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IMPULSO, Piracicaba, v. 16, n. 40, p. 1-160, maio/ago. 2005

Impulso, Piracicaba, 16(40): , 2005 1


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO – IEP PrintFit Soluções


Coordenação: CARLOS TERRA
Presidente do Conselho Diretor Capa: WESLEY LOPES HONÓRIO
LUIZ ALCEU SAPAROLLI Editoração eletrônica: JORGE HENRIQUE
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Vice-Diretor UNIMEP (São Paulo/Brasil). Aceitam-se artigos acadêmicos, estudos
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM analíticos e resenhas, nas áreas das ciências humanas e sociais, e de
cultura em geral. Os textos são selecionados por processo anô-
Universidade Metodista de Piracicaba nimo de avaliação por pares (blind peer review). Para a apresentação
dos artigos devem ser seguidas as normas da Associação Brasileira
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GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM no fim da revista].
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Bolsista-atividade: OLÍVIA SILVA CARMO RAMON 1- Ciências Sociais – periódicos
Edição de texto: MILENA DE CASTRO
Revisão em inglês: NUNO COIMBRA MESQUITA CDU – 3 (05)
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Editorial

CAMBIA, TODO CAMBIA!

Em uma canção que motivou muitos movimentos durante o


período de ditaduras em vários países da América Latina, Violeta
Parra dizia não somente que tudo muda, mas nos alertava a não nos
surpreendermos com alterações de posição – “que yo cambie, no es
extraño!”. Eis um bom mote que se poderia aplicar à edição de nú-
mero 40 da Impulso, voltada à discussão sobre as reformas e mu-
danças em política e educação.
A importância histórica e a atualidade da temática “Educação e
Política” são inegáveis. Também evidente é a sua complexidade, pois
se trata de assunto desafiante, todavia polêmico, em constante ebulição
e, como se observa atualmente em vários países, em vias de profundas
reformas, que definirão o que será dessa área no século
XXI. Tais elementos revelam-se suficientes como justificati-
va para a escolha desse tema e como convite à leitura deste
número. Gostaríamos, porém, de aproveitar esse momen-
to para registrar alguns aspectos relativos à presente qua-
dragésima edição da Impulso.
Educação foi exatamente o tema principal dos pri-
meiros números da revista Impulso, cujo estilo gráfico
refletia seu caráter militante de então. A revista fora cria-
da no âmbito do programa de pós-graduação da Uni-
versidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) para que
“servisse de veículo de divulgação da produção acadê-
mico-científica [...] e contribuísse para fazer avançar e
fortalecer o modelo de Universidade que estamos
construindo”. Isso se dava justamente no período em
que o Brasil passava por um processo de democrati-
zação, na década de 1980, e discutia um novo projeto de nação.
Naquele momento, a reflexão sobre o sentido da educação no Brasil
e na América Latina, era fundamental. Hoje, a Impulso mudou.

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Não se limita à Universidade, nem ao Brasil, mas ampliou-se, tornan-


do-se um periódico com um novo núcleo temático a cada edição, de
caráter internacional, que trata de estabelecer diálogos com as questões
mais importantes da atualidade. O país também mudou. Contudo, há
questões que permanecem, como também já nos alertara Violeta Par-
ra: Pero no cambia mi amor / por más lejos que me encuentre / ni el
recuerdo, ni el dolor / de mi pueblo y de mi gente.
Do mesmo modo, o compromisso com questões sociais, políti-
cas e educacionais, que motivavam muitas discussões e movimentos há
duas décadas, deve continuar atual. Não é por mera coincidência ou
por nostalgia histórica que o número 40 se dedica novamente ao tema
da política e educação. Justamente nos dias atuais se discute não so-
mente a reforma universitária e o modelo de educação básica que me-
lhor serve ao projeto de cidadania, mas também o papel de intelectuais
como elementos críticos, que não podem ficar calados diante dos de-
safios que se apresentam à sociedade brasileira.
Esta edição da Impulso chega, portanto, em boa hora. Em sua in-
trodução, Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Junior são ainda
mais taxativos. Afirmam que esse é um “momento histórico crucial”.
Para caracterizá-lo, partem da “cultura do medo” que hoje nos assola,
apresentam um importante panorama do contexto geral sobre as po-
líticas públicas na educação e, ao mesmo tempo, relacionam em con-
traponto como esses temas são trabalhados nos artigos assinados por
Celso Carvalho, Lisete Arelaro, João Oliveira e Marília Fonseca, além
de Carlos Fonseca Brandão, Nelson Cardoso Amaral, Cristina Helena
de Carvalho e Francisco Lopreato. A introdução também passa em re-
visão as iniciativas de reforma da educação desde 1950, colocando-as
em diálogo com questões políticas e econômicas nacionais e interna-
cionais, as quais atestam o impacto neoliberal ocorrido nos mais varia-
dos contextos. A conclusão de Sguissardi e Reis é realista e nos serve
de alerta: as reformas educacionais poderão ser o mais eficiente meio
de difusão da “cultura do medo” no século XXI.
Em suas primeiras edições, a Impulso também se dedicava a dis-
cutir outros assuntos polêmicos e ainda não resolvidos, como o racis-
mo, a situação latino-americana e as políticas públicas para várias áreas
– e esses serão temas para os próximos números. Também nesse ponto,
nosso quadragésimo número mostra continuidade, pois os artigos ge-
rais, as comunicações e as resenhas dialogam com o tema da educação,
relacionando-o com questões relativas às ações afirmativas, aos movi-
mentos de resistência e à vida cotidiana. Na seção “Conexões Gerais”,
Nuno Coimbra Mesquita discute a polêmica questão da relação entre

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cotas e justiça a partir das discussões ocorridas nos Estados Unidos, en-
quanto Luís Antônio Groppo propõe uma reconstrução histórica do
movimento estudantil na década de 1960. Na seção “Comunicações”,
Mauricio Langon trata do trágico incêndio de um supermercado ocor-
rido no Paraguai, para projetar o que denomina de “os holocaustos do
século XXI”. Por fim, em “Resenhas & Impressões”, Jorge González
assina a resenha do livro O Institucional, a Organização e a Cultura da
Escola, de autoria de João dos Reis Silva Junior & Celso Ferretti.
Olhando de modo retrospectivo, seriam muitas
as considerações a fazer sobre este número, a indicar
maturidade. Ao trabalharmos de modo coerente o
projeto gráfico, o conteúdo e a divisão entre artigos
temáticos e gerais, estamos mudando o visual, mas
mantendo a identidade à Impulso. Ao alcançarmos
quarenta edições, não somente avançamos, mas
também permanecemos fiéis aos princípios que le-
varam à criação da revista. Ao darmos ênfase à re-
flexão sobre política e educação, não somente
mantemos similar consistência, mas nos antecipa-
mos de forma crítica – ao invés de simplesmente
reagir – às propostas de reforma e aos problemas
que trarão. Ao tomarmos a iniciativa de discutir
as reformas, não nos limitamos ao silêncio que
se tornou comum, mas tentamos fazer jus ao
próprio nome da revista.
Violeta Parra também cantou a educação, e não seria demais fi-
nalizar com os versos da canção Que vivan los estudiantes! Mas con-
cluímos por aqui, desejando que esse número sirva de propulsor para
debates críticos sobre as reformas que teremos pela frente e, talvez até,
de inspiração para novas canções.

AMÓS NASCIMENTO
Editor Científico

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...............................
Núcleo Temático
Thematic Section

Apresentação / Foreword
Educação Brasileira no Século XXI –
entre a cultura do medo e a busca da liberdade
Brazilian Education in the 21st Century – between
the culture of fear and the search for freedom
VALDEMAR SGUISSARDI – UNIMEP/SP
JOÃO DOS REIS SILVA JUNIOR – UFSCar, São Carlos/SP 11

...............................
Educação Básica
Elementary Education
Reforma da Educação no Contexto de
Crise do Capitalismo Contemporâneo
Education Reforms in the Context of
Crisis of Contemporary Capitalism
CELSO CARVALHO – Uninove, São Paulo/SP 21
Educação Básica no Século XXI:
tendências e perspectivas
Elementary Education in the 21st Century:
tendencies and perspectives
LISETE R. G. ARELARO – USP,São Paulo/SP 35
Summary
Sumário
A Educação em Tempos de Mudança:
reforma do Estado e educação gerenciada
Education in Times of Changes:
state reform and managed education
JOÃO FERREIRA DE OLIVEIRA – UFG, Goiânia/GO
MARÍLIA FONSECA – UnB, Brasília/DF 55

...............................
Educação Superior
Higher Education
Política Educacional para a Educação
Superior Brasileira na Última Década
Educational Policy for Brazilian
Higher Education in the Last Decade
CARLOS DA FONSECA BRANDÃO – Unesp, Assis/SP 69

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A Vinculação Avaliação/Financiamento na
Educação Superior Brasileira
The Evaluation-funding Entailment in
Brazilian Higher Education
NELSON CARDOSO AMARAL – UFG, Goiânia/GO 81
Finanças Públicas, Renúncia Fiscal e
o ProUni no Governo Lula
Public Finances, Fiscal Renouncement and
the ProUni in the Lula Government
CRISTINA HELENA ALMEIDA DE CARVALHO – Unicamp, Campinas/SP
FRANCISCO LUIZ CAZEIRO LOPREATO – Unicamp, Campinas/SP 93

...............................
Conexões Gerais
General Connections
Cotas, Educação e Justiça
Quotas, Education and Justice
NUNO COIMBRA MESQUITA – USP, São Paulo/SP 107
A Questão Universitária e o Movimento
Estudantil no Brasil nos Anos 1960
The University Case and Brazilian Student
Movement in the 1960’s
LUÍS ANTONIO GROPPO – Unisal, Americana/SP 117

...............................
Comunicações
Communications
Summary

El Caso de las Puertas Cerradas


Sumário

The Closed Doors Case


MAURICIO LANGON – AFU, Montevideo/UR 135

...............................
Resenhas & Impressões
Reviews & Impressions
A Prática Escolar como Mediação para o
Resgate da Praxis na Cotidianidade da Escola
Scholar Practice as a Mediation for the Recovery
of the Praxis in the Quotidianity of the School
O Institucional, a Organização e a Cultura da Escola
de João dos Reis Silva Junior & Celso Ferretti
JORGE LUIS CAMMARANO GONZÁLEZ – Uniso, Sorocaba/SP 151
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
EDITORIAL NORMS 156

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Núcleo Temático
Thematic Section
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Apresentação
Foreword

Educação Brasileira no
Século XXI – entre a cultura do
medo e a busca da liberdade
BRAZILIAN EDUCATION IN THE 21ST
BETWEEN THE CULTURE OF FEAR AND
THE SEARCH FOR FREEDOM
A história recente do Brasil, e da educação brasileira em parti-
cular, é permeada por continuidades, descontinuidades ou rupturas
decorrentes das mudanças na economia, na estrutura do Estado, na
sociedade civil e na constituição da cidadania. Muitas reformas ins-
titucionais ocorreram desde os anos 1950 até o primeiro lustro deste
século. Tendo em geral origem no Estado, buscaram mudar os pro-
cessos de construção da sociabilidade humana, com a finalidade de
VALDEMAR
adequá-la à forma assumida pelo País em cada tempo histórico, para
SGUISSARDI
o que tem concorrido de maneira específica a educação. Universidade Metodista de
O golpe militar de 1964 concretizou-se como resultado da con- Piracicaba (UNIMEP)
tradição entre o econômico e o político – entre um processo so- vs@merconet.com.br
cioeconômico que buscava a internacionalização da economia brasi-
leira e uma ideologia nacionalista da maioria da classe política, isto JOÃO DOS REIS
é, de parte do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Traba- SILVA JUNIOR
lhista Brasileiro (PTB). O golpe significou, portanto, uma ruptura Universidade Federal de São
política na continuidade socioeconômica, ao impor, por processos Carlos (UFSCar)
coercitivos, drásticas e profundas modificações nas estruturas sociais, jr@power.ufscar.br

visando também atingir transformações nas superestruturas do País.


Nesse contexto, no plano educacional, o governo militar-auto-
ritário, sob pressão social, intentou aumentar a “produtividade” das
escolas públicas, com a adoção de princípios administrativos empre-
sariais, além de, desde o início, conduzir a uma gradativa privatiza-
ção da educação. Dão clara demonstração disso os decretos-lei edi-
tados pelo governo militar de turno. No caso da educação superior,
os decretos-lei n.º 53/66 (fixando princípios e normas para as uni-
versidades federais) e n.º 252/67 (que estabelece normas comple-
mentares ao decreto-lei n.º 53/66), bem como os diversos acordos
firmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a Agência dos

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Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), que


supervisionou e financiou parcialmente a economia brasileira nos
primeiros governos militares. Assim, e disso decorreram, em grande
medida, a denominada reforma universitária de 1968 (lei n.º 5.540)
e a reforma do ensino de 1.º e 2.º graus em 1971 (lei n.º 5.692). Os
anos seguintes foram marcados por profunda reorganização do cam-
po educacional no País, na direção de uma determinada sociabilida-
de do cidadão brasileiro, como tantos estudos já o demonstraram.
No entanto, o projeto de Brasil Potência, expresso no progra-
ma político-militar para o País, mostrou logo seus limites, quando as
conseqüências da grande crise da social-democracia, especialmente
européia, e do nacional-desenvolvimentismo, na América Latina,
aqui aportaram, associadas à ausência de poupança nacional, provo-
cando o crepúsculo do milagre econômico e conduzindo à iminência
de uma crise social sem precedentes. Com a redemocratização dos
anos 1980, essa crise foi politizada no processo de transição do po-
der político das mãos dos militares para as dos civis – de um regime
ditatorial para uma quase-democracia.
A contradição entre, de um lado, um profundo déficit social e
produtivo e, de outro, a redemocratização do poder produziu a poli-
tização da crise econômica. Isso enfraqueceu os movimentos sociais e
as instituições e organizações políticas de mediação entre o Estado e a
sociedade civil, possibilitando o ajuste socioeconômico e político do
início dos anos 1990. Tal ajuste era visto como necessário à superação
da crise capitalista gestada no âmbito da social-democracia predomi-
nante no século XX e se fez presente primeiro no Chile e, em seguida,
nos Estados Unidos e em alguns países da Europa e da América Latina.
Como resultado, aconteceram radicais transformações nas for-
mas de produção da vida humana, em todas as suas dimensões, em
razão da própria racionalidade da formação econômico-social capi-
talista. A base produtiva alterou-se significativamente por meio do
desenvolvimento científico. A economia, em sua dimensão micro,
reestruturou-se em face de seu próprio movimento e do ocorrido
com a mundialização no âmbito macro, transformando de modo ra-
dical as relações entre as grandes corporações, bem como o seu pa-
radigma organizacional e de gestão. No plano político, a esfera pú-
blica, primeiro, restringe-se e desregulamenta-se para, em seguida,
regulamentar-se novamente e, assim, possibilitar a expansão do setor
privado, em movimento com origem no Estado, mediante reformas
estruturais orientadas por teorias gerenciais próprias do mundo dos
negócios, em lugar de teorias políticas relacionadas à cidadania, ain-
da que calcadas na concepção liberal.
Nessa nova etapa histórica, a ciência, a tecnologia e a infor-
mação, de que se servia o capital de forma subsidiária em fases an-

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teriores, tornam-se suas forças produtivas centrais, desenvolvidas sob


seu monopólio. O dinheiro converte-se no principal móvel econô-
mico, em virtude do modo de reprodução ampliada do capital, con-
cretizado pelo sistema financeiro via mundialização do mercado. As
corporações transnacionais, escudadas em organizações financeiras,
como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, o Banco Mundial etc., assumem, articuladas com
os governos dos países centrais, o centro do poder mundial, em de-
trimento dos anseios da sociedade civil que supostamente se expres-
sariam no Estado nacional. Como decorrências e componentes estru-
turais dessa nova fase, adquirem dimensão cada vez mais ampla o de-
semprego, a desestatização/privatização do Estado (a mercantilização
da democracia liberal) e a terceirização da economia, legitimados pe-
las concepções ultraliberais, provocando intenso processo de mercan-
tilização de espaços sociais, especialmente, no caso, os da educação.
Tal movimento de mercantilização ocasiona densas mudanças no
ethos das instituições educacionais mediante novas relações com a so-
ciedade e reformas educacionais assentadas no trabalho abstrato, pró-
prio dessa nova forma histórica do capitalismo mundial e brasileiro,
isto é, tendo-o como eixo central de sua estruturação e organização.
Nesse momento, as relações entre capital e trabalho tendem a con-
formar um campo novo para a esfera educacional. Diante da mate-
rialidade desse quadro, os trabalhadores são induzidos a assumir, por
meio da educação, uma postura de permanente busca por capacitação
continuada para torná-los reempregáveis. Suas qualidades subjetivas
devem ser entendidas como mercadorias, algo objetivo a ser adquiri-
do como condição de sua empregabilidade numa sociedade cada vez
mais sem emprego, situação resultante da ruptura da racionalidade
histórica do momento brasileiro que finda. Trata-se, pois, da incor-
poração do perverso processo de culpabilização do trabalhador em
face de seu eventual fracasso no mercado de trabalho.
Como se pode observar, a partir da segunda metade da década
de 1990, vários traços culturais que fundam as relações sociais bra-
sileiras repõem-se sob nova feição histórica. O viés tecnicista da edu-
cação brasileira, como meio eficaz para o desenvolvimento, atualiza-
se num pacto social entre antagônicos e sob a égide de um governo
central pragmático, popular e democrático, em vez de sob os ditames
autoritários da finda ditadura militar. Ilustração disso é a desconti-
nuidade dos movimentos sociais que reivindicavam políticas públicas
para o atendimento do déficit social e produtivo dos anos 1980,
quando, hoje em dia, organizações não governamentais reclamam,
com recursos públicos ou não, nacionais ou estrangeiros, o que antes
era considerado direito social subjetivo do cidadão. A qualificação e
a formação profissionais são um exemplo bem acabado dessa ruptura.

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A Central Única dos Trabalhadores, por exemplo, faz uso intensivo,


para esse fim, das verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)
– também o fazem organizações não governamentais, como a Uni-
trabalho. Trata-se, no momento atual, de uma realidade muito com-
plexa constituída por condensação de múltiplas realidades históricas,
portanto, de difícil apreensão. No campo da política, as políticas pú-
blicas para o social, com destaque das para a educação, outrora de
demanda da sociedade civil, tornaram-se políticas de oferta assenta-
das num orçamento orientado pelas agências multilaterais e por um
Congresso Nacional fisiológico, fato possível dada a reforma do Es-
tado e os fatores anteriormente delineados. A feição histórica atual
do capitalismo no Brasil produziu uma regulação social que procura
a “nova institucionalidade” assentada na busca do consenso entre
antagônicos, por meio de negociação submetida à política econômi-
ca assumida desde o início dos anos 1990.
Em acréscimo, vale destacar que a economia tem experimenta-
do avanços significativos, que, contraditoriamente, se contrapõem à
pobreza da população e ao descaso oficial com as políticas sociais. In-
telectuais conservadores atuam agressivamente, tirando partido dessa
contradição, e produzem a cultura do medo – medo de um endure-
cimento do regime político no País, reiterável na América Latina, que
seria realizado por políticos oportunistas, num quadro de ausência de
densidade histórica partidária, mas na presença de um fazer político
prenhe de patrimonialismo revitalizado sob novas formas históricas.
Trata-se, pois, de momento histórico crucial. E cenário de uma
verdadeira ditadura dos símbolos, do presente e do aparente, que
obscurece a visão e o entendimento da realidade social, quando, para
usar célebre expressão, o vício faz falso elogio da virtude para per-
petuar-se – em outros termos, quando a forma como se apresenta a
realidade, diante da força brutal do capital sobre o trabalho, dispensa
mediações ideológicas. Despe-se a realidade e mostra sua incômoda
nudez. Na aparência, tudo parece mover-se para que o todo perma-
neça aparentemente estático diante do esforço humano de sobrevi-
vência. A objetividade social produzida historicamente pelo homem
apresenta-se como uma segunda natureza, tal o seu nível de fra-
gmentação e aparente virtualidade. Ilude, assim, quem a produz e a
reproduz e por ela é produzido e reproduzido. Essa ilusão constitui
a exata naturalização do que existe de mais cruel, objetivo e histórico:
a forma fenomênica do capitalismo contemporâneo não percebida na
produção histórica e cotidiana do ser humano. A cotidianidade é
marcada pela heterogeneidade, pela fragmentação e pela imediatici-
dade, isto é, pela necessidade de o ser humano dar respostas automá-
ticas – sem reflexão sobre o meio em que vive – a suas necessidades.
Isso conduz, no universo diário, a grande maioria da sociedade a ver

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o mundo por meio do superficial e aparente, tendo, como critério de


verdade, a potência de verdade produzida pelo conhecimento e, como
epicentro de sua moral, a utilidade em vez da história (Nietzsche).
Nesse contexto, observados o campo das políticas de educação
nos últimos dez anos e a trajetória unilinear da economia e das po-
líticas sociais, que se desenvolvem ancoradas nos princípios básicos
delineados anteriormente, verificam-se muito mais continuidades do
que rupturas. O novo, por ora, está muito mais no plano do ideali-
zado e expresso em dois instrumentos legais, que depedem de apro-
vação no Congresso Nacional, do que revelado por políticas efetivas.
O primeiro – uma proposta de emenda constitucional (PEC) regula-
mentando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização do Magistério (Fundeb) – pretende estender
para a educação básica (educação infantil, ensinos fundamental e mé-
dio) as diretrizes, coordenadas e ações que até hoje, desde 1996 (EC
14/96; lei n.º 9.424/96 e decreto n.º 2.264/97), restringiam-se ao en-
sino fundamental – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do En-
sino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). O segun-
do, no formato de uma lei da reforma da educação superior, procura
estabelecer-lhe normas gerais e regular a educação superior no sistema
federal de ensino, alterando a lei n.o 5.540/68 e um conjunto de outras
leis complementares atinentes à educação, particularmente à superior.
Como é evidente, nenhuma PEC ou lei comporta toda a “re-
forma” ou toda a “política” pública em andamento no campo da
educação ou de qualquer outra área específica das políticas sociais
públicas. O alcance e os limites do Fundeb decorrem das políticas e
práticas educacionais dos últimos anos, que podem se contar em dé-
cadas, embora predominem as mais recentes. São as contradições da
economia e da sociabilidade constituída sob o domínio do capital,
com sua face contemporânea, que condicionam o essencial das po-
líticas e práticas educacionais constitutivas da “reforma” em curso.1
Entre os aspectos mais importantes das práticas educativas no
Brasil, atualmente, cabe aqui destacar um, que tem sido marca es-
sencial da reforma do Estado, patrocinada pelo governo de Fernan-
do Henrique Cardoso (FHC) desde 1995, isto é, a dimensão gerencial
que deveria presidir essa reforma do aparelho estatal e que se estende
à administração e gestão da educação básica e das escolas públicas.2
Além da administração do aparelho do Estado e das políticas públicas
em moldes empresariais, dissemina-se e fortalece-se, a cada dia mais,

1 Esse é o tema desenvolvido por Celso Carvalho, em seu texto “Reforma da educação no contexto de
crise do capitalismo contemporâneo”, desta 40.a edição da Impulso. Sobre o alcance e os limites do Fun-
def e do Fundeb, neste dossiê “Educação & Política”, tratará Lisete Arelaro, com seu artigo “Educação
Básica no Brasil no Século XXI: tendências e perspectivas”.
2 Esse é o tema que João Ferreira de Oliveira e Marília Fonseca abordam em seu texto “A Educação em
Tempos de Mudança: reforma do Estado e educação gerenciada”, deste número da Impulso.

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a tese de que a educação, em especial a superior, é um bem de serviço


privado, muito mais que público, cujas agências deveriam ser geridas
sob os princípios da administração gerencial. É a lógica do capital, fun-
dada também na idéia de que os bens privados se produzem e repro-
duzem ao impulso da competição ou competitividade, a impor-se gra-
dativa e celeremente nos domínios da educação e do saber, agora mui-
to mais valorizados que outrora como importante mercadoria ou qua-
se-mercadoria dos novos modos de acumulação.
A proposta de nova lei da reforma da educação superior, que,
rompendo com a continuidade das políticas anteriores, visaria o for-
talecimento do setor público (com efetivação da autonomia, garantia
de financiamento para prover as necessidades correntes e de expan-
são, ampliação do percentual de matrículas públicas sobre o total do
sistema etc.) e a regulação e o controle do setor privado (por meio de
contenção da expansão em especial das privadas comerciais, aumento
significativo das exigências de qualificação e vinculação integral do
corpo discente etc.) está condicionada por muitos fatores. Antes de
tudo, pelo modelo de desenvolvimento e pelas características da ma-
croeconomia, que dão continuidade aos ajustes ultraliberais promo-
vidos desde o governo Collor de Mello e consolidados no octênio de
FHC. Esse modelo faz das políticas sociais compromissos estatais de
segunda ordem. Nesse sentido, os recursos orçamentários a elas des-
tinados não poderiam pôr em risco as diretrizes básicas garantidoras
da dita governabilidade do País, no contexto da mundialização do ca-
pital e da crescente subalternização nacional ao capitalismo financeiro
internacional. A prioridade número um é o pagamento do serviço da
dívida externa, garantido por exorbitantes índices estabelecidos de
superávit primário, entre outras medidas. Como acreditar, pois, que
seja aprovada, primeiro no Congresso Nacional, depois sancionada
pela presidência da República, ouvida a área financeira, uma proposta
de financiamento, por exemplo, que cubra as necessidades atuais, re-
cupere o déficit dos dez anos anteriores e garanta a expansão do setor
público da educação superior até atingir 40% das matrículas?3
A proposta de lei de reforma da educação superior está condi-
cionada pela legislação anterior que regulamentou, via decretos e
portarias, no governo passado, aspectos essenciais da Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (lei n.º 9.394/96).4 Porém, é ne-
cessário enfatizar que os condicionantes maiores e mais imediatos
decorrem de legislação aprovada durante os dois primeiros anos do
atual mandato presidencial.

3 A questão do financiamento, em especial a sua vinculação com os procedimentos de avaliação da educa-


ção superior, prática comum nos anos recentes, é abordada por Nelson Cardoso Amaral, em seu ensaio “A
Vinculação Avaliação/Financiamento na Educação Superior Brasileira”, neste dossiê “Educação & Política”.
4 Esse conjunto de leis e seu significado é o tema que Carlos da Fonseca Brandão trata em seu texto
“Política educacional para a Educação Superior Brasileira na Última Década”, deste número da Impulso.

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Entre os instrumentos legais aprovados sob a atual administra-


ção federal, devem ser mencionadas três outras leis, que afetam di-
reta ou indiretamente o subsistema de educação superior e condicio-
nam a nova lei da reforma universitária. Isso, sem contar a aprovação
do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, substituin-
do o Exame Nacional de Cursos (Provão), ainda em fase de teste e
sob críticas importantes quanto a seu efetivo respeito à autonomia
universitária e mesmo à sua eficiência.
A primeira dessas leis é a de n.º 10.973 (Lei de Inovação Tec-
nológica), de 2 de dezembro de 2004, que dispõe sobre incentivos
à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produ-
tivo. Ela cria estímulos e facilidades para a utilização dos recursos –
físicos, materiais e humanos – das universidades pelas empresas. Per-
mite a transferência de tecnologia desenvolvida nas universidades
para as organizações, viabiliza a alocação de recursos públicos nos
projetos ditos de inovação e prevê a gratificação dos pesquisadores
cujos conhecimentos venham a ser aproveitados pelas empresas.
Considerando a extremamente baixa remuneração salarial dos do-
centes/pesquisadores das instituições de ensino superior públicas,
prevê-se uma importante interferência exógena na agenda universi-
tária, contribuindo para acentuar os traços, cada dia mais evidentes,
da heteronomia na vida universitária, em lugar da autonomia cons-
titucional, jamais de fato efetivada.
A segunda é a lei n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que
institui normas gerais para licitação e contratação de parceria públi-
co-privada (PPP) no âmbito da administração pública. Ela estabelece
e possibilita a parceria do Estado com empresas privadas nas mais di-
ferentes áreas da produção e do comércio de bens e serviços de na-
tureza pública e coletiva, isto é, pesquisa, desenvolvimento tecnoló-
gico, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, incluindo edu-
cação e ensino. O pressuposto a justificar a instituição das PPP seria,
por um lado, a baixa capacidade de investimento estatal e, por outro,
a suposta superioridade gerencial privada. É evidente que a imple-
mentação das PPP irá fortalecer o pólo privado do Estado, uma vez
que os recursos do Fundo Público estarão sendo gerenciados – cons-
tituindo natural fonte de lucro e apropriação – por entidades e
organizações privadas, com ou sem fins lucrativos.5
Por último, a lei n.º 11.096, de 13 de janeiro de 2005, cria o
Programa Universidade para Todos (ProUni) e regula a atuação de
entidades beneficentes de assistência social no ensino superior. Com
essa lei, a pretexto de “publicização” do privado e numa aplicação
lato sensu do espírito das PPP no ensino superior, fortalecem-se as

5 Cf. SGUISSARDI, V. “La universidad brasileña en tiempos de Lula”. Revista de la Educación Superior,
México, v. XXXIV (2), n. 134, p. 149-153, abr.-jun./05.

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instituições privadas comerciais de ensino, exatamente no sentido


oposto do que pretenderia, como um de seus objetivos nucleares, a
nova lei da reforma da educação superior a ser encaminhada pelo
Poder Executivo à discussão do Congresso Nacional. “Ao invés da
criação de centenas de milhares de vagas nas universidades públicas,
para o que já existiria espaço físico no período noturno (70% das
matrículas são diurnas), a baixo custo e razoável qualidade, aprovou-
se a possibilidade de troca de cerca de 10% das vagas das instituições
privadas ou 8,5% da receita bruta, na forma de bolsas para alunos
egressos de escolas públicas, entre outros, em troca de isenção de um
conjunto de impostos”.6
Dada a força dos lobbies da educação mercantilizada sobre o
Congresso Nacional, recentemente manifestada com rara eficiência
na reconfiguração da proposta governamental relativa ao ProUni, é
de se prever que não apenas a legislação em vigor torne-se um em-
pecilho à plena eficácia da nova lei, caso seja aprovada como foi en-
caminhada ao Congresso, mas, sobretudo, o serão as mudanças que
ali, na suposta casa do povo, poderá sofrer a proposta original.
Retomando, para fecho dessas reflexões, o mote da cultura do
medo, que resulta da exploração reacionária das contradições gera-
das no confronto dos avanços da economia com o recrudescer da
pobreza, da miséria e da exclusão, pode-se afirmar que essa cultura
– estampada no cenário socioeconômico nacional – encontra um lu-
gar institucionalmente organizado pelas reformas educacionais para
a sua mais eficiente difusão. Descobre nas reformas um espaço que
lhe possibilita tornar-se, por um lado, a melhor estratégia para a
ofensiva neoconservadora e, por outro, o embrião da perspectiva
educacional para o século XXI, que, em termos mais precisos, deverá
conduzir à formação de seres humanos tendencialmente solitários,
mudos, amedrontados, úteis... e desumanamente sem liberdade. Di-
ante dessa perspectiva, parece não restar mais que a indignação e a
resistência, as quais, na cotidianidade, poderiam traduzir-se, dada a
relativa autonomia ainda possível nas instituições escolares, na con-
cretização de reformas às avessas. Em outras palavras: na busca por
superar a miséria, a subserviência e a exploração humanas, marcas da
história passada e presente, e concretizar práticas efetivas de intensi-
ficação humana cujo valor maior seja a liberdade.

Piracicaba e São Carlos, inverno de 2005

6 Ibid. O tema do ProUni e sua relação com a questão da renúncia fiscal são tratados, neste número da
Impulso, por Cristina H. A. de Carvalho e Francisco L. C. Lopreato, no texto “Finanças Públicas,
Renúncia Fiscal e o ProUni no Governo Lula”.

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Educação Básica
Elementary Educatio n

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Reforma da Educação no
Contexto de Crise do
Capitalismo Contemporâneo
EDUCATION REFORMS IN THE CONTEXT OF
CRISIS OF CONTEMPORARY CAPITALISM * 1
Resumo A década de 1990 marcou um dos momentos mais significativos no
campo das relações entre o Estado, a sociedade e a educação. Nesse sentido,
grande parte do debate acerca das relações entre o mundo do trabalho, a educação
e as reformas educacionais foi profundamente informado e direcionado pelas
transformações do capitalismo contemporâneo. As formas e as faces dessas
mudanças têm mostrado o caráter contraditório da sociabilidade constituída sob o
capital e seus impactos nos processos de produção e reprodução da vida. O objetivo
deste artigo é apresentar algumas considerações acerca das questões mais gerais que
envolvem as transformações pelas quais passa o capitalismo e a sua apropriação
no debate sobre a educação e nas reformas educacionais contemporâneas. CELSO CARVALHO
Centro Universitário
Palavras-chave EDUCAÇÃO – TRABALHO – CAPITALISMO – FORMAÇÃO – Nove de Julho (Uninove)
cpfcarvalho@uol.com.br
COMPETÊNCIAS.

Abstract The 1990’s marked one of the most significant moments in the field of
the relationships among the State, society and education. In that sense, great part
of the debate concerning the relationships among the work world, education and
educational reforms was deeply informed and addressed by the transformations
of contemporary capitalism. The forms and the faces of those transformations
have showed the contradictory character of the sociability constituted under
capital and its impacts on the production processes and reproduction of life. Our
objective in this article is to introduce some considerations concerning the most
general subjects that involve capitalism’s most important transformations, and its
presence in the debate on education and contemporary educational reforms.

Keywords EDUCATION – WORK – CAPITALISM – FORMATION – COMPETENCES.

*1 Este artigo é uma aproximação inicial de algumas questões teóricas que subsidiam o projeto de pesquisa
“O trabalho educativo no contexto das reformas do ensino médio na década de 1990”. Ele faz parte do
programa “Competências e Prática Social: o trabalho como organizador e estruturador das reformas
educacionais brasileiras na Educação e sua concretização nas instituições escolares nos primeiros anos do
século XXI”, coordenado pelos professores João dos Reis Silva Junior. (UFSCar) e Celso Ferretti (Uniso).
Seu objetivo é procurar compreender se (e como) o trabalho educativo e o cotidiano escolar foram (ou
não) impactados pelas reformas educacionais da última década.

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Conclamar as pessoas a acabar com as ilusões acerca de


uma situação é conclamá-las a acabar com uma situação
que precisa de ilusões.
KARL MARX

INTRODUÇÃO

N
o plano mais amplo da vida social, as décadas recentes,
notadamente os últimos 30 anos, têm sido primorosas
no sentido de expor as contradições que movem a ló-
gica social sob o capitalismo. Nesse contexto, um con-
junto imenso e orgânico de reformas foi anunciado e
apresentado mundo afora – por meio de intensa ação
político-institucional das organizações multilaterais
construídas pelo capital, no período do pós-guerra –
como necessário ao enfrentamento da crise do capital.
O pressuposto inicial a orientar as reformas era o de que as trans-
formações em processo no capitalismo mundial não comportavam mais
os modos de organização criados no ambiente imediato do pós-guerra;
ou seja, o chamado Estado de bem-estar social, experiência histórica que
marcou a sociabilidade, em especial a européia, até a década de 1980, não
possuía mais viabilidade. Esse movimento afirmava a necessidade de
construir novas formas de relacionamento entre o Estado e a sociedade,
modificando os procedimentos de gestão, captação de recursos, financia-
mento e distribuição do fundo público. Apontava também a importância
de uma profunda redefinição nas responsabilidades do Estado perante a
população, incluindo educação, saúde e previdência. O discurso oficial di-
zia que as reformas possibilitariam ao Estado economizar recursos e con-
centrá-los nas questões sociais, mas não explicava como tais ações seriam
possíveis, tendo em vista que um de seus aspectos era a transformação de
estabelecimentos organizados e geridos pelo interesse público em espa-
ços a serem ordenados ou gerenciados segundo a lógica do privado, com
a conseqüente diminuição da ação do Estado e sua participação no fundo
público. Nesse sentido, é possível compreender a ênfase empreendida pe-
los reformistas em criticar a capacidade gerencial do Estado, evitando, as-
sim, o debate central, ou seja, a regulação dos mecanismos de distribuição
e apropriação de recursos do fundo público e o papel do Estado nos pro-
cessos de acumulação.
Um dos pressupostos centrais a orientar a estratégia dos refor-
mistas foi a subsunção do debate político ao técnico ou, mais precisa-
mente, o político apresentado como técnico. No Brasil, tal estratégia
adquire maior visibilidade a partir dos finais da década de 1980 e início
da seguinte. A discussão sobre a reforma do Estado, no nosso caso,
deu-se com base em uma falsa dicotomia: o confronto entre o “velho”
e o novo. Para os reformadores, o velho era entendido como o Estado
construído e moldado na chamada era Vargas: interventor, regulamen-

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tador e responsável pelo controle de significati- projetos de reformas institucionais os mais am-
va parcela do setor produtivo, sobretudo o da plos. O campo da educação tornou-se estratégico
indústria de base. O novo foi apresentado como para a constituição de um novo ser social, apto a
o Estado mínimo, produto das novas demandas responder às demandas postas pela reestrutura-
de um mundo cada vez mais globalizado e a re- ção produtiva, pela inovação tecnológica, pelo
querer grande capacidade de adequação às exi- neoliberalismo e pela globalização da economia.
gências postas pelo desenvolvimento econômi- Uma imensa concentração de recursos foi dispo-
co-social de um capitalismo já sem fronteiras e nibilizada pelas forças a serviço do capital, mobi-
caminhando rapidamente para a superação das lizando intelectuais individual e coletivamente,
tradicionais formas de representação da nacio- levando a uma significativa produção acadêmica.
nalidade. Um mundo globalizado e sem frontei- Passadas duas décadas, o avanço dessa barbárie e
ras econômicas possibilitaria a todos não so- de práticas sociais que a acentuam revela-se mais
mente o acesso a produtos e serviços mais ba- intenso, tornando inepto o discurso ideológico
ratos e de melhor qualidade, mas também a reiterado pelas forças do capital.
obtenção de créditos mais baratos. Dessa ma- O DISCURSO ECONOMICISTA E SEUS IMPACTOS
neira, o discurso acerca da globalização da eco- NA EDUCAÇÃO
nomia e da liberalização dos mercados de pro- A observação da conjuntura dos últimos 30
dução e consumo passou a fazer parte da agenda anos não é motivo de consenso. Vários estudos
política brasileira. importantes, que influenciaram o debate educa-
Desfeito o sonho de uma sociedade abun- cional na década de 1990 e mostraram-se signifi-
dante e para todos, em que o desenvolvimento cativos na elaboração, gestão e implementação
das forças produtivas seria eterno, passamos a viver das reformas educacionais, apresentam arcabou-
a perspectiva da riqueza possível e não para to- ços teóricos e perspectivas de análise diferentes.1
dos. Se a crise do capital expõe suas contradições As diversas agências multilaterais, as organiza-
e fragilidades no plano concreto e reafirma a im- ções empresariais nacionais, como a Confedera-
possibilidade da realização do ser, ela também de- ção Nacional da Indústria (CNI) e o Pensamento
sencadeia processos de construção ideológica e Nacional das Bases Empresarias (PNBE), os dife-
de explicação dos novos modos de manifestação rentes setores da burocracia estatal envolvidos na
da vida. Para esse fim, os intelectuais orgânicos a reforma da educação, especialmente os Ministé-
serviço do capital, sejam eles individuais sejam rios da Educação e do Trabalho, além de signifi-
coletivos, articulam-se e começam a produzir, em cativa parcela de pesquisadores das mais diversas
oposição aos críticos do capital, uma nova con- procedências compreenderam tal conjuntura não
cepção de mundo. A exposição das maneiras como a crise do capital, e sim um período de
mais bárbaras de reprodução da vida social sob o transformações no capitalismo.2
capitalismo e a construção ideológica de sua ex- Para esse imenso grupo, estava ocorrendo
plicação têm sido objeto de intensas críticas e um conjunto de mudanças em uma forma parti-
embates. Em outras palavras, há um espaço de 1 Autores como HARVEY (1992), BRAGA (1997), COGGIOLA
confronto e disputas no campo ideológico e de (2002) e MÉSZÁROS (2002), embora apresentem apreciações distin-
construção hegemônica, embora elas tenham tas, particularmente acerca das origens da crise, afirmam que as
condições de vida dos trabalhadores no mundo modificaram-se pro-
pendido, pelo menos nos últimos anos, para as fundamente e as suas conseqüências, no plano social, político e cultu-
forças reacionárias e conservadoras. ral, ainda estão a mostrar a face mais horrenda do capital.
2 Essa leitura, oferecida pela escola da regulação, afirma que, por meio
O impacto desses processos no plano da da crise e de seu processo de reestruturação, o capital estaria gestando
as bases materiais e sociais de um novo regime de acumulação apoiado
cultura, da economia, da política e das institui- em um novo método de produção. Os fundamentos dessa nova
ções sociais tem sido enorme. As ações desenca- ordem seriam uma combinação de novas tecnologias de informação,
novas formas sociais de organização da produção e novos padrões de
deadas pelas forças do capital para superar essa demanda e de consumo. Para uma crítica a essa tese, cf. especialmente
crise materializaram-se, ao longo dos anos, em BRAGA, 1997.

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cular assumida pelo capitalismo no século XX: o chamada acumulação flexível, parte considerável
fordismo.3 Supunha-se que chegara ao fim um do debate educacional incorporou a defesa da ne-
período de acumulação e de organização social rí- cessidade de repensar os processos formativos.
gido, construído no pós-guerra e apoiado na li- Modificações na formação e na qualificação pro-
nha de montagem, na produção em série e mas- fissional dos trabalhadores foram insistentemen-
sificada, na grande divisão técnica do trabalho, na te anunciadas como urgentes pelas agências mul-
regulamentação da vida social e no Estado prove- tilaterais e incorporadas nos documentos que re-
dor. No espaço produtivo, tais transformações ferendaram a discussão e as reformas educacio-
desencadearam uma intensa reorganização da nais naquela década.
produção, envolvendo a introdução de novas tec- No espaço social mais amplo, a expressão
nologias, especialmente de base microeletrônica, desse processo deu-se por meio de um conjunto
e novos modos de gestão e organização do tra- de ações políticas direcionadas à reforma do Es-
balho, como just in time, produção em células, tado, a fim da desregulamentação do espaço eco-
novas máquinas CNCs (Comando Numérico nômico, da destruição de direitos sociais dos tra-
Computadorizados) etc. Esse novo momento de balhadores e da materialização de condições que
construção das relações sociais de produção capi- aceleraram a mercantilização da constituição e a
talista foi chamado por vários autores de acumu- formação do ser social, com destaque para a es-
lação flexível.4 fera educacional.
Diferentemente do fordismo, a acumula- A discussão sobre a formação e a qua-
ção flexível apresentava novas formas de organi- lificação profissional foi fortemente informada
zação do trabalho: flexibilidade organizacional, por uma concepção determinista, que estabeleceu
produção voltada à segmentação e intensa disse- relações diretas entre mudanças nos processos de
minação de tecnologias de base microeletrônica. trabalho e requisitos de formação e escolarização.
A empresa integrada e flexível estaria agora a de- Em um primeiro momento, a tese de que as no-
mandar novas exigências para a formação e a qua- vas formas de organização do trabalho e seus
lificação profissionais dos trabalhadores. Segun- processos produtivos estariam a demandar novas
do diferentes autores,5 esse conjunto de transfor- habilidades do trabalhador, particularmente cog-
mações era representativo de um sistema de mai- nitivas e atitudinais, mostrou-se hegemônica.
or amplitude, ou seja, as mudanças não estariam Comum a essas análises eram o determinismo
ocorrendo apenas nos processos produtivos, e econômico, a defesa de uma formação ampla, a
sim nos de regulação social e no metabolismo so- valorização da educação básica como condição
cial do capitalismo. Nesse contexto, compreen- para a construção de qualificações de alto nível, a
der os modos de produção e reprodução da vida defesa da educação continuada, para todos, de
social exigia verificar a materialização das novas
qualidade etc. A escolarização da população tor-
maneiras de expressão material da vida. Assim, na
nou-se fundamental para atender as demandas de
3 Para HARVEY (1992), o regime de acumulação fordista insere-se no
um setor produtivo em rápido processo de trans-
contexto da teoria da regulação, que o define como um regime de acu- formação. Esse espírito, já manifestado na Con-
mulação. Teve a sua origem nos EUA e, no pós-guerra, irradiou-se para
o mundo, aliando os princípios tayloristas (divisão do trabalho manual
ferência Mundial de Educação Para Todos, orga-
e intelectual) – pesquisa e desenvolvimento, engenharia e organização nizada pela Unesco em 1990,6 tornou-se lugar-
racional do trabalho.
4 A tese da acumulação flexível, do pós-fordismo, da especialização fle- comum nos documentos elaborados pelas agên-
xível, do toyotismo e de outras denominações similares ocupou cias multilaterais. Essa proximidade entre condi-
importante espaço na produção acadêmica nas áreas de sociologia do
trabalho e trabalho e educação. A obra de HARVEY (1992) é impor- ções de produção e políticas de formação teve
tante referência para esse debate.
5 Cf. KATZ & COGGIOLA, 1996; BRAGA, 1997 e 2003, especifica-
como referência mais ampla as teses sobre a
mente a primeira parte; e COGGIOLA, 2002, em particular os capítu-
los 9 e 10. 6 Cf. UNESCO, 1990.

24 Impulso, Piracicaba, 16(40): 21-33, 2005


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globalização da economia, o neoliberalismo, a indivíduo naturalizado, de uma sociedade sem


reestruturação produtiva e a pós-modernidade. história e sem contradições, presentes, por exem-
Diante dessa perspectiva de análise conjun- plo nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacio-
tural tão ampla, o debate sobre formação e as re- nais) depararam-se com a dura realidade das es-
lações entre educação e trabalho revelou-se am- colas públicas. Nelas, professores e alunos, sujei-
plo e intenso e, em momento algum, consensual. tos históricos e concretos, viviam o embate coti-
Questões como a estrutura, as condições e os ob- diano posto pela necessidade de reprodução de
jetivos de uma educação voltada à formação para sua condição em uma sociedade historicamente
o trabalho e a cidadania, assim como os conceitos contraditória.
de competências, empregabilidade,7 laboralidade, As teses que faziam a apologia da capaci-
pedagogia da qualidade, empreendedorismo e ou- dade de o mercado regular as relações sociais de
tros orientaram a discussão em todos os espaços um Estado mínimo, mas eficiente e gestor, e de
em que a educação se fez presente. um indivíduo dotado de liberdade e oportunida-
No cenário social mais amplo, a associação de de escolha tornaram-se discurso ideológico,
entre as transformações no capitalismo e a neces- diante do acirramento da violência urbana, da
sidade de reformas institucionais, reiterada cons- pauperização social e da impossibilidade da liber-
tantemente pelo discurso oficial, assumiu certa dade do indivíduo diante de uma sociedade mar-
condição hegemônica. Tal fato levou à diminui- cada pela divisão social do trabalho e do abando-
ção do espaço para a discussão acadêmica, à des- no, pelo Estado, de compromissos históricos
qualificação dos críticos das reformas e à tentati- como a busca da igualdade e da justiça social. As-
va de imposição de um pensamento único. Esse sim, o fetichismo da mercadoria e o predomínio
ambiente impositivo e limitador do debate cons- da aparência, do pragmatismo, da mercantilização
tituía uma das faces de um movimento maior, de e do assistencialismo, que informaram e direcio-
caráter ideológico e objetivando a construção de naram os pressupostos das reformas educacio-
um consenso que, ao mesmo tempo em que ne- nais, ganhando vida nos documentos oficiais, no-
gava a centralidade do trabalho e seu caráter tadamente nas diretrizes e nos parâmetros curri-
ontológico, procurava desqualificar o marxismo culares nacionais, revelaram-se elementos-chave
como referência, na mesma linha de teses que para a constituição de um espaço educacional in-
anunciavam o fim da história, a crise da moder- capaz de produzir a crítica e o objetivo maior da
nidade e o fim da sociedade do trabalho. educação: a intensificação da condição humana.
Esse intenso movimento político e ideoló- O que fica é uma perspectiva de formação de um
gico mostrou-se incapaz de, apenas no plano cidadão útil, solitário, mudo e patético.8
gnosiológico, impedir a manifestação e exacerba- Essa sociedade (pós-moderna, pós-indus-
ção das contradições do capital. A apologia pós- trial?) não mais comportaria trabalhadores com
moderna do efêmero, do transitório, do multi- apenas a especialização funcional do posto de
cultural não encontrou concreticidade diante das trabalho típica do fordismo. A formação do
necessidades de reprodução do capital e da radi- novo trabalhador implicaria o desenvolvimento
calização da unilateralidade imperialista. No pla- de novas competências, a fim de atender às de-
no das reformas educacionais, concepções de um mandas da empresa integrada e flexível: um tra-
balhador com maior capacidade de concentração
7O conceito de empregabilidade é recente no discurso oficial e na fala
da burguesia. Origina-se do pressuposto de que, mais do que estar
e de participação nas decisões e na resolução de
empregado, é necessário estar sempre em condições de ser empregado, problemas.
derivando-se dessa questão todo um discurso em prol da educação per-
manente. Quando empregabilidade e cidadania incorporam-se como Diante da maior complexidade dos proces-
partes do mesmo processo, geralmente revelam um acentuado viés sos produtivos, os trabalhadores deveriam, tam-
mercadológico, reforçando a possibilidade de reduzir a cidadania à
questão do emprego, como um processo individual e descolado dos
movimentos sociais. 8 Cf. SILVA JUNIOR & FERRETTI, 2004.

Impulso, Piracicaba, 16(40): 21-33, 2005 25


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bém, possuir certos conhecimentos científicos e AS CONTRADIÇÕES DO CAPITALISMO E SUA


técnicos que lhes permitissem operacionalizar, APROPRIAÇÃO PELO CAMPO ESCOLAR
monitorar, participar da manutenção das novas Nos debates acerca da educação e das re-
máquinas CNCs, além de contribuir no processo formas educacionais, as teses sobre a sociedade do
decisório.9 Precisariam ainda ter uma formação conhecimento e a pedagogia das competências e o
básica mais ampla, que valorizasse os conheci- enaltecimento das pedagogias que enfatizam os
mentos facilitadores da organização do trabalho procedimentos cognitivos, como o aprender a
em grupos, o desenvolvimento de lideranças, o aprender e, por último, o discurso sobre a peda-
espírito coletivo e o sentimento de responsabili- gogia da qualidade, adquiriram relevância e cen-
dade. Estavam, assim, os trabalhadores diante de tralidade, merecendo, por isso, algumas consi-
derações. Iniciemos pela tese da sociedade do
uma árdua missão: ser multifuncionais, polifun-
conhecimento e da informação.
cionais, em síntese: perfeitos.
Conhecimento e informação são questões
Na constituição desse itinerário, a educação
que permeiam o cotidiano da escola e da cultura
alçou-se à condição de instituição essencial e cen-
escolar e, nos últimos anos, em razão da dissemi-
tral para a realização dos objetivos dos reforma-
nação de tecnologias as mais diversas, notada-
dores. Em consonância com o espírito norteador mente a informática, assumiram papel central na
das Conferências Mundiais de Educação, o dis- educação. Nesse plano, pensar a produção do co-
curso oficial dos empresários e de importantes nhecimento sem refletir sobre os aspectos vincu-
intelectuais passou a afirmar a importância de lados à sua disseminação nos oferece apenas uma
uma sólida educação básica como o meio mais rá- parte da questão.
pido para a elevação das condições sociais, para a Vivemos mesmo em uma época que pode
cidadania e também para o desenvolvimento de ser caracterizada como a do conhecimento e da
novas habilidades, competências e conhecimentos informação? É o conhecimento uma categoria
técnicos essenciais à constituição desse novo tra- abstrata, aistórica, efêmera e instável, como afir-
balhador. Ocorrem aqui dois processos distintos mam os teóricos da pós-modernidade?10 Ou o
e contraditórios e que reforçam a desumanização que vivenciamos é uma época marcada por certas
presente nas propostas de reforma educacional. ilusões acerca da construção do conhecimento e
Em primeiro lugar, a subsunção da condição de da informação?
cidadania à de ser trabalhador. Em um mundo Apenas para mencionar certas ilusões, tão
com cerca de um bilhão de desempregados ou su- presentes no debate contemporâneo, poderia ci-
bempregados, a defesa de tal tese somente reafir- tar aqui as seguintes questões, levantadas por
ma o caráter nefasto do capital. Segundo, a trans- Newton Duarte:
formação do trabalho concreto como condição
para ser cidadão contradiz teses tão presentes no Primeira Ilusão:
corpo teórico das reformas que negam a centra- O conhecimento nunca esteve tão acessível como
lidade da categoria trabalho. Tal contradição ex- hoje, isto é, vivemos numa sociedade na qual o aces-
põe diretamente os limites teóricos desse pensa- 10 Os limites deste artigo impedem que façamos as devidas considera-
mento ou, em verdade, a ausência de um pensa- ções ao uso e aos significados de pós-moderno e pós-modernidade. A
mento teórico consistente. expressão pós-modernidade constitui um questionamento aos postula-
dos básicos da modernidade: verdade, razão, identidade, objetividade,
progresso, as grandes narrativas e a ciência. A pós-modernidade com-
9 Tal perspectiva de integrar o pensar e o fazer foi entendida pelo pen- preende o mundo de maneira diversa, instável, imprevisível, além de
samento hegemônico, no início da década de 1990, como positiva para cética às idéias de ciência, objetividade e história. A expressão pós-
o trabalhador, pois poderia oferecer maior compreensão do processo modernismo procura, no plano da cultura, refletir esses processos, por
de trabalho e, portanto, romper com a lógica do trabalho alienado. O meio de uma arte superficial, efêmera e infundada – aquilo que Fre-
tempo se encarregou de mostrar que essa possibilidade, além de não se drich Jameson chamou de lógica cultural do capitalismo tardio. Para
concretizar, pois o trabalho alienado é parte constituinte da lógica do uma análise crítica dos limites teóricos de pós-modernismo e pós-
capital, contribuiu, sim, para a intensificação do trabalho e para a apro- modernidade, cf. HARVEY, 1992; JAMESON, 1995, 1997a e 1997b;
priação da mais-valia relativa. ANDERSON, 2002; DUARTE, 2001; e EAGLETON, 1998.

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so ao conhecimento foi amplamente democratiza- entre as nações alcança patamares elevadíssimos


do pelos meios de comunicação, pela informática, é, no mínimo, contraditório.
pela Internet etc. A singularidade do cotidiano, por mais que
Segunda Ilusão: possa desenvolver a criatividade e a habilidade,
A capacidade para lidar de forma criativa com situ- não permite a compreensão da totalidade huma-
ações singulares no cotidiano ou, como diria Perre- na, se ficar restrita à mera singularidade. A tese
noud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, é pós-moderna de crise das metanarrativas e da te-
muito mais importante que a aquisição de conheci- oria anuncia-se de maneira interessantemente
mentos teóricos, especialmente nos dias de hoje,
contraditória. Utiliza-se daquilo que critica –
quando já estariam superadas as teorias pautadas
uma teoria pautada nas metanarrativas – para fa-
em metanarrativas, isto é, estariam superadas as
tentativas de elaboração de grandes sínteses teóricas
zer a crítica. Em outras palavras, para criticar a
sobre a história, a sociedade e o ser humano. modernidade, vale-se daquilo que critica (as me-
Terceira Ilusão:
tanarrativas e a teoria).
O conhecimento não é a apropriação da realidade
Tratar o conhecimento como uma questão
pelo pensamento mas sim uma construção subjeti- subjetiva e possuidora de valores idênticos nos
va resultante de processos semióticos intersubjeti- remete à seguinte pergunta: o conhecimento es-
vos nos quais ocorre uma negociação de significa- taria condicionado por uma situação em que não
dos. O que confere validade ao conhecimento são há mais hierarquias, e sim diferenças, ou seja, não
os contratos culturais, isto é, o conhecimento é seria mais possível falar que algo é melhor, mas
uma convenção cultural. apenas diferente? Essa relativização carrega con-
Quarta Ilusão: sigo um forte conteúdo culturalista, que atribui à
Os conhecimentos têm todos o mesmo valor, não formação e à constituição do ser social um pro-
havendo entre eles hierarquia quanto à sua qualida- cesso destituído de valor. Desconsidera que esta-
de ou quanto ao seu poder explicativo da realidade belecer valores hierárquicos faz parte da socia-
natural e social. bilidade social e que tal hierarquização não pres-
Quinta Ilusão: supõe somente partir dos interesses das elites.
O apelo à consciência dos indivíduos, seja através Democracia, por exemplo, não é ausência de hie-
das palavras, seja através dos bons exemplos dados rarquia, mas a hierarquização da sociedade com
por outros indivíduos ou por comunidades, consti- base nos interesses e valores mais populares.
tui o caminho para a superação dos grandes proble- Transformar o apelo à consciência dos
mas da humanidade. Essa ilusão contém uma outra, indivíduos no caminho para a resolução dos gran-
qual seja, a de que esses grandes problemas existem des problemas da humanidade é transfigurar estes
como conseqüência de determinadas mentalidades.
em conflitos de consciência, como se a consciên-
As concepções idealistas da educação apóiam-se to-
cia humana fosse produto da subjetividade pre-
das nessa ilusão.11
sente no desenvolvimento natural da sociabilida-
Como admitir que o conhecimento está de humana. Reduzir as diferenças econômico-
acessível a todos, em um cenário de intensificação sociais a diversidades naturais é tornar abstrato,
da concorrência e de transformação da ciência em idealista e subjetivo o debate acerca do conheci-
força produtiva? De qual conhecimento se está mento e de sua apropriação.
falando? Anunciar o acesso amplo ao conheci- Como interpretar tanta ilusão? Do ponto
mento num momento em que o controle sobre de vista ideológico, ela cumpre o papel de obscu-
as patentes aumenta, em que a diferença na gera- recer e enfraquecer a crítica mais radical ao capi-
ção de tecnologia aparta os países numa velocidade talismo. Ao substituir categorias como classe,
jamais vista, em que o investimento proporcional contradição, trabalho, verdade, razão e história por
ética, ecologia e multiculturalidade, seu objetivo é
11 DUARTE, 2003, p. 14-15. legitimar a afirmação da crise da modernidade, de

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suas metanarrativas, dos processos sociais co- nologias de base física e gerencial. Com a defi-
letivos e das grandes transformações históricas. nição de novos procedimentos de atribuição do
Almeja-se a morte da história e dos sujeitos dela trabalho, de remuneração e de produção, o dis-
portadores. Ficam apenas o vazio e a incapacida- curso calcado nas competências buscou legitimar
de da emancipação universal. e dar caráter científico às demandas por novos re-
Uma segunda questão importante é o dis- quisitos de formação. O impacto da apropriação
curso sobre a educação orientar-se pela pedagogia do conceito de competências para as relações de
das competências. O caráter polissêmico do con- trabalho e para a organização sindical é significa-
ceito de competências requer que sua análise crí- tivo. Historicamente, os trabalhadores definiram
tica e apropriação, diferentemente daquela dos sua organização sindical com base em suas qua-
reformistas da educação e do modismo preco- lificações profissionais, tornando possível a exis-
nizado pelas pedagogias do aprender a aprender, tência de sindicatos fortes, atuantes e organiza-
realize-se profunda e amplamente. Essa é a con- dos, indispensáveis à negociação das condições e
dição indispensável para que a crítica mostre a da remuneração do trabalho. A noção de compe-
estreiteza com que tal pedagogia concebe a for- tências dilui a especificidade do ser trabalhador.
mação humana. Iniciemos pela definição do con- Cada um e de modo diferente possuiria uma car-
ceito de competências. teira de competências habilitando-o a inserir-se ou
Tal noção não é nova, mas sua presença nos não no mercado e a negociar o valor de seu tra-
discursos sociais e científicos, nas propostas de balho e suas condições. Rompe-se, assim, com as
reformas educacionais e no debate sobre for- concepções de classe e de sindicato, tornando frá-
mação para o trabalho é relativamente recente. gil os elos e as possibilidades de organização dos
Segundo Ropé e Tanguy, trabalhadores.
Como a idéia de competências chegou à
A utilização desse termo aumentou entre os espe- escola? Na década de 1980 ocorreu uma intensa e
cialistas das ciências sociais, que o empregam, na profunda redefinição pedagógica na Europa.
maior parte dos casos, no plural, para designar os
Movimentos de longa duração, como a raciona-
conteúdos particulares de cada qualificação em uma
lização e a intelectualização, passaram a orientar
organização de trabalho determinado, isto é, reves-
tir o mesmo sentido que aquele em uso nos meios os anseios de renovação ideológica na instituição
profissionais e educacionais. Por parte dos psicólo- escolar. Conceitos de cálculo econômico, razão
gos, o termo é freqüentemente salientado, todavia, científica e técnica, previsão e planificação são par-
com uma diversidade de significações que traduz tes desse processo. Tal discurso objetiva substi-
uma incerteza conceitual: às vezes apresentado tuir o modo de compreender a hierarquia dos sa-
como equivalente de aptidões ou de habilidades ou beres e as práticas educacionais por uma diferen-
de capacidade. Em todo o caso, no limite do senso ciação de formas de saberes e práticas. Passa, as-
comum e do científico, a noção de competência sim, a dar maior importância às particularidades
apresenta o risco de enfeitar qualquer proposição individuais e às suas diferenças, ao caráter distin-
que lhe dê uma aparência de cientificidade.12
tivo em detrimento do princípio de igualdade.
A intensificação do debate sobre competên- Nesse sentido, a construção de uma pedagogia
cias iniciou-se na década de 1980, no âmbito de fundada sobre as competências responde mais aos
maior acirramento da crise do capital e da busca anseios das novas exigências postas pela organi-
para sua superação. Cabe lembrar que a noção de zação do trabalho do que a princípios de huma-
competências surgiu em razão das modificações nização e de construção de relações apoiadas na
ocorridas nas relações capital/trabalho, sobretu- solidariedade.
do com a introdução na produção de novas tec- Perrenoud, para quem a idéia de competên-
cias comporta diferentes significados, define-a
12 ROPÉ & TANGUY, 1997, p. 22 (grifos acrescidos). como a “capacidade de agir eficazmente em um

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determinado tipo de situação, apoiada em conhe- mam-se das necessárias à inserção no processo
cimentos, mas sem limitar-se a eles”.13 Para esse produtivo”.15 No entanto, admitem que a forma
autor, importante interlocutor de tal debate no de inserção no processo produtivo não será igual
Brasil, a competência está associada ao indivíduo, para todos, pois “há que se considerar a redução
o qual em sua ação deve mobilizar conhecimen- dos espaços para os que vão trabalhar em ativida-
tos para enfrentar os desafios da realidade social. des simbólicas, em que o conhecimento é o ins-
Sua construção vincula-se à pratica social, e não a trumento principal, os que vão continuar atuan-
um conjunto arbitrário e desconexo de ações. do em atividades tradicionais e, o mais grave, os
Esse vínculo entre a construção das competências que se vêem excluídos”.16 Ao anunciar a sua com-
e a prática social possui importante valor. Entre- preensão sobre competências, reafirmam sua pro-
tanto, ao analisar a apropriação desse conceito no ximidade com as práticas voltadas para o trabalho
debate educacional, verificamos que o modelo de e a formação:
educação nele ancorado, e valorizador da prática
De que competências se está falando? Da capacida-
social, não realiza a crítica dessa prática, enten-
de de abstração, do desenvolvimento do pensamen-
dendo-a como um dado aistórico e naturalizado.
to sistêmico, ao contrário da compreensão parcial e
Porém, a prática social humana é histórica e sua fragmentada dos fenômenos, da criatividade, da cu-
constituição dá-se profundamente marcada pelos riosidade, da capacidade de pensar múltiplas alter-
valores econômicos e do mercado. A pedagogia nativas (...) da capacidade de trabalhar em equipe,
das competências apresenta-se, assim, marcada si- da disposição para o risco, do desenvolvimento do
multaneamente pela positividade e pela negativi- pensamento crítico, do saber comunicar-se, da ca-
dade. pacidade de buscar conhecimento.17
Para tornar-se uma proposta humanizado-
Ao centrar-se nas práticas associadas ao tra-
ra, que enfatizasse a prática social e o trabalho
balho, a perspectiva educacional posta pela peda-
como elementos constituintes do ser, ela precisa-
gogia das competências cria dois campos de ten-
ria negar a base material que lhe dá valor e alicer-
são. Apropria-se da concepção de práticas sociais,
ce, ou seja, recusar as relações sociais capitalistas.
sem fazer a crítica dos valores sociais que as in-
Isso implicaria construir um modelo de compe- formam. Nesse sentido, embora prometa que o
tências que, orientado pela prática emancipadora, ensino por competências deva objetivar o desen-
realizasse a crítica à sua base material, ao trabalho volvimento de práticas de cidadania, não conse-
alienado que lhe deu origem e vida.14 Portanto, o gue visualizar que os mesmos processos que in-
enfrentamento da realidade social, proposto pela formam sua constituição representam a condição
pedagogia das competências, encontra seus limites de sua negação. Em segundo lugar, merece aten-
em sua própria constituição. ção o fato de que, apesar de as práticas escolares
Nos Parâmetros Curriculares para o Ensino não serem separadas da preparação para o traba-
Médio, tal contradição se apresenta de forma li- lho (educação em sentido estrito) – função, sem
teral. Após reafirmar a crença na sociedade do co- dúvida, importante da educação – elas não podem
nhecimento e na mudança de paradigmas que a obscurecer a importância desta, em sentido ple-
supõe, os autores desse documento declaram o no, na formação de indivíduos universais e livres,
fim da educação tradicional e a emergência de aptos ao enfrentamento da situação social impos-
uma educação em que “as competências desejá- ta pelo trabalho alienado.
veis ao pleno desenvolvimento humano aproxi- O discurso da pedagogia das competências
13 PERRENOUD, 1999, p. 32.
anuncia a liberdade e a cidadania como supostos,
14 Parauma análise mais profunda dessa questão e das inconsistências
de sua apropriação no debate educacional, sugiro RAMOS, 2001; 15 BRASIL, 1999, p. 23.
SILVA JUNIOR, FERRETTI & CAMMARANO GONZÁLES, 16 Ibid., p. 23 (grifos acrescidos).
2001; e MARTINS, 2004. 17 ROPÉ & TANGUY, 1997, p. 24.

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no entanto, materializa políticas a práticas educa- da educação, sem anunciar os reais motivos desse
tivas que reforçam as desigualdades sociais e a alie- fracasso. Convergiu sua análise para o campo do
nação. Sua constituição não consegue apanhar e gerenciamento da educação, como se o problema
realizar a crítica à mercantilização da educação e à da escola pública fosse somente esse. Os defen-
substituição do conceito de igualdade de condi- sores dessa pedagogia entraram em cena, respon-
ções pelo de igualdade de oportunidades, ou seja, a dendo mais às necessidades de um quadro políti-
imposição da eqüidade. Contribui para reafirmar co marcado pela crise do Estado, e pelas disputas
a dualidade estrutural que permeia toda a história pelo controle do fundo público, do que por preo-
da educação brasileira e, como resultado da cupações acerca das reais condições da educação.
divisão técnica do trabalho sob o capitalismo, Por meio da PQ, uma nova linguagem se apropria
produziu sistemas escolares que reforçaram e do espaço educacional e do cotidiano da escola.
produziram uma formação para o pensar e outra Sua implementação nas escolas começou
para o fazer. com treinamentos, cujo objetivo central era uma
Do mesmo modo, contribui para a desu- profunda ressignificação conceitual: os alunos
manização dos processos educativos, pois o que passaram a ser clientes e a escola, de espaço cul-
noticia é o predomínio de uma razão instrumen- tural, a prestadora de serviços, de espaço de
tal a orientar os processos formativos e as práti- aprendizagem e socialização ao de produtividade
cas educacionais, a ênfase no desenvolvimento de e eficiência. O discurso da PQ enfatizava que o
competências e habilidades para o trabalho aliena- sucesso estava na assimilação e aceitação de seus
do e o discurso da empregabilidade e da laborali- princípios: motivação, visão de futuro, orgulho
dade, não deixando espaço para uma educação pelo trabalho, ação e transformação. A solução
que propicie a humanização das relações sociais. para os problemas da escola passava a depender
Sua cidadania pressupõe um indivíduo abstrato e mais de um conjunto de ações de caráter subjeti-
sem história, exposto a um processo de socializa- vo, em detrimento dos problemas estruturais e
ção conduzido pelo fetichismo da mercadoria, históricos da educação. A qualidade total apre-
tornando-se espaço de constituição de um ser so- sentou-se de tal modo que, mais do que total, re-
cial adaptado e submisso. Acentua-se, assim, a velou-se totalitária. Exigia a participação de to-
reificação do ser social. A materialização da crise dos, utilizando-se de mecanismos de cooptação
estrutural do capitalismo, enfim, e sua manifesta- para a promoção de seus objetivos e da plena
ção no debate educacional têm exposto suas identificação do trabalhador com seu espaço de
contradições, retirando-lhe qualquer aspecto hu- trabalho.19
manizador e acelerando a barbárie. A PQ estabeleceu um forte vínculo com a
Uma terceira questão importante diz res- questão da cidadania. Mas que cidadania? Eis, de
peito à pedagogia da qualidade (PQ). A dissemi- longe, e diferentemente das pregações sofistas
nação do conceito de qualidade na educação dos dias de hoje, um tema nada consensual. A ci-
ocorreu intensamente na transição da década de dadania liberal apoiada em direitos abstratos,
1980 para a de 1990 e é parte de um conjunto como a livre expressão e a igualdade jurídica? A
maior caracterizado pela convergência de discur- cidadania neoliberal, que associa a estruturação da
sos no sentido de diminuir a distância entre o sis- sociabilidade humana à lógica do mercado, colo-
tema produtivo e o educativo. cando-lhe nas mãos invisíveis a definição do des-
A PQ é filha ilegítima da crise do sistema tino de todos? Essa cidadania confunde socieda-
público de ensino e do chamado fracasso escolar de civil com mercado, prefere ver excluídos e não
dos últimos 20 anos.18 Ilegítima porque se apro- desiguais e objetiva a adequação funcional de to-
priou de um discurso salvacionista diante da crise dos à lógica produtiva. A PQ reforça a retórica da

18 Cf. SAMPAIO, 1998. 19 OLIVEIRA, 1998.

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eficiência, da produção, dos padrões de qualidade reproduz e por ela é produzido e reproduzido. Essa
e da qualificação para o trabalho e a disciplina do ilusão constitui-se na exata e contraditória naturali-
trabalho do modo como tais questões são com- zação do que existe de mais cruel, objetivo e histó-
preendidas e definidas pelos estratos sociais do- rico: a forma do capitalismo contemporâneo, favo-
recendo, no plano educacional e escolar, o pragma-
minantes. Ela exclui preocupações com um cur-
tismo como substrato filosófico do político e o
rículo democrático, com a autonomia do profes-
cognitivismo como substrato teórico das pedago-
sor e do processo educativo e não pode discutir gias do aprender a aprender.21
questões como a desigualdade social. Encontra-
se permeada da ideologia do neopragmatismo, As reformas educacionais, ao definir seus
subjacente à retórica da modernização conserva- objetivos com base no trabalho alienado, na esco-
dora, sendo reflexo desse fato, por exemplo, a ên- larização e na formação de um trabalhador natu-
fase atribuída à necessidade de estreitar as rela- ralizado e abstrato, manifestam uma das faces
ções entre a escola e o cotidiano social, a vida ati- dessa segunda natureza. Entretanto, a elaboração
va, sem explicitar o que se entende por vida ativa da crítica às propostas de reforma educacional
ou natureza das relações que permeiam a sua possibilitou um debate que reforçou a centralida-
construção. de da categoria trabalho e de seu caráter ontoló-
Apesar de declarar o resgate e a emancipa- gico. O acúmulo teórico verificado nesse período
ção da educação, ela busca o consenso social e a constitui significativa importância para o enfren-
subordinação das práticas educativas às chamadas tamento político nesses tempos cinzentos e
exigências do mundo do trabalho, sem nunca se amorfos para o debate acadêmico.
perguntar se o mundo em que o trabalho se apre- Mas se a crítica aos pressupostos e funda-
senta de maneira alienada é aquele desejado pelo mentos das reformas da década de 1990 apresenta
trabalhador. um significativo acúmulo de estudos, o mesmo
Numa época em que o indivíduo e a histó- não pode ser dito no tocante à realização de pes-
ria foram naturalizados, a tarefa da escola passou quisas na instituição escolar. Um aspecto impor-
a ser a constituição de um trabalhador dotado de tante a ser considerado reside em que a materia-
cidadania de qualidade nova. O predomínio de lização das reformas educacionais como produto
uma história sem conflitos, de um capitalismo de modificações na estrutura jurídica necessita
humanizador e de um mercado capaz de organi- ser verificada nos espaços em que efetivamente
zar e construir a paz social vê-se agora acrescido elas devem se dar, ou seja, nas escolas. Nesse sen-
de um trabalhador abstrato e naturalizado, e, tido, importa levar em conta que, para os refor-
como nos alerta Newton Duarte,20 do fetichismo madores, a efetivação das reformas somente
da individualidade. É o apogeu da reificação e da ocorrerá se elas forem assumidas por aqueles que
desumanização. fazem da escola o seu cotidiano. Ainda assim, em
CONSIDERAÇÕES FINAIS razão de sua constituição e cultura, as escolas,
Segundo Silva Junior e Ferretti, que são históricas, não devem ser entendidas
como mero espaço de reprodução dos ideais re-
a objetividade social produzida historicamente pelo formistas.
homem por meio de apropriações e objetivações
Outro elemento no plano das reformas diz
apresenta-se a nós como uma segunda natureza, tal
o seu nível de fragmentação e aparente virtualidade, respeito à formação de professores. A diversifi-
e de uma compressão do espaço tempo a nos exigir cação das instituições de ensino superior tem se
imediaticidade de resposta, nos impossibilitando a dado tomando por base significativo avanço do
reflexão sobre os nexos dos fenômenos em que es- setor privado. Isso pode estar favorecendo, nes-
tamos envolvidos. Ilude, assim, quem a produz e a sas instituições, uma maior aceitação dos postu-

20 DUARTE, 2004. 21 SILVA JUNIOR & FERRETTI, 2004, p. 14.

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lados de tais reformas, ou seja, nos espaços edu- formas e os reformadores impuseram uma agen-
cacionais privados a imposição de teses como a da conceitual ancorada nos pressupostos do pós-
mercantilização da educação pode encontrar nos modernismo, do neopragmatismo e do pós-
docentes menor resistência. Essa hipótese adqui- estruturalismo, por outro, a crítica a esses pres-
re significativa importância, tendo em vista o fato supostos e à sua dimensão política oxigenou o
de elas serem cada vez mais representativas na pensamento marxiano e demarcou com maior
formação de professores. Estaríamos, assim, di- precisão os espaços e as posições em disputa. Per-
ante de um processo de transformação dos pro- mitiu também que o marxismo se afirmasse
fessores nelas formados em agentes potenciais a como um universo importante de crítica, não em
disseminar e implantar a reforma na instituição razão da quantidade de seus adeptos, que dimi-
escolar. Esses fatos justificam a necessidade de nuiu muito, e sim de sua qualidade, mesmo que,
realização de pesquisas com o intuito de verificar para isso, tenha de se afirmar, o que sabiamente
a concretização (ou não) das reformas educacio- nos lembra José Paulo Netto,22 como um mar-
nais nas escolas. xismo impenitente.
De modo geral, um balanço provisório des-
se período nos mostra que, se, por um lado, as re- 22 NETTO, 2004.

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UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem.
Jontiem, 1990.

Dados do autor
Doutor em educação pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP)
e professor do Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Nove de Julho (Uninove) e da
Universidade Anhembi-Morumbi.

Recebimento: 24/mar./05
Aprovado: 29/abr./05

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Educação Básica
no Século XXI:
tendências e perspectivas
ELEMENTARY EDUCATION
IN THE 21ST CENTURY:
TENDENCIES AND PERSPECTIVES
Resumo Este artigo examina as tendências e perspectivas das políticas de
educação básica no Brasil neste começo de século. Para tanto, parte-se de um
balanço necessário das políticas educacionais implementadas na década de 90,
destacando a transição às políticas “modernas”, o novo “ciclo” que se inicia com
os ajustes neoliberais da economia e do Estado, a nova e contraditória LDB, a
“política” de Fundos na Educação, ilustrada pelo Fundef, e as avaliações nacionais
como estratégias de controle e de padronização das ações. São analisadas as
contradições do governo Lula, que, dando continuidade às políticas anteriores, da
economia à educação, apresenta poucos avanços e significativos limites, que
podem ser ilustrados pela Proposta de Emenda Constitucional do Fundeb, em
tramitação no Congresso Nacional. Na conclusão faz-se uma breve síntese dos
principais traços dessas políticas, indicando-se suas principais tendências e
perspectivas, e enfatiza-se a necessidade de manutenção da luta pela educação
básica a que a população brasileira tem direito. LISETE R. G. ARELARO
Universidade de São Paulo (USP)
liselaro@usp.br
Palavras-chave POLÍTICAS EDUCACIONAIS – EDUCAÇÃO BÁSICA – FUNDOS
PÚBLICOS (FUNDEF – FUNDEB).

Abstract This article examines the tendencies and perspectives of the elementary
education policies in Brazil in the beginning of this century. Therefore, we start
from a necessary ponderation of the educational policies implemented in the
1990’s, emphasizing the transition to the “modern” policies, the new “cycle” that
starts with the newliberal adjustments of the economy and the State, the new and
contradictory LDB, the Education funds “policy”, illustrated by the fundef, and
the national evaluations as control and standardizing strategies of actions. It is
here analyzed the contradictions of the Lula government, that, continuing with
the prior policies, from economy to education, presents few advances and
meaningful limitations, that can be illustrated by the Proposal for a Constitutional
Amendment of the Fundeb, in course in the National Congress. In the
conclusion there is a brief synthesis of the basic lines of these policies, being
indicated their main tendencies and perspectives, and it is emphasized the need
to maintain the fight for elementary education that the Brazilian population has
a right to.

Keywords EDUCATIONAL POLICIES – ELEMENTARY EDUCATION – PUBLIC


FOUNDS (FUNDEF – FUNDEB).

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA DÉCADA DE 1990

Q
ualquer avaliação da educação básica, no Brasil des-
se início de século, impõe que se retorne ao início
da década de 1990, pelo menos por duas razões.
Uma delas foi o deslocamento radical da respon-
sabilidade de efetivação de quase todas as políticas
públicas da União e dos Estados para os municí-
pios, com base na Constituição Federal de 1988.
A outra diz respeito aos compromissos assumidos
pelo País, em 1990, com a comunidade internacional, mediante a assina-
tura da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, na Conferência
realizada em Jontiem, na Tailândia, sob o patrocínio da Unesco, do
Unicef, do Fundo das Nações para Atividades da População (UNFPA), do
Banco Mundial e do PNUD, em especial para ter acesso privilegiado aos
recursos financeiros do Banco Mundial.
Naquela ocasião, o Brasil foi considerado um dos sete países em pio-
res condições educacionais, em virtude dos dados estatísticos apresenta-
dos: baixo índice de escolarização básica na faixa etária de sete a 14 anos,
baixo índice de matrículas no ensino médio, alta taxa de evasão e repetên-
cia escolar em todos os níveis de ensino, baixo nível de matrícula no en-
sino superior, atendimento pouco expressivo na pré-escola e alta taxa de
analfabetismo, com baixa escolaridade de jovens e adultos, considerada a
faixa de idade de 15 anos e mais.
Era presidente eleito do Brasil Fernando Collor de Mello, jovem
político alagoano de discurso populista em defesa dos “descamisados”,
mas com tradição de apoio a usineiros – o primeiro presidente escolhido
por eleições diretas, depois de 21 anos de ditadura militar e cinco de go-
verno eleito indiretamente. Preferido pela burguesia, e com o apoio da
mídia, enfrentou como adversário, em 1989, Luiz Inácio “Lula” da Silva,
atual presidente da República – este, naquele momento, pouco confiável
para as elites, por conta de seus compromissos de classe e de apresentar
um programa de governo mais radical que o de Collor, com pouca flexi-
bilidade a alianças político-partidárias de espectro mais amplo.
Logo, em nome da “modernidade”, Collor propôs programa ousa-
do de privatização, gerando em curto prazo atos legais e ações que pri-
vilegiavam, especialmente, o capital estrangeiro. Instalava-se no País o pe-
ríodo conhecido como “neoliberal”, em situação histórica um pouco par-
ticular. É que, diferentemente da Europa e dos países que haviam se de-
senvolvido na lógica do Welfare State, do tipo social democrata,1 o Brasil
estava saindo de uma longa ditadura e, no processo de redemocratização
social – com todas as limitações permitidas pela transição pacífica –, o de-
sejo maior da população era (re)construí-lo com base em um programa
de investimento em direitos sociais e a redução de desigualdades que
“rompesse” com o quadro de miséria social.

1 Cf. DRAIBE, 1990.

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O processo da Constituinte havia mostra- esse tipo de pesquisa – alegou-se “falta de verbas” –,
do o movimento de reagrupamento social que vi- constatou-se que o sistema nacional de coleta de
nha acontecendo e a urgência de atendimento às dados educacionais não era eficiente. Com a aju-
reivindicações populares. Esse era o “clima” local da de especialistas internacionais, iniciou-se, en-
– quase de euforia democrática – e, em razão disso, tão, a organização do Sistema Nacional de Avalia-
as mudanças de rumo e de convicções político- ção do Ensino Básico (SAEB), primeiro esboço
econômicas, que, no início dos anos 1980, já histórico do que viriam a se constituir as avalia-
começavam a atingir o modelo capitalista da Eu- ções nacionais sobre qualidade do ensino.
ropa e dos Estados Unidos, passaram desaperce- O primeiro levantamento (ou “ciclo”) do
bidas no Brasil, momentaneamente. SAEB realizou-se em 1990, quando se garantiu
Collor de Mello “seqüestrou” a poupança que os estudos do rendimento escolar não pre-
dos brasileiros logo no início de 1990, alegando a tendiam avaliar os alunos, mas “detectar os pro-
necessidade de reunir a maior quantidade de re- blemas de ensino-aprendizagem existentes, as
cursos financeiros disponíveis para construir um circunstâncias (de gestão, de competência docen-
outro Brasil. “Chega de carroças, estamos na te, de alternativas curriculares) em que são obti-
época dos supersônicos”, dizia ele, defendendo a dos melhores resultados e as áreas em que é ne-
implementação imediata de processos tecnológi- cessária uma intervenção dirigida para melhores
cos avançados na indústria, na agricultura e no condições de ensino”.2
comércio. Mas, na metade de seu governo, sofreu Um importante ato legal, aprovado nesse
impeachment – o primeiro da história republicana governo, ainda sob a influência dos ideais expres-
brasileira –, não em função da opção de projeto sos na Constituição Federal recém-promulgada,
de política econômica, que exigia a “entrega do foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA
País aos especuladores”, mas “por falta de dis- – lei n.º 8.069, de 13/jul./90). A votação na Câ-
crição”, por deixar didaticamente claras as vanta- mara Federal foi antecedida por passeata histórica
gens e benesses do poder e dos poderosos, para do Movimento de Meninos e Meninas de Rua e
os quais tudo (sempre) era justo e lícito. Não de ativistas dos diversos movimentos de assistên-
teve limites e, na política, isso pode ser fatal. cia social e educacional em defesa de crianças e
Na educação, o esperado confirmou-se: um adolescentes abandonados ou em situação de ris-
governo sem programas audaciosos, sem preten- co, em especial a Pastoral do Menor, ligada à
são de efetuar modificações significativas, pelo Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
menos num primeiro momento. Um Plano de (CNBB). Considerou-se esse estatuto muito
Alfabetização e Cidadania foi anunciado – o últi- “avançado” para o País e havia descrença sobre a
mo substantivo colocado às pressas –, uma vez que possibilidade de efetiva implantação dos Conse-
o ano de 1990 havia sido declarado Ano Interna- lhos Tutelares ali previstos, definidos como ór-
cional da Alfabetização. Mas isso não significaria gãos autônomos e não jurisdicionais, e eleição di-
nenhuma priorização de investimentos financei- reta de seus membros, escolhidos pela comuni-
ros ou movimentação social pela “erradicação do dade local em votação universal e secreta.
analfabetismo”, conforme proposto na Consti- AINDA UM GOVERNO DE TRANSIÇÃO ÀS
tuição Federal. Ao contrário: bastavam os espetá- POLÍTICAS “MODERNAS”
culos e instalaram-se rotinas de “subidas da ram- Em substituição a Collor de Mello, assu-
pa do Planalto”, com um ou outro personagem miu a presidência da República Itamar Franco,
nacional que fortalecesse o imaginário popular. político mineiro mais experiente, com posições
Apesar de o Censo Demográfico Brasilei- políticas e “estilo” diferentes dos de seu antecessor.
ro, realizado tradicionalmente de dez em dez As privatizações de empresas estatais, se não sus-
anos, não ter ocorrido em 1990, e sim um ano
mais tarde, por falta de apoio governamental a 2 Cf. BRASIL, 1995b, p. 15.

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pensas, tiveram seu ritmo diminuído e, na educa- A educação infantil – definida, então, cons-
ção, com Murilo Avellar Hingel nesse ministério, titucionalmente, como de zero a seis anos – foi
iniciou-se uma fase de discussões coletivas, com reconceituada, em face dos novos estudos sobre
audiência das entidades científicas, associações de o desenvolvimento infantil, com a contribuição
educadores e sindicatos de trabalhadores de edu- da sociolingüística e da psicolingüística, pelas
cação para a elaboração do Plano Decenal de quais se confirmou cientificamente que a criança
“Educação para Todos”, a fim de cumprir o com- aprende e se alfabetiza desde que nasce, e não so-
promisso internacional assumido em Jontiem e mente aos sete anos de idade, quando a maioria
ainda não viabilizado. entra para a “escola”. Essa nova concepção da in-
Um projeto de Lei de Diretrizes e Bases da fância ganhou espaço na mídia, surgindo novas e
Educação já vinha sendo discutido na Câmara criativas propostas educativas e fortalecendo-se
dos Deputados, redigido, fundamentalmente, curva ascendente de expansão quantitativa do
por representantes de entidades participantes do atendimento infantil, com especial ênfase à faixa
Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública – etária de zero a três anos, até então pouco valo-
criado durante a Constituinte – e aceito por um rizada do ponto de vista educacional.
grupo de deputados de oposição como projeto- Em relação à educação de jovens e adultos,
base para discussão com a sociedade civil. Nessa estabeleceu-se processo semelhante. O MEC no-
ocasião, a Confederação Nacional dos Trabalha- meou uma comissão nacional com representan-
dores em Educação (CNTE) propôs – como con- tes de diferentes setores sociais, buscando resta-
dição para participar dos debates para elaboração belecer a alfabetização como prioridade de gover-
do Plano Decenal – que a discussão acerca de um no3 e discutindo que processos pedagógicos seri-
piso nacional profissional unificado tivesse prio- am mais significativos para essa população. Isso
ridade. Iniciaram-se, assim, estudos para viabili- gerou uma troca de experiências e de dia-
zar uma proposta que também fosse aceita pela gnósticos em nível nacional, promovendo a cria-
União Nacional de Dirigentes Municipais de ção de Fóruns Estaduais em Defesa da Educação
Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Jovens e Adultos, organização independente
de Secretários de Estado da Educação (Consed), do governo e em funcionamento ainda nos dias
pois esses dirigentes é que teriam de criar as con- de hoje.
dições para a proposta da CNTE, uma vez vitorio- No final de 1994, o governo Itamar/
sa, ser implementada. Hingel, em razão de denúncias de “venda de pa-
Em meados de 1993 foi assinado um termo receres” autorizando a criação de escolas de ensi-
de compromisso do governo federal com a no superior, apresentou medida provisória extin-
CNTE, comprometendo-se o ministro da Educa- guindo sumariamente o Conselho Federal de
ção e do Desporto a colocar como prioridade Educação (CFE) e o mandato de seus membros.
desse plano decenal a valorização dos profissio- Além de aniquilar o órgão máximo da educação
nais de educação, contemplando o piso nacional no País, a quem competia autorizar os referidos
unificado para a categoria – 300 reais era o valor cursos – todos agora suspensos –, criava em seu
do piso sugerido na ocasião –, proposta de car- lugar um novo fórum: o Conselho Nacional de
reira com valorização salarial por tempo de exer- Educação (CNE), denominação presente no pro-
cício e mérito (cursos realizados) e melhoria das
3 Destaque-se que o educador Paulo Freire havia participado do
condições de trabalho. A jornada docente de 40 governo Luiza Erundina, em São Paulo (1989-1992), como secretário
horas, em uma única escola, com previsão de ho- municipal de Educação, tendo viabilizado muitas experiências pedagó-
gicas, bem como motivando grupos populares a participar da educação
ras atividades – 20 horas com alunos e 20 horas de adultos, com propostas inovadoras, incentivando-os, inclusive, a
com atividades diversificadas – seria considerada fazer parte mais sistematicamente do recém-criado Movimento de
Alfabetização (Mova). Isso possibilitou, aos setores populares que tra-
meta a ser alcançada, naquela década, nas redes balhavam com educação, oportunidades de troca de experiências e de
públicas, por Estados e municípios. mobilizações pelas suas reivindicações.

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jeto de LDB já em ampla discussão nacional, defi- ma do Estado, a fim de torná-lo mais ágil, mais
nido de forma dúbia quanto à sua autonomia. eficiente e poder realizar sua verdadeira “missão”
Não há dados para que se possa afirmar que de coordenação e planejamento, o que exigia ain-
a extinção do CFE, órgão com relativa autonomia, da torná-lo de tamanho “menor”. Ou seja, em
fizesse parte da nova concepção sobre a função nome da modernização da gestão pública e da
do governo federal na coordenação exclusiva das superação de uma atuação burocrática e tecnocrá-
diretrizes da política educacional. Mas a manu- tica do Estado – o que era inegável, historicamen-
tenção de “vácuo” político na definição mais ob- te –, introduz-se a concepção de Estado mínimo,
jetiva do novo conselho e a não designação de da sua não intervenção no mercado, por meio de
novos conselheiros com perfis mais “agressivos” sua desregulação e desregulamentação, da dimi-
na defesa das escolas públicas, nesse final de go- nuição dos serviços e funções públicas estatais e
verno, permitem supor que os empresários da das privatizações. Tal discurso, em processo de
educação continuavam dominando o órgão – hegemonização no mundo ocidental, passa a ser
como sempre acontecera – e que as representa- pautado, de maneira explícita e didática, diaria-
ções de setores mais democráticos, com livre mente, pela mídia falada, escrita e televisiva.
indicação de representantes – também historica- Importa destacar que essa concepção incor-
mente alijados – não teriam, ainda, vez e voz. pora a avaliação de que o gasto social é o grande
O NEOLIBERALISMO SE INSTALA: vilão e o responsável maior pela crise econômica
UM NOVO “CICLO” SE INICIA e do Estado, o que exigiria, em conseqüência, a
Foi, no entanto, no primeiro governo de revisão, superação ou substituição do Estado-
Fernando Henrique Cardoso (FHC – 1995-1998), providência. Em outras palavras, o reconheci-
ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro mento da falência de um determinado padrão de
da Fazenda, do governo anterior, que o choque ação econômica e social do Estado capitalista não
“neoliberal” se fez sentir. FHC foi eleito presiden- significaria, no Brasil, dez anos depois da subs-
te por aliança de seu partido, o Partido da Social tituição do governo militar pelo civil de cunho
Democracia Brasileira (PSDB), com o Partido da social-democrata, a necessidade de gestação de
Frente Liberal (PFL), adversário histórico de lutas um “moderno” Estado, que pudesse, com o
e convicções, tendo como vice o senador Marco apoio das novas forças sociais e com dinâmicas
Maciel, tradicional representante desse partido na ainda não experimentadas, disputar a opção de
Região Nordeste. políticas sociais de tipo universalista. A opção do
O novo governo, em curtíssimo prazo, as- governo seria pela adesão simplista às políticas
sumiria proposta ortodoxa em relação à política sociais seletivas e focalizadas, já em desenvolvi-
econômica, em que a estabilidade monetária seria mento em outros países da América Latina – en-
o valor maior. Apesar de o real ter sido criado no tre eles, o Chile era sempre o exemplo citado
mandato anterior, em julho de 1994, foi esse go- como o mais bem-sucedido –, justificadas e in-
verno que capitalizou a eufórica e efêmera ilusão centivadas pelos diagnósticos “científicos” e
de novo padrão internacional de consumo “para “neutros” de órgãos internacionais, em especial o
todos”, representada pelo lançamento da nota de Banco Mundial.
um real equivalente a um dólar. Essa falsa corres- A transposição de teses semelhantes à área
pondência econômica custaria aos cofres públi- da educação foi quase automática. Apresentada
cos e aos brasileiros o ônus de milhões de dólares, como um dos cinco “dedos” da mão do presiden-
transformados em “dívida pública”. te, ela seria prioridade de governo. A divulgação
Nesse governo, também, as empresas esta- dos “péssimos” resultados do setor educacional,
tais – em especial as mais lucrativas – foram su- mediante dados estatísticos internacionalmente
mariamente privatizadas. Acompanhou essas comparados, ganhou tratamento especial na mí-
ações o discurso da necessidade urgente de refor- dia, exigindo, portanto, medidas urgentes e rigo-

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rosas. Essa batalha teria como aliados três atos le- promisso com o ensino fundamental. O outro é
gais: a emenda constitucional n.º 14/96, a lei n.º que, na regulamentação do Fundef (lei n.º 9.424/
9.424/96 – que a regulamentou – e a Lei de Di- 96), excluem-se os alunos dos cursos de educação
retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – lei de jovens e adultos, mesmo os dos cursos
n.º 9.394/96), todas aprovadas no final de 1996. presenciais, da possibilidade de utilizar recursos
Como medidas mais gerais, aprovaram-se tam- desse fundo, ainda que essa exclusão traduza
bém nessa gestão duas reformas essenciais para a indiscutível e autoritária inconstitucionalidade.
mudança de referenciais até então aceitos: a pri- Tais inovações evidentemente não são gratuitas,
meira, sobre a reforma do Estado, e a segunda, nem casuais. Traduzem prioridades de políticas e
acerca da Previdência Social, pelas emendas cons- compromissos de gestão. Destaque-se que as
titucionais n.ºs 19 e 20, de junho e dezembro de ações de inconstitucionalidade, propostas em fe-
1998, respectivamente. Elas dão base legal à nova vereiro de 1997 por entidades nacionais e parti-
idéia de Estado e de sua função pública no País. dos da oposição, até hoje não foram julgadas
A emenda constitucional n.º 14 (EC 14), quanto ao mérito.
além de reescrever o capítulo III, da educação, da Já na discussão do projeto de emenda cons-
Constituição Federal, alterando dispositivos dos titucional (PEC 233), que originou a EC 14, o
artigos 205, 208, 211 e 60 (este das disposições Executivo havia encaminhado proposta de exclu-
transitórias), criou o Fundo de Manutenção e são do direito à educação infantil para todas as
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Va- crianças pequenas, tentando estabelecer seletivi-
lorização do Magistério (Fundef). Com base nes- dade de atendimento na faixa etária de zero a três
se fundo, 15% dos principais impostos que com- anos, restringindo-o somente às crianças “po-
põem, no mínimo, os 25% dos recursos vincula- bres”. Houve grande mobilização das entidades
dos à educação de Estados e municípios passaram contra essa inclusão seletiva, que reduzia os direi-
a destinar-se exclusivamente ao ensino funda- tos das crianças. Na ocasião, essa foi a única alte-
mental “regular”. Essa política – pretendida ração vitoriosa da PEC original obtida pelas enti-
como “revolucionária” na educação – introduziu dades, em especial a União Nacional dos Diri-
duas inovações. A primeira foi a “focalização” no gentes Municipais de Educação (Undime), a As-
atendimento educacional, estabelecendo como sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
prioridade maior o ensino fundamental e, nesse, em Educação (Anped) e os defensores dos direi-
exclusivamente, a faixa etária considerada “regu- tos da criança. De lá para cá, as tentativas de re-
lar” – de 7 a 14 anos. A segunda significou uma dução do direito educacional das crianças peque-
mudança radical no sistema de financiamento pú- nas, em especial as do primeiro ciclo, têm sido
blico, introduzindo o critério de remuneração es- constantes, uma vez que o atendimento perma-
tadual (compensação financeira) pelo número de nece mínimo, não tendo sido atendidos sequer
atendimentos realizados, computados pelo Cen- 10% da demanda existente.
so Escolar, sempre do ano anterior, e o sistema de O Censo Escolar de 20044 comprova que
fundos, de natureza contábil, incorporando em cerca de mil dos 5.562 municípios no Brasil não
conta única os recursos de municípios e Estados. oferecem qualquer vaga pública de creche. Essa
Cabe refletir sobre dois aspectos dessas grave constatação tem sido, também, motivação
“inovações” introduzidas. Um deles diz respeito para a criação e a manutenção de Fóruns Esta-
a uma cínica desresponsabilização quanto à edu- duais de Educação Infantil,5 que passaram a in-
cação, por parte da União, uma vez que – passan- fluenciar o Congresso Nacional e o Executivo na
do por cima do pacto federativo – estabeleceu definição de políticas para a infância ou no impe-
uma subvinculação dos recursos públicos da edu-
4 Cf. “Censo Escolar – dados preliminares”, BRASIL, 2004.
cação exclusivamente para duas das três esferas 5 Hoje em dia, a representação nacional que agrega esses fóruns estadu-
públicas, reduzindo-lhe substantivamente o com- ais constitui o Inter-Fóruns.

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dimento da adoção de políticas compensatórias às 4.ªs séries iniciais, em especial nos Estados com
inadequadas para essa faixa etária. atendimento do ensino fundamental quase total-
FUNDEF, UMA PECULIAR POLÍTICA DE mente municipalizado.
FUNDOS NA EDUCAÇÃO Por outro lado, se o atendimento municipal
Tomando-se por base estudos e pesquisas,6 do ensino fundamental girava em torno de 42%
pode-se constatar que o objetivo maior do Fun- em 1998 (cerca de 15 milhões, dos quase 36 mi-
def não era viabilizar a universalização do ensino lhões matriculados), cinco anos depois ele já ti-
fundamental, mas, simplesmente, realizar a des- nha aumentado para 52%, ou seja, cerca de 18
concentração estadual do atendimento desse ní- milhões dos 34,4 milhões de alunos atendidos
vel de ensino. Em 1998, seu primeiro ano de im- nesse nível de ensino. A municipalização do aten-
plantação, o número de alunos matriculados no dimento, consideradas as séries iniciais, é ainda
ensino fundamental “regular” no País foi 35,8 mi- mais eloqüente, pois, em 2003, já representava
lhões dos quais 32,4 milhões atendidos pela esfe- 72,3% do atendimento público, ao passo que, em
ra pública – cerca de 91%. Esse número perma- 1998, correspondia ainda a 46,8%, com clara
neceria constante. Em 2003, o total de matrículas, concentração municipalizada na Região Nordeste.
no mesmo ensino fundamental, foi de 34,4 mi- O aumento da municipalização em mais de
lhões, sendo o atendimento público da ordem de 25%, já no sexto ano do Fundef, é elucidativo do
31,1 milhões de matrículas.7 A redução do aten- objetivo real da sua implantação. Para além do
dimento, no primeiro caso, foi de cerca de 1,5 mi- discurso da universalização do atendimento do
lhão e, no segundo, de aproximadamente 1,2 mi- ensino fundamental, e da justiça social que a nova
lhão, o que indica que o percentual atendido já no distribuição dos recursos, em nível estadual,
primeiro ano do Fundef era considerado satisfa- provocaria, a mudança significativa do mante-
tório, não sendo necessário grande empenho para nedor público – do Estado para os municípios –
que a curva de atendimento decrescesse. mostra-se a mais evidente.
Com exceção do ano de 1999, em que o
É também verdade que a lógica interna do
número de atendimentos no ensino fundamental
cálculo do “gasto mínimo” por aluno, trazido
“regular” foi superior em cerca de 250 mil matrí-
pelo Fundef, revela-se perversa. Isso porque, na
culas, em todos os anos posteriores ele revelou-se
medida em que um dos entes públicos envolvidos
decrescente. Mesmo assim, os meios de comuni-
(Estados ou municípios ou ambos) resolvesse
cação divulgaram, durante todo o período dos
promover um atendimento escolar mais ousado,
dois governos FHC, constante ampliação do aten-
viabilizando a universalização do ensino funda-
dimento escolar, criando certa euforia sobre esse
mental “regular” da 1.ª à 8.ª série, em especial nos
“novo” patamar, que colocaria o Brasil com índi-
Estados mais pobres, nos quais a complementa-
ces próximos dos internacionais desejáveis.
ção federal deveria estar presente, esse “valor”
A consulta aos dados estatísticos oficiais anual aluno atendido poderia decrescer, ao invés
mostra também que 12 dos 27 Estados possuíam, de ser aumentado.
ainda em 2003, desproporção acentuada de aten-
Adotada essa lógica estatístico-financeira,
dimento escolar, pois a população matriculada
fica evidente que a expansão não pode ser consi-
nas 5.ªs às 8.ªs séries era aproximadamente 50%
derada prioritária, mas, ao contrário, fundamenta
menor do total das crianças matriculadas nas 1.ªs
a suspeita de que o número de alunos já matricu-
6 Cf. relatórios das pesquisas: Acompanhamento da Implantação do
lados nos sistemas públicos de ensino era tido
Fundef no Estado de São Paulo, em 24 municípios – 1999-2002 como desejável para o padrão nacional e a sua
(CEPPPE/FEUSP/FAPESP); e Impactos da Implantação do Fundef no eventual ampliação, “desequilibradora” do com-
Brasil – 2000-2002 (ANPAE/Anped/Fundação Ford), em 12 Estados
brasileiros. petente modelo proposto.
7 Cf. “Resultados Finais do Censo Escolar de 2003”, elaborado pelo
INEP/MEC, Brasília/DF disponível no site: <www.mec.gov.br/esta-
Inacreditável é que esse valor anual, decre-
tísticas educacionais>. tado por ato do governo federal, considerados os

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critérios expressos na lei n.º 9.424, em nenhum exclusão de 20% dos impostos arrecadados pela
ano dos dois governos FHC foi cumprido. Aliás, União para essa prioridade econômica.
nem nos primeiros três anos do governo Lula ele Três anos mais tarde, em 2000, pela emenda
foi atualizado. A alegação federal para o não cum- constitucional 27, com a mesma justificativa e
primento da principal “revolução” educacional metodologia, criou-se, legalmente, a possibilidade
do século XX – como definida pelos próprios de desvinculação dos mesmos 20% dos impostos
proponentes – era a falta de disponibilidade fi- arrecadados pela União – daquela data em diante,
nanceira, tendo em vista a necessidade – inadiável e com autorização prevista até 2007, ficaria co-
e intransferível – do pagamento da dívida e de nhecida como Desvinculação dos Recursos da
serviços da dívida. Em 1997, o valor estabelecido União (DRU) –, que, há uma década, oneram as
foi de 300 reais e, no final de 2002, não havia che- políticas sociais, sem compensações financeiras.
gado sequer ao valor de 500 reais, acumulando Esse mapeamento do quadro econômico-
mais de 100% de defasagem em relação ao esti- financeiro é fundamental nessa reflexão sobre as
mado pela sistemática legal de cálculo. políticas educacionais implementadas no perío-
Os dados financeiros e os estudos disponí- do, pois nos dá as “pistas” necessárias para uma
veis, levando em conta o “efetivamente gasto” a melhor compreensão das tendências e perspecti-
partir de 1994, mais os oito anos dos governos vas – positivas e negativas – no novo século.
FHC, e a previsão orçamentária da União para Além disso, delimita a nossa possibilidade de
2003, em relação aos recursos orçados para a ma- “manobra” financeira no campo específico da
nutenção e o desenvolvimento do ensino (MDE), educação.
permitem afirmar que as “perdas” – recursos não UMA NOVA E CONTRADITÓRIA LDB É
aplicados – da área educacional representaram APROVADA
cerca de 20 bilhões de reais.8 Nesses anos todos, A aprovação da nova Lei de Diretrizes e
Bases (LDB), promulgada em 20/dez./96, tam-
desde 1994, sistematicamente cerca de 20% dos
bém obedeceu a uma estratégia peculiar. Fora dis-
recursos arrecadados pela União foram “tirados”
cutida desde o final de 1988, durante sete anos,
das áreas sociais, mediante diferentes artifícios
quase ininterruptamente e de maneira pública.
empregados pela área financeira para o não inves-
Apesar das divergências entre os diferentes gru-
timento nas políticas sociais.
pos, a partir de 1996, iniciados os debates sobre a
Primeiro, criou-se o Fundo Social de PEC 233 e o Fundef, saiu de cena aquele projeto
Emergência (FSE), em 1994, quando a precária si- de lei – era como se LDB, Fundef e EC 14 fossem
tuação da saúde pública foi vista como “calami- propostas distintas.
tosa” e urgentes providências se faziam necessá- Os debates sobre a regulamentação do
rias. Passados três anos, o ministro da Fazenda Fundef, sobre a forma dos repasses da União e
Pedro Malan admitiu que não tinha havido con- sobre o quantum de recursos financeiros seria
dições conjunturais à destinação dos recursos do disposto pelo governo federal, ocupavam tempo e
FSE exclusivamente para a saúde, pois o não pa- empenho dos sindicatos e entidades nacionais – já
gamento dos serviços da dívida poderia exercer que esse era o único “dinheiro novo” disponível
forte pressão inflacionária, comprometendo a tão para o novo fundo. No período recorde de início
desejada estabilidade monetária. Propôs-se nova de outubro a começo de dezembro de 1996, em
emenda constitucional para o Fundo de Estabili- que a LDB, “atualizada” pelo governo, voltou à
dade Fiscal (FEF) – agora com o nome adequado Câmara Federal para ser “aprovada”, seu deputa-
aos seus fins –, mantendo-se o mesmo propósito: do relator, José Jorge (PFL/PE) – na verdade, relator
de toda a legislação educacional do primeiro go-
8 Consulte-se o Relatório do Grupo de Trabalho sobre Financiamento
da Educação, Anexo 2, constante da RBPE n.º 200/201/202, v. 82,
verno FHC –, viajou para os EUA e, no seu retor-
INEP/MEC, jan./fev. – 2001, publicada em set./03, p. 135. no, “lembrou” que havia deixado parecer pronto

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na gaveta de sua mesa, propondo votação em ple- municípios e Estados, em que fica claro não haver
nário, por suposto consenso já “alinhavado”. uma única maneira de colaboração entre as esfe-
Foi com esse “novo” estilo – sem discussão ras públicas, nem de oferta do ensino fundamen-
com as entidades, sindicatos ou representantes tal. Estados e municípios podem, sempre que de-
do próprio Legislativo, mas com o compromisso sejarem, ofertar escolas fundamentais de oito sé-
de as bancadas aliadas aprovarem o texto do Exe- ries, por exemplo, entre outras alternativas.
cutivo sem alterações substantivas – que se votou A LDB vai além, propondo, pelo menos,
a LDB, em tramitação quase tão rápida quanto a dois critérios para uma adequada distribuição
LDB dos militares, como ficou conhecida a lei n.º proporcional de responsabilidades: a população a
5.692/71. Duas únicas alterações foram aceitas ser atendida e os recursos disponíveis em cada
pelo relator: a organização do ensino fundamen- uma dessas esferas do poder público. Poderia su-
tal não permaneceria dividida exclusivamente em gerir, também, um terceiro ou quarto critério,
dois ciclos (ele concordou em retirar a palavra uma vez que a lei não os limita ou impede: por
dois) e os cursos de especialização não teriam exemplo, a tradição cultural de cada sistema de
correspondência com os de mestrado e doutora- ensino na comunidade ou a vontade política de
do, como reivindicava influente proprietário de um novo governo eleito, que queira “experimen-
uma grande empresa universitária privada. tar” outras possibilidades de oferta.
Evidentemente, as fortes contradições en- Como se isso não bastasse, o § 4.º do art.
tre o texto da lei e suas disposições transitórias 75 nega, novamente, o direito de Estados e muni-
não foram sequer levantadas em plenário – espe- cípios de estabelecer condições de colaboração
cialmente quanto à indução da municipalização diversas da “planejada” e “exigida” pelo Executi-
do ensino fundamental. Analise-se o item I, do vo. Senão, vejamos: “A ação supletiva e redistri-
§ 3.º, do art. 87 das disposições transitórias, com- butiva não poderá ser exercida em favor do Dis-
parando-se com o disposto no item II, do art. 10, trito Federal, dos Estados e dos municípios se es-
da LDB, e com os §§ 2.º e 3.º, do art. 211, da tes oferecerem vagas, na área de ensino de sua
Constituição Federal. Os dois primeiros disposi- responsabilidade, (...) em número inferior à sua
tivos legais estabelecem, de forma inequívoca, a capacidade de atendimento”.10
função concorrente de municípios e Estados na Não por outra razão os estudos indepen-
oferta do ensino fundamental. No entanto, nas dentes – aqueles não produzidos por encomenda
disposições transitórias, o Executivo resolveu do Executivo – demonstram não só que a muni-
“determinar” que essa função seria “supletiva” cipalização ou “prefeiturização” do ensino funda-
aos Estados e à União, ao dispor que “Cada mental, no caso, era o aspecto nodal da proposta
município e, supletivamente, o Estado e a União, do Fundef, como também que a segunda parte da
deverá: I – matricular todos os educandos a partir comprida denominação desse fundo – a valoriza-
dos sete anos de idade e, facultativamente, a par- ção do magistério – só teria chance de ser cum-
tir dos seis anos, no ensino fundamental”.9 prida quanto a algumas poucas e não onerosas
Ora, se todos os municípios tivessem cum- reivindicações desses profissionais.
prido tal determinação, entre 2004 e 2005 todas A formação do magistério em nível supe-
as crianças e adolescentes seriam atendidos ape- rior, por exemplo, se, por um lado, traduzia anti-
nas por essa instância, em especial as séries ini- ga reivindicação do magistério das séries iniciais,
ciais, e não de modo concorrente, como determi- por outro, certamente o prazo estabelecido na lei
na a Constituição Federal. O art. 10 da LDB, por nunca foi por ele pretendido. Qualquer professo-
outro lado, propõe formas de colaboração entre ra ou sindicato sabe que esse “apressamento” na
formação, inclusive com impedimento de ingres-
9 Lei Federal nº 9.394/96 "Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional e dá outras providências" – cf. art. 11 e 87 (grifos acrescidos). 10 Ibid. (grifos acrescidos).

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so na carreira docente, estaria necessariamente condições de sustentar a negociação e a elabora-


vinculado à desqualificação de seu processo de ção de programas diferenciados de formação te-
formação teórico-profissional. riam os municípios – em especial os pequenos,
Outra escandalosa contradição entre o cor- maioria quase absoluta no Brasil?
po da lei (art. 62) e suas disposições transitórias A desejada inauguração da privatização e
(§ 4.º, do art. 87) é esse impedimento de ingresso terceirização dessas formações, por dentro dos
docente na carreira ao não portador de diploma próprios sistemas públicos de ensino, parece ter
de ensino superior. Isso porque o primeiro artigo sido o objetivo “oculto”. A exigência legal da bre-
exige somente formação em nível médio para a vidade no prazo fatal para essas formações as tor-
docência na educação infantil e nas séries iniciais naria particularmente atraentes para as agências
do ensino fundamental, desmentindo a segunda privadas, já que sublocam serviços sem grandes
proposição. Mas, mesmo o CNE tendo esclareci- exigências prévias e, portanto, poderiam estar
do corretamente, em parecer, os direitos dos pro- presentes, com oferta de cursos presenciais e a
fissionais do magistério, não tomou a iniciativa distância “em qualquer parte do País”, rapida-
de pedir ou encaminhar proposta de revisão da mente.
LDB quanto a esses aspectos contraditórios. Mas essa prioridade de formação “rápida”
Em relação à formação superior, não foi ne- em nível superior não parou aí. A lei n.º 9.424,
cessário esperar muito tempo: num período cur- que regulamentou o Fundef, autorizou que, pelo
to, o CNE passou a aprovar propostas de forma- prazo de cinco anos, os sistemas públicos pudes-
ção de professores das redes públicas, com dura- sem “descontar” parte dos 60% vinculados ao pa-
ção de dois anos até o máximo de dois anos e gamento dos professores em exercício, em cursos
meio, alegando que a “valorização” da prática se- de formação. Apesar da EC 14 determinar que os
ria traduzida em “horas virtuais” de formação. 60% seriam destinados, exclusivamente, para pa-
Além disso, esses cursos poderiam ser realizados gamento dos “professores em efetivo exercí-
na dupla modalidade – presencial e a distância –, cio”,12 a lei n.º 9.424 traduziu, como sinônimos,
com a adoção de “tutores”, ou seja, professores “professores” e “profissionais do magistério”
orientadores “de estudos” que assumem papel (art. 7.º) e nenhum sindicato nacional reclamou
polivalente no conhecimento científico, artístico, da ampliação conceitual indevida, que geraria –
tecnológico ou literário, predefinido. como o fez – o uso das mesmas verbas para di-
Ainda para viabilizar essa “formação em ferentes profissionais, reduzindo-se, evidente-
serviço”, que ao mesmo tempo titula garantindo mente, as possibilidades de aumento ou valoriza-
diploma de nível superior, a LDB determinou – ção salarial daquela categoria.
sempre nas disposições transitórias e novamente Ainda sobre os salários dos professores,
no art. 87 (item III) – que os municípios deveriam cabe destacar – e os estudos já mencionados con-
“realizar programas de capacitação para todos os firmam – que, com exceção da categoria trabalha-
professores em exercício, utilizando também, dora escrava,13 identificada em cerca de 458
para isso, os recursos da educação a distância”.11 municípios das Regiões Norte e Nordeste, onde
“Supletivamente”, essa tarefa seria responsabili- o “salário” apontado variava de 30 a 60 reais men-
dade dos Estados e da União, no entanto, não são sais – para um salário mínimo nacional de 120
essas as esferas públicas que possuem e mantêm reais, em 1998 –, não houve aumento salarial real
as universidades públicas? Por que a LDB não pre-
viu que essa responsabilidade “concorrente” ca- 12 Nos termos do § 5.º, da nova redação dada pela EC 14 ao art. 60, do
ato das disposições transitórias, da Constituição Federal de 1988.
beria prioritariamente às instâncias com melhores 13 Estamos considerando na categoria trabalhadora escrava a profes-

condições – e dever histórico – de realizá-la? Que sora das séries iniciais – somente elas – não concursada, em geral sem a
formação escolar mínima exigida, nem vínculo contratual legalizado
com as prefeituras, e que recebia cerca de meio salário mínimo – ou
11 Ibid., art. 87, item III (grifos acrescidos). menos de um salário mínimo.

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para nenhuma função do magistério, depois dessa riáveis viabilizadoras de um “ensino de qualida-
data. No máximo, foram possíveis as atualizações de” ou “as variações regionais” que interferem no
monetárias. custo dos insumos, conforme recomenda, expli-
Esse quadro agrava-se nos municípios de citamente, o parágrafo único desse mesmo artigo.
porte médio e grande, com sistema municipal de Ao contrário, para muitos municípios e Estados,
ensino consistente, direitos trabalhistas mínimos a forma de fazer valer “mais” os recursos do Fun-
conquistados e estatutos do magistério em vigor def foi aumentar o número de alunos nas salas de
– concursos públicos para provimento dos cargos, aula, mantendo-se o mesmo número de profes-
jornadas de trabalho com previsão de atividades sores.
pedagógicas para além das horas com alunos, car- A única diferenciação adotada, assim mes-
reira com previsão de ascensão por mérito, no mo só em 2000, foi o percentual de 5% a mais
qual os cursos realizados eram variável impor- para as turmas de 5.ª a 8.ª séries. Para o ensino ru-
tante, possibilidade de afastamento, remunerado ral, embora prevista diferenciação de cálculo na
ou não, para freqüentar cursos de pós-graduação lei a essa modalidade de ensino, ela não foi ado-
etc. –, pois neles o “congelamento” salarial foi, e tada. Em relação ao ensino especial, executou-se
continua sendo, um impasse. a mesma percentagem de diferenciação de 5%,
Eventualmente, se houver “sobra” de al- sendo a única diferença quanto ao ensino funda-
gum recurso da verba do Fundef, ela é distribuída mental regular a aplicação em qualquer “série”, e
sob a forma de “gratificação” extra, mas sem con- não só nas finais.
dições de ser incorporada nos salários-base. Em Essas duas “ausências” de intervenção na
razão disso, a variável qualidade de ensino, tendo disputa política por mais verbas para a educação
como pressuposto a dedicação da professora a explicitam, objetivamente, as novas propostas de
um só posto de trabalho, fica cada vez mais dis- atuação e de concepção de gestão pública a serem
tante, pois, atualmente, para receber o mesmo sa- apresentadas, de ora em diante, como exigência
lário – em termos de valor aquisitivo –, ela precisa “natural” de racionalidade do sistema.
aumentar para dez ou 12 horas a sua jornada diá- AVALIAÇÕES NACIONAIS COMO ESTRATÉGIAS
ria de trabalho, antes realizada, no máximo, em DE CONTROLE E DE PADRONIZAÇÃO DAS AÇÕES
seis a oito horas/dia. Outro aspecto fundamental para o balanço
No entanto, não houve constrangimento das políticas educacionais da década de 1990 é a
até hoje por parte da União, nem ela se sentiu mudança do papel da avaliação como critério de
obrigada a completar os recursos destinados ao desempenho das atividades dos sistemas educa-
Fundef. Nem mesmo em relação ao art. 74 da cionais. Historicamente considerada como mo-
LDB, que exige que a União em colaboração com mento privilegiado do processo ensino-aprendi-
os outros entes públicos, estabeleça “padrão mí- zagem desenvolvido pelo professor em sala de
nimo de oportunidades educacionais para o ensi- aula e, por isso mesmo, contínuo e cumulativo,
no fundamental, baseado no custo mínimo por “com prevalência dos aspectos qualitativos sobre
aluno, capaz de assegurar ensino de qualidade”, a os quantitativos e dos resultados ao longo do pe-
esfera federal deu andamento conseqüente. Ou ríodo sobre os de eventuais provas finais”, nos
seja, o cálculo do gasto-aluno14 anual, previsto termos da LDB, letra “a”, V, do art. 24, a modali-
pelo Fundef e estimado pelo governo federal, em dade exames nacionais, sob a coordenação exclu-
nenhum momento incorporou qualquer das va- siva do Ministério de Educação (MEC), assume
versão definitiva.
14 A denominação correta é gasto-aluno, e não custo-aluno, pelo fato de
o governo federal calcular esse valor anual somente sobre os recursos
Os exames nacionais, destinados a avaliar a
disponíveis no orçamento. Não houve propostas, nos últimos oito “qualidade” do ensino fundamental – já testados
anos, para a incorporação do cálculo de custo-aluno como disponibili-
dade financeira necessária, a fim de atuar com este outro patamar de
em 1993 – são sistematizados e entram para o ca-
possibilidades. lendário anual do MEC com o apelido de Sistema

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de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), envolven- “domesticação” dos professores para aceitá-las.
do as escolas públicas de todo o território nacio- Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
nal. Já em 1995, o ensino médio e as escolas pri- conjunto de sugestões metodológicas de ensino
vadas passam a participar, pela primeira vez, dos elaboradas pelo MEC e divulgadas em 1997, foram
exames do SAEB e os 27 Estados da Federação propostos como orientadores de toda a ação do-
“aderiram” a eles. Adotaram-se, desde então, cente, apesar das críticas de educadores e espe-
técnicas mais apuradas de aferição de desempe- cialistas sobre a inconveniência de elaborar um
nho, com a construção de “escalas de habilida- “programa único” para um país continente. Os
des”. Introduziram-se, também, instrumentos de parâmetros destinados ao ensino fundamental
levantamento de dados sobre as características têm, na sua versão final, perto de mil páginas!
socioeconômicas e culturais dos alunos, bem Não se conhecem, no mundo ocidental, parâme-
como sobre seus hábitos de estudos. tros tão longos e detalhados como esses.
E, com exceção da educação infantil, ne- A Constituição Federal propõe, correta-
nhuma das etapas da educação básica e da supe- mente, que se estabeleçam “conteúdos mínimos”
rior fica sem a interferência do processo de ava- para o ensino fundamental, de maneira a assegu-
liação nacional aplicado por empresa “de notório rar formação básica comum aos brasileiros (art.
saber comprovado”.15 Para o ensino médio, não 210), não “compêndios” ou guias curriculares
só se adotam os exames nacionais, mas esses – di- para os professores adotarem em sala de aula. No
ferentes do SAEB – introduzem modificação con- entanto, para que os exames propostos pelo MEC
siderada essencial para o sucesso e continuidade possam ter conseqüências de âmbito nacional
do processo. Não se verifica, nesse caso, se e quais nos diferentes sistemas de ensino, “parâmetros”
conteúdos curriculares foram aprendidos pelos nacionais – na verdade, programas – foram prescri-
alunos, mas, por meio do Exame Nacional do tos. E que resultados pedagógicas o MEC esperava
Ensino Médio (ENEM), divulga-se que a aquisição
dessas “sugestões” nacionais, no cotidiano esco-
de “habilidades e competências” será dimensio-
lar? Que os professores de cada escola as adotas-
nada. Evidentemente, o acesso aos resultados
sem como proposta pedagógica deles, pois isso
desses exames por futuros empregadores garante
legitimaria os exames nacionais, cujos conteúdos
que o trabalho das áreas de “recursos humanos”
apóiam-se nesses parâmetros nacionais.
seja aliviado, pois, se a empresa pretende admitir
um vendedor, por exemplo, bastará consultar se o Mas como, por tradição, os professores são
jovem pretendente atingiu escore significativo na “rebeldes” em relação a decisões de cúpulas go-
“habilidade oral” das provas do ENEM. vernamentais – que, ignorando a cultura histórico-
pedagógica, impõem “pacotes” educacionais há
Porém, o objetivo de tão alto investimento
científico e financeiro não se esgota na simples longo tempo – e, em razão disso, poderiam não
verificação da qualidade do ensino brasileiro, pois adotar “espontaneamente” os referidos progra-
este “sistema nacional de avaliação” – previsto na mas, providências complementares foram adota-
LDB em substituição a um “sistema nacional de
das pelo governo federal. Em 1998, último ano da
educação”, desejado pelos educadores – trazia primeira gestão FHC, foram aprovadas duas ECs –
dois outros desdobramentos: a necessidade de 19 e 20 –, com graves conseqüências para o fun-
propostas nacionais (únicas?) de currículos e a cionalismo público. A primeira, de 4 de junho,
modificou princípios e normas da administração
15 Contratou-se, inicialmente, a Fundação Carlos Chagas (FCC) para pública, numa semi-reforma do Estado brasileiro
realizar e aplicar os exames do SAEB, ENEM e Provão; num segundo mais adequada às propostas neoliberais; a segun-
momento, eles foram feitos mediante consórcio estabelecido entre a
FCC e a Fundação Cesgranrio; e, atualmente, somente essa segunda da, de 15 de dezembro, alterou o sistema de pre-
tem sido a vencedora das licitações, com custos estimados entre 40 e
60 milhões de reais cada um. Para esse fim, não há falta de recursos
vidência social, particularmente no que se refere
financeiros. às garantias de isonomia entre pessoal civil da ati-

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va e aposentados e entre os Poderes Executivo, das como já “testadas” num universo grande de
Legislativo e Judiciário. “complexas e múltiplas situações educativas”,
A EC 19 – da lavra do ex-ministro da Ad- correspondem sempre a um diagnóstico mais ob-
ministração e Reforma Administrativa (MARE), jetivo e “científico” – porque padronizado – das
Luis Carlos Bresser Pereira – é o primeiro docu- dificuldades educacionais e das “melhores” alter-
mento legal a expressar, radicalmente, a reconcei- nativas para superá-las, complexidade que os pro-
tuação das atividades essenciais do Estado, defen- fessores, nas salas de aula ou nos sindicatos, não
dendo a concepção de público não-estatal, uma têm condições de contestar.
vez que a atividade, sendo de interesse público, Qual a atitude esperada, então? Que os
não precisaria ser realizada necessariamente pelo PCNs sirvam de guias “criativos” para os profes-
Estado. Nessa concepção, os únicos funcionários sores – sempre “mal formados” – organizarem
públicos considerados “essenciais” são os vincu- suas aulas, de modo a garantir o “sucesso” de to-
lados às auditorias e às polícias.16 Os “serviços” dos os seus alunos. E se não der certo essa solu-
públicos oferecidos pela educação e pela saúde ção? A “culpa” será do professor que – portador
podem, a partir dessa data, ser oferecidos por de “incompetência” quase atávica – não conse-
agentes “privados”. guiu entender ou praticar, eficazmente, as suges-
Na área educacional, a proposta para atua- tões oferecidas. Aprender, em conseqüência,
lizar esses funcionários à “nova” realidade, “acor- como fazer, independentemente do por que fazer,
dando-os” desse comportamento letárgico que a passa a ser prioritário para a sobrevivência do
“inoperante” administração pública lhes propicia- professor nas avaliações de desempenho.
va, se concretiza a partir de intervenção em duas O SEGUNDO GOVERNO FHC:
vertentes: responsabilizar cada profissional de AS (MESMAS) POLÍTICAS E PRIORIDADES
educação – e, portanto, todos os profissionais – Fernando Henrique foi reeleito para um se-
pelos resultados educacionais alcançados pela sua gundo mandato (1999/2002) e, na educação,
unidade escolar e “reconhecer” esses resultados manteve-se o mesmo ministro, fato raro e inédito
por meio do pagamento de gratificações, propor- na história governamental federal. No ano de
cional ao êxito ou sucesso da ação “coletiva” em- 1999, continuou a febre “legisferante” caracterís-
preendida. Em outras palavras, de ora em diante, tica desse governo: não ficaria nível ou modalida-
os exames nacionais unificados – ou, quiçá, esta- de de ensino que não fosse “regulamentada” por
duais – constituem o principal critério de avalia- ele, por meio do CNE. As aprovações de diretri-
ção do desempenho do professor e do especialis- zes nacionais curriculares e das diretrizes “opera-
ta de educação e os respectivos aumentos salariais cionais” se sucederam. Entre as principais regula-
– quando concedidos – devem estar relacionados mentações, a educação de jovens e adultos (EJA)
e ser proporcionais ao “produto” alcançado. teve suas diretrizes curriculares aprovadas em
Nesse sistema – e é isso o que significa um 2000; a educação profissional de nível médio, em
sistema nacional de avaliação –, os PCNs ganham 1999, 2000 e 2001; a educação no campo, em
importância inesperada, pois devem ser adotados 2001 e 2002; as escolas indígenas, em 1999; a edu-
com a maior fidelidade possível, se a escola não cação infantil, em 1998, 1999 e 2000; a educação
quiser ver seus “prêmios” e outros incentivos so- especial, em 2001; os ensinos fundamental e mé-
ciais distribuídos a outros funcionários mais dio, em 1998; e a formação de professores para a
“competentes” ou dóceis. Nesse sentido, as orien- educação básica, em 1999 e 2000.
tações e “sugestões” contidas nos PCNs, divulga- Evidentemente essas legislações não foram
aprovadas de forma “tranqüila”, pois traduzem as
16 O art. 24 da EC 19, ao dar nova redação ao art. 241 da CF/88, autoriza mais diversas visões e perspectivas do País e da
“a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total
ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continui-
educação. As referentes à formação de professores
dade dos serviços transferidos” (grifos acrescidos). são um bom exemplo, pois geraram manifesta-

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ções das principais instituições e entidades cientí- e conseguiu que o Plano Nacional de Educação
ficas e educacionais, bem como de universidades (PNE) elaborado pelo governo17 fosse votado no
públicas e privadas, preocupadas com a tendência período de férias escolares dos professores brasi-
de “simplificação” da formação dos professores, leiros. Assim, no mês de janeiro de 2001, com re-
concretizada pela redução tanto do período de latoria do deputado Nelson Marchezan (PSDB/
formação – às vezes, até em dois anos! – quanto RS), o PNE foi aprovado pela Câmara Federal,
da carga horária destinada aos fundamentos da tendo passagem simbólica pelo Senado, pois sua
educação em benefício das metodologias de en- tramitação revelou-se – como todos os principais
sino. Fato mais grave se deu quando da aprovação atos legais de FHC – sumaríssima. Sob n.º 10.172,
de projetos especiais de formação de professores o PNE se tornou lei. Porém, o presidente da Re-
na modalidade semipresencial ou a distância. pública vetou nove artigos do projeto aprovado,
Em maio de 2000, foi aprovada a lei com- todos os que possuíam alguma implicação finan-
plementar (LC) 101, conhecida como Lei da Res- ceira – mesmo de pequena monta –, levando o
ponsabilidade Fiscal (LRF), cujo conteúdo pode deputado Marchezan a se sentir “traído” pelo seu
ser considerado ainda desconhecido pelos profis- governo e a manifestar-se contrário aos vetos
sionais de educação. Essa LC “criminaliza” a presidenciais. Mesmo assim, o governo não se
política, transformando aparentemente em ato comoveu, não permitindo que os vetos ao PNE
asséptico as imposições destinadas a “conter” os fossem colocados em plenário. Até hoje, aliás, es-
dirigentes municipais e estaduais que ousarem ses vetos nunca foram submetidos ao plenário do
priorizar as políticas sociais em detrimento da es- Congresso Nacional.
tabilização econômica. É nesse ato legal, também, GOVERNO LULA E SUAS CONTRADIÇÕES:
que se consumou a permissão de utilização de, no TENDÊNCIAS E PERSPECTIVAS PARA O SÉCULO XXI
máximo, 60% dos recursos orçamentários para Luiz Inácio Lula da Silva, líder sindical e
os gastos com pessoal. Tal restrição – com graves metalúrgico, ex-presidente do Sindicato dos
conseqüências para a expansão das políticas so- Metalúrgicos do ABC – um dos mais ativos sin-
ciais – praticamente “congelou” o aparelho de Es- dicatos do País – e fundador do Partido dos Tra-
tado ao seu tamanho de 2000. balhadores (PT), elegeu-se presidente da Repúbli-
ca com mais de 50 milhões de votos, no segundo
O sistema social teria poucas condições de
turno, ultrapassando, por significativa margem de
expansão, desenhando-se, como tendência, a
votos, seu adversário José Serra (PSDB/SP). Ven-
oferta de serviços públicos focalizada nos sujeitos
ceu as eleições em coligação com o Partido Libe-
mais pobres, com pouca ou nenhuma condição
ral (PL), que tem o vice da chapa, e com o apoio
de automanutenção. Os salários dos funcionários
do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e do
públicos sofreriam, dali para frente, a restrição
Partido Socialista Brasileiro (PSB).
percentual imposta, pois só se aumentaria o nú-
mero de funcionários e serviços existentes com Na ausência de decisão política na imple-
maciço investimento em tecnologia ou com clara mentação de novo modelo de política econômica,
contenção salarial. Caso um prefeito – “amigo” radicalmente alternativo ao existente no País, e de
das políticas sociais – tentasse resistir ao cerco, propostas de gestão pública que produzissem
seria punido administrativa e criminalmente nos ações vivificadoras na burocracia central esterili-
termos da lei. Não por acaso, os dados esta- zada, o governo Lula – depois da festa da posse,
tísticos indicam, nesse período, “estabilidade” em que a população saudou, de forma participa-
dos dados de atendimento nas áreas sociais ou, tiva e comovente, como nunca se vira no Planal-
em outras palavras, tendências de congelamento 17 Existiam no Congresso Nacional dois planos em análise: o do
no atendimento. governo e o da “sociedade brasileira”, de autoria de um grupo de edu-
cadores – estimados em 6 mil – do Fórum Nacional em Defesa da
Em 2001, sempre surpreendendo os educa- Escola Pública, que realizou dois Congressos Nacionais de Educação
dores, o ministro da Educação fez malabarismos (Coned), com o objetivo de elaborar coletivamente esse PNE.

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to, seu chefe de Estado, de origem popular – tem polêmica, com a palavra de ordem “Formar, sim;
surpreendido pela repetição dos mesmos argu- certificar, não”, propondo sua suspensão como
mentos e práticas do governo anterior. forma de “reaproximar” o governo dos sindicatos
Seu primeiro projeto importante – a Refor- nacionais.
ma da Previdência –, compromisso do governo O projeto-bomba seguinte foi o bolsa-
anterior com agências internacionais, encontrou infância, destinado a oferecer uma bolsa – tão pe-
na gestão Lula condições excepcionais de legiti- quena, que recebeu dos educadores, e dos pró-
midade, que permitiriam completar ações que o prios petistas, o apelido de bolsa-pochete – no va-
anterior não tinha tido força política para fazê-lo. lor de 50 reais mensais, para que as mães pobres
É difícil imaginar momento tão delicado, do pon- ficassem em casa, com seus filhos, evitando – ou
to de vista político, como o dos protestos nacio- reduzindo – a pressão pela criação de creches em
nais de funcionários públicos vindos de todos os período integral. Tal projeto previa também a en-
cantos do País, em Brasília. Lula e o PT represen- trega de um “kit pedagógico”, com previsão de
tavam a esperança e o desafio histórico para a treinamentos para que as mães pudessem “utilizá-
América Latina, até então sem lideranças e movi- lo” corretamente e brincassem, “de maneira peda-
mentos sociais capazes de motivar o enfrenta- gógica”, com seus filhos. Anunciado com certa
mento, de forma coletiva, dos sucessivos ataques expectativa positiva na mídia, o movimento
e investidas dos setores conservadores. Inter-Fóruns – reunião dos Fóruns Estaduais em
A necessidade de manutenção de superávits Defesa da Educação Infantil – organizou-se rapi-
para o pagamento dos juros e serviços da dívida damente e em nível nacional, solicitando ao mi-
externa aprisiona a economia e gera a mesma pa- nistro o abandono do projeto, por contrariar os
ralisia do governo anterior, exatamente pela falta princípios do direito à educação infantil.
de recursos disponíveis para as políticas sociais. Além da criação de um grupo de trabalho
Na educação, nomeou-se para ministro o sena- interministerial para a reforma do ensino supe-
dor Cristóvam Buarque, ex-reitor da Universida- rior, o ministro da Educação criou o projeto Brasil
de de Brasília e ex-governador do Distrito Fede- Alfabetizado, em substituição ao da Alfabetiza-
ral. Engenheiro de muitas idéias, mas personalis- ção Solidária, do governo anterior. Manteve, mes-
ta, compôs sua equipe praticamente com os que mo assim, a maior percentagem de recursos nas
haviam trabalhado com ele no governo do Dis- mãos da mesma ONG, a Alfabetização Solidária,
trito Federal. Iniciou a gestão, convidando a naquele momento ainda dirigida pela ex-primeira
União Nacional dos Estudantes (UNE) para con- dama, a socióloga Ruth Cardoso. Somente no fi-
versar e visitou os estudantes na sua sede, o que nal do segundo ano de governo, com novo mi-
nunca antes acontecera. Apontou inovações, mas nistro, a prioridade às entidades oficiais – muni-
não conseguiu traduzir, em seu breve mandato, o cípios e Estados – foi retomada. O Projeto Brasil
acúmulo do próprio PT na área educacional, man- Alfabetizado, pretensioso nos objetivos, não
tendo a política do PSDB em muitos dos novos conseguiu a adesão esperada da sociedade, man-
projetos. tendo-se como mais um dos que não disputaram,
Cristóvam Buarque chegou a propor a cria- com o vigor necessário, a prioridade de alfabeti-
ção de “redes de formação” permanente para os zação urgente e competente dos brasileiros. Já o
professores, para, em seguida, defender processo Mova Brasil – proposto por Paulo Freire, em
de “certificação da competência” deles a ser com- 1989 – e considerado programa prioritário na
provada por exames nacionais, periódicos, e des- campanha eleitoral, não ganhou espaço no gover-
tinados a todos os professores das redes públicas no petista, nem com o primeiro nem com o se-
do Brasil! A CNTE protestou e a reunião nacional gundo ministro da Educação.
para aprovação dos “conteúdos” principais desse Os estudos referentes ao novo Fundo de
processo de formação e de certificação expôs a Manutenção e Desenvolvimento da Educação

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Básica e Valorização do Magistério (Fundeb) – Novas surpresas. O primeiro projeto do


previsto inclusive no programa de governo –, em ministro recém-empossado foi a oferta de bolsas
substituição ao atual Fundef, cuja vigência cessa para alunos “pobres” em cursos superiores priva-
em 2006, e agora abrangendo toda a educação dos – felicidade geral dos empresários da educa-
básica (educação infantil + ensino fundamental ção. De grande apelo social e fortemente popu-
+ ensino médio) e suas diversas modalidades, não lista, tal projeto libera, num primeiro momento,
avançaram significativamente, de modo que ele escolas filantrópicas e comunitárias, e, num se-
não seria definido no primeiro ano de governo. gundo, quem quiser aderir (portanto, também as
Em relação ao sistema de avaliação implan- escolas privadas), do pagamento de percentual
tado, há esforços no sentido de reformulá-lo – e que deveriam investir em ações sociais, a fim de
até, de suspendê-lo –, mas o receio de protestos fazerem jus à própria denominação de comunitá-
generalizados acaba inibindo essas iniciativas e rias ou filantrópicas. Concede, assim, privilégios a
muito pouco se altera do “desenho” anterior. qualquer escola, sem outras exigências, além da
Pode-se afirmar inclusive que alguns membros matrícula dos bolsistas. Tudo isso, em defesa da
do governo petista defendem com maior vigor e democratização do ensino superior brasileiro!
gosto as propostas anteriores; assim, o SAEB, nes- A segunda prioridade – a Reforma do En-
se terceiro ano do governo Lula, abriu mão da es- sino Superior –, que já está na sua segunda versão,
colha das escolas por amostragem, assumindo apresenta como ponto positivo a instalação de
que os exames abrangerão o conjunto das escolas permanentes debates, em muitos pontos do País,
fundamentais públicas brasileiras. Ora, exceto a com a expectativa de, na proposta final, as suges-
Fundação Cesgranrio, que ganha bastante dinhei- tões da comunidade científica e universitária se-
ro com esses exames, não se conhece outra van- rem levadas em conta. Aqui não se discutirão
tagem (pedagógica) para a atual opção, pois o en- seus méritos eventuais, já que esse assunto está
volvimento de todas as escolas implica e motiva o sendo estudado mais profundamente por outros
ranqueamento entre elas, o que, do ponto de vista especialistas.
educacional, é desaconselhável. Por fim, o projeto de emenda constitucio-
Nem mesmo a promessa de realizar de for- nal (PEC) que altera o atual Fundef, substituindo-
ma democrática, já no primeiro ano de mandato, o pelo Fundeb, divulgado recentemente,18 frus-
uma Conferência Nacional de Educação foi cum- trou educadores e políticos, pois, embora manti-
prida, frustrando petistas e educadores sobre um do o nome educação básica, exclui as crianças de
possível encontro nacional para discussão e esta- zero a três anos de idade da possibilidade desse fi-
belecimento de uma agenda política orientadora nanciamento. O PEC prevê a utilização de 80%
das ações do governo, dos movimentos sociais e dos 25% dos recursos vinculados à educação para
do Legislativo. a composição do Fundeb. O governo propõe du-
Cristóvam Buarque foi substituído por ração de 14 anos para o novo fundo: consideran-
Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre e ex- do-se sua aprovação ainda em 2005, sua vigência
teria início em 2006 e vigoraria até 2019. Assim
deputado federal, pouco conhecedor da área
como o Fundef, o novo fundo foi criado pela
educacional, mas considerado homem “de ação”,
alteração do art. 60 do ato das disposições tran-
com acesso fácil ao presidente da República.
sitórias da Constituição Federal, e não pelo corpo
Estabeleceu três projetos prioritários para a sua
desta, como expresso no primeiro projeto do go-
Pasta: o Universidade para Todos (ProUni), que,
verno. Do mesmo modo que o Fundef, são des-
na ocasião, ninguém sabia de que se tratava, a
tinados 60% do total de recursos para o paga-
Reforma do Ensino Superior e a aprovação do
novo Fundo para Financiamento da Educação 18 O PEC que cria o Fundeb foi entregue pelo ministro da Educação ao
Básica (Fundeb). Congresso Nacional, em 14/jun./05 (n.º 415/2005).

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mento de profissionais do magistério da educa- Veículos Automotores (IPVA), do Imposto sobre


ção básica em efetivo exercício, e não mais 80%, a Renda e Proventos incidentes sobre rendimen-
como propôs a CNTE, o que não nos permite pre- tos pagos pelos municípios e Estados e ainda a
ver possibilidades de aumentos ou ganhos sala- quota parte de 50% do Imposto Territorial Rural
riais a curto e médio prazos. devida aos municípios (ITR), com pouco impacto
O PEC propõe, também, uma implantação sobre o total de recursos.
gradativa desse fundo, prevendo-se quatro anos Os recursos do salário-educação utilizados
para a sua completa inserção. Nesse período de desde a sua criação, em 1964, exclusivamente para
transição, tanto os recursos financeiros a serem o ensino fundamental – regular e de educação de
alocados quanto o número de alunos a ser com- jovens e adultos – passam a atender toda a educa-
putado teriam quatro anos para chegar aos 100%. ção básica, sendo que na regulamentação apresen-
Desse modo, no primeiro ano, seriam computa- tada (PL que deverá substituir a lei n.º 9.424/96,
dos todos os alunos do ensino fundamental – que regulamentou o Fundef), o MEC se apropria
hoje em dia, no Fundef – acrescidos de 25% de de mais 10% desse total. O parágrafo único, do
alunos da pré-escola, do ensino médio e da edu- art. 25 do PL que acompanha a regulamentação
cação de jovens e adultos; no segundo ano, esse do PEC propõe que, além de 1% pago ao Institu-
percentual subiria para 50%, ou seja, todos os do to Nacional de Seguro Social (INSS) pelo trabalho
ensino fundamental, acrescidos de 50% do total de recolhimento dessa contribuição social, o MEC
de alunos apurados no ensino médio, na educa- ficará, do total arrecadado, com 10% para a
ção de jovens e adultos e na pré-escola; no tercei- “complementação” da União do Fundeb. Depois
ro ano, o percentual se elevaria para 75%, e, no disso é que o FNDE calculará as respectivas quotas
quarto, atingiria a totalidade dos alunos da edu- de um terço para a União (de novo!), correspon-
cação básica – não incluídas nesses totais as crian- dente à quota federal, na qual está prevista atua-
ças matriculadas em creches ou na faixa etária de ção “compensatória” para a redução de disparida-
zero a três anos. des regionais. Os outros dois terços – correspon-
Prevê-se, ainda, complementação pela União dentes à quota estadual – do montante de recursos
na mesma sistemática atual do Fundef, ou seja, a serão distribuídos, em cada Estado, proporcio-
União só irá complementar aqueles fundos esta- nalmente ao número de alunos matriculados na
duais em que o valor nacional não for atingido. educação básica, nas redes públicas de ensino, de
Na mesma lógica, os recursos do Fundeb são es- acordo com os dados do Censo Escolar do Mi-
timados tendo como pressuposto que nenhum nistério da Educação, sempre do ano anterior.
ente público ousará ampliar, significativamente, o O número de alunos do ensino público fun-
número de alunos atendidos atualmente. Caso damental, considerado o Censo Escolar de 2004,
isso aconteça, poderá provocar redução do valor é de 30,7 milhões e o governo pretende, em 2009,
gasto-aluno/ano, na medida em que os recursos quarto ano de vigência do novo fundo, atingir o
são os mesmos, atendendo o mesmo número de total de 47,2 milhões de alunos. Evidencia-se que
alunos ou menos. Se um número determinado de não está previsto crescimento de qualquer uma
municípios, por exemplo, reduzir o atendimento das redes, pois esse número corresponde ao total de
escolar, naquele Estado o valor gasto-aluno será alunos atendidos hoje em dia na educação básica.
maior. Se, ao contrário, esses mesmos municípios A segunda decepção da proposta de lei que
resolverem atender todos os cidadãos “de baixa regulamenta o Fundeb é que os fatores de dife-
escolaridade”, o valor unitário será reduzido. renciação (item II, do art. 8.º) não estão explícitos,
Os impostos que compõem a “cesta” Fun- conforme reivindicação das entidades nacionais,
deb são os mesmos do Fundef, acrescidos do Im- pois são esses coeficientes que definirão, na práti-
posto sobre Transmissões Causa Mortis e Doa- ca, os níveis ou modalidades de ensino a serem be-
ções (ITCMD), do Imposto sobre Propriedade de neficiados, financeiramente, com o novo fundo.

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Surpreende também no PEC – razão pela qual os gurado o seu direito constitucional de educação
municípios devem ficar atentos – a possibilidade infantil desde o nascimento? E como pode o MEC
de inclusão do ensino médio “profissionalizan- propor “escolas de fábricas” – proposta “requen-
te”, situação anteriormente negociada pelo Con- tada” dos anos 1970, quando a profissionalização
selho Nacional de Secretários de Estado da Edu- “básica” era bancada com recursos das indústrias,
cação (Consed) como “moeda de troca”, ainda futura empregadora dessa mão de obra –, preven-
que indevida, pela eventual não inclusão da cre- do a oferta de “bolsinhas” de 150 reais mensais,
che, risco estimado desde os primeiros momen- recurso não dispensável em face do valor do gasto-
tos da discussão do novo fundo. A inclusão da aluno, pago pelo Fundef até a presente data?
modalidade ensino médio integrado à educação O excesso de “bolsas” que vêm sendo ofe-
profissional traduz, certamente, negociações não recidas pelo governo Lula parece traduzir uma
transparentes sobre a prevalência dos Estados no preferência pela assistência social ou pela “solida-
estabelecimento de prioridades e de diferenciação riedade” diante da desigualdade social e poderá se
de coeficientes. constituir um indicador de tendência do século
É sabido que em negociações nacionais, os que se inicia. Aceitar as limitações financeiras,
Estados, por sua maior força política e de pressão sem a apresentação de contrapropostas que “me-
– até porque são somente 27 –, sempre se saem xam” estruturalmente com as proposições neoli-
melhor que os municípios. No caso do Fundeb, berais, sugerindo novos rumos econômicos e po-
a urgência da aprovação advém muito mais da líticos para a alteração dessa situação, traduz uma
pressão por parte dos Estados, que municipaliza- anomia inconcebível das “esquerdas”.
ram quase todo o ensino fundamental, do que Admitida essa “opção” assistencialista, de-
dos municípios, que nem poderão contar – con- senha-se nova tendência, em que a busca por re-
siderada a atual proposta de PEC – com novo cursos da e na comunidade passa a significar uma
aporte de recursos financeiros. Interessante con- variável fundamental na manutenção das políticas
siderar, também sobre o Fundeb, as propostas de públicas, pois, só será possível admitir expansão
extensão do ensino fundamental de oito para do atendimento, se e quando a “comunidade”
nove anos, sem que sejam antecedidas de dia- conseguir novos investimentos para a sua ma-
gnósticos objetivos sobre as possibilidades de Es- nutenção. Isso traduz a inclinação – da qual o
tados e municípios atenderem crianças menores, Fundeb não é exceção – à reorientação do gasto so-
em salas do ensino fundamental, sem acomoda- cial, dirigindo-o às camadas mais pobres da po-
ções adequadas ou compatíveis com as atividades pulação e aí melhorando sua eficiência, sem ne-
pedagógicas exigidas para essa faixa etária. cessariamente aumentar as despesas. Tais propen-
A pergunta a ser feita é: se o setor público sões combinam projetos orientados para a “foca-
não tem condições financeiras, ou “tira o corpo lização” e a “seletividade” nas políticas sociais.
fora”, quem o MEC propõe para atender as crian- No entanto, para nós da América Latina,
ças pequenas, hoje em dia por ele excluídas da di- importa combater uma outra tendência – cada
visão “Robin Hood” do Fundeb? Por que o MEC vez mais presente –, que traduz a concepção con-
decidiu optar pelos jovens do ensino médio servadora na admissão de que a situação atual já
como prioridade de seu atendimento, e não pelas não pode ser mais estruturalmente alterada, estan-
criancinhas indefesas, “futuro do Brasil”? Por que do já decididamente superadas as políticas sociais
lança – no dia da entrega do PEC do Fundeb – um de atendimento a pobres e ricos, de forma eqüi-
programa de bolsas de estudo a alunos do ensino tativa. Isso porque os mais ricos teriam se orga-
superior privado, no valor de 300 reais mensais, nizado e se “protegido” num sistema de políticas
para que eles possam continuar seus estudos – de sociais de razoável (ou alto) padrão de qualidade,
média ou baixa qualidade – em período integral, restando aos mais pobres, no máximo, a auto-
ao passo que as crianças não conseguem ter asse- organização em cooperativas ou ONGs, para as

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quais o Estado desenvolverá políticas sociais de ca- culturais etc., possibilitando a elaboração de pro-
ráter exclusivamente assistencialista, com claro di- gramas mais “ousados” de organização do siste-
recionamento aos chamados grupos sociais de risco. ma social, com base em um projeto nacional
A sociedade brasileira, porém, testemunha fundado no conceito de políticas sociais de cará-
a coexistência de instituições legais “vivas” – de- ter universalista, contraposto ao modelo de
fensoras e asseguradoras de direitos no cotidiano globalização atual. Nos termos de Milton Santos,
selvagem da sobrevivência capitalista, nas áreas da tal projeto, “partindo das realidades e das neces-
saúde, educação, cultura e assistência social – sidades de cada nação, deve não só entendê-las,
com grupos que mantêm e incentivam diferentes como também constituir uma promessa de
formas de ação coletiva como estratégia de for- reformulação da própria ordem mundial”.19
mação e atuação político-social. São conselhos,
grêmios, organizações sociais, sindicatos, grupos 19 SANTOS, 2003, p. 74-75.

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Dados da autora
Professora na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP)

Recebimento: 26/mar./05
Aprovado: 3/jun./05

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A Educação em Tempos de
Mudança: reforma do Estado
e educação gerenciada
EDUCATION IN TIMES OF CHANGES:
STATE REFORM AND MANAGED EDUCATION
Resumo O presente artigo reflete sobre as mudanças que vêm ocorrendo nas escolas
públicas, tendo por base as transformações estruturais e a “revolução gerenciada”
implementada no Brasil a partir da década de 1990. O texto analisa uma proposta
de gestão executada em escolas fundamentais de três regiões brasileiras (Norte,
Nordeste e Centro-Oeste), denominada Plano de Desenvolvimento da Escola.
Mostra como ela materializou-se institucionalmente e examina o seu impacto na
gestão e na organização do trabalho escolar. Embora ancorada por princípios de JOÃO FERREIRA
autonomia e de participação, tal proposta imprime uma visão gerencial DE OLIVEIRA
“estratégica”, centrada na racionalização de gastos e na eficiência operacional. Os Universidade Federal
resultados apontam que alguns Estados brasileiros tendem a privilegiar a proposta de Goiás (UFG)
joaofo@terra.com.br
estratégica, em detrimento do projeto político pedagógico da escola.

Palavras-chave GESTÃO ESCOLAR – AUTONOMIA ESCOLAR – PLANEJAMENTO MARÍLIA FONSECA


ESTRATÉGICO. Universidade de Brasília (UnB)
fmarilia@unb.br

Abstract The current text reflects upon changes that have occurred in public
schools, based upon the structural changes and the “managed revolution”
implemented in Brazil since the 1990’s. The article analyzes a management
proposal executed in elementary schools in three regions of Brazil (North,
Northeast, Mid-west), named School Development Plan. It shows how that
proposal was institutionally achieved and examines its impact on the school
work’s management and organization. Although anchored by autonomy and
participation principles, this proposal brings a “strategical” and management
vision, centered in budget rationalization and in operational efficiency. The
results point that some schools tend to privilege the strategical proposal, rather
than the political and pedagogical project of the school.

Keywords SCHOOL ADMINISTRATION – SCHOOL AUTONOMY – STRATEGICAL


PLANNING.

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INTRODUÇÃO

O
s anos 1980 demarcam, no cenário mundial, um
conjunto de mudanças no contexto da reestrutura-
ção capitalista e que compõe o modelo econômico
conhecido como globalização. A intermediação do
capital financeiro, que operava mediante parâme-
tros racionais preestabelecidos e acompanhava o
processo de produção do modelo conhecido como
Estado-nação, desconecta-se dessa referência e pas-
sa a ser regulada por corporações e mercados transnacionais de capital,
atuando com autonomia e globalmente integrados. O desempenho inter-
no das economias nacionais torna-se cada vez mais dependente dos fluxos
internacionais de capital, sobretudo no que tange ao investimento externo
direto.1 É compreensível, pois, que os Estados nacionais cheguem a ser
bem menores que o novo mercado financeiro mundial, passando a depen-
der da confiança deste para desenvolver suas políticas internas.2
Essa reorganização é explicada por Bruno3 como uma estrutura sis-
têmica, para a qual o planeta é uma unidade econômica única, sem fron-
teiras. Dessa forma, o processo econômico já não se encontra mais defi-
nido nem controlado por qualquer país em particular, mas por uma rede
de grupos econômicos e/ou por agências reguladoras internacionais con-
figuradas como centros incontestes de poder.
Em geral, o termo globalização diz respeito a um conjunto de fato-
res econômicos, sociais, políticos e culturais que expressam o atual está-
gio de desenvolvimento do capitalismo.4 Sugere a idéia de movimentação
intensa, ou melhor, de aceleração e de integração global, tendo por base
um processo de reestruturação produtiva em que a mais valia é produzida
globalmente por meio de acumulação flexível.5 Globalização, portanto,
pode ser entendida como um conceito ou uma construção ideológica, so-
bretudo porque traz implícita a ideologia neoliberal, segundo a qual, para
garantir desenvolvimento econômico e social, basta aos países liberalizar
a economia e suprimir formas superadas e degradadas da intervenção es-
tatal. Desse modo, a economia por si mesma se define, criando um sis-
tema mundial auto-regulado, ou melhor, uma sociedade global livre re-
gida por regras e sinais de mercado.6
Nessa perspectiva, agentes internacionais e nacionais do campo
econômico, a exemplo do Fundo Monetário Internacional, do Banco
Mundial, da Organização Mundial do Comércio, do grupo dos países

1 CHESNAIS, 1996.
2 ARRIGHI & SILVER, 2001.
3 BRUNO, 1999.
4 Entendendo que o termo globalização não é neutro, mas sugere um processo de adaptação, CHES-
NAIS prefere utilizar o conceito mundialização do capital, pois, para esse autor, essa categoria explicita,
com maior clareza, o novo processo de “reconfiguração do capitalismo mundial”, bem como “os meca-
nismos que comandam seu desempenho e sua regulação” (1996, p. 13).
5 HARVEY, 1992; WALLERSTEIN, 2001; e ARRIGHI & SILVER, 2001.
6 STIGLITZ, 2002; CHESNAIS, 1996 e 1998; e BOURDIEU, 1998.

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mais ricos do mundo (G7), dos bancos centrais e a partir da segunda metade da década de 1990.
das empresas globais, entre outros, buscam elimi- Tais reflexões objetivam, também, contribuir
nar fronteiras comerciais para integrar mundial- com a redefinição da escola pública, a fim de
mente a economia.7 O objetivo de tais mudanças construir uma escola democrática e de qualidade
estruturais é, portanto, fortalecer as nações ricas social, sintonizada com a luta e com as aspirações
e submeter os países mais pobres à sua dependên- da sociedade e dos educadores brasileiros.
cia, como consumidores. Esse processo de TRANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS E
globalização ou de mundialização do capital,8 em REFORMAS EDUCACIONAIS
virtude das especificidades e diferentes realidades De modo geral, as transformações no mun-
socioeconômicas e culturais, impõe inúmeros de- do contemporâneo estão associadas aos avanços
safios, sobretudo aos países pobres ou em desen- tecnológicos, decorrentes da reestruturação do
volvimento. As políticas públicas e, entre elas, as sistema de produção e desenvolvimento capitalis-
sociais são pensadas e postas em prática em um ta, que integram a chamada Terceira Revolução
quadro de definição e implementação de políticas Tecnológica ou Revolução Informacional.10 Nes-
econômicas que atendem aos interesses hegemô- sa nova realidade de acumulação flexível do capi-
nicos, industriais e comerciais de conglomerados talismo, a ciência e a inovação tecnológica apare-
financeiros e de países ou regiões ricas, como Es- cem como forças produtivas fundamentais, uma
tados Unidos, Japão e União Européia.9 vez que o conhecimento, o saber e a ciência as-
Todas essas transformações vêm afetando sumem papel destacado em todos os setores (in-
significativamente o campo da educação, especi- dústria, agricultura, serviços, lazer etc.). Como
almente a educação escolar, modificando finalida- conseqüência, as empresas com forte base tecno-
des, valores e práticas educativas. De maneira ge-
lógica passam a demandar um “novo tipo de tra-
ral, nas últimas décadas vêm sendo empregadas
balhador”, ou melhor, um profissional mais fle-
reformas e políticas educacionais, em países cen-
xível, polivalente ou multifuncional, capaz de
trais e periféricos, na busca de se ajustar a educa-
adaptar-se às mudanças tecnológicas e organiza-
ção escolar aos parâmetros da reestruturação ca-
cionais, bem como participar ativamente no cres-
pitalista, por meio da adoção de uma lógica mer-
cimento da produtividade, da competitividade e
cantil e de mecanismos que ampliem o grau de
gerenciamento, ou melhor, de controle sobre a do aumento do lucro da organização.
produção do trabalho docente. A redefinição de perfis profissionais, relacio-
Nesse sentido, o objetivo do presente texto nada à necessidade de consumo mais especializa-
é explicitar e discutir as modificações que vêm do, também leva o capitalismo a redefinir as fina-
acontecendo na gestão, na organização e na pro- lidades das instituições educativas, particular-
dução do trabalho docente, particularmente nas mente da escola básica e da universidade, para
escolas públicas, tendo por base as mudanças es- torná-las mais ajustadas aos interesses da forma-
truturais e no papel do Estado e a “revolução ge- ção requerida pelo mercado. Desse modo, por
renciada” praticada na educação escolar brasileira, meio das reformas e políticas educativas, os esta-
belecimentos educacionais têm modificado seus
7 BOURDIEU, 1998 e 2001; e STIGLITZ, 2002.
objetivos e prioridades, tendo em vista interesses,
8 Embora os dois termos sejam aqui utilizados como sinônimos,
alguns autores marcam diferenças entre economia globalizada e eco- demandas e valores próprios do campo econômi-
nomia mundializada. Para CASTELLS (1999), esta última é entendida co, ou melhor, do mercado.11
como um modelo de produção e de acumulação de capital que avança
mundialmente, mas guardando diferenças nacionais, de acordo com as
possibilidades e características do Estado-nação. Economia global é 10 LOJKINE, 1995; RIFKIN, 1995 e 2001; e SANTOS, 1997.
aquela com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real 11 Isso também tem produzido transformações nas práticas escolares e
e em escala planetária. Isso não quer dizer que ela abarque todos os ter- acadêmicas, levando-se em conta a ampliação do grau de subordinação
ritórios e processos econômicos do planeta, nem que inclua todas as do trabalho docente a interesses alheios ao campo propriamente edu-
pessoas, embora seus efeitos, positivos ou negativos, afetem a todos. cacional, se considerarmos, em especial, uma perspectiva de educação
9 CHESNAIS, 1996 e 1998; STIGLITZ, 2002; e AZEVEDO, 2001. como direito e bem público.

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A educação foi levada a adotar uma pers- REFORMA DO ESTADO,


pectiva de ampliação de valor do capital econômico. DESCENTRALIZAÇÃO DO ENSINO E
Tal visão vem sendo disseminada desde os anos GERÊNCIA EDUCACIONAL
1960 pela Teoria do Capital Humano, compreen- De forma a adaptar-se à nova ordem global,
dida como um enfoque conceitual que orienta a o Brasil definiu, nos anos 1990, uma série de
educação no sentido de produzir competências e mudanças conceituadas como reforma do Estado.
técnicas, de modo a assegurar e agregar valor aos Sob a orientação de Bresser Pereira,14 foram im-
recursos humanos no mercado. plementadas iniciativas de cunho gerencial volta-
das à modernização do aparato burocrático, cujo
Com esse ponto de vista, os países passa-
objetivo central era imprimir eficiência ao desem-
ram a implementar reformas e políticas educacio-
penho do Estado. Entre suas ações prioritárias, a
nais para ampliar o grau de articulação e subor-
descentralização administrativa transferiria fun-
dinação do processo de formação escolar às de-
ções da burocracia central para Estados, municí-
mandas e exigências da produção e do mercado.
pios e as denominadas organizações sociais, confi-
Organismos multilaterais, a exemplo do Banco
guradas como entidades “de direito privado pú-
Mundial, começaram a apoiar a reformulação do
blicas, não estatais”.
papel do Estado, estabelecendo diretrizes, metas
e ações de uma política educacional globalizante. Para evitar qualquer risco de enfraqueci-
O objetivo era atender às demandas de uma mento institucional do Estado, em face da trans-
globalização produtiva, entre as quais a de uma ferência de suas funções, adotaram-se medidas
escola competitiva provedora de educação que reguladoras capazes de impedir que a exacerbação
corresponda às necessidades da acumulação flexí- da autonomia na descentralização conflitasse
vel, tanto na formação para o trabalho quanto na com as metas governamentais. A justificativa era
formação para o consumo. garantir a “governança”, ou seja, a capacidade do
No projeto neoliberal que orientou o pro- Estado de executar eficientemente as políticas
cesso de globalização,12 esses organismos multi- públicas.15
laterais trataram inicialmente de promover novas Gandini e Riscal16 explicam que a tendência
formas de controle da produção do trabalho es- de substituir a noção de administração pela de
colar mediante mecanismos de avaliação, currícu- gestão, que marca o atual discurso da administra-
lo, formação, financiamento e gestão dos siste- ção brasileira, tem a ver com a idéia de governan-
mas de ensino e das escolas. Além disso, explici- ça. Enquanto a primeira refere-se ao aparato go-
taram claramente o papel da educação no tocante vernamental, apoiado em concepção técnica racio-
à geração de capital social13 para o desenvolvi- nal e neutra e na hierarquização meritocrática, a
mento do capitalismo, uma vez que a educação segunda possibilita a regulação das demandas e
poderia contribuir para a minimização da exclu- dos conflitos sociais. A intenção é adequar as de-
são, da segregação e da marginalização social das mandas aos interesses estratégicos da política go-
populações pobres. Tais processos são considera- vernamental, por meio do gerenciamento racio-
dos fatores impeditivos ao pleno desenvolvimen- nal dos recursos disponíveis e da redefinição de
to do capitalismo, podendo gerar ameaças à esta- papéis. O servidor público passa a ser definido
bilidade econômica e à ordem social dos países ri- como prestador de serviços e o cidadão é visto
cos. Nessa perspectiva, a educação visa a contri- como cliente. Portanto, a noção de gestão, segun-
buir com a composição da força de trabalho, a do as autoras, adquire sentido gerencial, na me-
formação de consumidores e a preservação da or-
14 Bresser Pereira foi ministro no primeiro mandato do governo Fer-
dem social. nando Henrique Cardoso (1995-1998), estando à frente do Ministério
da Administração e Reforma do Estado (MARE).
12 BOURDIEU, 1998 e 2001, e STIGLITZ, 2002. 15 BRASIL/MARE, 1995.
13 D’ARAUJO, 2003. 16 GANDINI & RISCAL, 2002.

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dida em que se refere à capacidade do Estado de vem sendo concebida desde ametade da década
imprimir eficiência aos serviços e estimular a ava- de 1980 e fortalecida ao longo dos anos 1990 nos
liação institucional como instrumento de aferição Estados Unidos, França, Holanda, Suécia e Ingla-
de resultados ou produtos. terra, entre outros, e também nos países em de-
As reformas políticas educacionais imple- senvolvimento da América Latina, como Brasil,
mentadas no País, sobretudo no governo de Fer- Chile e Argentina.
nando Henrique Cardoso (1995-2002), também Em 1991, realizou-se um seminário sobre
se pautaram por essa visão gerencial estabelecida qualidade, eficiência e eqüidade na educação bási-
no mercado global competitivo, orientando-se ca, com participação ampliada de educadores e
pelo eixo descentralizante e, ao mesmo tempo, órgãos da administração central.19 O propósito
regulador, que caracterizou a reforma do Estado era apresentar ao Ministério da Educação propos-
Brasileiro. O setor educacional assumiu o discur- tas políticas para o projeto da Lei de Diretrizes e
so da modernização educativa, da gerência, da Bases da Educação Nacional, ante a perspectiva
descentralização, da autonomia escolar, da com- de reformulação da Constituição Federal em
petitividade, da produtividade, da eficiência e da 1993. Os temas discutidos incluíam políticas e es-
qualidade dos sistemas educativos, da escola e do tratégias governamentais na perspectiva da quali-
ensino, na ótica do desenvolvimento de compe- dade do ensino, as relações entre atores e gestores
tências para atender às novas exigências produti- do sistema educacional, a gestão educacional e as
vas e do mercado em geral. fontes de financiamento. O documento que reu-
A descentralização é compreendida como niu as conclusões do seminário sinalizava um
um meio de transferir para a escola a respon- veio pragmático, especialmente quanto ao papel
sabilidade pela eficiência e a eficácia do ensino; a institucional do MEC. Enfatizava-se a necessidade
gestão é encarada como uma maneira de afirmar de novos critérios para o financiamento da edu-
uma nova cultura escolar, ancorada em modelos cação, aumento do leque de parceiros, estabeleci-
organizacionais que incorporem estratégias de mento de padrão básico de serviços educacionais,
descentralização, autonomia e liderança no âm- descentralização dos sistemas de ensino e auto-
bito da escola. O intuito é levar as instituições nomia escolar.
públicas a adotar modelos gerenciais, próprios A qualidade educacional seria garantida por
do setor privado, inclusive no que se refere à uma nova política de avaliação do sistema, com
organização do trabalho escolar17 e à busca de ênfase no gerenciamento de resultados. Na intro-
fontes alternativas de financiamentos para a es- dução do documento mencionado,20 anunciava-
cola.18 se a necessidade de subordinar a avaliação educa-
Nesse cenário, a avaliação do sistema edu- cional a filosofia e objetivos educacionais opera-
cacional tem adquirido centralidade como estra- cionalizáveis e de satisfação de necessidades básicas
tégia imprescindível para gerar novas atitudes e de aprendizagem.
práticas, bem como gerenciar os resultados das Coerente com a visão global que marcou o
novas competências da gestão. Tal propositura final do século XX, a Lei de Diretrizes e Bases da
17 Utilizamos aqui o termo organização do trabalho escolar, segundo
Educação Nacional (LDB, lei n.º 9.394/96)
OLIVEIRA (2002), para nos referirmos à forma como as atividades de estabeleceu orientações para a gestão democráti-
professores e demais trabalhadores da escola são distribuídas segundo ca da escola (art. 3.º), referindo-se ao espaço físi-
o tempo, as competências e as relações de hierarquia, entre outros.
18 Cabe destacar, também, que a descentralização do ensino no Brasil co, ao trabalho pedagógico, à participação de ato-
assumiu, desde a aprovação da LDB (lei n.º 9.394/96), uma perspectiva res escolares e à integração entre escola e comu-
de desconcentração e de municipalização do ensino fundamental e da
educação infantil. Esse processo foi patrocinado, em grande parte, pela
nidade por meio de conselhos escolares ou equi-
criação e implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvi-
mento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério/Fundef 19 BRASIL/SEPLAN/IPEA, 1992.
(lei n.º 9.424/96). 20 Ibid.

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valentes.21 Considerou-se a autonomia da gestão EDUCAÇÃO ESCOLAR GERENCIADA:


escolar como pré-requisito para a escola poder ACORDOS, PROGRAMAS E FINALIDADES
atuar estrategicamente, no sentido de alcançar a As propostas brasileiras de descentralização
qualidade educacional almejada com os recursos e autonomia escolar para o ensino básico têm
disponíveis. Enfim, a gestão foi concebida como sido postas em ação por meio de iniciativas nacio-
um conjunto de mudanças e processos com certo nais, como o Programa de Dinheiro Direto na
grau de intencionalidade e sistematização, a fim Escola, e outras de origem internacional, fruto de
de modificar políticas, atitudes, idéias e conteú- acordos entre o Banco Internacional de Recons-
trução e Desenvolvimento (Banco Mundial ou
dos curriculares, entre outros.
BM) e o governo brasileiro. Nessa última catego-
A própria organização do trabalho escolar e ria, incluem-se os projetos Pró-Qualidade, de-
da burocracia municipal e estadual vem sendo re- senvolvido nos anos de 1990, em Minas Gerais,
dimensionada, como preceitua a LDB/96 e o Pla- Educação Básica para o Nordeste e Municipali-
no Nacional de Educação (PNE), de maneira a zação do Estado do Paraná. Outro acordo, deno-
propiciar o exercício de novas funções por parte minado Fundescola, em fase de execução, abran-
dos membros dirigentes, técnicos e docentes. A ge as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
eles cabe atuar a fim de integrar ações entre os A forma contínua como vêm sendo assina-
sistemas municipais, estaduais e federais de ensi- dos os acordos internacionais de crédito, desde a
no, com vistas à melhor utilização dos recursos década de 1970, indica que a administração públi-
disponíveis. Compete-lhes ainda outra tarefa: ca brasileira tem expectativas positivas em relação
buscar recursos em fontes alternativas para o fi- ao apoio técnico e financeiro das agências inter-
nanciamento escolar e o fortalecimento da rela- nacionais de crédito e fomento. No campo social,
ção entre a escola e a comunidade, de modo a ga- especificamente na educação, o Banco Mundial se
rantir o seu apoio, inclusive financeiro. projeta como uma das principais agências de
Essa orientação já havia sido considerada na cooperação técnica, financeira e política. De par
própria Constituição Federal de 1988, uma vez com as vantagens geradas pelo empréstimo exter-
que o art. 206 estabelece que a descentralização no, a cooperação técnica acena com a melhoria
da gestão educacional é um dos princípios orien- do funcionamento do sistema educacional, me-
tadores para a igualdade de condições de acesso à diante objetivos de impacto, como expansão de
escola e para garantir seu padrão de qualidade. matrículas, diminuição da evasão e da repetência,
Recomenda, como estratégia, assegurar a autono- melhoria da qualidade do ensino e aproveitamen-
mia da gestão escolar, o que certamente implica to da experiência do Banco para garantir eficiên-
ampliar as exigências de co-responsabilidade dos cia operacional aos projetos e à administração do
diferentes níveis administrativos (União, Estados sistema como um todo.
e municípios). A integração entre essas esferas Ancorado em tais expectativas, o Ministé-
será efetuada por regime de colaboração entre fó- rio da Educação firmou, em meados de 1990, o
runs nacionais e locais de planejamento e organi- acordo técnico-financeiro com o Banco Mundial
zação de conselhos em diferentes estágios, para para a execução do programa Fundescola, como
facilitar a participação social nas decisões afetas à um modelo capaz de sinalizar o futuro da gestão
escola. escolar no Brasil. Por essa razão, é conveniente
compreendê-lo em profundidade.
21 Em muitos municípios foram criados fundos de natureza contábil, O Fundescola é gerido em nível federal
como a Associação de Apoio à Escola e o Caixa Escolar, geralmente
constituídos como entidades de “direito privado” para gerenciar a
pelo Ministério da Educação e por coordenações
descentralização dos recursos e afirmar a autonomia financeira das estaduais. No âmbito escolar, a gestão do projeto
escolas. Portanto, nem todas possuem o chamado Conselho Escolar
que, pelo menos em tese, apresenta uma concepção mais ampla da ges-
realiza-se por uma equipe composta pelo diretor
tão escolar. e pelo coordenador pedagógico, com a atribuição

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de envolver todos os funcionários. Conta, tam- des de pouca monta, que não visam diretamente
bém, com o apoio institucional do Programa das o núcleo pedagógico da instituição.
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ESCOLAS GERENCIADAS EM PERSPECTIVA:
envolvendo a contratação de consultores nas áreas PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA E 23
de planejamento estratégico. Composto de vá- PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO EM DEBATE23
rios subprojetos, o Plano de Desenvolvimento da No contexto do Fundescola, é visível o
Escola (PDE) é o carro-chefe do Fundescola. Sua modo diferenciado como dirigentes e docentes
ênfase recai no gerenciamento racional, concreti- concebem o Plano de Desenvolvimento da Es-
zado pela adoção de um modelo de gestão dos re- cola (PDE). Os primeiros o consideram como um
cursos, por intermédio de uma entidade de “di- instrumento primordial para facilitar as decisões
reito privado” legalmente constituída (Associa- sobre a administração física do estabelecimento,
ção de Apoio à Escola), a qual deve gerir os re- uma vez que permite concretizar soluções imedia-
cursos oriundos do poder público. tas, como reformas, compras de equipamentos e
Na verdade, essa proposta já constava do materiais. Já os professores, embora reconheçam
Plano Nacional de Educação,22 quando outorgou esses benefícios, afirmam que as exigências buro-
à escola a possibilidade de gerir recursos finan- cráticas aumentam a carga de trabalho docente,
ceiros mediante a organização de fundos de na- sem contribuir necessariamente para o seu traba-
tureza contábil na escola, os quais deverão ser lho em sala de aula.
acompanhados pela comunidade na forma de Desse modo, embora o Fundescola enfati-
participação em conselhos ou equivalente. Esses ze a possibilidade de aumento do poder de deci-
fundos são encaminhados por meio de progra- são para as escolas, na prática a própria siste-
mas como Dinheiro Direto na Escola (PDDE), mática de co-financiamento internacional impõe
executado pelo MEC/FNDE, além de outras inici- instrumentos de controle sobre os projetos,
ativas desenvolvidas no âmbito do Fundescola, como manuais para acompanhamento e planeja-
como o Projeto de Adequação de Prédios Esco- mento de ações, além de normas para utilização
lares (Pape) e Padrões Mínimos de Funciona- de recursos e prestação de contas do dinheiro re-
mento das Escolas (PMFE). passado à escola e de materiais e espaço escolar. Se,
de um lado, esses instrumentos ajudam a organi-
Como o dinheiro transferido não supre
zar o trabalho rotineiro, de outro, dificultam ou
suas necessidades básicas, as escolas são levadas a
até mesmo impedem as decisões autônomas
realizar alguma alternativa de arrecadação de di-
sobre outras questões mais pedagógicas, como a
nheiro, o que explica a orientação do poder públi-
realização de cursos de formação docente e me-
co de que cabe ao “diretor/líder/gerente” adquirir
lhoria das condições de trabalho em sala de aula.
competência para buscar outras fontes de recur-
sos, mediante convênios, acordos e contratos com No tocante à organização do trabalho es-
entidades públicas e privadas, nacionais ou inter- colar, implementa-se uma dinâmica de cunho
nacionais. Assim, elas incentivam a contribuição taylorista, recuperando princípios e métodos da
voluntária da comunidade, realizando campanhas gerência técnico-científica. Esse modus operandi,
e eventos capazes de prover-lhes recursos adicio- trazido pelo PDE, facilita a divisão pormenorizada
nais. Era de se esperar que as tarefas de arrecada- do trabalho escolar, com nítida separação entre
ção, utilização e fiscalização do dinheiro fossem quem decide e quem executa as ações, além de
repassadas para os pais e outros membros da co- fragmentar as atividades em inúmeros projetos,
munidade. A realidade mostrou que o trabalho com “gerências” próprias nas quais a cada um
maior recai sobre a direção da escola, obrigando- compete apenas uma parte do poder decisório.
a a gastar grande parte do seu tempo em ativida- 23 As análises nesse tópico baseiam-se em pesquisa, realizada pelos
autores, sobre o Fundescola/PDE (cf. FONSECA, TOSCHI & OLI-
22 BRASIL/Senado Federal, 2001. VEIRA, 2004).

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As deliberações sobre o todo já vêm prescritas em seu processo de formação que possibilitem
em diretrizes concebidas por “instâncias superio- maior criatividade na sua prática de sala de aula e
res”, como costumam referir os membros da es- promovam a satisfação das expectativas cogniti-
cola. Portanto, não se alcança a repartição eqüita- vas e afetivas dos alunos. Valoriza mais o saber
tiva do poder, mas a sua utilização desigual entre construído pela própria escola do que a capacida-
os membros da mesma coletividade. de de especialistas que lhe são exteriores.
A participação da comunidade, ou melhor, Fica evidente que, na mesma esfera gover-
dos pais, ocorre por mero formalismo legal, afas- namental e, por que não dizer, na das escolas,
tando-se dos propósitos de uma prática de gestão convivem atualmente duas concepções antagôni-
efetivamente participativa. Reduz-se à presença cas de gestão educacional, provenientes de dife-
eventual, geralmente para ouvir a transmissão de rentes matrizes teóricas. Uma, de caráter bu-
ordens, avisos ou para conversar sobre compor- rocrático, internaliza modelos concebidos por
tamento e rendimento escolar dos filhos. Ou, agências financeiras internacionais; a outra sinali-
ainda, limita-se ao cumprimento de atividades za a aspiração da comunidade educativa por uma
operacionais e colaborativas no Conselho Esco- escola mais autônoma e de qualidade. No entan-
lar, no controle fiscal do dinheiro repassado à es- to, a proposta burocrática se fortalece nas escolas,
cola ou em eventos cívicos e festivos. impulsionada pelo próprio prestígio dos acordos
Convivendo com essa prática de gestão de- internacionais, com sua aura de modernização
senvolvida pelo Fundescola/PDE, uma proposta institucional e aporte de recursos financeiros. As-
de âmbito nacional atribui à escola a responsabi- sim, o Plano de Desenvolvimento da Escola se
lidade de elaborar o seu plano educativo, conhe- sobrepõe ao Projeto Político Pedagógico, institu-
cido como Projeto Político Pedagógico. Ela foi indo uma forma de gestão que fragmenta as ações
incluída na LDB/96, no inciso I do art. 13. O Pla- escolares em inúmeros projetos desarticulados e
no Nacional de Educação24 também afirma a ne- que não imprimem uma direção política condi-
cessidade de uma gestão escolar autônoma, res- zente com a aspiração da comunidade escolar.
saltando a importância da participação dos pro- REFLEXÕES FINAIS: BALANÇO PROVISÓRIO
fissionais da educação e da comunidade escolar As políticas educacionais brasileiras atribu-
em conselhos escolares ou equivalentes para esti- em papéis cada vez mais complexos à gestão es-
mular a autonomia da instituição. colar, a qual deve responsabilizar-se pelo próprio
Essa concepção, gerada no quadro de mo- andamento do sistema de ensino e também pela
vimentos populares consolidados na fase de concretização dos princípios de qualidade e igual-
redemocratização do País, nos anos 1980, tem dade de oportunidades educativas. Como conse-
inspirado reflexões acadêmicas de que o Projeto qüência, exige-se o fortalecimento de um tipo de
Político Pedagógico orienta-se por uma visão de- gestão ancorada na crença de que a eficiência ge-
mocrática e que respeita a construção coletiva e a rencial e a performatividade dos diferentes atores
identidade da escola, sua cultura e caráter autonô- escolares, per se, poderiam determinar o desem-
mico, estimulando a participação de toda a comu- penho da escola. De acordo com essa visão, a for-
nidade escolar em colegiados e conselhos decisó- ma como a escola é organizada define todos os
rios. Além disso, busca superar a gestão dos meios seus resultados ou produtos, o que acaba deixan-
e produtos, apelando para iniciativas inovadoras, do em segundo plano os fatores externos que
orientadas por valores mais humanos e que levem também condicionam o seu desempenho.
em conta as vivências e os sentimentos, as con- A luta em prol da construção de uma edu-
dições de vida e de trabalho, a cultura e a qua- cação escolar pública, democrática e de qualidade
lificação dos professores. Incentiva novos aportes social, que leve em conta as exigências do mundo
contemporâneo, tendo em vista a construção de
24 BRASIL/Senado Federal, 2001. uma sociedade mais justa e igualitária, é deixada

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em segundo plano, uma vez que se instituiu, por muitos programas de mudança induzida fracas-
meio de várias políticas e ações, uma pedagogia sam: por atingir apenas a dimensão técnica do
voltada ao desempenho individual e à concorrên- professor, tratam-no como profissional parcial e
cia em geral. Tomando-se como exemplo o PDE, o ignoram como profissional total. Essa última
percebe-se uma modalidade de reforma voltada acepção comporta aspectos que implicam o pro-
para a organização do sistema educativo cujo alvo fessor como pessoa, o contexto do mundo real
principal são a racionalização de gastos e a efi- em que trabalha e a cultura do ensino construída
ciência operacional, e os seus objetivos, orienta- por ele nas relações com os colegas da escola.
dos racionalmente para resultados ou produtos. Com base em tais reflexões, acreditamos
A dinâmica da mudança é garantida pela variação que as modificações na estrutura da gestão esco-
dos insumos (ênfase nos materiais didáticos e nas lar trarão custos pessoais e institucionais cujas
tecnologias), sendo que a melhoria pedagógica conseqüências diretas recaem sobre o conjunto
decorreria dos procedimentos que afetam a orga- da comunidade escolar e, especialmente, sobre a
nização. direção e os professores. Isso significa que deve-
Um dos sustentáculos desse modelo é o rão construir condições para que as propostas se-
apelo a diferentes campos teóricos já elaborados, jam absorvidas ou ressignificadas em prol do seu
como o enfoque motivacional ou programas de trabalho administrativo e pedagógico. Portanto,
planejamento estratégico. Nesse caso, as mudan- há que se levar em conta a história institucional.
ças ancoram-se no conhecimento elaborado por O desconhecimento da história da escola e de
especialistas, quase sempre distantes do contexto seus atores pode gerar conclusões irrealistas so-
escolar. Isso explica a dificuldade de “estabilizá- bre os resultados das mudanças, atribuindo-lhe
las”, a partir do instante em que a mobilização e benefícios que se explicam mais pela qualidade
o apoio inicial se atenuam. dos atores, e pelas características estruturais da
Fullan e Hargreaves25 chamam a atenção instituição e do meio social, do que propriamente
para os efeitos de reformas e inovações introdu- por elas próprias.
zidas na escola com base em decisões que lhe são Com respeito ao assunto, Nóvoa26 argu-
externas. Nesse momento, as inovações, apresen- menta que os elementos-chave da dinâmica das
tadas como soluções, podem tornar-se um pro- transformações organizacionais encontram-se no
blema, pois agravam ainda mais a sobrecarga de que ele chama de bases conceituais e pressupos-
trabalho, definem mudanças superficiais e clara- tos invisíveis da cultura organizacional das esco-
mente burocráticas nos novos papéis e pouco las. Esse conjunto de elementos integra os valo-
contribuem para a democratização do poder e res, as crenças e as ideologias partilhados pelos
para a construção de novos conceitos sobre a seus membros e que lhes permitem atribuir sig-
qualidade do ensino. nificados às ações, além de mobilizar os seus ato-
Para esses autores, o trabalho de ensinar res e permitir a eles a compreensão da realidade.
não pode ser modificado por uma simples nego- A cultura organizacional da instituição escolar é
ciação técnica, mas envolve aspectos sociais e elemento de integração dos seus membros, como
morais, já que eles constituem uma das influên- também de sua diferenciação externa.
cias mais decisivas na vida e no desenvolvimento As transformações políticas, econômicas e
de futuras gerações. Por essa razão, o agir profis- sociais na sociedade contemporânea, resultantes
sional do professor não pode ser reduzido a sobretudo da implementação do projeto neolibe-
técnicas eficientes e comportamentos aprendi- ral e da globalização produtiva, têm gerado um
dos, mas inclui estabelecer juízos responsáveis quadro dramático de desemprego e de precariza-
em situações de incertezas. É nesse sentido que ção do trabalho, além da exclusão social, que ten-

25 FULLAN & HARGREAVES, 2000. 26 NÓVOA, 1999.

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de a se intensificar, particularmente nos países mais promissora para a escola pública. É de se es-
pobres, caso não ocorram ações que ponham a perar, portanto, que isso signifique o advento de
economia a serviço da sociedade, com a finalida- iniciativas governamentais autóctones que façam
de de gerar maior justiça social. É nesse contexto, valer os princípios de maior equalização social, de
que precisamos redefinir a educação. autonomia e de qualidade de ensino, conforme o
As mudanças políticas do atual cenário ins- sentido que lhes confere a aspiração dos educa-
titucional brasileiro anunciam uma perspectiva dores e da sociedade brasileira.

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Dados dos autores


JOÃO FERREIRA DE OLIVEIRA
Doutor em educação pela Universidade
de São Paulo (USP) e professor na
Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás (UFG).
MARÍLIA FONSECA
Doutora em educação pela
Universidade de Paris V e
pesquisadora associada sênior da
Faculdade de Educação da
Universidade de Brasília (UnB).

Recebimento artigo: 26/mar./05


Aprovado: 3/jun./05

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Educação Superior
Higher Education
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Política Educacional para a


Educação Superior
Brasileira na Última Década
EDUCATIONAL POLICY FOR BRAZILIAN
HIGHER EDUCATION IN THE LAST DECADE
Resumo Este artigo traz uma análise da política educacional implantada no Brasil, CARLOS DA
na última década (1995-2004), no que se refere especificamente à educação FONSECA BRANDÃO
superior, tendo como objeto de estudo as principais leis federais promulgadas Universidade Estadual
nesse período. Na esfera da política, notadamente da política educacional Paulista (Unesp)
brasileira, essa década é, em tese, muito rica, visto que exatamente durante ela cbrandao@assis.unesp.br
grande parte do arcabouço jurídico-institucional da educação brasileira foi
modificado, afetando, de forma direta, a educação superior brasileira. Ao final, o
presente texto faz algumas considerações sobre as propostas para a educação
superior brasileira atualmente em discussão.

Palavras-chave POLÍTICA EDUCACIONAL – EDUCAÇÃO SUPERIOR –


UNIVERSIDADE.

Abstract In this paper, we will discuss the educational policy of Brazil in the last
decade (1995-2004) specifically higher education, and the main federal laws that
were promulgated in that period. As policy, and specifically, as Brazilian
educational policy, this period is, theoretically, very fertile, since it was in this last
decade that great part of Brazilian education laws were altered, affecting directly
Brazilian higher education. We will finish this paper with some considerations
about the new proposals to Brazilian higher education that are already in
discussion.

Keywords EDUCATIONAL POLICY – HIGHER EDUCATION – UNIVERSITY.

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INTRODUÇÃO

E
screver sobre política educacional brasileira não constitui
tarefa das mais fáceis, porém, certamente, trata-se de um
desafio sempre instigante, especialmente se escolhermos
analisar o cenário educacional brasileiro da última década
(1995-2004). Esse período é, em tese, muito rico, visto
ter sido exatamente nele que boa parte do arcabouço ju-
rídico-institucional da educação brasileira foi modificada,
afetando, de forma direta, a educação superior no País.1
Nossos objetos de estudo serão as principais leis federais promul-
gadas nessa época: a lei n.º 9.131/95, que criou o Conselho Nacional de
Educação e instituiu o Exame Nacional de Cursos, conhecido como
Provão; a lei n.º 9.192/95, que modificou o processo de escolha dos
dirigentes universitários; a lei n.º 9.394/96, que definiu as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB); e a lei n.º 10.172/01, que aprovou o
Plano Nacional de Educação (PNE). Finalizaremos o presente artigo
com algumas considerações sobre as propostas para a educação superior
brasileira, atualmente em discussão, especificamente o Programa Uni-
versidade para Todos (ProUni) e o projeto governamental de reforma
universitária.
É possível afirmar que a educação brasileira adquiriu novo formato
a partir de 1995, quando Fernando Henrique Cardoso (do PSDB) tomou
posse na presidência da República. Progressivamente, via aprovação de
um conjunto de medidas legislativas, normativas e regulamentadoras,
modificou-se toda a política educacional brasileira.2 Entre todas as
transformações, consideramos as leis federais citadas no parágrafo ante-
rior como as mais importantes, no enfoque deste artigo, desse momento
histórico.
Poderíamos também ter escolhido outro período a ser analisado,
por exemplo, a política educacional brasileira para a educação superior
implantada após a promulgação da nossa atual Constituição. Acontece
que, entre outubro de 1998 (quando esta foi promulgada) e janeiro de
1995 (data da posse do presidente FHC), ou seja, em pouco mais de seis
anos, tivemos três presidentes da República (final do governo de José
Sarney, dois anos e meio de mandato de Fernando Collor de Melo e, após
seu impeachment, dois anos e alguns meses de Itamar Franco).
Essas mudanças políticas não favoreceram a formulação de uma po-
lítica nacional de educação, cujo primeiro passo seria a elaboração de uma
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Não esta-
mos afirmando que, nesse momento, não tivesse havido tentativas e
articulações no sentido de regulamentar as determinações sobre educação
dispostas na Constituição Federal. Pelo contrário, foram muitos os em-

1 Sobre um cenário geral da universidade brasileira nas últimas duas décadas, cf. CHAUÍ, 2001 e TRIN-
DADE, 1999.
2 Sobre a quantidade e variedade dessas modificações, cf. DUTRA, 2003, e DAVIES, 2004.

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bates políticos em torno do tema ocorridos nes- das de ensino superior conseguiam autorizações
ses anos. O que queremos realçar é que, a partir para abertura e reconhecimento de novos cursos,
da chegada ao poder de um outro grupo político e credenciamento de novas faculdades e universi-
– que contou com maciça base parlamentar e dades, de maneiras pouco ortodoxas.
possuía um projeto específico de política educa- A criação do CNE visava a moralizar esses
cional, pautado, em suas principais concepções, processos (autorizações para abertura e reconhe-
nas diretrizes definidas pelo Banco Mundial para cimento de novos cursos, e credenciamento de
a área, a serem aplicadas pelo chamados países em novas faculdades e universidades). Porém, essa
desenvolvimento3 –, a educação brasileira passou tentativa de moralização não durou muito. Na
a funcionar nos moldes atuais.4 votação, na Câmara de Educação Superior,7 do
AS PRIMEIRAS E URGENTES MODIFICAÇÕES processo de transformação de uma determinada
As primeiras transformações implantadas faculdade em universidade, com resultado favo-
pelo governo FHC, em política educacional para a rável, por um voto de diferença, um de seus con-
educação superior no Brasil, ocorreram logo no selheiros – o professor e filósofo José Arthur
primeiro ano de seu mandato inicial (1995-1998), Gianotti – pediu demissão do CNE, acusando-o
com a sanção das leis federais n.ºs 9.131/95 e publicamente de ter se transformado em um
9.192/95, ambas oriundas de medidas provisórias “balcão de negócios”, assim como o antigo CFE.
(MPs).5 A primeira criou o Conselho Nacional de Outras reportagens da revista Veja, durante 2001
Educação (CNE) e o Exame Nacional de Cursos e 2002, sobre o mesmo assunto, aumentaram a
(ENC), conhecido como Provão. A segunda, a lei suspeição sobre os procedimentos adotados pelo
n.º 9.192/95, modificou o processo de escolha “novo” CNE nos processos de autorizações, reco-
dos dirigentes universitários, concedendo aos do- nhecimentos, credenciamentos e transformações
centes o peso de 70% em qualquer processo de de faculdades em universidades. Coincidência ou
escolha dos dirigentes das instituições federais de não, a partir daí, diminuíram significativamente
ensino superior, e instituiu a votação uninomi- as solicitações de transformação de faculdades
nal.6 em universidades.
O CNE foi criado para substituir o Conse- A criação do Provão, ainda de acordo com
lho Federal de Educação (CFE), extinto durante a a lei n.º 9.131/95, foi cercada de muita propagan-
gestão de Itamar Franco na presidência da Repú- da governamental de que ele viria para fechar os
blica, entre outros motivos, porque, naquele mo- cursos superiores que apresentassem maus resul-
mento, o antigo CFE sofria constantes acusações tados em seguidas avaliações anuais consecutivas.
públicas de que teria se transformado em “balcão Porém, após a sua aplicação durante sete anos
de negócios”, no qual diversas instituições priva- consecutivos (de 1996 a 2002), e apesar de diver-
sos cursos e instituições terem obtidos as piores
3 Deve-se ressaltar que o governo FHC norteou-se na educação, e em notas, consecutivamente por vários anos, espe-
todas as outras áreas, pelas idéias do chamado Consenso de Washing- cialmente cursos oferecidos por instituições pri-
ton – também defendidas pelo Banco Mundial: busca de equilíbrio
orçamentário, abertura comercial e financeira, flexibilização das rela- vadas, absolutamente nenhum (público ou priva-
ções trabalhistas, redução dos gastos públicos, desregulamentação do do) foi fechado pelo CNE.
mercado interno e privatização de empresas estatais e de serviços
públicos (cf. SGUISSARDI, 2000, p. 4-8).
4 Sobre a atual estrutura e o funcionamento da educação brasileira, cf.
Mesmo tendo, a partir de julho de 2001,
BRANDÃO, 2004. transferido o poder de encerrar os cursos mal
5 A importância de citar que essas leis foram originadas de MPs é o fato
avaliados pelo Provão, do CNE para o Ministério
de que esse instrumento normativo (as MPs) constitui a forma pela
qual o Poder Executivo, a partir da Constituição de 1988, passou a da Educação (MEC), até o final do ano de 2003,
poder legislar sobre assuntos que considerasse de extrema urgência e nenhum foi fechado em razão das notas obtidas
relevância, já que as MPs possuem força de lei, com vigência imediata,
sendo posteriormente analisadas e aprovadas (ou rejeitadas) pelo Con-
gresso Nacional (Poder Legislativo). 7 A Câmara de Educação Superior é uma das duas câmaras que formam
6 Cf. SILVA & MACHADO, 1998. o CNE, sendo a outra a Câmara de Educação Básica.

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nas sucessivas edições do Provão.8 Pelo contrário, três segmentos nas eleições para escolha dos di-
segundo o Censo do Ensino Superior (MEC/ rigentes universitários; outra, bem diferente, é re-
INEP), o número de cursos superiores privados duzir drasticamente o poder de escolha política
saltou de 3.500, em 1995 (primeiro ano da gestão dos funcionários e alunos, o que, por conseqüên-
FHC), para 9.100, em 2002 (último ano da gestão cia, diminui significativamente a legitimidade
FHC), resultando num crescimento de 160% desses processos eleitorais.
(média de criação de três novos cursos superiores A lei n.º 9.192/95 também instituiu que es-
privados por dia). Nesse mesmo período, os cur- ses processos de escolha dos dirigentes das
sos superiores públicos passaram de 2.800, em instituições públicas de educação superior sejam
1995, para 5.200, em 2002, resultando num cres- feitos por meio de votações uninominais, ou seja,
cimento de 86% (média de criação de um novo acaba a idéia de chapa completa (reitor e vice-rei-
curso superior público por dia). tor, diretor e vice-diretor etc.) e dá-se a oportu-
Já a lei n.º 9.192/95 – modificando o pro- nidade para que as pessoas – no caso, os docentes
cesso de escolha dos dirigentes universitários, ins- – possam se candidatar a esses cargos individual-
tituindo-lhe a votação uninominal e concedendo mente. Na prática, a votação uninominal perso-
aos docentes o peso de 70% em qualquer proces- nifica as escolhas, uma vez que elimina a chapa,
so de escolha dos dirigentes das instituições fede- desvalorizando, assim, os programas de gestão, e
rais de ensino superior – prejudicou significativa- valorizando, ao mesmo tempo, as trajetórias in-
mente a educação superior pública brasileira. Esse dividuais.
grande prejuízo deu-se porque a luta histórica em Essas duas leis – n.ºs 9.131/95 e 9.192/95 –
defesa da universidade pública não é somente para foram as primeiras e mais urgentes modificações
que ela continue pública, gratuita, laica e de qua- introduzidas pelo governo FHC no cenário da po-
lidade, mas para que seja sobretudo democrática lítica educacional superior brasileira. A medida le-
no acesso, na permanência e na sua gestão. gislativa seguinte, tão ou mais importante do que
Assim, se as instituições públicas de educa- essas, foi a elaboração de uma nova Lei de Dire-
ção superior buscam seguir o princípio de uma trizes e Bases (LDB).
gestão democrática – na medida em que assegu- A NOVA LDB
ram a existência de órgãos colegiados deliberati- A história da construção da nova Lei de Di-
vos, dos quais devem participar os segmentos da retrizes e Bases da Educação Nacional (lei n.º
comunidade institucional, local e regional –, não 9.394/96 – LDB) pode ser dividida em duas partes,
faz sentido conceder o peso de 70% para o seg- ou melhor, em dois projetos. Um, que não vin-
mento dos docentes nos processos de escolha gou, foi gestado e debatido pelos principais re-
dos dirigentes, como determina a lei n.º 9.192/95. presentantes da sociedade civil e política ligados à
Essa determinação contraria a idéia de gestão de- educação, no período compreendido entre o final
mocrática, pois afronta o princípio da paridade dos anos de 1980 até quase a metade dos anos de
entre os segmentos (docentes, alunos e funcio- 1990, mais exatamente até a posse do senador
nários), sendo, também, exageradamente despro- Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na presi-
porcional. Uma coisa é concordar ou discordar dência da República. Outro, que acabou se trans-
do princípio da paridade de representação desses formando na LDB, foi gestado pelo Ministério da
Educação (MEC) do governo FHC, a partir das
8A partir de 2004, o Provão foi substituído pelo Exame Nacional de principais concepções e diretrizes educacionais
Desempenho dos Estudantes (Enade). As principais diferenças em
relação ao antigo Provão são: a aplicação do Enade é por amostragem difundidas pelo Banco Mundial para os países do
(o Provão era obrigatório para todos os alunos dos cursos avaliados) e chamado Terceiro Mundo.9
trienal para cada curso de graduação (a aplicação do Provão era anual).
O Enade compõe o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Supe-
rior (Sinaes), cujo objetivo é realizar o processo de avaliação das 9Sobre a política educacional do Banco Mundial para os países em
instituições de educação superior brasileiras, e foi instituído pela lei n.º desenvolvimento, cf., entre outros, CASTRO & CARNOY, 1997, e
10.861, de 14/abr./04. TOMMASI, WARDE & HADDAD, 1996.

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As discussões sobre a elaboração de uma meses mais tarde o governo conseguiu arquivar a
nova ldb duraram aproximadamente oito anos, proposta de LDB da Câmara dos Deputados e, em
ou seja, da promulgação da atual Constituição seguida, aprovar o seu projeto nessa casa legisla-
brasileira (outubro de 1988) à sanção da lei n.º tiva, com poucas alterações significativas. Portan-
9.394, em 20/dez./96. Em dezembro de 1988, o to, ele retornou à Câmara, sendo relatado pelo
deputado Otávio Elísio (PSBD-MG) foi encarrega- então deputado José Jorge (PFL-PE) e aprovado
do de apresentar à Câmara dos Deputados uma em 17/dez./96. Três dias depois, sancionou-se,
primeira proposta do projeto de lei para a nova sem vetos, a nova LDB, a lei n.º 9.394/96.
ldb. Ao deputado Jorge Hage (PSDB-MG), relator São muitos os pontos dessa lei sobre os
da Comissão de Educação, Cultura e Desporto quais podemos levantar questões, porém, neste
da Câmara dos Deputados, coube a apresentação artigo, nos limitaremos às referentes à educação
de um substitutivo àquela proposta. No fim de superior brasileira.
1993, o deputado Jorge Hage apresentou um A EDUCAÇÃO SUPERIOR NA NOVA LDB
projeto substitutivo, que, de maneira relativa- O capítulo IV do título V da LDB discorre
mente consensual, reuniu dezenas de outros pro- sobre o ensino superior, num total de 15 artigos
jetos e emendas. (do 43 até o 57), que procuram traçar as linhas
Tendo sua aprovação final em sessão plená- gerais da educação superior no Brasil. Neste tra-
ria da Câmara dos Deputados, em 13/maio/93, o balho, escolhemos analisar apenas os arts. 43 (so-
passo seguinte foi encaminhá-lo ao Senado Fede- bre as finalidades da educação superior), 44 (que
ral, onde coube ao então senador Cid Sabóia de relaciona os tipos de cursos superiores), 52 (acer-
Carvalho (PMDB-CE) relatá-lo na Comissão de ca da definição de universidades), 53 e 54 (que
Educação, fazendo-o de maneira coerente com as tratam a autonomia universitária) e 56 (sobre o
discussões até então empreendidas pelos deputa- princípio da gestão democrática nas instituições
dos e representantes da sociedade civil ligados à públicas de educação superior). Selecionamos es-
questão educacional. No entanto, até o final da- pecificamente esses artigos por considerá-los os
quele mandato legislativo (1990-1994), o projeto mais importantes na discussão, com referência
de LDB oriundo da Câmara dos Deputados não principal na atual LDB, da política educacional
logrou aprovação. Quase ao meio do ano de para a educação superior brasileira.
1995, já em novo mandato legislativo (1995- O art. 43 descreve os objetivos a serem
1998), o MEC enviou um projeto substitutivo de alcançados pela educação superior brasileira, con-
LDB, assinado formalmente pelo senador Darcy seguindo abranger, no nosso entendimento, to-
Ribeiro. Ele desfigurava o original, debatido du- das as possíveis finalidades que qualquer educa-
rante vários anos por todos os setores interessa- ção superior, digna desse nome, deve possuir. A
dos na educação brasileira e aprovado pela Câma- dificuldade reside em atingir, efetivamente, todos
ra dos Deputados. ou, pelo menos, a grande maioria desses objeti-
Coagidos pela forte pressão do governo, vos. Porém, não pode servir de justificativa à não
que detinha o apoio declarado de mais de 60 en- colocação, no texto legal, das finalidades da edu-
tre os 81 senadores (e queria ver o seu projeto cação superior, pelas quais devemos lutar conti-
aprovado, ao invés daquele sancionado pela Câ- nuamente.
mara dos Deputados), e constrangidos pelo fato Nesse sentido, segundo o art. 43 da LDB, a
de o senador Darcy Ribeiro encontrar-se grave- educação superior tem como propósito estimular
mente doente (vindo a falecer poucos meses mais a criação cultural e o aprimoramento do espírito
tarde), os senadores resolveram discutir as duas científico e do pensamento reflexivo; formar di-
propostas ao mesmo tempo, contrariando o pró- plomados nas diferentes áreas de conhecimento e
prio regimento interno do Senado Federal. Dada aptos para a inserção em setores profissionais e a
a folgada maioria parlamentar no Senado, alguns participação no desenvolvimento da sociedade

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brasileira, e colaborar na sua educação contínua; dois casos, esses documentos legais oferecidos ao
incentivar o trabalho de pesquisa e investigação final dos respectivos cursos equivalem ao diplo-
científica para o desenvolvimento da ciência e da ma de graduação.
tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, Concebidos para atender rapidamente às
desse modo, construir o entendimento do ho- “exigências” do mercado de trabalho, os cursos
mem e do meio em que vive; promover a divul- seqüenciais por campo de saber possuem a pre-
gação de conhecimentos culturais, científicos e tensa vantagem de serem mais rápidos, com du-
técnicos que constituem patrimônio da humani- ração mínima de seis meses e máxima de dois
dade e comunicar o saber por meio do ensino, de anos. Sua grande desvantagem é que esse tempo
publicações ou de outras formas de comunica- de duração limita também, e conseqüentemente,
ção; suscitar o desejo permanente de aperfeiçoa- a quantidade de conteúdos oferecidos. Por isso,
mento cultural e profissional e possibilitar a cor- afirmamos que a rapidez de sua realização cons-
respondente concretização, integrando os conhe- titui um pretenso benefício. Outra desvantagem
cimentos adquiridos numa estrutura intelectual desses cursos é que, apesar de considerados de ní-
sistematizadora do conhecimento de cada gera- vel superior, mas não de graduação, eles (tanto o
ção; estimular o conhecimento dos problemas do de complementação de estudos quanto o de for-
mundo presente, em particular os nacionais e re- mação específica) não dão direito ao aluno de,
gionais, prestar serviços especializados à comuni- após sua conclusão, julgar-se licenciado para dar
dade e estabelecer com esta uma relação de reci- aulas no ensino fundamental e médio ou cursar
procidade; promover a extensão, aberta à partici- qualquer programa de pós-graduação.
pação da população, para a difusão de conquistas As universidades que oferecem cursos se-
e benefícios resultantes da criação cultural e da qüenciais por campo de saber de complementa-
pesquisa científica e tecnológica geradas na ins- ção de estudos não precisam que eles sejam reco-
tituição. nhecidos pelo Ministério da Educação, pois não
Já o art. 44 relaciona os tipos de cursos a se- emitem diploma – apenas concedem certificado
rem considerados como de educação superior: de conclusão. Por sua vez, as que proporcionam
seqüenciais por campo de saber; de graduação; de esses cursos seqüenciais de formação específica
pós-graduação, compreendendo programas de necessitam de reconhecimento pelo Ministério
mestrado e doutorado, de especialização, aperfei- da Educação. Esses cursos podem ter sido auto-
çoamento e outros, abertos a candidatos diplo- rizados a funcionar, porém, se não cumprirem o
mados em cursos de graduação e que atendam às projeto pedagógico inicial proposto para a obten-
exigências das instituições de ensino; e, por fim, ção dessa autorização, estarão sujeitos a não se-
de extensão, voltados a candidatos que preen- rem reconhecidos, invalidando totalmente o di-
cham os requisitos estabelecidos em cada caso ploma obtido pelo aluno.
por essas instituições. O acesso aos cursos seqüenciais por campo
A grande novidade aqui é a criação dos cur- de saber não passa, necessariamente, pelo vesti-
sos seqüenciais por campo de saber. Sua norma- bular. Na maioria dos casos, dá-se por “processos
tização posterior, não incluída nessa LDB, escla- seletivos”, com critérios definidos pelas próprias
receu que eles poderão ser de dois tipos: com- instituições de educação superior, podendo variar
plementação de estudos, aos alunos que já pos- entre testes semelhantes aos aplicados no vesti-
suem graduação, ou formação específica, que sig- bular, avaliação de currículos ou, até mesmo, uma
nifica um tipo de curso de nível pós-médio. O simples entrevista com o candidato. A curta du-
primeiro concede ao aluno, ao seu término, um ração, as infinitas e diferenciadas formas de aces-
certificado de conclusão, ao passo que o segundo, so e a especificidade dos conteúdos ministrados
também ao seu término, confere um diploma de pelos mais diversos cursos fazem dessa modali-
nível superior. Ressalta-se que, em nenhum dos dade um excepcional “nicho de mercado” para as

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instituições privadas de ensino superior. Por um lificado (titulação mínima) e menos disponível à
lado, pelo seu baixo custo e, por outro, pela pers- realização de pesquisas, trabalhos de extensão e
pectiva gerada no aluno de realização, e conclusão atendimento aos alunos (como complemento da
mais rápida, de um “curso superior” a proporci- docência), por intermédio da celebração do con-
onar-lhe inserção mais rápida (real ou apenas trato de trabalho por hora/aula, em vez do de re-
imaginária) no mercado de trabalho.10 gime de tempo integral previsto na proposta an-
O art. 52 explicita a definição de universi- terior de LDB.
dade contida na LDB: “instituições pluridiscipli- Como já dissemos, a lei n.º 9.394/96 (essa
nares de formação dos quadros profissionais de LDB) foi elaborada pelo MEC do governo FHC, se-
nível superior, de pesquisa, de extensão e de do- guindo, estritamente, as diretrizes para a educa-
mínio e cultivo do saber humano”, que devem ção do Banco Mundial. Essa organização multi-
preencher, pelo menos, três requisitos básicos: 1. lateral entende que a educação superior não cons-
produção intelectual institucionalizada; 2. um titui, necessariamente, um serviço público (um
terço do corpo docente, pelo menos, com titu- dever do poder público), e sim um serviço que
lação acadêmica de mestrado ou doutorado; 3. pode (e deve) ser oferecido e regulado pelo “mer-
um terço do corpo docente em regime de tempo cado” (pela iniciativa privada).12 Assim, exigir
integral. percentuais mais elevados de titulação docente e
Nesse momento, cabe recorrer um pouco contratação em regime de tempo integral, o que
à história da elaboração dessa LDB, de modo a certamente elevaria a qualidade da educação ofe-
entender melhor o alcance do disposto no seu recida pelas universidades privadas, significaria
art. 52. O projeto anterior, aprovado pela Câma- um aumento dos seus custos operacionais e, por-
ra Federal e remetido ao Senado ao fim de 1994, tanto, uma redução de seus lucros.
previa que, para considerar-se universidade, a Os arts. 53 e 54 tratam a questão da auto-
instituição de educação superior deveria possuir, nomia universitária, estabelecendo-lhe o alcance.
além de produção intelectual institucionalizada Eles podem ser entendidos, de certa maneira,
comprovada, pelo menos metade do seu corpo como uma regulamentação do art. 207 da
docente com titulação acadêmica de mestrado Constituição Federal, que define o princípio da
ou doutorado e, também, atuando em regime de autonomia universitária. Independentemente da
tempo integral.11 amplitude desse conceito delineado nos arts. 53 e
A redução desses percentuais de titulação 54, o problema não resolvido – nem pela Cons-
mínima e de contratação de docentes em tempo tituição Federal, nem pela LDB e tampouco por
integral, constante da LDB, para que as insti- nenhuma outra lei federal – no nosso entendi-
tuições de educação superior possam ser consi- mento antecede a definição do alcance da auto-
deradas (transformadas em) universidades, só nomia universitária e é condição sine qua non
lhes facilita a organização e a administração, es- para que, de fato, ela ocorra.
pecialmente financeira, na medida em que lhes Trata-se aqui da origem do financiamento
permite constituir um corpo docente menos qua- da universidade pública. Em São Paulo, as três
10 A existência e a proliferação de cursos superiores de curta duração –
universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp
e de menores custos – é uma das “propostas” sempre retomadas pelo e Unesp) são financiadas com o repasse de 9,57%
Banco Mundial em seus documentos, assim como a diferenciação da quota parte do ICMS recolhido no Estado.
entre universidades de pesquisa (centros de excelência) e instituições
superiores de ensino e extensão, ou os centros universitários, que, para Esse mecanismo possibilita a elas, na prática, um
Chauí, resultaria no que essa autora define como universidade operacio- grau de autonomia infinitamente maior do que as
nal. Cf. CHAUÍ, 1999.
11 O projeto anterior concedia um prazo de cinco anos para que as uni- universidades federais brasileiras, por exemplo.
versidades atingissem esses percentuais. Já a LDB aprovada (lei n.º No caso destas, durante os oito anos do gover-
9.394/96), além de reduzir esses percentuais de 50% para 33%, aumen-
tou para oito anos o prazo para se alcançarem tais percentuais. Cf.
SAVIANI, 1997. 12 Cf. MENEZES, 2000.

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no FHC, as propostas de regulamentação da au- PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: OBJETIVOS E


tonomia universitária, especificamente das for- METAS PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR
mas e fontes de financiamento, elaboradas pelo Em 9 de janeiro de 2001, o presidente FHC
sancionou a lei n.º 10.172, que instituiu o Plano
MEC, ou não agradavam às universidades ou não
Nacional de Educação (PNE). O propósito desse
contentavam a equipe econômica do governo.
plano é definir diretrizes, metas e objetivos a se-
Como, até os dias de hoje, não houve resolução rem alcançados por cada um dos níveis de ensino,
para esse conflito, podemos afirmar que tal por cada uma das modalidades de ensino e para a
questão não constituiu prioridade para o gover- formação de professores e o financiamento da
no FHC e, nem mesmo, até o momento, para o educação, num período de 10 anos, com início
governo Lula. em 2001. Tais objetivos e metas referem-se a as-
Por fim, o art. 56 da LDB discorre sobre o pectos como atendimento, infra-estrutura, quali-
princípio da gestão democrática nas instituições dade de ensino, qualificação profissional e parti-
públicas de educação superior, assegurando a cipação da comunidade, entre outros.
existência de órgãos colegiados deliberativos, dos Embora previsto no § 1.º do art. 87 da LDB,
quais deverão participar os segmentos da comu- em consonância com o art. 214 da Constituição
nidade institucional, local e regional. Contudo, Federal, que determinava à União (no caso, o
MEC), no prazo de um ano a partir da publicação
também define que, nesses órgãos colegiados, os
docentes ocuparão 70% dos assentos. da LDB, o encaminhamento ao Congresso Nacio-
nal de um Plano Nacional de Educação, com di-
Nessas condições, notamos que o princí-
retrizes e metas para os dez anos seguintes, a pri-
pio da gestão democrática posto na LDB13 revela- meira versão do PNE protocolada no Congresso
se não só não-paritário, mas, antes de tudo, exa- Nacional não foi enviada pelo MEC no prazo es-
geradamente desproporcional. Pode-se até dis- tipulado acima.14
cordar do princípio da paridade de representa- Pelo menos desde 1996, antes mesmo da
ção dos três segmentos (docentes, funcionários sanção da nova LDB, inúmeras entidades educa-
e alunos) nos órgãos colegiados deliberativos cionais da sociedade civil brasileira – muitas delas
das instituições públicas de educação superior. que também haviam formulado e discutido outro
O que não se deve é retirar, na prática, qualquer projeto de LDB, diferente daquele do MEC/Banco
poder de decisão política dos seus funcionários Mundial, em linhas gerais aprovado e transforma-
e alunos, sob pena de que as deliberações desses do na nova LDB – reuniram-se no Fórum Nacio-
órgãos colegiados careçam de representativida- nal em Defesa da Escola Pública e nos Congres-
de e legitimidade. sos Nacionais de Educação (Coned) para debater
um projeto alternativo de PNE.15 Denominado
Por outro lado, como estimular a participa-
Plano Nacional de Educação – Proposta da Socie-
ção das comunidades “institucional, local e regio-
dade Brasileira, ele foi sistematizado sobretudo
nal” nos órgãos colegiados deliberativos das
após os debates e discussões no I e II Congresso
instituições públicas de educação superior com Nacional de Educação, ocorridos na cidade de
tamanha desproporção de poder de decisão? Não Belo Horizonte (MG), em 1996 e 1997, respecti-
há como não dizer que esse art. 56 da LDB advoga vamente. O fato de ter sido protocolado na Câ-
uma diferente (e estranha) concepção de gestão mara dos Deputados, em 10/fev./98, na forma de
democrática das instituições públicas de educação projeto de lei, fez com que, no dia seguinte, o
superior – no nosso entendimento, ela está muito MEC do governo FHC apresentasse outra propos-
distante de ser considerada democrática. ta de PNE.

13 E
que reafirma o conceito de gestão democrática implícito nessa lei, 14 Cf. BRANDÃO, 2003, p. 167.
como já discutimos anteriormente. 15 Cf. SAVIANI, 2002.

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Assim como tinha acontecido com a LDB, o investimento anual em pesquisa científica e de-
um dos projetos, que não vingou, foi gestado e senvolvimento tecnológico; e ampliar a oferta de
debatido no seio da sociedade civil brasileira, es- ensino superior público para uma proporção nun-
pecialmente pelas entidades historicamente de- ca inferior a 40% do total das vagas na educação
fensoras da educação pública, gratuita, laica, de- superior (pública e privada). Todos os vetos, dire-
mocrática e de qualidade. O outro, que acabou se ta ou indiretamente, devem contribuir significati-
transformando na lei n.º 10.172/01, foi elaborado vamente para que, talvez, boa parte dessas outras
pelo MEC do governo FHC e norteado, em suas 31 metas não venha a ser plenamente alcançada.
principais concepções, pelas diretrizes do Banco Um único exemplo ilustra essa questão. A
Mundial para a educação, a serem aplicadas pelos primeira meta do PNE para a educação superior é
chamados países em desenvolvimento.16 que, até o final de 2010, pelo menos 30% dos jo-
Esse PNE pretende atingir quatro objetivos: vens na faixa etária de 18 a 24 anos tenham acesso
elevar, de maneira global, o nível de escolaridade a ela. Esse percentual até pode vir a ser atingido,
da população; melhorar a qualidade do ensino em porém, se considerarmos que grande parte desses
todos os níveis; reduzir as desigualdades sociais e jovens não pode pagar um curso superior privado,
regionais no tocante ao acesso e à permanência, dada a situação socioeconômica da população bra-
com sucesso, na educação pública e, por último, sileira em geral, será necessária uma expansão sig-
democratizar a gestão do ensino público nos es- nificativa na oferta de vagas em cursos superiores
tabelecimentos oficiais, obedecendo aos princí- públicos, o que exige elevado investimento finan-
pios da participação dos profissionais de ensino, ceiro. Em contrapartida, segundo estudos do Ins-
na elaboração do projeto pedagógico da escola, e tituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
das comunidades escolar e local, em conselhos os investimentos do MEC diminuíram 57,8% nos
escolares ou equivalentes. últimos anos, passando de 1,874 bilhão de reais,
Para atingir esses objetivos, o PNE estabele- em 1995, para 790,703 milhões de reais, em 2003,
ce cinco prioridades: 1. garantia de ensino funda- em valores atualizados pelo Índice Geral de Pre-
mental obrigatório de oito anos a todas as crian- ços da Fundação Getúlio Vargas (IGP-DI).
ças de 7 a 14 anos de idade, assegurando seu in- Por outro lado, tendo em vista a ênfase da
gresso e permanência na escola e a conclusão des- política macroeconômica atual, focalizada na rea-
se ensino; 2. garantia de ensino fundamental a lização de 4,5% do PIB nacional de superávit pri-
todos os que a ele não tiveram acesso na idade mário para pagamento dos juros, encargos e ser-
apropriada ou que não o concluíram; 3. ampliação viços da dívida externa brasileira, torna-se difícil
do atendimento nos demais níveis de ensino (edu- acreditar que tais investimentos sejam efetivados.
cação infantil, ensino médio e educação superior); Se considerarmos que os vetos centraram-se em
4. valorização dos profissionais; 5. desenvolvi- metas que, de maneira direta ou indireta, se refe-
mento de sistemas de informação e de avaliação rem ao financiamento da educação superior, da
em todos os níveis e modalidades de ensino. ciência e da tecnologia, concluiremos que, em seu
conjunto, as específicas à educação superior, con-
A partir daí, o PNE passa a ser um rol de ob-
tidas nesse PNE, só serão plenamente alcançadas
jetivos e metas desprovidos de meios efetivos para
quando as prioridades da política macroeconômi-
a sua concretização. Das 35 metas definidas origi-
ca brasileira atual vierem a ser modificadas.
nalmente para a educação superior, quatro termi-
naram vetadas pelo presidente FHC, entre elas: O PROUNI E A PROPOSTA ATUAL DE
REFORMA UNIVERSITÁRIA
elevar o gasto público total em educação, vincu-
Em dois anos e meio de governo Lula, já es-
lando 75% dele para a educação superior; triplicar
tamos com um terceiro ministro da Educação.
16 Sobre a influência do Banco Mundial especificamente sobre esse
Isso não é nada alentador para um governo cujo
PNE, cf. SILVA, 2002. principal partido político de sustentação sempre

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teve, nas áreas da saúde e da educação, excelentes do recebido inúmeras críticas, esse ministério
propostas e muitos quadros profissionais. Até aceitou modificar diversos pontos, apresentando
esse momento, duas proposições são as mais po- uma segunda versão, no final do mês de maio de
lêmicas: o Programa Universidade para Todos 2005. De maneira geral, esse projeto é bastante
(ProUni) e o de reforma universitária. abrangente, porém, dado todo o processo de dis-
O ProUni foi baixado por MP – expediente cussão que acontecerá nas duas casas do Con-
exaustivamente criticado pelo Partido dos Traba- gresso Nacional (Câmara dos Deputados e Se-
lhadores quando na oposição – e já se transfor- nado Federal), necessário se faz aguardar maio-
mou na lei n.º 11.096, de 13/jan./05. Ele visa a res e melhores definições do rumo político que
conceder bolsas integrais e parciais em cursos de ele irá tomar.
graduação de instituições de ensino superior fi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
lantrópicas e privadas, com ou sem fins lucrati- Nestas considerações finais queremos real-
vos. Em troca dessas vagas (bolsas), as entidades çar quatro pontos. O primeiro é que todas as
participantes serão beneficiadas com isenções fis- modificações realizadas no arcabouço jurídico e
cais e tributárias. institucional que rege a educação brasileira, espe-
Os alunos beneficiados devem ter cursado cificamente a superior, tiveram como referências
todo o ensino médio na rede pública, havendo re- norteadoras as principais concepções e diretrizes
serva de vagas para autodeclarados indígenas, par- educacionais defendidas, propagadas e “ofereci-
dos ou negros, com percentual no mínimo igual das” pelo Banco Mundial – em troca de emprésti-
ao de cidadãos assim autodeclarados no respecti- mos a juros de mercado – aos chamados países em
vo Estado, de acordo com o último censo dispo- desenvolvimento ou países do Terceiro Mundo.
nível do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- Entre tais concepções e diretrizes, desta-
tística (IBGE). Também serão concedidas bolsas a cam-se: maior diferenciação das instituições,
professores da rede pública de ensino – para os enorme incentivo àquelas privadas de ensino su-
cursos de licenciatura, normal superior e pedago- perior, diversificação das fontes de financiamen-
gia, destinados à formação do magistério da edu- to, ênfase produtivista, distribuição dos poucos
cação básica – e para estudantes portadores de de- recursos estatais sob o critério de desempenho e
ficiências. priorização da educação fundamental pública e
secundária em detrimento da educação superior
O ProUni, via concessão de mais isenções
pública.17
fiscais e tributárias para a rede privada de ensino
O segundo aspecto a ser discutido é sobre
superior, constitui, de fato e em última instância,
o dinheiro público destinar-se exclusivamente às
a transferência de recursos públicos para entida-
escolas públicas ou se deve também ser dirigido
des privadas, sem garantia alguma de que elas fa-
às privadas – primárias, secundárias ou supe-
rão esforços para melhorar a sua qualidade de
riores. Esse embate vem se arrastando desde as
ensino. Por outro lado, o Censo da Educação
primeiras décadas do século passado, sempre
Superior de 2003, realizado pelo INEP, mostrou
vencendo – e mais uma vez, agora com o ProUni
que há 726 mil vagas ociosas nessas mesmas
– a posição de que dinheiro público também
instituições, o que representa 42% do total de va-
pode ser aplicado nas escolas privadas, sob as
gas por elas oferecidas. Ou seja, em vez de inves-
mais diferentes formas (isenções fiscais, bolsas de
tir na expansão da rede pública de educação su-
estudo, crédito educativo etc.), mesmo levando-
perior, especialmente nas universidades federais,
se em consideração as constantes e históricas di-
o governo Lula, por meio do ProUni, propõe
ficuldades estruturais e orçamentárias das insti-
“comprar” as vagas ociosas na rede privada.
tuições públicas brasileiras de todos os níveis.18
Por sua vez, a primeira versão do projeto
de reforma universitária somente foi finalizada 17 Cf. SGUISSARDI, 2004, p. 23-24; e SANTOS, 2004, p. 107.
pelo MEC do governo Lula no final de 2004. Ten- 18 Cf. GHIRALDELLI JR., 1990.

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O terceiro ponto refere-se ao modus operandi O quarto e último ponto, mas não menos
de implantar a política educacional pública no importante, é o fato de o governo Lula ainda não
Brasil. Em outras palavras, passamos os oito anos ter se empenhado politicamente o suficiente para
dos dois mandatos do governo FHC criticando o ajudar o Congresso Nacional – solicitando aos
modo como as medidas mais importantes de po- seus líderes a colocação desse assunto na pauta de
lítica educacional, especialmente as que atingem a votações – a derrubar os vetos interpostos por
educação superior brasileira, eram elaboradas (sem FHC ao Plano Nacional de Educação (PNE). Isso,
discussão) e implementadas (por medidas provisó- caso ainda seja realmente uma prioridade política
rias). Eis que já ultrapassamos a metade do gover- – e de política educacional –, como era nos tem-
no Lula, e o que temos? O Provão substituído pos em que o Partido dos Trabalhadores estava na
pelo Enade, sem ter-se discutido exaustivamente a oposição.
necessidade efetiva dessas grandes avaliações naci- Mas não estamos mais no governo FHC, ou
onais, e o ProUni, que transfere recursos públicos seja, como já se pode dizer sobre o modo petista
na forma de isenções fiscais e tributárias, em troca de lidar com a educação brasileira e, especifica-
de vagas ociosas, para as instituições privadas. E in- mente, com a educação superior brasileira: nas
felizmente, todas essas medidas foram criadas e principais questões, ou mentimos antes ou esta-
implementadas por meio de medidas provisórias. mos mentindo agora.

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______. LDB Passo a Passo: lei de diretrizes e bases da educação nacional (lei n.º 9.394/96), comentada e interpretada
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CHAUÍ, M.S. Escritos sobre a Universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
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DUTRA, C.E.G. Guia de Referência da LDB/96 com atualizações. São Paulo: Avercamp, 2003.
GHIRALDELLI JR., P. História da Educação. São Paulo: Cortez, 1990.
MENEZES, L.C. Universidade Sitiada. São Paulo: Fund. Perseu Abramo, 2000.
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SAVIANI, D. Da Nova LDB ao Novo Plano Nacional da Educação: por uma outra política educacional. 4.ª ed. rev. Cam-
pinas: Autores Associados, 2002 (Col. Educação Contemporânea).
______. A Nova Lei da Educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas: Autores Associados, 1997 (Col. Educa-
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SGUISSARDI, V. Universidade Pública Estatal: entre o público e o privado/mercantil. 1.ª Conferência Regional Lati-
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impulso40.book Page 80 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

TOMMASI, L.; WARDE, M.J. & HADDAD, S. (orgs.). O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez/
PUC-SP/Ação Educativa, 1996.
TRINDADE, H. (org.). Universidade em Ruínas: na república dos professores. Petrópolis: Vozes, 1999.

Dados do autor
Doutor em educação pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e professor no programa de
pós-graduação em educação da Unesp em
Marília e no Departamento de Educação em Assis.

Recebimento artigo: 13/jan./05


Aprovado: 1.º/abr./05

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A Vinculação Avaliação/
Financiamento na Educação
Superior Brasileira
THE EVALUATION-FUNDING ENTAILMENT
IN BRAZILIAN HIGHER EDUCATION
Resumo Este estudo examina a vinculação entre avaliação e financiamento na
educação superior brasileira, em diversas ações governamentais implantadas mais
fortemente no Brasil, a partir de 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso.
Muitas reformas foram introduzidas no País com a intenção de provocar as
mudanças, na estrutura da sociedade capitalista-liberal, estabelecidas em outros
países desde a década de 1970, quando o Estado de bem-estar social europeu
iniciou o seu processo de crise. Como conseqüência, os governos passaram a se
valer da vinculação avaliação/financiamento para forçar as instituições de
educação superior (IES) a alterar o seu modo de gestão e de produção acadêmica
e lançar-se ao que se passou a chamar de quase-mercado educacional. Pode-se
verificar a presença dessa vinculação, por exemplo, no modelo de distribuição de
recursos entre as instituições federais de ensino superior (IFES), nos contratos de
gestão ou planos de desenvolvimento institucional (PDI), na Gratificação de
Estímulo à Docência (GED), na avaliação das condições de oferta dos cursos de
graduação, no Exame Nacional de Cursos (ENC), conhecido como Provão, na
redução dos recursos do fundo público aplicados às instituições públicas e na
proposta de reforma da educação superior do governo Luiz Inácio Lula da Silva. NELSON CARDOSO
AMARAL
Palavras-chave AVALIAÇÃO – FINANCIAMENTO – EDUCAÇÃO SUPERIOR – Universidade Federal
GESTÃO UNIVERSITÁRIA. de Goiás (UFG)
nelson@if.ufg.br
Abstract This study examines the evaluation-funding entailment in Brazilian
higher education in different governmental actions implemented with more
emphasis in Brazil, from 1995, during Fernando H. Cardoso’s government.
Many reforms were introduced in the country aiming at provoking changes
in the liberal/capitalist society structure, already established in other countries
since the 1970’s when the European welfare state entered into a crisis. As a
consequence, the governments started using the evaluation-funding relationship
not only to force higher education institutions to alter their way of management
and academic production but also to launch themselves into what has been called
the educational quasi-market. The evaluation-funding relationship can be noticed
in the model for resource distribution amongst the higher education institutions,
in the management contracts or Institutional Development Plans (PDI), in the
financial bonus to stimulate lecturing (GED), in the evaluation program of the
undergraduate offer conditions, in the national exam of courses (ENC), the
Provão, in the decline of the public funding directed to higher education
institutions, and in the proposal of higher education reform in Luiz Inácio Lula
da Silva’s government.

Keywords EVALUATION – FUNDING – HIGHER EDUCATION – HIGHER


EDUCATION MANAGEMENT.

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INTRODUÇÃO

A
s mudanças na estrutura da sociedade capitalista-liberal,
ocorridas a partir de meados da década de 1970, quando
o Estado de bem-estar social europeu iniciou o seu pro-
cesso de crise, podem ser agrupadas, segundo Fiori,1 nas
seguintes dimensões: geopolítica mundial, político-ideo-
lógica, econômica ou monetária-financeira, trabalho ou
emprego, espaço da periferia capitalista e fragilização ge-
neralizada dos Estados nacionais. Ainda de acordo com
Fiori, esses processos de mudanças trouxeram várias conseqüências, en-
tre elas: a. consolidou-se um império comandado pelos americanos e in-
gleses; b. fortaleceram-se as idéias ultraliberais que se consubstanciaram
em pensamento único; c. abriu-se uma competição exacerbada entre os
países pelo capital financeiro internacional; d. provocou-se um brutal au-
mento do desemprego; e. degradaram-se as relações entre sindicatos de
trabalhadores e patrões; f. ampliaram-se enormemente as dívidas dos paí-
ses da periferia capitalista, que se viram obrigados a cumprir o receituário
dos organismos multilaterais.
Em especial para os países da América Latina, que, na verdade, nun-
ca tiveram um período de Estado de bem-estar social, um conjunto de
prescrições ficou expresso por meio do chamado Consenso de Washing-
ton. Especificou-se que eles deveriam reduzir os gastos públicos e as ta-
rifas de importação, eliminar as barreiras não-tarifárias, reformular as
normas que restringem o ingresso de capital estrangeiro, suprimir os ins-
trumentos de intervenção do Estado no campo financeiro, como con-
trole de juros, incentivos fiscais etc. e, ainda, promover uma radical
privatização das empresas e dos serviços públicos.2
As repercussões da instalação desse quadro no Brasil foram o re-
crudescimento da ambição individualista e a defesa da mão invisível do
mercado de Adam Smith.3 Introduziu-se também a automação industrial
em grande escala, provocando o aumento do desemprego, aconteceram
privatizações questionáveis, quanto a valores estabelecidos em editais e
formas de pagamento, e importaram-se exageradamente bens de consu-
mo, com desequilíbrio na balança de pagamentos, bancarrota dos sindi-
catos etc. O trabalhador passou a enfrentar o fantasma do desemprego,
que o levou a tentar, a todo custo, permanecer em seu trabalho. Os mo-
vimentos reivindicatórios dos trabalhadores escassearam e até mesmo a
redução de salários acabou admitida. Aumentou substancialmente a vio-
lência e as pessoas passaram a viver uma intensa insegurança, angústia, e
a se sentir completamente desamparadas.
Milton Santos expressa esse momento vivido pela sociedade, afir-
mando que, nesse

1 FIORI, 2001, p. 95-96.


2 SOARES, 1996, p. 23.
3 SMITH, 1981.

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Quadro 1. Brasil: uma década de reformas (1).


1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
e antes
Reforma comercial * * * * * * * * * * *
Abertura ao * * * *
capital financeiro externo
Privatização * * * * * * *
Regulamentação * * * * * *
do setor financeiro
Reforma da previdência social * * * * *
Reforma administrativa * *
Reforma de programas sociais
Educação * * * * * *
Saúde * * * * * *

Fonte: Baumann, 2001, p. 155.


(1) Os asteriscos indicam a data aproximada das principais medidas para regulamentar cada uma das reformas, e não o momento
de maior intensidade das mudanças. É importante ter presente este fato; por exemplo, no caso das privatizações, elas foram
muito mais intensas em 1998, em termos de valores reais das transações, que em qualquer outro período anterior.

quadro, as pessoas sentem-se desamparadas, o que Nota-se do quadro que as reformas con-
também constitui uma incitação a que adotem, em centraram-se a partir de 1995, no governo Fer-
seus comportamentos ordinários, práticas que al- nando Henrique Cardoso (1995-2002). No caso
guns decênios atrás eram moralmente condenadas. da educação brasileira, nenhuma mais abrangente
Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de se realizou nos governos Collor e Itamar, apesar
bem público e de solidariedade, do qual é emble- de algumas tentativas, especialmente no curto
mático o encolhimento das funções sociais e polí- governo Collor. Somente de 1995 em diante “a
ticas do Estado com a ampliação da pobreza e os reforma modernizadora da educação superior ga-
crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia nhou força e as idéias neoliberais se materializa-
o papel político das empresas na regulação da vida ram em políticas e num quadro legal-burocrático
social.4 coerente com as novas configurações”.6 As mu-
As políticas presentes no Consenso de danças na educação superior brasileira seguiram
os caminhos estabelecidos em outros países,
Washington foram efetivamente implementadas
“destacando-se aí o caso do Reino Unido e dos
no Brasil a partir de 1990, com o governo Collor.
Estados Unidos, sob a liderança dos governos
Em estudo publicado por Renato Baumann,
conservadores dos anos 80”.7
“Brasil en los años noventa: uma economía em
Portanto, o que se viu a partir dos anos 1980
transición”, é apresentado um quadro, reprodu- foi a pregação sobre o fim do Estado keinesiano e
zido a seguir, em que se explicitam as etapas de a conseqüente política de redução da presença do
implantação das diferentes reformas – comercial, Estado, assim como a valorização das atividades
abertura ao capital financeiro externo, privatiza- privadas e da mão invisível do mercado. Esse novo
ções, regulamentação do setor financeiro, previ- ambiente liberal propagou-se para as instituições
dência social, administrativa, educação e saúde – educativas e anunciaram-se a decadência e a inca-
no período de 1988 a 2000, chamado de uma dé- pacidade de a escola pública enfrentar os desafios
cada de reformas.5 apresentados pela sociedade contemporânea,

4 SANTOS, 2000, p. 38. 6 DIAS SOBRINHO, 2002, p. 76.


5 BAUMANN, 2001, p. 155. 7 Ibid., p. 76.

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quando se exige agilidade e presteza, possíveis so- porados na gestão das escolas públicas procedi-
mente com a atuação das leis de mercado regendo mentos gerenciais próprios das empresas privadas.
as relações entre escolas, entre trabalhadores e a A educação superior recebeu sérias críticas em
escola e entre a escola e a sociedade.8 campanha aberta, segundo a qual as IES públicas
Com a intenção de forçar as organizações seriam “incompetentes, exageradamente dispen-
educacionais a entrar nesse ambiente competitivo, diosas e desligadas das necessidades da sociedade,
os governos passaram a adotar duas vertentes, a da ou melhor, da indústria”.11
avaliação e a do financiamento, às vezes acoplan- Nesse novo formato, as instituições públi-
do-as fortemente, como medida eficiente para cas passam a atuar como um híbrido público-pri-
atingir os seus interesses. Neste estudo, discutire- vado. No que se refere ao financiamento, apesar
mos inicialmente as mudanças ocorridas nas IES, de continuar a receber recursos do fundo públi-
sob o foco do processo de avaliação e do financi- co, eles são cada vez menores. Isso obriga as
amento, para, depois, examinarem-se ações gover- organizações a procurar fontes alternativas de re-
namentais que, às vezes, mesmo de forma sutil, cursos financeiros, seja por meio da prestação de
vinculam a avaliação e o financiamento, como a serviços à população, oferecendo cursos de espe-
implantação de modelo para a distribuição de re- cialização e extensão, consultorias, assessorias
cursos entre as IFES, a tentativa de estabelecer os etc., seja pela cobrança de taxas, matrículas, ser-
contratos de gestão ou os PDIs, a implementação viços de laboratórios e outros.
da GED, do ENC (Provão) e da avaliação das con- A lógica economicista presente nas orienta-
dições de oferta dos cursos de graduação, a redu- ções do novo liberalismo pós-crise do Estado de
ção dos recursos do fundo público aplicados nas bem-estar social desloca o eixo desse híbrido pú-
instituições públicas e as propostas de reforma da blico-privado mais para o lado privado, cujo cam-
educação superior do governo Luiz Inácio Lula da po de atuação obedece aos princípios da compe-
Silva, com início em 2003. titividade e da eficiência. Segundo Dias Sobrinho,
MUDANÇAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA “Opera-se aí um deslocamento ético. Valores de
As mudanças ocorridas na sociedade capi- primeira ordem e como tal aceitos universal e his-
talista provocaram, no campo educacional, não toricamente, como solidariedade, cooperação, co-
uma privatização direta da IES pública, mas o que legialidade, tolerância, paz, justiça e outros da
Dias Sobrinho chamou de privatização dissimula- mesma linha, são substituídos por outros valores
da,9 uma vez que essa instituição não se enquadra economicistas, como eficiência, produtividade,
perfeitamente num mercado, e sim num quase- competitividade, utilidade, funcionalidade”.12
mercado: “quase-mercados são mercados porque
Esse movimento do público rumo a um hí-
substituem o monopólio dos fornecedores do
brido público-privado, atuando num quase-merca-
Estado por uma diversidade de fornecedores in-
do, vem acompanhado de grande interesse da ini-
dependentes e competitivos. São quase porque
ciativa privada em investir no setor, pois passou a
diferem dos mercados convencionais em aspec-
vê-lo como atividade altamente lucrativa.
tos importantes”.10 Como conseqüência desse
processo de privatização dissimulada e de imersão Os rumos dados pelas reformas são acon-
no chamado quase-mercado, passaram a ser incor- selhados e apoiados por organismos multilaterais,
como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o
8 SAVIANI, 1992, p. 11. Banco Mundial, a Organização Mundial do
9 DIAS SOBRINHO, 2002, p. 165.
10 AFONSO,
Comércio (OMC) e a Organização de Coopera-
2000, p. 115. Em outros termos, ocorrem diferenças no
quase-mercado em relação ao mercado livre, tanto do lado da demanda ção e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).
como da oferta. As características dos serviços educacionais ou da mer- Como eles atuam em amplo espectro – econômi-
cadoria educacional são diferentes das dos serviços e mercadorias típi-
cas. Os maiores controle e regulação do poder público sobre os
fornecedores e os próprios serviços educacionais são muito mais estritos 11 DIAS SOBRINHO, 2002, p. 45.
e normatizados. 12 Ibid., p. 171 (grifos acrescidos).

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co, financeiro, cultural e ideológico –, as avalia- Essa posição significou uma ruptura com o
ções e recomendações emanadas de seus relató- que se encontrava estabelecido no período da po-
rios se revestem de um poder incomensurável a lítica de bem-estar social, quando a fiscalização e a
países como os da América Latina, imersos em avaliação tinham “o propósito de analisar a eficá-
enormes dívidas externas e, cada vez mais, depen- cia dos programas com a finalidade de torná-los
dentes do capital financeiro internacional na es- melhores e mais produtivos em termos sociais”,
tabilização de suas economias nacionais. Dado o passando agora a prevalecer a “lógica do controle
peso do aspecto financeiro na definição das re- e da racionalidade orçamentária, que efetivamen-
formas, “o primeiro aspecto importante dessa in- te significa cortes de financiamento e rebaixa-
tervenção consiste na questão dos financiamentos mento da fé pública”.17
relativos à educação superior”:13 “A recomendação Desse modo, os governos começaram a
é de que haja uma cobrança generalizada e a busca lançar mão de dois processos para estender suas
de diversificação de fontes, adotando-se comple- crenças e seus objetivos às IES: aqueles relativos
mentarmente alguns mecanismos de apoio, como aos processos avaliativos e os relacionados ao fi-
bolsas, empréstimos e desoneração fiscal. O cri- nanciamento. Entretanto, nem sempre crenças e
tério central é o do retorno econômico. Por isso, objetivos dos governantes são os mesmos das IES
o governo, em sua missão avaliadora, deve im- e, para fazer frente às reações das instituições, so-
buir-se do espírito controlador e planejador.”14 bretudo as constituídas como universidades, os
Outra vertente importante das reformas governos passaram a adotar a vinculação entre
implementadas após a crise do Estado de bem-es- avaliação e financiamento. Na análise de Díaz
tar social é o deslocamento do foco do processo Barriga, “o financiamento ligado à avaliação tem
para os resultados, isto é, o governo “deve im- sido o instrumento eficaz para induzir este siste-
buir-se do espírito controlador e planejador”.15 ma de mudança”.18
Estamos, então, diante de um Estado forte, no di- Muitas ações governamentais evidenciam a
zer de Dias Sobrinho, que descentraliza e fala em presença dessa estratégia no Brasil, desde o go-
autonomia, mas, ao mesmo tempo, mantém o verno Fernando Henrique Cardoso, como já
controle por meio de legislações que retiram a mencionamos. No entanto, deve-se ressaltar que
aparente liberdade outorgada e de fiscalização e as ações podem ser utilizadas mais diretamente
avaliação dos resultados: para estimular mudanças no setor público – subs-
Para assegurar o controle do sistema, os governos tancialmente dependente do financiamento pú-
costumam impor uma vigorosa e vasta regulamen- blico. Quanto ao setor privado, tudo está sujeito
tação e uma poderosa avaliação. Estamos diante de diretamente ao mercado. O que se nota, nas es-
Estados fortes. Eles “não são agora mais débeis, sim- colas públicas e, portanto, financiadas com recur-
plesmente aliviaram parte da carga que tinham que sos do fundo público, é a “tentativa ou a tentação
assumir na política social e educativa” (ÂNGULO, do controle estatal, a fim de obrigar a universida-
2000:77). Os Estados contemporâneos têm adota- de a cumprir seus deveres com a sociedade”.19 Já
do muito comumente uma atitude legiferante e au-
nas privadas, a dependência financeira revela-se
mentado significativamente seu poder fiscalizador.
Entretanto, esse controle é exercido sobre os resul-
no quase-mercado educacional, por meio das
tados e muitas vezes não consegue eliminar os ris- mensalidades dos estudantes e dos contratos
cos que representa o ingresso de instituições frágeis com a iniciativa privada. Nesse caso, o mercado é
no campo da competição e tampouco evita a que tende a fazer o controle dos rumos das ati-
precarização de muitos serviços educacionais.16 vidades acadêmicas.20

13 Ibid., p. 167. 17 Ibid., p. 46.


14 Ibid., p. 167. 18 DÍAZ BARRIGA, 2002, p. 14.
15 Ibid., p. 167. 19 BERCHEM, 1990, p. 28-29.
16 Ibid., p. 174 (grifos acrescidos). 20 AMARAL, 2003.

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IMPLANTAÇÃO DE MODELO PARA A DISTRIBUIÇÃO cias exatas e da terra, engenharias, ciências da


DE RECURSOS ENTRE AS INSTITUIÇÕES FEDERAIS saúde, ciências agrárias, ciências sociais apli-
DE ENSINO SUPERIOR (IFES) cadas, ciências humanas, lingüística e artes;
Quanto à distribuição dos recursos de ma- 2. o número total de alunos matriculados nos
nutenção e investimentos entre as IFES, elas já cursos de 1.º e 2.º graus não técnicos;
vêm, há alguns anos, exercitando um modelo de 3. o número total de alunos matriculados nos
financiamento por fórmulas, estabelecido em um cursos de 2.º grau técnicos;
acordo entre o MEC e a Associação Nacional de 4. a área construída;
Dirigentes das IFES (Andifes). Esse modelo con- 5. o valor total dos gastos de capital nos últi-
sidera parâmetros que procuram medir necessida- mos cinco anos;
des e desempenho.21 Apesar de todas as deficiên- 6. o valor total dos gastos com outros custei-
cias presentes nele, sua implantação procurou dei- os e capital nos últimos cinco anos.
xar claras as regras do jogo para se obter recursos
de manutenção e investimentos, abandonando-se Por sua vez, o desempenho seria verificado
normas desconhecidas que poderiam possibilitar pelos indicadores a seguir:
negociações clientelistas. 1. o número de ingressantes nos diversos cur-
É possível afirmar que as quatro metodolo- sos da instituição;
gias geralmente empregadas na definição e distri- 2. o número de diplomados nos cursos de gra-
buição dos recursos financeiros para a educação duação;
superior – financiamento incremental ou inercial, 3. o número de teses defendidas e aprovadas
por fórmulas, contratual e por subsídios às mensali- nos programas de mestrado e doutorado;
dades dos estudantes22 –, por não procurar efetivar 4. o número de certificados em cursos de
uma análise das necessidades das instituições, po- especialização;
dem enquadrar-se na filosofia eficientista e econo- 5. as avaliações promovidas pela CAPES24 dos
micista implantada após a crise do Estado de bem- programas de mestrado e doutorado;
estar social europeu. Contudo, devemos reconhe- 6. a titulação do corpo docente;
cer o desafio de responder à seguinte pergunta: 7. uma relação ideal aluno/docente;
quais seriam os recursos suficientes para manuten- 8. uma relação ideal docente/servidor técnico-
ção e desenvolvimento das IFES, prescritos pelo art. administrativo.
55 da LDB? Na discussão do tema, surge imedia- Partindo desses indicadores, obtém-se o
tamente outra questão: quais os critérios a serem número de estudantes em cada instituição, por
adotados para distribuir os recursos entre elas? meio de uma modelagem. E com base na infor-
Na distribuição dos recursos de manutenção mação do número de estudantes, pode-se chegar
e investimentos entre as IFES, até 1994 não eram ao número de docentes em cada uma delas, pela
empregados critérios conhecidos da comunida- definição de uma relação ideal número de alunos/
de universitária. O modelo para tal classificação, docentes. Finalmente, calcula-se o número de
apoiado em fórmulas, foi definido pelo decreto servidores técnico-administrativos em cada ins-
n.º 1.285, de 30/ago./94, e considera parâmetros tituição, definindo-se uma relação ideal número
que procuram medir necessidades e desempenho.23 de servidores técnico-administrativos/docentes,
Mediriam necessidades os seguintes indicadores: definindo-se, então, o percentual obtido por cada
1. o número total de alunos matriculados nos uma delas no bolo orçamentário.
cursos de graduação, mestrado e doutorado, O decreto n.º 1.285/94, estabelecendo cri-
das seguintes áreas do conhecimento: ciên- térios para a distribuição dos recursos, menciona-

21 ANDIFES, 1994. 24 A avaliação da CAPES dos programas de mestrado e doutorado,


22 VELLOSO, 2000; e JONGBLOES & MASSEN, 1999. desenvolvida desde 1976, é a mais antiga experiência existente no Brasil
23 ANDIFES, 1994. relacionada ao exame da educação superior.

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va a necessidade de um planejamento institucio- que várias instituições se esforcem por superar os


nal, o que pressupõe a previsibilidade dos recur- padrões a partir dos quais se mede seu rendimen-
sos alocados para cada IFES. Além disso, conside- to, mas também tem produzido um forte efeito
rava-se que deveria ser assegurada a estabilidade de segregação por meio da qual as instituições
do financiamento e que a alocação de recursos fortes e consolidadas incrementam seus recursos
precisaria efetivar-se com base em fatores previa- e as instituições débeis vão incrementando suas
mente definidos e divulgados. Faziam ainda parte deficiências”.25
do decreto a proposta de revisão anual do mode- Logo, seria importante definir um disposi-
lo de distribuição e a instituição de uma comissão tivo de controle/segurança responsável por limi-
de verificação dos dados. O crescimento institu- tar o incremento em instituições que ultrapassas-
cional seria fomentado mediante projetos espe- sem determinado patamar de recursos e que fi-
ciais, já que o modelo de distribuição se referia aos zesse aportes de recursos especiais naquelas que
recursos alocados para a manutenção das atuais não estivessem conseguindo superar os seus in-
atividades das organizações. dicadores – é claro que toda essa sistemática pre-
Deve-se notar que as avaliações promovidas cisaria ser acompanhada por uma comissão com-
pela CAPES dos programas de mestrado e douto- posta de representantes delas e do governo.
rado seriam usadas na modelagem e, portanto, IMPLANTAÇÃO DA GRATIFICAÇÃO DE ESTÍMULO
interfeririam no montante de recursos financeiros À DOCÊNCIA
a ser alocado para cada IFES. Há que se lembrar a No interior de cada IFES, foi implantada
ligação direta entre os resultados das avaliações e pela lei n.º 9.678/98, regulamentada pelo decreto
o volume de recursos especificados para o paga- n.º 2.668/98, a competitividade entre os profes-
mento de bolsas, financiamento dos programas de sores, com a introdução da Gratificação de Estí-
pós-graduação e promoção de eventos. mulo à Docência (GED) como complemento ao
salário do docente:
Desde 1999, na gestão Paulo Renato como
ministro da Educação, passou-se a aplicar outro Os valores da gratificação correspondiam à pontua-
modelo apoiado numa modelagem desenvolvida ção obtida pelos docentes, determinada conforme o
na Inglaterra, dividida em duas fases: atividades de regime de trabalho (20h, 40h ou dedicação exclusi-
ensino e atividades de pesquisa. As primeiras con- va), a categoria (auxiliar, assistente, adjunto ou titu-
sideram os alunos da instituição – graduação, mes- lar) e a titulação (graduação, aperfeiçoamento,
especialização, mestrado ou doutorado). No entan-
trado, doutorado e residência médica. Já a parcela
to, a maior pontuação relacionava-se à quantidade
relacionada à pesquisa leva em conta os docentes
de horas-aula semanais ministradas (120 dos 140
envolvidos com a pós-graduação, nos programas pontos possíveis), supervalorizando esta variável
avaliados pela CAPES com nota igual ou superior a em detrimento de outras, enfraquecendo o tripé
três. Passou a ser, portanto, importante para as es- ensino-pesquisa-extensão e induzindo os profissio-
colas o aumento no número de estudantes, por nais a se concentrarem, fundamentalmente, nas ati-
ser altamente valorizado nessa metodologia. vidades de ensino.26
Tal aumento significa, imediatamente, a
Relevante na constituição salarial dos pro-
elevação nos recursos de manutenção e investi-
fessores, a introdução da GED na vida universitária
mentos. É preciso lembrar que o bolo financeiro
tem provocado uma mudança de atitude no cor-
permanece praticamente o mesmo de um ano
po docente. Ganham força redobrada o aulismo e
para o outro e, quando uma instituição consegue
a procura, a todo custo, por eventos que façam
aumentar a sua fatia, é porque outras, obrigato-
com que os professores acumulem pontos na
riamente, ficaram com porções menores. Abre-se,
corrida pela gratificação salarial. Se, por um lado,
assim, a competição entre elas. A conexão avalia-
ção/financiamento explicita-se claramente nessa 25 DÍAZ BARRIGA, 2002, p. 14.
medida e “tem tido como conseqüência não só 26 SILVA JUNIOR, CATANI & GIGLIOLI, 2003, p. 17.

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esse fenômeno contribuiu para a expansão do nú- gularmente reconhecidos, exceto quando tenham
mero de vagas das IFES e para um aumento na obtido exclusivamente conceitos D ou E nas três
produtividade quantitativa – número de atividades últimas avaliações realizadas pelo Exame Nacio-
por professor –, por outro, provocou uma certa nal de Cursos”.
despreocupação com a qualidade e com o papel so- Passou-se, conseqüentemente, a valorizar o
cial e cultural das instituições, todas públicas. resultado do Provão nesse importante instru-
IMPLANTAÇÃO DO EXAME NACIONAL DE CURSO, mento fixador do estudante na instituição privada
O PROVÃO, E DAS CONDIÇÕES DE OFERTA DOS que é o FIES, além de que, na “atual conjuntura
CURSOS DE GRADUAÇÃO das políticas avaliativas, o escore alcançado assume
A implementação do Exame Nacional de
o papel balizador fundamental de qualidade. Se o
Cursos (ENC), o Provão, instituído pela lei n.º
conceito é positivo, passa a ser o grande trunfo de
9.131/95, e a Avaliação das Condições de Oferta
marketing para divulgar a IES e o Curso”.29 Há,
dos Cursos de Graduação, estabelecida pelo de-
portanto, repercussões imediatas no financia-
creto n.º 2.026/96, atingiram, nos aspectos vincu-
mento das IES que podem se fazer presentes por
lados a avaliação e financiamento, mais fortemen-
diversos caminhos: diminuição na demanda do
te o setor privado. Os estudantes do ensino médio
vestibular; mudança do perfil socioeconômico
e seus familiares, ao tomar conhecimento de que
dos alunos que procuram a instituição, com a
os alunos de um curso pertencente à determinada
possibilidade de redução no pagamento das men-
IES receberam avaliação ruim no Provão, ou que a
salidades; aumento da inadimplência por parte
escola não foi bem na Avaliação das Condições de
dos alunos, por se sentirem desmotivados pelo
Oferta, podem fugir dessa instituição, procurando
mal resultado do curso no Provão etc.
aquelas com bons resultados e que usaram e abu-
saram da divulgação desse fato por todos os meios Quaisquer dessas alternativas interfere dire-
permitidos pela mídia. Divulga-se o resultado do tamente no financiamento das instituições, pro-
Provão (A, B, C, D ou E) ou os das Avaliações das vocando a tomada das mais diversas e contraditó-
Condições de Oferta (CMB-Condições Muito rias ações por parte de seus dirigentes, desde a
Boas, CB-Condições Boas, CR-Condições Regula- oferta de cursinhos internos e prêmios aos estu-
res ou CI-Condições Insuficientes), conforme as dantes até a real melhoria do quadro de profes-
conveniências da instituição, ou seja, destacando- sores, da biblioteca e dos laboratórios.
se sempre os melhores conceitos. REDUÇÃO DOS RECURSOS DO FUNDO PÚBLICO
APLICADOS NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS
Assim, muitos cursos, “inclusive nas uni-
Quando o financiamento com recursos do
versidades públicas, introduzem o uso do escore
fundo público revela-se insuficiente e as insti-
alcançado no Provão como expressão de sua qua-
tuições públicas dirigem-se fortemente às ativida-
lidade e publicizam, em forma de faixas e carta-
des de prestação de serviços, oferecendo cursos,
zes, a colocação que obtiveram, como indicador
assessorias e consultorias remuneradas, elas pas-
de sua posição no ranking acadêmico”.27 Implan-
sam a enfrentar dois pólos de controle: o estatal
tou-se, por meio da lei n.º 10.260/01, o Fundo de
e o do mercado.
Financiamento ao Estudante do Ensino Superior
(FIES), “destinado à concessão de financiamento Nesse caso, começam a depender sutil-
a estudantes regularmente matriculados em cur- mente da avaliação do mercado quanto à quali-
sos superiores não gratuitos e com avaliação po- dade de seus serviços, efetivando-se uma verda-
sitiva”.28 O significado de avaliação positiva ficou deira vinculação entre avaliação do mercado e
estabelecido na portaria n.º 1.725/01: “São consi- volume de recursos financeiros que cada uma de-
derados cursos com avaliação positiva aqueles re- las consegue captar, em geral utilizando-se das
fundações de apoio. É bom lembrar que, em sua
27 CUNHA, FERNANDES & FORSTER, 2003, p. 15.
28 Grifos acrescidos. 29 Ibid., p. 15.

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maioria, as instituições públicas não estão bem mento e a renovação de reconhecimento de cur-
preparadas para entrar nessa competição por re- sos de graduação”.
cursos existentes em alguns setores da socieda- Constituindo referencial teórico na regula-
de, necessitando do apoio de profissionais aca- ção e na supervisão da educação superior, o Sinaes
dêmicos-pesquisadores que nem sempre sabem poderá ser utilizado, dependendo das políticas
lidar com propostas orçamentárias, prazos e ava- governamentais a serem implantadas, para efeti-
liações empresariais. var uma forte vinculação com o financiamento. É
REFORMA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR possível afirmar que esse movimento já teve iní-
A proposta de reforma da educação supe- cio quando da implantação do Programa Univer-
rior apresentada pelo governo Lula, em dezem- sidade para Todos (ProUni) pela medida provisó-
bro de 2004, ao tratar o financiamento das IFES, ria n.º 212/04, ao estabelecer, no § 4.º do art. 7.º,
expressa em dois momentos a vinculação do fi- que o MEC “desvinculará do ProUni o curso con-
nanciamento a um processo de avaliação. No as- siderado insuficiente, segundo os critérios de de-
pecto da implantação do orçamento global, está sempenho do Sistema Nacional de Avaliação da
estabelecido no § 2.º do art. 44 que as IFES “de- Educação Superior (Sinaes) por três avaliações
verão se habilitar à gestão autônoma dos recursos consecutivas, situação em que as bolsas de estudo
que lhes forem destinados, no regime de orça- do curso desvinculado, nos processos seletivos
mento global, pelo atendimento de indicadores seguintes, deverão ser redistribuídas proporcio-
institucionais de gestão e desempenho”.30 E no que nalmente pelos demais cursos da instituição”.
se refere à expansão das IFES, vinculando-a à ela- Ressalta-se que o ProUni está diretamente
boração do Plano de Desenvolvimento Institucio- relacionado ao financiamento, por se destinar “à
nal (PDI), o § 4.º do art. 46 estabelece que “a concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas
expansão das instituições federais de educação de estudo parciais de cinqüenta por cento (meia-
superior será definida pelo Ministério da Educa- bolsa) para cursos de graduação e seqüenciais de
ção mediante análise do PDI de cada instituição e formação específica, em instituições privadas de
respectiva avaliação de desempenho, segundo cri- ensino superior, com ou sem fins lucrativos”,
térios definidos em regulamento”.31 conforme estabelece o art. 1.o da medida provisó-
Uma parte da reforma universitária já se en- ria n.º 213, de 10/set./04.
contra materializada por meio do Sistema Nacio- CONSIDERAÇÕES FINAIS: PERIGOS DA
nal de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e VINCULAÇÃO AVALIAÇÃO/FINANCIAMENTO

do Programa Universidade para Todos (ProUni). A presença de um Estado que, ao longo da


O Sinaes foi instituído pela lei n.º 10.861/04, com última década, teve seu foco deslocado para se
o “objetivo de assegurar processo nacional de tornar avaliador e implementador de uma dinâ-
avaliação das instituições de educação superior, mica de competição de mercado lançou seus bra-
dos cursos de graduação e do desempenho aca- ços sobre as IES. Isso, porque implantou proces-
dêmico de seus estudantes”. Sobre o uso dos re- sos avaliativos que vêm “adquirindo pouco a pou-
co grande centralidade na reforma da educação
sultados desse processo de avaliação, a mesma lei
superior, permitindo ao Estado introduzir mu-
afirma, no parágrafo único do seu art. 2.º, que os
dança no sistema e, ao mesmo tempo, desenca-
resultados “constituirão referencial básico dos
dear processos cotidianos de transformação do
processos de regulação e supervisão da educação
perfil e da identidade das Instituições de Ensino
superior, neles compreendidos o credenciamento
Superior (IES)”.32
e a renovação de credenciamento de instituições
de educação superior, a autorização, o reconheci- No Brasil, as ações governamentais con-
centraram-se a partir de 1994-1995, quando nor-
30 Grifos acrescidos.
31 Grifos acrescidos. 32 CATANI, OLIVEIRA & DOURADO, 2002, p. 99.

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matizou-se o modelo para a distribuição de re- cursos, a contratação de professores titulados, a


cursos financeiros entre as IFES e o Exame Nacio- melhoria da biblioteca, a implementação de no-
nal de Curso, o Provão. Pode-se afirmar que as vos laboratórios etc. Porém, a importância dada
ações implementadas foram, em parte, responsá- pelo MEC, quando da divulgação dos resultados
veis por mudanças na educação superior brasileira desse frágil instrumento de avaliação, consideran-
e vêm “assumindo papel preponderante na amplia- do-o capaz de avaliar o curso e, às vezes, dando a
ção do controle, por parte do Estado sobre as IES, impressão de ser possível aproveitar seus resulta-
bem como na implementação de princípios e pa- dos para analisar a própria IES, fez com que pro-
râmetros de mercado no tocante à reestruturação cessos complexos de aferição institucional, como
desse nível de ensino”.33 o Programa de Avaliação Institucional das Uni-
A introdução do modelo para a distribuição versidades Brasileiras (PAIUB), recebessem forte
de recursos financeiros de custeio e capital entre as oposição daqueles que querem ver o estabeleci-
IFES contribuiu para o aumento no número de alu- mento de listas classificatórias e carimbos sim-
nos (em 1995, eram 367.531 e, em 2003, 567.850 plistas com letras A, B, C etc.
– um aumento de 54,5%, segundo o Censo do A estratégia governamental de redução dos
Ensino Superior, publicado pelo MEC/INEP). En- recursos do fundo público aplicados nas institui-
tretanto, as instituições já estabilizadas tendem a ções públicas atinge frontalmente o que as uni-
superar ainda mais seus indicadores, ao passo que versidades têm de mais caro: sua autonomia aca-
aquelas com deficiências quase não conseguem dêmica. Quando laboratórios, bibliotecas, ativi-
melhorar seus desempenhos.34 dades de intercâmbio etc. começam a depender
A Gratificação de Estímulo à Docência primordialmente dos recursos captados no quase-
provocou maior preocupação nos docentes das mercado, há, inevitavelmente, um tolhimento da
IFES em melhorar os seus índices de produtivida- liberdade intelectual da instituição, que passa a di-
de. Contudo, promoveu uma crescente despreo- rigir muitas de suas ações para atender aos inte-
cupação com a qualidade e com o papel social e resses utilitaristas de, em geral, exigentes financia-
cultural dessas instituições. A permanência de dores privados.
gratificação como a GED pode provocar, no mé-
Aprovado o Sistema Nacional de Avaliação
dio prazo, uma degenerescência das relações in-
da Educação Superior (Sinaes) pelo Congresso
ternas de trabalho, com conseqüências negativas
Nacional, permeando agora todo o contexto ins-
para a interação das escolas com a sociedade, por
titucional, o governo passar a ter em mãos uma
serem levadas a atuar burocraticamente, apenas
poderosa arma, se quiser implementar ações que
com o objetivo de somar pontos numa tabela que
vinculem o processo avaliativo às definições so-
resultaria em prêmio financeiro ao professor.
bre o financiamento das instituições. É preciso
O Exame Nacional de Cursos, o Provão,
definir, para cada ação ligando avaliação e finan-
causou, sobretudo nas instituições privadas, a
ciamento, dispositivos protetores/segurança con-
reformulação de currículos obsoletos de muitos
tra os perigos advindos dessa vinculação. As con-
33 Ibid., p. 99.
seqüências desse processo podem ser danosas
34 DÍAZ BARRIGA, 2002, p. 14. para o futuro da educação superior brasileira.

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Dados do autor
Doutor em educação pela Universidade
Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e professor do
Instituto de Física e do programa de
pós-graduação em educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Recebimento: 4/abr./05
Aprovado: 3/jun./05

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Finanças Públicas,
Renúncia Fiscal e o
ProUni no Governo Lula
PUBLIC FINANCES, FISCAL
RENOUNCEMENT AND THE
PROUNI IN THE LULA GOVERNMENT* 1

Resumo O objetivo deste texto é compreender a relação complexa e dinâmica da


política pública para o ensino superior no governo Lula, quanto ao Projeto
Universidade para Todos (ProUni) e sua articulação com a operação da política
fiscal e os mecanismos de renúncia tributária. Esse programa de concessão de
bolsas de estudo para estudantes de instituições privadas de ensino superior em
troca de renúncia fiscal surge acompanhado da retórica de justiça social e de
inclusão das camadas sociais menos favorecidas. Porém, tal discurso encobre
interesses do segmento privado relacionado ao alto grau de vagas ociosas, assim
como é coerente com a lógica atual de controle das finanças públicas. Seu
principal impacto é a redução potencial da receita tributária, cujo valor dependerá
do nível de adesão e do tipo de instituição que participar do programa. Há
dúvidas, todavia, quanto à capacidade de conferir acesso ao ensino de qualidade
à população de baixa renda.
CRISTINA HELENA
Palavras-chave FINANÇAS PÚBLICAS – RENÚNCIA FISCAL – PROUNI – ENSINO ALMEIDA DE
SUPERIOR – BOLSA DE ESTUDOS. CARVALHO
Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp)
Abstract The main purpose of this paper is to comprehend the complex and
crishele@eco.unicamp.br
dynamic relation of Lula’s government higher education public policy, named
Projeto Universidade para Todos (ProUni, or University for All Project) and its
connection with fiscal policy and mechanisms of tributary renouncement. Social FRANCISCO LUIZ
justice and poor people inclusion are the main rhetoric of this policy, addressed to CAZEIRO LOPREATO
higher education private institutions students, which exchange scholarship for Universidade Estadual de
fiscal renouncement. In spite of this rhetoric, this speech hides private institutions Campinas (Unicamp)
interests, related to the existence of vacancies in excess, and is coherent with the lopreato@eco.unicamp.br
recent logic of fiscal policy administration. Its main impact is the reduction of
potential fiscal receipt, which magnitude will depend on adherence level and the
kind of participant institution. Notwithstanding, many doubts remain about the
program’s capability to confer access to low-level income population to good
education.

Keywords PUBLIC FINANCE – FISCAL RENOUNCEMENT – PROUNI – HIGHER


EDUCATION – SCHOLARSHIP.

*1 Esteartigo é uma versão modificada e atualizada de trabalho apresentado no seminário “Dois anos de
educação superior no governo Lula”, promovido pelo Laboratório de Estudos das Universidades (LEU),
em 10/dez./04, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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INTRODUÇÃO

O
objetivo deste texto é compreender a relação
complexa e dinâmica da política pública para o en-
sino superior no governo Lula, no que tange ao
ProUni1 e à sua articulação com o modo de operar
a política fiscal e os mecanismos de renúncia tribu-
tária. Esse programa de concessão de bolsas de es-
tudos integrais e parciais para estudantes de
instituições privadas de ensino superior, em troca
de renúncia fiscal, surge acompanhado pela retórica de justiça social e de
inclusão das camadas sociais menos favorecidas, cujo principal indicador
é o baixo percentual de alunos com idade entre 18 e 24 anos freqüentan-
do o ensino superior. Mas, na verdade, tal discurso encobre a pressão das
associações representativas dos interesses do segmento privado, justifi-
cada pelo alto grau de vagas ociosas.
É importante entender como o programa se insere no ambiente
macroeconômico mais amplo e nas mudanças ocorridas na forma de ope-
ração da política fiscal. Vale ressaltar que a fixação de determinado valor
para o superávit primário restringe os espaços de financiamento das po-
líticas públicas no orçamento fiscal.
Além disso, a intenção do texto é examinar a evolução do corpo le-
gislativo do programa, em outras palavras, percorrer o caminho a partir
do projeto de lei, passando pela medida provisória n.º 213, de 10/set./04,
até a lei n.º 11.096, de 13/jan./05. Por fim, pretende-se dimensionar o
provável impacto institucional diferenciado da renúncia fiscal, com vistas
a captar as principais motivações da ação governamental e o grau de ade-
são dos atores sociais.
Esse processo político2 encontra-se em movimento, o que torna a
análise ao mesmo tempo atraente e complexa, ainda mais levando-se em
conta que a formulação3 e a implementação4 do programa estão aconte-
cendo simultaneamente.
O presente artigo está estruturado em quatro seções, além de in-
trodução e conclusão. Na primeira parte, objetiva-se entender o ProUni
no contexto da nova lógica das finanças públicas. Em seguida, o texto
procura comparar as principais alterações na formulação do ProUni, do
projeto de lei, da medida provisória até a peça legislativa. Na terceira par-
te, desenvolve-se um breve histórico dos mecanismos da renúncia fiscal
direcionado aos estabelecimentos privados de educação superior. E na

1 Apesar do título do programa referir-se ao termo universidade no sentido lato, o ProUni, na verdade,
destina-se a qualquer tipo de instituição do sistema de ensino superior privado.
2 O processo político define-se, entre intenções e ações, como o processo contínuo de reflexão para den-
tro e ação para fora. Ele será analisado em duas dimensões concretas do “Estado em ação”: a formulação
e a implementação (VIANA, 1988).
3 O projeto ou formulação da política pública seria definido no espaço político, concebido como um pro-
cesso extra-racional de trocas e indeterminações, conflito e poder (ibid.).
4 A implementação é demarcada pelo espaço administrativo, compreendido como um processo racionali-
zado de procedimentos e rotinas (ibid.).

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quarta, a intenção é dimensionar o impacto dife- nanças públicas e exigiu a construção de indica-
renciado da implementação do ProUni nas dores capazes de superar as limitações daqueles
instituições de ensino superior privadas e os pos- tradicionalmente usados na avaliação do quadro
síveis resultados dessa intervenção governamen- fiscal. O resultado fiscal convencional – conheci-
tal nas finanças estatais. do como Necessidade de Financiamento do Se-
O PROUNI E A NOVA LÓGICA DAS tor Público –, apoiado no controle do déficit pú-
FINANÇAS PÚBLICAS blico, deixou de ser a referência principal e a sus-
A discussão exige retroceder um pouco no tentabilidade da dívida tornou-se o novo indica-
tempo para entender as alterações ocorridas na dor básico.
gestão da política fiscal, a partir dos anos 90, e as
O indicador de sustentabilidade da dívida
dificuldades em ampliar os gastos públicos. Na
visão convencional, o indicador basilar da situa- permitiu incorporar o problema da avaliação do
ção fiscal era o déficit público. Os programas de comportamento esperado das finanças públicas
ajustamento atribuíam-lhe a responsabilidade por em cenários prováveis. A partir do momento em
vários problemas, com destaque para a inflação, o que essa idéia tornou-se dominante, deixou de
saldo negativo no balanço comercial, o aumento ser suficiente o País demonstrar que goza de boa
da taxa de juros e a redução dos investimentos, o situação fiscal. É preciso que o mercado acredite
que, por sua vez, provocava, a longo prazo, me- que, no cenário esperado para um determinado
nor nível de desenvolvimento do País. tempo no futuro, não haverá risco de calote na
O controle do déficit público ocupava lu- dívida. Em outras palavras, os investidores preci-
gar central na política macroeconômica e o equa- sam ter confiança em que a dívida seja susten-
cionamento do saldo negativo da balança comer- tável, considerando-se o comportamento futuro
cial, das altas taxas de juros e da inflação era visto esperado das variáveis câmbio, juros e Produto
como dependente do sucesso do programa de Interno Bruto (PIB), que influenciam a relação dí-
ajuste fiscal. Não é por outra razão que os orga- vida/PIB.5 Se o país apresentar um valor elevado
nismos multilaterais sempre defendiam o corte de dívida em relação ao PIB – como no caso bra-
no déficit público como medida inicial da política sileiro –, será necessário aumentar o superávit pri-
de ajustamento. mário,6 isto é, o montante da poupança fiscal usa-
A questão alterou-se, no entanto, com a do no pagamento dos juros, para reduzir o esto-
abertura dos mercados financeiros, o crescente que da dívida ou, ao menos, evitar o seu cresci-
fluxo de investimentos e a volatilidade dos capi- mento.
tais presentes nos anos 90. A ampla mobilidade Essa interpretação da política fiscal foi de-
do capital levou a corrente econômica dominante finitivamente implantada no Brasil após o acordo
a dar outro rumo à avaliação da política fiscal e a com o FMI em 1998. O órgão passou a exigir do
exigir esforço fiscal adicional, por parte dos paí- segundo governo de Fernando Henrique Cardo-
ses em desenvolvimento, para se credenciar como
so um superávit primário capaz de assegurar a
candidatos a receptores dos novos fluxos de ca-
sustentabilidade da dívida, quaisquer que fossem
pitais. A questão fiscal ganhou lugar central no
a taxa de câmbio e a de juros incidentes sobre o
arranjo da política macroeconômica, sobretudo
estoque da dívida pública. A existência de taxa de
diante do papel da dívida pública como um dos
juros reais elevadas e a instabilidade cambial, ao
ativos usados na valorização do capital financeiro
e do risco de eventuais problemas fiscais gerar lado da medíocre evolução do PIB, não deixaram
turbulências e afetar a rentabilidade esperada das 5 O conceito de dívida líquida engloba o total da dívida interna e
inversões financeiras. externa federal, estadual e municipal reduzida dos haveres dos três
níveis de governo.
A análise nesse novo arcabouço teórico 6 O superávit primário é calculado pelo total da receita tributária redu-
concentrou-se nas condições prospectivas das fi- zida dos gastos do governo, excluindo-se o valor dos juros.

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alternativa senão promover constantes aumentos Em termos gerais, a idéia de parceira entre o setor
do superávit primário. público e o privado pode abranger um vasto cam-
A elevação do superávit primário deu-se po de interação, inclusive no interior do sistema
por meio de duas medidas. Primeiramente, com o educacional. No entanto, é importante salientar
aumento da carga tributária, que passou de 30% que o programa não atende as condições mínimas
do PIB, em 1998, para mais de 35%, em 2003.7 definidas para tanto: a que se destina, a exigência
Em segundo lugar, ocorreram importantes cortes de licitação, a constituição de sociedade com pro-
nos gastos públicos. A adoção da âncora fiscal le- pósito específico, a garantia de rentabilidade, a se-
vou a que se definisse, a priori, como despesa gurança de recebimento etc.
obrigatória, o valor do superávit primário na peça De qualquer modo, o ProUni pode ser vis-
orçamentária, reduzindo sensivelmente o mon- to como a alternativa de que o governo se valeu
tante de recursos disponíveis para outros gastos. para aumentar o número de vagas no ensino su-
O superávit primário é estabelecido previamente perior, sem ampliar diretamente o volume de gas-
e o valor dos gastos se ajusta ao comportamento tos federais. Essa lógica atende à política de con-
da receita orçamentária. Isso implica, invariavel- trole de gastos públicos e aos objetivos de sus-
mente, a realização de cortes de despesas, sobre- tentabilidade da dívida.
tudo no que é denominado Orçamento de Cus- PROUNI: PROJETO DE LEI, MEDIDA PROVISÓRIA
teio e Capital (OCC). Explicam-se, assim, o arro- E LEI
cho salarial, o corte das verbas de custeio com saú- A seguir, o artigo focaliza a formulação do
de, educação e outros, bem como a redução dos ProUni entre abril de 2004 e janeiro de 2005, a
gastos com investimentos.8 Pode-se dizer que os fim de extrair alguns elementos para a compreen-
investimentos públicos funcionaram como variá- são do jogo de interesses tanto no Poder Legis-
vel de ajuste. Não é de surpreender que eles sejam lativo como no Executivo. A intenção é traçar
os mais baixos da história recente do País e, es- um paralelo entre os três documentos – projeto
pecialmente após o processo de privatizações das de lei (PL), medida provisória (MP) e lei – para en-
empresas estatais, perderam o papel que tinham tender o processo dinâmico de formulação da
como articuladores das condições de crescimento. política pública sob o qual o jogo político se ma-
É possível, então, entender a lei n.º 11.079, terializa. Entre a formulação do PL e a adoção de
de 30/dez./04, que instituiu a Parceria Público- MP com força de lei, transcorreu-se um lapso
Privada (PPP). A dependência do governo em re- temporal de apenas cinco meses, e mais quatro
lação aos investimentos em infra-estrutura (obras até a lei. No entanto, é possível perceber mudan-
e operação de portos, ferrovias e estradas) a se- ças significativas nos três documentos.
rem realizados pelas parcerias abre amplo leque
Em primeiro lugar, no PL somente seriam
de questões, entre elas, quais serão os setores be-
concedidas bolsas integrais para alunos cuja renda
neficiados e os recursos envolvidos, se elas devem
per capita não ultrapassasse um salário mínimo.
ou não ter precedência sobre outros empreendi-
Na MP, além do aumento no limite de renda para
mentos pelo setor público e o possível compro-
um salário mínimo e meio, passou a vigorar a
metimento futuro das finanças governamentais.
concessão, também, de bolsas parciais de 50%
No âmbito das discussões em torno da re- para alunos com renda per capita que não ultra-
forma do ensino superior do governo Lula, no passasse três salários mínimos. Com base na lei,
meio acadêmico o ProUni vem sendo associado
foram estabelecidas ainda bolsas de estudos par-
às PPPs. O ProUni, strictu senso, não é uma PPP,
ciais de 25% para os bolsistas com as mesmas
nos moldes em que esta foi institucionalizada.
condições sociais daqueles com direito à metade
7 Dados retirados do site da Receita Federal: <www.receita.fazenda.gov.br>.
de gratuidade. A possibilidade de bolsas parciais
8 Cf. LOPREATO, 2004 e 2005. permite aos estabelecimentos particulares maior

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flexibilidade para compor a receita comprometi- Em quarto lugar, no PL institui-se a pro-


da com o programa. porção de uma bolsa integral para cada nove alu-
Em segundo lugar, no PL a bolsa de estudos nos regularmente matriculados, independente-
seria destinada apenas aos estudantes que cursaram mente de a instituição ter ou não finalidade lucra-
o ensino médio completo em escola da rede pública tiva. Para as entidades beneficentes de assistência
e a professores da rede pública de educação básica. social é fixada a proporção de uma bolsa integral
Na MP, o público-alvo do ProUni é mais amplo: para cada quatro alunos pagantes. Na MP, ainda
abrange também egressos das instituições privadas existe a alternativa para aquelas sem fins lucrati-
na condição de bolsista integral e estudantes porta- vos e não filantrópicas: a proporção de uma bolsa
dores de necessidades especiais. Quanto aos pro- para cada dezenove pagantes e, adicionalmente,
fessores da rede pública, o texto da MP é mais bolsas parciais de 50%, até o equivalente a 10% de
específico, pois se destina aos cursos de licencia- receita anual efetivamente recebida. Para as bene-
tura e pedagogia, e independe da condição social. ficentes, a MP determinou que a proporção será
Na lei, sofre uma alteração semântica, quando se de um bolsista integral para cada nove pagantes e
refere a portadores de deficiência, e acresce para até, no mínimo, o equivalente a 20% de sua recei-
professores da rede pública, que teriam direito à ta bruta composta por bolsas parciais de 50% e pro-
bolsa, o curso normal superior.9 gramas de assistência social.
Nesse ponto, importa ressaltar que o públi- Com a promulgação da lei, estabeleceu-se
co-alvo destina-se aos alunos carentes, inclusive que, durante a vigência de 2005, as regras serão
estabelecendo de forma obrigatória que parte das idênticas àquelas definidas na MP, para os estabe-
bolsas deverá direcionar-se a ações afirmativas lecimentos com ou sem fins lucrativos não bene-
(portadores de deficiência e autodeclarados ne- ficentes, com exceção da inclusão da alternativa
gros e indígenas). A formação de professores de para os privados lucrativos de conceder bolsas
ensino básico da rede pública também consta parciais que englobem 10% da receita auferida.
como prioridade do programa. A intenção é me- Entretanto, a partir de 2006, o documento é bas-
lhorar a qualificação do magistério, com possíveis tante generoso para ambos: amplia a relação de es-
impactos positivos na qualidade e no aprendiza-
tudantes pagantes por bolsas concedidas e reduz o
do dos alunos da educação básica.
comprometimento da receita bruta com os bene-
Em terceiro lugar, no PL a seleção dos can- fícios. Para aqueles com ou sem fins lucrativos e
didatos ao ProUni restringia-se ao desempenho e não filantrópicos, a concessão de uma bolsa inte-
perfil socioeconômico do Exame Nacional do
gral para cada 10,7 alunos pagantes ou, de forma
Ensino Médio (ENEM), sendo que o documento
alternativa, uma bolsa integral para cada 22 pagan-
afirmava, até mesmo, a dispensa de processo se-
tes, com quantidades adicionais de bolsas parciais
letivo específico. Já na MP (confirmada pela lei),
(50% e 25%), até atingir 8,5% da receita bruta.10
passa a existir ainda um segundo processo seletivo,
com critérios a serem determinados pela institui- No caso das entidades beneficentes, o do-
ção de ensino superior, ao passo que o resultado cumento manteve as mesmas regras de propor-
do ENEM torna-se apenas uma pré-seleção. O do- cionalidade de bolsas e o comprometimento da
cumento final parece conferir aos estabelecimen- 10 A medida provisória n.º 213/04 do ProUni teve o texto alterado por
tos particulares maior autonomia para selecionar proposta dos deputados do PFL, com apoio do PSDB e por pressão dos
seus estudantes bolsistas. atores políticos representantes das instituições privadas no Congresso
Nacional. No texto modificado pela Câmara Federal, aquelas com ou
sem fins lucrativos teriam de destinar 7% de vagas para o programa. O
9 De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ministro da Educação, Tarso Genro, afirmou ter sido decisiva nesse
(LDB), lei n.º 9.394, de 20/dez./96, em seus artigos 62 e 63, os profes- processo a participação do reitor da Universidade Paulista (Unip). Cf.,
sores da rede pública que atuam na educação básica devem ter con- a esse respeito, GOVERNO..., 2004. Observa-se que a redação final
cluído os cursos de pedagogia, normal superior ou licenciatura. Dessa do documento refletiu o jogo político, no qual o MEC teve de ceder e
forma, a lei aperfeiçoa os documentos anteriores e é coerente com o acomodar os interesses privados, e os atores não foram plenamente
estabelecido na legislação superior. atendidos.

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receita bruta. Houve uma alteração quanto à ren- Estado de São Paulo (SEMESP). Após as modifi-
da familiar per capita: enquanto na MP a bolsa in- cações introduzidas pela MP, esses atores mani-
tegral seria concedida a alunos com até três salá- festaram-se, publicamente, na forma de adesão
rios mínimos, na lei prevalecem as mesmas faixas antecipada. Nos últimos meses, matérias pagas
de renda para bolsa integral e parcial (50% e vêm sendo veiculadas nos principais jornais de
25%) das demais instituições de ensino superior. circulação do País, em apoio ao programa. Nos
Em quinto lugar, o critério de desempenho debates no âmbito do Projeto de Reforma do
institucional balizado pelo Sistema Nacional de Ensino Superior, os representantes dos interesses
Avaliação da Educação Superior (Sinaes) foi afrou- privados têm enaltecido a importância do ProUni,
xado. No PL, previa-se a desvinculação da institui- sob o argumento da democratização do ensino.
ção que apresentasse resultado insatisfatório por No entanto, a partir da publicação da MP,
dois anos consecutivos ou três intercalados, no pe- algumas filantrópicas começaram a declarar nos
ríodo de cinco anos. Na MP e com a ratificação da meios de comunicação que estariam dispostas a
lei, desvincula-se o curso mal avaliado por três ava- deixar o status de entidades de assistência social
liações consecutivas, cujas bolsas passam a ser re- para tornarem-se instituições com fins lucrativos.
distribuídas pelos demais cursos da mesma escola. A atitude, apesar de parecer estranha, tem lógica
Em sexto lugar, houve uma alteração signi- e, para entendê-la, é preciso levar em conta duas
ficativa nos documentos quanto à relação entre o questões.
ProUni e o Financiamento ao Estudante do Ensi- Primeiramente, como será tratado adiante,
no Superior (FIES). Enquanto, no PL, estaria vedado o interesse em participar do programa é diverso,
o credenciamento de instituições no FIES que não pois a isenção dos tributos federais é a mesma
aderissem ao Programa, na MP ratificada pela lei, a para instituições já isentas ou imunes a alguns de-
redação foi atenuada ao estabelecer a prioridade na les. Em segundo lugar, as regras de composição de
distribuição dos recursos disponíveis no financia- bolsas por categoria institucional são bastante di-
mento estudantil às participantes do programa. ferenciadas, como se procurará mostrar a seguir.
Por último, caberia comentar que o PL fixa- Nas instituições lucrativas e sem fins lucra-
va uma multa de, no máximo, 1% do faturamen- tivos e não beneficentes, as regras mostram-se
to anual do exercício anterior à data da infração bem mais flexíveis. A barganha dá-se por meio da
para a instituição de ensino superior particular escolha de bolsas integrais e/ou parciais, por
que descumprisse as regras do ProUni. Já na MP meio de duas opções de adesão: uma com base na
e na lei, deixa de constar qualquer sanção pecu- concessão de bolsas integrais e outra envolvendo
niária para o desrespeito às regras do programa. a redução significativa das bolsas integrais e a re-
As alterações no texto legal parecem con- ceita bruta como parâmetro para a concessão de
duzir à flexibilização de requisitos e sanções e à bolsas parciais (50% e 25%). A adesão ao ProUni
redução da contrapartida das instituições particu- é voluntária.
lares. Tais evidências sugerem que, durante a tra- Já para as entidades beneficentes de assis-
mitação no Congresso Nacional, houve atuação tência social, as regras revelam-se bem mais rigo-
efetiva dos atores sociais representados pelas as- rosas. A adesão ao ProUni e a concessão de bol-
sociações de interesses do ensino superior parti- sas integrais são obrigatórias. As demais modali-
cular, entre elas, Associação Brasileira de Mante- dades de gratuidade (bolsas parciais e programas
nedoras de Ensino Superior (ABMES), Associação de assistência social) podem ser usadas para com-
Nacional das Universidades Particulares (ANUP), por o total de 20% da receita bruta. O percentual
Associação Nacional dos Centros Universitários é o requisito mínimo que caracteriza a natureza
(Anaceu), Associação Nacional de Faculdades e jurídica desse tipo de instituição. O maior grau de
Institutos Superiores (ANAFI) e Sindicato das exigência previsto no programa para essas entida-
Entidades Mantenedoras de Ensino Superior do des permite entender a razão da atratividade que

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existe na transformação das beneficentes de as- a Constituição Federal de 1967, determinava a


sistência social em privadas lucrativas. Estas têm não incidência de impostos sobre a renda, o pa-
direito à significativa renúncia fiscal, em troca de trimônio e os serviços dos estabelecimentos de
parcela reduzida de bolsas de estudos. ensino de qualquer natureza. Em outras palavras,
Vale ressaltar, no entanto, que as entidades as organizações privadas de ensino superior go-
de assistência social que perderam tal status por zaram do privilégio, desde a sua criação, de imu-
não cumprir o percentual mínimo de gratuidade nidade fiscal, não recolhendo aos cofres públicos
exigido poderão, com a adesão ao ProUni, soli- a receita tributária devida.
citar a revisão dos processos e o restabelecimento O instrumento mostrou-se fundamental
do certificado do Conselho Nacional de Assis- para o crescimento intensivo dessas estruturas na
tência Social (CNAS), requerendo, posteriormen- prosperidade econômica, garantindo, especial-
te, ao Ministério da Previdência Social o retorno mente, a continuidade da atividade da empresa
da isenção das contribuições. educacional no período de crise, por meio da re-
Como último ponto, destaca-se que a MP dução do impacto sobre custos e despesas ineren-
determinava como competência exclusiva da fisca- tes à prestação de serviços. Apesar de existirem re-
lização do programa o Ministério da Educação quisitos restritivos para as entidades educacionais
(MEC). Este não dispõe de quadro técnico especi- terem acesso à imunidade fiscal, na prática grande
alizado em fiscalização, o que dificulta o controle parte delas no ensino superior usufruiu e vem
das regras de concessão de bolsas e contábil/fiscal. usufruindo desse benefício. A instituição de ensi-
Tal medida desautorizaria e impediria o trabalho no ou mantenedora, na forma de associação civil
desenvolvido, nos últimos anos, de combate à so- ou fundação, tida como sem fins lucrativos, po-
negação fiscal do Ministério de Estado da Previ- deria receber por seus produtos e serviços, de-
dência Social e da Receita Federal. Os dois órgãos vendo, porém, reinvestir o superávit na manuten-
federais manifestaram-se, na imprensa, em algu- ção e na expansão das atividades educacionais.
mas ocasiões, alertando o perigo de tal iniciativa. As entidades de ensino superior considera-
Com a promulgação da lei, a redação foi al- das sem fins lucrativos são imunes ao Imposto
terada para constar que o MEC será responsável sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
por verificar e informar aos demais órgãos com- (IPTU)12 e ao Imposto sobre Serviços de Qual-
petentes a situação de cada entidade quanto ao quer Natureza (ISS),13 ambos de competência do
cumprimento das exigências do ProUni. O texto poder municipal, além do Imposto sobre a Renda
legal passou a explicitar que esse órgão não terá e Proventos de Qualquer Natureza (IRPJ)14 e do
ingerência sobre a fiscalização da Secretaria da Re- Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural
ceita Federal e do Ministério da Previdência Social. (ITR),15 no caso dos imóveis localizados em zo-
BREVE HISTÓRICO DA RENÚNCIA FISCAL nas rurais, ambos de competência da União.
A partir do final dos anos 60, o governo
militar valeu-se intensamente da política de in- 12 É de competência do poder público municipal a cobrança do IPTU. A
base do tributo é o valor venal do imóvel e as alíquotas variam para cada
centivos e isenções fiscais como forma de apoiar governo local. O reconhecimento da imunidade deve ser requerido para
a atuação privada no projeto de desenvolvimento cada imóvel de propriedade da instituição de ensino, sendo o benefício
concedido apenas aos imóveis utilizados na atividade educacional.
nacional, beneficiando ampla gama de setores em 13 É de competência dos municípios a cobrança de ISS. O fato gerador é
diferentes áreas. Em relação ao ensino superior, o a prestação por empresa ou profissional autônomo, com ou sem esta-
belecimento fixo, de serviço, cuja alíquota varia, de acordo com o
mecanismo de renúncia fiscal tornou-se fator município, de 1% a 5%, no caso de estabelecimento de ensino.
central no financiamento do segmento privado.11 14 É de competência da União a cobrança do Imposto sobre a Proprie-
dade Territorial Rural, cuja incidência é de 0,02% sobre o valor fun-
A lei n.º 5.172, de 25/out./66, que instituiu o Có- diário. A imunidade tributária das instituições de ensino se aplica às
digo Tributário Nacional, em concordância com escolas agrícolas e que mantêm unidades de ensino em zonas rurais.
15 É de competência da União a cobrança do Imposto sobre a Renda
como produto do capital e/ou do trabalho, bem como dos acréscimos
11 Cf., a esse respeito, CARVALHO, 2002. patrimoniais.

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Algumas instituições ainda poderiam ser Para as sem fins lucrativos e as filantrópicas, a co-
classificadas como de utilidade pública federal.16 brança do tributo corresponde a 1% sobre a folha
É necessário o registro no Conselho Nacional de de pagamento.
Serviço Social como entidade filantrópica, para A lei n.º 7.689, de 15/dez./88, instituiu a
gozar, além da imunidade tributária, a isenção da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL),
cota patronal da previdência social. Entre 1977 e destinada ao financiamento da seguridade social.
1988, a lei foi revogada e as instituições filan- Sua base de cálculo é o valor do resultado do
trópicas perderam o benefício.17 A partir da exercício antes da provisão para o imposto de
Constituição Federal de 1988 e da lei n.º 8.212, renda e a alíquota atual é de 9%. As entidades
de 14/jul./91 – Lei da Seguridade Social –, a enti- sem fins lucrativos e beneficentes são isentas da
dade beneficente de assistência social faz jus, nova- cobrança do tributo.
mente, à isenção das contribuições previdenciá- Por fim, a lei complementar n.˚ 70, de 30/
rias.18 Os decretos n.ºs 752/93 e 2.535/98 exigiam dez./91, instituiu a Contribuição Social para Fi-
a destinação de 20% da receita bruta das institui- nanciamento da Seguridade Social (Cofins), volta-
ções em gratuidade.19 da exclusivamente às despesas com atividades-fim
das áreas de saúde, previdência e assistência social.
O Programa de Integração Social (PIS), ins-
Ela é, atualmente, de 7,6% e incide, de forma não
tituído pela lei complementar n.º 7, de 7/set./70,
cumulativa, sobre o faturamento mensal.20 Para as
foi outro tributo federal que teve uma forma di-
instituições sem fins lucrativos, a alíquota é de 3%
ferenciada de cobrança entre as instituições com
e mantém a forma de cálculo da legislação origi-
fins lucrativos, sem fins lucrativos e filantrópicas.
nal.21 A isenção da Cofins e do INSS patronal res-
A contribuição para o PIS daquelas com fins lu-
tringe-se às entidades de assistência social.
crativos prestadoras de serviços calcula-se, atual-
Os impactos microeconômicos da renúncia
mente, sobre o seu faturamento ou receita bruta, de
fiscal repercutem no processo de expansão ao
maneira não cumulativa, com alíquota de 1,65%. longo das três últimas décadas. A imunidade do
16 De acordo com a lei n.º 3.577, de 4/jul./59: “Artigo 1.º: Ficam isentas
IPTU permite à instituição adquirir um maior nú-
da taxa de contribuição de previdência aos Institutos e Caixa de Apo- mero de imóveis para alojar mais cursos e alunos,
sentadoria e Pensões as entidades de fins filantrópicos, reconhecidas sem ônus tributário sobre as despesas operacio-
como de utilidade pública, cujos membros de suas diretorias não per-
cebam remuneração. Artigo 2.º: As entidades beneficiadas pela isenção nais, servindo inclusive de estímulo à ampliação
instituída pela presente lei ficam obrigadas a recolher aos Institutos,
apenas, a parte devida pelos seus empregados, sem prejuízo dos direi- do ativo imobilizado. A imunidade do ISS e a
tos aos mesmos conferidos pela legislação previdenciária” (INPS, 1976, isenção da Cofins estimulam o aumento de ma-
p. 144). Essa lei foi revogada pelo decreto-lei n.º 1.572/77.
17 O decreto-lei n.º 1.572, de 1.º/set./77, revogou a isenção da contri- trículas e, conseqüentemente, o crescimento ace-
buição previdenciária, porém, manteve a renúncia fiscal para aquelas
entidades já beneficiadas e concedeu inclusive prazo para regularizar a 19 A lei n.º 9.732/98, no art. 4.º, estabelece que: “a isenção das contri-
situação daquelas com o processo de isenção em trâmite. O texto legal
buições previdenciárias patronais na proporção do valor das vagas cedi-
encontra-se no site <www.senado.gov.br>.
18 “Art. 55. Fica isenta das contribuições de que tratam os art. 22 e 23 das, integral e gratuitamente, a carentes, e do valor do atendimento à
saúde de caráter assistencial”. Tal legislação provocou reação imediata
dessa Lei a entidade beneficente de assistência social, que atenda aos dos atores sociais vinculados aos interesses dessas organizações e,
seguintes requisitos, cumulativamente: como resultado de pressões políticas, foi concedida liminar pelo
I. seja reconhecida como de utilidade pública federal e estadual ou Supremo Tribunal Federal à Ação Direta de Inconstitucionalidade
do Distrito Federal ou municipal; impetrada pela Conferência Nacional de Saúde, Hospitais e Serviços.
II. seja portadora do Certificado ou do Registro de Entidades de O resultado beneficiou todas as filantrópicas, que, até o momento, não
Fins Filantrópicos, fornecidos pelo Conselho Nacional de Assis- são obrigadas a conceder bolsas de estudos integrais no montante cor-
tência Social – CNAS, renovados a cada 3 (três) anos; respondente à isenção. Cf. DAVIES, 2002.
III.promova a assistência social beneficente, inclusive educacional ou 20 A MP n.º 135, de 30/out./03, em seu art. 1.º, modifica a forma de cál-
de saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes; culo da Cofins, nos seguintes termos: “A Contribuição para o Financi-
IV. não percebam seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores amento da Seguridade Social – Cofins – com a incidência não-
ou benfeitores remuneração e não usufruam vantagens ou bene- cumulativa tem como fato gerador o faturamento mensal, assim
fícios a qualquer título; entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, indepen-
V. aplique integralmente o eventual resultado operacional na manu- dentemente de sua denominação ou classificação contábil”.
tenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais, apre- 21 Conforme essa mesma MP: “Art. 10. Permanecem sujeitas às normas
sentando anualmente ao Conselho Nacional de Seguridade da legislação da Cofins, vigentes anteriormente a esta Medida Provisó-
Social relatórios circunstanciando de suas atividades” (lei n.º ria, não se lhes aplicando as disposições dos art. 1.º a 8.o: (...) IV – as
8.212, de 14/jul./91, Lei da Seguridade Social). pessoas jurídicas imunes a impostos”.

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lerado da receita operacional bruta, já que não há sino superior.23 Mas, na verdade, esse discurso
ônus tributário sobre a ampliação da prestação de encobre a pressão das associações representativas
serviços. Finalmente, a imunidade do Imposto de dos interesses do segmento privado, justificada
Renda (IRPJ) e a isenção da CSLL possibilitam a pelo alto grau de vagas ociosas.
continuidade da atividade educacional e eviden- A expansão das entidades privadas de ensi-
ciam a saúde financeira. O resultado positivo via- no superior nos últimos anos resultou na criação
biliza o financiamento bancário, o auxílio externo de um número excessivo de vagas, que, segundo
e a obtenção de recursos de agências de fomento. informações recentes do INEP, é superior ao nú-
Para a entidade filantrópica, a isenção do mero de formandos no ensino médio.24 Tal fenô-
INSS possibilita ampliar a contratação de pessoal meno mostra uma inversão da tendência verifi-
docente e administrativo. O crescimento da folha cada anteriormente. A demanda potencial por
de pagamento não gera impacto tributário signi- ensino superior não se restringe ao número de
ficativo nos custos operacionais, ao passo que o concluintes do ensino médio. Contudo, é muito
recolhimento do PIS tem peso muito pequeno so- difícil estimar o número de pleiteantes. No cál-
bre a folha salarial. culo incluem-se não apenas parte dos recém-for-
PROUNI E A RENÚNCIA FISCAL mados, como também aqueles que retornam tar-
Nos anos 90, houve significativa alteração diamente aos bancos escolares.25
legislativa, estabelecida pelo art. 20 da LDB/96.22 A A situação colocou os estabelecimentos
medida sofreu severas críticas das associações de particulares diante de um quadro de incerteza,
classe defensoras dos interesses privados: a dife- sobretudo quando considerados individualmen-
renciação institucional intra-segmento privado. te.26 O fato ganha maior relevância, quando se
Até então, todas as instituições particulares de en- leva em conta o grau de inadimplência/desistên-
sino usufruíam imunidade tributária sobre a ren- cia. A queda nos rendimentos reais e o nível ele-
da, os serviços e o patrimônio. A partir daí, passa- vado de desemprego dificultam a sustentação dos
ram a ser classificadas em privadas lucrativas e sem gastos com as mensalidades pelos assalariados.
fins lucrativos (confessionais, comunitárias e fi- O ProUni surge, assim, como excelente oportu-
lantrópicas). As primeiras deixaram de se benefi- nidade de fuga para frente para as instituições
ciar diretamente de recursos públicos e indireta- ameaçadas pelo peso das vagas excessivas.
mente da renúncia fiscal, ao passo que as demais É possível desenvolver um quadro compa-
permaneceram imunes ou isentas à incidência tri- rativo simplificado das entidades com fins lucra-
butária. A mudança legislativa tornou possível tivos, sem fins lucrativos (confessionais e comu-
ampliar a arrecadação da União e dos municípios. nitárias) e filantrópicas, antes e depois da adesão
ao ProUni. Discrimina-se a base de cálculo e as
No governo Lula, o ProUni surge acompa-
alíquotas dos principais tributos federais nas três
nhado de um discurso de justiça social e de inclu-
categorias de estabelecimentos particulares.
são das camadas sociais menos favorecidas, cujo
principal indicador é o baixo percentual de alunos 23 De acordo com o INEP/MEC, a taxa de escolaridade líquida, enten-
com idade entre 18 e 24 anos freqüentando o en- dida como a parcela da população entre 18 e 24 anos de idade que fre-
qüenta o ensino superior, é de 9%.
24 Conforme o Censo da Educação Superior divulgado pelo INEP, em
22 “Art. 20. As instituições privadas de ensino se enquadrarão nas 2003 em torno de 2 milhões de vagas foram oferecidas nos processos
seguintes categorias: I. particulares em sentido estrito, assim entendi- seletivos e 1,88 milhões de estudantes concluíram o ensino médio. No
das as que são instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas entanto, o número de inscritos chegou a cerca de 4,9 milhões.
ou jurídicas de direito privado que não apresentem as características 25 Constam dessa lista desde aqueles que prestam vestibular para um
dos incisos abaixo; II. comunitárias, assim entendidas as que são insti- segundo curso de graduação até as diversas inscrições de uma mesma
tuídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídi- pessoa para cursos ou instituições distintas.
cas, inclusive cooperativas de professores e alunos que incluam na sua 26 Aqueles que demandam ensino superior percebem que a qualidade
entidade mantenedora representantes da comunidade; III. confessio- das instituições privadas é bastante diversificada e que os serviços edu-
nais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físi- cacionais oferecidos não são homogêneos. Entidades tradicionais e
cas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação aquelas cujas estratégias de marketing são mais agressivas terão, prova-
confessional e ideologia específicas e ao disposto no inciso anterior; IV. velmente, menor incerteza quanto ao preenchimento das vagas ofere-
filantrópicas, na forma da lei” (LDB/96). cidas do que as demais.

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Quadro 1. Alíquotas e Base de Cálculo dos Tributos Federais por Categoria de IES.
Lucrativa Confessional/ Filantrópica
Tributos Comunitária
Atual ProUni Atual ProUni Atual ProUni
IRPJ 25% x lucro – – – – –
CSLL 9% x lucro – – – – –
COFINS 7,6% x receita – 3% x receita – – –
PIS 1,65% x receita – 1% x folha – 1% x folha –
INSS (patronal) 20% x folha 20% x folha 20% x folha 20% x folha – –

Fonte: Legislação federal (elaboração própria).

As mais beneficiadas são aquelas com fins lucrativas – que representam, de acordo com os
lucrativos, já que ficam isentas, a partir da adesão dados do INEP, em 2002, cerca de 22% das parti-
ao programa, de praticamente todos os tributos culares e 52% das matrículas – tendem a aderir em
que recolhiam. Além disso, a contrapartida em maior número. Por outro, se parte significativa
número de bolsas é muito baixa, elas permane- das filantrópicas deixar o status de entidade de as-
cem com o mesmo status institucional e conti- sistência social, poderá haver um aumento da arre-
nuam não se submetendo a fiscalização/regula- cadação previdenciária. Por essa razão, não dá para
ção governamental. precisar o valor da renúncia fiscal, mas pode-se
Aquelas sem fins lucrativos deixam de reco- afirmar que o montante não será desprezível.
lher a Cofins e o PIS. O impacto sobre a rentabi- Isso coloca, desde logo, uma questão que
lidade deve ser importante, uma vez que a isenção precisa ser debatida: esses recursos não poderiam
da Cofins estimula o aumento de matrículas e, ser aplicados, com maior proveito, em institui-
conseqüentemente, o crescimento da receita ope- ções públicas? A questão soa ingênua aos olhos
racional bruta, já que não há ônus tributário sobre dos que defendem o modelo atual. Afinal, não se
a ampliação da prestação de serviços. A isenção cogita em contrariar a atual lógica de ação do se-
do PIS para as confessionais/comunitárias tem im- tor público e, além do mais, o programa atende
pacto muito pequeno sobre a folha salarial. os interesses do setor privado em evitar a possível
Já as beneficentes apenas são favorecidas (inevitável?) queima de capital no setor.
com a isenção do PIS, cujo ônus fiscal é pouco re-
CONCLUSÃO
presentativo. Tal contexto leva a compreender as
A expansão acelerada, nas três últimas dé-
alegações das filantrópicas em se tornar lucrati-
cadas, de matrículas na iniciativa privada, exacer-
vas. A troca de imunidade por isenção fiscal por
bada no final dos anos 90, tem encontrado limites
dez anos renováveis por iguais períodos não traz
estruturais no poder aquisitivo de sua clientela.
grandes conseqüências. Os tributos municipais
Ainda mais quando se considera o baixo cresci-
podem ser barganhados com os poderes locais e
mento econômico brasileiro e suas conseqüências
as alíquotas variam muito entre os municípios. O
mais perversas: o desemprego e a queda na renda
INSS patronal, de acordo com o explicitado na le-
real. Tal conclusão fica evidente, quando se ob-
gislação do ProUni, pode ser suavemente parce-
serva o percentual de vagas não preenchidas pelo
lado nos cinco primeiros anos.
vestibular nessas instituições.27 Enquanto, em
No que tange às finanças públicas, o impac-
to principal do ProUni é a redução potencial da 27 Vale ressaltar que esse indicador carece de confiabilidade, uma vez
receita tributária. O valor da renúncia fiscal de- que as escolas particulares tendem a ampliar o número de vagas poten-
ciais a cada processo seletivo. Entretanto, estas permitem dimensionar,
penderá do nível de adesão e do tipo de instituição de forma aproximada, a capacidade instalada e suas condições de renta-
que vier a participar do programa. Por um lado, as bilidade e solvência.

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1998, a proporção já era de 20%, em 2002, as va- Financeiro Nacional (PROER) para o sistema ban-
gas não preenchidas giraram em torno de 36%. A cário,30 em benefício da recuperação financeira
situação é mais crítica no Estado de São Paulo, das instituições particulares endividadas e com
que apresenta a maior rede privada, com 84,5% alto grau de desistência e inadimplência. As mais
das matrículas, 92% das vagas oferecidas e 44% beneficiadas parecem ser as lucrativas, que não
não preenchidas. Entre 1998 e 2002, a relação apenas se submetem às regras mais flexíveis,
candidato/vaga saltou de 11,4 para 23,2 nas como também obtêm maior ganho relativo em
instituições federais paulistas, e de 14,4 para 20,0 renúncia fiscal, em troca de um número pequeno
nas estaduais paulistas, ao passo que nas particu- de bolsas de estudos.
lares houve redução de 1,9 para 1,5.28 As modificações no texto legal do progra-
Assim, é possível afirmar que a política pú- ma demonstram o afrouxamento do aparato re-
blica que privilegia a democratização pela via pri- gulatório estatal, em razão da inexistência de san-
vada não encontra como principal entrave a ofer- ções mais severas pelo descumprimento das re-
ta insuficiente de vagas, mas a natureza dessas va- gras estabelecidas e do lapso temporal para ava-
gas e/ou a capacidade dos candidatos de ocupá- liação dos cursos, estimulando comportamentos
las.29 A extinção da gratuidade na rede pública es- oportunistas de instituições de qualidade duvido-
tadual e federal, que recorrentemente volta à bai- sa. Além disso, autorizam o incremento de vagas,
la, apenas tende a agravar o problema dos exce- proporcionais às bolsas integrais oferecidas por
dentes às avessas. Em outras palavras, a questão curso e turno, às entidades de ensino superior
não é a ausência de vagas para entrada no ensino privadas que não gozam de autonomia. Também
superior, e sim a escassez de vagas públicas e gra- quanto ao caráter social, há dúvidas sobre a sua
tuitas, já que a relação candidato/vaga nessas efetividade, uma vez que as camadas de baixa ren-
instituições tem aumentado significativamente da não necessitam apenas de gratuidade integral
nos últimos anos. ou parcial para estudar, e sim de condições que
O programa de financiamento estudantil apenas as instituições públicas ainda podem ofe-
(fies) deixa de ser uma alternativa viável aos alu- recer, como transporte, moradia estudantil, ali-
nos de baixa renda, diante da defasagem entre a mentação subsidiada, assistência médica disponí-
taxa de juros do empréstimo e a de crescimento vel nos hospitais universitários e bolsas de pes-
da renda do recém-formado, combinada ao au- quisa, entre outras.
mento do desemprego na população com diplo- Por fim, caberia questionar, diante do qua-
ma de terceiro grau. Vale salientar que o governo dro aqui exposto, por que não utilizar os recursos
federal já estuda a possibilidade de perdoar parte destinados ao ProUni para aumentar as vagas nas
das dívidas decorrentes da inadimplência dos universidades/instituições públicas? Na lógica da
contratos de financiamento já vencidos. sustentabilidade da dívida, o objetivo de assegurar
O diagnóstico do aumento de vagas ociosas elevados superávits primários requer a redução de
– no segmento privado –, associado à procura por gastos correntes e de investimento, o que é
ensino superior das camadas de baixa renda, fun- contraditório com o aumento da oferta pela via
damentou a proposta do MEC de estatização de pública, pois exige o crescimento da capacidade
vagas nas instituições particulares, em troca da re- instalada – novos prédios e estabelecimentos – e
núncia fiscal. Este trabalho sugere que, na verda- a contratação de professores e funcionários téc-
de, o ProUni deve operar, à semelhança do Pro- nico-administrativos. Ao mesmo tempo que a re-
grama de Estímulo à Reestruturação do Sistema 30 O principal objetivo atribuído ao PROER, instituído pela MP n.º
1.179, de 4/nov./95, foi prestar socorro financeiro aos bancos privados
28 Esses dados foram retirados de estudo sobre o panorama da gradua- para evitar uma crise de confiança no sistema bancário, com conse-
ção e da pós-graduação no Brasil e no Estado de São Paulo de 1998 a qüências sobre o conjunto da sociedade. O problema no segmento
2002. Cf. LANDI, 2005. privado de ensino superior não teria a mesma dimensão; portanto, é
29 Cf. CORBUCCI, 2002. duvidosa a pertinência de uma ação semelhante à do Banco Central.

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núncia fiscal é apenas uma redução potencial de nho é coerente com a lógica atual de controle das
receita tributária, que pode não ser tão significa- finanças públicas, mas contraria os interesses de
tiva, caso a inadimplência e a sonegação fiscal se- parte significativa da população, sem acesso ao
jam elevadas. A opção preferencial por esse cami- ensino de qualidade.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei n.º 5.172 de 25/out./66. In: OLIVEIRA, J. (org.). Código Tributário Nacional. 18.ª ed. São Paulo: Saraiva,
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vado no Brasil (1964-1984)”. Dissertação de Mestrado em Economia. Instituto de Economia, Universidade
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VIANA, A.L.“Abordagens metodológicas em políticas públicas”.Caderno de Pesquisa NEPP, Campinas, n. 5, 1988.

Dados dos autores


CRISTINA HELENA ALMEIDA DE CARVALHO
Doutoranda em economia aplicada na área de
concentração em economia social e do trabalho e
pesquisadora do Núcleo de Estudos em Políticas
Públicas (NEPP) / Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), na área de educação.
FRANCISCO LUIZ CAZEIRO LOPREATO
Professor doutor do Instituto de Economia da
Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de
Conjuntura e Política Econômica (CECON) /
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na
área de finanças públicas.

Recebimento: 14/mar./05
Aprovado: 29/abr./05

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Conexões Gerais
General Connections
Impulso, Piracicaba, 16(39): , 2005 105
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Cotas, Educação e Justiça


QUOTAS, EDUCATION AND JUSTICE
Resumo Este artigo aborda a questão da ação afirmativa, mais especificamente
das cotas raciais nas universidades. Partindo da idéia de que a educação é um bem
social, as teorias da justiça são o campo adequado para a sua discussão, buscando-
se critérios distributivos pertinentes a esse bem. A teoria utilizada é a apresentada
por Michael Walzer, pertencente à corrente comunitária do liberalismo. Com NUNO COIMBRA
base na sua exposição, este texto procura mostrar quais arranjos justos envolvem MESQUITA
a educação e como as cotas ferem o princípio da justiça. O debate acerca de Universidade de São Paulo (USP)
mesquita@usp.br
critérios valorativos para a distribuição de liberdades, poderes e rendimentos,
ainda que possua algum grau de abstração, traz conseqüências políticas facilmente
perceptíveis, tornando-a imprescindível em uma sociedade democrática.

Palavras-chave COTAS – JUSTIÇA DISTRIBUTIVA – EDUCAÇÃO – IGUALDADE.

Abstract This article discusses the issue of affirmative action, more specifically
the issue of racial quotas in universities. The idea that education is a social good
makes the theories of justice the appropriate area for this discussion, searching
which distributive principles are pertinent to this good. The theory used is the
one presented by Michael Walzer, who belongs to the communitarian tradition
of liberalism. After the presentation of the author’s theory, the text tries to show
which just arrangements are involved in the issue of education. It is then argued
how quotas disregard the principle of justice in this sense. The discussion over
the criterions based on value for the distribution of liberties, power, and wealth,
even with some degree of abstraction, has political consequences that are easily
perceivable, which makes it vital in a democratic society.

Keywords QUOTAS – DISTRIBUTIVE JUSTICE – EDUCATION – EQUALITY.

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INTRODUÇÃO

A
tualmente, a questão das ações afirmativas tem sido mui-
to debatida. Por ações afirmativas leia-se “discriminações
positivas”, ou empowerment. São políticas que pretendem
promover a igualdade social ou combater a desigualdade
por meio da reserva de vagas, ou cotas, em universidades,
empregos públicos etc. para minorias.1 Essas políticas vi-
sam a beneficiar, temporariamente, membros de certos
grupos que vivenciaram uma situação de inferioridade, em razão de dis-
criminações atuais ou históricas. No contexto brasileiro, as cotas em uni-
versidades têm tido maior destaque, atualmente, em virtude de algumas
instituições já preverem tal sistema e por conta da clara sinalização do go-
verno federal de fomentar a prática.
O assunto foi colocado na agenda nacional, inicialmente, após os
projetos apresentados pelo senador Abdias do Nascimento e pela sena-
dora Benedita da Silva. Em relação às vagas universitárias, o projeto da se-
nadora, em 1995, pretendia instituir a cota mínima de 10% para os seto-
res etnorraciais socialmente discriminados. Já o projeto do senador, de
1997, dizia respeito a cotas para negros no serviço público. Ambos situa-
vam-se na esfera do movimento negro brasileiro, sobretudo após a cria-
ção do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978.2
As discussões sobre o tema têm-se centrado muito no campo jor-
nalístico. Porém, uma medida desse tipo deve ser tratada também no
meio acadêmico, em que é preciso abrir-lhe espaço para diversas perspec-
tivas. A intenção deste trabalho é dar uma abordagem teórica e conceitual
à questão. Por sua vez, um tratamento crítico nesse sentido exige ir além
da discussão dos prós e contras de uma política desse tipo. Ela será aqui
abordada tomando-se por base a teoria política.
A questão das cotas – e, mais amplamente, a da educação – pode ser
discutida no plano das teorias da justiça. Isso porque estas centram-se em
critérios valorativos para a distribuição de liberdades, poderes, rendimen-
tos e riqueza. Tais teorias tentam dar respostas ao que seria uma justa
distribuição de bens nas sociedades em que vivemos. Sendo a educação
um bem, é possível discutir os princípios a serem seguidos para a distri-
buição de posições de ensino, vagas para estudantes, autoridade nas es-
colas ou diferentes tipos de conhecimento. O papel dos princípios da jus-
tiça, portanto, é “descrever os direitos e deveres básicos a serem atribuí-
dos pelas principais instituições políticas e sociais”.3

1O termo minorias é amplo, pois abrange também a inferioridade social e política, e não só numérica.
Neste artigo, tratamos exclusivamente a reserva de vagas para negros nas universidades, incluindo par-
dos, também beneficiários dessa política.
2 BERNARDINO, 2002.
3 RAWLS, 2001, p. 7.

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JUSTIÇA E IGUALDADE tos desenraizados. Os nossos auto-entendimen-


A teoria da justiça aqui recorrida para norte- tos constitutivos compreendem um sujeito mais
ar a questão das cotas é a apresentada por Michael amplo do que somente o indivíduo, seja a família,
Walzer,4 pertencente à corrente comunitária do li- a tribo, a cidade, a nação, seja o povo. São esses su-
beralismo. A teoria política liberal tem, como idéia jeitos que tal corrente entende por comunidade:
central, que “o governo deve ser neutro em relação “E o que marca essa comunidade não é apenas o
a visões morais e religiosas que seus cidadãos abra- espírito de benevolência, ou o predomínio de va-
çam”.5 As pessoas possuem concepções diferentes lores comunitários, ou até mesmo certos ‘fins co-
do que seja uma vida boa; portanto, o governo não muns’ isolados, mas um vocabulário comum de
deve defender nenhuma visão particular em lei. discurso e um passado de práticas e entendimen-
Em vez disso, deve promover direitos que respei- tos implícitos, nos quais a opacidade dos partici-
tem os indivíduos como livres e independentes, pantes é reduzida, senão totalmente dissolvida”.7
capazes de escolher seus próprios valores. Walzer trabalha com a idéia de bens sociais.
Contemporaneamente, a teoria política li- Educação, saúde, mercadorias e cargos públicos
beral é aquela que se contrapõe ao conservadoris- são exemplos desse tipo de bem. O debate entre
mo. É a corrente de pensamento que favorece um os liberais, portanto, centra-se no(s) critério(s)
Estado de bem-estar social mais generoso e de- que se deve(m) utilizar para a distribuição desses
fende a promoção da igualdade social e econômi- bens. Com base na visão comunitária, esse autor
ca. Historicamente, entretanto, o liberalismo com- entende que os critérios distributivos não são in-
preendeu um significado mais amplo. A partir dos trínsecos ao próprio bem, e sim ao bem social.
filósofos John Locke, Immanuel Kant e John Stu- Isso significa que as distribuições são justas ou
art Mill, essa tradição política enfatizou a tolerân- injustas, de acordo com o significado social que
cia e o respeito aos direitos individuais. Sem dú- possuem, variando, portanto, de cultura para cul-
vida, esse liberalismo histórico influenciou a teoria tura e ao longo do tempo. Dessa forma, cada bem
política liberal contemporânea. Os contemporâ- social possui uma esfera distributiva autônoma,
neos, entretanto, distanciaram-se de certos valores na qual apenas um critério é apropriado. O di-
da tradição do liberalismo clássico, como o indivi- nheiro, por exemplo, é inapropriado no âmbito
dualismo. Particularmente desde John Rawls, os de vagas eclesiásticas, do mesmo modo que a
contemporâneos passaram a incorporar os ideais piedade não tem lugar no mercado. O mercado é
da igualdade, valor que, para clássicos como aberto a todos os consumidores, ao passo que a
Locke ou Hobbes, está na raiz dos conflitos.6 Igreja não. Existem padrões de distribuição para
Mesmo a teoria política liberal contem- cada bem social.
porânea não é uníssona. O debate introduzido Analisemos, então, três princípios distribu-
após a publicação de A Theory of Justice, em 1971, tivos largamente abordados, quando se discute
por Rawls, gerou discussões não só pelos conser- justiça distributiva (livre troca, merecimento e
vadores, mas entre os próprios liberais. Entre os necessidade), a fim de entender como funciona
movimentos gerados a partir de então, um deles uma teoria plural da distribuição.
foi a corrente comunitária (a qual será recorrida A livre troca, como descreve Walzer, é um
aqui). Essa linha do liberalismo político rejeita a princípio aberto. Não garante nenhum resultado
noção de uma teoria da justiça fundada em sujei- distributivo. Assim, não se pode prever que resul-
tado final a troca livre de bens sociais originará. A
4 WALZER, 1983. O autor é um dos mais respeitados filósofos estadu-
livre troca cria um mercado em que todos os bens
nidenses. Nova-iorquino, é filho de pais judeus do Leste europeu. É
professor da Universidade de Princeton (Nova Jersey), pesquisador convertem-se em um meio neutro: o dinheiro.
do Instituto de Estudos Avançados, autor de mais de 20 livros e co- Não existindo bens dominantes ou monopólios,
editor da revista de esquerda Dissent.
5 SANDEL, 1996.
6 MIGUEL, 2000. 7 SANDEL, 1982, p. 166.

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a sucessiva divisão refletirá os significados sociais Daí surge um problema: freqüentemente,


dos bens que são divididos. O poder político, en- um bem ou conjunto de bens é dominante em
tretanto, não pode ser trocado como uma mer- todos os planos de distribuição. Os indivíduos
cadoria. Se uma pessoa “A” não valoriza tanto o que o têm podem comandar vários outros bens.
seu voto, ela não pode vendê-lo para uma pessoa Dessa forma, se exerce domínio, quando se utili-
“B” que o julgue mais importante. A troca parti- zam bens sociais fora de suas esferas particulares.
cular de poder político é proibida pelo significado Em uma sociedade capitalista, por exemplo, o ca-
da política democrática. É uma esfera diferente pital é dominante e convertido em prestígio e po-
que compreende outro tipo de critério. der. Essa seria a essência da tirania: “Converter
O merecimento, assim como a livre troca, é um bem em outro, quando não existe nenhuma
um princípio aberto que não garante um resulta- ligação intrínseca entre os dois”.9
do específico. Notas escolares, por exemplo, são Walzer advoga um sistema que chama de
conferidas segundo esse critério. Acredita-se que igualdade complexa. Um indivíduo pode ser pre-
determinado aluno merece a nota que recebeu. terido em um cargo político, por exemplo, em re-
Mas, certamente, não podemos atribuir a esse lação a outro. Eles não serão desiguais, entretan-
princípio um caráter universal. A distribuição de to, desde que o cargo político do segundo não o
amor, por exemplo, não o segue. Uma pessoa favoreça, no que diz respeito ao primeiro, em
charmosa e simpática talvez merecesse ser amada, qualquer outro âmbito (melhor tratamento mé-
mas não se pode afirmar que ela é digna de ser dico, melhor escola para seus filhos etc.). Isso di-
amada por essa ou aquela pessoa em particular. O fere do sistema de igualdade simples, que teria
amor só pode ser distribuído pelas próprias pes- como distribuição justa apenas aquela igual entre
soas, sem seguir critérios de merecimento. as próprias esferas.
A necessidade também é um critério que Para o autor, conseqüentemente, o igualita-
gera sua própria esfera. Em qualquer sociedade, rismo é originariamente uma política abolicionis-
existem sempre bens que se acredita serem fun- ta. Não se pretende eliminar todo o tipo de dife-
damentais às pessoas, como a saúde, por exem- renças, e sim um tipo específico delas em diver-
plo. Nesse meio, uma distribuição justa seria ape- sos contextos culturais: “Os seus alvos são sem-
nas aquela que desse a cada um o tratamento ne- pre específicos: privilégio aristocrático, riqueza
cessário, e não aquele capaz de ser pago ou me- capitalista, poder burocrático, supremacia racial
recido. Porém, assim como os outros dois ou de gênero. O que está em jogo é a capacidade
critérios apresentados, a necessidade não é uni- de um grupo de pessoas dominar seus semelhan-
versal. Distribuir poder político, livros raros ou tes”.10 Não é a diferença entre ricos e pobres, en-
objetos de decoração sob esse princípio, ainda tre aristocratas e plebeus ou entre políticos e ci-
que possível, não faz nenhum sentido. dadãos comuns que gera políticas igualitárias. A
A idéia de Walzer, portanto, é uma teoria da defesa da igualdade advém do que aqueles com
justiça plural, com cada esfera independente gera- poder fazem àqueles desprovidos dele.
da pelos próprios critérios distributivos. A saúde, Lutar por uma sociedade igualitária, por-
a educação, o poder político devem ser todos con- tanto, é lutar por uma sociedade livre da domina-
feridos segundo seus próprios princípios. Desco- ção. Essa diferença entre a igualdade “complexa”
brir quais deles devem funcionar em cada âmbito e a igualdade simples é imprescindível para a filo-
é o principal desafio da Justiça. Mas essa é a teoria. sofia liberal. Sem ela, fica difícil defender a igual-
A realidade é que muitas vezes os critérios são dade como valor a ser garantido. John Kekes, por
“violados, os bens usurpados e as esferas invadidas exemplo, com sua crítica conservadora aos valo-
por homens e mulheres poderosos”.8
9 Ibid., p. 19.
8 WALZER, 1983, p. 10. 10 Ibid., p. XII.

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res liberais, afirma que a desigualdade em si não é Para tanto, eles precisam freqüentar a escola. Ten-
condenável (referindo-se, especificamente, à de- do isso em vista, o autor defende que o que vale
sigualdade econômica).11 O exemplo utilizado na educação (aqui, especificamente, a distribuição
por ele é que ninguém acha condenável a diferen- de vagas para alunos) é o princípio da igualdade
ça entre milionários e bilionários. O que se po- simples, assim como na cidadania: “uma pessoa /
deria reprovar é o fato de algumas pessoas não um voto, uma criança / um lugar no sistema edu-
possuírem o suficiente para sobreviver, e não o de cacional”.12 Todas as crianças têm a mesma neces-
terem menos do que outras. Ninguém defenderia sidade de conhecer. A educação não pode depen-
um Estado em que nenhuma pessoa tivesse o su- der da capacidade econômica de seus pais.
ficiente para sobreviver, mesmo sendo todos Existe uma diferença, entretanto, entre a
iguais em sua miséria. distribuição de vagas no sistema educacional e a
Para Walzer, a busca da igualdade não é a distribuição de conhecimento. A primeira liga-se
procura da eliminação das diferenças. Mesmo ao plano da necessidade (entendida como a igual-
com nossas diversidades e posses distintas, sere- dade simples). A segunda é vista a partir da esco-
mos iguais quando ninguém possuir ou controlar la, levando em conta aspectos como interesse e
os meios de dominação. Estes sempre variaram capacidade. Nem todas as crianças se interessam
de acordo com a sociedade. O nascimento e o da mesma maneira ou possuem a mesma capaci-
sangue, o capital, a educação, a vontade divina e o dade. Começarão, então, a se diferenciar, tão logo
poder do Estado serviram, em um momento ou entrem para o sistema educacional.
outro, como forma de dominação de certas pes- Em um primeiro momento, a escola deve
soas sobre outras. tentar ensinar um mesmo corpo de conhecimen-
Um conjunto de bens sociais sempre apa- to a todos os alunos. Antes de mais nada, eles se
rece para mediar a dominação. Uma sociedade tornam cidadãos, depois é que aprenderão a ser
justa, na perspectiva desse autor, seria aquela em profissionais. Essa é a educação básica: não se
que nenhum bem social serviria como forma de tenta criar igualdade de oportunidades, mas atin-
dominação. gir resultados iguais. A escola não quer dar a
EDUCAÇÃO: UMA SOCIEDADE JUSTA chance para que as crianças aprendam a ler. Ela
Vimos, então, como Walzer conceitua a jus- quer, de fato, ensinar todos a ler e escrever.
tiça: uma pluralidade de esferas distributivas, com Esse princípio, no entanto, não se estende
critérios de distribuição intrínsecos ao significado para todo o restante da vida estudantil. Deve-se
social que possuem. Mas discutindo-se, aqui, a ensinar igualmente a todas as crianças os co-
questão das cotas raciais em universidades, que nhecimentos tidos como necessários para que
envolve a distribuição de vagas a indivíduos, qual elas possam, futuramente, tornar-se membros
seria o critério apropriado, nesse caso? A neces- ativos da sociedade democrática. Por isso, a alfa-
sidade? O merecimento? É claro que a esfera da betização pertence à esfera da igualdade simples.
educação tem a sua especificidade. Os bens sociais Mas ensinar crítica literária, por exemplo, não.
nela envolvidos (vagas de professores, vagas para Talvez elas devam ter oportunidades iguais de se
alunos, notas, diferentes níveis de conhecimento) tornar críticos literários, mas todos devem ler e
requerem tratamento distinto e não podem se- escrever.
guir os padrões distributivos da economia e da O princípio da igualdade simples deixa, en-
ordem política. tão, de valer, assim que os alunos aprendem o es-
Em uma sociedade democrática, existe um sencial para se tornar cidadãos. No caso brasilei-
corpo de conhecimento que se acredita que os ci- ro, podemos antecipar, a igualdade simples, ou
dadãos devam dominar para funcionar como tais. princípio da necessidade, valeria nos ensinos fun-

11 KEKES, 1997. 12 WALZER, 1983, p. 202-203.

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damental e médio. É nesses casos em que o cur- população não recebe tratamento igualitário no
rículo é comum. Já no ensino superior, deve-se ensino fundamental e médio, como a teoria pres-
encontrar outra esfera distributiva. A educação supõe, algo precisa ser feito para reparar o dano
especializada é concebida por Walzer como um causado a esses alunos, tratando-os de maneira
tipo de emprego. Os alunos devem ser qualifica- desigual.
dos para tal, considerando-se aspectos como ca- Os negros no Brasil, em sua maioria po-
pacidade e interesse. Os direitos, portanto, asse- bres, são alvo de preconceitos, discriminações e
melham-se àqueles envolvidos na distribuição de têm acesso a uma educação de segunda classe, na
empregos: todos devem ser igualmente prepara- qual a maioria das escolas públicas falha em dar
dos e considerados na atribuição de vagas. uma formação cidadã (no sentido de Walzer). Na
O Estado democrático requer que o ensino hora do ingresso à universidade, não possuem as
básico dê a todos aquele conhecimento que torne mesmas condições que jovens de classe média,
a pessoa um cidadão, um eleitor. Mas não existe por exemplo, de competir por uma vaga. Não
a obrigação de ensinar a todos a receitar medica- porque sejam naturalmente menos habilitados do
mentos, projetar edifícios, ensinar futuras gera- que outros, mas por terem sido menos capacita-
ções e assim por diante. Como esses lugares são dos (talvez, mesmo, até por terem sido “incapa-
limitados, sempre haverá frustração por parte dos citados”) pelo contexto social e pelo próprio Es-
preteridos. Ela é incontornável, mas será moral- tado, que falhou em dar-lhes a educação necessá-
mente desastrosa, apenas se a competição não for ria. As cotas seriam uma forma de reparar essa in-
por oportunidades educacionais, e sim pelo sta- justiça anterior.
tus, poder e riqueza ligados ao ensino superior. Percebemos no Brasil um sistema dupla-
Contudo, isso não diz respeito à escola. Não exis- mente injusto. A primeira injustiça é quando, na
te uma ligação intrínseca entre o ensino superior e esfera do ensino fundamental e médio, não vale
uma divisão hierárquica. Se ela ocorre, é uma o critério da necessidade. As crianças não rece-
extrapolação de sua esfera e, portanto, injusta. bem (em um sistema de igualdade simples) a
Alguns alunos serão melhores engenheiros, mesma educação. Aqueles com mais dinheiro
físicos nucleares ou médicos. A tarefa das escolas conseguem pagar uma educação particular, de
é encontrar esses alunos e ensiná-los. “As escolas melhor qualidade, que ensina o essencial para a
não podem evitar diferenciar seus alunos, promo- vida democrática. Aos mais pobres (que no Bra-
vendo alguns e rejeitando outros; mas as diferen- sil se identificam largamente, mas não exclusiva-
ças que elas descobrem e reforçam devem ser in- mente, com os negros) é negada aquela educação
trínsecas ao trabalho, e não ao status do traba- cidadã de que fala Walzer. A injustiça é a inter-
lho.”13 ferência de uma esfera em outra. O dinheiro, ou
EDUCAÇÃO: A SOCIEDADE QUE TEMOS livre troca, que não deveria valer como critério
A esfera da educação descrita anteriormen- de distribuição de educação, é o que acaba pre-
te é clara. No ensino superior, critérios que não valecendo.
dizem respeito ao mérito são injustos. Qualquer A outra injustiça, nos termos defendidos
sistema que privilegie uns em detrimento de ou- por Walzer, também é a intromissão de uma es-
tros, levando em conta critérios como raça, cor fera em outra: a educação superior no Brasil tor-
ou até necessidade, é inadequado nessa esfera. É nou-se uma necessidade, algo sem a qual uma
claro, argumentam os defensores do sistema de pessoa não pode aspirar a um emprego digno.
cotas, a sociedade não funciona como descrito Isso advém, em parte, da piora do ensino público
anteriormente. A teoria é bonita e talvez muitos fundamental. Outra razão é a falta de opções de
não discordem dela. Mas, uma vez que parte da qualificação de mão-de-obra, como bons cursos
profissionalizantes. A universidade apresenta-se
13 Ibid., p. 211. como o único caminho vislumbrado para a vida

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profissional. A injustiça daí advinda é que um di- esse tipo de política e, nos anos seguintes, as uni-
ploma universitário passa a valer mais do que de- versidades passaram a adotar as diretrizes propos-
veria, significando também prestígio e status, in- tas pelo governo. Analisando o caso estaduniden-
vadindo esferas que não lhe dizem respeito. se, o autor acredita que não se tentaram medidas
COTAS E JUSTIÇA alternativas. Em vez de ser uma última providên-
O problema das ações afirmativas, defende cia, a reserva de vagas tornou-se a primeira. A ra-
Walzer, é que essa política consideraria de forma zão para isso é que, apesar de violar direitos, não
desigual candidatos brancos, que não são nem ameaça hierarquias estabelecidas. Walzer argu-
participantes nem beneficiários diretos de práti- menta que a reserva de vagas reitera, e não trans-
cas discriminatórias. O objetivo social moral- forma ou desafia, as hierarquias.
mente legítimo (o de inclusão dos subjugados na Esse talvez seja o grande problema que o
sociedade, por meio do ensino superior) é alcan- movimento negro não tenha percebido. Pensar
çado apenas com a violação dos direitos de candi- em medidas alternativas, apesar de não violar di-
datura dos indivíduos. Seria lícito, em nome de reitos individuais, teria de levar em conta a redis-
certos objetivos, passar por cima de alguns direi- tribuição de riquezas e recursos. Seria essa redis-
tos? A tradição liberal, à qual pertence Walzer, não tribuição, e não a reserva de vagas, que garantiria
é favorável à compensação de pessoas que sofrem resultados duradouros. Mas atacar causas é sem-
de desvantagens em razão do ambiente social? pre mais difícil do que amenizar os sintomas. Por
Os liberais contemporâneos são, certamen- isso, governos insistem em posturas desse tipo.
te, a favor desse tipo de compensação. Como de- Existe ainda outra razão levantada por
fende Rawls, as diferenças oriundas das circuns- Walzer para a tendência à reserva de vagas: aque-
tâncias distintas das pessoas são arbitrárias do les que mais perdem nesse sistema de reserva (os
ponto de vista moral. Ninguém escolhe nascer preteridos nas universidades em relação aos ne-
em um grupo social em desvantagem, portanto, gros) são os grupos (nesse caso, brancos) mais
não deveria ter de bancar os custos impostos por marginalizados. Esse sistema não é ameaçador às
essas circunstâncias: “Teorias contemporâneas de famílias e aos grupos mais poderosos. Ele preju-
dica, sobretudo, o grupo mais desfavorecido se-
igualdade liberal procuram (...) assegurar que nin-
guinte, na escala social de necessidades, aqueles
guém seja penalizado ou posto em desvantagem
cujas circunstâncias não diferem muito da dos
pelos seus atributos naturais ou sociais, mas per-
negros: “As vítimas da consideração desigual vi-
mite que os destinos das pessoas variem com suas
rão do grupo mais fraco ou do próximo grupo
escolhas sobre como levar suas vidas”.14
mais fraco”.16
Os direitos, segundo Walzer, podem, por
No caso brasileiro, não existe uma correla-
conseguinte, ser ultrapassados em tempos de cri-
ção clara entre negros e um ensino de menor qua-
se, de perigo, ou quando se acredita não haver al- lidade. A maioria deles deixa de ter acesso a uma
ternativa. Mas, sendo casos excepcionais, “qual- educação melhor não porque sejam negros, e sim
quer argumento a favor da reserva de vagas deve por serem pobres. O contexto histórico brasilei-
incluir uma descrição da atual crise e um trata- ro, por causa da escravidão, relegou a maioria dos
mento detalhado da inadequação de medidas al- negros a condições econômicas inferiores. Essa
ternativas”.15 As ações afirmativas nos Estados relação, entretanto, não é absoluta, e existem
Unidos foram implementadas a partir da década igualmente brancos pobres.17 A ação afirmativa
de 1960, no contexto da declaração dos Direitos
Civis, em 1964. Um ano depois, o presidente 16 Ibid., p. 154.

Lyndon Johnson fez um discurso defendendo 17 A própria questão da raça no Brasil é muito mais complexa do que
sugere o caso estadunidense. Existe um reconhecimento da miscigena-
ção e (ou talvez até por isso) não há a mesma tensão racial como nos
14 KYMLICKA, 1989, p. 190. Estados Unidos. Quem exatamente pode ser considerado negro no
15 WALZER, 1983, p. 153. Brasil?

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tratará, portanto, pessoas igualmente desfavore- Além de combater o preconceito, há quem


cidas de maneira desigual. advogue as cotas para a valorização da identidade
O argumento, então, talvez seja outro. negra: “as ações afirmativas apresentam-se como
Uma política de cotas não visa apenas a reparar a capazes de converter a conotação negativa da cor
injustiça de uma má educação. Isso demandaria preta e parda em algo positivo, simplesmente
cotas para brancos pobres também.18 Ela procura pelo fato delas poderem associar vantagens clara-
atacar outro problema: o preconceito. A questão mente perceptíveis à identificação racial”.20 Seria
do preconceito, muitas vezes, está intimamente uma maneira de contestar o mito da democracia
ligada à economia. Como os negros em sua maio- racial no Brasil, ou seja, de que não existem con-
ria são pobres, sua pobreza reforça os precon- flitos raciais abertos e de que a miscigenação (ou o
ceitos. Dar oportunidades para que negros en- reconhecimento dela) suaviza as relações sociais.
trem no ensino superior é tentar mudar a cor da Esse mito seria responsável pela dificuldade de
elite brasileira: mais médicos, engenheiros, pro- uma autoclassificação positiva e responsável por
fessores e físicos nucleares negros certamente uma alterclassificação negativa de quem é negro
funcionariam para quebrar o elo entre grupo e no País.21 Se a sociedade sabe quem é negro na
classe. hora da identificação negativa (o preconceito pra-
A ação afirmativa não é, então, uma política ticado por autoridades policiais em relação a ne-
igualitária em relação ao indivíduo, e sim ao gru- gros, por exemplo), por que a dificuldade de re-
po. As hierarquias continuarão existindo, mas, ao conhecê-los no momento da identificação positi-
mesmo tempo, se oferecem ao grupo mais desfa- va (atribuição de benefícios sociais)?
vorecido posições mais altas. Teremos tantos ne- Argumenta-se, nesse sentido, a favor da
gros da classe média e alta quanto temos brancos. racialização22 das relações sociais no Brasil. Mas
Sobram sérias dúvidas de que as cotas realmente “para além da dimensão repressiva da polícia,
produziriam esse resultado.19 Mas, mesmo se existe uma dimensão de convivência humana
produzissem, seria justo? Na verdade, a ação afir- profundamente enraizada no cotidiano cultural
mativa, se conseguisse realmente “lançar” os ne- brasileiro e que não pode ser simplesmente des-
gros mais pobres para o topo da hierarquia, o fa- cartada pela chamada ‘engenharia social’ de um
ria “jogando” para baixo outro grupo desfavore- Estado que se pretende democrático”.23 Além
cido, o de brancos pobres. Nossa sociedade não disso, não é claro que políticas que tratam indiví-
transformaria de fato a estrutura da hierarquia, duos de maneira desigual, por considerá-los em
apenas a sua composição. O objetivo da diminui- desvantagem, ofereçam um aumento de auto-es-
ção do preconceito, contudo, talvez fosse atingi- tima para a população alvo. Pelo contrário, pode-
do. Se o perfil social dos grupos (brancos e ne- riam ter resultado inverso, de pessoas se sentindo
gros) fosse mais ou menos o mesmo, o precon- inferiorizadas em relação a quem entrou na uni-
ceito diminuiria. versidade sem nenhum auxílio.

18 É isso o que está na essência de outra proposta: a política de cotas 20 BERNARDINO, 2002, p. 11.
para egressos do ensino público. Não se pretende aqui abordar esse 21 Ibid.
assunto, mas parece não diferir muito das ações afirmativas para gru- 22 Esse debate racial acerca das cotas possui interpretações diversas. Há
pos minoritários. também quem defenda que a “racialização” das relações sociais no Bra-
19 Uma das grandes críticas feitas quanto a esse aspecto é que os alunos sil, introduzindo a classificação bipolar estadunidense, em que uma
são negligenciados durante toda a vida estudantil no sistema público. gota de sangue africano é suficiente para a pessoa ser reconhecida
Ao terminar o ensino médio, são “empurrados” para as universidades como negra, é negativa: “Seria legítimo forçar a classificação racial da
pelo sistema de cotas. Fica difícil aceitar que eles conseguirão, no população, impondo sobre o seu dia-a-dia o modo bipolar negro/
ensino superior, recuperar toda a educação que perderam anterior- branco, mesmo que o legislador se pautasse pelas melhores intenções
mente. Também não parece tarefa da universidade ensinar o que eles anti-racistas?” (AZEVEDO, 2004, p. 9). A autora aponta ainda para o
deveriam ter aprendido no ensino fundamental e médio. Nesse caso, perigo da criação de “comitês de julgamento” dentro das instituições
mesmo com acesso ao ensino superior, teriam dificuldades em seguir para impedir a “fraude” de identidade.
em pé de igualdade com aqueles oriundos das escolas particulares. 23 Ibid, p. 8.

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Mesmo que as cotas atacassem o problema CONCLUSÃO


do preconceito ou colaborassem na afirmação da Diz-se que o principal objetivo do sistema
identidade negra, isso não aconteceria imedia- de cotas é promover a igualdade social. Na ver-
tamente e poderia gerar outros tipos de proble- dade, a igualdade como a descrevemos não pode-
ma. Analisando o caso estadunidense, comenta ria ser alcançada por esse tipo de medida. Ela é,
Walzer: como apresentada por Walzer, a autonomia das
esferas, a impossibilidade de um bem social de-
a experiência dos Estados Unidos sugere que o ato terminar todos os outros. Isso só pode ser alcan-
de privilegiar os membros de grupos subordinados, çado com a promoção da justiça na educação
sejam quais forem as conseqüências úteis a longo
básica. Significa dizer: lutar pela distribuição de
prazo, a curto prazo reforça a intolerância. Causa
uma verdadeira injustiça contra determinados
educação pelo critério da necessidade.
indivíduos (em geral membros dos grupos imedia- O sistema de cotas, mesmo capaz de pro-
tamente acima dos mais subordinados) e gera peri- mover uma sociedade igualitária em relação ao
gosos ressentimentos políticos.24 grupo, continuaria sendo extremamente desigual
no concernente aos indivíduos. Como já expos-
O sistema de cotas, na condição de política to, só se pode acabar com direitos individuais
igualitária em relação ao grupo, e não ao indiví- com uma justificativa muito grande, além da total
duo, trata os próprios negros de maneira desi- falta de alternativas para resolver um determina-
gual. Só são beneficiários dessa política aqueles do problema grave. Transformar a desigualdade,
que, de alguma forma, conseguiram sobreviver à em que grupo e classe coincidem, em outra, na
vida escolar até o final. Os outros que permane- qual os injustiçados não pertencem a um grupo
cem analfabetos ou são obrigados a abandonar a definido, não se apresenta como razão suficiente,
escola cedo por circunstâncias sociais adversas embora pudesse, futuramente, atacar a questão
não se beneficiam dessa política. Pelo contrário, do preconceito.
ao desviar a atenção para esse tipo de discussão, A única maneira de brigar por um sistema
adiam-se cada vez mais as soluções que atingi- educacional – e, por conseqüência, social – justo
riam o problema como um todo. Manteríamos a é lutar e continuamente reafirmar a distribuição
base e o topo da hierarquia estabelecida atual- da educação básica sob o critério da igualdade
mente, invertendo apenas as posições interme- simples. É claro que esse tipo de resposta, ainda
diárias, às custas de graves violações aos direitos que colocada em prática, demoraria a surtir efei-
de indivíduos igualmente desfavorecidos na socie- to. Métodos paliativos certamente podem ser
dade. tentados, mas não existem motivos para que es-
Isso fica claro no exemplo dos Estados ses também não sigam os princípios da justa
Unidos. As ações afirmativas beneficiaram espe- distribuição. Cursos pré-universitários gratuitos
cialmente os indivíduos oriundos da classe média, para os grupos mais desfavorecidos são um bom
e não chegaram a atacar o problema da população exemplo.
negra pobre. Enquanto a classe média negra cres- Uma sociedade democrática precisa conti-
ceu, a porcentagem das famílias negras pobres au- nuamente reavaliar seus sistemas distributivos.
mentou, entre 1970 e 1990.25 Esse aumento foi Os critérios aqui discutidos são uma visão possí-
percebido por militantes do movimento negro vel, e certamente existem outras. O ambiente
nos Estados Unidos, como Martin Luther King melhor, mas certamente não único, em que eles
Jr., ainda na década de 1960, quando propunham podem ser debatidos é o acadêmico, sobretudo
reformas radicais econômicas e a execução rigo- quando está em causa, nesse caso específico, a
rosa de leis antidiscriminação. própria universidade.
24 WALZER, 1999, p. 78.
25 AZEVEDO, 2004, p. 10.

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______. Spheres of Justice: a defense of pluralism and equality. Princeton: Basic Books, 1983.

Dados do autor
Bacharel em ciência política pela UnB,
mestre em ciência política e relações
internacionais pela Universidade
Católica Portuguesa e doutorando em ciência
política pela Universidade de São Paulo (USP).

Recebimento: 19/ago./04
Aprovado: 1.º/abr./05

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A Questão Universitária e o
Movimento Estudantil no
Brasil nos Anos 1960
THE UNIVERSITY CASE AND BRAZILIAN
STUDENT MOVEMENT IN THE 1960’s
Resumo Pela análise histórica de documentos criados pela imprensa estudantil,
bem como de obras sobre os movimentos estudantis – com o objetivo de
caracterizar e interpretar as concepções do movimento estudantil brasileiro, em
relação ao ensino superior, ao longo dos anos 1960 –, nota-se que dois momentos
se destacam: o “populista”, no início dos anos 1960, e o movimento de 1968. No
começo da década de 1960, o “populismo estudantil” expressava-se na demanda
pela reforma universitária, em que se combinavam desejos de democratização,
desenvolvimento e atuação social da universidade, constituindo a principal
bandeira e preocupação das entidades estudantis de então. O golpe militar de
1964 representou a derrota desse populismo e dessa demanda. Já em 1968, a
questão universitária secundou o tema da revolução. Disputas políticas e
diferenças ideológicas geraram duas noções diversas sobre o sentido dessa
revolta: a luta de massa e a luta específica. De todo modo, porém, as duas linhas
não destoaram muito em seus diagnósticos sobre a condição do ensino superior,
rejeitando as reformas de caráter tecnocrático, autoritário e mercantilizador
LUÍS ANTONIO
propaladas pelo regime militar.
GROPPO
Centro Universitário Salesiano
Palavras-chave MOVIMENTO ESTUDANTIL – QUESTÃO UNIVERSITÁRIA – ANOS de São Paulo (Unisal)
1960 – UNIVERSIDADE. luis.groppo@am.unisal.br

Abstract By a historical analysis of documents made by student press, as well as


works about student movements – with the goal to characterize and interpret the
conceptions of the Brazilian student movement in relation to higher education
teaching during the 1960’s –, two moments stand out: the “populist” period, in
the beginning of 1960’s, and the 1968 movement. In the beginning of the 1960’s,
“student populism” expressed itself in the demand for university reform, which
combined desires of democratization, development and university social activity,
constituting the principal flag and concern of the student institutions. The 1964
military coup represented the defeat of this populism and demand. In 1968, the
university matter was secondary in relation to the theme of “revolution”. Political
disputes and ideological differences generated two different conceptions: the
mass struggle and the specific struggle. Anyhow, though, these two lines didn’t
have many differences in their diagnosis about higher education teaching
conditions, rejecting the reforms of technocratic, authoritarian and mercantile
character divulged by the military regime.

Keywords STUDENT MOVEMENT – UNIVERSITY CASE – 1960’s – UNIVERSITY.

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INTRODUÇÃO

O
ensino superior brasileiro, pelo menos desde a se-
gunda metade dos anos 1990, vem passando por di-
versas transformações: expansão do número de va-
gas, crescimento das instituições de caráter privado,
crise das instituições públicas etc. Não pretendo
aqui arrolar todas elas, dados os objetivos deste ar-
tigo, mas vale lembrar que se viram enredadas a di-
versas polêmicas nos meios políticos e midiáticos,
por conta dos projetos de reforma – em geral de cunho neoliberal – cria-
dos pelo Estado ou inspirados por agências financeiras supranacionais.
Este texto discute justamente um outro momento crucial de transforma-
ções, discussões e elaboração de propostas sobre o ensino superior: os
anos 1960, em destaque 1968. Mas, diferentemente do debate atual, na-
quela década revelou-se fundamental a participação dos movimentos es-
tudantis, especialmente da União Nacional dos Estudantes (UNE). O
texto justifica-se, assim, ao menos como recurso de comparação históri-
ca, a fim de compreender melhor os desafios e dilemas atuais no tocante
às metamorfoses do ensino superior, bem como as reais ou possíveis for-
mas de participação nelas, por parte do Estado, da sociedade e de diversos
movimentos sociais.
Em relação a 1968, este estudo se apóia na análise histórica de do-
cumentos estudantis então produzidos: basicamente jornais e panfletos
criados pela imprensa estudantil, por entidades como a UNE e Uniões Es-
taduais dos Estudantes (UEES). Quanto aos anos anteriores, toma por
base apenas fontes secundárias – em geral, obras sobre os movimentos
estudantis na década de 1960. A análise buscou caracterizar e interpretar
as concepções do movimento estudantil brasileiro da época relativas às
universidades e ao ensino superior, destacando-se dois momentos: o pe-
ríodo “populista”, no início da década, antes do golpe de 1964, e a mo-
bilização de 1968, geradora de uma intensa discussão sociopolítica, em
que a questão universitária nem sempre foi o principal tema, diferente-
mente do movimento estudantil no período “populista”.
Em 1968, disputas políticas internas à UNE e diferenças ideológicas
produziram dois diferentes entendimentos sobre o papel do movimento
estudantil na “revolução” popular defendida pelas esquerdas estudantis: a
luta de massa e a luta específica. De todo modo, porém, as duas linhas
não destoaram muito em seus diagnósticos sobre a condição do ensino
superior. Pode-se destacar a rejeição aos acordos do Ministério da Edu-
cação com a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Inter-
nacional (USAID), que repetem algumas das características dos projetos e
práticas de “reforma” do ensino superior lançados recentemente: nego-
ciações fechadas, cláusulas secretas ou nebulosas, eficácia pedagógica du-
vidosa das medidas adotadas, subsunção do ensino aos interesses do
grande capital privado etc. Desde então, começava a se delinear a pers-

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pectiva neoliberal sobre a educação: ela seria um década de 1950 vivia-se um processo de “abertu-
serviço, ou produto, devendo submeter-se aos ra” da universidade, com destaque aos setores so-
mecanismos do “mercado” e a sua condução de- ciais médios. As matrículas cresceram à taxa mé-
veria se dar como “administração empresarial”.1 dia de 12,5% ao ano: de 27.253 alunos, em 1945,
Mesmo assim, evitando ou não a imposição para 107.299, em 1962. Seriam 180 mil universi-
das propaladas reformas educacionais, o movi- tários, em 1966, e 278 mil, em 1968. Dois anos
mento estudantil em 1968 conseguiu, ao menos, depois, esse número saltaria para 425 mil.2
tornar público e crítico o debate sobre o caráter A participação do Estado no ensino supe-
delas. Caráter que combinava autoritarismo, tec- rior estava, já nos anos 1960, longe de ser exclu-
nocracia e medidas em prol da mercantilização do siva e caminhava para deixar de ser predominante.
ensino superior. Tal exemplo pode servir para de- Em 1965, o Estado era responsável por 57% das
monstrar a importância da participação crítica da- vagas no ensino superior – porcentagem, na ver-
queles que são sempre as maiores vítimas dessas dade, em queda (era de 61%, em 1963), demons-
reformas: os estudantes. trando a tendência das décadas seguintes.3 Diante
O ENSINO UNIVERSITÁRIO NO BRASIL NOS do significado desses dados, pode-se afirmar que
ANOS 1960 um dos limites da atuação dos militantes dos
Os dados gerais sobre os cursos superiores “partidos” estudantis foi a referência quase exclu-
nos anos 1960 informam, ao mesmo tempo, a pe- siva às universidades públicas, seguida da defesa
quenez relativa da categoria universitária e seu estrita do ensino público e gratuito, pouco con-
crescimento acelerado na época. Tal crescimento
templando os interesses e as necessidades dos
atingiria o auge nas décadas seguintes, demons-
alunos de instituições privadas.
trando que a “democratização” da universidade
era apenas o início de um processo de multiplica- A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA ANTES DE 1968
ção das vagas e proliferação de cursos superiores. Nos dois referidos momentos do movi-
Nesse sentido, a questão universitária poderia ser mento estudantil, a questão universitária esteve
interpretada como um interstício entre a univer- fortemente presente, entrelaçando-se, para os
sidade elitista e os cursos superiores proliferados, militantes das esquerdas estudantis, com a reivin-
mas de caráter mais técnico, em que diversas pro- dicação pela transformação social ampla, a “revo-
postas se fizeram ouvir, sobretudo as dos estu- lução”. Porém, ambas adquiriram diferentes teo-
dantes, negando o elitismo e exigindo a moder- res, em cada uma dessas situações.
nização dos cursos, mas não aceitando neces- Se, em 1968, a questão universitária secun-
sariamente o tecnicismo estrito, nem a prolifera- dou o debate sobre a “revolução”, no início dos
ção dos cursos apenas pela ação de instituições anos 1960 foi a principal preocupação do movi-
particulares. mento estudantil e da UNE – por meio da luta
Em 1968, por sua vez, os universitários pela reforma universitária. Marialice Foracchi
eram cerca de 0,5% da população do País, ou seja, considera o ano de 1960 como uma espécie de
somente um em cada 500 brasileiros estava ma- ponto de partida para essa luta, mediante, justa-
triculado em curso superior. No que diz respeito mente, o contato da UNE com uma proposta já
à faixa etária de 20 a 24 anos, esse número repre- amplamente debatida no resto da América Lati-
sentava apenas 2% (30 anos depois, seriam 12%). na, durante o 1.o Seminário Latino-Americano de
Também os cursos secundários tinham penetra- Reforma e Democratização do Ensino Superior,
do relativamente pouco na população: dos 90 mi- realizado na Bahia.4
lhões de brasileiros, apenas 4,5 milhões termina-
ram o segundo grau. Ao mesmo tempo, desde a 2 REIS FILHO, 1999; ALMEIDA & WEIS, 1998; e MARTINS
FILHO, 1998, p. 14 e 17.
3 VIOTTI, 1968.
1 GENTILI, 2002. 4 FORACCHI, s/d.

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Uma série de novos encontros e seminá- privilégio. Dentro do processo discriminatório


rios, debatendo o tema, se daria nos anos seguin- do ensino brasileiro, a Universidade se situa em
tes, organizados pela UNE. Em maio de 1961, o I seu topo”.7
Seminário Nacional da Reforma Universitária, Mas a rejeição pela UNE não impediu que a
novamente na Bahia, resultou na Declaração da LDB fosse aprovada. A lei previa que, até 27 de ju-
Bahia, comentada adiante, uma das primeiras ver- nho de 1962, as faculdades enviassem seus esta-
sões do que poderia ser chamado de “populismo tutos reformulados ao Conselho Federal da Edu-
estudantil”. O II Seminário Nacional de Reforma cação. A UNE procurou ver contemplada, nesses
Universitária, realizou-se em Curitiba, no Paraná, estatutos, sua proposta de um terço de participa-
em 1962, e produziu novo documento, a Carta ção dos estudantes nos órgãos colegiados das
do Paraná, reivindicando representação dos estu- instituições superiores. Essa reivindicação gerou
dantes em um terço dos órgãos colegiados das
a grande ação (e frustração) da UNE no período:
universidades. Em 1963, um ano antes do golpe
a greve do um terço, em 1962, que paralisou 40
militar, o III Seminário Nacional referendou a
universidades no Brasil (23 federais, 14 particu-
Carta do Paraná.5
lares e três estaduais). Apesar do seu sucesso ini-
Enquanto a UNE e as entidades estudantis cial, acabou fracassando e desgastando a entidade
ingressavam na Campanha da Reforma Universi- dos estudantes.
tária, o Congresso Nacional discutia e aprovava,
Derrota ainda maior – e não apenas para o
em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
movimento estudantil, mas para todas as forças
(LDB). A LDB foi integralmente condenada pela
UNE, na Declaração da Bahia. Para fundamentar
progressistas – foi o golpe militar de 1964. Entre
tal condenação, essa carta tocava em pontos bási- as ações violentas do novo regime, destaca-se o
cos, repetidos pelo movimento estudantil nos incêndio do Clube Germânia, sede da UNE, por
anos seguintes, misturando populismo, naciona- grupos paramilitares. Logo a entidade seria decla-
lismo e a retórica da alienação com uma certa de- rada ilegal pelo regime militar, mas continuaria
fesa do tecnicismo (dada a influência de ideais de- funcionando clandestinamente por muitos anos.
senvolvimentistas). Dizia que a universidade bra- Entre os dilemas enfrentados pelo movi-
sileira era privilégio de poucos e falhava: em sua mento estudantil nas discussões sobre a universi-
missão cultural, ao ser mera importadora de mo- dade, um deles coloca, frente a frente, ensino
delos inadequados à nossa realidade, em seu ob- “modernizado” (voltado às novas tecnologias e
jetivo profissional, não formando profissionais especializações) e ensino “politizado” (que con-
competentes, e também em sua missão social, “ao templasse as necessidades sociais). Desde os de-
formar profissionais individualistas, mantenedo- bates sobre a reforma universitária, no início dos
res da ideologia do status quo”. Afirmava a neces- anos 1960, seus defensores tentaram, nem sem-
sidade de transformar a universidade, juntamente pre com sucesso, conciliar as duas concepções.
com a reforma da sociedade: “Uma universidade No movimento estudantil que se reorganizava
ótima só será possível numa sociedade ótima”.6 A em 1965, essa tentativa de conciliar tecnicismo e
universidade era caracterizada como “uma supe- missão social da universidade fica clara nas pala-
restrutura de uma sociedade alienada, isto é, de- vras do diretor do DCE da USP, Jorge Fagali Neto:
formada em sua base econômica, porquanto sub- “Nossa preocupação não é somente formar téc-
desenvolvida, estratificada quanto à distribuição nicos, cientistas ou artistas, mas que eles tenham
dos benefícios econômicos e sociais, democrática uma formação integral, com uma função engaja-
apenas formalmente (...). A Universidade é um da, uma dimensão social, voltada para o progres-
5 Ambos
so de sua pátria, de liberdade para os homens, de
os documentos citados encontram-se anexos em FÁVERO,
1994.
6 Apud SILVA, 1989, p. 146-147. 7 Apud POERNER, 1979, p. 191.

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humanização para este mundo de todos os ho- cional). Embora elaborados em junho de 1965,
mens”.8 apenas um ano e meio depois maiores informa-
No entanto, as políticas universitárias de- ções sobre seu conteúdo foram obtidas pela Câ-
senvolvidas pelos governos militares pareciam ca- mara dos Deputados. Ainda em 1965, Ana Diniz,
minhar em sentido inverso ao desejado pelos de- secretária geral da UNE, dizia que o acordo signi-
fensores da reforma universitária. O regime logo ficaria o “impedimento total de a universidade
começou a esboçar a sua própria reforma, refle- brasileira se voltar para a realidade de problemas
tindo filosofias, valores e interesses, de cunho mi- específicos nacionais”, a fim de fazer dela mera
litar e tecnocrático, da cúpula empresarial-militar formadora de técnicos da perspectiva de um País
dirigente do Estado criado em 1964. Além da ma- desenvolvido, com a criação de uma elite dirigente
nutenção ou do extravio do controle para as “comprometida com interesses e cultura norte-
mãos de dirigentes universitários ligados ao regi- americanos”.13 Afirmava ainda que o acordo traria
me, expressavam-se, pela primeira vez, os interes- “um impedimento cada vez maior para a formação
ses empresariais no campo educacional, com um de uma autêntica cultura brasileira”.14 Diante de
conceito pragmático de educação, tida como ins- um novo convênio assinado entre o MEC e a USAID,
trumento de “desenvolvimento” e avaliada por de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior,
critérios como rendimento e eficácia.9 O desen- as discussões estudantis retomariam, em 1967, com
contro entre estudantes e Estado foi forte já no ainda mais ênfase a crítica a esse projeto. No mês
governo de Castelo Branco, quando, diante das de março, a UNE tentou realizar um seminário em
arbitrariedades do ministro da Educação, Flávio Niterói para organizar campanhas contra ele, mas
Suplicy de Lacerda,10 eles se reorganizaram em as fronteiras do Rio de Janeiro foram fechadas para
reação ao avanço do autoritarismo tecnocrático inviabilizar o encontro.15
nas instituições de ensino superior. Os acordos com a USAID haviam sido pre-
Em 1968, o ministério foi ocupado por ou- cedidos, no seu cunho neoliberal, pelo Relatório
tro político avesso ao diálogo, Tarso Dutra. Ele Atcon, de 1958. Um texto do responsável por
fez distribuir uma circular, endereçada às univer- esse relatório, o professor norte-americano Ru-
sidades do País, em 30 de janeiro, exigindo a ela- dolph Atcon, seria publicado mais tarde pelo
MEC, com o título “Rumo à reformulação estru-
boração de “fichas ideológicas” de professores e
funcionários.11 Na verdade, em cada Estado, ofi- tural da universidade brasileira”. Emilia Viotti re-
digiu uma crítica a Atcon, publicada no jornal da
ciais do Exército, seguindo doutrinas anticomu-
UEE de São Paulo, em 1968. Atcon defendia a
nistas, supervisionados pela nascente comunida-
concepção de universidade como uma empresa.
de de informações, cuidavam das políticas esta-
A “autonomia” universitária, nesse sentido, sig-
duais de educação.12
nificava a transformação da universidade em uma
No tocante à política universitária, os go- fundação sustentada pelo pagamento dos alunos
vernos militares nos anos 1960 celebrizaram-se e pelos acordos com empresas, com a supervisão
pelos Acordos MEC-USAID, assinados entre o Mi- do governo. Seguindo a retórica neoliberal, que
nistério da Educação e Cultura e a United States então vinha se constituindo, Atcon considerava a
Agency for Internacional Development (Agên- administração pública inoperante, devendo estar
cia Americana para o Desenvolvimento Interna- sob um “Conselho de Curadores” o controle das
8 Apud REVISTA DCE USP LIVRE, 1965, p. 1.
verbas e o maior poder de decisão. Esse conselho
9 FÁVERO, 1991. seria uma espécie de corpo dos “patriarcas” da
10 Em novembro de 1964, a Lei Suplicy de Lacerda impunha a subs-
coletividade, ou seja, grandes capitalistas com
tituição da UNE pelo Diretório Nacional de Estudantes e as uniões
estaduais pelos diretórios estaduais, entidades francamente subordina-
das ao Ministério da Educação (POERNER, 1979). 13 Apud REVISTA DCE USP LIVRE, 1965, p. 8.
11 PERRONE, 1988, p. 149. 14 Ibid., p. 8.
12 ALVES, 1993. 15 VIEIRA, 1998.

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projeção “social”, não “política”. Segundo Viotti, No início daquele ano, os excedentes, con-
o espírito de Atcon penetrara nos documentos siderados intelectualmente capacitados para o
do MEC, que pregavam a educação como um curso superior, mas sem vaga, engrossavam os
meio de produção para o desenvolvimento eco- protestos estudantis, que se dirigiam aos pátios
nômico, os professores como força de trabalho e do Ministério da Educação, às secretarias de Edu-
os alunos como matéria-prima ou “recursos hu- cação ou às faculdades para pedir mais vagas, sen-
manos” a se tornarem, quando formados, merca- do, muitas vezes, reprimidos pela polícia. Surgia,
dorias lançadas no mercado.16 assim, uma questão capaz de mobilizar a classe
As missões educacionais que chegavam dos média, defensora das possibilidades abertas para a
Estados Unidos para a realização dos projetos “ascensão social”, portanto, facilmente sensibili-
programados pelo acordo traziam pedagogos zada com slogans do tipo: “Fomos aprovados;
medíocres e sem conhecimento algum da realida- queremos estudar”.21 Os excedentes significaram
de brasileira e, até mesmo, “espiões internacio- mais um dos temas a permitir certa unidade ao
nais, recém-chegados da Ásia, África”, segundo movimento estudantil de 1968, mesmo onde os
Poerner.17 O paradoxo da interferência da agên- protestos foram menos radicais. Foi o caso de
cia norte-americana nos assuntos educacionais Alagoas, em que os excedentes do curso de me-
brasileiros atingiria o auge em 26 de abril de 1967, dicina compareceram à aula inaugural, na Univer-
quando o ministro da Educação, Tarso Dutra, sidade Federal de Alagoas (UFAL), em 4 de março
diante da Comissão de Educação da Câmara dos de 1968, com faixas e cartazes dizendo: “O Brasil
Deputados, declarou que ainda não tinha lido os é um hospital cheio de doentes sem médicos”; “A
mocidade é o futuro do país, juventude ignorante
acordos com a USAID: “Não, não li, mas quando
é o país sem futuro”; “Condene-me se estudar
ler, se for nocivo ao interesse nacional, eu modi-
for um crime”.22
fico”.18 Dias depois, o ministro se penitenciou,
dizendo que decidira manter o acordo definitiva- Esse problema só seria “resolvido” em
mente e que não se importava com a repercussão 1970, quando o regime militar instituiu o vesti-
de seu ato no movimento estudantil. bular unificado e classificatório. Deixava de haver
formalmente a figura do “excedente”, o que não
Além do tema da reforma universitária e da
significava que todos os postulantes ao ensino
denúncia dos acordos MEC-USAID, outra questão
superior, mesmo que capacitados, tinham conse-
importante – a dos excedentes –, ainda mais
guido vagas.23
imediata, mobilizou os estudantes na segunda
A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA EM 1968
metade dos anos 1960. Os excedentes eram os
A universidade continuaria sendo, em
“estudantes aprovados com nota acima de 5,0 no
1968, um tema muito importante para o movi-
concurso para a universidade e que ficavam fora
mento estudantil, mas ele próprio havia se trans-
dela por ausência de vaga (33,3% do total de es-
formado com alguma profundidade. Por um la-
tudantes aprovados, em 1962, para 58,3%, em do, criara-se entre os estudantes um ambiente de
1968)”.19 Eles se transformariam num problema politização (de esquerda) ainda mais forte do que
cada vez maior, no final daquela década. Entre o do início daquela década. Por outro, as idéias de
1964 e 1968, o número de vestibulandos cresceu esquerda predominantes entre os militantes estu-
120%, ao passo que o de vagas aumentou apenas dantis estavam menos atreladas às ideologias po-
56%. Não conseguiram vagas, em 1968, 125 mil pulistas e desenvolvimentistas de antes. É claro
candidatos aprovados.20 que tais ideários não haviam desaparecido, mas,
16 VIOTTI, 1968.
junto ao nacionalismo, tinham se deslocado para
17 POERNER, 1979, p. 23.
18 Jornal do Brasil, 30/jun./67, apud POERNER, 1979, p. 247. 21 DIRCEU & PALMEIRA, 1998, p. 89.
19 MARTINS FILHO, 1998, p. 17. 22 Apud OLIVEIRA, 1998, p. 149.
20 ALVES, 1993, p. 117-118. 23 Ibid.

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a defesa de propostas mais radicais de ação polí- (então presidente da União Metropolitana Estu-
tica. A luta armada, a guerrilha ou a intervenção dantil da Guanabara), contra
violenta das massas deixara de ser algo secundário
uma grande resistência por parte dos professores e
e retórico: tornara-se o assunto principal das es- da estrutura envelhecida da universidade (...). Para
querdas estudantis e prática de alguns grupos ar- forçar um debate com o Conselho Universitário,
mados.24 marcamos uma assembléia estudantil na reitoria, à
Para compreender a transformação da mesma hora em que se daria uma reunião deles (...).
questão universitária em 1968, comparada com a Os estudantes iam entrar em choque com aquele
do início daquela década, deve-se levar em conta que estava diretamente diante deles, na sala de aula,
como opressor. Estariam pondo em risco o seu ano
essa nova dimensão da politização nas faculdades,
letivo.26
ao menos entre os militantes dos “partidos” es-
tudantis. Os documentos estudantis deixavam de De acordo com Palmeira, a estrutura
considerar a educação como o principal instru- universitária “era uma velharia com postos vitalí-
mento de transformação social. A questão da cios (...). Ela não estava adaptada talvez nem ao
universidade submetera-se às lutas populares século, quanto mais à década. Queríamos quebrar
contra o regime militar e o imperialismo norte- a dominação dos catedráticos e arejar a universi-
americano. Ainda assim, havia duas versões: a dade”.27 Primeiro, convidaram os professores a
Ação Popular (AP) defendia a “luta de massas”, dialogar com os cerca de 1.500 alunos reunidos
acreditando como inócuas as lutas específicas em em assembléia, no Teatro de Arena. Depois de es-
torno de reivindicações estudantis, ao contrário perar em vão por muito tempo, os estudantes ar-
da posição das Dissidências Estudantis Comu- rebentaram as portas e invadiram o conselho. En-
quanto pressionavam os docentes para ir à assem-
nistas, que defendiam que cada categoria social
bléia, um destes sugeriu que os alunos enviassem
deveria realizar sua própria luta rumo à revolução,
“um ofício requerendo diálogo”, à secretaria da
a qual congregaria, enfim, todas elas. Mesmo as-
reitoria, para marcar uma data para o encontro –
sim, ambas as posições concebiam uma universi-
estudantes e professores representavam, cada
dade nova e ideal: a ser construída depois da re- qual, nesse drama os papéis de impetuosos e de
volução, segundo a AP, ou durante a luta, apro- formalistas, respectivamente. Para Palmeira, ape-
veitando-se das brechas do sistema, de acordo sar de certo constrangimento exercido contra os
com os dissidentes comunistas.25 professores do conselho, mas sem ameaça algu-
Acontecimentos no movimento estudantil ma de violência, a ação “representava a quebra de
em São Paulo e no Rio de Janeiro comprovam a uma autoridade formal absolutamente opressi-
importância da questão universitária em 1968. Tal va”.28 Docentes e alunos passaram horas deba-
debate, segundo diversos relatos, teria sido mais tendo os problemas, discutindo e aprovando um
forte em São Paulo, mas um evento na capital ca- conjunto de resoluções que nunca se fizeram
rioca, em 20 de junho, ilustra muito bem a práxis cumprir, como “o aumento da participação estu-
estudantil sobre o tema. Naquele dia, havia sido dantil na gestão da universidade e uma reunião
programada uma manifestação, na reitoria da mensal do Conselho com os estudantes, repre-
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sentados pelos presidentes de diretório”.29 En-
em prol de mais verbas para o ensino superior e cerrada a assembléia, o local foi cercado pela po-
reformas curriculares. Após enfrentar por várias lícia, que acabou cometendo uma série de bruta-
vezes a resistência do MEC, o movimento carioca lidades contra esses jovens.
lutaria agora, segundo seu líder Vladimir Palmeira 26 Cf. PALMEIRA apud DIRCEU & PALMEIRA, 1998, p. 113 e 115.
27 Apud VENTURA, 1989, p. 62.
24 GROPPO, 2005. 28 Ibid., p. 62.
25 Ibid. 29 Cf. PALMEIRA apud DIRCEU & PALMEIRA, 1998, p. 113-115.

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Em São Paulo, ainda mais que no Rio de Ja- Os “partidos” estudantis convergiam em
neiro, segundo José Dirceu, esse assunto ganhou seus diagnósticos sobre a situação da universida-
maior importância. A Polop30 havia trazido da de e sobre a política educacional do regime. Qua-
França um debate sobre a Universidade Crítica.31 se sempre repetiam as críticas já indicadas sobre
Muitos eventos foram realizados, especialmente os acordos MEC-USAID: contra o elitismo, o tec-
na Faculdade de Filosofia da USP, ocupada pelos nicismo, a privatização, o militarismo e a depen-
alunos, entre eles, a Semana de Análise da Política dência às necessidades do capitalismo subdesen-
Educacional do Governo, organizada pela UEE/ volvido e do imperialismo. Outro documento es-
SP, de 3 a 10 de junho de 1968, com palestras e tudantil paranaense, adepto da tese da “luta de
debates no auditório da Fundação Getúlio Var- massa”, caracteriza a universidade brasileira como
gas. Os palestrantes eram críticos da política edu- um “conglomerado de escolas de caráter profis-
cacional do governo, como Octavio Ianni e Emi- sionalista, unidas (...) em uma universidade eli-
lia Viotti, e favoráveis, como Rui Leme.32 Na USP tista, federativa, profissionalista (...), estancada,
formaram-se comissões paritárias de alunos e duplicativa, burocrática”.35 E afirma que a ditadu-
professores para discutir e aprovar medidas de re- ra elaborara um projeto, em acordo com a USAID,
estruturação de diversos cursos. A Pontifícia para adequar a universidade aos imperativos
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) ideológicos e à estrutura profissional que ajudaria
também organizou comissões semelhantes. Se- a manter o Brasil como uma sociedade capitalista
gundo José Dirceu, o movimento estudantil pau- subdesenvolvida.
lista esboçou uma revolução que também poderia Já o estudante Jean Marc, pertencente à AP,
ser educacional e ter criado um outro modelo de também representando a tese da “luta de massa”,
universidade para o País.33 retoma o dilema tecnocracia versus politização.
Mas a preocupação com o tema não estava Primeiro, parece reconhecer a necessidade de re-
presente apenas em São Paulo e no Rio de Janei- formas nas estruturas arcaicas do ensino superior:
ro. Documentos comprovam que ela chegou a
outros diversos Estados. Em Curitiba, após a in- A universidade de hoje é ainda voltada para o ensi-
vasão da reitoria da Universidade Federal do Pa- no acadêmico, desligada do desenvolvimento da so-
ciedade. Permanece até hoje a universidade bacha-
raná, em 14 de maio de 1968, os estudantes pu-
relesca criada no século passado, voltada quase que
blicaram o panfleto:
totalmente para o fornecimento de diplomas aos fi-
Alcançou repercussão nacional o espetacular movi- lhos dos grandes latifundiários, sem nenhum incen-
mento organizado pelos universitários paranaenses, tivo para a pesquisa e a técnica, fechada à toda
quando tomaram de assalto a reitoria, órgão que re- modernização dos currículos.36
presenta o poder que quer a transformação do ensi-
no em mercadoria comercial e as universidades em Para ele, nem mesmo os interesses do im-
Sociedades Anônimas, que visam o lucro e a domi- perialismo no Brasil eram atendidos por essa uni-
nação. Foi a primeira vez que, neste estado, os estu- versidade arcaica, de modo que, por meio do
dantes deram PROVAS de sua grande capacidade de acordo MEC-USAID, tentava-se fazer dela uma
luta, pois organizados e lutando por uma causa justa formadora de técnicos para as indústrias de bens
e comum, deram um duro golpe na política educacio- de consumo que se instalavam nos países subde-
nal do governo, fazendo valer sua posição.34 senvolvidos.37
30 Trata-se da Organização Revolucionária Marxista, de inspiração
A UEE de São Paulo, dominada pela Dissi-
trotskista, que editava a revista Política Operária (o que faria o grupo dência, apesar de representar a tese da “luta espe-
se tornar conhecido como Polop).
31 DIRCEU apud DIRCEU & PALMEIRA, 1998.
cífica”, fazia um diagnóstico idêntico:
32 GRÊMIO INFORMA, maio/68.
33 DIRCEU apud DIRCEU & PALMEIRA, 1998. 35 PROGRAMA para o movimento estudantil, 1968, p. 4.
34 Informe da União Paranaense de Estudantes, maio/68, apud 36 MARC et al., 1968, p. 12.
HAGEMEYER, 1998, p. 121. 37 Ibid., p. 12.

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Analisando a situação da Universidade brasileira Congresso dessa entidade. As esquerdas minori-


deparamos dois pontos principais: tárias no movimento estudantil – como a Polop e
o PCBR – assumiram uma postura relativamente
• a situação caótica da mesma: ausência de corpo do-
cente, currículos ridículos, falta de condições e ins-
fluida em torno dessas duas concepções, a luta de
talações materiais para o estudo e a pesquisa, além massas defendida pela AP e a luta específica pro-
da falta de verbas e anuidades altíssimas; posta pelas Dissidências.41
A definição dessas duas posições no interi-
• a alternativa proposta pelo governo: [que visa tor- or das esquerdas estudantis deu-se no mês de
nar as Universidades em fundações privadas, com maio, no Conselho da UNE, em Salvador (quan-
ensino pago e com] currículo adaptado às necessi-
do se reuniram os seus diretores e os represen-
dades das indústrias e do desenvolvimento econô-
mico capitalista.38
tantes dos DCEs). O programa da luta de massa –
ou primeira posição –, defendido pelo presidente
DIVERGÊNCIAS NO MOVIMENTO ESTUDANTIL: da UNE, Luís Travassos, da AP, foi recusado pela
LUTA DE MASSA VERSUS LUTA ESPECÍFICA maioria, que aprovou a proposta da luta especí-
As esquerdas estudantis enfrentaram, em fica – ou segunda posição. As Dissidências, naque-
1968, uma verdadeira “guerra” ideológica e polí- le momento, dominavam grande parte das UEEs,
tica em torno do controle da UNE e do movimen- DCEs e Centros Acadêmicos (CAs) e, em conjun-
to estudantil. Após afastar o Partido Comunista to com a Polop, conseguiram uma pequena maio-
Brasileiro (PCB) da influência na UNE, a AP, as ria na diretoria da UNE. Também a forma de rea-
Dissidências Estudantis Comunistas e, com me- lização do 30.o Congresso criou fortes discus-
nor presença, a Polop e o Partido Comunista sões: a AP queria fazer um evento aberto e para
Brasileiro Revolucionário (PCBR, outra dissidên- breve, aproveitando-se do bom momento vivido
cia do PCB) passaram a digladiar-se pelo poder na pelo movimento estudantil, com o intuito de fa-
entidade. No final daquele ano, as Dissidências zer uma demonstração política contra a ditadura;
reaproximavam-se do PCB, o qual, se não houves- as Dissidências, na versão vencedora, desejavam
se ocorrido o desastre em Ibiúna, poderia ter vol- montar o congresso em várias etapas, com o ob-
tado a ocupar cargos na diretoria da entidade.39 jetivo de organizar o movimento estudantil e
A AP, na verdade, controlara a presidência reforçar o papel institucional da UNE em relação
da UNE praticamente durante toda aquela década. às demais entidades.42 Mas a AP não aceitou
Tinha sido criada no início dos anos 1960, entre tranqüilamente sua derrota. Levou a público sua
jovens cristãos progressistas, tornando-se logo tese da luta de massas, convocou conselhos não
um dos mais organizados movimentos populares reconhecidos pela maioria da diretoria da UNE e
do País. Mas o golpe de 1964 afastou-a de seus ameaçou realizar um congresso paralelo.43
projetos iniciais e a encaminhou cada vez mais Como resultado das desavenças no Conse-
para o maoísmo – tanto que, por ordem do par- lho de Salvador, a UNE publicou uma revista com
tido comunista chinês, ela se fundiria com o Par- textos expondo as duas posições. O primeiro (daí
tido Comunista do Brasil (PC do B, dissidência também o termo primeira posição), assinado pelo
do PCB de orientação maoísta), em 1973.40 próprio presidente da UNE, Luís Travassos, e por
Durante 1968, as disputas políticas e ide- dois vices, apresentava a luta de massas e criticava
ológicas se cristalizaram relativamente em duas o encaminhamento para o 30.o Congresso, de-
posições principais, que representariam também fendendo a “luta ofensiva” “contra a ditadura e o
as duas principais esquerdas estudantis, dois pro- imperialismo”. Denunciava o chamado trava-
gramas para a UNE e duas chapas para o 30.o mento de discussões sobre o 30.o Congresso, no

38 JORNAL DA UEE, jun./68. 41 VALLE, 1997.


39 DIRCEU & PALMEIRA, 1998. 42 DIRCEU & PALMEIRA, 1998.
40 GORENDER, 1998. 43 VALLE, 1997.

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Conselho de Salvador, e as intenções de setores, e com isso pareciam pretender transformar o mo-
“inclusive diretores da UNE, de tentar frear o mo- vimento estudantil em partido político. Em parte
vimento” e pregar a “volta às escolas”. Por fim estavam certos, porque na sociedade reinava uma
defendia “as corretas manifestações de violência expectativa enorme em relação ao movimento estu-
dantil (...). O movimento estudantil representava
dos estudantes” na luta contra a ditadura, recu-
para a sociedade a grande referência política contra
sando-se a qualquer “diálogo” com o regime.44
a ditadura, e por isso a AP começou a sonhar em
O segundo artigo defendia a luta específica, derrubá-la com o MCD, a partir da pressão das fa-
também chamada de segunda posição. Assinado culdades.47
por um diretor da UNE, Edson Soares, e com o tí-
tulo “O que são as divergências políticas na A AP sempre fora atraída para os grandes
UNE”, criticava o fato de as divergências internas temas políticos do País, desde o seu período de
à diretoria terem sido levadas para fora da entida- socialismo cristão. A aproximação com o maoís-
de, assim como as tentativas de se convocar con- mo a faria também destacar as lutas antiimperia-
selhos e congresso paralelos. Membros da enti- listas, como se percebe claramente na carta polí-
dade estariam apelando ao “divisionismo”, ao não tica da UNE de 1967, muito influenciada pela po-
aceitar sua posição minoritária. Assim, apelava sição ainda majoritária da AP. Além de insistir na
para os diretores dissidentes a retomar o “debate criação do MCD, a AP procurava realizar eventos
ao nível do político e dentro da entidade” e, fi- com temas internacionalistas, como Semana con-
nalmente, descrevia a posição aprovada pelo con- tra o FMI, Semana contra a Organização dos Es-
selho, defendendo as lutas específicas. tados Americanos (OEA) e Semana do Vietnã. Já
A segunda posição defendia que, em tal si- na opinião dos defensores da segunda posição,
tuação, não aceitar nenhum canal de diálogo com esse “era um programa totalmente desvinculado
o governo seria uma atitude “isolacionista”, uma das lutas específicas que estavam sendo desenvol-
demonstração da falta de confiança na própria ca- vidas em diversos Estados”.48
pacidade de não ser “engabelado” pelas autorida- Como fora decidido pelo Conselho de Sal-
des. Condenava também a afirmação de que o te- vador, o Congresso da UNE seria precedido por
mário fundado nos problemas da universidade uma ampla discussão, entre as entidades estudan-
era “apolítico”, quando, na verdade, as lutas em tis, em torno da primeira e segunda posições. A
razão das demandas específicas estudantis eram partir daí, seriam enviadas propostas e contri-
mesmo a “base de nossa atuação política”.45 Re- buições para a carta política a ser criada no 30.o
ferendando a segunda posição, o jornal da UEE/SP Congresso. Entre os documentos estudantis pro-
diria: “Muitos estudantes só descobrem que é duzidos no segundo semestre de 1968, que de-
preciso mudar o sistema depois que lutam por fendiam a primeira posição, repetem-se os vários
suas reivindicações específicas. É na luta por estas argumentos usados desde o Conselho de Salva-
reivindicações específicas (...) que compreendem dor. Entre eles, denúncias incisivas contra o im-
a necessidade de mudança do sistema”.46 perialismo, duras críticas aos defensores da se-
José Dirceu explica que, desde 1966, os mi- gunda posição, recusa do diálogo com a ditadura,
litantes da AP gestaram a idéia de fazer do movi- defesa do enfrentamento ao regime militar e das
mento estudantil o principal meio de enfrenta- manifestações e ações de massas, integração dos
mento ao regime militar, para o qual criaram in- estudantes na luta popular e até a “guerra popular
clusive o Movimento Contra a Ditadura (MCD) prolongada” (uma das teses maoístas absorvidas
pela AP):
44 REVISTA UNE, 1968, p. 9.
45 Ibid., p. 9. 47 DIRCEU apud DIRCEU & PALMEIRA, 1998, p. 62.
46 JORNAL DA UEE, ago./68. 48 A UNE e o 30.º Congresso, 1968, p. 5.

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Recuar das manifestações amplas de rua, frente às 2. O que é a política educacional do gover-
proibições da ditadura, substituindo-as pela ação de no? Como negá-la?
pequenos grupos de vanguarda, abdicar do 30.o Por que o governo reprime os estudantes?
Congresso da UNE em prol das reuniões diversifi-
Que fazer?
cadas, argumentar que a repressão está muito forte,
que o golpe vem aí, é cair na defensiva, é agir em 3. Quais as formas de luta? Como e quan-
função da vontade da ditadura, é paralisar nossas lu- do usá-las?
tas. É supervalorizar politicamente as forças do ini- 4. Quais as formas de organização do ME?
migo e descrer das forças do povo.49 Que são as entidades estudantis?
Dialogar com a ditadura é não compreender o ca- O que tem sido a UNE?
ráter da sua dominação e a irreconciliável oposição Como deve ser a nova organização da
dos nossos interesses e os dela. É confiar na boa UNE?54
vontade de nossos inimigos e não na força de nossa
Como demonstram Maria Ribeiro do Valle
luta para alcançar o que queremos. É na prática fa-
e João Roberto Martins Filho, ambas as posições
zer o jogo da ditadura e fortalecê-la, criando ilusões
no seio das forças populares. (...) [A luta do movi- estavam predispostas a apoiar o uso da violência
mento estudantil e do povo brasileiro] está neces- na luta contra o regime militar.55 No entanto,
sariamente ligada à luta de libertação de todos os ocorreu-lhes um desenvolvimento paradoxal. A
povos contra o imperialismo.50 luta específica parecia menos conivente com a so-
lução violenta, armada ou militarista e, num pri-
O que se faz necessário é travar a luta concreta con- meiro momento, colocava essa possibilidade mais
tra a ditadura em todos os terrenos, desmascará-la
para o futuro. Já a luta de massa parecia defender
com as ações de massas e não lhe dar tréguas até a
sua liquidação.51
com mais radicalismo o emprego da violência
“popular”, inclusive armada. Por exemplo, diante
Todas as lutas devem convergir para o fortalecimen- do assassinato, pela polícia carioca, do secunda-
to do combate (...) à ditadura e [a]o imperialismo rista Edson Luís, durante um protesto, originan-
ianque (...). O povo na luta derruba a ditadura e ex- do a mobilização estudantil de 1968, a UNE pu-
pulsa o imperialismo. Pela integração do estudante blicou um manifesto com as concepções da AP e
na luta do povo.52
do seu presidente Luís Travassos, conclamando a
A nossa luta tem três aspectos centrais: uma luta violência popular, após relacionar as lutas estu-
popular, prolongada, contra a ditadura forjada pelo dantis com as populares e antiimperialistas:
imperialismo, pela construção de um governo de
democracia para o povo.53 Povo brasileiro. Um estudante foi assassinado co-
vardemente ao lutar por suas reivindicações (...). O
Já à segunda posição, majoritária na UNE, povo, solidarizando-se com a causa defendida, per-
interessavam as questões expostas no temário, manece unido, dando continuidade à nossa luta.
proposto oficialmente pela diretoria, para o 30.o Que luta? A luta contra a ditadura fascista, repre-
Congresso: sentante interna do imperialismo americano, agres-
sor dos povos, que está sendo derrotado no Vietnã.
1. O que é a Universidade Brasileira? A luta contra o arrocho, contra a Universidade das
Por que devemos lutar? Quais as lutas? elites econômicas, contra a Exploração dos campo-
O que quer o governo? Como ele age? neses.
Por que negar a reforma universitária do
governo? O que propor? 54 “Nota Oficial da UNE sobre o XXX Congresso Nacional dos Estu-
dantes”, em A UNE e o 30.º Congresso, 1968, p. 8.
55 VALLE, 1997. Segundo MARTINS FILHO (1998, p. 18), em 1968
49 ANTEPROJETO de carta política para UNE, 1968, p. 2. a esquerda estudantil cindiu-se: AP (defendendo “um movimento cen-
50 MARC, 1968, p. 15. trado nas passeatas de rua e denúncia constante da ditadura”) versus
51 MONTEIRO, 1968. Dissidências do PCB e Polop (que acreditavam nas “lutas focadas nos
52 ANTEPROJETO de carta política para UNE, 1968, p. 5-6. problemas educacionais, mas ao mesmo tempo se preparavam para
53 MARC, 1968, p. 5. deslocar quadros para a ‘luta armada’”).

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Respondamos à violência com violência (...) com a ção do regime que apressarão a mudança de toda a
violência revolucionária do povo.56 Universidade ao mudar a própria estrutura social.58

A posição da UNE de Luís Travassos quase Contra os argumentos de que a luta espe-
contrasta com aquela defendida por Vladimir Pal- cífica afastava os estudantes das questões verda-
meira: deiramente políticas, um texto do Grêmio da Fa-
culdade de Filosofia da USP responderia: “Dizer
As lideranças estudantis convenceram-se de que a que um temário centrado nos problemas da Uni-
derrubada do sistema militar que governa o Brasil
versidade não é político é manifestar um desvio
deverá ser feita pelas classes populares. Nosso papel
nesse esquema é mínimo, pois os estudantes não
grave: é supor que a luta que os estudantes tra-
têm o peso social suficiente para um movimento de vam contra a Universidade arcaica e contra a
tal envergadura (...). Universidade empresarial que o MEC-USAID quer
impor não é uma luta política”.59
Ultrapassada a última fase de manifestações a pala- Por sua vez, os defensores da primeira po-
vra de ordem é retornar às escolas, promovendo as-
sição desejavam o engajamento irrestrito do mo-
sembléias para o debate político dos acontecimen-
vimento estudantil nas ações de massas contra o
tos e para a estruturação das medidas necessárias ao
atendimento das reivindicações específicas da classe regime militar. O “Programa para o movimento
estudantil.57 estudantil” afirma que a reforma universitária só
seria possível se estivesse submetida à luta mais
Entretanto, no final de 1968, os defensores geral do povo brasileiro contra a ditadura, os im-
da luta específica passaram a pregar com vigor a perialistas e latifundiários, após se instaurar o
luta armada imediata e, na verdade, muitos mem- “governo popular revolucionário”.60 Outro tex-
bros da Dissidência já partiam para a guerrilha, to, de estudantes cariocas, repete os mesmos ar-
inclusive transformando-se em grupos armados gumentos: seria impossível construir uma “nova
(como a Dissidência de São Paulo e, mais tarde, a universidade”, mantendo-se o regime; era útil
Dissidência da Guanabara, que se tornaria o Mo- discutir o tipo de universidade desejada, “de ca-
vimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). ráter progressista e popular, uma universidade de-
Enquanto isso, a AP continuava insistindo mais na mocrática” e “uma cultura popular e antiimperia-
necessidade de ações de rua demonstrativas, reu- lista”, mas esse não deveria ser o centro dos de-
nindo massas estudantis e operárias (apesar de, bates.61 Aqui percebe-se que as duas linhas, ape-
em geral, deixar claro que se tratava do primeiro sar de divergentes quanto às lutas reivindicatórias
passo rumo ao Exército Popular Revolucionário). nas faculdades, aproximam-se de novo, quando
A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA SEGUNDO A LUTA pensam o modelo ideal da “nova universidade” e
DE MASSA E A LUTA ESPECÍFICA fazem diagnósticos praticamente idênticos sobre
Um dos documentos expressivos da posi- o ensino superior.
ção majoritária no Conselho da Bahia, favorável à Contudo, em razão da própria idéia da im-
luta específica (ou segunda posição), via como portância da luta no interior da universidade, os
um dado muito positivo a “contestação” ativa defensores da segunda posição parecem ter ido
dos descaminhos da universidade: mais longe na discussão sobre o modelo ideal da
É nossa tarefa criar inadequações entre aquilo que o nova universidade – especialmente em São Paulo,
regime capitalista exige de uma Universidade e aqui- com a introdução do debate sobre a universidade
lo que a Universidade é. Quanto mais avançar um crítica: “A UEE de São Paulo, no momento, está
movimento de contestação ativa, mais a Universi-
58 A LUTA dos universitários dentro e fora da universidade, 1968,
dade estará criando na sociedade focos de contesta-
p. 17.
59 SOARES, 1968, p. 11.
56 Manifesto da UNE, de 1.º/abr./68, apud VALLE, 1997, p. 48. 60 PROGRAMA para o movimento estudantil, 1968, p. 4.
57 Ibid., p. 49. 61 MONTEIRO, 1968.

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levando aos estudantes a proposta da Universida- gem da insatisfação da massa estudantil, a partir
de Crítica, uma Universidade dirigida pelos alu- do que novas reivindicações e lutas foram esbo-
nos e professores em termos paritários. Uma çadas, num processo de mobilização política dos
Universidade que discuta e analise a validade do universitários.
próprio sistema onde está inserida”.62 CONCLUSÃO
Antes mesmo do debate sobre a Universi- Este artigo buscou analisar as posições do
dade Crítica, parte do movimento estudantil bra- movimento estudantil brasileiro nos anos 1960,
sileiro caminhava nesse sentido. O texto aprova- sobretudo em 1968, quanto às transformações
do no Conselho da Bahia, propondo a concilia- sofridas pelo ensino superior e a relação entre
ção entre modernização técnica da universidade e universidade e sociedade. E procurou examinar as
politização, utiliza argumentos semelhantes às concepções expressas pelos documentos produ-
propostas da Universidade Crítica, sobretudo às zidos pela imprensa estudantil, que trazem as
do movimento estudantil alemão, como a conce- opiniões dos líderes dessas organizações, em ge-
pção da ciência e da prática profissional a serviço ral militantes da esquerda “radical” na época.
das necessidades do povo e do país. Tal tendência Os líderes estudantis eram informados, so-
tinha suas raízes nas tradições populistas e desen- bretudo, por ideologias políticas da esquerda “ra-
volvimentistas das esquerdas estudantis: dical” que apontavam a revolução popular como
única alternativa viável de ação e transformação
Negamos a universidade arcaica e a universidade social. Já no que se refere à questão universitária,
modernizada segundo os moldes do imperialismo. essa radicalização foi motivo de alguns dilemas,
Negamos uma universidade que forma arquitetos paradoxos e limites entre as lideranças, seja o
para construir residências de luxo e não as milhares afastamento delas das necessidades mais especí-
de casas populares de que se necessita, médicos para
ficas dos estudantes como sujeitos da educação
o asfalto quando milhões de brasileiros morrem de
(como na tese da “luta de massa”) seja na tenta-
gripe ou diarréia no interior e nos subúrbios operá-
rios, sociólogos para domesticar os trabalhadores e
tiva de instrumentalizar o movimento em prol
não para planejar o desenvolvimento (...). Não po- dos grupos de luta armada (como fariam os adep-
demos precisar os detalhes mas uma coisa é certa: a tos da “luta específica”, diante do aumento da re-
Universidade deve servir ao desenvolvimento das pressão do regime militar).
forças produtivas e às necessidades da maioria tra- Por outro lado, no que a influência do “ra-
balhadora do nosso povo. Não só deve ser aberta a dicalismo” de esquerda foi mais positiva, não se
todos como ainda os elementos por ela formados quebrou a “tradição”, vinda desde os tempos do
devem poder ser úteis à coletividade.63 populismo (no início dos anos 1960), de pensar o
ensino superior em sua conjunção com as reais e
Os artigos que defendem a primeira posi-
possíveis transformações sociais. O movimento
ção reproduzem o discurso que rejeita tanto a
estudantil revelou-se capaz de fugir do fatalismo
universidade arcaica quanto a tecnicista. Mas não
expresso na dualidade tradição-modernização
consegue definir tão bem os princípios de uma
tecnicista da universidade, ou seja, da idéia de que
nova universidade, limitando-se a apontar o de-
a única alternativa ao elitismo tradicional era a
sejo de construir, após a vitória da revolução, uma
subsunção plena da universidade às necessidades
“universidade popular”.64 Apesar disso, mesmo
econômicas e tecnológicas do “sistema industrial”.
essa fração do movimento teve consciência de
A consciência da falácia desse dilema fica clara
que os problemas da universidade estavam na ori- nos textos produzidos pela imprensa estudantil.
62 VALE a pena mudar esta universidade, 1968. A mobilização de estudantes nos anos 1960
63 A LUTA dos universitários dentro e fora da universidade, 1968, p. mostrou habilidade em pensar o processo peda-
16-17.
64 MARC et al., 1968, p. 12; e PROGRAMA para o movimento estu- gógico e as estruturas de ensino como elementos
dantil, 1968. a serviço dos próprios agentes sociais, não apenas

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como técnicas de adaptação das novas gerações às Nesse sentido, o movimento estudantil da-
transformações socioeconômicas. Procurou en- quela década demonstra para nós, nos dias de hoje,
carar a educação e sobretudo a universidade a importância de uma perspectiva de educação
como meios de compreensão e transformação da muito mais do que um mero meio de adaptação
realidade, até mesmo quando, no caso dos adep- dos educandos à realidade, podendo, assim, fazer
tos da “luta de massa”, projetou tal possibilidade frente aos fatalismos que se vêm operando nas dis-
para apenas “após a revolução popular”. cussões sobre as transformações da universidade.

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Dados do autor
Doutor em ciências sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), professor do
Programa de Mestrado em Educação
Sociocomunitária e dos cursos de Turismo, Serviço
Social e Pedagogia do Centro Salesiano de São
Paulo (Unisal), unidade Americana.

Recebimento: 17/jan./05
Aprovado: 1.º/abr./05

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Comunicações
Communications
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El Caso de las Puertas


Cerradas
THE CLOSED DOORS CASE* 1

Resumo Tendo por base o trágico incêndio ocorrido no supermercado Ycua


Bolaños V, na capital paraguaia, em agosto de 2004, quando centenas de pessoas
encontraram a morte diante de saídas de emergência com portas trancadas, o
autor projeta o que denomina de “os holocaustos do século XXI”, buscando
compreender as lógicas antiéticas atualmente generalizadas. Procura ainda MAURICIO LANGON
manifestar o caráter nefasto de decisões cotidianas insensatas apoiadas em um Asociación Filosófica
aparente “sentido comum” e que, justamente por serem habituais, passam del Uruguay (AFU)
desapercebidas em sua falta de sentido, seu aspecto antiético e sua desumanidade. mlangon@adinet.com.uy

Palavras-chave LÓGICAS ANTIÉTICAS – SISTEMA ECONÔMICO – HOLOCAUSTO –


ASSUNÇÃO, PARAGUAI.

Abstract Having as a starting point the tragic fire that occurred in the Ycua
Bolaños v supermarket, in the capital of Paraguay, on August 2004, when
hundreds of people died in front of the locked emergency exits, the author
projects what he calls “the holocausts of the 21st century”, trying to understand
the antiethical logics currently generalized, and to show the disgraceful character
of everyday irrational decisions based in an apparent “common sense” and that,
precisely for being customary, go unnoticed in their lack of sense, their atiethical
aspect and their inhumanity.

Keywords ANTIETHICAL LOGICS – ECONOMICAL SYSTEM – HOLOCAUST –


ASUNCION, PARAGUAY.

*1 Con la colaboración del prof. SERGIO CÁCERES (Asunción, Paraguay). Ponencia presentada a las Terce-
ras Jornadas Internacionales de Ética: “No matarás”, Buenos Aires, Escuela de Filosofía de la Universi-
dad del Salvador, 30 y 31 de ago./04. Versión escrita completada en ene./05. N.E.: revisão do espanhol
executada por JUAN CARLOS BERCHANSKY (AAI/UNIMEP).

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E
l incendio del supermercado Ycua Bolaños V, “Botáni-
co”, ocurrido en Asunción del Paraguay el primero de
agosto de 2004 es uno “de los diversos holocaustos” que
constituyen la “experiencia que nos ha atravesado en el
siglo XX y nos ha ubicado exhaustos en las puertas del
tercer milenio”. Difiere de otros – asaz más famosos – en
que no se hace “en nombre de”... nada; y en que no se
hace “para la abolición de...” nada.1
Por eso es más significativo. Porque permite empezar a pensar “los
holocaustos del siglo XXI”. Porque permite comprender las lógicas anti-
éticas hoy generalizadas, y poner de manifiesto el carácter nefando de in-
sensatas decisiones cotidianas basadas en lo que aparece como el “sentido
común” de nuestro tiempo, y que – justamente por ser habituales – su-
elen pasar desapercibidas en su sinsentido, antieticidad e inhumanidad.
I
EL FRAGOR DE LOS HECHOS
El acontecimiento se produjo cerca del mediodía del domingo 1.º
de agosto de 2004, cuando aproximadamente mil personas se encontra-
ban dentro del moderno establecimiento Ycua Bolaños V, “Botánico”,
que fuera habilitado en diciembre de 2001, en la intersección de la Avda.
Artigas y Trinidad, Asunción, Paraguay. Era una estructura de 4 mil m2
sobre un terreno de 8.340 m2, que incluía las instalaciones habituales de
un gran supermercado, patios de comidas y de juegos, depósitos, estaci-
onamiento en el subsuelo etc.
Una explosión por acumulación de gas en la chimenea de un horno
provocó el incendio que se expandió rápidamente al tomar contacto con
materiales altamente inflamables. El edificio no contaba con dispositivos
de seguridad adecuados para prever o atacar accidentes de este tipo. Tam-
poco contaba con salidas de emergencia ni otras medidas de seguridad de
las personas. Según la descripción de un fiscal, “era un cajón con dos agu-
jeritos”. Pero contaba con habilitación. Las inspecciones de seguridad no
se realizaron o fueron ineficientes.
Las puertas de entrada y salida del supermercado, así como los por-
tones del estacionamiento de vehículos, fueron cerrados, a poco de ini-
ciarse el fuego, por guardias de seguridad que cumplían órdenes de pro-
pietarios. Varias fotos aparecidas en la prensa documentan los momentos
en que la gente que pasaba, advirtiendo que había personas atrapadas den-
tro del supermercado, recurría a sillas, picos, piedras y otros elementos
para intentar romper vidrios blindados, portones metálicos y paredes a
fin de permitir la salida. Otras fotografías muestran las puertas cerradas

1 Grupo No Matarás: No matarás, sentido y sinsentido de una prohibición (Presentación de las III Jorna-
das), Buenos Aires, 2004: “Si hay una experiencia que nos ha atravesado en el siglo XX y nos ha ubicado
exhaustos en las puertas del tercer milenio, es la de los diversos holocaustos. En nombre de soluciones
finales, de reconstrucciones patrias, de limpiezas étnicas, de purgas necesarias, de seres nacionales, se ha
desplegado todo un arsenal metafórico para hablar de la abolición de lo impuro, distinto, extranjero,
anormal, inhumano, irracional”.

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del estacionamiento, los cadáveres apilados tras días o semanas, hasta que una nueva o mayor
ellas cuando los bomberos lograron derribarlas, emergencia mueva a (so)correr a otra parte. Estos
las filas de muertos calcinados, que luego fueron accidentes exigen enérgicas respuestas éticas, que
ubicados en un club nocturno cercano, transfor- movilizan las capacidades humanas de acción so-
mado en improvisada morgue y más tarde en lu- lidaria y de uso de la razón y desarrollo del cono-
gar de oración. cimiento para superar diversas falencias de origen
Hasta la fecha se han registrado 464 muer- humano o técnico de modo a prevenirlas mejor
tos, alrededor de 150 desaparecidos2 y varios cen- en el futuro. Pero no parecen invitar con la mis-
tenares de heridos de diversa magnitud (muchos ma fuerza a la capacidad humana de pensar, de
con lesiones graves por el resto de sus vidas). A preguntar en profundidad. Porque no son pro-
más de secuelas de diverso tipo entre los familia- ducto de una acción humana voluntaria, racional,
res de las víctimas (se menciona varios suicidios) conscientemente planificada, sino de fenómenos
y de la impresionante conmoción que provocó en naturales o de errores humanos.
la comunidad asunceña y paraguaya en general. Si nuestro “caso” fuera cualitativamente asi-
EL SILENCIO DE LOS CORDEROS milable a una desgracia natural o a un accidente,
Esa conmoción, sin embargo, prácticamen- entonces no sería digno de ser pensado. No sería
te no ha tocado al “mundo”, que se sacudió de es- de la misma envergadura ética de aquellas atroci-
panto y derramó ríos de tinta por el ataque a las dades que fueron llamadas holocaustos, que son
“torres gemelas” de Nueva York o por los aten- sustanciales (no accidentales) en tanto afectan la
tados en los trenes de cercanías de Atocha-Alcalá esencia misma del ser humano, al ser perpetradas
de Henares, en Madrid. por seres humanos y sobre seres humanos. En ta-
Sería demasiado simplista atribuir ese de- les casos, la reflexión ética sí tiene la responsabi-
sinterés sólo a la insensibilidad moral que siste- lidad de interrogar a fondo, de discernir clara-
máticamente producen los medios de comunica- mente entre las víctimas, que claman por solida-
ción al hacernos cotidiano el pavor, a la ubicación ridad, justicia y reparación, y los victimarios, res-
excéntrica de Asunción, o al insuficiente número ponsables voluntarios y conscientes de un
de víctimas.3 No. Nuestro “caso” no ha merecido crimen.
las plumas célebres del primer mundo porque no El “caso” Ycua Bolaños parece un mero ac-
les resulta digno de ser pensado. cidente o desgracia natural. Por eso, decir que el
El incendio de Ycua Bolaños no resulta dig- “caso” de Ycua Bolaños es uno de los “diversos
no de ser pensado si se le asimila a una desgracia holocaustos” de nuestra época y que, como tal, es
“natural” (huracán, sequía, terremoto...) o a un digno de ser pensado, como sostengo en este tra-
mero accidente. En efecto, en tales casos, la res- bajo, puede sonar a algunos como disparatado, si
ponsabilidad humana se limita, por un lado, a er- se considera que una de sus características pecu-
rores, impericias, descuidos o malas praxis (de los liares, que lo diferencia de cualquier otro holo-
cuales se puede aprender en previsión de desas- causto (de Auschwitz, de Hiroshima, de Na-
tres futuros) y, por otro lado, a transitar caminos gashaki, del Plan Cóndor...) es que no fue una ac-
de solidaridad, generalmente durante algunos ción humana consistente en sacrificar consciente-
mente a otros “en nombre de” algo. Igualmente
2 La página web <www.pla.net.py> incluye la lista del Ministerio excesivo y absurdo puede parecer a algunos afir-
Público de 426 cadáveres identificados. La misma fuente incluye los
nombres de 154 personas desaparecidas. Neike (<www.neike.com.py mar que “la Humanidad no es la misma después
>) da la cifra total de 464 fallecidos.
3 Aunque duela particularmente la proporción de víctimas infantiles, y
del incendio del hipermercado que antes”.4 Por-
aunque sea la mayor “desgracia en tiempos de paz” del Paraguay, empe- que, aquí, el espanto no deriva de una serie rigu-
queñecido por vieja guerra genocida de la que los uruguayos seguimos rosamente concatenada de acciones humanas téc-
sabiéndonos responsables y por ello sintiéndonos más próximos, el
número de víctimas no es significativo si lo comparamos con el de las
desgracias que suelen asolar a otras comarcas del mundo. 4 FEINMANN, 2004.

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nica y conscientemente planificadas como medi- en momentos de crisis y estados de excepción. Y


os adecuados para el logro de fines supuestamen- agrava ese espanto que la lógica que está detrás de
te superiores, en función de una racionalidad que este holocausto no se muestra como criminal,
haría justa y buena la atrocidad. Por el contrario, atroz, antiética e inhumana. Más bien, de hecho y
se inicia como simple accidente. Y si pasa de des- en términos generales, a todos se nos está propo-
gracia a crimen, de mal físico a mal ético, si se ci- niendo asumirla, por diversos medios, y tal vez
erran las puertas, ello no se debe a la voluntad de llega a contaminar nuestro modo de ver las cosas.
provocar daños a otras personas, sino al deseo de Quizás como el “fascismo corriente” que asumía,
proteger los propios bienes, al interpretar erróne- sin comprenderlo del todo, la lógica genocida del
amente que se trataba de robarlos. nazismo. Por eso es fundamental una incansable
Y sin embargo... sostengo que se trata de actitud alerta en este sentido.
un holocausto que cambia a la Humanidad y que El riesgo cierto contra el que querría preve-
exige reflexión ética y filosófica radical. nir en este trabajo consiste en caer en una insen-
PLANTEO DEL CASO satez no menos funesta que la de los agentes de
Es que el caso ético, lo que hace digno de este holocausto: asumir esa misma lógica sistémica
ser pensado al holocausto de Ycua Bolaños, radi- al interpretar el suceso y al proponer acciones y nor-
ca, justamente, en esa característica peculiar que mas futuras, adoptando ópticas que – en vez de
lo diferencia de todo otro holocausto: en la im- dirigir la mirada hacia el análisis de las condicio-
pertinencia de atribuir maldad consciente a quie- nes éticas del sistema – reafirman las mismas omi-
nes ordenaron cerrar las puertas y a quienes obe- tiendo la referencia a responsabilidades sistémicas y
decieron esa orden. esforzándose por reducir el problema a un acci-
Lo que nos permite calificar al suceso de dente o a encontrar “culposos” individuales.
“holocausto” es que – en circunstancias análogas
DEL ESPANTO DEL SISTEMA
y supuesto el error indicado más arriba – cualqui- El espanto se funda en un modo de conce-
er “buen” propietario hubiera dado la misma or- bir la realidad, en una “racionalidad” o una “lógi-
den y cualquier “buen” guardia de seguridad la ca” que organiza todo en torno al mercado, cuyo
hubiera obedecido.5 Y, si el cálculo hubiera sido funcionamiento óptimo (el que mejor le permiti-
acertado – si alguien hubiera hecho estallar bom- ría rendir sus beneficios, es decir, hacer el bien)
bas de estruendo y humo para crear confusión a dependería del libre juego de la oferta y la deman-
fin de robar mercaderías o dinero –, ni la decisión da, que operaría como ley natural. Toda interfe-
de los dueños ni la acción de los guardias apare- rencia en esa legalidad sería una traba que impedi-
cerían a muchos como condenables. ría sus beneficios produciendo efectos maléficos.
Lo que hace más espantoso este caso es,
Resulta aceptable pues, para esa racionali-
precisamente, que ha sido obra de agentes huma-
dad económica hoy predominante, que los pro-
nos que han asumido como modelo de pensami-
pietarios de los negocios procuren maximizar ga-
ento y guía de la acción la lógica que orienta al sis-
nancias reduciendo todo lo posible sus gastos, de
tema económico que rige el mundo, tanto para su
modo de competir eficientemente en el mercado.
obrar cotidiano como para la toma de decisiones
Entra en esa lógica que se tienda a reducir los gas-
5 Entrecomillo “buen” porque tales órdenes y obediencias sólo pueden tos en seguridad; es decir, los gastos en medidas
parecer “buenas” a condición de que se considere “buena” la reducción que – asumiendo que toda empresa implica ries-
de las personas a una única dimensión, en este caso su “rol” de propie-
tario o guardia. Ese tipo de “reducciones” son bastante habituales actu-
gos – procuran prever posibles daños y peligros –
almente. Sólo en algunos casos, como éste, resulta manifiesta su que ella podría recibir o provocar – a fin de im-
inadecuación. En otros, la toma de decisiones considerando una sola
“escala” podría aparecer como adecuada. Pero tomar una decisión
pedirlos, minimizarlos o indemnizarlos. Esa dis-
humana supone considerar las posibilidades, alternativas, escalas y minución de la seguridad, a su vez, tiende a ha-
dimensiones, en la mayor medida que sea posible. Agradezco a Dardo
Bardier sus sugerencias que me permitieron hacer esta aclaración y
cerse priorizando la seguridad de las cosas (mer-
otras varias correcciones y ajustes en el texto. cancías, dinero), por encima de la seguridad de las

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personas (empleados, clientes, terceros), pues las que se desresponsabilicen de la seguridad de los
decisiones se toman según criterios económicos, ciudadanos y que reduzcan su intervención en
no éticos.6 Así es comprensible que en el cálculo defensa del bienestar, la seguridad y la justicia so-
riesgo-beneficio, el bien de las personas (su salud, ciales. Cada desregulación, cada deslegislación de
su vida) no tenga prioridad, pierda valor. lo que en el pasado se consideraba “conquistas
Esta degradación de lo humano repercute sociales” marca la medida en que un Estado va si-
fuertemente en diferentes planos. Por ejemplo, endo inducido a desentenderse de seguridades
genera la aparente irresponsabilidad ética del em- que antaño garantizaba (y ahora nadie garantiza).
presario que no sería libre de optar por políticas Ese proceso muchas veces no es presentado
empresariales más seguras o más humanas, pues como el abandono de responsabilidades éticas so-
aparece como encadenado a una lógica mercantil ciales y el aumento sustantivo de la inseguridad pú-
que lo “obliga” a desresponsabilizarse por la eti- blica y privada, sino como una necesidad para al-
cidad de sus decisiones y a desentenderse de las canzar el bien de todos. Sin embargo, se trata
consecuencias de sus actos. Esta perspectiva per- efectivamente de un peligrosísimo proceso de pé-
vierte lo humano (que liga exclusivamente a la ca- rdida de resposabilidad y de seguridad.
pacidad de optar), al pretender responsabilizar (o Es consecuencia de esta degradación de lo
culpabilizar) a los “pobres” (que tienen “poca o humano, que la corrupción se considere pecata
nula capacidad de optar”) y al desresponsabilizar minuta, cuando los agentes e instituciones esta-
a los “ricos” (caracterizados por su amplia capa- tales que incumplen sus obligaciones son estimu-
cidad de opción).7 lados a ello por la misma sociedad civil que se ras-
Esta corrupción de lo humano se profun- ga las vestiduras cuando ocurre una desgracia de
diza y agrava si advertimos que el hecho de no ac- proporciones.
tuar según esa lógica es presentado a menudo no Tampoco puede extrañar que, en situacio-
sólo como irracional, sino como éticamente inad- nes límite, como la de este caso, guardias de se-
misible, pues supuestamente iría contra la com- guridad se transfiguren en SS y, de padres de fa-
petitividad que garantiza la libre competencia en milia que consiguieron el inseguro empleo que
el mercado que beneficia a todos. pudieron, desdigan su humanidad y se conviertan
En nombre de la competitividad y sus pre- en un instante en “el soldado perfecto del honor,
suntamente incontestables beneficios “para to- el que obedece todas las órdenes”:8 aun las ética-
dos”, también se pide o exige a nuestros Estados mente inhumanas y las lógicamente absurdas.
Ahora bien, como suele atribuirse (erróne-
6 Los criterios propios de esa racionalidad economicista se aplican tam-
amente) a esa lógica los logros de los avances
bién para ponerle precio a la moral. Se ha argumentado, por ejemplo,
que la inversión en la formación moral de los ciudadanos, posibles con- científicos y tecnológicos de la humanidad, en la
sumidores-clientes-empleados-socios, es económicamente valiosa (es medida en que todos gozamos las ventajas de
decir, es un buen negocio) porque tiene alta tasa de retorno, pues esa
formación permitiría tener mayor confianza en las personas y así ahor- esos avances, se nos hace aparecer como aprove-
rar en mecanismos de control tendientes a la seguridad de los bienes chándonos de esa lógica, a la vez que contamina-
(económicos) – cf. GOSSLING, 2003, p. 121-131. El problema en esa
concepción radica en que los valores de determinada ideología (“neoli- dos por esa corrupción que rechazamos y como
beral”) en determinado aspecto (económico) de la realidad son acepta- negando los avances de la humanidad. Por esta ra-
dos acrítica y dogmáticamente como criterios últimos o absolutos para
valorar todos los otros aspectos de la realidad y todas las otras concep- zón, es necesario insistir en que condenar las con-
ciones. Así, por ejemplo, se ha preguntado, respecto a informes del secuencias deshumanizadoras de esa lógica es una
Banco Mundial (que calculan el costo en dólares de abortos, muertes
de madres en parto y muertes infantiles) que valoran la educación en exigencia ética que no implica rechazar aquellos
función de su alta tasa de retorno, si – en el supuesto de que dicha tasa avances, sino reorientarlos en base a criterios hu-
dejara de ser favorable, o no lo fuera en determinado lugar – habría que
dejar de educar (cf. SOLER ROCA, 1998). Con criterio análogo se manizadores y democratizadores que los potencien
procura a veces determinar si es económicamente redituable o no la y los pongan efectivamente al servicio de todos.
solidaridad, la seguridad social etc.
7 Analizo estas contradicciones en LANGON, 2003. Cf. também
LANGON, 2002, p. 145-150. 8 La fórmula es de un nazi cuyo nombre no recuerdo.

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El proceso de desgaste ético y humano se hace tónico, funcionarios desganados, incompetentes


pavorosamente evidente en ciertos sucesos, o corruptos, dueños egoístas y torpes, guardias
como el que estamos analizando. Estos casos de obtusos), y no se ataque sus raíces profundas. No
excepción o extraordinarios son particularmente con las mismas características, ni por las mismas
dignos de ser pensados por eso, porque en ellos causas ocasionales, ni en el mismo lugar, pero se
se hacen visibles los aspectos ocultos, erróneos, repetirá. Se viene repitiendo desde hace tiempo.10
nefastos e inmorales que actúan ordinariamente II
en nuestras sociedades, pero que sin que puedan ESTAMPIDAS
ser fácilmente advertidos. El espanto produce estampidas de las inter-
Para que no nos gane ese deterioro de lo pretaciones en direcciones que dispersan el foco
humano es importante considerar los casos como de atención hacia aspectos accidentales, descui-
el de Ycua Bolaños (pese y gracias a su excepcio- dando lo sustancial: la responsabilidad del siste-
nalidad) como sustanciales y no meramente acci- ma en que todos estamos inmersos. Sin embargo,
dentales. Porque no son debidos a la fortuita con- a través de los diversos discursos y acciones mo-
fluencia de series causales no relacionadas entre tivados en este acontecimiento, se van poniendo
sí, sino que son consecuencias lógicas de la asun- de manifiesto aspectos sustanciales: atrocidades
ción de determinada concepción ideológica que no advertidas como tales, a las que ya estamos
hegemoniza la orientación actual del pensamien- acostumbrados y nos parecen irrelevantes hasta
to y de la práctica. que estalla la tragedia; marcadas regresiones en
los modos de pensar y actuar ante la crisis; dis-
También nos ganaría esa corrosión, cuando
tintas apelaciones a la participación popular y dis-
la real inseguridad a que estamos expuestos todos
tintas formas de ésta. Lo que sigue no pretende
los días estalla en hechos brutales que instrumen-
ser una clasificación taxonómica de tales estampi-
talizan personas para obtener dinero (secuestros,
das y manifestaciones, sino una ilustración repre-
mutilaciones y asesinatos con fines de robo o
sentativa de discursos y modos de pensar y actuar.
extorsión), si ante ellos interpusiéramos interpre-
ESTAMPIDA HACIA LA IRRESPONSABILIDAD:
taciones miopes, compatibles con la lógica que ve- NADIE ES RESPONSABLE
nimos criticando, que caen en graves confusiones
Saber y reflexionar es inútil porque nada
en sus demandas al buscar soluciones por el cami- puede cambiar el pasado
no autoritario de incrementar las fuerzas de segu- En una sesión del Senado, en que se debatía
ridad que, más bien, aumentan la inseguridad.9 la creación de una comisión investigadora, el se-
En nuestro “caso”, se imagina que la des- nador Carlos Galaverna “dijo que no valía la pena
gracia no se habría dado si se hubiera tenido ci- la investigación porque eso no iba a poder ‘resu-
ertos cuidados y precauciones que se exige que se citar a los muertos’ y que pedirla era ‘hacer mor-
tengan (o que se jura que se tendrán) en el futu- bo con los muertos’”.11 La breve argumentación
ro. De modo que, se dice: “Nunca más”; “No se no hesita en retroceder hacia la negación de los
repetirá”. Pero no se trata de accidentes, ni tampo- saberes históricos y éticos y la utilización de fa-
co de insensatos actos criminales, sino de holo- lacias con tal de “no menear” el caso.
caustos, perfectamente “lógicos” en la concepción
hegemónica del sistema dominante. Entonces, se 10 Las frases que anteceden en el texto las escribí a fines de noviembre
del 2004. Lamentablemente el 30 de diciembre, un incendio ocurrido
repetirá, en la medida en que se ataque sólo las en el local bailable “República Cromañón”, en Buenos Aires, dejó un
causas circunstanciales (leyes y disposiciones que saldo de al menos 175 muertos (en su mayoría jóvenes y bebés) y 619
heridos, algunos muy graves. Una bengala lanzada en la actuación de
no se cumplen o son inadecuadas, descuidos en la un grupo de rock prendió fuego el techo del local. Había dentro unas
limpieza de las chimeneas o en el diseño arquitec- dos mil personas, más que la capacidad admitida – según informan.
Cuatro de las seis puertas estaban cerradas con cadenas para evitar
“colados”. Incluida la “salida de emergencia”, que estaba señalizada con
9 El“caso Blomberg”, en Argentina, parece ser paradigmático en este engañosos carteles luminosos que funcionaban a la perfección..
sentido. 11 Información del diario ABC, 18/ago./04.

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Fue un accidente inevitable como accidente. Pero se orienta hacia la exigencia


Alfredo Jaegli, por su parte, “señaló que no de “justicia contra los criminales”,17 procurando
valía la pena salir a buscar responsables, porque lo el restablecimiento de cierto equilibrio. Al no ca-
ocurrido fue un accidente que ni siquiera una ins- racterizar el suceso como holocausto y no analizar
pección municipal hubiese podido evitar”.12 La la intencionalidad no criminal de la orden dada y
calificación de “accidente” para este caso no es de su ejecución, este camino conduce fácilmente
adecuada, pero, por otra parte, es innegable que a líneas de pensamiento y acción que terminan en
también los accidentes pueden tener responsables. regresiones, bloqueos o impotencias, como las
ESTAMPIDA HACIA LA CULPABILIDAD que van a continuación.
PERSONALIZADA Y LA VENGANZA
La Justicia es injusta, el crimen clama
Mis enemigos son los culpables venganza
El senador José Manuel Bóveda, en la mis- Equilibrar de algún modo el daño ocasionado
ma sesión del Senado del 17 de agosto de 2004 por los criminales mediante un castigo proporcio-
(momento en el que ya hacía días que se podía te- nal, no es jurídicamente posible. Rompe los ojos la
ner una noción bastante ajustada de la etiología desmesura (o inconmensurabilidad) entre centena-
de las explosiones y el incendio), “defendió la te- res de muertos y damnificados, por un lado y la
sis de que lo ocurrido el 1.o de agosto fue un pena de hasta cinco años de prisión o multa que po-
‘atentado terrorista’ y lo ligó a las masivas mani- dría recaer sobre los principales responsables de
festaciones campesinas que tienen lugar en distin- acuerdo al delito (homicidio culposo, es decir, sin
tos departamentos del país”.13 Aquí, el ansia de intención criminal) tipificado por la fiscal.18
encontrar culpables y de utilizar el desastre para No puede sorprender, entonces, la estam-
culpar a enemigos políticos se muestra en todo su pida hacia el linchamiento: “¡Los vamos a matar,
absurdo; tanto en la negación flagrante de los he- vamos a hacer justicia por mano propia!”, ponía
chos, como en el recurso a una metodología mar- en boca de espectadores indignados el diario Úl-
cadamente inmoral y de fracaso reciente.14 tima Hora.19 Descalificar la acción de la Justicia
es condición para “justificar” la venganza, tan in-
Fue un “crimen masivo” con culpables preci-
sos, que exige justicia justa ella como el acto que pretende equilibrar.20
Fue claro que hubo quienes “cerraron las La venganza, por otra parte, al no ser realizable,
puertas” del supermercado en cuanto se inició el amplifica la impotencia. Se presume la culpabili-
fuego “para evitar que se roben las mercaderí- dad de los acusados y se exigen condiciones de
as”.15 Fue claro que “pudo ser un accidente, pero reclusión más rigurosas; algunos abogados, ante
se trató de un horroroso crimen masivo”, pues presiones, renuncian a defender a los principales
“alguien impartió la criminal orden de que se ci- acusados; con insistencia se exige la renuncia de la
erren las puertas del supermercado” y “no hay fiscal, cuya profesionalidad se pone en duda21 etc.
respuesta alguna que pueda sacarnos la eterna
17 Ibid.
duda de cuántas vidas se hubieran salvado de no 18 Juan Pío Paiva y su hijo Daniel, propietarios del negocio, fueron dete-

haber existido la criminal orden de cerrar las pu- nidos en investigación por “homicidio culposo”, que tiene esas penas.
Algún artículo periodístico se apresuró a decir erróneamente que la
ertas y los portones”.16 pena correspondiente es de hasta 25 años y que “las chicanas judiciales y
La identificación del acto como crimen re- las amenazas a los fiscales que atienden las investigaciones relacionadas
al siniestro ya están a la orden del día, presumiblemente con el fin de
presenta un avance respecto a su clasificación reducirles las posibles penas a ambos poderosos imputados”.
19 Última Hora, 2/ago./04, p. 6.
20 En efecto, la forma de “justicia” que conocemos en las sociedades
12 Ibid.
modernas como linchamiento, no son sólo un crimen: no por casuali-
13 Ibid.
dad se las encuentra en la base de los peores genocidios modernos.
14 Una actitud análoga tuvo Aznar frente a los atentados de Atocha al 21 ABC Color, 5/ago./04, recoge la información sobre renuncias de abo-
endilgarle el fardo a la ETA, acto que pesó decisivamente en su derrota gados y presiones a la fiscal. La prensa en general se hace eco de las
en las elecciones de España. situaciones que indico (y a veces las impulsa). La discusión (con el
15 Ibid., p. 4. contrapunto, de denuncias de maltrato a los acusados etc.) sigue. Los
16 COLMÁN GUTIÉRREZ, 2004. cambios de fiscales continúan seis meses después de los hechos.

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La presunción de culpabilidad de los imputados y inoperancia que reina en el país.”24 La palabra cor-
la presión sobre abogados introducen elementos rupción, que irrumpe acusadora en muchas bocas,
de suma gravedad que afectan las bases éticas de abarca a todo el país en el que reina y que en ella
la Justicia, y entorpecen su funcionamiento inde- se hunde. Se extiende como mancha de aceite que
pendiente. La sensación de insuficiencia del po- desde siempre lo pudre todo y contamina a los
der judicial (abonada por denuncias de corrupci- corruptos, a los corruptores, a los tolerantes, a los
ón e ineficiencia, no necesariamente vinculadas al cobardes, a todos: “los paraguayos nunca fuimos
caso) abre el paso a la descalificación del Derecho capaces de reclamar a nuestras autoridades muni-
y la regresión a formas prejurídicas de justicia; es cipales y gubernamentales mayor control en los
decir, a formas actualmente injustas. mecanismos de seguridad”.25 Las donaciones, dan
ESTAMPIDA HACIA LA CULPABILIDAD lugar a sospechas y denuncias de malversación:
GENERALIZADA Y LA PARÁLISIS “¿Dónde está el dinero que se donó para los tra-
Los victimarios son muchos tamientos y medicamentos caros en general?”, se
“Criminales también los que diseñaron y pregunta una lectora de ABC Color.26 Esas culpas
construyeron el enorme y supuestamente mo- son atribuidas genéricamente a “personas que
derno complejo comercial como una enorme y sólo quieren aprovecharse de la situación y de la
moderna ratonera”, y “los que aprobaron los pla- tragedia”;27 a “quienes nos robaron siempre” y a
nos de construcción haciendo vista gorda a las ir- quienes sólo cabe pedirles “por qué no dejan de
regularidades”, y “los que deben inspeccionar y robar por lo menos una vez”.28
no lo hacen a cambio de dinero”, y “los que si- Estos discursos de la “corrupción” simpli-
guen manejando este país hundido en un mar de fican la cuestión. No deslindan responsabilidades
corrupción y de lucro fácil, a costa de la seguridad sino que las atribuyen difusamente. En una de las
y de la invalorable vida humana”.22 citas, se personifica a la propia corrupción como
El acontecimiento hace surgir una cadena “reinante”; en otra, se habla de “quienes nos ro-
de inmoralidades, en las que no siempre se repara, baron siempre”; en otros casos se alude vagamen-
porque son parte de nuestra cotidianeidad,23 o te a “los políticos”, “las autoridades” etc.29
nos son ocultadas, o son sabidas o sospechadas, El discurso toma particular fuerza de su ca-
pero se las “tolera”. Por eso es importante poner- rácter simple y absoluto que lo hace emplear tér-
las en el tapete para que todos nos vayamos haci- minos como “todos”, “siempre”, “nunca”; pero
endo preguntas cada vez más profundas. La con- choca con dificultades insalvables. Si no puede de-
moción generada por el caso revela la criminalidad terminar quiénes son los corruptos, tampoco pu-
establecida. Es importantísimo insistir en ella. ede determinar quiénes no lo son y menos garan-
Pero también a veces deja espacios para di- tizar que no lleguen a serlo. Entonces, está impo-
luir responsabilidades. sibilitado de proponer alternativas; no puede su-
gerir sacar a los corruptos y poner en su lugar a los
El problema es la corrupción incorruptibles.30 Sólo podría proponer la solución
“Esta tragedia puso a los paraguayos frente simple y absoluta de una célebre fórmula argenti-
a la más cruda de sus realidades: la corrupción e
24 CICIOLLI, 2004.
22 COLMÁN GUTIÉRREZ, 2004. 25 Ibid. (bastardillas acrescidas).
23 ¿Cuántas puertas tiene el iluminadísimo supermercado donde habi- 26 SUÁREZ, 2004.
tualmente compro? Hay 17 cajas, que hay que pasar para salir, pero 27 ACOSTA, 2004.
sólo dos puertas mecánicas de vidrio, una junto a la otra, de entrada y 28 Ibid.
salida. En los pasillos entre las góndolas hay cada vez más exhibidores 29 Quizás el caso límite de este tipo de generalizaciones fue el furcio de
que obstaculizan el paso en las horas pico. Los vidrios irrompibles de la nuestro presidente el Dr. Jorge Batlle cuando, refiriéndose a los argen-
fachada no son accesibles desde dentro: están detrás de una muralla de tinos (o quizás sólo a los políticos argentinos) dijo: “Son todos una
mostradores, macetas, electrodomésticos. Las demás paredes del cajón manga de ladrones del primero al último”. Y tuvo que ir a Buenos
son de cemento y ladrillo. Supongo que en la parte de atrás habrá puer- Aires a pedir disculpas llorando..
tas de emergencia que darán al depósito que debe tener puertas al exte- 30 Sugiero, claro, que esa alternativa, históricamente terminó entro-
rior. No hay señalización de salidas de emergencia.. nando al Terror mismo y guillotinando también al Incorruptible..

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na: “Que se vayan todos”. Pero retrocede ante la sado. Como lo decía un dictador argentino para
radicalidad a que la llevaría la retórica de su propio esquivar su responsabilidad en aberrantes violaci-
discurso. No propone guillotina ni paredón, sólo ones de los derechos humanos: que el que esté li-
eleva a los mismos presuntos corruptos reclamos bre de culpa que tire la primera piedra. El victi-
de “mayor control” o pedidos de que no roben... mario se exime de su culpabilidad, escondiéndose
“por una vez”. Este discurso surgido de la impo- en la conciencia de sus víctimas a las que procura
tencia (“los... nunca fuimos capaces de...”) poten- hacer sus cómplices: el inmolado nunca es ino-
cia la impotencia (“los... debemos ahora ser capa- cente; el sobreviviente siempre es culpable; el vic-
ces de pedir que...”). timario no es peor que ellos.
La gente queda instalada en el lugar de la Para evitar caer en estas confusiones me pa-
impotencia y la petición rece necesario profundizar en la noción de res-
Estas presiones, que exigen conductas mo- ponsabilidad y distinguir entre ser responsable y
rales, son expresión de descontento, y también su- ser culpable. La responsabilidad es la capacidad
gerencia de cambio de actitudes o de personas. que tienen los seres humanos de responder por
Pero no llegan a asumir el principio democrático sus acciones y omisiones, de dar cuenta de ellas,
por excelencia: que el pueblo tenga poder, que ten- de hacerse cargo de las mismas y de sus consecu-
ga el control. Resultan aún menos capaces de pen- encias. También es la capacidad de responder ante
sar las condiciones estructurales que están produ- situaciones dadas. La noción supone la libertad:
ciendo la corrupción de lo humano de que habla- sin ella no sería posible hablar de responsabilidad.
mos más arriba. Así, la indignación y la sensación En la medida en que somos libres, somos respon-
de impotencia de la “gente común” (normalmente sables.
excluida de formas activas de participación demo- Entonces, en una situación como la que es-
crática) se canaliza en pedidos, exigencias o pro- tamos analizando, todos somos responsables en
testas... dirigidas a quienes se cuestiona. De este el sentido de tener que dar cuenta de ella (com-
modo, las manifestaciones de indignación popular prenderla, cuestionarla, pensarla). Digamos que
tienden a legitimar y fortalecer las estructuras de es responsabilidad de todos interrogar el suceso.
poder en el mismo acto en que las cuestionan. En este sentido podría hablarse de asumir nuestra
Sin criterios de discernimiento que permitan preguntabilidad, de asumir nuestra capacidad de
pensar adecuadamente el caso y sin abrir canales re- cuestionar radicalmente cada situación. A su vez,
ales de participación y control, la sensación de im- nuestra responsabilidad ante los hechos, abre la
potencia generalizada se seguirá potenciando a sí oportunidad de interrogarnos a nosotros mis-
misma, aunque estalle con bronca de vez en cuando. mos, de cuestionarnos en qué medida hemos elu-
Los victimarios somos todos; dido nuestra responsabilidad con acciones y omi-
nadie es responsable siones; de indagar por las causas de los aconte-
Cuando la culpabilización se generaliza sin cimientos (incluyendo otras responsabilidades
criterios de discernimiento explícitos,31 se extien- sistémicas y humanas); de preguntarnos qué de-
de hasta alcanzar a todos.32 Entonces, si todos so- bemos hacer en esa circunstancia, para darle res-
mos igualmente culpables, nadie lo es. Nadie está puestas adecuadas. Lo que implica discernir el
en condiciones de acusar y nadie puede ser acu- grado de culpa que a cada quien pueda caberle en
el caso, para reconocerla, para estar dispuesto a
31 El mismo problema suele plantearse cuando se funciona en base a las reparaciones, indemnizaciones o penas que
criterios excesivamente “rigurosos”, de carácter principista o dogmá-
tico. Puede ocurrir que demasiadas cosas sean consideradas mal, y que
toda culpa sea considerada de igual gravedad (por ejemplo, un mal pen- 32 ¿Quién no dio una “coima” para evitar una multa? ¿Quién no tiró
samiento y un genocidio son “pecados” que merecen castigo “eterno” un cigarrillo encendido desde la ventanilla de un automóvil? ¿Quién
según ciertas interpretaciones religiosas). Entonces, cada uno sentirá al no compró objetos de contrabando o robados? ¿Quién no intentó elu-
extremo su propia culpabilidad, resultando limitada su capacidad de dir un impuesto? ¿Quién no se calló la boca (así sea por razones de
pedir cuentas, a la vez que pierde entidad la gravedad de los crímenes. seguridad personal) ante algún delito?

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eventualmente correspondieren y para tomar las ‘accidente’ en el proceso de construcción o dentro


medidas adecuadas, de modo que la situación no de los diez años de construido un edificio, el res-
se reitere en el futuro. ponsable es el técnico que proyectó y dirigió su
La responsabilidad está, pues, ligada estre- construcción”. El arquitecto es “culpable” a me-
chamente al uso de la palabra. Asumir la respon- nos “que demuestre que dio las órdenes correctas
sabilidad ante algo implica pensarlo y decirlo, no para evitar el accidente”. Y no puede alegar “error
callar. Es contradictoria la difundida idea de que si de cálculo”, pues tal error sería prueba de su cul-
se es responsable no se tiene derecho a hablar, pabilidad. “Si de algo debemos de carecer, aquellos
cuando de lo que se trata es, justamente, de res- a los cuales la Ley y la sociedad nos han conferido
ponder. de cierto poder, es de frivolidad a la hora de tomar
No muchos textos resaltan claramente la decisiones en las cuales está en riesgo la vida ajena,
responsabilidad de todos y de cada uno en este la vida de aquellos que confían en nuestros cono-
caso. Sergio Cáceres trabajó especialmente con cimientos y en nuestra seriedad ética”. Sin embar-
sus alumnos este punto. Eso me parece de suma go – observa –, “cuando el que conduce es un
importancia, porque reconocerse responsables es hombre al cual la sociedad o el ‘sistema social’ le
la primera condición para tomar la palabra con ha conferido una gran parte o casi todo el poder”,
seriedad y poder preguntar y cuestionar a fondo. cuando “la diferencia de escala en los efectos hu-
Advertir la propia responsabilidad es, también, el manos, transforma lo absurdo en obsceno, un cri-
modo más directo de darse cuenta de la respon- men en un genocidio imperdonable”, las cosas no
sabilidad sistémica: visualizar que siempre me funcionan así: “los discursos éticos que justifican
callé me hace ver qué cosas me hicieron callar y la impunidad de los que mandan siempre están a
por qué no debo seguir callando. “Autocriticar” la orden del día”.33 Esto es lo que hay que cambiar.
nuestro silencio es requisito indispensable para En suma: entre la concentración de la bron-
romperlo. Descubrir que a uno también le alcan- ca contra los culpables directos y la diseminación
za la criminalidad establecida, no debe hacer creer de la culpabilidad entre todos, se arriesga perder
que uno no puede o no debe hablar. Por el con- la preguntabilidad radical, condición necesaria de
trario, lo bueno sería retomar todos la propia pa- cualquier responsabilidad. Esa preguntabilidad
labra, en el momento mismo en que advertimos que se potencia al asumir concretamente las pro-
nuestros defectos. No la palabra para justificar si- pias responsabilidades (individuales y colectivas),
lencios u omisiones, ni tampoco la palabra para que incluyen: a) la responsabilidad de cuestionar-
excusar el daño causado o eludir las penas corres- se a fondo (no para autodescalificarse sino para
pondientes; sino la palabra para denunciar al sis- garantizar la honestidad y radicalidad de su pre-
tema que hace silenciosos e injustos, que hace guntar); b) la responsabilidad de cuestionar radi-
homicidas y genocidas de comerciantes y emple- cal, humana, filosófica y éticamente al sistema de-
ados, que nos hace a todos acríticos y mudos. Y tectando los puntos en que éste se aparta de la
la palabra para reconocer, pagar y enmendar las orientación hacia una mayor humanidad y se di-
fallas de cada uno. Sin ese discernimiento y asun- rige hacia la deshumanización; c) la reponsabili-
ción de responsabilidades, cada uno seguirá sien- dad de cuestionar a los victimarios directos e in-
do víctima y también victimario en holocaustos directos; d) la responsabilidad de proponer ori-
que se seguirán repitiendo. entaciones para las acciones tendientes a superar
Escribía el arquitecto Jorge Majfud, pocos los problemas de fondo, es decir, a reorientar per-
días antes del incendio de Ycua Bolaños, un texto sonas, instituciones y sistemas hacia un mundo
que me parece particularmente claro respecto a humanizado.
asumir las propias responsabilidades y exigir a
otros la asunción de las suyas. “Cuando ocurre un 33 MAJFUD, 2004.

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ESTAMPIDA HACIA LA SOLIDARIDAD COMO empo, patentiza la unilateralización que produce


RECUPERACIÓN DEL EQUILIBRIO una concepción que sólo deja ver el egoísmo y la
La conmoción provocada mueve inmedia- competencia entre los seres humanos como úni-
tamente solidaridades. Movimiento digno de ser cos motores de acción y pretende ocultar la fuer-
pensado. “La sociedad tuvo que recibir un golpe za poderosa de las motivaciones solidarias y fra-
demasiado duro para hacer aflorar instáneamente ternales.
y a raudales aquello que parecía estaba perdido: la
Por eso no coincido con la apreciación de
solidaridad.”34 “Por sobre la tragedia nos con-
que “al instinto criminal asomado por las ansias
mueven las expresiones de increíble solidaridad
del lucro se opuso el sentimiento humanitario”.36
(...) las muchas historias de heroísmo.”35
No se trata de la oposición entre un instinto (al-
La solidaridad aparece pensada como reac-
go casi animal) y un sentimiento (algo humano):
ción ante la tragedia y como algo extraordinario,
sino entre dos concepciones de sociedad. Y res-
épico, heroico. Sin el disparador de la catástrofe,
catar una concepción solidaria exige ubicar a ésta
parecería perdida; tanto, que cuesta creer que
en el plano de una realidad y una necesidad donde
exista.
lo humano se instale en el nivel de la razón, la re-
El momento de excepción, es ocasión no
flexión y acción ética, y no sólo en el de la sensi-
sólo para pensar la crisis, sino para pensar lo que
bilidad, la instantaneidad y la reacción ocasional
ordinariamente está ocurriendo, aquello en que se
ante catástrofes.
van cociendo las catástrofes que estallan raramen-
te. Por eso me parece importante criticar la con- Tras la oposición entre esas dos actitudes,
ceptuación de la solidaridad como reacción y pen- que guían acción y reacción, es posible ver otro
sar su invisibilización en la realidad cotidiana, que antagonismo más profundo: entre el “ansia de lu-
me parecen, ambas, productos de la misma lógica cro” como elemento constitutivo de una lógica
que estoy criticando. que estructura un sistema deshumanizador y la
En efecto, la solidaridad debe ser pensada solidaridad, como movilizadora de un sistema
en primer lugar como un dato de la realidad: fun- humanizador. La solidaridad no entra en la lógica
cionamos todos juntos; todos y cada uno somos que venimos criticando, es incompatible con ella.
solidarios (somos uno solo) con el destino de la Una lógica que reorientara pensamiento y acción
vida y de la humanidad. Sólo que, habitualmente, “tomando en cuenta” que todos somos uno solo,
no vemos esa realidad; no advertimos que la so- que tenemos un destino común, que “navegamos
lidaridad es una necesidad, y nos pasan desaperci- en el mismo barco”, o que todos “somos herma-
bidos mil actos solidarios de todos los días (desde nos”, es inconciliable con la lógica hegemónica
la silenciosa atención que acerca a diario a tantos que articula todo en torno a la “competencia”, la
activistas voluntarios a los más necesitados, pa- “maximización de ganancias”, las “leyes del mer-
sando por el cuidado solícito de cada madre a sus cado”.
hijos, hasta los mil pequeños favores que nos ha- Es porque nociones como fraternidad y so-
cemos constantemente unos a otros). La solida- lidaridad37 no tienen lugar en la lógica sistémica
ridad es parte sustantiva de nuestra vida, es motor actualmente dominante (y, más en general, por-
constante de nuestra acción cotidiana, no un raro que – en sentido estricto – ella no es ética) que es
fenómeno de reacción. Un hecho extraordinario posible, por ejemplo, que se “ahorre” en seguri-
la patentiza, justamente porque esa realidad y esa dad, que se privilegie las cosas sobre las personas,
necesidad han construido una sensibilidad solida- que “se cierre las puertas”.
ria que se vuelca y se concentra en la atención a la Ningún auxilio de los que llegan para paliar
tragedia, pero no se genera en ella. Y al mismo ti- estas desgracias, ninguna ayuda internacional,

34 AYALA BOIGARÍN, 2004. 36 AYALA BOIGARÍN, 2004.


35 COLMÁN GUTIÉRREZ, 2004. 37 No distingo aquí entre ambas.

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ninguna campaña de emergencia, puede servir pos de laberintos igualmente fatales: uno firme-
como coartada para ocultar o minimizar las res- mente clausurado, de muros y puertas infranque-
ponsabilidades de esa lógica sistémica. Por eso ta- ables; otro de ilimitada apertura, el desierto.39
les limosnas resultan a veces ridículas y hasta in- El espanto es global. Ycua Bolaños no es un
sultantes, y son siempre insuficientes, porque son aislado caso casual. Hace archipiélago con el in-
absolutamente incapaces de disimular las razones cendio de República Cromañón y con otros sini-
de fondo de estos acontecimientos, sus causas estros en todo el mundo cuyas imágenes impac-
ancladas en las profundidades del sistema. Por tantes enumeran con pulcritud los canales de te-
eso son siempre impotentes para restablecer nin- levisión que las banalizan.
gún equilibrio, para lavar ninguna afrenta, para El fuego se emparenta con el agua y lo cer-
consolar ningún dolor. rado con lo abierto cuando un “Tsunami” arrasa
Por eso es tan absurdo intentar equilibrar el Océano Índico y deja centenares de miles de
daños y auxilios como lo es (tal como dije más ar- muertos que no pudieron huir y millones de
riba) procurar balancear daños y castigos. En otras víctimas que no podrán salir, aunque no hay
cambio, la solidaridad, concebida como acabo de espacios limitados ni puertas que cerrar.
proponerlo, lejos de tranquilizar conciencias, per-
Las puertas están cerradas, aunque no haya
mite profundizar la crítica y – a la vez – abrir ca-
puertas. El mundo – no por accidente – es un gran
minos a orientaciones alternativas. La ecolsión
Ycua40 en llamas del que no es posible escapar.
solidaria hace manifiesta una contraposición cua-
Las condiciones éticas del sistema justifican
litativa entre los núcleos centrales de dos mode-
y hasta pretenden hacer moralmente obligatorio
los sistémicos antagónicos: por un lado uno que
el encierro y la condena. “No hay prisión por
propicia el sacrificio personal en aras del bien
deudas” rezan los códigos, pretendiendo superar
común, y por otro lado, otro que propicia el
situaciones ya éticamente condenadas desde el si-
egoismo y la competencia ofreciendo a los demás
glo XII. Pero en Argentina – por poner un ejem-
en holocausto a los ídolos del mercado.
plo notable, y extensible a todos nuestros países
III – los niños quedan confinados a una vida de po-
ESPANTO Y FILOSOFAR
A partir de la reflexión sobre este caso con- breza o a la muerte por hambre; jamás podrán es-
creto, empírico, propongo recuperar la pregunta- capar de esa infame deuda eterna, cuya honra exi-
bilidad para alcanzar una visión (teoría) “global”, ge ese holocausto.41
que permita orientar el pensamiento y la acción: No hay salida. Podrás dejar tu quemante
cambiar la dirección de la mirada hacia la respon- trabajo, pero hacia el desamparo del desempleo
sabilidad sistémica para enmarcar la acción eficaz que anhela ser explotado. Podrás emigar de tu
hacia transformaciones de fondo. Esta orientaci- país hacia otro, del que huyeron tus abuelos. Pero
ón habilitará la construcción del juicio ético de no podrás salir del sistema.
modo que, a partir de esta experiencia sea posible No hay salida técnica: ninguna previsión
el aprendizaje colectivo. podrá evitar otros Ycua Bolaños. No hay salida
A PUERTAS CERRADAS jurídica: las justas condenas a culpables individu-
No habrá nunca una puerta. Estás adentro 39 BORGES, “Historia de los dos reyes y los dos laberintos”, in: Aleph.
y el alcázar abarca el universo 40 “Ykua: pozo, fuente, cisterna, hoyo con agua” (GUASCH, 2001).

y no tiene anverso ni reverso 41 Escuché o leí de un periodista argentino la analogía entre los sucesos

ni externo muro ni secreto centro.38 de Ycua Bolaños y la situación de la deuda externa de Argentina y las
exigencias del FMI. La doctrina de la “deuda infame” fue acuñada por
los juristas norteamericanos en la época de la Independencia para refe-
Borges, en una de esas ficciones que pue- rirse a deudas contraídas con Inglaterra cuya finalidad no era otra que
den servir para pensar la realidad, describe dos ti- mantener su dominio sobre esos Estados independientes. La califica-
ción de infame con toda razón descalifica éticamente los compromisos
contraídos y ese fundamento ético exige formas jurídicas que habiliten
38 BORGES, 1980, p. 25. romper esos lazos.

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ales no evitarán la repetición (tal vez ni siquiera participación popular, de la corrupción, del rela-
servirán para escarmentar a otros, ni para hacer jamiento de las responsabilidades profesionales –
posible sistemas de previsión generalizada en el cuyas corporaciones a veces terminan defendien-
seno del actual sistema, como creo que lo mues- do su mala praxis de los reclamos de sus víctimas.
tra el caso de República Cromañón). No hay sa- Y poner de manifiesto las responsabilidades espe-
lida por sacrificios y acciones heroicas: por valio- cíficas de los “ricos y poderosos”.
sas que éstas sean, no pueden por sí solas estable-
Estamos en condiciones ahora de recuperar
cer una cotidianeidad solidaria que las haga inne-
el lugar del filosofar como una orientación de la
cesarias. Y el suicidio, el homicidio y el
holocausto no son salidas: son el problema. mirada que habilite asumir la responsabilidad de
¿QUÉ ES LO QUE CIERRA LAS PUERTAS? una preguntabilidad a fondo, para advertir la ló-
La única salida posible recorre caminos éti- gica que hace del actual sistema global un encier-
cos. Es decir, vías de construcción de juicios que ro-abierto, sin exterior. Podemos alcanzar así una
funden en razones éticas la necesidad de superar perspectiva crítica en profundidad que pone en
la lógica que rige el actual sistema.42 Así, consi- evidencia la perversión del sentido de límites y
derar este caso como holocausto (y no sólo aperturas en un sistema que pretende perpetuar
como accidente o crimen) permite determinar su dominio de modo ilimitado e incuestionado.
con precisión las responsabilidades concretas a Planteando bien los problemas, quedarán
distintos niveles; establecer sistemas de previsión
preguntas abiertas: ¿Es posible vivir en un siste-
y control con participación popular; recuperar la
ma orientado según la lógica que denunciamos?
preguntabilidad como forma de responsabilidad.
¿A qué costo? ¿Es posible vivir humanamente en
Y también descubrir la responsabilidad sistémica
detrás de nuestra inoperancia, de la dilución de la tal sistema? ¿Qué es lo que hace irrespirable su
interior? ¿No resultará éticamente obligatorio in-
42El planteo de la deuda infame podría considerarse para pensar su tentar salir hacia un cambio de orientación sisté-
posible adecuación a la cuestión de la “deuda externa”, pero también mica? ¿procurar construir relaciones y espacios
podría servir como modelo inspirador para pensar otros aspectos sus-
tanciales al sistema, como el de nuestro caso. capaces de permitir la convivencia humana?

Referências Bibliográficas
ACOSTA, M.“Espacio de los lectores”. ABC Color, Asunción, 4/set./04.
AYALA BOIGARÍN, O.“Avaricia criminal”. Última Hora, Asunción, 3/ago./04
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______.“Historia de los dos reyes y los dos laberintos”. (De BURTON, R.J. The Hand of Midian Revisited, 1789), in: El
Hogar, 16/jun./39. In: Los anales de Buenos Aires, ano I, n.º 5, maio/46. In: Aleph, multiplas edições desde
1952.
CICIOLLI, R. Paraguay: la tragedia del Ycua Bolaños “¡Abran las puertas, por favor!”. La Insignia, Rel-Uita/Uruguay,
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Bolaños.
COLMÁN GUTIÉRREZ, A.“¡Criminales!” Última Hora, Asunción, 2/ago./04.
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FEINMANN, J.P. “El capitalismo de Ycua Bolaños; la condición humana en llamas”. Página 12, Buenos Aires, 10/
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GOSSLING, T. “El precio de la moralidad. Un análisis de personalidad, comportamiento moral y reglas sociales en
términos económicos”. Journal of Business Ethics, v. 45, 2003, p. 121-131.

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GUASCH, A. & ORTIZ, D. Diccionario Castellano-Guaraní; Guaraní-Castellano; sintáctico-fraseológico-ideológico.


13.ª ed. grafía actualizada. Asunción, Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch” (CEPAG), 2001.
LANGON, M. “La responsabilidad ética de los ricos y poderosos”. Comunicación al Séminaire International : a la
recherche d’une économie fraternelle. Rennes, Universidad de Rennes 1, 12 - 14 de diciembre de 2003.
______.“Pobreza humana y educación”.Anthropos, n. 194, Barcelona, 2002, p. 145-150.
MAJFUD, J.“‘Hops!, me equivoqué’ o el reino de la impunidad”. La República, Montevideo, jul./04.
SOLER ROCA, M. El Banco Mundial metido a educador. Montevideo: Universidad de la República, 1998.
SUÁREZ, L.“Espacio de los lectores”. ABC Color, Assunção, 4/set./04.

FONTES CONSULTADAS
Última Hora. Asunción, Paraguay, ago./04.43
ABC Color. Asunción, Paraguay, ago./04.
Google. Materiales accesibles en internet por ese buscador.
Alertas Google:“Ycua Bolaños”.
Neike: <www.neike.com.py>.
Planet internet: <www.pla.net.py>.

Dados do autor
Professor de filosofía na Asociación Filosófica del
Uruguay. Professor de filosofía no Instituto de
Profesores Artigas (IPA/Montevideo).
Doutorando na Paris VIII/França.

Recebimento: 2/mar./05
Aprovado: 3/jun./05

43 Dejo constancia de la generosidad de Última Hora, que permitió consultar y fotocopias su material de archivo. A luta dos universitários, dentro
e fora da universidade. Revista UNE, n. 1, 1968.

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Resenhas & Impressões


Reviews & Impressions
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A Prática Escolar como


Mediação para o Resgate
da Praxis na Cotidianidade
da Escola
SCHOLAR PRACTICE AS A MEDIATION FOR
THE RECOVERY OF THE PRAXIS IN THE
QUOTIDIANITY OF THE SCHOOL

O Institucional, a Organização e a Cultura da Escola


de JOÃO DOS REIS SILVA JUNIOR & CELSO FERRETTI
São Paulo: Xamã • 2004 •150p. • R$ 20,00 • ISBN 857587036X

E
ssa obra, de João dos Reis Silva Junior e Celso Ferretti,
constitui-se numa leitura necessária e instigante para to-
dos aqueles que, como nós – compulsoriamente orien-
tados por uma ideologia –, vivemos, na voz dos autores,
um “momento obscuro em que mais do que nunca é ne-
cessário o resgate da teoria” e da ética para analisar a con- JORGE LUIS
dição humana, hoje um todo fragmentado e precário, CAMMARANO
que faz tomar como verdade o que se sustenta na mera GONZÁLEZ
utilidade e não na história produzida pelo homem como seu sujeito. Universidade de
Trata-se de momento obscuro constituído por práticas formativas cujo Sorocaba (Uniso)
jorge.gonzalez@uniso.br
objetivos e traço central de formação do humano é o individualismo pos-
sessivo. Momento que reduz as possibilidades de entendimento da obje-
tividade social em toda a sua nudez; nudez a ser desvelada à luz do rigor
da teoria que contribua para a transformação estrutural e radical da socie-
dade fundada nas relações entre capital/trabalho assalariado e proprieda-
de privada. Enfim, momento de escuridão trajada de barbárie e travestida
do natural, eterno e insuperável.
Nesse cenário, dá-se a público O Institucional, a Organização e a
Cultura da Escola, que busca o resgate da teoria como condição central
de resgate da práxis, de corte marxiano, para análise da conjuntura atual,
decadente, em que a ética da política confunde-se com ética da economia
política, organizadora de toda relação social fundada no totalitarismo pro-
duzido pela extensão da ordem centrada no mercado, especialmente a re-
lação educativa que possibilita a dialética apropriação/objetivação ineren-
te ao processo de trabalho entendido como práxis originária e criadora.
Essa atividade prática humana envolve, para os autores, entre ou-
tros aspectos, o da formação do indivíduo no âmbito das instituições es-

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colares, monopólio do ordenamento jurídico alienada, em um cotidiano também alienado, na


produzido pelo Estado moderno. Silva Junior e perspectiva de intervir nos processos de formação
Ferretti, nesta obra prefaciada por Newton Du- humana e resistência ao irracionalismo, freqüen-
arte, buscam problematizar e examinar as dimen- temente visto em tempo real por meio das gran-
sões da escola, assumindo como desafio a produ- des corporações televisivas e pela rede mundial de
ção da categoria prática escolar no universo da co- computadores como os inesquecíveis onze de se-
tidianidade. Com base em tal categoria, trata-se tembro na capital do império, a invasão de Bagdá,
de adensar o campo investigativo constituído pe- o gás sarin no Japão e as bombas em Londres.
las mudanças no capitalismo e nas suas relações O itinerário, aqui resumidamente assinala-
com as políticas e reformas educacionais promo- do, tem, nesta obra, um dos seus mais relevantes
vidas pelo Estado gerencial, desenhado pelo en- desdobramentos: aprofundar o referencial adota-
tão ministro Bresser Pereira a partir de 1995-96; do nesse percurso, centrado em Marx, Gramsci,
trata-se, enfim, de buscar discernir as mudanças Lukács, Heller e Newton Duarte. Esse referen-
históricas e o subjacente impacto das reformas cial reafirma uma postura alinhada com a centra-
no âmbito do cotidiano escolar. lidade do trabalho como dimensão ontológica do
A busca de possíveis respostas para o desa- ser social; com a busca radical da historicidade
fio em tela dá-se, para os autores, pela exposição das práticas formativas do indivíduo, especifica-
do acúmulo de suas práticas investigativas, cen- mente as realizadas nos espaços da instituição es-
tradas no entendimento das relações trabalho/ colar e na tensão entre a possibilidade de forma-
educação no campo da economia política da edu- ção do indivíduo egoísta passional e a de um
cação e das possibilidades históricas de formação indivíduo que considera o gênero humano e sua
humana, sob o impacto de diferentes formas e liberdade como valores centrais da existência.
temporalidades postas pelo capital em sua dinâ- Derivadas dessas inquietações reveladoras
mica predominantemente marcada pela subordi- da práxis de Silva Junior e Ferretti, torna-se ins-
nação ou destruição da classe trabalhadora e de tigante a procura – assentada nas formulações de
suas práticas transformadoras e formas de resis- Lukács e Heller sobre a prática social – da prática
tência. escolar entendida como categoria organizadora e
Dessa perspectiva, uma leitura atenta da base das instituições escolares. Nesse sentido,
primeira parte desta obra ajuda a entender esse iti- pode-se afirmar que se está diante de uma contri-
nerário demarcado por um amplo processo de buição teórico-metodológica que transcende o
pesquisa: em empresas do setor metal-mecânico; caráter aproximativo da categoria prática escolar,
em empresas do setor de serviços que operam aludido por Silva Junior e Ferretti. Essa transcen-
mudanças em sua base de produção; das media- dência adquire contornos nítidos conforme o lei-
ções entre as transformações produtivas em curso tor se debata ou não com a densidade das supos-
e o ensino médio; das políticas educacionais que tas proposições, concepções e perspectivas de
orientam as mudanças no ensino superior; dos análise apresentadas.
processos de mercantilização da vida social em O acúmulo de práticas investigativas mos-
todas suas feições, com presença crescente no tra, segundo os autores, a adoção do trabalho, da
contexto de expansão e privatização do ensino prática social e da cotidianidade como constituti-
em todos seus níveis; no âmbito da pós-gradua- vos do universo categorial central para a compre-
ção em educação, produzindo um campo de aná- ensão do processo de realização das reformas no
lise referenciado numa abordagem teórico-meto- plano das políticas educacionais.
dológica que cria a potência da superação do ce- Esse processo compõe-se de múltiplas con-
ticismo epistemológico predominante no meio dições, dentre as quais os autores destacam: as re-
acadêmico; da instituição educacional como locus formas institucionais (Estado e educação); a
privilegiado da observação e da crítica à prática privatização das empresas estatais; as novas for-

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mas históricas que articulam o público e o priva- nal da escola possibilitaria, na compreensão de
do; a empregabilidade e a competência como su- Silva Junior e Ferretti, o exame das contradições
postos para a adaptação do indivíduo ao mercado sociais e das diferentes temporalidades históricas
de trabalho em permanente mudança; a contra- presentes no processo de apropriação e objetiva-
dição entre o acesso e a permanência no ensino ção materializadas nas práticas escolares.
médio e superior; a mudança das políticas públi- A forma histórica escolar condensa múlti-
cas de demanda social para as políticas de oferta; plas dimensões, dentre as quais são destacadas: o
as políticas de distribuição de renda e o novo pac- currículo, o projeto pedagógico, a organização do
to social entre antagônicos exigido pelas transfor- trabalho educativo, as propostas de gestão, as
mações gerais do capitalismo. metodologias de ensino etc.
Essa complexa trama, constituinte e cons- O debate sobre cultura escolar e organiza-
tituída de diferentes, simultâneas e contraditórias ção escolar aprofunda-se e estende-se com a
temporalidades históricas, circunscreve-se à pos- interlocução estabelecida por Silva Junior e Fer-
sibilidade de examinar criticamente as mediações retti com Vincent, Viñao Frago, Beltrán Llavador,
entre o cotidiano escolar, as práticas escolares e as San Martin Alonso e Ball. Nesse debate eviden-
reformas e políticas educacionais. Em tal proces- ciam-se concepções desses autores para aferir
so é produzida a cultura escolar, entendida por dois traços básicos de tal vertente teórica: (a) a le-
Silva Junior e Ferretti como expressão historica- gitimação das mudanças na escola em consonân-
mente específica das instituições escolares e me- cia com as transformações na base produtiva do
diada pela forma mais ampla como a vida humana capitalismo, mediada pela lógica de adaptação do
é gerada. indivíduo à sociedade em curso; e (b) a compre-
Se a busca pela compreensão do impacto ensão dos conflitos sociais como sendo de natu-
das reformas e das políticas educacionais nas pes- reza multicultural, ora desconsiderando as espe-
quisas antecipa a importância da escolha da cul- cificidades e as múltiplas determinações de cada
tura escolar e assinala que a centralidade da prá- instituição escolar, ora confinando a escola aos
tica escolar encontra-se no indissociável binômio espaços da micropolítica numa concepção que,
apropriação/objetivação, os autores consideram embora reconhecendo os conflitos, desconside-
imprescindível incursionar no debate pertinente à raria a necessidade de entendê-los com base em
natureza institucional da escola e sua especifici- sua historicidade. Para Silva Junior e Ferretti, os
dade. Esse problema mostra-se intrínseco ao da referidos autores relevam a especificidade da ins-
natureza e especificidade do universo de institui- tituição escolar, tentando homogeneizar seus
ções historicamente produzidas como expressão principais aspectos e tendem a esvaziar a relevân-
dos conflitos e contradições dos sujeitos sociais cia da história no engendramento de conflitos e
fundamentais da formação social capitalista. Nes- contradições subjacentes à instituição escolar
sa perspectiva, Silva Junior e Ferretti recorrem às como uma das mediações da reprodução social e
proposições de John Locke. da produção de suas contradições nesse processo.
Eles buscam demarcar, com o aporte teóri- Discernir a especificidade da instituição es-
co de Locke, a compreensão da gênese e deriva- colar e a relevância de sua materialidade, histori-
ções do poder político que têm, no Estado, sua camente produzida, reafirma, na análise de Silva
instituição maior, da qual emanam todas as outras Junior e Ferretti, a necessidade de vasculhar esse
instituições. O objeto de Locke, pertinente à campo investigativo, buscando compreender, em
emergência do universo de instituições, auxilia, sua especificidade, a prática escolar como catego-
para os autores, no entendimento das relações ria central, derivada da prática social, e examinar
entre público e privado e, principalmente, no en- a historicidade dessa instituição como expressão
tendimento da natureza institucional da escola na dos processos de apropriação e objetivação dos
sociedade moderna. Analisar a natureza institucio- saberes socialmente produzidos. Assim, a análise

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dos autores concentra seus esforços na elucida- Por outro lado, a formação ética e cultural
ção das relações constitutivas da categoria prática do indivíduo, os valores em mudança do seu es-
escolar, retomando o que anteriormente antecipa- tar-sendo e do seu vir-a-ser; a afirmação do indiví-
ram: a categoria prática escolar tem como centra- duo e a negação de sua afirmação por meio da
lidade o binômio indissociável apropriação/obje- apropriação privada da riqueza socialmente pro-
tivação. duzida geram nova categoria fundamental para a
Os processos constitutivos da categoria centralidade da prática escolar. Essa categoria é,
prática escolar são a prática social, a reprodução para Silva Junior e Ferretti, a alternativa. É indi-
social e a produção de valores de uso, realizada cativa de escolhas entre a possibilidade do vir-a-
por meio do trabalho entendido como categoria ser – competente, cognitivamente hábil, empre-
ontológica central. gável, consumidor de direitos e único responsável
A concepção de trabalho, com referência pelo acesso e permanência na instituição escolar –
na obra de Lukács, como modelo para toda prá- e o vir-a-ser que se apropria da filosofia, da ciên-
tica social, subsidia a compreensão da reprodução cia, da arte, da moral e da política na perspectiva,
social e da produção de suas contradições, para reafirme-se, da emancipação humana.
além do imediato; de sua heterogeneidade e dos Entretanto, o aporte desta obra não se limi-
processos articulados pelo Capital que buscam ta à produção e potencialização da categoria prá-
naturalizá-la, reduzindo-a ao mundo da atividade tica escolar. Coerentes com sua proposta que pos-
prática e utilitária; ocultando, assim, seu movi- tula a impossibilidade de dissociar gnosiologia de
mento historicamente contraditório. A finalidade ontologia, Silva Junior e Ferretti nos oferecem
posta pelo trabalho humano e mediada pelo ser uma análise sobre o estudo realizado acerca das
na consciência do indivíduo – com base no co- práticas escolares de escolas brasileiras. Esse es-
nhecimento e condição humana socialmente acu- tudo destaca o legado histórico do institucional,
mulados – é dimensão indissociável dos proces- da organização e da cultura escolar, permeado
sos de apropriação/objetivação inerentes à sua pelo patrimonialismo, a modernização burocráti-
formação. ca e a flexibilização. Para isso, os autores recor-
Com base nessas observações, Silva Junior rem a Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holan-
e Ferretti postulam que a escola tem como finali- da, Celso Furtado e Florestan Fernandes, na con-
dade, historicamente posta, a formação do indiví- dição de intérpretes significativos da formação
duo. Suas práticas formativas, integradas na prá- histórica da sociedade brasileira. Articulam a
tica escolar, constituem um espaço de contradi- contribuição desses pensadores com a de pesqui-
ção e mediação entre o cotidiano escolar e as ati- sas em educação cuja temática circunscreve-se à
vidades das esferas não cotidianas. Defronta-se, instituição escolar. Aqui marcam presença as pes-
contraditoriamente, nesse contexto, com outra quisas de Luiz Antonio Cunha, sobre a história
contradição: a possibilidade de formação do indi- do ensino profissionalizante no Brasil; a história
víduo em-si, alienado das alternativas que poten- da Universidade Federal de São Carlos, de Valde-
cializam sua formação para-si, na perspectiva da mar Sguissardi; a história da Universidade Meto-
emancipação humana. Portanto, nesse processo, dista de Piracicaba (UNIMEP), do próprio Silva
os eixos constitutivos da escola – o institucional, Junior; e o trabalho investigativo de Luiz Carlos
a organização e a cultura – fomentam a tensão da Barreira, que estuda, na região de Sorocaba, as
formação humana na perspectiva de manutenção mediações entre periodismo, formação da classe
das relações sociais de exploração econômica e operária e educação no Brasil, pesquisa desenvol-
dominação política, ou na perspectiva de supera- vida na Universidade de Sorocaba (Uniso).
ção e transformação radical da materialidade que As contribuições das pesquisas elencadas
sustenta a coisificação e a mercantilização da vida assinalam, segundo Silva Junior e Ferretti, a espe-
em sociedade. cificidade de cada instituição escolar, a cultura es-

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colar produzida por meio de apropriações e a alteração das circunstâncias da vida em socieda-
objetivações anteriores que potencializam novas de e dos processos formativos criados nos espa-
apropriações e objetivações produzidas por meio ços escolares tem forte influência nas práticas e
das práticas escolares, reafirmando que estas con- nas possibilidades produzidas e reproduzidas pe-
densam diferentes, simultâneas e contraditórias los seres sociais num tempo e num espaço essen-
temporalidades históricas, nesse contexto de pro- cialmente históricos. Ao educador, ao ser huma-
dução da vida humana, no qual o fetichismo da no que busca transformar sua realidade e, ao
mercadoria constitui-se em matriz de todas as transformá-la, modificar a prática social, cabe, en-
culturas específicas. tre tantos, um desafio delineado a partir da opção
E concluem: ética, ideológica, política e pedagógica, de reco-
nhecer que deve ser formado, mas de discernir
No âmbito da instituição escolar, busca-se produzir
as normas para o horizonte de possibilidades esco- com qual dos sujeitos fundamentais para a pro-
lar, desconsiderando a cultura produzida pelos pro- dução e reprodução da sociedade capitalista pre-
cessos históricos de apropriação e objetivação. Por tende se humanizar. Isto é, numa sociedade de
aí, pensamos ser possível, de um lado, estudarmos classes, qual opção de processo formativo que o
as reformas educacionais e a produção do pacto so- educador incorpora o põe em tensão e se efetiva
cial em construção na instituição escolar e, de ou- como referencial das dimensões ontológicas do
tro, produzir, por meio da pesquisa, maior precisão seu ser indivíduo-social? Em outras palavras, o
e especificidade para a categoria prática escolar com educador busca a criação de alternativas que rea-
base nas categorias prática social, tomada de
firmam a produção de relações de dominação e
Lukács, e de cotidianidade, tomada de Heller. Nes-
se movimento, será possível contribuir para fazer a
alienação humana ou assume como alternativa
crítica àqueles que nos querem impor estes eternos mostrar as contradições das práticas centradas na
presentes da miséria humana e da miséria da teoria. produção de relações que criam potência de
Mais do que nunca, pois, é necessário o resgate do emancipação humana?
humano, da teoria e da prática referenciadas na Pondera-se que a busca de um possível en-
realidade contraditória, por meio da potência que tendimento destes interrogantes encontra-se na
se encontra em cada prática humana e, para nós, investigação e reflexão sobre a formação humana
educadores, a potência contida na prática escolar.
aqui focada na contribuição de João dos Reis Silva
(p.145, grifos acrescidos)
Junior e Celso Ferretti sobre a prática escolar e
Frente a esse desafio, recordemos a terceira sobre o trabalho como expressões históricas, que
tese sobre Feuerbach, de Marx: A doutrina mate- se constituem em fundamentos da ontologia do
rialista sobre a alteração das circunstâncias e da ser social; e no cotidiano escolar entendido como
educação esquece que as circunstâncias são altera- um espaço de mediação entre os processos de
das pelos homens e que o próprio educador deve ser produção e apropriação de conhecimentos e as
educado. Diante dessa assertiva, considera-se que práticas formativas de seus sujeitos fundamentais.

Dados do autor
Graduado em ciências sociais e
políticas pela (FESP/SP), mestre (UNIMEP/SP) e
doutor em educação (Unicamp).

Recebimento 14/mar./05
Aprovado 29/abr./05

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


EDITORIAL NORMS
PRINCÍPIOS GERAIS
1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas
nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do espaço de cada edi-
ção a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apresentando os artigos temáti-
cos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunicações”, para textos curtos e fora
dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e “Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas e
comentários em geral.
2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.
Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.
3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s)
autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Científico-Editorial e por processo anônimo de
avaliação por pares (blind peer review), com consultores não remunerados, especialmente
convidados, cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
• cumprimento das presentes Normas para Publicação.
5. Encaminhamento para SUBMISSÃO DE ARTIGO à Comissão Científico-Editorial da IMPULSO: (a)
três cópias impressas do artigo, acompanhadas de arquivo eletrônico gravado em disquete, devida-
mente padronizados conforme estas Normas, constando de uma delas os dados completos do(s)
autor(es) e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação); (b) fornecer também bre-
víssimo currículo do(s) autor(es); (c) e ofício do qual conste:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, en-
dereço para correspondência, telefone fax e e-mail e uma cópia do texto gravada em disquete.
6. ETAPAS de trâmite dos artigos: (a) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela são
designados como pareceristas, estes dois últimos por processo blind peer review; (b) recebidos de
volta tais pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avalia-
ção final: “indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (c) em carta ao(s)
autor(es), são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceris-
tas; (d) se indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Edi-
tora: os trechos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será
entregue em papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado
pelos pareceristas; (e) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus res-
pectivos arquivos eletrônicos em suas extensões originais; (f) antes da impressão, o(s) autor(es)
recebe(m) versão final do texto para análise.

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7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.


8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções grama-
ticais, adequações estilísticas e editoriais).
9. Não há remuneração pelos trabalhos. Por artigo, o(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da
revista e 10 (dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com
desconto de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a
preço de custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA
10. Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente
o conteúdo do texto;
• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado
ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e má-
ximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar os
entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro co-
mentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano; total
de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem resenha-
dos, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição
na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no cor-
po do texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),
após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME
do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro
centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior
por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicando
o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3 Subseqüentes

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-
cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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citações da mesma obra devem ser referenciadas abreviadamente, utilizando-se expressões latinas.4
Se, repetido o autor, mas com outra obra, utiliza-se “idem”.5
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publi-
cação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no fim
do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por
“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número da
edição. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.:
ROMANO, G.“Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996.
EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ª ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas:
Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.
• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPANHÓIS.
Ex.: MACHADO DE ASSIS, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.;
RODRÍGUEZ LARA, J.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, introduzir
a nova obra da seguinte forma:
______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:
Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.
• AUTOR CITADO EM SUA OBRA DE OUTRO AUTOR: APUD (citado por)
Ex.: SOUZA apud MARTINS, 1990, p. 215

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data.Ex.:
REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• NO TODO:
TÍTULO DO PERIÓDICO. Local de Publicação (cidade): Editora, volume, número, mês e ano
VEJA. São Paulo: Editora Abril, v. 31, n. 1, jan. 1998.
• ARTIGOS DE REVISTA:
AUTOR DO ARTIGO.6 “Título do artigo”. Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do
volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês** e ano.
ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”.Revista Brasileira de Saúde, São
Paulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.
• ARTIGOS DE JORNAL:
AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do
caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.

4 Ibid., p. 102.
5 Idem, 2000, p. 117.
6 Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.
** Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo
precede a data.

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OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”.O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de
esporte, p. 7.

DISSERTAÇÕES E TESES
AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de
concentração). Instituição, local.
RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-
dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:
• sobrenome e nome do autor;
• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);
• data de acesso.
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso:
10/dez./1998.
Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso:
6/dez./1998.
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999. Verbete “Abolicionistas”. CD-rom.
Artigo de origem eletrônica
CRUZ, U.B. “The Cranberries: discography”. The Cranberries: images. Fev./1997. <http://www.ufpel.tche.br/~
bira/cranber/cranb_04.html>. Acesso: 12/jul./1997.
OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acesso:
6/dez./1998
Livro de origem impressa
LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/
tolerati.htm>.
Livro de origem eletrônica
GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~guay/
Paradigm/McLuhan.html>. Acesso: 10/dez./1998.
KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. <http://www.english.upenn.edu/~afilreis/50s/kristol-
endofi.html>. Acesso: 7/ago./1998.
Verbete
ZIEGER, H.E. “Aldehyde”. The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks.
Boston: Grolier, 1992.
“Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica. 29/mar./1997. http://www.
eb.com:180.
E-mail
BARTSCH, R. <abnt@abnt.org.br> “Normas técnicas ABNT - Internet”. 13/nov./1998. Comunicação pessoal.

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impulso40.book Page 160 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)


ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso: 2/set./1997.
Lista de discussão
SEABROOK, R.H.C. <seabrook@clark.net> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.
village.virginia.edu>. Acesso: 22/jan./1994.
FTP (File Transfer Protocol)
BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/
pub/asb/papers/deviance-chi-94>. Acesso: 4/dez./1994.
Telnet
GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet
lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso: 5/dez./1994.
Newsgroup (Usenet)
SLADE, R. <res@maths.bath.ac.uk> “UNIX Made Easy”. 26/mar./1996. <alt.books.reviews>. Acesso: 31/mar./1996.
11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comis-
são Científico-Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.
12. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a
garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas.
(a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as
dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto;
não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRAFIAS: com
bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”; (c) GRÁFICOS
e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de indicação para publicação, essas ilus-
trações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de seus programas
originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras, gráficos e mapas,
caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As conven-
ções precisam aparecer em sua área interna.

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