha francesa,
mais especificamente, a partir de algumas postulações de Dominique
Maingueneau. O intuito primordial será demonstrar a produtividade
dessa teoria no tratamento de corpora de natureza não verbal. Para tanto,
irei me ocupar da análise de uma música erudita, a saber, o Choros 10,
composto em 1926 por Villa-Lobos, músico vinculado ao grupo dos
primeiros modernistas.
A abordagem que conduzirá as considerações em torno dessa
composição se dará a partir de uma problemática específica, a saber,
de que modo objetos teóricos do campo da música – como melodia,
harmonia, timbre, ritmo, polifonia – podem ser reinterpretados pelo viés
de uma teoria do discurso de base enunciativa, que assume o discurso
como prática e como vetor de posicionamento. Para proceder a essa
abordagem, farei considerações a respeito do Choros 10 com base em
conceitos/procedimentos de análise típicos da teorização musical, para,
em seguida, a partir dos conceitos de cenografia e dêixis discursiva
postulados por Dominique Maingueneau, atribuir efeitos de sentido ao
modo composicional de Villa Lobos, a fim de relacionar, radicalmente,
discurso e história, ou melhor, prática discursiva e condições de
produção. Em última instância, o intuito é demonstrar que teorias de
campos distintos podem dialogar, desde que se considere que uma delas
constitui a base epistemológica da pesquisa, e a outra funciona como

110
Fernanda Mussalim

uma espécie de teoria auxiliar, que pode, por exemplo, viabilizar uma
descrição mais adequada do corpus. Neste artigo, assumo a teoria do
discurso, à qual já me referi, como teoria central – que fornece o quadro
teórico e a base epistemológica da pesquisa –, e a teoria musical como
teoria auxiliar.

1. Choros 10: uma análise a partir de conceitos do campo


da música
A série Choros de Villa-Lobos é composta de uma Introdução aos
Choros e de mais 14 Choros numerados não de acordo com uma ordem
cronológica de composição, mas obedecendo ao grau de complexidade
composicional. Assim, tem-se desde o Choros 1, composto para violão
solo, até o Choros 14, composto para duas orquestras, banda e coros, sem
falar na crescente presença do folclore e da música popular brasileira no
decorrer da série. A série Choros é considerada, pelos críticos e estudiosos
de música, a síntese da obra de Villa-Lobos, na medida em que se pode
perceber ali a presença dos diversos processos composicionais utilizados
pelo compositor em sua vasta obra. É importante esclarecer que, apesar
da homonímia, a temática dos Choros de Villa-Lobos não se restringe
ao “choro”, estilo musical. Nessas composições, o músico foi fiel ao
espírito improvisativo do “choro”, mas lançando mão de tudo o que lhe
ofereciam o populário e o folclore brasileiros.
Dentre os Choros, o Choros 10 é considerado a síntese da síntese.
Sua estrutura composicional é descrita como sendo formada por três
seções A-B-A, claramente delimitadas: uma espécie de introdução,
um repouso central e a conclusão, totalmente baseada nos elementos
expostos na introdução. A terceira parte é a mais extensa e também a
mais desenvolvida no que diz respeito ao aproveitamento dos recursos
sonoros mobilizados na obra. Irei deter minha análise nesta terceira
parte, espécie de síntese do Choros 10.

111
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

Inicio fazendo uma descrição deste trecho da composição,


mobilizando conceitos das teorizações próprias do campo da música,
a saber, melodia, harmonia, timbre e ritmo. A seguir, apresento em linhas
gerais esses conceitos3, para que se possa, de maneira mais precisa,
compreender a descrição dos processos composicionais analisados.
A melodia compreende em si uma ordem específica na sucessão das
notas. Ela constitui uma das dimensões horizontais da espacialidade na
música, na medida em que é um dos elementos que delimita as fronteiras
do espaço musical. A harmonia, por sua vez, ocorre quando duas ou mais
notas diferentes são executadas de modo a formar um acorde. O termo
harmonia também é utilizado para referir-se à progressão de acordes
em uma composição musical. No primeiro caso, a harmonia constitui a
espacialidade da música em sua dimensão vertical; no segundo caso, ela
constitui essa espacialidade em uma dimensão horizontal. O processo de
harmonização como um todo – formação e sequencialização de acordes
– constrói, na música, uma espacialidade bidimensional.
O timbre é um conceito musical que se refere à característica sonora
que permite distinguir se sons da mesma frequência foram produzidos
por fontes sonoras distintas. Por exemplo: a nota Lá, executada na
parte central do piano, possui a frequência de 440Hz; a nota equivalente
produzida por um violino possui a mesma frequência, de modo que o
que permite ao ouvido diferenciar os dois sons e identificar sua fonte,
isto é, se a nota está sendo executada por um piano ou um violino,
é a forma da onda e seu envelope sonoro. Em outros termos, o que
possibilita que, num caso como este, se distinga um piano de um violino
é o timbre específico e particular de cada um desses dois instrumentos.
Em relação ao ritmo, ele pode ser descrito como um movimento
coordenado, uma repetição de intervalos musicais presentes na
composição musical. O ritmo determina tanto a duração de cada som na
música, quanto a duração dos silêncios. Assim, os sons e os silêncios se
3
Para uma abordagem mais aprofundada desses conceitos, consultar RANDEL, Don Michael.
The Harvard Dictionary of Music. 4th edition. Harvard University Press, 2003.

112
Fernanda Mussalim

combinam de modo a criar padrões sonoros que, repetidos, dão origem


ao ritmo, cuja batida pode ser constante ou variável, forte ou fraca,
extensa ou breve. Toda essa possibilidade de variação de padrão sonoro
permite, por exemplo, que uma sequência de três notas iguais possa dar
origem a três composições musicais diferentes, apenas pela variação do
ritmo. Um conceito importante vinculado ao ritmo é o de compasso.
De acordo com o tipo de compasso empregado se definirá o acento que
as notas musicais assumirão na composição, e isso afeta diretamente o
ritmo. Na partitura, o compasso aparece na forma da fração que surge
no início da pauta, determinando como se dará a divisão e agrupamento
das notas.
Tendo apresentado esses conceitos, passo à análise da terceira parte
do Choros 10, que se inicia com o fagote executando a melodia do tema
de 4 notas, que perpassa toda a composição. Pouco a pouco o tema
atinge toda a orquestra, gerando um efeito de “aumentação” desse tema.
Ocorre também o desenvolvimento com superposição de várias células
rítmicas (diferentes instrumentos da orquestra executando o tema em
diferentes ritmos), mas sempre enquadradas pelo ritmo da marcha-
rancho, tocada pelos instrumentos de percussão da orquestra.
O naipe de cordas realiza acordes bem violonísticos e, em seguida,
introduz uma marcha harmônica que vai levar ao aparecimento do coro,
tratado de forma mais orquestral, isto é, como mais um instrumento da
orquestra, e não como “voz solo” de melodias a serem acompanhas pelos
instrumentos. Depois há um grande crescendo na dinâmica do coro,
que prepara a retomada do tema da obra pelos barítonos e baixos, os
quais serão, em seguida, contraponteados nas vozes agudas. O coro, com
um esquema primordialmente rítmico, executado ao lado da orquestra,
cria efeitos onomatopeicos que reconstituem um ambiente primitivo,
valendo-se de fonemas consonantais (J, K, T, M, R) que reforçam o
“efeito duro” do jogo rítmico.

113
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

Quando o crescendo das vozes atinge seu clímax, o soprano4,


acompanhado da orquestra e do coro, inicia a execução de uma melodia
lírica e sentimental, à maneira da modinha suburbana, extraída da canção
Rasga Coração (letra do poeta seresteiro Catulo da Paixão Cearense e
música de Anacleto de Medeiros). A segunda estrofe dessa canção, com
novo colorido orquestral, é introduzida pelos baixos e barítonos, em
seguida é assumida pelos contraltos e, novamente, retorna aos baixos e
barítonos. Enquanto isso, o trompete solo realiza cadências, à moda dos
instrumentistas virtuoses do choro popular; o coro deixa as onomatopeias
para, com o naipe de cordas em pizzicati5, tomar outra sonoridade com a
sílaba “Tum”; ao mesmo tempo, a cadência do trompete solo é assumida
pela flauta e oboé solos, conservando o clima de improvisação popular.
A terceira estrofe da canção é novamente assumida pelos sopranos. Após
isso, a orquestra retoma o tema, e o coro as onomatopeias, preparando-
se para o grande finale “tutti” – orquestra e coro.
Ocorre, pois, nesta terceira parte do Choros 10, um processo de
polifonização musical decorrente, essencialmente:

i) da superposição de blocos tímbricos e melódicos – cada naipe


do coro realiza um desenho melódico; os naipes da orquestra
(de cordas, de metais e de madeira) produzem diferentes
efeitos tímbricos e realizam, ao mesmo tempo, diferentes
desenhos melódicos;
ii) da superposição de várias células rítmicas, realizadas não só
pelos instrumentos de percussão , mas por toda orquestra
(diferentes instrumentos executando o tema em diferentes
ritmos) e coro (cada naipe executando diferentes desenhos
melódicos em diferentes ritmos);
4
Na música ocidental, um coro misto (de vozes adultas masculinas e femininas) compõe-se de
quatro naipes, classificados de acordo com a tessitura das cordas vocais, do mais grave para o
mais agudo. As vozes adultas masculinas são baixo, barítono e tenor; as adultas femininas são
contralto, mezzo-soprano, soprano.
5
Pizzicati é uma notação para instrumentos de corda, que indica que a corda deve ser tocada
sendo puxada para fora com o dedo.

114
Fernanda Mussalim

iii) do efeito de superposição harmônica – nesse caso, vale ressaltar


que, nesta terceira parte do Choros 10, devido à importância
dada à canção Rasga Coração, há uma organização harmônica
razoavelmente simples que sustenta a canção; entretanto,
devido ao incessante movimento de vozes e à acumulação de
sons, o efeito que resulta é o de blocos harmônicos de grande
densidade e força expressiva.

A análise esboçada até aqui se valeu, fundamentalmente, de conceitos


próprios das teorizações musicais. A seguir, procederei à análise do
mesmo trecho da composição a partir de uma perspectiva discursiva,
assumindo, com Dominique Maingueneau (2005), o pressuposto de que
a Análise do Discurso pode tomar como objeto de análise não apenas
conjuntos de enunciados produzidos por comunidades discursivas, mas
todas as práticas dessas comunidades – desde os enunciados, passando
por produções de semioses não verbais, até seu modo de organização.
A música, portanto, terá, de agora em diante, em minha abordagem,
o estatuto de uma prática discursiva, uma vez que considerarei que as
composições de Villa-Lobos, juntamente com outras produções estéticas
do grupo dos primeiros modernistas, fazem parte de um conjunto de
práticas discursivas que acabou por constituir uma nova identidade
estética no campo da arte brasileira, tradicionalmente reconhecida como
Modernismo brasileiro.
A seguir, antes de proceder à análise discursiva do Choros 10,
apresentarei os conceitos que sustentarão minha análise.

2. Cena de enunciação e dêixis discursiva: em pauta as


noções de cenografia, topografia e cronografia
Maingueneau propõe uma análise da instância da enunciação,
distinguindo três cenas: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.

115
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

A cena englobante é a que corresponde ao tipo de discurso: religioso,


político, publicitário. Para interpretar um texto é necessário que os
sujeitos se inscrevam em uma cena englobante que os interpela a título,
por exemplo, de sujeito eleitor, sujeito consumidor, etc. A cena genérica
é definida pelos gêneros de discurso. Cada gênero de discurso implica
uma cena específica que impõe aos sujeitos interlocutores um modo
de inscrição no espaço e no tempo, um suporte material, um modo
de circulação, uma finalidade, etc. Essas duas cenas – a englobante e a
genérica – definem conjuntamente o que Maingueneau (2002) chama de
quadro cênico do discurso. É esse quadro que define o espaço estável (o
do tipo e o do gênero de discurso) no interior do qual o enunciado
adquire sentido. Entretanto, não é diretamente com o quadro cênico
que os sujeitos interlocutores se confrontam. Eles se confrontam com
uma cenografia, que não é imposta pelo tipo ou gênero de discurso, mas
instituída pelo próprio discurso:

Um discurso impõe sua cenografia de imediato: mas, por outro lado,


a enunciação, em seu desenvolvimento, esforça-se para justificar
seu próprio dispositivo de fala. Tem-se, portanto, um processo
em espiral: na sua emergência, a fala implica uma certa cena
de enunciação, que, de fato, se valida progressivamente por meio
da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo,
aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra;
ela legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve
estabelecer que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente,
a cenografia necessária para contar uma história, denunciar
uma injustiça, apresentar uma candidatura em uma eleição etc.
(CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2004, p. 96)

Para ilustrar esse conceito, irei me valer de exemplos dados pelo


próprio autor. Em Discurso literário (2006), Maingueneau explica que é

116
Fernanda Mussalim

muito comum, na literatura, que o leitor não se perceba inscrito em uma


cena englobante, mas se veja diante de uma cenografia. Em uma novela ou
em um romance, por exemplo, a história pode ser contada de muitas
maneiras:

[em uma novela] pode ser uma marujo contando suas aventuras
a um estrangeiro, um viajante que narra numa carta a um amigo
algum episódio por que acaba de passar, um narrador invisível que
participa de uma refeição e delega a narrativa a um conviva, etc.
Da mesma maneira, um texto membro da cena genérica romanesca
pode ser enunciado, por exemplo, por meio da cenografia do diário
íntimo, do relato de viagem, da conversa ao pé da fogueira, da
correspondência epistolar etc. (MAINGUENEAU, 2006, p.
252)

De acordo com o autor, é na cenografia que são validados os estatutos


do enunciador e do co-enunciador de um discurso; é nela também que se
validam o tempo e o espaço a partir dos quais a enunciação se desenvolve.
Assim, a cenografia implica uma figura de enunciador e, correlativamente,
uma de co-enunciador, bem como uma cronografia (um momento/tempo) e
uma topografia (um lugar/espaço) a partir das quais o discurso pretende
emergir. A esses elementos assim dispostos, Maingueneau refere-se a
partir do conceito de dêixis discursiva.
A dêixis discursiva se manifesta no nível do “universo de sentido
que uma formação discursiva constrói através de sua enunciação”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 41). Em função disso, as três instâncias
que a compõem (enunciador / co-enunciador / topografia / cronografia) não
correspondem a um número idêntico de designações nos textos, isto é,
a cada instância não corresponde(m) um/alguns termo(s) específico(s)
que a designa(m). Um exemplo, dado pelo próprio Maingueneau, ilustra
bem esse modo de funcionamento da dêixis discursiva em relação a esse
aspecto: no discurso escolar da III República na França, o mesmo termo

117
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

“República” satura três lugares: a “República” é, ao mesmo tempo, o


enunciador (é ela que se dirige às crianças), a topografia (a República delimita
o território da pátria) e a cronografia (a República é a última fase da história
da França).
Será a partir da noção de cenografia e das coordenadas espaço-
temporais da dêixis discursiva, a saber, a topografia e a cronografia, que
buscarei demonstrar como, no Choros 10, são produzidos efeitos de
sentido de brasilidade que acabam por constituir um lugar discursivo
institucionalizado para a obra de Villa-Lobos e, na esteira, para a arte
modernista brasileira, que tentava se estabelecer como movimento
hegemônico no campo da arte no Brasil.
Feitas essas considerações, passo à (re)análise, apresentando,
inicialmente, a proposta dos primeiros modernistas brasileiros de
construção de uma música nacional.

3. A proposta de construção de uma música nacional:


uma análise discursiva do Choros 10
Nas reflexões que Mário de Andrade realiza em torno do processo
de construção de uma música nacional, é possível entrever a existência
de duas fases: uma fase de nacionalismo e uma de música nacional.
Na primeira fase, os compositores, militando em prol da
nacionalização da música, deveriam coletar cantigas populares e
harmonizá-las, mesmo que isso significasse sacrificar os impulsos
expressivos do artista. Posteriormente, vencida a fase de nacionalismo,
os artistas, harmonizados com a própria cultura e afinando, no dizer
de Mário de Andrade, a voz solista “pelo fundo instrumental da
personalidade: nossa gente, nossas lembranças e passado, nossa vida”6,
fariam música nacional. Mas, para isso, era preciso ir além da citação
6
ANDRADE, Mário de. Villa-Lobos. Publicado originariamente no Diário Nacional, em
15/09/1929. In: Batista, M.R. et al. (orgs). Brasil: 1º tempo modernista – 1917-1929. São Paulo:
Instituto de Estudos Brasileiros, 1972, p. 369.

118
Fernanda Mussalim

e do enxerto de melodias populares brasileiras em obras estruturadas


conforme o modo de composição europeu.
A citação, portanto, para a nova estética musical que se propunha – e
para toda a arte modernista – deveria ser um procedimento superado, uma
vez que ela está ao alcance de qualquer compositor, independentemente de
sua nacionalidade. Diferentemente, a produção de uma música nacional
é prerrogativa dos artistas enquanto membros de uma comunidade
nacional. Assim, a meta ambiciosa do modernismo nacionalista não era
a incorporação epidérmica de células rítmicas, melodias ou fragmentos
melódicos populares, que não alteravam as formas de expressão. Sua
meta era reforçar os traços brasileiros, “os elementos espontâneos
brotados em nosso povo”7, cujas etnias formadoras – europeus, índios
e negro-africanos – já haviam desaparecido como entidades singulares,
dando origem a um povo brasileiro propriamente dito. Uma música
nacional, portanto, deveria ser a expressão dessa entidade nova e não a
expressão da índole portuguesa, africana ou indígena, nem tampouco a
simbiose dessas etnias. Em outras palavras, o ideário modernista prevê
a constituição de uma musicalidade étnica. Para tanto, o compositor
brasileiro teria de se basear quer como documentação quer como
inspiração no folclore, e aproveitar todos os elementos que concorreram
para a formação permanente desse folclore: os elementos ameríndios, os
africanos e os elementos portugueses e europeus.
Mas, em termos propriamente musicais, como isso se daria? Mario
de Andrade (1928/1972), em seu Ensaio sobre a música brasileira,
pontua, com base em vários estudos seus a respeito do populário
brasileiro, bem como com base em estudos realizados por vários
pesquisadores – musicistas ou não –, quais são as constantes da música
brasileira, em termos de ritmo, melodia, harmonia, instrumentação e
forma composicional. Em linhas bastante gerais, essas constantes são
7
MILLIET, Sérgio. Carta de Paris. Publicado originariamente em Ariel: revista de cultura musical,
n. 6, em março de 1924. In: Batista, M.R. et al. (orgs.). Brasil: 1º tempo modernista – 1917-1929.
São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1972, p. 320.

119
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

assim caracterizadas: i) no ritmo, predomina a síncope8; ii) a melodia


caracteriza-se pela presença constante de traços da prosódia brasileira; iii)
a harmonia, mesmo não sendo considerada um elemento caracterizador
de nenhuma nacionalidade, pode assumir maior ou menor caráter
nacional a depender dos processos de simultaneidade sonora, isto é, a
depender do processo de construção de polifonias; iv) a instrumentação
conta com timbres específicos de instrumentos concebidos e executados
em ambientes populares, que acabam por constituir uma orquestra
tipicamente brasileira, (o pandeiro, o violão, o cavaquinho, o canto,
etc.); v) na forma composicional, a Variação9 é a forma mais comum
no populário nacional. Essas constantes musicais encontradas no
populário nacional deveriam, de acordo com Mário, ser minuciosamente
estudadas pelos compositores e, posteriormente, normalizadas em seus
trabalhos composicionais, por meio de um trabalho de estilização dessas
constantes. Não se trata, portanto, de uma incorporação epidérmica de
processos musicais característicos do populário musical brasileiro, mas
de um trabalho artístico de sistematização de tendências consideradas
tipicamente nacionais.
A polifonização musical realizada por Villa-Lobos no Choros
10, já descrita anteriormente, decorre de um trabalho de estilização
de elementos aborígenes (o trabalho prosódico e rítmico realizado
pelo coro); de elementos africanos (o trabalho rítmico realizado pelos
instrumentos de percussão e por toda orquestra); e de elementos europeus
(o resgate de toda tradição orquestral occidental, com instrumentos
típicos de orquestras europeias; o modo composicional; a performance
orquestral, etc). Além disso, a canção Rasga Coração carrega a história
8
Mais comumente, na marcação dos compassos, os tempos fortes se iniciam por uma nota.
Entretanto, pode ocorrer de a nota executada no tempo ou parte fraca anterior ser prolongada
até o tempo forte seguinte. Se isso acontecer, o tempo forte estará preenchido com os “restos”
de som da nota anterior. Quando isso ocorre, tem-se a síncope.
9
A Variação consiste em repetir uma melodia, harmonia ou procedimento rítmico, mudando
a cada repetição um ou mais de seus elementos, de modo que a nova realização do segmento
apresente outra fisionomia, mesmo permanecendo sempre reconhecível em sua personalidade.

120
Fernanda Mussalim

de construção das modinhas brasileiras, fruto do encontro de várias


tendências musicais do populário brasileiro e europeu.
Todo esse processo de estilização cria uma ambientação que,
analisando agora em termos propriamente discursivos, constitui uma
cenografia, isto é, uma cena construída na/pela composição de Villa-
Lobos (que tem, à luz da teoria do discurso de base deste artigo, o
estatuto de uma prática discursiva), em que são validados os estatutos
do enunciador, do co-enunciador, a topografia e a cronografia a partir
das quais o discurso emerge. No caso do Choros 10, a ambientação
criada pelo processo de polifonização musical constitui, via referência
simbólica, uma topografia, isto é, um espaço sócio histórico, que poderia
ser descrito como um espaço nacional, eminentemente brasileiro, por
emergir daquilo que Mário de Andrade denominou de musicalidade
étnica. Em relação à cronografia constituída a partir dessa polifonização
musical, ela poderia ser descrita como sendo “um tempo de construção
de uma identidade brasileira”, que começa a definir-se.

Considerações finais
A meu ver, a consideração desses elementos caracterizadores de uma
dêixis discursiva pode ajudar a explicar por que a obra de Villa-Lobos produz
“efeitos de brasilidade”, que acabam por conferir à sua música o estatuto
de música nacional; permite também compreender por que Villa-Lobos
é exaltado pelos modernistas, que analisam suas composições como a
mais alta expressão de arte brasileira; ou ainda, ajuda a compreender
por que ocorreu uma potencialização da força simbólica da obra do
compositor, que emerge não apenas como modelo de boa arte modernista
brasileira, mas também, no sentido mais “político”, como uma bandeira
nacional. Esse fenômeno – de potencialização da força simbólica de
certos elementos tomados como caracterizadores da nacionalidade – é
explicado por Eric Hobsbawm em seu livro Nações e Nacionalismo desde
1780. Segundo o autor, a partir de 1880, o conceito de Nação não estaria

121
Uma Análise Discursiva do Choros 10 de Villa-Lobos

mais exclusivamente vinculado a aspectos territoriais ou econômicos


num âmbito mais “político stricto sensu”, mas apareceria cada vez mais
associado a aspectos menos objetivos, relacionados a sentimentos de
vínculo da massa humana com certo Estado. Esses sentimentos de
vínculo se dariam em relação a alguns elementos elevados a símbolos
de uma certa nacionalidade, como a língua e, para o que aqui interessa, a
arte, metonimicamente representada pela música de Villa-Lobos.

Referências
ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª edição. São
Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972. (Data do original: 1928).

BATISTA, M.R. et al. (orgs). Brasil: 1º tempo modernista – 1917-1929.


São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1972.

CHARAUDEAU, P., MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do


discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa,


mito e realidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3.


ed. Campinas: Pontes/Ed. da UNICAMP, 1997.
_____. Análise dos textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.
_____. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.
_____. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005.

RANDEL, D. M. The Harvard Dictionary of Music. 4th edition.


Cambridge: Harvard University Press, 2003.

Recebido em 10/11/2014 e Aceito em 07/03/2015.

122
VALIDATED SCENES AND STEREOTYPES IN
SPEECH OF-SELF HELP FOR WOMEN

CENAS VALIDADAS E ESTEREÓTIPOS NO


DISCURSO DE AUTOAJUDA PARA MULHERES

Anna Flora BRUNELLI


Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Câmpus de São José do Rio Preto(SP)/FEsTA1

RESUMO
Neste trabalho, analisamos capas de obras de autoajuda dirigidas a mulheres, procurando
identificar as cenas e as imagens de mulher ilustradas nessas capas. Nosso referencial teórico-
metodológico é o da Análise do Discurso de linha francesa, com ênfase nas reflexões de
Maingueneau (2006) sobre a enunciação, entre as quais está a noção de cena validada, que
diz respeito a cenas já instaladas na memória cultural coletiva. A análise revela que o discurso
de autoajuda se vale de cenas validadas nas quais a mulher desempenha papéis femininos
tradicionais, colaborando, desse modo, para a manutenção de velhos estereótipos femininos
e, consequentemente, para que as expectativas relativas à mulher sejam as mesmas, ou seja,
para que continue desempenhando os papéis sociais que normalmente lhe são associados.

ABSTRACT
In this paper, we analyse some covers of self-help books addressed to women, trying to
identify scenes and female images which are illustrated on the covers. The analysis is based
on the perspective of the French Discourse Analysis, with special emphasis on the concept of

1
Centro de Pesquisa FEsTA (Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise), ligado ao
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP).

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 123-147, jul./dez. 2015


Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

enunciation proposed by Maingueneau (MAINGUENEAU, 2006), and on the notion


of ‘validated scene’ which is a scene that is already seated in the collective cultural memory.
The analysis reveals that self-help discourse addressed to women relies on validated scenes
in which women play traditional female roles, contributing thereby to the maintenance of
old stereotypes. Thus, we can say that this discourse reinforces expectations that women will
continue to play the same roles which are normally associated with them.

PALAVRAS-CHAVE
Autoajuda. Cenas de enunciação. Discurso. Estereótipos. Mulheres.

KEY WORDS
Self-help. Scenes of enunciation. Discourse. Stereotypes. Women.

Introdução
No âmbito das reflexões que desenvolve sobre a enunciação,
MAINGUENEAU (2006) emprega a noção de “cena de enunciação”,
no lugar das tradicionais noções de “contexto” ou “situação de
comunicação”, que estão mais próximas a uma concepção sociologista
da enunciação, segundo a qual os interlocutores desempenham no
discurso papéis sociais previamente definidos. Nesses termos, a situação
de comunicação é essencialmente um quadro, um pano de fundo prévio.
A noção de “cena” também diz respeito aos papéis específicos do
locutor e do destinatário que estão implicados nos gêneros do discurso.
Então, para sermos fiéis ao pensamento de Maingueneau, cumpre-nos
destacar que o autor opta por essa noção para evidenciar o fato de que
a enunciação não acontece apenas em relação a um espaço previamente
instituído, definido pelo gênero do discurso, mas ela também instaura um
espaço específico, que é encenado, isto é, posto em cena pelo discurso.
Nesses termos, o discurso se desenvolve construindo sua cena, o que

124
Anna Flora Brunelli

salienta a dimensão construtiva do discurso (cf. CHARAUDEAU, P.;


MAINGUENEAU, D., 2004: 95).
Para MAINGUENEAU (2006), a cena de enunciação de um
discurso é composta por três cenas: a cena englobante, a cena genérica
e a cenografia. A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso,
correspondendo ao seu estatuto pragmático. Trata-se, portanto, da
cena que diz respeito ao modo de funcionamento social do discurso
(por exemplo: discurso literário, discurso religioso, discurso filosófico,
discurso publicitário).
A cena genérica, por sua vez, refere-se ao contrato associado a
um determinado gênero de discurso (confissão, soneto, receita, artigo
científico, artigo de opinião, editorial jornalístico).
Como observa MAINGEUENEAU (2006), a cena de enunciação
pode se reduzir a essas duas cenas. Nesse caso, o discurso se atêm à sua
cena genérica. Às vezes, entretanto, o discurso institui uma outra cena
que passa as outras para segundo plano. Trata-se da cenografia, cena
que é oferecida ao enunciatário como se o discurso dela se originasse,
mas a cenografia é a cena construída pelo próprio discurso. Nesses
termos, a cenografia implica um processo de enlaçamento paradoxal,
pois é, ao mesmo tempo, tanto a cena de onde o discurso supostamente
vem, quanto o a cena que o discurso engendra, isto é, a cena que o
discurso valida progressivamente por meio de sua própria enunciação.
Muitas vezes, a cenografia se vale de uma cena já instalada na memória
cultural coletiva, uma “cena validada”, conforme designação do autor
(MAINGUENEUA, 2006).
Diante do exposto, neste trabalho, adotando a perspectiva da
Análise do Discurso francesa, analisamos capas de obras de autoajuda
para mulheres, procurando identificar as cenas ilustradas nas capas,
bem como as imagens de mulheres inseridas nessas cenas. Desse modo,
pretendemos colaborar com os estudos discursivos que se dedicam ao
discurso de autojauda e ao feminino.

125
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

A análise não se centra exatamente nas capas das obras de autoajuda


para mulheres, com todos os aspectos que implicam, mas nas ilustrações
das capas. Dado esse recorte específico, entendemos que não estamos
analisando exatamente as cenografias instauradas nas capas, mas as
ilustrações das capas, procurando identificar as cenas de que se valem,
especialmente cenas validadas. Conforme vamos apresentar, algumas
ilustrações se valem de mais de uma cena validada ao mesmo tempo,
como se houvesse um processo de combinação ou sobreposição de
cenas validadas.
Quanto à possibilidade de empregarmos esse referencial para
analisar textos não verbais (ilustrações), vale lembrarmos que, segundo
MAINGUENEAU (2005), o discurso é uma prática que implica suportes
semióticos distintos. Desse modo, assumimos, como pressuposto
teórico, que os textos verbais e não verbais do discurso de autoajuda para
mulheres estão submetidos ao mesmo conjunto de restrições semânticas
globais, conforme as reflexões de MAINGUENEAU (2005) sobre o
funcionamento do discurso.
Antes de partimos para a análise propriamente dita, apresentamos
a seguir algumas características do discurso de autojuda para mulheres.
A esse respeito, esclarecemos que as considerações que tecemos aqui se
baseiam num córpus composto por obras de autoajuda para mulheres
que foram lançadas em língua portuguesa e que ainda se encontram
circulando pelo mercado do país (cf. BRUNELLI, 2012). Desse modo,
essas considerações estão circunscritas ao discurso de autoajuda para
mulheres tal como se encontra circulando no mercado editorial brasileiro.

1. O discurso de autoajuda para mulheres


De modo geral, o discurso de autoajuda é um discurso que se destina
a ensinar seus destinatários como devem proceder para alcançar uma série
de objetivos e aspirações comuns a um grupo indefinido de pessoas, como

126
Anna Flora Brunelli

sucesso profissional, ascensão econômica, autoafirmação, felicidade.


Em BRUNELLI (2004), analisando o discurso em questão, notamos
que ele se apresenta como uma espécie de manual de sobrevivência para
o homem pós-moderno. Para tanto, dispensa as discussões de suas teses
e, no lugar de promover uma reflexão acerca dos problemas que afligem
as sociedades contemporâneas, oferece supostas soluções para esses
problemas, o que faz especialmente por meio de enunciados assertivos,
marcados pelos tons de convicção e otimismo, e imperativos, marcados,
por sua vez, pelo tom de autoridade.
Entre as obras de autoajuda, há obras que voltadas para o público
adulto em geral, como aquelas que tratam de autoestima, do sucesso
profissional, da ascensão financeira. Além disso, há também obras
voltadas para públicos específicos, como as que se voltam a mulheres,
obras que são o foco deste trabalho.
Entre essas obras, há obras voltadas para a temática dos
relacionamentos, que tratam de interesses que são tradicionalmente
associados às mulheres, tais como relacionamentos, casamento e família.
Considerando a temática, podemos dizer que as obras em questão se
ligam a uma forma mais tradicional de representar a mulher, de acordo
com a qual um dos objetivos da mulher é ter uma relação afetiva estável,
casar, ter uma família. A esse respeito, vejamos o que afirma uma obra
de autoajuda para mulheres: “até hoje, uma grande maioria ainda precisa
de um homem para chamar de seu, como diz a canção do Erasmo”
(ABRÃO, 2009: 3).
Para orientar as mulheres a atingirem essas metas, as obras se
constroem a partir de duas imagens de mulheres: uma que é a imagem
positiva de mulher e que corresponde ao comportamento que o discurso
de autoajuda propaga como modelo a ser seguido e outra que é a imagem
que o discurso rejeita e que associa à maioria das mulheres, entre as quais
inclui a mullher para a qual se dirige (a provável leitora da obra). Assim,
de um lado, temos a mulher confiante e segura de si. Para se referir a

127
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

esse tipo de mulher, o discurso de autoajuda lança mão das seguintes


expressões: “mulher inteligente” (CARTER; SOKOL, 2006 e 2008),
“mulher manipuladora” (ARGOV, 2010), “mulher poderosa” (ARGOV,
2009, 2010, 2013; FOLEO, 2011).
Por outro lado, temos a mulher insegura, que desconhece o seu
potencial e o modo correto de usá-lo, à qual o discurso de autoajuda
se refere por meio de expressões como “mulher boazinha”, (ARGOV,
2009), “mulher capacho” (ABRÃO, 2009; ARGOV, 2009), “boa moça”
(ARGOV, 2010).
Muitas vezes, essa mulher insegura é retratada como uma pessoa que
não tem controle emocional e que se deixa levar pelas emoções. Vejamos
alguns enunciados do discurso de autoajuda a esse respeito:

(01) A mulher inteligente é aquela que conhece com toda a clareza


e segurança seu valor e seu poder. (...) sabe como enfrentar
e superar desafios, e como cuidar da relação em períodos de
calmaria. Ou seja, a mulher inteligente sabe quem ela é, se
respeita e se faz respeitar. Ela gosta de si mesma, é capaz
de se controlar e de controlar sua vida. É claro que a
mulher inteligente, como qualquer ser humano normal, tem
seus momentos de fraqueza e de insegurança. É claro que ela
tem seus medos e hesitações. A mulher inteligente erra muitas
vezes. A grande diferença é que ela tem consciência disso,
aceita seus limites e se esforça para superá-los. Talvez fosse
confortador descobrir que, quando ninguém está olhando, as
mulheres inteligentes se entopem de chocolates e sorvetes,
choram desconsoladamente e se comunicam dia e noite
com seus terapeutas. Mas elas não fazem essas coisas. É
possível que isso deixe você muito irritada e cheia de inveja.
(CARTER; SOKOL, 2008: 7; grifo nosso)

128
Anna Flora Brunelli

(02) Nos capítulos que você está prestes a ler, aprenderá a modificar
sua abordagem. Você vai compreender por que ele tem de
ficar se perguntando por que você não age como se estivesse
desesperada para se casar como todas as mulheres que
conhece. Quando você parecer diferente, no sentido de que
não parte para cima dos homens com um plano pronto para
chegar ao casamento, então receberá mais propostas do que é
capaz de assimilar (ARGOV, 2010: 17; grifo nosso).

(03) Evite ser tragada pela areia movediça. Se não conseguir


manter o controle sobre si mesma, a relação está
condenada. (ARGOV, 2009: 99; grifo da autora)

(04) Os 10 mandamentos da mulher inteligente (...) 2. Procurarei me


manter equilibrada e no controle da minha vida, mesmo se
o homem for muito atraente. (...) (CARTER; SOKOL, 2008:
34; grifo nosso)

Por meio desses enunciados, percebemos claramente as duas imagens


de mulheres que predominam no discurso de autoajuda: a mulher
inteligente, segura de si e capaz de se controlar, e a outra mulher, aquela
com a qual o discurso de autoajuda associa a maioria das mulheres e
que corresponde à imagem da mulher para a qual o discurso se dirige:
a mulher insegura, submissa, carente e descontrolada (que se entope de
chocolate e sorvetes, que chora desconsoladamente, que se comunica
dia e noite com o terapeuta, que, diante do sucesso das outras, sente
irritação e inveja, que está desesperada para casar, etc.). No próximo
item, vamos verificar como essas imagens estão presentes nas capas das
obras de autoajuda.

129
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

1.2. Cenas validadas e representações do feminino


Entre as obras de autoajuda para mulheres, encontramos obras cujas
capas apresentam uma ilustração na qual podemos identificar a imagem
da mulher carente supracitada. Vejamos um exemplo:

FIGURA 1: capa da obra “Ele simplesmente não está a fim de você”


(BEHRENDT; TUCCILLO, 2005).

Nessa capa, há a ilustração de uma mulher ao lado da foto de um


telefone. Pela sua expressão, considerando-se especialmente o formato
da boca, notamos que a figura feminina está desanimada. Sua cabeça
está levemente inclinada para o lado em que se encontra o telefone e o
eu olhar recai diretamente sobre ele, um aparelho cor-de-rosa, cor que
não é usual para esse tipo de objeto. Aliás, notamos que se trata de um
aparelho do tipo antigo, em desuso. O rosa, como se sabe, é uma cor
considerada feminina e normalmente associada ao amor romântico, à
feminilidade e também à fragilidade (cf. BARROS, 2012). A mulher está
com os braços cruzados sobre a mesma superfície onde está o aparelho
de telefone, aparentemente numa posição de espera.
Considerando os aspectos citados, podemos dizer que essa capa
ilustra a cena de uma mulher à espera de um telefonema que não deve
acontecer: daí a imagem da mulher carente, que tem seus desejos
emocionais não correspondidos.

130
Anna Flora Brunelli

Mais exatamente, do nosso ponto de vista, essa cena de “mulher


carente à espera de um telefona que não deve acontecer” justificaria o
fato de o telefone rosa estar parado no gancho, e não em uso; justificaria
também o fato de o aparelho ser velho, possivelmente representando
uma relação ultrapassada, que já não tem futuro; justificaria ainda o
fato de a figura feminina estar representada por uma ilustração quase
infantil. Dessa forma, o título da obra (“Ele simplesmente não está tão
a fim de você”) pode ser lido como um alerta para essa mulher, para
que ela entenda que a ligação que espera não deve acontecer. Aliás, é
interessante notar que é comum encontramos no discurso de autoajuda
para mulheres menção direta ou indireta a essa cena da mulher que fica
à espera de um telefonema. Vejamos os enunciados abaixo:

(05) A mulher inteligente...


Nunca se sente morta quando o telefone não toca. (CARTER;
SOKOL, 2008: 89)

(06) Quando, no fim do sexto encontro, Jack a beijou, prometeu


telefonar no dia seguinte para saírem juntos. Bervely esperou
pelo telefonema o dia inteiro, mas Jack não ligou. Finalmente,
às dez da noite, ela telefonou para ele. (CARTER; SOKOL,
2006: 64)

(07) Você cancela todos os seus planos esperando um possível


telefonema de um homem que acabou de conhecer? (ARGOV,
2009: contracapa).

(08) Baseados em experiências de pessoas que (...) perderam noites


chorando e esperando telefonemas que nunca receberam (...).
(CARTER E SOKOL, 2006: contracapa).

131
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

Ainda a esse respeito, vale registrarmos que há uma obra de autoajuda


recentemente lançada que também se vale dessa mesma cena2 em sua
capa. Vejamos:

FIGURA 2: capa da obra “Homens que somem” (ABRÃO, 2013).

Nessa capa, podemos notar que há uma figura feminina cujas costas
se encontram recostadas sobre um telefone grande o suficiente para
que ela possa apoiar seu corpo nele, mais exatamente todo seu tronco,
pelo lado de trás do corpo. Considerando a posição de suas mãos, que
estão recobrindo o seu rosto, podemos dizer que se trata de uma mulher
que está passando por algum tipo de preocupação, aflição, sofrimento.
Dado o título da obra, “homens que somem”, e o fato de ela estar ao
lado de um telefone, podemos associar a sua aflição à espera de um
telefonema, que supostamente deveria ter partido do “homem que
sumiu”, provavelmente algum homem pelo qual ela estaria interessada.
2
Essa cena nos parece ser uma cena relativamente comum em várias mídias, inclusive
na rede. Na falta de uma ferramenta mais adequada que nos permitisse confirmar
essa suspeita, fizemos uma busca rápida no Google Imagens. De fato, utilizando essa
ferramenta de busca, encontramos várias imagens que ilustram essa mesma cena,
por meio de entradas do tipo “mulher à espera de telefonema”, “mulher + espera +
telefonema”.

132
Anna Flora Brunelli

Nesse sentido, o homem que sumiu é o homem que não lhe telefona, isto
é, o homem que não lhe procura, que não atende às suas expectativas.
A esse respeito, vale notarmos que o telefone é o único elemento que
compõem o cenário em que a figura feminina se encontra e que aparece
em tamanho gigante, bem maior do que o tamanho normal de um
objeto desse tipo. Aliás, nessa ilustração, não há uma linha do horizonte
nem mesmo algum outro elemento que pudesse indicar onde a figura
feminina se encontra do ponto de vista de sua localização espacial. Nesse
cenário indefinido, sem linhas divisórias, o telefone é o único elemento
presente, o que podemos tomar como um indício de que a mulher em
questão supervaloriza esse telefonema pelo qual está esperando, o que
poderia explicar, inclusive, a aflição pela qual parece estar passando.
A próxima capa também ilustra uma cena em que há uma mulher
carente: nessa capa, há uma mulher prestes a mergulhar numa taça de
milk-sake, o que podemos dizer considerando a roupa de banho que
está trajando, a posição de seu corpo (pernas e braços em posição de
mergulho), sua localização na ilustração (pés na borda da taça de milk-
sake), o tamanho da taça de milk-sake (bem maior do que o tamanho
da figura feminina). Pelo título da obra, que é uma tautologia, podemos
inferir que a figura feminina da ilustração tem dificuldades de aceitar
o término da relação na qual estava supostamente envolvida. Essa
inferência, por sua vez, leva-nos a uma outra, isto é, de que vai mergulhar
na taça de milk-sake justamente porque a relação acabou, o que a deixou
com o “coração partido”, conforme a ilustração também sugere (ao lado
da taça de milk-shake há pequenos corações partidos). Nesse sentido,
podemos dizer que a capa ilustra a cena de uma mulher carente (de
coração partido) que está prestes a consumir doce (mergulhar no milk-
sake) porque está frustrada emocionalmente, como se estivesse tentando
“afogar as mágoas”, daí o mergulho na taça. Vejamos:

133
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

FIGURA 3: capa da obra “Quando termina é porque acabou”


(BBEHRENDT; RUOTOLA-BEHRENDT, 2006)

Do nosso ponto de vista, a capa em questão dialoga com a capa


da primeira obra analisada (figura 1), pois faz uso de alguns recursos já
identificados na ilustração dessa capa: a cor de rosa, uma figura feminina
infantilizada. A esse respeito, destacamos não só o tipo de ilustração
relativa à figura feminina, que lembra muito um desenho infantil, como
também outros elementos da ilustração, como o tipo de bóia que traz
em volta do corpo (bóia infantil) e os pequenos corações partidos que se
encontram ao lado da taça de milk-sake na qual está prestes a mergulhar.
Passemos para outra obra de autoajuda para mulheres, isto é, a obra
de “Mulher em primeiro lugar” (SANSONE, 2008). O subtítulo da obra
é: “mãe de 10 filhos ensina como cuidar da família, manter a boa forma
e ser feliz no casamento”. Pelo subtítulo, notamos como o discurso de
autoajuda associa às mulheres os mesmos temas de sempre: cuidados
com a família (maridos e filhos) e com a beleza. Algumas das seções da
obra também se referem a esses temas. Por exemplo, sobre o tema da
beleza temos: “Inclua a malhação na rotina diária” (SANSONE, 2008:

134
Anna Flora Brunelli

64), “Mantenha-se em dia com o básico da beleza” (SANSONE, 2008:


71). Sobre o tema do casamento, há seções como: “Demonstre admiração
por seu marido” (SANSONE, 2008: 95), “Resgate a sensualidade dos
tempos de namoro” (SANSONE, 2008: 122). Por fim, sobre o tema da
família: “Reúna a família” (SANSONE, 2008: 161), “Crie um lar seguro”
(SANSONE, 2008: 162), “Faça das refeições um momento de alegria”
(SANSONE, 2008: 157), “Ensine as crianças a organizar a própria vida”
(SANSONE, 2008: 171). Vejamos a capa da obra:

FIGURA 4: capa da obra “Mulher em primeiro lugar” (SANSONE,


2008).

Nessa capa, a ilustração está colocada ao lado do subtítulo do livro,


que nos ajuda a interpretá-la. Assim, a mulher representada na ilustração
é a que “cuida da família”, que “mantém a boa forma” e que é “feliz no
casamento”. A imagem da mulher que cuida da família diz respeito ao
fato de a mulher estar segurando um bebê de colo com a mão esquerda
e ter um menino pendurado na sua perna esquerda. Essas crianças

135
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

seguramente representam os filhos; daí a imagem da mulher como


mãe. Além disso, notamos que está segurando uma bandeja na sua mão
direita, onde há uma jarra cheia e um copo. A presença desses elementos
sugere que ela está prestes a servir essa bebida a alguém, provavelmente
a alguém da própria família (marido ou filhos), o que remete à imagem
da mulher como dona de casa, como a responsável pelos cuidados
domésticos com a família.
Por outro lado, notamos que a figura feminina está trajando vestido
vermelho, que não esconde o contorno de seu corpo, especialmente o
contorno dos seios e das pernas, o que sugere que se trata de um vestido
transparente. Tais elementos (a cor vermelha e a transparência) são
tradicionalmente considerados elementos de sedução, idéia que parece
estar associada à imagem da mulher que “mantém a forma” e que, assim,
consegue “ser feliz no casamento”. Realizamos essa leitura considerando
também o fato de que há na obra uma seção sobre casamento, na qual
se reafirma a velha tese de que o sucesso de um casamento depende
também de que o casal mantenha uma vida sexual ativa. Desse modo,
o discurso de autoajuda, (re)afirmando a importância de a mulher
“manter a atração física”, apresenta à mulher que desempenha o papel
de esposa uma série de “dicas” (por exemplo “um batom pode fazer
maravilhas”) para que “mantenha a energia sexual em dia”, para que
“resgate a sensualidade dos tempos de namoro”. É nesses termos que
relacionamos a sensualidade da mulher representada na capa com a
possibilidade de ela ser “feliz no casamento”.
Considerando conjuntamente essas imagens, podemos dizer
que a capa ilustra uma cena que funde três cenas relativas a papéis
tradicionalmente associados a mulher, ou seja, a cena da mulher cuidando
dos filhos (papel de mãe), a cena da mulher servindo a família (papel
de esposa tradicional) e a cena da mulher que está pronta para seduzir
(papel de sedutora). Assim, podemos inclusive dizer o título “mulher
em primeiro lugar”, pode ser lido apenas de uma única forma, embora

136
Anna Flora Brunelli

fora desse contexto, o sintagma nominal em questão pode ser lido, pelo
menos, de duas formas: “mulher que está em primeiro lugar” (alguém
aí a colocou, por algum de seus méritos) ou “mulher que coloca a si em
primeiro lugar”.
Como se trata de uma obra de autoajuda, a segunda leitura poderia
até ser considerada mais esperada, em função de uma tese do discurso
de autoajuda segundo a qual as pessoas de sucesso são pessoas que
sabem se valorizar, que tem autoestima elevada (BRUNELLI, 2004).
Mas, considerando que a ilustração apresentada funde os papéis sociais
normalmente associados a mulher, entendemos que a mulher que
está em primeiro lugar (na ilustração, a mulher está em cima de um
pódio, ocupando o lugar reservado ao primeiro colocado) é aquela que
desempenha todos esses papéis sociais. Portanto, “estar em primeiro
lugar” significa, nesse caso, desempenhar bem os seus papéis sociais e
não simplesmente “valorizar-se”, “colocar-se em primeiro lugar”.
A esse respeito, notamos que ela se encontra no pódio apoiada
apenas na perna direita, já que seus braços e a perna esquerda estão
ocupados. Além disso, notamos que está de salto alto. Assim, ela parece
estar se equilibrando nesse lugar, como se estivesse encontrado o ponto
de equilibro de todos os pesos envolvidos (o peso do seu corpo, o peso
da bandeja que carrega, o peso dos filhos), o que reforça a idéia de que
se trata de uma mulher que está no pódio por um mérito, que é afinal a
idéia tradicionalmente associada à prática de se subir ao pódio.
Nesses termos, a capa se vale de uma outra cena, que é uma cena
validada, nos termos de MAINGUENEAU (2006). Conforme já dito,
segundo o autor, as cenas validadas são as cenas já instaladas na memória
coletiva, na qualidade de modelos a serem valorizados ou rejeitados. No
caso em questão, a cena validada é a cena da subida ao pódio, que é
valorizada nesse contexto. Como se sabe, sobem ao pódio apenas os
atletas que tiveram um desempenho diferencial, superior entre os de sua
categoria.

137
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

Assim, a mulher que sobe ao pódio é aquela que consegue


desempenhar os papéis sociais que tradicionalmente lhe são associados e
o “sucesso” está justamente em saber equilibrar as tarefas relativas a esses
papéis. A esse respeito, citamos as palavras empregadas pela autora da
obra ao apresentá-la: “Este livro é resultado de minha experiência (...). É
ainda consequência da descoberta do ponto de equilíbrio entre minha
individualidade, minha família e meu casamento (...)” (SANSONE,
2008: 15; grifo nosso). Vejamos ainda a advertência que se encontra
na contracapa da obra: “o título mulher em primeiro lugar parece feito
sob medida para agradar às feministas de plantão. Parece, mas não é”
(SANSONE, 2008: contracapa).
Diante do exposto, concluímos que a ilustração da capa se constrói
reproduzindo velhos estereótipos associados à mulher.
Vejamos outra capa de obra de autoajuda para mulheres:

FIGURA 5: capa da obra “Por que os homens amam as mulheres


poderosas” (ARGOV, 2009).

138
Anna Flora Brunelli

Essa capa reproduz uma cena bastante conhecida em nossa cultura


(cena validada), isto é, a cena de um homem que corteja uma mulher ao
lhe oferecer uma rosa vermelha, flor que normalmente é associada ao
sentimento de paixão. Esse botão da rosa é o único elemento não verbal
que recebe cor nessa capa, contrastando com os outros elementos da
ilustração, todos em preto e branco, e com o fundo branco da capa, o
que dá destaque à rosa (portanto, a paixão do homem pela mulher). A
mulher, por sua vez, está metonimicamente representada por meio de
uma bota preta de cano alto, calçado que é considerado como um objeto
de fetiche, o que remete à imagem da mulher sedutora.
Notamos também que há uma diferença relativa aos tamanhos
dos elementos presentes na ilustração: o tamanho da perna da mulher
(metonimicamente representada pela bota) é muito maior que o tamanho
do homem. Desse modo, podemos entender que essa mulher sedutora,
“mulher poderosa” mencionada no título, aparece para os olhos dos
homens como um grande objeto de fetiche; a esse respeito, parece-nos
que o subtítulo da obra também reforça essa idéia ao lhe conferir o
atributo de “irresistível”.
Além disso, considerando a posição da figura masculina em relação
à feminina (homem está ao pé da mulher), a diferença de tamanho e o
próprio fato de a mulher ser representada metonimicamente por uma
bota (vestuário para os pés), podemos dizer que essa ilustração dialoga
com a expressão “estar aos pés”, que remete a submissão, disponibilidade.
Todas essas informações, quando tomadas conjuntamente, nos
permitem dizer que a cena ilustrada na capa não é exatamente a da cena
de um homem cortejando uma mulher qualquer, mas a cena de um
homem que está cortejando a mulher poderosa mencionada no título,
diante da qual não lhe resta outra alternativa a não ser tentar conquistá-
la (na contracapa, afirma-se que é questão de honra para os homens
tentar conquistar esse tipo de mulher). Desse modo, podemos dizer,
considerando inclusive o conteúdo dos textos verbais da obra (texto e
paratextos) que a mulher é cortejada justamente por ser uma mulher
poderosa. Ou seja, é essa mulher que pode, que tem as condições para

139
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

ser amada pelos homens, conforme diz o título da obra, isto é, “por que
os homens amam as mulheres poderosas”.
A esse respeito, vale voltarmos novamente ao subtítulo da obra
que também aparece na capa, embaixo do título e um pouco acima da
ilustração da figura masculina: “um guia para você deixar de ser boazinha
e ser tornar irresistível”, ou seja, essa mulher poderosa é irresistível
para os homens, por isso ela é cortejada, ao contrário da boazinha,
que é enfadonha para o homens, conforme está inclusive afirmado na
contracapa da obra, a saber: “É que você é boazinha demais. E não há
nada mais enfadonho para um homem do que uma mulher que passa o
tempo todo se esforçando para agradá-lo” (ARGOV, 2009: contracapa).
Outras expressões que são empregadas, nessa mesma obra, em
referência à mulher poderosa e que remetem ao seu poder de sedução:
“mulher encantadora e cheia de magnetismo” (orelha da capa), “mulheres
que conseguem arrancar suspiros de todos os homens que as cercam”
(orelha da capa), “mulher sedutora” (p. 51), “provocadora” (p. 58),
“mulher irresistível” (orelha da contra-capa).
A seguir, reproduzimos outra capa que ilustra uma cena próxima à
anterior. Vejamos:

FIGURA 6: capa da obra “Por que os homens se casam com as


mulheres poderosas?” (ARGOV, 2010).

140
Anna Flora Brunelli

Conforme podemos notar, trata-se mesmo de uma ilustração bastante


parecida com a anterior, e que também parece se valer da expressão “ter
X aos pés”, o que nesse caso é ainda mais evidente, considerando-se um
dos enunciados verbais presentes na capa: “um guia para solteiras ou
casadas deixarem os homens a seus pés”.
Essa capa também se vale de uma cena validada, bastante
próxima a cena do cortejo, que é a cena de um pedido de casamento,
tradicionalmente representada por um homem ajoelhado perante uma
mulher para a qual oferece um anel de noivado (anel de diamante).
Aliás, podemos notar que o anel é proporcional ao tamanho da figura
feminina, mas desproporcional à figura masculina. O fato de o anel se
ajustar ao tamanho da figura feminina pode ser lido como um indício de
que, assim como anel, o pedido de casamento também se ajusta a ela, ou
seja, ele está de acordo com seus desejos e expectativas.
Desse modo, podemos dizer que a capa também está reproduzindo
uma imagem conhecida de mulher, segundo a qual as mulheres querem
se casar. O vestuário tanto da figura masculina quanto da feminina, por
sua vez, remete a cena do próprio casamento: o homem de casaca e a
mulher com um vestido longo que aparece levantado na parte lateral,
fazendo surgir uma perna com cinta-liga, que é uma peça de vestuário
comercializada como uma peça de sedução/fetiche e também associada
a indumentária das noivas. A esse respeito, vale notarmos que a cena da
mulher que exibe as pernas para o homem também pode ser considerada
uma cena tradicional de sedução.
Desse modo, a cena ilustrada pode ser tomada como produto da
fusão das seguintes cenas validadas: cena da sedução da mulher pelo
homem, cena do pedido de casamento e cena do casamento.
A cena do pedido de casamento também está presente na capa da
obra apresentada a seguir:

141
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

FIGURA 7: capa da obra “Por que os homens casam com as mulheres


poderosas?” (ARGOV, 2013)

Nessa capa, a cena do pedido de casamento se deve à ilustração de


um homem que está colocando um anel de noivado (anel de diamante)
na mão direita de uma mulher (sabe-se que é uma mulher pelas unhas
longas pintadas de vermelho e pela presença das pulseiras no braço da
mulher). Novamente a mulher está metonimicamente representada por
uma parte de seu corpo; nesse caso, pela mão e parte do braço. Mais
uma vez, há elementos que remetem à imagem da mulher sedutora: as
unhas longas e vermelhas, o sapatinho de salto como adorno de uma das
pulseiras que traz no braço.
Um aspecto que nos chamou a atenção em todas essas capas em
que a mulher é representada no seu papel de sedutora é que a idéia de
sedução aí implicada parece ser exatamente a mesma, correspondendo,
do nosso ponto de vista, a uma das modalidades de sedução tratadas por
BIRMAM (1999).
No trabalho em questão, o autor analisa o território da feminilidade
de um ponto de vista psicanalítico, considerando, entre outras coisas,
que a sedução tem formas de ser que são construídas historicamente,
apesar de aparecem atemporais, como se fossem atributos do sujeito
exteriores à história. Nas palavras do autor:

142
Anna Flora Brunelli

(...) É para os enunciados dessa matriz antropológica


sobre a sedução que pretendo primeiro me dirigir, para
analisar em seguida as acoplagens intersubjetivas que
estão em jogo nesse cenário.
Num primeiro olhar e na escuta originária desses
enunciados estabelecidos sobre a sedução, que nos
possuem como forma de ser, o que podemos deles
dizer? Antes de mais nada, que são bastante saturados,
em excesso, talvez. Essa saturação se deve ao fato de
eles serem permeados por muita memória e muitos
preconceitos.
Põe memória nisso! (...). Perdemos, em relação a eles,
a noção de suas origens. Por isso mesmo, atribuímo-
lhes uma total atemporalidade, como se fossem marcas
do sujeito completamente exteriores à história. A
indagação inicial a ser feita sobre isso diz respeito
à historicidade e à temporalidade desse sistema
de marcas, pois pretendo questionar essa suposta
eternidade atribuída às formas de ser da sedução. Isso
não implica dizer que a sedução não seja um atributo do
humano e do sujeito, mas sim afirmar, em contrapartida,
que as formas que dela conhecemos e que nos
regulam na nossa existência atual foram construídas
na modernidade (BIRMAN, 1999: 112; grifos nossos).

Apesar de não pretendermos nos aprofundar nessa questão, o que


exigiria a mobilização do referencial teórico da psicanálise, parece-nos
que a forma de sedução presente nessas cenas diz respeito à concepção
de sedução construída na modernidade, como herança de ideais eróticos
forjados na virada do século XVIII para o século XIX.

143
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

Segundo BIRMAN (1999), essa noção de sedução é considerada como


se fosse algo de maléfico, marcada pela ânsia do sedutor em realizar a
captura do outro. Desse modo, o sedutor visaria à mortificação do outro,
que seria a sua presa, a ser tomada pela ação predatória do sedutor. Daí
o valor negativo associado à sedução, como se o sedutor tivesse mesmo
a intenção de provocar a dessubjetivação de quem seria o seduzido. A
esse respeito, BIRMAN (1999) afirma que o sedutor pretenderia retirar
do seduzido aquilo que é essencial ao seu ser e imobilizá-lo.
Se considerarmos que o discurso de autoajuda para mulheres visa
justamente ensinar o que as mulheres devem fazer para se transformarem
em mulheres sedutoras, isto é, capazes de atrair os homens a tal ponto de
eles passarem a atender efetivamente suas expectativas (de casamento,
de relacionamento etc), num processo de dessubjetivação, conforme
os termos de BIRMAN (1999) supracitados, entendemos, então, como
essa modalidade de sedução, a sedução-captura, se ajusta exatamente
ao discurso de autoajuda, que estaria, assim, atualizando-a nas cenas
ilustradas nas capas. Desse ponto de vista, o tamanho reduzido da
figura masculina nas ilustrações estaria relacionado a esse processo de
dessubjetivação. Assim, nas cenas das capas em questão, além da cena
validada, haveria sobreposta (ou combinada?) também uma cena de
sedução-captura.

Conclusões
Ao analisar capas de obras de autoajuda para mulheres, notamos
que o discurso de autoajuda se vale de cenas nas quais a mulher é
retratada de um modo tradicional. Assim, o discurso de autoajuda
associa as mulheres a cenas relativas a uma situação de carência, a cenas
de cuidados com a família, a cenas de pedido de casamento, a cenas de
sedução, reproduzindo, nessas cenas, imagens tradicionais de mulher,
ou seja, velhos estereótipos femininos, tais como o da mulher frágil e

144
Anna Flora Brunelli

carente, o da esposa tradicional que serve a família, o da mãe que cuida


dos filhos, o da esposa que serve ao marido, o da mulher interessada em
se casar, o da mulher sedutora.
Do ponto de vista da Psicologia Social, os estereótipos, na
qualidade de representações cristalizadas sobre um grupo social,
independentemente de terem ou não uma base factual, representam o
status social e os papéis do grupo como se fossem uma essência imutável
(AMOSSY, R.; PIERROT, 2001). No caso da mulher, por exemplo, mais
do que reflexos da essência feminina, os estereótipos refletem os papéis
sociais da mulher, o que se espera que ela faça ou que continue fazendo.
Desse ponto de vista, podemos dizer que o discurso de autoajuda
para mulheres, ao reproduzir cenas validadas em que se identificam
estereótipos femininos tradicionais, não deixa de colaborar para que as
expectativas relativas a mulher sejam as mesmas, ou seja, para que ela
mantenha os mesmos papéis sociais (mãe, esposa, sedutora).
Essas conclusões dizem respeito ao discurso de autoajuda para
mulheres propriamente dito. Por outro lado, do ponto de vista dos
estudos discursivos, a reflexão desenvolvida, apesar de breve, corrobora
a aplicabilidade do conceito de cena e, mais especificamente, de cena
validada para a Análise do Discurso. Na verdade, assim como bem
observado por POSSENTI (2008), num trabalho em que analisa a
cenografia de um conjunto de peças publicitárias, os conceitos propostos
por Maingueneau relativos à enunciação dispensam demonstrações de
aplicabilidade, até porque os próprios textos do autor já o fazem muito
bem. Por isso, afirma o autor, resta-nos apenas a possibilidade de mostrar
novamente essa aplicabilidade, que foi o que fizemos aqui, analisando as
ilustrações das capas das obras de autoajuda para mulheres.

145
Cenas Validadas e Estereótipos no Discurso da Auto-Ajuda

Referências
ABRÃO, S. Abaixo a mulher capacho. Barueri: Malone, 2009.
______. Homens que somem. Barueri: Malone, 2013.

AMOSSY, R.; PIERROT, A. H. Estereotipos y clichês. Buenos Aires:


Editorial Universitária de Buenos Aires, 2001.

ARGOV, S. Por que os homens amam as mulheres poderosas: um


guia para vocês deixar de ser boazinha e ser tornar irresistível. Rio de
Janeiro: Sextante, 2009.
______. Por que os homens se casam com as poderosas. Rio de
Janeiro: BestSeller, 2010.
______. Por que os homens casam com as mulheres poderosas.
Rio de Janeiro: Sextane, 2013.

BARROS, D. L. P. Cor e sentido. In: BRAIT, B. SOUZA-E-SILVA, M.


C. (orgs). Texto ou discurso. São Paulo: Contexto, 2012. p. 81-107.

BEHRENDT, G.; TUCCILLO, L. Ele simplesmente não está a fim


de você: entenda os homens sem desculpas. Rocco, 2005.

BEHRENDT, G.; RUOTOLA-BEHRENDT, A. Quando termina


é porque acabou: juntando os caquinhos e dando a volta por cima.
Rocco: 2006.

BIRMAN, J. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999.

BRUNELLI, A. F. O sucesso está em suas mãos: análise do discurso


de autoajuda. 2004. xx f. Tese (Doutorado em Linguísitica). Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2004.
______. Estereótipos de mulher no discurso de autoajuda. Cadernos
de Linguagem e Sociedade. 2012, v. 13 (2), p. 102-116.

146
Anna Flora Brunelli

CARTER, S.; SOKOL, J. O que toda mulher inteligente deve saber:


como lidar com os homens com sabedoria e conseguir o amor que você
merece. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
______. Homens gostam de mulheres que gostam de si mesmas:
e outros segredos que as mulheres inteligentes sabem. Rio de Janeiro:
Sextante, 2008.

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D., Dicionário de Análise


do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

FORLEO, M. Deixe os homens a seus pés: como se tornar uma


mulher poderosa e irresistível. Universo dos Livros, 2011.

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições,


2005.
______. Cenas da enunciação. POSSENTI, S.; SOUZA-E-SILVA, M.
C. P. (orgs.). Curitiba: Criar Edições, 2006.

POSSENTI, S. Um dispositivo teórico-metodológico. In:


POSSENTI, S.; BARONAS, R. L. (orgs). Contribuições de Dominique
Maingueneau para a Análise do Discurso do Brasil. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2008. p. 201-212.

SANSONE, K. Mulher em primeiro lugar: mãe de família ensina


como cuidar da família, manter a boa forma e ser feliz no casamento.
Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Recebido em 30/11/2014 e Aceito em 22/03/2015.

147
ILLUSTRATION: REPRESENTATION AS AN
INTERPRETATION OF THE SYMBOLIC

A ILUSTRAÇÃO: DA REPRESENTAÇÃO COMO


INTERPRETAÇÃO DO SIMBÓLICO

Roselene de Fatima COITO


Universidade Estadual de Maringá (UEM/Gpleiadi/CNPq)

RESUMO
Partindo, sobretudo, de postulados teóricos propostos pelos filósofos Gilles Deleuze e Michel
Foucault, desenvolve-se no presente artigo uma reflexão acerca da ilustração como forma
de representação da interpretação do simbólico. Abordando aspectos de sua história,
busca-se verificar a capacidade da ilustração para expressar o simbólico por meio de sua
materialização, constituindo-se, assim, como produto sociocultural que articula o verbal e o
não verbal. Como produto comercial, a ilustração será examinada do ponto de vista de sua
circulação, estabelecendo-se tanto como bem material quanto como bem intelectual.

ABSTRACT
Drawing upon the principles from philosophers Gilles Deleuze and Michel Foucault,
this article is a reflection about illustration as a form of representation of the symbolic
interpretation. Addressing aspects of its history, it is intended to expose the power of
illustration to express the symbolic through its materialization, articulating verbal and
nonverbal as a sociocultural product. As a commercial product, illustration will be examined
in regards to its circulation, establishing itself as both material and intellectual goods.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; ilustração; interpretação do simbólico.

KEYWORDS
Discourse; illustration; symbolic interpretation.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 149-167, jul./dez. 2015


A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

Introdução
Partindo da citação de Gilles Deleuze, que faz parte d` O ato da
criação, palestra proferida em 1987 e publicada na Folha de S. Paulo
em 27/06/1999, texto no qual o filósofo francês discute a ideia como
potência para o cinema e para a filosofia, busca-se neste princípio, qual
seja, a ideia como potência, a ilustração como uma das práticas desta
ideia, já que a ciência, tal qual preconiza o outro filósofo francês Michel
Foucault, é um campo do saber e como tal não é menos criadora do que
a arte.
A ilustração tem uma história, assim como a filosofia, a ciência,
a literatura, o cinema entre outras. Sua história passa pela questão da
produção e da circulação do dizer, dizer este que numa mesma época
e em épocas diferentes são “produtos” sociais e comerciais que se
diferenciam, que se igualam e que se plurificam, conforme veremos mais
adiante.
Como “produtos” sócio-culturais, pode-se entender a ilustração na
sua transparência e na sua opacidade na materialização do simbólico.
Dito de outro modo, aquilo que ilustra traz à luz aquilo que se pretende
dizer e, ao mesmo tempo, pode trazer aquilo que se diz de outra maneira.
Devido a isso, a articulação do verbal e do não verbal nem sempre
produz um efeito de semelhança do dizer, mas pode produzir um efeito
de similitude do dito.
Já como produto comercial, a ilustração, tal qual a história do
impresso, circulou e/ou circula como um bem material e também como
um bem intelectual, dependendo da técnica proposta pelo ilustrador,
ou seja, técnica entendida tanto como estratégias de construção do
dizer em imagens, como uma materialidade específica ou, ainda como
preconiza Heidegger, como desvelamento do mundo que se dá por meio

150
Roselene de Fátima Coito

da linguagem.

Diante disso, trataremos da ilustração como uma forma de


representação da interpretação do simbólico, já que a representação,
na epistême da modernidade, conforme Foucault,é a interpretação.
Contudo, antes faremos algumas considerações acerca da ilustração e da
representação.

1. A ilustração como produto sócio-cultural e como


produto comercial: um pouco de(a) história
Michel Foucault, em A ordem do Discurso, assevera que o século XX
vive (viveu) a soberania do discurso. Contudo, ao arguir sobre isso, o
filósofo não descartou a imagem; apenas quis dizer que o discurso,
que tem uma ordem arriscada do dizer, vive (vivia) a sua plenitude.
Em contrapartida, outros estudiosos projetaram e projetam no século
XXI , não a soberania, mas a predominância da imagem, tanto que os
estudos sobre propagandas, charges, HQs, enfim destas mais variadas
linguagens, inclusive as virtuais, vêm ganhando destaque nas reflexões
atuais. Contrariamente do que se pretende dizer sobre a imagem, a
mesma não surgiu neste século, pois que acompanha o homem desde a
pré-história. Talvez a novidade esteja na maneira de se trazer a imagem
(aquele que produz e aquele que a interpreta) e não na imagem em si.
De acordo com John Berger (1999), as imagens, a princípio, foram
feitas para evocarem as aparências de algo ausente. Pode-se arrolar, a
partir disso, que os desenhos em cavernas eram a representação de uma
presença, a humana, a vegetal, a mineral, a celestial, mas de uma ausência
que era a língua. Devido a esta ausência, para o estudioso Alberto Manguel
(1997), a imagem poderia ser a própria coisa – como Júpiter para os
romanos, ou a imagem poderia ser um atributo ou substituição da coisa,
assim como era para os primitivos cristãos, tanto que a Igreja católica

151
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

apostólica romana mantém as imagens, principalmente da narrativa do


calvário de Cristo em quadros e/ou vitrais. Este era um hábito, que se
conserva nos dias de hoje, para a evangelização dos iletrados. Talvez
por causa disso, os estudos, principalmente os antropológicos, que se
referiam à imagem, eram tidos como um estudo do primitivo. Mas nem
sempre foi assim, já que junto com a história do livro há a história da
ilustração.
Segundo Philippe Kaenel1, há diferenças entre os “homens de
imagens”, no século XIX, na França. Há uma diferença entre os ofícios
e a lutas destes profissionais.
Inicialmente, “os artistas que trabalham para o livro são gravadores
– conhecidos como talhadores de histórias, talhadores de imagem em
papel, imageiros ou historeiros - que desde o último quarto do século
XIV entram em concorrência com os mestres iluministas”, de acordo
com Kaenel (1996, p. 14). Enquanto os gravadores usufruem do
benefício do estatuto de profissão livre, porque não aceitam o regime
corporativo, os mestres se assujeitam à comunidade de livreiros, de
pintores e escultores que detém o monopólio do ofício, o qual sofre da
censura religiosa – ora a Igreja proíbe o uso de imagens ora libera – e da
censura política – quando os reis determinam o que pode e o que não
pode circular a respeito de sua pessoa, das pessoas da corte e do seu
governo.
Os gravadores ao não se aliarem ao regime corporativo se indagam
a quem pertence a imagem: ao livreiro-impressor? Ao mecenas-
comandatário? Ao gravador? Ao leitor? Toda esta indagação deve-se ao
valor monetário da ilustração, que passava não só pelo material de que
era feita – madeira, metal, papel, como pela técnica artística empregada.
Havia uma disputa entre os impressores em letras, os “dominatiers”
(impressores de gravuras sobre madeira) e os livreiros. Conforme Kaenel,

1
A tradução do texto “Le métier d´illustrateur 1830 – 1880 – Rodolphe Töpffer, J. –J Grandville,
Gustave Doré” (1996), de Philippe Kaenel, é minha.

152
Roselene de Fátima Coito

(Os livreiros) sustentados pela comunidade de impressores


se esforçavam para fixar limites às prerrogativas dos
gravadores (taille-douce e xilógrafos) em se assegurando,
por exemplo, via penhora e processos, que a venda de
livros lhes seja proibida ou que as legendas de estampas
não excedam 6 linhas (1650). A história da edição dos
séculos XVI e XVII se caracterizam, assim, por uma série
de monopólios exercidos pelos ofícios mais ou menos
corporativos, mas, todos assujeitados à dupla censura,
religiosa e política. (KAENEL, 1996, p.13)

Este conflito de interesses fazia com que as gravuras custassem muito


caro, fato este que desencadeava a reutilização de gravuras (livrarias com
milhares de matrizes gravadas) e obras ornadas com vinhetas. Pelo fato
de a gravura encarecer bastante o livro – elas vinham avulsas, quando
de madeira ou de metal ou acompanhadas pelo texto quando de papel
– foi necessário que livreiros e gravadores se associassem para partilhar
“taxas” e benefícios. No curso do século XVI, os editores e os autores
se preocupam mais e mais em decorar suas obras. Então nova técnica
artística passa a vigorar, a da água-forte, que permitia um custo mais
barato e favorecia as desprofissionalização da estampa, fato este que se
prolonga no século XVII, século este em que o prestígio da ilustração
é enorme, e a vinheta torna-se respeitável, tanto que François Chaveau
é um dos primeiros a utilizar desta técnica para ilustrar, em forma de
vinheta, as fábulas de la Fontaine.
No século XVII, a prática da gravura em geral e da ilustração em
particular torna-se lucrativa. Segundo Kaenel (1996, p. 15), “a posição
do gravador sofre de uma certa indeterminação dada por sue duplo
estatuto: ficar próximo das artes mecânicas (do impressor) ou encontrar

153
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

distinção pelas artes liberais. Por fazer isso, deveria provar que sua prática
é conforme as suas normas”.
Em 1648, os mestres iluministas passam do regime corporativo
à tutela da Academia e as gravuras vão ganhando contorno de arte
acadêmica e deixando de pertencer a um universo mais popular, tanto que
no curso do século XVII os editores e autores começam a se preocupar
mais e mais com suas obras e quanto mais reconhecido o ilustrador, mais
valorizada sua obra, tanto que aqueles que eram considerados excelentes
gravadores passaram a ensinar a arte da gravura e passaram também a ter
um prestígio estatutário garantido pela instituição acadêmica.
No século XVIII, nobreza, arte, gênio e maneira são palavras que
devem guiar a prática da qualidade do gravador. A isso se junta à maestria
da perspectiva, ciência na qual Bosse defende e instala na universidade
quando professor.
Por adquirir um valor também estético-intelectual, alguns acreditavam
que a ilustração corrigiria alguma imperfeição da escrita, como era o
caso de Corneille e outros achavam que a ilustração “poluía” a história,
como era o caso de Victor Hugo. O fato é que, a prática da gravura
em geral e da ilustração em particular, torna-se lucrativa, trazendo
maiores discórdias entre os “homens das imagens” e certos escrivãos
que qualificavam a gravura como mercantil e a ela, enquanto valor de
mercado, opunham-se.
De acordo com Kaenel,

as edições ilustradas sofrem bastante com os contragolpes


da conjuntura econômica e política. Objetos preciosos
integrados em numerosas bibliotecas que a aristocracia
da nobreza constrói, eles (estes objetos) se tornam os
instrumentos suntuosos das elites no poder. Quanto à
função “interna” das ilustrações em relação ao texto,
elas (as ilustrações) permanecem como descritivas

154
Roselene de Fátima Coito

e informativas trazendo a imagem como extensão e


complemento da linguagem. (1996, p.16).
Kaenel assevera esta extensão da linguagem quando discute a
ilustração como vinheta, que tem seu auge no século XVIII, tanto que a
imagem preenche o livro, lota as páginas e devora o branco das páginas.
Se formos pensar nos séculos anteriores, da gravura me madeira ou em
metal, o mesmo não ocorria, já que delas eram feitas matrizes que se
colocavam em mais de uma história.
Outro elemento importante é que as livrarias grandes ficavam em
Paris e o custo das gravuras era altíssimo. Então as livrarias menores no
interior da França, procuravam copiar as gravuras que compravam das
matrizes das grandes livrarias e inseri-las em n livros diferentes.
Para finalizar, pode-se dizer que o ornamento ou o complemento do
texto torna-se um fim em si e o livro com vinhetas se transforma em um
objeto importante nos “embates” tanto econômicos como simbólicos,
no dizer de Kaenel (1996, p. 18). A partir desta pequena apresentação
da ilustração como “produto”, vemos que o aspecto sócio-cultural e o
econômico constituem a história da ilustração e sua função na sociedade
enquanto objeto simbólico.

2. Da representação: a caminho da epistême da


modernidade
Partindo do pensamento foucautltiano para pensara representação,
não devemos desconsiderar a historização das epistêmes que constituíram
o dizer do filósofo, em As palavras e as coisas (2000).
Michel Foucault, em As palavras e as coisas, projeto no qual se propõe
a refletir sobre uma arqueologia das ciências humanas, traz à baila a
prática ocidental de se pensar o Mesmo e o Outro. Para tanto, parte da
leitura de um texto de Jorge Luis Borges no qual o autor estabelece, por
meio de uma taxinomia, a catalogação de animais, funcionando como

155
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

uma semiologia em face da história e definindo a lei geral dos seres e, ao


mesmo tempo, as condições sob as quais é possível conhecê-los. Diz o
filósofo francês que, “[...]O impossível não é a vizinhança das coisas, é o
lugar onde elas poderiam avizinhar-se”. (FOUCAULT, 2000,p.11).
O texto de Borges inquieta Foucault porque traz uma nova
perspectiva do olhar; traz as heterotopias da linguagem. E, indaga-se
Foucault: Onde mais estas coisas poderiam se alojar se não fossem na
linguagem?, já que durante toda idade clássica

havia uma coerência entre a teoria da representação e as


teorias da linguagem e, a partir do século XIX a teoria
da representação desaparece como fundamento geral de
todas as ordens possíveis [ e ] a linguagem como quadro
espontâneo primeiro das coisas, como suplemento entre
a representação e os seres, desvanece-se. (FOUCAULT,
2000,p.20).

Estas colocações de Foucault devem-se à historização que o filósofo


faz da epistême desde o século XVI sobre a questão “como reconhecer
a representação em signo?”.
Diz ele que no século XVI era por meio da semelhança. Neste século,
os signos tinham sido depositados sobre as coisas e a semelhança se liga
à imaginação, às repetições incertas e às analogias nebulosas; no XVII
por meio da linguagem que vivia da transparência e da neutralidade,
sendo o signo constituído pelo conhecimento o que difere o homem do
animal; e, no século XVIII, pela máthésis e pela taxinomia, sendo que da
máthésis tem-se a ciência da medida e da ordem em que o instrumento
não é o método algébrico mas o sistema de signos, e da taxinomia o
saber dos seres na sua identidade e diferença, em que há a dissociação
entre signo e a semelhança.
Para discutir sua historização do saber nestes séculos, Foucault parte,
também, para o movimento do olhar na pintura. Da pintura de Diego

156
Roselene de Fátima Coito

Velázquez, na tela “As meninas” e das telas de René Magritte “A traição


das imagens” e “Os dois mistérios”.
Da pintura de Diego Velázquez, que inicialmente tinha como título
“A família”, produzido no século XVII, e, que em 1834 passa a intitular-
se “Las Meninas”, Foucault começa analisando o lugar do pintor na tela
e diz:

[...] O espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes


invisível: uma vez que se situa precisamente nesse ponto
cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se
furta a nós mesmos no momento em que olhamos....
Aparentemente, esse lugar é simples: constitui-se de
pura reciprocidade; olhamos um quadro de onde um
pintor, por sua vez, nos contempla... E, no entanto, essa
tênue linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma
rede complexa de incertezas, de trocas e de evasivas
(FOUCAULT, 2000,p.4 e 5)

Neste ponto de partida de Foucault em que o alvo é o olhar, o


labirinto se instaura, isto é, a representação traça um mapa em que
os caminhos são vários e a leitura da tela inscreve um dizer em que a
representação não é só mais o Mesmo e/ ou o Outro, mas o Mesmo,
o Outro e outros – aquele que pinta, aquele que é pintado e aquele que
pode estar sendo olhado para ser pintado (o leitor da tela). Os signos
são a representação e a representação são os signos. É um mis-en-scéne
de um mis-en- âbime. É este jogo entre a semelhança – instituída pelo
pensamento - e a similitude – encontrada na experiência - que se instaura
na tela e no dizer sobre a tela. É um reconhecimento da representação
em signo.
Véronique Foti2, no texto The represented representation (1996),
questiona esta reflexão de Foucault dizendo que em “As meninas” o
2
A tradução do texto “The represented representation” (1996) , de Véronique M. Foti, é minha.

157
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

lugar do soberano fica vazio e, na epistême da modernidade, é ocupado


na figura do homem. A questão de Foti pauta-se na pintura como um
tipo especial de visibilidade e, portanto, não desconsidera a historização,
mas a tem como insuficiente na análise da tela.
Indaga-se a estudiosa canadense:

É a pintura o não-discursivo ou forma parte do arquivo


visual sem ter nenhum poder de mudar as configurações
discursivas? (1996, s/p)

Como se pode notar, a sua preocupação resvala-se na importância


da materialidade da pintura para as teorias da representação; na
irredutibilidade da pintura para uma exploração teórica da visão e chama
a atenção pra a distinção que Foucault traça entre semelhança e similitude,
dizendo que ao fazê-lo promove uma leitura cartesiana da tela, instaura
uma perspectiva quase matemática em sua interpretação. Para Foti, “[...] a
pintura, ao contrário, chama a atenção para a sua própria materialidade”
(1996, s/p).Pode-se dizer que, embora Foucault volte seu olhar não para
a materialidade específica da pintura, o mesmo, ao colocar o homem no
centro das atenções – no dizer de Foti, assevera que a representação está
na ordem do reconhecimento do signo.
Já a leitura que Magritte faz da leitura que Foucault fez de
suas telas, após ler As palavras e as coisas, volta-se para os conceitos de
semelhança e de similitude. De acordo com Campos (2004), “Magritte
argumenta não existir entre as coisas, semelhanças, mas sim similitudes”.
Assevera Magritte:

As palavras Semelhança e Similitude permitem ao senhor


sugerir com força a presença – absolutamente estranha
– do mundo e de nós. Entretanto, creio que essas duas
palavras não são muito diferenciadas, os dicionários

158
Roselene de Fátima Coito

não são muito edificantes no que as distingue. Parece-


me que, por exemplo, as ervilhas possuem relação de
similitude entre si, ao mesmo tempo visível (sua cor,
forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso).
O mesmo se dá no que concerne ao falso e ao autêntico
etc. As ‘coisas’ não possuem entre si semelhanças, elas
têm ou não têm similitudes. Só ao pensamento é dado
ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve
ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece.
(apud CAMPOS, 2004, s/p).

Levando-se em consideração o lugar do qual fala Magritte, artista


plástico, e que o mesmo produziu telas em que há cachimbos, ora
ancorados em enunciados, como “A traição das imagens” em que
aparece um cachimbo e o enunciado “Ceci n´est pas une pipe” (isto não
é um cachimbo), pondo em xeque o próprio conceito de representação
como semelhança, pois que não é um cachimbo mas a representação de
um cachimbo na similitude das imagens – desenho e escrita - no que
elas têm de visível (forma, cor, profundidade) e de invisível (paladar e
olfato) no desenho e forma, cor,traço e sentido na escrita, e na tela “ Os
dois mistérios”, em que há um cachimbo solto no ar, em primeiro plano,
e um cachimbo pintado em tela, em cima de um acavalete com o dizer
“isto não é um cachimbo” dentro da tela maior propicia uma série de
interrogações que Magritte faz ao longo de sua vida, segundo Campos.
Ainda de acordo com Campos, em “A traição das imagens”, “o
contraste é afirmado por uma negação e parece baseado num jogo
bastante simples: o enunciado negativo é ambíguo porque baseado num
dêitico (‘isto’), que tanto pode se referir ao tema do desenho quanto ao
próprio desenho” (2004,s/p) , que instaura a reflexão sobre o enunciado
e o desenho, sendo que o enunciado propõe uma verdade – “isto não é
um cachimbo” enquanto que o desenho “prova” ser aquilo um cachimbo

159
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

e nega esta proposta de verdade. Cria, então a tela, uma ambiguidade


entre o ser e o parecer, entre a representação do real e a realidade da
representação; aquilo que representa e aquilo que mostra ou apresenta.
Já na tela “Os dois mistérios”, segundo Campos, “nos incita a perceber
sua condição de representação duplamente referenciada” (2004, s/p).
Contudo, ainda nos alerta o autor, o enunciado pode estar negando não
só o cachimbo pintado na tela sobre o cavalete, mas também o cachimbo
solto no ar em tamanho maior no primeiro plano, possibilitando assim
que “um desenho que representa muito bem um objeto não se torna em
função disso, ele próprio, aquele objeto” (CAMPOS, 2004,s/p).
Outrossim, a relação entre o enunciado e o desenho, conforme
Campos, faz lembrar uma operação caligramática que exerce

um triplo papel: a) o de compensar o alfabeto; b) o de repetir o


que foi dito, sem o recurso da retórica ; c) o de prender as coisas
na armadilha de uma dupla grafia, aproximando, ao máximo,
o texto e a figura, de modo a apagar qualquer fronteira
entre o dizer e o figurar, entre o articular e o produzir e o
reproduzir, entre o significar e o imitar, entre o ler e o olhar.
(CAMPOS, 2004, s/p – grifos do autor)

Portanto, conclui Campos, “cabe ao caligrama garantir uma dupla


captura” (2004, s/p) em que nem os discursos e nem os desenhos são
capazes por si sós. E foi isso que Magritte propôs ao produzir as suas
telas: o caligrama silencioso.
Nesta produção caligramática está sendo posto em jogo a
representação enquanto enunciado e enquanto desenho. Contudo,
levando-se em consideração que a representação está na ordem do
reconhecimento do signo, pode-se dizer que tanto o enunciado quanto
o desenho estão no plano da semelhança – enquanto pensamento – e no
plano da similitude – enquanto experiência.

160
Roselene de Fátima Coito

Pensando na relação que se estabelece entre os enunciados do texto


infantil e nas ilustrações que os acompanham, poderíamos traçar uma
aproximação de uma materialização do discurso literário infantil, no
nosso caso em específico de Clarice Lispector, no livro A mulher que
matou os peixes, enquanto caligrama, pois que o desenho (ou ilustração)
pode vir a compensar o alfabeto, já que Corneille, Racine, Moliére assim
acreditavam, como foi visto anteriormente, que o desenho pode ser a
repetição do dizer, quando a ilustração compõe um livro de imagens
e, finalmente, que o desenho vem numa simbiose com o enunciado
apagando a fronteira entre o dizer e o figurar. Portanto, dependerá de
como é traçada a “sintaxe”, tanto na composição quanto na leitura -
entre o enunciado e o desenho para se estabelecer uma mapa da leitura
da ilustração.

3. Da interpretação: percorrendo mapas da leitura da


ilustração.
No capítulo, “O que as crianças dizem”, do livro Critica e clínica
(2004), do francês Gilles Deleuze, o filósofo assevera que

a criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer:


explorar os meios por trajetos dinâmicos, e traçar o
mapa correspondente. [Ainda, conforme Deuleuze],
o trajeto se confunde não só com a subjetividade dos
que percorrem um meio mas com a subjetividade do
próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que
o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o
percurso e o percorrido. (DELEUZE, 2004, p.73).

Explorar os meios, traçar o mapa, percorrer o trajeto numa simbiose


de subjetividades, faz da imagem um lugar em que os sentidos se dão.

161
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

Em outros termos, explorar, traçar e percorrer é um exercício de


interpretação dos sentidos e de seus efeitos em materialidades diversas.
Já está posto que o dizer vive de sua incompletude porque os sentidos
estão sempre em movimento, de acordo com Orlandi, quando a mesma
postula o efeito de sentido na língua. Na imagem, não é diferente. Ela
tem um trajeto de leitura e neste trajeto é possível estabelecer sentidos
que deleuzeanamente são os devires. Estes são as possibilidades
de interpretação, já que os sentidos não são únicos e nem evidentes,
embora assim se pretendam. De acordo com Orlandi, “a interpretação é
o vestígio do possível” (2004, p18).
Diante destas colocações, seria o vestígio uma pista para o
reconhecimento do signo?
Penando neste viés, vamos apresentar aqui uma reflexão sobre a
ilustração do texto infantil de Clarice Lispector, A mulher que matou os
peixes, em duas edições diferentes, em 1983, realizada por Carlos Scliar e,
em 1999, por Flor Opazo. O propósito aqui é discutir a ilustração como
representação, e, como tal, o reconhecimento do signo.
Em A mulher que matou os peixes, a narradora já revela no primeiro
enunciado que foi ela que os matou. A história vai sendo tecida com
pequenas narrativas de vários animais, como os peixes, a gata, o rato, a
macaca e os cachorros. Selecionaremos dois momentos da narrativa que
ilustra o verbal e o não-verbal.
Na edição de 1983, ilustrada por Scliar, temos o recorte da seguinte
passagem:

Bem, agora descansem um pouco porque vou contar


uma história tão terrível que até parece filme de mocinho
e bandidos. É uma história de amor e ódio misturados
num só coração.
Já descansaram? Bem, então prestem bastante atenção
porque essa história de cachorro é terrível mesmo. Não
pensem que estou inventando as minhas histórias. Dou a

162
Roselene de Fátima Coito

minha palavra de honra que as minhas histórias não são de


mentira: aconteceram mesmo. (LISPECTOR, 1983, p.35).

Neste fragmento do texto verbal, Scliar produz uma ilustração de


um gato, em que aparece apenas a cabeça e uma pata, em traços sem
nenhuma cor. Neste mesmo fragmento da edição de 1999, ilustrado por
Flor Opazo, há a ilustração da macaca Lisete morta, a qual se refere
a um trecho anterior. A partir destas observações podemos dizer que
Scliar produz um sentido pela ausência e pela oposição, isto é, ausência
do desenho de um cachorro e oposição que se tem do cachorro, o gato,
enquanto que Opazo marca a presença pela ausência do signo ou de um
signo qualquer.
Tendo-se em vista que, aqui tomamos a técnica como aquilo que vem
à tona, como desvelamento do mundo que se dá por meio da linguagem,
nos pressupostos heideggerianos, a interpretação, como vestígio do
possível, permite dizer que na similitude joga-se com a presença de uma
ausência na oposição da imagem. Dito de outra forma, o gato presente
na página marca aquele que está ausente e aquele que se opõe a este que
está ausente e que, também, na ausência da ilustração há (ou pode haver)
uma imagem imaginada.
Se as imagens foram feitas pra evocarem as aparências de algo
ausente, conforme Berger, ela poderia ser considerada como a coisa, um
atributo ou um substituo da coisa, como preconizou Manguel?
No caso da ilustração de Scliar, não evocou a aparência do que
estava ausente, já que houve uma inusitada subversão do pensamento –
da semelhança – na similitude – na experiência da imagem. Este trajeto
de leitura proposto por Scliar marca a própria subjetividade da imagem,
ou seja, ela vem traçada em linhas, sugerindo o desenho de um gato sem
cor mas com forma, esta [ a forma] que produz um efeito de oposição a
uma forma inexistente neste contexto do texto, o cachorro. Esta imagem
não funciona, neste caso, nem como atributo e nem como substituto da

163
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

coisa. Ela se mostra como uma outra significação, que não é nem do
Mesmo e nem do Outro, mas que significa e que produz sentidos.
Já na ausência da imagem neste mesmo trecho da narrativa, pode-se
inferir que esta ausência sugere uma presença, a do cachorro. Este tipo
de ausência que não a mesma ausência promovida pro Scliar, permite
que o trajeto de leitura se dê no âmbito de uma semelhança no nível do
pensamento, pois que, no pensamento um cachorro será sempre um
animal de quatro patas, com focinho, orelhas e rabo, independente de
qual imagem pode ser suscitada na mente.
Retornando ao que foi dito sobre a ilustração como “produto”
sócio-histórico, e, portanto, cultural, pode-se dizer que nestes dois tipos
de ausência não houve nem a presença da imagem como aquela que
supre uma falha do texto, como bem acreditava Corneille e que nem ela
vem como complemento – no sentido de repetição – do texto. Estas
ausências são mapas da leitura deste trecho do texto que interferirá – por
isso que a imagem é um devir, como assevera Deleuze – na interpretação
do texto como um todo.
Já em outra passagem da narrativa temos:

Bruno tinha um amigo, cachorro também, que vigiava


a casa de um vizinho. Esse amigo-cachorro de Bruno
chamava-se Max. (LISPECTOR, 1983, p. 36)

Nesta passagem, na edição de 1983, ilustrada por Scliar, não há


ilustração nem de Bruno e nem de Max. A trajetória será um caminho
percorrido pela magem da imaginação que o verbal produz no ato e
gesto do ler. Nesta mesma passagem, na edição de 1999, Opazo traz
a ilustração de dois cachorros se olhando gentilmente tendo entre eles
uma vasilha cheia de ração.
Diante do exposto, a primeira pergunta que ocorre é: esta ilustração
é o complemento do texto verbal?
Se entendermos que a ilustração repete, por seu sentido, o texto,

164
Roselene de Fátima Coito

pode-se, então, considerá-la como complemento. Contudo, se se pensar


que são materialidades diferentes e que apenas o instante pregnante
ou prenhe da narrativa foi captado, então ela não é. Neste sentido, a
representação como reconhecimento do signo se mostra plural: ao
mesmo tempo em que o verbal cria imagens, a ilustração cria o verbo,
ambos como simbólicos interpretados na leitura, já que, na materialidade
do texto, as significações podem ser diferentes e ambas significam.
E, por fim, pelo fato de o texto infantil de maneira em geral ser
ilustrado, pode-se dizer que se tem um mapa de leitura cujo percurso
é uma operação caligramática, em que a ilustração pode vir melhorar o
verbal, pode vir “repetir” o que foi dito e pode vir como uma “armadilha
de dupla grafia”. Por isso, a ilustração é mais que um desenho que enfeita
a página: ela é uma foram de representação que propicia a intepretação
do simbólico.

De um efeito de fim
O objetivo desta reflexão foi o de percebermos que sempre estivemos
envoltos e envolvidos com as imagens e que, por isso, elas não são uma
novidade do século XXI. Como já foi dito anteriormente, a maneira
de se olhar pra a imagem é que mudou e entendendo que o não verbal
significa tanto quanto o verbal, procuramos voltar nosso olhar para a
ilustração do livro infantil, pois que mesmo tendo trabalhos significativos
a este respeito, pouco se discute sobre esta forma de significar.
Trouxemos um pouco da ilustração no seu percurso histórico-
social e comercial para evidenciar o seu caráter de bem social, pois
que a tomamos como um elemento simbólico e do simbólico, sem a
preocupação, neste momento, de analisar sua materialidade pictural.
Por causa disso, também buscamos em Foucault a reflexão sobre a
representação, entendendo-a como um signo reconhecível que de século
a século se configura e se reconfigura para, enfim, traçar um percurso

165
A ilustração: da Representação como Interpretação do Simbólico

em que a leitura, que se configura como um mapa de devires, se mostra


como um trabalho de significações, de produções de sentido, de efeitos de.
Neste desvelar do mundo, neste deixar vir à tona do não-verbal,
entendemos que as formas de significar estão estritamente ligadas às
formas do representar. Scliar e Opazo, como ilustradores, revelam que,
na leitura, há o instante pregnante do acontecimento; que este instante
instaura dizeres outros como se o sentido escapasse e, ao mesmo tempo,
se evidenciasse numa aparência daquilo do que pode ser, tal qual as telas
de René Magritte. E como assevera Deleuze, “[...] à sua maneira, a arte
diz o que dizem as crianças [...]” (2004, p. 78)

Referências
BERGER, John. Modos de ver. Trad. Lucia Olinto. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999. Capítulo I.

CAMPOS, Jorge Lúcio de. Eis dois cachimbos: roteiro para uma leitura
foucaultiana de Magritte. www.ucm.es/info/especulo/numero27/
magritte.html. Acesso em 01/05/2014.

DELEUZE, Gilles. “O que dizem as crianças”. IN: Crítica e clínica.


Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997 – 1ª reimpressão, 2004.

FOTI, Véronique M. The represented representation. Pennsylvania


State University Postmodern Culture, Vol 7, n 1, September, 1996.

FOUCAULT. Michel. As Palavras e as Coisas – uma arqueologia das


ciências humanas. Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes,
2000.

HEIDEGGER, Martin. Conferencias y articulos. Trad. Eustáquio


Barjau.Ediciones Del Serbal, Barcelona, 1994.

166
Roselene de Fátima Coito

KAENEL, Philippe. Le métier d´illustrateur 1830-1880- Rodolphe


Töpffer, J, J- Granville, Gustave Doré. Paris : Ed. Messene, 1996 – Cap.1

LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Capa e


ilustrações de Carlos Scliar. 6ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.
______. A mulher que matou os peixes. Ilustrações de Flor Opazo.
Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

MANGUEL, Alberto. “Leitura das imagens”. IN: Uma história da


leitura. Trad. Pedro Maia Soares. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

ORLANDI, Eni. P. Interpretação – autoria, leitura e efeitos do trabalho


simbólico. 4ª edição. Campinas: Pontes, 2004.

Recebido em 20/11/2014 e Aceito em 10/03/2015.

167
ARTIGOS

4. DISCURSO E WEB
DISCOURSE AND WEB: THE MULTIPLE FACES OF
FACEBOOK

DISCURSO E WEB: AS MÚLTIPLAS FACES DO


FACEBOOK

Wander EMEDIATO
Universidade Federal de Minas Gerais - (UFMG)

RESUMO
As redes sociais possibilitam uma livre propagação do discurso por meio de um espaço
aparentemente democrático. O facebook, em particular, se apresenta como uma rede de complexa
circulação do discurso, comportando uma variada cadeia enunciativa, que admite desde a
exposição de orientações políticas e ideológicas à exibição do próprio corpo. Considerando,
por um lado, o espectro de abrangência das redes sociais e, por outro, o desenvolvimento ainda
tímido de estudos a seu respeito, este trabalho procura contribuir com a necessária reflexão a
propósito do tema, mobilizando as vastas possibilidades de pesquisas acerca do discurso para
se abordar as particularidades do facebook.

ABSTRACT
Social networks enable free dissipation of discourse through an apparently democratic space.
Facebook, in particular, presents itself as a complex web of discourse circulation, supporting a
varied enunciating chain that allows from the exposure of political and ideological inclinations
to the exhibition of its own body. Considering, on the one hand the broad spectrum of social
networks and, on the other hand, the timid developing of studies on this subject, this paper
seeks to contribute with the necessary reflection regarding this subject, mobilizing the vast
possibilities of research within discourse to approach the particularities of Facebook.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 171-192, jul./dez. 2015


Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; web e facebook.

KEYWORDS
Discourse; Web and Facebook.

Introdução
Se a cultura humana se encontra atravessada pelo logos de tal forma
que podemos, na linha proposta por Danblon (2013), falar de um Homo
rhetoricus como “modelo da razão humana”, o mundo contemporâneo
coloca a disposição dos usuários da internet dispositivos e espaços
jamais concebidos para a expressão dessa natureza retórica do homem.
A internet, e em especial, as redes sociais, parecem se abrir a todos os
aspectos da expressão humana, em diferentes códigos semiológicos,
permitindo tanto aos cidadãos comuns, como aos “mais sábios dos
homens”, para retomar expressão antiga de Aristóteles, tomar a palavra,
sem pedir permissão, nesta ágora cibernética de retórica virtual. Para
Danblon, “... a retórica é antes de tudo uma faculdade que coloca em
ação as múltiplas facetas da razão humana.” (DANBLON, 2013, p. 9).
E são justamente essas facetas múltiplas da razão humana que buscamos
identificar nessa rede social cujas extensões e limites já se tornam opacos.
O que é uma rede social? É, essencialmente, uma rede de discursos,
um espaço retórico por natureza. Como rede de discursos, não se faz nada
em uma rede social, no sentido estrito do verbo “fazer”. Mas no sentido
pragmático, se faz muita coisa em uma rede social, como o facebook, por
exemplo. A palavra se faz ação, efetivamente. Podemos encontrar, nessa
rede, tudo que poderíamos supor no universo de discursos e nos espaços
discursivos. Múltiplas formações discursivas, relações interdiscursivas
dinâmicas, diferentes gêneros do discurso, e o dialogismo em todos os

172
Wander Emediato

seus estados. Está tudo ali. Portanto, como questão central desta análise,
as redes sociais, e em especial o facebook, constituem um vasto canteiro
para pesquisas sobre o Discurso, espaço ainda pouco explorado.
O facebook tornou-se um espaço surpreendente de circulação de
falas, uma vasta e complexa cadeia enunciativa que coloca em cena
um dialogismo sem igual. Nesse espaço, os locutores assumem as mais
diversas posições enunciativas e papéis comunicacionais, da self-exposição
pura e simples do rosto ou do corpo, à exibição de posicionamentos
políticos e ideológicos que dialogam em uma luta discursiva que se
estende em diversos campos de práticas sociais.

1. Questões preliminares
Vamos tocar algumas questões, bem preliminares ainda, sobre o
facebook, mais para levantar problemas neste canteiro do que efetivamente
apresentar dados de uma investigação. Uma das características do
facebook e da internet em geral é a interação entre códigos semiológicos,
em especial, a verbo-visualidade. Raramente um post no facebook vem sem
um suporte visual, que pode ser produzido pelo próprio sujeito ou pela
captação de imagens na própria rede ou outros suportes, o que implica
um trabalho importante de busca ou por via do compartilhamento
comentado. A verbo-visualidade é, assim, um aspecto constitutivo do
dispositivo de uma rede social eletrônica. Outro aspecto determinante
do dispositivo é a presença de modalidades técnicas de interatividade,
pois toda rede social eletrônica procura reconstituir o dialogismo
interlocutivo e aproximar-se o máximo possível das formas dialogais,
estimulando a cotemporalidade no processo de enunciação de forma a
suprir a falta da copresença espacial.
No caso do facebook, as modalidades técnicas de interatividade e de
enunciação são constituídas por quatro formas essenciais: publicação,
curtição, comentário e compartilhamento. Cada uma dessas ações, que

173
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

tomaremos aqui como atos de linguagem, possui uma visada distinta


e produz consequências diversas, cuja complexidade não deve ser
subestimada.
Outro aspecto que me parece constitutivo diz respeito à organização
interacional, ou conversacional, do facebook. Ora, ela é claramente
dialogal e toma a forma de um diálogo convencional, com um locutor
(L1) se dirigindo a um segundo locutor (L2), na forma clássica Locutor e
Alocutário. Ora, ela pode ser considerada como um trílogo (KERBRAT-
ORECCHIONI, 1995), assumindo uma forma mais complexa, com um
locutor (L1) se dirigindo a um segundo locutor (L2), mas tendo sempre
em vista um destinatário indireto (L3), de natureza coletiva, representado
pelo “grupo de amigos” da rede. Este destinatário coletivo é, de modo
geral, aquele a quem se envia uma publicação e, nesse caso inicial, ele
é o L2. Em seguida, se a publicação é curtida por algum amigo, ela o
é individualmente, e a curtição representa, em geral, uma apreciação
implícita de cunho eletrônico, ou seja, trata-se de um sinal eletrônico
que significa, em geral, um ato apreciativo positivo, mas não-verbal.
A curtição pode ser entendida como um ato kinésico, ou gestual. A
publicação pode ter também como resposta um comentário, nesse caso
verbal, e mais complexo, pois pode ser uma apreciação positiva, negativa,
ou um julgamento axiológico, uma concordância ou uma discordância,
conforme o caso. É justamente o comentário que abre a possibilidade
de constituição de um trílogo, pois o comentário pode gerar uma
reação de L1 que, ao responder ao comentário de L2, se dirige também,
indiretamente, a L3, o destinatário coletivo da rede, que tem acesso à
conversação e pode, inclusive, reagir, mas sempre individualmente. O
destinatário coletivo é, portanto, sempre virtual e indireto. Cada reação
individual por ato de comentário tem sempre o destinatário coletivo
como destinatário indireto, e algum locutor individual anterior como
destinatário direto. O trílogo pode ser considerado, portanto, uma forma
essencial da interação em uma rede social.

174
Wander Emediato

Resta falarmos um pouco do compartilhamento. Como a ação de


curtir, trata-se de um sinal eletrônico que pode estar, ou não, precedido ou
seguido de um comentário. E como a ação de curtir, o compartilhamento
expressa uma apreciação positiva, já que compartilhar é amplificar a
divulgação da publicação inicial, é irradiá-la. O que tem de especial no
compartilhamento é que se trata de uma adesão mais intensa, já que, além
de expressar concordância com a publicação, o interlocutor se associa,
ou seja, adere, à publicação e tem interesse particular em amplificar a
sua divulgação. Temos, aqui, o aspecto viral da rede que a aproxima do
marketing publicitário ou político. Em termos retóricos, tem-se acesso,
pelas ações de compartilhamento, ao problema da intensidade de adesão
do auditório (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1958), mais
importante, em termos de grau, a uma adesão pura e simples expressa
pelo ato de curtir.

2. Aspectos enunciativos do facebook: diferentes atitudes,


mas complementares entre si.
No nível enunciativo, podemos encontrar discursos sobre si mesmo,
discursos dirigidos ao outro e discursos sobre o mundo, compondo,
portanto, todas as modalidades enunciativas dos discursos ordinários:
a modalidade subjetiva (afetiva, axiológica), a modalidade intersubjetiva
(injuntiva, interpelativa) e a modalidade objetiva (deôntica, alética,
epistêmica). Para tratar dessas diferentes atitudes enunciativas e associá-
las às suas visadas, ou finalidades pragmáticas, vamos propor defini-las
como atitudes egocentradas, alocentradas e heterocentradas.
As atitudes egocentradas são aquelas voltadas para a exibição de si no
sentido mais estrito, ou seja, exibição do corpo, do rosto, do espaço
privado do sujeito (seu quarto, seus objetos pessoais) e também de
sua família ou entes próximos (namorado, esposa, amigo íntimo, etc.).
Na atitude egocentrada o espaço e as pessoas ocupam uma função

175
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

proxêmica em referência ao “eu”: a família e os amigos, bem como


os objetos pessoais, os espaços (o quarto, o banheiro, etc.) têm como
referência o eu e constituem símbolos que refletem e refratam o sujeito
metonimicamente. Sua finalidade (visada) pragmática é “exibir-se” ou
“mostrar-se”, isto é, uma finalidade de “egomostração”. Como se trata
de uma egomostração dirigida ao outro, espera-se do outro uma atitude
responsiva apreciativa.
As atitudes alocentradas estão voltadas para o tu (geralmente coletivo
e indeterminado) e o sujeito toma o tu como referência para a sua
finalidade (visada) pragmática diretiva de fazer-fazer. Como se trata
de um tu coletivo e indeterminado, a visada diretiva está geralmente
representada por solicitações de compartilhamento de publicações, de
implicar o outro em uma atitude de adesão e de aliança na forma de uma
ação (Compartilhe! Espalhe isso para todo mundo! Repasse a seus amigos!)
As atitudes heterocentradas têm como referência o mundo e os discursos
dos outros, portanto, os objetos mais heterogêneos que circulam
nos espaços sociais. E é por via dessa atitude que o sujeito exibe sua
competência axiológica, suas formações discursivas e ideológicas, seus
posicionamentos sobre temas e aspectos da realidade social, política,
cultural, econômica, religiosa, mundana, etc.
Mas não seria um exagero afirmar que todas essas atitudes estão,
em última instância, voltadas para a afirmação e a exibição de si mesmo
como sujeito, ou seja, para a construção de uma imagem de si (o ethos
do usuário da rede), o que tornaria dominante a atitude egocentrada. Se
assim for, todas as faces do face estarão, em certo sentido, voltadas para
o self e não apenas a face self propriamente dita, aquela que se autoexibe
sem complexos. A finalidade principal de um sujeito-usuário do facebook
seria, portanto, exibir-se, mostrando o seu corpo, o seu rosto, o seu
pensamento, a posição que ocupa na topografia social em todos os seus
sentidos (econômico, privado, familiar, religioso, político, ideológico),
etc. Por outro lado, não seria também exagero supor que as atitudes
heterocentradas (falar do mundo e dos outros) serviriam a uma visada

176
Wander Emediato

alocentrada (influenciar o outro, agir sobre suas crenças) e que também


as atitudes egocentradas (a egomostração) poderiam servir a uma visada
alocentrada (seduzir o outro).

3. A face self: olhando para o espelho


Essa face mostra que é o espelho – ou o olhar do outro – que se quer
interpelar ao se mostrar no facebook, materializando em nossa realidade
virtual a experiência interrogativa fabular do espelho responsivo (espelho,
espelho meu...). Como esta publicação abaixo, que tomamos a precaução
de tornar anônima:

FIGURA 1: Olhando para o espelho

Esse trabalho de exibição explícita de si mesmo, atitude de


egomostração, espera do outro uma resposta, seja através da curtição, ação
de curtir, seja através de um comentário apreciativo, ação de comentar.
Não é equivalente ao que Erving Goffman chamou de apresentação de
si ou de trabalho de face, pois não se trata, aqui, apenas de construir uma
face positiva (ou negativa) de si indispensável à regulação da interação
social. A ação de egomostração no facebook é uma exibição de si que
deseja incitar o alocutário a mobilizar um ato enunciativo na modalidade

177
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

subjetiva afetiva. Possui, portanto, um conteúdo e uma visada emocional.


Exibir-se para ser apreciado. É um ato não axiológico, ou seja, não se
espera que o alocutário julgue o sujeito da egomostração, apenas que
o aprecie afetivamente. Também não é um ato para ser compartilhado
para outros. Por estar em uma esfera privada, embora aberta à apreciação
afetiva dos amigos da rede, não supõe o compartilhamento, que daria
à esfera privada uma dimensão externa. A face self não é apropriada
ao fenômeno da dupla enunciação, foi feita para ser apreciada em
comentários individuais do grupo de amigos, mas não se espera que ela
seja publicizada por terceiros. Nesse sentido, a face self é paradoxal: o
sujeito torna a sua imagem pública para o seu grupo de amigos e espera
que cada um, individualmente, aprecie a imagem publicada. Porém, é
incomum e inesperado que os “amigos” passem a compartilhar a sua
imagem a terceiros. O compartilhamento de selfs é raro.

4. A face self e o eu autobiográfico: os traços identitários


e a personalidade do sujeito
Temos aqui uma dinâmica complexa que pode ser analisada como
uma mise en scène du moi (AMOSSY, 2010), resultado de múltiplas
manifestações do ethos. O essencial, como estima a autora supracitada, “é
ver como aquele que toma a palavra [...] efetua ipso facto uma mise en scène
de sua pessoa mais ou menos programada, e como ele utiliza recursos da
linguagem em objetivos comunicativos diversos (...)” (AMOSSY, 2010, p.
7, Tradução nossa). Traços importantes da identidade e da personalidade
do sujeito podem ser recuperados nesse trabalho de encenação de si, seja
pela reconstituição de sua egomostração, seja por via de seus comentários
heterocentrados ou mesmo por suas atitudes interpelativas, ou seja, pelas
atitudes alocentradas. Propomos considerar, em uma análise estendida,
uma tipologia de níveis de exposição da identidade que vão compondo
a personalidade do sujeito no facebook:

178
Wander Emediato

a)– identidade genética – uma fotografia postada no facebook do


rosto e do corpo da pessoa expõe, de imediato, sua aparência
genética, ou seu biotipo singular: moreno (a), loiro (a), negro
(a), magro (a), gordo (a), homem, mulher, etc.

b)– identidade linguística: mostrada pelos modos de falar do


sujeito na rede (seu idioleto singular, suas gírias, seu apego à
norma “culta” ou “coloquial”, suas competências linguísticas
diversas), também se mostra por seus comentários e críticas
que faz sobre o falar do outro (seus preconceitos linguísticos).

c)– identidade estética: perceptível ainda pela fotografia publicada,


a estética do sujeito é objeto de julgamento do outro, como
bonito, feio, simpático, bem cuidado, penteado, despenteado,
bem vestido, mal vestido, elegante, deselegante, formal,
informal, segundo os imaginários estéticos do grupo social,
etc.
d)– identidade emocional: perceptível por algum traço intencional
da fotografia, quando ela expressa um estado emocional do
sujeito (alegria, raiva, indignação, seriedade, tristeza, etc.)
constituindo traços de seu temperamento.

e)– identidade ética: perceptível em várias ações do sujeito no facebook,


como nos comentários feitos, nas imagens que publica e
compartilha, nas suas curtições, quando essas ações denotam
um investimento subjetivo axiológico qualquer, ou seja, ações
e atitudes que colocam em evidência a competência axiológica
do sujeito.

179
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

f)– identidade hedônica: diz respeito ao que é mostrado pelo sujeito


como objeto de prazer ou desprazer, no que considera agradável
ou desagradável, perceptível em diferentes posts, como lugares
que gosta de frequentar (ambientes, espaços, cidades, viagens.),
seus hábitos de consumo (comidas, cosméticos, restaurantes,
roupas, bebidas...), etc.

g)– identidade pragmática: podendo estar associada a aspectos da


identidade hedônica, como hábitos de consumo e preferências
do sujeito, pode também ser especificada por suas decisões
diversas, seja no campo econômico, político, de consumo, etc.,
mas que colocam em evidência uma hierarquia de valores para
a tomada de decisão (+ útil, + inútil).

h)– identidade intelectual: identidade que marca o sujeito em termos


de seus saberes de conhecimento. Diz respeito principalmente
às competências enciclopédicas mostradas pelo sujeito em seus
comentários, seus aconselhamentos, seus compartilhamentos,
suas indicações e listas de livros (a página do facebook possui,
inclusive, um espaço específico para isso: livros que leu, filmes
que assistiu, etc.).

i)– identidade cultural: este componente pode ser também resultante


de um conjunto de outros tipos identitários (intelectual,
pragmático, hedônico), mas se mostra também pela associação
do sujeito a práticas culturais de um coletivo, como suas
preferências musicais, teatrais, cinematográficas, comunitárias
e grupais, etc.

180
Wander Emediato

j)– identidade social: diz respeito ao pertencimento do sujeito


a uma classe social, seu padrão de vida, seu grupo (jovem,
idoso, feminino, masculino), seu perfil socioprofissional,
traços exibidos na rede por fotos de sua casa, dos lugares que
frequenta, de sua profissão, seu lugar de trabalho, sua família,
seu grupo de amigos, etc.

k)-identidade religiosa: exibida explicitamente pelo sujeito (sou


católico, evangélico, etc.) ou por suas ações de comentário e
de compartilhamento (de salmos, passagens bíblicas e outros
textos religiosos, de imagens de santos, apóstolos e membros
da igreja, de símbolos religosos, etc.).

Essa tipologia pode ser, é claro, complementada, mas constitui um


conjunto de parâmetros identitários que vai sendo exibido pelo sujeito
em sua egomostração na rede. Não é difícil perceber que a exibição
dos traços identitários diversos do sujeito constitui também um campo
importante de prospecção para todo tipo de marketing (publicitário,
comercial, político, religioso, etc.), com informações exibidas pelos
próprios usuários em caráter praticamente permanente na rede.
Uma questão relevante para os analistas de discurso e outros estudiosos
da linguagem sobre esse campo complexo de autoexposição identitária é
a construção no espaço da rede de suas narrativas autobiográficas, pois
se tem acesso, numa perspectiva temporal, à vida pessoal do sujeito em
suas diferentes dimensões. A dificuldade metodológica, é claro, consiste
na privacidade dessas informações, que ficam reservadas aos “amigos”.
Mas é possível já prever, em um futuro próximo, a importância dessas
fontes para a elaboração de trabalhos biográficos, sociológicos ou de
estudo das mentalidades.

181
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

5. A face argumentativa – erística x heurística


O facebook é, cada vez mais, um espaço de debate e discussão e não
só de exibição de si. O espaço público invadiu o facebook, acirrando uma
concorrência intensa pelo controle da conformidade social, política e
ideológica. Fazer política no e pelo facebook tornou-se indispensável.
Além da exposição pura e simples de comentários políticos, de opiniões
sobre os fatos sociais e da exibição crítica de posicionamentos, o
usuário também faz circular, através do compartilhamento, diferentes
materiais provenientes de outras fontes, sobretudo as jornalísticas,
ou produzidos pelas mídias independentes (Mídia Ninja, TV Revolta,
etc.). Se, de um lado, as argumentações jornalísticas e políticas se
submetem a diferentes princípios de regulação, dos deontológicos e
éticos aos jurídicos, as argumentações e os atos de destacamentos e de
aforização (MAINGUENEAU, 2012) nas redes sociais, em geral, se
submetem apenas à ética pessoal, quando o fazem, pois há ainda pouca
regulamentação jurídica nesse campo, o que favorece a liberdade de
expressão e a violação sistemática das regras da discussão heurística. Isso
se torna evidente nas tendências argumentativas erísticas e falaciosas,
bem como nas duplas enunciações manipuladoras do discurso de origem.
A rede permite ao cidadão comum não só se manifestar, mas também
de assumir papéis diferentes que geralmente só seriam possíveis pela
ocupação de algum poder institucional. O papel de jornalista, de crítico
social, de analista político, de aforista, de chargista, de humorista, etc.
Isso faz com que essa face argumentativa do facebook seja mais aberta
aos avatares de todo tipo, a modos diversos de manifestação textuais
de gêneros, às cópias e manipulações de material semiótico, imitações,
simulacros, paródias e pastiches, retomadas de discursos que passam a
circular na rede com finalidades pragmáticas bem diferentes e distantes
das finalidades pragmáticas dos discursos originais.

182
Wander Emediato

Nessas ações de retomada de discursos, seja por via do destacamento


e da citação, seja por meio de paródias, pastiches, ilustrações e outras
imitações, surgem enunciações em que o locutor-usuário se encena de
diversas formas, ora como agente de um destacamento, ora como artista,
jornalista, moralista, etc. Essas encenações do sujeito, como propõe
Maingueneau (2012) para essas enunciações, afirmam convicções, se
apresentam como enunciados de verdade, como apreciações estéticas,
éticas e morais, bem como hedônicas. Enunciados, portanto, ricos de
sentido, de implícitos e de efeitos contextuais dos mais diversos. Se o
facebook se torna então o espaço das versões avatares dos sujeitos, ora
criadas por outros, ora pelo próprio sujeito-usuário, ele constitui um
canteiro único para a análise das subjetividades e das transformações
parafrásticas. O material abaixo, publicado no facebook e objeto de
milhares de compartilhamentos, é um exemplo desse uso “manipulador”
do destacamento:

FIGURA 2: presidenta Dilma Rousseff.

183
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

Ocorrências como essas, comuns no facebook, representam o que


Maingueneau (2012) chama de destacamentos fortes: o texto fonte não se
encontra acessível, a não ser por um processo de busca em diferentes
suportes. No caso acima, o locutor que agencia o destacamento não
se contentou em destacar as palavras efetivas de Dilma Roussef em
um discurso por ela proferido no nordeste, mas em interpretá-las e
utilizá-las em uma nova finalidade pragmática. Ele suprimiu parte de
seu enunciado e foi além: adicionou conteúdo no interior das aspas,
atribuindo ao locutor de origem a responsabilidade por palavras não
pronunciadas, com o objetivo claro de alterar a finalidade pragmática da
enunciação original. As palavras exatas da presidente, conforme o jornal
Folha de SP, foram as seguintes:

“Temos que mostrar que o Brasil é um país de gente


civilizada, educada e gentil. Porque o turista não vai levar
daqui os aeroportos, as obras de mobilidade urbana e
os estádios. O que o turista vai levar daqui é a sensação
de que foi bem recebido durante a copa. Por isso, peço
que vocês recebam bem os turistas.” (fonte: Folha de
SP, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2014/05/1455761-dilma-pede-que-brasileiro-
seja-gentil-e-civilizado-na-copa.shtml).

Se podemos dizer que o conteúdo da fala de Dilma Roussef expressa


um pedido aos brasileiros para que recebam bem os turistas e sejam
gentis, no enunciado destacado para circular na rede o objetivo não é
mais “pedir” aos brasileiros, mas qualificar a fala da presidente como uma
ofensa aos nordestinos. Ao especificar o auditório (nordestino) e adicionar
o conteúdo “....e que não sujem as ruas e os estádios da copa”, palavras

184
Wander Emediato

ausentes na enunciação original, os efeitos contextuais do destacamento


realizado se tornam bem mais complexos e servem para desqualificar o
locutor original e ofender o auditório nordestino. A força argumentativa
desses destacamentos está nos efeitos de sentido que criam, inclusive em
seus efeitos perlocucionários. Além disso, o destacamento, neste caso,
torna o locutor de origem um sobreasseverador involuntário de um
enunciado que ele não pronunciou como tal (MAINGUENEAU, 2012)
e cujo sentido ele não assumiria, tampouco os seus efeitos contextuais ou
perlocucionários. Uma transformação como essa, se publicada em um
destacamento por qualquer jornal de referência, seria objeto de reação e
até mesmo de procedimentos jurídicos.
O fenômeno evocado por Maingueneau (2014) da irradiação também
se mostra nas redes como de grande relevância. De um lado, o poder
de irradiação já é previsto no próprio dispositivo da rede pela ação de
compartilhamento. Cada compartilhamento, além de irradiar conteúdos,
pode transformar as versões originais e inseri-las em um novo gênero, em
outra finalidade pragmática ou em outra perspectiva de problematização.
O poder de irradiação das redes equivale ao do marketing viral na
internet que, por sinal, já se encontra presente também no facebook, pois
as preferências de consumo do usuário já são codificadas pelas suas
práticas de navegação e passam a se vincular a sua página na rede social.

6. Coenunciação, sobreenunciação e subenunciação na


rede
O poder, de um lado, é uma energia que liga os indivíduos/sujeitos
em suas relações de interação. O estatuto jurídico que liga os sujeitos
por um contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 1984) e que dispõe
sobre seus interesses, direitos e deveres na comunicação coloca em
evidência essa energia que regula toda interação. De outro lado, há o
poder do dispositivo web e da força que ele imprime nas condições de

185
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

produção e de enunciação na rede. De outro lado, há o poder enunciativo,


que se representa pelas atitudes assumidas pelos sujeitos (locutores/
enunciadores) e o modo como eles gerem os pontos de vista no discurso
e nos textos (RABATEL, 2005b). Ora, os locutores submetem as suas
enunciações às enunciações de outrem, tornando-se subenunciadores
por via da dupla enunciação, ora se assumem como enunciadores
autônomos, submetendo a enunciação de outrem a seu próprio ponto
de vista, tornando-se, assim, sobreenunciadores, seja através de uma
enunciação autônoma, seja por via de uma dupla enunciação através da
qual ele comenta e interpreta pontos de vista de outro locutor.
A perspectiva de análise do processo de enunciação na rede
social como uma gestão interacional de pontos de vista é rica de
consequências. Desde a curtição, que faz surgir um subenunciador que
se limita a “curtir” e, portanto, validar o ponto de vista do locutor (L1),
ao compartilhamento, que também põe em cena um subenunciador que
distribui e divulga o ponto de vista de um locutor-fonte que, por isso,
surge como sobreenunciador a serviço do qual se colocam os outros
locutores-enunciadores na rede. Essa perspectiva coloca em evidência
um poder importante que se instaura na rede entre sobreenunciadores,
subenunciadores e coenunciadores.
Nas ações de destacamento (discurso citado) ou no discurso relatado
em modalidade não citada (integrada ou narrativizada), o locutor se faz,
em geral, sobreenunciador, já que ele enuncia seu ponto de vista sobre o
ponto de vista do locutor-fonte e torna seu ponto de vista preponderante
e equivalente à afirmação de uma verdade. Ao emitir julgamentos
implícitos sobre o ponto de vista do locutor-fonte, ela também “apaga”
o ponto de vista da fonte, o seu querer-dizer pode ser distorcido, bem
como sua finalidade pragmática em proveito do querer-dizer e da nova
finalidade pragmática do locutor-citante. Isso ocorre desde o processo
de descontextualização que o discurso relatado faz da enunciação de
origem, ampliado pela inserção de um novo ponto de vista que passa

186
Wander Emediato

pela alteração sintática, pela adição ou supressão de trechos do discurso


original, pela utilização de verbos de atitude, etc. Assim, o ponto de vista
do locutor citante se torna dominante em relação do ponto de vista do
locutor citado.
De outro lado, os subenunciadores surgem também de maneira
abundante nas redes sociais, seja pelos compartilhamentos não
comentados e pelas curtições, como já afirmamos, seja por enunciações
nas quais se pode notar facilmente que os pontos de vista do sujeito-
usuário estão dominados por pontos de vista circulantes na rede. Os
sujeitos-usuários atuam, nesses casos, como replicadores de pontos
de vista que assumem como seus, geralmente sem comentar. Não se
trata de uma coenunciação, já que o sujeito-usuário, nesses casos,
não complementa o ponto de vista, ou seja, ela não colabora para a
constituição do ponto de vista, o que implicaria um ponto de vista
mais crítico. Na subenunciação, o sujeito-usuário não tem exatamente
um ponto de vista próprio, pois ele se submete ao ponto de vista do
outro o sobredetermina. De maneira geral, o ponto de vista do sujeito-
usuário se apaga na subenunciação, deixando “falar” o ponto de vista
de um sobreenunciador. Os casos mais claros de subenunciação na
rede são as publicações de aforismas primários, de salmos religiosos, de
propagandas políticas, publicidades e de publicações de outros usuários
que são simplesmente compartilhadas ou curtidas.

7. A face midiática do facebook:


O facebook vem se constituindo como um espaço importante de
mídias independentes e de páginas especializadas de grupos profissionais,
acadêmicos, literários e artísticos. Nesse sentido, vem sendo um
concorrente dos blogs. Aliás, muitas páginas pessoais do facebook têm
uma configuração muito próxima dos blogs, com objetivos específicos
e mais amplos do que uma página pessoal de caráter privado. O caráter

187
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

público é saliente, como pode ser facilmente notado em páginas de


políticos profissionais, partidos políticos, associações, empresas, etc.
No caso da mídia, vale ressaltar a participação cada vez mais forte das
chamadas “mídias independentes”, além, é claro, das mídias tradicionais
de referência que também hospedam páginas no facebook, além de
permitiram e estimularem, através de suas versões eletrônicas, que os
leitores compartilhem suas matérias e reportagens. Muitos leitores
declaram que buscam informações diretamente nas redes sociais, o
que modifica substancialmente os modos de leitura e de recepção da
informação jornalística, bem como suas condições de produção.
O discurso das chamadas mídias independentes difere
substancialmente do das mídias de referência em vários aspectos, como
a relação com as fontes, os modos de busca e tratamento dos fatos,
os posicionamentos, a deontologia, a linguagem e, é claro, a busca
pela criação de um dispositivo técnico e enunciativo que promova a
interatividade e a participação mais ativa do leitor. Entre estas mídias, se
encontra o Mídia Ninja, sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e
Ação (https://pt-br.facebook.com/midiaNINJA). Segundo os próprios
autores, o Mídia Ninja se apresenta como uma alternativa ao jornalismo
tradicional. Em sua página no wikipedia, encontramos as seguintes
informações sobre esse grupo:

“Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes,


Jornalismo e Ação), é um grupo de mídia formado em 2011.
Sua atuação é conhecida pelo ativismo sociopolítico,
declarando ser uma alternativa à imprensa tradicional. O
grupo tornou-se conhecido mundialmente na transmissão
dos protestos no Brasil em 2013[.. ] As transmissões da
Mídia Ninja são em fluxo de vídeo em tempo real, pela
Internet, usando câmeras de celulares e uma unidade
móvel montada em um carrinho de supermercado. A

188
estrutura da Mídia Ninja é descentralizada e faz uso das
redes sociais, especialmente o Facebook, na divulgação
de notícias”. (Disponível em http://pt.wikipedia.org/
wiki/M%C3%ADdia_Ninja Acesso em 14/06/2014)

A prática de produção e publicação de notícias pelos usuários da rede


já é bem frequente e tem constituído um fator relevante de participação
social e política, sobretudo em situações de crise, manifestações,
revoluções e rebeliões em países, sejam eles democráticos ou autoritários.
As redes sociais constituíram um espaço de divulgação impressionante
nas crises da Síria, do Irã e do Egito, cujos regimes foram surpreendidos
pela velocidade com que as pessoas postaram fotografias, narrativas
e relatos totalmente independentes da grande mídia local, geralmente
bastante controlada. Nesses países, o controle político oficial da rede
tem sido frequente, como forma de impedir a circulação de perspectivas
e relatos que coloquem em suspeita o regime. No Brasil, a TV Revolta
(https://pt-br.facebook.com/tvrevolta?hc_location=timeline)
também tem se destacado como mídia alternativa, atuando com site
na internet e página no facebook. Seus vídeos e posts têm sido objeto de
compartilhamento intenso, computando, às vezes, centenas de milhares
de compartilhamentos. É, por isso, um sobreenunciador importante na
rede.

8. Discursos intolerantes na web: entre o doxal e o adoxal


Espaço ainda sem grande controle jurídico ou normativo, as
opiniões na rede obedecem a uma espontaneidade que se aproxima do
espaço doméstico, onde se pode falar de quase tudo sem limites rígidos
de censura além da própria ética pessoal. Paradoxalmente, o espaço do
facebook é público, mas sua linguagem parece doméstica e privada, beirando
a intimidade, o que faz surgirem as mais diferentes tintas, tons e nuances
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

opinativas. Essa característica faz com que as opiniões circulantes no


facebook fiquem no limite entre o doxal e o adoxal. As opiniões doxais são
aquelas que obedecem a algum critério de razoabilidade, são facilmente
partilhadas e, por isso, aceitáveis, embora não necessariamente objetos
de consenso geral. As opiniões adoxais, ao contrário, são chocantes,
consideradas vergonhosas, escatológicas e ultrapassam os limites do
dizível, do aceitável e do razoável. Mas no facebook nem tudo é razoável,
e a própria sensação de que se está em um ambiente sem controle
parece estimular uma liberdade de opinião jamais vista em ambientes
públicos. Os discursos intolerantes são cada vez mais comuns e foi
amplificado pela invasão da política na rede. Diferentemente dos canais
tradicionais, como a imprensa escrita, a televisão e o rádio, suportes
nos quais a propaganda política é regulada, na rede ela é bastante livre,
favorecendo a militância e o compartilhamento intensivo de discursos
propagandísticos, em sua maioria não assinados. Em tempos próximos
de disputas eleitorais, a rede será certamente um espaço de batalha sem
comparação com os canais tradicionais regulados.

9. Rede social: espaço de livre expressão do Homo


rhetoricus
Nosso breve percurso analítico do facebook nos permite retornar ao
problema inicial colocado pelo Danblon sobre a natureza retórica do
homem. A web parece se abrir, como nenhum outro dispositivo técnico
elaborado pelo homem, à expressão multiforme da retórica humana em
suas diferentes dimensões e funções. Se, antes da web, a retórica que se
deixava ver era pública e controlada em situações institucionais, exercida
por homens “eleitos” e com acesso aos dispositivos institucionais, agora
temos um espaço de visibilidade e de expressão acessível a um número
expressivo de seres humanos. De certa forma, o homem construiu,
enfim, um dispositivo técnico global para a expressão de sua natureza

190
Wander Emediato

retórica, ao mesmo tempo fascinante, chocante e surpreendente. Se, de


um lado, as redes sociais constituem a grande novidade nas democracias,
ela também coloca em cena facetas múltiplas do humano. Tomaremos,
para concluir, a seguinte reflexão de Emmanuelle Danblon sobre a
retórica:

“Como faculdade natural, ela (a retórica) permite


exprimir uma energia vital, sustentáculo da arte de viver.
Como conjunto de funções, ela prolonga a natureza
e convida o cidadão a talhar o mundo à sua medida,
isto é, literalmente, a torna-lo humano. Isso implica
concretamente criar instituições que ele saberá como
utilizar. Como prática, enfim, a retórica é essa atividade
dinâmica que garante a passagem entre os diferentes
aspectos da razão humana, das mais intuitivas às mais
reflexivas. (DANBLON, 2013, p. 2014. Tradução nossa)

Concebido para ser um dispositivo eletrônico para interagir com os


amigos, a rede social, e no nosso caso em análise, o facebook, parece estar
se construindo como um espaço aberto a todos os aspectos da retórica
humana, como ressalta Danblon, das mais intuitivas às mais reflexivas,
passando pela exibição e construção da imagem de si (ethos), pela busca
e oferta de afetos (pathos), pela problematização social e o engajamento
no debate público (logos). São múltiplas as faces do facebook, como são
muitas as faces do homem.

Referências
AMOSSY, Ruth. La présentation de soi. Ethos et identité verbale.
Paris: PUF, 2010.

191
Discurso e Web: as Múltiplas Faces do Facebook

CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du Sens et de l’Expression.


Paris: Hachette, 1994.

DANBLON, Emmanuelle. L’homme rhétorique. Paris: Les éditions


du Cerf, 2013.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. PLANTIN, Christian. Le


trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1995.

MAINGUENEAU, Dominique. Les phrases sans texte. Paris: Armand


Colin, 2012.

PERELMAN, Chaim. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da


argumentação. A nova retórica. Tradução brasileira. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

RABATEL, Alain (2005b), Les postures énonciatives dans la


coconstruction dialogique des points de vue: coénonciation,
surénonciation, sousénonciation .In J. Bres, P.P. Haillet, S. Mellet,
H. Nolke, L. Rosier (Orgs.), Dialogisme, polyphonie: approches
linguistiques. Bruxelles: Duculot, 95-110, 2005b.

RABATEL, Alain. L’effacement énonciatif dans la presse


contemporaine. In: Langages, 38e année, n°156, pp 51-64, 2004.

Recebido em 14/11/2014 e Aceito em 07/03/2015.

192
DEVICE AND ELD GOVERNMENT IN WEB
DISCOURSE

DISPOSITIVO E GOVERNO DA VELHICE NO


DISCURSO DA WEB

Pedro NAVARRO
Universidade Estadual de Maringá (UEM)

RESUMO
Este artigo aborda aspectos da relação entre o idoso e os novos veículos tecnológicos, tendo como
objetivo a compreensão das práticas identitárias do discurso no espaço discursivo da web. A
partir das formulações propostas por Michel Foucault, o trabalho procura evidenciar questões
acerca do governo da velhice na web considerando esse processo de “acontecimentalização”
(FOUCAULT, 2006a), refletindo sobre o problema da disposição de métodos e instrumentos
teóricos para a análise de acontecimentos dessa natureza.

ABSTRACT
This article discusses aspects of the relationship between the elderly and the new technological
vehicles, with the aim to understand the identity practices of discourse in the discursive web
space. From the formulations proposed by Michel Foucault, the work seeks to highlight
questions about eld government in the web considering this “happening process” (Foucault,
2006a), and reflecting upon the problem of disposing methods and theoretical tools for
analysis of such events.

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; web e poder.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 193-214, jul./dez. 2015


Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

KEYWORDS
Discourse; Web and power.

Introdução
O “envelhecimento da população”, como um acontecimento de
ordem social, econômica, política e cultural, permite que se opere, em
termos de análise discursiva, um trabalho de “acontecimentalização”
(FOUCAULT, 2006a) que implica, por exemplo, tomar objeto de
descrição diferentes enunciados cujo “princípio de diferenciação”
(FOUCAULT, 1972) é a relação entre o idoso e as chamadas “novas
tecnologias”.
Esse tipo de pesquisa demanda a constituição de séries enunciativas
e a descrição das relações que elas estabelecem entre si. Tendo em vista
que a finalidade não é encontrar as origens de uma identidade, mas
abordar o conjunto de enunciados efetivamente ditos ou escritos, em
sua dispersão de acontecimentos, tal análise possibilita compreender
as práticas discursivas identitárias e de subjetivação na estreiteza e na
singularidade de seu acontecimento no espaço discursivo da web.
Em linhas gerais, essa é a proposta apresentada, a qual está norteada
por duas questões: (1) como se efetua o governo da população idosa
na web?; (2) de que instrumentos teórico-metodológicos se dispõe para
a análise desse acontecimento? Para tanto, são analisadas sequências
enunciativas recortadas de um blog e dois sites destinados à terceira idade.
O esboço de possíveis respostas à segunda interrogação pode
iluminar as reflexões posteriores, que têm por finalidade compreender o
“como” do poder, isto é, as formas pelas quais o poder se exerce sobre
os corpos - no caso que diretamente interessa aqui, sobre o corpo idoso
navegador de um site web.

194
Pedro Navarro

1. Por uma abordagem semiológico-discursiva da web


Como é de conhecimento, a palavra inglesa web significa rede, teia,
tecido; é também utilizada para designar o ambiente da internet. Partindo
disso, este artigo se desenvolve no sentido de articular aspectos do tipo
de “texto”, no qual se constitui a web, com questões que problematizam,
do ponto de vista genealógico, o corpo de quem navega pelos ambientes
da internet, espaço virtual compreendido como heterotópico.
A abordagem designada no título desta seção busca respaldo em
Bonaccorsi (2013), pesquisadora francesa que se dedica a analisar a web
de uma perspectiva semiológica, nas reflexões de Foucault (1998; 1999;
2006b; 2010) sobre “governamentalidade”, “heterotopia” e “cuidado
de si” e no entendimento de Deleuze (1990) e de Veyne (2011) sobre
“dispositivo”. Assim, a proposta teórico-metodológica de análise
do exercício do poder sobre o corpo idoso na web se fundamenta em
alguns dispositivos próprios da web, bem como, por considerar a web
como espaço de formulação e de circulação de saberes (sentidos), no
dispositivo de poder-saber que produz subjetividades em um espaço
outro para os navegadores da rede.

1.1 Aspectos de uma abordagem semiológica da web


O foco de Bonaccorsi (2013) tem a ver com a circulação das
informações no mundo digital. Essa autora questiona se a leitura de um
jornal na tela do smartphone é mais “fragmentada” ou “desestruturada”
que em sua forma impressa. Tendo como objeto de análise sites web,
Bonaccorsi descreve o alcance significante de sua lógica documentária
- ver/não ver, mostrar/esconder, fazer/imaginar – segundo a qual
os leitores na web agem (leem, clicam) nos quadros que antecipam as
práticas e até mesmo as industrializam.
Nesse sentido, o “surfe” refere-se menos aos indivíduos que
aos textos propriamente ditos. A problemática que se destaca dessa

195
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

abordagem semiológica, tendo em vista os dispositivos próprios da web,


tem a ver com o fato de um vídeo extraído de uma emissão televisiva
ser difundido no Youtube depois “compartilhado” em uma página do
Facebook, processo que realiza uma espécie de descontextualização e
recontextualização.
É uma modalidade de escrita que implica considerar a ruptura entre,
de um lado, as formas tradicionais de comunicação (impressa, disco
vinil, filme fotográfico), que associam a inscrição e o suporte, e do
outro, as formas digitais de comunicação, que dissociam a materialidade
da inscrição daquela do suporte de leitura, uma vez que a relação entre
o sentido e a forma é profundamente modificada. Tal procedimento
tecnológico acarreta novas formas de relação entre texto e leitura, uma
vez que o texto na tela é duplamente “produzido” na leitura, pela sua
exibição tecnológica (softwares e suporte técnico) e pela participação
do leitor, que deve agir sobre o dispositivo técnico pelo viés de outros
signos. Como analisa a autora, a superfície da tela agrupa de maneira
homogênea as ferramentas de leitura e o texto. Por exemplo, a música
ou a imagem de um vídeo cotejam signos linguísticos e icônicos que
permitem a escuta ou a visão.
A partir da abordagem semiológica da web podem ser considerados
aspectos que não têm incidência sobre os textos de papel e, por corolário,
sobre leitores desse tipo de material, haja vista a necessidade de levar em
conta as várias escalas do texto e, assim, vários quadros, dependendo de
sua maquete: o quadro primeiro e físico das bordas da tela; os quadros
icônicos das “janelas” das interfaces dispositivas; os quadros editoriais
dos documentos propriamente ditos (legenda, menus etc.). Assim, por
exemplo, o leitor confronta-se com um texto pelo menos triplamente
enquadrado: primeiro pela tela, propriamente dita, em seguida pelo
navegador web (limite e borda), e por fim, pelos quadros que delimitam
zonas no texto (maquete de um jornal online).
Por conta dessa “dimensão semiótica do hipertexto”, a presente

196
Pedro Navarro

abordagem cunha a expressão signo de passagem, a qual reagrupa todos


os signos “ferramenta” que permitam agir diretamente sobre o texto
(botão, ícone, palavra, frase, etc.) e se dão a ler como tal por operações
semióticas como, por exemplo, a mudança de cor dos caracteres. O signo
de passagem possibilita considerar a dimensão interpretativa dos gestos.
Como exemplifica Bonaccorsi, clicar é tanto um gesto de interpretação
quanto um gesto funcional.
Neste momento, articula-se a abordagem semiológica com outra, de
natureza discursiva, e o elemento que permite essa articulação tem a ver
com uma categoria de análise que se arrisca a chamar, para os devidos
fins, de “webvisibilidade”.

1.2 Aspectos de uma abordagem discursiva da web


Como mencionado, é em Michel Foucault que se busca encontrar
elementos para o esboço de uma abordagem discursiva. Primeiramente,
recorre-se à noção de “dispositivo”, que na obra do filósofo aparece,
inicialmente, na década de 1970, em sua fase denominada genealógica. Em
seguida são resgatadas as reflexões desse autor sobre “heterotopia”, a
fim de se construir um quadro teórico que, juntamente com a proposta
semiológica, ofereça uma grade de leitura sobre o exercício de uma
governamentalidade do corpo idoso na web.
Acolher o texto de A ordem do Discurso como um dos momentos do
pensamento de Foucault (1995) em que o saber “encontra” o poder é
observar uma das formas de manifestação do dispositivo, por intermédio
de práticas discursivas que estabelecem divisões, por exemplo, entre
verdadeiro e falso, razão e desrazão, normal e anormal ou interdições,
como as que definem o que é permitido ou não falar, quem pode falar e
em que circunstâncias é possível falar.
Nessa esteira, a prática discursiva da web, devido ao fato de estar
sustentada pelo dispositivo de poder das “novas tecnologias”, estabelece

197
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

a distinção entre o “velho velho” e o “novo velho”. Essa distinção separa


as identidades, colocando à margem desse dispositivo os sujeitos que
não fazem uso dos recursos da web, e ao mesmo tempo dá visibilidade
aos novos corpos velhos que se sujeitam a esse mesmo dispositivo.
Segundo Veyne (2011), um discurso, com seu dispositivo institucional
e social, só se mantém enquanto a conjuntura histórica e a liberdade
humana não o substituam por outro. Somente se sai do aquário (o a
priori histórico) por conta de novos acontecimentos do momento ou
pelo surgir de um novo discurso que obteve sucesso.
Um dispositivo põe em jogo todo um conjunto de

(...) leis, atos, falas ou práticas que constituem uma


formação histórica, seja a ciência, seja o hospital, seja o
amor sexual, seja o exército. O próprio discurso é imanente
ao dispositivo que se modela a partir dele (...) e que o
encarna na sociedade; o discurso faz a singularidade, a
estranheza da época, a cor local do dispositivo (VEYNE,
2011, p.54).

O dispositivo é, portanto, algo que engloba “coisas e ideias (entre as


quais a verdade), representações, doutrinas, e até mesmo filosofias, com
instituições, práticas sociais, econômicas” (VEYNE, 2011, p. 57).

Como analisa Deleuze (1990), o dispositivo de poder tem como


componentes as linhas de visibilidade e as linhas de enunciação.
Em relação às primeiras, os dispositivos são máquinas de fazer ver,
uma vez que podem lançar luz sobre os sujeitos. A web, em relação à
“acontecimentaização” do envelhecimento da população, desempenha
um papel importante, na medida em que dá visibilidade a corpos
envelhecidos, condenados, antes, ao anonimato.
Em “A vida dos homens infames”, Foucault (2006a) analisa o

198
Pedro Navarro

dispositivo de poder denominado lettre de cachet, por meio do qual cada


súdito poderia ser o monarca do outro. A vida dos homens infames
passaria despercebida, não fosse essa possibilidade de uso de um poder
que ordena prender ou internar algum vagabundo ou alguém que
perturbe a ordem. Como analisa Foucault, para que alguma coisa dessas
vidas chegasse ao conhecimento, “foi preciso, no entanto, que um feixe
de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de
outro lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez
sempre devido, permanecer é o encontro com o poder” (FOUCAULT,
2006a, p. 207).
Em relação às linhas de enunciação, os dispositivos são máquinas de
fazer falar. Uma ciência, em um determinado momento, ou um gênero
literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, definem-se
precisamente pelos regimes de enunciações.
Voltando à distinção entre “velho velho” e “novo velho”, analisada
à luz do dispositivo e da prática discursiva na qual se constitui a web,
a relação poder-saber que se manifesta nessa prática dá visibilidade a
um segmento social antes esquecido, mas que agora, em virtude das
políticas de inclusão digital, por exemplo, passa a figurar em quadros
estatísticos. O governo da população idosa deve fazer viver essa mesma
população, e uma das formas é dar-lhe condições de acesso ao mundo
digital. O poder os tira da condição de sujeito à espera da morte e os
lança, novamente, no sistema capitalista. O corpo do “novo velho” é um
corpo que produz. Nesse sentido, o “novo velho” é aquele cujo corpo
se adapta às novas formas de interação com o mundo, pela linguagem da
web; e uma das formas de manifestação do exercício desse poder é fazer
esse sujeito falar conforme as regras de formação discursiva da web.
Um dos passos para que isso ocorra é instrumentalizar o idoso
com as ferramentas do mundo digital, o que implica uma espécie de
“letramento” digital, que deverá considerar, por exemplo, os elementos
semiológicos expostos na seção anterior. Em outros termos, o idoso

199
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

navegador de um site web deve saber que está diante de um tipo de escrita,
de um tipo de texto diferente daquele com que está habituado a lidar.
Sua intervenção, como leitor, será bem-sucedida na medida em que se
sujeitar aos dispositivos dessas “novas tecnologias” de informação.
Avalia-se como oportuno e produtivo, para o esboço dessa
perspectiva semiológico-discursiva que toma como objeto teórico de
reflexão o entrecruzamento do dispositivo das “novas tecnologias” com
o dispositivo da “webvisibilidade”, agregar o conceito de “heterotopia”,
entendido, neste texto, como um lugar outro construído para o “novo
velho navegador” de um site web.
O conceito de “heterotopia” aparece desenvolvido em alguns
poucos textos de Foucault, por exemplo, no prefácio de As palavras e
as coisas (FOUCAULT, 1999), no qual o autor explica que foi inspirado
pela enciclopédia chinesa, de Jorge Luis Borges; em “La pensée du
dehors”, Foucault (1966) volta a tratar de “heterotopia”, expressando
sua preocupação com a questão do espaço literário; em “Des espaces
autres”, texto originalmente publicado em 1984, o autor retoma as ideias
dos textos anteriores. Segundo ele,

(...) há, inicialmente, as utopias. As utopias são os


posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos
que mantêm com o espaço real da sociedade uma
relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria
sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade
mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços
que fundamentalmente são essencialmente irreais. Há,
igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura,
em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos,
lugares que são delineados na própria instituição da
sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos,
espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os
posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos

200
Pedro Navarro

reais que se podem encontrar no interior da cultura


estão ao mesmo tempo representados, contestados e
invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos
os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.
Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de
todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais
eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de
heterotopias (FOUCAULT, 2006b, p. 414-415).

A noção de espaço é algo que se oferece aos sujeitos sob a forma


de relações de posicionamentos. Para Foucault, isso se justifica pelo
fato de que, no espaço contemporâneo, a vida é regida por uma série
de oposições que estabelecem o que pertence ao espaço público e ao
privado, ao espaço cultural e ao espaço útil, ao familiar e ao social, ao de
lazer e ao de trabalho, e assim por diante.
Foucault faz uma distinção entre o espaço das utopias, representado
pelos posicionamentos sem lugar real, e o das heterotopias, visto como
contraposicionamento ou espaço das utopias realizadas. O espelho pode
ser tomado como uma metáfora que exemplifica a diferença entre esses
dois espaços: é uma utopia, pois se trata de um lugar sem lugar, já que
o sujeito se vê “lá” onde ele não está; e é também uma heterotopia,
pois existe concretamente, embora, nesse caso, o sujeito, ao se ver nele,
observa-se ausente do lugar em que ele realmente se encontra.
A produção discursiva da identidade e da diferença, levando em
conta a distinção entre “velho velho” e “novo velho”, pode se dar,
justamente, no momento em que se destina ao primeiro um lugar
convencionalmente reservado aos idosos, lugar esse caracterizado por
um cotidiano marcado pela solidão, pelo esquecimento, pelo abandono
e pela doença. Em oposição a esse lugar do “mesmo”, a identidade do
“novo velho” vem se constituindo a partir de um lugar “outro”, no
qual a velhice pode ser vivida de maneira diferente. Por esse raciocínio,

201
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

programas governamentais destinados à terceira idade, com incentivo


a viagens e ao retorno à educação, atividades corporais como dança
de salão, caminhadas, hidroginástica e aulas de pilates e certas políticas
públicas de inclusão digital materializam formas de exercício de uma
governamentalidade que, supostamente, estendem, para os idosos, o
tempo de vida com qualidade.
Desse modo, a articulação da noção de heterotopia com a de
dispositivo permite observar um deslocamento do corpo do idoso de seu
espaço local (o espaço do mesmo) para um espaço virtual, representado
no discurso da web como um espaço outro, em que o acesso às novas
tecnologias é de todos e para todos, independentemente da idade
biológica. O espaço heterotópico da web coloca o corpo do novo velho
navegador em outra posição, que não é mais a daquele idoso que fica
à espera de visitas ou de notícias de seus familiares, por exemplo. É
heterotópico porque o sujeito idoso não mais prescinde das condições
tradicionais de mobilidade e de acessibilidade para poder interagir
com outras pessoas. Em tais circunstâncias, a web funciona como uma
heterotopia de compensação, como analisa Foucault. Basta dar um
clique, passar o cursor sobre a página, fazer uso dos signos de passagens,
enfim, conhecer a sintaxe e o funcionamento da web.
O quadro a seguir sintetiza as reflexões feitas até o momento. Nele,
o que se demonstra é a interação entre a proposta semiológica e a
discursiva, na busca de compreensão da produção de novas posições de
subjetividade para o idoso.

202
Pedro Navarro

QUADRO 1: Abordagem semiólogico-discursiva da web.

ABORDAGEM SEMIOLÓGICO-DISCURSIVA DA WEB


Elementos semiológicos

Elementos discursivos
escrita de dispositivo de poder
tela governamentalidade

signo de
heterotopia
passagem

webvisibilidade novas tecnologias

“novo velho navegador”

A tese defendida aqui é que a produção do “novo velho navegador”


de um site web relaciona-se com, pelo menos, dois dispositivos: um
mais amplo, que seria o dispositivo das “novas tecnologias”, e um
mais específico, denominado “webvisibilidade”, que tem a ver com os
elementos de construção de uma sintaxe da web, ou seja, os elementos

203
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

que definem a escrita de tela e os signos de passagem, vistos anteriormente.


A produção da subjetividade “idoso plugado”, diga-se assim, se dá
no interior da prática discursiva na qual se constitui a web; entretanto,
como esse processo de subjetivação conta com a possibilidade de os
sujeitos terem acesso aos meios tecnológicos e de fazerem uso desse
saber, é preciso que a governamentalidade se exerça.
Para estas reflexões foram selecionadas algumas sequências
enunciativas (SE) do blog “Terceira Idade na Internet” de dos sites “Site
da Terceira Idade” e “Coisa de Velho”, todos voltados à terceira idade.
Esse recorte visa descrever o modo como o dispositivo de poder-saber,
que conjuga “novas tecnologias” com “webvisilidade”, instituiu uma
posição sujeito, que é definida como “novo idoso navegador”.
As duas faces do dispositivo de poder-saber (“novas tecnologias” e
“webvisibilidade”) materializam-se de três formas: a primeira encontra-
se em postagens feitas no blog “Terceira Idade na Internet”, por meio das
quais a criadora ensina seus leitores a fazerem uso da internet. A segunda
forma materializa-se em uma entrevista feita pela criadora do referido blog
com uma senhora de 92 anos de idade e em um texto postado no “Site
da Terceira Idade”. A terceira forma de materialização do dispositivo é
encontrada no site “Coisa de Velho”, em um link que direciona os leitores
para imagens capturadas de idosas em posições sensuais e com trajes
sumários. Apresenta-se, a seguir, cada uma separadamente, agrupando-
se as duas primeiras na terceira seção do artigo, e a terceira, na quarta e
última parte.

2. Do governo do idoso na web


A criadora do blog “Terceira idade na internet” informa que é um
ambiente virtual que contém “registros voluntários de reportagens, dicas
e filmes sobre informática e Internet para compartilhar com pessoas de
meia e terceira idade”.
De saída, a seleção lexical manifesta efeitos de poder vinculados

204
Pedro Navarro

ao enunciado. O verbo “compartilhar” contribui para tonar sutil esse


poder, uma vez que não indica uma imposição a seus destinatários e
ao mesmo tempo produz a ideia de que o blog é um espaço em que as
pessoas se ajudam mutuamente; ou seja, acompanhar as informações
é fazer parte de um grupo que usa a internet e divide com outros seus
conhecimentos.

2.1 As linhas de enunciação do dispositivo


Em relação à primeira forma, o que se observa são as linhas de
enunciabilidade, que têm por função levar o idoso a aprender a fazer uso
dos recursos da internet. Eis algumas sequências:

SE1: “O QUE É O GOOGLE MAPS. Encontrei um vídeo


autoexplicativo sobre localização de endereços na rede
Internet, o GOOGLE MAPS, que compartilho a seguir:”.
SE2: “CONHECENDO O TECLADO DO COMPUTADOR.
Compartilhando conhecimento sobre o teclado do
computador:”.
SE3: “COMO USAR O MOUSE. Orientações básicas para
utilização do mouse:”.
SE4: “TRANSFERIR FOTOS DIGITAIS PARA O MICRO.
Pesquisei na rede Internet e encontrei o vídeo a seguir, bem
simples, que compartilho:”.
SE5: “COMO CRIAR UMA PASTA NA ÁREA DE TRABALHO
DO COMPUTADOR. Compartilhando vídeo aula sobre
como criar uma pasta na área de trabalho do computador:”.

Nessas sequências, o sujeito que enuncia coloca-se na posição daquele


que pesquisa, compartilha e ensina seus leitores a utilizar os recursos da
internet. Esse tipo de “modalidade enunciativa” (FOUCAULT, 1972) é
um dos elementos caracterizadores das regras de formação do discurso

205
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

da web, quando essa prática discursiva volta-se para indivíduos que ainda
não estão familiarizados com seus dispositivos. Por corolário, essa
mesma prática constrói subjetividades para os leitores do blog: trata-se
de alguém que deseja fazer uso da internet, mas ainda não domina seus
mecanismos.
Destarte, para o governo desse corpo sujeitado ao discurso das
“novas tecnologias”, mas que desconhece como fazer uso delas, o
tutorial apresenta-se como o gênero discursivo mais apropriado. Em
outras palavras: uma vez criada, pelo dispositivo das “novas tecnologias”,
a necessidade de inserir o idoso no mundo virtual, como uma forma de
lhe dar mais tempo de vida com qualidade, entram em jogo elementos
da “webvisibilidade”, pois, para se tornar um “novo idoso navegador”
de um site, esse sujeito precisa saber ler e produzir textos na tela de seu
computador.
Nas SE 6 e 7 é possível observar o funcionamento desse tipo poder-
saber apresentado:

SE6: “COMO USAR O MOUSE. Orientações básicas para


utilização do mouse:”
SE7: “CONHECENDO O TECLADO DO COMPUTADOR.
Compartilhando conhecimento sobre o teclado do
computador:”.

A recorrência ao “letramento” digital, do qual se falou há pouco, é


uma forma de ensinar o leitor idoso a ler um texto que, como exposto
anteriormente, é formado por signos linguísticos e icônicos. Paralelamente
a esse tipo de letramento, é preciso também instrumentalizar esse mesmo
sujeito com os recursos da web que vão lhe permitir produzir formas de
linguagem diferentes das tradicionais, com as quais poderá estabelecer
outras possibilidades de interação com familiares e amigos, estando eles
distantes ou não.
A esse respeito, no dia 24 de outubro de 2012 a blogueira postou um

206
Pedro Navarro

tutorial, seguido do print screen de uma página de e-mail, para orientar os


idosos sobre como enviar e-mail, com cópia, cópia oculta e anexo:

SE8: “E-MAILS COM CÓPIA E CÓPIA OCULTA. Pesquisei na


Internet e achei muito interessante compartilhar com a terceira
idade:”.

O dispositivo que constitui essa forma de subjetividade, além de


fazer falar o “novo idoso navegador”, também lhe dá visibilidade, por
meio de uma reportagem postada no site.

2.2 As linhas de visibilidade do dispositivo


A terceira idade ganha corpo e voz na pessoa de Maria Lango, que,
de acordo com o blog, é uma “senhora com 92 anos que descobriu o
mundo virtual”.
A perspectiva da câmera enquadra esse sujeito de modo a se ter
uma visão de seu corpo envelhecido. Maria Lango responde a quatro
perguntas feitas pela blogueira, sentada em frente ao seu computador de
uso pessoal, em cuja tela pode-se visualizar o blog de sua autoria intitulado
“Bivovó Maria Lango”. Ocupa a parte central da tela uma postagem
com o nome “Informática na medida certa – metodista”, seguida da
imagem dessa senhora sentada em frente a outro computador. Na parte
direita da tela encontram-se o perfil de Maria Lango e os arquivos de seu
blog. A reportagem tem como título “Terceira idade na internet”.
Tais elementos linguísticos e imagéticos criam, pelo menos, três
efeitos, enunciados e descritos a seguir.
O primeiro deles é um efeito de proximidade entre o visitante do blog,
supostamente alguém da terceira idade, e um dos sujeitos reais a quem
a autora se dirige, com a finalidade de instruir quanto ao uso da rede
de internet. Com isso, confere-se ao que se enuncie certa credibilidade,
uma vez que se tem o depoimento de quem vive a experiência de uso da

207
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

internet na terceira idade. O segundo é um efeito metonímico, visto que


esse enquadramento imagético focaliza Maria Lango como parte de uma
população sobre a qual a governamentalidade deve ser exercida. Esse
efeito atende ao processo de subjetivação que, em termos genealógicos,
se dá na dinâmica individualização-totalização-individualização
(FOUCAULT, 2004; 2006c). A reportagem retira do conjunto da
população idosa uma pessoa que parece, então, representar aqueles
que incorporaram o computador como ferramenta de socialização, de
entretenimento e de pesquisa. A título de descrição do funcionamento
dessa dinâmica destaca-se a resposta de Maria Lango a duas perguntas
que lhe foram feitas:

SE9: “Quais os benefícios que a internet trouxe para a senhora?”.


“Muitos. Pesquisas, novidades, além de estar em contato com
amigos e família. É uma maravilha”. “Qual a sua mensagem
para as pessoas da terceira idade que ainda não conhecem
o mundo virtual?”. “Eles não sabem o que estão perdendo:
filmes, jogos, quebra-cabeças, muitas, muitas coisas em
divertimento. É muito, muito alegre e feliz estar trabalhando
em computador”.

O poder individualiza esse sujeito-alvo e ao mesmo tempo incide


sobre todos que se encontrem nessa mesma faixa etária. Essa dinâmica
se completa quando, ao individualizar esse segmento social, separa-o
daquele composto pelos sujeitos que não fazem uso da internet. Esse
outro do “novo velho navegador”, o “velho velho”, fica à margem do
dispositivo das “novas tecnologias” - à margem, portanto, de uma forma
de governo que visa, por intermédio da acessibilidade virtual, garantir
um tempo maior de vida útil.
O terceiro é um efeito heterotópico, na medida em que o conteúdo das
perguntas desloca o sujeito entrevistado do espaço convencionalmente

208
Pedro Navarro

ocupado pelo “velho velho”. No espaço heterotópico a experiência da


velhice é constituída pelas possibilidades que o mundo virtual oferece:
uma experiência supostamente diferente da que vivencia o “velho velho”.
É essa sujeição ao dispositivo que possibilita a emergência do enunciado-
resposta dado às perguntas, e não de outro. Assim, estar nesse espaço
do mesmo é “perder” as oportunidades de diversão oferecidas pela rede
de internet. De certa forma, é dizer não a uma vida que se crê de maior
qualidade, portanto, mais feliz.
Nessa mesma direção, nos “Archives for saúde”, do “Site da Terceira
Idade”, há um texto, postado pelo editor em 28 de abril de 2012, intitulado
“Jogos eletrônicos ajudam a melhorar o desempenho cognitivo e motor
dos idosos”, do qual se destaca a seguinte SE:

SE10: “À medida que as novas tecnologias avançam, os jogos


eletrônicos passam a ser utilizados não somente para
entretenimento, mas como instrumentos de apoio na
melhora da qualidade de vida de idosos [...] os videogames
que combinam jogos com exercícios ajudam a melhorar o
desempenho motor e podem diminuir os sintomas de doenças
como depressão. O idoso vivencia movimentos realizados em
lutas, partidas de golfe, tênis ou boliche.”.

Se na SE9 o sujeito entrevistado avalia os jogos na rede de internet


como parte de uma das oportunidades de lazer oferecidas à terceira
idade, na SE10 o sujeito fala de outra posição discursiva, constituída
pelo saber médico. Entre a posição que o primeiro enunciador ocupa e
a ocupada pelo segundo há uma diferença em termos de interlocução
que se deseja estabelecer com os demais idosos a quem o conteúdo
dos enunciados se endereça. O sujeito entrevistado da SE9 responde à
pergunta na condição de alguém que se sujeitou ao dispositivo que o faz
falar como internauta e está imbuído da necessidade de compartilhar sua

209
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

experiência com o uso da internet. Já em SE10 são duas as modalidades


enunciativas observadas: na primeira o sujeito avalia os efeitos positivos
da internet para a alma e o corpo do idoso, e na segunda, embora não
marcado linguisticamente por meio de sequências textuais injuntivas, o
sujeito prescreve o uso dessa ferramenta.
Não obstante, o acesso a esse conhecimento, que se supõe “salvar”
alma e o corpo do “velho velho”, só é possível aos que sabem fazer
uso dos dispositivos próprios da web, desde os mais básicos (ligar o
computador e conectá-lo à rede) aos mais elaborados (entrar no universo
da escrita de tela e lidar com os signos de passagem pra fazer pesquisas).

3. Da exposição do “novo” corpo velho na web


A via de análise aberta pelas linhas de visibilidade do dispositivo
permite que se olhe para a prática discursiva da web como um espaço que
o idoso encontra para expor seu corpo velho e sua sexualidade. O site
“Coisa de Velho” direciona o leitor para um link que apresenta mulheres
idosas em posições sensuais e com trajes sumários.
O link faz a postagem do “Projeto Maturidade: um ensaio para
mudar a visão sobre a velhice”, do fotógrafo holandês Erwin Olaf. De
acordo com o site, Olaf

SE11: “lida diariamente com top models de algumas das principais


marcas do mundo. Com esse olhar para a beleza, ele decidiu
fazer um ensaio, batizado de Maturidade, não para vender
roupas e acessórios. Mas um novo olhar. Um olhar sobre a
velhice, tentando desmistificar a ideia de que sensualidade
apenas combina com juventude”. Esse ensaio fotográfico capta
dez mulheres com mais de 70 anos, reproduzindo imagens de
símbolos sexuais do cinema”.

210
Pedro Navarro

O primeiro ponto a ser considerado, em termos do dispositivo


de poder-saber que alia “webvisilidade” com “novas tecnologias”, é
que, para ter acesso ao saber que pode deslocar o idoso do espaço do
mesmo para o espaço heterotópico, em que sensualidade e velhice não
são termos que se opõem, é preciso, antes, ter outro saber, de ordem
técnica, que irá permitir a esse leitor navegar pelo site. As dez imagens do
fotógrafo Erwin Olaf só poderão ser vistas clicando-se com o mouse a
seta que leva de uma imagem a outra.
O exposto assenta-se sobre o duplo funcionamento da seta, como
um signo de passagem: manuseá-la é um gesto funcional, sem o qual o acesso
à informação não se efetua, e um gesto de interpretação, porquanto a
leitura (observação) do conteúdo postado (exposição do corpo idoso
sexy) será feita de uma posição sujeito que se identifica ou não com as
imagens, ou melhor, de uma posição sujeito-corpo que conseguiu ou
não envelhecer sem perder a sensualidade.
Não é demais enfatizar que a exposição do “novo” corpo velho só
se completa com o movimento que deve ser operado por aqueles que
estão do outro lado da tela do computador: indivíduos cuja aparência
assemelha-se com a daquela observada ou que envelheceram sem
“engenho e arte”.
Com isso, chega-se ao segundo ponto da análise desta quarta seção.
Esse signo de passagem atende a outro funcionamento, mais amplo que o
primeiro: fazer o idoso navegar pelos links de um site que, pelas imagens
postadas, associa a velhice à beleza e à sensualidade é, de certa forma,
deslocá-lo para um espaço heterotópico em que aquele corpo exposto
é tão mais belo, mais harmônico e mais sensual quanto não o é o seu.
É nesse momento que o exercício da governamentalidade no discurso
da web se efetiva: ao fazer das “novas tecnologias” uma poderosa aliada
para a inserção da população idosa numa espécie de “cultura do cuidado
de si” contemporânea.

211
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

De acordo com Foucault (2010), a fórmula grega epiméleia heautoû


designa certa forma de atenção, de olhar. Cuidar-se de si mesmo implica
uma conversão do olhar do exterior para o “interior”, na busca de
compreensão do que se passa no pensamento. O autor segue explicando
que “o cuidado de si mesmo” comporta algumas ações exercidas de
si para consigo, pelas quais os sujeitos se assumem, modificam-se,
purificam-se, transformam-se ou se transfiguram.
Apoiando-se em textos da antiguidade grega e romana, Foucault
detém-se no pronome reflexivo grego heautoû para mostrar que a relação
estabelecida por ele indica tratar-se do sujeito que se ocupa com algo
que é ele mesmo. Assim, o pronome funde o sujeito que pratica a
ação e aquele que é o alvo dessa mesma ação. Em outros termos, o
que está referido no pronome reflexivo grego é a alma do sujeito. A
descontinuidade na história de longa duração em torno dessa cultura
agrega o corpo como parte desse cuidado. Como analisa Foucault, a
“dietética”, como regime geral da existência do corpo e da alma, passa a
ser uma das formas capitais do cuidado de si.
Isso posto, nas formas contemporâneas do cuidado de si, interrogar
o estatuto sintático e semântico do pronome reflexivo implica considerar
a noção de identidade. Nesse sentido, da pergunta filosófica “O que é
esse si a quem se deve cuidar?” passa-se a outra, de cunho discursivo:
“Quais são os processos discursivos de identificação existentes hoje?
A resposta vem sendo perseguida ao longo deste texto, porém
faltava acrescentar ao quadro teórico-analítico desenvolvido a ideia de
que “as novas tecnologias” e a “webvisibilidade” instituem uma forma
de tecnologia do eu contemporânea, a qual interpela o “novo velho
navegador” da web a cuidar de sua alma pelo cuidado com seu corpo.
Essa tecnologia do eu vai se apresentar como uma das possibilidades
de viver a velhice com mais dignidade. Os signos de passagens da web
estabelecem, justamente, esse governo do corpo do idoso, uma vez que
podem propiciar a inserção do indivíduo nesse espaço outro, em que o
corpo envelhece como uma obra de arte.

212
Pedro Navarro

Considerações finais
Como parte integrante das práticas discursivas que inauguram novas
posições de subjetividade, a web desestabiliza os sentidos de idoso, ao
se valer de saberes que produzem identidades moventes. Conforme
se discutiu neste texto, as relações entre o dispositivo das “novas
tecnologias” e o da “webvisibilidade” têm como efeito um poder-saber
que cria um espaço outro para o sujeito da terceira idade. Não obstante,
isto só é possível se esse sujeito dispuser de meios para acessar o mundo
virtual, assim como de conhecimentos que lhe deem condições de
utilizar as ferramentas oferecidas pela linguagem digital. Assim, essas
novas posições de subjetividade são produtos tanto de uma escrita de tela
quanto de um gesto de interpretação por parte do leitor. O que separa
aquilo que o idoso é daquilo no qual ele poderá se constituir, no caso do
discurso da web, é o clic do mouse, que fará o cursor direcionar-se para as
possibilidades de significação produzidas na (em) rede.

Referências
BONACCORSI, J. “Approches sémiologiques du web”. In: BARATS,
C. (org.). Manuel d’analyse du web en Sciences Humaines et Sociales. Paris:
Armand Colin, 2013, p. 125-46.

DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo.


Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta


Neves. Petrópolis: Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.
______. A ordem do discurso. In: Série Apontamentos, n. 29. Trad.
Adalberto de O. Souza. Maringá: Universidade Estadual de Maringá,
1995.
______. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1998, p. 277-93.

213
Dispositivo e Governo da Velhice no Discurso da Web

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.


Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
(coleção tópicos).
______. Sécurité, territoire, population: cours au Collège de France
(1977-1978). Paris: Gallimard; Seuil, 2004.
______. Estratégia, poder-saber/Michel Foucault. Coleção Ditos
& Escritos, v. IV. Organização e coleção de textos, Manoel Barros
da Motta; tradução, Vera Lúcia Avellar Ribeiro, 2. ed., Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006a.
______. Estética, Literatura e pintura, música e cinema/Michel
Foucault. Coleção Ditos & Escritos III. Organização e coleção de textos,
Manoel Barros da Motta; tradução, Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª.
ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b.
______. Ética, Sexualidade, Política/Michel Foucault. Coleção
Ditos & Escritos V. Organização e coleção de textos, Manoel Barros da
Motta; tradução, Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª. ed.,
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006c.
______. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France
(1981-1982). Trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. 3.
ed., São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo


Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Sites consultados
Coisa de Velho. Disponível em <http://coisadevelho.com.
br/?p=12785> . Acesso em 29 jun. 2014.
Site da Terceira Idade. Disponível em <http://www.sitedaterceiraidade.
com.br/category/saude/>. Acesso em 03 jul. 2014.
Terceira Idade na Internet. Disponível em <http://
terceiraidadenainternet.zip.net/>. Acesso em 08 jul. 2014.

Recebido em 30/11/2014 e Aceito em 11/03/2015.

214
POLITICAL DISCOURSE AND SOCIAL NETWORK

DISCURSO POLÍTICO E REDES SOCIAIS

Vanice SARGENTINI
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

RESUMO
Com o desenvolvimento da tecnologia na atualidade, assiste-se à presença cada vez mais
marcante das mídias como objeto de investigação da análise do discurso. Nesse contexto,
comparecem as redes sociais como vasto campo de investigação acerca do discurso político.
Neste artigo, são analisadas as novas formas de circulação desse discurso engendradas por
conta da influência e dos avanços das mídias digitais, buscando demonstrar a importância das
possibilidades proporcionadas pela web para sua difusão. Interessa, sobretudo, compreender
como ocorre a adequação do discurso às condições a que inevitavelmente deve se submeter.

ABSTRACT
With the development of technology today, media is appearing more and more as an object
of discourse analysis researches. On such circumstances, social networks offer a great wealth
of material about the political discourse specifically. This article examines new forms of
circulation of such discourse, engendered by the influence and the advances of digital media, in
order to highlight the importance of the possibilities offered by the web and its disseminating
abilities. With this in mind, this article seeks to comprehend how discourse adaptes itself to
these conditions, that inevitably it must submit itself to.

PALAVRAS- CHAVE
Discurso; discurso político e redes sociais.

KEYWORDS
Discourse; political discourse and social media.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 215-234, jul./dez. 2015


Discurso Político e Redes Sociais

Introdução
A proposta desta mesa-redonda1 sobre a AD e a WEB, envolvendo
dois temas tão amplos e que se articulam de várias formas, exige que
se façam alguns recortes e ponderações. Considerando nosso interesse
de pesquisa, estabelecemos como recorte o discurso político, cujas
mutações respondem tanto a questões histórico-ideológicas como às
novas formas de circulação desse discurso.
A Análise do discurso derivada de M. Pêcheux centrava-se, em seu
nascedouro (final dos 1960) e ao longo dos anos de 1970, na análise
da produção dos discursos políticos e nas formas de constituição do
sujeito ao formular seus enunciados. Nos anos 1980, a importância
da circulação dos textos torna-se pauta incontornável. E isso é muito
visível, na atualidade, no que se refere ao discurso do âmbito da política.
Até 1998, o arquivo do discurso político era menos diversificado.
Contava-se com livretos contendo programas de governo e panfletos
nos quais havia a predominância de textos escritos em relação aos
imagéticos, sendo, em geral, publicados e distribuídos pelos comitês
dos candidatos, portanto de forma reduzida. Além desses recursos,
o candidato valia-se também, com certa dificuldade de acesso, de
filmagens feitas em comícios públicos ou pronunciamentos em rádio e
TV. O Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) era a forma
única de atingir simultaneamente muitos eleitores. Na última década esse
quadro se modificou. Diante desse grande arquivo que é a internet, é
possível não só rever a qualquer tempo os programas do HGPE; mas
também conversar com o candidato e ter acesso aos diálogos entre
os candidatos e seus eleitores, por meio das várias redes sociais como
Twitter, Facebook, MySpace, Badoo e muitas outras que possivelmente
surgirão nos próximos dias. Além disso, vê-se, pelo celular, com o
1
Este artigo retoma apresentação feita no V Colóquio da ALED e trata-se de uma versão com
alterações de parte de um capítulo do livro Três décadas de democracia: mutações do discurso político, sob
minha organização.

216
Vanice de Oliveira Sargentini

aplicativo Instagram, as diversas fotos que atuam como documentos


que atestam por quais lugares o candidato passou e com que pessoas
esteve. São documentos dessa história do presente que se nos apresenta
como monumento2. É ainda possível ao eleitor acessar os sites nos quais
há conversas ao vivo com os internautas; ouvir, a qualquer momento,
a gravação de programas de rádio e TV, enfim, são mais diversificadas
as produções do discurso político, bem como são mais facilitadas as
formas de acesso e captação desse discurso.
Assim, o surgimento de diversas ferramentas tecnológicas criou a
possibilidade de apreensão de todos esses materiais que são suportes do
discurso político, simplificou a captação desses produtos de divulgação
e, de forma inevitável, constrangeu a forma de produção do discurso
político. As propostas e ações não são acontecimentos que ocorrem e
depois são anunciados. A construção discursiva das atividades políticas
são produzidas na conjunção do marketing político e nesta fórmula
produzem o acontecimento. Essas são nossas preocupações, em especial,
observar e analisar como as coerções desencadeadas pelas formas de
circulação do discurso político produzem mutações neste discurso.

1. Das redes de comunicação aos recursos tecnológicos


de distribuição dos discursos.
As redes sociais, entretanto, não são somente novidade. Para essa
discussão torna-se imprescindível considerar a noção, nascida entre os
historiadores, de diferentes durações: longa, média ou curta duração3.
Em relação às redes sociais, se, por um lado, nos pautarmos em uma
curta duração, de fato, teremos como afirmação que a forte presença
da web na sociedade produziu, no discurso político, (e em outros
discursos também, mas aqui nos deteremos na pesquisa do âmbito
2
Conforme M. Foucault define esse conceito no livro A arqueologia do Saber ([1969] 1986).
3
Braudel (1984).

217
Discurso Político e Redes Sociais

político) significativas mutações. Por outro lado, se a longa duração for


a lente de visualização da produção discursiva, poderíamos ver tanto
continuidades, quanto descontinuidades.
R. Darnton4, em Poesia e Polícia, redes de comunicação na Paris
do século XVIII, faz um cuidadoso estudo dos documentos do Caso dos
catorze. A partir de um pedaço de papel obtido por um espião da polícia
desencadeou-se uma sequência de prisões. Eram poemas e melodias que
faziam críticas ao Rei. Inicialmente supunha-se ser um único, depois se
viu que havia pelo menos seis. O autor também não era um único, um
contava para o outro que decorava e acrescentava algo e o recitava a outro
que depois o escrevia e passava a outro. Enfim, algo que se assemelha
a uma forte rede social no ano de 1749. O Rei Luís XV, vulnerável aos
comentários contra ele (por demitir e exilar o conde de Maurepas e
por suas relações amorosas com a Mme de Pompadour) vê instalar-se
uma crise no reinado. Entretanto, não se pode afirmar que esse caso de
1749 seja um sintoma dos acontecimentos de 1789. Segundo Darnton5
(p.144) “entre o Caso dos Catorze e a queda da Bastilha, sobrevieram
tantos acontecimentos, influências, causas, contingências e conjunturas
que é inútil procurar uma conexão”
Por um lado há a continuidade quando falamos em redes de
comunicação, mas há descontinuidade se quisermos considerar esse
fato como desencadeador da queda da bastilha. Fizemos, enfim,
referência a esse caso, por duas razões: i) a importância de se estudar
o acontecimento, sem buscar nele uma relação impositiva de causa e
consequência e nesse aspecto consideramos a contribuição de Foucault
aos estudos do discurso e ii) a avaliação de que há muito tempo as redes
de comunicação agitam o discurso político.
J.-J Courtine6, em seus estudos, aponta como a espetacularização
produz uma ruptura que atinge as formas de produção do discurso
4
Darnton (2014).
5
Idem, p. 144
6
Courtine (2011, p. 149).

218
Vanice de Oliveira Sargentini

político contemporâneo. A midiatização e o caráter publicitário passam


a caracterizar a fala do homem público a partir do final dos anos de 1960.
“Quando eu terminava minha tese sobre um dos discursos mais sólidos
[...], o discurso comunista, eu estava, antes de mais nada, preocupado
em fazer a anatomia de uma língua de madeira.” Entretanto, o autor
posteriormente compreende “que essa anatomia era, com efeito, uma
autópsia, que eu transcrevia sob a forma de um atestado de óbito ou
de um réquiem que eu então compunha.” Um novo modo de produção
do discurso político se instala e segundo Courtine “foi-me necessário,
portanto, inicialmente, enterrar uma língua de madeira, para sentir correr
o sopro das línguas de vento.”7
Era, então, o discurso midiatizado, a língua de vento (conforme
Debray) que surgia, tão bem exemplificada no extrato “on a gagné”
analisado por M. Pêcheux8, sobre a forma midiatizada de comemoração
da vitória de Mitterrand (1981) entoada aos gritos de torcida de futebol.
O movimento de estudos da Análise do discurso, considerando os
últimos textos de M. Pêcheux – Discurso: estrutura ou acontecimento9
e artigos resultantes do colóquio Matérialités Discursives10 – já indicam
que o discurso político torna-se refém das formas de circulação. Neste
aspecto, a web terá papel extremamente forte nessa transformação. A
política se faz, nesta perspectiva, no interior e segundo as regras do espaço
midiático e, por consequência, o discurso produz o acontecimento. Por
exemplo, na atualidade, as ações governamentais são sloganizadas e se
presentificam na materialidade linguística em um apelo visual que oferece
ao fundo, em banners, a síntese do que fala o orador político. Tomemos
a imagem, a seguir, como ilustração dessa observação.

7
Idem, p. 149
8
Pêcheux (1990).
9
Idem.
10
Conein et al. (1981).

219
Discurso Político e Redes Sociais

FIGURA 1: os encontros

A pauta dos encontros não é apresentada somente como motivadora


de discussões, ela é verbalizada de forma sintetizada e também tornada
imagem de forma a associar de forma direta o candidato às suas ações.
Ouve-se, lê-se e vê-se o discurso político neste acúmulo de voz, leitura
e imagem.
Nas campanhas eleitorais presidenciais de 2006 e 2010, as propostas
político-partidárias dos candidatos foram construídas nos sites, em um
diálogo com o eleitor, que durou todo o período da campanha. Os
candidatos, sob a égide de uma candidatura democrática, recolhem as
sugestões e críticas dos eleitores e adversários políticos e produzem em
seus sites as proposições do programa de governo. Se considerarmos a
existência de uma articulação entre os diferentes suportes, observaremos,
por exemplo, que essas discussões que nascem nos sites nem sempre
migram para o horário gratuito de propaganda eleitoral (HGPE).

220
Vanice de Oliveira Sargentini

A pesquisa de Manzano11, que analisou o funcionamento do HGPE,


apurou que a discussão, tão forte em várias mídias, a respeito do
posicionamento da candidata Dilma em 2010 sobre o aborto, jamais foi
pauta da propaganda televisiva. São formas de controle da distribuição
do discurso.
O Twitter, uma rede social que se tornou uma aposta no pleito de
2010, estabeleceu-se como mais uma forma de difusão do discurso
político. Coagidas a 140 caracteres, as postagens diárias não só relatavam
o percurso do candidato no cumprimento da agenda de campanha,
como também o colocavam em diálogo, supostamente direto, com
os seus seguidores. Assim, os sites e o Twitter tornaram-se formas
indispensáveis de acesso ao eleitor que a qualquer hora ou local pode ser
encontrado no celular que está na palma da sua mão.
Segundo Marc Angenot12, os manuais de retórica, tanto antigamente
como ainda hoje definem a retórica como “a arte de persuadir pelo
discurso” e essa definição ainda que universalmente aceita parece
inadequada. “Os humanos argumentam de modo constante, certamente
e em todas as circunstâncias, porém, evidentemente, eles muito
pouco se persuadem de maneira recíproca. Do debate político às
querelas domésticas e desta à polêmica filosófica, é essa a impressão
constante que se tem.”13 De fato, a dificuldade, quando não a ausência,
de resultados positivos no jogo da persuasão se estende também aos
dispositivos oferecidos pela WEB. Os microblogs, como o Twitter, e
os perfis de facebook de candidatos têm como seguidores aqueles
que já são partidários daquele grupo, ou que estão no polo oposto,
mas dificilmente atingem os indecisos ou aqueles que não querem se
envolver com o processo. Assim, neste modelo imposto pela web e
que permite quantificar os seguidores ou as ‘curtidas’ no facebook, os
partidários de cada candidato seguem-no, e têm nisso a possibilidade de
11
Manzano (2014).
12
ANGENOT (2008).
13
Tradução nossa.

221
Discurso Político e Redes Sociais

dar visibilidade à militância. As redes sociais, como uma ferramenta de


marketing político, ainda que seja tão recente, já expõem a dificuldade de
atingir os eleitores que faltam nesta contagem antecipada dos votos. Os
textos que circulam nas redes sociais (sites, facebook, twitter) têm, então,
a função de reafirmar a identificação com o seu eleitor e nutrir embates
que são produzidos durante a campanha.
Na campanha televisiva, os programas são apresentados, ainda que
com diferente duração, em uma sequência, e é improvável que o eleitor
ligue a TV apenas no horário de um candidato. O gênero HGPE é
impositivo e leva o expectador a assistir, ou só olhar de forma desatenta,
o programa. Na internet é preciso que o consulente, a partir de alguns
comandos, acesse um site. Resta, então, a necessidade de criar nas redes
sociais uma forma de chegar a esse eleitor que o leve, de modo que
pareça não impositivo, a ver a propaganda política.

2. As astúcias na produção do discurso político nas


redes sociais.
Em uma reunião do Partido dos Trabalhadores, cuja pauta era as
mídias sociais, discute-se a estratégia para se atingir os eleitores.

As principais conclusões são que os petistas têm


dificuldade de difundir seu discurso nas redes sociais a
quem não é simpatizante do partido e que a oposição é
bem mais articulada. “Este é o novo espaço de disputa”,
defendeu Tiago Pimentel, um dos palestrantes. “E a
direita percebeu isso antes de nós.”
Para quebrar a rejeição que enfrentam na internet,
principalmente no Facebook e no Twitter, os petistas
devem adotar a linguagem do “meme”, imagens de
fácil compreensão e na maioria das vezes de cunho

222
Vanice de Oliveira Sargentini

humorístico em detrimento do discurso de “panfleto” –


descrito por palestrantes como “textos longos e chatos
que ninguém lê.”
“Se a gente faz uma piada de política que envolve o
Michael Jackson, por exemplo, atingimos não só a pessoa
que gosta de política, mas também a que gosta de Michael
Jackson”, exemplificou Cleyton Boson, coordenador de
mídias sociais da Prefeitura de Guarulhos. 14

O ‘meme’15, a seguir, difundiu-se nas redes sociais ao longo do


primeiro semestre de 2014. O discurso político, nesse caso, vale-se da
força do discurso publicitário, uma vez que retoma uma publicidade
que foi muito recorrente na TV neste mesmo período do ano de 2014
e que apelava para o caráter humorístico, convidando o expectador a
anunciar produtos já em desuso, dos quais houvesse o desejo de se livrar
e que oportunamente pudesse vir a ser de interesse a outro usuário. O
slogan “Cansou? Faz logo um bom negócio. A cada um minuto quatro
coisas vendem” repetia-se em toda a série das propagandas televisivas do
anunciante Bom Negócio. No exemplo a seguir, vemos o même em que
se fez a substituição do rosto do ator comediante Serginho Malandro,
como originalmente exibido no comercial publicitário, pelo rosto da
candidata Dilma Rousseff.

14
Extraído de Folha de São Paulo, 21 de abril de 2014. Caderno A8 – Poder.
15
A definição de meme na internet é simples: trata-se de uma imagem, vídeo ou frase bem-
humorada que se espalha na internet como um vírus. Alguns memes estão aí há tanto tempo
que a gente nem se lembra mais de quando (e por que) eles apareceram. (Fonte: Revista Super
Interessante, disponível em: <http://super.abril.com.br/multimidia/memes-682294.shtml>.).

223
Discurso Político e Redes Sociais

FIGURA 2: cansou?

O recurso do apelo ao humor e a estratégia da invisibilidade do sujeito


que enuncia (da força política que enuncia) permite que, de uma forma
vista como não impositiva, chegue ao eleitor uma propaganda eleitoral.
Não está explicitado o sujeito enunciador, mas sua posição enunciativa.
O enunciado linguístico e o enunciado imagético ainda que disponível
para ser lido na direção do arranjo da escrita ocidental (de cima para baixo
e da esquerda para a direita) funde de forma indissociável a materialidade
linguística e a materialidade imagética. O enquadramento do texto
em verde e as letras em cores amarelo e branco são preponderantes
neste texto misto e evitam a atribuição das cores vermelho e azul
partidariamente bipolarizadas na corrida eleitoral. Courtine16 fala em uma
língua de vento que funciona sem mestre aparente – ideia de que ela é
capaz de dissimular bem melhor que as línguas de madeira. Para Pêcheux
e Gadet, “A língua de madeira socialista é uma língua fóbica, construída
para fazer fracassar de antemão qualquer contradição e se proteger ao
falar das massas do interior de uma estátua de mármore”17 e, portanto, o
16
Courtine, 1999.
17
Pêcheux e Gadet (2004, p. 24).

224
Vanice de Oliveira Sargentini

capitalismo contemporâneo logo mostra seu interesse em quebrar essas


estátuas e vem a oferecer a língua de vento “flutuante, sem ancoragem
na materialidade sensível ou histórica; sintaxe sem semântica, na qual os
signos brincam no ar e entre si”18. É isso que vemos nesta mensagem
enviada pelas redes sociais – já contando especialmente com o aplicativo
WhatsApp Messenger, capaz de enviar texto escrito e imagem.
A web permite o contato com muitos simultaneamente em um
momento em que os candidatos políticos querem falar ao povo e com o
povo. E quem é esse povo? Para Umberto Eco19, o povo, na democracia,
é uma maioria representativa que vota. Por isso, o povo é sempre uma
construção. Lula quando diz ao povo na Carta ao Povo brasileiro ao mesmo
tempo constrói esse povo:

Nosso povo constata com pesar e indignação que a


economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a
soberania do país ficou em grande parte comprometida,
a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social
e a insegurança tornaram-se assustadoras.
[...]
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa
qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou
mascarado.20

O povo é, nesta perspectiva, sempre uma construção cujo retrato


iguala a imagem do povo à imagem do chefe. A web permite, por meio
dos sites, assim como por meio da TV, que o candidato fale ao povo, mas
procura-se na comunicação política uma forma de falar com o povo,
sem a intermediação da mídia jornalística ou mesmo das plataformas
mais enrijecidas dos sites. As redes sociais oferecem esse acesso direto
18
Debray (1978, p. 74).
19
Eco (2012).
20
Carta ao Povo Brasileiro – Lula, junho de 2002

225
Discurso Político e Redes Sociais

ao povo, humanizando o candidato e individualizando o eleitor. No caso


de reeleição, a necessidade de o candidato/presidente manter-se em uma
‘proximidade longínqua’ exige, por exemplo, que ele ocupe dois e até
três lugares enunciativos distintos na web.
No caso da presidenta Dilma Rousseff em processo de reeleição,
no pleito de 2014, além do site oficial da presidência, no qual é maior
a distância de contato com o povo, ela mantém um perfil de facebook.
Neste estão apresentadas suas ações como presidenta, além de ocupar
também o lugar enunciativo de futura candidata. E em uma estratégia
poderosa de marketing, a Dilma, no caso a Bolada21, um personagem
fictício, mantém um perfil no qual ela enuncia em lugar de extrema
proximidade com o eleitor, expondo seu superego, da forma mais
transparente possível. Assim, separam-se a presidenta, a candidata à
presidência, a Dilma (bolada). Para a primeira, se há tanta gente comum
que faz parte das redes sociais, a presidenta também faz, mas não enuncia
deste mesmo lugar do internauta, a segunda enuncia do mesmo lugar
dos candidatos e a terceira enuncia do lugar de onde os comuns enunciam.
Foi preciso instalar para ela um lugar de dizer em diferentes níveis. No
perfil da Dilma Bolada autoriza-se o dizer que não está na ordem do
discurso político, mas que funciona politicamente de forma mais intensa
que o dizer que se inscreve de forma politicamente correta na ordem do
discurso político contemporâneo. Esse perfil, ainda que não alimentado
pela Dilma, funciona diferentemente dos perfis falsos. Há um sujeito
definido, visível, mas ainda assim fala-se por uma língua de vento.

21
Perfil de Dilma Bolada no Facebook disponível em: <https://www.facebook.com/
DilmaBolada>.

226
Vanice de Oliveira Sargentini

FIGURA 3: beijo no ombro

O site da Dilma Bolada apresenta, por exemplo, o clipe de Dilma e


parceiros dançando a música ‘Beijinho no ombro’. A letra foi adaptada.
A Dilma Bolada vale-se do humor produzido pelo clipe, mas enuncia
como indignada – “Só quero saber quem foi o engraçadinho que fez
essa palhaçada...”
As condições de enunciabilidade22, de memória (alguns enunciados
são reconhecidos como válidos, discutíveis ou inválidos) e de apropriação
(enunciadores que tem direito de se apropriar de determinados
enunciados) colocam-se em jogo, neste arquivo da WEB, por meio da
rede social – produz-se o duplo no qual ‘antes que o outro fale ou ria
de mim, eu mesma falo ou rio de mim mesma’. Como efeito de sentido,
a enunciação produz a intimidade distante. Além disso, produz-se uma
superficialização da discussão ideológica sustentada pela centralização
do humor descompromissado.
Entretanto, o perfil de um ‘personagem fictício’, conforme anunciado
na página do facebook, ao mesmo tempo em que se centra no humor,
também focaliza, ainda que de modo mais sutil, os diferentes lugares de
enunciação da candidata. Nos enunciados presentes na página da Dilma
22
Foucault (2010).

227
Discurso Político e Redes Sociais

Bolada encontramos os diferentes lugares enunciativos nos quais se


instalam os dizeres da presidenta/candidata. Observemos a postagem a
seguir extraída do perfil Dilma Bolada.

FIGURA 4: Nada como um dia após o outro

No início, a citação de frase que compõe parte do funk carioca,


cantado pela Valesca Popozuda, intensamente repercutido nas redes
sociais, articula-se de forma coerente com o tom derrisório presente no
perfil da Dilma Bolada, fundindo assim as duas vozes. No fragmento
imediatamente seguinte “Perseguida, humilhada e torturada pela Ditadura

228
Vanice de Oliveira Sargentini

Militar iniciada no Brasil em 1964...”, um enunciador, que a princípio supõe-


se seria a Dilma Bolada, relata o quê, em um tempo de então, se passou
com ‘ela’, hoje a “Presidenta da República, reverenciada por aqueles que
um dia a torturaram” tratando-a pela terceira pessoa, a outra – a Dilma
Presidente. Mas na frase seguinte, o enunciador já passa para outro lugar
enunciativo, ao empregar o pronome na primeira pessoa – “Não é só
uma vitória minha, é uma vitória de todos nós brasileiros!” Esse sujeito, que
enuncia em primeira pessoa, acumula os lugares enunciativos da Dilma,
que viveu os anos de chumbo, da Dilma presidente e da Dilma brasileira,
e não se distancia completamente do lugar enunciativo da Dilma Bolada.
O texto verbal também instala esses diferentes níveis. A caricatura
da Dilma e a adaptação do clipe da música, conforme mostramos
anteriormente, respondem coerentemente com o lugar de enunciação
da Dilma Bolada. As fotos, que atuam como documentos de uma época,
reativam um momento gravíssimo da história e superação daquele
momento, quando Dilma Rousseff assume a Presidência.
No imediato retorno à leveza do discurso, à língua de vento, surge a
seguinte postagem: “Alô, Dilmetes! Euzinha, pensando no coraçãozinho de vocês,
resolvi (...) criar o Meu encontro minha vida...” No extremo da informalidade,
empregando o pronome de primeira pessoa no diminutivo, criando com
isso o efeito de assunção do dizer, a Dilma Bolada volta a ocupar seu lugar
enunciativo e troca intimidades e futilidades com seus interlocutores (e
eleitores).

229
Discurso Político e Redes Sociais

FIGURA 5: Guilherme Leão

Algumas conclusões.
Enfim, refere-se atualmente a uma desideologização do discurso
político. A WEB, com sua língua de vento, revela-se um espaço propício
a isso. Mas não só. Por ela também se impõe o discurso ideológico.
Quando se pensa consumir a língua de vento, e ela está lá, surgem,
também, por recursos linguístico-discursivos, os posicionamentos
ideológicos. Conforme M. Foucault: “Ora por mais que um enunciado
não seja oculto, nem por isso é visível [...]. É necessário uma certa
conversão do olhar e da atitude para poder reconhecê-lo e considerá-lo
em si mesmo”23.
Sob a égide da língua de vento, a censura contemporânea é criada
no enorme ruído da WEB. Nas redes sociais, se, por um lado, todos
podem falar, e isso soa como mais democrático, por outro, diante dessa
civilização de barulhos24, pouco se ouve.
23
Foucault (1986, p. 125).
24
Eco (2012).

230
Vanice de Oliveira Sargentini

Referências
ANGENOT, M. Dialogues de sourds: traté de rhétorique antilogique.
Paris: Mille et une nuits, 2008.

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo Mediterrânico na


Época de Filipe II - Vol. II. Tradução Ministério da Cultura Francês.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984.

CONEIN, B. et al. Materialités discursives. Lille: Presses Universitaires,


1981.

COURTINE, J-J. O Chapéu de Clémentis. Observações sobre a


Memória e o Esquecimento na Enunciação do Discurso Político. trad.
de Marne rodrigues de rodrigues. in: INDURSKY, Freda; FERREIRA,
Maria Cristina L. (orgs.). Múltiplos territórios da Análise do Discurso.
Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.

COURTINE, J-J. Discurso e imagens: para uma arqueologia do


imaginário. In.: SARGENTINI, V. (org) Discurso, Semiologia e História.
São Carlos – SP: Claraluz, 2011.

DEBRAY, R. Modeste contribution aux cérémonies officielles du


Xème anniversaire. Paris: Maspero, 1978.

DARNTON, R. Poesia e Polícia. Redes de comunicação na Paris


do Século XVIII. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia da
Letras, 2014.

ECO, U. Entrevista concedida a Eliseo Véron. In.: FAUSTO NETO,


MOUCHON, VÉRON (Org.) Transformações da Midiatização
Presidencial: corpos, relatos, negociações, resistências. São Caetano do
Sul, SP: Difusão Editora, 2012.

231
Discurso Político e Redes Sociais

FOUCAULT, M. Resposta a uma questão. In: Ditos e escritos VI. Rio


de Janeiro: Forense Universitária, p.1-24, 2010. Original 1968.
______. A Arqueologia do Saber. 2ª edição. Trad. de LuizFelipe Baeta
Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

MANZANO, L.G. A ordem do olhar: a imagem no discurso político


televisivo. Tese de doutorado defendida no programa de Pós-graduação
em Linguística – UFSCar, 2014.

PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP:


Pontes, 1990.

PÊCHEUX, M. e GADET, F. A língua inatingível. O discurso na


História da Linguística. Trad. Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves
de Mello. Campinas: Pontes, 2004.

Recebido em 23/11/2014 e Aceito em 15/03/2015.

232
ARTIGOS

5. DISCURSO E NOVOS DIÁLOGOS


TÉORICO-METODOLÓGICOS
LEXICOMETRY AND DISCOURSE ANALYSYS

LEXICOMETRIA E ANÁLISE DO DISCURSO

Dirceu Cléber CONDE


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

RESUMO
Nosso intuito neste texto é demonstrar como um sistema de análise estatística lexical sobre
corpora pode ser um aliado para a Análise do Discurso. Tal abordagem se baseia em conceitos
teóricos consagrados, mas que não deixam de observar o fenômeno e suas características
materiais. A Lexicometria toma parte nesse empreendimento não como um fim, mas como
um meio auxiliar à reflexão do analista. Para tanto, apresento alguns exemplos a partir do
sistema de análise lexicométrica denominado Lexico3.

ABSTRACT
Our aim in this paper is to demonstrate how a system of lexical statistical analysis of
corpora can be an ally for doing Discourse Analysis. This approach is based on theoretical
concepts enshrined, but we leave not observe the phenomenon and that material characteristics.
The Lexicometry take part in this text not as an and, but as an support to work of analyst.
For that, I show some examples from the lexicometry analysis system called Lexico3.

PALAVRAS-CHAVE
Lexicometria; Estatística; Análise do Discurso;

KEYWORDS
Lexicometry; Statistics; Discourse Analysis;

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 235-254, jul./dez. 2015


Lexicometria e Análise do Discurso

Introdução
Agradeço imensamente pelo convite para participar desta mesa-
redonda1. Sinto-me bastante à vontade para falar de um lugar distanciado
das grandes discussões da Análise do Discurso praticada no Brasil
(AD), pois não milito mais nessa área e talvez, pelo fato de a minha
opinião não ser a de um especialista é que ela não venha a despertar
furor e controvérsia. Eu seria apenas mais uma voz de quem fala de
fora da grita e que possa ser ouvida ou não. Mas o melhor de tudo é
não ter compromisso com alguma corrente da AD e por isso nenhum
compromisso de fidelidade teórica ou ideológica. Por isso vou me
sentir muito à vontade para usar termos como “empírico”, “estatística”,
“dados quantitativos”, “recorrências quantificadas”, “grupo de formas”,
entre outros. Essas primeiras palavras esquivadas da minha parte, no
fundo, representam um pedido para que os analistas do discurso olhem
para outras questões que na prática da análise foram obliteradas e se
tornaram coisas de somenos. Tampouco tenho o direito dizer qual é a
melhor ou a pior forma de se fazer. Meu objetivo é apenas demonstrar
que uma possibilidade metodológica para a AD, dentre outras tantas
possíveis, estão os trabalhos de estatística lexical, em especial, a utilização
de ferramentas de lexicometria, como uma entrada interpretativa para
dados.
Como exemplo de ferramenta informatizada dedicada à análise
lexicométrica, vou citar algumas operações possíveis com o software
Lexico3 e dar sugestões para que futuras análises com corpus verbal
possam ser aprimoradas e incrementadas através dessa tecnologia
gratuita e acessível a todos interessados Para tanto, este texto se organiza
em duas partes: uma primeira que fundamenta o uso da máquina
1
Texto apresentado por ocasião da minha participação na mesa-redonda intitulada Discurso e
“novos” diálogos teórico-metodológicos no V Colóquio da Associação Latino-americana
de Estudos do Discurso – ALED BRASIL, cujo tema fora Análise de Discurso: novos
canteiros de trabalho? Realizado na Universidade Federal de São Carlos, 29 a 31 de maio de
2014. Meu especial agradecimento ao Professor Dr. Roberto Baronas pelo convite.

236
Dirceu Cléber Conde

informatizada através da reflexão metodológica, conceituando alguns


pontos sobre a lexicometria, a segunda parte apresenta uma singela de
exploração de dados e possibilidades interpretativas para eles. Também
desejo que minhas palavras sejam apenas de incentivo para novas (pelo
menos aqui no Brasil) abordagens da materialidade do discurso. Por isso,
esta apresentação não é um “manual” nem sequer publicidade de uma
ferramenta, mas a abertura das inúmeras possibilidades das quais os
analistas podem ser valer no futuro.

1. O método a sua validade


Historicamente, a AD difundida, no Brasil é aquela baseada nos
trabalho de Michel Pêcheux. Há uma literatura bastante rica no País
sobre a contribuição desse autor, levando o estado da arte a uma íntima
identificação com o seu pensamento. No entanto, em nossa humilde
opinião, a matriz desse legado chegou a nós de modo bastante particular
e atualmente é desenvolvida por muitos pesquisadores através de
modelos metodológicos bastante diversos ao proposto em sua origem.
Novamente nossa opinião: quando uma teoria se torna muito “popular”
seja pelo mérito de seus pesquisadores, seja por cair na graça de muitos,
ela corre riscos de banalização, o que leva a algumas práticas que
provocam um trocadilho um pouco perturbante, mas real: “os analistas
do discurso precisam fazer mais análises e menos discurso”.
Essa situação “um pouco perturbante” me leva a citar um texto
de Pêcheux publicado em 1982 e traduzido para o português em 2011
como um exemplo bastante claro de que uma das principais referências
da AD (no Brasil) não abandonou o sonho de um sistema informatizado
e do tratamento de corpora diversificados e numerosos2.
2
Parece que essa ideia se coaduna bastante com a busca para se compreender como as “dispersões
discursivas”, neste caso, um conceito oriundo da leitura que se faz de Michel Foucault (2001), se
comportam materialmente sob a forma de recorrências lexicais, sintagmáticas e outras formas
materiais.

237
Lexicometria e Análise do Discurso

A utilização da informática exige dos analistas de discurso


uma construção explícita de seus procedimentos de
descrição, o que é a pedra de toque da consistência de
seus objetos teóricos. Ela permite, ainda, a apreensão de
corpora variados de grande dimensão, o que consiste na
pedra de toque da validade de seus objetos descritivos.”
(Pêcheux et Marandin, [1982]1990, p. 282.3

A analogia da “pedra de toque” é bastante interessante, pois esse


instrumento é utilizado por ourives com o intuito de testar as ligas de
metais precisos, ela é, normalmente um mineral lítico escuro rico em
compostos silicosos. O teste com a “pedra de toque” consiste em fazer
um risco como metal a ser testado (p.ex. uma aliança de ouro) e outro
risco com o metal padrão (p. ex. uma ponta de ouro 18KT) sobre a
pedra, sem seguida, aplica-se o ácido adequado cuja composição reage
com o ouro 18KT, se os riscos mantiverem a mesma coloração, significa
que a amostra testada é ouro desse quilate, caso contrário o teste deve ser
feito com outro padrão de quilate diferente até que se chegue à medida
ou se conclua que a liga é falsa. A feliz analogia de Pecheux e Marandin
nos apresenta um panorama que nos motiva a olhar para alguns aspectos
e que estão organizados em duas dimensões: a) os procedimentos de
descrição são a “pedra de toque” que comprova a consistência dos
objetos teóricos; b) a quantidade é o que assegura a validade para
seus objetos descritivos. Ora, o que há de peculiar nessa citação?
Primeiramente o eixo “a” demonstra que para o analista de discurso não
há um objeto teórico, pois o emprego está no plural, portanto, se para
a AD seu objeto teórico é o Discurso, para o pesquisador, o(s) seu(s)
objeto(s) teórico(s) pode(m) ser outro(s) objeto(s) sujeito(s) ao Discurso,
portanto um pesquisador pode fazer de uma manifestação discursiva um
objeto teórico; no entanto o mais surpreendente está no eixo “b”: esse(s)
3
O texto citado também se encontra traduzido, ver Pecheux e Marindin (2011).

238
Dirceu Cléber Conde

objeto(s) que o pesquisador elege só pode(m) ser testado(s) na “pedra de


toque” da quantidade sobre os objetos descritivos, ou seja, da descrição
de um dado fenômeno discursivo.
Ora, afinal, o que pode ser um objeto descritivo em AD? Acredito
que há vasta bibliografia cuidando disso, mas vou arriscar meu palpite:
os objetos descritivos de uma pesquisa em AD estão cravejados na
materialidade linguística, nos valores diferenciais entre todos os níveis,
desde o fonético-articulatório até as estruturas textuais mais complexas,
passando pelas referências enunciativas e enuncivas das manifestações
orais e escritas. Não seria uma modalidade anafórica usual/inusual um
elemento indiciário de determinados posicionamento? A recorrência de
terminado termo ou de conjunto de termos, com suas coocorrências, não
seria algo para se rastrear em grupos de textos e de sujeitos enunciadores
marcados social e historicamente? Determinada preferência para alguns
termos em papeis temáticos de agente, paciente, beneficiário etc, não
pode ser uma pista para um determinado posicionamento? Afinal, é a
língua e sua estrutura que acionam não só o sentido como o efeito de
sentido. Por isso vale lembrar Possenti (1996, p. 197):

Tenho defendido sempre que posso que a língua é o


material mais relevante do discurso, e que, portanto, uma
AD deve ter uma boa e adequada teoria da língua, para
extrair dela o máximo de proveito que puder.

Neste ponto, desejo adicionar mais um conceito que julgo ser


bastante interessante a partir de uma outra característica sobre as línguas
que pouco é lembrada por analistas do discurso, o fato de que “A
Linguística é a ciência estatística tipo; os estatísticos sabem muito bem
disso, a maioria dos linguistas ainda ignora tal fato.”, (GUIRAUD, apud
LERBAT; SALEM, 1994, p. 18). Se a Linguística, enquanto ciência que
se debruça sobre a língua, é prototipicamente uma ciência estatística ou

239
Lexicometria e Análise do Discurso

pelo menos um espaço em que a estática pode render resultados, nada


mais justo que olhar para a língua e seus fenômenos a partir das pistas
recorrentes. Não se trata de defender uma teoria sobre a língua, mas um
aspecto que julgo deveras relevante sobre as línguas: o de concordar
com Guiraud e perceber que os fenômenos linguísticos também se
comportam estatisticamente.
Olhar esse aspecto da língua não é um espaço muito confortável
para o tipo de AD desenvolvida no Brasil, mas é bom lembrar que o
levantamento de dados com a devida quantificação, organização e
interpretação demonstra de modo mais aprimorado fenômenos que
podem estar dispersos em diferentes manifestações textuais (orais ou
escritas). Qual seria então a ligação entre dados estatísticos sobre uso
de termos, sintagmas etc., e sua recorrência? É simples: podemos, por
exemplo, entender que um determinado sintagma candidato à fórmula
(CRIEG-PLANQUE, 2010) inicia sua jornada lentamente por algum
grupo social ou se faz dele um jargão e quando menos se espera esse
sintagma está em blogs, sites oficiais, textos de jornalísticos, propagandas
etc. Ora, esse crescente em ocorrência e disseminação pode ser um objeto
teórico e pode ser rastreado, descrito e compreendido dentro de um
panorama linguístico-textual (estrutura, composição, referencialidade,
distribuição em sintagmas maiores, anáforas) que se liga ao efeito de
sentido e explicita como determinadas relações do sentido podem
estar ligadas à manifestações discursivas. Esse tipo de percurso retira
o teor etéreo que às vezes se vê quando algum pesquisador fala sobre
materialidade, mas não a demonstra, quantifica e qualifica nas análises de
dados. Ou ainda, quando aplica interpretações sobre a materialidade que
só se vê em poucos fragmentos de corpus. O que pouco corrobora com a
perspectiva de que esse fenômeno possa surgir nos enunciados de mais
e diversificados sujeitos.
Nesse caso, fundamentos estatísticos são de grande relevância
para o tratamento dos dados, pois conceitos controvertidos, tais como

240
Dirceu Cléber Conde

“formação discursiva”, “formação ideológica”, “assujeitamento” podem,


dependendo do método e de como se chegar aos dados, ser aplicáveis
a grupos e populações de textos dispersos em diferentes categorias,
tipos textuais, modos de manifestação ou sob o pretexto de qualquer
outra divisão obviamente bem delimitada na metodologia. Por exemplo,
um pesquisador poderia se dedicar a colher opiniões em blogs pessoais
a partir de um tema comparando-as às opiniões de outros veículos
como os textos institucionalizados em jornais e revistas sob o mesmo
tema. Logo, os princípios estatísticos servem tanto para uma análise
de textos (orais e/ou escritos) de um único autor, ou de um grupo de
enunciadores, ou ainda de um período histórico, pois é bem provável
que fórmulas, sintagmas, recorrências e distribuições de determinadas
estruturas indiquem se um grupo compartilha ou não, por exemplo, de
uma formação discursiva opondo-se à outra.
São muitas as pesquisas que se valeram ou se valem de alguma
ferramenta informatizada para tratamento de dados lexicométricos em
diferentes corpora. Não há espaço para apresentar tais trabalhos, tampouco
esmiuçar seus matizes que são variados e ricos metodologicamente, por
isso recomendamos a visita ao sítio eletrônico da revista Lexicometrica
(http://lexicometrica.univ-paris3.fr) e também ao sítio do Centre de
Lexicométrie et d’Analyse Automatique des Textes (SYLED-CLA2T)
(http://syled.univ-paris3.fr/cla2t.html). Tratam-se de excelentes fontes
sobre trabalhos realizados nessa área4. Esses vários trabalhos apresentam
em comum como ponto de partida para a explicação de fenômenos
discursivos os indicadores lexicométricos, levando em conta uma dada
empiria muito salutar que parte dos dados para possíveis generalizações
a respeito de algum fenômeno discurso, ou mesmo para a busca de
dados negativos que frustram hipóteses, o que não deixa ter validade.

4
Para discussões mais profundas a respeito de métodos estatísticos sobre o texto, recomendo a
leitura de Lebart et Salem (1994), Benzécri (1981), Gilhaumou (1986, 1997).

241
Lexicometria e Análise do Discurso

2. O que é possível fazer com ferramentas de lexicometria


Há várias ferramentas de informática que podem ser adquiridas
ou simplesmente baixadas gratuitamente, mesmo correndo o risco
de me esquecer de alguma delas, quero citá-las: WordSmith, Sphinx,
Alceste, IRaMuTeQ, Lexicon5 e, finalmente, Lexico3. Vou me deter
neste último por dois motivos: a) trata-se do sistema que mais domino;
b) está disponível gratuitamente para os pesquisadores. Alerto, no
entanto, que a melhor ferramenta é aquela com a qual o pesquisador
consegue melhores resultados, logo não defendemos o uso de um ou
outro sistemas, mas que se tenha uma metodologia explicitada, bem
construída, como recomendou Pêcheux acima.
Minha intimidade com o Lexico3 foi desenvolvida durante meu
doutorado (CONDE, 2008), momento em que usei, além dele, o
software Systemic Coder e o gerenciador de banco de dados Access da
Microsoft6, integrando os programas para dar conta de toda problemática
do meu objeto de análise. O software Lexico está em sua terceira versão
desde quando foi criado em 1990 e seu uso envolve um conjunto de
procedimentos, não muito complexos, mas bastante trabalhosos que
vão desde a preparação do corpus até os procedimentos técnicos para
extração dos dados, esta por, por sua vez, é uma fase instantânea do
trabalho, preparada pelos cálculos automáticos do próprio sistema. Por
fim, uma última e mais complexas fase, é a da interpretação dos dados
que envolvem dois passos: primeiro) extração dos dados a partir das
ferramentas disponíveis no sistema; segundo) interpretação dos dados
levantados. Vamos, nesta apresentação, apenas demonstrar o primeiro
passo.
A preparação do corpus é de extrema relevância porque é o momento
que determinará considerável parte do tratamento dos dados. Para um
5
Ao final das referências bibliográficas listamos os respectivos sítios eletrônicos desses sistemas
para futuras consultas.
6
Minha tese está disponível eletronicamente e recomendo a leitura do capítulo 4, no qual detalho
o percurso metodológico com seus erros e acertos.

242
Dirceu Cléber Conde

efetivo uso do Lexico37 devemos observar que o sistema está pautado


sobre um eixo de unidade e um eixo da diferença, pois analisar dados
lexicais a partir de textos de qualquer natureza exige do pesquisador um
critério que una todos os itens a serem analisados e para tanto várias
hipóteses podem ser aventadas enquanto unidade, p. ex. todas as obras
de Machado de Assis, todos os artigos de opinião de um dado veículo de
comunicação em um determinado período de tempo; todos os discursos
presidenciais oficiais em um momento específico do ano, cartas de um
personagem histórico, entre outros. No eixo da diferença, se tomarmos as
obras de Machado de Assis, podemos identificar aquelas produzidas para
diferentes finalidades e/ou gêneros: artigos para jornais, peças teatrais,
romances, contos, cartas; sendo cada um desses subgrupos reagrupados
em suas massas textuais e etiquetados diferentemente, desse modo a
unidade é “Machado de Assis” e a diferença é “gêneros”. Se pensarmos
nos artigos de opinião de certo veículo, podemos criar os subgrupos
cronologicamente (mês, semestre, ano, tema etc.). Poderíamos ainda,
observar marcas linguísticas sob a autoria de faixas etárias ou gênero, etc.
No tocante ao processamento do corpus o Lexico3 faz sua
segmentação da massa textual a partir dos itens lexicais tomando por
base o espaço em branco entre as palavras e a pontuação, ou sinais
não alfanuméricos de modo que, ao se etiquetar um texto ou grupo de
textos, é possível além de fazer o levantamento de termos, observar a
sua distribuição. De modo simplificado, a etiquetagem tem também dois
eixos: a) critério e, b) item, sendo textualmente colocado antes da parte
segmentada da seguinte forma <critério=item>, ou seja, se tomarmos
como objetivo analisar textos de opinião poderíamos ter no conjunto
de critérios de segmentação do corpus as seguintes configurações: A
= {<mês=01>, <semestre=01>, <ano=2011>}; B = {<mês=13>,
<semestre=01>, <ano=2012>} ... X = {<mês=yy>, <semestre=0w>,
<ano=zzzz>}. Assim, um texto ou segmento do corpus que tivesse em
sua etiquetagem a configuração “A” poderia ser comparado a “B” em
7
Veja Conde (2007).

243
Lexicometria e Análise do Discurso

suas características lexicais e de distribuição desse léxico, permitindo ao


pesquisador, se perguntar porque um determinado item, ou conjuntos
de itens, ao tratarem do mesmo tema estão em coocorrência entre si
ou concorrência de uma parte a outra se considerarmos a diferença
entre os anos, entre os meses e semestres. Asssim, sendo critérios e itens
moldáveis ao percurso metodológico de análise, as possibilidades se
tornam infinitas em termos de comparação.
Observada essa situação preparatória, podemos partir de um
brevíssimo estudo de caso, ilustrar as ferramentas disponíveis no sistema
Lexico3.

2.1 Estudo de caso


Quero apresentar um estudo de caso a partir de um corpus que utilizo
com estudantes de graduação e trabalhar exatamente esse caso me dá a
quantidade de informação necessária para exemplificar como é possível
extrair dados. Prefiro exemplificar com esse corpus, pois se eu tomasse
outro corpus mais complexo teria que utilizar boa parte deste espaço
para explicar escolhas metodológicas e a integração com outros sistemas.
Eu escolhi esse corpus como exemplificação.
Trata-se de um conjunto de 72 textos (aliás uma amostra minúscula!)
publicados na seção “Ciência” da Folha de São Paulo, versão on-line,
entre janeiro de 2006 e maio de 2010 em que a palavra “cigarro” surgiu,
não importasse o tema. Coloquei apenas uma categoria de etiqueta
a partir do critério cronológico dos anos de publicação dos textos:
<ano=2006> ... <ano=2010>. Falei bastante da etiqueta e aqui, em
tempo, vai mais um esclarecimento: quanto o sistema Lexico3 faz
o levantamento quantitativo do léxico e dos sinais e considera, por
exemplo, toda a massa de texto compreendido entre <ano=2007> até
chegar à próxima etiqueta que pode ser <ano=2007> ou outra qualquer,
a ordem não importará.

244
Dirceu Cléber Conde

Por sugestão do auditório vamos então fazer uma comparação


entre o uso de termos chaves como “vício” e “dependência”, apenas a
título de exemplo, ressalvando que esta é apenas uma demonstração de
possibilidade e por isso não tem rigor metodológico necessário8.
A primeira ferramenta a ser empregada demonstra a distribuição de
um item lexical ao longo do corpus e ela permite a extração do seguinte
gráfico:

IMAGEM 1: distribuição de termos através dos segmentos do corpus -


Fonte: o próprio autor

A imagem 1, simplesmente, foi extraída em milésimos de segundos


com um clique sobre a ferramenta específica, sem que o pesquisador
tivesse que despender tempo em contagens manuais etc. Esse praticidade
no entanto não nos isenta de uma difícil pergunta: o que esse gráfico
representa?
Basicamente, há, em quase todos os 72 textos, a ocorrência dos
termos “dependência” e “vício”. Sendo para que para “dependência”
foram 29 ocorrências enquanto “vício” teve 42 aparições. No entanto,
8
Os termos “vício” e “dependência” têm sentidos e, portanto, efeitos de sentidos distintos,
mas para uma melhor análise deveriam ser isolados nos contextos, por isso nossas ressalvas.
Para exemplos mais completos e complexos, insisto na consulta do sítio eletrônico da revista
Lexicometrica <http://lexicometrica.univ-paris3.fr/>

245
Lexicometria e Análise do Discurso

podemos observar no eixo “y” do plano a frequência dos termos sobre


um coeficiente de 10.000 ocorrência, ou seja, proporcionalmente,
ao restante de palavras de todo o corpus em sua distribuição por ano,
demonstra que o termo “vício” declina em uso enquanto o termo
“dependência” ascende em relação entre si e todos os temais termos. O
que esse tipo de comportamento estatístico pode nos dizer a respeito do
sentido e do efeito de sentido desses dois termos que não são sinônimos,
mas podem figurar em um “paradigma designacional”9? A resposta a
essa pergunta depende de uma reflexão profunda, das condições de
produção dos textos bem como dos contextos sintáticos e mesmo
dos casos que o termo ocupa na estrutura semântica, ou mesmo outro
fator diverso a ser levado em consideração, poderíamos especular que
orientações do uso de termos pautado sobre o “politicamente correto”
estejam controlando esses surgimentos ou desaparecimentos. Ou ainda,
se justifique essa distribuição por uma questão de modalidade enunciativa
e gênero próprios do discurso científico... novamente estamos diante de
muitas possibilidades de exploração.
Imaginemos agora que não seja interessante apenas pensar na
distribuição quantitativa dos termos chaves, mas é preciso pensar no
contexto frasal e suas relações sintagmáticas, semânticas (p. ex. se “vício”
e “dependência” são itens que ocupam mormente posições agentivas) e
relações anafóricas, posições no parágrafo. Para isso podemos utilizar
outros dois recursos do sistema: a) o concordanciador; b) o mapa de
seções. O concordanciador colocará os contextos frasais para todas
as ocorrências no corpus, permitindo que o pesquisador possa isolar
contextos de diferentes tamanhos, organizados pela segmentação já
discutida anteriormente. Vejamos um exemplo:

9
Sobre “paradigma designacional”, ver Mortireaux (1993)

246
Dirceu Cléber Conde

IMAGEM 2: concordanciador aplicado ao termo vício segmentado por


parte. Fonte: o próprio autor

Na imagem 2 (novamente fornecida pelo sistema em apenas poucos


cliques e milésimos de segundos), temos uma série de informações, mas
vamos nos ater apenas à coluna da esquerda e à coluna da direita. Na
coluna da esquerda, tem-se todas as formas lexicais mapeadas no corpus,
não importa seu tamanho: artigos, preposições etc; na coluna da direita
temos todos os contextos frasais em que o item “vício” surgiu, no entanto
estamos com um contexto pequeno, contando apenas com cinquenta
dígitos à esquerda e cinquenta à direita, o que pode ser ampliando até
999; além disso, vemos que as ocorrências estão organizadas pela etiqueta
cronológica determinada no início, de modo que um analista pode ler e
analisar os itens conforme sua distribuição em qualquer etiqueta. Todos
esses dados podem ser gravados ou copiados em texto, facilitando a
forma de exemplificação.
A segunda ferramenta para essa ocasião é o “mapa de seções”.
Vejamos como ele se comporta:

247
Lexicometria e Análise do Discurso

IMAGEM 3: mapa de seções aplicado ao termo vício. Fonte: o próprio


autor

A imagem 3 apresenta a distribuição no corpus todo do uso do


termo “vício”, cada quadrículo é uma sentença, e os quadrículos azuis,
correspondem às ocorrências do termo. Aqui optamos por segmentar o
texto em sentenças, mas o pesquisador pode segmentá-lo como quiser
e de várias formas simultaneamente: além da pontuação, o pesquisador
pode usar a marcação de parágrafo ou outro símbolo não alfanumérico
e qualquer modo de segmentação que achar pertinente. Além de essa
ferramenta permitir a observação de um item em forma de “mapa”, ela
ainda permite a verificação da coocorrência de um termo ou grupo de
termos. Como podemos observar na imagem 4, na qual, os quadrículos
azuis marcam o termo “vício” e os vermelhos marcam “dependência”.
No entanto, quando se tem os dois termos ocorrendo na mesma
sentença, o quadrículo fica dividido entre as duas cores. Também chamo
a atenção para a imagem 4, apenas para lembrar que no quadro abaixo do
mapa de seções há uma janela que apresenta o segmento selecionado, ou
seja, ao clicar sobre qualquer quadrículo o segmento de texto referente
a ele surge, esteja ele marcado ou não. Vale ressaltar que todas essas
funcionalidades do sistema podem ser gravadas e recuperadas.

248
Dirceu Cléber Conde

IMAGEM 4: mapa de seções com os termos “vício” e “dependência”.


Fonte: o próprio autor

Uma última ferramenta que gostaríamos de explorar é a “análise


fatorial”. Vejamos primeiramente a imagem e em seguida passamos a
comentá-la.

IMAGEM 5: análise fatorial do corpus. Fonte: o próprio autor

249
Lexicometria e Análise do Discurso

A análise fatorial traz uma representação da distribuição e comparação


dos itens lexicais por grupos conforme a etiquetagem. Basicamente, essa
ferramenta faz um levantamento das características lexicométricas de
cada parte, de modo que o conjunto de termos ou segmentos repetidos
sejam colocados sobre um plano cartesiano. Na imagem acima, podemos
ler que os textos etiquetados com os anos 2006 e 2007 estão no mesmo
quadrante, de modo que 2008 e 2009 também, estando próximos entre si
e também observamos que 2010 se distancia dos demais grupos, sendo
isolado. Isso, a princípio, pode não dizer muita coisa, mas se tomarmos
cada um dos grupos explorando suas semelhanças e diferenças, em
termos de ocorrências lexicais, é possível perceber quais são os temos ou
segmentos repetidos mais propensos a surgirem e o menos usuais para
cada o grupo. Essa ferramenta permitiria um mapeamento preliminar do
que classicamente poderia ser chamado de “formação discursiva”. Vale
lembrar que esse plano cartesiano, dentro do sistema, interativo, porque
não se trata apenas de uma imagem, mas de um ponto de partida para
outras explorações. Por exemplo, a clicar sobre uma dos segmentos, se
juntarmos segmentos por quadrante podemos extrair as listas de termos
e segmentos repetidos dentro do corpus. Para uma melhor descrição da
análise fatorial, recomendamos a leitura de Salem (1982).

Conclusão
Diferentemente do final dos anos de 1960, contamos com muita
tecnologia disponível ao alcance de nossas mãos! Os computadores
pessoais estão a um custo relativamente baixo e são potentes para
lidar com alguns modelos de corpora linguísticos e há vários materiais
disponíveis em rede. Em relação ao que se tinha no final do século XX,
temos uma infinidade de possibilidades em termos de ferramentas para
a composição e manutenção de grandes bancos de dados localmente ou
através da Internet. Do conforto de nosso gabinete ou de nossa casa,

250
Dirceu Cléber Conde

podemos acessar bibliotecas, textos, arquivos em diferentes línguas, de


diferentes épocas etc. Há sistemas gratuitos patrocinados por entidades
de pesquisa disponíveis para a comunidade científica. Se o que Pêcheux
e Marindin (1990) afirmaram tinha consistência, mas era impraticável
no Brasil dos anos de 1980, por causa das dificuldades tecnológicas,
isso já não acontece mais. Se, no entanto, a opção metodológica da AD
praticada no Brasil é por uma pesquisa com corpus pequeno ou a partir
de um arquivo constituído sem necessariamente um rigor metodológico,
a recusa a ferramentas como a apresentada aqui se sustenta, porém, se
o pesquisador faz uma opção por lidar com corpus, faz a opção por lidar
com fenômenos linguísticos de qualquer nível ou ordem para poder
compreender também fenômenos discursivos, então ferramentas como
a apresentada aqui são de grande relevância.
Insisto em dizer que uma análise lexicométrica é apenas uma forma
de levantar pistas sobre a materialidade linguística, outras ferramentas
e métodos podem ser utilizados. O fato de ser viável ou não, útil ou
não para os analistas do discurso depende exclusivamente de sua opção
metodológica e também de sua experiência, empiricamente falando. Essa
experiência só pode ser avaliada se experimentada, pois simplesmente
ignorar não é algo que a ajude a disciplina ou que ajude cientificamente
o desenvolvimento da reflexão. Ao participar desta mesa-redonda
intitulada Discurso e “novos” diálogos teórico-metodológicos não apresentei
necessariamente algo “novo”, mas talvez algo desconhecido de muitos
analistas do discurso em virtude da história da constituição dessa disciplina
no Brasil. Longe de mim querer dizer que exista um jeito certo ou errado
de fazer AD, mas há no mínimo, um modo linguístico de se fazer AD e
sem dúvida é o olhar para sua materialidade. A materialidade pode ser
um conceito, mas sua existência é, digamos, material... Nada melhor que
qualificar, quantificar e objetivar esse material, mesmo que isso nos leve
a nenhuma conclusão, ou a dados negativos o importante é que fizemos
análise e não discurso. Talvez seja uma boa oportunidade para que a

251
Lexicometria e Análise do Discurso

língua e sua materialidade saiam da condição etérea, inapreensível dada


por uma cultura que exclui a empiria para um fazer teórico-prático mais
interessado no fenômeno do que necessariamente em uma bandeira
teórica. Por fim, ressalto que o diálogo entre Linguística de Corpus,
Processamento de Linguagem Natural e Discurso seria de grande valia
para o desenvolvimento e aprimoramento de diversas ferramentas que
auxiliariam grandemente o progresso das pesquisas.

Referências
BENZÉCRI, J.-P. et alii. Pratique de l’Analyse des Données :
linguistique et lexicologie. Paris: Dunod, 1981

CONDE, C. Lexico3 - Manual resumido de utilização do Lexico3.


Université Paris 3 – La Sorbonne Nouvelle, 2007. Disponível em <http://
www.tal.univ-paris3.fr/lexico/lex3-10pas/Lexico3-10premierspas-
portugais.pdf>.
______. A alternância da referência ao sujeito enunciador e seus
efeitos de sentido. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de
Londrina. 2008.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège


de France. Trad. Laura T. de A. Sampaio, 7. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2001.

GUILHAUMOU, J. L’historien du discours et la lexicométrie [Étude


d’une série chronologique: le « Père Duchesne » d’Hébert (Juillet 1793
- mars 1794) ]. In: Histoire & Mesure, v. 1 - n°3-4. Varia. pp. 27-46.
1986.
______. L’analyse de discours et la texicometrie. Le Père Duchesne
et Le Mouvement Cordelier (1793-1794). In Lexicometrica, n. 0, 1997.

252
Dirceu Cléber Conde

KRIEG-PLANQUE, A. A noção de “fórmula” em análise do


discurso: quadro teórico e metodológico. (Trad) Luciana Salazar
Salgado; Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

LEBART, L. e SALEM, A. Statistique Textuelle. Dunot, Paris, 1994.

MORTUREAUX, M-F. Paradigmes désignationnel. In Semen, n° 8,


Paris, 1993. Disponível em <http//semen.revue.org/document4132.
html>, acessado em 10 de fev. 2007.

PÊCHEUX, M. E MARANDIN, J-M. Informatique et Analyse Du


Discours. In L’inquietude Du Discours. MALDIDIER, D. (org.). Paris:
Éditions des Cendres, 1990.
______. in PIOVEZANI, C (Org.); SARGENTINI, V. (Org.) . Legados
de Michel Pêcheux: inéditos em Análise do discurso. 1. ed. São Paulo:
Contexto, 2011.

POSSENTI, S. O dado dado e o dado dado. In PEREIRA DE CASTRO,


M. F. O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Ed.
Da Unicamp, 1996.

SALEM, A. Analyse factorielle et lexicométrie: synthèse de quelques


expériences. In: Mots, mars 1982, N°4. p. 147-168.

Anexo I – Lista de Sítios Eletrônicos de divulgação e


venda de sistemas

1. WordSmith - http://www.lexically.net/wordsmith/
2. Sphinx - http://www.sphinxbrasil.com/
3. Alceste - http://www.image-zafar.com/
4. IRaMuTeQ - http://www.iramuteq.org/

253
Lexicometria e Análise do Discurso

5. Lexicon – de responsabilidade do Professor José Barbosa


Machado – Universidade Trás-os-Montes e Ato Douro
(UTAD) - http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.
jsp?key=2492418931497508

Recebido em 21/11/2014 e Aceito em 15/03/2015.

254
AFORIZATION AND EVENT: FOR A DIALOGUE
BETWEEN DISCOURSE ANALYSIS AND TENSIVE
SEMIOTICS

AFORIZAÇÃO E ACONTECIMENTO: POR UM


DIÁLOGO ENTRE A ANÁLISE DO DISCURSO E A
SEMIÓTICA TENSIVA

Glaucia Muniz Proença LARA


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

RESUMO
Os objetivos deste artigo são constituídos no contexto da importância da influência midiática
sobre a sociedade atual. Estabelecendo-se sobre a base teórica da Semiótica Discursiva e
da Análise do Discurso de linha francesa, abordam-se a manipulação da informação e
a manipulação como estratégia discursiva para atrair a atenção do leitor/consumidor. De
maneira específica, examina-se como se dá esse decurso de manipulação na contemporaneidade
e quais as estratégias usadas pelos veículos midiáticos visando o sucesso do acordo tácito que
estabelecem com os sujeitos que pretendem manipular.

ABSTRACT
The objectives of this article are constituted from the importance of media influence on today’s
society context. Settling on the theoretical basis of discoursive semiotics and French Analysis
of Discourse, this article will approach information manipulation and manipulation as a
discursive strategy to attract the reader/consumer attention. Specifically, it examines how this
course of manipulation unfolds in the contemporary world and which strategies are used by
media vehicles to succeed in the tacit agreement established with the subjects they intend to
handle.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 255-270, jul./dez. 2015


Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; semiótica e enunciação aforizante.

KEYWORDS
Discourse; Semiotics and aphorizing enunciation.

Introdução:
Muito se tem discutido sobre o papel das mídias na sociedade atual.
Charaudeau, por exemplo, discorre sobre o tema no livro Discurso das
mídias (2006), assumindo a posição de que, independentemente das
críticas que se possa fazer às mídias, elas desempenham um papel
fundamental no âmbito da democracia: o de informar a população sobre
fatos e eventos que ocorrem no mundo, fazendo circular explicações
sobre eles e abrindo espaço para o debate. Por outro lado, considerando
que os cidadãos sempre entram em contato com o fato tal como ele é
filtrado pela instância midiática – já que eles nunca têm acesso ao “fato
bruto” –, não se pode perder de vista que as mídias escolhem o que
tornar visível (e – acrescentamos – determinam o modo como esse
visível deve ser “tornado visível”), o que leva Charaudeau (2006, p. 256)
a concluir que “as mídias informam deformando”, embora nem sempre
haja uma verdadeira intenção manipuladora.
Em trabalhos desenvolvidos mais recentemente (ver, por exemplo,
Lara, 2013; 2014), assumimos que as mídias detêm uma considerável
“margem de manobra”, ao selecionar a informação a ser veiculada –
afinal, escolher anunciar uma notícia é fazê-la existir –, operando
recortes nesse material (decidindo o que será ou não excluído, as “vozes”
que serão agenciadas ou, ao contrário, silenciadas) e dando-lhe uma
organização específica, entre outras possíveis. Preferimos ainda tomar
“manipulação” mais no sentido que lhe atribui a Semiótica Discursiva

256
Glaucia Muniz Proença Lara

standard, ou seja, como um fazer-fazer: fazer com que os destinatários


comprem a revista e/ou leiam a matéria. Esse termo não implica,
portanto, necessariamente, as acepções negativas que o senso comum
costuma atribuir-lhe, como usar de má fé ou enganar o outro, embora
isso possa ocorrer.
Ora, um dos recursos mobilizados pelas mídias para atrair (ou
“manipular” em termos semióticos) o leitor/consumidor encontram-
se as aforizações. Essa noção, cunhada por Maingueneau (2006, 2008,
2010, 2012), no âmbito da Análise do Discurso francesa (doravante
AD)”1, pode ser definida, grosso modo, como “pequenas frases”2, isto
é, enunciados destacados de um texto que são retomados como títulos,
intertítulos ou legendas de foto, com o objetivo maior de “captar” a
atenção ou o interesse do público para a informação (o fato, o evento)
que se quer veicular.
Nesse sentido, levantamos a hipótese de que as aforizações podem
funcionar como um acontecimento para o leitor, quando desestabilizam
seu contrato de leitura, como ocorre nas falsas capas de revista que
analisaremos na seção 3. Como o acontecimento (por oposição à
rotina ou exercício) é uma noção central na Semiótica Tensiva3 é desse
domínio teórico que convocaremos tal noção, para fazê-la dialogar com
1
Maingueneau (2004: 202) prefere dizer que seus trabalhos se inserem no âmbito das “tendências
francesas de análise do discurso”, que, para ele, caracterizam-se, entre outros aspectos, por
se preocuparem não apenas com a função discursiva das unidades, mas também com suas
propriedades como unidades da língua e por refletirem sobre os modos de inscrição do Sujeito
em seu discurso, mantendo, nesse sentido, uma relação privilegiada com as teorias da enunciação
linguística. Por comodidade, manteremos a sigla AD para tratar da aforização.
2
Outros autores têm-se voltado para o estudo da “pequena frase”. É o caso de Krieg-Planque
(2003) com suas “fórmulas discursivas”. No presente artigo, no entanto, por limitações de
espaço, vamos nos ater às contribuições de Maingueneau.
3
É preciso que fique claro que não há, na Semiótica Tensiva, um rompimento com as
concepções propostas pela semiótica de primeira geração (aqui chamada standard). Na realidade,
esse novo campo de investigação constitui um continuum em relação à tradição que o precede.
Simplificando, poderíamos dizer que enquanto a Semiótica standard volta-se para os “estados de
coisas”, procurando desvendar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz, a Semiótica
Tensiva privilegia os “estados de alma”, trazendo a dimensão do sensível para o âmbito das
discussões semióticas e conferindo-lhe papel central nos processos de significação.

257
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

a aforização. Em linhas gerais, a estrutura do acontecimento é marcada


por um necessário sincretismo entre o sobrevir (enquanto modo de
eficiência), a apreensão (como modo de existência) e a concessão (enquanto
modo de junção) (Zilberberg, 2007). Nas próximas seções, buscaremos
discutir melhor as noções de aforização e de acontecimento, de modo a
aproximá-las e a estabelecer um diálogo profícuo entre elas, de acordo
com o objetivo maior deste artigo, já expresso no título.

1. Desvendando a teoria
1.1 A aforização em foco: breves considerações
Ao abordar a destacabilidade, Maingueneau (2006) aponta,
inicialmente, o grande número de enunciados que circulam na sociedade
e que poderiam ser chamados, genericamente, de citações ou fórmulas.
Esses enunciados destacados – que o autor passará a chamar de aforizações4
– podem ser de dois tipos: aforizações primárias (as que são autônomas,
como os provérbios e as máximas) e aforizações secundárias (aquelas que
são destacadas de um texto) (Maingueneau, 2012: 23). É esse segundo
tipo de aforização que nos interessa mais de perto no presente artigo.
No caso das mídias, não é possível determinar se essas “pequenas
frases” são assim porque “os locutores de origem as quiseram [...]
destacáveis, destinadas à retomada pelas mídias, ou se são os jornalistas
que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer” (Maingueneau,
2006: 80). Em outras palavras: nada impede que os profissionais das
mídias convertam soberanamente em “pequenas frases”, graças a uma
manipulação apropriada, quaisquer sequências de um texto, ou mesmo
que as fabriquem, em função dos reempregos que delas serão feitos,
tendo em vista o jogo de antecipações das modalidades de recepção
4
Para justificar o uso desse termo, Maingueneau (2012) admite ter-se inspirado no uso
contemporâneo para o qual a noção de aforismo remete a uma frase sentenciosa que resume uma
verdade fundamental, com a ressalva de que a aforização, tal como ele a entende, vai além dos
enunciados sentenciosos e se aplica ao conjunto de “frases sem texto”.

258
Glaucia Muniz Proença Lara

(Maingueneau, 2006). Nesse caso, teremos aforizadores produzidos


pelo próprio trabalho de citação (que, portanto, não coincidem com os
locutores dos textos de origem).
Em suma, no entender do autor, a citação está inscrita no próprio
funcionamento da máquina midiática, cujos atores gastam seu tempo
destacando fragmentos de textos para convertê-los em citações (para
títulos, intertítulos, entrevistas etc) e – acrescentamos – quando não os
fabricam eles mesmos com o objetivo último de “captar” a atenção do
leitor e garantir o consumo do produto (do serviço, da ideia), orientados
pela lógica de mercado, em que os números de vendas e/ou de acessos
(no caso da internet) respondem pelo sucesso da publicação.
Em linhas gerais, para Maingueneau (1986: 90), a aforização, sendo
uma “frase sem texto”, remete a um tipo de enunciação que obedece a
uma outra lógica, distinta da do texto. Do ponto de vista mais imediato,
isso significa que ela não é nem precedida nem seguida de outras frases
com as quais estaria ligada por relações de coesão, de modo a formar
uma unidade textual, ancorada num gênero de discurso. Logo, o que
caracteriza a aforização é a recusa em entrar na lógica do texto e do
gênero de discurso, o que não significa, por outro lado, que ela seja
destituída de contexto5.
Cabe ressaltar ainda que as aforizações secundárias podem ser de
dois tipos: por destacamento forte e por destacamento fraco. No primeiro,
os enunciados destacados rompem com o texto de origem – ou seja,
do ponto de vista do consumidor de mídias, esse texto não existe –,
enquanto, no segundo, os enunciados destacados são vizinhos do texto
de origem. Portanto, no destacamento fraco, os enunciados mantêm um
elo com o texto de origem, embora isso não implique uma fidelidade
5
Porém tal “contextualização” é diferente segundo se trate de uma aforização primária (autônoma)
ou de uma aforização secundária (destacada de um texto). Esse segundo tipo de aforização é, de
fato, tomado em dois contextos efetivos: um contexto fonte e um contexto de recepção, sendo
a distância entre esses dois contextos responsável, via de regra, pelas alterações a que o contexto
de recepção submeteria o enunciado destacado, ativando, inclusive, potencialidades semânticas
outras, para além daquelas presentes no contexto original (Maingueneau, 2012: 25-27).

259
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

absoluta.
Sem a intenção de ser exaustivo, Maingueneau (2012: 58) lista alguns
índices que orientam para um diagnóstico de aforização: índices textuais
(preferência por enunciados constituídos de uma única frase); índices
lexicais (presença de verbos como repetir e martelar, que ressaltam o
caráter memorizável da aforização); índices aspectuais (caráter genérico
do enunciado); índices sintáticos e prosódicos (construções simétricas,
em quiasma...); índices semânticos (presença de tropos: metáforas,
paradoxos...), entre outros. O autor, porém, ressalta que a aforização
pura não existe, já que cada aforização pertence necessariamente a um
tipo e sofre coerções por esse pertencimento (Maingueneau, 2012: 50).
Essa observação é importante porque as aforizações que examinaremos
na seção 3 têm um funcionamento específico em função do gênero
(falsa) capa de revista e do suporte (internet) em que se inserem.

1.2 Acontecimento versus rotina: contribuições da


Semiótica Tensiva
Conceito oriundo da Semiótica Tensiva, como já foi dito, o
acontecimento é, segundo Zilberberg (2007: 16), o correlato intenso ou
hiperbólico do fato. Este seria, então, o resultado do enfraquecimento
das valências paroxísticas de andamento e de tonicidade, que constituem
marcas do acontecimento. Enquanto o fato é numeroso, o acontecimento
caracteriza-se pela sua raridade; enquanto no fato a carga tímica se
encontra dividida, é no acontecimento que ela se concentra.
Com o propósito de deslindar essa noção tão rara quanto importante
e de contrapô-la à noção de exercício (ou rotina)6, o autor convoca o
conceito de modo, distinguindo três espécies – os modos de eficiência,
os modos de existência e os modos de junção –, que descreveremos

6
Zilberberg (2007) prefere o termo “exercício”, que toma emprestado das análises da pintura
holandesa de Claudel. De nossa parte, preferimos “rotina”, termo que usaremos doravante, já
que, a nosso ver, ele se enquadra melhor na definição proposta.

260
Glaucia Muniz Proença Lara

brevemente a seguir7.
Os modos de eficiência designam a maneira por meio da qual uma
grandeza se instala num campo de presença. Se tal processo ocorrer
segundo o desejo do sujeito, teremos a modalidade do conseguir; se, ao
contrário, a grandeza se instalar sem nenhuma espera, denegando, de
forma abrupta, os cálculos ou as expectativas do sujeito, entra em jogo a
modalidade do sobrevir. O sobrevir caracteriza-se, do ponto de vista das
subvalências do andamento (intensa) e da temporalidade (extensa), pela
subtaneidade e pela brevidade; já o conseguir, pela progressividade e pela
longevidade. No que tange à temporalidade, a longevidade, relacionada
ao conseguir, é da ordem do agir e da paciência, enquanto a brevidade
do sobrevir é a do sofrer, que o inesperado, de forma precipitada, impõe
ao sujeito.
Quanto aos modos de existência, o par diretor é constituído
pela alternância entre a focalização (ou foco) e a apreensão. A focalização,
definida como ter algo em vista ou esforçar-se para atingir um resultado,
subentende o modo de eficiência do conseguir, em virtude do traço
imanente “esforço”. A apreensão, por seu turno, remete ao sobrevir: ao
estado do sujeito inicialmente espantado, admirado, impressionado e,
dali por diante, marcado pelo que lhe aconteceu. Sendo assim, podemos
dizer que o sujeito espantado apreende e é ele mesmo apreendido por
aquilo que o apreende, pois apreender um acontecimento é, antes de
tudo – ou, sobretudo –, ser apreendido pelo sobrevir.
Finalmente, nos modos de junção, tomada aqui como a condição
de coesão pela qual um dado é afirmado (e, portanto, de modo distinto
da sua acepção usual na Semiótica standard em que designa a relação
entre sujeito e objeto dos enunciados de estado), distinguem-se um
modo implicativo e um modo concessivo. No caso da implicação, temos
7
A presente exposição acerca dos modos de eficiência, de existência e de junção baseia-se em
Zilberberg (2007). Dados os limites de um artigo, não nos deteremos muito na caracterização
desses modos, remetendo o leitor interessado ao referido texto de Zilberberg (ver referências
completas no final).

261
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

a fórmula “se a, então b”, cujo emblema é o porque. Já a concessão, tem


como emblemas a dupla formada pelo embora e pelo entretanto: “embora
a, entretanto não b”. Sendo menos rara do que parece, a concessão liga-se
duplamente à noção de limite: do ponto de vista da extensão, ela marca
o limite, mas, ao mesmo tempo, deve ela própria limitar-se, sob pena de
recriar, à sua revelia, uma regularidade que ela vem abalar.
Como foi dito, na Introdução, o acontecimento representa a
interseção do sobrevir (para o modo de eficiência), da apreensão (para o
modo de existência) e da concessão (para o modo de junção). Como não
poderia deixar de ser, seu correlato, a rotina, implicaria, ao contrário, a
articulação do conseguir, da focalização e da implicação. O quadro a seguir
sintetiza essa discussão:

QUADRO 1: Estrutura do acontecimento e da rotina

determinados →
determinantes
↓ rotina acontecimento
↓ ↓

modo de eficiência → conseguir sobrevir

modo de existência → focalização apreensão

modo de junção → implicação concessão

Adaptado de: Zilberberg (2007: 25)

Teríamos, pois, duas grandes orientações discursivas:


o discurso da rotina e o discurso do acontecimento, o
que nos permitiria já uma primeira aproximação entre
as noções de aforização e de acontecimento. Assim, se

262
Glaucia Muniz Proença Lara

um enunciado é destacado de um texto (ou se se simula


fazê-lo), isso se dá, em geral, pela carga de impacto
que ele carrega, ou seja, por um grau considerável de
intensidade. Lembremos que o acontecimento é o correlato
intenso ou hiperbólico do fato, caracterizando-se, entre
outras coisas, pela presença das valências paroxísticas
de andamento e de tonicidade (que, no fato, estão
enfraquecidas), por sua importância e raridade e, além
disso, pela concentração da carga tímica (que, no fato,
encontra-se dividida) (Zilberberg, 2007: 16).

Indo um pouco mais além, gostaríamos de defender a ideia de que as


falsas aforizações que analisaremos adiante, fabricadas para constar em
simulacros de capas de revista direcionadas ao público infanto-juvenil,
investem, de forma mais intensa ainda, no discurso do acontecimento.
Isso porque elas rompem, por completo, com as expectativas do leitor
quanto às chamadas-título “rotineiras” de uma revista convencional,
entrando de maneira inesperada, abrupta, no campo de presença do
sujeito e apreendendo-o, mais do que sendo apreendida por ele. Assim,
se as aforizações que comumente habitam as capas de revistas reais
“transformam”, de certa forma, fatos em acontecimentos, atraindo o leitor
para as reportagens anunciadas, isso é levado às últimas consequências
quando se trata de aforizações “fabricadas” para, no mínimo, indignar
o destinatário/leitor. É isso o que procuraremos mostrar na próxima
seção.

2. Por uma análise tensiva das aforizações


Como adiantamos na seção anterior, tomaremos como objeto de
análise as aforizações que constam de dois simulacros de capas de revista
infanto-juvenil, publicadas na internet, mas que, na verdade, foram criadas

263
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

pela Catapult, especialmente para denunciar formas de exploração a que,


ainda hoje, são submetidas crianças e adolescentes do sexo feminino. O
site em questão é responsável por arrecadar fundos para financiar causas
que se relacionem à igualdade de gêneros. As capas que analisaremos
foram criadas em março de 2014, em homenagem ao Dia Internacional
da Mulher (8 de março), com o mote “Vamos transformar os direitos
das meninas e das mulheres em mais do que apenas uma matéria de
capa.”.
É importante observar que as duas falsas capas das também falsas
revistas, batizadas de Thirteen e Child Bride, dialogam com capas/revistas
reais, não apenas pela intertextualidade dos títulos, já que existem as
americanas Seventeen e Brides, mas, além disso, mantêm, em linhas gerais,
o mesmo lay-out das capas dessas revistas8, num interessante “jogo”
linguístico-visual. Não nos alongaremos nessa questão, já que nosso
objetivo maior é refletir sobre as aforizações dessas falsas capas, pois
são elas, a nosso ver, as responsáveis mais diretas pelo impacto sobre o
leitor, ou, dito de outra forma, pelo “efeito de acontecimento”.
Cabe esclarecer ainda que estamos tomando a noção de aforização
em sentido mais amplo do que o faz Maingueneau em seus trabalhos,
visto que, para ele, a aforização prototípica caracteriza-se, entre outros
aspectos, por ser uma citação em estilo direto, o que não ocorre nos
enunciados destacados (aforizações) dos simulacros de capa que
examinaremos a seguir. No entanto, ao afirmar que a aforização pura não
existe e que ela sofre coerções pelo seu pertencimento a um dado tipo,
o próprio autor nos dá respaldo (já que o risco é nosso) para abordar as
chamadas-títulos das (falsas) capas como aforizações. Vejamos, então, as
8
Segundo informações da Wikipedia, a Seventeen foi a primeira revista para jovens lançada
nos Estados Unidos (setembro de 1944), tendo como público-alvo leitoras na faixa etária
dos 10 aos 17 anos. A Brides, por sua vez, comprada pela Condé Nast em 1959, propõe-se
a ser uma espécie de guia para quem vai se casar, já que traz informações sobre vestidos de
noiva, cerimônias, recepções, lua de mel etc. Informações disponíveis em: http://en.wikipedia.
org/wiki/Seventeen_%28American_magazine%29 e http://en.wikipedia.org/wiki/
Brides_%28magazine%29, respectivamente. Acesso em: 20/05/2014.

264
Glaucia Muniz Proença Lara

duas capas9:

Capa 1 Capa 2

Algumas aforizações, tomadas aleatoriamente na primeira capa, são


as seguintes:

- Esconda aquelas escoriações com 35 truques fáceis de maquiagem.


- O A a Z do caminho: nosso guia essencial para a vida no inferno.
- As chocantes histórias reais de vida em que você não acreditará,
nem a polícia.
- Quem precisa da infância, afinal?10

No caso da segunda capa, que vem sinalizada como “Edição do


Yemen” (o que é compatível com o tipo de vestido de noiva que a
“modelo” veste), teríamos aforizações, também tomadas aleatoriamente,
como estas:
- 583 histórias de estupro, ataques com ácido e rapto.
- Qual é a idade dele? 60? 70? E outras perguntas que não devem ser feitas.
- Deslumbrantes vestidos de noiva: agora para idades de 7 a 12 anos.
9
Disponíveis em: www.catapult.org/coverstories/. Acesso em: 20/05/2014.
10
Tradução livre de: Hide those bruises with 35 easy makeup tricks. / The A to Z of “the track” - Our
essential guide to life in hell. / The shocking real live stories you won’t believe and the Police won’t either. / Who
needs a childhood anyway?

265
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

- Segredos de exercícios: você pode entrar em forma para dar à luz aos 14!
- O dia em que seus sonhos acabam.11

Salvo pelo olhar triste das duas meninas, o que contrasta vivamente
com capas de revistas reais para o público infanto-juvenil, em que as
modelos, em geral, apresentam-se sorridentes, manifestando “paixões”
como ânimo e alegria (ver, por exemplo, as revistas brasileiras Atrevida e
Todateen), essas capas, ao menos num primeiro momento, poderiam ser
tomadas como originais: a primeira apresentaria uma adolescente pronta
para ir para a “balada”; a segunda, uma criança com roupa típica do
seu país. Nesse segundo caso, o título, que traz a palavra criança (child)
qualificando noiva (bride), pode levar a algum tipo de estranhamento. No
entanto, são as aforizações que causam um impacto mais direto sobre
o leitor, fazendo-o (re)tomar cada capa, no seu conjunto, como um
acontecimento.
A simples comparação com as chamadas-título das revistas Seventeen
e Brides, publicadas no mesmo período12, nos dá ideia da carga de
intensidade/tonicidade (negativa) que as aforizações da Thirteen e da
Child Bride carregam. Vejamos alguns exemplos:

- Pareça linda todo o verão.


- Roupas bacanas, maquiagem bonita & bijuteria divertida.
- Viva seus sonhos! (Seventeen, Mars 2014).13
- Seu melhor penteado em tempo para o casamento.
- Novos vestidos surpreendentes. Encontre o seu entre eles.
- 735 ideias criativas: bolos, convidados, flores & mais.14 (Brides, Mars 2014).
11
Tradução livre de: 583 tales of rape, acid attacks, kidnapping. / He’s how old? 60? 70? And other
questions not to ask. / Dazzling bridal gowns: now for ages 7-12. / Exercise secrets: you can get in shape for
giving birth at 14! / The day your dreams are over.
12
Disponíveis em: http://www.popsugar.com/celebrity/Selena-Gomez-Interview-Seventeen-
Magazine-March-2014-33670870#photo-33670870 e http://www.brides.com/brides/TOC,
respectivamente. Acesso em 21/05/2014.
13
Tradução livre de: Look cute all spring. / Cool clothes, pretty makeup & fun jewelry. / Live your dreams!
14
Tradução livre de: Your best hair in time for the wedding. / Amazing new gowns. Find yours inside! / 735
creative ideas: cakes, invites, flowers & more.

266
Glaucia Muniz Proença Lara

Contrariamente aos enunciados destacados da Seventeen e da Brides,


que reúnem apenas elementos eufóricos, as aforizações presentes nas
falsas capas apresentam figuras, como diria a Semiótica standard, que
remetem ao tema da violência a que são submetidas as mulheres ainda
hoje, sobretudo em certos países (como é o caso do Yemen)15: estupro,
ataques com ácido, rapto, escoriações, inferno, para citarmos apenas algumas
delas. Em casos como o de “Deslumbrantes vestidos de noiva: agora
para idades de 7 a 12 anos.”, ou ainda “Segredos de exercícios: você
pode entrar em forma para dar à luz aos 14!”, é a idade precoce das que
se vestem de noiva ou dão à luz que choca o leitor.
Diante disso, podemos dizer que o objeto “capa de revista” (com
suas aforizações, que funcionariam como chamadas-títulos para as
pretensas reportagens das revistas fake), entra no campo de presença do
internauta/leitor de forma inesperada, ligando-se ao sobrevir, enquanto
modo de eficiência, e não ao conseguir, que se esteia na previsibilidade,
apreendendo-o – principalmente, pelo teor imprevisível/imprevisto das
aforizações –, mais do que sendo por ele apreendido.
Diferentemente da focalização (rotina), que é prospectiva, a
apreensão (modo de existência do acontecimento) é retrospectiva: só nos
damos conta dela após sua ocorrência, isto é, após sermos “apreendidos”,
surpreendidos por algo, sem que tenhamos tido tempo de focá-lo
previamente. É isso que ocorre quando o internauta/leitor, deslocando
o olhar da imagem (da foto da “modelo”), detém-se nas aforizações que
a acompanham: elas subvertem por completo aquelas que constariam,
de fato, numa capa de revista direcionada ao público jovem, como
vimos mais acima, apontando para as várias formas de exploração e de
violência contra crianças e adolescentes do sexo feminino que ocorrem
no mundo, o que, em geral, encontra-se longe das (pre)ocupações do
15
Uma lista, divulgada pela Anistia Internacional em março de 2006, incluía 36 países cujas leis
discriminavam as mulheres, como a Arábia Saudita, que não permite que as pessoas do sexo
feminino votem, ou a Nigéria, onde a violência doméstica fica impune. Informações disponíveis
em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u93347.shtml. Acesso em: 21/05/2014.

267
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

leitor comum. Isso o leva a revisitar e a reinterpretar a imagem – e a


capa como um todo – de forma retrospectiva, mudando aquele primeiro
olhar um pouco ingênuo que lhe permitiu ver apenas a imagem de duas
adolescentes.
Instaura-se, desse modo, a concessão (modo de junção), traduzido
na fórmula: embora se apresente como uma capa de revista (ou um
simulacro de capa) com as chamadas-título próprias desse gênero
discursivo, trata-se de uma campanha de conscientização, o que foge,
por completo, à fórmula “se a, então b”, própria da implicação (rotina).
Ora, se o conseguir tranquiliza-nos quanto às nossas competências
(já que atingimos o alvo focalizado) e a implicação confirma nossas
crenças (ratifica a relação estabilizadora entre causas e consequências), a
concessão, implicando a violação de alguma regra/lógica, nos assusta.
Trata-se, pois, de um verdadeiro acontecimento que desestabiliza esse
sujeito-leitor, envolvendo-o em suas “malhas”.

3. Algumas palavras para concluir


Ao romper com os cânones de uma revista convencional e,
portanto, com o contrato de leitura (estabilizado na rotina do sujeito), a
capa e “suas” aforizações tornam-se um “objeto” que entra de maneira
inesperada no campo de presença do internauta/leitor, que, sendo
apreendido pelo inusitado da situação, vê romperem, por completo, seus
cálculos e suas expectativas quanto ao que seria uma capa de revista
infanto-juvenil standard e às chamadas-títulos compatíveis com esse (sub)
gênero discursivo. Instaura-se, pois, uma lógica de caráter concessivo.
Nesse sentido, considerando que intensidade e extensidade são os
eixos centrais da tensividade, poderíamos nos perguntar se a aforização
não é, afinal, um todo de sentido compacto e tônico, ou seja, pouco
extenso (em termos de espacialidade) e muito intenso (em termos de
impacto da informação), sobretudo quando se quer chamar a atenção do

268
Glaucia Muniz Proença Lara

destinatário sobre um assunto tão sério e delicado.


A campanha de conscientização reproduzida nessas capas
“manipula”, assim, via aforizações, o leitor, tornando-o também
responsável por aquilo que denuncia e levando-o a um fazer: ainda que
seja simplesmente o de indignar-se com as situações retratadas.

Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto,
2006.

KRIEG-PLANQUE, Alice. Purification ethnique: une formule et son


histoire. Paris: CNRS Ed., 2003.

LARA, Glaucia M. P. Passando a aforização em revista. Estudos


semióticos, São Paulo, USP. v. 9, n. 2, p. 7-14, 2013. Disponível em: http://
revistas.usp.br/esse/issue/current/showToc.

LARA, Glaucia M. P. L’aphorisation dans la presse écrite au Brésil


et en France, French Journal for Media Research [en ligne], 2/2014, mis
à jour le : 17/07/2014, URL : http://frenchjournalformediaresearch.
com/lodel/index.php?id=374.

MAINGUENEAU, Dominique. Escola Francesa de Análise do


Discurso. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. (orgs.).
Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, p. 202, 2004.
______. Citação e destacabilidade. In: ______. Cenas da enunciação.
Org. Sírio Possenti; Maria Cecília P. de Souza-e-Silva. Curitiba, PR: Criar,
p. 72-90, 2006.
______. L’Énonciation aphorisante. In: SILVA, Thaïs C. ; MELLO,
Heliana (orgs.). Conferências do V° Congresso da Associação Brasileira de
Linguística. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 155-164.

269
Aforização e Acontecimento: por um Diálogo entre Análise do Discurso e Semiótica Tensiva

______. Aforização: enunciados sem texto? In: _____. Doze conceitos


em análise do discurso. Org. Sírio Possenti; Maria Cecília P. de Souza-e-Silva.
São Paulo: Parábola, p. 9-24,2010.

______. Les phrases sans texte. Paris: Armand Collin, 2012.

ZILBERBERG, Claude. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia,


São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007.

Recebido em 14/11/2014 e Aceito em 07/03/2015.

270
METHODOLOGY OF THE INVESTIGATION IN
LINGUISTICS: REFLECTIONS ANS PROPOSALS

METODOLOGIA DE LA INVESTIGACIÓN EM
LINGUÍSTICA: REFLEXIONES Y PROPUESTA 12

María Laura PARDO


Universidade de Buenos Aires (UBA-CIAFIC-CONICET/FFYL)

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo tratar de noções básicas de metodologia qualitativa para os
estudantesdos cursos de graduação em Letras, na área de Linguística, e apresentar o Método
sincrónico-diacrónico de análise linguística de textos (PARDO 2011). Pretende-se abordar
o tema sob a forma de perguntas e respostas. As perguntas selecionadas refletem asquestões
levantadascom maior frequência pelos estudantes durante o seminário de Metodología de
lainvestigación lingüística e da disciplina Análisis de los lenguajes de los médios masivos de
comunicación da Faculdade de Filosofia e Letras (FFYL) da Universidade de Buenos Aires
(UBA).

ABSTRACT
This work aims to deal with basic notions of qualitative methodology for undergraduate
students of Literature and Languages, specifically in Linguistics field and present the
‹synchronic-diachronic method of Linguistics analysis› (PARDO, 2011). In order to address
the issue as clearly as possible, the text is structured in the form of questions and answers
(Q&A). These questions reflect about the issues more frequently raised by the students
1
Agradezco a todos mis estudiantes del seminario de Metodología de la investigación lingüística y de
la materia Análisis de los lenguajes de los medios masivos de comunicación de la Facultad de Filosofía y
Letras (FFYL) de la Universidad de Buenos Aires (UBA) y, muy especialmente, a mis colegas en
la Cátedra: Gabriela D´Angelo, Mariana Marchese y Lucía Molina. Este trabajo ha sido posible
gracias al CIAFIC-CONICET y al UBACYT 120 de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA.
2
Agradezco a Virginia Buscaglia por sus comentarios y revisión.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 271-288 jul./dez. 2015


Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

during the seminar Metodologia de la investigación linguistica and the module Analisis de los
lenguajes de los medios massivos de comunicacion presented at Faculdad de Filosofia y Letras
(FFYL) in Universidad de Buenos Aires (UBA).

PALAVRAS-CHAVE
Discurso; epistemologia linguística e metodologia de investigação em linguística.

KEYWORDS
Discourse; linguistic epistemology and investigation methodology in linguistics.

Introducción
El objetivo de este trabajo es brindar nociones básicas de metodología
cualitativa para los estudiantes de grado de la Carrera de Letras, en el
área de Lingüística y presentar el Método sincrónico-diacrónico de análisis
lingüístico de textos (PARDO, 2011). Con el fin de intentar ser lo más clara
posible, planteo esta temática, mediante preguntas y respuestas. Estas
preguntas reflejan las más frecuentes que me hacen mis estudiantes en
clases durante la cursada de la materia3 en el grado y frente a su, en
general, primera investigación.

La primera pregunta que surge es:


¿Qué diferencia hay entre un método y una metodología?
Se denomina metodología al conjunto de procedimientos racionales
que permiten alcanzar el objeto de estudio de una investigación.
Dichos procedimientos son los que llamamos métodos. Un método es
un procedimiento que se utiliza para analizar un objeto de investigación
científica. Por esto, no debe confundirse metodología con método, ya
3
Se trata de la materia Análisis de los lenguajes de los medios masivos de comunicación, que dicto en la
Carrera de Letras de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires.

272
Maria Laura Pardo

que la metodología es la forma de encarar una investigación desde su


inicio hasta su final y puede incluir diversos métodos para analizar un
objeto de estudio. En cambio, los métodos son las técnicas o modos con
los que vamos a realizar el análisis. Hay muchos métodos y pueden usarse
a la vez, por ejemplo, puedo usar un método etnográfico, más otro de
análisis lingüístico, más una estadística (siempre interpretada a la luz de
los datos en el cualitativismo).

Otra pregunta frecuente es:


¿Por qué debemos preguntarnos sobre la metodología
en una investigación lingüística cualquiera sea?
Porque toda investigación científica tiene una metodología, sea cual
fuere su campo de estudio. Esta metodología guarda concordancia con
el paradigma epistemológico al que pertenece. Por eso, cabe preguntarse:

¿Qué es un paradigma epistemológico y cuáles son los


dos más importantes en la historia de la ciencia?:
Un paradigma epistemológico es el conjunto de creencias que
comparte gran parte de la comunidad científica durante un tiempo
determinado.
El positivismo y el interpretativismo son dos paradigmas
epistemológicos prominentes de la historia de la ciencia, dos formas
diferentes de encarar una investigación. Esta es una subdivisión
macro, amplia, que puede abarcar a muchos otros subparadigmas que
se encuentran más o menos cercanos, en cuanto a sus propuestas o
creencias, uno del otro: paradigma crítico, marxista, estructuralista,
posestructuralista, constructivista, etc.
Para poder diferenciar entre positivismo e interpretativismo es
necesario saber cuáles son sus características y, especialmente, qué es
una investigación cualitativa y cuál es la metodología que representa a

273
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

una y a otra mirada frente a la investigación (aunque haremos especial


hincapié en lo cualitativo).

¿Qué es una investigación cualitativa?


En términos generales, podemos decir que una investigación
cualitativa es una actividad específica que ubica al investigador como un
observador en el mundo.

¿Qué significa “ser un observador en el mundo”?


Que el investigador interpretativista o cualitativo deja de estar en un
laboratorio o, en el caso del lingüista, que deja de imaginar oraciones para
analizar su objeto de análisis tal como se presenta en el mundo. De este
modo, los estudios, en su mayoría, se realizan en el campo (entendiendo
por campo el lugar en el que se desarrolla nuestro objeto de estudio, por
ejemplo, si estudiamos la pobreza yendo a realizar historias de vida a los
asentamientos o en la calle).

Las investigaciones cualitativas pueden incluir


“entrevistas, conversaciones, fotografías, notas del
trabajo de campo, grabaciones, memos sobre uno mismo
(diarios). En este punto, la investigación cualitativa implica
un acercamiento al mundo interpretativo y natural. Esto
significa que los investigadores cualitativos estudian las
cosas en su lugar natural, tratan de darle sentido o de
interpretar los fenómenos en los términos en los que la
gente los entiende” (DENZIN Y LINCOLN, 2000: 3).

274
Maria Laura Pardo

¿Y cómo se da esto en el positivismo?


El positivismo, en cambio, postula la necesidad de estudiar los
fenómenos de modo aislado de cualquier contexto situacional o social,
o sea, en condiciones de laboratorio. “Se postula que, de ese modo,
los objetos se estudian sin las variaciones propias que sufren cuando
se encuentran en su entorno real. Además, el conocimiento se supone
objetivo; es decir, el investigador no modifica, ni transforma, ni
contamina, ni se contamina con el objeto de estudio. De este modo, la
ciencia se atiene a “los hechos” que conforman la realidad. Mucho se ha
hablado de esta realidad, llamada “naif ”, en tanto se sostenía que esta
tenía existencia propia fuera del sujeto y que este no participaba en su
construcción o interpretación” (PARDO, 2011).
Por todo esto, a diferencia de lo que sucede en el positivismo, que
sostiene que la realidad es el objeto de estudio y que puede conocérsela,
en la investigación cualitativa, la realidad objetiva nunca puede ser
capturada desde la mirada del interpretativismo. Solo podemos conocerla
a través de sus representaciones. Más adelante, volveré sobre el tema
de las representaciones.

¿Qué sucede en el positivismo?


Durante los siglos de positivismo, la metodología reinante fue la
cuantitativa. Todo se contaba y medía. El positivismo se basó en un
modo de investigar netamente deductivo y mediante una metodología,
supuestamente, aplicable a todos los casos. Esto acarreó una serie de
problemas y divisiones. La primera de estas fue la división entre ciencias
“duras” y ciencias “blandas” como se las denominaba.
La lingüística también se dividió en “dura” y “blanda” entonces los
estudios variacionistas labovianas o los “estructuralistas”, a la vez que
lingüísticas como la Chomskyana o la de Montague, también fueron
consideradas “duras” o “formalistas”. Las otras lingüísticas: Análisis

275
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

del Discurso, Análisis Crítico del Discurso, Pragmática, Sociolingüística


no laboviana, Sistémica Funcional, fueron consideradas “blandas” o
“funcionalistas”.
Ambas lingüísticas se miraban con recelo, ya que las duras parecían
ser las reinas de esos tiempos y respondían a una clara metodología que
les permitía cuantificar todo.
Cuantificar es medir también. Así se medía la distancia del sol, de la
luna, los grados en que un ente se solidifica, etc. ¿Pero cómo medir las
palabras?, ¿cómo cuantificar una palabra en un texto cuando a pesar de
ser la misma, su significado no lo es ya que supone diferencias estilísticas
o socioeconómicas?
Muchas veces hemos visto ejemplos de estudios que se basan en
contar cuántos “como” aparecen en un texto. Si bien la palabra puede
parecer la misma en cada aparición textual, el “como” puede tener
diferentes funciones en el texto según sea su contexto inmediato.
No es lo mismo decir:

1) “María es como un gatito al sol, cuando juega” que


2) “Es como que Juan se rindió”,
3) “Cómo te quiero”.

El primer (1) “como” es un nexo comparativo en tanto compara a


María con el gatito.
El segundo (2) es un uso coloquial del “como” erróneo, se trata de
un solecismo, el caso 3 es un enfatizador.
Por si bien los “como” parecen iguales, no lo son.
Otro problema se plantea cuando se pretende medir conductas
personales, situaciones afectivas, vínculos familiares etc. Por ejemplo, si
se puede medir el vínculo familiar, la relación entre economía y embarazo
adolescente, el dolor del que vive en la calle. Si bien existen mediciones
de la pobreza o relaciones entre pobreza y escolarización que pueden
generar un uso lingüístico más que otro, dicha correlación puede ser

276
Maria Laura Pardo

útil en pocos casos morfológicos o para que tengan validez deben ser
interpretados cualitativamente.
El caso del plural en el español es un ejemplo de este tipo de estudio. El
plural /-s/ /-es/ varía según la variable socioeconómica y la educativa: la
presencia de plural en “dos” indica un nivel socioeconómico y educativo
alto mientras que su ausencia indica que quienes no lo pronuncian son
de niveles bajos.
Si bien podemos decir que en estos casos puede hablarse de variación,
en el plano del lenguaje y tal como lo señalaba LAVANDERA (2014:
p.37 [1978]): “resulta inadecuado extender a otros niveles de análisis la
variación, la noción de variable sociolingüística desarrollada originalmente
sobre la base de datos fonológicos. Los estudios cuantitativos de variación
que se ocupan de alternancias morfológicas, sintácticas y léxicas sufren
de la falta de una teoría bien organizada de los significados.” Esta cita
proviene de su trabajo: Where does the sociolinguistic variable stop, que implicó
grandes transformaciones no solo en la Sociolingüística laboviana sino
en otras áreas también de la lingüística.
Esta afirmación de Lavandera, hace que pongamos atención a
nuestras investigaciones discursivas o sintácticas para no postular
supuestas variaciones ya que no existe la sinonimia que se requiere para
poder hablar de variantes o variación.
También es importante tener en cuenta que para hacer un análisis del
discurso (crítico o no), el análisis lingüístico de las formas de la lengua
es fundamental.
Superar el análisis de contenido es posible si se utiliza no solo una
metodología cualitativa sino métodos adecuados de análisis, que tengan
en cuenta elementos gramaticales y discursivos. Esta discusión parece
perimida porque hoy, muchas veces, la metodología, los métodos, la
validación de un hallazgo, no tienen la misma importancia que antes,
sin embargo, a la hora de enviar un trabajo a una revista o libro, estos
requerimientos aparecen.

277
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

El proceso doble hermenéutico


Este cambio de visión respecto de la realidad que las investigaciones
cualitativas implican al considerar que el investigador no solo sabe que
modifica, interpreta y construye la “realidad” que investiga desde un
lugar y una tradición académica específica, sino también que lo concibe
como una persona que tiene una ideología, un sistema de creencias
particular con una cultura propia, ha sido denominado proceso doble
hermenéutico, lo que, sin duda, marca otra diferencia vital entre
positivismo e interpretativismo.

¿Cómo es esto en la Lingüística?


Partamos de algo simple pero elemental. La oración es una
proposición lógica (una entidad mental). Estas se usaban en los famosos
ejemplos inventados de muchas gramáticas. Hoy hablamos de emisiones,
oraciones puestas en uso, o sea dichas. La palabra “sentence” en inglés,
se traduce como “oración”, mientras que “utterance”, como “emisión”,
o sea puesta en uso. Este poner en uso, nos enfrenta con dos situaciones
nuevas, las emisiones se emiten en contextos situacionales que refieren a
géneros (contexto político, del aula, de médico-paciente, conversacional,
literario, legal, etc.), y también nos expone a pensar en un contexto
mayor que es el histórico, económico, social.
Este pasaje es fundamental en la historia de la lingüística ya que planteó
grandes desafíos que, aunque no lo parezca, no han sido superados del
todo. Podríamos pensar que estos planos se corresponden con lo que
FAIRCLOUGH (1995) denominó como “prácticas”: la práctica textual,
en la que se inscriben las emisiones en forma de texto; la práctica discursiva
ligada a la situación comunicativa y, por lo tanto, al género en el que se
desarrollan las emisiones o el texto; y la práctica social, en la que se toma
en cuenta el contexto social, político, económico, cultural, etc.

278
Maria Laura Pardo

En las investigaciones cualitativas, entonces, el investigador


analiza textos en contextos. Su pensamiento se aleja de la deducción
para convertirse en inductivo. Durante el estructuralismo (uno de
las corrientes más importantes del positivismo) primero se piensa el
problema, se genera un modelo y este se aplica a los datos para ver si tal
modelo funciona o no. En el interpretativismo, prima el pensamiento
inductivo, se va a los datos, se los analiza y de allí surge una teoría, que
puede reelaborarse una y otra vez, volviendo a los datos, para corregirla
(esta ida y vuelta entre datos y teorías podemos llamarla dialéctica).
¿En las investigaciones cualitativas hay hipótesis?
El positivismo, tal como lo señalábamos más arriba, se basa para
conocer en un procedimiento eminentemente deductivo. Parte de
una hipótesis general que intenta probar en casos particulares para
validarla. El interpretativismo, en cambio, pretende conocer a partir
de un procedimiento preponderantemente inductivo. Por lo tanto, no
se asienta ni en hipótesis o conocimientos a priori4 ni en modelos;
no postula leyes generales5 que se aplican a casos particulares, sino
que el conocimiento obtenido en una investigación cualitativa es válido
solo para ese caso en particular y no pretende ser generalizado. Por tal
motivo, suele llamarse a estas investigaciones, estudios de caso.
Algunas veces, y luego de una investigación exploratoria (primera
aproximación a los datos), el investigador puede plantearse una hipótesis
teórica, generalmente en forma de pregunta, pero que no debe ser
verificada ni validada.

4
Todos tenemos conocimientos a priori, lo que se quiere sostener es que estos no son
fundamentales para la investigación.
5
Existe una discusión acerca de si algunas de las conclusiones alcanzadas en un estudio de
caso pueden generalizarse. De hecho, en los estudios comparativos pueden generalizarse ciertos
aspectos de la investigación cualitativa.

279
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

¿Pueden usarse varios métodos en un mismo caso dentro


de la metodología cualitativa?
La investigación cualitativa es inherentemente multimetodológica,
en tanto se permite hacer uso de diversos métodos, técnicas y
combinaciones analíticas. Sin duda, esto es consecuencia de que los
objetos de estudio se hacen cada vez más complejos. Sin embargo,
la triangulación de datos (combinación de métodos estadísticos y
cualitativos) refleja un intento de asegurarse una comprensión acabada
y completa de los fenómenos en cuestión, aunque hay que señalar que
no es una herramienta o estrategia de validación, sino una alternativa a
ella. Un estudio estadístico o cuantitativo siempre debe ser interpretado
cualitativamente.

¿Qué quiere decir que la teoría surge de los datos?


La teoría surge del análisis e interpretación de los datos. Es decir que
surge inductivamente.
Muchas veces algunas de estas teorías quedan muy cercanas a los
datos, en este caso, se las llama teoría de rango medio o de medio
rango.

¿Hacer investigación cualitativa implica una


transformación del mundo bajo análisis?

La investigación cualitativa, en general, implica una


transformación del mundo, en tanto, lo que investigamos
nos modifica como sujetos y como investigadores, de
la misma forma estos modifican a quienes proveen los
datos, a los datos mismos, a los contextos en los que se
desarrolla la investigación. El trabajo de campo posibilita
un ida y vuelta entre el investigador y su contexto, en el

280
Maria Laura Pardo

que muchas veces los mismos informantes o sujetos que


participan en el contexto de la investigación son ellos
mismos parte de la teoría que se generará de este estudio
de caso (véase REYES CRUZ, 2008)

¿Qué es el Método sincrónico-diacrónico de análisis


lingüístico de textos (PARDO, 2011)?6
Este método, además de proponerse como una herramienta para
el análisis lingüístico, que a su vez surge y permite generar teorías, nace
a partir de una serie de objetivos generales propios frente a la realidad
académica latinoamericana de hoy. Esos objetivos generales plantean
que los investigadores latinoamericanos deberíamos:

▪▪ ocuparnos de temáticas socio-discursivas relevantes para


nuestros países;
▪▪ generar teorías y métodos propios (esto es latinoamericanos);
▪▪ basar las teorías y métodos en análisis inductivos y trabajo de
campo y
▪▪ utilizar bibliografía pertinente que permita explicar nuestros
propios fenómenos y no aplicar nociones que en otros contextos
pueden ser útiles, pero no en los nuestros.

Pasemos ahora a los fundamentos de esta propuesta metodológica.


El lenguaje es un sistema biológico humano innato ligado al
fenómeno de la especiación7 (Crow, 2000). Su función primordial es la
6
Esta sección sintetiza dos capítulos de mi libro Teoría y Metodología para la investigación
lingüística. Método sincrónico-diacrónico de análisis lingüístico de textos. Para una versión
con más detalles en portugués, ver: Viviane Ramalho y María del Carmen Gomes (eds), 2014,
en prensa.
7
Especiación refiere al momento en que los homínidos se separan de sus antecesores, para luego
convertirse en hombres.

281
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

de separar mi yo de lo que me rodea (clasificación y orden) y habilitar


la comunicación (cualquiera sea su forma) con un otro. El lenguaje solo
tiene sentido de ser en sociedad, por y para ella. En sí mismo, tiene
condensada la idea de un otro, aquel que no soy yo. El lenguaje se
desarrolla socialmente y, al mismo tiempo, conforma el aparato psíquico
del sujeto y, a través de él, también, su identidad.
El lenguaje, esencialmente, es un diálogo entre el yo y su contexto.
“Conversa” con las voces internas o internalizadas que el sujeto posee
y con las voces externas (de otros sujetos), de modo visible a través de
la lengua.
La argumentación, en consecuencia, aparece como una característica
constitutiva del lenguaje tanto por su función ligada al pensamiento
como a la comunicación. El diálogo se da argumentando a favor o en
contra de los deseos del sujeto.
La argumentación como grado más extremo (o la argumentatividad
como grados parciales) se realiza en paradigmas de argumentaciones que
representan las voces con las que el H-P (Hablante-Protagonista que se
explica más abajo) discute su tesis.
El esqueleto argumentacional sostiene al menos dos paradigmas
(argumentativos), el de mis deseos (objetivos, creencias, pasiones, etc.) y
el de los que se oponen a ellos, los discuten, los apoyan, etc. De allí que en
toda gramática además del rol o función de Sujeto (el que toma el rol del
hablante) es fundamental el rol del otro (al que llamaremos Actor), sea
cual sea su función en el interior de la argumentación. La argumentación,
vista de este modo, no refiere a un género discursivo particular, sino a la
forma en que se desarrolla nuestro decir en la comunicación.
La argumentación es dimensional, o sea, gradual (argumentatividad),
en la que el decir puede tener un bajo grado de argumentos, con una
función solo interpersonal (mantener el contacto con el otro) o ir
inclinándose gradualmente a su opuesto, donde todos los recursos y
estrategias lingüísticos serán puestos en juego para defender una posición
o tesis.

282
Maria Laura Pardo

La noción de paradigma argumentativo se relaciona con el principio


dialógico, ya que presupone al menos el manejo de dos voces, la del
hablante y la de otro que adhiere a sus tesis o se le contrapone.
Estos paradigmas están representados, en general por actores
(instanciados en la categoría Actores) que argumentan a favor o en
contra del H-P y que son absolutamente necesarios para que este pueda
sostener su decir. La observación de todos estos aspectos es posible
mediante lo que llamo el método sincrónico-diacrónico de análisis lingüístico
de textos, que permite reconocer las categorías gramaticalizadas y las
semántico-discursivas, relevarlas tanto en la sincronía de la emisión como
en la diacronía del texto y, de este modo, por inducción, reconstruir
las representaciones de las categorías sociales que el hablante configura
en su discurso. El Método sincrónico-diacrónico de análisis lingüístico de textos
(MSDAT), (PARDO, 2011; para una versión en portugués, véase
PARDO, 2014).
Este método, entonces, resulta, también, muy útil como una
teoría básica (una teoría que proporciona datos nacidos en el análisis
–en este caso lingüístico- de modo cualitativo y, por lo tanto, inductivo
(STRAUSS y CORBIN, 2002)).
Este método permite la observación del modo en que operan en
los textos las categorías gramaticalizadas, de carácter obligatorio, y
las semántico-discursivas, que varían de texto a texto. Las categorías
gramaticalizadas son:

▪▪ Hablante-Protagonista: categoría que se corresponde con cualquier


persona pronominal o referente nominal que tome el argumento
del hablante. Esta categoría no necesariamente debe aparecer en
la posición de sujeto gramatical o lógico de la emisión.
▪▪ Verbo 1: son los verbos vinculados con las acciones del Hablante-
protagonista.

283
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

▪▪ Actor/Actores: cualquier persona pronominal o referente nominal


que toma los argumentos, generalmente opuestos, a los que
sostiene el hablante.
▪▪ Verbo 2: son los verbos vinculados con las acciones del Actor/es.
▪▪ Tiempo y Lugar: estas categorías responden a la orientación
espacio-temporal, en las que se sitúa el texto.
▪▪ Operador pragmático: aparece en todos los textos y tiene distintas
funciones, desde la de señalar cómo debe interpretarse una
parte de la emisión, conectar distintas emisiones o sectores en la
emisión o como recurso para interpelar o lograr la complicidad
del oyente o lector.

El método sincrónico-diacrónico permite una lectura en la sincronía


de la emisión (lectura horizontal) y una diacrónica de cada categoría
(lectura vertical).

Veamos un breve ejemplo:

1 [Yo nunca tuve problemas para tener pareja]


2 [La más duradera duró dos años]
3 [Pero no hay que tener hijos]
4 [Yo no quiero tener hijos ahora y aquí].

La aplicación del método sincrónico –diacrónico de análisis


lingüístico de textos (MSDALT, de aquí en más) da el siguiente resultado:

284
Maria Laura Pardo

H-P Negación V1 Pareja V2 Tiempo Conector Lugar


1[Yo nunca tuve problemas
p a r a
tener
pareja]
2[La más
duradera duró d o s
años]
3[Pero
no hay que
tener hijos]
4[Yo no quiero hijos ahora y aquí]
tener

En este brevísimo texto nos encontramos con las categorías


gramaticalizadas: Hablante Protagonista (H-P), Negación, V1 o Nexo de valor
1, V2 o Nexo de Valor 2, Tiempo, Conector y Lugar. La única categoría
semántico-discursiva que encontramos es la de Pareja. Las categorías
semántico-discursivas muestran cómo el hablante representa una
parte de su mundo, en este caso el de la Pareja, aunque en textos más
amplios suelen aparecer varias categorías de este tipo y, por ende, más
representaciones discursivas y también sociales, ya que las categorías
semántico-discursivas son las formas gramaticales y discursivas de
expresarlas. El análisis sincrónico nos permite muchas posibilidades,
ya que podemos analizar las emisiones con variadas teorías según sea
nuestra aproximación, (podemos aplicar, a modo de ejemplo, la teoría de
la valoración, la de la tonalización, jerarquización, roles temáticos, etc.)
Aplicando la teoría de la jerarquización de la información, por
ejemplo, podemos ver en cada emisión, cuáles son sus focos. En estas
cuatro emisiones encontramos en foco8: pareja, dos años, hijos y aquí. La
8
El foco se corresponde con los últimos segundos que pueden ser memorizados por el hablante
y con la información más relevante del rema de una emisión; o sea, la que el hablante alcanza
cuando logra su objetivo comunicacional y cierra la emisión. De este modo, en la emisión: La

285
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

Pareja, que es la categoría semántico-discursiva que aparece y que a la vez


conforma una representación socio-discursiva, se encuentra presente en
cada uno de los focos, convirtiéndose, previsiblemente, en la categoría
más relevante de este texto. Así pareja aparece explicita en la emisión 1,
mientras que en la 2 se refiere a su duración dos años, la 3 a los hijos y la
cuatro al momento en el que aún este Hablante no está preparado para
tenerlos ahora.
Las dos emisiones que aparecen con primera persona explícita son
la primera y la última (e1[Yo nunca tuve problemas para tener pareja] y
4[Yo no quiero tener hijos ahora y aquí] , denotando que estas también
son las más relevantes, ya que frente a las otras dos emisiones en el que
la primera persona aparece en la flexión verbal, la explicitación del “yo”
la hace más reforzada, más marcada, dado que en el español el orden
de palabras no marcado es VsO (Verbo, sujeto dado en la declinación
verbal, Objeto) y, en este caso, es: SVO.
Podríamos decir, en la observación diacrónica, que el texto abre y
cierra con este uso marcado de la primera persona. También, desde la
diacronía, puede notarse la repetición de las negaciones en el texto en
las cuatro emisiones, en el siguiente orden: nunca, no, no, no. El nunca
es un reforzador frente a las formas de negación: no (véase teoría de
la tonalización: (PARDO, 2010). Otro tanto sucede con el V1: (nunca)
tuve (problemas) para tener; (no) hay que tener; (no) quiero tener. Los verbos
se repiten, en el primer caso, nunca tuve problemas para tener, tuve (Pretérito
Indefinido del Indicativo) se completa con la construcción de meta o fin, que
aquí tomamos como un complemento del verbo en tanto lo completa en
su significado. El segundo caso (no) hay que tener el impersonal le da un
tono de validez genera a lo que se expresa en el verbo mientras también
conjuntamente con el infinito marcan una suerte de fuerza deóntica¸ de
mandato: no hay que tener. Por último, tenemos la misma expresión pero
niña hermosa es la que tiene una muñeca nueva que le regaló su papá, La niña hermosa es el tema, es la que
tiene una muñeca nueva que le regaló su papá es el rema y su papá es el foco (véase PARDO; 1996;
PARDO, 2011).

286
Maria Laura Pardo

llevada al plano del deseo: (no) quiero tener hijos, en la que el modal (quiero)
es el que suaviza el mandato para hacerlo un anhelo personal.
De este modo, la categoría semántico-discursiva y, por lo tanto,
la representación socio-discursiva Pareja se construye alrededor de un
supuesto mandato que expresa un deseo del H-P de no tener hijos,
de modo tajante en el que los focos apuntan a esta problemática.
Cuando el H-P nos dice que no tiene problemas en tener pareja, parece
contradecirse con su no deseo de ser padre, hoy, aquí y ahora. Todos los
recursos lingüísticos coocurren para construir esta representación sobre
su pareja y lo que ella implica y significa para él.
Podríamos realizar muchas otras observaciones pero la intención
en este trabajo es mostrar cómo pueden hacerse nuevos aportes
a la metodología de la investigación lingüística más que presentar
exhaustivamente el modelo, además de reflexionar sobre algunas
cuestiones metodológicas.

Referencias
DENZIN, N. e Y. LINCOLN. (eds). Handbook of Qualitative
Reasearch. London: SAGE, 2000.

FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: The critical study of


language. London: Longman, 1995.

LAVANDERA, B. ¿Dónde para la variable sociolingüística?


Variación y significado y discurso. Buenos Aires: Paidós. p. 37-48, 2014.

PARDO, M.L. Derecho y Lingüística. ¿Cómo se juzga con palabras?


Segunda edición corregida y aumentada. Buenos Aires: Nueva Visión,
1996.

287
Metodología de la Investigación en Lingüística: Reflexiones y Propuesta

PARDO, M.L. La teoría de la Tonalización y la de Valoración: dos


teorías complementarias, en: Cadernos de Linguagem e Sociedade.
Brasilia. Universidad de Brasilia. Con motivo de los 15 años de la
publicación. v. 11, nº. 1. p.113-127, 2010.

PARDO, M.L. 2011. Teoría y metodología de la investigación


lingüística. Método sincrónico-diacrónico de análisis lingüístico de
textos. Buenos Aires: Tersites.

RAMALHO, V. y M. del C. Gomes (eds), prensa, en: Traducción al


portugués del Cap. 6: Método sincrónico-diacrónico de análisis
lingüístico de textos, del libro: PARDO, M.L. Teoría y metodología
de la investigación lingüística. Método sincrónico-diacrónico de análisis
lingüístico de textos, en: Anais del III Seminario Práticas Socioculturais
e Discurso: Debates transdisciplinares, Sao Paulo: Pontes, 2014.

REYES CRUZ, M. What If I Just Cite Graciela? Working Toward


Decolonizing Knowledge Through a Critical Ethnography. Qualitative
Inquiry, volumen 14, número 4, p. 651-658, 2008.

STRAUSS, A. Y J. CORBIN. 2da. Edición. Bases de la investigación


cualitativa. Técnicas y procedimientos para desarrollar la teoría
fundamentada. CONTUS. Editorial Universidad de Antioquia, 2002.

Recebido em 25/11/2014 e Aceito em 23/03/2015.

288
THE RIZHOME ON BASE OF “O TRENZINHO
CAIPIRA”

O RIZOMA NA BASE D’O TRENZINHO DO CAIPIRA

Daniel Perico GRACIANO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Mônica Baltazar Diniz Signori


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

RESUMO
Este trabalho aponta para a possibilidade de um diálogo entre o conceito de rizoma, de
Deleuze e Guattari, e a semiótica de linha francesa, construindo-se uma alternativa de
interpretação das instâncias mais profundas do percurso gerativo do sentido. Nosso objeto de
análise é a tocata O trenzinho do caipira, quarto movimento da peça Bachianas Brasileiras
n.2, que nos serviu de inspiração para o desenvolvimento das ideias aqui propostas.

ABSTRACT
This study points to the possibility of a dialogue between the rhizome concept of Deleuze
and Guattari, and the French line semiotics, building up an alternative interpretation of the
deepest instances of generative sense route. Our object of analysis is the toccata “O trenzinho
caipira”, from the fourth movement of the piece Bachianas Brasileiras n.2, wich was our
inspiration for the development of the ideas proposed here.

PALAVRAS-CHAVE
Semiótica Greimasiana, Rizoma, Música.

© Revista da ABRALIN, v.14, n.2, p. 289-312, jul./Dez. 2015


O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

KEYWORDS
Greimas semiotic, Rhizome, music

Entre semiótica e psicalálise, um pouco de música


As relações interdisciplinares vêm assumindo lugar de destaque
entre as mais diversas teorias no campo das ciências humanas, graças
aos significativos progressos gerados pelo compartilhamento do saber:
o choque gera ruptura, que age como importante mola propulsora
para o surgimento de novas concepções. A superação dos impasses
epistemológicos, tal como as grandes revoluções científicas, encontra em
diálogos dessa natureza condições propícias à expansão das possibilidades
de abordagem das questões que se elegem como problemas de pesquisa.
No que tange à teoria semiótica, há diversas áreas do conhecimento
cujas particularidades já se encontram imbricadas, outras nem tanto, caso
de alguns conceitos da psicanálise, apesar dos consideráveis avanços
alcançados por autores como Ignacio Assis Silva e Waldir Beividas:
dentre seus escritos, Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso, de
Silva, publicada em 1995, e Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica,
ciência, estrutura, de Beividas, publicada em 2000, promovem instigante
interação entre a semiótica e a psicanálise lacaniana, nos convidando a
diferentes experiências em nossas pesquisas.
No âmbito dessas cogitações, as reflexões deste trabalho se
concentram na articulação entre a semiótica de vertente francesa e o
conceito de rizoma, apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em
Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1995). O modelo greimasiano do
percurso gerativo do sentido será mobilizado como alicerce do presente
tentame, passando pela abordagem tensiva de Claude Zilberberg, além
da aplicação de uma teorização musical básica em função do objeto de
análise selecionado.

290
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

A proposição de Deleuze e Guattari nos sugere semelhanças


importantes com a de Zilberberg, que se evidenciam quando nos
voltamos para a semântica do nível fundamental, mas também em menor
escala se apreciamos alguns aspectos do nível narrativo. Particularmente
quanto à sustentação dicotômica profunda, o conceito de rizoma,
associado ao de tensividade, caracteriza-se como possível alternativa
para uma compreensão mais satisfatória sobre o modo de estruturação
básica do percurso gerativo do sentido: considerando que a significação
não se estabelece exatamente nos polos de uma categoria semântica,
mas em intervalos mantidos pela tensividade entre esses extremos,
parece-nos oportuno correlacionar a forma de organização do nível
fundamental ao rizoma, estrutura que se auto-elabora simultânea e anti-
hierarquicamente com base em cada ponto (linha, como denominam os
autores) que constitui sua própria totalidade.
Escolhemos como objeto deste estudo O trenzinho do caipira, quarto
movimento da peça Bachianas brasileiras n.2 de Heitor Villa Lobos, eleita
uma das mais representativas manifestações da nossa cultura.
O plano da expressão é prioritário no estudo realizado, pois se trata
de uma obra de natureza estética, cuja identidade é determinada por
sua peculiar sonoridade, sendo esta a responsável pelo efeito do belo.
Concebido a partir de fatores que remetem à lógica interna da tocata,
destacando-se a singularidade de suas estratégias de criação frente aos
recursos da linguagem musical, configura-se o belo graças à composição
de uma forma de expressão única, irrepetível, origem, ela mesma, da
produção do sentido.
Norteados por esses princípios, propomos uma leitura d’O Trenzinho
do caipira em consonância com orientações da teoria musical, de maneira
geral, e, especificamente, das interfaces que gradativamente se consolidam
entre essa teoria e a semiótica. Trabalhos como Signs of Music, de Eero
Tarasti, Linguistics and Semiótics, de Raymond Monelle e toda a obra de
Luiz Tatit relativa à teorização da Semiótica da Canção, nos permitirão
adentrar o extraordinário universo de significação de Villa Lobos.

291
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

Entre expressão e figurativização, transcriação


A junção entre o trenzinho e o caipira, explicitada no título do
movimento da tocata, é um dos importantes itens linguísticos que
utilizamos como ponto de partida na presente investigação.
No âmbito dos elos que se elaboram entre o texto e seus
componentes paratextuais, desempenha o título fundamental papel de
sugestão do processo de leitura, exercendo, sutil, mas determinante
força desencadeadora do percurso responsável pela significação:

O título é uma síntese precisa do texto, cuja função é


estratégica na sua articulação: ele nomeia o texto após
sua produção, sugere o sentido do mesmo, desperta o
interesse do leitor para o tema, estabelece vínculos com
informações textuais e extratextuais, e contribui para a
orientação da conclusão a que o leitor deverá chegar.
(MENEGASSI e CHAVES, 2000, p. 28)

Por meio do título – O trenzinho do caipira – condensa-se a inter-


relação dos componentes discursivos, narrativos e fundamentais que, ao
longo do percurso de leitura, será expandida em suas particularidades
e complexizada em sua constituição relacional, em que cada integrante
dessa trama só se define tendo em vista o contexto de que participa.
Tecendo nossa abordagem a partir dos mecanismos de figurativização,
observamos o trenzinho desempenhando o papel de ator, associando-se,
no mesmo nível, com outro ator: o caipira. Essa associação, no entanto,
não se limita à discursivização, anunciando também uma narratividade
caracterizada pela conjunção entre um sujeito – figurativizado pelo
caipira – e seu objeto valor – figurativizado pelo trenzinho. Não se trata,
portanto, de um trem qualquer investido de valor utilitário, mas de um
trem específico, de um trenzinho que, dito assim, no diminutivo, interage
com aquele que é conduzido de maneira afetiva, configurando-se um

292
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

entrelaçamento de valores que aciona o cenário cultural regionalista que


abriga os dois atores.
Descortina-se, então, o espaço discursivo, cuja forma de expressão
pode ser apreendida pela peculiar harmonia do quarto movimento
das Bachianas Brasileiras n.2. Os ritmos produzidos originalmente por
tímpanos, piano e pela família das cordas, além dos vários recursos
de percussão idealizados pelo grande maestro, não são apenas notas
esparsamente distribuídas pelo tempo 4/4, mas anunciam, na verdade,
a abertura de um corredor isotópico que gradualmente vai indicando
ao ouvido a vagarosa e gradativa partida do trem: acordes dissonantes
sinalizam que o trem começa a se locomover. Nos primeiros compassos,
a locomotiva estacionada exala vapor preparando-se para sair, em
esforço de deslocamento expresso por uma repetição de acordes de
formação harmônica, ainda que dissonante: a aceleração do ritmo
é alcançada pela subdivisão dos compassos, preenchidos pelo uso de
saxofone tenor e saxofone barítono; na sequência, pode-se acompanhar
a entrada de tímpanos, ganzá, chocalhos, reco-reco, caixa-clara, matraca,
bombo, triângulo, tam-tam, e pratos; no décimo oitavo compasso
responsabiliza-se um piano pela marcação rítmica; logo em seguida, nota-
se a inclusão da celesta, que se realiza em contraposição às notas mais
longas (compassos 57/58, 61/62, 65/66); essa mesma celesta voltará
no final da tocata, especificamente no intervalo entre os compassos
179 e 181, dessa vez, porém, ganhando força com o auxílio de um
prato com uma vassourinha de metal. Em sentido inverso, timbres e
ritmos diferentes enriquecem a organização da sonoridade que sintetiza
a locomotiva: violas e violinos respondem à progressão rítmica como
uma reação a ela, intercalando efeitos de desaceleração na evolução da
composição. Fundamental destacar que a interposição de ritmos e de
timbres diferentes não se estabelece em movimento contínuo e linear de
aceleração e de desaceleração. Ao contrário, essa interposição se constitui
de forma densa, profunda e simultânea, evocando de maneira genial a

293
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

locomotiva em marcha, provocando o chacoalhar de cada uma de suas


inúmeras peças, cujas distintas naturezas vão produzindo sonoridades
também distintas, à medida que são sacudidos pelo balanço do trem.
Esse modo de utilização dos recursos musicais nos leva a compreender
que se trata de uma forma de expressão associada a um discurso
predominantemente figurativo: o que no início parece um conjunto
de notas estranhamente dispostas, aos poucos se configura, até que a
harmonia soa uma perfeita maquinaria de trem. E cada instrumento,
com suas respectivas frases, tem um diferente papel na transcriação
dessa maquinaria. Em outras palavras, cada timbre tem a função sígnica
de substituir uma determinada peça que integra o trem, representando,
assim, a totalidade harmônica dos instrumentos a construção musical da
totalidade da locomotiva.
Para Carmo Junior (2009, p. 480-481), “um instrumento musical
é apenas um instrumento de fazer musical e esse fazer pressupõe um
corpo”, pois considera os instrumentos como “próteses do sujeito da
enunciação”, concebendo “prótese” segundo o conceito proposto por
Umberto Eco (1999, p. 303-304): o semioticista italiano nos esclarece
que as “próteses substitutivas” exercem a função antes pertencente ao
corpo, ao passo que as “próteses extensivas” têm a função de prolongar
a ação do corpo.
Partindo desse ponto de vista, e nos voltando para a imanência textual,
apreendemos no plano da expressão da tocata o ato musical delineando a
imagem de um trem, como uma espécie de “prótese substitutiva” de uma
figura discursiva. Mas deve-se igualmente considerar que, se a totalidade
harmônica evoca a figura do trenzinho, a sequência dessa composição
é responsável, por meio de um mecanismo de saciação, pela efeito
de deslocamento de uma locomotiva, como uma espécie de “prótese
extensiva”: a repetição dos elementos harmônicos cria cadência e esta,
combinada à imagem do trem, sugere movimento, mais especificamente,
sugere o percurso traçado pelo trem.

294
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

Na associação entre expressão e conteúdo, observamos, pois, que os


recursos da musicalidade são explorados de maneira que os timbres, ao
se fazerem sentir, engendram a percepção das notas que, na totalidade
harmônica, constroem a representação de um trem, imagem que é
evocada sinestesicamente, articulando o sonoro e o visual, convergência
sensorial graças à qual se elabora a discursividade pela figurativização de
uma locomotiva em marcha. E, como a complexidade dessa construção
se estabelece em regime de interdependência, é importante atentar que,
em sentido inverso, é a existência dessa forma discursiva que permite a
organização da musicalidade.
Nas últimas décadas, vários teóricos têm consquistado resultados
significativos no que diz respeito aos estudos dos processos de
significação na música instrumental. Um dos autores que tem obtido
grande sucesso por seu esforço é o semioticista finlandês Eero Tarasti,
que concebe a categoria espacial como “ocupação das tessituras”, o que
ele chama de “espacialidade externa”, ou como as relações tonais, o que
ele denomina “espacialidade interna”. Para Tarasti (apud MONELLE,
1992), a categoria espacial se apresenta, principalmente, no liame entre o
pulso métrico e o andamento.
Em teoria musical, “tessitura” é um conjunto de notas que pode
ser executado com qualidade satisfatória por um instrumento; sua
abrangência, portanto, é obviamente menor que a amplitude alcançada
pelo que se conhece por extensão musical, posto que esta última abarca,
fisicamente, todas as notas possíveis. Entende-se por pulso estímulos
de uma mesma natureza, ocorridos em série, cuja periodicidade pode se
configurar de forma irregular: o pulso compreende uma unidade rítmica.
Métrica é a divisão, em compassos, de uma determinada linha musical;
essa divisão é determinada pela marcação de tempos fortes e fracos.
Andamento é o grau de velocidade do compasso; cada andamento
é batizado por um diferente termo, de acordo com sua respectiva
velocidade.

295
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

Buscando a abordagem da expressão do Trenzinho do Caipira a partir


desses conceitos, observamos que, logo nos primeiros compassos da
tocata, cada uma das notas é executada em seu respectivo tempo em um
compasso de quatro tempos, de tal maneira que, gradativamente, vai-se
formando a complexa teia de significação, em que cada instrumento, no
âmbito de sua específica incumbência rítmica, dentro do todo harmônico,
desempenha como função expressar uma expansão que virá a evocar o
trem em movimento. Promove-se, por da sonoridade, de uma fusão das
categorias enunciativas, entre ator, espaço e tempo: o desenvolvimento
da harmonia evoca a figurativização do trem em movimento.
Com o início da melodia, o espaço que, até então, fora evocado
pelo deslocamento do trem, se evidencia, principalmente pelas relações
tonais. As notas que se combinam na organização melódica colocam-se
em posições altas (sons agudos) e baixas (sons graves), sugerindo, por
seus diferentes arranjos na tessitura, as subidas e as descidas do espaço
percorrido pelo trem: a movimentação toma forma sensorialmente pela
progressão das notas musicais, enquanto a escala descendente revela a
imagem de um itinerário se delineando. Por meio de curtos intervalos a
melodia começa pela quarta nota, considerando a tônica marcada pela
harmonia; dessa quarta, desencadeia-se uma “subida”, seguida de uma
“descida”. Essa circularidade tende a instigar um recomeço, já que toda a
harmonia o pede. Assim, a partir da linha melódica, cujo traçado se insere
gradualmente na composição, a evocação das categorias discursivas se
define por completo, posto que já podemos ouvir tanto o trem em seu
trajeto (ator-espaço-tempo) quanto a construção do caminho por onde
ele passa.

Relativamente à melodia, a harmonia vem primeiro, sinalizando,


com isso, a configuração da tonalidade1 da música. Portanto, quando
ecoa a melodia, já existe uma orientação para o seu desenvolvimento
1
Ainda que a tocata seja atonal, o atonalismo não prescinde de tons, de um conjunto de tons que
se articulam, ainda que não sigam regras cartesianas da tonalidade.

296
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

e, assim, imbricam-se melodia e harmonia: esta estabelece o jogo entre


as tonalidades da melodia, constituindo, nas palavras de Tarasti, uma
espacialidade interna, inerente, no caso da tocata, ao próprio trem; a
melodia, por sua vez, determina a tessitura, para Tarasti a espacialidade
externa, evocando, n’O Trenzinho do Caipira, a paisagem característica de
um Brasil interiorano. A perfeição dessa forma musical, além de evocar
pela sonoridade a figurativização discursiva da tocata, também o faz por
uma visualidade elaborada sinestesicamente, em que a tessitura (efeito
sonoro) desenha-se como trilhos que sobem e descem acompanhando
o relevo ao qual se integra, ao mesmo tempo integrando os vários tons
produzidos pela harmonia, que promovem a visualização do sacolejar
das várias peças de uma locomotiva.
Nas seis notas finais da melodia destaca-se uma debreagem espacial
pois, quando a sequência si-lá se repete por três vezes, esse intervalo
leva a linha melódica a se misturar com a harmonia – a tônica com a
sexta do baixo –, alterando a propriedade dos elementos musicais, que
compõem tanto o tema principal quanto o plano de fundo, assim como
o ritmo do compasso, ampliando também a tessitura, quando soam
simultaneamente grave e agudo. Constrói-se um sentido de continuidade,
mas que remete igualmente a um espaço trilhado, efeito possível porque,
após a sequência si-lá, a melodia anterior é retomada, determinando
(pelos recursos da expressão musical) o espaço a ser percorrido tanto
quanto o espaço já percorrido. Interessante notar como a linearidade é
reconfigurada pela circularidade musical.
Para melhor compreendermos a ocorrência dessa debreagem,
devemos direcionar nossa atenção às relações tonais que produzem
a espacialidade interna n’O Trenzinho do Caipira: o som da Maria
Fumaça, junto às subidas e descidas, e os instrumentos carregados de
regionalismo dão nacionalidade (brasilidade), especificando o espaço,
enquanto o compasso si-lá nos fala aos ouvidos, evocando o apito do
trem, o mesmo apito que anuncia sua chegada. Além disso, a escala

297
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

cromática2 explora todas as possibilidades de tessitura dos instrumentos


orquestrais tradicionais, nos indicando a liberdade que se reporta
diretamente à vastidão tanto das extensões territoriais do Brasil quanto
de sua pluralidade cultural: o traçado engendrado pela melodia sugere
a acidental geografia do país, com suas serras (subidas e descidas), tão
características das paisagens rurais brasileiras. Em outras palavras, do
universo (do) caipira. O próprio Villa Lobos confirma essa apreciação
com as seguintes considerações: “a tocata, O Trenzinho do Caipira,
representa impressões de uma viagem nos pequenos trens pelo interior
do Brasil.” (VILLA-LOBOS, 1972, p. 188).
Já as debreagens da categoria temporal evidenciam-se à medida que
o ritmo da música adquire intensidade, ficando mais espesso: trata-se
de uma movimentação carregada de progressão. Do compasso 1 ao 3,
percebemos uma aceleração rítmica que começa com uma semínima
pontuada, passando por uma colcheia ligada a uma semínima (o que
chamamos de modo rítmico dáctilo); do compasso 4 ao 6, percebemos
duas semínimas; já do compasso 7 ao 10, três semínimas; a partir
desses compassos a progressão rítmica preenche continuamente os
espaços, tornando as subdivisões cada vez mais densas, em que cada
instrumento não é apenas parte de um todo, mas é dotado de identidade,
de particularidade por esse todo.
Tempo e espaço definidos, eis que a locomotiva em movimento
incorpora-se ao cenário, do caminho e, por consequência, de sua terra;
o ciclo cresce até transformar o deslocameto do trem em um moto-
perpétuo e, nessa progressão rítmica, as notas se fazem trem. O soar
de peças da locomotiva só se realiza agora em conjunto pois, apesar
da identidade tímbrica descrita acima, uma nota isolada não é capaz
de produzir significação, e essa rotação incessante de timbres vai se
configurando como densidade, constituindo-se, assim, em elemento
fanopaico a evocar a completude da figurativização discursiva.
2
A escala cromática, recurso utilizado na tocata, é composta pelos 12 tons convencionados na
teoria musical ocidental.

298
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

Entre subidas e descidas, a plenitude do caipira brasileiro


Dificilmente alguém que não tenha o hábito de ouvir música
instrumental (seja popular ou erudita, termos que, por sinal, julgamos
demasiadamente vagos) concordaria que uma música desprovida (livre)
de uma letra nos possa narrar alguma estória. Na verdade, mais que
contar estórias (ou histórias), a música instrumental (re)cria o mundo
de maneira talvez até menos sujeita a abstracionismos que as próprias
palavras. Inúmeras são as teorias estéticas que defendem vertentes
literárias (poéticas ou não) em que as palavras são consideradas
insuficientes para expressar a significação exata que o artista pretende
construir (primordialmente para ele mesmo), como as teorias relacionadas
à poesia sonora, aos poemas processo, aos neo-concretos, dentre outras
vertentes.
Como já observamos anteriormente, o trem começa a exalar seus
vapores e sua maquinaria começa a vibrar, aumentando gradualmente
sua velocidade até atingir certa estabilidade; a locomotiva passa por um
relevo acidentado (subidas e descidas), uma paisagem rural, o cenário do
caipira (homem do campo do interior do Brasil), portanto um espaço
rural brasileiro. O trem apita, emite ruídos, até que sua velocidade vai
diminuindo e há uma parada seguida de um grande apito (a sequência
si-lá). Essa parada anuncia um fazer remissivo, que representa um
limite no percurso do sujeito, enquanto a sequência si-lá, ou o apito,
pode ser compreendida como uma forma de distensão de fluxo. Logo
depois, o trem retoma sua marcha, acelerando vagarosamente, até atingir
novamente uma estabilidade. Essa parada da parada evidencia um fazer
emissivo, que se caracteriza por uma transgressão de limites, movida
pela forca de atratividade na busca de um restabelecimento que visa à
continuidade (a conjunção completa). A partir desse ponto o trem avança
até chegar a seu destino, quando gradualmente diminui sua velocidade
para uma parada definitiva, sinalizada por um brevíssimo estrondo.

299
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

Sabemos que as transformações acerca do caminho trilhado


pelo trem não se dão subitamente, mas gradualmente. Esse efeito
de gradação é possível, dentre outros recursos, pelo fato de que as
diferentes paisagens desse caminho são sempre reveladas por indícios,
como o caso dos apitos, que podem ser aqui vistos como signos indiciais
da parada ou da diminuição, tanto quanto da progressão rítmica. Os
programas narrativos, assim como os percursos que compõem, nos
são evocados exatamente por essas mudanças de estado musicais, que
anunciam, igualmente, os papeis actanciais figurativizados, basicamente,
pelo caipira e seu trenzinho. Os enunciados de fazer transformam os
enunciados de estado ao sabor das mudanças de tessitura3 e andamento
que se verificam durante a ação. Tais mudanças, entretanto, marcadas
pelas “subidas e descidas” de tonalidade, ocorrem sempre próximas a
um eixo, com alteração limitada, portanto, o que nos indica uma melodia
concentrada ou horizontalizada. Esse tipo de melodia carrega consigo
uma tendência de conotar a continuidade, nos indicando que o sujeito
está em conjunção com seu objeto valor.
Um outro indício claro nos aparece aqui, o de que a figurativização
se mantém fiel ao percurso temático cultural: a integração entre as
categorias discursivas se estabelece de tal maneira que o trem se
harmoniza por completo à paisagem (o espaço) por onde se dá o trajeto
(tempo); contrariamente, à medida que concebe seu roteiro, a paisagem
também é construída. Essa perfeita conjugação entre tempo e espaço
produz o sentido de uma delimitação enunciativa, desenhando-se um
cenário específico, único e particular do caipira que, em conjunção com
o trenzinho, idealiza seu singular modo de vida.
3
No plano de expressão, a tessitura é que nos aponta o perfil da melodia. Tatit denomina como
“perfil melódico expandido” os grandes intervalos entre as notas graves e agudas, e “perfil
melódico concentrado” os campos de tessitura que são mais “restritos”; quanto ao andamento
ele denomina “acelerado” a ocorrência de notas de curta duração (em relação à próxima), e
“desacelerado” a ocorrência de notas de longa duração (TATIT, 2004, p 99). Devemos considerar
também que há hibridismo dentro de uma mesma obra, ou seja, há alternâncias e gradações.

300
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

Tamanha estabilidade é acompanhada de um ajuste da tensividade:


no plano da expressão, por meio do controle da tessitura, que não
permite um distanciamento do equilíbrio imposto pela melodia; no
nível discursivo, pela consonância da figuratividade, que se harmoniza
à musicalidade; no nível narrativo, pela modalização de caráter volitivo,
que engendra o paralelismo na atração sujeito/objeto.
Como uma engrenagem em funcionamento, O Trenzinho do Caipira
manifesta, enfim, um sublime estado de conjunção, um puro /ser/, em
detrimento de qualquer interferência de ordem cognitiva, de deveres
acordados. Sabemos somente que o trem segue sua viagem, constituindo-
se trem e constituindo caminho enquanto caminha, sem avaliação: não
cabe apreciar se o percurso está certo ou errado; não cabe a presença de
um destinador-julgador, já que nenhum contrato foi firmado antes que
o curso da jornada se estabelecesse. Notamos somente um ocorrer, um
movimento livre, já que elaborado, organizado e traçado por quem se
sente à vontade em seu lugar, se sente bem, se sente em harmonia com
o ambiente cultural que o abriga. Não se trata, pois, de apreciar um /
fazer/, mas de, pura e simplesmente, contemplar um /ser/: o ser-caipira,
que configura, então, o sujeito modalizado endogenamente por seu /
querer/, que se traduz pela satisfação plena do /ser/ frente à conjunção
cultural que o define.

O rizoma na base d'o trensinho do caipira


A análise até aqui exposta a propósito d’O Trenzinho do Caipira
ressalta a complexidade inerente à produção da significação, sugerindo-
nos, por coerência, que o nível fundamental sustentará o percurso
gerativo do sentido da tocata pela exploração de relações que, mantidas
por uma relação opositiva, arranjam-se pelas possibilidades significativas
dos infinitos pontos que se colocam entre os extremos contrários. A
forma de composição da tocata, mais especificamente sua idealização

301
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

da duração, da intensidade e da velocidade, demonstra a presença de um


intrincado jogo de forças que nos orienta a uma abordagem da oposição
fundamental que tensiona a fundamentação semântica, explorando suas
inúmeras possibilidades significativas: frente a um plano da expressão
com a riqueza estética d’O Trenzinho do Caipira, a abordagem do plano do
conteúdo torna-se diferenciada frente aos significados construídos pelos
recursos musicais eles mesmos:

No texto com função estética, a expressão ganha


relevância, pois o escritor procura não apenas dizer
o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de tal sorte que
importa não apenas o que se diz, mas o modo como
se diz. Como o poeta recria o conteúdo na expressão,
a articulação entre os dois planos contribui para a
significação global do texto. A compreensão de um texto
com função estética exige que se entenda não somente
o conteúdo, mas também o significado dos elementos da
expressão. (FIORIN, 2003, p. 78)

Ampliando as considerações de Fiorin para toda forma artística,


observamos na tocata de Villa Lobos uma sonoridade que recria a
condição do caipira: é por meio da musicalidade que a figurativização
é evocada, organizando-se as categorias discursivas de maneira a
constituírem um cenário rural em que a natureza se evidencia pelas
marcas da paisagem e pela integração plena do caipira ao ambiente que
o abriga. Mas a própria elaboração artística relacionada ao plano da
expressão da tocata coloca-se como um contraponto a essa integração,
fazendo irromper elementos culturais associados a uma forma de
representação da natureza: o plano da expressão d’O Trenzinho do Caipira
evoca, pelos recursos da musicalidade, a natureza; mas esses recursos
são, em contraposição, constituintes culturais que tecem uma visão de
mundo.

302
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

O andamento é decisivo para a apreensão [na identificação da


impressão] sonora da locomotiva, sendo o compasso quaternário
também uma forte característica cultural, pois está presente quase que na
totalidade dos ritmos regionais brasileiros. A totalidade dos instrumentos
dá aos ouvidos uma clara ilusão de progressão contínua. A sensação de
trêmulo relativa ao trem colocando-se em marcha progride por meio das
dissonâncias dos acordes C7+, C6, F6/C, Dm7/C, G9sus4, C6, Am7,
Em7, F7+, Em7, Am7, Dm7, C6, G9sus4, C6, F6/C, C6, F6/C e C7+,
por onde recomeça em idêntica progressão. Pode-se concluir que é essa
circularidade que expressa tão fielmente o movimento e, simultaneamente,
a integração com a paisagem natural evocada pela melodia, que não por
acaso aparece como tema principal da tocata. Nota-se claramente uma
ordenação bastante peculiar: ainda que a máquina primeiro deva sair
do lugar, avançar e alcançar velocidade antes de percorrer seu roteiro,
considera-se, normalmente, que este já está definido anteriormente
ao percurso realizado pelo trem; aqui, no entanto, é produzida uma
inversão: a de que é o trem que serve de base ao trilho, ou seja, é o
trem que constrói o espaço, que não estaria, pronto anteriormente o
trajeto. Obviamente que, não fosse uma obra de valor estético, em que a
expressão nos apresenta significados que transcendem nossa concepção
limitada, soaria com estranheza esse efeito de sentido, pois ao contrário
da forma utilitária, mais focada na lógica do conteúdo, a forma artística
engendra sua lógica nas singularidades da expressão. Como é a expressão
a responsável pela recriação do mundo, a musicalidade, ao recriar o
deslocamento do trem, provoca, conjuntamente, o recriar do espaço.
Temos, assim, elaborada na interface expressão/conteúdo a oposição
fundamental desta análise, sustentada pela categoria /natureza/ vs. /
cultura/: na medida em que o caminhar faz o caminho, o cultural se
harmoniza ao natural; o percurso do trem harmoniza-se à mobilidade
do sujeito que, movido pelo seu próprio querer, cria ele mesmo o seu
percurso.

303
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

Evidencia-se n’O Trenzinho do Caipira a flexibilidade de uma


composição que não comporta limites estabelecidos de antemão nem
acordos determinados previamente. Qualquer expectativa frente à
evolução de uma linha melódica ou a uma regularidade harmônica cede
lugar à repetição responsável pela recriação das subidas e descidas do
ambiente natural revelado pelo percurso traçado pelo trem. Esse traçado
é, além do mais, recriado por uma harmonia circular que, associada
à repetição, permite a inserção de trechos em qualquer ponto da
construção harmônica, como uma espécie de móbile. Por esses recursos
da musicalidade, a figura do trem é recriada pela harmonia musical que,
por isso, evoca uma performance narrativa perfeitamente coerente com
a modalização endógena já apresentada em nossa abordagem do nível
narrativo: a concepção d’O Trenzinho do Caipira não segue um conjunto
de princípios canônicos da musicalidade, entregando-se ao valor estético
resultante da sonoridade que se produz no processo, em acordo com
o período de desenvolvimento da música moderna, em que cabem as
experiências com o atonalismo, distanciando-se de um conjunto mais
estabilizado de orientações, característico do modo de composição
tonal. Nesse contexto, a tessitura e o andamento recriam a competência
do sujeito movido por seu /querer/, desde que se estabelecem como
condições para a composição atonal: é pela tessitura que se rompem
os limites do tonal, tanto quanto o andamento é fundamental para a
identificação de um estilo experimental, que não persegue o previsível
e o estabilizado, mas elabora-se no tempo próprio da criação musical.
A flexibilidade da composição experimental ecoa na organização
profunda do plano do conteúdo da tocata: por mais que /natureza/
e /cultura/ constituam uma categoria opositiva, não se observa uma
hierarquia entre elas, que viesse marcada por valores eufóricos ou
disfóricos, nem qualquer efeito antagonista que se evidenciasse por
uma sintaxe regida implicativamente, negando um termo para que
se afirmasse o termo oposto: essas grandezas simplesmente fluem,

304
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

deixando-se conduzir pelo percurso do trenzinho, por meio do qual


homem e natureza se põem em sintonia.
Assistimos, portanto, a uma perfeita harmonização entre a forma da
expressão e a sustentação semântica do plano do conteúdo, desfazendo
um potencial paradoxo que poderia se instalar pelo estranhamento que
o atonalismo costuma provocar: como algo que soa estranho poderia
evocar uma perfeita harmonização? E, mais uma vez, a genialidade de
Villa Lobos ressoa. Os canários-da-terra e os rouxinóis usam em seu
canto a escala diatônica, pentatônica ou o modo mixolídio? Os cachorros
na Espanha uivam segundo as normas da escala flamenca? Não seria
inerente ao irregular acompanhar a movimentação natural, diluindo-se
nela? Assim é o caipira brasileiro: despe-se de pré-conceitos ao colocar-
se frente ao natural; integra-se à natureza, respeitando suas sinuosidades,
suas subidas e suas descidas, suas maciezas e suas asperezas. Nada mais
adequado, nos parece, para evocar esse estado de conjunção, que o
atonalismo.
Insere-se aqui um elemento diferencial, do qual nosso objeto de
análise é o mais belo exemplo que pudemos encontrar para demonstrar
um fenômeno um tanto peculiar, na busca de uma ótica alternativa sobre
a semântica do nível fundamental. Trata-se da possibilidade de diálogo
entre a semiótica francesa e um conceito fundamental da psicanálise
(ou anti-psicanálise, como às vezes nos é proposto) formulado pelos
filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari, em sua obra Mil
Platôs, capitalismo e esquizofrenia, o conceito de rizoma:

Resumamos os principais caracteres de um rizoma:


diferentemente das árvores ou de suas raízes um rizoma
conecta um ponto com outro ponto e cada um de seus
traços não remete necessariamente a traços de mesma
natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito
diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma

305
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo.


Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se
tornaria diretamente três, quatro, ou cinco etc. Ele não é
um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se
acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de
dimensões, ou antes de dimensões movediças. Ele não
tem começo nem fim, mas sim um meio pelo qual ele
cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares
a n dimensões. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 31)

O Trenzinho do Caipira sugeriu-nos a possibilidade de associação entre


os princípios da semiótica francesa e o conceito do rizoma pela qualidade
desmontável de seu plano da expressão, baseado não em uma sequência
harmônica, mas em uma série de repetições conectáveis, reversíveis,
como [lembrando/evocando] a estrutura de um platô:

Gregory Bateson serve-se da palavra platô para designar algo


muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando
sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda a
orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma
finalidade exterior. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 32)

A repetição que recria a locomotiva na tocata não tem nada de


hierárquica: o início que se apresenta sob a forma de um acorde de C7+
é também o fim que ecoa o mesmo acorde de C7+, e essa repetição volta
a ocorrer e progride – tanto quanto recua – em altura, num movimento
perpétuo que se expande. O sistema atonal exclui uma organização
memorial, tal qual exclui o autômato central, posto que não há um
centro tonal e tampouco um aprisionamento às regras de combinações
impostas por qualquer tipo de escala. Como um platô:

306
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

A resposta, no terceiro e quarto compassos do trecho exemplificado,


são modalizações puramente estéticas que mantêm o equilíbrio
necessário para o recomeço desse ciclo, que repete o primeiro e o
segundo compassos do trecho. Esse formato rizomático, circular, não
hierárquico, modular, compõe uma estratégia que nos direciona à opera
aperta de Umberto Eco (1997), em alguma medida, a fórmula de Deleuze
e Guattari (1995, p. 31) – “pluralismo = monismo” – vista na prática.
É esse Uno que é múltiplo que exclui a necessidade de uma
divergência dicotômica, quando ela não existe: observamos em O
Trenzinho do Caipira gradações na estrutura da significação da tocata, de
tal maneira que /natureza/ e /cultura/ constroem-se por clivagens, não
havendo puramente nem /natureza/ nem /cultura/. Deleuze e Guattari
(1995, p. 12) nos dizem que “a natureza não age assim: as próprias raízes
são pivotantes com ramificação mais numerosa, lateral e circular, não
dicotômica”. Se uma unidade se faz multiplicidade por meio da subtração
de si mesma, cada parte desse múltiplo se torna parte significante de
um corpo rizomórfico. No caso do plano da expressão do texto em
análise, cada nota representa uma linha heterogênea passiva à atração
que conecta o todo, como efeito de leis de combinação resultantes da
multiplicidade:

multiciplicidades arborescentes e multiplicidades rizomáticas.


Macro e micromulticiplicidades. De um lado, as multiplicidades
extensivas, divisíveis e molares; unificáveis, totalizáveis,
organizáveis; conscientes ou pré-conscientes – e, de outro,
as multiplicidades libidinais inconscientes, moleculares,
intensivas, constituídas de partículas que não se dividem sem

307
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar em


outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-
se, comunicando, passando umas nas outras no interior de
um limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas
multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias;
seus movimentos são brownóides, sua quantidades são
intensidades, são diferenças de intensidade. (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, p. 44)

Para Deleuze e Guattari (1995, p. 4) “um rizoma não começa nem


conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,
intermezzo. (...) Fazer tabula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um
começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e
do movimento”. Consideramos, igualmente, que a tensividade, no nível
fórico, conforme, em especial, proposições de Claude Zilberberg, não
faz uma tabula rasa, posto que não há como partir de um zero, já que o
zero não existe, pois multiplicar o zero é chegar (perpetuamente) a zero.
Parece-nos mais adequado ponderar que a tensividade parte de um meio,
já que nada inicia ou finaliza:

A substituição do conceito de soma pelo de produto é


apenas um capítulo da história de uma noção sempre
sutilmente mencionada, porém raramente levada a sério:
a complexidade. (...) Nosso ponto de partida não é nem a
oposição [a vs b] nem a soma [a + b], mas a interação
[ab], que chamamos de produto. (ZILBERBERG, 2010,
p. 2)

Produto de uma multiplicação. Produto de multiplicidades:


micromultiplicidades e macromultiplicidades, em que tanto as quantidades
quanto as diferenças são intensidades. Num estado de alma aberto a
múltiplas possibilidades que estejam ao redor, tudo se mantém à idêntica

308
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

distância, caso contrário não seriam múltiplas essas possibilidades.


Coerentemente, comparece a flexibilidade como característica
rizomática na expressão, que se deixa moldar pelo atonalismo e pelo
experimentalismo “brownóide”, aleatório, sem previsão de arranjos
futuros, libertando suas notas de qualquer padrão previamente traçado
ou estabilizado. N’O Trenzinho do Caipira, a musicalização livre (re)cria a
modalização endógena do conteúdo, sem linhas a serem (per)seguidas,
mas uma profundidade a ser constantemente (re)configurada pela própria
integração (entrega) do sujeito ao seu objeto. Rompendo a expectativa de
um fluxo/percurso, cujas etapas são previstas em uma sequencialidade,
constituem-se movimentos de expansão e de contração: quanto mais se
distanciam as notas do centro tonal, maior é seu estado de intensidade,
que se converte em extensidade à medida que se aproximam desse
centro. Intensidade e extensidade se compõem na forma de uma melodia
“brownóide”, cujos esforços de expansão e de contração evocam um
comportamento regido pela volição: quando a melodia ressurge em meio
à harmonia, violas e violinos dão lugar às flautas, imprimindo timbres
menos agressivos em relação à primeira execução, quando melodia e
harmonia parecem em disputa de evidenciação; a suavidade das flautas
exprime a despreocupação de uma melodia satisfeita com o desempenho
de sua própria função: ser o trilho para o trem idelizado pela harmonia.
Libertando-se de qualquer sentimento de disputa, melodia e harmonia,
espontânea e voluntariamente, se fundem: “pluralismo = monismo”.
Em resposta, a harmonia modular progride livre, já que não pesa sobre
ela uma linha melódica para acompanhar.
Assim concebidas, melodia e harmonia combinam-se na expressão
de um perfeito ajustamento entre estados de alma (intensidade) e
estados de coisas (extensidade): a melodia constrói o caminho enquanto
a harmonia (trem) caminha, e nesse cenário mergulha o caipira,
percebendo vivamente o espaço que o acolhe, ao mesmo tempo em que
é por esse mesmo espaço apreendido:

309
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

A intensidade e a extensidade são os funtivos de uma função


que se poderia identificar como a tonicidade (tônico/átono),
a intensidade à maneira da “energia”, que torna a percepção
mais viva ou menos viva, e a extensidade à maneira das
“morfologias quantitativas” do mundo sensível, que guiam
ou condicionam o fluxo de atenção do sujeito da percepção.
(FONTANILLE E ZILBERBERG, 2001, p. 19)

Vencendo-se as distâncias entre a percepção e a apreensão,


fundindo-as por meio da genialidade artística, manifesta O Trenzinho do
Caipira a completude: por um lado, a plenitude de um sujeito realizado
(cf. FONTANILLE E ZILBERBERG, 2001, p. 58); por outro, uma
expressão musical da mais alta qualidade estética, que nada deixa escapar
à percepção, envolvendo a sensibilidade pela apreensão de cada signo
musical. A perfeição, enfim, “da obra de arte [em] que todas as dimensões
se unem e encontram a verdade que lhes corresponde” (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, p. 21).

Referências
BEIVIDAS, Waldir. O lugar do sincretismo nas linguagens
multicódicas. Em: Cadernos de Semiótica Aplicada, v. 10, n.
2, 2012. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/
view/5571/4376. Consultado em: 14/06/2015.

CARMO JUNIOR, José Roberto do. Melodia e prosódia: um modelo


para a interface música-fala com base no estudo comparado do aparelho
fonador e dos instrumentos musicais reais e virtuais. 2007. Tese
(Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/
tde-12112007-141109/>. Consultado em: 03/02/2015.

310
Daniel Perico Graciano e Mônica Baltazar Diniz Signori

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e


esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1995.

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas


contemporâneas. 8. ed. trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva,
1997.
_____. Kant e o ornitorrinco. Lisboa: Editora Difel, 1999.

FIORIN, José Luiz. Três questões sobre a relação entre expressão e


conteúdo. Em: Itinerários, v. 20, 2003, p. 77-89. Disponível em: http://
seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2673/2379. Consultado em:
14/06/2015.

FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e


Significação. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São
Paulo: Humanitas, 2001.

MENEGASSI, Renilson José e CHAVES, Maria Izabel Afonso. O título


e sua função estratégica na articulação do texto. Em: Linguagem
e Ensino, v. 3, n. 1, 2000, p. 27-44. Disponível em: http://www.rle.
ucpel.tche.br/index.php/rle/article/view/281/247. Consultado em:
14/06/2015.

PIETROFORTE, Antonio Vicente Serafim. Retórica e Semiótica. São


Paulo: Serviço de Comunicação Social, FFLCH/USP, 2008.

MONELLE, Raymond. Linguistics and Semiotics in Music.


Edinburg: Harwood Academic Publishers, p. 220-273, 1992.

TATIT, Luiz. Musicando a semiótica: ensaios. 1ª ed. São Paulo:


Annablume, 1998.

311
O Rizoma na Base d’O Trenzinho Caipira

______. Semiótica da canção: melodia e letra. 1ª ed. São Paulo:


Editora Escuta, 2004.

VILLA-LOBOS, Heitor. Sua obra. Rio de Janeiro: MEC/Museu Villa-


Lobos, 1972.
______. O Trenzinho do Caipira: tocata 1 das Bachianas Brasileiras n.
2. Em: Transcrição de concerto para piano de Souza Lima. São Paulo:
Musicália, 1977.

ZILBERBERG, Claude. Observações sobre a base tensiva do


ritmo. Em: Estudos Semióticos, v. 6, n. 2, 2010. Disponível em http://
www.revistas.usp.br/esse/article/view/49265/53347. Consultado em:
14/06/2015.

Recebido em 23/11/2014 e Aceito em 30/03/2015.

312
REVISTA DA ABRALIN – INFORMAÇÕES AOS AUTORES

A Revista da ABRALIN publica trabalhos pertencentes aos seguintes


gêneros:
a) Artigos – Textos contendo análise, reflexão e conclusão sobre
temas academicos ou profissionais;
b) Resenhas – Textos contendo o registro e a crítica de obras,
livros, teses, monografias, etc., publicadas recentemente;
c) Retrospectivas – Textos contendo histórico analítico e crítico
de teorias ou escolas de pensamento linguístico;
d) Questões e problemas;
e) Debates.
Formatação - Pede-se que os autores dêem aos originais a serem avaliados
uma formatação próxima da formatação final da revista. Para esse fim,
eles poderão valer-se tanto das Normas para a preparação de originais,
quanto do “boneco” montado pela equipe editorial. Acesse esses dois
recursos neste mesmo site.
Importante: ao submeter seu artigo, lembre-se que ele será processado
por um profissional. Por essa razão, a revista não aceita arquivos em PDF.
Submissão – A submissão de artigo à Revista da ABRALIN é feita
através do Serviço Eletrônico de Revistas da Universidade Federal do
Paraná www.ser.ufpr.br. Como etapa prévia à submissão propriamente
dita de trabalhos, o SER exige que os autores se cadastrem no sistema,
fornecendo informações básicas que serão utilizadas, essencialmente,
para efeito de contato. As instruções que seguem procuram ajudar os
autores a realizar a contento essas duas etapas.
Para cadastrar-se, acesse o site www.ser.ufpr.br e siga o caminho Capa
> Usuário > Cadastrar. O próprio sistema explica a você o que deve fazer
a cada passo.
Ao cadastrar-se como usuário, você define para você mesma um login e
uma senha, que deverão ser lembrados.

313
Para submeter um artigo, siga os seguintes passos:
▪▪ 1. Entre no site do SER, www.ser.ufpr.br
▪▪ 2. Digite nos dois espaços no alto à direita o seu login e a
sua senha./ O sistema manda você para a “Página do Usuário”.
▪▪ 3. Estando na Página do Usuário, clique à esquerda
em AUTOR / O sistema manda a você uma tela intitulada
“Submissões ativas”.
▪▪ 4. Estando em “Submissões ativas”, clique em CLIQUE
AQUI PARA INICIAR OS CINCO PASSOS DO PROCESSO
DE SUBMISSÃO”.
▪▪ 5. O sistema manda a você a tela PASSO 1 - INICIAR A
SUBMISSÃO. Daí para frente, é só seguir as instruções.

Avaliação – A avaliação dos trabalhos submetidos depende da aprovação


por dois membros do Conselho Editorial (veja a composição do Conselho
Editorial no site do SER).

Publicação – A revista da Abralin foi publicada inicialmente em versão


impressa (O ISSN dessa versão era 1678-1805)
Desde 2011, a Revista da ABRALIN é uma somente publicação eletrônica
(ISSN 2178-7603 ).

Acesso aos trabalhos já publicados


Em maio de 2013, começou a postagem da coleção da revista junto
ao SER-UFPr. O link http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/abralin/
issue/archive dá acesso aos números já postados. A expectativa é tornar
acessíveis através desse endereço toda a coleção já publicada, inclusive os
números especiais (que reúnem trabalhos apresentados em congressos).
Também serão disponibilizados os Boletins, que foram por muito tempo
a única publicação da Associação Brasileira de Linguística.

314

Você também pode gostar