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SÆCULUM

REVISTA DE HISTÓRIA

N° 34 - Jan./Jun. 2016
ISSN 0104-8929
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitora: Margareth de Fátima Formiga Melo Diniz
Vice-Reitor: Eduardo Ramalho Rabenhorst

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Pró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


Diretora: Mônica Nóbrega
Vice Diretor: Rodrigo Freire de Carvalho e Silva

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Monique Guimarães Cittadino
Sub-Chefe: Mozart Vergetti de Menezes

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Coordenador: Elio Chaves Flores
Vice Coordenadora: Solange Pereira da Rocha

COMISSÃO EDITORIAL - SÆCULUM


Ângelo Emílio da Silva Pessoa
Ariane Norma de Menezes Sá
Carla Mary S. Oliveira (presidente)
Cláudia Engler Cury
Damião de Lima
Lúcio Flávio Sá Peixoto de Vasconcelos
Paulo Roberto de Azevedo Maia
Priscilla Gontijo Leite
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano
Tiago Bernardon de Oliveira
SÆCULUM
REVISTA DE HISTÓRIA

Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Campus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V
Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - Brasil
Fone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <saeculum@cchla.ufpb.br>
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Copyright © 1995-2016 - DH/ PPGH/ UFPB
ISSN 0104-8929
e-ISSN 2317-6725

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira.

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;


desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;
Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

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É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.


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e no DOAJ - Directory of Open Access Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B1 na área de História pela Capes

CONSELHO EDITORIAL
Alberto da Silva (Univ. Sorbonne - Paris IV) José Miguel Arias Neto (UEL)
Alômia Abrantes Silva (UEPB) Lina Maria Brandão de Aras (UFBA)
André Cabral Honor (UnB) Luiz Geraldo Silva (UFPR)
Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG) Maria de Deus Beites Manso (Univ. Évora)
Antônio Paulo Resende (UFPE) Pedro Paulo Funari (UNICAMP)
Carlos Fico (UFRJ) Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN) Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)
Gabriel Aladrén (USP) Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)
Gisafran Mota Jucá (UECE) Tania Bessone (UERJ)
Itacir Marques da Luz (SEC-PE) Thereza Baumann (MN-UFRJ)
Itamar Freitas (UnB) Valdemir Zamparoni (UFBA)
Jorge Ferreira (UFF)

MISSÃO DA REVISTA
Sæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e,
a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da
mesma universidade. Sua frequência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e
debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo
espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 21, n. 34 (2016).


- João Pessoa: Departamento de História/ Programa
de Pós-Graduação em História/ UFPB, jan./ jun. 2016.

ISSN 0104-8929

Semestral

272 p.

BC/UFPB CDU 93 (05)


ISSN 0104-8929 / eISSN 2317-6725
João Pessoa - PB, n. 34, jan./ jun. 2016

Sumário

Editorial .......................................................................................................... 7

ARTIGOS

Jean Gerson e a vida contemplativa para as mulheres laicas (século XV) .... 11
Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida (UNESP – Franca)

Minorias religiosas no Império Português: o caso dos muçulmanos


mapilas do Malabar (1498-1656) ................................................................ 27
Joseph Abraham Levi (The George Washington University – EUA)

Câmaras e colonização: questões historiográficas e um estudo de caso ......... 45


Thiago Alves Dias (USP)

“Desasocego e inquietação” na capitania do Siará Grande:


o conflito entre conquistadores e governança local pela posse
de terras e lugares de poder (1699-1748) ...................................................... 65
Rafael Ricarte da Silva (UFC)

As sibilas e a pintura de falsa arquitetura da Capela de Nosso


Senhor do Bonfim: singularidade persuasória na Diamantina
do século XVIII ............................................................................................ 87
Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani (UFVJM)

As academias literárias e a possibilidade de produção do


conhecimento autônomo em território colonial (Bahia, século XVIII) ............ 105
Eduardo José Santos Borges (UNEB – Conceição do Coité)

Vapores e escravos no Penedo, Alagoas, década de 1850 .............................. 123


Luana Teixeira

Visões da República brasileira em revistas ilustradas


europeias, 1889-1890 ................................................................................ 143
Arthur Valle (UFRRJ)

Viagens no tempo: memórias do escrivão José Joaquim do


Carmo Gama sobre uma estação de cura .................................................... 163
Marina Haizenreder Ertzogue (UFT)

Igreja e Estado, casamento e família (Belém, 1916-1940) ........................... 179


Ipojucan Dias Campos (UFPA)

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 5


Pedro Rodrigues Martins, um apaixonado pelo sigma:
o percurso de um integralista paranaense (1935) ........................................ 195
Luiz Gustavo de Oliveira (UEM)

A trajetória política e intelectual de Gorbachev: relações internacionais ..... 213


Moisés Wagner Franciscon (UFPR)

A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014): o permanente


legado autoritário em questão .................................................................... 241
Dmitri Felix Nascimento (Universidade de Lisboa – Portugal)

RESENHAS

Un recorrido por la historia de la América Precolombina:


una reseña de homenaje y despedida ......................................................... 259
Horacio Miguel Hernán Zapata (Universidad Nacional de Rosario – Argentina)

Outras palavras: sobre manuais e historiografias ....................................... 267


Wilton Carlos Lima da Silva (UNESP – Assis)

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6 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Editorial

Apresentamos ao leitor mais uma edição da Sæculum, desta feita com artigos
livres, dentro da nova proposta iniciada quando de seu aniversário de 20 anos
em 2015. Nesse sentido, este novo formato, alternando números temáticos e de
artigos livres, demonstra a pluralidade de pesquisas desenvolvidas atualmente
no campo da História, tanto no Brasil como no exterior. É possível afirmar isto a
partir, justamente, do montante de submissões recebidas para a presente edição,
que aproximou-se de quarenta artigos, dentre os quais, a partir do processo de
avaliação cega por pares, foram selecionados os treze artigos e duas resenhas que
compõem este número.
Para abrir o n. 34 contamos com o artigo de Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida,
doutoranda da UNESP – Franca, tratando da visão de Jean Gerson, chanceler
da Universidade de Paris no século XV, sobre a vida contemplativa feminina. Em
seguida, um interessante artigo do prof. Joseph Abraham Levi, da The George
Washington University, sobre os muçulmanos mapilas nas fronteiras do Império
português, no Malabar, entre fins do século XV e meados do século XVII. Thiago
Alves Dias, doutorando da USP, analisa as especificidades da formação da Câmara
Municipal de Natal, Capitania do Rio Grande do Norte, e da atuação de seus
oficiais, entre os séculos XVI e XVIII.
Ainda abordando o período colonial na América Portuguesa, Rafael Ricarte da
Silva, doutorando da UFC, apresenta os conflitos entre conquistadores, agentes da
governança e populações locais na Capitania do Ceará durante a primeira metade
do século XVIII. A profa Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani, da UFVJM,
mostra as implicações simbólicas das representações de sibilas existentes em uma
das capelas de Diamantina (MG), datadas da segunda metade do século XVIII.
Já o prof. Eduardo José Santos Borges, da UNEB – Conceição do Coité, trata de
uma elite econômica que também foi política e letrada na Bahia do século XVIII,
por meio do estudo das academias literárias locais e a produção do conhecimento
autônomo na colônia.
Luana Teixeira, recém-doutora pela UFPE, aborda o tráfico interprovincial
de escravos originado na localidade de Penedo durante a década de 1850. O
prof. Arthur Valle, da UFFRJ, por sua vez, traz uma interessante análise acerca
das imagens sobre o advento da República no Brasil, publicadas em periódicos
estrangeiros em 1889 e 1890. A profa Marina Haizenreder Ertzogue, da UFT,
apresenta uma sensível análise sobre um personagem comum de fins do século
XIX, o escrivão mineiro José Joaquim de Carmo Gama, e suas impressões de
viagem na estação de cura de Poços de Caldas em 1894.
O prof. Ipojucan Dias Campos, da UFPA, aborda as celeumas em torno do
Código Civil, entre 1916 e 1940, ocorridas entre a Igreja e o Estado na cidade de
Belém. Luiz Gustavo de Oliveira, doutorando na UEM, apresenta a trajetória do
integralista paranaense Pedro Rodrigues Martins por meio do periódico A Razão,
editado em Curitiba.
SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 7
Tratando de temas mais recentes, Moisés Wagner Franciscon, doutorando na
UFPR, apresenta a trajetória política e intelectual de Gorbachev e as relações
internacionais da URSS a partir da abertura da Perestroika em finais da década
de 1980. Por sua vez, Dmitri Felix Nascimento, doutorando na Universidade de
Lisboa, analisa o legado autoritário do golpe civil-militar de 1964 que os trabalhos
da Comissão Nacional da Verdade, entre 2012 e 2014, trouxeram à tona por meio
do acesso não só a documentos mas também dos depoimentos daqueles atingidos
pela perseguição política nos anos da ditadura.
Fechando esta edição temos duas resenhas: uma da autoria de Horacio Miguel
Hernán Zapata, doutorando da Universidad Nacional de Rosario, sobre uma obra
do conhecido pesquisador argentino Raúl Mandrini, especialista em América pré-
colombiana, falecido ao final de 2015; e outra, escrita pelo prof. Wilton Carlos
Lima da Silva, da UNESP – Assis, tratando do manual Comprender el pasado: una
historia de la escritura y el pensamiento histórico, publicado na Espanha em 2013
e que tem entre seus autores Peter Burke.
Vê-se, assim, que esta edição da Sæculum só reafirma a diversidade característica
do universo de Clio, cada vez mais plural, instigante e crítico.
Boa leitura!

A Comissão Editorial.

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ARTIGOS
JEAN GERSON E A VIDA CONTEMPLATIVA
PARA AS MULHERES LAICAS
(SÉCULO XV)
Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida1

Alguns poderão espantar-se porque eu quis escrever em francês, e mais


às mulheres do que aos homens, uma matéria tão alta como é falar
da vida contemplativa, e que essa não é matéria que convenha aos
simples iletrados. A isso eu respondo que essa matéria já foi tratada em
latim em diversos livros e tratados, de santos doutores como de São
Gregório em suas Moralidades, de São Bernardo em seus Cânticos, de
Ricardo de São Victor e de muitos outros. Assim, os clérigos que sabem
o latim podem recorrer a tais livros. Mas, ao contrário, é para as pessoas
simples e para minhas irmãs que eu quis escrever sobre esta vida e este
estado [...]2

Com essas palavras, transcritas no ano de 1400, o então ilustre teólogo e


chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (1363-1429), iniciou seu texto
La Montaigne de Contemplation prescrevendo, aos laicos, em língua vernácula,
o modo de vida contemplativo. O tema da contemplação era até então reservado
aos clérigos de alta instrução e considerado digno apenas de ser tratado na língua
latina; designava a união da alma com Deus, o êxtase místico alcançado por poucos
virtuosos e santos, bem como a forma de vida dedicada à busca desse estado
que, no mundo monástico, deveria ser conduzido por uma série de exercícios
fundados numa disciplina ascética e na exegese bíblica, a lectio divina, com as
etapas da leitura, da meditação e da oração3. Por isso, Jean Gerson já considerava,
nas linhas acima, as reações de espanto que sua iniciativa produziria entre os
religiosos e os teólogos da universidade – muitos destes, de fato, o reprovariam.
Tratar da contemplação em língua vernácula implicava em oferecer aos simples
um conhecimento circunscrito ao universo clerical e demandava traduzir para a
linguagem dos leigos um assunto “elevado” e complexo. Iniciativas como essa,
por parte de letrados religiosos, já estavam sendo tomadas em outras regiões e em
outras línguas, Eckhardt, Tauler e Suso já falavam da contemplação em alemão;
Ruysbroeck, o faria em flamengo; Walter Hilton e o texto anônimo The Cloude of
Unknowing, em inglês4. Diante das possíveis críticas dentro da Universidade, cabia

1
Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de
Franca. Bolsista CNPq. E-Mail: <lgaalmeida@yahoo.com.br>.
2
GERSON, Jean. “La Montaigne de Contemplation”. In: __________. Initiation à la vie mystique.
Prefácio e apresentação por Pierre Pascal. Paris: Gallimard, 1943. Todos os trechos da bibliografia
primária foram, por mim, traduzidos livremente do francês.
3
BAIER, Karl. “Meditation and contemplation in High to Late Medieval Europe”. In: FRANCO, Eli &
EIGNER, Dagmar (orgs.). Yogic perception, meditation and altered states of consciousness. Viena:
Austrian Academy of Sciences Press, 2009, p. 327. HUGO de São Victor. Didascálicon da arte de
ler. Introdução e tradução de Antonio Marchtonni. Petrópolis: Vozes, 2001. CARRUTHERS, Mary.
Le livre de la mémoire: la mémoire dans la culture médiévale. Paris: Macula, 2002, p. 70-71.
4
FANNING, Steven. Mystics of the Christian tradition. Londres & Nova York: Routledge, 2001, p.
107-108.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 11


ao chanceler justificar o empreendimento que abriria o caminho da contemplação
aos simples, a saber, aqueles que desconheciam o latim e que não eram clérigos,
e não somente aos simples de modo genérico, mas às mulheres simples, que ele
indicava como alvo privilegiado de seus escritos em vernáculo compostos no limiar
do século XV.
Na Montaigne de Contemplation, Gerson, de modo didático, visava iniciar
seus leitores leigos nos princípios básicos da contemplação, que definiu como uma
“arte do amor”5. Tal definição baseada no amor amparava-se numa releitura dos
textos do Pseudo-Dionísio, alvos de uma significativa retomada nos séculos XIV
e XV6, e que privilegiavam o afeto na relação com Deus. O termo contemplação
equivalia à expressão “teologia mística” – esta era menos utilizada pelos escritores
medievais em detrimento daquela; “teologia mística” é o termo empregado por
Dionísio e também por Gerson eu seu tratado De mystica theologia7 – e designava
o mais alto conhecimento que se poderia ter de Deus nesta vida, uma relação
com o sagrado que não passava apenas pelo conhecimento racional, especulativo,
mas que constituía um conhecimento íntimo, afetivo e experiencial de Deus, e
compreendia não o estudo da experiência mística que o homem poderia ter de
Deus, mas a própria experiência, num sentido prático, dessa união8. Nos séculos
XIV e XV, todavia, a ideia da contemplação e da meditação sofreram mutações ao
se difundirem para fora dos monastérios e, assim, desvincularam-se aos poucos
da prática monástica em etapas definidas; a meditação deixava assim de estar
sempre ligada à contemplação, passando a compor principalmente as meditações
sobre a paixão de Cristo, por exemplo, fundadas em exercícios de memória e de
visualização, com o objetivo de aflorar a afetividade religiosa9.
Na Montaigne, Gerson explicava a existência de dois tipos de contemplação,
uma baseada na ciência, outra apenas no afeto; a primeira, reservada aos teólogos
“bem instruídos nas santas Escrituras”10, a segunda, a maneira mais apropriada
aos simples, à qual escolhe se ater no referido texto. Por depender apenas do amor
e da fé para se chegar à experiência do sagrado, Gerson ressaltava que a teologia
mística, a contemplação afetiva, em contraste com o saber escolástico, consistia
numa “maneira de encontrar Deus que é mais perfeita do que todas as outras”11.
Fundada no amor e na fé apenas, a contemplação afetiva não necessitava de
conhecimentos mais profundos e acadêmicos, pois “destina-se principalmente a
amar Deus e a saborear sua bondade, sem buscar conhecimento mais claro que
aquele dado ou inspirado pela fé”, é “a mais alta sapiência que nós podemos ter

5
GERSON, “La Montaigne…”, p. 52.
6
MASUR-MATUSEVITCH, Yelena. Le siècle d’or de la mystique française: de Jean Gerson à Jacques
Lefèvre d’Étaples. Paris: Arché-Edidit, 2004, p. 14.
7
GERSON, Jean. Sur la théologie mystique: textes introduits, traduits et annotés par Marc Vial.
Paris: Vrin, 2008, p. 07-08.
8
BROWN, Dorothy Catherine. Pastor and laity in the theology of Jean Gerson. Cambridge & Nova
York: Cambridge University Press, 1987, p. 171.
9
BHATTACHARJI, Santha. “Medieval contemplation and mystical experience”. In: DYAS, Dee;
EDDEN, Valerie & ELLIS, Roger (orgs.). Approaching medieval English anchoritic and mystical
texts. Woodbridge: D. S. Brewer, 2005.
10
GERSON, “La Montaigne…”, p. 46.
11
GERSON, Sur la théologie..., p. 10-11.

12 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


[...]”12, explicava o chanceler. Desse modo, ao atestar a superioridade do afeto
em relação às operações do intelecto, Gerson confrontava a teologia mística ao
conhecimento de Deus que era formulado no mundo universitário, denunciando
a secura do saber dos teólogos da Universidade, cujos estudos sobre Deus eram,
segundo ele, lamentavelmente desprovidos de afeto verdadeiro.
A insatisfação e a posição crítica em relação ao saber teológico de seu próprio
tempo motivaram Gerson em sua defesa da contemplação para os simples. Nas
palavras do chanceler, “embora o grande saber clerical e a grande instrução na
lei de Deus e nas santas escrituras sejam muito convenientes à pessoa que queira
ascender às alturas da contemplação, algumas vezes tal ciência constitui um
impedimento, por causa do orgulho”13. O orgulho do conhecimento universitário
constituía o maior impedimento para a contemplação e assim Gerson ressaltava
o argumento segundo o qual o estado clerical e a formação teológica não seriam
obrigatórios para as pessoas contemplativas. Dessa forma, enfatizava que,
para alcançar a contemplação, era imprescindível que se tivesse humildade e
“simplicidade de coração”. A defesa da contemplação para os simples requeria,
portanto, primeiramente uma defesa da própria ideia de simplicidade, identificada
com a ausência de instrução e indissociada da virtude da humildade. Ao distinguir
quais os tipos de temperamento mais favoráveis à contemplação, Gerson rompia,
pois, com a distinção entre clérigos e laicos, assinalando que tanto poderiam existir
clérigos quanto laicos que se harmonizassem com a vida contemplativa ou, do
mesmo modo, com a vida ativa, dizendo simplesmente haver dois tipos de pessoas,
as mais voltadas para os assuntos mundanos, mais indicadas para a vida ativa,
e as mais inclinadas para a solidão e o silêncio, para a reflexão religiosa, e que
eram, desse modo, o tipo mais favorável à contemplação. Em outras palavras, a
adequação da pessoa a um dos dois modelos de vida dependia, segundo Gerson,
da inclinação pessoal e não do estado social, o que legitimava a experiência
contemplativa dos simples, pois esse religioso aduzia que estes estariam menos
suscetíveis ao orgulho do saber acadêmico.
O confronto entre, de um lado, a simplicidade e humildade da gente simples
e, de outro, o orgulho dos teólogos ilustrava o duplo anseio de Gerson: educar
os fiéis comuns e, ao mesmo tempo, reformar o saber teológico na universidade.
Com frequência ele contrastava uma imagem da devoção laica vista como sincera
e piedosa, com a esterilidade espiritual que diagnosticava nos teólogos14, dizendo,
por exemplo, que “os simples podem viver em solidão e pensar sempre em sua
salvação sem nenhuma outra operação terrena” ou, ainda, que “nós o vimos e
vemos por tantas experiências de santos eremitas e de algumas mulheres que tanto
desfrutaram do amor de Deus pela vida contemplativa, mais do que o fazem ou
fizeram muitos grandes clérigos”15. Desde que movidos por um amor intenso e
humilde em direção a Deus, os simples estariam, pois, aptos a alcançar a experiência
interior de união com a divindade. Portanto, a defesa do amor e da simplicidade

12
GERSON, “La Montaigne…”, p. 46.
13
GERSON, “La Montaigne…”, p. 43.
14
HOBBINS, Daniel. “Gerson on lay devotion”. In: McGUIRE, Brian Patrick (org.). A companion to
Jean Gerson. Leiden & Boston: Brill, 2006, p. 53.
15
GERSON, “La Montaigne…”, p. 45.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 13


como suficientes para a contemplação era o que autorizava Gerson a falar do tema
à gente comum e principalmente às mulheres simples. Ele assinalava, ao escrever
às suas irmãs sobre a contemplação:

É tão conveniente escrever para minhas ditas irmãs que


pelo dom de Deus vivem há muito tempo sem casamento,
para ensiná-las como elas agradarão a Deus servindo
a Ele continuamente, amando-O e honrando-O. E a
simplicidade de minhas irmãs não me impede de fazê-
lo, pois não pretendo dizer nada que elas não possam
compreender segundo o entendimento que eu já pude
comprovar nelas.16

Sendo assim, a simplicidade, ao invés de constituir um empecilho, era antes de


tudo uma condição louvável para a contemplação. Gerson reconhecia a aptidão
dos simples em se aprofundar nas questões religiosas, tendo em vista estritamente o
aperfeiçoamento da prática devota cotidiana e a vida virtuosa. Da mesma maneira
que a simplicidade, a humildade deveria ser a virtude condutora da experiência
religiosa, pois uma vez que o orgulho era admitido como a raiz de todos os vícios,
a humildade era tida como o maior remédio contra todos os pecados e a mãe de
todas as virtudes.
Apesar de Gerson empregar o termo “mulheres” de modo genérico no início da
Montaigne de Contemplation, dada a amplitude que ansiava para sua mensagem,
podem-se distinguir alguns traços mais específicos a respeito de suas interlocutoras,
que nos permitam identificá-las. As principais destinatárias da Montaigne de
Contemplation, as irmãs de Gerson, são representativas de um grupo específico de
mulheres devotas, virgens e viúvas que, apesar de não terem feito votos religiosos
formais, sendo portanto laicas de instrução muito rudimentar, haviam optado por
levar uma vida de ascese e recolhimento de inspiração monástica em seus próprios
lares, sob uma disciplina religiosa rígida e geralmente com a supervisão de um
mentor, neste caso, o próprio Gerson, posição muito comum entre os homens
religiosos daquele tempo17. Esse tipo de vida semirreligiosa tornava-se muito
recorrente naquele momento por parte especialmente das mulheres, que buscavam
uma vida espiritual mais profunda18. No Dialogue spirituel, um diálogo entre o
chanceler e suas irmãs, vemos o apelo destas por orientação espiritual:

Irmão por linhagem carnal, mas mais por linhagem


espiritual, pois por vossa exortação depois da graça de
Deus e da santa instrução de nossos bons pai e mãe que
são trespassados deste mundo [...], nós, vossas cinco
irmãs, renunciamos a todo casamento mortal para adquirir
mais convenientemente o casamento do filho do soberano

16
GERSON, “La Montaigne…”, p. 41.
17
HOBBINS, “Gerson on lay...” p. 53.
18
GARÍ, Blanca. “Introducción”. In: PORETE, Margarita. El espejo de las almas simples. Madri:
Siruela, 2005, p. 10.

14 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


rei que é o glorioso esposo das virgens. E diversas vezes
quiserdes empregar vosso estudo e ciência da santa
escritura para nos ensinar diligentemente, tanto por voz
como por letra, por tratados e por sermões. [...] Queira
voltar-nos os olhos de vosso pensamento e vossas orelhas
inclinar para nossa humilde oração para nos dar a maneira
e a arte de defesa contra todos os assaltos sutis e cruéis na
batalha espiritual que nos virá um dia.19

A preocupação de Gerson com as mulheres laicas não se limitou a esses textos


sobre a contemplação, mas desdobrou-se em outros tratados, em latim e em
francês, e também nas cartas que dirigiu às suas irmãs, onde desempenhava o
papel de guia espiritual para elas20. Nota-se, nesses diálogos, o grande interesse
delas pelo aperfeiçoamento moral e espiritual, já que elas demandavam de Gerson
explicações sobre tópicos da doutrina, sobre o discernimento dos tipos de pecados,
orientações para a prática devota cotidiana, pedindo, pois, a ele que compusesse
versos simplificados para que elas pudessem memorizar os preceitos religiosos com
mais facilidade21.
A ideia da virgindade é enfatizada nos textos em que Gerson se voltava para as
ditas irmãs, seja para dirigir-se às virgens ou às viúvas. A renúncia à vida conjugal,
a castidade, aparece, pois, como escolha fundamental que marcava o início dessa
vida religiosa mais profunda, sendo a renúncia do casamento carnal acompanhada
pela difundida imagem do casamento espiritual com Cristo. Gerson enfatizava a
virgindade como caminho privilegiado para a vida contemplativa:

Pois, como disse o Apóstolo, a mulher que é virgem e


permanece sem casamento deve se aplicar em como ela
poderá agradar somente a Deus e não ao mundo, assim
como a casada se esforça para agradar o marido e governar
sua casa [...].22

Em Sur l’exellence de virginité, também direcionado às referidas irmãs, Gerson


proferia a defesa e o elogio daquele estado semirreligioso, a renúncia ao casamento
carnal e a escolha pelo casamento espiritual. Ainda nesse texto, ele enalteceu as
qualidades e o empenho devoto daquelas mulheres, segundo lhe haviam relatado
os próprios pais:

‘Primeiramente, elas amam a Deus e suspeitam do pecado,


e jejuam um dia ou dois por semana, e dizem todos os
dias as horas de Nossa Senhora; e Marion as aprendeu
depois que seu marido morreu [...] e não querem se casar,

19
GERSON, J. “Dialogue spirituel”. In: __________. Oeuvres complètes, vol. 7. Introdução, texto e
notas por Mgr. Glorieux. Paris: Desclée, 1966, p. 158.
20
HOBBINS, “Gerson on lay...”, p. 53.
21
GERSON, “Dialogue...”, p. 188.
22
GERSON, “La montaigne...”, p. 41.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 15


a menos que isto agrade a nós e a ti’. É o que nossos
bons pai e mãe me escreveram a respeito de vós, minhas
irmãs.23

A castidade, o jejum moderado, a oração disciplinada, a postura humilde com


que elas dirigiam o próprio aprofundamento espiritual, sem desejar saber mais
do que o necessário, apenas visando se esquivar do pecado, cultivar a virtude e
aproximar-se da salvação, as tornavam dignas daquele modo de vida, que Gerson
tanto almejava para elas. Dirigindo-se a Cristo em sua prece, ele dizia: “Não há
riqueza, nem linhagem que eu tanto deseje para elas como o teu amor” e, também
clamava que elas “perseverantemente se coloquem a teu serviço, castamente,
puramente e santamente, pois não há serviço no mundo que mais te agrada, não
há vida que mais amas que a virgindade inteira, em corpo e em pensamento”24.
Uma vida casta era ali recomendada não só às mulheres virgens, mas também às
viúvas, num momento em que se tornava possível às mulheres laicas não-virgens
ambicionarem a ideais mais altos de perfeição moral e religiosa, e em que a perda
da virgindade não constituía mais um impedimento, pois o pecado carnal poderia
ser superado pelo esforço moral e devoto. O estabelecimento dessa concepção
coincidiu com mudanças nos próprios modelos de santidade que, desde o século
XIII, deixaram de se circunscrever às mulheres virgens, para alcançar as mulheres
casadas ilustres, e a partir de então cresceram os exemplos de santas que haviam
sido esposas. A ideia da virgindade não havia perdido, entretanto, o seu valor,
mas, neste período, apresentava-se às mulheres casadas e viúvas a possibilidade de
alcance da santidade e a restituição do estado de pureza por meio da vida virtuosa
e devota25.
Mas, embora seja possível identificar essa especificidade das destinatárias desses
textos de Gerson – mulheres laicas interessadas numa vida religiosa sem votos
formais –, podem-se entrever também outros grupos de mulheres com os quais
Gerson dialogava indiretamente. Ao passo que suas irmãs constituíam para ele
mulheres de anseio virtuoso e devoto, dignas de elogio pelo interesse em cultivar
a virtude e obedecer aos preceitos da fé, para além delas, é possível vislumbrar,
também, os maus exemplos com que Gerson se defrontava naquele momento.
Como alvos de seu projeto pedagógico, o chanceler de Paris tinha diante de si, a
exemplo de suas irmãs, um grupo de mulheres devotas em busca da virtude pelo
intermédio do saber e da autoridade clericais. Mas por outro lado, havia também
a preocupação com excessos místicos e visionários de mulheres que buscavam um
contato imediato e direto com Deus, dispensando a mediação dos pregadores,
como as beguinas, e que atraíam a desconfiança dos clérigos26. Esses dois grupos
de mulheres laicas, as exemplares e as desviantes, tinham em comum o crescente
interesse em aprofundar a experiência espiritual pessoal, em buscar uma prática

23
GERSON, Jean. “Sur l’excelence de virginité”. In: GERSON, Oeuvres ..., p. 418.
24
GERSON, “Sur l’excelence de virginité”, p. 418.
25
DALARUN, Jacques. “Olhares de clérigos”. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle (orgs.).
História das mulheres no Ocidente – Vol. 2: A Idade Média. Tradução de Maria Helena C. Coelho
e Alberto Couto. Porto: Afrontamento, 1990, p. 58.
26
VAUCHEZ, André. Les laïcs au Moyen Age. Paris: Cerf, 1987, p. 246.

16 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


devota mais íntima e genuína, para além das práticas religiosas tradicionais e
coletivas. Atento à devoção laica de modo geral, Gerson dispunha-se a formular
métodos e conselhos para regulamentar as práticas devocionais dos leigos, naquela
época muito suscetíveis a desvios em relação ao que era recomendado pelos clérigos,
e sobretudo fornecer aconselhamento às mulheres, as maiores interessadas numa
devoção pessoal e interiorizada, nomeadamente no contato místico com o sagrado.
Gerson preocupava-se com os desvios supersticiosos e os excessos que
permeavam as práticas devocionais dos laicos como um todo. Ele estava diante
de uma devoção coletiva, a da maioria da população, marcada pela exterioridade,
pela teatralidade e pelo exagero penitencial, que levavam com frequência a
espetáculos extremos, que produziam fervor nas massas a reprovação de clérigos
como Gerson, a exemplo das procissões de flagelantes que percorriam Alemanha,
Flandres e os Países Baixos e que chegavam à França. Em todo o reino francês, uma
intensa vitalidade devocional emergia dos centros urbanos, onde se multiplicavam
associações devotas, práticas e cultos diversos. É nesse período que as práticas
religiosas dos laicos passaram a ser discutidas pelos teólogos da universidade, o
que não ocorria com frequência antes do século XIV. Nesse momento, a Igreja
voltava-se para eles com maior suspeição e controle, visando à unificação das
práticas religiosas então bastante heterogêneas27. Gerson reprovava práticas que
combinassem ao culto cristão crenças de caráter mágico e encantatório, festejos
excessivos, repetições descomedidas de orações, no entanto, acreditava que era
necessário conduzir os fiéis com ternura para que a intensidade e a sinceridade da
fé dessas pessoas simples não fossem prejudicadas. O intuito de Gerson era, pois,
o de conduzir os fiéis, combatendo os desvios, preservando, porém, a integridade
da fé e o sentimento religioso dos humildes28.
Desde o século XIII, os laicos aproximaram-se cada vez das formas de devoção
clericais, principalmente monásticas, bem como buscaram uma maior participação
nos assuntos religiosos. O desejo dos leigos de se aproximar desses modelos de
devoção conduziu, nos séculos XIV e XV, a um fenômeno geral de imitação das
formas de piedade clericais29. A difusão de livros e imagens religiosos nos séculos
XIV e XV – num primeiro momento, com a xilografia e, pouco mais tarde, com
a imprensa –, instrumentos pedagógicos clericais, respondiam aos anseios de
alguns grupos leigos ao mesmo tempo em que buscavam regulamentar as práticas
religiosas tão diversas e, ao chegarem aos ambientes domésticos de esferas sociais
mais amplas, contribuíram de certo modo para o desenvolvimento das práticas
privadas e domésticas de oração, oferecendo meios para o aprimoramento de uma
religiosidade menos restrita à liturgia, porém com a supervisão clerical30.
Mas, foi especialmente entre os anos de 1350 e 1450 que as regiões urbanas
do reino francês assistiram à explosão de uma corrente mística visionária formada

27
HOBBINS, “Gerson on lay...”, p. 67, 75; CHIFFOLEAU, Jacques. “La religion flamboyante (1320-
1520)”. In: LE GOFF, Jacques & RÉMOND, René (orgs.). Histoire de la France religieuse (XIVe –
XVIIIe siècle). Tomo 2. Paris: Seuil, 1988, p. 86, p. 88; VAUCHEZ, Les laïcs..., p. 289, 290.
28
HOBBINS, “Gerson on lay...”, p. 55.
29
VAUCHEZ, Les laïcs..., p. 10.
30
DUBY, Georges & ARIÈS, Philippe (orgs.). História da vida privada: da Europa feudal à
Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 547-549; BAIER, “Meditation...”, p. 335,
336; CHIFFOLEAU, “La religion...”, p. 109.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 17


majoritariamente por mulheres. Nesse momento, a busca de uma relação
direta, interior e mística com o sagrado não mais se restringia a uma minoria de
religiosas, mas provinha até mesmo de mulheres de posição social muito modesta,
que ousavam comunicar publicamente suas experiências e visões, tais como a
camponesa Joana D’Arc31. Essas visões muitas vezes revestiam-se de um sentido
profético e visavam denunciar os vícios de uma Igreja corrompida e dividida pelo
Grande Cisma (1378-1414). Diante de uma Igreja descentrada e em crise, essas
mulheres, e os laicos de modo geral, encontravam novas formas de comunicação
com o sagrado, e ousavam ter voz a respeitos dos assuntos religiosos, a externar
suas experiências religiosas e visões, a denunciar os vícios da Igreja que se julgava
estar corrompida32. O vácuo da ação institucional da Igreja provocado pelo cisma,
pela peste e pela guerra no século XIV favoreceu a ascensão de místicos e profetas,
que conquistavam a confidência até mesmo de príncipes e papas33. Algumas
dessas místicas, em outros lugares, foram consideradas santas ou tiveram apoio
do clero e do papado em suas ideias, tais como Catarina de Siena ou Brígida
da Suécia. Porém, na maioria das vezes, a postura clerical era de desconfiança,
pois, privilegiando uma relação espiritual direta com o sagrado, elas relativizavam
a importância da mediação clerical e do saber teológico, como as beguinas,
sobretudo, que atraíam a desconfiança de Jean Gerson e de outros clérigos ao
menosprezarem os sacramentos da Igreja34. O desconforto do clero à tomada da
palavra pelas mulheres, bem como ao interesse latente delas pela devoção mística,
foi nítido em alguns casos célebres, tais como o da beguina francesa Marguerite
Porete, que se atreveu a falar sobre os mistérios místicos em seu livro O espelho das
almas simples, e foi condenada em 1310.
Enquanto os escritos da tradição sobre a teologia mística, em que Gerson
se amparava, assinalavam o caráter inexprimível do êxtase místico, aludindo à
experiência da presença interior de um Deus não perceptível pelos sentidos corporais,
essas mulheres de sensibilidade extraordinária, ao contrário, não hesitavam em
descrever com grande sensualidade seus êxtases visionários. Revestido-os de um
aspecto excessivamente carnal, como as menções ao sorver do sangue, à visão
dos estigmas, incorriam muitas vezes numa confusão entre o amor espiritual e o
amor carnal, como por exemplo as visões narradas no final do século XIII pela
penitente franciscana italiana, Angela de Foligno, que uma vez descreveu ter visto
Cristo na cruz, enquanto estava acordada, e disse: “então ele me chamou para
colocar minha boca à ferida em seu lado. Parecia-me que eu vi e bebi o sangue,
que foi fluindo. [...] E assim comecei a experimentar uma grande alegria [...]”35.
Mas, para além das descrições das visões, os excessos também se faziam presentes
na maneira exteriorizada com que elas se comportavam publicamente, o exagero
dos gestos, as lágrimas, gritos e vocalizações descomedidos exibidos na missa; as

31
VAUCHEZ, Les laïcs..., p. 277-286.
32
VAUCHEZ, Les laics..., p. 239-241, p. 257,p. 278. RAPP, Francis. L’Église et la vie religieuse en
occident a la fin du Moyen Age. Paris: PUF, 1971, p. 78.
33
ELLIOT, Dyan. “Seeing double: John Gerson, the discernment of Spirits, and Joan of Arc”.
American Historical Review, vol. 107, n. 1, fev. 2002, p. 26.
34
FANNING, Mystics of the Christian…, p. 102.
35
ANGELA de Foligno, “Memorial”, apud DICKENS, Andrea Janelle. The female mystic: great
women thinkers of the Middle Ages. Londres & Nova York: I. B. Tauris, 2009, p. 113.

18 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


mortificações, como os jejuns prolongados e debilitantes, entre outros detalhes. Tal
comportamento era visto com grande incômodo por parte de clérigos como Gerson,
que se mostrava muito preocupado com essas mulheres e com a autenticidade de
muitas visões por elas descritas36.
Foi, portanto, justamente nos séculos XIV e XV que floresceram tratados
dedicados a discernir se uma visão havia sido inspirada por Deus ou pelo diabo,
a chamada habilidade de “discernimento dos espíritos”, tópica comum nos textos
da patrística, para uso pessoal dos místicos em suas visões, mas que a partir do
século XIV parece responder a um mal estar mais público do que ligado à devoção
individual, associando-se à contenção das experiências espirituais femininas37. Na
carta escrita em 1402 para seu irmão Nicolas, que estava entre os Celestinos, com
o título De distinctione Verarum Visionum a Falsis, Gerson examinou as formas de
distinguir as visões falsas e as verdadeiras, com base no discernimento dos espíritos,
onde estabeleceu quais os principais indícios ou provas atestavam a veracidade ou
a falsidade de uma visão, com base nas virtudes e sempre em diálogo ou citando
as mulheres. Enquanto os padres do deserto utilizavam a técnica do discernimento
em si próprios, recorrendo por vezes a diretores espirituais, Gerson, por sua vez, a
usava como instrumento de seu trabalho pastoral, para julgar as motivações dos
fiéis e afastá-los do erro38. Comparando o trabalho de discernir o caráter de uma
visão à tarefa do mercador que distingue as moedas falsas das verdadeiras segundo
o peso, a flexibilidade, a durabilidade e a cor, Gerson apontava cada uma das
virtudes que deveriam estar obrigatoriamente envolvidas em uma visão inspirada
por Deus:

O resultado de tudo o que dizemos aqui é que a moeda


da revelação divina deve ser examinada. Deve-se se
observar se ela tem o peso da humildade sem a vaidade
da curiosidade e do orgulho; se ela contém a flexibilidade
da discrição sem a teimosia e falta de receptividade ao
conselho; se manifesta a durabilidade da paciência na
adversidade, sem reclamação ou falsa imitação; se mostra
a forma da verdade sem mentira ou qualquer afeto
indevido; se tem o brilho da cor sincera do divino amor
sem a contaminação da sujeira da carnalidade.39

O trecho sintetiza todos os principais pontos desenvolvidos no texto: a humildade


é a virtude que sustenta todas as outras, contrária ao maior de todos os vícios, o
orgulho, aludindo àqueles que vaidosamente se julgavam eleitos os mensageiros de
Deus com suas visões. Com a discrição, “filha da humildade”, Gerson condenava os
que imediatamente se julgavam dignos de externar sem medida suas experiências
e emoções, dispensando os textos sagrados e o conselho dos únicos capazes de

36
VAUCHEZ, Les laïcs..., p. 273; HOBBINS, “Gerson on lay...”, p. 64-65.
37
ELLIOT, “Seeing double...”, p. 27.
38
ELLIOT, “Seeing double...”, p. 37-38.
39
GERSON, Jean. “On distinguishing true from false revelations.” In: __________. Early works. Nova
York: Paulist Press, 1998, p. 363.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 19


discernir a fonte dessas revelações, os teólogos. Sobre esses indiscretos, alertava:
“[...] suas próprias opiniões é o que as move”, com arrogância, essas pessoas
“se molestam além da medida com jejuns; extrapolam suas vigílias; enfraquecem
seus cérebros com lágrimas excessivas” e, ainda, “em todas essas observâncias,
elas não colocam nenhuma confiança nas advertências dos outros; também não
seguem conselhos para que se comportem de forma mais temperada”40. Gerson
considerava que muitas visões eram consequência dos jejuns extremos que
acabavam por afetar as percepções, produzindo ilusões, por isso ressaltava que a
revelação de inspiração divina sempre ocorria com a pessoa acordada, em estado
de clareza da mente, sem que as paixões e os sentidos estivessem perturbados. Por
isso, ele defendia a postura de sobriedade, a modéstia, bem como o controle de si.
A paciência, por sua vez, testava a pessoa pela capacidade de resistir à
tribulação; já o signo da verdade referia-se à conformidade do comportamento
com as verdades contidas nas Sagradas Escrituras. No que se refere ao signo do
amor divino, citando as mulheres, Gerson explorou a falsidade do amor carnal que
muito frequentemente se disfarça de amor espiritual, alertando para os perigos que
poderiam levar ao aflorar dos apetites carnais, dizendo, por exemplo:

Certas mulheres, apesar de estarem fora da ignorância,


foram afetadas por um amor pernicioso em relação a Deus
ou às outras pessoas sagradas, ao invés de serem movidas
pela verdadeira, santa e sincera caridade. É verdade que os
que praticam a idolatria erram ao pensar que eles amam a
Deus. E então eu concluo que não é seguro para nenhuma
mulher religiosa viver e ter familiaridade com homens,
mesmo a mais religiosa delas. Por quê? Porque embora
o amor comece no espírito, é para ser temido que pelos
seus encantos ele gradualmente ceda e seja consumado
na carne.41

O amor excessivamente apaixonado e que não se acompanha das demais


virtudes é condenável. Segundo Gerson, “todo sentimento apaixonado é a
companhia mais perigosa para a virtude”, citando as beguinas e os begardos “que
erraram por causa do excessivo amor disfarçado de devoção”, e também o caso
de Marguerite Porete e seu livreto42. Parece, portanto, paradoxal que Gerson tenha
defendido na Montaigne de Contemplation o amor como suficiente para a vida
contemplativa dos simples e, ao mesmo tempo, tenha rejeitado as manifestações
amorosas de muitas dessas místicas. Mas vemos que o amor que ele defendia
como necessário para que os simples adentrassem a vida contemplativa, uma “arte
do amor”, não se confundia com o tipo de amor que produzia agitação da alma
e dos sentidos, ligado às inclinações corpóreas. O amor da vida contemplativa
é aquele marcado pelo signo da humildade, que implica em comedimento e
discrição, em oposição à paixão escandalosa das místicas que critica, marcado

40
GERSON, “On distinguishing...”, p. 343.
41
GERSON, “On distinguishing...”, p. 356.
42
GERSON, “On distinguishing...”, p. 356.

20 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


apenas pela vaidade, associada ao esforço de exteriorização exacerbada. Gerson
afirmava ainda que qualquer operação interior ou exterior é válida se for precedida
e acompanhada pela humildade, mas “se alguém toma como ponto de partida o
orgulho e usa essas condições como pretexto para se exibir, é digno de suspeita”43.
Deste modo, algo que qualifica uma experiência religiosa como sendo orgulhosa e
ilegítima é a exterioridade, pois mostrar os afetos em demasia é sinal de orgulho,
vaidade. Este ponto dialoga diretamente com o comportamento extático das
místicas daquele período.
Entre os textos de Gerson sobre a contemplação para as mulheres, a ênfase na
virtude da humildade aparece de modo especial na Mendicité Spirituelle. O tratado
foi composto em 1402, quando de seu retiro em Bruges, e inspirado numa virgem
muito devota, chamada Agnes d´Auxerre, e também dedicado a ela. Gerson o
definiu como um “tratado de oração”, onde apresentou o método da “mendicância
espiritual” como o mais eficaz no diálogo com Deus. Segundo esse método, a
pessoa em oração deveria se colocar diante de Deus como um mendigo que pede
esmolas. Com a ajuda de exercícios de imaginação e memória, e sem precisar se
deslocar materialmente, ela deveria pedir “esmolas espirituais” na cidade celeste,
pedindo a cada um dos santos, como o faziam os pobres corporais pelas ruas das
cidades; deveria, por exemplo, dividir a cidade imaginária do paraíso em partes
ou ruas, e em cada dia da semana pedir um dom de acordo com as divisões dos
pecados capitais, das obras de misericórdia, das virtudes, etc. O texto aconselhava
a pessoa em oração a observar os pobres do mundo, para incentivar em si mesma
a misericórdia e, usando-os como exemplo de diligência, aprender a mendigar
espiritualmente. Alguns trechos incitavam o leitor à emoção e à profunda piedade,
pelas alusões ao sofrimento de Cristo pela salvação dos homens; ao remorso e a
culpa, estimulando a pessoa a se conscientizar dos próprios pecados, do quanto fez
mal a Deus ao longo da vida. Trata-se em suma de um método que pretendia fazer
aflorar as emoções em direção ao sagrado44, baseado principalmente em cultivar a
postura de humilhação e rebaixamento perante Deus, isto é, no reconhecimento da
própria miséria, das próprias faltas. Gerson recomendava que a pessoa jamais se
colocasse como virtuosa, como rica em bens espirituais, mas sempre como pobre,
sempre em posição de pecadora, sempre desejosa da presença de Deus. Nisso
consistia a humildade.
Na terceira parte da Mendicité, Gerson forneceu a suas leitoras um exemplo
de meditação para auxiliar a alma a se livrar do orgulho. Na referida passagem,
ele explicou o caráter traiçoeiro deste pecado mortal, que, disfarçado de virtude,
se instala no interior da alma, ou seja, o orgulho vem até mesmo com a ação
virtuosa, quando a pessoa se considera satisfeita com as próprias ações; portanto,
é um pecado que sempre assola as pessoas religiosas. No texto, a Alma dirige-se ao
Orgulho nos seguintes termos, num diálogo implícito com o misticismo visionário:
Contigo [Orgulho] vem uma arrogância de coração
tendendo às grandes coisas, como a visões estranhas ou a

43
GERSON, “On distinguishing...”, p. 354.
44
Sobre os afetos, ver: CASAGRANDE, Carla & VECCHIO, Silvana. “Les passions, la mystique, la
prière: affectivité et dévotion dans la pensée de Jean Gerson”. Revue Mabillon, nouvelle série, n.
24, 2013, p. 99-129.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 21


fazer milagres, e uma confiança excessiva e presunçosa em
si mesma, um prazer desordenado em seus feitos e em seu
estado, uma alegria elevada e toda inflada ou muito leve
e que se abandona a se elogiar e justificar, tendo em vista
tirar vantagem e guardar sua própria honra.45

Mas não se deve depreender que a reserva de Gerson em relação à exteriorização


exacerbada das místicas significava uma desconfiança absoluta em relação às
mulheres de modo geral. Ele acreditava na capacidade delas de seguirem a vida
virtuosa e não hesitava em reconhecer as virtudes de muitas delas46, como, por
exemplo, em relação à laica Ermine de Reims ou Joana D’Arc47, que ele qualificou
como simples e humildes em suas visões, ou também ao falar de Agnes d’Auxerre
às suas irmãs, no Dialogue Spirituel:

Falei uma vez a uma mulher devota, chamada Agnes, para


a qual fiz o livro da Mendicância Espiritual, pelo que me
recitaram que ela buscava suas esmolas da Graça e fazia
sua procissão de santo em santo, com perseverança e ardor,
para si e para os outros, e em especial quando se julgava
distante de Deus; e se colocava diante de Deus como um
condenado diante do juiz, como pobre mendicante diante
de um rico senhor, como doente diante de seu médico,
como um estudante diante de seu mestre, e como esposa
desleal diante do marido ou como alguém que procura
hospital para os outros pobres.48

Convém notar que essas ações de Agnes limitavam-se ao plano da oração, dos
pensamentos piedosos, como ilustra a ideia da procissão imaginária. A devoção
exemplar é, portanto, interiorizada. Sendo assim, a ênfase de Gerson na humildade,
que implicava na discrição, na moderação, na paciência, pode ser compreendida
como uma defesa da interioridade; assim como o ataque ao pecado do orgulho tem
como traço principal a reprovação da exterioridade. Por isso os exercícios e técnicas
de memorização, meditação e imaginação49 tinham um lugar tão relevante nesses
textos: a solidão e o silêncio necessários à contemplação, por exemplo, podiam
ser alcançados apenas interiormente, sem deslocamentos materiais para lugares
remotos, com ajuda de exercícios em que a pessoa estimularia os afetos em direção
a Deus, pela lembrança dos eventos da vida de Cristo e dos santos. A Montaigne

45
GERSON, Jean. “La mendicité spirituelle”. In: GERSON, Initiation..., p. 206.
46
ANDERSON, Wendy Love. “Gerson’s instance on women”. In: McGUIRE, A companion..., p. 299-
301.
47
ELLIOT, “Seeing double...”, p. 32.
48
GERSON, “Dialogue...”, p. 172.
49
Sobre a imaginação e a memória, ver: KARNES, Michelle. Imagination, meditation and cognition in
the Middle Ages. Londres & Chicago: University of Chicago Press, 2011. YATES, Frances A. A arte
da memória. Tradução de Flavia Bancher. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007. CARRUTHERS,
Mary. A técnica do pensamento: meditação, retórica e a construção de imagens (400-1200).
Tradução de José Emílio Maiorino. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.

22 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


de Contemplation, por sua vez, apresentava o caminho da vida contemplativa em
etapas com exercícios para que o devoto se desvencilhasse das preocupações e
pensamentos mundanos, para galgar os estágios em direção ao encontro com Deus.
O capítulo intitulado “Une imagination d´une montaigne contenant trois étages ou
habitacles de foi, d´espérance et de charité” – “uma imaginação de uma montanha
contendo três estágios ou obstáculos da Fé, Esperança e Caridade”50 –, onde se
posicionavam em cada etapa cada uma das virtudes, constituía um esquema visual
que auxiliava uma devoção baseada na direção e controle dos pensamentos.
A discrição, como virtude ligada à humildade, tem a ver com a noção cristã
segundo a qual o que ocorre dentro de si, o afeto e a intenção interiores são mais
relevantes e verdadeiros do que as ações exteriores51. Por isso, o silêncio interior,
aquele da alma e dos pensamentos, foi considerado por Gerson como mais
importante do que o silêncio exterior do claustro ou do deserto, pois “o principal
segredo e silêncio devem estar dentro da alma mais do que do lado de fora”, quando
“a alma retira de si e de sua habitação todo cuidado mundano, todo pensamento
vão e nocivo que a impede de chegar aonde quer”52. A solidão, outra condição
indispensável para a contemplação, também poderia ser encontrada dentro de si,
apenas com a companhia de Deus e de pensamentos virtuosos. Assim, Gerson
enfatizava que era possível encontrar silêncio e solidão em qualquer lugar: para
ele, “não cabe esperar que se tenha tal solidão secreta em determinado lugar.
Mas em qualquer lugar onde se estiver, nos campos ou na cidade [...], pode-se
procurar voltar-se para si e retirar-se do mundo”53. Do mesmo modo, a pobreza e a
humildade interiores de que falava a Mendicité spirituelle eram recomendadas em
detrimento da mendicância corporal, que visava bens materiais. Gerson dizia que
do mesmo modo que existiam pessoas que se faziam passar por pobres corporais,
fingindo-se de mendigos para ganharem vantagem, também existiam aquelas que
se reputavam ricas em virtudes e acreditavam que não necessitavam pedir nada a
Deus, mas “diziam o contrário por fora”, comportando-se com falsa devoção e falsa
humildade, e “Deus, que vê tudo profundamente, conhece toda a dissimulação e
orgulho deles”54. Dessa forma, a humildade encenada nada mais é do que orgulho
disfarçado. Ser verdadeiramente humilde implicava em sê-lo internamente, no
coração e na alma, sem necessidade de mostrar aos homens, pois as virtudes,
assim como os pecados, deveriam ser reveladas somente a Deus.
A preocupação com a interioridade fundamentava os textos de Gerson para os
laicos, o que pode ser observado no uso recorrente de expressões como “retourner
en soi”, isto é, “voltar-se para si”. Na Mendicité Spirituelle, o leitor é aconselhado
a observar as ações dos pobres corporais que pedem nas ruas, para em seguida
pensar em si próprio:

50
GERSON, “La montaigne…”, p. 104.
51
Sobre a interioridade e a introspecção no cristianismo, ver: GUITTON, Jean. Le temps et l’eternité
chez Plotin et Saint Augustin. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1959. VON MOOS, Peter.
“Occulta cordis: contrôle de soi et confession au Moyen Âge, I. Formes de silence”. Médiévales, n.
29, 1995, p. 131-140.
52
GERSON, “La montaigne... ”, p. 69.
53
GERSON, “La montaigne... ”, p. 71.
54
GERSON, “La mendicité... ”, p. 129.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 23


Coloca bem vivo diante de teus olhos espirituais o ardente
desejo que eles têm de se libertar e de serem ajudados, e
tudo o que fazem e dizem; depois retorna sobre ti mesmo e
sobre tuas faltas, tuas misérias, tuas doenças, teus perigos,
tua prisão, teu exílio, tua morte pelo pecado, tua desolação
por ter perdido Deus teu pai e teu país do paraíso.55

Esse tipo de exercício visava sustentar uma atividade devota que privilegiava o
diálogo interior, a observação de si, o exame das próprias faltas e a introspecção,
tendo em vista a prática das virtudes e o aperfeiçoamento moral e espiritual. Com
essa defesa da interioridade, Gerson afirmava a oração como a forma mais perfeita
da atividade espiritual, enfatizando a ideia de uma relação com Deus mais pessoal
e afetiva. Além disso, ao falar da contemplação para as mulheres laicas, Gerson
buscou formular um modelo de vida baseado na introspecção religiosa em que
não fosse necessário se deslocar para os monastérios, mas em que o cotidiano
terreno conciliar-se-ia com a atenção aos assuntos superiores, por meio da oração
e da meditação. Dessa forma, o recolhimento contemplativo seria possível sem a
necessidade de deslocamentos físicos, não precisava mais ser buscado no claustro,
mas apenas dentro de si mesmo, em acordo com a devoção laica urbana francesa,
para quem a busca por formas mais interiores e diretas de diálogo com o sagrado
seria finalmente assegurada, sem que fosse preciso abandonar a condição laica e
a vida social56.
Gerson apresentava, a partir dessa linha, o caminho da interioridade como
solução e como resposta aos desvios dos laicos, especialmente às experiências
de caráter extraordinário, como as visões e êxtases relatados pelas mulheres. Em
oposição ao modo irrefletido dos arrebatamentos visionários, a vida contemplativa
formulada pelo chanceler da Universidade de Paris enfatizava o esforço moral
pessoal, deliberado e cotidiano, fundado na disciplina, no controle dos afetos e
pensamentos, na resistência diária contra as tentações e tribulações terrenas,
na memorização e meditação sobre os principais tópicos da fé. Esse trabalho
moral e espiritual deveria ocorrer sobretudo no que se refere aos pensamentos e
emoções, mais do que nas ações exteriores, ou seja, baseava-se no controle de si.
Para Gerson, o amor direcionado para Deus e a atenção constante às verdades
superiores deveriam ser estimulados pelo conhecimento das histórias sagradas, da
vida dos santos e de Cristo, por meio da audição de sermões e da leitura de textos
devotos, e também com a visualização das imagens sagradas, especialmente a
Cruz. Assim, ele apregoava uma forma de vida devota em que os ensinamentos
providos pelos padres não eram de modo algum dispensáveis, mas decisivos
para a contemplação. E, dessa forma, recomendava a suas irmãs que rezassem as
horas e outras orações segundo os momentos do dia; que ouvissem as missas com
regularidade; que observassem seus modos diante da sociedade; que evitassem
pompas e excesso das vestimentas, mas se portassem com modéstia e humildade;
que tivessem sobriedade à mesa e que se confessassem regularmente57.

55
GERSON, “La mendicité...”, p. 118.
56
Ver: CHIFFOLEAU, “La religion...”, p. 92.
57
GERSON, “Dialogue...”, p. 420.

24 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


No tempo de Gerson, o ideal místico com suas modalidades mais diretas de
relação com o sagrado passava a se sobrepor aos modelos de devoção tradicionais,
pregados pelos clérigos e calcados na prática das boas obras, no exame de
consciência e no cumprimento das virtudes. Ao contrário, a ideia de perfeição
cristã naquele momento identificava-se mais profundamente com o contato
direto com Deus, em detrimento do esforço moral. Até mesmo os modelos de
santidade passavam a enfatizar a visão de Deus face-à-face, mais do que as obras
virtuosas. Havia, portanto, nos séculos XIV e XV, um amplo desinteresse pelas
virtudes da ação, uma vez que o traço penitencial da devoção laica concentrava-
se mais sobre a contemplação dos sofrimentos de Cristo, por exemplo, do que
propriamente no conteúdo moral de suas obras58. A exteriorização excessiva e o
imediatismo dos êxtases visionários eram vistos por muitos clérigos, entre os quais
Gerson, como indícios de uma reprovável negligência da transformação interior,
que deveria ser alcançada pelo cumprimento dos preceitos religiosos, pelo esforço
diário de aperfeiçoamento moral e espiritual. Por isso, Gerson, na Montanha de
Contemplação, não se ateve a descrever o momento do encontro místico com
Deus, ao qual se refere brevemente apenas como uma sensação de doçura
inexprimível, reforçando a noção de que Deus não é visível nem descritível. Assim,
preferiu debruçar-se sobre o caminho da contemplação, mais do que sobre o seu
término, enfatizando as dificuldades que a pessoa deveria superar, bem como as
ações que deveriam ser desempenhadas no combate espiritual contra as tentações.
Ele também lembrava a seus leitores que o último degrau da contemplação, a
“visão” espiritual de Deus, era alcançado por poucos virtuosos. Desta forma, a vida
contemplativa para os laicos formulada pelo chanceler resumia-se a uma disciplina.
Diante de uma sociedade laica profundamente interessada numa relação
mais íntima e pessoal com o sagrado, dois caminhos, em síntese, opunham-se:
o do excesso visionário e o da contemplação. Ao falar sobre a contemplação às
mulheres laicas, Gerson buscou nas autoridades, de Agostinho, Pseudo-Dionísio
a Hugo de São Victor, entre outros, um modelo e um método de vida espiritual
que fosse seguro e que levasse o devoto, mais do que à visão de Deus, a praticar
as virtudes, consideradas mais importantes para a salvação. Dessa maneira, a vida
contemplativa, baseada na releitura das autoridades e fundada num conjunto
de virtudes e exercícios espirituais, contrapunha-se aos excessos dos desvarios
visionários que beiravam a heresia e que não privilegiavam o aperfeiçoamento
moral, mas o sofrimento carnal. Em outros termos, a contemplação constituía uma
forma regrada, ordenada e virtuosa de assegurar a relação pessoal com Deus. Por
isso, o modelo de vida contemplativa construído por Gerson para as mulheres
laicas não pode ser pensado fora da relação que opunha as mulheres exemplares e
as dignas de reprovação; suas escolhas do que deveria ser enfatizado como virtude
tem íntima relação com o que o incomodava nas místicas.


58
VAUCHEZ, Les laïcs..., p. 255.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 25


RESUMO ABSTRACT
No início do século XV, o chanceler da In the beginning of the 15th century, the chancellor
Universidade de Paris, Jean Gerson, escreveu of the University of Paris, Jean Gerson, wrote for
pela primeira vez em língua vernácula sobre the first time on the subject of contemplation
a contemplação, endereçando aos “simples”, in French, addressing to the “simple people”,
especialmente às mulheres, um assunto reservado especially women, a theme that was part of the
aos teólogos ou monges e considerado digno world of monks and theologians and considered
apenas de ser tratado em latim. A contemplação only worthy of being treated in Latin. For the
designava para os religiosos o ponto mais religious men, the contemplation was the highest
elevado da experiência espiritual cristã, o estado point of the Christian spiritual experience, the
de êxtase em que a alma experimentava a state of rapture in which the soul experienced
presença de Deus, estágio alcançado por uma the God’s presence and that was only able to be
minoria de virtuosos e santos, com o auxílio reached by a few virtuous people and saints, by
de exercícios específicos como a meditação means of spiritual exercises, as meditation and
e a oração, geralmente amparados na leitura prayer, commonly supported by the reading of
dos textos sagrados. Deste modo, o presente sacred texts. Therefore, this essay examines how
artigo examina como Jean Gerson formulou Jean Gerson formulated a model of devout life
um modelo de vida devota para as mulheres for lay women based on contemplation, when
laicas com base na prática da contemplação, lay people were looking for more direct and
num momento em que os laicos buscavam personal ways of contact with God. Thus, this
modalidades mais diretas e pessoais de contato work analyses which virtues and behaviours
com Deus. Assim, este trabalho analisa quais were prescribed and which were the vices to
virtudes e comportamentos eram recomendados be avoided, questioning on how Gerson in his
e que vícios deveriam ser evitados, buscando construction of a model of virtue and devotion
também questionar sobre como o chanceler, for women also dialogued with reprehensible
em sua construção de um modelo de virtude e practices that were described about them at that
devoção para as mulheres, dialogava também time, like the visionary experiences.
com as práticas reprováveis que naquele Keywords: Medieval France; Contemplation;
momento eram descritas sobre muitas delas, Jean Gerson.
como os êxtases visionários então recorrentes.
Palavras Chave: França Medieval;
Contemplação; Jean Gerson.

Artigo recebido em 15 nov. 2015.


Aprovado em 28 abr. 2016.

26 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


MINORIAS RELIGIOSAS NO IMPÉRIO PORTUGUÊS:
O CASO DOS MUÇULMANOS MAPILAS DO MALABAR
(1498-1656)
Joseph Abraham Levi1

Para muitos europeus, a Índia era mais um


sinônimo de Malabar do que de Delhi e,
muitas vezes, as relaçõesções iniciais dos
europeus se davam com as minorias religiosas
da Índia – muçulmanos, judeus e cristãos –
que funcionavam como intermediários em
relação aos hindus, menos acessíveis por
conta de suas restrições de classe ou casta.2

Apesar de hoje como dantes muitas serem as investigações sobre as interações


entre o mundo muçulmano e o mundo cristão, primariamente o Catolicismo e,
secundariamente, o resto da Cristandade, a grande maioria destas indagações
concentra-se, sobretudo, na bacia mediterrânica, como no caso do Magreb, Egito e
da Turquia, com alguns trabalhos sobre a antiga Pérsia e o Império Mongol (1206-
1368). Muito pouco foi feito sobre as interações entre Europeus, primi inter pares,
os portugueses e os muçulmanos, mais especificamente os mapilas3 do Malabar4,
ou seja, na parte setentrional do atual estado de Kerala da União Indiana, também
encontrados na zona meridional do estado de Karnataka e no nordeste do Estado
Tamil Nad5.

1
Doutor em Filologia e Linguística Românica pela University of Wisconsin-Madison. Professor e
pesquisador do Language Center, Columbian College of Arts and Sciences, The George Washington
University, EUA. E-Mails: <josephlevi21@yahoo.com> e <jalevi21@gwu.edu>.
2
O texto original: “For many Europeans, India was more than synonymous with Malabar than Delhi,
and often, Europeans’ primary associations were with India’s religious minorities – Muslims, Jews,
and Christians – who functioned as intermediaries for those Hindus not easily accessible on account
of class or caste restrictions”. MALIECKAL, Bindu. “Muslims, matriliny, and A Midsummer Night’s
Dream: European encounters with the Mappilas of Malabar, India”, Muslim World, vol. 95, n. 2,
abr. 2005, p. 298.
3
Māppila: título honorífico malaiala (malayalam), língua principal do Malabar, com o significado de
“grande filho imigrante do Malabar”. A etimologia deriva da fusão entre maha, grande, e pilla, ou
seja, filho/ genro, sendo este um título honorífico referido a qualquer pessoa vinda do estrangeiro,
incluindo até o significado de “esposo” ou “genro”. Ver: MILLER, Roland E. Mappila muslims
of Kerala: a study in Islamic trends. Madrasta: Orient Longman, 1992, p. 31 MILLER, Roland
E. “Mappila” [verbete]. In: BOSWORTH, C. E.; DONZEL, E. van, & PELLAT, C. (orgs.). The
Encyclopedia of Islam – Vol. 6. Leiden: E.J. Brill, 2007, p. 458.
4
Sabe-se com certeza absoluta que o neologismo foi criado pelo geógrafo árabe Yaqut (1179-
1229), com a crase entre Mali, de Malaiala (Malayalam), e Bār, étimo persa que designa “terra/
país”, portanto, “terra dos Malayalam/ aqueles que falam a língua malaiala”. Ver: MILLER, Mappila
muslims…, p. 43.
5
MILLER, “Mappila”, p. 458.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 27


[...] por causa de sua experiência histórica
particular, a comunidade mapila representa
um segmento significativo da Índia islâmica.6

Segundo tradições orais e fontes islâmicas árabe-pérsicas, a presença mapila


antecede a dos demais grupos muçulmanos no território indiano, do norte ao
sul, tendo esta comunidade sido fundada por “missionários” ou “embaixadores”
muçulmanos durante a própria vida do Profeta Maomé (570-632), provavelmente
logo após a sua morte ou talvez entre os primeiros dois séculos depois do seu
falecimento. Contudo, tudo parece indicar que os primeiros muçulmanos chegaram
ao Malabar antes da famosa conquista de Muhammad bin Qāsim (c. 695-715) da
Índia, em árabe denominada ‫ دْنيِس‬Sīnd, ocorrida entre o quadriênio 711-7157.
Apesar de alguns vestígios funerários terem supostamente a data de 670 e 782,
descobertos respetivamente em Irikkalur e Pantalayini-Kollan, por falta de provas
concretas os primeiros artefatos islâmico – com escritas em caracteres cúficos sobre
cobre, encontrados na área de Tarisapally, estes últimos do ano de 849 – devem
ser, portanto, considerados como aqueles comprovantes a data certa da primeira
presença muçulmana no Malabar8, com inegáveis contatos comerciais com cristãos
e judeus da região:

A inscrição é uma placa de cobre doada a uma igreja


cristã síria, datada de meados para o final do século IX, e
nela há uma lista de testemunhas que inclui tanto nomes
muçulmanos como judeus.9

Além disso, também há um relato de Zayn al-Dīn ʻAbd al-ʻAzīz al-Malībārī (1498-
1581) onde se menciona que o Islã chegou às costas do Malabar dois séculos
após a morte do Profeta Maomé, trazido por fiéis muçulmanos em peregrinação ao
Ceilão10, atual Sri Lanka, onde, segundo a tradição, se encontra a famosa pegada
de Adão11. A comunidade muçulmana vivendo ao longo da costa do Malabar,
segundo o viajante árabe al-Mas’udī (896-956), girava em torno de dez mil fiéis12.

6
O texto original: “[…] because of its particular historical experience, the Mappila community
represents a significant segment of Indian Islam”. MILLER, “Mappila”, p. 458.
7
Ver: AHMAD, Fazl. Muhammad Bin Qasim. Nova Dheli: Taj, 1983.
8
MILLER, Mappila muslims…, p. 458.
9
Texto original: “The inscription is a copper plate grant to a Syrian Christian church dated to the
middle to late ninth century, and there is a list of witnesses inscribed on it which includes both
Muslim and Jewish names”. BROWN, L. W. The Indian christians of St. Thomas. Cambridge:
Cambridge University Press, 1956, p. 89.
10
AL-DIN ʻAbd al-ʻAzīz al-Malībārī Zayn & ROWLANDSON, Michael John. Tohfut-Ul-Mujahideen:
an instorical work in the Arabic language. Londres: Oriental Translation Fund of Great Britain and
Ireland, 1833, p. 48.
11
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 55. Segundo a tradição muçulmana, Adão,
depois de ter saído do Jardim Celestial, optou por ficar no Ceilão devido à sua semelhança com o
Paraíso, daí o fato de ele ter deixado um rasto no famoso Pico de Adão, uma montanha cônica de
2.243 metros de altitude.
12
KHALIDI,Tarif. Islamic historiography: the histories of Masʻūdī. Albany: State University of New
York Press, 1975. SAARI, Peggy; BAKER, Daniel B. & PEAR, Nancy. Explorers & discoverers: from
Alexander the Great to Sally Ride. Nova York: UXL, 1995.

28 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Sempre segundo Zayn al-Dīn, os muçulmanos falaram do Islã com o Rajá
de Cranganore, Čēraman Perumāl, o último soberano Cēra de Kerala, o qual se
convertera ao Islamismo, dividira o seu império entre os seus oficiais e, em seguida,
partira em peregrinação às cidades sagradas de Meca e Medina (825)13. Em sua
viagem de regresso adoecera e, antes de morrer longe da sua pátria, pedira a dois
dos seus novos correligionários árabes que fossem converter a sua terra natal, o
Malabar. Mālik ibn Dīnār e Mālik ibn Habīb teriam assim convertido o Malabar ao
Islã: o primeiro tendo aberto as portas da fé muçulmana a Cranganore, o segundo
tendo fundado mesquitas em “Quilon [Kollam], Hubaee, Murawee, Bangore,
Mangalore, Kanjercote, Zaraftan, Durmuftun, Fundreeah, and Shaleeat”. Contudo,
a veracidade de tais eventos continua duvidosa14.

II

A cultura mapila é a cultura malaiala de


Kerala com um tempero árabe, um fato que
aponta para a relação antiga entre Kerala e
o sul da Arábia, surgida do grande comércio
de especiarias. [...] Os mapila [...] podem ser
considerados como a primeira comunidade
muçulmana assentada no sul da Ásia.15

Interessante reparar que, para evitar confusões onomásticas com os judeus (Jūta
Māppilas) e os cristãos (Nasrani Mapilas) residentes da região, os muçulmanos
começaram a ser denominados de Jonaka Māppilas. Com o passar do tempo porém,
devido ao fato de os Jūta Māppilas e os Nasrani Māppilas terem assimilado outros
grupos étnicos, a terminologia Māppila passou assim a designar só os muçulmanos
da costa do Malabar, os mapilas16, incluindo os das Ilhas Laquédivas. Contudo,
entre eles os mapilas definiam-se a si próprios simplesmente como muçulmanos:

[…] [os Mapilas] eram chamados de Moplaymar in Malayala


e Lubbaymar em Madras; mas entre si se reconhecem por
nenhum outro nome do que o de Musalmans.17

13
Cheraman Perumal Bhaskara Ravi Varma, Rajá da Dinastia Cēra, o qual reinou durante o fim
do século VIII da Era Vulgar. Ver: LOGAN, William. Malabar manual. 3. ed. Nova Dheli: Asian
Educational Services, 2000. LOPES, David (org.). História dos portugueses no Malabar por Zinadim.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. WITTEK, Paul The rise of the Ottoman Empire, Londres: Royal
Asiatic Society, 1938.
14
Ver: KOYA, S. M. Mohamed. Mappilas of Malabar: studies in social and cultural History. Calicut:
Sandhya, 1983. AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 53-54; MILLER, Mappila
muslims..., p. 459.
15
Texto original: “Mappila culture is the Malayalam culture of Kerala with an Arabian blend, a fact
that points to the ancient intercourse between Kerala and southern Arabia, founded on the great
spice trade. […] [The] Mappila […] may be regarded as the first settled Muslim community of South
Asia”. MILLER, “Mappila”, p. 458.
16
MILLER, Mappila muslims…, p. 30; Stephen Frederic Dale, Islamic Society on the South Asian
Frontier: The Māppilas of Malabar, 1498-1922, Oxford: Clarendon Press, 1980, p. 236, nota 1.
17
O texto original: “[…] [Mapilas] are called Moplaymar in Malayala and Lubbaymar at Madras; but
among themselves they acknowledge no other name than that of Mussalmans”. Grifos do autor.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 29


Não obstante as dúvidas sobre a data exata do seu aparecimento em solo
indiano, esta comunidade sempre mantivera relações comerciais com o Oriente
Médio, particularmente com o mundo de língua e cultura árabes, o Sudeste
Asiático e até a China. Comerciantes árabes e persas – assim como povos de
outras línguas, denominações, etnias, raças e culturas, incluindo muçulmanos
islamizados provenientes da vasta bacia do Oceano Índico – continuavam a chegar
a Cranganore, outrora denominada Muziris, antigo porto romano18.
Segundo o autor anônimo do famoso tratado de geografia sobre a África do
período greco-romano, o Periplus Maris Erythraei, escrito em meados do primeiro
século da era cristã, Muziris de fato abundava “em embarcações enviadas para
lá com cargas da Arábia e pelos gregos”19, todos à procura de pimenta, pedras
preciosas, ouro, marfim, seda e outros produtos locais que se podia vender com
uma grande margem de lucro na Europa e no resto do Mundo de então20.
Além disso, a costa era famosa por produzir e por ser o receptáculo de imensos
produtos vindos das demais regiões do Sudeste Asiático e mais além, como a
supracitada pimenta, o gengibre, a canela, o sândalo, o incenso, o marfim e muitas
pedras preciosas21.
Entre as primeiras fontes árabes a mencionar o Malabar e alcunhá-lo de “terra da
pimenta”, encontramos o ‫تِك‬ َ ‫سَمْلا با‬
َ ‫ كِلَمَمْلا و كِلا‬Kitāb al-Masālik wa al-Mamalik22,
َ
de 846, e o ‫بْكأ‬ ّ ِ ‫ دْنِهْلا و ني‬Akbār al-Sīn wa al-Hind23, obra escrita alguns anos
َ ‫سلا را‬
mais tarde, em 851.
Já um século mais tarde o Malabar contava com uma grande comunidade
muçulmana que cresceu com o tempo. O supracitado Zayn al-Dīn relata que
pouco antes da chegada dos portugueses, e durante quase um século depois, os

BUCHANAN,Francis Hamilton. A journey from Madras through the countries of Mysore, Canara,
and Malabar. 1800-1801. Vol. 2. Londres: T. Cadell & W. Davies, 1807, p. 21.
18
Ver: MILLER, J. Innes. The spice trade of the Roman Empire, 29 B.C. to A.D. 642, Oxford: Oxford
University Press, 1969. HOURANI, George F. Arab seafaring in the Indian Ocean. Princeton:
Princeton University Press, 1951. TIBBETTS, G. R. “Pre-Islamic Arabia and South-East Asia”.
Journal of the Malayan British Royal Asiatic Society, vol. 29, n. 3, 1956, p. 182-208. TIBBETTS, G.
R. “Early muslim traders in South-East Asia”. Journal of the Malayan British Royal Asiatic Society,
vol. 30, n. 1, 1957, p. 01-45.
19
O texto original: “[…] in ships sent there with cargoes from Arabia and by the Greeks”. SCHOFF,
Wilfred H. (org.). The periplus of the Erythraean Sea. Nova York: Longmans, 1912, p. 44.
HUNTINGFORD, George Wynn Brereton & CHIDES, Agatha R. “The periplus of the Erythraean
Sea”. Londres: Hakluyt Society, 1980, p. 20.
20
HUNTINGFORD, George Wynn Brereton & CHIDES, Agatha R. “The periplus of the Erythraean
Sea”. Londres: Hakluyt Society, 1980, p. 20.
21
Ver: MILLER, Mappila muslims…, p. 41. KOYA, Mappilas of Malabar…, p. 05; DALE, Stephen
Frederic. Islamic society on the South Asian frontier: the Māppilas of Malabar, 1498-1922, Oxford:
Clarendon, 1980, p. 13-14.
22
KHURDADHBIH, Ibn. Mukhtār min kitāb al-lahw wa al-malāhī, Nuşūş wa durūs – vol. 17. Beirute:
Dār al-Mashriq, 1986. KHURDADHBIH, Ibn; GOEJE, M. J. de & QUDAMAH, Ibn Jaʻfar. Kitāb
al-masālik wa-al-mamālik – vol. 6. Leiden: E.J. Bril, 1967. KHURDADHBIH, Abu al-Qasim Ubaya
Allah Ibn. Al-Masalik wa al-Mamalik. Leiden: Brill, 1889. Ver também: AHMAD, S. Maqbul (org.).
Arabic classical accounts of India and China. Shimla: Indian Institute of Advanced Study, 1989, p.
xi.; MILLER, “Mappila”, p. 458.
23
SAUVAGET, Jean. Aḵbár al-Şín wa-al-Hind: relation de la Chine et de l’Inde rédigée en 851. Paris:
Belles Lettres, 1948.

30 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


mapilas constituíam mais de dez por cento da população do Malabar24. Segundo
Duarte Barbosa os mapilas são fruto da miscigenação entre homens muçulmanos
e mulheres locais, todos falando malaiala (Malayalam), e vestidos ao modo dos
Nāyares e, dada sua origem indiana, eram também matrilineares:

[os homens muçulmanos] se casam com tantas mulheres


quanto possam apoiar e manter, assim como mantém
muitas concubinas pagãs de casta inferior. Se eles têm
filhos ou filhas destas, os tornam mouros e algumas vezes
também a mãe, e desse modo esta geração maligna
continua a aumentar em Malabar.25

Contudo, entre os conversos à nova fé vinda do Oriente Médio também


encontramos sefarditas da Diáspora, judeus das demais diásporas, cristãos orientais e
ortodoxos, nestorianos da Ásia Central, etíopes, egípcios, muçulmanos magrebinos
e levantinos, assim como membros das castas hindus mais baixas, todos com uma
alta percentagem de casamentos mistos, interreligiosos: “Estes grupos viviam lado
a lado, uma vez que Malabar não possuía assentamentos contíguos ou bairros
étnicos ou religiosos”26.
O famoso erudito e viajante magrebino de todos os tempos, Ibn Battūta (1325-
1354), oferece-nos um dos primeiros relatos sobre Calicute27. Em 1342, aquando de
sua visita à cidade portuária, o itinerante muçulmano árabe-berbere descreve uma
cidade pululante, com comerciantes vindos dos quatro cantos do mundo de então:
Ceilão (Sri Lanka), China, as Ilhas Maldivas, a Península Arábica, sobretudo o atual
Iemen e Omã, a antiga Pérsia e a Ásia Central, todos à procura das tão desejadas
especiarias. Além disso, Ibn Battūta menciona que havia muçulmanos ao longo de
toda a Costa do Malabar, todos de confissão Shafi’ita, fato que denota, mais uma
vez, a adesão à esfera árabe-islâmica do Oriente Médio, em puro contraste com
o resto do subcontinente indiano, mais atraído pela esfera perso-túrquica da Ásia
Central28.

24
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 59. MILLER, “Mappila”, p. 459.
25
O texto original: “[the muslim men] […] marry as many wives as they can support and keep as
well as many heathen concubines of low caste. If they have sons or daughters by these they make
them Moors, and ofttimes the mother as well, and thus this evil generation continues to increase in
Malabar”. LONGWORTH, Mansel Dames (org.). The book of Duarte Barbosa – vol. 2. Londres:
Hakluyt Society, 1921, p. 74-75.
26
Texto original: “These groups lived side-by-side, since Malabar possessed no contiguous settlements
and no ethnic or religious neighborhoods”. MALIECKAL, “Muslims, matriliny…”, p. 300. Ver
também: AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 68-69. MILLER, “Mappila”, p.
459. MILLER, Mappila muslims..., p. 21.
27
Ver, entre outros: IBN-BATTUTA, Muhammad Ibn ʻAbdallāh; DEFREMERY, C.; SANGUINETTI,
B. R.; GIBB, H. A. R.; BECKINGHAM, C. F. & BIYAR, A. D. H. The travels of Ibn Battūta: A.D.
1325-1354. Londres: Hakluyt Society, 1958. IBN-BATTUTA, Muhammad Ibn ʻAbdallāh & APETZ,
Heinrich. Descriptio terrae Malabar. Jena: Croecker, 1819. RUMFORD, James. Traveling man: the
journey of Ibn Battuta, 1325-1354. Boston: Houghton Mifflin, 2001. HARVEY, L. P., Ibn Battuta:
makers of Islamic civilization. Londres: I.B. Tauris; Oxford Centre for Islamic Studies, 2007. DUNN,
Ross E. The adventures of Ibn Battuta, a muslim traveler of the Fourteenth Century, Berkeley:
University of California Press, 1986.
28
IBN-BATTUTA, Muhammad Ibn ʻAbdallāh. Rihlat Ibn Battutah, Beirute: Dār Şādir, 1960.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 31


III

[...][Em Kerala] [...] as cidades portuárias


funcionavam como entrepostos para a
passagem de mercadorias entre o Oeste
e o Leste da Ásia, além de servir como
mercados para a produção local. [...] o
comércio desempenhou um papel crítico na
política local e sua importância determinou
a posição dos muçulmanos na sociedade
Malayali no final do século XV.29

Devido ao comércio das especiarias, sobretudo a pimenta, durante séculos esta


comunidade de muçulmanos – mais uma vez, em si fruto da miscigenação entre
homens muçulmanos, particularmente árabes e persas, e mulheres autóctones do
subcontinente indiano e mais além, da Europa à China – conseguiu crescer em
número e prestígio socioeconômico a tal ponto de se encontrar em condições de
entrar em negociações/ conflitos comerciais com os portugueses, logo depois da
chegada de Vasco da Gama em 1498.
Os mapilas, devido ao seu plurissecular envolvimento no comércio local
e, mormente, transnacional, conseguiram manter uma rica e duradoura rede
comercial que se estendia do Malabar ao Oriente Médio e, mais ao sul, à costa
oriental africana, a assim chamada Costa Suaíli30, em si um receptáculo de variadas
culturas banto-árabe-pérsicas31, miscigenadas e islamizadas, organizadas segundo
um sistema de cidades estado ao longo da costa índica ou não muito longe desta,
entre a atual Mogadíscio – a mais setentrional de todas as cidades estado suaílis – e
o atual Estado moçambicano de Sofala32.

IV

A Costa Suaíli, antes como agora, se bem que em medida menor, era:

[…] um extraordinário corredor comercial, cujas aldeias


costeiras [cidades-estados] reuniam as riquezas do interior

29
O texto original: “[…] in [Kerala] […] the port cities functioned as entrepôts for the passage of
merchandise between West and East Asia in addition to serving as markets for local produce. […]
trade played a critical role in local politics and its importance determined the Muslims’ position in
late fifteenth-century Malayāli society”. DALE, Stephen Frederic. Islamic society on the South Asian
frontier: the Māppilas of Malabar – 1498-1922. Oxford: Clarendon Press, 1980, p. 12.
30
A Costa Suaíli cobria uma vasta área abrangendo as seguintes nações e áreas da África Oriental:
centro-norte de Moçambique, Tanzânia e Quênia, assim como as costas meridionais da Somália
até à capital. Ver: LEVI, Joseph Abraham. “Missionação em terras africanas, de Cabo Verde a
Moçambique: o legado sócio-religioso de S. Francisco Xavier”. Brotéria – Cristianismo e Cultura,
Braga, vol. 163, n. 5/6, nov./dez. 2006, p. 525-545.
31
Depois acrescentadas por contingentes étnico-linguísticos do subcontinente indiano os quais
contribuíram à formação da língua e cultura suaílis.
32
As principais cidades-estados suaílis ao sul de Mogadíscio eram: Quíloa, Quelimane, Lamu, Pate,
Luziwa, Melinde, Mombaça, Sofala e Zanzibar.

32 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


de África, principalmente ouro e marfim, mas também
outras mercadorias como o cobre e o ferro, cristal e pedras
preciosas, peles e madeira, que trocavam pelos produtos
do Oriente. Os mercadores, seguindo os ventos da monção,
chegavam a esta costa — e tinham-no feito ao longo de mil
anos — vindos do [Magreb, do] Egipto, da Arábia, do golfo
Pérsico, da Índia e, ocasionalmente, do Sudoeste asiático
e da China. Trocavam os seus produtos, principalmente
artigos manufacturados como cerâmica, vidro e tecidos,
pelos valiosos minérios e matérias-primas de África.33

Quando da chegada de Vasco da Gama à costa oriental africana em 1498


os habitantes, todos muçulmanos ou pelo menos populações banto, eram os
suaílis islamizados34. Assim como o resto da costa oriental africana, do Cabo de
Boa Esperança a Mogadíscio, a cultura local era aquela suaíli, palavra árabe por
“habitantes da costa” (‫س‬ َ ‫حاَو‬
ِ ‫ ل‬sawāhil), que designava um conjunto de populações
banto que, a partir dos séculos IX a XI da era cristã, sobretudo devido aos contatos
com comerciantes muçulmanos – principalmente árabes e persas – estabelecidos
ao longo da costa oriental africana, começaram a converter-se ao Islã ou, pelo
menos, a islamizar-se, ou seja, a sobrepor/ adaptar as normas de vida islâmica a
seus usos e costumes bantos, de culto religioso animista. Para a Costa Suaíli, então,
assim como para o resto do continente africano ao sul do grande deserto, a:

[…] chegada da pequena frota de quatro navios de Vasco


da Gama à Ilha de Moçambique, em 2 de março de 1498,
abriu uma nova era na história da África oriental a Sul
do Sara e marcou o início de mais de quatro séculos de
intervenção europeia nas sociedades da região.35

Na Ilha de Moçambique, assim como em todas as cidades-estados suaílis da


região, os portugueses encontraram muçulmanos trajados em “finos tecidos de
linho ou de algodão com riscas variadamente coloridas e de rica e elaborada
feitura”. Os navios muçulmanos atracados nos portos, e provenientes dos demais
ancoradouros do Oriente Médio, assim como do Sudeste Asiático, encontravam-
se “carregados de ouro, prata, cravo, pimenta, gengibre e aros de prata”, além de
“pérolas, joias e rubis, tudo artigos que são usados pela gente da região” suaíli36.

33
HORTON, Mark. “O encontro dos Portugueses com as cidades swahili da costa oriental de África”.
In: Culturas do Índico. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1998, p. 374. Ver também: HORTON, Mark. Shanga: the Archaeology of a muslim
trading community on the Coast of East Africa. Londres: British Institute in Eastern Africa, 1996, p.
414-418; LEVI, “Missionação em terras...”, p. 525-545.
34
Para ulteriores informações, ver, entre outros: CHITTICK, H. H. Kilwa: an islamic trading city on
the East African Coast. 2 vols. Nairobi: British Institute in Eastern Africa, 1974.
35
HORTON, “O encontro dos portugueses...”, p. 373.
36
VELHO, Álvaro. Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1498). Organizado
por Mem Martins Neves Águas. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. VELHO, Álvaro. A
journal of the first voyage of Vasco da Gama, 1497-1499. Tradução de Ernest George Ravenstein

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 33


Infelizmente, assim como sucedera em outras ocasiões, aliás quase sempre,
urbi et orbi, os mapilas, pelo fato de serem muçulmanos, foram subitamente
considerados infiéis, acérrimos inimigos da Fé, levando a famigerada e errada
alcunha de “mouros” ou até de “turcos”. Daí a violenta campanha antimuçulmana
dirigida contra os mapilas.
Além da força física, um dos meios para ganhar contra o “infiel” muçulmano
em terras indianas e, ao mesmo tempo, tentar usurpar, ou pelo menos controlar o
seu poder econômico, especialmente o comércio lucrativo da pimenta, foi a antiga
tática de evangelizar o “outro” para assim galvanizá-lo e, consequentemente, poder
negociar com ele, obviamente a seu detrimento, tudo em nome de Deus.
Contrariamente às expectativas, como já mencionado, os mapilas eram
matrilinares e, consequentemente, não correspondiam ao estereótipo dos
muçulmanos casados com muitas mulheres – segundo a Lei Islâmica, fiqh ‫هْقِف‬,
Direito Religioso, até quatro – e concubinas (sempre segundo a Lei Islâmica,
teoricamente ad infinitum), que os europeus tinham de todos os muçulmanos, a
prescindir do seu espaço físico-geográfico37.

Desse modo, eles [mapilas] continuaram a


prosperar até que os portugueses chegaram
à Índia.38

A chegada dos portugueses em solo indiano em 1498 e, consequentemente,


no Malabar, teve consequências particulares, indeléveis na história da região,
sobretudo no que diz respeito à economia local e ao setor religioso, em ambos
os casos a permear em torno da comunidade muçulmana mapila. Durante 158
anos, até que os lusitanos foram substituídos pelos holandeses em 1656, o alvo dos
portugueses foi o de derrotar os mapilas enquanto muçulmanos e, mormente, por
serem os senhores do comércio da pimenta39. Dado que não conseguiam adquirir
a pimenta a preços módicos e em grandes quantidades, a única solução, então, era
aquela de apoderar-se do comércio.
Aliás, esta atitude encontra-se em linha com as diretivas seguidas no resto do
Império Português, ou seja, quando possível, tentar apoderar-se do centro do

(1898). Londres: Hakluyt Society, 1963, p. xx. Sobre o mesmo assunto, ver: ALLEN, J. de V. “The
Swahili house: cultural and ritual concepts underlying its plan and structure”. Art and Archeology
Research Papers, 1979, p. 1-32; DAMES, M. (org. & trad.). The book of Duarte Barbosa, vol. 1.
Londres: Hakluyt Society, 1918. FREEMAN-GREENVILLE, G. S. P. The East African coast: select
documents from the First to the Earlier Nineteenth Century. Londres: Rex Collings, 1974.
37
Contudo, a poligamia e a concubinagem devem obedecer a certas regras previstas pela Lei Islâmica.
Na verdade, o simples fato de a poligamia e concubinagem serem atos lícitos ou permissíveis não
implica que a maioria dos muçulmanos subscreva tais práticas, usualmente deixadas para homens
com recursos financeiros adequados, e sempre dependentes da autorização de suas outras esposas.
38
O texto original: “Thus they [Mapilas] continued to thrive until the Portuguese came to India”.
DAMES, The book of Duarte Barbosa, p. 78.
39
Ver, entre outros: DAS GUPTA, Ashin. Malabar in Asian trade: 1740-1800. Cambridge: Cambridge
University Press, 1967. DAS GUPTA, Ashin. India and the Indian Ocean World: trade and politics.
Nova Dheli: Oxford University Press, 2004.

34 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


comércio em vez de simplesmente negociar com o poder em questão. Basta pensar
no comércio das especiarias em outras zonas, como no caso das comunidades
judaicas de Cochim:

Os Bene Israel, os Judeus de Cochim e os Judeus de


Bagdade constituíam, assim, as comunidades judaicas
em Índia antes da chegada dos Ingleses. Os Bene Israel
concentravam-se em Bombaim e seus arredores. […] As
suas principais ocupações eram a indústria do óleo de
coco, a agricultura, o comércio e o artesanato em pequena
escala.40

A atitude dos portugueses perante os mapilas segue estes princípios. Assim


fazendo eles, os portugueses se tornariam os verdadeiros senhores do comércio
lucrativo desta especiaria indígena da região malabárica, aliás já introduzida no
resto do mundo de então, particularmente no Ceilão (Sri Lanka), na Malásia, na
Indonésia e no Brasil. Contudo, apesar das intenções de manter o monopólio
absoluto das especiarias e do comércio em geral, os portugueses compreenderam
que, devido à falta de recursos, tinham de aliciar a cooperação de soberanos locais,
preferivelmente cristãos, em segunda hipótese, hindus ou em última hipótese
muçulmanos mas, pelo menos, fiáveis:

Desde o início do século XVI os portugueses tentaram se


livrar dos comerciantes muçulmanos e dos intermediários
e ter contato direto com os produtores de pimenta e
outras especiarias. Mas por causa da falta de dinheiro e
materiais necessários para a troca, tinham que depender
dos governantes locais e principalmente dos comerciantes.
Apesar dos esforços conscientes para trazer os comerciantes
não muçulmanos locais para expulsar os comerciantes
muçulmanos, os portugueses tinham de conciliar a
situação e ter alguns comerciantes muçulmanos influentes
em confiança.41

O relacionamento entre os portugueses e os mapilas nunca foi positivo,

40
LEVI, Joseph Abraham. “Os Bene Israel e as comunidades judaicas de Cochim e de Bagdade:
avaliação de uma antiga presença judaica em solo indiano”. Revista Portuguesa de Ciência das
Religiões, vol. 2, n. 3-4, 2003, p. 174. Ver também: BANERJI, Chitrita. Eating India: an odyssey
into the food and culture of the land of spices. Nova York: Bloomsbury; 2007.
41
O texto original: “Right from the beginning of the sixteenth century the Portuguese tried to get rid of
the Muslim merchants and the middlemen and to have direct contact with the producers of pepper
and other spices. But on account of the lack of money and necessary materials for the exchange, the
Portuguese had to depend on the local rulers and chiefly the merchants. Despite conscious efforts to
bring in local non-Muslim merchants to oust the Muslim merchants, the Portuguese had to reconcile
with the situation and had to take some influential Muslim merchants into confidence”. MATTHEW,
K. S. “Indo-portuguese historiography: Malabar coast, a critique”. In: GRACIAS, Fátima da Silva;
PINTO, Celsa & BORGES, Charles (orgs.). Indo-portuguese history: global trends – Proceedings of
the XI International Seminar on Indo-Portuguese History. Panjim: Maureen & Camvet, 2005, p. 69.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 35


principalmente devido a estas duas rivalidades, a religiosa e a comercial:
“Ganância, inveja e intolerância religiosa combinados para formar uma mistura
mortal que definiu as relações entre portugueses e mapilas”42. Ambos estes fatores
fizeram de maneira que existissem hostilidades permanentes entre os dois grupos,
desde os primórdios, como nos demonstram as primeiras tentativas, inicialmente
“pacíficas”, de trocas de produtos. A resposta negativa do Samorim de Calicute
foi vista como uma manipulação dos mapilas junto do soberano do antigo Estado
hindu de Calicute, o magnânimo Samutiri Manavikraman Rajá43.
Temos de fato lembrar que Calicute sempre foi um centro com forte presença
muçulmana, sobretudo de comerciantes de língua e cultura árabes ou mercadores
islamizados, muito à vontade com os usos e costumes muçulmanos. Os samorins
de Calicute sempre estiveram ligados ao comércio externo, encorajando-o
incessantemente, apesar da proveniência dos mercadores que aproavam aí ou que
faziam de Calicute sua demora (semi)permanente. Os portugueses representavam
assim um outro grupo de comerciantes e um possível aliado entre as lutas de
Calicute e Cochim:

[...] Enquanto houve um grande contingente de


comerciantes muçulmanos em Cochim suas atividades
foram ofuscados por outros no grande empório em
Calicute, e os portugueses representaram um novo
mercado e as possibilidades de receitas ampliadas.44

VI

Na Índia, a empreitada portuguesa foi


inicialmente concentrada no ponto focal
do comércio de especiarias indiano em
Calicute, que iniciou uma luta amarga com
os muçulmanos que viviam e comerciavam
naquela cidade e nas cidades costeiras
adjacentes.45

Estas hostilidades entre os portugueses e os muçulmanos no subcontinente


indiano, sobretudo os mapilas, criou, assim como as hostilidades europeias
contra os muçulmanos no resto do mundo de então, uma reação antiportuguesa,
antieuropeia que, com o passar do tempo, se desenvolveu em lutas religioso-
ْ ‫ مَال‬Dār al-Islām, e do
ideológicas: de um lado o mundo muçulmano, a ‫سِإلا راَد‬

42
O texto original: “Greed, jealousy, and religious intolerance combined to form a deadly concoction
that defined Portuguese-Mappila relations”. MALIECKAL, “Muslims, matriliny...”, p. 301.
43
DALE, Islamic society..., p. 34.
44
O texto original: “[…] while there was a large contingent of Muslim traders in Cochin, their activities
were overshadowed by others in the great emporium at Calicut, and the Portuguese represented a
new market and the possibilities of enlarged revenues”. DALE, Islamic society..., p. 39.
45
O texto original: “In India the Portuguese assault was initially concentrated at the focal point of the
Indian spice trade at Calicut, which initiated a bitter struggle with the Muslims who lived and traded
in that city and the adjacent coastal towns”. DALE, Islamic society..., p. 33.

36 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


outro, a‫ بْرَحْلا راَد‬Dār al-Harb, o “território do Islã” contra o “território do inimigo
(do Islã)”46.
Um manuscrito de 180047, em dois volumes, arquivado na Biblioteca Britânica
e traduzido em dois volumes pelo estudioso John William Wye – intitulado History
of the Portuguese landing in India – nos relata que os portugueses, através da figura
predominante de Vasco da Gama, estavam dispostos a pagar um preço muito alto
em troca das especiarias. Contudo, o Samorim, em contrapartida, tinha de “put a
stop to the trade of Arabs and Mapilas”48.
O supracitado historiador muçulmano de origem indiana, Al-Malībārī Zayn al-
Dīn ʻAbd al-ʻAzīz, na sua obra ‫ت‬ ُ ‫فْح‬
ُ ‫ف نيِّدِهاَجُمْلا ة‬ َ ‫بْلا لاَوْحأ َ دْع‬
ِ ‫بي‬ ُ ‫تْر‬
ُ ‫ق‬ ِ ّ ‫ ن‬Tuhfut
َ ‫ييِلا‬
al-Mujāhidīn fī ba’d ahwāl al-Burtuqāliyyīn – ou seja, A Prenda aos Combatentes
(Mujahidins) a respeito de algumas façanhas dos Portugueses – de fato salienta
que os portugueses, denominados “francos”49, tinham o hábito de “avançar na

46
ْ ‫مَال‬, o território onde reina o Islã, Dār al-Harb, ‫بْرَحْلا راَد‬, território onde a
Dār al-Islām, ‫سِإلا راَد‬
maioria dos habitantes é constituída por não muçulmanos.
47
The British Library, Londres, Mss Eur K194 1800.
48
WYE, John William (trad.). History of the Portuguese Landing in India, Mss Eur K194 1800.
Londres: British Library, 1800.
49
Fo-lang-chi é a adaptação chinesa do persa Farangi, Firingi – Farsi contemporâneo ‫ويسنرف‬
Feransavi – o qual, por sua vez, vem do Árabe ‫سْنرف‬ ّ ِ ‫ ة‬Faransiyyah e/ ou ‫سنرف‬ َ ‫ي‬
ّ ‫ة‬Faransawiyyah.
Como a palavra sugere, o étimo refere-se aos franceses. A mudança da fricativa alveolar s /s/ para
a fricativa pós-talveolar j /dg/, e, consequentemente, para a plosiva velar g /g/ é um fenômeno
muito comum em muitas línguas. Através dos séculos os muçulmanos entraram em contacto com
outros europeus, não só os franceses/as tropas francesas das Cruzadas, mas também com outras
nacionalidades e etnias europeias. Isto fez com que a palavra passasse a denotar o “outro”, ou seja,
o “bárbaro”, neste caso, o infiel europeu. A palavra ‫ موُر‬Rūm, por exemplo, é também um exemplo
deste tipo de generalização linguístico-étnica. Originalmente aplicada aos romanos e ao Império
Romano do Oriente, a palavra também abrangia noções como a de Bizantino, a Igreja Ortodoxa,
os turcos e todas as populações túrquicas da Ásia Central que eventualmente se fixaram na atual
Turquia. Graças aos comerciantes muçulmanos árabe-persas a terminologia Farangi, com todas as
suas conotações, entrou na Ásia. Dado que os portugueses foram entre os primeiros – e em muitos
casos foram os primeiros – europeus da Época Moderna (1453-1789) que tiveram contatos com
algumas partes da Ásia, é normal que a palavra Firinghee/Farangi/Firingi fosse primariamente usada
para identifica-los. Henry Yule e A. C. Burnell são da opinião que a palavra para representar todos
os europeus, particularmente os portugueses e os seus descendentes, é usada na Ásia nesta acepção
há muito tempo. Contudo, na maioria das vezes, a palavra tem uma conotação pejorativa, como
esclarecem: “[…] when now employed by natives in India is either applied (especially in the South)
specifically to the Indian-born Portuguese, or, when used more generally, for ‘European’, implies
something of hostility or disparagement. […] In South India the Tamil P’arangi, the Singhalese
Parangi, mean only ‘Portuguese’, [or natives converted by the Portuguese, or by Mahommedans,
any European […]. In a Chinese notice of the same age [end of the 13th, beginning of the 14th
century] the horses carried by Marignolli as a present from the Pope [Pope Nicholas V, (1288-
1292)] to the Great [Khubilai] Khan [1260-1294] are called ‘horses of the kingdom of Fulang’, i.e.,
of Farang or Europe”. YULE, Henry & BURNELL, A. C. Hobson-Jobson: a glossary of colloquial
Anglo-Indian words and phrases, and of kindred terms, etymological, historical, geographical and
discursive (1886). Organizado por William Crooke. Londres: John Murray, 1903, p. 352-353. Ver
também: KELLY, John Norman D. The Oxford dictionary of popes. Oxford: Oxford University
Press, 1988, p. 205-206. LAMBTON, Ann K.S. Persian vocabular. Cambridge: Cambridge
University Press, 1975, p. 114. LEVI, Joseph Abraham O dicionário português-chinês de Padre
Matteo Ricci, S.J. (1552-1610): uma abordagem histórico-linguística. Nova Orleans: University
Press of the South, 1998, p. 54-55, nota 39. PORTER, Jonathan. “The troublesome Feringhi:
late Ming Chinese perceptions of the Portuguese and Macau”, Portuguese Studies Review, vol.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 37


propriedade dos maometanos, e suprimir seu comércio”50, sobretudo o comércio
dos muçulmanos de origem árabe ou dos muçulmanos que mantinham relações
comerciais com eles. Isto provocou uma reação em cadeia a qual, no espaço de
poucos anos, levou os mapilas à completa falência:

Eles conseguiram cortar o comércio árabe, e os mapilas,


que haviam sido impedidos de se tornar proprietários
de terras pelo sistema hereditário de posse da terra e
que dependiam de comércio foram lançados em limites
econômicos reduzidos, que eventualmente se tornaram
um padrão de pobreza.51

7, n. 2, 1999, p. 29, nota 16. TRAINI, Renato (org.). Vocabolario arabo-italiano – Vol. 1. Roma:
Istituto Per l’Oriente, 1993, p. 500; TRAINI, Renato (org.). Vocabolario arabo-italiano – Vol. 2.
Roma: Istituto Per l’Oriente, 1993, p. 1084. Todavia, nem sempre o étimo retratava os maus hábitos
dos Portugueses. Aquando da pirataria chinesa e do contrabando chinês – sobretudo durante os
reinados de Chêng-tê, (1506-1521), e Chia Ching, (1521-1566/67) – os Fo-lang-chi foram, de fato,
os aliados do Império Celeste, muitas das vezes até ajudando as forças chinesas nas suas lutas
contra os transgressores chineses: “The Fo-lang-chi have never invaded our land nor slaughtered
our people nor plundered our treasures. Furthermore, when they first came to China, they chased
away the bandits on our behalf because they were afraid that they might be involved. […] The Fo-
lang-chi […] eradicated the pirates that had been rampaging for about twenty years”. LIN,Hsi-yüan
Chin Shih. Lin T’zu-yai hsien-sheng wen-chi, 18 Chuan. 8 vols. Organizado por Ming Wan-li chi en
k’o pen. In: SO, Kwan-wai. Japanese piracy in Ming China during the 16th Century. East Lansing:
Michigan State Uuniversity Press, 1975, p. 69-70. Ver também: Lung-ch’ing, Ch’ao-yang hsien-chih
Ming lung-ch’ing. 6 nien. 1572. 15 vols. China National Microforms Import and Export. Quanto
à palavra Fo-lang-chi, uma abordagem completamente diferente foi tomada por Joseph Edkins e
Friedrich Hirth. Ambos consideraram as origens de Fo-lang-chi, com a sua variante Fu-lin, persas,
Farang, e não árabes, Afrangi, e, mormente, que era “the Persian Farang applied after the early
Mohammedan [sic] conquests to western nations generally”. EDKINS, Joseph. “More about Fu-lin”.
Journal of the China Branch of the Royal Asiatic Society, n. 20, 1885, p. 283. Quanto às mudanças
de Farang para Fo-lang-chi or Fu-lin, Edkins postula: “The Chinese on their part in writing the
Semitic ng in Farangi used m as the final […]. The Chinese ng is the same as the English. The Arab
and Persian ng may be something very different so that they are not used convertibly”. EDKINS,
“More about Fu-lin”, p. 284. Baseando-se nas teorias de Richardson, encontradas no seu Persian
Dictionary, Edkins frisa que em árabe Afranj aplica-se a todos os europeus, Afrang aos turcos, e
Afrangi aos persas e aos tártaros. O a prostético é, portanto, ligado ao empréstimo lexical persa
Farang, após a epéntese do primeiro: “We may regard the Arabic term with initial a as a borrowed
word and the Persian as native. […] It is better to regard the word as Persian and of native origin.
[…] The Arabs learned it and carried it westward prefixed an a, and confounded if [it] subsequently
with the European word Francoi, when the conquest of Charlemagne made the Franks the chief
power in Europe. […] Probably then in the times of the Caliphate of Bagdad the Persian name for
Europeans prevailed and was communicated to India and China by the Arabs and Nestorians as
early as the Sui dynasty. […] The atual word in use among missionaries in China at that time and
among Arab traders at Canton would naturally be the Persian Farang or Fo-lin”. EDKINS, Joseph.
“Fu-lin, a Persian Word”. Journal of the China Branch of the Royal Asiatic Society, n. 21, 1886,
p. 109. Ver também: EDKINS, Joseph. “Who Were the Fu Lin People?”. Chinese Recorder, n. 16,
1885, p. 304; p. 366. Joseph EDKINS, “Some geographical terms in the Tibetan language: a note”,
Chinese Recorder 16 (1885): 454; Friedrich HIRTH, “More about Fu-lin”, Journal of the China
Branch of the Royal Asiatic Society 20 (1885): 283-284.
50
Texto original: “trespass on the property of the Mahomedans [sic], and to oppress their commerce”.
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 79.
51
O texto original: “They succeeded in cutting off the Arab trade, and Mappilas who had been
prevented from becoming landowners by the hereditary system of land tenure and who depended

38 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


As recusas do Samorim em cooperar com os portugueses foram vistas como uma
grave ofensa, sobretudo em vista do fato de que o soberano hindu era considerado
cristão, se bem que de uma confissão diferente ou “herética” e, portanto, tinha
o dever de defender a cristandade a todo custo e, consequentemente, alinhar-se
com os portugueses em sua luta contra os “infiéis muçulmanos”, neste caso os
mapilas52. De fato, a segunda viagem de Pedro Álvares Cabral à Índia também
tinha uma missão especial, ou seja, instruir os “cristãos” liderados pelo soberano
hindu na verdadeira fé católica romana. Quanto ao Samorim, ele tinha que se
lembrar de que “todos os príncipes cristãos estavam obrigados a lutar contra os
muçulmanos, que deveriam ser expulsos de Calicute”53.
Uma testemunha ocular holandesa publicou em Antuérpia, em 1504, uma obra
intitulada Calcoen, ou seja, Calicute, em que o marinheiro neerlandês nos relata
que a tática dos portugueses era aquela de roubar as mercadorias aos muçulmanos,
incluindo os mapilas, em vez de comprá-las regularmente nas praças locais. A 11
de setembro de 1502, em Cananor, de fato houve um incidente que mereceu seu
registro na História. A seguir, o autor fala do ponto de vista português:

[...] Os navios de Meca [...] transportam as especiarias que


chegam ao nosso país, e nós deterioramos as florestas,
de modo que somente o rei de Portugal conseguisse as
especiarias de lá. Mas nos foi impossível completar nosso
plano. Mesmo assim, ao mesmo tempo tomamos uma
embarcação de Meca, a bordo da qual havia 380 homens,
mulheres e crianças, e deles tiramos pelo menos 12.000
ducados e mais 10.000 em mercadorias, e explodimos o
navio e todas as pessoas a bordo com pólvora.54

De Cananor os portugueses passaram, depois, para Calicute, onde intensificaram


suas investidas contra os muçulmanos mapilas:
[...] Pegamos um grande número de pessoas, e os

on commerce, were cast into reduced economic straits which eventually became a pattern of
poverty”. MILLER, “Mappila”, p. 459.
52
VELHO, Álvaro; GAMA, A. Fontoura da & SANGWA, Mulembo wa. Roteiro da primeira viagem de
Vasco da Gama (1497-1499): [voyage d’aller], Lubumbashi: Université Nationale du Zaïre; CELTA,
1976, p. 198.
53
O texto original: “all Christian princes were obliged to fights against Muslims, who should be
expelled from Calicut”. DALE, Islamic society..., p. 38.
54
O texto original: “[…] the ships of Meccha […] carry the spices which come to our country, and
we spoiled the woods, so that the King of Portugal alone should get spices from there. But it was
impossible for us to accomplish our design. Nevertheless at the same time we took a Meccha ship,
on board of which there were 380 men and women and children, and we took from it at least 12,000
ducats and at least 10,000 worth of goods, and we burnt the ship and all the people on board with
gun powder”. PANIKKAR, K. M. Malabar and the portuguese: being a History of the Portuguese
with Malabar from 1500 to 1663. Bombaim: D.B. Traporevala Sons, 1929, p. 50. Ver também:
ANÔNIMO. Calcoen. Antuérpia, 1504 Tradução de J. Ph. Berjeau. Calcoen: a Dutch narrative
of the second Voyage of Vasco da Gama to Calicut printed in Antwerp circa 1504. Londres: Basil
Montagu Pickering, 1874.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 39


enforcamos nos conveses dos navios, e os descemos,
cortando-lhes as mãos, pés e cabeças, e tomamos um
de seus navios e jogamos nele as mãos, pés e cabeças, e
escrevemos uma carta, que colocamos em uma vara, e o
deixamos para ir à deriva em direção a terra. Mandamos
lá um navio a que tocamos fogo, e ele queimou muitos
bens do rei.55

Para evitar mais e piores chacinas, o Samorim assinou um acordo com os


portugueses garantindo um salvo conduto a quatro embarcações muçulmanas
para viajar incólumes até o Oriente Médio. Em outras palavras, estamos perante
um caso de emissão de cartas marítimas para poder navegar incólumes no Índico
e, neste caso, também no Mar Vermelho. Os produtos importados tinham, por sua
vez, de ser levados para os portos em questão, onde se pagavam os impostos às
autoridades da Coroa56. Quanto às cartas desta área, estas eram:

[...] emitidas para navios mercantes que operavam a partir


de Cochim e Cananor, e foram mais tarde estendidas ao
norte da Índia e, de forma otimista, para grandes partes da
Ásia à medida que bases portuguesas foram estabelecidas
em Goa, em 1510, Malaca, em 1511, e Ormuz em 1515.57

Porém, no espaço de poucos dias os portugueses quebraram o acordo, voltando


a atacar os muçulmanos. Obviamente o objetivo era apoderar-se da preciosa
carga: as especiarias, sobretudo a pimenta e o gengibre que os mapilas e outros
muçulmanos transportavam para a cidade sagrada do Islã ou ao porto de Jeddah58:

[...] Eles não permitiriam que a pimenta e o gengibre


fossem levados a Meca, impedindo qualquer outro de
negociar estes ou quaisquer outros artigos, senão eles
mesmos; e declararam que, se vissem uma raiz de gengibre
ou um grão de pimenta embarcado em qualquer navio de
outrem, iriam apreender e deter tal embarcação com toda
sua carga.59

55
O texto original: “[…] We took a great number of people, and we hanged them to the yards of the
ships, and taking them down we cut off their hands, feet, and heads, and we took one of their ships
and threw into it hands, feet, and heads, and we wrote a letter, which we put on a stick, and we left
that ship to go ad-drift towards the land. We took there a ship which we put on fire, and burnt many
subjects of the king”. PANIKKAR, Malabar and the portuguese..., p. 50-51.
56
Ver: MATTHEW, K. S. “Freibriefe für den Handel an Indiens Küste”. In: KNABE, Wolfang. Auf
Spuren der ersten deutschen Kaufleute in Indien. Anhausen: Verlag Moderne Medien, 1993, p.
107.
57
Texto original: “[…] issued to merchant vessels operating out of Cochin and Cannanore, and were
later extended to north India and optimistically to large parts of Asia as Portuguese bases were
established in Goa in 1510, Malacca in 1511, and Hormuz in 1515”. DALE, Islamic society..., p. 41.
58
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 60.
59
O texto original: “[…] They would not permit the pepper and ginger to be carried to Mecca, but
prevented every other power from trading in these or any other articles but themselves; and they

40 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Obviamente houve resistência a este sistema e muitas eram as maneiras pelas
quais os comerciantes muçulmanos tentavam evitar esta imposição onerosa,
sobretudo através da rede comercial espalhada pelo Sudeste Asiático, assim como
pelo resto do mundo muçulmano, para onde estas mercadorias eram destinadas.
Tentava-se encontrar uma brecha e uma cumplicidade para combater/ evitar os
impostos pesados dos portugueses:

[...] houve mais casos de transgressão do que de


submissão. Os comerciantes muçulmanos que tinham
seus antigos contatos com as regiões da Ásia ocidental
protestaram contra a brutalidade dos portugueses.
Recorreram a seus correspondentes em áreas fora da costa
de Malabar e buscaram uma frente comum contra eles.
Mas os portugueses permaneceram presos às suas armas e
impedidos por outros de entrar no comércio com a Costa
do Malabar, embora houvesse fissuras na estrutura.60

Contudo, na maioria dos casos, os portugueses conseguiam apoderar-se dos


devidos impostos, sobretudo graças ao sistema de tenças e copas, com o qual, em
remuneração dos serviços prestados, aos régulos vassalos eram concedidos títulos
especiais, como no caso do soberano de Cochim, grande inimigo do Samorim de
Calicute:

Foram bem sucedidos em manter o rei de Cochim como


seu vassalo mais próximo, permitindo-lhe ser um rei
coroado, fazendo-o prestar juramento de fidelidade ao rei
de Portugal.61

O já citado Al-Malībārī Zayn al-Dīn ʻAbd al-ʻAzīz, em sua obra Tuhfut al-Mujāhidīn
fī ba’d ahwāl al-Burtuqāliyyīn, é muito cáustico a respeito da atitude portuguesa
perante os muçulmanos, particularmente os mapilas da região. Frequentes eram os
insultos aos muçulmanos nas ruas (incluindo as injúrias contra o Profeta Maomé),
as destruições das mesquitas ou até das casas dos muçulmanos, o confisco dos
bens, particularmente os livros sagrados, e os meios mais impensáveis para fazer de
maneira que os muçulmanos não conseguissem cumprir os seus deveres religiosos

declared that if they saw a root of ginger or a grain of pepper embarked on any other person’s
vessel, they would seize and detain such vessel with all its cargo”. PANIKKAR, Malabar and the
portuguese..., p. 51.
60
O texto original: “[…] there were more instances of violation than compliance. The Muslim
merchants who had their age-old contacts with the West Asian regions remonstrated against the
highhandedness of the Portuguese. They concurred with their counterparts in areas outside the
Malabar Coast and looked for a common front against the Portuguese. But the Portuguese stuck to
their guns and warded off the others from entering into trade with the Malabar Coast though there
were cracks in the fabric”. MATTHEW, “Indo-portuguese historiography...”, p. 67-68.
61
O texto original: “They were successful in keeping the king of Cochin as their closest vassal by
enabling him to be a crowned king, making him take oath of fealty to the king of Portugal”.
MATTHEW, “Indo-portuguese historiography...”, p. 68.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 41


básicos, inclusivamente fazer hajj, ou seja, a peregrinação às cidades sagradas de
Meca e Medina. Obviamente o meio mais vulgar e mais “limpo” para aniquilar
os muçulmanos, particularmente os mapilas, quando não podiam eliminá-los
fisicamente, era assimilá-los à cultura europeia, neste caso, aportuguesá-los e,
consequentemente, fazer de maneira que se convertessem, pelo bem ou pelo mal,
ao catolicismo.
Não faltavam casos de tortura e escravização, particularmente os membros
das tripulações quando da tomada de uma embarcação. Contudo, a ofensa mais
grave foi aquela de ter encorajado o rapto e a violação de mulheres muçulmanas,
sobretudo de etnia mapila, para assim “atenuar” a presença muçulmana e, ao
mesmo tempo, ter uma nova geração de cristãos portugueses (entenda-se, crioulos
de ascendência portuguesa)62. Esses cristãos, apesar de sua origem mista, crioula,
eram adestrados a odiar o Islã e a perseguir todos os muçulmanos:

Pois, como muitas mulheres de nascimento nobre, assim


feitas cativas, mas não encarceradas, depois de violadas
para a produção de crianças cristãs, que são tornadas
inimigas da religião de Deus, e ensinadas a afligir seus
opressores!63

Isto se deve às manobras de Afonso de Albuquerque que, com o estratagema da


miscigenação forçada/ imposta, criou uma nova classe étnica-racial, a luso-indiana,
que obviamente ajudou na formação e retenção do Império Português na região.
Foi graças a essa nova “categoria” social, étnico-linguística e racial-religiosa
– em si dúplice e polivalente – que o uso e a adoção/ apropriação da língua e
cultura portuguesas, juntamente com a religião católica (elemento identificador
muito forte, com uma pujança convergente ímpar), conseguiu ser guardada em
zonas que depois passaram para mãos alheias, como no caso dos ingleses64, dos
franceses (1664-1954)65, e dos holandeses66.

62
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 103-105.
63
O texto original: “For, how many women of noble birth, thus made captive, did they not incarcerate,
afterwards violating their persons, for the production of Christian children, who were brought up
enemies to the religion of God, and taught to oppress its oppressors!”. AL-DIN & ROWLANDSON,
Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 107.
64
Em 1665, como consequência do casamento de Catarina de Bragança (1638-1708) com D. Carlos
II (1630-1685), Rei de Inglaterra, Escócia e Irlanda (1660-1685), Bombaim, Salcete, Basseim e
Chaul foram cedidos ao Reino Unido.
65
O domínio francês era confinado em Mahé e no território de Pondichéry, no Golfo de Bengala.
Para mais informações, ver, por exemplo: GIBERT,Eugène. L’Inde française en 1880. Paris: [n.d.],
1881. MARRE, A. Annales de l’Extrême Orient, vol. 36, 1881. SICÉ, Pierre-Constant. Annuaire
statistique des établissements français dans l’Inde, Pondichéry: Imprimerie du Gouvernement, 1900-
1903. SICÉ, François-Eugène. Annuaire des établissements français de l’Inde pour l’année 1850
[-1852], 3 vols. Pondichéry: Imprimerie du Gouvernement, 1850-1852. SICÉ, Pierre-Constant.
Annuaire des établissements français dans l’Inde pour l’année 1880. Pondichéry: Imprimerie du
Gouvernement, 1880.
66
Com a capitulação de Malaca (1641), a perda de Onor, Barcelor e Mangalor (1652-1664), a
de Ceilão (1656) e a queda de Malabar, Coulão (1658), Cranganor (1662), Cananor e Cochim
(1663), os holandeses passaram a ser os donos do Sudeste Asiático.

42 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


VII

Os conflitos e os constantes ataques contra os mapilas criaram, ou melhor,


reforçaram uma já latente mentalidade beligerante perante o português, o
estrangeiro, o cristão que ocupava e atacava o “território do Islã”. Além disso,
e principalmente, o fato de muitas das comunidades muçulmanas “não locais”
voltarem ou serem forçadas a voltar ao seu lugar de origem, particularmente no
Oriente Médio e na Ásia Central, fez com que os mapilas se tornassem o principal
grupo étnico muçulmano da área, fator este que contribuiu ao nascimento de uma
“nacionalidade”, se assim se pode dizer, baseada na religião. Não é de se estranhar,
então, que ao longo dos séculos os comerciantes mapilas, para evitar surpresas
desagradáveis, e por parte dos portugueses e por partes dos outros europeus
que a História lhes propôs, acompanhassem seu negócio com armas, prontos
para responder a quaisquer ataques imprevistos. De fato, muitos mercadores
eram até soldados, treinados em contra atacar o inimigo cristão. De certa forma,
ser muçulmano mapila significava, automaticamente, ser um combatente (‫دِهاَجُم‬
mujāhid) e, em segundo lugar, ser comerciante:

Todo o seu tempo é tomado pelo serviço militar todos


conhecem o uso de armas, tanto comerciantes como
piratas e o resto; depois de passar por este treinamento
eles se tornam comerciantes ou corsários, estimando a
uma profissão tanto quanto a outro.67

O antagonismo e os confrontos entre cristãos de um lado, particularmente


os portugueses, e os muçulmanos mapilas do outro, fez com que no Malabar se
formasse uma sociedade muçulmana pronta a combater, em nome da religião, o
inimigo cristão, primus inter pares, o português.
A “prenda” de Al-Malībārī Zayn al-Dīn ʻAbd al-ʻAzīz, na sua supracitada obra
Tuhfut al-Mujāhidīn fī ba’d ahwāl al-Burtuqāliyyīn, é mesmo esta: acordar os seus
corações da letargia religiosa e motivá-los à luta, ao combate, à guerra, ِ‫ داَهج‬jihād,
contra o infiel. Os combatentes, ‫يدِهاَجُم‬
ِ ‫ ن‬mujāhidīn, tinham a obrigação de defender
o território islâmico dos ataques dos inimigos. Os‫يدِهاَجُم‬ ِ ‫ ن‬mujāhidīn que morriam
em combate, os ‫ش‬ َ ‫ نيِديِه‬shahīdīn, eram consequentemente vistos como heróis,
mártires da fé:

[...] Eu compilei este relato para inspirar os fiéis a realizar


uma jihad contra os adoradores da cruz [...] Narrei nele
alguns dos males que os portugueses infligiram aos

67
O texto original: “All their time is taken up with soldiering and they all know the use of arms, as well
as merchants and pirates and the rest; for after going through this training they become merchants
or corsairs, esteeming the one profession as good as the other”. PYRARD, François & GRAY, Albert.
The voyage of François Pyrard of Laval to the East Indies, the Maldives, the Moluccas and Brazil:
in two volumes. Londres: Hakluyt Society, 1887, vol. 2, p. 385. Ver também: PYRARD, François;
BERGERON, Pierre de & BIGNON, Jérôme. The voyage of François Pyrard of Laval, to the East
Indies, the Maldives, the Moluccas and Brazil. 2 vols. Nova York: B. Franklin, 1964.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 43


muçulmanos de Malabar, bem como um breve relato da
leis e mérito religioso da Jihad.68

Espalhar a fé e, quando for necessário, defender a fé quando o território


islâmico se encontra atacado por forças inimigas do Islã torna-se, portanto, numa
obrigação de cada crente, dado que as recompensas ser-lhe-ão retribuídas nesta
e na outra vida, ‫خآلا‬
ِ ‫ ةَر‬al-Ākhira, segundo os desejos de Deus. Assim como em
qualquer outra parte do orbe onde os europeus ou os ocidentais ocuparam com
ْ ‫ مَال‬dār al-Islām, a ideia de um grupo
a força um território muçulmano, a ‫سِإلا راَد‬
de fiéis pertencentes a uma “nação” de crentes deu aos mapilas um sentimento
irremovível de pertença, ou seja, de fazer parte de uma nação especial, sagrada
pelo simples fato da presença física de muçulmanos, a ‫ع‬ ُ ‫‘ ةّم‬ummah, ou seja, a
comunidade muçulmana mapila e, enquanto tal, diversamente de uma criança,
não podia depender de uma potência não-muçulmana – neste caso Portugal –
não pelo fato de ser uma nação predominantemente cristã (católica), mas antes,
pelo fato de os portugueses, durante os séculos, quererem tentar dominar ou até


aniquilar sua própria existência, inalienável perante Deus.

RESUMO ABSTRACT
Este estudo pretende analisar a presença, In this study I analyze the presence, the encounter,
o encontro e, consequentemente, a (quase and the almost always difficult or impossible
sempre) muito difícil e até impossível convivência coexistence between a religious group, in
entre uma confissão religiosa, como o caso this case Mapila Muslims, from one side, and
dos muçulmanos mapilas, de um lado, e o Catholicism, as lived by the Portuguese, from
catolicismo de cunho português, do outro, no the other, in the Malabar as well as in the State
Malabar assim como no resto do Estado da Índia of India (1505-1691), during 158 years (1498-
(1505-1691), durante 158 anos, entre 1498- 1656), or rather, until the Dutch took over the
1656, quando os holandeses tomaram posse area, the latter eventually being overthrown
da área, por sua vez derrotados pelos ingleses by the British (1662) who – after 67 years of
(1662), os quais – depois de um interregno de French interregnum (1725-1792) – dominated
67 anos de hegemonia francesa (1725-1792) the Indian subcontinent until its Independence
– dominaram o subcontinente indiano até sua in 1947.
independência em 1947. Keywords: Catholicism; Mapilas; Muslims;
Palavras Chave: Catolicismo; Mapilas; Portuguese Empire; 15th to 17th Century.
Muçulmanos; Império Português; Séculos XV a
XVII.

Artigo recebido em 04 out. 2015.


Aprovado em 30 jan. 2016.

68
O texto original: “[…] I compiled this account to inspire the faithful to undertake a jihād against
the worshippers of the cross […] I have related in it some of the evils which the Portuguese inflicted
upon the Muslims of Malabar as well as a brief account of the laws and religious merit of the jihād”.
AL-DIN & ROWLANDSON, Tohfut-Ul-Mujahideen, p. 05.

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CÂMARAS E COLONIZAÇÃO:
QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS
E UM ESTUDO DE CASO1
Thiago Alves Dias2

“O todo sem a parte não é todo,


A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo”.
Gregório de Matos, séc. XVII, Bahia3.

O estudo dos munícipios e de suas respectivas câmaras no Brasil tem ganhado


expressão historiográfica desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX4.
A própria constituição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, e
os demais institutos, que surgiram nos anos subsequentes em outras províncias/
estados do Brasil, foram expressão e locus privilegiado dessa produção de
conhecimento que buscava, entre outras questões, adensar as narrativas em torno
de uma identidade nacional. Se, por um lado, as revistas dos institutos privilegiaram
uma dada história que buscava desconsiderar as regiões, “descartando com isso a
polêmica do regionalismo”, por outro, possibilitava que seus sócios e colaboradores
dissertassem sobre a história dos seus municípios, na perspectiva de compor,
ideologicamente, essa “intrínseca organicidade ao conjunto nacional”5.

1
Esse texto é, originalmente, parte da dissertação de mestrado defendida em 2011 na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Todavia, a partir de críticas, sugestões e aprofundamentos que
foram se adensando durante os últimos anos, o texto original ganhou outros contornos e, com o
passar do tempo e das leituras, abandonou de vez sua feição original. Agradeço aos professores
integrantes do Simpósio Temático “Império e Colonização” pelas contribuições para melhoramento
do texto, quando de nossa apresentação no Simpósio Nacional de História ocorrido em São Paulo,
em 2011. Ao nosso pequeno e já findo, porém valioso grupo de pesquisa sobre História do Poder
Local da USP, formado por Fernando Ribeiro e Luiz Rezende, notadamente quando da realização
do nosso curso sobre câmaras municipais no Brasil colonial em 2013. Agradeço à Profa. Dra.
Fátima Lopes (UFRN) pela orientação nos momentos inicias dessa pesquisa e de suas primeiras
formulações.
2
Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. E-Mail: <dias.thiagoa@
gmail.com>.
3
MATOS, Gregório de. “Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu”. In: _____. Obra
poética. Organização de James Amado. Preparação e notas de Emanuel Araújo. Apresentação de
Jorge Amado. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 24-25.
4
Alguns exemplos: FEIJÓ, Diogo António. Guia das Câmaras Municipais do Brazil no desempenho
dos seus deveres. Por um deputado amigo da instituição. Rio de Janeiro: Typ. D’Asthe’a, 1830.
MAIA, João de Azevedo Carneiro. O munícipio: estudos sobre administração local. Rio de Janeiro:
Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1883. LOPES, Levindo Ferreira. Câmaras Municipais. Rio de
Janeiro: Livraria Popular, 1884. LAXE, João Batista Cortines. Regimento das Câmaras Municipais.
2 ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1885. JAGUARIBE, Domingos. O município e a República. São
Paulo: J. B. Endrizzi & Cia, 1897.
5
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 45


Com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1934,
o Brasil continental passou a ser analisado por seus diversos lugares, entre vilas e
distritos, dentro de suas vicissitudes e particularidades históricas. Fato esse que não
deixou de ser um projeto político, já que a criação das câmaras municipais e de seus
respectivos cargos acabaram dando continuidade à perpetuação das elites6. Temas
relacionados à origem, e primeiros povoadores numa perspectiva monográfica,
foram objetos de publicações oficiais, sobretudo, nos grandes compêndios de
história estadual. A necessidade de penhor histórico, para comprovar a relevância
das localidades, foi recorrente nas produções historiográficas brasileiras do século
XX.
É possível afirmar que, só recentemente a história local no Brasil, vem ganhando
contornos teóricos e metodológicos mais problematizados, livrando-se de
pressupostos que engessaram esse campo da história. Esse tipo de história local foi
forjada no bojo de premissas pouco frutíferas, como: entendimento que a história
da nação seria uma soma de histórias locais, como num quebra-cabeças; relação
de nascimento, vivência ou pertencimento daqueles que produziram histórias de
suas respectivas localidades; atração pelo gênero monográfico, posto o ineditismo
dessas narrativas nas localidades etc. Essas demandas de produção rechearam as
narrativas históricas locais de mitos, heróis e bairrismos identitários, dentre outros
vícios.

Velhos Objetos, Novas Interpretações

A historiografia brasileira contemporânea adensou a produção do gênero ‘história


municipal’, por, pelo menos, duas motivações; como caminho metodológico para
uma história regional e nacional, na perspectiva de uma história total, e, mais
frequentemente, como um recorte espacial e temporal capaz de fazer aproximações
com o passado à luz de problematizações e teorias. Não descartamos a questão
da expansão universitária e da pós-graduação, sobretudo, nos últimos 30 anos
e a procura por temas de pesquisas, levando os pesquisadores a produzirem um
tipo de gênero monográfico/ ensaístico, porém, acadêmico, no âmbito da história
municipal.
Temáticas como infraestrutura, aspectos geográficos, demografia, recenseamento
dos moradores, atividades econômicas, profissões, propriedade da terra, estratégias
de poder, relações interfamiliares, obras, abastecimento, saúde, higiene, lazer,

1, 1988, p. 23-24.
6
“Dar relevo ao caráter administrativo e técnico do executivo municipal no Brasil, por mais nobres
que sejam as intenções de quem assim proceda, contrasta violentamente com a cotidiana evidência
dos fatos. Muitos menos que administrador, o prefeito tem sido, entre nós, acima de tudo, chefe
político”. “A prefeitura é, tradicionalmente, ao lado da vereança e da promotoria pública, um dos
primeiros degraus da carreira política em nossa terra”. “O município é, no Brasil, a peça básica das
campanhas eleitorais”; “o ‘coronelismo’ atua no reduzido cenário do governo local. Seu habitat
são os munícipios”. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. 4 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p. 129; p. 132 e p. 251. Ver também:
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios.
São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

46 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


práticas religiosas, identidades etc. têm sido largamente discutido7. Entre essas
variadas questões da História Municipal, se faz presente de forma mais profícua, a
História da Administração Municipal, sobretudo, quando se estuda os séculos XVI
a XIX8.
Ao deslocarmos a análise dos municípios, da administração municipal e dos
poderes locais para o período colonial, emerge o tema das câmaras municipais:
sua formação, atuação e relevância, atentando para o fato de que o modelo de
municipalidade atual ainda traz, na sua estrutura orgânica, elementos dos tempos
coloniais, como é o exemplo da figura do vereador.
Tomando de empréstimo as considerações acerca da relevância da história
regional no Brasil, podemos afirmar que a história local, enquanto abordagem,
oferece “novas óticas de análise do estudo de cunho nacional, podendo apresentar
todas as questões fundamentais da história [...], a partir de um ângulo de visão que
faz aflorar o (aparentemente) supérfluo, o próprio, o particular”. Além disso, tem a
“capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente
determinado, e fazer a parte entre o individual e o social”, ou mesmo “testar a
vitalidade de teorias elaboradas”9.
Entendemos, portanto, que a história local não se resume a um problemática
menor, ou uma história localizada, ou menos como o “estudo da realidade
microlocalizada por ela mesma”10, e sim, como um recorte espacial e temporal
capaz de fazer aproximações com o passado, à luz de problematizações e teorias,
exercitando a máxima braudeliana da história como a ciência do contexto. Além de
ser um caminho metodológico para uma história regional e nacional, na perspectiva
de uma história total, como já foi apontado.
Trazendo essa discussão para a dimensão da história política, tendo como
abordagem a história local, colocamos em evidência o poder local, ou melhor,
os temas relacionados aos poderes locais. É preciso pontuar que, assim como a
história local, enquanto abordagem e, portanto, carente de aproximações com
outras dimensões do campo histórico e do intenso diálogo contextualizado, o poder
local só pode ser investigado, quando colocado em perspectiva e mediado. Assim
como a história local, o poder local não se resume a uma problemática menor, ou
a um exemplo do funcionamento do poder em pequena escala.
O poder local frequentemente é mensurado a partir da sua relação com o
Estado e a problemática da organização do Estado, que vai desde a formação
conflitante dos diferentes níveis de governo e poder, até a própria organicidade

7
Ver: PINTO, Luciano Rocha (org.). Arte de governar: o poder local no Brasil, séculos XVIII-XIX. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2014.
8
José Capela apresenta uma série de temas recorrentes ao estudo da história municipal, muito
em voga na historiografia portuguesa e europeia contemporânea, além de pertinentes discussões
teóricas e metodológicas acerca da história da administração municipal. Cf.: CAPELA, José Viriato.
“Administração local e municipal portuguesa do século XVIII as reformas liberais (Alguns tópicos
da sua Historiografia e nova História)”. In: CUNHA, Mafalda Soares da; FONSECA, Teresa (org.).
Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Lisboa: Edições
Colibri, 2005, p. 39-58.
9
AMADO, Janaína. “História e região: reconhecendo e construindo espaços”. In: SILVA, Marcos A.
(org.). República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 12-13.
10
BARROS, José D’Assunção. “O campo histórico: considerações sobre as especialidades na
historiografia contemporânea”. História Unisinos, vol. 09, n. 03, set./dez. 2005, p. 236.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 47


interna do poder local. Sendo assim, partimos do pressuposto que poder local só
existe, enquanto problemática de pesquisa, se aparecer mediada pela figura do
Estado, ou pela figura do poder do Estado.
Focalizando a nossa discussão, é possível afirmar que, problematizar poder
local, enquanto tema de pesquisa, na América portuguesa, a partir das câmaras
municipais assentadas nas vilas e cidades; significa, necessariamente, definir que
tipo de esferas de poder estamos dialogando, para identificar que poder local é
esse, como atua, o que significa, ou seja, como se constitui enquanto poder local.
Dito isso, concordamos que a polarização rígida, enquanto “conceitos fechados,
acabados e suficientes”, entre poder central e local não dá conta dessa formação
e manutenção dos poderes, todavia, são necessários não só como “referência a
um marco de relações”11, mas também como a lógica entre o centro (a Monarquia
e Portugal continental) e as possessões a ela subordinada em nível local (vilas e
cidades com suas respectivas câmaras municipais).

Uma Nova Proposta Historiográfica?

Um trabalho relevante na renovação dos estudos municipais no Brasil colonial


é tributado a Edmundo Zenha de 1948. Duas características peculiares tornam
O município no Brasil uma obra bastante significativa, para além de sua própria
historicidade, é claro. Primeiro, a relação da obra de Edmundo Zenha com a
historiografia ibérica do final do século XIX e início do século XX, tendo como
matriz interpretativa o “Causas da decadência dos povos peninsulares”, discurso
de Antero de Quental, proferido e publicado em 1871. E segundo, um recorte
cronológico nos estudos municipais do Brasil colonial, sugerindo distinções
interpretativas para momentos diversos do período colonial. No caso de sua obra,
o município no Brasil é estudado entre 1532 a 1700.
A historiografia portuguesa, desde o início do século XX, vem se debruçando
sobre a temática do poder municipal frente à centralização monárquica, sendo a
obra de Antero de Quental um marco analítico. Antero defendeu que os povos
ibéricos, notadamente, os portugueses, tinham em si um “espírito de independência
local”, aflorado desde a “época romana”. Esse “instinto político de descentralização
e federalismo” só viria a ser quebrado com o absolutismo monárquico do século
XVI: “as liberdades municipais, a iniciativa local das Comunas, aos Forais, que
davam a cada população uma visionomia e vida própria, sucede a centralização,
uniforme e esterilizada”12. De acordo com Antero de Quental, o absolutismo teria
sido uma das três causas da decadência dos povos peninsulares.
Seguindo essa linha de raciocínio e, embora não cite diretamente Antero de
Quental e sim outros historiadores portugueses inseridos nesse debate e seguidores

11
Para o autor, “complexidade e interação, são inerentes às relações entre centro e as localidades,
tal como o são também os conflitos e divergências dentro das mesmas”. PUJOL, Xavier Gil.
“Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas
monarquias europeias dos séculos XVI e XVII”. Penélope: fazer e desfazer a história, n. 6, set. 1991,
p. 136.
12
QUENTAL, Antero de. “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos.
Discurso pronunciado na noite de 27 de maio de 1871, na Sala do Cassino Lisbonense”. In:
__________. Prosas. Vol. II. Coimbra: Imprensa Universitária, 1926, p. 95-102.

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das proposições de Quental, como Alexandre Herculano; Edmundo Zenha defende
um poder municipal no Brasil, desde as suas primeiras vilas até o século XVIII, como
uma dádiva romana, trazida pelos portugueses e autônoma por existência. “As
humildes vilas brasileiras, lamparinas de civilização que o português custosamente
acendia pela costa imensa”, vinham munidas das câmaras que, por um lado,
“tiveram consciência de suas funções e principalmente do papel relevante que
deveriam desempenhar no processo de colonização”. Por outro, defende que “os
concelhos coloniais foram o mais eficaz empecilho aos desmandos das autoridades
que vinham da metrópole”13.
Podendo aparentar contradições entre as assertivas acima (e são), não por acaso
a obra de Edmundo Zenha restringe-se de 1532 a 1700, posto que os primeiros
séculos da colonização seriam profícuos para defender a existência de câmaras
livres, soltas na imensidão do Brasil e distante de uma monarquia pouco aparelhada
institucionalmente e presente nas decisões locais. Além de claro se aproximar das
elucubrações de Antero de Quental, para quem num dado momento as localidades
portuguesas são autônomas e posteriormente não. É possível também, como
afirmou Fernando Ribeiro, que a obra acabe se ressentindo do contexto local em que
o autor estava inserido, já que o mesmo “assina a obra de 1948 em Santo Amaro,
distrito da cidade de São Paulo que até 1935 constituía município autônomo”14.
Levando em consideração que o autor dedicou várias obras ao então município
de Santo Amaro, nos leva a concordar que o autor dedicou-se “mais a valorização
da especificidade de Santo Amaro do que na questão da autonomia do poder local
frente a um Estado centralizado”15.
Todavia, não foram os estudos ibéricos e a problemática portuguesa do
absolutismo e sim, a historiografia inglesa na pena de Charles Boxer que influenciou
toda uma nova geração de historiadores brasileiros preocupado com os poderes
locais. O estudo vanguardista de Russel-Wood sobre as câmaras e misericórdias de
1968, intitulado Fidalgos and Philanthropists: The Santa Casa da Misericordia of
Bahia, 1550-1755, publicado no Brasil somente em 1981, demorou a influenciar a
historiografia brasileira. Foram os trabalhos pioneiros de Charles Boxer, no âmbito
de um programa de pesquisa que privilegiou a discussão de um ‘império marítimo
português’, que influenciaram inúmeros estudos brasileiros, notadamente, a partir
da década de 198016.

13
ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial,
1948, p. 25, p. 104 e p. 114.
14
MARANHÃO, Gil de Methodio. “O município no Brasil, bibliografia”. Cultura - Revista do
Ministério da Educação e Cultura do Brasil, ano IV, n. 6, dez. 1964, p. 218.
15
RIBEIRO, Fernando. “Influência de ‘Causas da decadência dos povos peninsulares’ de Antero
de Quental na historiografia sobre poderes locais em Portugal e no Brasil no século XX”. Revista
Eletrônica Cadernos de História, ano 8, n. 1, jul. 2013, p. 85.
16
RUSSEL WOOD, Anthony John R. Fidalgos and philanthropists: the Santa Casa da Misericordia
of Bahia, 1550–1755. Berkeley: University of California Press, 1968 (publicado no Brasil como
Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da
UnB, 1981). BICALHO, Maria Fernanda. “As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo
do Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36, 1998, p. 251-280. SOUZA, George
F. C. de. Os homens e os modos da governança: a Câmara Municipal do Recife do século XVIII
num fragmento de história das instituições municipais do Império Colonial Português. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2002. Para uma análise mais

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 49


Algumas formulações de Boxer acerca das câmaras municipais e as misericórdias,
publicado originalmente em inglês em Portuguese society in the tropics: the
municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800 em 1965 e,
posteriormente em The Portuguese Seaborne Empire em 1969, foram amplamente
utilizadas. Não por acaso, este último foi publicado em português de Portugal
somente em 1977 sob o título O Império Colonial Português, mais tarde em 1992
como Império Marítimo Português e, no Brasil, pela primeira vez em 2002, com
esse último título que subtrai o ‘colonial’ por ‘marítimo’17.
Assertivas como, “entre as instituições que ajudaram a manter unidas as suas
diferentes colônias contavam-se o Senado da Câmara”18, ou “a Câmara e a
Misericórdia podem ser descritas como os pilares gêmeos da sociedade colonial
portuguesa desde o Maranhão até Macau”19, foram repetidas nos mais diversos
trabalhos acerca das câmaras municipais como um argumento para afirmar uma
perspectiva que ira ressuar nos anos subsequentes na historiografia nacional: a
relevância dos estudos imperiais para a realidade brasileira e as câmaras como
expressão e fundamentação dos poderes locais, buscando, em alguma medida,
negar as câmaras como instituições colonizadoras e à serviço da colonização.
Por outro lado, Charles Boxer noutra obra, inclusive anterior às edições originais
em inglês acima elencadas e tendo como tema central a colonização do Brasil,
curiosamente é pouco citado pelos intérpretes da voga imperial, sobretudo no seu
tratamento dado à temática das câmaras20. Em The golden age of Brazil, 1695-

acurada da influência da obra de Boxer na historiografia brasileira, ver os vários capítulos contidos
em: SCHWARTZ, Stuart & MYRUP, Erik Lars (orgs.). O Brasil no Império Marítimo Português.
Bauru: EDUSC, 2009.
17
BOXER, Charles Ralph. The Golden Age of Brazil, 1695-1750: growing pains of a colonial society.
Berkeley & Los Angeles: University of California Press; Rio de Janeiro: Sociedade de Estudos
Históricos Dom Pedro II; Londres: Cambridge University Press, 1962. Na sequência de publicações
do mesmo autor aqui citadas: BOXER, Charles Ralph. A idade de ouro do Brasil: dores de
crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Sociedade de Estudos Históricos Dom
Pedro II, 1963. BOXER, Charles Ralph. Portuguese society in the tropics: the municipal councils of
Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Madison: The University of Wisconsin Press, 1965.
BOXER, Charles Ralph. The Portuguese Seaborne Empire (1415–1825). Londres: Hutchison,
1969. BOXER, Charles Ralph. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade
colonial. Tradução de Nair de Lacerda. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. BOXER,
Charles Ralph. O império colonial português (1415-1825). Tradução de Inês Silva Duarte. Lisboa:
Edições 70, 1977. BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português (1415-1825). Tradução
de Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
18
Relacionar Câmaras e Misericórdias atendando para a circulação das elites locais em ambas
as instituições, influenciaram toda uma gama de historiadores portugueses e, posteriormente,
brasileiros acerca da temática. Cf.: BETHENCOURT, Francisco. “As Câmaras e as misericórdias’.
In: __________ & CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa. Vol. 1. Navarra: Temas e
Debates, 1998, p. 360-368.
19
PARDAL, Rute. “As relações entre as Câmaras e as Misericórdias: exemplo de comunicação política
e institucional”. In: CUNHA, Mafalda Soares da; FONSECA, Teresa. (org.). Os municípios no
Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Lisboa: Edições Colibri, 2005, p.
139-148.
20
MacDONALD, N. P. “Reviewed works: the Golden Age of Brazil 1695-1750 – growing pains of
a Colonial Society by C. R. Boxer”. International Affairs, vol. 39, n. 2, abr. 1963, p. 323-325. A
caráter de exemplo, cf.: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de
Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

50 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


1750: growing pains of a colonial society, publicado em Londres em 1962 e no Rio
de Janeiro no ano seguinte como A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento
de uma sociedade colonial; Boxer já havia identificado que os “historiadores
brasileiros diferem quanto ao fato de serem os camaristas genuínos representantes
do povo ou simplesmente uma oligarquia egoísta e autoperpetuada”. Além de
discutir se as câmaras “teriam ampla autonomia ou seriam simples papel-carbono
dos governadores e vice-reis”. Boxer fazia referência aos clássicos historiográficos
de Oliveira Viana (1920)21, Caio Prado Júnior (1942)22, Rodolfo Garcia (1956)23 e
Raimundo Faoro (1958)24 que também foram relegados a um lugar menos inglório
pela historiografia atual. A saída para esse impasse, proposta por Boxer àquela
altura, também não soa novidade: “a resposta, penso eu, depende muitíssimo da
ocasião e do lugar”25.
O autor nos coloca frente ao desafio de pensar e analisar as especificidades
das câmaras e municipalidades, no tempo e no espaço, mesmo sendo elas um
sistema de ordenamento dos poderes locais implementados em todas as conquistas
ultramarinas portuguesas. Todavia, Boxer nos sugere um viés analítico possível,
ao afirmar que, “um lugar na Câmara municipal dava ao ocupante, muito
naturalmente, oportunidade para desenvolver seus próprios interesses, e os
de seus amigos e parentes. Por outro lado, a posição de vereador impunha-lhe
muitos deveres, alguns deles onerosos”26. Mesmo concordando com as assertivas
de Diogo Ramada Curto, para quem a obra de Boxer cheira a uma “espécie
de conservadorismo fundado na autonomia das instituições representativas
locais”27, o pesquisador tende a tratar da colonização, ou melhor, das dores de
crescimento de uma sociedade colonial que, de acordo com Darcy Ribeiro, vem
desde o parto “regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente
tropical, habitada por índios nativos e negros importados”28.
Essa perspectiva de análise de Boxer já havia sido anunciada na obra do
historiador francês Marc Bloch desde 1938, quando ministrou um curso intitulado
“Como escrever a história de uma aldeia” na Escola Superior de Fontenay-
aux-Roses. Nesse curso, Marc Bloch se propôs a apresentar caminhos teórico-
metodológicos para o estudo de pequenos povoados e aldeias, levando sempre
em consideração suas especificidades e dinâmicas internas, porém, estabelecendo
relações com contexto histórico e espacial em que elas estão inseridas. Podemos

21
VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, Concelho Editorial,
2010 [1920].
22
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 1997
[1942].
23
GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1810). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1956.
24
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro - vol. 1. 6. ed.
Rio de Janeiro: Globo, 1984 [1958].
25
BOXER, A Idade do Ouro…, p. 171.
26
BOXER, A Idade do Ouro…, p. 171.
27
CURTO, Diogo Ramada. “Uma história conservadora do Império marítimo português?
(Introdução)”. In: BOXER, Charles Ralph. O Império marítimo português, 1415-1825. Tradução
de Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 2012, p. XV.
28
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 447.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 51


afirmar, portanto, que essas digressões teórico-metodológicas nos levam ao
questionamento já proposto por Pierre Goubert : “seria local a história local?”29.
Entendemos, portanto, que uma agenda de pesquisa sobre os poderes locais
que não se feche numa retrograda ideia do local enquanto acabado e suficiente,
sem considerar o seu entorno e contextos múltiplos em que está inserido, seja
uma saída possível. Analisar as câmaras em conjunto e não isoladamente, ou
mesmo, a partir de uma determinada problemática perceber como ela é recebida e
operacionalizada de forma distinta nas várias localidades, também se faz relevante.

A Câmara de Natal e o Processo Colonizador


no Norte do Estado do Brasil

Diante do quadro exposto sobre os rumos para análise dos poderes locais e
das municipalidades, realizamos um recorte temático, espacial e cronológico a ser
estudado: a câmara de Natal na capitania do Rio Grande do Norte, ou melhor,
a câmara municipal de Natal, enquanto instituição e expressão da colonização
portuguesa na capitania do Rio Grande do Norte entre, aproximadamente, 1611
e cerca de 1720.
Para tanto, partimos das seguintes premissas: durante e após o processo de
colonização (ocupação, povoamento e valorização das novas áreas) dos povos e
territórios do Novo Mundo, um dos objetivos da Coroa portuguesa era estender
suas instituições sociais de controle e coerção para a formação e manutenção de
seu império, sendo as câmaras municipais assentadas nas vilas e cidades, uma de
suas mais relevantes instituições a nível local. Tencionamos concluir, portanto, que a
formação dos espaços institucionais locais, a partir das câmaras, nas vilas e cidades,
buscavam controlar os mais variados aspectos do viver em colônia e tornaram
os colonos – institucionalizados com a lógica de aceitação e participação fixada
pelos ditames camarários – em colonizadores, ao mesmo tempo que gestavam seus
ganhos pessoais no campo econômico e político.
Seguimos uma proposta de análise também defendida por Fernanda Luciani
quando de sua investigação do poder local no Brasil holandês. Para a autora,
além de todas as prerrogativas inerentes as câmaras, no ultramar elas ganham
outras atribuições, pois funcionam como “organismos de colonização”, sendo uma
“instituição que integra as distantes partes do Império e por meio do qual o poder
real se faz sentir. É essencial, portanto, analisa-las considerando suas diferenças
em relação às instituições locais do Reino por conta das particularidades que a
realidade socioeconômica colonial impunha”30.
O recorte espacial foi definido pelo acesso aos Livros de Termos de Vereação do
Senado da Câmara de Natal existente no acervo do Instituto Histórico e Geográfico

29
BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru:
EDUSC, 2001, p. 196-260. Já Pierre Goubert esclarece e pontua: “mesmo quando a monografia é
boa, a descrição isolada de uma aldeia levanta mais problemas do que traz soluções: a informação
fornecida terá significado local, provincial ou geral? Para decidir essas questões, outras monografias,
de paróquias vizinhas, seriam necessárias, tornando as demandas e as questões infinitas”.
GOUBERT, Pierre. “História local”. Revista Arrabaldes, ano 01, n. 1, mai./ ago. 1988, p. 69-83.
30
LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil
Holandês (1630-1654). São Paulo: Alameda, 2012, p. 63-64.

52 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


do Rio Grande do Norte. Embora a câmara de Natal tenha sido fundada por
volta de 1611, a documentação disponível só existe depois do fim da dominação
holandesa no norte do Estado do Brasil (1630-1654) e esses livros cobrem em sua
totalidade, as duas últimas décadas do século XVI e as duas primeiras do século
XIX. O recorte cronológico foi definido por questões metodológicas: primeiro com
a perspectiva de acompanhar as matrizes historiográficas aqui apresentadas que se
detém, mais especificamente, ao século XVII e, no máximo, as primeiras décadas
do século XVIII. Segundo, porque a chamada Guerra dos Bárbaros (c. 1680 a
c. 1720), ou seja, o avanço da frente colonizadora nos sertões do Rio Grande
do Norte sobre os índios Tapuias teve grande participação da Câmara de Natal,
atestando uma de nossas premissas de análises, sobre as câmaras e o seu papel no
processo colonizador.

O Modo de Governança

De acordo com a descrição produzida por Diogo Campos Moreno em 1612


acerca da Capitania do Rio Grande, havia uma povoação “a meia légua da
fortaleza pelo Rio (Potengi) [...], a qual tem pobremente acomodado até vinte e
cinco moradores brancos fora da obrigação da fortaleza, e destes tem pelas roças, e
redes, e fazendas principais da capitania até oitenta moradores”. Esses moradores
pediram “modo de governança”31, o que foi concedido em 1611, pelo Governador
Geral Diogo de Meneses e Siqueira que, com o consentimento das demais
autoridades régias, elegeu um Juiz, Vereador, Escrivão, Procurador do Conselho e
dos Índios, instalando assim a Câmara de Natal.
Esse fato foi exposto por Diogo de Meneses, provavelmente, na última de
suas cartas escrita enquanto Governador Geral ao Rei, em primeiro de março de
1612, afirmando que “teve algumas queixas dos moradores que eram muitos já
e que na povoação que estava feito não havia modo nenhum de governo, nem
quem administrasse justiça comunicando com a Relação”. Além dos conselheiros
camarários, Diogo de Meneses proveu o tabelião e um procurador da fazenda,
tirando das mãos do Capitão-Mor essa incumbência, “todos esses ofícios provi
sem ordenado da fazenda de Vossa Majestade, nem lhe é necessário”, posto que
“havendo Câmara formada e Conselho e oficiais a quem se possa requerer”,
extrai-se o poder absoluto dos capitães-mores que “tudo faziam sem o pobre povo
requerer justiça nem terem escrivão para agravar nem apelar para a Relação”32.
No regimento passado pelo Rei ao novo Governador Geral do Brasil, Gaspar
de Sousa, em agosto de 1612 – ou seja, poucos meses após o Governador Geral
anterior, Diogo de Meneses ter consentido o modo de governança na Capitania do
Rio Grande –, a carta segue com as mesmas palavras presentes na missiva enviada
por Diogo de Menezes para ditar os rumos do novo Governador Geral. O monarca
afirmava que, embora a povoação da Capitania estivesse em crescimento, “não

31
MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612). Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1968, p. 51.
32
CARTA do Governador do Brasil para Sua Majestade de primeiro de março de 1612. Anais da
Biblioteca Nacional, vol. LVII, 1935. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério da Educação,
1939, p. 78-81.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 53


há nela modo de governo”, dando ao novo Governador Geral a incumbência
de resolver tal questão33. A insistência do Rei, nesse ponto, reside no fato de
desobrigar o Capitão-Mor de resolver questões que não fossem de sua jurisdição,
cuidando prioritariamente de sua função militar na Capitania. Nesse sentido,
modo de governança estaria atrelado ao universo da administração municipal e
dos povos, que deveria ser executado pelos camaristas, seu conselho e oficiais,
sendo distinto das funções militares, de defesa e proteção da costa e terras por
parte do Capitão-Mor. Pontua-se, nesse caso, mais um dos distanciamentos da
organização e prerrogativas dos conselhos do reino, nos quais as câmaras eram
convocadas a escolher o capitão-mor, como definiu, Joaquim Romero34, posto que
a colonização implicava defesa das possessões, sendo o capitão-mor uma definição
do rei e antecedendo à própria câmara.
É possível que o fato de não haver ordenado régio para os oficiais e a pequenez
da cidade, nesse momento, não possibilitar tributos para a Câmara, explique o
motivo dos poucos e esparsos moradores não se interessaram pela composição
concelhia, o que foi reclamado pelo rei, tendo em vista que o modo de governança
“acode ao remédio do povo”. Russell-Wood observou que a razão para ‘baixa
qualidade’ (não letrados ou mecânicos) dos membros do senado de Vila Rica
no início do século XVIII, “era que o serviço do Senado não era remunerado
financeiramente e as propinas feitas aos vereadores para cobrir despesas eram
inadequadas”35.
Na leitura e análise dos primeiros livros e fragmentos dos Termos de Vereação
do Senado da Câmara de Natal consultados, é possível perceber que, entre 1672
a 1698, a preocupação primeira da Câmara de Natal foi instalar efetivamente seu
‘modo de governança’, fixando preço de venda dos produtos, proibindo atividades
de extração ou mercantes sem licença, obrigando os moradores que tivessem
escravos a plantarem36.
Para além desses constantes ‘ajustes cotidianos’ resolvidos localmente,
escreverem ao Governador Geral pedindo autorização para tirarem uma devassa
contra os Capitães-Mores que já haviam servido na Capitania. Tal solicitação foi
acatado, sendo incumbido o Ouvidor da Paraíba “com instruções para tirar as
residências dos Capitães-mores e abrir devassas pelas repetidas queixas que lhe
chegaram da Paraíba dos casos de homicídios, violência, insultos, excessos e mais
ofensas perpetradas por parte dos Capitães-mores, Ouvidores e demais oficiais
vinculados à justiça da Capitania do Rio Grande”37. Assim como foi preconizado

33
MIRANDA, Susana Münch & SALVADOR, João Paulo (orgs.). Cartas para Álvaro de Sousa e
Gaspar de Sousa (1540-1627). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 107.
34
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os concelhos”. In: MATOSO, José (org.). História de Portugal:
no alvorecer da modernidade. Lisboa: Editorial Estampa, 1992, p. 179.
35
RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “O governo local na América portuguesa: um estudo de
divergência cultural”. Revista de História, vol. LV, n. 109, ano XXVIII, 1977, p. 38.
36
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 12 jul. 1672. Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte – IHGRN, Livro de Termos e Vereação do Senado da Câmara de Natal –
LTVSCN , cx. 01, lv. 1672-1673, fl. 4v. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 09
set. 1672, IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1672-1673, fl. 5v e 5v. TERMO de Vereação do Senado da
Câmara de Natal, 03 mar. 1672. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1672-1673, fl. 6v.
37
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 20 mar. 1673. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1672-1673, fl. 6v e 7v.

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pelo Rei, o ‘modo de governança’ evitaria os abusos de autoridade, além de
representar os ‘povos’.
Os rendimentos da Câmara eram sem dúvida a matéria mais presente nas
discussões do conselho na segunda metade do século XVII, afinal não existia
provimento real para funcionamento da mesma. Vários são os acordos que
os camaristas firmaram em prol dos rendimentos: “estando o Conselho sem
rendimentos, instituíram uma licença de pesca [...], pois a atividade era constante
em toda a costa”; “por haver muitas pessoas a vender muitas coisas”, foi nomeado
o primeiro Almotacé; “quem quisesse vender só podia por licença”; “que as pessoas
que moram nas terras do Concelho pagassem os foros”38 ou mesmo, “decidiram
fazer correições”39.
Se por um lado o ‘remédio dos povos’ e os rendimentos e ditames camarários
iam ganhando forma, por outro lado, era preciso não se afastar da função primordial
resguardada às Câmaras municipais: ordenarem e possibilitarem a colonização
no âmbito local. Os próprios camaristas tinham noção dessa obrigação quando,
em 1665 no processo de reordenamento da colonização portuguesa pós guerra
holandesa, escreveram ao rei pedindo melhorias na fortaleza, “que é a melhor que
V. M. tem nesse Estado do Brasil”, para que assim o soberano e sua real fazenda
tenham “lucros por quanto se fazem dois engenhos de açúcar, e farão mais se V. M.
pôr seus benignos olhos”40. Para tanto, as ordens régias iam tratando de matérias
pertinentes ao campo econômico, político e administrativo. “A instituição municipal
se adaptava aos objetivos socioeconômicos da Metrópole e à colonização da nova
terra”41.

38
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 29 dez. 1672. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1672-1673, fl. 09v. A criação de impostos e taxas municipais garantia rendimentos para a Câmara,
como bem apontou Avanete Sousa no seu estudo sobre as questões tributárias e as rendas da
Câmara de Salvador. Cf.: SOUSA, Avanete Pereira. “Impostos e taxas municipais no Antigo
Regime: a Câmara de Salvador e o controle da economia local”. In: FERLINI, Vera Lúcia Amaral
& MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de (orgs.). História econômica: agricultura, indústria e
população. São Paulo: Alameda, 2006, p. 353-359.
39
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 22 dez. 1672. IHGRN, LTVSCN, cx. 01,
lv. 1672-1673, fl. 09 e 09v. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 13 fev. 1673.
IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1672-1673, fl.13. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de
Natal, 15 mai. 1674. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1674-1698, fl. 2. Nesse processo de formação
patrimonial e de receitas de câmaras recém-fundadas, relevante é o caso da Câmara de Recife, na
Capitania de Pernambuco. Fundada em 1711 a poucas léguas de distância da Câmara de Olinda,
as duas câmaras enfrentaram embates contra a formação e expansão da nova câmara, que acabou
diminuindo os rendimentos e patrimônio da tão antiga e próxima Câmara de Olinda. Cf.: SOUZA,
George Félix Cabral de. “Patrimônio, jurisdição e conflito na América portuguesa: Pernambuco,
século XVIII”. In: OLIVEIRA, Carla Mary; MENEZES, Mozart Vergetti & GONÇALVES, Regina
Célia (orgs.). Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 2009, p.
81-96.
40
CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza
dos Reis Magos e a falta de soldados, armas e munições. Anexo: carta (treslado). Arquivo Histórico
Ultramarino (AHU), Arquivo Central (ACL), Conselho Ultramarino (CU), Rio Grande do Norte.
AHU_ACL_CU_18, Cx. 01, D. 07.
41
Essa perspectiva de análise pode ser encontrada nos mais recentes trabalhos da historiografia
brasileira, sobretudo, para a região das Minas. Cf.: CAMPOS, Maria Verônica. Governo de
Mineiros: “de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” (1693-1737).
Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002. CHAVES,

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 55


Em 1674, o Provedor e Corregedor da Fazenda Real em Pernambuco refutava
a decisão da Câmara que impedia a ida de barcos de pesca, com índios, às salinas,
“em virtude dos lucros com as pescarias, sal e dízimos para a Fazenda Real”42.
Um dos caminhos antigos utilizados para sair da Capitania, direcionado ao sul,
era o caminho de Tamatanduba, situado entre os atuais municípios denominados
Pedro Velho e Canguaretama, usado normalmente pelos vaqueiros e tangerinos
para conduzir o gado a Pernambuco, gado esse usado como força motriz nos
engenhos, alimentação e couros para o mercado externo. Em 1674, o Governador
de Pernambuco, Matias de Albuquerque, informou à Câmara de Natal que “o
registro das marcas do gado que saía da Capitania não estava sendo feito, causando
prejuízo”, sendo convocado um morador em Tamatanduba para fazer esse registro
e evitar furtos durante a condução do gado43.
Já em 1682, os próprios camaristas – que haviam decidido em 1677 que não
permitiriam ninguém fora da Capitania, com exceção dos letrados, assumirem
cargos – curvaram-se diante do Ouvidor recém-empossado pelo Governador
Geral, “anulando o termo que impedia as pessoas de fora assumissem cargos”44.
A ordenação jurídica do Reino constitui um elemento pertinente nesse processo
de colonização desempenhado pelas Câmaras. Em 1682, os camaristas “decidiram
que fossem retirados numerários para comprar uma Ordenação, por não haver uma
neste Senado”45. Não era aceitável que um órgão oficial, a serviço da metrópole e
do controle dos vassalos nas possessões reinóis, não estivesse munido do Código,
afinal, “neste processo de municipalização do território, a intervenção da Coroa e a
codificação das fontes do Direito desempenharam papéis de extrema relevância”46.

Cláudia Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo & MAGALHÃES, Sônia Maria de (orgs.). Casa
de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Ouro Preto: UFOP, 2008.
FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e Vilas D’El Rei. Espaço e poder nas minas setecentistas.
Belo Horizonte: EdUFMG, 2011.
42
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 14 jul. 1674. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 02 e 02v. O envolvimento dos Corregedores nas câmaras, sua relevância e atuação,
foi minimizado por Manuel Hespanha para Portugal continental nos séculos XV a XVIII, ao afirmar
que “a eficácia dos corregedores como instrumentos de subordinação politico-administrativo
do reino era relativamente modesto”, o que não pode ser constatado para o Brasil colonial.
HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p. 203. Na
perspectiva de Arno e Maria José Wehling, é possível afirmar que tanto poder nas mãos das elites
locais e o rei tão distante, não é de admirar que, de vez em quando, os potentados provincianos
sonhassem com a ruptura dos laços com Lisboa. Por isso, depois da uma fase de descentralização
forçada por motivos políticos à época da Restauração portuguesa no século XVII, a tendência da
monarquia sempre foi a de aumentar paulatinamente a presença do Estado nas conquistas, o que
se deu com maior ênfase a partir da presença dominadora de Sebastião José de Carvalho e Melo,
o Marquês de Pombal, à frente do governo (1750-1777). Ver: WEHLING, Arno. Direito e justiça
no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808. Rio de Janeiro: Renovar,
2004.
43
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 24 set. 1674. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 03-03v.
44
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 16 mai. 1677. IHGRN, LTVSCN, cx. 01,
lv. 1674-1698, fl. 15v a 16. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 27 dez. 1682.
IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1674-1698, fl. 48 e 48v.
45
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 29 dez. 1682. IHGRN, LTVSCN, cx. 03, lv.
1674-1698, fl. 49.
46
CHAVES, PIRES & MAGALHÃES, A casa de vereança..., p. 13.

56 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Mesmo depois de quase um mês da decisão de compra do Código, os camaristas,
atentaram para necessidade da aquisição de uma cópia, já que ordens oriundas
da Comarca da Paraíba através de postura do Desembargador, afirmava que para
“o melhoramento do Conselho e seu Povo, os oficiais manda[ssem] que se desse
a execução de tudo que se [estar a dever] ao Senado para que se adquirisse um
Livro das Ordenações, por ser necessário à Casa da Câmara”47.

Os Ordenamentos Territoriais

Importante também foram os ordenamentos territoriais e dos equipamentos


urbanos. O controle da distribuição da terra, assim como a construção de casas,
pontes e açougues traziam rendimentos para a Câmara e ordenavam o espaço
urbano.
Voltando ao próprio processo colonizador, o historiador Rodrigo Ricupero
demonstrou que, uma vez que a Coroa ordenou o processo de colonização da
Capitania, foram responsáveis pela empreitada os capitães-mores de Pernambuco
e Paraíba, com o apoio do Govenador Geral e com provisão para gastar por conta
da Fazenda Real. Participaram da conquista senhores de engenho, proprietários de
terras e de fazendas de ambas as capitanias, o que teria provocado uma divisão
territorial privilegiada entre os moradores delas. Esse fato pode ser constado no
episódio em que o primeiro capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, irmão de
Brites de Albuquerque, esposa de Duarte Coelho, distribuiu “uma enorme sesmaria
aos filhos”, sesmarias a diversos moradores de Pernambuco e Paraíba, além dos
Jesuítas do Colégio de Pernambuco, provocando queixas ao ponto do rei intervir
por uma nova redistribuição. Em 1614, foi expedido pelo Governador Geral a
mando do rei, um Auto para redistribuição das terras e que “fossem feitos pregões
em Olinda e em Filipéia, em que se ordenava aos possuidores de terras no Rio
Grande que as fossem aproveitar [tornar produtivas as terras] sob pena de perde-
las”48.
A distribuição desmedida de sesmarias, aos familiares de Duarte Coelho, espelha
o imaginário da colonização e da projeção dos colonos reinóis sobre a fidalguia
portuguesa e seu desejo de enobrecimento, posto que era o Reino, ou seja, “era
Lisboa que estava no imaginário dessa gente, que se considerava muito mais
colonizador do que colono, muito mais agente da colonização do que paciente das
medidas administrativas metropolitanas”49.
As consequências desse processo de distribuição e redistribuição de terras,
privilegiando familiares dos primeiros colonizadores de Pernambuco e Paraíba no
início do século XVII, retumbaram nos anos subsequentes dentro da própria Câmara
de Natal, ao ponto de que em 1678 os oficiais acordaram “que muitas terras do
Concelho na cidade tinham sido dadas e que futuros moradores não teriam aonde

47
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 21 jan. 1683. IHGRN, LTVSCN, cx. 03, lv.
1674-1689, fl. 50.
48
RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda,
2009, p. 313-315.
49
FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização. São Paulo: Alameda, 2011, p. 75.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 57


se acomodar, suspendendo-se o aforamento”50. Embora o documento trate do
aforamento de terras do Concelho e não das terras sesmariais51, o tema volta a
ganhar notoriedade no contexto do início da Guerra dos Bárbaros, sob uma forma
diferenciada: demonstrando a expressividade de possuidores de terras e unidades
produtivas oriundos de Pernambuco. Em 1689 a Câmara escreveu ao Capitão-
mor da Capitania que “não concedesse licença aos moradores para despovoar a
Capitania, por ser público que se deu licença a cinco casais, que tinham muitas
fazendas, para irem para Pernambuco, pois senão o lugar ficaria aos pobres”52.
Noutra vereação do mesmo ano, os camaristas afirmavam que “não convinha
que os moradores de Pernambuco esvaziassem os currais de gado que havia na
Capitania do Rio Grande, causando danos à mesma”53.
Essas análises corroboram com as assertivas defendidas por Carmen Alveal,
acerca da formação da elite colonial na Capitania do Rio Grande no pós-
restauração, posto que, se a conquista da Capitania e a distribuição de terras entre os
conquistadores funcionaram com um “prêmio de consolação para secundogênitos,
renegados” da Capitania de Pernambuco, de qualquer forma a colonização, através
da formação do poder local, acabou “permitindo a entrada de diferentes grupos
em uma rede de poder que estava ainda em construção” na Capitania do Rio
Grande, além da possibilidade de ocupação de um cargo camarário em Natal,
quando “não teriam espaços em Olinda ou mesmo na Câmara de Nossa Senhora
das Neves da Paraíba”54. É possível ainda afirmar que “o controle de acesso a
cargos camarários surgia como objeto de disputas entre grupos economicamente
influentes nas localidades”, sendo as câmaras, portanto, “vias de acesso ao conjunto
de privilégios que permitiam não apenas nobilitar os colonos, mas ainda fazê-los
participar do governo político do Império”55, sendo, de acordo com nossas analises,
o ganho econômico a motivação maior para essas disputas e posteriores acertos.
Quanto às terras urbanas, relevante para a Câmara seria o povoamento e a
permanência dos moradores na cidade do Natal. Em 1680, a Câmara publica um
rol com 36 nomes, além de mencionar filhos e genros, para que “construíssem
casas na Cidade para estimular seu crescimento”, sendo obrigados a “construir

50
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 09 abr. 1678. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 20v.
51
As terras pertencentes às Câmaras, em uma área de jurisdição denominada termo do município,
possuem características distintas das áreas rurais, as sesmarias, como o fato das sesmarias serem
doadas em léguas e as urbanas em braças, por exemplo. Sobre esse assunto, cf.: RIBEIRO, Fernando.
“A terra urbana colonial: reflexões sobre o instituto na América Portuguesa”. Anais... Encontro da
Associação Portuguesa de História Económica e Social, Lisboa, 2012.
52
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 05 mai. 1689. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 85v.
53
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 02 nov. 1689. IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 88v e 89.
54
ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. “Os desafios da governança e as relações de poder na
Capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII”. In: MACEDO, Helder Alexandre
Medeiros de & SANTOS, Rosenilson da Silva (orgs.). Capitania do Rio Grande: histórias e
colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia; Natal: EdUFRN, 2013, p. 39-43.
55
BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Uma leitura do
Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”. Penélope - Revista de
História e Ciências Sociais, n. 23, 2000, p. 76.

58 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


as casas em seis meses e quem não o fizesse pagaria 6$000 de multa para as
despesas do Senado”. Para dar suporte ao urbanismo e à própria colonização com
o pagamento de tributos em 1697, “acordaram em fazer um açougue próximo
à Casa da Câmara, evitando-se cortar carne em casas particulares”, “fazer uma
ponte de confluência dos rios” e “levantar uma forca”56.
Pouco a pouco, o modo de governança foi se delineando, com avanços e recuos,
ou mesmo com decisões contraditórias ou que revogavam medidas anteriores. O
‘modo de governança’, a partir da Câmara de Natal, foi se instalando na Capitania
do Rio Grande, afinal, tomando como fundação da Câmara de Natal o ano de
1611, durante quase 150 anos foi a única da Capitania, o que não impedia a
existência de outras esferas menores de poder como o Julgado do Assú, nos sertões
da Capitania, no entanto, sem a existência de Câmaras Municipais.

Colonos: Sujeitos e Agentes da Colonização

Ao tratar das conquistas portuguesas e espanholas durante o início da chamada


era moderna, Luis Felipe de Alencastro afirmou que “ancorados em três continentes,
às voltas com comunidades exóticas, os conquistadores ibéricos enveredaram por
caminhos vários para se assegurar do controle dos nativos e do excedente econômico
das conquistas”. No entanto, nem sempre esses caminhos ditaram dominação, “nem
sempre esses caminhos entroncaram na rede mercantil e no aparelho institucional
reinol. Por isso, antes mesmo do término do século dos Descobrimentos (1450-
1550), as metrópoles reorienta(ram) as correntes ultramarinas a fim de colonizar
seus próprios colonos”. Sendo assim, “mesmo nos lugares onde a relação de forças
se afigurava favorável aos invasores europeus, não adiantava cair matando”, pois
a escravidão e outras formas de trabalho compulsório até poderiam facilitar o
domínio dos nativos, todavia, isso não significava “exploração das conquistas”.
Da mesma forma, ocorria com o excedente econômico regional que podia ser
“consumido pelos próprios colonos ou trocados fora dos mares singrados pelos
navios das metrópoles”. Ou seja, “o domínio ultramarino nem sempre desemboca
na exploração colonial, como também não instaura de imediato a obediência ao
colonato e dos negociantes ao poder metropolitano”57 dessa maneira, a instalação
da Câmara e do modelo de civilidade e organização municipal do Velho Mundo,
será um dos artífices utilizadas pela coroa portuguesa para garantir o funcionamento
do Pacto Colonial, que paulatinamente vai se delineando.
A unificação e o fortalecimento do Estado absolutista, através das municipalidades,
por exemplo, “implicavam o monopólio do soberano sobre os súditos, incluindo
aqueles que habitavam as regiões coloniais, e a maneira de tal se consistia tanto na
constituição de um corpo de funcionários, quanto na redefinição das relações entre
o Estado”. Mais que isso: “o monopólio produzia o colonizador: este o reproduzia,
ao ditar a política colonial que visava assegurar a transferência de renda para a
Metrópole”. Mas, afinal, quem eram os colonizadores? Ilmar Mattos aposta: “eram

56
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 20 jan. 1680. IHGRN, LTVSCN, cx. 01,
lv. 1674-1698, fl. 31v e 32. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 01 set. 1697.
IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1674-1698, fl. 140 e 140v.
57
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 11.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 59


todos aqueles elementos ligados à esfera administrativa; se leigos, encarregados
precipuamente do fiscalismo; se eclesiásticos, empenhadas na monopolização das
almas. Eram também, e sobretudo os comerciantes, especialmente os negociantes
de grosso trato ou homens de negócio”.
Ao olhar para o passado em busca de indícios para permanência de ideias e
projetos coloniais no novo império do Brasil, o tempo saquarema, Ilmar Mattos
nos conduz a uma formulação coesa acerca da empreitada colonial: “Colonizador
em colono, pois se a colonização é, antes de tudo, a montagem de uma estrutura
de produção, o colono aparece como primeiro produto da produção colonial, o
agente gerador de uma opulência”. O colono, para Ilmar Mattos, “é o proprietário
colonial, aquele que, em condições determinadas – as condições de uma
colonização de exploração da época de acumulação primitiva de capital, tornava
possível a existência da atividade produtiva colonial”58. Sobrava, nessa definição,
índios, negros, escravos, brancos pobres livres, mulheres etc.
A relação entre colonos (proprietários), e colonizadores (agentes), para Ilmar
Mattos, se dava na região colonial. “A região é uma construção que se efetua a
partir da vida social dos homens, dos processos adaptativos e associativos que
vivem, além das formas de consciência social que lhes correspondem”. Essa
alternância de papéis à qual é submetido o indivíduo que vive em colônias – ser
colono e colonizador ao mesmo tempo –, produz relações próprias dentro da
região colonial, resultando no monopólio dos colonizadores sobre a mão de obra,
as terras e os meios de trabalho. “O desenrolar cotidiano da colonização tecia as
relações entre colonos e colonizados, estabelecendo descriminação entre eles”59.
Vera Ferlini, ao buscar respaldo nas obras de Sergio Buarque, avança e inova
na propositura de Ilmar Mattos. Se para Ilmar Mattos há uma clara distinção entre
colonos e colonizadores, sendo sua relação dotada de sentido apenas na região
colonial, para Ferlini, os colonos também eram, por produto e definição, sujeitos
e agentes da colonização: “identidade enquanto colonizador e seu cotidiano
de colonizado, entre sujeito do processo de colonização e objeto da ação e da
exploração metropolitana”60. Ao deslocar essa perspectiva de analise para as

58
MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 21-27. Algumas
formulações de Alfredo Bossi parecem-nos pertinentes à discussão. A ação colonizadora, de acordo
com o autor, reinstaura e dialetiza três ordens: do cultivo, do culto e da cultura, sendo a ordem do
cultivo, em primeira instância, seguida das migrações e do povoamento que reforçam o domínio
sobre a natureza e o território. Como um processo invariante para essa leitura materialista da
realidade, novas terras e novos bens dotam o sentido da cobiça aos colonizadores: “reaviva-se
o ímpeto predatório e mercantil que leva à aceleração econômica da matriz em termos de uma
acumulação de riquezas em geral rápida e grávida de consequências para o sistema de trocas”.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 19-20.
59
MATTOS, O Tempo Saquarema, p. 21-27. Paul Bairoch afirma que os principais elementos da
colonização europeia podem ser agrupados também em três variantes que se interconectam: a
imposição aos colonizados dos pressupostos civilizacionais metropolitanos como cultura, língua,
organização social, moralidade, etc., ou seja, o campo da cultura; a imposição de um conjunto
de regras no campo econômico com claro favorecimento aos colonizadores, ou seja, o campo do
cultivo e, por fim, a discriminação fundada nas concepções de raça, origem ou religião, sendo os
colonizadores o exemplo da fuga da barbárie ou do progresso civilizacional sobre os colonizados,
ou seja, o campo do culto. BAIROCH, Paul. “Colónias”. In: ROMANO, Ruggiero (org.) Enciclopédia
Einaudi – vol. 4. Porto: IN/CM, 1984, p. 304.
60
FERLINI, Açúcar e colonização, p. 97.

60 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


câmaras municipais e os ocupantes dos cargos camarários, Vera Ferlini avança na
formulação teórica: “a complexidade da relação colonial, e o papel contraditório
dos homens bons, no seu duplo papel de colono (homens que vivem em colônia
e portanto, objetos das ação de colonização) e de colonizadores (agentes da
colonização, representantes do poder real, agentes visíveis da metrópole), expresso,
principalmente, na defesa de seus interesses econômicos”61.
A defesa dos interesses econômicos individuais ou familiares é o ponto de
partida para envolvimento e permanência dos ‘homens bons’ nas câmaras. Seguia
junto ideais de diferenciação, envolvimento político e afirmação diferenciada
desses homens que viviam em colônia e, em contrapartida, por muitos aspectos e
escalas diferenciadas, tendiam a voltar-se para o Reino, como bem apontou Nuno
Monteiro ao estudar as elites reinóis, em que “muito dinheiro do Brasil foi parar às
casas (nobiliárquicas) do vale do Lima”62 em Portugal, nos levando a crer que os
homens, que vivam em colônia, também se voltavam para a metrópole de onde
emanava as concepções de sociedade e cultura. Essa propositura não é, nem de
longe, nova a historiografia brasileira, como bem afirmou Maria de Queiroz: “os
comerciantes que enriqueciam e permaneciam na terra, logo adquiria engenhos
e passava a agricultor; mas, na época colonial, o mais frequente era estarem os
comerciantes em continuo vai e vem, partindo para o Reino os que enriqueciam,
substituídos por outros que chegavam a fazer fortuna”63.
Junto ao enriquecimento pessoal e familiar dos camaristas seguiam suas
obrigações enquanto componentes de uma instituição colonizadora nas possessões
ultramarinas. Se, para Nuno Monteiro, ao pensar nos poderes locais no reino, a
“oligarquização do poder camarário era uma condição da sua capacidade de
resistência à autoridade do centro”64, viver em colônia não era o mesmo. Cabia
também, aos homens da governança e a permanecia de seus pares nas câmaras,
as tarefas da colonização. Como bem afirmou Luciano Figueiredo, a emergência
de uma identidade colonizadora entre os colonos, “em que se fundia a tradicional
lealdade e subordinação de súditos com novas justificativas sustentadas no
empenho das conquistas”65.

61
FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “O município no Brasil colonial e a configuração do poder econômico”.
In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira & BICALHO, Maria Fernanda (org.). O
governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 391.
62
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Sociologia das elites locais (séculos XVII-XVIII): uma breve reflexão
historiográfica”. In: CUNHA, Mafalda Soares da & FONSECA, Teresa (orgs.). Os municípios no
Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Lisboa: Edições Colibri, 2005, p. 66.
63
QUEIROZ, O mandonismo na..., p. 40. Trabalhos recentes, como de João Fragoso, trazem novas
perspectivas para essa questão, no entanto, as pesquisas estão focadas na última década do séc.
XVIII e início do XIX, não sendo aplicáveis ao período histórico em discussão. Cf.: FRAGOSO, João
L. R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro
(1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993.
64
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Os concelhos e as comunidades”. In: MATOSO, José (org.). História
de Portugal: Antigo Regime. Coordenação de António Manuel Hespanha. Lisboa: Editorial
Estampa, 1992, p. 324.
65 FIGUEIREDO, Luciano R. de A. “O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séc. XVII a XVIII”. In:
FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para
uma História do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001, p. 241. Caso
emblemático dessa relação “tarefas da colonização x homens da governança local”, ocorreu na

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 61


Aos primeiros reinóis instalados na capitania de Pernambuco, seus interlocutores
e militares, coube a conquista do litoral da Capitania do Rio Grande. Num outro
momento, aos primeiros capitães-mores interlocutores e militares do Rio Grande,
coube a conquista das regiões interioranas, dos sertões, financiada, em grande
medida, não somente pelo rei, mas pelo trabalho dos colonos e rendimentos da
câmara de Natal66. No contexto da chamada Guerra dos Bárbaros (c. 1680-c. 1720),
coube à única câmara da Capitania destinar garrotes, vacas, bois, farinha, para o
sustento das tropas; dinheiro e jangadas67. Eleições da câmara de Pelouro eram
substituídas por eleição de Barrete porque os oficiais escolhidos pelo Corregedor
eram soldados no Terço dos Paulistas68. Tudo isso em conformidade com que o
escrivão registrou acerca dos oficiais da Câmara: ‘expediente a serviço do rei’69.

luta contra o quilombo dos Palmares, no final do século XVII, em que não foram medidos esforços
por parte do governador de Pernambuco Caetano de Melo e Castro, a mando da Coroa, para a
“guerra e destruição dos negros levantados de Palmares”. O governador foi instruído a gastar todos
os recursos necessários da Câmara de Olinda, além de ter arregimentando homens das capitanias
vizinhas e mantimentos necessário a expedição. Sobre o assunto, cf.: FREITAS, Décio. Palmares: a
guerra dos escravos. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 154 e seguintes.
66
Os elementos sociais presentes nesse conflito (sesmeiro, missionários, paulistas, foreiros, rendeiros,
vaqueiros, moradores) contribuíram cada um ao seu modo, para os desígnios e interesses da
Coroa, atentando para o fato que estes também possuíam seus próprios interesses. Mais do que
um jogo pela posse de cargos de mando, os conflitos que surgiram ao longo de quase 30 anos entre
colonos, paulistas e missionários refletiam a competição pela posse da terra e usufruto da mão-
de-obra indígena. Para Maria Idalina Pires, “no plano conjuntural da “Guerra dos Bárbaros”, ao
mesmo tempo que verificamos uma unidade dos grupos sociais no combate aos Tapuyas rebelados,
identificamos uma disputa permanente entre eles pela posse da terra e a utilização da mão-de-obra
indígena”. PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no
Nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990, p. 114.
67
Como apontou Pedro Puntoni, “as vilas, as fazendas e os currais entregavam gados e farinhas aos
seus protetores, acreditando que estes custos seriam menores do que as perdas no caso de um
ataque dos índios”. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do
sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; EDUSP; Fapesp, 2002, p. 212.
68
TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 01 jan. 1690, IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv.
1674-1698, fl. 93v. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal, 27 dez. 1690, IHGRN,
LTVSCN, cx. 01, lv. 1674-1698, fl. 95-95v. TERMO de Vereação do Senado da Câmara de Natal,
13 fev. 1713, IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1709-1721; fl. 73-74. TERMO de Vereação do Senado
da Câmara de Natal, 03 mai. 1714, IHGRN, LTVSCN, cx. 01, lv. 1709-1721, fl. 93.
69
Maria Coelho, ao analisar a historiografia portuguesa acerca das elites dirigentes no fim da Idade
Média, chega à conclusão que se conheceram “homens, famílias e linhagens detentoras de várias
poderes locais e evidenciaram-se os mecanismos de ascensão e permanência nessa liderança.
Tornou-se evidente que as elites das sociedades urbanas, de interesses e feição aristocráticos, se
sintonizavam com a política mais controladora e centralista dos monarcas nos séculos finimedievais,
colaborando na arrecadação dos impostos e recrutamento de homens, elementos que suportavam
um Estado de Finanças e de Guerra como era o de Quatrocentos”. COELHO, Maria Helena da
Cruz. “O Poder Concelhio em tempos medievais – o ‘deve’ e ‘haver’ historiográfico”. Revista da
Faculdade de Letras História, Porto, III série, vol. 7, 2006, p. 25. Porém, cabe perguntar em que
medida essa afirmativa serve para explicar a relação das elites locais e o poder central na América
portuguesa na época moderna, já que Joaquim Romero nos apresenta a seguinte formulação: “a
normalidade é serem as câmaras de Portugal governadas por um conventículo oligárquico auto-
perpetuado, na feliz caracterização de Boxer. Isso tanto vale para o Oriente como para o Brasil,
as Ilhas do Atlântico ou território europeu. Trata-se de uma estrutura sócio-política que foi sendo
montada e instalada ao longo de séculos, e que correspondia às necessidades reais da sociedade
e de que o rei soube ir se servindo [...]. As relações sociais no Antigo Regime têm, naturalmente,
as sua conflitualidade, em que há uma tensão normal entre os grupos. O rei, conscientes dessas

62 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


As tarefas da colonização, perpetradas pelos camaristas e que colocavam em
pauta o duplo papel de colonos/ colonizadores dentro do expediente camarário,
nem começa nem cessa diante dos momentos de tensão bélica. D. Domingos
Loreto Couto já afirmava em 1757 que os homens da governança no Brasil
poderiam vanglória se da sua nobreza, “mas advirta, que cada brasão que logra, é
um empenho, que o obriga a obrar bem”70.
Estruturar a colonização através da construção de pontes e caminhos que
facilitaram o escoamento da produção para Pernambuco e o aumento da fazenda
real; da construção e reparo de prédios da governança; das igrejas para propagar
a fé e a moral católica e hospício carmelita para o ensino de gramática; do custeio
das cerimonias públicas de enaltecimento dos valores metropolitanos; “extinguir
alguns tapuias” e muitas outras tarefas constituíam a condição de ser homem da
governança. Interesses próprios que caminhavam, inevitavelmente, com o processo
colonizador.


RESUMO ABSTRACT
As Câmaras Municipais tornaram-se uma The Municipal Councils became one of the most
das mais relevantes instituições colonizadoras relevant institutions of the colonizing process in
implementadas em todas as possessões all the Portuguese possessions in the New World.
portuguesas no Novo Mundo. Ao iniciarmos Beginning our path with a brief historiographical
nosso percurso com uma breve discussão discussion about the topic and focusing on
historiográfica acerca do tema, enfocando some theoretical and methodological definitions
algumas definições teórico-metodológicas – – the ones used to analyses that institution –,
utilizadas para analisar essas instituições –; we investigate the first registers of the Natal’s
investigamos os primeiros registros de formação Council’s formation, in the Captaincy of Rio
da Câmara de Natal, na Capitania do Rio Grande Grande, as well as the performance of its officials
e a atuação dos oficiais da mesma, no século in the seventeenth century and in the first two
XVI e nas duas primeiras décadas do século decades of the eighteenth. We aim, therefore, to
XVIII. Nosso objetivo, portanto, é demonstrar demonstrate that the formation of institutional
que a formação dos espaços institucionais no spaces within the municipal level turned the
âmbito municipal, nesse período, tornaram os Councils’ officials, despite remaining with the
colonos oficiais camarários, antes de tudo, em status of colonized people, into colonizers
colonizadores. themselves.
Palavras Chave: Colonização; Câmaras Keywords: Colonization; Municipal Councils;
Municipais; Capitania do Rio Grande. Captaincy of Rio Grande.

Artigo recebido em 30 jun. 2015.


Aprovado em 13 jan. 2016.

tenções, utiliza-as na busca de um equilíbrio em cada um ocupe, como deve, o seu lugar e a área
de poder e de actuação em que se coloca. No Reino como no Império”. e MAGALHÃES, Joaquim
Romero. Conselhos e organização municipal na Época moderna. Vol. 1: Miunças. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 73.
70
COUTO, D. Domingos Loreto. Desaggravos do Brasil e Glorias de Pernambuco (1756-57). Rio de
Janeiro: Officina Typographica da Biliotheca Nacional, 1904, p. 255.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 63


“DESASOCEGO E INQUIETAÇÃO” NA CAPITANIA
DO SIARÁ GRANDE: O CONFLITO ENTRE
CONQUISTADORES, AGENTES DA GOVERNANÇA E
POPULAÇÕES LOCAIS (1699-1748)
Rafael Ricarte da Silva1

O presente artigo busca analisar as disputas, os conflitos e os arranjos de


poder desenvolvidos na Capitania do Siará Grande como forma de obtenção do
poder local e, ao mesmo tempo, do reconhecimento deste poder por parte da
Coroa portuguesa aos sujeitos efetivadores da conquista do Siará Grande. Para
tanto, buscar-se-á esmiuçar os embates que envolveram sesmeiros, camaristas,
capitães-mores, ouvidor e demais populações locais na formação sócio-espacial
e institucional da capitania. Ademais, ressalta-se que se almeja compreender estas
interações – às vezes conflituosas, outras de aliança – para além da percepção de
uma busca constante por uma autonomia frente ao poder metropolitano.
O debate acerca das relações entre poder local e poder central na América
portuguesa foi pautado nas últimas décadas pela discussão acerca do jogo de
forças entre a autonomia das elites locais e a centralização exercida pela Coroa
na administração. Para Caio Prado Junior, a administração lusitana na América
mostrou-se caótica e contraditória pelo complexo e excessivo número de órgãos
transplantados a realidade colonial. Assim, segundo o autor, o resultado disto foi
um caos na aplicação das leis, sendo necessário perceber a distância ocorrida entre
a teoria expressa na legislação e a prática posta em ação pelos agentes sociais. Ou
seja, a realidade local transformava a teoria2.
Raymundo Faoro, por sua vez, defendeu a tese de que o Estado português
conseguiu cooptar as elites locais para os espaços de poder, especialmente a
Câmara, centralizando a administração de forma eficiente. Segundo o autor, o
sistema administrativo lusitano foi transplantado com êxito para a Colônia. Desta
maneira, o Estado e sua administração mantiveram-se alheio à sociedade local3.
Nas últimas décadas estas interpretações de Raymundo Faoro e Caio Prado
Júnior foram contestadas por diferentes autores4 que buscaram compreender o

1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista Capes. E-Mail: <rafa-
ricarte@hotmail.com>.
2
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
3
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. rev. e
acrescida. São Paulo: Globo, 2008.
4
Sobre estas interpretações ver: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria
de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa – séculos XVI/
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva & BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade
e da governabilidade no Império”. Penélope – Revista de História e Ciências Sociais, n. 23, 2000,
p. 67-88. BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português. São Paulo: Companhia das Letras,
2002. FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico,
sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia – Rio de Janeiro 1790/1840.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. GREENE, Jack P. “Tradições de governança consensual
na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América”. In:

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 65


Brasil Colonial no âmbito do Império Atlântico português, datado de espaços
de negociação e poder de suas elites locais. Dentre os estudos, destacam-se os
de Russell-Wood que detecta uma lógica própria para o sistema administrativo
da América portuguesa. Para o autor, os agentes locais, a partir dos processos
de negociação e da realidade local, conseguiram tornar o sistema administrativo
maleável. Assim, a noção de um governo centralizado, controlador e formulador
de políticas “impermeáveis à realidade local”, necessitava de uma revisão a partir
da análise de forças centrifugas em atuação que demandavam processos de
negociação e espaços de autonomia5.
Segundo Russell-Wood, os poderosos do sertão constituíram-se em um dos
dois grupos (o outro eram os Paulistas) que não foram atingidos pelas medidas
centralizadoras adotadas pela Coroa portuguesa na sua possessão americana a
partir da segunda metade do século XVII. Para o autor:

Eles viviam e operavam na maioria dos casos fora daquilo


que as autoridades metropolitanas consideravam como
a fronteira entre a civilização e o barbarismo, situando-
se para além do espaço onde se observava um efetivo
cumprimento dos editos reais e das leis portuguesas. O seu
modus operandi os colocava em posição de estranhamento
em relação à Coroa e seus representantes na colônia.
Dispunham frequentemente de exércitos constituídos por
homens de confiança, viabilizando assim sua atuação
arbitrária. Estes potentados das áreas mais distantes
puderam assumir uma posição de ignorar uma sucessão
de editos reais da década de 1690, que visavam limitar
o tamanho das sesmarias. Auto-suficiência, distância e
inacessibilidade faziam deles elementos inalcançáveis pela
Coroa.6

A institucionalização do poder metropolitano nos sertões pela Coroa portuguesa


teve como uma de suas políticas a implantação de vilas com seus espaços de
representação administrativa e institucional. Entretanto, este controle, segundo
Russell-Wood, se mostrou limitado na medida em que a “instituição metropolitana
do Senado da Câmara fôra cooptada para fins coloniais”7, servindo para defesa
dos interesses dos poderosos do sertão em detrimento das determinações régias.
Para o caso da Capitania do Siará Grande, a descentralização do poder político,
econômico e militar pode ser vista pelo parco poder metropolitano neste espaço

FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes: política e negócios
no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 95-114.
SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
5
RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”.
Tradução de Maria de Fátima Silva Gouvêa. Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36, 1998,
p.187-250.
6
RUSSELL-WOOD, “Centros e periferias...”.
7
RUSSELL-WOOD, “Centros e periferias...”.

66 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


em formação, exemplo da diminuta representatividade que a sede do Forte teve até
a primeira metade do século XVIII. A vila de Fortaleza, diferentemente de cidades
que foram constituídas no período colonial e que eram espaços de nucleação da
produção para o mercado externo e sede do aparato burocrático-militar, ficou
deslocada das áreas produtoras do sertão pecuarista. Outro fator que contribuiu
para o isolamento e o diminuto poder político da sede do Forte foi esta não ter
desempenhado as funções burocráticas em relação direta com a Coroa portuguesa,
devido à dependência do Siará Grande a Capitania Geral de Pernambuco até
o final do século XVIII. Estes aspectos, segundo Maria Auxiliadora Lemenhe,
ajudaram para que a povoação junto ao Forte não se tornasse o centro do poder
político e econômico na capitania durante o período colonial. A autora defende
a hipótese de que apenas “o sistema político-administrativo do Império criou os
mecanismos políticos e institucionais favoráveis à hegemonia”8 de Fortaleza, frente
aos poderes locais estabelecidos nas ribeiras do sertão.
A diminuta povoação existente junto ao Forte nas primeiras décadas do século
XVIII pode ser verificada quando se analisa os requerimentos de sesmarias na
Capitania do Siará Grande destinados à conquista deste espaço. Diferentemente
da enorme quantidade de pedidos realizados para a ribeira do Jaguaribe, principal
área de criação de gados vacuns e cavalares, a faixa litorânea próxima ao Forte
teve poucas solicitações de terra. Entre 1701 e 1720 foram 256 requisições no
Jaguaribe e 48 na ribeira do Ceará9.
Ademais, segundo Gabriel Parente Nogueira, a ausência de uma “cidade” no
Siará Grande até o período Imperial, ao contrário das demais capitanias vizinhas,
representou um indicativo de como o poder político na capitania encontrava-se
desagregado, favorecendo o desenvolvimento de uma organização regionalizada.
A criação das quatro primeiras vilas, por exemplo, teve como principais objetivos
implementar o poder régio nos espaços que estavam sendo conquistados e garantir,
também, a amenização das disputas envolvendo conquistadores, missionários,
capitães-mores e demais representantes da metrópole em atuação na capitania10.
Segundo o autor:

Por um lado, tornava presente na região recém-conquistada


o poder e a autoridade do rei representada pelos
funcionários régios; por outro, incorporava os potentados
locais – por meio das redes de serviços ao Estado e ao
rei e, consequentemente, pela lógica de retribuição dos
serviços prestados com mercês régias – às redes de poder
do Império, transformando em vassalos sujeitos que, não
incorporado, poderiam ameaçar a autoridade régia e

8
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razões de uma cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus
Comunicações, 1991, p. 18.
9
ARQUIVO Público do Estado do Ceará (org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas
de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. Fortaleza: Expressão
Gráfica/Wave Media, 2006. CD-ROM.
10
NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do Império: práticas de nobilitação e
hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado
em História Social). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2010, p. 43.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 67


o equilíbrio das forças e dos interesses como um poder
concorrente em âmbito local.11

As vilas criadas no Siará Grande até a primeira metade do século XVIII estavam
localizadas em importantes locais para a efetivação da conquista e institucionalização
do poder metropolitano na capitania. A partir da segunda metade do século XVIII
a criação das vilas seguiu a política de transformação dos aldeamentos em vilas ou
a implantação de vilas objetivando controlar a população “vadia” que transitava
entre os sertões, controle este que não foi efetivado pelos potentados locais.
O acesso aos postos da câmara era considerado como elemento de distinção
social e se constituía como destaque para as elites locais. Segundo Maria Fernanda
Bicalho, as câmaras, assim como outros institutos e instituições lusas, sofreram
adaptações quando da implantação nas colônias, exemplo do Instituto das Sesmarias
que, ao longo do período de aplicação, teve uma série de leis complementares
(alvarás, editos régios, etc.) “aperfeiçoando” o sistema para o caso colonial.

As diferentes câmaras municipais do Império ultramarino


português, embora apresentassem especificidades próprias
das regiões e sociedades nas quais se estabeleceram e que
ajudaram a criar, tinham muitos pontos em comum com
suas congêneres metropolitanas. Não resta dúvida de que
a formação do Império se deu por meio da transladação
de uma série de mecanismos políticos, jurídicos e
administrativos da metrópole para as mais recônditas
regiões do globo, tanto no oriente como no ocidente. No
entanto, a diversidade sociocultural que os portugueses
encontraram em sua faina colonizadora, principalmente no
que diz respeito aos seus empórios orientais, criou matizes
e adaptações no aparato institucional e legal transferido do
reino, colorindo de tons específicos as mesmas instituições
quando adaptadas à realidade das diferentes colônias.12

A câmara e seus cargos de vereança se constituíram como lugares de poder e


espaços de embate entre conquistadores, governança local e representantes da
Coroa portuguesa. No Siará Grande, assim como em outras conquistas da América
portuguesa, ocorreram disputas entre diferentes grupos locais sobre os espaços de
poder e distinção social. Entretanto, estas disputas, rupturas entre estes grupos
eram atenuadas quando indígenas e vadios causavam ameaças ao processo de
conquista, colocando em cheque os interesses desta parcela detentora do poder.

11
NOGUEIRA, Fazer-se nobre..., p. 40-41.
12
Grifos meus. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 367.

68 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


A Constituição dos Lugares de Poder:
Disputas Políticas na Implantação da Primeira Câmara

Em 1696 o padre João Leite de Aguiar enviou carta ao rei, D. Pedro II,
informando as desavenças e insolências que o Capitão-mor do Siará Grande, João
de Freitas da Cunha, estava cometendo: “os capitães de todas aquelas capitanias
especialmente o do Ceará se opõem em tudo aos missionários maltratando aos
miseráveis índios sem lhes pagar o jornal de seu trabalho, e obrando outras
insolências”13. Para coibir este e outros abusos promovidos pelo Capitão-mor, o
religioso recomendou a criação de uma Câmara.
A autorização para a instalação de uma Vila no Siará Grande foi passada três
anos após a solicitação do missionário. A ordem régia de 13 de fevereiro de 1699
destacou que deveriam ser eleitos os oficiais da Câmara, juízes ordinários para “se
atalharem parte das insolências, que costumam cometer os capitães-mores, e se
administrar melhor a justiça [e] para por este meio se evitarem muitos prejuízos que
até agora se experimentavam por falta de terem em seu governo aqueles moradores
do Ceará modo de justiça”14.
O reconhecimento da necessidade expressa pelo rei com a instalação da Câmara
aponta para uma relativização da autonomia local. Apesar da parca presença
burocrática e institucional do poder metropolitano na Capitania do Siará Grande e
da distância espacial entre estas partes constitutivas do Império português, existia
o reconhecimento por parte dos agentes locais do poder real e sua gerência nas
questões locais. Ademais, o “modo de justiça” citado pelo padre denota uma forma
da presença da autoridade real na capitania.
Segundo Clovis Ramiro Jucá Neto, a criação das vilas e da Ouvidoria na
capitania dividiu a estrutura administrativa do Siará Grande. Na segunda década
do século XVIII são criadas a Ouvidoria Real em 1723 e a Real Provedoria em
1725. Com a institucionalização destes espaços regulatórios a Coroa portuguesa
buscou efetuar maior controle sobre as “autarquias sertanejas”15, detentoras de
uma margem de autonomia sobre os sertões, mas que, ainda assim, almejavam
“proteção” da Coroa em suas parcialidades e pedidos.
A instalação de uma vila e sua câmara acirrou as disputas políticas entre
fazendeiros/ sesmeiros, que se constituíram como camaristas, e os capitães-mores
do Siará Grande. Após a implantação da Câmara, seus representantes escreveram
carta ao rei D. João V reconhecendo e informando as mudanças efetuadas com a
liberdade frente aos desmandos que sofriam com a atuação opressiva dos capitães-
mores. O discurso dos camaristas objetivava legitimar a recém-instalação deste

13
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre o que escreveu o padre João Leite
acerca do seu trabalho nas missões do Ceará. Lisboa, 04 set. 1696. Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), Arquivo Central (ACL), Conselho Ultramarino (CU), Documentos Manuscritos Avulsos da
Capitania do Ceará (006). AHU_ACL_CU_006, Cx. 1, D. 46.
14
ORDEM Régia de 13 de fevereiro de 1699 para a instalação da primeira Câmara na Capitania do
Ceará. Apud STUDART, Guilherme (Barão de Studart). Datas e factos para a História do Ceará –
Tomo I. Ed. fac-similar. Fortaleza: Fundação Waldemar de Alcântara, 2001, p. 114.
15
JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A urbanização do Ceará setecentista: as vilas de Nossa Senhora da
Expectração do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo).
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007, p. 211-215.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 69


espaço de poder.

[...] se mudou em cumprimento da dita ordem de que


rendemos em nome de todo este povo as graças a Vossa
Majestade pela dita pois conhecemos o quanto melhor
estamos não só pelas conveniências dos moradores, quanto
por nos vermos livres de algumas opressões que com a
vizinhança do forte e dos capitães-mores experimentavam
sempre nossos antecessores, por quererem aqueles
governar tudo e entremeter-se na jurisdição que lhe não
toca.16

O acesso aos cargos/ posições de controle político e judiciário pelos camaristas,


franqueados pela Coroa portuguesa, tornou-se instrumento de defesa dos interesses
político-econômicos de uma rede de alianças contra a autoridade administrativa
exercida pelo Capitão-mor. Em 30 de dezembro de 1717 os camaristas reclamaram
a D. João V as ingerências que estavam sofrendo, mesmo com a autonomia do
Senado da Câmara.

Damos conta a Vossa Majestade e juntamente nos


queixamos da má companhia que nos tem feito o capitão-
mor desta capitania Manoel Fonseca Jaime, pois todo o
seu cuidado e desvelo e fundamento do seu governo é
somente desautorizar a este senado, prendendo vereadores,
almotacéis e juízes, impedindo e acabando os meios da
justiça e desaumento desta Vila, e assim a atemoriza e
intimida com o seu poder o que tudo será requerido a
Vossa Majestade nessa corte por nosso procurador Zacarias
Vital de Pereira.17

A urgência dos camaristas em acabar com os supostos abusos cometidos pelo


Capitão-mor pode ser evidenciada no envio de um procurador, no caso Zacarias
Vital de Pereira, ao reino como forma de agilizar o encaminhamento da carta e a
obtenção de parecer por parte do rei ou de seu Conselho Ultramarino. Essa ida
ao reino expressa, em última instância, o reconhecimento do poder metropolitano
sobre estes espaços sociais em formação.
Entre os anos de 1700 e 1722 a Câmara do Siará Grande transitou por entre
os espaços da capitania em um jogo de forças políticas e conflitos envolvendo
camaristas, sesmeiros, indígenas e capitães-mores. Manuel Francês, Capitão-mor
do Siará Grande, reclamou ao rei, D. João V, em 16 de abril de 1722, que a

16
CARTA dos Oficiais da Câmara de São José de Ribamar a Sua Majestade em 30 de maio de 1716.
Apud BEZERRA, Antonio. Algumas origens do Ceará: defesa ao Desembargador Suares Reimão
à vista dos documentos do seu tempo. Ed. fac-similar. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,
2009, p. 260.
17
CARTAS dos Oficiais da Câmara de São José de Ribamar a Sua Majestade em 30 de dezembro de
1717. Apud BEZERRA, Algumas origens..., p. 264.

70 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


transferência da vila para Aquiraz não havia beneficiado o aumento da capitania,
pois esta vila não teria tido aumento, excetuando-se “uma casa de palha que serve
de câmara” e “duas casinhas mais do mesmo donde assistem os escrivães quando
vão lá”. Desta maneira, Manuel Francês solicitava que “a vila seja junto à fortaleza
onde Vossa Majestade a tinha, porque ainda se acham vinte e cinco, ou vinte e
seis casais vizinhos com uma matriz com muita capacidade para o estado da terra,
como também, para que veja a justiça quem governa, e quem governa a justiça”18.
O embate sobre a localização da sede da vila no Siará Grande foi amenizado com
a ordem régia de 09 de março de 1725 que determinou a criação da segunda vila
na capitania, estabelecendo sua ereção junto ao Forte.
Apesar das disputas de poder entre camaristas, muitos destes sesmeiros
e fazendeiros, e os capitães-mores acerca das jurisdições, dos desmandos e da
localização da sede da primeira Câmara, existiram momentos em que estes e suas
redes de alianças requisitaram ajuda do Capitão-mor, como no caso do conflito
com o Ouvidor José Mendes Machado. Ademais, essa tensa relação entre Coroa,
agentes da governança local e sesmeiros foi atenuada também na tentativa de
superar o desafio que os grupos indígenas apresentavam ao processo de conquista
territorial. Neste caso, as disputas internas ficavam a margem do desafio maior que
os combates contra os gentios representavam19.
Em longo requerimento datado de 03 de fevereiro de 1725, os moradores das
ribeiras do Jaguaribe, Icó, Banabuiú, Salgado e Inhamuns solicitaram ao Capitão-
mor do Siará Grande, Manuel Francês, que intercedesse junto ao Ouvidor da
capitania, José Mendes Machado, para que este parasse com os abusos de poder
no exercício de seu cargo. Segundo os requerentes, o Ouvidor procedia em tudo
com poder despótico, cometendo injúrias por onde passava e acobertando os
crimes, especialmente dos integrantes da família Feitosa. Entre as motivações para
a queixa estavam:

[...] devassas particulares de cujas custas contava a cada


culpado 80$000 reis para a sua alçada e dos seus oficiais,
ainda que saíssem muitos culpados em uma e na devassa
geral condenava os homens solteiros que tinham copula
com mulheres solteiras em 4$000 reis cada um, e se
pecavam com duas eram 8$000 reis, formando culpas por
matarem gados uns dos outros sem embargo de seu trato

18
CARTA do Capitão-mor do Ceará, Manuel Francês, ao rei [D. João V, a informar sobre o estado
da capitania no início do seu governo, Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, 16 abr. 1722.
AHU_ACL_CU_006, Cx. 1, D. 98.
19
Sobre a construção desta tensa unidade entre os conquistadores e a governança local na Guerra
dos Bárbaros ver os seguintes trabalhos: PIRES, Maria Idalina da Cruz. A Guerra dos Bárbaros:
resistência e conflitos no Nordeste colonial. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2002. JESUS,
Mirian Silva de. Abrindo espaços: os “paulistas” na formação da capitania do Rio Grande.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007.
PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e colonização do sertão Nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: Edusp; Hucitec, 2002. ARAÚJO, Soraya Geronazzo. O muro do
demônio: economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no Nordeste colonial do Brasil – séculos
XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza,
2007.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 71


entre todos celebrado caso inveterado pela comunicação
dos gados [...] na Aldeia dos Tremembés mandou açoitar
por um cabo um homem forro sem culpa formada nem
causa que justa fosse, e a sua imitação açoitaram os seus
oficiais outro homem forro nos Inhamuns, amarrando-o
de pés e mãos, metendo-lhe um pau entre as pernas.20

A falta de um poder central que coibisse os abusos e a distancia espacial dos


representantes deste poder, seja na figura do Capitão-mor ou um representante da
Coroa portuguesa em “bom serviço” pelos sertões da capitania, foram os motivos
das aflições destes requerentes. A solução proposta pelos solicitantes foi a defesa
imediata por meio da ajuda do Senado da Câmara de São José de Ribamar, pois
“para prover de remédio prendendo o dito Ministro com seus oficiais até dar conta
a El-Rei Nosso Senhor por estar o seu recurso longe e não sofrer o caso demora tão
grande”, reforçando o poder e a importância da referida Câmara e do Capitão-mor
para a resolução de conflitos e arranjos nas ribeiras da capitania21.
Evidencia-se, neste caso, que os conflitos envolvendo os variados poderes na
Capitania do Siará Grande muitas vezes, excetuando-se a localização da primeira
vila/câmara, foram resolvidos ou se tentaram resolver sem a interferência direta da
administração portuguesa, reforçando o poder político, econômico e bélico das
redes de alianças formadas entre sesmeiros, familiares e integrantes do Senado da
Câmara.

O Conflito de Poderes na Administração das Terras:


Cristóvão Soares Reimão, Camaristas, Sesmeiros e Governança Local

Em 15 de junho de 1703 o rei D. Pedro II emitiu provisão ao Capitão-General


Governador da Capitania Geral de Pernambuco e demais autoridades das capitanias
do Siará Grande e Rio Grande informando ter encarregado o Desembargador
Cristóvão Soares Reimão22 de diligências no Siará Grande, mandando que se:

[...] dêem-lhe toda ajuda e favor que de minha parte lhe


pedir, e o deixem obrar livremente e só bastará que lhes
mostre esta minha Provisão, que fará registrar nos Livros
da Câmara e da Fazenda [...] Ordeno aos ditos Capitães-
Mores [...] [passar] ordens necessárias aos Oficiais de
Guerra para que lhes ponha guarda de soldados com
cabos de satisfação aos Oficiais das Câmaras onde passar
e assistir. Ordeno também lhe deem por conta das rendas

20
REQUERIMENTO do povo ao Capitão-mor Manuel Francês. Apud BEZERRA, Algumas origens...,
p. 213.
21
REQUERIMENTO do povo ao Capitão-mor Manuel Francês. Apud BEZERRA, Algumas origens...,
p. 213.
22
Cristóvão Soares Reimão nasceu em Portugal no ano de 1659. Formou-se em Direito Canônico
pela Universidade de Coimbra e atuou como Juiz de Fora e dos Órfãos antes de chegar a América
portuguesa. Foi nomeado Ouvidor Geral da Capitania da Paraíba e suas anexas e Desembargador
do Tribunal da Relação da Bahia em 1695.

72 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


do Conselho e a seus Oficiais, criando aposentadorias e
casas e cosas e pelo seu dinheiro os mantimentos que lhes
forem necessários.23

A provisão acima referida deu ao magistrado plenos poderes e liberdade em suas


ações, além da possibilidade de requerer quaisquer meios necessários à realização
dos trabalhos de demarcação e medição das terras.
Ao chegar ao Siará Grande, o Desembargador Soares Reimão solicitou aos
oficiais da Câmara de Aquiraz aposentadoria para ele e seus oficiais. Entre os
oficiais encarregados pelo magistrado, estavam o escrivão das causas de doações
de sesmarias, Alberto Pimentel24 e o meirinho responsável por realizar o processo de
medição e demarcação das terras, Inácio Ferreira de Albuquerque25. Entretanto, os
camaristas alegaram não terem casas capazes e nem dinheiro para sua construção.
Independentemente do não atendimento a solicitação do magistrado, formou-se
uma sólida aliança entre os camaristas e Cristóvão Soares Reimão uma sólida
contra o Capitão-mor Gabriel da Silva Lago. Esta aliança representava, grosso
modo, o jogo de poder entre os conquistadores, agentes da governança local e não
uma busca pela autonomia absoluta frente ao poder metropolitano.
Em resposta a solicitação do magistrado e a provisão de Sua Majestade, o
Coronel João de Barros Braga, a sua custa, “mandou fazer e as ornou de moveis
necessários e as mesmas aplicadas para uso de qualquer ministro que aparecer”.
Ressalta-se que João de Barros Braga havia sido camarista e era um dos principais
sesmeiros e agentes da Coroa portuguesa no combate aos indígenas na capitania26.
Isso implica dizer que estes laços eram constituídos para além das relações de
disputas entre poder central e poder local. Transcendiam esta pretensa relação dual.
Certamente, esta aliança entre o coronel e o Desembargador proporcionou
vantagens a ambos. Aventa-se a hipótese de que para João de Barros Braga, estar
ao lado do magistrado, poderia significar que não sofreria nenhum cerceamento em
suas terras, já que o mesmo detinha onze sesmarias, situação não permitida pela
legislação sesmarial. Para o Ouvidor Geral, a ligação com o coronel representaria
a possibilidade de ter ao seu lado um dos principais sesmeiros da capitania que
poderia contribuir com suas fazendas e homens para o processo de medição e
demarcação das terras, além de sua proteção e a de seus oficiais.
O trabalho a ser desempenhado por Cristóvão Soares Reimão e seus oficiais era o

23
Grifos meus. PROVISÃO ao Governador de Pernambuco e mais autoridades sobre a medição das
terras do Ceará pelo Desembargador Cristóvão Soares Reimão. Coleção de Documentos doados
ao Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC pelo Professor Limério Moreira da Rocha, p. 170.
24
Segundo consta na Plataforma Sesmarias do Império Luso-Brasileiro – SILB, Alberto Pimentel foi
vereador da Câmara de Natal no ano de 1696 e recebeu quatro concessões de sesmarias, sendo
uma na Paraíba, uma no Rio Grande e duas no Siará Grande. As terras foram recebidas entre os
anos de 1707 e 1732. Disponível em: <http://www.silb.cchla.ufrn.br/>.
25
Infelizmente não foi possível, devido não constar nas documentações, identificar os outros oficiais
que participaram destas diligências. Estes aparecem apenas como “os oficiais”, sem nomear o
piloto, seu(s) ajudante(s) e/ou escravos relacionados por Soares Reimão.
26
PATENTE por que foi provido João de Barros Braga no Posto de Capitão-Mor da Capitania do
Rio Grande do Norte. Coleção de documentos doados ao APEC pelo Professor Limério Moreira da
Rocha, p. 250.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 73


de medir e demarcar as terras doadas na Capitania do Siará Grande, especialmente
as doadas nas ribeiras do Jaguaribe. Entretanto, constam nas documentações –
correspondências oficiais trocadas entre o desembargador e a Coroa portuguesa,
representada pelos conselheiros do Conselho Ultramarino e os auto de medição e
demarcação das terras – que foram muitas as tentativas por parte de sesmeiros e
da governança local de dificultar e até mesmo impedir a realização das atividades
do juiz das sesmarias e seus oficiais. Estas medições e demarcações implicavam na
limitação do poder dos sesmeiros sobre espaços em desacordo com as normativas
impostas pela legislação sesmarial.
Soares Reimão recomendou à Coroa portuguesa em carta de 20 de abril de
1696, antes mesmo de iniciar os processos de conferência das sesmarias doadas e
das terras indígenas, a criação de Câmara com juízes, vereadores e escrivães para
que se tivesse uma boa administração da capitania. Contudo, o rei D. Pedro II
não deferiu sua recomendação, alegando que não cabia ao desembargador “este
negócio de que dais conta [sendo] próprio da obrigação dos governadores e a
vós não pertence”27. Mas o que representou a negativa de D. Pedro II? Seria a
manutenção de uma prática/diretriz na condução do sistema administrativo das
suas conquistas ou a autonomia do poder local frente à interferência de um agente
que buscava sistematizar e controlar o processo de domínio territorial?
Ademais, percebe-se que para o magistrado a ordem natural para o processo
de adequação espacial destas conquistas era a inserção de espaços de poder
hierárquico e controle social, arregimentando e configurando as elites locais em torno
de instituições políticas e administrativas. Entretanto, esta configuração pretendida
por Soares Reimão, uma sociedade civilizada e estruturada segundo as normativas
portuguesas, entrou em choque com as práticas e costumes locais configurados
pelos conquistadores e suas redes de alianças instituídas por entre as ribeiras da
capitania. O conflito entre a experiência e a prática social dos conquistadores e as
normativas e seus agentes reguladores denotam o esgarçamento da relação Estado
e sociedade na Capitania do Siará Grande.
Outra sugestão do Desembargador nesta mesma linha de pensamento foi a
criação da Ouvidoria do Siará Grande em 1708. Somente em 29 de outubro de
1720, como acima evidenciado, devido aos diversos crimes praticados pelos colonos
e as arbitrariedades cometidas pelos representantes do poder metropolitano, o
Conselho Ultramarino emitiu parecer favorável à existência de uma Ouvidoria na
capitania, se devendo encarregar um ministro ativo/ enérgico para o desempenho
do posto e cumprimento das determinações impostas pela Coroa.

Parece que estes absurdos pedem um pronto e eficaz


remédio, ou para melhor dizer muitos remédios, por que
molestam graves e tão radicados na insaciável ambição
desenfreada soltura daqueles homens, não se pode evitar
sem lhe aplicar diferentes defensivos e cautelas, e assim
será justo e preciso em pro lugar que Vossa Majestade seja
servido de criar no Ceará uma Ouvidoria, e nomear nela

27
CARTA do rei D. Pedro II em 19 de agosto de 1696 para o Ouvidor Geral da Paraíba Cristóvão
Soares Reimão. Apud BEZERRA, Algumas origens..., p. 248.

74 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


um ministro, inteiro, zeloso da justiça, e ativo.28

A criação da Ouvidoria expressava não apenas o poder das redes de alianças


formadas por conquistadores e agentes da governança local, mas, também, a
tentativa de controle destas por parte da Coroa portuguesa com a instituição de
lugares de poder que permitisse a paz na capitania. Desta maneira, conforme
destacado acima neste artigo, não se trata apenas de uma pura contraposição entre
poder real e poder local.
Apesar da tentativa por parte de Cristóvão Soares Reimão da indicação para
a criação dos postos de vigilância e fiscalização no Siará Grande, os crimes de
assassinatos, roubos e desordem continuaram acontecendo. Em 13 de fevereiro
de 1708 o Desembargador realizou nova tentativa para coibir as vexações,
arbitrariedades e mortes que vinham ocorrendo. Seria conveniente, segundo
o magistrado, se fazer correição na ribeira do Jaguaribe de três em três anos,
evitando que os crimes aumentassem e os já praticados ficassem impunes devido
à complacência dos juízes ali estabelecidos.

Inda que não é da minha obrigação, pareceu me justo


fazer pleito a Vossa Majestade a necessidade que há nessa
capitania de se vir a ela fazer correição ao menos de três
em três anos, porque a falta de administração da justiça
é grande; e a facilidade de fazerem mortes é maior, que
em um mês fizeram cinco; os juízes tiram as devassas
que querem, e deixam outras, como a do genro de Pedro
Rodrigues do Aracati; culpam a quem querem e a quem
não, tiram as testemunhas distantes donde a morte se
fez [...] Os escrivães viciam as devassas, tiram folhas e
trasladando o que querem, como vi em uma que escreveu
Gabriel Gonçalves [...]. O escrivão da fazenda, Jorge
Pereira [que era encarregado de registrar as sesmarias nos
livros da capitania], é ébrio e por qualquer bebida faz o
que os capitães-mores querem, passando certidões falsas.
Também a ribeira de Jaguaribe, que tem mais de cem
léguas de comprimento necessitava ao menos de um
juiz pedâneo [Juiz Ordinário das vilas, opõe-se ao Juiz
de Fora]29, e um escrivão de notas para os contratos e
aprovações de testemunhas, e fazer as citações que forem

28
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre a carta do padre Domingos Ferreira
Chaves, missionário-geral e visitador-geral das missões do sertão da parte do norte no Ceará, e
exposição do padre António de Sousa Leal, missionário e clérigo do hábito de São Pedro, sobre as
violências e injustas guerras com que são perseguidos e tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio
Grande. Lisboa, 29 out. 1720. AHU_ACL_CU_006, Cx. 1, D. 93.
29
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico,
Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Dogmatico, etc. [Autorizado com exemplos dos melhores
escriptores portuguezes e latinos, e oferecido a el-rey de Portugal D. João V] – vol. 02. Em Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1728, p. 345.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 75


necessárias para as causas da vila.30

Segundo o magistrado à distância entre as ribeiras do sertão e a sede da


capitania, a complacência das autoridades da administração local que permitiam
que mortes, ameaças e falsas denúncias ocorressem livremente e a ingerência de
juízes e escrivães na aplicação das leis e registro das atividades administrativas
estavam causando e/ ou facilitando a prática de crimes e desordens no Siará
Grande. Certamente, esta pouca presença do Estado português, visualizada na
falta de justiça e vigilância de seus agentes da governança local ou estrutura
administrativa, proporcionou a elite conquistadora da capitania o descumprimento
de normativas referentes ao controle da posse da terra e o cometimento de crimes
de roubos, assassinatos e invasão de terras de indígenas, além dos conflitos entre
os próprios conquistadores sobre as dimensões de suas sesmarias.
Além do mais, o Juiz e os Vereadores da vila de São José de Ribamar ratificaram
este pedido de Reimão para se fazer correição. Segundos estes, os excessivos
salários dos oficiais de justiça estavam prejudicando o povo da vila, pois eram
muitos deles, soldados pagos, outros solteiros e os recursos contra estas decisões
ficavam muito distantes na Capitania Geral de Pernambuco. Assim, solicitaram que
as correições e as apelações fossem realizadas na Capitania da Paraíba31.
Interessante observar que a concordância destes sujeitos com a proposta de
Cristóvão Soares Reimão é sintomática das relações de poder e formação de redes
de alianças na Capitania do Siará Grande e, especialmente, na ribeira do Jaguaribe.
Além de concordarem, estavam solicitando que os recursos não fossem mais
enviados para Pernambuco, e sim, para onde atuou o desembargador, Paraíba.
A resposta veio em 06 de setembro de 1709 com o deferimento do pedido
do Desembargador e dos oficiais da Câmara da vila de São José de Ribamar do
Aquiraz. Segundo parecer do Conselho Ultramarino:

Pareceu ao conselho o mesmo que ao Procurador da coroa


acrescentando que como [dela] tem dúvida que a capitania
do Ceará está mais perto da Paraíba que de Pernambuco
que Vossa Majestade deva permitir que fique na correição
da dita capitania da Paraíba porque desta maneira será
mais fácil ir a ela o ouvidor devassar dos casos tão atrozes
como ali acontecem tão frequentemente.32

Estas missivas entre agentes da governança, camaristas, sesmeiros e capitães-


mores denotam a busca constante, por ambos sujeitos, do reconhecimento de
suas demandas perante a Coroa portuguesa. Este reconhecimento, a nosso ver,

30
Grifos meus. CARTA do Desembargador Cristóvão Soares Reimão ao rei [D. João V], sobre a
necessidade de se fazer correição na capitania do Ceará pelo menos de três em três anos em
razão da grande falta de administração da justiça. Ribeira de Jaguaribe, 13 fev. 1708. AHU_ACL_
CU_006, Cx. 1, D. 69.
31
Assinaram o documento o Juiz José de Lemos, João Ferreira Chaves, Reverendo Manoel Gomes
de Oliveira e o Procurador Délio Fernandes Guerra.
32
AHU_ACL_CU_006, Cx. 1, D. 69.

76 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


expressou uma dinâmica particular de interação entre estes sujeitos e a Metrópole.
Uma dinâmica que, certamente, gravitava entre busca por espaços de autonomia
e dependência. Ou seja, as complexas relações estabelecidas neste contexto de
conquista da capitania foram desenvolvidas para além deste “enquadramento”
teórico de análise de relações que propõem uma discussão em torno da centralização
e da autonomia dos espaços e de suas elites frente às determinações reais (poder
central versus poder local).
Durante os anos que esteve a cargo do poder metropolitano no Siará Grande
Cristóvão Soares Reimão esteve envolvido em confrontos e alianças. De um lado nos
embates estavam, Soares Reimão e os oficiais da Câmara de São José de Ribamar,
muitos destes sesmeiros33. Do outro, capitães-mores e diversos sesmeiros que se
sentiam prejudicados com os processos de medição e demarcação das sesmarias
que exigiam a apresentação da data de concessão e a posterior confirmação da
medição judicial, além do pagamento dos custos do processo.
Cristóvão Soares Reimão relatou em 1709 ao rei, D. João V, as dificuldades e
impedimentos que estava enfrentando na Capitania do Siará Grande por conta
da atuação de vários sujeitos que procuravam impedir e intimidar o ministro
e seus oficiais no processo de medição e demarcação das terras. Segundo o
Desembargador, existia ainda o agravo da justiça da capitania se encontrar distante
cerca de 50 léguas da ribeira do Jaguaribe. O magistrado esclareceu que:

[...] não prendi ao menos alguns cabeças, como os ia


nomeados, Domingos Ribeiro, Gregório de Figueiredo,
Gonçalo Munis, assim por haver sido repreendido de uma
[que] fiz no Rio Grande em outra matéria, como porque
os meus oficiais me não quiseram acompanhar, por senão
exporem ao perigo de os matarem, e nem querer continuar
a medição.34

Por meio deste relato, se vê, inegavelmente, a parca presença institucional/


administrativa do Estado português nos sertões, mesmo este espaço se constituindo
de extrema importância no processo de expansão e conquista da Costa Leste-
Oeste do Estado do Brasil, e como seus ministros e oficiais ficavam dependentes
das forças e alianças que poderiam fazer com os conquistadores.
Os causadores do “motim” foram enumerados por Cristóvão Soares Reimão,
destacam-se as relações familiares entre os mesmos: “capitão João da Fonseca,
coronel Luís de Seixas [sobrinho do capitão João da Fonseca], licenciado

33
Ressalta-se que na organização jurídico-administrativa do Império português as câmaras estavam
subordinadas a ouvidoria. Talvez esta dependência, aliada com os constantes atritos entre os
camaristas e o poder “opressivo” dos capitães-mores, fizessem com que os oficiais se aproximassem
do desembargador almejando proteção contra o que chamavam de intromissão jurisdicional do
Forte no que cabia a estes.
34
Grifos meus. CARTA do [Desembargador da Capitania de Pernambuco], Cristóvão Soares Reimão,
ao rei [D. João V], sobre o tombamento das terras da Ribeira do Jaguaribe, da Capitania do Ceará,
e de como foi impedido por João Fonseca e seu sobrinho Luís de Seixas e os demais que constam
no auto de devassa que tirou. Recife, 05 jun. 1709. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania
de Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 23, D. 2106.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 77


Domingos Ribeiro, alferes Gaspar de Sousa e Gonçalo Munis [sobrinho do capitão
João da Fonseca], Gregório de Figueiredo Barbalho, Manoel de Sousa, Gregório
de Figueiredo [filhos do alferes Gaspar de Sousa], Inocêncio da Cunha, Manoel
Gonçalves da Silva, Antonio Álvares”35.
O grupo se reuniu em frente à casa – Sítio São João Batista – onde estavam
abrigados o Desembargador e seus oficiais, querendo entrar e tirar requerimento
com o mesmo. Estavam, “todos com suas espingardas nas mãos” e com dois negros,
também armados, de propriedade do alferes Gaspar de Sousa e do capitão João
da Fonseca Ferreira. Após terem seus objetivos frustrados pelo ministro, que os
mandou interpelarem por escrito suas queixas, saíram para a casa do sargento-mor
João de Sousa Vasconcelos, provavelmente parente de Gaspar de Sousa. Onde
fizeram uma petição cobrando explicações da atuação de Reimão.
O juiz das sesmarias também representou queixa acerca da atuação do Capitão-
mor do Siará Grande, Gabriel da Silva Lago, por apoiar os distúrbios na ribeira e
não mandar o socorro necessário que o ministro havia solicitado por intermédio
de seu escrivão, Alberto Pimentel. O magistrado acusou o Capitão-mor de ir com
antecedência a ribeira do Jaguaribe e “levando sua marca”, marcar 150 bois que
lhe deram. Provavelmente, gados dos sujeitos que se envolveriam mais tarde nas
contendas com Soares Reimão e que poderiam representar um pagamento ou uma
recompensa ao Capitão-mor por este apoiar o grupo de sesmeiros contra a ordem
que estava sendo imposta pelo magistrado.
De certo, a atuação do Capitão-mor Gabriel da Silva Lago neste fato foi muito
além da não prestação de socorro ao Desembargador e seus oficiais. Como
Capitão-mor, doou 09 das 13 sesmarias para o grupo de sesmeiros que entraram
em conflito com Soares Reimão, sendo todas as concessões localizadas na ribeira
do Jaguaribe entre os anos de 1706 e 1708. Sem dúvida, a aliança entre Gabriel da
Silva Lago e estes sesmeiros estava consolidada quando da chegada do magistrado
na capitania36.
Em carta de junho de 1709 o Desembargador, Cristóvão Soares Reimão, tornou
a escrever ao rei, D. João V, sobre as dificuldades que estava enfrentando no
processo de medição e demarcação das terras da Capitania do Siará Grande. Para
resolver um dos litígios que envolviam três sesmarias, Soares Reimão afirmava que
precisava fazer um exame do livro de registro das datas da capitania, e assim, evitar
maiores desavenças. Entretanto, o Capitão-mor, Gabriel da Silva Lago, não queria
atender a demanda feita pelo ministro:

Querendo decidir uma causa, em que litigam várias pessoas


insertas em três sesmarias, passei precatória a Gabriel da
Silva capitão-mor do Siará para me fazer remeter o livro
dos Registros delas, para por ele se examinar quais das
pessoas foram lhe acrescentadas, para excluir na sesmaria,
e como não satisfez [e fez] fazer novo livro de registros,
mandando de um passar para o outro nome o que a quis,
e se ficou com o velho, e nele se escreve o que ele quer, e

35
AHU_ACL_CU_015, Cx. 23, D. 2106.
36
ARQUIVO, Datas de sesmarias do Ceará...

78 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


como quer.37

Evidencia-se nesta carta do juiz das sesmarias o quanto era conflituosa a relação
entre Soares Reimão e Gabriel da Silva Lago. A acusação do magistrado demonstra
como a atuação dos capitães-mores no processo de concessão de sesmarias foi
nebulosa e resultou em diversos conflitos pela posse de terras e limites de cada
sesmaria, resultando na posterior suspensão da autorização para os capitães-mores
efetuarem doações.
As sesmarias em questão haviam sido concedidas por dois capitães-mores:
Bento de Macedo e Faria e Jorge de Barros Leite. A primeira estava localizada
no riacho Banabuiú e havia sido doada em 1683. As demais eram na mesma
ribeira do Jaguaribe, mas em riachos diferentes: Porô e Rinaré. Todas desaguavam
no rio Jaguaribe por intermédio do rio Banabuiú. O que teria levado Gabriel da
Silva Lago a negar a solicitação já que estas terras não haviam sido doadas por
ele? Conjectura-se que o Capitão-mor buscasse esconder alguma irregularidade
cometida por ele em outras concessões registradas no mesmo livro ou mesmo
nestas de seus antecessores, protegendo-os. Outra hipótese aventada é a existência
de uma aliança entre os sujeitos beneficiados por tais concessões e Gabriel da
Silva Lago. Seriam sesmeiros pertencentes ao grupo que sitiou a casa que abrigava
o Desembargador? Infelizmente o magistrado não identificou, nos documentos,
quais eram as sesmarias em disputas, os sesmeiros e os demais sujeitos envolvidos
no litígio.

A Posse de Terras e os Conflitos Entre Conquistadores


e Suas Redes de Alianças

As desavenças e intrigas entre os conquistadores/ moradores das ribeiras do Siará


Grande foram muitas no transcorrer dos anos da conquista da capitania. Na ribeira
do Acaraú, por exemplo, vários moradores, dentre eles Francisco da Cunha de
Araújo, Francisco Pinheiro do Lago e Gabriel Cristóvão de Meneses, representaram
contra Sebastião de Sá, alegando ser este “homem revoltoso e perturbador do
sossego de um povo”. Sebastião de Sá, então morador na freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Acaraú, em 1725, foi descrito pelos representantes como
sendo:

[...] por natureza, soberbo, homicida, culpado em sete


mortes; das quais, o é na de uma filha sua, que matou
tiranamente sem causa alguma, e as mais da mesma sorte,
e saindo culpado em todas não tem tido pena alguma,

37
CARTA do [Desembargador da Capitania de Pernambuco], Cristóvão Soares Reimão, ao rei [D.
João V], sobre o pedido feito ao Capitão-mor da Capitania do Ceará, Gabriel da Silva, para lhe
remeter o livro dos registros de sesmarias, informando que ele fez um outro livro colocando datas
incertas. Recife, 05 jun. 1709. AHU_ACL_CU_015, Cx. 23, D. 2107. Faz parte do conjunto de
documentos desta reclamação do Desembargador, uma carta de Inácio Ferreira de Albuquerque,
meirinho das medições e demarcações das terras no Siará Grande e Rio Grande, reafirmando as
palavras de Soares Reimão e informando que Gabriel da Silva Lago havia passado mais de um
mês para dar alguma resposta.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 79


porque, com o dinheiro, suborna as testemunhas de sorte,
o que sempre dá boa coartada e no livramento da filha
deu quatrocentos mil réis ao ouvidor da Paraíba Manuel
da Fonseca Silva pelo aliviar na sentença.38

Os moradores atribuíam todos os desmandos ao poder econômico e bélico de


Sebastião de Sá e a distância que a justiça da capitania se encontrava. Ademais,
afirmavam também que a justiça não tomava satisfação das causas cometidas pelo
“homicida” por ser dependente dele.
Em 24 de maio de 1724, o juiz do Jaguaribe, Clemente de Azevedo, escreveu
carta ao Senado da Câmara relatando os serviços que estava desempenhando
no Cariri e informando da chegada, na região, de uma grossa tropa de homens
vindos dos Inhamuns e que os mesmos estavam, juntamente com o coronel João
da Fonseca Ferreira e os tapuias do Genipapo, causando desordens.

Começaram a dar pelas casas dos moradores, prendendo


e matando a sangue frio os que lhes parece, e no primeiro
dia mataram quatro homens sem nenhum ser criminoso
nem pegar em armas, saqueando e roubando tudo
quanto se acha nas ditas casas, como se fosse quadrilha
de bandoleiros, e amarrando mulheres casadas e viúvas
honradas levando-as em suas companhias para onde lhes
parece, e os negros que acham pelas fazendas e colomins
tudo levam dizendo que fazem tudo com ordem que tem
do Dr. Ouvidor geral para isso.39

Clemente de Azevedo procurava advertir que estes “malfeitores” faziam “tão


pouco” dele e da administração da capitania que chegaram a avisar que não
deixariam governo de pessoa alguma no Cariri. Como solução o juiz do Jaguaribe
alertou que os oficiais do Senado da Câmara e o Capitão-mor deveriam pôr os
olhos naquela ribeira e combater as tiranias daqueles régulos.
Em 1725, Manuel Francês, Capitão-mor do Siará Grande, preocupado com as
disputas de poder nos sertões da capitania escreveu correspondência a Antonio
Mendes Lobato Lira e a Manuel de Souza Barbalho, solicitando que os mesmos

38
Assinam a representação: João Lopes de Oliveira, João Vieira Passos, Manuel de Santiago,
Francisco Dias das Chagas, Manuel Teixeira Correia, Lourenço de Andrade Passos, Antônio Alves
Coelho, João Félix de Carvalho, Gervásio Pereira Álvares, Domingos Álvares Ribeiro, Pedro de
Miranda, Custódio da Costa Oliveira, Antônio Ribeiro Pereira, Damião Gomes da Silveira, Manuel
da Cunha Fernandes, André Duarte, Domingos Ferreira Passos, Nicolau Gomes de Brito, Manuel
Rodrigues dos Reis, Ambrosio da Costa, Bento Pereira Lemos, Lázaro Luís Friesco, Manuel da
Costa Silva, Pedro Ferreira de Medeiros e Rodrigo da Costa de Araújo. REPRESENTAÇÃO dos
moradores da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Acaraú ao rei [D. João V], em que
pedem que Sebastião de Sá seja expulso daquela freguesia por ser homem revoltoso, blasfemo e
perturbador do sossego público, sendo, inclusive, acusado de matar uma filha e de dar quatrocentos
mil réis ao visitador da Paraíba, Manuel Fonseca Silva, para o livrar da culpa. Anterior a 06 mar.
1725. AHU_ACL_CU_006, Cx. 2, doc. 9.
39
CARTA do Juiz de Jaguaribe Clemente de Azevedo, em 24 de maio de 1724, ao Senado da
Câmara de São José de Ribamar. Apud BEZERRA, Algumas origens..., p. 226-227.

80 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


parassem com as desavenças. Segundo o Capitão-mor, este desserviço a Sua
Majestade estava causando desordens em toda a capitania, pois “quase toda a
Capitania a qual a maior parte dela está no conhecimento dos tais desserviços
e não querem concorrer para entendendo o que tem sucedido”. Manuel Francês
ordenou aos envolvidos na contenda que “Vossa Mercês e a todos os seus parentes
se sosseguem a que não haja mais destruições e que se sujeitem as Leis de bons
Vassalos”. Caso esta determinação e as leis não fossem observadas, os litigantes
teriam seus requerimentos negados pela Coroa portuguesa e poderiam “perder
suas vidas e fazendas”40.
Neste mesmo ano de 1725, o Capitão-General Governador da Capitania
Geral de Pernambuco e suas anexas, D. Manuel Rolim de Moura, emitiu bando
aos conquistadores do Siará Grande para que estes observassem as leis e se
abastecem de causar desserviços ao povoamento das ribeiras, especialmente a do
rio Jaguaribe.

[...] por me ser notório o desassossego e inquietação


em que se acham os moradores da capitania do Ceará
Grande e principalmente os da Ribeira de Jaguaribe,
seguindo-se-lhe grandes ruínas em suas vidas e fazendas
cujas hostilidades têm padecido por haver na dita ribeira
de Jaguaribe motores de parcialidades as quais tenho
obrigação de reparar.41

Como se vê, estes problemas haviam sido relatados pelo Capitão-mor


Manuel Francês no mês de fevereiro de 1725 no caso envolvendo as famílias de
Antonio Mendes Lobato Lira e Manuel de Souza Barbalho. Desta vez, talvez por
conhecimento dado pelo próprio Capitão-mor do Siará Grande, o Capitão-General
Governador da Capitania Geral de Pernambuco e suas anexas, D. Manuel Rolim
de Moura tentou impedir que estas desavenças entre os poderosos dos sertões
prejudicassem o andamento da conquista da capitania, requerendo aos moradores
que não atendessem aos chamados dos régulos do sertão.

[...] ordeno a todos os moradores daquela capitania e


Ribeira de Jaguaribe vivam em suas casas sossegados e se
abstenham de qualquer tumulto ou partido para que hajam
de ser convocados, e havendo quem os queira obrigar a
semelhantes absurdos, lhes não obedeçam e darão parte
ao capitão-mor da dita capitania para os castigar os que os
persuadirem, e o que obrarem o contrario os hajam por
régulos e serão suas fazendas confiscadas para a coroa.42

40
CARTA que escreveu o Capitão-mór Manuel Francês a Antonio Mendes Lobato Lira e a Manuel de
Souza Barbalho em 23 de fevereiro de 1725. Apud BEZERRA, Algumas origens..., p. 222.
41
BANDO do Governador de Pernambuco em 10 de abril de 1725. Apud BEZERRA, Algumas
origens..., p. 223.
42
BANDO do Governador de Pernambuco em 10 de abril de 1725. Apud BEZERRA, Algumas
oorigens..., p. 223.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 81


Além das recomendações e punições expressas no bando, D. Manuel Rolim
de Moura deixou evidente que os lideres das ações que estavam ocasionando os
malefícios a Sua Majestade não teriam perdão. Entretanto, os moradores que já
tivessem sido deixados levar por tais cabeças poderiam receber o perdão, desde
que a partir deste momento obedecessem como bons vassalos de El Rey. Este
bando, assim como a carta do Capitão-mor Manuel Francês, expressou também a
preocupação com a publicação da determinação, procurando evitar a alegação de
desconhecimentos por parte dos envolvidos.
A violência dos conflitos que envolveram os potentados locais nas ribeiras
do Siará Grande foi tamanha que ficou registrada na toponímia da capitania,
nomeando rios, riachos, fazendas, lugarejos, etc. Riacho do Sangue, por exemplo,
foi em referência ao combate entre Montes e Feitosas43.
Em 12 de maio de 1731, a Câmara da vila de Aquiraz requereu ao rei, D. João
V, que enviasse um ministro para demarcar as terras da Capitania do Siará Grande.
Os camaristas alegaram que os pleitos/ contendas entre os moradores da capitania
envolviam as datas de sesmarias que haviam sido doadas pelos capitães-mores
sem maiores esclarecimentos quanto aos seus limites, resultando:

[...] [que] mortes e outros inconvenientes são nascidos


dos moradores destes sertões não terem demarcadas
as terras de suas datas e nesta forma não sabem o que
compreendem e pedem uns o que muitas vezes está dado
a outros e pela confusão dos confins não sabem discernir,
nem separar-se e isto é em quase toda a capitania.44

Para solucionar o caso e dar sossego ao Siará Grande, solicitaram um ministro


tombador. Interessante observar que os mesmos já aproveitaram a ocasião para
apresentar o nome do Ouvidor-geral da Câmara para realizar os trabalhos de
demarcação. Em resposta, D. João V emitiu provisão ao Ouvidor-geral para a
realização da demarcação das datas de terra com a maior brevidade possível.
João da Maia da Gama, experiente português que desempenhou o cargo de
Governador na Paraíba (1708-1717) e Capitão-General no Maranhão (1722-
1728), além de ter sido comandante em uma das fragatas portuguesas na Guerra
da Sucessão Espanhola45, escreveu uma longa carta ao rei, D. João V, informando
sobre o que se passava na ribeira do Jaguaribe, especialmente sobre as motivações

43
Sobre esta toponímia da violência na Capitania do Siará Grande ver: VIEIRA JR., Antonio
Otaviano. “Toponímia da violência”. In: __________. A Família na Seara dos sentidos: domicílio e
violência no Ceará (1780-1850). Tese (Doutorado em História Social). Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2002, p. 142-146. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. “Os nomes”. In: __________.
“Um escandaloso theatro de horrores”: a Capitania do Ceará sob o espectro da violência (século
XVIII). Monografia (Graduação em História), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2006, p.
13-17.
44
REQUERIMENTO da Câmara da vila de Aquiraz ao rei [D. João V] a pedir um ministro tombador
para demarcar as terras, evitando-se assim os pleitos que frequentemente se movem. Aquiraz, 12
mai. 1731. AHU_ACL_CU_006, Cx. 2, D. 49.
45
Ocorrida entre os anos de 1702 e 1714, tinha como motivação a sucessão do trono espanhol após
a morte do rei Carlos II da Espanha e a aliança reinol entre França e Espanha. Esta aliança não foi
aceita pelos demais reinos envolvidos na guerra (Portugal, Inglaterra e Holanda).

82 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


que ocasionaram as parcialidades entre os Montes e os Feitosas46. Segundo João
Gama, os litígios envolvendo os dois grupos de poderosos começaram na disputa
de terras que havia sido requerida por Antonio Mendes Lobato e a Lourenço Alves
Feitosa, por estarem, segundo os mesmos, devolutas pelo não povoamento dos
antigos solicitantes: capitão-mor Manuel Carneiro da Cunha e capitão Manuel
Rodrigues Ariosa, que haviam requerido por Pedro Antonio de Brito terem-nas
abandonado. Ao tentarem tomar posse das ditas terras, foram impedidos pelo
capitão Duarte Lopes, procurador do capitão-mor Manuel Carneiro da Cunha que
os informou que só seria possível por meio de arrendamento.

Morrendo os ditos Manuel Carneiro e Manuel Rodrigues


Ariosa a quem os Feitosa tinham passado arrendamento;
buscou com esta notícia Antonio Mendes Lobato ao seu
companheiro Lourenço Álvares Feitosa para que partissem
os sítios na forma do seu ajuste, porém o Lourenço Álvares
Feitosa se levantou com a dita terra e não quis fazer a
repartição que tinha ajustado com o sócio Antonio Mendes
Lobato.47

Vendo-se o dito Antonio Mendes Lobato enganado


procurou meios de haver a si as ditas terras e parecendo-
lhe remédio pronto e seguro foi comprar a data das ditas
terras a um irmão e herdeiro do defunto [Pedro] Antonio
de Brito e competindo o dito Antonio Mendes Lobato
com o dito Lourenço Álvares Feitosa, que lhe tinha faltado
ao ajuste, querendo o Feitosa conservar-se nas terras e
Lobato, querendo senhoreá-las em virtude da dita compra
e assim se puseram em armas, Antonio Mendes Lobato
seguido dos seus parentes os Montes e o Lourenço Álvares
Feitosa com os seus e aqui tiveram princípio as desuniões
e parcialidades dos Montes e Feitosas.48

46
Segundo Luiz de Aguiar Costa Pinto, os Montes eram provenientes de Penedo (Alagoas) e que
teriam como líder familiar o capitão-mor Geraldo de Monte Silva. Entretanto, não consta nenhuma
menção ao capitão-mor na documentação analisada, tendo sido recorrente a menção a Antonio
Mendes Lobato como um dos “lideres” da família Montes. Já os Feitosas, eram comandados pelo
comissário-geral Lourenço Alves Feitosa. Cabe destacar que a vinda dos Feitosas para a Capitania
do Siará Grande, segundo Luiz de Aguiar Costa Pinto, teve como motivação o envolvimento da
família na Guerra dos Mascates, ocorrida em Pernambuco. PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Lutas de
famílias no Brasil: introdução ao seu estudo. 2ª ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1980,
p. 98-99. Nertan Macedo afirma que os Montes eram provenientes de Pernambuco e tinham uma
extensa parentela no Recife. MACEDO, Nertan. O Clã dos Inhamuns: uma família de guerreiros e
pastores das cabeceiras do Jaguaribe. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1980.
47
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre as ordens para que o Desembargador
Pedro de Freitas Tavares Pinto a ir ao Ceará executar as diligências referentes às devassas das
sublevações e mortes ali acontecidas. Lisboa, 30 ago. 1730. AHU_ACL_CU_006, Cx. 2, D. 46.
48
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre as ordens para que o Desembargador
Pedro de Freitas Tavares Pinto a ir ao Ceará executar as diligências referentes às devassas das
sublevações e mortes ali acontecidas. Lisboa, 30 ago. 1730. AHU_ACL_CU_006, Cx. 2, D. 47.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 83


Envolvido nos conflitos entre Feitosas e Montes, Lourenço Alves Feitosa,
cunhado do padre José Ferreira Gondim, vigário de Goiana e vice-vigário de
Recife foi, segundo Gomes de Freitas, beneficiado pela rede de poder econômico e
familiar que constituiu. No governo de Salvador Álvares da Silva, Capitão-mor do
Siará Grande entre os anos de 1719 e 1721, os Feitosas receberam várias patentes
militares e concessões de terras na capitania. Em 1719 foram concedidas as patentes
de sargento-mor, coronel de cavalaria e comissário-geral, respectivamente para
Francisco Ferreira Pedrosa, Francisco Alves Feitosa49 e Lourenço Alves Feitosa. Este
último foi agraciado com treze sesmarias, das vinte e duas que recebeu ao todo, na
administração de Salvador Álvares da Silva50.

Considerações Finais

Durante os embates envolvendo as famílias Feitosa, Montes e os demais grupos


arregimentados por estas, o Capitão-mor Manuel Francês escreveu diversas cartas
aos envolvidos na contenda, solicitando que os mesmos se aquietassem e não
entrassem em conluio com os gentios nestas desavenças. Esta atitude evidencia
a impotência da autoridade central da capitania frente aos poderosos do sertão
estabelecidos nas ribeiras do sertão.
As alianças entre as elites conquistadoras no Siará Grande, ao estabelecerem
redes de alianças mediante relações econômicas, familiares e/ ou de proteção militar,
garantiam a estes grupos a ampliação dos poderes político, econômico e militar
nos sertões da capitania. Estas redes de poder foram constituídas principalmente
por meio das negociações de terras, obtida por meio da concessão de sesmarias,
e da capacidade de arregimentar exércitos pessoais em defesa de seus interesses
político-econômicos51.
Estes dois grupos familiares, Feitosas e Montes, que se estabeleceram e obtiveram
o controle de vastas áreas na capitania, assim como os Araújo Chaves, os Mourão,
dentre outros, constituíram-se como poderes regulatórios nas ribeiras do Siará
Grande durante o transcorrer da primeira metade do século XVIII. A força política,

49
Segundo Billy Chandler, a nomeação de Francisco Alves Feitosa para o posto de coronel da cavalaria
dos Inhamuns marcou início da autoridade portuguesa neste espaço. CHANDLER, Billy Jaynes.
Os Feitosas e o sertão dos Inhamuns: a história de uma família e uma comunidade no Nordeste do
Brasil (1700-1830). Tradução de Alexander F. Caskey & Ignácio Montenegro. Fortaleza: Editora da
UFC; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 28.
50
FREITAS, Gomes de. “Em Campo Raso as tropas dos Inhamuns”. Revista do Instituto Histórico,
Geográfico e Antropológico do Ceará, ano LXXVIII, 1964, p. 105-112.
51
Exemplo destes negócios envolvendo as sesmarias que haviam sido concedidas aos conquistadores
foi o caso da venda da fazenda de propriedade de Antonia de Oliveira Leite, esposa do comissário-
geral Lourenço Alves Feitosa. Na procuração passada em 1719, Antonia de Oliveira Leite estabelecia
como procuradores “no Recife a seu marido o Comissário Lourenço Alves Feitosa, e a seu irmão
o propáraco do Recife José Ferreira Gondim, e a seu pai o Sargento-Mor Domingos Vaz Gondim,
ao Capitão Antônio Velho Gondim, e ao padre Domingos Velho Gondim; no Ceará ao Reverendo
Vigário Dr. João da Mata Serra; no Icó ao Reverendo Vigário cura da matriz de N. Senhora da
Expectação da dita freguesia do Icó, o padre Domingos Dias da Silveira, ao Capitão José de Araújo
Chaves, ao Alferes Francisco Alves Feitosa e a Pedro Alves Feitosa; na vila de Penedo do rio de S.
Francisco aos capitães Manuel Ferreira Ferro e João Ferreira Ferro; sendo todas pessoas ligadas por
laços de consangüinidade ou de afinidade com os Feitosas”. MACEDO, O Clã dos Inhamuns..., p.
54-55.

84 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


bélica e econômica destes grupos crescia proporcionalmente à distância e a direta
inoperância da Coroa portuguesa ou de seus representantes legais na capitania.
Por fim, ressalta-se que os conflitos travados entre conquistadores, agentes da
governança local e demais populações locais representaram complexas interações
no processo de conquista e formação sócio-espacial da capitania. Portanto,
compreendem-se estes embates não como um jogo de forças entre grupos –
conquistadores que buscavam autonomia e governança local que almejava efetivar
o poder real – mas como uma intricada relação de redes de conflitos. Assim, as
alianças e os conflitos eram tecidos a partir da conjuntura de guerra que a conquista
do espaço apresentava.



RESUMO ABSTRACT
O presente artigo busca analisar os conflitos This article aims to analyse the conflicts and
e os arranjos de poder estabelecidos entre arrangements of power established among
conquistadores, agentes da governança local e conquerors, agents of the local governance
populações locais na capitania do Siará Grande and local populations in the captaincy of Siará
como forma das elites locais obterem o poder Grande as a way that the local elites used to
local na capitania e seu reconhecimento por achieve the local power in the captaincy and
parte da Coroa portuguesa durante a primeira reach its recognition by the Portuguese Crown
metade do século XVIII. Ao longo da discussão, during the first half of the eighteenth century.
buscaremos detalhar as disputas relativas ao Along the discussion, it seeks to detail the disputes
local de estabelecimento da sede da primeira Vila concerning the place to locate the seat of the
da capitania e das concessões e demarcações first village in the captaincy and the concessions
de sesmarias. Ressalta-se que as interações e and demarcations of sesmarias. It is emphasized
as disputas pelo poder envolvendo diferentes that the interactions and disputes for the power
grupos – tais como proprietários de terra, agentes involving different groups – such as landowners,
do governo, dos povos indígenas e a população agents of the governance, indigenous and poor
pobre – não implicava, necessariamente, na peoples – did not necessarily imply the search for
busca por mais autonomia para a elite local. more autonomy to the local elite.
Palavras Chave: Sesmarias; Conflito; Keywords: Sesmarias; Conflict; Local
Governança Local. Governance.

Artigo recebido em 14 nov. 2015.


Aprovado em 13 abr. 2016.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 85


AS SIBILAS E A PINTURA DE FALSA ARQUITETURA
DA CAPELA DE NOSSO SENHOR DO BONFIM:
SINGULARIDADE PERSUASÓRIA
NA DIAMANTINA DO SÉCULO XVIII
Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani1

“E a Sibila com delirante boca sem risos, sem


belezas, sem perfumes ressoando mil anos
ultrapassa com a voz, pelo deus nela.”
Heráclito de Éfeso, Fragmento 92.

O teto da capela-mor da capela de Nosso Senhor do Bonfim em Diamantina,


Minas Gerais, está adornado com uma das pinturas mais intrigantes da América
Portuguesa. Em abóboda de berço, como sói acontecer na colônia, traz um quadro
recolocado com a deposição. O que enreda o olhar do observador são, no entanto,
quatro quadros com figurações de sibilas entremeadas por cariátides que compõe
uma estrutura de falsa arquitetura pouco refinada se comparada com aquelas
que foram executadas no mesmo arraial, também no século XVIII por um pintor
bracarense: José Soares de Araújo. Conhecido como refinado pintor, foi um artista
múltiplo e completo, uma figura histórica intrigante e um homem influente no
Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina.
As informações sobre esse artista em Portugal são escassas. Nada foi encontrado
relativo a uma possível formação artística ou a qualquer documento que o
vinculasse à pintura ou qualquer outra linguagem artística, nem tampouco ao seu
deslocamento para o Brasil. A pressuposição da formação artística é absolutamente
cabível, uma vez que o requinte da sua pintura assim o sugere. Não só o requinte,
como a exclusividade de determinadas características extremamente eruditas, sem
igual nas Minas Gerais. Deve-se levar em conta ainda o fato de ter-se ele dedicado
à pintura pouco tempo após sua chegada à colônia, ou pelo menos, pouco tempo
depois da data do primeiro registro da sua presença no arraial do Tijuco.
Sabe-se, no entanto, que José Soares de Araújo dedicou-se também a ensinar
a arte da pintura e a administrar pintores – inclusive escravos – no cumprimento
dos contratos que lhe faziam as irmandades do arraial2. Desta forma, mais ou
menos requintadas, aparecem no Arraial do Tijuco e seu entorno as pinturas de
quadratura que foram a grande contribuição do artista bracarense.
Especificamente na Capela de Nosso Senhor do Bonfim, o pouco requinte da
técnica pictural convive com o refinamento e a raridade dos motivos: quadratura
e sibilas contornadas por colunas de cariátides que não foram encontradas em

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta da Faculdade
de Ciências Humanas da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Campus JK,
Diamantina – MG. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Interinstitucional Arte, Cultura e Sociedade no
Mundo Ibérico (séculos XVI a XIX) (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <magnani@redecitel.
com.br>.
2
MAGNANI, Maria Cláudia Almeida Orlando. “Entre o Minho e Minas: as veredas artísticas de José
Soares de Araújo”. Forum, Braga, Universidade do Minho, n. 47/48, 2012/2013, p. 139-160.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 87


outro lugar da colônia portuguesa. Em contrapartida, são numerosas as sibilas
no Tijuco: além do referido afresco o motivo aparece em panos sibilísticos usados
para cobrir os santos dos altares colaterais dos templos na semana santa. Todas as
igrejas setecentistas do Arraial do Tijuco possuíam seus panos de altares adornados
com figurações de sibilas.
Como compreender a presença dessas profetisas no Tijuco? O mito das sibilas
tem um fôlego inigualável e de certa forma sobrevive até hoje. A previsão do futuro
é desde os primórdios da humanidade um saber desejado e altamente sedutor. De
diferentes formas os mitos representam a busca do ser humano pela revelação do
seu futuro pessoal ou coletivo. A existência mitológica de oráculos e de entidades
com esta função é uma das maneiras recorrentes da busca do homem pelo saber
dos acontecimentos porvindouros e atravessou tempo e espaço sobrevivendo a
imensas transformações históricas e se adaptando a diferentes culturas e lugares.
Um caminho possível para se compreender a presença desse mito na colônia
portuguesa da América é a intelecção do aspecto persuasivo das profetisas sibilas,
que da Babilônia passando pela antiguidade clássica chegaram às pinturas do
Tijuco no século XVIII.
As sibilas são mais conhecidas como figuras da mitologia greco-romana.
São sacerdotisas de Apolo e têm a seu cargo dar a conhecer os oráculos deste
deus. Coletâneas de oráculos sibilinos circularam ainda nos primórdios da idade
helenística. Desde cedo os oráculos tinham uma função de propaganda religiosa
e política3. As sibilas não foram as únicas figuras de profetisas da Ásia menor4.
Havia no mundo antigo, ao menos dois tipos principais de oráculos: aquele que
dava respostas a perguntas específicas feitas por indivíduos singulares, como por
exemplo, o famoso oráculo de Delfos; e aquele que fazia previsões para iluminar o
mundo em geral. É nesta última categoria que entram os oráculos sibilinos. Apesar
de as respostas délficas e dos oráculos desse tipo serem um tanto vagas e ambíguas,
era necessário certo grau de precisão para que fossem de alguma utilidade prática.
Os oráculos sibilinos, ao contrário, não tinham a desvantagem de ter que dar uma
resposta precisa. A sua força não estava na exatidão, mas ao contrário, na sua
imprecisão5. Estes oráculos chegaram até os nossos dias, não só em meios eruditos,
mas também em meios populares e camponeses. Recordações e vestígios dessas
figuras antigas podem ser encontrados de maneira degenerada, transformada e até
quase irreconhecível, todavia, ainda vivos, em tradições orais de meios campesinos
na Europa. A exemplo disso pode-se citar a crença outrora existente na Itália de
que os gatos negros possuíam um osso a mais do que os outros gatos não negros.
Quem encontrasse esse osso e o pusesse na boca, ficaria invisível aos olhos dos
outros. Teria então “encontrado a Sibila”6.
O mito das sibilas se presta a diferentes funções e se adaptou a diversas culturas
em épocas distintas. Por fazerem parte de uma forma particular de literatura

3
PERETTI, Aurelio. La Sibilla Babilonese nella propaganda ellenistica. Firenze: La Nuova Italia
Editrice Firenze, 1943.
4
STONEMAN, Richard. The ancient oracles making the Gods speak. New Haven & Londres: Yale
University Press, 2011.
5
PARKE, Herbert William. Sibille. Genova: Edizioni Culturali Internazionali Genova, 1992, p. 11.
6
FERRI, Silvio. La Sibilla e altri studi sulla religione degli antichi. Pisa: Edizone ET, 2007.

88 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


apocalíptica (remontando ao século VII a.C.) na qual se visavam a propaganda
e a defesa “contra os de fora”, os oráculos das sibilas se prestavam à promoção
política e religiosa em meio judaico-cristão. Assim, por meio de lamentações sobre
o futuro de cidades e povos e anúncios do fim do mundo (afins aos intimidantes
vaticínios dos profetas veterotestamentários) testemunhavam a favor das religiões
monoteístas7.
As grandes etapas da conquista romana do Oriente foram sempre acompanhadas
de um renascimento exuberante dos oráculos de propaganda. Em todas as fases dos
grandes duelos seculares pela supremacia mundial (oriente-ocidente), os oráculos
apareceram como propaganda, seja contra ou a favor de Roma. A aversão e o ódio
contra Roma tiveram, no oriente, nos autores dos apocalipses judeus, os intérpretes
mais eloquentes e implacáveis. Nas mãos de Israel os oráculos foram arma de
combate, tanto mais eficaz e terrível quanto mais adotada em meio a massas
populares perpassadas pelo misticismo messiânico e pelo fanatismo religioso. Tudo
isso num momento em que, mesmo para os povos ocidentais, a política não era
mais do que uma ansiosa religião. A história do texto da sibila judaica reflete a
história do judaísmo helenístico, que na diáspora veio a ser uma religião missionária
na medida em que salta fatal e inadvertidamente do plano puramente espiritual
para o terreno dos antagonismos políticos e militares. Um dos meios mais eficazes
do proselitismo judaico na idade helenística foram os oráculos de propaganda
religiosa e política. Os oráculos sibilinos foram assim utilizados antes e depois que
Roma iniciasse sua política de expansão: como hostilidade e resistência pelos povos
dominados ou ameaçados (uma arma terrível pela sua eficácia moral) tendo, como
resposta romana, outros tantos oráculos se contrapondo à propaganda oriental8.
Os oráculos sibilinos, adaptados pelos judeus, foram adotados pelos cristãos
a partir da segunda metade do século II d.C. Em função da sua temática, forma
e intenção tornaram-se apropriados para a afirmação do cristianismo diante da
hostilidade romana. Na literatura, entre tantos outros registros, lembramos ao
menos dois grandes nomes: Virgílio menciona as sibilas em Éclogas e Eneidas,
e Ovídio em Metamorfoses. O processo de cristianização dessas figuras pagãs
fez com que suas profecias fossem associadas a profecias messiânicas da vida,
morte e ressurreição de Cristo. Constantino, primeiro imperador cristão, na sua
mensagem para o I Concílio de Niceia, interpretou a passagem das Éclogas como
uma referência à vinda do Cristo. A partir de então a representação das sibilas foi
possível em diferentes linguagens artísticas.
Varrão, ainda no século I a.C., instituiu em sua obra dez sibilas, desta maneira
arroladas em ordem de antiguidade: Pérsica, Líbica, Délfica, Ciméria, Eritéia,
Sâmia, Cuma, Helespontica, Frígia e Tiburtina9. Descrever o conteúdo das
primeiras profecias das sibilas gregas e traçar o desenvolvimento dos seus oráculos
até os nossos dias traria um problema particularmente difícil: o texto original das
suas profecias foi quase totalmente perdido e as suas origens devem ser deduzidas

7
ALVES, Célio Macedo. “O ciclo pictural das Sibilas de Diamantina”. Imagem Brasileira, Belo
Horizonte, Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, n. 3, 2006, p. 155-163.
8
PERETTI, La Sibilla Babilonese..., p.11-12.
9
Varrão, ou Marcus Terentius Varro, teria vivido de 116 a 27 a.C. Suas obras desapareceram quase
totalmente e são conhecidas por meio de citações de Cícero e Santo Agostinho.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 89


de poucos documentos restantes – a maior parte dos quais de momentos muito
posteriores – e de citações de autores porvindouros10. Assim a inviabilidade da
abordagem das primeiras manifestações das sibilas dá lugar ao enfoque da forma
já desenvolvida da profecia na coletânea hoje conhecida como Oracula Sibyllina.
São doze livros que apresentam uma mistura das formas gentílica, judaica e cristã,
datados do período entre 140 a.C. e o século III d.C. Esses 12 livros restantes
são numerados de um a oito e de 11 a 14. Os livros nove e 10 se perderam e
o sete encontra-se muito danificado. O autor anônimo dessa coletânea informa
no prefácio que recolheu o material de diversas fontes. É possível se identificar
aí uma insistência na importância espiritual do estudo desses escritos gregos que
tratam de Deus e de temas religiosos edificantes em total contraste com a literatura
pagã. Isso faz supor que ele tenha deliberadamente excluído material não cristão.
Ainda que alguns autores modernos pensem que não tenha se tratado de um autor
cristão, mas, do Egito ou de Alexandria, de comunidades de hebreus helenizados11,
a ênfase frequentemente posta sobre o monoteísmo e sobre a pureza moral teriam
assegurado ao leitor cristão a sua atitude religiosa diante do paganismo. Entre as
diferentes supostas origens dos livros dessa coletânea, pode-se identificar o livro
oitavo como sendo exclusivamente de origem cristã. Composto por 500 versículos
é o livro mais utilizado e citado na antiguidade cristã. Inicia com 216 versículos de
lamento contra Roma aos quais se segue o desenvolvimento de uma escatologia
cristã. O autor de Oracula Sibyllina recolhera o corpus de sua obra de Lactâncio
que escrevera Instituições Divinas duzentos anos antes, no início do século IV.
Também ele se reportava à lista de 10 sibilas estabelecida por Varrão12.
Diferentes escritores cristãos se reportaram aos oráculos das sibilas, tanto os de
origem pagã, quanto judaica ou cristã. Dentre eles, podemos mencionar os padres
da Igreja que os citam em suas obras desde o século II: São Justino, Atenágoras,
Taciano, Clemente de Alexandria, Eusébio e Santo Agostinho, dentre outros.
Destaca-se entre todos Lactâncio, já acima citado. Ele coloca na boca das sibilas
previsões do nascimento, dos milagres, da paixão, da morte, ressurreição e última
vinda de Jesus Cristo13.
Data da Idade Média a obra que primeiro inspirou a figuração das sibilas no
mundo cristão em pinturas e esculturas. Trata-se do Speculum Mundi de Vincent
de Beauvais, que no século XIII acolhe também as 10 sibilas instituídas por Varrão.
Em um primeiro momento, os artistas se contentaram em representar duas das
10 sibilas: a Eritréia especialmente na arte francesa e a Tiburtina na arte italiana.
Esta última, pelo fato de que em uma lenda ali recorrente, ela teria concedido
ao imperador Otaviano a visão da Virgem com o menino Jesus ao colo. A
representação e encenação desta lenda se davam desde os fins do século XII. Dada
a proximidade dos seus vaticínios com aqueles dos profetas do antigo testamento,
as sibilas frequentemente foram representadas ao lado destes. É improvável que a

10
PARKE, Sibille, p. 37-45.
11
PERETTI, La Sibilla Babilonese..., p. 12.
12
PARKE, Sibille, p. 37-66.
13
Enquanto, como citamos, Herbert William Parke afirma que Lactâncio escrevera 200 anos antes
das Oracula Sibyllina, A. Diez Macho afirma que Lactâncio retira a maioria de suas passagens do
livro oitavo desta coletânea.
arte cristã tenha representado as sibilas ao lado dos profetas antes do século XI.
A figuração da Sibila Pérsica, juntamente com os profetas, aparece pela primeira
vez na Igreja de Santo Ângelo in Formis em Cápua, na Itália, igreja fundada em
1058. Seguida do Mosaico de Santa Maria in Aracoeli (1130-1138), das portas de
Ghiberti e dos afrescos de Rafael14.
Em 1465 houve na Itália a impressão do livro de Lactâncio, Instituições
Divinas. Seguida de uma espantosa quantidade de seis edições no mesmo século.
Isso mostra o quão esse tema foi popular e amplamente utilizado nas artes
figurativas, especialmente nos círculos humanistas. As profecias cristianizadas de
Lactâncio foram tomadas como base para pinturas e esculturas. Notadamente, na
Catedral de Ulm, são esculpidas nove sibilas entre 1469 e 1474, cujas inscrições
foram em sua maior parte retiradas das Instituições Divinas. O Renascimento foi
especialmente pródigo em figurações onde se observavam as aquiescências entre
temáticas profanas e mitológicas e a História Sagrada. Um dos temas prediletos
do humanismo foi a existência das sibilas na antiguidade clássica, prenunciando o
nascimento, a paixão e morte e a ressurreição de Jesus. Assim, se produziu sobre
este tema uma literatura moralizante, parangonas e artes plásticas15.
Também na Itália, em 1481, surgiu outro livro que suplantou o de Lactâncio
e introduziu novos elementos na temática sibilina: Dicordantiae nonnulae inter
sanctum Hieronymum et Augustinum do dominicano Felippo Barbieri. Entre as
dissertações sobre os santos padres Agostinho e Jerônimo, há tratados de outros
temas, onde se encontra um consagrado às sibilas e aos profetas que concordam
em anunciar a vida de Jesus Cristo. Este tratado teve imensa importância e exerceu
grande influência na arte europeia, principalmente no que concerne às figurações
dos doze profetas do Antigo Testamento e das sibilas. Isso porque Barbieri aumenta
para doze o número das sibilas incluindo Agripa e Europa às dez profetisas da
lista de Varrão e Lactâncio. Ainda mais importante do que a modificação do
número de sibilas foi o estabelecimento de um modelo concreto para escultores
e pintores. Barbieri instituiu atributos específicos, como idade, aspecto, costumes
determinados. Esta foi a fonte iconográfica para muitos pintores do Renascimento
que representaram as sibilas na Itália.
Uma exceção notável, no entanto, teria sido a partir de um tratado de
Savonarola, o Dialogo della Verità Profetica, que Michelangelo realizara sua obra16.
Ressalta-se ainda que no livro de Barbieri as profecias atribuídas a cada uma das
sibilas divergem daquelas encontradas no livro de Lactâncio. Fato sugestivo de
que o dominicano tenha bebido em outra fonte que não os Oracula Sibyllina.
Smoller sugere que o que Barbieri nos apresenta é de fato um texto astrológico
disfarçado de profecias sibilísticas. Esta autora aponta a obra do astrólogo, filósofo
e matemático persa do século oitavo depois de Cristo Albumasar (que teria com sua
obra influenciado amplamente a teologia muçulmana) como a verdadeira fonte de
Barbieri, ainda que o caminho pelo qual as palavras do astrólogo se transformaram

14
FERRI, La Sibilla e altri studi..., p. 56.
15
SERRÃO, Vítor & GOULART, Artur. “O ciclo de frescos com sibilas e profetas da Igreja de Nossa
Senhora de Machede (c. 1604-1625) e o seu programa iconológico”. Artis - Revista do Instituto de
História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, n. 3, 2004, p. 211-238.
16
WIND, Edgar. Michelangelo’s prophets and sibyls. Londres: Oxford University Press, 1960.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 91


naquelas das sibilas não seja simples ou linear17. A associação das sibilas com o
zodíaco foi representada por Pinturicchio nos afrescos do apartamento dos Borgia
no Palácio Apostólico do Vaticano18. É a partir de Barbieri que Antônio de Souza
Macedo estabelece os nomes e as profecias das sibilas presentes no seu livro Ave e
Eva, apenas colocando a Cumeia em lugar da Europeia19.
Em Portugal a tradição das sibilas é um pouco tardia em relação ao restante da
Europa. No caso da literatura, antes de Antônio de Souza Macedo, o Auto da Sibila
Cassandra de Gil Vicente, datado de 1513, é um marco nesse sentido. Há aqui uma
mistura das figuras pagãs com as do Novo Testamento e do Antigo Testamento: a
sibila Cassandra é filha do rei Príamo, de Tróia, que na tradição grega também
possuía o dom da profecia. Os profetas Moisés, Isaías e o rei Salomão são seus
tios. Este último, o convicto pretendente à mão de Cassandra. São suas tias as
sibilas Eritréia, Pérsica e Ciméria. Todos são a favor do casamento entre Cassandra
e Salomão, mas ela se recusa por saber que o Salvador nasceu de uma virgem.
As sibilas estão presentes também nas peças do mesmo autor, a saber, a Farsa da
Lusitânia e a Exortação da Guerra20. Diferentemente destas, Ave e Eva é já uma
obra do século XVII, época em que a península ibérica passava por uma “onda
de profetismo” de influência tanto muçulmana quanto israelita. Essas crenças
proféticas teriam feito parte do arcabouço ideológico da restauração portuguesa de
1640 e sobreviveram ainda por algumas décadas naquele século21. Não se pode
esquecer que as sibilas tiveram uma força considerável na Espanha exatamente no
momento em que esta manteve Portugal subjugado política e culturalmente por
mais de meio século. Assim se explicam a incidência considerável de pinturas de
sibilas na América espanhola, notadamente no México, no Peru e em Santelmo, na
Argentina22.
No que diz respeito à pintura, há em Portugal nada além de um ciclo de sibilas na
Igreja de Nossa Senhora de Machede, em Nossa Senhora de Machede, aldeia na zona
rural do Alentejo. Essa pintura mural está parcialmente danificada por repinturas e
acréscimos setecentistas. Ainda assim, pode-se identificar a lógica narrativa de um
programa simbólico de intencionalidade catequética que complementa a estrutura
austera da arquitetura interna23. O projeto da pintura, assim como o programa
integral de ornamentos da igreja, deveu-se a Pero Vaz Pereira, que, na segunda
década do século XVII, possuía uma sólida formação humanista e italianizante.
A tarefa de afrescar as paredes da igreja ficou a cargo de um pintor anônimo que
cerca de um século depois, cumpriu à risca o programa de Pero Vaz. O problema

17
SMOLLER, Laura Ackerman. “Teste Albumasare cum Sibylla: astrology and the Sibyls in medieval
Europe”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 41, 2010, p.
76-89.
18
EHRLE S. J., Francesco. Gli Affreschi del Pinturicchio nell’Appartamento Borgia del Palazzo
Apostolico Vaticano. Roma: Danesi Editora, 1897.
19
ALVES, “O ciclo pictural...”, pp.155-163.
20
SERRÃO & GOULART, “O ciclo de frescos...”, p. 211-238.
21
A este respeito, ver: FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo:
Hucitec, 1997.
22
BAUZÁ, Francisco Hugo. “Il mito della Sibilla e le Sibille di San Telmo”. Critica d’Arte Rivista
Trimestrale dell’uNiversità Internazionale dell’Arte di Firenze, n. 8, 2004, p. 83-91.
23
SERRÃO & GOULART, “O ciclo de frescos...”, p. 211.

92 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


da autoria dessas sibilas não está resolvido e talvez possa ser elucidado em um
futuro trabalho de limpeza e restauro. Também a base iconográfica dessas sibilas de
Nossa Senhora de Machede (em número de oito, apenas seis visíveis e intercaladas
por profetas e reis) permanece um mistério (cf. Fig. 1). Pode-se supor que a série de
estampas de Crispín van der Passe, editada em Colônia em 1601 e que teve muita
difusão na península ibérica, tenha servido de inspiração para as sibilas aí pintadas.
Essa inspiração é amplamente comprovada no universo espanhol.
Em Portugal, como se vê, a representação plástica das sibilas não teve muita
fortuna se comparada com o restante da Europa, apesar de que, como nos
informam Serrão e Goulart24, Francisco de Holanda25 (que conhecia Lactâncio)
teria tido grande admiração por encontrar uma inscrição da Sibila de Delfos no
Monte da Lua em Sintra que pressagiava a expansão portuguesa para as terras
do Oriente. Excetuando-se referências literárias e humanísticas, as sibilas não
inspiraram nem os artistas, nem os mecenas portugueses na Idade Média e nem
tampouco na idade moderna.

Fig. 1 – Sibila Cimmeria, Igreja de Nossa Senhora de Machede, Portugal.


Foto: Jerónimo Heitor Coelho, 2012.

Se assim foi em Portugal, é de se imaginar que no Brasil também as sibilas


não tenham encontrado figurações numerosas. Precisamente por isso o ciclo das
sibilas existente no Arraial do Tijuco, antigo nome da cidade de Diamantina em
Minas Gerais, é bastante intrigante. É na Capela de Nosso Senhor do Bonfim, na
abóbada da capela-mor, que, rodeadas por colunas paranínficas, se encontram
quatro sibilas: Tiburtina, Délfica, Líbica e Frígia. As figuras estão representadas

24
SERRÃO & GOULART, “O ciclo de frescos...”, p. 213.
25
Francisco de Holanda (1517-1585) é considerado como uma das figuras mais importantes do
Renascimento português: foi pintor, ensaísta, arquiteto e historiador.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 93


em meio corpo. As gravuras que servem de base iconográfica para essas sibilas,
são indubitavelmente as de Crispijn Van der Passe, o velho, Magdalena Van der
Passe e sua oficina, datadas de 161526. Em Diamantina, as profetisas não guardam
semelhança alguma com as sibilas do Alentejo. As do Arraial do Tijuco são as
únicas até hoje conhecidas no Brasil. E a raridade dessas profetisas se acentua na
medida em que, sem associação a profetas, anunciam a morte e a ressurreição de
Cristo.

Fig. 2 – Sibila Délfica, Silvestre de Almeida Lopes (atrib.), madeira policromada, século XVIII,
Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Diamantina – MG.
Foto: Bernardo Magalhães, 2016.

26
A identificação da base iconográfica foi feita com o apoio do graduando do Curso de História da
UFVJM, Ânderson Gomes Ribeiro.

94 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 3 – Sibylla Delphica, Crispijn van de Passe, o velho (del. & sculp.), 1615.
Gravura a talho doce; 26,7 × 19,9 cm.
Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 95


Fig. 4 – Sibila Frígia, Silvestre de Almeida Lopes (atrib.), madeira policromada, século XVIII,
Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Diamantina – MG.
Foto: Bernardo Magalhães, 2016.

96 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 5 – Sibylla Phrygia, Crispijn van de Passe, o velho (del.) & Crispijn van den Queborn (sculp.), 1615.
Gravura a talho doce; 26,7 × 19,1 cm.
Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 97


Fig. 6 – Sibila Tiburtina, Silvestre de Almeida Lopes (atrib.), madeira policromada, século XVIII,
Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Diamantina – MG.
Foto: Bernardo Magalhães, 2016.

98 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 7 – Sibylla Tiburtina, Crispijn van de Passe, o velho (del. & sculp.), 1615.
Gravura a talho doce; 26,9 × 19,4 cm.
Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 99


Fig. 8 – Sibila Líbica, Silvestre de Almeida Lopes (atrib.), madeira policromada, século XVIII,
Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Diamantina – MG.
Foto: Bernardo Magalhães, 2016.

100 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 9 – Sibylla Libyca, Crispijn van de Passe, o velho (del.) & Magdalena van de Passe (sculp.), 1615.
Gravura a talho doce; 27 × 19,9 cm.
Rijksmuseum, Amsterdã, Países Baixos.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 101


Fig. 10 – Sibilas, Silvestre de Almeida Lopes (atrib.), madeira policromada, século XVIII,
Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Diamantina – MG.
As personagens contornam o quadro central com a deposição de Cristo da cruz.
Foto: Bernardo Magalhães, 2016.

Dito está, desde o princípio dessa abordagem, que ao serem cristianizadas,


as sibilas passaram a anunciar a vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo.
As profetisas do Tijuco, contornadas por cariátides, anunciam a sua morte e a
ressurreição.
Não se pode negar a força persuasiva dessas figuras proféticas desde antes
da sua incorporação ao universo cristão. Nesse contexto, em um momento de
intencionalidade persuasiva deliberada nas artes sacras, as sibilas aparecem com
sua força reificada por estarem relacionadas à morte de Cristo. Aqui, a profecia
associada à temática da morte, e à pintura de falsa arquitetura vê potencializada
sua capacidade pedagógica e de convencimento.
Assim, essas figuras clássicas sobreviveram ao longo do tempo, em locais
longínquos e inimagináveis, reforçando seu potencial ideológico por meio da sua
associação à figuração da morte. Não uma morte qualquer. As figuras clássicas
anunciam aqui a morte do Salvador. E recordam ao fiel a sua responsabilidade por
essa morte.
Um mistério permanece: como essas sibilas foram parar no longínquo Arraial do
Tijuco? O que significa a inusitada figuração do anúncio da morte de Cristo? Quem
foi o responsável por essa escolha? Há fortes indícios de que a escolha da temática
das sibilas no arraial do Tijuco tenha partido de José Soares de Araújo. Dentre os
panos sibilísticos do Tijuco, o mais antigo ainda se encontra no templo carmelita.
Trata-se de uma sibila Frígia, envolvida em ornatos de falsa arquitetura, com uma
expressão pouco solene, com traços mundanos e uma boca quase sensual. Faz
imaginar que o artista tenha se inspirado em alguma bela moradora do arraial.
Os atributos desta sibila – túnica, dalmática e manto; sobre a cabeça um chapéu
cônico de abas pontudas, cujo cone está contornado por folhas de louro; na mão

102 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


uma palma ou cana – repetem-se na sibila Líbica que está pintada no teto da capela
de Nosso Senhor do Bonfim, provavelmente por um discípulo de José Soares de
Araújo.
Como se pôde perceber a influência do artista bracarense em tantas igrejas e
irmandades no Tijuco, é de se supor que tenha sido dele a escolha insólita desta
figura altamente persuasiva. Até mesmo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de
São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro, vizinho a Diamantina, existem
ainda panos de altares com a pintura de sibilas do século XIX. No princípio deste
século, Caetano Luiz de Miranda, discípulo do artista português, pintou duas sibilas
em panos de altares para a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, cuja planta foi de
autoria do artista bracarense.
Se aqui nos quedam muitas perguntas, alguma certeza permanece. Profecia e
morte são temas persuasivos. Assim como o é o engano do olho proporcionado
pela pintura de falsa arquitetura. Quadratura e sibilas fazem na Capela de Nosso
Senhor do Bonfim um quadro persuasivo singular ao vincularem duas linguagens
supostamente anacrônicas entre si com o objetivo essencial de suadir o observador:
a ampliação dos espaços na falsa arquitetura se eterniza no sibilar dos oráculos das


profetisas.

RESUMO ABSTRACT
No Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, In Arraial do Tijuco, present city of Diamantina,
em Minas Gerais, existe uma requintada pintura in Minas Gerais, there is a fine quadrature
de quadratura trazida pelo pintor bracarense José painting brought by Braga painter José Soares
Soares de Araújo no século XVIII. No Arraial, de Araújo in the 18th century. In Arraial, this
este pintor exerceu múltiplas funções, dentre painter played multiple roles, including being a
elas a de professor de pintura. Dentre as pinturas painting teacher. Among the paintings attributed
atribuídas a seus discípulos, encontram-se as to his disciples, are the figurations of sibyls in a
figurações das sibilas em um afresco na Capela de fresco in the Our Lord of Good End’s Chapel
Nosso Senhor do Bonfim e em panos sibilísticos and Sybil’s’ curtains used to cover the side
usados para cobrir os altares colaterais dos altars of the temples in the Passion Week. The
templos na semana da paixão. A figuração das figuration of the sibyls of Tijuco, the only one
sibilas do Tijuco, única deste gênero conhecida of its kind known in the Portuguese colony in
na colônia portuguesa da América, está sempre America, is always among false architectural
entre estruturas de falsa arquitetura, seja nos structures, whether in the frescoes, whether in
afrescos, seja nos panos sibilísticos. A sua fonte Sibyls’ curtains. Its iconographic source was
iconográfica foi recentemente identificada em recently identified in Netherlands engravings of
gravuras holandesas do século XVII. Quadratura the seventeenth century. Quadrature and Sibyls
e sibilas fazem na Capela de Nosso Senhor make the Our Lord of Good End’s Chapel a
do Bonfim um quadro persuasivo singular ao unique persuasive picture when linking two
vincularem duas linguagens supostamente kinds of speeches supposedly anachronistic
anacrônicas entre si com o objetivo essencial de among themselves with the essential objective
suadir o observador: a ampliação dos espaços of persuading the observer: the amplifying of the
na falsa arquitetura se eterniza no sibilar dos space with the false architecture becomes eternal
oráculos das profetisas. in the Sibyl’s oracles.
Palavras Chave: Sibilas; Quadratura; Persuasão. Keywords: Sibyls; Quadrature; Persuasion.

Artigo recebido em 11 jan. 2016.


Aprovado em 05 mai. 2016.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 103


AS ACADEMIAS LITERÁRIAS E A POSSIBILIDADE
DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO AUTÔNOMO
EM TERRITÓRIO COLONIAL
(BAHIA, SÉCULO XVIII)
Eduardo José Santos Borges1

Em território colonial, aqueles que adentravam o mundo das letras faziam-no


como mais uma estratégia de acumulação de capital simbólico, na busca da distinção
social e da nobilitação. Ser membro efetivo das academias literárias na América
portuguesa significava, no âmbito da sociedade colonial, possuir uma condição
de legitimidade e distinção social. Outra possibilidade, para alguns membros das
elites baianas do século XVIII, oportunizada pelo pertencimento a uma academia
literária foi a de inserir-se na dinâmica cultural e intelectual do Império português.
Pois foi justamente neste ambiente histórico que nasceria, em 07 de março de 1724,
sob a direta inspiração da Academia Real de História Portuguesa, a Academia
Brasílica dos Esquecidos. Mais tarde, junho de 1759, a Bahia ganharia sua segunda
instituição literária com a criação da Academia Brasílica dos Renascidos na qual o
projeto dos Esquecidos seria retomado, agora com mais força e amadurecimento
intelectual.
A Academia Real de História Portuguesa, principal referência para as academias
baianas, foi fundada em 1720, sob o mecenato do rei D. João V (1706-1750). Dois
aspectos vinculados à Academia Real de História que de certa forma impactaram
diretamente no espaço colonial, diz respeito à importância estratégica da Academia
como legitimadora do poder absolutista de D. João V e ao início da autonomia do
campo historiográfico.
A fundação da Academia Real de História deve-se a um projeto do monarca
encomendado a Manuel Caetano de Sousa. Da solicitação de escrita de uma
grande história eclesiástica de Portugal, a Lusitania Sacra, D. João V ampliou os
horizontes para se produzir uma obra mais ousada que escrevesse sobre tudo que
pertencesse à história do Reino de Portugal e Algarve e de suas conquistas2.
Do ponto de vista da Coroa portuguesa a Real Academia se constituiu em uma
instituição de forte conotação política. Na base da construção e registro de uma
história do Reino português estava a tentativa da Coroa em estabelecer parâmetros
que justificassem e consolidassem a posição do Reino e do Estado português
no contexto das nações europeias. Uma instituição como a Academia Real de
História, mais do que servir como centro produtivo de conhecimento, servia como
instrumento de convergência e de unidade de uma matriz cultural portuguesa. Lisboa
se transformou no grande centro de referência cultural do Reino. A Universidade

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Professor Assistente do
Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, Campus Conceição do Coité.
E-Mail: <eduardohistoria@hotmail.com>.
2
SILVEIRA, Pedro Telles da. O cego e o coxo: crítica e retórica nas dissertações históricas da Academia
Brasílica dos Esquecidos (1724-1725). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
de Ouro Preto. Mariana, 2012, p. 50.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 105


de Coimbra continuava sendo o centro de formação intelectual, mas cabia à Real
Academia, situada no centro político, fazer a ponte necessária entre cultura e poder.
Em relação à questão do poder de D. João V, pode ser identificada já no fato
de ter nascido a academia lusitana, diferente de suas congêneres europeias, sob
a proteção régia. O monarca via na produção literária da Academia Nacional,
a possibilidade de interferência oficial na construção coletiva de uma história
nacional portuguesa3. No âmbito da academia as elites portuguesas leigas e
eclesiásticas se integravam em torno de uma produção intelectual que tendia a
transferir “informações e competências da esfera eclesiástica para a esfera social”4.
O fato de representar uma tentativa de se constituir uma síntese cultural do
Reino português e de suas conquistas exigiu, consequentemente, da Academia
Real, tornar-se o centro de convergência de todas as informações necessárias
para se construir uma narrativa histórica de Portugal. Vivia-se um momento de
autonomização do campo historiográfico e a Academia Real de História tomou
para si sua normatização e unificação. Para Isabel Ferreira da Mota, se referindo
a essa função normativa da Real Academia, “os seus folhetos mais normativos
corriam avulso pelo país e com eles as normas da Academia circulavam e eram leis
no campo historiográfico”5.
Com a Academia Real de História, o que antes era função do cronista-mor do
Reino, ou seja, a escrita da história oficial portuguesa passa a ser de responsabilidade
de eruditos que se utilizaram de regras e métodos para exercer seu ofício. A
história também passaria a ter a função de legitimadora da expansão territorial
portuguesa em termos de relações externas, o que levou os historiadores régios a
serem “frequentemente convocados para municiar os diplomatas nas negociações
internacionais”6.
Quando afirmo que a Academia Real de História nasceu no contexto de um
processo de autonomização do campo historiográfico, é por identificar no século
XVIII a culminância de uma dinâmica evolucionista no que dizia respeito à pesquisa
e à escrita da história. Como bem afirmou Bruno Casseb: “No século XVIII, a
história entraria definitivamente para o universo das disciplinas que deveriam ser
utilizadas para conferir mais inteligibilidade ao mundo”7. Mais do que cronistas
do cotidiano, os que passaram a lidar com a produção histórica no século XVIII,
exerceram-na a partir de normas e preceitos que em muito os aproximaram do que
conhecemos hoje como trabalho de historiador. Coube, portanto, às academias
colaborar coletivamente na produção de novas narrativas históricas.
Partindo do pressuposto de que a produção de uma história portuguesa
representaria simbolicamente a unidade do Reino português, o território do
ultramar seria necessariamente incorporado como resultado dos feitos heroicos

3
KANTOR, Iris. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759).
São Paulo: Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/ UFBA, 2004, p. 30.
4
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 30.
5
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Minerva, 2003, p. 129.
6
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 55.
7
PESSOTI, Bruno Casseb. Ajuntar manuscritos, e convocar escritores: o discurso histórico
institucional no Setecentos luso-brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal da Bahia. Salvador, 2009, p. 32.

106 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


do Reino e Nação lusitana. Os descobrimentos e conquistas empreendidos nos
diversos governos portugueses foram incorporados ao esquema de periodização
da História produzida sob a chancela da Real Academia. Nesse momento, de
acordo com Iris Kantor, “a nação portuguesa deveria incorporar os portugueses de
todos os quadrantes do mundo, o sentimento de pertença transcendia as fronteiras
políticas do Império Luso”8.
O Império e toda a dimensão territorial que ele havia alcançado começavam
a se transformar em objeto de reflexão pelos eruditos da Real Academia. Nesse
sentido, a África a Ásia e a América transformaram-se em objetos de estudos dos
eruditos historiadores portugueses.
O projeto da Academia Real de História de se escrever uma história que
incorporasse os diversos territórios que formavam o Império, se mostrou bastante
ousado na prática. A materialização de tal projeto demandava um grau de
articulação entre Lisboa e os diversos territórios coloniais a fim de fazer fluir para
o Reino o máximo possível de documentos vindos das partes mais remotas do
Império. Uma das estratégias da Real Academia, foi atribuir a alguns eruditos a
responsabilidade por determinadas áreas, no caso do ultramar, coube a Antônio
Rodrigues da Costa escrever sua história eclesiástica e a Antônio Caetano de Souza,
o registro da memória de seus bispados.
Um grande volume de correspondências partiu do Reino em direção aos
diversos territórios que compunha o Império incluindo o próprio Reino. Essas
correspondências solicitavam o traslado de cópias de todos os documentos
existentes nos arquivos públicos e privados. No caso específico do Brasil, Coube
ao Vice-rei e Governador-geral Vasco Fernandes Cesar de Menezes (1720-1735) a
função de intermediário na articulação das correspondências entre a Academia e as
diversas capitanias brasileiras. Em carta enviada em 24 de novembro de 1722 ao
Capitão-mor da Capitania do Espirito Santo, Vasco Fernandes passou a seguinte
instrução:

Pela cópia inclusa verá Vossa Mercê o que é muito do real


agrado de Sua Majestade, que Deus guarde, se remeta à
Academia que foi servido mandar erguer para debaixo de
sua soberana proteção se escrever a História Eclesiástica e
Secular do Reino de Portugal e suas Conquistas. E assim
ordeno a Vossa Mercê participe esta carta e cópia aos
oficiais da Câmara das vilas continentes nessa capitania
[...].9

Nessa mesma data foram enviadas, também, cartas para Aires de Saldanha
de Albuquerque, Governador do Rio de Janeiro, Rodrigo Cesar de Menezes,
Governador da Capitania de São Paulo e D. Manuel Rolim de Moura, Governador
da Capitania de Pernambuco. A todos a missiva levava o seguinte teor:

8
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 58.
9
BAHIA. 24 nov. 1722. Documentos históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. LXXI, p.
194-195.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 107


E vai inclusa a dita memória para que Vossa Senhoria, na
forma dela a execute passando para esse efeito os avisos
necessários aos ministros eclesiásticos e seculares e das
câmaras das cidades e vilas continentes na jurisdição desse
Governo recomendando-lhes envie, cada uma, a Vossa
Senhoria, com carta sua os traslados do que acharem nos
seus arquivos e cartórios pertencentes ao que se insinua
na dita memoria, e o mais que conduzir a maior clareza,
individuação e brevidade, para Vossa Senhoria dai-nos
expedir e eu os remeter à dita Academia, como o dito
Senhor ordena.10

Como o objetivo da Academia visava a escrita de uma história secular e


eclesiástica, além dos governadores, foram também procurados os diversos
dirigentes religiosos. Em carta de 14 de novembro de 1722, Vasco Fernandes teve
como receptores na Bahia, o Provincial da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, o
Provincial da Companhia de Jesus, o Provincial dos Carmelitas Descalços, o Abade
Geral da Ordem de São Bento, e o Provincial de Santo Antônio dos Capuchos. A
todos foi solicitado a “memoria impressa do que se pretende saber das religiões que
há neste Estado”11. Coube principalmente ao Rio de Janeiro, Pernambuco, e Bahia
o fornecimento do material necessário para o trabalho dos eruditos do Reino.

O Movimento Academicista Chega à Bahia

Passados quatro anos da fundação da Academia Real de História, o movimento


academicista português alcançou o território colonial materializando-se na Bahia,
com a fundação, em 1724, da Academia Baiana dos Esquecidos. Apesar de curta
existência a Academia dos Esquecidos cumpriu a função de estabelecer, na Colônia,
um ensaio de erudição entre seus membros, cujo desdobramento no tempo,
criaria as condições para o surgimento de sua congênere da segunda metade do
Setecentos: a Academia Baiana dos Renascidos.
Até o início do século XVIII cabia apenas ao Colégio dos Jesuítas a função de
centro cultural luso americano12. A porta aberta pela Real Academia, ao inserir o
ultramar no interior de uma história do Império português, concedeu aos eruditos
baianos força suficiente para pensar a inserção da história do Novo Mundo
no contexto da história portuguesa e universal, agora sob o ponto de vista dos
próprios americanos. A Colônia buscava assumir o controle da construção histórica
e identitária de seu território e de seu povo. Iris Kantor chega a sugerir uma possível
dimensão contraditória do empreendimento acadêmico em situação colonial, na
medida em que a Academia possibilitava a “formação de uma nova percepção

10
BAHIA. 24 nov. 1722. Documentos históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. LXXI, p.
196.
11
BAHIA. 14 nov. 1722. Documentos históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. XLV, p. 04.
12
SANTOS, Domingos Mauricio dos. “O Brasil em Alcobaça (esquecidas memórias da Academia
Brasílica dos Esquecidos, da Baía, entre os Códices alcobacenses)”. V Colóquio Internacional de
Estudos Luso-Brasileiros. Actas. Coimbra: 1965, p. 06.

108 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


sobre a territorialidade e as condições de efetivação da soberania portuguesa no
continente”13. Ainda que essa percepção não possa ser identificada como uma
consciência autonomista, os temas das dissertações produzidas no âmbito da
Academia baiana,14 no mínimo demonstraram um interesse pelo autoconhecimento
não só das próprias vicissitudes da condição colonial como de possíveis soluções
das mesmas. Não vejo como algo absurdo identificar na Academia dos Esquecidos
uma embrionária matriz historiográfica brasileira.
Esse projeto materializou-se sob o mecenato do Vice-rei Vasco Fernandes César
de Menezes. Quadro dos mais experientes entre os administradores portugueses,
com passagem pelo governo da Índia (1712-1717), Vasco Fernandes, apesar de ter
governado o Brasil em uma fase muito difícil em termos econômicos, buscou inserir-
se estrategicamente nas relações de poder da Bahia colonial. O empreendimento
acadêmico oferecia dupla vantagem a Vasco Fernandes, pois ao mesmo tempo em
que aumentava o seu prestígio simbólico na Corte lisboeta, aprofundava seus laços
com as elites locais.
É justamente a partir desse aprofundamento de laços com os membros das elites
locais e como estratégia de melhor conhecer seus vassalos que em sete de março de
1724 nasceria, sob a direta inspiração da Academia Real de História Portuguesa, a
Academia Brasílica dos Esquecidos. Um trecho do auto de nascimento da Academia
reproduz o ambiente das letras na Bahia do século XVIII:

O Exm. Sr. Vasco Fernandes César de Menezes,


incomparável vice-rei do Estado do Brasil, que no seu
ínclito nome traz vinculada com a profissão de ilustrar as
armas a propensão de honrar as letras, para dar a conhecer
os talentos que nesta província florescem, e por falta de
exercício literário estavam como desconhecidos.15

Um de seus fundadores e talvez aquele que melhor simbolizou a própria


Academia, o historiador Sebastião da Rocha Pitta, assim descreveu sua fundação
em terras coloniais:

A nossa Portuguesa América (e principalmente a província


da Bahia), que na produção de engenhosos filhos pode
competir com Itália e Grécia, não se achava com academias
introduzidas em todas as repúblicas bem ordenadas para
apartarem a idade juvenil do ócio contrário das virtudes
e origem de todos os vícios, e apurarem a sutileza dos
engenhos. Não permitiu o vice-rei que faltasse no Brasil esta
pedra de toque ao inestimável ouro dos seus talentos de

13
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 122.
14
Principalmente a Academia dos Renascidos, criada em 1759.
15
Apud PINHEIRO, Côn. J. C. Fernandes. “A Academia Brasilica dos esquecidos: estudo historico
e litterario, lido no Instituto Historico e Geographico Brasileiro pelo sócio effectivo Conego Dr.
J. C. Fernandes Pinheiro (em sessão de 31 de maio de 1867)”. Revista do Instituto Historico e
Geographico Brasileiro, Tomo XXXI - Parte Segunda, 1868, p. 18.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 109


mais quilates do que os das minas. Erigiu uma doutíssima
academia, que se fez em palácio na sua presença. Deram-
lhe forma as pessoas de maior graduação e entendimento
que se achavam na Bahia tomando-o por seu protetor.
Tem presidido nela eruditíssimos sujeitos.16

Rocha Pitta representava o que a Bahia tinha de mais poderoso em termos


de hierarquização social. Originário de uma família de grande riqueza seus
membros distribuíram-se entre todos os espaços de poder da Bahia colonial. O
ponto de vista de Rocha Pitta era o do sujeito colonial, consciente de sua posição
periférica, mas ao mesmo tempo, sabendo rigorosamente das possibilidades de se
empreender na Colônia, dinâmica semelhante à da Metrópole. Não nos parece
ter sido ele um indivíduo submetido à sua condição de periférico, mas alguém
ciente do pertencimento a uma unidade política que permitia certa igualdade de
oportunidade entre seus membros.
Na visão de Domingos Mauricio dos Santos, a abertura da Academia em
Salvador se justificava porque “havia, ali, nessa conjuntura, além dos dois
supranumerários17, um grupo de eruditos cheios de entusiasmo pelas letras, quase
todos funcionários civis e militares do Estado”18.
Em termos acadêmicos a Bahia representou em todo o século XVIII uma posição
de vanguarda no que se refere ao número de alunos matriculados na Universidade
de Coimbra19. A título de comparação com outras regiões da Colônia, entre 1700
e 1772, somente de Salvador, saíram para os bancos da Universidade de Coimbra
445 estudantes, nesse mesmo período em toda a Capitania de Minas Gerais
foram para Coimbra 217 indivíduos. A presença, desde o início da colonização
portuguesa em território americano, de instituições como as Ordenanças, a
Misericórdia, e o Tribunal da Relação, deram a Salvador e seu povo a possibilidade
de amadurecimento intelectual e de trocas culturais mais estreitas com indivíduos
reinóis.
Além disso, não podemos deixar de reconhecer a importância do Colégio dos
jesuítas para a formação de um ambiente intelectual na Bahia do século XVIII.
Exemplo dos mais pertinentes que bem reflete essa atmosfera cultural foi a
publicação, em 1760, da obra Sistema físico-matemático dos cometas, de autoria
do jesuíta José Monteiro da Rocha. Escrita quando o autor tinha apenas 25 anos
de idade, o conteúdo da obra vai além de um relato voltado exclusivamente para
as ciências exatas. Na dedicatória que escreveu em homenagem a Frutuoso Vicente
Viana, o autor dá as pistas de uma possível influência iluminista ao se referir aos
“excelentes autores franceses”20. O fato de ter feito toda sua formação no Colégio
dos jesuítas da Bahia, e ao mesmo tempo conseguir forjar uma obra de grande

16
Apud PINHEIRO, “A Academia Brasilica dos Esquecidos...”, p. 18.
17
Foram eles: Gonçalo Soares da Franca e Sebastião da Rocha Pitta, aceitos em 1722 como sócios
supranumerários da Academia Real de História Portuguesa.
18
SANTOS, O Brasil em Alcobaça..., p. 07.
19
FONSECA, Fernando Taveira. A Universidade de Coimbra (1700-1771): estudo social e econômico.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1995, p. 170.
20
ROCHA, José Monteiro. Sistema físico-matemático dos cometas. Rio de Janeiro: MAST, 2000, p. 24.

110 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


envergadura intelectual com idade tão mínima, nos leva a refletir sobre o grau de
riqueza da educação inaciana e de seu reflexo na formação cultural da Bahia do
século XVIII.
Reconhecendo todas as limitações inerentes a uma sociedade escravista
e fortemente hierarquizada, o fato de ter no Colégio dos jesuítas uma base
formadora de um ambiente razoavelmente aquecido culturalmente, pode ter sido
suficiente para formar uma matriz de erudição entre alguns baianos dando-lhes
o empoderamento necessário para ousar estabelecer, em nível local, um esboço
de pensamento intelectual minimamente autônomo no interior da universalidade
constituída pelo Império português.
Sob o protetorado de Vasco Fernandes, a primeira composição da Academia
dos Esquecidos foi formada pelos seguintes membros: O Reverendo Padre Gonçalo
Soares da Franca, o desembargador Caetano de Brito e Figueiredo, chanceler desse
estado, o desembargador Luís de Siqueira da Gama, Ouvidor Geral do Cível, o
Doutor Inácio Barbosa Machado, Juiz de Fora desta cidade, o Coronel Sebastião
da Rocha Pita, o Capitão João de Brito e Lima, e José da Cunha Cardoso21.
Percebe-se que o lugar social de onde vieram os primeiros acadêmicos restringia-se
basicamente aos espaços administrativo, eclesiástico e militar.
Nascida tal qual sua congênere reinol, a academia baiana teve no mecenato
do Vice-rei seu principal sustentáculo. As reuniões aconteceram todas no Palácio
do governo. A criação de academias literárias no mundo português pode ser
pensada no contexto de uma mentalidade Antigo Regime em que o mecenato
régio assegurava, para seus membros, a simbólica aproximação ao poder, situação
em direta sintonia com as classificações hierárquicas de uma sociedade estamental.
No Reino, a Academia Real de História, cumpria um papel remunerador em
função de uma boa prestação de serviço por parte dos vassalos. Iris Kantor amplia
esse entendimento quando apresenta trecho de um discurso do desembargador
Manuel de Azevedo Soares, que além de caracterizar a História como “o mais útil
ramo das Letras e mestra da melhor política”22, suplicava ao rei a aplicação da
justiça redistributiva e “remunerasse os serviços dos que por meio da escrita da
história, construíram a glória do monarca e da nação portuguesa”23. A condição de
membro de uma academia como a Real de História dava aos letrados portugueses
o reconhecimento, por parte da Coroa, de serem eles, prestadores do real serviço,
situação que bem se enquadrava no ethos nobiliárquico24 do Antigo Regime
português. Para os indivíduos reinóis o fato de pertencerem aos quadros da
instituição literária e de terem a responsabilidade de legitimar a história portuguesa,
foi assim explicado por Taise da Silva: “o reconhecimento do papel dos letrados
para a elevação das letras pátrias conferiu-lhes lugar no rol dos varões ilustres por
armas, por letras ou por virtudes, nobilitando-os, ainda que não procedessem de
família fidalga”25.

21
CASTELLO, José Aderaldo. O movimento academicista no Brasil, 1641/1820-1822 – Vol. 1 –
Tomo 1. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1969, p. 3.
22
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 44.
23
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 44.
24
Esse ethos consistia na valorização, por parte dos indivíduos, em prestar ao rei serviços remunerados.
25
SILVA, Taise Tatiana Quadros da. “Poder e episteme na erudição histórica do Portugal Setecentista:

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 111


A princípio, existia no Reino, entre aqueles que exerciam o ofício da escrita da
história, a expectativa de remuneração de serviços. Mesmo que não possamos fazer
uma transmissão direta dessa expectativa, na esfera dos eruditos coloniais, nos
parece ser algo factível a reprodução dessa mentalidade na Colônia, principalmente
naquilo que diz respeito ao sentimento de pertencimento a um grupo cuja função
de “historiadores” os colocava – em território colonial – como legitimadores da
pujança e do poder imperial português.
Dentre os escolhidos para membros da Academia estava a fina flor de uma
elite econômica, mas principalmente letrada da Bahia colonial. A organização dos
trabalhos, em termos de funções, teve a seguinte distribuição entre os membros
fundadores: a Luís Siqueira da Gama coube a tarefa de se escrever a história política;
a história eclesiástica ficou sob a incumbência de Gonçalo Soares da Franca;
para Caetano de Brito e Figueiredo ficou a história natural; e a Inácio Barbosa
Machado, a história militar. A secretaria da instituição ficou com o acadêmico José
Luís Cardoso. Apesar de ter nascida sob o manto da vocação historiográfica, os
Renascidos não se restringiram a ela, incorporaram outras formas de discursos
como os de cunho literário por exemplo.
Ao núcleo fundador, se juntaria mais tarde, outro grupo, foram eles: Antônio
Cardoso da Fonseca, José de Oliveira Serpa, Antônio de Oliveira, o reitor do
Colégio dos Jesuítas, Padre Rafael Machado, João Borges de Barros, Aires Penhafiel
e José Pires de Carvalho e Albuquerque. Os números da composição total dos
membros dos Renascidos não são unânimes entre os estudiosos. Certamente seu
quadro ultrapassou os 100 participantes entre numerários e supranumerários, o
que também ajudou a diversificar e ampliar o escopo social de seus participantes
se comparado com os sete fundadores.
As sessões da Academia baiana dividiram-se em duas partes, uma puramente
literária e outra que compreendia a leitura de dissertações de caráter científico.
Essas dissertações ficavam a cargo dos mestres, responsáveis pela investigação e
produção histórica. Nos códices alcobacenses analisados por Domingos Maurício
dos Santos foram identificadas várias dissertações cuja temática se referia tanto
“a origem dos Índios e primeiros povoadores da América e se tiveram os Antigos
dela algum conhecimento” como “Dos céus, Planetas, Constelações e Climas
Brazílicos”26. Inácio Barbosa Machado, lente responsável pela história militar, relatou
em suas dissertações sobre a penetração portuguesa no continente brasileiro. A
história eclesiástica, sob a responsabilidade do erudito baiano o Padre Gonçalo
Soares da Franca, foi bastante prejudicada pela escassa documentação mas não o
suficiente para impedir ao religioso a projeção de uma história geral da Igreja no
Brasil27. Um resumo do que representou os trabalhos da Academia dos Esquecidos,
mesmo que possa ter algum exagero de cunho nativista, foi assim definido por
Domingos Maurício dos Santos:
Não são porém, aspectos literários de segunda ordem
que mais releva acentuar. O que, sim, importa é a

uma abordagem do programa historiográfico da Academia Real da História Portuguesa (1720-


1721)”. História da Historiografia, Mariana, n. 3, set. 2009, p. 205-206.
26
SANTOS, O Brasil em Alcobaça..., p. 15.
27
SANTOS, O Brasil em Alcobaça..., p. 18.

112 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


manifestação de cultura coletiva que estas dissertações,
embora rudimentares para as exigências do nosso tempo,
constituem, como sintoma expressivo de despertar da
cultura autóctone do Portugal da América, a denunciar
a formação duma consciência espiritual coletiva que, dai
a um século, sem violências nem contradições, havia de
exprimir-se em plenitude.28

Em pouco menos de um ano de existência, fevereiro de 1725, a Academia


Brasílica dos Esquecidos encerraria suas atividades. O Cônego Fernandes Pinheiro
fez uma leitura que nos parece realista a respeito da não perenidade das academias
europeias com reflexo direto na Academia baiana: “Descendente em linha reta
das academias italianas, espanholas e portuguesas, foi a Academia Brasílica dos
Esquecidos a legítima representante do espírito fútil e da incontinência tropológica
que tanto prejudicaram à suas avoengas”29.
Independente de não ter a Academia dos Esquecidos alcançado vida longa, ou
mesmo de ter sido representante de espírito fútil, os baianos que dela participaram
representaram um sopro de vida letrada no inóspito ambiente cultural da colônia.
Mesmo que outras academias tenham surgido na América portuguesa nesse período,
nenhuma delas alcançou a força simbólica dos Esquecidos como representante
de uma tentativa de se constituir uma matriz cultural e intelectual, minimamente
autônoma, na América portuguesa. O espaço de sociabilidade representado
pela Academia dos Esquecidos criou um ambiente que motivou aos indivíduos
da Colônia, a se verem a partir de suas próprias características político-sociais,
gerando força suficiente para estimular a produção de uma obra historiográfica
com o valor e a dimensão da escrita por Sebastião da Rocha Pitta30. Somente em
junho de 1759, com a criação da Academia Brasílica dos Renascidos, o projeto dos
Esquecidos seria retomado, agora com mais força e amadurecimento intelectual.

Os Renascidos Baianos

Assim como a Academia dos Esquecidos, que teve no Vice-rei seu principal
mecenas, no caso dos Renascidos sua fundação está diretamente ligada ao nome
de José Mascarenhas Pacheco Coelho Pereira de Melo. Personagem dos mais
instigantes da segunda metade do século XVIII, José Mascarenhas chegou ao
Brasil depois de ser nomeado, em 1758, por Sebastião José de Carvalho e Melo,
o Marquês de Pombal, para a função de conselheiro do ultramar na Bahia. Um
ano antes de sua nomeação, ganhou notoriedade ao participar ao lado do pai,
o desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos, da repressão sobre um
protesto ao monopólio dos vinhos do Alto Douro, na cidade do Porto.
José Mascarenhas chegou à Bahia juntamente com outros dois comissários,
Antônio de Azevedo Coutinho e Manuel Estevão de Almeida Vasconcelos

28
SANTOS, O Brasil em Alcobaça..., p. 26.
29
PINHEIRO, “A Academia Brasilica dos Esquecidos...”, p. 32.
30
Publicado em Lisboa em 1730, o livro História da América Portuguesa foi bastante elogiado pelos
membros da Academia Real de História.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 113


Barberino. Chegaram para cumprir três determinações que lhes foram passadas
através de instruções secretas, foram elas: instalação de uma Mesa de Consciência
e Ordens, criação de um Conselho de Estado e Guerra de todos os domínios
ultramarinos e a expulsão dos jesuítas do Brasil. A direção da Mesa deveria ser
assumida pelo arcebispo primaz D. José Botelho de Matos, entretanto, por se
posicionar contrário à expulsão dos jesuítas, D. José Botelho renunciou ao cargo
de arcebispo recolhendo-se à ermida de Nossa Senhora da Penha de Itapajipe,
onde veio a falecer em 176731. Mais tarde, esse mesmo D. José Botelho, receberia
do acadêmico José Pires de Carvalho e Albuquerque, homenagem através de um
culto métrico composto de 109 cantos.
Sobre a relação entre a expulsão dos jesuítas e a fundação da Academia dos
Renascidos por José Mascarenhas, Iris Kantor faz a seguinte conjectura:

Tendo em vista a importância da Companhia de Jesus


não somente na formação intelectual, mas também para
a institucionalização do conhecimento sobre o território e
os habitantes americanos, não é difícil imaginar o impacto
que tais medidas tiveram na sociedade colonial. Aqui,
procuro indicar a hipótese de que a instituição da Academia
tenha servido de fórum de negociação para enfrentar a
crise gerada pela expulsão da Companhia de Jesus. Ao
promover a criação da Academia, José Mascarenhas
tinha em mente a formação de consensos mínimos que
garantissem algum grau de governabilidade, já que seus
membros representavam importante parcela das elites
dirigentes e econômicas locais.32

Não questiono as conclusões da autora, mas entendo ter sido, também, a criação
dos Renascidos, resultado da permanência de uma memória intelectual e erudita,
entre as elites baianas, que remontava aos tempos dos Esquecidos. O ideal de
construção de uma identidade historiográfica colonial, presente nos Esquecidos, é
retomado entre os Renascidos cujo principal objetivo foi o de identificar e legitimar,
em dimensão imperial, reivindicações que representassem os interesses locais.
Do ponto de vista da Coroa, uma academia erudita na Colônia, de certa forma
colocava-se em sintonia com a nova lógica pombalina de produzir o conhecimento
e de formação de novas elites distanciadas da pedagogia inaciana.
Apesar de ter vindo de Lisboa, José Mascarenhas era um baiano por ascendência.
Seu pai, o citado desembargador João Pacheco Pereira, nasceu em Salvador e
chegou a ser chanceler da Relação do Rio de Janeiro em 1751. João Pacheco foi
filho do fidalgo cavalheiro e Familiar do Santo Ofício, Manuel Pacheco Pereira. De
acordo com informação retirada de sua leitura de bacharel, João Pacheco teve
um irmão religioso da Companhia de Jesus33, e chega a ser irônico o fato do dito
religioso ter em seu sobrinho um dos escolhidos da incumbência de expulsão dos

31
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 117.
32
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 119.
33
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Leitura de Bacharéis, Mç. 31, D. 16.

114 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


jesuítas do território brasileiro.
José Mascarenhas tornou-se grande erudito com formação em universidades
como as de Valhadoli e Coimbra. Integrou a Real Academia de la História (Madri)
e a Academia de Geografia da Valhadoli, também na Espanha. Em Portugal foi
membro numerário da prestigiada Academia Real de História Portuguesa. Como
se pode perceber o fundador da Academia baiana tinha lastro intelectual suficiente
para liderar tal empreendimento.
Em terras baianas, José Mascarenhas contou com o auxilio de eruditos,
principalmente do Padre Antônio de Oliveira, ex membro dos Esquecidos, de
Antônio Rodrigues Nogueira, e uma das principais referências da academia
durante seu período de existência, o Sargento-mor Antônio Gomes Ferrão Castello
Branco34. A primeira reunião ocorreu em 19 de maio de 1759 e contou com a
presença de 40 membros.
No Antigo Regime o termo “Academia” não representava, necessariamente,
uma instituição aos moldes contemporâneos com periodicidade definida e estatutos
registrados. A reunião de pessoas eruditas seja por uma dia ou mesmo para
homenagear um único evento, já se configurava uma reunião acadêmica. Alguns
eventos específicos como a recepção a algum indivíduo importante da Metrópole,
já seria suficiente para motivar um encontro de eruditos. No caso da Academia dos
Renascidos, ainda que tenha surgido na perspectiva de se tornar uma instituição
com certa perenidade e com claros objetivos de produzir conhecimento intelectual
na Colônia, teve seu pretexto inicial vinculado a um ato pueril como foi o caso do
restabelecimento da saúde do rei D. José I (1750-1777).
Dentre os 40 sócios fundadores estavam os mais destacados membros das elites
baianas. Em um levantamento dos 40 numerários foi possível identificar a seguinte
composição: 22 religiosos, 07 militares e 5 magistrados. O expressivo número de
religiosos se explica por estes representarem maciçamente aqueles que tinham boa
formação intelectual. Muitos dos que fizeram parte dos membros numerários se
confirmaram como autores de obras que se tornaram referência até os dias de hoje,
como é o caso de José Antônio Caldas e Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão35.
O grupo diretivo da instituição foi formado pela seguinte composição: presidente,
José Mascarenhas Pacheco Pereira de Mello, censores, Dr. João Borges de Barros,
João Ferreira Bittencourt e Sá, Frei Ignácio de Sá e Nasareth e o Dr. José Pires
de Carvalho, eleito em segundo escrutínio após empate com o Frei Calixto de S.
Caetano. Além desses, também fizeram parte o secretário, Antônio Gomes Ferrão
Castelo Branco e o vice-secretário, Bernardino Marquez de Almeida e Arnizau36.
A solenidade de fundação oficial da Academia dos Renascidos se deu em
6 de junho de 1759 e foi assim justificada: “(...) pela necessidade de erigir um
padrão da alegria que sentiram os habitantes da Bahia com a notícia do perfeito

34
LAMEGO, Alberto. A Academia Brazilica dos Renascidos: sua fundação e trabalhos inéditos. Paris-
Bruxelas: L’Édition d’Art Gaudio, 1923, p. 10.
35
As duas principais obras dos autores citados foram: CALDAS, José Antônio. Notícia geral de
toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. Edição fac-
similar. Salvador: Tipografia Beneditina, 1951. JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Catálogo
genealógico das principais famílias, de Frei Jaboatão (1762), 2 v. Edição de Pedro Calmon. Salvador:
Empresa Gráfica da Bahia, 1985.
36
LAMEGO, A Academia Brazilica..., p. 14.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 115


restabelecimento de Sua Magestade Fidelissima, depois da perigosa enfermidade,
e do seu afeto à real pessoa”37. Como já informei anteriormente, o monarca
homenageado foi D. José I e assim nascia a instituição literária baiana sob o manto
da reiteração simbólica do Reino.
A solenidade de fundação envolveu muita pompa, com os acadêmicos reunidos
na capela-mor da Igreja dos Carmelitas Descalços. Dentre os membros numerários
seis deles faltaram por motivos pessoais, entre eles o censor da instituição José
Pires de Carvalho e Albuquerque, que se ausentou devido a moléstia do pai que
viria a falecer poucos dias depois. A solenidade ocupou-se de todos os juramentos,
discursos e entrega de diplomas. Dentre os diversos discursos cujos temas foram
distribuídos entre os membros, um deles tinha sido encarregado ao censor José
Pires de Carvalho e Albuquerque que trataria do seguinte assunto: “O grande
affecto d’El Rey Nosso Senhor, às Sciencias e Bellas Letras”.
Iris Kantor fez uma descrição da pompa do cerimonial que nos permite perceber
a representatividade, por parte dos acadêmicos baianos, de pertencimento a uma
mesma comunidade política de dimensão imperial, cujo elemento de síntese era a
própria condição de vassalidade a um mesmo soberano:

Logo na entrada, os acadêmicos deveriam fazer uma


primeira reverência profunda (em noventa graus) voltados
para o retrato do rei; no meio do salão, executariam a
segunda reverência; e, por fim, uma terceira, próximos
do assento. As reverências e os gestos deveriam ser
executados em silêncio absoluto. Era recomendado aos
acadêmicos, antes de falarem ou lerem as composições,
fazerem uma vênia ao retrato de Sua Majestade, e em
seguida aos conselheiros, censores e secretários.38

Segundo informação do Cônego J. C. Fernandes Pinheiro, depois da primeira


reunião os acadêmicos voltaram a se encontrar nos dias 21 de julho; 04 e 18 de
agosto; 1º, 15 e 23 de setembro; 18 e 27 de outubro; 10 e 24 de novembro; e 08 e
17 de dezembro de 1759; além de 31 de março e 12 e 26 de abril de 176039.
Afirmo que a presença de academias na Bahia representou, para as elites, a
possibilidade de legitimar o território colonial no interior do Império português. Os
trabalhos desenvolvidos pelas dissertações sugeridas aos acadêmicos Renascidos
simbolizaram o desejo dos eruditos baianos de afiançar a força política e econômica
da América portuguesa. O conteúdo historiográfico produzido pela Academia dos
Renascidos serviria como uma espécie de memória histórica da América portuguesa
cuja função seria o de não só legitimar politicamente o território colonial como
servir de base de resgate para as gerações posteriores.

37
LAMEGO, A Academia Brazilica..., p. 56.
38
KANTOR, Esquecidos e renascidos..., p. 104.
39
PINHEIRO, Côn. J. C. Fernandes. “A Academia Brasilica dos Renascidos: estudo historico e
litterario, lido no Instituto Historico e Geographico Brasileiro pelo sócio effectivo Conego Dr. J. C.
Fernandes Pinheiro”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Tomo XXXII – Parte
Segunda, 1869, p. 56.

116 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


É sempre bom contextualizar a conjuntura da segunda metade do século XVIII
como a fase das reformas empreendidas pelo consulado pombalino. Tratou-se
de conjuntura em que algumas tradições foram sendo questionadas como, por
exemplo, as relacionadas com a interferência do poder metropolitano no interior do
poder local colonial. Questões relacionadas com a regulamentação da propriedade
fundiária e concessão de propriedade de ofícios públicos e patentes militares
impactaram diretamente nos interesses das elites baianas. Um exemplo bastante
plausível de como a produção científica da Academia dos Renascidos pode ter
servido aos interesses da elite colonial, consiste na obra de pesquisa genealógica
do Renascido, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Serviram as genealogias
construídas por Jaboatão como uma espécie de atestado de direitos de propriedades
e privilégios nobiliárquicos adquiridos e legitimados no tempo pelos diversos clãs
que constituíram as elites baianas. Em contexto de reformas, a tradição temporal
estabelecida pelo frei Jaboatão, respaldava a defesa da manutenção de privilégios,
da comprovação de propriedades e da prerrogativa de se continuar instituindo
vínculos de morgado e capela40.
Como já demonstrei, a composição das Academias refletia diretamente a
segmentação setorial das elites baianas. Entretanto, o fato de buscar a ampliação
de seus membros através da nomeação de sócios supranumerários41 de fora da
Bahia, as Academias esboçaram a possibilidade de provocar uma unidade de
pensamento das elites que compunham as diversas partes da América portuguesa
o que poderia resultar em uma leitura mais profunda e mais global da realidade
colonial. As temáticas das dissertações produzidas transitavam entre o específico
baiano e o geral, que englobava toda a América portuguesa.
Através do manuscrito conservado no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e publicado na edição de 1839 de sua revista, é possível ter uma ideia
da organização geral das dissertações que, no conjunto, visavam escrever as
“memórias para a História universal da nossa América, que se hão de escrever na
língua portuguesa”42. A distribuição das funções de pesquisa entre os sócios seguiu
uma construção bastante fragmentada e atendendo os limites da cientificidade
historiográfica da época. De uma compilação de grandes temas nasceria uma
unidade histórica que viria a dar vida a uma “verdadeira” História Universal da
América portuguesa.
Uma das primeiras tarefas entregue a três sócios foi o de escrever em língua
portuguesa a “história de todos os índios da nossa América”43. Indo além, a outros
três sócios foi indicado a composição de uma história da “agricultura própria do
país, especialmente do açúcar, tabaco e suas fábricas”44. A dois grupos de quatro
sócios cada um, foi solicitado uma história natural que “compreende os três reinos
animal, vegetal e mineral”, e a escrita das “memórias genealógicas de toda a

40
KANTOR, Iris. “A Academia Brasílica dos Renascidos e o governo político da América Portuguesa
(1759): notas sobre as contradições do cosmopolitismo acadêmico lusoamericano”. Separata da
Revista de História das Ideias, Faculdade de Letras, Coimbra, vol. 24, 2003, p. 64.
41
Um deles foi o poeta mineiro Claudio Manuel da Costa, cuja função seria escrever sobre sua região.
42
“PROGRAMMA Historico”. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Tomo I, 1839,
p. 69.
43
“PROGRAMMA Historico”, p.70.
44
“PROGRAMMA Historico”, p.70.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 117


América”45. Quanto ao interesse em conhecer o setor militar a academia prezou
pela riqueza de detalhes ao sugerir a cinco de seus sócios o levantamento das:

Memórias do estabelecimento, aumento e estado presente


de todos os corpos militares que há e tem havido na
América Portuguesa, com os mapas gerais e particulares do
estado presente das tropas, dos soldos que vencem (porque
também compreendem os auxiliares e ordenanças), da
graduação dos postos, e dos privilégios especiais que
tenham sido concedidos aos militares.46

A justiça também foi contemplada com estudo específico quando foi solicitada a
construção das “memórias para a história de todos os tribunais, e mais ministros da
justiça e fazenda, que há e tem havido no Brasil, com a notícia do seu estabelecimento,
e da divisão das suas respectivas jurisdições”47. O comércio, recebeu da academia
tratamento que correspondia à sua centralidade, pois foi visivelmente identificado
como base da riqueza colonial e da exploração metropolitana. Saber como o
mesmo funcionava no interior da intricada rede de relações que configurava o
exclusivo metropolitano exigiu dos acadêmicos trabalharem para estabelecer:

As Memórias para a história do comércio assim ativo como


passivo etc., com uma notícia individual de todas as rendas
reais, declarando as que andam por contrato, quem as
cobra, os diversos modos por que tem sido administradas,
o aumento ou diminuição que tiveram desde sua origem, e
o número de escravos que tem entrado e entram em cada
ano na nossa América.48

A legislação seria contemplada com a escrita de uma “coleção de todas as


leis, ordens régias, expedidas para a América, e os tratados de paz e de comércio
respectivos a este continente, desde o seu descobrimento até o presente”49. Três
sócios, também seriam designados, “para examinar os livros da câmara desta
cidade (da Bahia) e tirar do seu arquivo as notícias cronológicas, que se puderem
descobrir, concernentes às nossas memórias históricas”50.
A maneira de como esses trabalhos de pesquisas foram apresentados e debatidos
no âmbito da Academia se deu a partir de leituras de dissertações a serem feitas
em datas pré-definidas. Sobre as questões de natureza econômica, dentre elas
com destaque para o comércio, um exemplo bastante instigante de temática diz
respeito a assuntos relacionados à liberdade de comércio. Tradicionalmente, um
setor da historiografia brasileira, atribui ao final do século XVIII, uma fase de

45
“PROGRAMMA Historico”, p.70.
46
“PROGRAMMA Historico”, p.70.
47
“PROGRAMMA Historico”, p.70.
48
“PROGRAMMA Historico”, p.70.
49
“PROGRAMMA Historico”, p.71.
50
“PROGRAMMA Historico”, p.71.

118 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


aprofundamento da crise do sistema colonial. Dentre os sintomas desta percepção
está a chegada ao Brasil das ideias liberais. É muito comum, entre os que defendem
essa tese, utilizarem os textos de Silva Lisboa51 e o relatório de João Rodrigues de
Brito52, ambos produzidos já no início do século XIX, como exemplos de presença
consistente das ideias liberais no Brasil colonial. Entendo que tal percepção não
precisaria esperar tanto tempo, pois, sessenta e três anos antes da ruptura definitiva
entre o Brasil e Portugal os acadêmicos Renascidos já se perguntavam na leitura
de dissertação programada para o dia 13 de outubro: “Se é útil ou prejudicial às
monarquias o diminuir-se os juros de dinheiro; por exemplo de oito a quatro por
cento, ou pelo contrário aumentar-se de quatro a oito por cento? E se é mais útil
fazer-se o comércio com inteira liberdade, ou por companhias bem estabelecidas?”53.
Antecipavam, os Renascidos, um debate que talvez nunca tenha ficado totalmente
alheio aos indivíduos da Colônia por todo o século XVIII.
A preocupação com questões de natureza econômica ainda seria retomada pelos
Renascidos quando definiram a temática a ser dissertada no dia 24 de novembro,
queriam saber eles, “Qual é a mais antiga no Brasil, se a agricultura dos tabacos, ou
das canas? E qual foi o inventor dos engenhos de açúcar e de reduzir a tabaco de
pó aquela erva? E se poderá a maquina dos ditos engenhos fazer-se por modo mais
fácil?”54. São exemplos que nos permitem identificar o papel da academia como
um instrumento que viabilizava à elite luso americana a possibilidade de pensar
de maneira autônoma os diversos interesses econômicos e políticos da América
portuguesa.
Um dos temas a serem dissertados no dia 23 de junho de 1759 procurava saber
“Se a esta capital se deu o nome de – Cidade de S. Salvador – ou somente – Cidade
do Salvador? E de qual destes se deve usar na história da nossa América?”55. Por
outro lado, o tema definido a ser dissertado em 07 de julho buscava informações que
iam muito além dos interesses baianos, buscavam saber os acadêmicos, “quantas
vezes, e em que partes da América Portuguesa se tem descoberto minas de salitre?
E em que tempo, e que as descobriu? Se eram abundantes? Quanto distavam de
algum porto de mar? E quais foram os motivos por que se não continuou a tirar
dele este precioso mineral”56. Além disso, estavam questões de natureza político/
administrativa como é o caso do questionamento sobre, “quando se estabeleceu
a primeira vez a Relação neste Estado da Bahia? Quem foi o chanceler que a veio
criar? Quanto tempo durou o seu despacho? E porque se extinguiu? O motivo da

51
José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu) foi um jurista e economista baiano e grande interprete do
pensamento de Adam Smith. Notabilizou-se como economista ao defender o livre comércio o que
teria influenciado o Príncipe Regente D. João a decidir pela abertura dos portos do Brasil em 1808.
Uma das principais obras de Silva Lisboa foi o livro Observações sobre o comércio franco no Brasil,
publicado pela Impressão Régia em 1808.
52
Aqui me refiro a uma carta escrita pelo Desembargador João Rodrigues de Brito respondendo
a uma solicitação do Governador da Capitania da Bahia, o conde da Ponte, que endereçou ao
Senado da Câmara cinco questões de natureza política e econômica que impediam o crescimento
da Bahia. A resposta de João Rodrigues de Brito, devido a sua riqueza de detalhes, transformou-se
em um rico documento sobre a economia baiana de fins do século XVIII e início do XIX.
53
“PROGRAMMA Historico”, p. 74.
54
“PROGRAMMA Historico”, p. 75.
55
“PROGRAMMA Historico”, p. 72-73.
56
“PROGRAMMA Historico”, p. 73.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 119


segunda vez se erigir este tribunal? Como? Por quem? E em que tempo?”57.
Todas essa questões propostas pela Academia dos Renascidos, não obstante
não terem sido levadas à frente, representaram uma oportunidade verossímel de
se conhecer a mentalidade coletiva de parcela privilegiada da sociedade baiana da
segunda metade do século XVIII. São temas que nos ajudam a conjecturar sobre
o grau de alienação da elite colonial em relação à sua posição de “explorada” no
contexto da relação Metrópole/ Colônia. Além disso, tende a colocar em xeque o
grau de institucionalidade dessa relação de exploração, no contexto do exclusivo
econômico, mesmo que reconheçamos que esta relação tenha sido estabelecida
em bases assimétricas.
Concordo com Iris Kantor quando ela afirma que os Renascidos pensavam o
espaço americano como uma unidade geopolítica e como um território indivisível
e homogêneo58. Indo mais longe, os Renascidos viam na história da América
portuguesa um passado particular e inserida na temporalidade da cristandade
universal59.
O fato, porém, de pensarem o território americano como uma comunidade
geopolítica indivisível e homogênea, não significava que os Renascidos tivessem
representado um ensaio de crítica ao sistema imperial português. Conhecer e
questionar suas vicissitudes no campo econômico não foram atitudes suficientes
para criar nos Renascidos uma mentalidade nativista de cunho separatista. Entendo,
portanto, que projetos sediciosos semelhantes aos que aconteceram no último quartel
do século XVIII compreendem apenas a continuidade de uma mentalidade forjada
nas diversas conjunturas desse mesmo século, sem necessariamente significarem
“ensaios” de uma crise sistêmica no interior do Império Luso americano.

Considerações Finais

O ocaso da Academia dos Renascidos viria junto com a prisão de seu fundador
e principal mecenas, José Mascarenhas Pacheco Pereira de Melo. Passados cinco
meses de sua fundação, não sobreviveu a instituição a tamanho impacto. Apesar
de terem sido previstas com antecedência, reuniões até o dia 26 de abril de 1760,
possivelmente o último encontro dos Renascidos não ultrapassou o 10 de novembro
de 1759.
Os motivos da prisão de José Mascarenhas são envoltos em algumas conjecturas.
Fala-se de ter sido acusado de dupla traição, de um lado, pela aproximação com
os franceses aportados na Bahia envolvidos com uma suposta tentativa de invasão
francesa ao Rio de Janeiro, por outro lado, aquela que nos parece mais plausível,
de que tinha José Mascarenhas desistido de levar adiante uma das tarefas a serem
cumpridas em terras da América, a prisão e expulsão dos jesuítas do território
americano.
Em suma, independente de qual tenha sido os reais motivos que levaram ao
fechamento da Academia dos Renascidos, a presença de academias eruditas na
Bahia do século XVIII representou não só um espaço de legitimidade social no

57
“PROGRAMMA Historico”, p. 73.
58
KANTOR, “A Academia Brasílica...”, p. 67.
59
KANTOR, “A Academia Brasílica...”, p. 67.

120 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


âmbito de suas elites, como também, a possibilidade de se instituir, em território
colonial, uma experiência historiográfica que representasse um olhar minimamente
autônomo da Colônia sobre seu passado com força suficiente para enquadrá-la no
contexto de uma História da Cristandade Universal.
Junto com José Mascarenhas Pacheco Pereira de Melo desaparecia a Academia
dos Renascidos enquanto instituição. Entretanto, sua existência na mentalidade
coletiva das elites baianas, perduraria por todo o século XVIII como elemento de
resgate e de legitimação da condição de letrados que alcançou os vassalos de Sua
Majestade em território colonial.


RESUMO ABSTRACT
A configuração, em território colonial, de The setting, in colonial territory, of typical
representações institucionais e simbólicas típicas institutional and symbolic representations of the
do Antigo Regime português, teve presença Old Portuguese regime, had a strong presence
marcante na Bahia do século XVIII. Nesse século, in Bahia in the 18th century. In this century
se consolidou na Bahia, uma elite econômica was consolidated in Bahia an economic elite
que também foi política e letrada. Bem situadas that was also political and literate. Well placed
financeiramente, as elites baianas buscaram financially, the Bahia elite sought to ascend
ascender socialmente pelas vias dos serviços e socially by way of services and favors that so
das mercês que tão bem caracterizou o ethos characterized the ethos of nobility Portuguese
nobiliárquico português do Antigo Regime. of the Old Regime. This article discusses the
Esse artigo discute a fundação, no setecentos, foundation, at the eighteenth century, two
de duas Academias literárias cuja função, na literary academies whose function in practice,
prática, revelaria o interesse de eruditos baianos reveal the interest of erudite in Bahia establish
em estabelecer uma existência ativa, do ponto an active existence, from an intellectual point
de vista intelectual, no interior do Império of view, within the Portuguese Empire. Bahian
português. Os eruditos baianos que se reuniram erudites who gathered around the Academies of
em torno das Academias dos Esquecidos e Forgotten and Reborn glimpsed the possibility
Renascidos vislumbraram a possibilidade de of producing a history of Portuguese America
produzir uma história da América portuguesa captained by an independent look at its past
capitaneado por um olhar autônomo sobre seu and with enough force to fit it in the History of
passado e com força suficiente para enquadrá-la Universal Christianity.
na História da Cristandade Universal. Keywords: Ancien Régime; Elites;
Palavras Chave: Antigo Regime; Elites; Historiography; Favors; Colonial Bahia.
Historiografia; Mercês; Bahia Colonial.

Artigo recebido em 27 out. 2015.


Aprovado em 02 mai. 2016.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 121


VAPORES E ESCRAVOS NO PENEDO, ALAGOAS,
NA DÉCADA DE 1850
Luana Teixeira1

Penedo oferece ao longe um aspecto risonho e ao


mesmo tempo melancólico; erguida sobre a colina esta
cidade parece a esposa abandonada nos desertos do rio
gigante a dizer-lhe a última palavra de um afeto que vai
quebrar-se sobre a lousa de um túmulo; porque tomba
de ruína em ruína cada ano... Em alguns pontos de vista
dá uns ares da bela e voluptuosa Olinda; em outros se
mostra graciosa e pitoresca como a nobre e altiva Bahia.
Bernardo Xavier Pinto de Souza.2

A Cidade do Penedo, localizada às margens do Rio São Francisco, começou a


ser ocupada no início do processo de colonização do Brasil; era, portanto, uma vila
antiga no raiar do século XIX. Ao longo do oitocentos, consolidou-se como a segunda
maior praça comercial da Província de Alagoas e principal entreposto comercial da
região que ligava o interior do São Francisco às rotas nacionais de cabotagem.
Apesar da importância regional alcançada ao longo do século XIX, muito pouco se
sabe sobre essa região do Império3. Esse artigo busca contribuir para a produção
de conhecimento sobre Penedo a partir de um tema que dialoga diretamente com
a historiografia do Império: o comércio interprovincial de escravos. O objetivo
é demonstrar que a cidade foi fundamental para a articulação de uma rota do
comércio interprovincial de escravos que abrangia uma ampla região do Nordeste
– notadamente o Baixo e Submédio São Francisco e o Agreste Pernambucano – e
levou centenas de cativos para o sudeste do Brasil, especialmente para o Porto do
Rio de Janeiro. Desse modo, aponta para a importância que o comércio interno
de escravos alcançou nos anos 1850, momento em que iniciava na região um

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-Mail: <luateixeira1@yahoo.
com.br>.
2
Bernardo Xavier Pinto de Souza, que acompanhou a viagem de D. Pedro II às cachoeiras de
Paulo Afonso, publicando anos depois, sob o pseudônimo P. de S., a obra Memória da viagem de
Suas Majestades Imperiais à província da Bahia. Todas as citações tiveram a ortografia corrigida,
mantendo-se a pontuação original. Ver: S., P. de (Bernardo Xavier Pinto de Souza). Memória da
viagem de Suas Majestades Imperiais à província da Bahia coligidas e publicadas por P. de S. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1867, p. 72.
3
Sobre a história do Penedo no século XIX, ver: MORENO, Brandão. História de Alagoas. Penedo:
Arthes Graphicas Typografia e pautação, 1909. CAROATÁ, José Prospero Jeovah da Silva. “Crônica
do Penedo”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Alagoano, vol. 1, 1872, p. 2-7. CAROATÁ,
José Prospero Jeovah da Silva. “Crônica do Penedo”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Alagoano, vol. 2, 1873, p. 2-8. CAROATÁ, José Prospero Jeovah da Silva. “Crônica do Penedo”.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Alagoano, vol. 3, 1874, p. 33-42. MÉRO, Ernani Otacílio.
O perfil do Penedo. Maceió: Sergasa, 1994. VALENTE, Aminadab. Penedo: sua história. Maceió:
s.r., 1957. Além da referência em outras obras, Abelardo Duarte e Sávio de Almeida tem trabalhos
em que tratam especificamente do Penedo: ALMEIDA. Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do
cólera. São Paulo: Escrituras, 1996. DUARTE, Abelardo. “Notas sobre a população da Vila do
Penedo (1828)”, Jornal de Alagoas, Suplemento, Maceió, 26 jul. 1953.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 123


processo de desenvolvimento técnico e econômico impulsionado pela introdução
da navegação regular a vapor, simbolicamente marcado pela visita do Imperador
em 1859.
Esse artigo foi produzido ao longo das pesquisas de doutorado acerca do
comércio interprovincial de escravos em Alagoas4. Trata-se de uma abordagem
no âmbito da história social que prioriza analisar o comércio interprovincial a
partir das relações cotidianas envolvendo senhores, comerciantes e escravos em
uma província vendedora de cativos, bem como aproximar-se da experiência
vivida pelos cativos envolvidos no comércio, em uma tradição historiográfica
que remete aos estudos de Edward Palmer Thompson5. A metodologia de leitura
extensiva e cruzamento de fontes aplicada com a utilização de recursos de digitais
foi amplamente adotada, mas no caso deste artigo, optou-se pela análise interna
de fontes específicas, a fim de produzir um texto conciso sobre o papel do Porto
do Penedo nos negócios de escravos na década de 1850. Por outro lado, dada
a carência de estudos historiográficos sobre Penedo, recorreu-se a documentos
impressos e à iconografia para se produzir conhecimento acerca do contexto sócio-
político da cidade no período.
Há décadas que o comércio interprovincial vem sendo discutido no âmbito
dos estudos sobre a escravidão brasileira6. Emília Viotti da Costa e Robert Conrad
apontaram para o papel central do comércio interno na história dos últimos anos
da escravidão no Brasil7. A transferência de milhares de escravos das regiões
Nordeste (e também do Sul) para o Sudeste cafeeiro é a face mais conhecida
do comércio interprovincial, tendo sido Robert Slenes o responsável pela primeira
sistematização desses fluxos e dimensionamento de seu volume8. Autores
consagrados detiveram-se ao tema, especialmente focando os debates políticos e
as mudanças econômicas que o comércio teria suscitado à época9. Herbert Klein e
Richard Graham escreveram dois artigos em que levantam questões importantes,

4
TEIXEIRA, Luana. O comércio interprovincial de escravos em Alagoas no Segundo Reinado. Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016.
5
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros (uma crítica ao
pensamento de Althusser). Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [1978].
THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização e
tradução de Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. Campinas: Editora da UNICAMP, 2012.
6
Cabe notar que, assim como no Brasil, nos Estados Unidos o processo de deslocamento interno
de centenas de milhares de escravos também foi fundamental na história das décadas finais da
escravidão e vem sendo um tema recorrente na historiografia daquele país. Entre outros, ver:
DEYLE, Steven. Carry me back: the domestic slave trade in American life. Nova York: Oxford
University Press, 2005. JOHNSON, Walter (org.). The chattel principle: internal slave trades in
Americas. New Haven: Yale University Press, 2005; JOHNSON, Walter. Soul by soul: life inside the
antebellum slave market. Cambridge & Londres: Harvard University Press, 1999.
7
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Tradução de Fernando de Castro
Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
8
SLENES, Robert Wayne. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888. Tese
(Doutorado em História Moderna). Stanford University. Stanford, EUA, 1976.
9
EISENBERG. Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco – 1840-
1910. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. GORENDER, Jacob. O escravismo
colonial. São Paulo: Ática, 1985. MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império, 1871-
1889. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984.

124 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


tendo sido responsáveis pelo estimulo à ampliação dos estudos sobre o tema10.
Em certa medida, muitas das questões apresentadas por eles vêm sendo
desenvolvidas recentemente no âmbito dos Programas de Pós-Graduação de
História em todo o país. Alguns desses trabalhos focam as dinâmicas dos negócios
de escravos, buscado compreender a organização que viabilizou a transferência de
milhares de cativos das várias regiões brasileiras para os centros econômicos mais
dinâmicos11. Outros pesquisadores dedicaram-se a retomar a análise acerca do
impacto do comércio de escravos sobre a demografia e as relações de trabalho nas
regiões compradoras e vendedoras12. Paralelamente foram desenvolvidas pesquisas
focadas diretamente na experiência dos cativos inseridos no comércio, buscando
compreender as negociações e conflitos envolvidos nesse momento único de suas
vidas13.
Além dos trabalhos que tratam especificamente do tema, inúmeras obras
sobre a escravidão brasileira no Segundo Reinado tocam no assunto, revelando
a importância do comércio interprovincial de escravos para a História do Brasil
no período. Sem querer estender mais essa breve introdução, cabe ressaltar que é
notável que trabalhos fundamentais de nossa historiografia tenham relacionado a
experiência do comércio de escravos ao comportamento insubordinado de cativos
que foram vendidos para o sudeste14.

10
GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no
Brasil”. Afro-Ásia, n. 27, 2002, p. 121-160. KLEIN, Herbert. “The internal slave trade in nineteenth
century Brazil: a study of slave importations into Rio de Janeiro in 1852”. Hispanic American
Historical Review, vol. LI, n. 4, nov. 1971, p. 567-585.
11
FLAUSINO, Camila Carolina. Negócios da escravidão: tráfico interno e escravos em Mariana,
1850-1886. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora,
2006. NEVES, Erivaldo. “Sampauleiros traficantes: comércio de escravos do Alto Sertão da Bahia
para o oeste cafeeiro paulista”. Afro-Ásia, n. 24, 2000, p. 97-128. SCHEFFER, Rafael da Cunha.
Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006. SCHEFFER, Rafael
da Cunha. Comércio de escravos do sul para o sudeste, 1850-1888: economias microrregionais,
redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual
de Campinas. Campinas, 2012. SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. “A participação da Bahia no tráfico
interprovincial de escravos (1851-1881)”. Anais 3º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional. Florianópolis: UFSC, 2007, p. 1-21.
12
BARBOSA, Josué Humberto. Um êxodo esquecido: o porto do Recife e o tráfico interprovincial
de escravos no Brasil: 1840-1871. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
do Paraná. Curitiba, 1995. MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico
interno de cativos na expansão cafeeira paulista. São Paulo: Alameda, 2012. VARGAS, Jonas
Moreira. “Das charqueadas para os cafezais? O tráfico interprovincial de escravos envolvendo as
charqueadas de Pelotas (RS) entre as décadas de 1850 e 1880”. In: XAVIER, Regina Célia Lima
(org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda,
2012, p. 275-302. Importante destacar que a obra de Flávio Motta possuiu uma extensa e detalhada
revisão historiográfica sobre o assunto.
13
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos “Sertoins de
Sima” – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. FERREIRA SOBRINHO, José Hilário.
“Catirina, minha Nêga, tão querendo te vendê...”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século
XIX (1850-1881). Fortaleza: Governo do Estado de Ceará/ Secretaria de Cultura, 2012.
14
AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites,
século XIX. Rio de Janeiro: Annablume, 1987. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 125


Desse ponto de vista, a experiência do comércio de escravos esteve diretamente
ligada ao processo que levou à abolição da escravidão no Brasil. Aqui reside
uma das questões mais interessantes que envolve os estudos sobre o comércio
interprovincial, mas a despeito de tantas pesquisas, por tratar-se de um fenômeno
ao mesmo tempo nacional e regional, é necessário que novos esforços sejam feitos
para se chegar a uma compreensão abrangente do papel que teve o comércio
interprovincial de escravos na história do Brasil nas últimas décadas da escravidão.
Nesse sentido que esse artigo se propõe à análise sobre o Porto do Penedo, trazendo
à luz uma região de exportação de escravos que ainda não havia sido abordada
pela historiografia sobre o assunto.
Para estruturar a narrativa, em um primeiro momento, a partir das impressões
de D. Pedro II, é apresentado um panorama geral da Cidade do Penedo e de
suas relações com as principais praças comerciais do Império. Ao longo do século
XIX, Penedo foi a única cidade da província de Alagoas que rivalizava com a
capital, Maceió, no que diz respeito às atividades comerciais por cabotagem. Após
um início de século de relativa decadência, como apontou o botânico George
Gardner, em 1838, à partir da expansão das rotas de cabotagem impulsionadas
principalmente pela introdução da navegação regular a vapor, Penedo conheceu
um rápido desenvolvimento, que se perpetuou até fins do século XIX15.
A seguir é analisada uma fonte inédita, a lista de pagamento da taxa dos escravos
das cidades e vilas, que permite uma aproximação à população cativa que vivia no
interior do espaço urbano da cidade do Penedo. Por tratar-se de uma fonte ainda
pouco explorada na historiografia, são tecidas algumas considerações sobre sua
produção a partir dos ofícios trocados entre o responsável pela arrecadação no
município e o Inspetor da Tesouraria Provincial de Alagoas. A sistematização dos
dados apresentados permite observar a presença de escravos vivendo na Cidade
do Penedo, bem como produzir uma estimativa mínima sobre quantos eram os
indivíduos escravizados que ali habitavam nos anos 1850.
Por fim, através de duas fontes já tratadas pela historiografia, o Livro de Entrada
de Escravos no Porto do Rio de Janeiro em 1852 e os dados sobre a arrecadação
do Imposto de Exportação de Escravos em Alagoas divulgados pelos presidentes
das províncias, em suas falas anuais à Assembleia Provincial, são apresentados
elementos que permitem comprovar que Penedo foi, já na década de 1850, um
entreposto do comércio interprovincial de escravos. Cruzados com as informações
sobre a população escrava da cidade, estes dados revelam não apenas a amplitude
das rotas comerciais que envolviam o negócio de escravos desde o Porto do
Penedo, como também o impacto que ele teve sobre a cidade, visto que o volume
das transações em apenas quatro anos superou o total da população cativa que ali
vivia. A forte presença de escravos na cidade, portanto, fazia parte da paisagem
risonha e melancólica vislumbrada por Bernardo Souza quando ali chegou junto à
comitiva que levava Sua Majestade, o Imperador Dom Pedro II.

de Janeiro: Editora da UFRJ; São Paulo: EDUSP, 1994.


15
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos
distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1975.

126 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Uma Cidade Imperial

A epígrafe que abre este artigo foi escrita pelo mordomo do Imperador quando
de sua visita ao Rio São Francisco, em 1859. O olhar sobre a decadência e a
imponência, a pequena cidade e o grande rio, a volúpia e o pitoresco; a impressão
sobre o contraste, sobre o desalinho, sobre um algo fora do lugar, assim foi vista
a cidade do Penedo por muitos daqueles que a visitaram em meados do século
XIX. “Reminiscência da nossa história dos tempos coloniais”16, a cidade, em 1859,
se revelava aos coevos como uma conexão entre o passado – na qual foi ereta e
deu-lhe a forma urbana no traçado das ruas calçadas e na grandeza de algumas de
suas edificações – e o futuro – que se lhe abria com a possibilidade de progresso na
região São-Franciscana. Sua importância para o Baixo São Francisco colocou-a na
rota de D. Pedro II, em viagem realizada no fim dos anos 1850. Em 11 de setembro
de 1859, na Fala do Trono, o Imperador avisou sobre o desejo de melhor conhecer
as províncias do Império ao Norte do Rio de Janeiro, planejando percorrer, por falta
de maior tempo, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba17.
No dia 1º de outubro partiu da Corte e, tendo atracado em alguns portos da
Bahia, chegou em 13 daquele mês à Barra do São Francisco, a qual adentrou sem
problemas. A Imperatriz, D. Leopoldina, que acompanhava o marido, não realizou
a parte São-Franciscana da viagem. Sabia-se que as condições de hospedagem
e alimentação rio adentro não seriam as mais agradáveis – de fato, o Imperador
sofreu com as pulgas, o calor e a água de má qualidade. Mas escreveu, satisfeito,
que apesar de péssimas acomodações a que teve que se submeter, ao menos tinha
podido dormir sempre em camas, não em redes, como era hábito generalizado por
ali.
Em Penedo, no entanto, as condições foram mais confortáveis. Acomodado
no sobrado em frente ao cais, casa do Comendador José Antônio de Araújo18,
D. Pedro II cumpriu os cerimoniais: recebeu a chave da cidade, foi ao Te Deum
no Convento Franciscano, cavalgou pelas ruas, adentrou as igrejas, conheceu
os estabelecimentos industriais (fábricas de óleo de mamona, de pilar arroz e
alambiques) e visitou as aulas.

16
S. de P., Memórias da viagem..., p. 72.
17
LACOMBE, Lourenço Luiz. “Prefácio e notas”. In: PEDRO II, Imperador do Brasil. Viagens pelo
Brasil: Bahia, Sergipe, Alagoas, 1859/1860. Rio de Janeiro: Letras & Expressões, 2003, p. 25.
18
Em 1869, o sobrado pertencia ao Cel. Moreira Lemos, quando foi mandado comprar, por ordem
do presidente da província José Bento Figueiredo Júnior, para servir de instalação para a Mesa de
Rendas. Hoje funciona como Museu do Paço Imperial, cuja exposição remete à visita do Imperador.
INSTITUTO Histórico e Geográfico Alagoano. Viagens de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior à
Província das Alagoas. 2. ed. Maceió: Grafmarques, 2010, p. 90.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 127


Fig. 1 – Fotografia de Abílio Coutinho, tomada em 1869,
por ocasião da visita do presidente da província, José Bento Figueiredo Júnior, a Penedo19.

A imagem, registrada por Abílio Coutinho quando da visita do presidente da


província José Bento Figueiredo Júnior, dez anos depois, coloca em primeiro plano
o sobrado no qual se hospedou o Imperador. A construção foi erigida à beira do
cais. Vê-se que ela não estava isolada, seguindo pela Rua da Corrente (depois Rua
da Matriz), pode-se observar uma pequena casa de pedra e cal, ao lado de dois
pequenos sobrados (um deles em reforma) e mais dois grandes sobrados de três
andares. Todos estes e mais quantos seguiam Rua da Corrente acima, estavam
eretos quando da visita de D. Pedro II. A cidade possuía dois desembarcadouros
ou cais20. Um deles, o menor, está registrado na foto acima. Do outro, o Imperador
fez um singelo desenho. Chamou a atenção de D. Pedro II, a paisagem idílica das
canoas apoutadas no rio e atracadas na praia; ele contemplou esta visão ao buscar
um panorama de Villa Nova desde o Penedo.

19
Fonte: INSTITUTO, Viagens de José Bento..., p. s/n.
20
D. PEDRO II, Viagens pelo Brasil..., p. 107.

128 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 2 – Vista da villa do Penedo do lado da Villa Nova 15 de outubro de 1859,
esboço do próprio punho de D. Pedro II, feito em uma de suas cadernetas de viagem,
quando de sua visita ao São Francisco em 185921.

Notem-se no primeiro plano as embarcações, entre as quais um dos vapores da


comitiva que lhe acompanhava. Observa-se também que ele destacou as velas e as
toldas das canoas, forma típica do Baixo São Francisco. Talvez seja este desenho o
primeiro registro visual destas embarcações, dignas de notas de muitos dos viajantes
que por ali andaram no século XIX22. A arte de D. Pedro II, peca em perspectiva
e em tantos outros aspectos técnicos, mas revela com singeleza a singularidade da
margem fluvial da cidade ribeirinha.
Dentre outros aspectos simbólicos, como levar a presença do Estado às regiões
distantes da Corte, a visita teve como principal consequência sacramentar a era
dos vapores na cidade do Penedo. Há décadas que Penedo estava conectado aos
principais portos do Império, havendo inclusive rotas frequentes executadas por
embarcações a vela do Penedo à Maceió e à Salvador. Em princípios dos anos 1850,
no mínimo oito veleiros oceânicos faziam viagens regulares à Penedo. Durante nove
meses entre 1853 e 1854, 35 embarcações empregadas no comércio de cabotagem
entraram no Rio São Francisco para ancorar em Penedo. Eram sumacas, hiates,

21
Fonte: D. PEDRO II, Viagens pelo Brasil..., p. s/n.
22
George Gardner, que ali esteve em 1838, faz uma descrição bastante cuidadosa dessas canoas.
Segundo o botânico: “A canoa em que embarquei era bastante grande, com cerca de quarenta pés
de comprimento por quatro de largura. É raro que uma só árvore tenha dimensão suficiente para
se fazer uma canoa deste tamanho; mas, quando uma não basta, escava-se a maior que se puder
encontrar, serrando-a em duas de popa à proa, e dando-se a largura necessária pelo acréscimo
de uma ou mais pranchas entre as duas metades. A nossa fora feita assim. Uma das extremidades
era coberta, numa largura de dez pés, com folhas de coqueiro, como o teto de uma casa, e assim
tanto servia de abrigo do sol durante o dia, como de cabina de dormir à noite. Havia apenas um
mastro que levava duas grandes velas triangulares, de algodão grosseiro, fabricado no país, e que
se abriam de cada lado por meio de uma vara comprida”. GARDNER, Viagem ao interior..., p. 66.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 129


patachos e barcaças vindas de Maceió e Salvador, principalmente23. Tamanha
movimentação era justificada pelo volume da produção que chegava naquele
porto, principalmente, através do Rio São Francisco. Henrique Halfeld indica que
no ano fiscal de 1852-1853 saíram do Penedo quase 11 mil sacas e 54 mil arrobas
de algodão, boa quantidade de açúcar (555 caixas, 172 barricas, 220 sacos e
22.968 arrobas), 14 mil meias solas, sete mil peles, além de farinha, feijão, milho,
arroz, caruá (acordamento), fibras vegetais (lã barriguda e lã caiana), mamona e
grande quantidade de óleos – principalmente da fábrica Araújo & Filhos, primeira
da província24. Sozinha a exportação de algodão gerou mais de 13 contos e 500
mil réis em impostos, enquanto os outros produtos em conjunto renderam cerca de
três contos e 300 mil réis.
A movimentação do Porto do Penedo no início da década de 50, fez com
que a cidade rapidamente fosse integrada nas rotas regulares de navegação a
vapor, que se expandiam naquela década. Os vapores, cuja tecnologia vinha se
desenvolvendo desde o século anterior, foram introduzidos na navegação brasileira
em 1818 e começaram efetivamente a operar linhas costeiras no Brasil em 1837
com a criação da Companhia Brasileira de Navegação a Vapor. Tocando apenas
os principais portos do Império, chegaram pela primeira vez em Maceió em 1839.
Com o objetivo de realizar rotas regionais não cobertas por essa empresa, no início
da década de 1850, foram fundadas a Companhia Pernambucana e a Companhia
Santa Cruz25. Tão logo foram inauguradas, ambas começaram a operar no Porto do
Penedo, colocando a cidade definitivamente na rota da navegação de cabotagem
do Império. Em 1854, a Sociedade Santa Cruz de vapores da Bahia começou a
fazer viagens regulares de Salvador à Maceió, fundeando em portos de Sergipe e
em Penedo. A Companhia – que em 1858 foi fusionada com a Companhia Bonfim
formando a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor –, contava com subvenção
das três províncias26. O contrato com Alagoas havia sido celebrado em 1853 e
os navios começaram a navegar no segundo semestre de 185427. A embarcação

23
Foram pesquisados os dados sobre o manifesto de cargas do porto do Penedo para nove meses
seguidos, entre outubro de 1853 e junho de 1854. Considerei viagens regulares as embarcações
que no período de nove meses estiveram mais de uma vez no porto fazendo a mesma rota. As
informações sobre as embarcações estão em: Arquivo Público de Alagoas (doravante APA). Caixa
1010, Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856. Manifestos de embarcações do porto
do Penedo 1º trimestre de 1853, 1º e 2º trimestre de 1854.
24
HALFELD, Henrique Guilherme Fernando. Atlas e relatório concernente a exploração do Rio São
Francisco desde a cachoeira de Pirapora até o Oceano Atlântico levantado por ordem do Governo
de S. M. I. o Senhor Dom Pedro II, pelo Engenheiro Civil Henrique Guilherme Fernando Halfeld
em 1852, 1853 e 1854 mandado lithographar na Lithographia Imperial de Eduardo Rensburg. Rio
de Janeiro, 1860. Edição fac-simile: São Paulo, 1994, p. 53.
25
A Companhia Pernambucana foi fundada em 18 fev. 1854 e a Companhia Santa Cruz em 13 mai.
1853.
26
SUBRINHO, Josué Modesto Passos. História econômica de Sergipe (1850-1930). Aracaju: UFS,
Programa Editorial da UFS, 1987, p. 43; SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Uma contribuição à
história dos transportes no Brasil: a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor (1839-1894). Tese
(Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006, p. 126.
27
FALLA dirigida á Assembléa Legislativa da provincia das Alagoas na abertura da 2.a sessão
ordinaria da 9.a Legislatura, pelo exm. vice presidente da mesma provincia, dr. Manoel Sobral
Pinto, em 3 de maio de 1853. Recife: Typ. de Santos e Companhia, 1853, p. 23. Disponível em:
<http://www.crl.edu/>. Acesso em: 12 dez. 2012.

130 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


inicialmente responsável era o vapor Santa Cruz, de 178 toneladas, que durante o
4º trimestre de 1854, chegou ao Porto do Penedo duas vezes por mês, uma vindo
da Bahia e outra retornando de Maceió28.

Fig. 3 – Linha Norte da Cia. Santa Cruz29.

Caso não parasse nos portos de Sergipe, o vapor Santa Cruz poderia ligar
Salvador à Penedo em menos de 17 horas, mas como se detinha até um dia em
cada porto, além dos atrasos frequentes, demorava uma semana, pouco mais ou
menos. A viagem para Maceió levava cerca de seis horas, mas também estava
sujeita aos atrasos. Estes também poderiam ocorrer devido aos procedimentos de
entrada na barra à espera da catraia e às condições ideais da maré30.
Imediatamente após o estabelecimento da rota norte pela Companhia Santa

28
Segundo Sampaio, o navio chegava a 300 toneladas, mas mantivemos a tonelagem registrada
nos manifestos de embarcações. Ainda segundo o autor, a embarcação era novíssima, havia sido
recém encomendada pelo empresário Antônio Pedrozo de Albuquerque a Charles Ironside & Co de
Liverpool, com velocidade de 10 a 12 milhas por hora. Em 1855, o trajeto passou a ser realizado
pelo vapor Cotinguiba. Ver: SAMPAIO, “Uma contribuição à história...”, 2006; APA. Caixa 1010:
Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856. Manifestos de embarcações do porto do
Penedo 4º trimestre de 1854.
29
Fonte: SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Uma contribuição à história dos transportes no Brasil:
a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor (1839-1894). Tese (Doutorado em História
Econômica). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006, mapa 6, p. 117.
30
SAMPAIO, Uma contribuição..., 2006, p. 107.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 131


Cruz, foi a vez da Companhia Pernambucana de Navegação Costeira por Vapor
Sociedade Anônima, alongar a sua rota sul e tocar o porto do Penedo. Em Abril de
1855 foi celebrado contrato que estendia a navegação da rota Recife-Maceió até
Penedo31. A epidemia de cólera e o naufrágio do Marques de Olinda, obstaculizaram
a normalidade das viagens e apenas alguns anos depois (não foi possível precisar
quando) efetivou-se a viagem Recife-Penedo32.
Ou seja, quando o Imperador chegou a Penedo, a cidade já recebia a visita
regular dos vapores da navegação de cabotagem há cinco anos. A novidade da
visita Imperial deu-se, no entanto, quando D. Pedro II e sua comitiva passaram a
bordo do Pirajá, outro vapor, e seguiram até Piranhas. Foi a primeira vez que um
barco com essa tecnologia percorreu as águas do rio até o interior33. Em contato
regular com os principais portos do Império, fortalecendo os circuitos comerciais
que ligavam o interior do São Francisco à navegação de cabotagem e possuindo
uma sólida infraestrutura urbana oriunda dos tempos coloniais, Penedo vivia, nos
anos 1850, uma nova fase de desenvolvimento econômico.

A Cidade e os Escravos

Uma cidade Imperial na década de 1850 seria, sem sombra de dúvidas, uma
cidade escrava. De fato, Penedo não fugia à regra. Embora haja dados estatísticos
para a época demonstrando a relevância da população escrava em seu termo e
freguesia, não há na bibliografia notícias sobre os escravos que viviam na cidade34.
No entanto, no Arquivo Público de Alagoas, existem documentos que tratam
especialmente dos cativos residentes na área central do Penedo. São as listas dos

31
RELATÓRIO com que ao Exm. snr. Dr. Graciliano Aristides do Prado Pimentel entregou a
administração da Provincia das Alagoas no dia 22 de Maio de 1868 o Exm. Snr. Dr. Antonio
Moreira de Barros. Maceió: Typographia do Jornal Alagoano, 1868, p. 21. Disponível em: <http://
www.crl.edu/>. Acesso em: 08 ago. 2014.
32
O Marquês de Olinda possivelmente iria realizar a rota Recife-Maceió e sucumbiu em sua viagem
inaugural em 1856. Ver: ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. A Companhia Pernambucana de
Navegação. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife,
1989, p. 30.
33
Embora tenha sido promulgada em 1857, a Lei Provincial 347, de 23 de abril, autorizando as
companhias ou empresas a estabelecer a navegação a vapor no interior do rio, a inauguração da
rota de navegação a vapor Penedo-Piranhas apenas ocorreu em 03 de março de 1867. RELATÓRIO
com que o Exm. Srn. Dr. João Francisco Duarte, 1º vice-presidente das Alagoas entregou a
administração da mesma província no dia 9 de setembro de 1867 ao Exm. Snr. presidente Dr.
Antonio Moreira de Barros. Maceió: Typographia do Jornal O Progresso, 1867, p. 01. Disponível
em: <http://www.crl.edu/>. Acesso em: 01 set. 2014.
34
Dentre os dados estatísticos para o período, ver: FALLA dirigida á Assemblea Legislativa da provincia
das Alagoas, na abertura da segunda sessão ordinaria da setima legislatura, pelo excellentissimo
presidente da mesma provincia, o coronel Antonio Nunes de Aguiar, no dia 18 de março de 1849.
Pernambuco: Typ. de Santos & Companhia, 1849, mapa 7, s./n. Disponível em: <http://www.crl.
edu/>. Acesso em: 03 mai. 2014. “Quadro estatístico feito por Thomaz Espíndola”. In: FALLA do
Presidente da Província de Alagoas, Dr. Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, 1º de Março de
1857. Pernambuco; Typ. de Manoel Figueirôa de Faria, 1857, p. 05. Disponível em: <http://www.
crl.edu/>. Acesso em: 03 mai. 2014. ESPÍNDOLA, Thomaz. A geografia alagoana ou descrição
físico, política e histórica da província das Alagoas. Maceió: Catavento, 2001. BRAZIL, Império do.
Recenseamento do Império do Brazil, 1872. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso
em: 01 set. 2014.

132 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


pagadores das taxas dos escravos da cidade e vilas nos anos fiscais de 1854-1855
e 1855-185635. Este tipo de fonte é rara no contexto da historiografia brasileira.
Um dos motivos que explica essa situação deve-se ao fato de tratar-se de listas
de escravos, e, por isso, terem sido preferidas para a queima dos documentos
da escravidão, cuja execução foi ordenada por Rui Barbosa em 189036. De fato,
Moacyr Sant’Ana identificou que listas desse tipo figuraram entre os documentos
jogados nas famigeradas fogueiras alagoanas37.
A taxação sobre escravos nas cidades e vilas do Império foi instituída em 183338.
A Lei nº 59 previa o pagamento anual de dois mil réis por escravo, quando o
proprietário solteiro possuísse mais de dois cativos (e, sendo casado, mais de
quatro). Excetuavam-se ainda, os escravos menores de 12 e os maiores de 60 anos.
Uma década depois, em 1842, o Decreto nº 151 regulamentou esta taxa e criou
efetivamente uma matrícula dos escravos para esse fim. Com a regulamentação,
a taxa baixou para mil réis, mas passou a abranger a totalidade dos escravos nas
cidades e vilas39.
Era, portanto, uma matrícula parcial, pois exigia apenas que os escravos
das áreas centrais fossem incluídos. Provavelmente buscava um controle sobre
os escravos da cidade, particularmente sob a atenção das autoridades após as
revoltas da década de 183040. Em Penedo, a taxação dos escravos parece ter sido
particularmente eficaz em meados da década de 1850. Em 1854, João Antônio
Silva Araújo Junior assumiu o cargo de administrador da Mesa de Rendas e
estava disposto a cobrá-la a contento. Em 30 de Março daquele ano, ele enviou
ofício ao Inspetor da Tesouraria Provincial informando sobre as dificuldades
para a arrecadação e solicitando os recibos (conhecimentos) que deveriam ser
entregues aos senhores após seu pagamento41. Durante os meses seguintes, o novo
administrador pediu alguns esclarecimentos sobre como proceder à matrícula. Em
27 de abril ele indagou:

1ª Se os Escravos que se ocupam em roças ou sítios


embora dentro dos limites da Cidade devem ser dados

35
A arrecadação no período Imperial funcionava por anos fiscais, que iniciavam, geralmente, em 01
de julho e terminavam em 30 de junho do ano seguinte. Cabe notar que há outros documentos
semelhantes no acervo do APA, tanto para Penedo na década de 1860, quanto para outras vilas da
província.
36
Sobre a incineração dos documentos, ver: SLENES, Robert. “Escravos, cartórios e desburocratização:
o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora?”. Revista Brasileira de História, vol. 5, n. 10,
mar./ago. 1985, p. 166-196.
37
SANT’ANA, Moacir Medeiros de. A queima dos documentos da escravidão: mitos da escravidão.
Maceió: Secretaria de Comunicação Social, 1988.
38
BRAZIL, Império do. Lei nº 59, 08 out. 1833. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/>.
Acesso em: 07 set. 2014.
39
BRAZIL, Império do. Decreto nº 151, 09 abr. 1842. Disponível em: <http://www2.camara.leg.
br/>. Acesso em: 07 set. 2014.
40
Sobre as revoltas, ver: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a História do levante dos Malês
em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
41
Artigo 8º, Decreto nº 151, 09 abr. 1842. O Administrador, no entanto, cita o mesmo artigo de um
regulamento de 11 de abril de 1843. Não encontrei este regulamento, pode ter ocorrido equívoco
do funcionário. APA. Caixa 1010: Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856. Ofício
19, 26 abr. 1854.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 133


a matrícula, e estão sujeitos ao pagamento da Taxa = 2º
Se os Escravos não matriculados e isentos da Taxa por
serem empregados em lavouras, porém que aparecem na
Cidade, onde alguns se empregam por um ou mais dias,
e outros pernoitam em Casa de seus Senhores, devem ou
não pagar a Taxa.42

O Inspetor da Tesouraria, em Maceió, respondeu afirmativamente ao primeiro


quesito e negativamente ao segundo. Ou seja, na concepção do Inspetor todos os
escravos que viviam nos limites da cidade deveriam ter a taxa paga, independente
se trabalhassem em ofícios urbanos ou em roças. Aqueles que habitavam fora e
frequentavam-na para trabalhar não deveriam ter a taxa paga. O critério para a
cobrança da matrícula era, portanto, o local de residência e não de trabalho. No
entanto, o administrador continuou tendo dúvidas sobre os escravos que estariam
sujeitos ao imposto e em cinco de junho encaminhou novo ofício:

Julgando eu dever incluir no Lançamento para o


pagamento da Taxa no corrente exercício a doze Escravos
do Proprietário Antonio Jose de Medeiros Bitancourt que
estiveram nesta Cidade desde Agosto de 1853 até Fevereiro
de 1854, empregados a maior parte na construção de
casas que está ele fazendo, e outras em seu serviço
Doméstico, por entender que essa estada consecutiva do
dito proprietário com sua família nesta Cidade, em Casa
própria, pode-se considerar residência na forma da Lei,
contudo como, em razão de minha pouca prática, posso
estar em erro, peço primeiramente a V. S., que se digne
esclarecer-me a respeito, e isto antes de findar-se o exercício
em que estamos.43

Desta vez o Inspetor da Tesouraria teve que pedir auxílio ao Procurador Fiscal,
que deu seu parecer. Este, mencionando os artigos 4º, 5º e 12º do Decreto 151
de 1842, confirmou que os escravos de Bitancourt (Bittencourt) deveriam ter a
taxa paga. Na interpretação do Procurador Fiscal, que tinha em vista a expansão
da arrecadação, não apenas os cativos residentes permanentemente na cidade
estavam sujeitos ao pagamento, como também aqueles ali permanecessem apenas
parte do ano.
A taxa dos escravos deveria ser escriturada em livro próprio, mas não é esta
a documentação disponível. Os documentos encontrados no Arquivo Público de
Alagoas são as tabelas relativas ao pagamento destes impostos que o administrador
remetia para a Tesouraria prestando contas de quanto arrecadou. Este documento
não possui todos os detalhes sobre os escravos previstos na lei (nome, sexo, cor,

42
APA. Caixa 1010: Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856. Ofício 28, 27 abr. 1854.
Respondido em 05 mai. 1854.
43
APA, Caixa 1010, Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856. Ofício 45, 05 jun. 1854.
Respondido em 21 jun. 1854.

134 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


idade, naturalidade e ofício). A lista de 1854-1855 cita apenas a quantidade de
cativos possuídos por cada proprietário. Aquela de 1855-1856 é mais completa,
trazendo os nomes destes cativos e das ruas onde residiam. Este último dado
deveu-se ao artigo 4º do regulamento que mandava se proceder ao alistamento
pela ordem numérica das casas, rua a rua. A tabela 1 demonstra o número de
escravos e de proprietários constantes nestas listas.

TABELA 1
PAGAMENTO DA TAXA DOS ESCRAVOS DAS VILAS E CIDADE – PENEDO
ANOS FISCAIS DE 1854-1855 E 1855-185644

VALOR VALOR
ANO ESCRAVOS POR
PROPRIETÁRIOS ESCRAVOS DA TAXA ARRECADADO
FISCAL PROPRIETÁRIO
(RÉIS) (RÉIS)

1854-1855 177 421 2,4 2.000 842.000 *


1855-1856 186 429 2,3 2.000 858.000
* Na fonte a soma total está calculada em 742 mil réis.

Em 1854 o engenheiro Henrique Halfeld esteve em Penedo e calculou que a


população total da freguesia chegava a 17.874 almas, sendo que 2.213 delas era
escrava (12,82%)45. No entanto a freguesia era ampla e ao se deter apenas aos
limites da cidade, Halfeld contou haver 1.014 casas e estimou que nelas viviam
de 8.500 a 9.000 habitantes. Colocando lado a lado os dados do engenheiro e
da tabela acima, percebe-se que a população escrava na área central do Penedo
não chegaria a 5% do total. O que não é de se estranhar, visto que o próprio
administrador da Mesa de Rendas afirmou que a cobrança da taxa era bastante
restritiva, recaia apenas sobre aqueles escravos que efetivamente residissem na área
central da cidade. Muitos outros viviam nos arrabaldes e costumavam frequentá-la.
De qualquer forma, se cogitarmos que cada senhor representava uma moradia,
podemos sugerir que 18% das casas abrigavam escravos46.A dispersão dos cativos
no espaço urbano do Penedo é ainda mais evidente porque a taxa dos escravos
de 1855 indica que os 429 escravos listados residiam em 23 ruas e logradouros
– praticamente a totalidade da área central – demonstrando que havia escravos
residindo em todos os cantos do centro da cidade47.
Penedo era uma cidade escrava, como tantas outras do Império do Brasil.

44
Fonte: APA. Caixa 1010: Mesa de rendas Penedo, ofícios expedidos, 1854-1856.
45
Os dados se aproximam do estimado por Thomás do Bonfim Espíndola em 1855, contabilizando
este 15.419 a população total, sendo 2.182 escravos. Ver: FALLA do Presidente da Província de
Alagoas, Dr. Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, 1º de Março de 1857. Pernambuco, Typ. de
Manoel Figueirôa de Faria, 1857.1857, p. 5. Disponível em: <http://www.crl.edu/>. Acesso em:
03.05.2014.
46
As listas de pagadores das taxas não identificam o número da residência para se estabelecer quais
senhores coabitavam. No entanto, a análise interna das fontes traz evidências de que houve a
agregação de escravos por residências, ou seja, ainda que oficialmente a posse/ propriedade fosse
de mais de uma pessoa, os escravos de uma residência foram listados como pertencentes a apenas
um senhor.
47
Quando da viagem do presidente da província em 1869, a cidade foi descrita como tendo 20 ruas,
cinco praças, um largo, cinco travessas e oito becos. Ver: IHGAL, Viagens..., p. 100.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 135


Cativos carregando latrinas, trabalhando nos serviços domésticos, lavando roupa,
vendendo alimentos, arrumando sapatos, construindo edificações, trabalhando no
porto, ajudando no comércio, escravos alugados e escravos de ganho faziam parte
de seu cotidiano. A organização do trabalho escravo em Penedo exige pesquisas
aprofundadas, mas o que a taxa de escravos evidencia é que este não apenas existia,
como também era relativamente extenso e estava sob o controle das autoridades.
No entanto, ao aprofundar os estudos sobre a escravidão em Penedo, outro
aspecto da presença escrava ganha destaque. A partir da Cidade do Penedo
organizava-se um dos circuitos que contribuiu para a vitalidade do comércio
interprovincial de escravos ao longo da década de 1850. O desenvolvimento
comercial e o fortalecimento de sua posição como entreposto entre o interior do
São Francisco e os principais mercados nacionais dotaram-na, portanto, de uma
característica especial: Penedo era também uma cidade comerciante de escravos.

Comércio de Escravos

O comércio interprovincial de escravos foi um dos principais fatos da escravidão


brasileira no Segundo Reinado. Desde quando começaram a vigorar as primeiras
legislações promovendo o fim do tráfico atlântico, na década de 1830, rotas internas
de compra e venda de escravos começaram a serem viabilizadas no Império. No
entanto, foi apenas após o fim definitivo da entrada de escravos africanos em solo
brasileiro, consequência da Lei Euzébio de Queiróz, em 1850, que o comércio
interprovincial ascendeu espantosamente. Impulsionado pela demanda oriunda do
desenvolvimento da lavoura cafeicultora no sudeste e viabilizado pela existência de
negociantes dedicados ao comércio de cabotagem entre as províncias do Império,
através do comércio interprovincial foram deslocados mais de 220 mil escravos ao
longo das décadas de 1850, 1860 e 187048. O principal destino desses escravos
eram as províncias cafeicultoras do sudeste. Em contraponto, havia diversas
províncias de procedência de escravos, entre elas Alagoas.
Inserida como vendedora no comércio interprovincial de escravos, em Alagoas
o negócio operava principalmente através dos portos do Penedo e Maceió.
Ambas eram cidades onde residiam escravos, mas, no contexto do comércio
interprovincial, elas serviam de entreposto para remeter escravos do interior para
os mercados do sul49. Ou seja, se os escravos se espalhavam pelas residências
destas cidades, periodicamente outros chegavam a seus portos com o objetivo de
serem embarcados rumo ao Rio de Janeiro para serem vendidos50. É o que se pode
observar no caso de um dos primeiros registros do funcionamento do comércio

48
SLENES, Robert. “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888: regional economies, slave
experience, and the politics of a peculiar market”. In: JOHNSON, Walter (org.). The chattel
principle: internal slave trades in Americas. New Haven: Yale University Press, 2005, p. 325-370.
49
Sobre quantidade de escravos em Maceió nos anos 1850, ver: ALMEIDA Luiz Sávio de. “Escravidão
e Maceió: distribuição espacial e renda em 1856”. In: MACIEL, Osvaldo Maciel (org.). Pesquisando
na província: economia, trabalho e cultura numa sociedade escravista. (Alagoas, século XIX).
Maceió: QGráfica, 2011, p. 81-101.
50
Sobre escravidão em Maceió, ver: MARQUES, Danilo Luiz. Escravidão: sobreviver e resistir – os
caminhos para a liberdade de africanas livres e escravas em Maceió (1849-1888). Dissertação
(Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2013.

136 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


interprovincial desde o Penedo. Em julho de 1852, o Patacho Minerva chegou Rio
de Janeiro proveniente da Bahia levando 58 cativos51. Destes, 27 vinham do Porto
do Penedo, tendo sido transferidos ao Minerva em Salvador52. A procedência dos
escravos que chegaram ao Rio de Janeiro naquele inverno e que iniciaram sua
viagem atlântica pelo porto fluvial é diversa, como demonstra a tabela abaixo:

TABELA 2
ESCRAVOS A BORDO DO PATACHO MINERVA EMBARCADOS EM PENEDO, 185253

RESIDÊNCIA DO SENHOR QUANTIDADE DE ESCRAVOS

Alagoas – Penedo (8)


10
Outras localidades (2)

Pernambuco 9

Sergipe 3

Bahia 2

Localidades não identificadas 3

Total 27

Tomando a residência do senhor como um indicativo da procedência do escravo


percebemos que apenas sete escravos embarcados no Porto do Penedo viviam ali54.
Dentre os escravos que provinham de outras localidades, havia aqueles oriundos
das zonas ribeirinhas do Baixo São Francisco, como Pão de Açúcar (AL), Propriá
e Brejo Grande (SE), ou próximas a elas, como Cotinguiba (SE). Um cativo era

51
Este documento foi analisado por Herbert Klein e serviu de base para seu artigo de 1971: KLEIN,
“The internal slave trade...”.
52
Notar que no artigo de Klein, Penedo não é citado como porto de embarque de escravos,
provavelmente por que as autoridades que produziram o livro anotaram que Penedo era um porto
de Pernambuco. Embora possa ser apenas um lapso do escrivão, esse dado pode ser visto como
um indicativo do importante papel que Penedo tinha no escoamento de produtos pernambucanos
ao ponto de um escrivão da Corte, desconhecedor da região do Baixo São Francisco, cometer o
equívoco. Ver: Arquivo Nacional. Fundo Polícia, Códice 397. Entrada de escravos no porto do Rio
de Janeiro, jun./set. 1851, p. 37v-39.
53
As localidades não identificadas foram: Muruhy, Bengui e Gariry. Observar que, embora o Gariry
[Cariri] aponte para o Ceará, fronteira com Pernambuco, há também localidades em Alagoas,
Pernambuco e Paraíba assim denominadas. As outras duas localidades provavelmente não são em
Alagoas. Fonte: Arquivo Nacional. Fundo Polícia, Códice 397. Entrada de escravos no porto do Rio
de Janeiro, jun./set. 1851, p. 37v-39.
54
Antes de adotar-se o procedimento de tomar a residência dos senhores como procedência do
escravo foi necessário realizar uma cuidadosa análise interna das fontes. Especialmente no
contexto em questão, as sucessivas transferências de propriedade ou de direito de realizar compras
e vendas (cartas de ordem e procurações) muitas vezes levam ao registro equivocado de um dos
intermediários como senhor. No entanto, nesta fonte a referência diz respeito ao último senhor do
escravo antes de ele entrar no comércio interprovincial.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 137


proveniente de Santa Maria (da Boa Vista, atualmente) no Submédio São Francisco
e outros cinco do Agreste Pernambucano. Estes, provavelmente, teriam seguido
por terra até Pão de Açúcar e dali pelo rio até Penedo. Outros três escravos tinham
senhores que residiam em localidades não identificadas. Os dois escravos cujos
senhores residiam na Bahia, notadamente em Salvador, pertenciam a negociantes,
ou seja, viviam na região quando foram comprados e embarcados para o comércio
interprovincial.
As compras no interior eram geralmente agenciadas por representantes das
firmas comerciais do Penedo ou da Bahia55. Estes remetiam o escravo para o
Rio de Janeiro, onde eram repassados a outros negociantes envolvidos. Algumas
vezes, como foi o caso do Patacho Minerva, o próprio negociante acompanhava
os escravos56. Em outras eles eram remetidos “a entregar”, referência comum na
bibliografia sobre o comércio interprovincial de escravos, que indica a transferência
de poder através de procurações para intermediários realizarem a venda57.
O registro do Patacho Minerva é um forte indício de que já em 1852 o Porto
do Penedo era um entreposto dinâmico do comércio de escravos. O vigor deste
comércio naquela década pode ser comprovado pelos dados da Presidência da
Província. Em documentos já conhecidos, foi estimado o volume do comércio
interprovincial de escravos em Alagoas entre 1854-185858.

55
Também ocorria do senhor aproveitar uma viagem à Penedo e levar um ou mais escravos para
vender.
56
Tratava-se da firma Bastos & Teixeira, representada provavelmente pelo sócio Torquato Leite
Teixeira.
57
SLENES, “The demography and economics...”, p. 155-157.
58
Para outras análises dessas fontes, ver: MELO, Hélder Silva. “Dados estatísticos e escravidão em
Alagoas (1850-1872)”. In: MACIEL, Pesquisando na província..., p. 168; SANT’ANA, Moacir de
Medeiros. Contribuição à história do açúcar em Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano
Ramos; Cepal, 2011, p. 147-158.

138 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


TABELA 3
EXPORTAÇÃO DE ESCRAVOS POR AGÊNCIAS FISCALIZADORAS,
JULHO DE 1854-DEZEMBRO DE 185859

LOCAIS/ ANOS FISCAIS 1854-1855 1855-1856 1856-1857 1857-1858 TOTAL

Cidade de Maceió 155 136 367 17 675


Vila de Santa Luzia do Norte 7 - 1 - 8
Vila de São Miguel 5 - 3 - 8
Vila do Porto Calvo - - 3 - 3
Vila de Porto das Pedras - 1 11 2 14
Vila do Paço de Camaragibe - - 1 - 1
Povoação de Barra-Grande - - 10 - 10
Cidade do Penedo 85 73 229 71 458
Vila de Pão de Açúcar 3 5 15 9 32
Vila de Porto da Folha
2 6 33 - 41
(Traipu)
Vila de Mata Grande 75 1 13 - 89
TOTAL 332 222 686 99 1339

Os dados que viabilizaram as estatísticas oficiais advinham da receita do imposto


de exportação de escravos, uma taxa que devia ser paga pelos senhores de cativos
que saíam da província para serem vendidos. Evidentemente, portanto, os números
dos escravos enviados para o comércio estão sub-representados nesta tabela, mas
ainda assim ela é bastante elucidativa. Indica que 458 escravos tiveram o imposto
de exportação pago em Penedo. Além desses, é provável que aqueles registrados
em Pão de Açúcar, Traipu e, talvez, Mata Grande também tenham sido remetidos
para fora da província por aquele porto. Ou seja, naqueles anos, 46% dos escravos
exportados por Alagoas teriam saído do Porto do Penedo. Considerando que os
escravos vindos de Pernambuco e Sergipe (como aqueles encontrados no Patacho
Minerva) muitas vezes tinham o imposto de exportação pago nas províncias de
origem, o número de cativos que passaram por Penedo deve ter sido ainda maior.
As informações prestadas pelo Presidente da Província demonstram que entre
1854 e 1858, mais de seis centenas de escravos foram exportados pelo Porto do
Penedo. Demonstrei que naquela cidade residiam 429 cativos em 1855. Ou seja,
colocados estes dados lado a lado, os algarismos apontam para o fato de que em

59
Fontes: FALLA dirigida á Assemblea Legislativa das Alagoas pelo presidente da provincia, Angelo
Thomaz do Amaral, na abertura da 1.a sessão ordinaria da 12a legislatura em o 1o de março de
1858. Maceió: Typ. Commercial de Moraes & Costa, 1858, p. 26. Disponível em: <http://www.crl.
edu/>. Acesso em: 06 abr. 2015. FALLA dirigida á Assembléa Legislativa da provincia das Alagoas
na abertura da sessão ordinaria do anno de 1859, pelo excellentissimo presidente da provincia,
o doutor Agostinho Luiz da Gama. Maceió: Typ. Commercial de A.J. da Costa, 1859, mapa 20.
Disponível em: <http://www.crl.edu/>. Acesso em: 12 dez. 2012. Há pequenas divergências entre
os dados apresentados por Thomaz Angelo do Amaral em 1858 e Agostinho Luiz da Gama em
1859. Amaral estima 37 escravos a menos que o sucessor nos municípios de Maceió, Penedo e
Santa Luzia do Norte e Gama 75 a menos que o antecessor em Mata Grande. Considerei aqueles
mais altos de cada estimativa.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 139


apenas quatro anos o número de escravos que foram embarcados em Penedo por
força do comércio interprovincial superou aquele dos cativos que viviam na cidade.
Ainda que alguns dos cativos embarcados fossem residentes na cidade, a grande
maioria vinha de outras localidades, desde regiões próximas, como o interior do
município e as cidades vizinhas, até Santa Maria, a mais de 400 quilômetros de
distância.
Os dados indicam a importância que o comércio de escravos alcançou em Penedo,
o que se tornou possível devido sua posição de entreposto comercial entre o Baixo
e Submédio São Francisco e os principais portos do Império. Ao longo da década
de 1850, enquanto a cidade vivia um momento de desenvolvimento econômico,
os comerciantes locais e de outras praças viram ali a possibilidade de viabilizarem o
transporte de cativos de regiões longínquas diretamente para Salvador, e dali, para
o Rio de Janeiro. Por outro lado, o comércio de escravos tornou-se uma importante
fonte de receita para o governo. Apenas no ano financeiro de 1854-1855 foram
pagos os impostos relativos a 85 escravos na Mesa de Rendas do Penedo, sendo
que o valor total arrecadado ficou entre oito contos e 500 mil réis e 12 contos e
750 mil réis60. Revendo os valores arrecadados com o algodão três anos antes, em
torno de 13 contos de réis, percebe-se que a arrecadação do imposto de escravos
chegava, em alguns anos, a quase igualar aquela do principal produto exportado
pelo Porto do Penedo. Tendo em vista o volume do negócio e sua importante
arrecadação, não seria despropositado sugerir que o comércio de escravos tenha
contribuído diretamente para o desenvolvimento econômico que a cidade viveu
na década de 1850. Ainda que os mais céticos possam considerar exagerada essa
proposição, os dados evidenciam a importância que aquele negócio alcançou na
cidade na década de 1850. E assim permaneceu até 1880, quando este comércio
praticamente teve fim em todo Império61.

Considerações Finais

Nesse artigo busquei trazer elementos para contribuir com a historiografia do


Império do Brasil no século XIX. Primeiramente, através do evento relacionado à
viagem do Imperador à região do Baixo São Francisco procurei inserir a cidade do
Penedo no contexto das rotas de navegação de cabotagem, demonstrando que,
ainda que fosse um porto fluvial, estava conectado ao Oceano Atlântico através
da Barra do Rio São Francisco. Nesse sentido, o Penedo caracterizou-se ao longo
dos oitocentos como um importante entreposto comercial entre uma vasta região
banhada pelo rio e os principais portos do Império. Perceber a vocação comercial
do Penedo permite colocá-la lado a lado a Maceió no que toca pensar dinâmicas
urbanas e comércio de cabotagem na província ao longo do Segundo Reinado.
Essa perspectiva visa a expandir o conhecimento sobre as relações que a província

60
O valor do imposto no período variou entre 100 e 150 mil réis.
61
No fim de 1880 e início de 1881 as principais províncias importadoras de escravos, São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais aprovaram impostos que taxavam entre 1 conto e meio e 2 contos
de réis os escravos de fora vendidos na província, tornando inviável o negócio visto que esse
valor era superior àquele da maioria dos escravos. Essa medida foi eficaz e a partir daquele ano
praticamente cessaram as transferências comerciais de escravos de Alagoas para outras províncias.

140 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


de Alagoas estabeleceu com outras regiões do Império.
Como região dinâmica de comércio, o cotidiano do Penedo estava ligado ao
rio e às relações sociais que se desenvolviam no interior do espaço urbano. Assim
como outras cidades na mesma época, Penedo possuía uma população escrava
considerável. Vivendo no interior da cidade e ocupando praticamente todos seus
espaços, os escravos eram parte fundamental da organização citadina. Nesse
contexto, a vivência escrava gerava relações sociais diferenciadas em comparação
ao ambiente agrário. Nesse sentido, através da análise das listas de pagamento
das taxas de escravos das cidades e vilas, procurei expor o aspecto urbano da
escravidão na região, esperando que novas pesquisas possam aprofundar os
conhecimentos sobre o assunto.
Por fim, busquei apresentar elementos para contribuir com a historiografia sobre
o comércio interprovincial de escravos no Brasil. Após o término do tráfico atlântico
de escravos houve uma reorganização em nível nacional dos circuitos comerciais
escravistas, sendo a principal consequência desse processo a franca ascensão
dos negócios de escravos entre as províncias do Império. A posição comercial
que Penedo vinha conquistando naquele momento viabilizou o desenvolvimento
desse tipo de negócio. Através da parceria entre comerciantes locais e de outras
províncias, foram levados para Penedo cativos de uma ampla região geográfica,
para dali serem remetidos ao principal porto importador de escravos do Império,
o Rio de Janeiro.
Deste modo, esse artigo buscou investigar mais de perto a presença de escravos
na Cidade do Penedo nos anos 1850, apontando para as dinâmicas urbanas na
antiga cidade colonial. Por fim, teve como objetivo trazer elementos para inserir
tanto o comércio interprovincial de escravos no contexto da história do Penedo,
como Penedo na história do comércio interprovincial de escravos.



SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 141


RESUMO ABSTRACT
Este artigo tem como principal objetivo The purpose of this paper is to present the
demonstrar a participação da Cidade de Penedo, participation of the city of Penedo, Alagoas, in
Alagoas, no comércio interprovincial de escravos internal slave trade over the 1850s. Penedo, which
na década de 1850. Penedo, às margens do is located on the banks of São Francisco River,
Rio São Francisco, conheceu um importante obtained an important economic development
desenvolvimento econômico em meados do in the mid-nineteenth century, driven by the
século XIX, impulsionado pelo estabelecimento establishment of regular steam navigation that
das linhas regulares de navegação à vapor connected its river port directly to the most
que conectavam o porto fluvial da cidade important Brazilian ports. In this context, Penedo
diretamente aos principais portos oceânicos da strengthened its position of trading post between
época. Nesse contexto, foi reforçada sua posição the interior of the São Francisco River and the
de entreposto comercial entre o interior do national cabotage trade. The profit possibilities
Rio São Francisco e o comércio de cabotagem with the domestic slave trade led local traders
nacional. As possibilidades de lucro com o to seek captives of Alagoas and Pernambuco’s
comércio interprovincial de escravos fez com hinterlands, shipping them from the Port of
que rapidamente os comerciantes envolvidos no Penedo to Rio de Janeiro. Thus, hundreds of
comércio da região começassem a buscar cativos slaves who were drawn into interprovincial trade
dos interiores alagoanos e pernambucanos e passed through the port of Penedo throughout
enviá-los para o Rio de Janeiro através do Porto the 1850s, directly influencing the economic and
de Penedo. Desse modo, centenas de escravos social relations in the Lower São Francisco.
inseridos no comércio interprovincial passaram Keywords: Internal Slave Trade; Alagoas
pelo Porto de Penedo ao longo dos anos Province, 19th Century.
1850, influenciando diretamente as relações
econômicas e sociais no Baixo São Francisco.
Palavras Chaves: Comércio Interprovincial de
Escravos; Província de Alagoas, Século XIX.

Artigo recebido em 11 nov. 2015.


Aprovado em 08 mai. 2016.

142 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


VISÕES DA REPÚBLICA BRASILEIRA
EM REVISTAS ILUSTRADAS EUROPEIAS,
1889-1890
Arthur Valle1

A proclamação da República brasileira ocorrida no dia 15 de novembro de 1889,


bem como suas consequências – especialmente a deposição do Imperador Dom
Pedro II (1825-1891) e o exílio da ex-família imperial na Europa –, mobilizaram a
atenção de um público variado em diversos países europeus. Um dos resultados
disso foi a demanda, por parte de periódicos ilustrados do “Velho Mundo”, de
imagens retratando acontecimentos e agentes vinculados à implantação do novo
regime no Brasil. Um comentário anônimo publicado no periódico luso-brasileiro
A Illustração apenas vinte dias depois da proclamação descrevia bem a situação:

De resto, a revolução foi tão inesperada que os jornais


ilustrados europeus andaram batendo a todas as portas
de brasileiros e portugueses, suplicando elementos para
a reportage artística de modo a satisfazer a curiosidade
do público, tanto de Lisboa, como de Paris e de Londres,
onde a revolução causou uma sensação extraordinária.2

A escassez iconográfica relativa à nova República brasileira na Europa era em


parte o resultado de um regime global de circulação de imagens que ainda dependia
da transmissão física, por intermédio da navegação a vapor. Mas essa escassez
também refletia questões mais profundas. Como lembrou a historiadora peruana
Natalia Majluf em um artigo sobre a visualização do Estado-nação nos processos
de independência do Chile e do Peru, a deposição de um monarca implica não
apenas em uma ruptura política, mas também na crise de todo um sistema de
representação3. No caso específico do Brasil do II Reinado, o eixo central do sistema
político, a própria expressão material do conceito monárquico, era a imagem de
Dom Pedro II: seu corpo era indissociável, em suma, da unidade política que ele
presidia. Uma primeira questão que surgiu para os editores europeus foi, portanto,
como encontrar imagens capazes de preencher o vazio deixado pela queda do
Imperador – um Imperador que, diga-se de passagem, era muito conhecido e
respeitado na Europa.
Como veremos, a proclamação da República no Brasil foi algo que,
paradoxalmente, não implicou na abolição dos usos da imagem de Dom Pedro

1
Doutor em artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou estágios pós-
doutoraiso na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Nova de Lisboa. Professor
Adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-Mail:
<artus.agv.av@gmail.com>.
2
“A REPUBLICA dos Estados Unidos do Brasil”. A Illustração, Paris, 05 dez. 1889, p. 358. A grafia
dessa e de todas as demais citações de periódicos de época foi atualizada.
3
MAJLUF, Natalia. “De cómo reemplazar a un rey: retrato, visualidad y poder en la crisis de la
independencia (1808-1830)”. Historica, vol. XXXVII, n. 1, 2013, p. 75.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 143


II na Europa, mas antes em sua derradeira proliferação: como uma espécie de
metonímia do efeito pela causa, a efígie do monarca deposto foi usada para se
referir ao novo regime republicano que lhe havia substituído.
Outra questão decorria dessa primeira. Se o regime republicano se baseia em
noções abstratas como soberania ou cidadania, se nele não há mais poder ligado a
um corpo, como então representar o Estado? No Brasil, essa questão se complicava
e não comportava uma resposta única, pois diferentes grupos políticos lutavam por
estabelecer o próprio significado do ato de proclamação e do regime instaurado. É
por isso que o historiador brasileiro José Murilo de Carvalho pode falar não de uma
proclamação, no singular, mas de “proclamações”, no plural, distinguindo nada
menos do que três concepções concorrentes, que derivavam de visões diversas
da República. Em primeiro lugar, havia uma versão “militar” da proclamação4,
segundo a qual o ato foi estritamente militar, corporativo e executado sob a liderança
do Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), um respeitado veterano da Guerra
do Paraguai; nessa versão, os civis pouco ou nada influíram. Em segundo lugar,
havia uma versão “sociocrática” da proclamação5, fundamentada nas ideias do
positivismo de Augusto Comte (1798-1957) e segundo a qual o verdadeiro mentor
e responsável pela República teria sido Benjamin Constant Botelho de Magalhães
(1837-1891), um militar pacifista que foi muito influente como propagandista das
ideias republicanas junto aos cadetes das escolas militares do Rio de Janeiro, onde
era professor6. Por fim, havia uma concepção “liberal” da proclamação7, segundo a
qual ela devia ser tributada ao movimento republicano civil, cujo marco simbólico
foi o “Manifesto Republicano” de 1870: nessa concepção, a atuação militar,
embora inegável, teria sido apenas um instrumento dos desígnios do Partido
Republicano Brasileiro (PRB), que em, 1889, era liderado por Quintino Bocayuva
(1836-1912), um dos principais responsáveis pela redação do manifesto de 1870
e diretor do jornal carioca O Paiz, porta-voz do oficialismo republicano. Como
veremos, imagens que refletiam aspectos dessas três concepções de proclamação
e de República – a “militar”, a “sociocrática” e a “liberal” – foram publicadas na
Europa, sem que qualquer delas tenha conseguido se impor como hegemônica.
Partindo das questões acima levantadas e das ideias avançadas por investigadores
como Majluf e Carvalho, o presente texto visa discutir um conjunto de imagens
relativas à implantação do regime republicano no Brasil que foram publicadas em
revistas ilustradas europeias entre finais de 1889 e 1890. Para tanto, consideraremos
três periódicos de Lisboa (A Comedia Portugueza, O Occidente e Pontos nos ii),
um de Madrid (La Ilustración Española y Americana) e dois de Paris (Le Monde
Illustré e L’Illustration), além da já citada A Illustração, que, embora fosse escrita
em português visando um público luso-brasileiro, também era editada em Paris8.

4
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 38-40.
5
CARVALHO, A formação das almas..., p. 40-48.
6
Nesse sentido, se deve destacar a atuação de Constant na Escola Militar da Praia Vermelha e na
Escola Superior de Guerra.
7
CARVALHO, A formação das almas..., p. 48-54.
8
VALLE, Arthur. “Transnational dialogues in the images of A Ilustração, 1884-1892”. RIHA
Journal, art. 0115, jan./mar. 2015. Disponível em: <http://www.riha-journal.org/articles/2015/2015-
jan-mar/valle-transnational-dialogues>.

144 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Nossa premissa básica nesse artigo é a de que, mais do que simples ilustrações
de acontecimentos históricos, as imagens que aqui apresentaremos necessitam ser
entendidas como autênticos atos9 que ajudaram a moldar o significado da realidade
política da República brasileira.

Em Torno do Ato de Proclamação da República

Um dos principais conjuntos de imagens sobre a República brasileira publicado


na Europa buscava apresentar os acontecimentos do dia 15 de novembro de
1889. Embora, como veremos, essas imagens não tenham sido cronologicamente
as primeiras relativas ao novo regime publicadas na Europa, elas são das mais
interessantes, pois evidenciam de modo exemplar o quanto as diferentes perspectivas
sobre o ato da proclamação tornavam fluido o seu significado, abrindo-o para
interpretações diversas.
Apesar das muitas controvérsias interpretativas sobre o episódio da proclamação10,
alguns fatos parecem ser consenso entre os investigadores: na manhã do dia 15, o
quartel-general localizado no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro,
foi cercado por regimentos militares rebelados, que tinham a frente o Marechal
Deodoro e Benjamin Constant. Dentro do quartel estavam o presidente do
Conselho de Ministros do Império Afonso Celso de Assis Figueiredo, o visconde de
Ouro Preto (1836-1912), e outros ministros, bem como guarnições governamentais
que, supostamente leais a Ouro Preto, ao cabo se recusaram a obedecer às suas
ordens de debelar os revoltosos. Pouco depois, o Marechal Deodoro entrou no
quartel-general, discutiu com Ouro Preto e dissolveu o ministério; ao sair para
confraternizar com as tropas, uma multidão considerável de militares e civis, entre
os quais estava Quintino Bocayuva, o aguardava. Deodoro recebeu aclamações,
tomando depois a dianteira das tropas e liderando um cortejo que atravessou o
centro do Rio. À noite, Dom Pedro II já estava oficialmente deposto e um governo
provisório fora instalado, decretando que o Brasil passava a ser uma República
federativa.
Ao que tudo indica, a primeira imagem retratando os eventos de 15 de
novembro publicada na Europa foi uma xilogravura de página inteira impressa
em L’Illustration de 14 de dezembro de 1889 (Fig. 1). Assinada por Bellanger, essa
imagem, como indicado em sua legenda, derivava de um desenho enviado por
Verediano Carvalho, um escritor vinculado ao PRB. O comentário em L’Illustration
assim a descreve:

Estamos na Rua do Ouvidor, uma das artérias principais


do Rio. As tropas do Exército e da Marinha desfilam, em
meio às aclamações; à frente, o marechal da Fonseca, a
cavalo, saúda com seu quepe, enquanto à sua esquerda,

9
JOSCHKE, Christian. “À quoi sert l’iconographie politique?”. Perspective: La revue de l’INHA, n.
1, 2012, Paris, p. 188.
10
MATTOS, Hebe. “A vida política”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História do Brasil Nação:
1808-2010 – Vol. 3: a abertura para o mundo 1889-1930. Rio de Janeiro: Fundación Mapfre,
2012, p. 89.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 145


o sr. Bocayuva, igualmente a cavalo, responde aos gritos
da multidão, levantando seu chapéu de feltro. Das janelas
do jornal O Paiz, diante das quais desfila a tropa nesse
momento, lenços são agitados. O entusiasmo é geral.
Pouco depois, o governo provisório foi instalado.11

Fig. 1 – A Revolução Brasileira, xilogravura publicada em L’Illustration, Paris, 14 dez. 1889, p. 516.

Como talvez nenhuma outra, essa imagem do 15 de novembro parece se encontrar

11
“LES ÉVÉNEMENTS du Brésil”. L’Illustration, Paris, 14 dez. 1889, p. 517. Tradução livre.

146 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


alinhada com a visão “liberal” da proclamação da República. Em primeiro lugar,
nela é sublinhada uma intensa adesão popular ao desfile das tropas: o “entusiasmo
é geral” e, especialmente no primeiro plano, na rua ou nas varandas, predomina
claramente a participação civil. O desenhista não perdeu a oportunidade para
enfatizar o caráter heterogêneo da multidão, representando, em meio aos homens
brancos que predominam, algumas mulheres e afrodescendentes. Em segundo
lugar, não é casual o destaque dado a Quintino Bocayuva, colocado no centro
da imagem, ao lado e em pé de igualdade com o Marechal Deodoro. Outro fator
que frisa o destaque de Bocayuva é a importância conferida à redação d’O Paiz,
o jornal dirigido pelo líder do PRB. Exatamente uma semana depois, em 21 de
dezembro, uma xilogravura inspirada na de L’Illustration foi publicada no periódico
lisboeta O Occidente12. Embora se possa argumentar que a qualidade da gravura
portuguesa é inferior a de seu protótipo francês, grosso modo se mantêm as mesmas
características compositivas que enfatizam a participação civil na proclamação: não
só a predominância dos civis é evidente, especialmente no primeiro plano, como
Bocayuva e a redação d’O Paiz permanecem como elementos centrais na imagem.
O comentário em O Occidente parece também afinado com a visão “liberal” do
evento: nele é dito que “o entusiasmo da população tocou o delírio” e explicado
que, por ter sido “o jornal O Paiz o que mais pugnou pela proclamação da república
[...] as manifestações populares tiveram ali a sua maior expansão”13.
Todavia, a segunda imagem da proclamação, publicada por L’Illustration no
dia 21 de dezembro, tem um caráter bem diferente. Trata-se de outra xilogravura,
dessa feita realizada aparentemente a partir de uma fotografia (Fig. 2). A legenda
dessa imagem explica que o que vemos é “a multidão acorrendo ao paço imperial
durante a notificação da deposição [do Imperador]”. Com efeito, nos é mostrado
o movimento dos transeuntes na antiga Praça Dom Pedro (hoje chamada Praça
XV de Novembro, em homenagem ao dia da proclamação), tendo à direita um
embarcadouro dos ferry boats que faziam a ligação entre o Rio e a cidade de
Niterói, localizada do outro lado da Baía da Guanabara. Poder-se-ia julgar que se
trata apenas de um instantâneo do dia-a-dia movimentado de um ponto central
da cidade se o comentarista francês não chamasse a atenção para “o pequeno
cortejo que desfila bem ao fundo da praça [e que] representa, quem acreditaria?
a revolução em marcha: a mais pacífica, de fato, de todas as revoluções ocorridas
até o dia de hoje”14.
Em franco contraste com a Fig. 1, essa imagem ressalta, portanto, uma relativa
alienação entre o povo e o desfile militar que se seguiu à proclamação. Ela
recorda admiravelmente as palavras proferidas ainda no dia 15 por Aristides da
Silveira Lobo (1838-1896), um conhecido propagandista da República, segundo
o qual “o povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos
acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava,

12
Cf. O Occidente, Lisboa, 12º ano, vol. XII, n. 396, 21 dez. 1889, p. 285. Uma reprodução dessa
gravura se encontra disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/ilustracao_republica_
arquivos/figura14.jpg>. Acesso em: 1º jan. 2016.
13
“A PROCLAMAÇÃO da República”. O Occidente, Lisboa, 21 dez. 1889, p. 283.
14
“LES ÉVÉNEMENTS du Brésil”. L’Illustration, Paris, 21 dez. 1889, p. 548. Tradução livre.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 147


julgando ver talvez uma parada militar”15. A visão “liberal” da proclamação dá
lugar aqui a uma imagem ambígua, na qual o sentido último do evento permanece
incerto.

Fig. 2 – A multidão acorrendo ao paço imperial durante a notificação da deposição,


xilogravura publicada em L’Illustration, Paris, 21 dez. 1889, p. 536.

Também no dia 21 de dezembro de 1889 foram publicadas, por Le Monde


Illustré, duas outras xilogravuras referentes aos eventos de 15 de novembro (Fig.
3). A primeira mostrava o atentado contra José da Costa Azevedo, o Barão de
Ladario (1823-1904), um militar e político que era então Ministro da Marinha;
a segunda representava o próprio ato de proclamação da República, em frente
ao quartel general do Campo de Santana. Essas duas imagens, que foram
republicadas por A Illustração em 05 de janeiro de 1890, ofereciam novas visões
da proclamação, bem diversas das já apresentadas. Por exemplo, a imagem do
atentado ao Barão de Ladario – que foi alvejado na manhã da proclamação
em frente ao quartel general ao resistir à ordem de prisão emitida pelo Marechal
Deodoro – aparentemente contradizia a ideia de que a instauração da República
no Brasil teria ocorrido de maneira pacífica. É certo que os textos referentes a essa
imagem – tanto em Le Monde Illustré, quanto em A Illustração – se apressavam
em afirmar o caráter excepcional do ocorrido; mas nela o barão é curiosamente
representado de uma maneira que evoca o próprio Dom Pedro II e um leitor
desavisado, especialmente se não fosse brasileiro, poderia interpretar tal imagem
com a de uma violenta agressão feita diretamente contra a instituição imperial.
Já a xilogravura que mostrava a proclamação da República parecia afirmar a

15
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 09.

148 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


predominância do corporativismo militar no evento, pois apenas militares podem
ser inequivocamente nela identificados.

Fig. 3 – Xilogravuras publicadas em Le Monde Illustré,


Paris, 33. annèe, n. 1708, 21 dez. 1889, p. 380.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 149


No começo de 1890, uma segunda imagem do ato da proclamação da República
em frente ao quartel general do Campo de Santana começou a circular na Europa.
Tratava-se de uma gravura que apareceu pela primeira vez na edição de Le Monde
Illustré de 18 janeiro de 1890 e que foi, logo depois, republicada por A Ilustração
em sua edição de 5 de fevereiro (Fig. 4). Os comentários a essa gravura afirmavam
a suposta fidelidade com a qual o ato da proclamação nela era retratado; n’A
Illustração, por exemplo, a imagem era descrita como “um quadro exato do que foi
o dia 15 de novembro de 1889, quando o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou
a República em frente ao Quartel general do Rio de Janeiro, diante do exército e
do povo”16. Cerca de um ano depois, quando a República brasileira comemorava
o seu primeiro aniversário, O Occidente voltou a publicar essa imagem, dessa feita
em uma versão xilogravada17, acompanhada de um comentário que nos ajuda a
melhor intuir as suas prováveis intenções à época:

À extrema amabilidade do sr. Vieira da Silva, digníssimo


cônsul geral do Brasil em Lisboa, devemos o poder
reproduzir nas páginas do OCCIDENTE o quadro da
proclamação da república do Brasil pintado pelo senhor
Oscar [Pereira] da Silva [1867-1939], artista brasileiro.18
Foi o sr. Vieira da Silva que nos facilitou a fotografia de
que nossa gravura é cópia, fotografia que lhe foi enviada
do Rio de Janeiro pela redação do jornal o Paiz, nas salas
do qual este quadro está em exposição.
[...]
O quadro representa a artilharia formada em frente do
quartel do Campo de Santana, salvando como vinte e um
tiros a proclamação da república feita pelo General [sic]
Deodoro, Quintino Bocayuva e Benjamin Constant.19

16
“A REPÚBLICA brasileira”. A Ilustração, Paris, 5 fev. 1890, p. 42.
17
Cf. O Occidente, Lisboa, 13º ano, vol. XIII, n. 429, 21 nov. 1890, p. 261. Uma reprodução dessa
gravura se encontra disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/ilustracao_republica_
arquivos/figura13.jpg>. Acesso em: 1º jan. 2016.
18
O quadro de Oscar Pereira da Silva ainda hoje se preserva, pertencendo ao acervo do Museu Casa
Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Cfr. LIMA JR., Carlos. “Apressados pinceis”. Revista de
História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 112, p. 60-65.
19
“A PROCLAMAÇÃO da República no Brasil (Quadro de Oscar da Silva)”. O Occidente. Lisboa, 21
nov. 1890, p. 260.

150 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 4 – Brazil – Quadro da Proclamação da República, no dia 15 de novembro, diante do Quartel
General do Rio de Janeiro, gravura publicada em A Ilustração, Paris, 05 fev. 1890, p. 41.

A princípio, poderíamos julgar que estamos diante de mais uma imagem que
afirma a visão “militar” da proclamação. Uma análise mais detida evidencia, porém,
certas ambiguidades que parecem ter sido intencionalmente configuradas. Em
primeiro lugar, existe a entusiástica aclamação dos civis representados em uma faixa
no primeiro plano da imagem: eles parecem confirmar as palavras do comentário
n’A Illustração, segundo o qual a proclamação se deu “diante do exército e do povo”
- embora cumpra notar que o “povo” se encontra apartado do centro da ação por
fileiras de soldados rigidamente perfilados20. Em segundo lugar, na imagem em
questão, o ato fundador do regime aparece esvaziado de qualquer personalismo:
a imagem é pontuada por pequenas figuras, agrupadas de modo mais ou menos
coerente, reforçando o sentido de ausência de uma hierarquia explícita; ninguém
ocupa o centro geométrico da composição, que é desmaterializado pela fumaça
da “salva de vinte um tiros”; em suma, nenhuma figura específica é enfatizada
e temos dificuldade, inclusive, em dizer onde se encontra o Marechal Deodoro,
explicitamente citado no comentário d’O Occidente.
Essa segunda visão do ato de proclamação parece, portanto, relativizar o papel
preponderante dos militares. Isso fica evidente quando a comparamos com um
conhecido quadro do pintor Benedito Calixto (1853-1927), datado de c. 189321,

20
Essa rigidez é patente em vários elementos da composição, o que nos faz supor que Pereira da Silva
tenha usado como referência para realizar o seu quadro uma fotografia hoje desconhecida.
21
Uma reprodução dessa pintura se encontra disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/
ilustracao_republica_arquivos/figura15.jpg>. Acesso em: 1º jan. 2016.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 151


que, embora seja muito similar à Figura 4, propõe uma interpretação muito diversa
do ato de proclamação ao excluir completamente o elemento civil do primeiro
plano da cena e colocar o Marechal Deodoro claramente no centro da composição.
Um último dado relevante – o local original de exibição da pintura de Pereira da
Silva, que era a redação d’O Paiz – parece reforçar a ideia de que tanto o quadro
quanto as gravuras dele derivadas tinham, na verdade, uma relação estreita com a
concepção “liberal” da proclamação defendida pelos partidários do PRB.

Os Símbolos da República: Bandeira, Selos, Moedas

Na constituição visual da República brasileira, bandeiras, escudos, moedas


e selos desempenharam um papel importante. O processo foi semelhante ao
verificável em outras repúblicas sul-americanas estabelecidas durante a primeira
metade do século XIX. Como recorda Majluf, a função da bandeira e do escudo
como elementos constitutivos do poder republicano derivava “tanto [de] sua
capacidade de interpelação ideológica como [dos] efeitos diretos que tem na
sociedade ao instituir e realizar a própria ideia de Estado-nação”22; já a moeda e o
papel selado, além de símbolos de poder, “são a materialização tangível e efetiva de
noções abstratas como a soberania e autoridade estatal”23. Nesse mesmo sentido,
Carvalho lembra da urgência de que se revestiu a redefinição de símbolos nacionais
como a bandeira ou o hino já nos primeiros dias após a proclamação da República:
“De adoção e uso obrigatórios, esses dois símbolos tinham que ser estabelecidos
por legislação, com data certa. Era batalha decisiva”24. Urgência semelhante se
manifestou no caso das moedas e selos brasileiros. E, uma vez definidos os novos
símbolos referentes ao Estado republicano, estes começaram a circular na Europa,
reproduzidos em alguns dos principais periódicos ilustrados do continente.
Nesse contexto, teve primazia a nova bandeira brasileira: a edição de 18 de
janeiro de 1890 de Le Monde Illustré, por exemplo, publicou um croqui do novo
pendão, assim descrevendo-o: “Sobre um fundo verde um losango amarelo
enquadra uma esfera azul portando sobre uma faixa branca equatorial a divisa:
ordem e progresso; a constelação de estrelas que caracteriza o Brasil se desenha
em branco sobre o azul da esfera”25. Como fica evidente pela divisa, essa bandeira
– que havia sido oficialmente adotada por decreto já no dia 19 de novembro –
representava uma vitória dos positivistas brasileiros, ou seja, dos defensores da
visão “sociocrática” do regime. Ela teria sido desenhada pelo pintor e escultor
Décio Rodrigues Villares (1851-1931) e preservava o aspecto geral da bandeira
imperial, apenas excluindo os emblemas do Império brasileiro26 e acrescentando a
faixa branca com a divisa, muitíssimo identificada com o positivismo. Com efeito,
prevaleceu na concepção da bandeira republicana uma indicação do próprio
Comte segundo o qual “na primeira fase da transição orgânica da humanidade

22
MAJLUF, “De cómo reemplazar a un rey...”, p. 92. Tradução livre.
23
MAJLUF, “De cómo reemplazar a un rey...”, p. 92. Tradução livre.
24
CARVALHO, A formação das almas..., p. 109.
25
“LA PROCLAMATION de la République au Brésil”. Le Monde Illustré, Paris, 18 jan. 1890, p. 38.
Tradução livre.
26
A cruz, a esfera armilar, a coroa, os ramos de café e tabaco.

152 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


deveriam ser mantidas as bandeiras vigentes, com o acréscimo da divisa política
‘Ordem e Progresso’”27. Seguindo de perto os princípios positivistas, a bandeira
ligava assim o passado do Brasil ao seu presente e ao seu futuro. De certo, houve
oposição ao novo símbolo por parte dos críticos à República “sociocrática”, mas
isso não transpareceu na Europa, onde outros periódicos continuaram divulgando
a nova bandeira. Por exemplo, o croqui de Le Monde Ilustré foi republicado por A
Illustração no dia 05 de fevereiro de 1890.
Já antes disso, porém, no dia 1 de fevereiro, um desenho mais simplificado do
pendão apareceu em L’Illustration (Fig. 5). Junto com a bandeira eram mostrados
10 novos selos republicanos, a grande maioria apresentando em comum, no seu
centro, a constelação do Cruzeiro do Sul circundada por vinte e uma estrelas
representando os Estados da federação brasileira. Eram também mostrados a frente
e o verso de duas moedas republicanas, uma das quais merece aqui destaque:
além do Cruzeiro do Sul circundado por estrelas, ela trazia a divisa positivista
“Ordem e Progresso” e o perfil de uma mulher portando o barrete frígio. Trata-se
de uma representação da própria República brasileira, a maneira da conhecida
“Marianne”, uma personificação feminina da República que se tornou muito
popular no Ocidente, sobretudo a partir das agitações de 1848 na França28.

Fig. 5 – Os novos selos da República do Brasil,


gravura publicadas em L’Illustration, Paris, 1º fev. 1890, p. 97.

27
CARVALHO, A formação das almas..., p. 112.
28
AGULHON, Maurice. Marianne au combat: l’imagerie et la symbolique républicaines de 1789 à
1880. Paris: Flammarion, 1979.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 153


Essa personificação da República como mulher, portando o barrete frígio,
era bem conhecida no Brasil antes mesmo da proclamação: ela foi empregada
especialmente pelos artistas da imprensa e continuou em uso até o início do século
XX, quando começou a ser caricaturada para ridicularizar o regime republicano29.
Mais raramente, tal personificação também foi usada por pintores e escultores, em
especial aqueles ligados ao positivismo, como o referido Decio Villares. De modo
geral, porém, as personificações ou alegorias da República brasileira parecem
ter sido relativamente raras nas imagens publicadas em periódicos europeus,
com exceção dos periódicos portugueses, onde elas usualmente comportavam
elementos de ironia e sátira, como veremos na parte final deste artigo.

Retratos de Republicanos e da Ex-Família Imperial

Nas semanas que se seguiram à proclamação, outra estratégia muito usada


pelos periódicos europeus para evocar a República brasileira foi publicar retratos
dos principais agentes envolvidos na instauração do novo regime – tanto daqueles
responsáveis pela proclamação, quanto daqueles que foram por ela afastados do
poder. De um lado, portanto, foram estampados diversos retratos de republicanos,
especialmente daqueles que viriam a constituir o governo provisório que durou
até fevereiro de 1891, quando uma nova constituição foi promulgada30; de outro
lado, foram igualmente publicados retratos da ex-família imperial brasileira, tendo
recebido destaque nesse conjunto os retratos de Dom Pedro II.
A iniciativa na publicação de retratos dos republicanos no continente europeu
partiu de L’Illustration. Na edição de 23 de novembro de 1889, o periódico parisiense
destacou em sua capa os retratos xilogravados do Marechal Deodoro - que era
designado como “promotor da revolução” - e de Benjamin Constant, que assumiu
o posto de Ministro da Guerra do governo provisório; no interior dessa mesma
edição, L’Illustration publicou ainda os retratos de Ruy Barbosa (1849-1923) e de
Quintino Bocayuva, respectivamente Ministro das Finanças e Ministro das Relações
Exteriores do governo provisório. Exatamente a mesma série de quatro retratos
de L’Illustration foi republicada em uma página interna de La Ilustración Española
y Americana em 30 de novembro (Fig. 6). Nesse mesmo dia, Le Monde Illustré
também publicou uma série de quatro retratos de republicanos brasileiros que só
diferia da acima referida por apresentar um retrato do Ministro da Justiça, Manoel
Ferraz de Campos Salles (1841-1913), ao invés do de Ruy Barbosa. Logo a seguir,
no dia 1º de dezembro, O Occidente publicou, em uma página inteira legendada
como “O Governo Provisório”, retratos do Marechal Deodoro, B. Constant, R.
Barbosa e Q. Bocayuva realizados a partir de clichês xilográficos próprios, embora
muito semelhantes aos de L’Illustration. No dia 5 de dezembro, Pontos nos ii, um
periódico dirigido pelo artista português Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905),
publicou em sua primeira página versões litografadas dos retratos do Marechal
Deodoro, Q. Bocayuva e B. Constant. Finalmente, também em sua edição de
05 de dezembro, A Illustração estampou em sua capa a mesma série de quatro

29
CARVALHO, A formação das almas..., p. 75-96.
30
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª. edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1995, p. 249-252.

154 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


retratos originalmente publicada por L’Illustration; como complemento, na seção
“As Nossas Gravuras,” era apresentada uma síntese do papel que cada um desses
agentes desempenhou no processo de instauração da República31.

Fig. 6 – A Revolução do Brasil, gravuras publicadas em


La Ilustración Española y Americana, Madri, 30 nov. 1889, p. 317.

31
“A REPÚBLICA dos Estados Unidos do Brasil”. A Illustração, Paris, 5 dez. 1889, p. 358-359.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 155


Nas semanas seguintes, à medida que novas informações chegavam do Brasil,
a galeria de retratos de membros do governo provisório foi sendo complementada.
Em 14 de dezembro, L’Illustration dedicou uma página inteira aos retratos de mais
quatro ministros: o já referido Aristides Lobo, que foi designado Ministro do Interior;
Demetrio Ribeiro (1853-1933), Ministro da Agricultura; Eduardo Wandenkolk
(1838-1902), Ministro da Marinha; e Campos Salles, Ministro da Justiça. Le Monde
Illustré e O Occidente de 21 de dezembro de 1889, bem como A Illustração de 05
de janeiro de 1890 seguiriam mais uma vez a iniciativa de L’Illustration, publicando
retratos desses mesmos ministros, mas incorrendo em pequenas variações como,
por exemplo, a utilização de clichês xilográficos alternativos. Por vezes, essas
variações eram ditadas pelo desejo de veicular imagens mais fieis ao retratados,
como no caso da publicação de um segundo e diverso retrato de Ruy Barbosa feita
tanto por Le Monde Illustré como por A Illustração. Como explicava um comentário
desse último periódico: “Repetimos o retrato do sr. dr. Ruy Barbosa, atendendo a
que, pelos documentos que recebemos agora do Brasil, o retrato que de S. Ex.
publicamos no número da ILLUSTRAÇÃO de 5 de dezembro findo, muito pouco
se parece, por ser tirado duma má fotografia”32.
Uma mesma fórmula foi seguida à risca em todos os retratos citados até aqui:
neles, os republicanos brasileiros são mostrados em meio-vulto, usualmente de
três quartos, exprimindo expressões de serenidade e/ ou determinação. A relativa
neutralidade de tais retratos era compatível, assim, com o tom pretensamente
jornalístico das matérias que eles ilustravam. Estamos muito distantes do tipo de
representação heroica usada, por exemplo, no famoso retrato equestre do Marechal
Deodoro, executado em c. 1892 pelo pintor Henrique Bernardelli (1858-1936)33 – a
representação por excelência da concepção “militar” de República, “transformad[a]
em versão oficial e sagrada do momento da proclamação”34. Podemos afirmar,
portanto, que nos periódicos ilustrados europeus, logo após a proclamação
da República, o gênero do retrato não desempenhou o mesmo papel ambíguo
que teve na configuração imagética dos novos estados sul-americanos durante a
primeira metade do século XIX, quando se buscou incorporar e identificar as efígies
dos novos governantes à própria emblemática republicana35.
Outro efeito da proclamação da República no Brasil que acima já adiantamos foi
o fato dela ter contribuído para um aumento da circulação na Europa de imagens
da ex-família imperial brasileira, especialmente do recém-deposto Dom Pedro II.
Aparentemente paradoxal, esse efeito estava em parte ligado às contingências
daquele momento: especialmente na primeira semana que se seguiu ao 15 de
novembro, a já referida carência de imagens a respeito da proclamação levou
os periódicos europeus a sacarem de seus arquivos outras que de algum modo
pudessem cumprir tal função. Imagens referentes ao regime deposto, sobretudo
retratos do ex-Imperador, eram as mais fáceis de se obter e as mais adequadas
para tal propósito. Todavia, a admiração e o respeito que Dom Pedro II inspirava

32
A Illustração, Paris, 5 jan. 1890, p. 4 e 6
33
Uma reprodução dessa obra se encontra disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/
ilustracao_republica_arquivos/figura16.jpg>. Acesso em: 01 jan. 2016.
34
CARVALHO, A formação das almas..., p. 36
35
MAJLUF, “De cómo reemplazar a un rey...”, p. 93.

156 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


na Europa também parecem ter desempenhado um papel nesse processo de
rememoração de sua efígie.
A disponibilidade de imagens do ex-Imperador fez com que retratos seus tenham
sido usados pelos periódicos europeus em conjunção com as primeiríssimas
notícias da proclamação da República. Provavelmente o exemplo mais precoce se
encontra na edição de 21 de novembro de A Comedia Portugueza, que estampou
em sua capa uma litografia de Dom Pedro II oriunda da Companhia Nacional
Editora de Portugal, legendada com os dizeres: “DOM PEDRO II IMPERADOR
DO BRASIL Destronado em 15 de novembro de 1889” (Fig. 7). No dia seguinte,
22 de novembro, La Ilustración Española y Americana também publicou em sua
capa um retrato xilogravado muito semelhante; o texto de abertura do periódico
madrilenho, assinado por José Fernandez Bremón, frisava a surpresa diante das
noticias sobre a proclamação que então chegavam à Europa, esboçando um perfil
da trajetória e do caráter de Dom Pedro II que funcionava como um verdadeiro
pendant para a sóbria imagem de capa36.

Fig. 7 – D. PEDRO II IMPERADOR DO BRAZIL/ Destronado em 15 de novembro de 1889,


gravura publicada em A Comedia Portugueza, Lisboa, 21 nov. 1889, p. 01.

36
BRÉMON, J. F. “Crónica general” La Ilustración Española y Americana, Madrid, 22 nov. 1889, p.
298.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 157


Embora dando primazia aos retratos dos republicanos acima discutidos,
também a edição de L’Illustration de 23 de novembro dedicou toda uma série de
gravuras à ex-família imperial. Ao lado de outro retrato de Dom Pedro II, havia
um da ex-Imperatriz Theresa Cristina de Bourbon e das Duas Sicílias (1822-1889)
e um do conde d’Eu, Gastão de Orléans (1842-1922), marido da princesa Isabel
de Bragança e Bourbon (1846-1921), filha do ex-Imperador. Esses retratos eram
acompanhados por gravuras de monumentos ligados à ex-família imperial: o
Palácio Imperial na cidade de Petrópolis, atual Museu Imperial, onde Dom Pedro II
recebeu a notícia de sua deposição; o Palácio Imperial da Quinta de Boa Vista, atual
Museu Nacional, no bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro; a Capela Imperial,
atual Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no centro do Rio; e a antiga Praça da
Constituição, atual Praça Tiradentes, também no centro do Rio, tendo ao centro a
estátua equestre de Dom Pedro I do Brasil (Dom Pedro IV de Portugal, 1798-1834),
realizada pelo escultor francês Louis Rochet (1815-1900).
Nas semanas finais de 1889, praticamente todas essas imagens relativas à ex-
família imperial foram retomadas, com ligeiras variações, por outros periódicos
europeus: por La Ilustración Española y Americana, em 30 de novembro (cfr., por
exemplo, a imagem da Praça da Constituição na parte inferior da Figura 6); por Le
Monde Illustré, em 30 de novembro e em 21 de dezembro; por O Occidente, em
11 de dezembro; e, finalmente, por A Illustração, em 20 de dezembro.
Os retratos de membros da ex-família imperial brasileira publicados em
periódicos europeus seguiam de perto a fórmula dos retratos dos líderes republicanos
comentados mais acima. Inclusive, por vezes monarquistas e republicanos eram
justapostos em uma mesma página, contando apenas com o conteúdo das legendas
para diferenciá-los aos olhos dos leitores europeus. O retrato de Dom Pedro II,
contudo, costumava se destacar, ocupando uma página inteira ou aparecendo em
um escala ligeiramente maior do que os outros. Os textos que se referiam a esses
retratos da ex-família imperial mantinham um tom neutro e informativo, sendo
difícil determinar, no estado atual das investigações, se e em que medida tais
imagens conotavam um desejo de restauração do regime abolido no Brasil.

Alegorias e Caricaturas

Se podemos afirmar que um tom francamente respeitoso predomina nos


retratos do ex-Imperador aos quais até aqui nos referimos, o mesmo não pode
se dito a respeito das imagens que compõe o último grupo de imagens que
gostaríamos de aqui comentar. Esse grupo é composto por alegorias e caricaturas
que, aparentemente ausentes dos periódicos franceses e espanhóis, podem ser
encontradas com certa frequência em algumas revistas ilustradas portuguesas.
A primeira das imagens desse gênero foi publicada já na acima citada edição
de A Comedia Portugueza de 21 de novembro de 1889. Trata-se de um desenho
litografado de autoria do artista português Julião Machado (1863-1930) que ocupa
duas páginas inteiras da revista e é intitulado “A Anunciação” (Fig. 8). Em primeiro
plano, vemos Dom Pedro II em trajes civis, de jaquetão e cartola, sustentando um
guarda-chuva e um cetro sob o seu braço esquerdo e segurando com as duas mãos
uma maleta onde se pode ler a palavra “sonetos”, em referência às pretensões

158 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


literárias do ex-monarca. Atrás deste, se ergue a figura da República portando
o barrete frígio, que já encontramos em uma das novas moedas republicanas;
essa República é, porém, alada, o que a vincula diretamente a Gabriel, o arcanjo
responsável pela Anunciação à Virgem Maria, episódio evocado pelo título do
desenho. O que a República anuncia a Dom Pedro II é a necessidade de que esse
deixe o seu trono, como se pode ler no diálogo abaixo do desenho: “– Sabe V.
Majestade Imperial que tem de me ceder o lugar? | – Já sei, Já sei.”37. A República
aponta para o vazio à direita da imagem, enquanto em baixo, à esquerda, podemos
ver algumas palmeiras que fazem referência às terras brasileiras que o ex-Imperador
foi forçado a abandonar. Apesar do tom irônico, Julião Machado evitou caricaturar
em demasia a figura de Dom Pedro II, em consonância com o espírito de “critica
moralisadora e fecunda, não menos cruel, por delicada”38 que presidia à Comedia
Portugueza. De fato, o decoroso retrato do ex-Imperador é muito semelhante ao da
capa d’A Comedia Portugueza que mais acima reproduzimos (Fig. 7).

Fig. 8 – A ANUNCIAÇÃO, desenho litografado de Julião Machado


publicado em A Comedia Portugueza, Lisboa, 21 nov. 1889, p. 01.

37
“A Anunciação”. A Comedia Portugueza, Lisboa, 21 nov. 1889, p. 05
38
LEANDRO, Sandra. “19 tragédias, 20 comédias na arte portuguesa do século XIX”. In: VALLE,
Arthur; DAZZI, Camila; PORTELLA, Isabel (Org.). Oitocentos - Tomo III : Intercâmbios culturais
entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: CEFET/RJ, 2014, p. 478.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 159


Todavia, o recurso à caricatura para representar de modo crítico tanto a
República brasileira quanto o ex-Imperador seria muito explorado por outros
artistas portugueses, especialmente por Raphael Bordallo Pinheiro e por seu filho,
Manoel Gustavo (1867-1920). Nas quatro edições de Pontos nos ii publicadas
entre 21 de novembro e 12 de dezembro de 1889, a dupla criou diversas imagens
isoladas e outras tantas narrativas gráficas ironizando a proclamação da República
e o exilio de Dom Pedro II. Aqui, nos centraremos em alguns desenhos litografados
publicados na edição de 05 de dezembro de Pontos nos ii.
O primeiro compreende a metade esquerda de uma ilustração de página dupla
intitulada “MANEIRA DE TIRADENTES SEM DOR” (Fig. 9): nesta que é certamente
uma de suas mais inusitadas representações, a proclamação da República
brasileira é figurada como uma extração de dentes – o título é, portanto, uma
referência ao conhecido mártir da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva
Xavier (1746-1792), alcunhado de “Tiradentes” por ser um dentista de profissão.
Assinado por Raphael Bordallo, o desenho tem um caráter híbrido, lançando mão
simultaneamente dos códigos da alegoria e da caricatura. O Brasil é figurado como
um índio, na tradição consolidada desde meados do século XIX pelo movimento
romântico brasileiro; trata-se, porém, de um índio que pouco tem de heroico e
cujas feições grotescas são sublinhadas pela sua escala gigantesca em comparação
a dos outros personagens que aparecem na cena. São estes o Marechal Deodoro e
Quintino Bocayuva, ambos portando barretes frígios, em referência à sua adesão ao
novo regime. Usando um instrumento onde se pode ler “EXÉRCITO” e um garfo,
Deodoro extrai da boca do índio um dente, que apresenta os traços caricaturados
do próprio Dom Pedro II: trata-se, na verdade, de um “Pedro Caju”, uma usual
caricatura do ex-Imperador que o comparava com uma castanha de caju por conta
de seu queixo proeminente.

Fig. 9 – Maneira de Tiradentes Sem Dor (detalhe), desenho litografado de Raphael Bordallo Pinheiro,
publicado em Pontos nos ii, Lisboa, 05 dez. 1889, p. 300-301.

160 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Raphael Bordallo muito provavelmente entrou em contato com o tipo caricatural
do “Pedro Caju” quando trabalhou no Rio de Janeiro, entre 1875 e 1879 e,
na edição de 05 de dezembro de Pontos nos ii, ele voltou a empregá-lo para
apresentar, em uma sequência de três pequenos desenhos, outra versão irônica
da proclamação (Fig. 10): nesta, uma castanha de caju portando uma coroa e
evocando Dom Pedro II se transforma no enorme barrete frígio que cobre a cabeça
do republicano Bocayuva. De certo, o “Paiz” referido no final dessa pequena
narrativa gráfica não é o Brasil, mas sim o jornal dirigido pelo líder do PRB: ao
afirmar que este fará “fortuna” em decorrência da inversão de valores políticos
provocada pela proclamação da República, Raphael Bordallo parece insinuar que,
tão ou mais do que a ideologia republicana, são os interesses financeiros que se
encontram por trás das ações de Bocayuva.

Fig. 10 – TRANSFORMAÇÃO NAS FÓRMULAS DO BRASIL E SEUS DESTINOS, desenhos


litogravados de Raphael Bordallo Pinheiro, publicados em Pontos nos ii, Lisboa, 05 dez. 1889, p. 302.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 161


Seria impossível, no espaço que aqui delimitamos, comentar todos os desenhos
de Raphael Bordallo e de seu filho que vieram a lume nas semanas seguintes à
proclamação da República brasileira e que merecem um estudo específico. Nesse
sentido, cremos que é importante frisar justamente o caráter não exaustivo do
presente trabalho, que apresenta, antes, os resultados de uma investigação em
andamento que pretendemos ampliar e que no futuro deverá incorporar imagens
publicadas em periódicos de outros países europeus, em particular da Inglaterra.
Todavia, à guisa de considerações finais, cremos que desde já é possível afirmar
a importância do estudo da circulação europeia de imagens sobre a República
brasileira e sua proclamação, que procuramos aqui empreender: por sua própria
heterogeneidade, esta imagens podem contribuir de modo significativo para que
ampliemos nossa percepção das diferentes visões a respeito do evento que então
competiam pelo seu significado político.



RESUMO ABSTRACT
Este artigo busca discutir imagens relacionadas This paper discusses some images related
à implantação do regime republicano no Brasil to the establisment of the Brazilian Republic
que foram publicados em revistas ilustradas that were published in European illustrated
europeias entre finais de 1889 e 1890. Serão magazines between late 1889 and 1890. We will
consideradas três revistas editadas em Lisboa consider three magazines published in Lisbon (A
(A Comedia Portugueza, O Occidente e Pontos Comedia Portugueza, O Occidente and Pontos
nos ii), uma em Madri (La Ilustración Española nos ii), one in Madrid (La Ilustración Española y
y Americana) e duas em Paris (Le Monde Americana) and two in Paris (Le Monde Illustré
Illustré e L’Illustration), além de A Illustração, um and L’Illustration), as well as A Illustração, a
periódico luso-brasileiro que também era editado Luso-Brazilian magazine that was also published
em Paris. Mais do que simples ilustrações de in Paris. More than mere illustrations of historical
acontecimentos históricos, estas imagens serão developments, these images will be considered
consideradas aqui como atos que ajudaram a here as acts that helped to shape the meaning
moldar o significado da realidade política da of the political reality of the Brazilian Republic.
República brasileira. Keywords: Brazilian Republic; Political
Palavras Chave: República Brasileira; Iconography; Visual Culture; Late 19th Century.
Iconografia Política; Cultura Visual; Final do
século XIX.

Artigo recebido em 28 jan. 2016.


Aprovado em 05 abr. 2016.

162 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


VIAGENS NO TEMPO:
MEMÓRIAS DO ESCRIVÃO JOSÉ JOAQUIM DO
CARMO GAMA SOBRE UMA ESTAÇÃO DE CURA
Marina Haizenreder Ertzogue1

Em “O prazer do historiador”, Alain Corbin conta a experiência de ir aos arquivos


e proceder ao acaso. Nos arquivos do departamento de Orne, em Alençon, Corbin
buscou registros de estado civil, escolhendo aleatoriamente o pequeno município
de Origny-le-Butin. O arquivista pergunta: “Sobre o que o senhor trabalha?” –
“Não sei, mas vou lhe dizer daqui a quinze minutos”2. O historiador examinou as
tabelas decenais e selecionou três nomes.
Corbin decide pesquisar um homem que viveu 76 anos, Louis-François Pinagot.
No início da investigação ele sabia apenas que Pinagot tinha atravessado o século.
“Pensei: – é ele –. Não se toma tal decisão sem emoção: Agora vou trabalhar –
quanto tempo, eu não sei, sem dúvida vários meses –, sobre esse senhor que estava
ali, completamente adormecido”3. O historiador não conseguia deixar de pensar.
“Se há uma outra vida e eu a encontrar, será surpreendente. Procurei, portanto,
tudo que eu poderia saber”4.
No dia 2 de maio de 1995, Louis-François Pinagot, um modesto fabricante de
tamancos, foi “ressuscitado” por Corbin5. Um homem desconhecido tornava-se o
protagonista do livro Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot, sur les traces
d’un inconnu (1798-1876)6.
No final do livro, o autor pede perdão a Pinagot por tê-
lo ressuscitado, ainda que de modo evanescente. Talvez
Pinagot pudesse perdoá-lo. Principalmente porque Corbin
não lutou contra os contornos imprecisos da identidade
daquele antigo fabricante de tamancos. Desse modo,
evitou magistralmente o anacronismo de conceder a um
indivíduo do passado uma visibilidade que corresponde
apenas aos nossos contemporâneos sentidos.7
Meu encontro com o escrivão José Joaquim do Carmo Gama também foi
por acaso. Pesquisando na imprensa sobre a exploração de recursos hídricos por

1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de História e
do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins.
Bolsista produtividade do CNPq - E-Mail: <marina@uft.edu.br>.
2
VIDAL, Laurent. “Alain Corbin: o prazer do historiador”. Revista Brasileira de História, São Paulo,
ANPUH, vol. 25, n. 49, jan. 2005, p. 23.
3
VIDAL, “Alain Corbin...”, p. 23.
4
VIDAL, “Alain Corbin...”, p. 23.
5
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. “Uma história quase impossível: Alain Corbin”. Projeto História,
São Paulo, PUC-SP, n. 19, nov. 1999, p. 207.
6
CORBIN, Alain. Le monde retrouve de Louis-François Pinagotm, sur les traces d’un inconnu, 1798-
1876. Paris: Flammarion, 1998.
7
SANT’ANNA, “Uma história quase...”, p. 208.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 163


empreendimentos balneários com capital privado, no fim do século XIX, encontrei
uma narrativa intitulada “Poços de Caldas: impressões de viagem”, datada de
1894. O texto publicado no jornal mineiro ocupava páginas inteiras da coluna
“Colaboração”. As fontes tipográficas estavam tão juntas, quase sem espaços entre
as linhas, que seria possível conjecturar a intenção do jornal em desincumbir-se
rapidamente da publicação.
A viagem de José Joaquim do Carmo Gama
“Poços de Caldas: impressões de viagem” cativa o leitor pela singeleza do
relato, uma escrita para o estudo das sensibilidades. O escrivão, parafraseando
Alain Corbin, estava “completamente adormecido” nas páginas amareladas do
jornal Minas Gerais8. Por coincidência, o escrivão José Joaquim do Carmo Gama
também tinha atravessado o século e viveu 77 anos.
A folha mineira publicou “Poços de Caldas: impressões de viagem” em forma
de folhetim, em espaço reservado para contribuição dos leitores, todavia, sem
consagrar uma única linha ao autor. Referências sobre Carmo Gama no jornal
Minas Gerais são apenas duas: uma nota em “despachos oficiais” da comarca de
Rio Novo (MG), cujo nome consta como escrivão do 1º Cartório de Ofícios9, outra
na secção “Arquivo Público Mineiro”, como correspondente e por doação de livros
para o arquivo.
Este artigo se insere na história das sensibilidades por tentar compreender a
solidão através do pequeno perfil do cidadão comum: um escrivão em excursão
por uma estação de cura. Em agosto de 1894, Carmo Gama deixou a família em
Rio Novo e seguiu viagem com destino a Poços de Caldas para tratar da bronquite
e do reumatismo, “agravados pela natureza de um trabalho profissional, causas de
muitos sofrimentos que alcançam ao pobre funcionário público, ligado à baca do
trabalho”10. Era também uma viagem interior de Carmo Gama que se reconhecia
como um escritor medíocre sentindo, às vezes, tédio pela vida pacata.
“A história das sensibilidades como câmara subjetiva contra a cegueira da
história”11. A citação de Fréderique Langue revela que o estudo das sensibilidades
está a serviço do historiador na captura de vivências sensíveis do passado. Para
Corbin é uma “antropologia dos sentidos” que sugere uma leitura das “paisagens
sensíveis”12. A história das sensibilidades considera significativa a experiência do
conjunto de atores sociais e as visões de mundo, ou seja, a cultura sensível.
A viagem de Carmo Gama está inserida no “tempo do acontecimento”,
segundo Fréderique Langue, o estudo das sensibilidades valoriza a vivência de
forma individual e a experiência emocional, tal como os desencadeamentos das

8
Minas Gerais, “órgão oficial dos Poderes do Estado”, Ouro Preto, periódico fundado em 1892.
9
Minas Gerais. Ouro Preto, 16 set. 1894, p. 4.
10
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (I)”. Minas Gerais, Ouro
Preto, 05 dez. 1894, p. 02.
11
LANGUE, Fréderique. “O sussurro do tempo: ensaios sobre uma historia cruzada das sensibilidades:
Brasil-França”. In: ERTZOGUE, Marina & PARENTE, Temis (orgs.). Historia e sensibilidade.
Brasília: Paralelo 15, 2006, p. 25-26.
12
Ver CORBIN, Alain. Les cloches de la terre: paysages sonores et culture sensible dans les campagnes
au XIXe siècle. Paris: Albin Michel, 1994.

164 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


relações subjacentes em escala singular e coletiva13.
Carmo Gama não escrevia como profissional: “Só procuro dar, neste mal
alinhavado esboço, uma pálida ideia de minhas impressões”14. A leitura de “Poços
de Caldas: impressões de viagens” é uma volta no tempo das estações de cura.
Em agosto de 1894, o escrivão começou sua viagem. Saindo da comarca de Rio
Novo, ele chegou à estação da Luz, em São Paulo. Sem um mentor que ensinasse o
trajeto, Carmo Gama trazia o mapa da estrada de ferro e o Almanaque da Gazeta.
Ele consultava o mapa em todas as estações de embarque e desembarque da
locomotiva.
Na estação do Cruzeiro “fizemos baldeação, deixando os carros de bitola larga
para –, quase á maneira de sardinhas em latas ou bovinos que Minas exporta –,
amassarmo-nos, nós que daqui seguimos [no trem] de bitola estreita”15. Por volta
das dez horas da noite, ele desembarcou em São Paulo e ficou hospedado no hotel
Federal, “cujo preço conheci, no dia seguinte, ser bastante salgado, mas como a
regra de que viaja é pagar e não bufar...”16.
Sabendo pelo mapa que tinha que passar por Campinas, antes da cinco da
manhã Carmo Gama estava na estação da Luz. Enquanto aguardava a partida do
trem, anotou no diário: “Pus-me a examinar aquelas coisas que me caiam a vista,
como os quadros com as fotografias dos réus de polícia, gatunos, batedores de
carteiras e vagabundos”17. Fotografias semelhantes também estavam expostas nas
estações do Norte e de Campinas.
Na parada para o almoço, o escrivão achou curioso o modo como os empregados
do restaurante anunciavam o tempo que faltava para o trem partir. Rodeando a
mesa, “ao mesmo tempo em que servem a freguesia, vão repetindo, em voz alta:
– faltam 15 minutos! faltam 10 minutos! e, no tempo oportuno, vão colhendo o
custo da refeição”18.
Anoitecia quando ele chegou a Poços de Caldas. Desembarcou do trem e seguiu
pela vila até a praça principal onde ficava o edifício da Empresa Balneária Poços
de Caldas.
Carmo Gama hospedou-se no Hotel Globo. Ficou impressionado com o luxo
da sala de recepção. Toda a mobília era de cor preta e feita de madeira nobre.
Destacava-se, entre os móveis da sala, um imenso piano de calda vindo da Europa.
Carmo Gama foi para a sala de leitura e observou –, através de seus óculos de lentes
grossas –, os hóspedes que esperavam o correio e os jornais do Rio, São Paulo
e Minas. A cena dos leitores silenciosos, reunidos em volta da mesa, trouxe-lhe
recordações dos tempos de estudante, quando “debruçados sobre os compêndios

13
LANGUE, “O sussurro do tempo...”, p. 26.
14
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (VII)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 07 dez. 1894, p. 03.
15
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (II)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 05 dez. 1894, p. 02.
16
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (II)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 05 dez. 1894, p. 02.
17
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (II)”, p. 02.
18
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (IV)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 05 dez. 1894, p. 02.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 165


estudávamos sobre os olhos vigilantes do inspetor, as lições para a aula seguinte”19.
Consulta Médica na Estação de Cura
Agosto, mês de baixa temporada em Poços de Caldas, a “estação do baú”, isto
é, uma alusão aos hóspedes identificados pela “modesta e arcaica da bagagem”20.
Por esse motivo, Carmo Gama não teve dificuldades em conseguir uma consulta
com Pedro Sanches de Lemos, médico em Poços de Caldas desde 1873, estudioso
das propriedades terapêuticas das fontes termais. Contando apenas com seu salário
de escrivão, não se hospedou no hotel da Empresa Balneária Poços de Caldas e
por isso não usufruiu do acesso privativo ao balneário.
Para os hóspedes de outros hotéis da região não havia alternativas, a não ser
submeterem-se ao monopólio da Empresa Balneária. Os banhos eram cobrados
por hora, incluindo um quarto privativo para o suadouro. Havia dois tipos de
banhos termais: banhos da 1º classe, em banheira de cimento, e banhos de 2º
classe, em banheira de madeira de cedro.
Os banhos eram prescritos por médicos. O escrivão relatou detalhes do
consultório de Pedro Sanches, observou a sala dividida por um biombo
artisticamente decorado, onde ficava o clássico leito médico dos exames. A mesa
de trabalho “ornada de livros de constate uso” e alguns pequenos instrumentos
cirúrgicos, além do “elegante termômetro de parede fronteira, tem, junto de si,
uma respeitável e macia cadeira de alto espaldar.” Ao lado da mesa de trabalho,
ocupando quase todo o consultório, “ergue-se um alto e largo armário, com portas
de vidro, obra prima da marcenaria nacional. É uma estante de livros, publicações
em várias línguas, novíssimos, e mostrando, não obstante que são manuseados”21.
Munido da receita, toalha e cartão, Carmo Gama foi ao balneário que “em
minha imaginação tinha todos os encantos”22.
Poços de Caldas: a Vila dos Milagres
Antes de continuar o relato do escrivão, vamos conhecer um pouco sobre a
história do balneário de Poços de Caldas que povoou o imaginário de Carmo
Gama. Tudo começou com a descoberta de fontes de águas sulfurosas na região do
sul de Minas. No século XVIII, os exploradores portugueses buscavam bebedouros
para os animais quando encontraram fontes de águas quentes. Em pouco tempo, os
relatos de curas milagrosas circulavam na capitania de Minas Gerais e em Portugal.
Um registro das propriedades medicinais das “águas virtuosas” de Caldas
está na carta de João Almeida Fonseca, comandante do distrito de Sapucaí, ao
governador da capitania de Minas Gerais, em 15 de junho de 1786.
O documento descreve a descoberta de uma fonte termal em Rio Verde, “um
olho d’água, Caldas legítima”, tão quente que “não se podia aturar dentro dela [a

19
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (VI)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 05 dez. 1894, p. 02.
20
CANDIDO, Antônio. “Cartas de um mundo perdido”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 08 abr.
1989, p. 77.
21
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (XI)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 07 dez. 1894, p. 04.
22
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XI)”, p. 02.

166 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


fonte] causa suores gravíssimos, tudo o que são feridas gálicas e gálicos, tudo sara
com brevidade; sarou um, quase leproso com empolas grandes por todo o corpo”23.
Em 06 de setembro de 1786, o governador da capitania de Minas Gerais, Luiz
Cunha de Menezes comunica ao ministro da Marinha portuguesa, Martinho de
Melo, a descoberta de uma fonte, segundo relatos do comandante de Santana de
Sapucaí.
[...] é o de que me dá conta o comandante do Distrito de
Sapucaí, da comarca do Rio das Mortes, Campanha do
Rio Verde, na distância de 60 léguas desta capital de haver
aparecido na distância de 12 léguas daquele seu distrito
umas águas termais tão virtuosas, e úteis, que têm curado
entre várias moléstias a do grande mal de lepra, que tanto
persegue este continente americano.24
A notícia espalhou-se por Minas Gerais e Rio de Janeiro. De várias localidades,
centenas de enfermos chegavam a Poços de Caldas em busca de tratamento para
reumatismos, lepra, chagas, bronquites e sífilis. Uma crônica de Olavo Bilac relata
o início daquela peregrinação.
Os sofredores, que vinham pedir alívio às águas
abençoadas, traziam barracas, que armavam à roda
dos lameiros sulfurosos e levantava-se um rancho para
os misteres de cozinha. Faziam-se preces para que não
caíssem chuvas inoportunas e quando o enxofre terminava
a sua obra milagrosa, o romeiro, que se via curado enrolava
a barraca, e, dando um último olhar de gratidão e saudade
à lama rejuvenescedora.25
Entre as fontes termais de Poços de Caldas, a fonte Pedro Botelho, a mais quente
(45º) e com maior quantidade de enxofre, era preferida para banhos. A expressão
“Pedro Botelho” tinha sua origem na tradição popular portuguesa: “No inferno
há uma enorme caldeira onde as almas são deitadas em azeite a ferver e que é
chamada de Pero ou Pedro Botelho”26.
Na carta endereçada ao Ministro da Marinha portuguesa (1876), o governador
Luiz Cunha de Menezes comentou uma superstição popular em relação à fonte
Pedro Botelho. Circulava uma “ignorante notícia,” própria de um povo “pouco
iluminado,” que naquele sítio “andava o diabo por se ter visto aparecer, por várias
vezes, lanças de fogos tão fortes e tão enxofradas, que haviam chegado a queimar
os matos de uma grande parte da sua circunferência”27.

23
Apud LEMOS, Pedro Sanches de. “As águas termais de Poços de Caldas”. Revista do Arquivo
Mineiro, Belo Horizonte, vol. 8, fasc. 3, jul./dez. 1903, p. 756.
24
Apud LEMOS, “As águas termais...”, p. 756.
25
BILAC, Olavo. “Nas Caldas (1901)”. In: __________. Ironia e Piedade. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1916, p. 246.
26
VASCONCELOS, José Leite. Tradições populares de Portugal. Porto: Livraria Portuense de Clavel,
1882, p. 316.
27
Apud LEMOS, “As águas termais...”, p. 756.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 167


Os enfermos, por sua vez, deram testemunhos de cura: “Acabo de chegar da
viagem dos poços das Caldas e graças a Deus, lá deixei enterrado no fundo da
caldeira de Pedro Botelho o reumatismo que me afligiu durante o último inverno”28.
Sobre superstição popular e a fonte Pedro Botelho dizia um retrospecto histórico
de Poços de Caldas (1886) –, por ocasião da visita de D Pedro II –, publicado
n’O País: “É crença popular que a Caldeira de Pedro Botelho é a mais quente do
inferno. Desta superstição originou-se o nome da primeira fonte”29.
Em 1872, Joaquim Floriano de Godoy, governador de Minas Gerais,
encomendou um estudo sobre as fontes termais. O doutor Luiz Pereira Barreto
apresentou um relatório denunciando a falta de estrutura em Caldas para receber
os enfermos: “É horroroso o desapontamento dos doentes que chegam. [...]”
Senhoras de famílias habituadas “à elegância, partindo das províncias mais
remotas do império, arrastadas pela fama das curas miraculosa” eram alojadas em
“espeluncas”30.
Na época não existiam benfeitorias, “ao menos que se considere como obra
d’arte, um tosco e mal amanhado caixão de pinho, medindo 8 palmos de largura
e ½ de profundidade” –, para banhos na fonte –, “vulgarmente conhecida sob o
nome de caldeira de Pedro Botelho, não obstante a ofensa do decoro e da decência
mais elementar”31.
Empresa Balneária de Poços de Caldas: Privatização das Águas
Em 1886, as fontes termais eram exploradas pela Empresa Balneária Poços de
Caldas através do contrato de arrendamento, celebrado com o governo de Minas, o
contrato garantia o monopólio das águas termais. O empreendimento era formado
por capital privado. Nesse ano foi criado um regulamento para funcionamento do
balneário. O balneário ficava aberto das seis da manhã às seis da tarde.
Os banhistas tinham direito de exigir o banho na temperatura indicada pelo
médico e o ingresso para as banheiras era pago no escritório da Empresa, onde era
adquirido o cartão de acesso. O preço era cobrado de acordo com a categoria de
banho: banheiras de 1ª ou 2ª classe. Cada banho era cobrado por hora.
Era proibido escrever palavras obscenas nas paredes dos quartos de banhos.
Não era permitido 2 pessoas na banheira, a não ser quando o enfermo estivesse
em estado mórbido. Acesso privativo ao balneário: “Só aos banhistas hospedados
no Hotel da Empresa é facultado o ingresso no estabelecimento balneário pelo
passadiço”32, galaria coberta que ligava o hotel ao balneário.
Desde a criação da Empresa Balneária, a população de Caldas e hotéis
periféricos fizeram queixas ao governo contra a privatização das fontes. Os donos
de hotéis reclamavam dos privilégios da canalização das águas e do ingresso no
balneário, por área coberta, restrito apenas aos hóspedes do hotel da Empresa.

28
O Noticiador de Minas, Ouro Preto, 18 set. 1872, p. 02.
29
O País, Rio de Janeiro, 27 out. 1886, p. 02.
30
BARRETO, Luís Ferreira. “Estudos sobre as águas termais de Caldas na Província de Minas
Gerais feitos pelo Doutor Luiz Pereira Barreto por ordem do Presidente Joaquim Floriano Godoy”.
Noticiador de Minas, Ouro Preto, 18 set. 1872, p. 02.
31
BARRETO, “Estudos sobre...”, p. 02.
32
A União, Ouro Preto, 21 set. 1886, p. 03.

168 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Em 1892, a discussão da privatização das águas pela Empresa Balneária foi
retomada.
A Empresa Balneária detinha o monopólio da exploração das fontes, sem
fiscalização do governo, “ocupava-se exclusivamente da parte mercantil, deixando
a parte terapêutica na mais completa incúria”. A denúncia foi feita pelo doutor
Raimundo Duarte, em 16 de agosto de 1892, n’O País.
A mercantilização do uso das águas termais e o descaso com a saúde pública:
As banheiras de 1ª classe são construídas de alvenaria de
tijolos, capeadas de cimento, e tão impróprias ao fim a que
se destina que a maioria dos banhistas ordinariamente
as abandona depois dos primeiros banhos, preferindo
as de 2ª classe, que, construídas de madeira de cedro,
conservam melhor as propriedades térmicas das águas.
Deste fato resulta uma aglomeração constante de
frequentadores destas, com grave prejuízo do serviço de
asseio indispensável para que se evite a transmissibilidade
de males que pode transforma este agente terapêutico em
pernicioso foco de infecção.33
As banheiras administrada pela Empresa Balneária ficavam em quartos de
banhos privativos. Os quartos de banho, por sua vez, ficavam no barracão, divididos
por três corredores. As galerias de banheiras: duas de 1ª classe (26 banheiras)
e uma de 2ª classe (32 banheiras). Outra reclamação era a perda da qualidade
terapêutica das termas, por causa da água encanada que era transferida para as
banheiras.
O Banho de Carmo Gama
O quarto de banho era um compartimento quadrangular com uma banheira,
além disso, a cama para o suadouro, uma cômoda e cabides para pendurar roupas.
Carmo Gama estava ansioso para experimentar o banho termal: “religiosamente
penetrei no compartimento a que me guiara um encarregado, munido de um
termômetro, media a temperatura.” Preparando-se para desfrutar o banho:
“Fechando-me naquele recinto, coloquei meu relógio em frente e, preparado,
penetrei naquela santa piscina, que assemelha-se à forma de açúcar em nossos
engenhos”34.
Início do ritual do banho: “Cautelosamente, esperançoso e crente, comecei a
gozar do primeiro banho, imerso naquele Jordão, que ia lavar-me das máculas”35.
Comparou o banho com o ritual cristão de purificação.
As banheiras tinham duas torneiras: uma com água canalizada da fonte Pedro
Botelho e outra com água canalizada da fonte dos Macacos, mais fria, usada para
graduar a temperatura do banho. Carmo Gama banhou-se numa banheira de 2ª

33
O País, Rio de Janeiro, 25 ago. 1892, p. 02.
34
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (XII)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 07 dez. 1894, p. 02.
35
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XII)”, p. 02.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 169


classe, feita em madeira de cedro, preferida por manter a água quente por mais
tempo. Na banheira tinha um suporte de madeira para apoio da cabeça:
Serve de travesseiro, de modo que, todo o corpo imerso
fica o banhista, deitado de costas, só a cabeça fica fora
d’água, e nessa posição, não se esquecendo do relógio ou
ampulheta, que coloca de frente, vai contando os frisos do
telhado de zinco e filosofando sobre a vida, até resolvendo
problemas matemáticos mentalmente.36
Havia fila de espera para o banho. Os banhistas levavam toalhas, mantas e
cobertores (para o suadouro) e o cartão de ingresso. Quem ultrapassasse o tempo
do banho pagava em dobro. “Agradabilíssimo, entretanto, de olhos fixos no relógio,
com medo de ultrapassar o tempo determinado, enlevado naquela acariciadora
sensação”37.
Depois de 15 minutos, Carmo Gama saiu do quarto “bem encapuçado” e foi
para o corredor, antes de se expor ao ar livre. Além do banho, recomendava o uso
diário da água termal. Antes do café da manhã, “indispensável, por hábito, a todos
nós mineiros, mandar buscar água termal em um jarro e com ela lavar o rosto,
como na obrigação de usar o elemento mineral em todas as minhas ablações”38.
O uso de água sulfurosa para a higiene bucal, apesar do gosto, Carmo Gama
considerava superior a todos os dentifrícios.
Desde quando foram descobertas as propriedades curativas das águas minerais
de Caldas, registradas em correspondências de governadores, acreditava-se no
poder das fontes para rejuvenescimento. Um antigo almanaque literário de São
Paulo (1875) publicou um relato, atribuído a um médico, que dizia: “São águas
santas! (...) “fontes de mocidade, em que se vai rejuvenescer, em que se sente
voltar a saúde e robustez”39.
Os mitos da fonte da Juventa, em diferentes períodos das civilizações,
alimentaram esperanças de cura e juventude. A cura pela água, em seu princípio
imaginário, para Bachelard isto pode ser percebido a partir do duplo ponto de
vista: imaginação material e imaginação dinâmica. O homem projeta o seu
desejo de cura e sonha com a substância compassiva. É “surpreendente a grande
quantidade de trabalhos médicos, que o século XVIII dedicou às águas minerais
e às águas térmicas”40. Para Bachelard esses trabalhos pré-científicos pertencem
mais à psicologia que à química. “Inserem uma psicologia do doente e do médico
na substância das águas”41. Em relação ao imaginário dinâmico, Bachelard afirma
que as águas marcaram a mocidade do nosso espírito, isto é, “São necessariamente
uma reserva de juventude.” E por essa razão estão conectadas às nossas lembranças

36
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (XVI)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 08 dez. 1894, p. 02.
37
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XII)”, p. 02.
38
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XV)”, p. 02.
39
LISBOA, José & MARQUES, Abílio. Almanaque Literário Paulista para 1876. São Paulo: Tipografia
Província de São Paulo, 1875, p. 109.
40
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de
Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 53.
41
BACHELARD, A água e os sonhos, p. 53.

170 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


íntimas.
Quando Carmo Gama esteve no balneário da Empresa, o estabelecimento não
tinha passado por reformas e não havia luz elétrica na vila, o escrivão, contudo,
confessou que parecia estar em um sonho. O prédio tinha três entradas: uma
entrada principal e duas laterais. A entrada para o hotel, por um corredor, com
acesso privativo ao balneário, “passadiço” coberto. Carmo Gama lastimou não
poder andar pela galeria envidraçada, por onde passavam os hóspedes, em leve
toilette pela manhã, sem temer a chuva, o sereno e a lama.
Em frente do prédio da Empresa havia uma vasta sala, em forma de vestíbulo,
com bancos onde os banhistas aguardavam pela vez do banho. As paredes interiores
eram de tijolos, em forma de biombos, com amplas aberturas que deixavam passar
a luz.
Uma última anotação sobre os banhos: as “natas de canjicas” que repugnavam
os veranistas: “Os pequenos corpos que se veem em ebulição nas banheiras cheias
–, chamados natas de canjicas –, por causa da semelhança e untuosidade ao tato
que se sente ao passar-se a mão pelo corpo, quando imerso”42. Tudo isso, porém,
desaparecia em poucos minutos e “o banhista se certifica de que as águas são as
mais límpidas que se pode desejar”43.
Em memórias do escrivão Carmo Gama, a sensibilidade na percepção dos sons,
aparece como algo próximo daquilo que Alain Corbin classificou da “antropologia
dos sentidos”, cujos sons estão presentes nas impressões de viagem.
Diariamente, ouvindo o grande sino do hotel do Globo,
cujo som, como se saísse do alto de um campanário,
percorre toda a povoação e adjacências, convidando os
hóspedes para as refeições e café, nas horas inalteráveis
do regulamento afixado na parede dos quartos, ouvindo
repetidos passos pelos corredores; vendo durante as
refeições, cheia aquela grande mesa, em redor da qual
formigam lépidos e serviçais criados; observando aquele
respeitoso silêncio que se fazia, quer na sala de leitura,
após a chegada do correio, quer em todo hotel ás 10 horas
da noite.44
Na parte final da narrativa, o escrivão deixa transparecer sua solidão. Todos os
dias passados em Poços de Caldas, José do Joaquim Carmo Gama se representa
no diário de viagem como observador solitário, um narrador que se distrai com
cenas de sociabilidade na sala de leitura do hotel, lembrando o passado, ou seja,
suas memórias de estudante no seminário de Mariana.
A cena predileta do escrivão era a movimentação dos hóspedes no hotel Globo.
Diferente de outros narradores de Poços de Caldas, que louvaram a natureza e
descreviam morro e vales, Carmo Gama tinha preferência por pessoas, semelhante
ao narrador de Edgar Allan Poe, no conto "O homem da multidão” (1840).

42
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XV)”, p. 02.
43
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XV)”, p. 02.
44
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XV)”, p. 02.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 171


Presenciando a reunião nos salões, alegres todos e ansiosos,
como colegiais em horas de recreios, ou ainda à tardinha,
após o jantar, vendo os diversos grupos a passeio pelo
largo ou pela “gare” da estação, que, nessa hora tomou
ar festivo – tinha saudades dos bons tempos colegiais, dos
bons tempos idos quando, vergando a botina; o cérebro
laborando castelos flutuantes, a alma em constante riso
de esperanças. Estudávamos no Seminário de Mariana.
Recordar-se, consolar-se, – disse o mestre, A Herculano.45
As anotações da viagem de Carmo Gama não informam sobre a vida do
autor, uma das poucas referências pessoais da trajetória do escrivão são algumas
lembranças do seminário de Mariana.
Entre a Cura e o Prazer
Em agosto de 1894, quando Carmo Gama foi procurar tratamento em Poços
de Caldas, a estação de cura era bem diferente daquilo que ele imaginava. O
balneário era animado e agradável. O escrivão relata a rotina dos banhistas:
Banhos, pela manhã ou antes do jantar, passeios pelos
morros circunjacentes, caçadas, quando encontravam
cães, animais selados, espingarda e companheiros;
passeios à estação, à chegada do trem, à tarde ou jogos
de salão, que terminavam invariavelmente às 10 da noite,
em observância ao regulamento, quer de azar, nas casas
próprias, onde a roleta fascina. 46
Os narradores de Poços de Caldas, no século XIX, são unânimes em dizer que
a estância de cura era um lugar de recreio para veranistas em férias. Cita-se, como
exemplos, Coelho Netto, autor de “Vida Nómade” (1896), crônicas publicadas na
Gazeta de Notícias; Arthur Azevedo, “A Palestra” d’O País (1889) e Olavo Bilac em
“Crônicas” da Gazeta de Notícias (1901-1902) e também temos um folhetim de
João do Rio: “Correspondências de uma Estação de Cura” (1917).
Os cronistas relacionados passavam temporadas no balneário de Poços de
Caldas, hóspedes do Hotel da Empresa, publicavam na imprensa sobre os encantos
do lugar.
A presença de escritores e artistas no hotel da Empresa aumentava o fluxo de
veranistas na cidade. O médico Pedro Sanches, um dos sócios do empreendimento,
reconhecia isso de fato. O balneário de Caldas lotava quando Olavo Bilac e Coelho
Neto estavam de férias em Caldas.
De Poços de Caldas, 18 de março de 1901, o correspondente d’O Estado de
São Paulo descreve a movimentação de veranistas. À tarde, no salão de chá do
hotel da Empresa, o poeta Olavo Bilac e o romancista Coelho Neto participaram
de um sarau que foi “oferecido pelo senhor Henrique Leite Ribeiro às distintas

45
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XV)”, p. 02.
46
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (VI)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 05 dez. 1894, p. 03.

172 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


famílias que lá se achavam aboletadas”47. Depois da publicação da nota social pelo
jornal paulista, o doutor Pedro Sanches, sócio da Empresa, comentou:
É bom lembrar que quando Coelho Neto e Olavo Bilac
estiveram em Poços de Caldas, bastou que O Estado
de São Paulo desse uma notícia da movimentação que
eles imprimiram à estação de então, para que famílias
e famílias afluíssem a esta terra, de São Paulo e outros
pontos daquele Estado.48
Em agradecimento pela calorosa recepção, Olavo Bilac publicou “Nas Caldas”
(1901). Na crônica dominical da Gazeta de Notícias, o poeta descreve a natureza
paradisíaca das montanhas e faz um retrospecto histórico do balneário. Para Coelho
Neto a temporada rendeu um novo romance: “Água de Juventa” (1904). O título
é uma referência à fonte da juventude. Juventa, na mitologia grega, foi uma ninfa
transformada em fonte. No romance de Coelho Neto, Pedro Sanches de Lemos,
sócio da Empresa, é o doutor Lino.
Grupos de banhistas animavam o imenso largo, raso e
lodoso, cortado de vales, cavado em caldeirões traiçoeiros,
que o Dr. Lino, médico das águas, pensava em alindar com
o auxilio patriótico do governo de Minas, transformando-o
em parque, á inglesa, com extensas e aparadas relvas,
árvores de sombra, pontes rústicas lançadas sobre os
ribeirões e, ao centro, o Cassino: um palácio de arquitetura
moderna, com salões de concerto, de baile, de jogo,
restaurantes, bibliotecas.49
A transformação da “estação de cura” em “parque inglês” não era ficção. Em
julho de 1902, Pedro Sanches realiza uma viagem de estudos para conhecer o
funcionamento das estâncias balneares da Europa, com interesse especial pelas
estações termais francesas. Pedro Sanches pretendia transformar Poços de Caldas
em uma estação similar às termas europeias:
Em Poços de Caldas o banhista não encontra distração
de espécie alguma, e por isso é necessário que aqui se
construa parques, alpendrada, canteiros de flores e de relva,
cascatas, pequeno lagos, repuxos de águas. É necessário
que se edifique no parque um quiosque, onde se toque
música, pelo menos três vezes por dia, passeando então
os banhistas pelas ruas do parque e pelo alpendrado, tanto
nas horas das operações balneárias com depois do jantar.
Urge que se faça em Poços de Caldas um Cassino com
teatro, salas de concerto, de conversação, jogos e etc...50

47
O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 mar. 1901, p. 01.
48
LEMOS, “As águas termais...”, p. 798.
49
COELHO NETO, Henrique Maximiano. Água de Juventa. Porto: Livraria Chardon, 1904, p. 15.
50
LEMOS, “As águas termais...”, p. 798.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 173


Foi Olavo Bilac, em 1901, quem consagrou a expressão “fonte da Juventa” para
Poços de Caldas. De forma poética, Bilac descreve veranistas e enfermos com suas
moléstias, em busca de cura no balneário de Caldas.
E, enquanto o sol invade o horizonte, e chiam ao longe
os carros de bois, a vasta praça que os hotéis circundam é
cruzada de instante a instante pelos devotos de Sulfur. Aí
vêm os artríticos, – vítimas da boa-chira, convivas assíduos
dos banquetes da vida, os náufragos das tormentas
do pensamento, estragados pelo abuso das delicias da
existência ou pelas torturas do labor intelectual; aí vêm
os dispépticos, de face pálida e os obesos, de banhas
oscilantes, aí vê os cloróticos e os anêmicos, que a tísica
faminta vive sitiando e espreitando; e aí vêm aqueles que
Vênus seduziu e traiu aqueles que não desconfiaram dos
sorrisos de Eros... Vindes, ó combalidos! Vinde que a fonte
de Juventa voz espera!51
Retomando as impressões de viagem do escrivão Carmo Gama, vejamos o que
ele disse sobre os jogos em Poços de Caldas (1894). Visitou casas de jogos com
roleta e baralho, apenas como observador – católico e devoto da Virgem Maria,
não se interessava por jogos de azar.
Reunidas centenas de pessoas em uma pequena vila,
que aos encantos do seu clima e suas águas deve o
condão de atrair forasteiros, como acontece em todas as
estações aquáticas, joga-se bastante em Poços de Caldas,
pagando cada casa de jogo a licença anual de 2:000$000,
segundo informou à municipalidade, que nisso tem fonte
de renda. As mesas de pano verde, as roletas várias e as
grossas quantias que ali pululam, fascinam os inclinados,
entusiasmam os frequentadores, que de lá volta, chorando
e maldizendo seu infortúnio, ou abençoando a boa estrela
que os guiou no terrível jogo de azar.52
O escrivão, antes de conhecer o balneário, imaginou Poços de Caldas como
era antigamente. Uma vila pacata, circundada por colinas verdejantes, capins
amarelados, as pedras quentes do Cerro das Cruzes, “encimado pela capelinha
que uma cerda de ripa protegia, lampejavam” – e, fronteira, a montanha,
[...] copada em bosques, como restos d’um velo antigo,
tosado, em parte, pelos homens, sangrando ao flanco a água
de prata que se despenhava do alcantil, alta, monstruosa,
parecia um molosso desconforme, com o focinho entre as
patas, a olhar na direção do ocidente, guardando atento,

51
Crônica originalmente publicada na Gazeta de Notícias. BILAC, “Nas Caldas...”, p. 251.
52
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (XVII)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 11 dez. 1894, p. 02.

174 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


imóvel, silencioso, a vila dos milagres.53
Carmo Gama, um observador da própria sombra, nada parecia estimulá-lo para
as atividades coletivas, diversões, ou passeios em grupos na estação de Caldas. O
único memento de prazer era a hora do banho. Anotou no diário a quantidade
de banhos: vinte. Quatro anos depois da viagem do escrivão, um fato comprova
que o balneário não era a vila dos milagres imaginada por ele. A tendência era a
transformação de Poços de Caldas em um balneário de recreio. O jornalista Arthur
Azevedo defendeu o aformoseamento da cidade e a abertura de cassinos:
O jogo, que até certo ponto é a alma desta estação de
banhos, bastaria para iluminar a vila, calçar as ruas,
ajardinar e arborizar as praças, substituir as pontes e o
mercado, levantar uma escola, uma biblioteca, um teatro,
um jardim de aclamação – fazer, enfim, deste formoso
cantinho do mundo um lugar que atraísse todos os anos
muita gente, não só do país como do estrangeiro.54

O Mundo Reencontrado de José Joaquim do Carmo Gama


Sentindo-se revigorado e terminado o prazo da licença concedida pelo juiz de
direito, Carmo Gama decidiu regressar. “Fechada a mala e feitas as despedidas aos
bons amigos e companheiros, a 22 de agosto, parti, voltando de minha excursão
a Caldas.”55 O escrivão passou 2o dias em Poços de Caldas. “Com a regularidade
do crente, tomei 20 banhos.” Restabelecido, decidiu que “era tempo já de volver
aos meus parentes, cuja ausência, me era profundamente penosa”56. Informações
sobre Carmo Gama, posterior ao ano das “impressões de viagem,” continuaram
esparsas. Em 1898, ele publica Bucólicas: miscelânea literária.
A prática da pesquisa tem demonstrado que os necrológicos feitos pela imprensa
são fontes preciosas. José Joaquim do Carmo Gama nasceu em 16 de junho de
1860, em Baependi (MG) e morreu em 13 de novembro de 1937, em Juiz de Fora.
Além de escrivão, ele era professor, escritor e membro da Academia de letras de
Minas Gerais. Era casado, tinha filhos e ficou viúvo em 1918. Encontrei, entre as
notas de pesar, uma carta do escrivão, escrita seis meses antes dele morrer.
[...] Após 40 anos de tabelionato, resignei o mesmo, em
1929, e fui logo nomeado fiscal de escolas normais e
diretor do grupo escolar, de Caratinga, e depois de Palma,
Aposentado pela idade (76), em fins de maio do ano
passado, eu voltei para aqui.
Vivo só, porque os filhos, duas religiosas, duas casadas e
duas solteiras, e um rapaz, estão todos colocados e longe:

53
COELHO NETO, Água de Juventa. p. 15.
54
AZEVEDO, Arthur. “A Palestra”. O País, Rio de Janeiro, 9 mai. 1897, p. 01.
55
GAMA, José Joaquim do Carmo. “Poços de Caldas: impressões de viagem (XX)”. Minas Gerais,
Ouro Preto, 11 dez. 1894, p. 02.
56
GAMA, “Poços de Caldas: impressões de viagem (XX)”, p. 02.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 175


Rio, Petrópolis, Parnaíba do Sul, Juiz de Fora, Barbacena
e Belo Horizonte. Em 16 de junho terei 77 anos. É muito
tempo de ver tudo lá por cima, scient est..57
José Joaquim do Carmo Gama foi um menino pobre, o pai era comerciante
em Minas Gerais e com a falência dos negócios, ele transferiu-se com a família
para Carmo de Cachoeira. O tio e padrinho, cônego Domingos, internou Carmo
Gama no Seminário de Mariana. Ao concluir os estudos preparatórios, em 1882,
matriculou-se na faculdade de medicina, no Rio, sem meios de subsistência,
desistiu do curso. Mudou-se para Rio Novo, onde começou a lecionar. Em 1890 foi
nomeado, por concurso, para o cargo de 1º Tabelião e Oficial de Registros Gerais.
As memórias do escrivão estão inseridas no deslocamento do tempo, em relação
às crônicas de Olavo Bilac e Coelho Netto, por exemplo, percebe-se em Carmo da
Gama um despreparo na escrita, fato que ele próprio reconheceu.
Em busca dos rastros de um desconhecido, Carmo Gama pode ser considerado
uma ponte para leituras sobre as experiências de viagens no século XIX. “As
impressões de viagens” são relatos de um testemunho ocular, todavia, foi na
simplicidade da escrita e memórias que se revelaram sua experiência individual,
embora, filtrada pela nítida recusa de Carmo Gama em expor sua vida pessoal. O
escrivão, durante a viagem, foi um espectador, alguém ciente de suas obrigações.
Carmo Gama não era um veranista em férias, mas um crente em busca de cura. O
homem simples que não percorreu as galerias envidraçadas do Hotel da Empresa,
passou por Poços de Caldas sem ostentações. Por fim, um perfil do cidadão comum
encontrado ao acaso, nas páginas amareladas do jornal.



57
“CARMO Gama”. O Patriota, Baependi, 04 dez. 1937, p. 02.

176 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


RESUMO ABSTRACT
O presente artigo faz uma reflexão sobre história This paper promotes a reflection about the
e sensibilidade através das memórias do escrivão history and sensibility through the memories of
José Joaquim de Carmo Gama. O escrivão, the scrivener José de Joaquim Carmo Gama.
protagonista da narrativa, tem o perfil do homem The scrivener, protagonist of the narrative, has
comum, pacato funcionário público de Rio Novo the profile of a regular man, quiet public worker
(Minas Gerais). Para tratar da saúde, Carmo of Rio Novo (Minas Gerais). To take care of his
Gama fez uma longa viagem até uma estação de health, Carmo Gama did a long trip to a heal
cura, em Poços de Caldas (1894). Através dessas station, in Poços de Caldas (1894). Through
memórias é possível “viajar no tempo” e conhecer these memories it is possible to “time travel”
espaços íntimos de um hotel. Em “Impressões de and to know the intimate spaces of a hotel. In
viagens,” o sentimento da solidão perpassa a “Impressões de viagens” (Travel impressions),
narrativa unindo-se às observações do viajante loneliness permeates the narrative along with
em descrições dos espaços de convivência e the traveler’s observations in descriptions of the
intimidade dos hóspedes nos oitocentos. Por fim, living spaces and intimacy of guests in the 1800s.
em “o mundo reencontrado de Carmo Gama”, a Finally, in “O mundo reencontrado de Carmo
partir dos ensinamentos de Corbin, apresento a Gama” (The recovered world of Carmo Gama),
construção da trajetória de vida do escrivão. from the teachings of Corbin, this article presents
Palavras Chave: História; Sensibilidade; the building process of the scrivener’s trajectory
Viagens. of life.
Keywords: History; Sensibility; Travel.

Artigo recebido em 16 mai. 2015.


Aprovado em 30 set. 2015.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 177


IGREJA E ESTADO, CASAMENTO E FAMÍLIA
(BELÉM, 1916-1940)1
Ipojucan Dias Campos2

Introdução

Como o título anuncia, a cronologia deste artigo concentra-se entre 1916 e


1940. O seu local é a cidade de Belém. Igualmente se deve expor que nele há
um princípio diretor que diz respeito às estratégias de leitura realizadas pela Igreja
Católica e o Estado sobre o casamento, a família e o divórcio no momento em que a
República – outra vez – imiscuía-se nos interstícios dos seus sentidos e significados.
Também se deve expor que as lutas travadas em torno dos assuntos são fortes
ressonâncias de querelas iniciadas no final do século anterior, pois em 1890 o
Estado Republicano estabeleceu a secularização do casamento e do divórcio por
meio do Decreto nº 181 de 24 de janeiro de 18903. Vinte e seis anos depois,
em 1916, novamente através de uma lei aprofundava os diálogos em torno da
temática, porquanto aprovava o primeiro Código Civil Brasileiro – que em muito
versava sobre casamento, família e separação conjugal – demonstrando que a sua
força não cessava de se mostrar à sociedade. Nesta conjuntura, núpcias, família e
ruptura dos laços conjugais interessavam à Igreja, por isso atacava com todo vigor
o afã de dominação que o Estado desejava frente ao que compreendia ser apenas
de sua competência, já que a interpretação dada por ela era a de que se tratava de
pilastras elementares do coletivo.
No campo das relações familiares, deve-se também esclarecer que, neste ensaio,
usou-se o termo divórcio e não desquite porque o debate de então discorria a
respeito da sua admissão na lei da época, ou seja, setores da sociedade debatiam e
queriam implementar a desunião conjugal com possibilidade de segundas núpcias
em vida do outro cônjuge. Esta proposta não figurou no Código Civil de 1916 e
no Brasil apenas em 1977, após longas e aprofundadas querelas entre divorcistas
e antidivorcistas, a separação podendo os apartados unirem-se em segundas
núpcias foi aprovada nas leis brasileiras. Em conformidade com isso, na legislação
republicana das primeiras décadas do século XX, permaneceu – em virtude da
força da Igreja Católica – com o princípio da indissolubilidade matrimonial e assim
passou a ser utilizada a terminologia desquite que não punha fim ao casamento
celebrado e sim “apenas” estabelecia ruptura da convivência sob o mesmo teto e
separação de bens.

1
Este estudo obteve apoio financeiro do CNPq entre os anos de 2005 e 2008 e da Capes no ano de
2009.
2
Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto da
Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e docente do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. E-Mail: <ipojucancampos@gmail.
com>.
3
CAMPOS, Ipojucan Dias. Casamento, divórcio e meretrício em Belém no final do século XIX
(1890-1900). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo, 2004.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 179


As proposições ora apresentadas sustentam-se nos seguintes eixos: se por um
lado a Igreja eficazmente teceu teias no sentido de aproximar o sacramento do
matrimônio ao cotidiano das pessoas (teoria próxima da prática), por outro o
Estado utilizava, prudentemente, a seu favor, a secularização que ainda se fazia
presente com toda a força nas primeiras décadas do século XX. Então, é mister
avisar a existência de poderes e contra poderes quando o assunto se concentrava
nos domínios em análise. A respeito desta problemática, compreende-se que isso
acontecia e acontece porque, em qualquer movimento, as pessoas buscam produzir
não apenas a solução da satisfação das suas necessidades, mas também elaboram
outras necessidades redefinidas; neste ângulo, na cidade de Belém, a Igreja e o
Estado encontravam-se absolutamente envolvidos.
A considerar-se esta proposição inicial através de teias socioculturais elaboradas
pela Igreja Católica e o Estado frente às questões expostas, nunca se deve esquecer
que as mesmas versavam pelos interstícios das relações cotidianas. Assim, no interior
desses aspectos, a partilha de poder não deve ser compreendida questão insípida;
existiram forças e contra poderes atuando nos domínios diariamente percorridos
pelos sujeitos sociais que ajudavam a formá-los, ou seja, dando contornos diversos
e variados ao que se constituía. Mas, diga-se que estes adjetivos são lançados
sobre determinado domínio social [Belém], todavia, como se expressavam neste
lugar e ao mesmo tempo como se entrecruzavam estabelecendo ângulos pouco
circunstanciais? Ao se interpretar tal domínio localizaram-se interfaces constantes
quando se pensaram os espaços – nesta particularidade refere-se ao geográfico,
juntamente com aqueles [os agentes sociais] que o construíam.
Para sustentar estes argumentos os documentos pesquisados foram: uma
brochura católica intitulada O divorcio4, publicada em Belém em 1915, com 33
páginas, onde a Igreja Católica buscava convencer a sociedade belenense que
a separação conjugal (o divórcio) significava agruras às famílias. Teve-se acesso
aos periódicos O Apologista Christão Brasileiro e A Palavra, estes se mostraram
essenciais por serem de linhas religiosas absolutamente distintas. O primeiro era
protestante metodista, de publicação semanal, tinha como redator o líder desta
denominação em Belém, senhor Justus Nelson, a folha foi publicada entre 1890 e
1910, depois voltou a circular nos anos de 1920. O segundo era da Igreja Católica,
de tiragem bissemanal e circulou entre 1910 e 1941. Estes jornais estão sob a guarda
da Hemeroteca Arthur Vianna, em Belém, mas também podem ser consultados na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil.
Em relação às fontes jurídicas utilizou-se: um auto de processo crime de lesão
corporal promovido por Dona Eliana Rodrigues de Freitas contra Evaristo Bastos
de Freitas, 1932 e um auto de processo civil de prestação de alimentos impetrado
por Maria de Nazaré Cantão da Silva contra João Carlos da Silva, 1940. Estes
processos estão arquivados no Centro de Memória da Amazônia (CMA), da
Universidade Federal do Pará (UFPA). A respeito da lei que regia a família e a
separação conjugal no Brasil nas primeiras décadas do século XX, lançou-se mão
do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, 1917, redigido pelo jurista Clovis
Bevilaqua. Este documento e a brochura O divorcio foram adquiridos em sebos

4
DA LIGA da Bôa Imprensa. O divorcio. Belém: Secção de Obras d’A Palavra, 1915.

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da capital paraense e, por isso, compõem o acervo pessoal do pesquisador. Para
melhor sustentar os eixos desse artigo, estas fontes, na medida do possível, foram
cruzadas entre si e elas com a bibliografia especializada. É preciso também dizer que
as reflexões seguintes fazem parte da tese de doutorado deste historiador defendida
em 2009 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Porém, é necessário começar a interpretar os desejos das Instituições que
ajudavam a elaborar a cotidianidade que se quer focalizar.
Convidam-se, então, os leitores para aprovarem ou recusarem os argumentos
aqui apresentados!

Linguagens da Ordem

Na cidade de Belém, discutiam-se diversos tangenciamentos, lógicas e dimensões


que versavam sobre o casamento, a família, o fim da convivência sob o mesmo teto,
a idealização da esposa, da mãe perfeita, da casa, do lar, das relações conjugais,
dos vínculos matrimoniais, da ordem, da moralidade. Nas décadas iniciais do
século XX estes eixos voejavam entre as pessoas que ajudavam a compor as
tramas urbanas no interior e adjacências dos assuntos em pauta. A respeito desses
domínios, é inquestionável que o Estado e a Igreja permaneciam a enfrentar-se e
concepções de ordem e desordem, por exemplo, as instâncias de poder [cada uma
a seu modo], interpretavam como essenciais à coletividade.
Essas imagens do campo do convívio social construíam reordenamentos de
forma inumerável. Com efeito, a exemplo da ordem e da desordem há um conjunto
de variáveis que paradoxalmente, não apenas se repelem, mas se aproximam,
a saber: os pares lícito e ilícito; desejável e detestável; tolerável e impossível de
se tolerar são duplas por onde as ações sociais circulavam constantemente e
consolidavam a ideia de que a dialética mostrava-se contida de forma indefinida
nos entretecimentos cotidianos. Mesmo assim, os interstícios do dia a dia
conseguiam sobreviver no próprio campo social e, diga-se, este era o desejo tanto
do Estado quanto da Igreja. Assim sendo, os domínios passavam inevitavelmente
pelos espaços do que se compreende permitido e proibido na geografia em que
os sujeitos atuavam, sendo imprescindível interpretar que áreas sociais jamais se
encontravam cristalizadas ou sedimentadas, mas sim em constante movimento.
Movimento que obedecia irremediavelmente aos interesses, às conveniências, às
necessidades e às exigências ditas essenciais para se dar vida à dinâmica cotidiana
que se mostrava presente no seio da cidade, do Código Civil, do casamento, da
família, do namoro, do divórcio, dos tensos elos conjugais que se firmavam em
campos de disputa sejam as mantidas pela Igreja, sejam as de responsabilidade do
Estado.
Não foi este aspecto que Rosa Maria Barboza de Araújo, em 1993, assinalou?
Para a historiadora as leis republicanas conseguiram fazer incursões sobre a
secularização do casamento e da separação conjugal, mas não modificaram
disposições impostas pela Igreja Católica, como a indissolubilidade matrimonial.
Para a autora, isso aconteceu porque o catolicismo media força com o poder
secular, quando este desejou estabelecer mudanças nas esferas e sentidos da ordem
familiar, isto é, ela sabia que o direito de família encontrava-se em discussão e para

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 181


que o mesmo se fizesse por meio do que a Igreja compreendia por boas intenções
ou bons sentimentos era preciso ir ao campo de batalha, uma vez que à Instituição
mostrava-se providencial procurar mediar as propostas levantadas nos debates que
elaboravam a codificação5.
A Igreja Católica belenense entendia como transgressoras e desviantes algumas
incursões que o Estado desejava levar à frente, a saber: as que propunham
estabelecer a separação conjugal perpétua com possibilidade de novas núpcias.
Davam-se prevenções a temáticas como a do divórcio e as suas “possíveis”
consequências. Desse modo, concepções sociais e morais foram apresentadas pela
Igreja, em 1915, na brochura O divorcio.
Ei-las:

O divorcio compromete a educação dos filhos. Que


importa que o divorcio comprometta a educação dos
filhos, cujo espirito se conturba e cujos interesses não são
escrupulosamente attendidos, quando os seus progenitores,
esquecidos da sagrada missão que lhes é confiada, se
deixam arrastar pelos desregramentos de conducta,
sem procurar sequer disfarçal-os aos olhos das candidas
criaturas que são fadadas a tomal-as por modelo, e em
cujas consciencias esses actos produzem necessariamente
um precipitado moral funestissimo?6

Ou como expôs em outra parte do mesmo documento:

O divorcio é a ruina da moralidade. A que monta, por


sua vez a doutrina de Dias Ferreira, seja a perpetuidade
a base necessaria da moralidade do lar domestico?
que a destruição da indissolubilidade do vinculo seja
a destruição da família, base da sociedade civil? que a
indissolubilidade matrimonial esteja no traço de distincção
entre o matrimonio e a prostituição legal reconhecida
n`algumas nações? a que vem o egregio Lafayette definir
o casamento como acto solenne pelo qual duas pessoas
de sexo differente se unem para sempre, sob a promessa
reciproca de fidelidade no amor e da mais estreita
communhão de vida; communhão que é uma admiravel
identificação de duas existencias, que confundindo-se uma
na outra, correm os mesmos destinos, soffrem das dôres
e compartem, com a egualdade, do quinhão de felicidade
que a cada um cabe nas vicissitudes da vida?7

5
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
6
DA LIGA, O divorcio, p. 05.
7
DA LIGA, O divorcio, p. 05.

182 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


O divórcio seria a ruína da sociedade. A celebração do ato solene, a sua
salvação. A Igreja compreendia ser o matrimônio rito indissolúvel e por isso quis
exigir dos cônjuges conduta irrepreensível, de complementação “sobrenatural” das
necessidades individuais e coletivas. Deve-se argumentar que a Igreja e o Estado
incorporaram no conúbio carga de idealização que acabou por criar uma zona que
sobrecarregou a vida sob o mesmo teto o que, consequentemente na mediada em
que a sobrecarga diária de exigências transformava-se insuportável a única saída
que se apresentava era a do divórcio. Malvina Muszkat, ao estudar as temáticas
casamento e separação, percebeu que historicamente os pares se encontram
demasiadamente envolvidos com as prescrições impostas pelas normas desejadas
dominantes8.
As balizas onde deveriam ser sustentadas o ato solene e as separações conjugais
suscitavam polêmicas. No início do século XX, era intenção de determinados
congressistas aprovar o divórcio a vínculo, proposta rechaçada há tempos pela
Igreja. Percebe-se que os representantes do Clero novecentista desejosos de nesse
assunto incursionar-se, influenciaram pontos que procuravam balizar as rupturas
conjugais, por exemplo, quando expuseram não perceber o consórcio a maneira
de contrato colocando-se contrários à dissolução dos vínculos matrimoniais. As
análises remetem a variadas dimensões de significados sociais e a Igreja Católica
opunha-se a vários deles, todavia se expressa um: a da prerrogativa do divórcio
jurídico.
A este instituto permanecia contrária mesmo quando se tratava de ruptura
(separação) no casamento civil, união não reconhecida por ela como legal. Mas
deve-se expor aqui que as duas Instâncias de poder discutiam a lisura [cada uma
a seu modo] que se deveria dar às bodas e à família. Tensões esvoaçavam-se
sobre a cidade. Os campos de força não estavam interditos aos debates e nem aos
saberes públicos. Os grupos sociais em luta desejavam conquistar apoio no interior
da sociedade e sem dúvida recusas e reticências foram inevitáveis, o que fazia
com que precauções nunca se revelassem excessivas, porquanto a família muito
perfeitamente se concentrava na esfera de normas de um jogo político desejado
preciso onde o afã centrava-se em mostrá-la fechada e hierarquizada. Estratégias
eventuais ou não de indivíduos ou de grupos não deveriam vir à tona neste
campo, então se observa que casamento, família e separação conjugal sempre
suscitaram preocupações diversas; Maurice Aymard refletindo para um tempo e
espaço diferentes dos que são pensados para este artigo é aqui importante. O autor
compreende que a família nunca foi assunto secundário ao Estado, porque este a
interpretava nas balizas do essencial aos seus interesses em sociedade e sobre a
Igreja diz que sempre a vislumbrou [a família] nos domínios de sua propriedade9.
Com efeito, aos interesses destas argumentações, o Estado e a Igreja discutiam
os planos que envolviam campos compreendidos necessários à ordem social e,

8
MUSZKAT, Malvina. “Descasamento: a falência de um Ideal”. In: PORCHAT, Ieda (org.). Amor,
casamento, separação: a falência de um mito. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 85-102.
9
AYMARD, Maurice. “A comunidade, o Estado e a família – trajetórias e tensões: amizade e
convivialidade”. In: ARIÈS, Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada - vol.
III: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991, p. 455-499.

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por isso, deveriam ter prudência e construir de modo preciso argumentos que não
deixassem margens a ambiguidades.
Discutiam-se também quais seriam os espaços jurídicos a serem avançados e
recuados no que diziam respeito às relações de família e como estas deveriam ser
enfrentadas no cotidiano conjugal daqueles que optassem pelo fim da convivência
sob o mesmo teto uma vez que, como afirmou Maria Odila Leite da Silva Dias, é
necessário perceber os sujeitos sociais como agentes condutores de si mesmos10. Ao
ligar a autora a estes argumentos, lembremo-nos que em pauta estava um mundo
social bastante complexo e amplo, ou seja, o casamento, os filhos, a moralidade
pública e privada, enfim, aspectos da família. Assim, uma das problemáticas
contidas era a de delimitar, de modo preciso, possíveis liberdades e isolamentos em
relação ao mundo conjugal. Desejava-se formar pontos bem dados socialmente,
sem possibilidades a duplas interpretações e nesse campo os jogos de política não
cessavam um minuto sequer.
Todavia, não se pode perder o horizonte de que se tratava de desejo que se
desestrutura quando se analisam os conteúdos de autos de processos crime e Ações
de Pensão Alimentícia havidos na cidade de Belém. Nesse sentido, o Processo
em que foi réu, em 1932, Evaristo Bastos de Freitas, paraense, 23 anos, casado,
soldado do 26º Batalhão, residente à Rua Municipalidade nº 60, é exemplar, pois
sobre este pesava a acusação de ferir com um punhal a sua esposa, dona Eliana
Rodrigues de Freitas, paraense, 21 anos, casada, branca, sabia ler e escrever. Os
Autos revelam que a convivência sob o mesmo teto durou cerca de “2 annos e
7 meses” e que as tensões conjugais acentuaram-se por volta do dia 10 do mês
de maio de 1932. No referido dia os cônjuges desentenderam-se sendo que o
réu arrumou as suas roupas “dizendo que iria embora e que ella fosse arranjar a
vida como ella bem entendesse”11. Observa-se que depois das brigas, indicar aos
amantes a saída do lar conjugal nunca era excessivo. Entretanto, não se tratou de
separação de corpos duradoura, uma vez que “no dia seguinte o denunciado volta
a casa e lá chegando pôs-se a insultar a pobre senhora, como esta lhe pedisse que
não a insultasse mais o denunciado num ato de covardia avança sobre ella com um
punhal de que se encontrava armado e a fere [...]”12.
Já na prestação de alimentos impetrada, em 1940, por Maria de Nazaré Cantão
da Silva, 34 anos, brasileira, casada, doméstica contra João Carlos da Silva,
marítimo entre inúmeras acusações recaía sobre João o de ter dito à esposa em
“alto e bom som que não a receberia mais em sua casa” e que estava dispensada
juntamente com a filha mais nova “ir para onde bem entendesse”. Maria e João,
em Tomé-Açu, interior do Pará, receberam-se em ato solene no dia 17 de setembro
de 1929. O casal formou prole longa, a saber: Olga, Rubem, Juracy, Carlos e
Natalina. Por onze anos mantiveram-se sob um mesmo lar conjugal, todavia

10
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica
e hermenêutica do cotidiano”. In: COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina (orgs.).
Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 39-53.
11
Auto de processo de crime de lesão corporal promovido por dona Eliana Rodrigues de Freitas
contra Evaristo Bastos de Freitas, 1932.
12
Auto de processo de crime de lesão corporal promovido por dona Eliana Rodrigues de Freitas
contra Evaristo Bastos de Freitas, 1932.

184 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


quando instabilidades surgiram em virtude, ao que tudo indica, de dificuldades
na mantença da família, a separação apresentou-se caminho necessário e viável13.
Tomando por base os problemas conjugais ocorridos entre Evaristo e Eliana e
Maria e João, e em vários outros processos [inclusive de divórcio] que poderiam ser
aqui tratados, é inegável que o padrão de união, família e relação conjugal estática
existia somente como imagem do ideal. A organização social do casamento e da
família constituía-se de forma muito diferente e diversificada quando se pensam as
molduras que se desejavam imprimir à totalidade familiar. O que se encontra no
período em estudo, no entanto, são aspectos diversos de comportamentos familia-
res, os quais muitas vezes distanciavam-se dos modelos cristalizados pretendidos
pela Igreja Católica e pelo Estado Republicano. Vislumbra-se que o núcleo familiar
– nos casos em questão – era organizado conforme as conveniências que o mo-
mento exigia.
É nesta dimensão cotidiana que se recorre a Joan Scott, posto que a autora
compreende que mulheres e homens nem sempre estão de acordo com as de-
terminações e prescrições exigidas pela sociedade de que fazem parte14. No caso
específico de Belém, encontraram-se modelos que deveriam ser percebidos como
campos que cimentavam a família, mas obviamente domínios que negavam a
constituição familiar na instância de evento uno. Em conformidade com isso, as se-
parações conjugais devem ser vislumbradas e relacionadas a partir das dinâmicas e
representações que a vida conjugal diária apresentava. Assim é preciso apreender
as formas de organização histórica do dia a dia daqueles que desejavam e optavam
pelo fim da vida em comum.
Desta forma, intrigas e tensões conjugais ajudavam a constituir a sociedade
belenense em elos amplos. As acusações lançadas por Dona Eliana contra Evaristo,
também poderiam transformar-se em um processo de divórcio, porque sobre
o esposo, além de pousar a acusação de ter ferido a mulher com um punhal,
igualmente pesava a pecha de seviciador.
De tal monta, é mister aqui lembrar que sevícia de qualquer cônjuge sobre
o outro era razão para se iniciar processo de separação conjugal, visto que as
possibilidades concentravam-se em “Adulterio, tentativa de morte; sevicia ou
injuria grave; abandono voluntario do lar conjugal, durante dois annos continuos;
dar-se-á, tambem, o desquite por mutuo consentimento dos conjuges, se forem
casados por mais de dois annos”15. Discursos e lutas sociais estavam presentes e
funcionavam como formadores de opinião no seio da coletividade belenense. Para
se refletir estes espaços tomam-se emprestadas as compreensões acerca do direito
elaboradas por Michel Foucault. A respeito, o autor enceta que há nas esferas dos
discursos práticas sociais que podem constituir-se em domínios de saber, ou seja, a
análise da narrativa deve ser tratada e percebida por meio de conjunto de fatos os
quais se apresentam interligados através de regras políticas e sociais e que possuem

13
Autos de processos civis de prestação de alimentos impetrado por Maria de Nazaré Cantão da Silva
contra João Carlos da Silva, 1940.
14
SCOTT, Joan. “El género: uma categoría útil para el análisis histórico”. In: AMELANG, James
& NASH, Mary (orgs.). Historia y género: las mujeres en la Europa Moderna y Contemporánea.
Madri: Edicions Alfons el Magnànim, 1990, p. 23-56.
15
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 185


o objetivo de mostrar de modo uniforme, aos sujeitos sociais, as maneiras pelas
quais as relações deveriam ser organizadas16.
Desta maneira, legislação e imprensa teciam formas de linguagem que tinham
por propósito a constituição de certa ideia de verdade. Neste sentido, entende-se
que os agentes sociais buscavam os seus próprios interesses o que se firma na lógica
de que a norma não é capaz de circunscrever a todos: sempre haverá personagens
sociais burlando o que é compreendido como correto. Se assim vislumbrado, deve-
se comungar com a concepção de que o Estado e a Igreja não dispunham de
qualquer possibilidade de lograr êxito em suas cristalizadas empreitadas diante de
qualquer forma de união e de família.
Nesta conjuntura, conveniente é perceber as formas com as quais diversos
domínios trouxeram tensões e foram apreendidos pelas pessoas que construíam as
tramas na cidade de Belém. Desde os mais tenros debates, imprescindível era dar
significado ao poder e para isso fazia-se necessário saber penetrar as ideias mesmo
que fosse preciso lançar mão de estratégias antigas como a da indissolubilidade
matrimonial, aliás, premissa que permaneceu fiel [na legislação da época, refere-
se ao Código Civil de 1916] ao que determinava a Igreja Católica. Neste sentido,
prática e teoria deveriam mostrar-se indissolúveis. Repitam-se, os jogos de força
não poderiam ser reduzidos e circunscritos ao âmbito do direito, da Igreja ou do
desejado, porque existiam pessoas atuando cotidianamente, na “contramão” do
que era desejado salubre. Com a tática política de procurar oferecer legitimidade
aos discursos, o Clero nunca se encontrou afastado de assuntos, a saber: namoro,
casamento, família, divórcio e consequentemente do Código Civil. Sobre eles, a
Instituição afirmava não ser conveniente permitir generalizações e, por exemplo,
frente ao divórcio dizia o seguinte:

O divorcio é uma infecção purulenta. Que importa que


este mal necessario venha por contrapeso ao desafogo dos
casamentos malsinados, a apagar o risco, já de si tão gasto,
entre as uniões civis e a prostituição, que outra cousa não
é o casamento temporário, o casamento por sessões, o
casamento successivo, casamento provisorio, o casamento
intermittente, que em gestação a lei do divórcio encampa
e autorisa? Que importa que agindo como uma infecção
purulenta o divorcio facilite, no dizer de Clovis Bevilacqua,
o incremento das paixões animaes, enfraqueça os laços
da familia, e essa fraqueza repercuta desastrosamente na
organização social?17

A matéria revela, no entanto, oposições desejadas precisas sobre a ruptura


conjugal e ao mesmo tempo defesa das esferas familiares. Os sentidos dos elos
sócio conjugais foram alvo de debates na imprensa belenense católica onde
pairavam, nestes diálogos, preocupações sobre a família. Com efeito, faziam-se
jogos de poder para os quais apenas transformá-los em discurso não se mostrava

16
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.
17
DA LIGA, O divorcio, p. 04-05.

186 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


suficiente para enfrentar ações sociais que subjaziam no cotidiano; por isso
precisava-se montar circunstâncias práticas que viessem atuar nos interstícios do
que se desejava alcançar: a vida em casal. As respostas deveriam ser rápidas e
coerentes àqueles que queriam construir flexibilizações nas teias familiares, isto
é, os jogos de política eram bem disputados, porém devem ser localizados para
além das querelas pessoais dos sujeitos conquanto sua relevância localizava-se
no seio da importância do debate que concentrava e também nas perspectivas
que seriam inauguradas com a nova lei. Veja-se o quanto os assuntos em questão
sempre se mostraram lugar minado quando neles alguém desejasse entrar, ou seja,
jamais se quis permitir espaços a generalizações que pudessem colocar em xeque
a normatização e a moral familiar.
Todavia, diga-se que os entreveros não eram apenas em Belém, o Brasil
vivenciava sérios conflitos políticos em torno desses assuntos. Para se dinamizar
os debates a este respeito recorre-se a Sueann Caulfield, que estudou parte
destas temáticas para o Rio de Janeiro, a historiadora mostrou que o Código Civil
não conseguiu romper com determinações seculares em relação ao casamento,
exemplar nesta linha de análise foi a sua fidelidade à Legislação Filipina18. A seguir
afirmou, à cidade de Goiás, Maria da Conceição Silva, que lutas a respeito da união
civil, entre a catolicidade e o Estado, eram avolumadas e envolviam interesses de
família na mantença do poder local, isto é, as problemáticas que versavam sobre
a secularização das núpcias causaram muitas instabilidades, pois, diz a autora que
a cidade de Goiás mostrava-se lugar em que a catolicidade se fazia presente com
força política, social e cultural, mas também o Estado era partícipe e desejava
firmar as suas bases no lugar19.
Assim sendo, se por um lado o poder secular buscava aproximar-se do conúbio,
da família e do divórcio através da lei; por outro se observava que, as narrativas
construídas pela Igreja Católica, eram elaboradas por caminhos variados tendo o
afã de estabelecer eficazes oposições aos campos que lhe causavam sobressaltos.
À especificidade deste estudo, aqui, é necessário afirmar que a família em seu
momento de constituição ou já devidamente formada era repleta de fantasmas
que se infundiam nas experiências vivenciadas. Espectro perigoso à Igreja era o
divórcio e contra ele empreendia ácida propaganda contrária; assim, categorizá-
lo como “infecção purulenta” vislumbrou-se adjetivo primoroso. Esboçava-se de
forma inteligível que, além da publicização de um projeto republicano que fazia
incursões sobre as uniões conjugais, o Clero propalava os perigos que o Código
Civil representava ao conjunto da sociedade. A Igreja, efetivamente, tinha com que
se preocupar.
Eis uma razão no ano de 1902:

O divorcio
A commissão especial da Camara ds Deputados terminou
a 22 passado a votação dos arts. 218 a 411 do projeto do

18
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2000.
19
SILVA, Maria da Conceição. “Catolicismo e casamento civil na cidade de Goiás: conflitos políticos
e religiosos (1860-1920)”. Revista Brasileira de História, n. 46, 2003, p. 123-146.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 187


Codigo Civil, elaborado pelo Sr. Clovis Bevilaqua.
A votação foi longa e relativa á parte que trata do direito
de familia. Destacamos os votos da commissão sobre o
divorcio ou separação de corpos estabelecido no projeto:
por meio da emenda do Sr. Sylvio Romero, foi incluida
entre os motivos determinantes desse motivo de divorcio a
tentativa de morte, e por emenda do Sr. Andrade Figueiras
foi supprimida d`entre os motivos do divorcio da lei o
mutuo consentimento.
Assim os casos de separação de corpos ficam sendo os
seguintes: adulterio, tentativa de morte, sevicia ou injuria
grave e abandono voluntario do lar durante dois annos
consecutivos.
É possível, porém, que as requeresse a reconsideração do
voto quanto á suppressão do mutuo consentimento.20

Era 1902. Quatorze anos ainda faltavam para que o texto final do Código
Civil Brasileiro obtivesse aprovação. O jurisconsulto Clovis Bevilaqua enfrentava
dificuldades para aprovar determinados artigos e mesmo seções inteiras que
versavam sobre o casamento, a família e a separação conjugal; ao se ler o
documento acima nota-se que as razões que possibilitavam juridicamente a ruptura
entre esposos não estavam totalmente definidas, por exemplo, ainda não se sabia
se o mútuo consentimento seria motivo à separação, o que significava a presença
de extensos problemas, visto que havia, no Congresso, representantes dos dois
lados em disputa. Como especificado, querelas entre Estado e Igreja há muito
ocorriam, tanto que se debatiam as expectativas que giravam em torno do Código
em vias de promulgação, fato que fez retardar a sua conclusão. A este respeito
recorre-se a uma especialista no assunto, Keila Grinberg, que diz que no Congresso
o projeto de lei elaborado por Clovis Bevilaqua demorou dezesseis anos somente
para ser analisado, mas “[...] o processo completo levou 61 anos, se contados
desde o primeiro contato do governo imperial para sistematização da legislação
civil vigente, ou 94, levando em consideração a promessa feita em 1823 [...]”21.
Retorna-se então ao argumento central: para a Igreja Católica, conseguir
sobreviver no seio deste longo diálogo fazia-se necessário estabelecer proximidades
entre teoria e prática, isto é, se por um lado ela elaborava – por meio da sua doutrina
– incursões na vida dos cônjuges, por outro o Estado firmava posição na esfera de
ser imprescindível aprofundar as balizas da secularização frente ao casamento, à
família e ao divórcio. Assim pensando, não era suficiente e tampouco conveniente
que os discursos ficassem apenas no genérico, era imprescindível aproximá-los
do cotidiano. Embora sua pesquisa seja distante cronológica e espacialmente dos
deste artigo, recorre-se a Nicole Arnaud-Duc. A autora vislumbrou que os discursos
concentrados no espaço do direito uniam-se aos morais. Conforme a historiadora,
a razão desta aliança tinha por objetivo a tentativa de delimitar espaços que
se buscava construir na linha do acessível e do proibido aos diferentes agentes

20
O Apologista Christão Brasileiro. Belém, 06 jan. 1902, p. 01.
21
GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 07-08.

188 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


sociais, assim, durante muito tempo, um dos objetivos foi o de tornar legítimas as
desigualdades de tratamento.
Agia-se para se procurar cumprir deveres entendidos reguladores dos
movimentos e das ações sociais que passavam inevitavelmente por essas esferas22.
A Igreja Católica não se eximia destas dimensões debatidas cotidianamente,
posto que ela forjava diversos discursos porque via o Estado avançando nestas
questões através da secularização e tais dinâmicas davam-se onde as tentativas
de dominação estivessem, uma vez que as Instituições firmavam-se desejosas de
demarcar território nos interstícios dos eixos: casamento, família, relações conjugais.
Nota-se que os diálogos que envolviam a secularização eram tensos. O
documento a seguir é mais um dentre vários que pode ajudar nestes argumentos.
É tão claro que a temática se apresentava essencial ao catolicismo, que expressar-se
nestes tons jamais pode ser visto como circunstancial.
O catolicismo considerava:

O divorcio é a destruição de todo pudor. Admittindo-se o


divorcio, a mulher assim como pode ter razão para separar
do primeiro marido, e casar com um segundo, tambem
pode ter razão para separar do segundo e casar com um
terceiro, e assim por deante. Ora quem não vê que esta
variedade causa a destruição de todo pudor? E ninguem
diga que esta mudança tão repetida de maridos não
tem realidade senão na minha imaginação. Pois já entre
os romanos se dizia que as mulheres podiam contar os
annos não pelos consules que governavam mas pelos dos
maridos com quem estavam unidos.23

Inexiste desejo de ser exaustivo com tantos exemplos demasiadamente


evidentes acerca de como a Igreja se digladiava com o Estado. Ela possuía táticas
tão inteligíveis e incisivas que nunca deixavam pousar dúvidas, chegando mesmo
a não sair de única linha argumentativa, a da indissolubilidade matrimonial. O
Estado jamais questionou este campo, porém era contrário ao domínio do Clero
em matéria de matrimônio e separação.
No campo dessas tensões, a ordem do discurso concentrava-se em procurar
penetrar nas mais diversas instâncias sociais do cotidiano e o desejo de transformá-
-los em espaços favoráveis era o tema e o objetivo das lógicas de poder na cidade,
veja-se o excerto:

O divorcio compromette a educação dos filhos. Que im-


porta que o divorcio comprometta a educação dos filhos,
cujo espirito se perturba e cujos interesses não são escru-
pulosamente attendidos, quando os seus progenitores, es-

22
ARNAUD-DUC, Nicole. “As contradições do Direito”. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle
(orgs.). História das mulheres no Ocidente – Vol. IV. Tradução de Maria Helena C. Coelho e Alberto
Couto. Porto: Afrontamento, 1991, p. 97-137.
23
A Palavra. Belém, 23 jan. 1921, p. 03.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 189


quecidos da sagrada missão que lhes é confiada, se deixam
arrastar pelos desregramentos de conducta, sem procurar
sequer disfarçal-os aos olhos das candidas creaturas que
são fadadas a tomal-os por modelo, e em cujas conscien-
cias esses actos produzem necessariamente um precipitado
moral funestissimo?24

Por meio destas exposições entra-se um pouco mais sobre o que se pensava a
respeito do casamento e da organização familiar na cidade. Observa-se que estes
domínios eram desejados imperativos, uma vez que as lutas sociais, os campos
de força e de interesse estavam formados. Imprescindia-se estabelecer sistemas
de comunicação que apresentassem caráter incognoscível à sociedade; do mesmo
modo, era indesejado que se constituíssem de forma dessimétrica entre os eixos
praticados na cotidianidade e o que se buscava formar no espaço familiar. Lutava-se
contra quaisquer disjunções que envolvessem campos familiares. Nesta dimensão
de análise, as separações conjugais organizavam-se em domínios que possuíam
caracteres incompreensíveis a determinados sujeitos e instituições da cidade de
Belém, mas para aqueles que se separavam havia sentidos imediatos: o de escapar
de uma convivência que não lhes era favorável.
Fragmenta-se em larga medida a concepção de que as uniões não poderiam
formar-se de modo contingencial, mas sim perene e que fossem capazes de sustentar
a ordem e a moralidade. Porém, o que havia de tão perigoso na separação de
corpos, por exemplo? Ao palmilhar os argumentos acima, apreende-se conjunto
de razões que buscavam delimitar quais deveriam ser os espaços salubrizantes do
casamento e da família. Nesta proporção, a dissolubilidade conjugal aproximava-
se da instabilidade do lar. É forçoso, entretanto, acentuar que no momento em
que se discutiam os artigos e os incisos do Código Civil Brasileiro, a Igreja Católica
quisesse denotar legitimidade aos discursos que produzia. Torna-se oportuno
perceber quais seriam os espaços a serem alcançados por meio das suas teses.
Lançava-se mão de práticas pedagógicas que proporcionassem entrelaçamentos
perfeitos à vida conjugal. Exemplar a este respeito foi o recurso de se tentar educar
as práticas sociais do casal e do futuro casal. Esta estratégia de combate pretendia
trazer para campo específico lutas encetadas no âmbito da sociabilidade privada da
vida dos casados ou dos nubentes.
Todavia, tais problemas não eram particularidades da capital paraense.
Na cidade de Campinas, Cristiane Fernandes Lopes, ao interpretar sentidos e
significados socioculturais do divórcio e desquite entre 1890 e 1934, passou em
revista a legislação da época e percebeu que o local da sua pesquisa esteve imerso
nos debates que giravam em torno da ruptura conjugal e familiar25. Guardadas
as devidas proporções, nada de diferente quando se pensa Belém. Sem dúvida,
preocupações voejavam sobre a Igreja Católica, assim sendo as precauções
deveriam ser tomadas e para isso o ideal de casamento católico era defendido

24
DA LIGA, O divorcio, p. 05.
25
LOPES, Cristiane Fernandes. Quod Deus conjuxit homo non separet: um estudo de gênero, família
e trabalho através das ações de divórcio e desquite no Tribunal de Justiça de Campinas (1890-
1934). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.

190 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


de forma renhida por aqueles que não comungavam com a ideia da separação.
Usava-se como arma o futuro da prole. Com efeito, no saber dos discursos católicos
contra o fim dos vínculos conjugais “as candidas creaturas” [os filhos] foram
sobejamente utilizadas. Vislumbra-se, desta forma, que a Igreja Católica da capital
paraense tinha dificuldades em manter o poder, uma vez que as transformações
nos campos dos usos e costumes, culturais, sociais e políticos faziam-se e refaziam-
se frequentemente.
Ao estudar a cidade da época, Maria Luzia Miranda Álvares, a interpretou como
espaço de tensão, porquanto mudanças se operavam no novecentos nos hábitos
citadinos belenense. Para a autora, a Primeira Guerra trouxe outras visões, as quais
introduziam referenciais como o de liberdade. Conforme as reflexões contidas
em “Saias, laços e ligas” as mulheres conheceram mudanças que não devem ser
vistas a maneira circunstancial e sim que ensejavam outros condicionamentos aos
domínios sociais. Inquestionavelmente, conheciam maior trânsito nos espaços
públicos26. Mas estes jogos fora do recesso doméstico foram permeados de lutas.
A Igreja Católica fazia-se presente e não via tais dinâmicas sem sobressaltos e mal-
estar; para ela, o momento figurava-se intempestivo.
Argumentar contra reconfigurações que se estabeleciam, tomando por base os
filhos e a moralidade constituía-se em estratégia expressiva. Para reforçar os discursos
conservadores e moralistas católicos, tomava-se sucessivamente como arma “a
educação dos filhos”, isto é, arguia-se que com a separação conjugal a educação
da prole ficava perturbada e “[...] cujos interesses não são escrupulosamente
attendidos, quando os seus progenitores, esquecidos da sagrada missão que lhes é
confiada, se deixam arrastar pelos desregramentos de conducta [...]”27. O conúbio
e o amor que envolvia os filhos eram lidos de forma homogênea; vislumbrava-se
inadmissível [segundo a doutrina católica] que os progenitores esquecessem da
tarefa assumida no ato matrimonial: o de despender esforços necessários para que
a unidade familiar não se rompesse.
Pressões que envolviam a ordem, o social, a moralidade e que englobavam
expectativas sobre o casamento e a maternidade são bem presentes nas teias dos
discursos católicos. Desta maneira observam-se análises táticas para se deixar
evidente o que se queria como costumes sociais e valores morais à cidade de Belém
das primeiras décadas do século XX. Para Luzia Margareth Rago, as transformações
nos espaços culturais, sociais e políticos, os quais envolviam as cartografias
conjugais, o ideário de casamento, de amor e de paixão organizadas nas décadas
iniciais do século XX eram algumas das razões que causavam instabilidade no dia
a dia dos sujeitos sociais. Grupos de mulheres questionavam, a partir do que a
autora chamou de “sensibilidades modernas”, relações como a do casamento, da
família, do lar, da casa como precondição à felicidade a dois28.
Contudo, não se deixe enganar, porquanto neste ponto, as imagens em matéria

26
ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. Saias, laços e ligas: construindo imagens e lutas (um estudo sobre
as formas da participação política e partidária das mulheres paraenses 1910-1937). Dissertação
(Mestrado em Desenvolvimento). Universidade Federal do Pará. Belém, 1990.
27
DA LIGA, O divorcio, p. 05.
28
RAGO, Luzia Margareth. “A sexualidade feminina entre o desejo e a norma: moral sexual e cultura
literária feminina no Brasil, 1900-1932”. Revista Brasileira de História, n. 28, 1994, p. 28-44.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 191


de casamento e família propagandeadas pelo poder secular não destoavam das da
Igreja Católica, ou seja, o Estado também desejava manter a ordem e a moralidade
social por meio do casamento.
Identificar estes jogos fronteiriços é essencial para sentir o que se pensava a
respeito da idealização conjugal, pois se subjaziam elos de força importantes, por
exemplo, palavras e linguagens deveriam ser discernidas de modo inteligível, porque
as personagens eram elaboradas no seio de aparatos de poder e representam
dinâmicas de interesse. Michel Foucault considerou que as dificuldades desses
sujeitos sociais não se encerram na vizinhança das coisas, mas no lugar em que
poderiam “avizinhar-se”; assim o intelectual concentrou suas análises na explicação
de que a ordem das coisas é diferente da ordem das palavras e é por este motivo
que os agentes devem ter atenção aos códigos ordenadores, porquanto é assim
que se formam as ordens das coisas e, por conseguinte, o pensamento sobre as
mesmas29.
A rigor, os discursos e as lutas sociais provocavam fricções, porque a Igreja
Católica compreendia que as suas palavras não possuíam os mesmos significados
para os diversos sujeitos sociais da cidade. Estes campos nevrálgicos eram
alvos de ataques. Tratava-se, segundo a Igreja Católica, de procurar conter os
deslocamentos característicos do mundo social; desta forma, uma das precauções
tomadas firmava-se em aproximar-se do que se discutia no campo legal jurídico e
do que se dialogava no mundo prático social.
A este respeito, prazer e desejo sexual fora das margens matrimoniais eram
inaceitáveis e, consequentemente, repudiados pela catolicidade da capital paraense.
Esta argumentação que também envolvia esferas jurídicas e privadas foi percebida
com acuidade por Riolando Azzi. Segundo o autor, a Igreja Católica, no início do
século XX, em muito contribuiu para a permanência de antigos costumes e valores,
já que se colocou contrária às mudanças em curso. Tais transformações diziam
respeito aos costumes, à ordem familiar e matrimonial. Nestes aspectos, segundo o
pesquisador, a hierarquia católica manteve postura intransigente desconsiderando
determinação que pudesse colocar em risco lutas tradicionais, como a aprovação
do divórcio a vínculo30.
Entretanto, há reflexões históricas que se contrapõem à imagem da imobilidade
católica. Ivete Ribeiro interpretou algumas inegociabilidades da Igreja, mas também
flexibilizações. Quanto ao laço solene, a pesquisadora afirma que o Clero sempre
se manteve atrelado à lógica da fidelidade matrimonial e à união monogâmica
indissolúvel e desta forma o pensamento católico colocava-se desfavorável a
transformações que operassem mudanças profundas nas dimensões sociais. O
conjunto de determinações contrárias que a Igreja mantinha em largo sentido não
permitia negociação diante destes assuntos uma vez que, possuía por propósito
central tecer discursos pedagógicos apreendidos universais pelos personagens

29
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de
Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
30
AZZI, Riolando. “Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964)”. In: MARCÍLIO,
Maria Luiza (org.). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paulo: Loyola,
1993, p. 101-134.

192 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


que ela aspirava alcançar31. A Igreja vislumbrava que o sentimento conjugal era
percebido fundamental para que o matrimônio não terminasse no Tribunal de
Justiça como processo de divórcio, alimentos, investigação de paternidade ou
criminal. Assim, a Instituição não teria passado ao largo das modificações sociais
operacionalizadas nas décadas iniciais do último século, mas procurou executar,
da maneira que lhe fosse conveniente reelaborações sobre pressupostos seculares.
Finalmente, deve-se enfatizar que tanto a Igreja Católica quanto o Estado
Republicano desejavam dominar importantes campos sociais (casamento, família
e separações conjugais), mas nenhum deles colocava em pauta mudanças de
significado, porquanto o casamento permaneceria na condição de ato indissolúvel
para toda vida [até que a morte os separasse]; a família dita honrada seria a vitoriosa
e a separação conjugal, uma chaga com o poder de fragmentar os alicerces da
sociedade.

Considerações Finais

Ao tentar aproximar a doutrina religiosa do cotidiano, a Igreja “esquecia” a


própria multiplicidade que emanava das pessoas, por exemplo, houve aqueles
que passaram às margens das representações religiosas de matrimônio e mesmo
da máxima do “até que a morte os separasse”. Mas, deve-se aqui reafirmar que
inquestionavelmente a Instituição executava o seu papel (propagandear a sua
doutrina) apesar da distância entre o desejado e o possível. O Estado, por seu
turno, buscava também manter tentáculos de força com a Igreja, sempre com o
propósito de influenciar a sociedade e em “nada” estava disposto a ceder quando
o assunto se concentrava nas lógicas da secularização.
Desta maneira, casamento, família e divórcio apresentavam-se espetáculos
fugidios, movediços, pouco dados a única representação, ou seja, é perda de tempo
procurar compreendê-los como homogêneos. Então, como tudo na História, eles
são entrelaçamentos inextrincáveis, porque combinam movimentos convergentes,
divergentes, contraditórios. Por nunca caminharam por apenas um sentido à
maneira do desejado da Igreja e do Estado, eles facilmente derivavam em confusão
decisiva que implicava mais e mais em contratempos às duas Instâncias que neles
se envolviam.
Com efeito, fatos, desejos, anseios, afãs estão indubitavelmente articulados
por elos de interesse do momento histórico assim, quando as pessoas percebiam
que o casamento e, por conseguinte a família, não tinham mais sentido de ser,
desfaziam-se as promessas [um dia realizadas] por meio de processos de divórcio.
A Igreja “jamais compreendeu” que as lógicas de sucesso e fracasso do casamento
e da família ligavam-se aos movimentos individuais das pessoas, porém estes [os
movimentos] formavam espaços múltiplos e entrecruzados.
Se o leitor vir esta interpretação razoável, há a necessidade de seguir pensando
que seja a Igreja, seja o Estado, mesmo querendo, longe estavam de serem os
senhores do destino das pessoas no seio do casamento, da família e da separação
conjugal, ou melhor, das vidas que os constituíam. Diga-se mais equitativamente,

31
RIBEIRO, Ivete. “O amor dos cônjuges: uma análise do discurso católico”. In: D’INCAO, Maria
Ângela (org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989, p. 129-153.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 193


que estes jogos repontavam na falaciosa ilusão da possibilidade de um mundo a
dois homogêneo, uma vez que esta pretensão sempre foi demasiadamente estreita
e sem qualquer possibilidade de se consumar na prática cotidiana, mesmo quando
a Igreja forçava uma severa ligação entre o teórico [a sua doutrina] e a prática
cotidiana, quando o Estado prudentemente fazia valer a força da secularização na
sociedade ou quando os dois se uniam para denegrir o casal que, por razões as
mais diversas, optava pela separação de corpos e bens. Assim sendo, das relações
de poder sérias consequências defluíam, pois se reafirme que toda problematização
[desejada em equacionamento pela Igreja e pelo Estado] não cessava de complicá-
los. Os erros eram crassos. Os problemas, infinitos. A Igreja com a sua ânsia de
dominação frente aos temas em pauta fez esquecer a necessidade da interpretação
do movimentar da vida das pessoas e por isso “negligenciou” ou quis “negar” que
cada sujeito é portador de ações insubstituíveis. Já o Estado, diga-se, não negava
a importância do consórcio e da família e mesmo do modelo “imposto” pela Igreja
(que em muito também era o seu), mas os queria sob o seu domínio.



RESUMO ABSTRACT
O caráter central das reflexões a seguir é The central character of the reflections below is
o de compreender, nas primeiras décadas to understand, in the early nineteenth-century
novecentistas, as estratégias da Igreja Católica decades, the strategies of the Catholic Church
e as do Estado aquando dos diálogos em torno and the State during the dialogues around the
do Código Civil de 1916. Mais especificamente, 1916 Civil Code. More specifically, the study
o estudo procurou interpretar o casamento, a sought to interpret the marriage, family and
família e o divórcio quando se buscava firmá-los divorce when it sought to steady them once more
mais uma vez à lei do Estado. Em conformidade to state law. In accordance with this, about the
com isso, a respeito das temáticas em pauta, issues at hand, it was an eye to understanding
ficou-se atento à compreensão das teses the theories elaborated by instances of power
elaboradas pelas instâncias de poder voltadas aimed at convincing the social subjects who built
ao convencimento dos sujeitos sociais que Belém’s society of the time.
construíam a sociedade belenense da época. Keywords: Church; State; Marriage; Pará; First
Palavras Chave: Igreja; Estado; Casamento; Republic.
Pará; Primeira República.

Artigo recebido em 1º out. 2015.


Aprovado em 30 jan. 2016.

194 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


PEDRO RODRIGUES MARTINS,
UM APAIXONADO PELO SIGMA:
O PERCURSO DE UM INTEGRALISTA PARANAENSE
(1935)
Luiz Gustavo de Oliveira1

“É pelo fruto que se conhece as árvores. Pobres


irmãos que não veem o princípio diante de vós.
Mudai de ideias. Progredi, e vinde juntar-vos a Nós
que vos receberemos com os braços abertos, pois
o verdadeiro amor que deve unir os homens do
Brasil encerra-se na Camisa-verde do Sigma”.
Pedro Rodrigues Martins,
integralista de Teixeira Soares2.

Introdução

A partir de uma abordagem histórico-biográfica, o presente artigo pretende


visitar uma temática bastante recente àqueles que se dedicam a estudar a história
do Integralismo: a história dos “militantes comuns” do movimento3. Sublinhe-se,
todavia, que tal temática não é importante somente para os pesquisadores, na
verdade, o assunto em tela possui elevado valor investigativo devido, sobretudo, à
crucial relevância que o movimento fascista brasileiro teve no cotidiano de milhares
famílias brasileiras nos anos de 1930.
O movimento integralista4 provocava e nutria fortes emoções em seus militantes
através de sua imprensa doutrinária, reuniões, congressos, rituais e simbologia. Um
dos sentimentos viscerais era o ódio ao comunismo, institucionalizado coletivamente
pelo movimento. Porém, em Teixeira Soares-PR, os inimigos políticos diretos dos
integralistas locais eram os liberais democratas, representados pelos partidários de
Getúlio Vargas que temiam perder seu domínio diante da real ameaça verde. Essa
relação delicada entre esses dois grupos instigou conflitos cotidianos e rancores
pessoais. Quanto às sensibilidades na política, Pierre Ansart alerta ser impossível

1
Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá. Pesquisador do Laboratório do
Tempo Presente (PPH-UEM). Bolsista Capes. E-Mail: <guga2008oliveira@hotmail.com>.
2
A Razão, Curitiba, n. 12, 23 jul. 1935, p. 07. Acervo do Espaço Delfos de Documentação e Memória
Cultural (EDMC), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande de Sul, Porto Alegre – RS.
3
O campo de estudos sobre o integralismo ainda carece de estudos biográficos. Além do enfoque
nas principais lideranças como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale é necessária a
ampliação desta perspectiva para os militantes de base a nível estadual, municipal e até mesmo de
bairros.
4
A AIB, criada em 1932 e chefiada pelo intelectual Plínio Salgado, movimento fascista, possuía
uma estrutura organizacional paramilitar com divisões departamentais, secretarias e uma rígida
hierarquia nacional, estadual, municipal e distrital. Seu discurso e suas práticas pautavam-se pelo
nacionalismo, catolicismo e moralismo extremados, o que atraiu para suas fileiras adeptos de
todas as categorias profissionais e grupos sociais, especialmente as classes médias e locais com
grande concentração de cultura católica. Notamos, porém, certa flexibilidade quando encontramos
integralistas maçons como o chefe do núcleo de Teixeira Soares, Adélio Ramiro de Assis.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 195


pensar as ações sem as emoções, ou seja, as ações humanas são engendradas por
paixões, rancores, mágoas e ódios, inclusive e, especialmente, na política5.
Nas décadas de 1920 e 1930 foi possível observar em Teixeira Soares, pequena
cidade a 160 Km de Curitiba, a presença de práticas coronelísticas. Naquele contexto
interiorano a força do Integralismo incluía pressões e coações, considerando a
influência de seus “mandachuvas” municipais. Teixeira Soares era marcada por
elementos que povoavam o universo dos coronéis. Lembrando a definição de
Victor Nunes Leal:

O coronelismo é um sistema nacional baseado em


barganhas entre o governo e os coronéis, o governo
estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre
seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe
o controle dos cargos públicos [...]. O coronel hipoteca
seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos.6

Em Teixeira Soares não encontramos a figura típica do coronel7, mas


membros de famílias importantes da cidade como Gubert, Macedo, Miranda,
Molinari, Nunes, Assis e Pinto podem ser considerados “potentados”. Seu
prestígio decorria de seus capitais políticos e econômicos. Possuíam terras,
serrarias, bancos, comércio de secos e molhados, fábricas de café e ervais, cada
qual com sua influência e relação estreita com a sociedade.
A posição privilegiada dos “coronéis integralistas” locais ganhava relevância
ainda maior pelo fato de exercerem importantes papéis na economia da cidade.
Suas empresas e atividades davam emprego a muita gente. Mesmo com toda
essa influência não havia unanimidade. Documentos e depoimentos de antigos
empregados e agregados desses chefes integralistas evidenciam que nem todos
eram adeptos do Sigma. Igualmente, outros “mandões locais” não aderiram
a Plínio Salgado. Em Teixeira Soares o Integralismo fez adeptos em diferentes
segmentos sociais. Além dos “coronéis verdes”, o Sigma seduziu comerciantes,

5
Devemos aqui considerar a distinção que Ansart realiza entre emoções (“afetos vivos e limitados
no tempo”), sentimentos (“sistemas sócioafetivos menos aparentes e mais duráveis”) e a paixão,
entendida como “a afetividade vivenciada e a intensidade da ação”. ANSART, Pierre. “Em defesa
de uma ciência social das paixões políticas”. História: Questões & Debates, Curitiba, ano 17, n. 33,
jul./dez. 2000, p. 153.
6
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 4. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978, p. 231.
7
Na visão de Leal, o fenômeno coronelístico estabeleceu uma rede de poder que partia da periferia
para o centro, do micro para o macro na relação de trocas entre o poder municipal, estadual e
nacional na chamada política dos governadores da Primeira República. Assim, o coronel era mais
uma “peça” engendrada em um sistema nacional. O conceito mais próximo para compreender o
poder dos líderes locais em Teixeira Soares seria o de mandonismo. Como destaca José Murilo de
Carvalho, o mandonismo “refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas
de poder. O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele que,
em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobre a
população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à
sociedade política”. Ou seja, mesmo não tendo relações com o governo em nível estadual, o
chefe detinha prestígio econômico e social e influenciava nas relações políticas e sociais locais.
CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”.
Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, p. 2.

196 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


donos de armazéns e bodegas, padeiros, profissionais liberais, trabalhadores
rurais, católicos, maçons, varguistas que se converteram ao Integralismo, italianos,
alemães, poloneses e luso-brasileiros. Motivados por interesses distintos, mas
inseridos numa comunidade de sentimentos.
Pensamos ser importante tocar brevemente em temas que permeiam as questões
sensíveis que envolvem essa comunidade (os integralistas) e seus sentimentos de
pertença. Ao tomarmos os integralistas como sujeitos históricos que se inseriram
em uma coletividade (local, estadual e nacional), buscamos demonstrar como as
afetividades moldaram seus discursos e posturas, e evidenciamos que os camisas-
verdes estiveram envoltos de um triplo núcleo afetivo, composto por: paixão (ao
movimento, a doutrina católica e ao chefe nacional), ódio (aos comunistas e liberais
democratas), e ressentimentos (cultivados contra seus inimigos após humilhações,
que envolveram perseguições, prisões e demissões no caso dos integralistas de
Teixeira Soares). Não seria exagero afirmar que essa tríade afetiva era comum a
todo militante integralista/ fascista. Sensibilidades que moldavam frequentemente
suas ações e estampavam as páginas de sua imprensa. Na epígrafe deste trabalho,
de autoria do integralista Pedro Rodrigues Martins8, ‘garoto propaganda’ do Sigma
em Teixeira Soares e região, percebemos que o mesmo discernia o poder político
dos afetos e sentimentos.
No tocante à paixão militante, foi de útil importância a compreensão dos
conceitos de Pierre Ansart, uma vez que o movimento integralista apresenta as
características de um “aparelho afetivo”9, altamente mobilizador de sentimentos
coletivos entre os militantes, o que criava uma solidariedade afetiva antes mesmo
de uma comunidade ideológica, que emergiria a partir do aprofundamento
dos pressupostos integralistas. A relação espiritual e sentimental presente no
discurso integralista criava uma identificação peculiar entre os membros do
Sigma. Produzia um sentimento de pertença a esta comunidade. A esta relação
de produção e reprodução de mensagens comoventes Athaides denominou de
“retroalimentação”10. É importante destacar a proximidade da relação entre o amor
e o ódio, para Ansart, em movimentos fascistas busca-se manter uma poderosa
mobilização afetiva, manter as obediências através das grandes paixões e grandes
ódios. Como são paixões diversas, quem consegue redirecionar o maior numero
de sentimentos (amor, ódio e outros) de grupos distintos, consegue direcionar
a massa para seus desígnios pessoais. Somamos a isso, ainda, a questão do
ressentimento: adota-se aqui um significado para ressentimento como algo
negativo, que é envolto por mágoa, dor, pesar e rancor. Uma dor do passado
que participa da construção voluntária de memórias e de esquecimentos, sendo
mecanismo importantíssimo no que diz respeito à efetivação de demandas

8
Acerca de sua vida pessoal e profissional, pouco se conhece, a não ser que era natural de Ponta
Grossa-PR e foi contratado em 1933 por Líbero Nunes (interventor em Teixeira Soares naquele
ano) para ser engenheiro técnico da prefeitura municipal. As fontes nos indicam que Martins passou
a morar em Teixeira Soares a partir desse ano e que foi um “soldado” a serviço de Plínio Salgado
durante a experiência integralista nessa cidade.
9
ANSART, Pierre. La gestion des passions politiques. Lausanne: Editions L’Âge d’Homme, 1983, p.
109.
10
ATHAIDES, Rafael. As paixões pelo sigma: afetividades políticas e fascismos. Tese (Doutorado em
História). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2012, p. 292.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 197


políticas. É a memória aliada a sentimentos negativos que envolvem humilhações,
rancores e desejos de vingança, que são guardados de forma íntima. Na trajetória
do integralista deste estudo, percebemos o magma sentimental em que este esteve
envolvido, motivando e justificando suas ações perante o movimento integralista
e seus rivais. Neste sentido, justificamos a importância de se analisar trajetórias
individuais a partir da perspectiva da gestão dos sentimentos políticos.
Martins militou ativamente na Ação Integralista Brasileira entre os anos 1935-
1938 o que nos levou a indagações sobre as motivações de sua adesão à doutrina
de Plínio Salgado e à AIB. O forte envolvimento de Martins com o sigma pode ter
nascido de insatisfações com a política varguista ou mesmo por rancores pessoais,
já que havia uma íntima e explícita relação de ressentimentos entre integralistas e
situacionistas varguistas no município.
Para responder tais indagações analisamos a imprensa integralista paranaense
de 1935, ano em que ocorreu ativa participação de Martins entre os integralistas
estaduais. Buscamos entender qual foi a função deste militante dentro da
organização, da ideologia e da propaganda integralista, analisando os escritos deste
intelectual dentro das publicações da AIB. Para tal proposta analisamos os recortes
com os discursos e indícios das ações deste militante paranaense, publicados no
jornal curitibano, A Razão11.
Neste aspecto, Pierre Ansart e autores que pensam a relação entre sentimentos e
política pautaram nossas análises quanto às práticas deste integralista paranaense.
Para Ansart, as escolhas e interesses políticos não podem ser avaliados dissociados
das motivações sentimentais, das paixões, medos e ódios12. Sob essa ótica, nosso
estudo se insere numa perspectiva biográfica13, propondo entender melhor sua
autonomia no campo político da direita brasileira nos anos de 1930. A proposição
do estudo de uma trajetória individual, portanto, se dá numa ótica diferente da

11
No Paraná, o jornal de maior destaque foi o hebdomadário A Razão, dirigido por Jorge Lacerda.
Circulou no Estado entre primeiro de maio de 1935 e 8 de novembro de 1935 quando foi
censurado pelo governo paranaense, na época liderado pelo interventor Manoel Ribas. No total,
A Razão publicou 27 números. Em agosto de 1935 já havia triplicado sua tiragem porque circulou
também em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo. Através de seu jornal, os verdes
paranaenses colocavam em pauta os temas relevantes para o pensamento da AIB como o discurso
anticomunista, a exaltação da família e da religião, a oposição à maçonaria e à política liberal-
democrática do governo Vargas e seus representantes no Paraná, como o interventor estadual
Manoel Ribas, arquirrival da AIB.
12
ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos”. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA,
Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2004, p. 15-36.
13
Um gênero biográfico, porém, diferente, reformado e que tem por objetivo, analisar o homem
comum, e não mais os grandes vultos, em sua multiplicidade, incoerente e conflituoso, como forma
de escapar a uma concepção cerceadora das vontades individuais. Como defende Sabina Loriga:
“O indivíduo não tem como missão revelar a essência da humanidade; ao contrário, ele deve
permanecer particular e fragmentado. Só assim, por meio de diferentes movimentos individuais, é
que se pode romper as homogeneidades aparentes (por exemplo, a instituição, a comunidade ou o
grupo social) e revelar os conflitos que presidiram à formação e à edificação das práticas culturais:
penso nas inércias e nas ineficácias normativas, mas também nas incoerências que existem entre as
diferentes normas, e na maneira pela qual os indivíduos, “façam” eles ou não a história, moldam
e modificam as relações de poder”. LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL,
Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 1998, p. 249.

198 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


dos trabalhos biográficos pautados por uma forma tipificada como tradicionais.
Procuramos romper com as estruturas de coerção social, que conferem aos
indivíduos e as suas trajetórias a noção de destino ou predestinação, e o caráter de
uma história fechada, coerente e estável. Entende-se que o sucesso do retorno da
biografia para a História Política, representa a devolução da face humana para a
História, devido a sua atenção com os indivíduos, suas relações interpessoais e seu
universo sentimental.

Soldado de Plínio: Militância Integralista entre o Amor e Ódio

Agosto de 1935. Três integralistas foram demitidos da prefeitura municipal


de Teixeira Soares. O motivo, segundo o jornal A Razão, era o fato de serem
integralistas. Um dos demitidos era Pedro Rodrigues Martins, engenheiro, amigo
e braço direito de Líbero Nunes, varguista confesso e indicado por Manoel Ribas,
interventor estadual, para o cargo de interventor municipal. O episódio comoveu
a sociedade local e os integralistas paranaenses acirrando os ânimos políticos
e esquentando as eleições municipais de 1935. No pleito daquele ano o sigma
representava uma ameaça ao domínio do partido situacionista, o PSD14.
Desde os primeiros passos da Ação Integralista Brasileira em Teixeira Soares,
após a fundação de seu núcleo municipal pela bandeira15 vinda de Ponta Grossa
em maio de 1935, Pedro Rodrigues Martins já se destacava como um dos
principais representantes do Sigma local. Era reconhecido como o “porta-voz”
dos integralistas e elogiado por seus textos na imprensa e discursos em reuniões
e eventos. Martins participou da fundação do núcleo de Teixeira Soares e era
assíduo nas reuniões e congressos realizados pelos integralistas paranaenses.
A atração de Martins para o projeto integralista de Plínio Salgado tem a ver
com os mais variados fatores, desde semelhanças ideológicas e de postura até
como forma de aparecer no cenário político local. Como representante de uma
classe média desprestigiada na Primeira República, o engenheiro sentiu-se atraído
pela Ação Integralista Brasileira e pelo espaço político aberto durante os ares
democráticos da década de 30.
O conservadorismo e o autoritarismo da AIB transmitiam certo ar de conforto
à alma deste paranaense, além de lhe garantir um espaço para que pudesse, em
forma de letras e de voz, expressar de forma explícita seus anseios, sentimentos e
vontades, sem se sentir perseguido ou ter seu discurso limitado por poderes. Em

14
O Partido Social Democrático era o partido governista estadual. Eram membros desse partido o
interventor estadual Manoel Ferreira Ribas, Albary Guimarães, prefeito de Ponta Grossa e Brasil
Pinheiro Machado, Deputado Estadual e Líbero Nunes, interventor de Teixeira Soares.
15
“Bandeiras”, termo de origem paulista ressignificado pelo Integralismo: eram expedições
‘irradiadoras do sigma’, compostas por segmentos de milícia que almejavam estabelecer núcleos
ou pontos de apoio (coordenações) para futuras fundações. Ao longo da história da AIB inúmeras
“bandeiras” foram organizadas para difundir a doutrina integralista. Após o movimento se tornar
um partido muitas bandeiras tinham a finalidade de fazer propaganda eleitoral. Após a fundação
da AIB destacaram-se duas bandeiras, ambas em agosto de 1933. A primeira, direcionada ao
norte e nordeste, foi liderada por Plínio Salgado com participação de Gustavo Barroso e visitou as
principais capitais das duas regiões. A segunda, destinada ao sul do país, foi comandada por Miguel
Reale. ATHAIDES, As paixões pelo sigma..., p. 66-67.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 199


nossas análises, verificamos que Martins não ocupou nenhum cargo na hierarquia
integralista, porém, era reconhecido por seus companheiros camisas-verdes como
uma espécie de ‘porta-voz’ do sigma no Paraná, especificamente no interior
do Estado. O que nos permite caracterizá-lo como um intelectual provinciano,
preocupado com as questões políticas e sociais de sua época, com a função de
popularizar o pensamento de uma elite intelectual nacional, como o do seu chefe
integralista Plínio Salgado. Esse engajamento de Martins e sua preocupação
com questões políticas e sociais de seu tempo, sua preocupação com a realidade
nacional, constituem elementos que o caracterizam como um intelectual típico do
Brasil nos anos 30, de acordo com a definição de Daniel Pécault16.
Ao se mudar para Teixeira Soares em 1933, pelo seu ofício de engenheiro na
prefeitura, Martins esteve envolvido com importantes figuras do cotidiano político e
econômico desta cidade. Líbero Nunes, interventor municipal que o contratou, era
um homem influente e possuía força nas decisões políticas. Nunes era um dos braços
direitos de Manoel Ribas no Paraná. Contudo, foi seu ingresso nas fileiras da AIB
que estreitou, mais ainda, suas relações pessoais e profissionais com os “caciques”
da política local17. Cogitamos que Martins tomou conhecimento do movimento
integralista através de seus amigos pessoais Estevam Coimbra (primeiro chefe do
núcleo de Ponta Grossa), João Cecy Filho (diretor da Revista Integralista Brasil
Novo) e Nicolau Meira de Angelis (professor da Escola Normal de Ponta Grossa),
importantes lideranças integralistas do Estado e responsáveis pelo núcleo de Ponta
Grossa, estes teriam sido alguns dos que influenciaram Martins em seu ingresso
nas fileiras verdes do Integralismo. Assim, o engenheiro encontrou no programa
da AIB o lugar ideal para situar seu pensamento conservador, além de poder tecer
importantes relações com homens influentes das letras e da política estadual.
Em meados de 1935 (já com a fundação do núcleo da AIB em Teixeira
Soares), Martins passou a contribuir para o periódico A Razão, órgão da imprensa
integralista no Estado e a marcar presença com seus discursos em importantes
eventos integralistas.
Um desses eventos ocorreu em 20 de julho de 1935. Como anunciado na
imprensa verde paranaense, uma caravana de militantes paulistas desembarcou

16
PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Tradução de Maria
Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.
17
Com seu ingresso na AIB, Martins passou a se relacionar cotidianamente com membros de famílias
importantes da cidade como Gubert, Macedo, Miranda, Molinari, Nunes, Assis e Pinto. Seu prestígio
decorria de seus capitais políticos e econômicos. Possuíam terras, serrarias, bancos, comércio de
secos e molhados, fábricas de café e ervais, cada qual com sua influência e relação estreita com
a sociedade. Em 1935, ocupavam cargos importantes: João Baptista Gubert – presidente da
Junta de Alistamento Militar, exportador de lenha e madeira, correspondente do Banco Molinari
e Gubert; João Negrão Júnior – exportador de erva-mate e proprietário de armazém de secos
e molhados; Alberico Xavier de Miranda – agricultor, exportador de madeira e erva mate; João
Molinari Sobrinho – juiz distrital, gerente de serraria, exportador de madeira e presidente da
comissão da Igreja Imaculada Conceição; Líbero Nunes – prefeito, pecuarista e proprietário de
fábrica de café (não era integralista); Adélio Ramiro de Assis – suplente de delegado, contador e
exportador de erva mate; Osmar Ramiro de Assis – secretário-procurador da Prefeitura Municipal,
contador e exportador de erva mate. Suas posições e posses permitiam proteger seus interesses
político-econômicos e ampliar seus capitais sociais num ambiente marcado pela troca de favores,
amizades e rivalidades.

200 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


às 13h30 na estação ferroviária de Ponta Grossa, apinhada por centenas de
integralistas.

Ao desembarque dos companheiros Gofredo da Silva


Teles Junior e Francisco da Silva Prado, componentes
da embaixada Provincial de São Paulo, nenhum discurso
foi pronunciado. Dois anauês vibrantes foram as
únicas e significativas saudações que os receberam. Da
estação, todos seguiram em massa para a Sede, onde se
dispersaram!18

No mesmo dia, às 19 horas, o Éden Teatro transbordava camisas-verdes.


Famílias inteiras com seus plinianos19 marcavam presença. Após hinos, poemas e
juramentos integralistas discursaram o chefe de Ponta Grossa Emmanuel Bittencourt,
o representante do chefe provincial Jorge Lacerda e o redator do jornal A Razão,
além dos visitantes paulistas. Se destacaram as conferências intituladas “Os velhos
liberalões e os pobres comunistas e o erro enorme de suas ideias sediças”, e “O
Integralismo, abrangendo numa síntese admirável as finalidades do movimento”.
Nessas falas abundavam frases de repulsa aos inimigos: os liberais e os comunistas.
O representante dos integralistas de Teixeira Soares, Pedro Rodrigues Martins,
também ocupou a tribuna e traduziu em poucas palavras:

[...] a solidariedade de 200 brasileiros daquele núcleo, que


ali mais uma vez de corpo e alma, se entregavam as ordens
de Plínio Salgado, pela redenção da Pátria. A assistência
abafou as suas palavras finais, que foram incisivas.20

Deixando de lado o discurso ideológico, Pedro Rodrigues Martins demonstrou


sua paixão pelo sigma e submissão ao chefe nacional da AIB, Plínio Salgado.
Apesar da ausência de Salgado e dos duzentos integralistas teixeirassoarenses o
texto sugere a presença de todos: “de corpo e alma”, entregues à causa máxima, a
nação imaginada, idealizada pelos integralistas21.
A criação de estruturas simbólicas foi essencial para comunicar o nacionalismo
integralista reduzindo assim as distâncias geográficas, culturais e, ao menos nas

18
A Razão, Curitiba, n. 13, 30 jul. 1935, p. 04. EDMC.
19
“O processo de iniciação na militância do movimento desenvolvia-se na organização da juventude
(plinianos), dos quatro até os 15 anos de idade. Contudo, só a partir dos 16 anos poderia o ‘camisa
verde’ ter ingresso definitivo na Milícia”. SIMÕES, Renata Duarte. A educação do corpo no jornal A
Offensiva (1932-1938). Tese (Doutorado em História da Educação e Historiografia). Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2009, p. 116.
20
A Razão, Curitiba, n. 13, 30 jul. 1935, p. 04. EDMC.
21
Na definição de Anderson: “o nacionalismo implica em atos de imaginação, que, por sua vez,
engendram o sentimento de pertença à determinada comunidade nacional. Assim, a imaginação
é essencial para a conformação de uma identidade comum, uma vez que os seus membros jamais
estabelecerão laços entre si em sua totalidade, nem em parte significativa dela, mas, ainda assim,
na mente de cada um existe a imagem de sua comunhão”. ANDERSON, Benedict. Comunidades
imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução de Catarina Mira.
Lisboa: Edições 70, 1991, p. 25.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 201


camisas, as distâncias sociais. Com juras de fidelidade ao líder Plínio Salgado,
Rodrigues Martins aspirava alcançar maior representatividade e integração do
núcleo de Teixeira Soares junto ao sigma estadual e nacional. Mesmo sem conhecer
o líder pessoalmente, em seu discurso Martins se deixou levar pela emoção que
certamente contagiava seus extasiados ouvintes. Utilizou a expressão “se entregar”
para se referir ao chefe maior do Integralismo. Entregar enquanto submissão,
rendição, confiança e dedicação total a Plínio Salgado, pela causa maior: a
redenção da pátria.
Ocorre no discurso de Martins afinidade entre sentimentos e ações. Pierre Ansart
dimensiona perspectivas para o estudo das afetividades políticas. Para o autor,
trata-se de perceber “as paixões não como sintomas de irracionalidade, mas como
dimensões essenciais da experiência histórica”22. Analisar as ações políticas deve
levar em conta as paixões que as movem e direcionam, e que, em certas situações,
se sobrepõem à razão.
Instigado pelo sentimento de dedicação ao líder e pela numerosa plateia,
Martins discursou calorosamente como porta-voz dos verdes de Teixeira Soares.
Apesar do entusiasmo demonstrado no Éden Teatro diante de camisas verdes de
toda a região, ao retornar a Teixeira Soares, Pedro Rodrigues Martins e seus colegas
da AIB enfrentaram dificuldades no mês de agosto.
Naquele momento a imprensa verde regional publicava notícias sobre a Lei
de Segurança Nacional esclarecendo que a mesma garantia aos integralistas o
livre exercício de cargos públicos. Apesar disso, o prefeito de Teixeira Soares,
Líbero Nunes, perpetrou um desatino que marcou a trajetória integralista
no município. Ignorou a lei federal e demitiu os funcionários integralistas da
prefeitura. Este ato inusitado motivou um telegrama de Adélio Ramiro de Assis,
chefe municipal da AIB, à redação do jornal A Razão:

Teixeira Soares acaba de pagar seu tributo pela


grande causa nacional, com exoneração do cargo que
ocupavam na prefeitura os companheiros Osmar Ramiro
de Assis, Pedro Rodrigues Martins e Germano Baumel,
unicamente por serem integralistas, Anauê!23

As breves palavras de Assis expressavam o “sacrifício” dos integralistas


teixeirassoarenses no altar da pátria. Não obstante o ambiente pesado e as
bravatas do prefeito Líbero Nunes os integralistas prosseguiram suas atividades
políticas. Sentindo-se acossados, talvez tenham acirrado ainda mais seus
discursos e acabaram por “sacrificar” seus cargos pela paixão integralista, pela
“grande causa nacional”.
Se havia amparo legal federal aos integralistas no serviço público, é verdade
que acima do prefeito Líbero Nunes havia um interventor estadual apreensivo
com o futuro das eleições naquele ano. Os integralistas estavam organizados em
várias cidades no interior do Paraná nas quais ameaçavam eleger seus prefeitos.

22
ANSART, “Em defesa de uma ciência...”, p. 150.
23
Adélio Ramiro de Assis, Chefe Municipal. A Razão, Curitiba, n. 16, 15 ago. 1935, p. 01.
EDMC.

202 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Em Teixeira Soares os funcionários públicos verdes tinham o apoio da elite
integralista. Na prática, Líbero Nunes e seus correligionários do PSD, estavam
pressionados pelo forte sigma local.
Em imediata resposta ao eloquente telegrama de Adélio Ramiro de Assis, A
Razão publicou também eloquente nota:

Oh Bravos camisas-verdes que fostes demitidos!


Conservai a vossa coragem, o vosso ardor, o vosso
entusiasmo! Que crime cometestes em Teixeira Soares?
Cometemos o grande crime de amar a Pátria! Respondeis.
E só por isto, oh valorosos companheiros, tiraram-vos e
à vossa família, o pão de cada dia!
Mas os nossos perseguidores não tem coração? Não
compreendem os grandes ideais?
Oh Deus, tu que reges os destinos do Universo, dá-
nos sempre a mesma coragem e o mesmo ardor nesta
campanha e dá-nos força, para que cheguemos ao
término da cruzada, a fim de enxotarmos a chicote os
miseráveis vendilhões do templo da Pátria!
Aos intrépidos companheiros demitidos, pela politicalha
vil e interesseira, o estímulo e a vibração do nosso
ANAUÊ!24

A Razão elogiou a bravura e dedicação dos demitidos e os colocou como


vítimas da “politicalha vil e interesseira”, sem coração que roubava o pão de
suas famílias. Invocando as forças divinas em desagravo e apoio, o articulista
evidencia um lado pouco enfatizado na propaganda integralista: a violência e o
revanchismo diante da afronta. A luta integralista, comparada a uma cruzada,
portanto sagrada, justificava o “chicote” contra os inimigos, no caso, os membros
do PSD em Teixeira Soares.
As demissões tinham o intuito de frear o avanço do Integralismo e intimidar
os militantes a menos de um mês para as eleições municipais de 12 de setembro.
Líbero Nunes agiu por força das disputas políticas e, certamente, por ordens
superiores. Indício disso eram as cordiais relações nutridas por Nunes com os
demitidos Assis, Martins e Baumel.
As demissões foram um “tiro no pé” de Nunes e do PSD?
O episódio causou comoção na cidade e acirrou ódios entre pessedistas e
integralistas. Desempregados, Assis, Martins e Baumel deram tudo de si na
campanha do Partido Integralista. Não apenas por amor ao sigma, mas por
interesse em recuperar seus empregos elegendo o candidato verde e para vingar
a desfeita de Nunes.
Sobre as ações alegadas como provocadoras às autoridades municipais que
teriam motivado as demissões dos integralistas, Dona Noêmia, esposa de Líbero
Nunes registrou em seu livro de memórias:

24
A Razão, Curitiba, n. 16, 15 ago. 1935, p. 01. EDMC.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 203


ATITUDE INESPERADA
Para bom andamento da administração da Prefeitura no-
meou um engenheiro e um secretário. Ambos trabalhavam
juntos.
Fazia um ano que Líbero assumiu a Prefeitura quando sur-
giu o Integralismo, sendo Chefe Plínio Salgado com a fina-
lidade de derrubar Getúlio Vargas. Trabalhavam em todo o
Brasil com o juramento DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA.
Os dois de confiança de Líbero, secretário [Osmar Ramiro
de Assis] e engenheiro [Pedro Rodrigues Martins] ingres-
saram no Integralismo e fora do expediente normal traba-
lhavam na Prefeitura para o dito partido de Plínio Salgado.
Líbero sabendo, exaltou-se, despedindo os dois. Ficaram
constrangidos com ele, cujo desejo era vingança. Lutaram
para Líbero aderir o movimento Integralista, mas ele não
era traidor, não aceitou. Era firme em suas decisões.25

Em meio aos conflitos fermentados em 1935 percebemos no relato da esposa


de Líbero Nunes, redigido quase 50 anos depois, que o episódio das demissões dos
integralistas e a forte presença do sigma na cidade geraram ressentimentos entre
os políticos, alcançando suas famílias. Dona Noêmia se refere de maneira negativa
aos integralistas resumindo seus objetivos a “derrubar Getúlio Vargas”. Seu rela-
to revela certo desencanto quanto ao convívio dos integralistas com seu marido,
o varguista Líbero Nunes, derrotado pelos camisas-verdes nas eleições de 1935.
Conforme a Sra. Elenite Baumel, verificamos que as demissões dos camisas-verdes
da prefeitura e a relação desses com os varguistas deixaram marcas profundas
entre os moradores do município. Seu tio Germano Baumel era amigo e compa-
nheiro de trabalho de Líbero Nunes. Segundo Elenite, o “Tio Germano ficou muito
triste com o Lili [Líbero Nunes]”26.
A efervescência política e os ânimos exasperados entre getulistas e integralistas
estremeceram laços de amizade e moveram sentimentos de mágoa entre amigos e
famílias. Os eventos daqueles dias conturbados da década de 1930 permaneceram
vivos nas memórias de moradores e descendentes daqueles que os vivenciaram
diretamente. Podem, através da metodologia da História Oral, trazer seus ecos ao
palco da história e de sua escrita.
Com o crescimento da AIB em âmbito nacional em meados de 1935 e com
a imobilização dos comunistas após o levante de novembro no mesmo ano, os
integralistas vislumbravam o poder nacional. Isso gerou atritos entre varguistas e
integralistas. Em Teixeira Soares as relações entre os dois grupos azedaram na me-
dida em que as eleições se aproximavam e ambos se preparavam para o embate
nas urnas. Na visão de Dona Noêmia a demissão dos funcionários integralistas da
prefeitura de Teixeira Soares ocorreu porque eles trabalhavam para a AIB dentro
da própria prefeitura. A repartição pública era empregada como seara na difusão

25
Grifo nosso. Livro de memórias de Dona Noêmia Nunes, 1982/ 1983, p. 20-21.
26
BAUMEL, Elenite. Entrevista concedida a Luiz Gustavo de Oliveira, 15 mai. 2014.

204 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


das ideias do sigma e angariar novos adeptos e eleitores. Além de Pedro Rodri-
gues Martins e Osmar Ramiro, outros funcionários podem ter bandeado de lado
o que certamente irritou o prefeito Líbero Nunes. Como pessedista, considerava
o ingresso na AIB uma traição ao governo Vargas e ao PSD, ainda mais debaixo
de suas barbas. Outra informação importante acrescentada por Dona Noêmia foi
o fato de Martins e Ramiro serem funcionários da confiança de Nunes. Somados
os ressentimentos políticos e pessoais, Nunes teria agido por impulso e exonerado
os funcionários. Mas, antes disso, consta que os demitidos teriam tentado “con-
verter” Nunes à doutrina de Plínio Salgado. As paixões políticas dividiram famílias
e estremeceram laços de confiança e amizade, produzindo ações intempestivas e
sentimentos contraditórios.
O ambiente sentimental que marcou discursos e ações integralistas em Teixeira
Soares foi pontuado por sua imprensa. Nos meses que antecederam as eleições
municipais Pedro Rodrigues Martins discursou apelando às emoções dos ouvintes,
conclamando todos aos ideais integralistas, independente das diferenças sociais. O
discurso foi publicado n’A Razão:

Aproxima-se o tempo em que todas as coisas devem


ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido. Estamos
preparados para dissipar as trevas, humilhar os
orgulhosos e glorificar o Brasil. Brasileiros! Que ainda
não compreendestes o que é o Integralismo, não vos
mostreis indiferentes a Ele, não vos junteis as fileiras dos
chamados comodistas, porque se assim fizerdes deixais
de ser Brasileiros!!! Em verdade vos digo, que as vozes
dos verdadeiros Brasileiros, retumbam do Amazonas ao
Prata, como sons de trombetas, juntando-se a ela os coros
harmoniosos das mulheres Brasileiras. Vós que ainda
não vestistes a camisa-verde, Lêde: não é só um homem,
impondo-se a qualquer que seja, que implantará o regime
Integralista; quem o irá implantar serão todos os Brasileiros,
depois que compreenderem o que é o Integralismo. Não
penseis vós, indiferentes e comodistas que o Integralismo
repousa sobre a frágil cabeça de um só indivíduo; tal é sua
força e a sua autoridade que junta o Médico ao Obreiro,
o Advogado ao Camponês, o Engenheiro ao Operário,
unindo-os a todos como irmãos; desconhecendo Ele as
rivalidades coesas, implantará a Paz, no lar da Família
Brasileira, e tudo isso, porque repousa no princípio geral
das ideias elevadas.27

Em linguagem litúrgica e eloquente, o discurso de Martins apresenta vários


pontos da ideologia integralista como a crítica à massa amorfa, ao comodismo
político e a exaltação da família e do Brasil. Certamente, a experiência integralista

27
Grifo nosso. A Razão, Curitiba, n. 12, 23 jul. 1935, p. 07. EDMC.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 205


cotidiana de Pedro Rodrigues Martins em Teixeira Soares inspirou alguns pontos
de sua fala. Ao destacar que a força do Integralismo congregava as diferenças
sociais, utilizou sua vivência como engenheiro que militou ao lado de comerciantes,
industriais, alfaiates e agricultores. Percebemos que os princípios do corporativismo
integralista28 ecoaram em Teixeira Soares com o objetivo de suprimir os conflitos de
classes para atingir o “bem maior” de constituir uma nação forte e coesa, idealizada
pelos camisas-verdes.
A prédica do militante de Teixeira Soares permite vislumbrar a relação
estabelecida entre os integralistas de todo o país. Mesmo não se conhecendo
compartilhavam uma “identidade” comum. A partir da reflexão de Anderson a
nação é “[...] uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”29. Para o autor, a nação
seria comunidade porque é concebida enquanto estrutura horizontal na sociedade
tornando possível membros de diferentes classes sociais, em diferentes posições
sociais, ocuparem um mesmo âmbito municipal, nacional e estarem vinculados a
um projeto em comum.
Sobre a nação integralista imaginada Rodrigues Martins comenta:

Ele [o integralismo] encontrará as soluções para todas as


questões litigiosas. Ele terminará as dissidências e dará a
razão a quem a tiver, fará dos que nasceram no Brasil,
os verdadeiros Brasileiros. Ainda vos digo, a vós todos
que não conheceis a doutrina de Plínio Salgado que não
passará este ano sem que Ela resplandeça com todo o
brilho, de modo a acabar com todas as incertezas. Vozes
iluminadas fazem-se ouvir, nos quatro pontos cardeais do
Brasil, para congregar os Brasileiros sob uma só bandeira,
sob um só lar, fazendo desaparecer o nefasto bairrismo que
reina no seio da Família Brasileira. O seu único inimigo é o
chamado “Comunismo” e por quê? Porque o comunismo
proclama a discórdia, proclama o nada depois da morte

28
Suprimir o conflito de classes era um mote no discurso integralista. Para atingir este objetivo
era preciso realizar o que Miguel Reale denominava de “socialização humanística”, ou seja, “a
possibilidade de compor o quadro social perfeitamente integrado, mas partindo da base. Essa
possibilidade estaria numa espécie de aglutinação dos interesses pelos sindicatos e respectivas
corporações”. SOUZA, Francisco M. Raízes teóricas do corporativismo brasileiro. Rio de Janeiro:
Tempos Brasileiros, 1999, p. 18. Em A sacralização da política, Alcir Lenharo considerou que a
propaganda política, os órgãos de censura governamentais como o DIP e a projeção da figura
de Getúlio Vargas como chefe-pai do povo brasileiro, foram tentativas de implantar um Estado
corporativo no Brasil. Para Lenharo, o getulismo se aproximava em muito ao fascismo italiano e ao
salazarismo português. Intelectuais da década de 1930 e 1940 pensavam que a sociedade deveria
ser organizada de forma orgânico-corporativa. Acreditavam que a nação deveria ser estruturada
como um corpo orgânico, vivo, biológico, em que os estamentos sociais se assemelhassem aos
órgãos de um grande corpo natural, de maneira que seu bom funcionamento produzisse o
desenvolvimento do todo social. Além disso, esses intelectuais acreditavam que a hierarquia era
um elemento necessário à sociedade corporativista, dividida entre comandantes e comandados.
LENHARO, Alcir. Sacralização da política. 2. ed. Campinas: Papirus, 1986.
29
ANDERSON, Comunidades imaginadas..., p. 32.

206 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


do corpo, e é a anulação de toda a responsabilidade moral
ulterior; é um excitante do mal: que o mal tem tudo a
ganhar a ideia do nada. Não vemos nele o princípio de
fraternidade que nos ensina a amar os nossos irmãos, a
respeitar e adorar o nosso Ente Supremo, que é Deus. É
pelo fruto que se conhece as árvores. Pobres irmãos que
não veem o princípio diante de vós. Mudai de ideias.
Progredi, e vinde juntar-vos a Nós que vos receberemos
com os braços abertos, pois o verdadeiro amor que deve
unir os homens do Brasil encerra-se na Camisa-verde
do Sigma. Brasileiros, irmãos a quem amamos, procurai
não cortar os brotos da semente que a bem de todos
semeamos, pois nas sombras de seus possantes galhos se
abrigará toda a Família Brasileira.30

Neste sentido, o nacionalismo integralista/ fascista, transcende a divisão e a luta


entre as classes e a harmonia em meio a uma crise. Esquerda, direita e centro
não fazem nenhum sentido para os fascistas, que se consideravam além dos
partidos políticos tradicionais e se apresentavam como os únicos representantes
e regeneradores da nação. A nação fascista, nesse sentido, seria expurgada
dos males materialistas, que incluía o capitalismo, liberalismo e o comunismo,
automaticamente relacionados aos judeus. A nação imaginada pelos integralistas
evoca a ideia de uma comunidade de sentimentos, na qual não é somente a cultura
ou as posições políticas que diferenciam os homens ou que os unem, mas uma
mesma maneira de sentir e de experimentar.
Em seu texto, além de revelar poder das afetividades na política, Rodrigues
Martins também não estava enganado sobre o crescimento dos núcleos integralistas
em todo país em 1935. De acordo com Athaides a província da AIB estava presente
em:

[...] praticamente todo o Paraná habitado em fins de


1935 – contando com atividades de coordenação em
municípios, bairros, distritos, vilas, fazendas e portos [...]
Arredondando os dados inexatos do A Razão, referentes
aos 6 meses seguintes, para 9.500 filados, temos um
incremento de 6500 filiados, até janeiro de 1936, o que
reflete a criação e consolidação dos núcleos nas regiões
interioranas. Até fins de setembro de 1935, o Paraná
possuía 31 núcleos municipais e 55 núcleos distritais.31

Em termos comparativos nacionais, em agosto de 1935 já havia no país:


“segundo balanço de Sa1gado, 1 deputado federal; 4 deputados nos diversos
estados; 1.123 grupos organizados nos 548 municípios e 400.000 aderentes”32.

30
Grifo nosso. A Razão, Curitiba, n. 12, 23 jul. 1935, p. 07. EDMC.
31
ATHAIDES, As paixões pelo sigma..., p. 141-142.
32
TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. 2. ed. São Paulo: Difel,

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 207


A força do Sigma ficou evidente nas eleições de setembro daquele ano. Esse fato
aliado ao levante comunista de finais de 1935 estendeu aos camisas-verdes várias
restrições motivando sua repressão em vários estados. No Paraná, em função da
censura, o jornal integralista A Razão encerrou suas atividades em novembro de
1935.
Destacamos o trecho em que o militante teixeirassoarense se refere à elasticidade
das fronteiras do movimento integralista, no sentido de receber de “braços abertos”
até mesmo comunistas conversos a AIB, afirmando que “abraçar” o Sigma seria
um progresso, um passo a outro estágio, o das “ideias elevadas”. Para Rodrigues
Martins, não seria a economia, a política ou a cultura que congregaria em uma
mesma nação diferentes classes, credos e ideias. A relação afetiva se revela essencial
nesse discurso no qual os sentimentos são mutáveis. O amor ao comunismo poderia
se tornar amor ao Sigma, “encerrar-se na camisa-verde” e “unir os homens do
Brasil”.
Não encontramos indícios de militantes comunistas no município em estudo.
Isso reforça a ideia de um anticomunismo instituído coletivamente a partir do
movimento. Na prática, para os integralistas teixeirassoarenses, os comunistas
eram inimigos imaginários, conhecidos por discursos, leituras e pela fé na doutrina
da AIB.
Os verdes de Teixeira Soares ganharam representação junto ao Sigma estadual.
Suas atividades e contribuições com artigos para o jornal eram enfatizadas nas
páginas d’A Razão. Não foi por acaso que o texto de Rodrigues Martins estampou
a edição de 23 de julho, data simbólica do aniversário da Província Integralista
do Paraná. Em suas palavras, repletas de sentimentos, notamos que o militante
tinha plena consciência da força mobilizadora das emoções. Além dos Liberais
Democratas (representados pelo Partido Social Democrático – PSD), que seriam
rivais do Integralismo nas eleições, a crítica de Martins se estendeu aos comodistas
e indiferentes, público alvo de seu discurso que poderia ser decisivo nas eleições.
Com sua proposta Rodrigues Martins almejava instigar os ideais do Sigma em todo
o país, congregando intelectuais e políticos das cidades e trabalhadores rurais do
interior do Brasil.
Em âmbito nacional Vargas abria caminho para sua própria política, sem
partidos após o golpe de 1937. Antes disso, havia um extenso quadro político
partidário, além da AIB33. Antes disso, havia o PSD e UR legais, além da AIB. Na
clandestinidade e na cadeia havia o PCB e outros grupos de esquerda. Em Teixeira
Soares, além da ausência dos comunistas, notamos os choques entre as elites locais
na disputa pelo poder. Líbero Nunes, prefeito nomeado, tentaria manter-se no
cargo através do voto. Parte da elite econômica ligada ao mate e a madeira vinha
de fora do município (outsiders) e teve problemas para se inserir politicamente
diante dos moradores originais (estabelecidos)34. É provável que o primeiro grupo

1979, p. 297.
33
Como exemplo, citamos: Partido Pró-Estado Leigo, Partido Concentração Trabalhista, Partido
Consolidação Cívica, Partido Reivindicador Proletário, Partidos dos Universitários Independentes.
34
Em Os estabelecidos e os outsiders, Norbert Elias discorre acerca das normas de socialização e
relações de poder estabelecidas numa pequena comunidade da Inglaterra nos arredores de uma
zona industrial composta de três setores, que, apesar de não diferirem quanto ao aspecto econômico,

208 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


tenha vislumbrado no sigma seu passaporte para mudar aquela situação.
Em Teixeira Soares o Integralismo se difundiu como elemento aglutinador de
diversas classes, atraindo especialmente alguns industriais do ramo ervateiro e
madeireiro. A ritualização e o pertencimento a um grupo pode ter mobilizado os
“comodistas e indiferentes”, fator decisivo para o sucesso eleitoral do sigma. Em
um momento em que o Partido Social Democrático (PSD), a União Republicana
Paranaense (URP) e o Partido Social Nacionalista (PSN) de Plínio Tourinho
constituíam com maior destaque as possibilidades de participação política, o
Integralismo apresentou-se como força alternativa ao eleitorado paranaense. Em
Teixeira Soares, porém, não havia muitas opções no cardápio partidário naqueles
dias. As eleições para prefeito e vereadores confrontaram o PSD e a AIB.
Na primeira página da edição de 23 de agosto de 1935 o jornal A Razão convocou
os camisas-verdes às urnas. Como para uma guerra: “CAMISAS-VERDES! A Urna
é o Peito da Liberal-Democracia! Cravemos nela, Com Rancor e Sem Misericórdia,
o Punhal do Nosso Voto!”35.
O “punhal” integralista em Teixeira Soares foi confiado a João Molinari Sobrinho,
candidato do sigma para enfrentar o interventor Líbero Nunes para o cargo de
prefeito. Nunes buscava legitimar o PSD e a si mesmo no poder por meio do voto.
Molinari tentava colocar os camisas-verdes no poder, para isso contava com a
mobilização de seus companheiros, entre eles Pedro Rodrigues Martins, expert na
mobilização das paixões políticas e de novos adeptos para a AIB.
Sobre os demitidos da prefeitura: Osmar Ramiro de Assis reassumiu seu cargo
e recebeu os salários retroativos à data de sua demissão36. O retorno de Ramiro de
Assis certamente alegrou seus correligionários e parte da sociedade que considerou
injusta sua demissão. O militante foi recompensado pela perda do emprego por
sua dedicação à causa integralista. Quanto a Germano Baumel, também demitido
pelo ex-prefeito Líbero Nunes, retornou à prefeitura por concurso, assumindo o
cargo de fiscal geral do município, nomeado em 17 de fevereiro de 193637. A
respeito de Pedro Rodrigues Martins, não encontramos indícios de seu retorno para
a prefeitura. Possivelmente, Martins deixou de lado por um tempo a burocracia
de sua profissão, para continuar atuando em seu período de maior engajamento
político na Ação Integralista Brasileira, como um dos Soldados de Plínio Salgado.

Considerações Finais

Em sua militância política, Pedro Rodrigues Martins revelou sua paixão à causa
integralista e à redenção ao bem maior: a nação. Com seus discursos e atitudes
persuasivas mobilizou centenas de pessoas em torno da Ação Integralista Brasileira,
desde a fundação do núcleo da pequena Teixeira Soares até sua extinção com o

sustentavam uma pluralidade latente em suas práticas e preceitos de socialização, reproduzindo


sentimentos de discriminação, delinquência e exclusão entre os moradores de diferentes grupos.
Ver: ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações
de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
35
A Razão, Curitiba, n. 17, 23 ago. 1935, p. 01.
36
Livro Balancete da Gestão de João Molinari Sobrinho. Teixeira Soares, 16 abr. 1936.
37
Livro Balancete da Gestão de Palmiro Gomes de Oliveira. Teixeira Soares, 29 fev. 1936.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 209


Estado Novo.
Notamos que os sentimentos moldaram a postura política de Martins. A
dedicação ao Integralismo e ao seu chefe maior, Plínio Salgado, o fez abandonar
suas articulações políticas, sua fidelidade ao interventor municipal Líbero Nunes e
ao presidente Getúlio Vargas, se inserindo na “família integralista”. Sua demissão/
sacrifício por trabalhar para o movimento tornou Martins um dos militantes mais
reconhecidos pela imprensa integralista estadual.
Seus discursos repletos de apelos religiosos emocionaram seus ouvintes e
leitores. Criticou os adversários, o comodismo político, exaltou a defesa da família
e do Brasil e até mesmo convidou os comunistas a abraçarem o Sigma. Ao levar
a mensagem da AIB para reuniões, congressos, casas de amigos e seu local de
trabalho, Martins granjeou inimizades e incomodou autoridades públicas. O
episódio de sua demissão é um claro exemplo disso e rendeu ao jornal A Razão
não apenas manchetes sobre as perseguições sofridas pelos integralistas em Teixeira
Soares, mas contribuiu para levar o candidato integralista a prefeito, João Molinari
Sobrinho, à vitória.
De getulista à integralista, de engenheiro da prefeitura à militante ativo da
causa integralista, Pedro Rodrigues Martins viveu momentos de amor e ódio
durante a experiência da AIB em Teixeira Soares. Traidor de Getúlio ou adorador
de Plínio Salgado? Estamos diante de um homem da década de 1930. Como
tantos brasileiros, vivenciou as incertezas daqueles anos e do regime varguista e se
reposicionou politicamente movido por seus sentimentos e convicções religiosas.
Sua trajetória enquanto protagonista contribui para compreendermos melhor
as atitudes dos oposicionistas, do Estado e da sociedade teixeirassoarense/
paranaense da década de 1930 para com os integralistas. Discutimos em que
medida os sentimentos moldaram as posturas e definiram os comportamentos
políticos de um integralista. Sem a presunção de ter encontrado todas as “peças
verdes” de sua biografia, através da leitura do jornal verde A Razão foi possível
apreender aspectos que marcaram sua vida cotidiana de militante: medos, paixões,
esperanças, raivas e perseguições enfrentadas, mas também de conquistas, ainda
que fugazes. Tais circunstâncias informam sobre sua visão de mundo e conferem
sentido a suas escolhas.



210 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


RESUMO ABSTRACT
Apresentamos neste artigo uma interpretação We present here an interpretation about Pedro
acerca do percurso de Pedro Rodrigues Martins, Rodrigues Martins path, Paraná integralist in
integralista paranaense, em seu período de its largest and most explicit period of political
maior e mais explícito engajamento político engagement in the Integralista Brazilian Action.
na Ação Integralista Brasileira. Notamos que We note that the feelings shaped Martins policy
os sentimentos moldaram a postura política stance. Some questions guided the study: What
de Martins. Algumas questões nortearam o was the function of this within the militant
estudo: Qual foi a função deste militante dentro fundamentalist organization? As their worldview
da organização integralista? Como sua visão dialogued with the doctrine of Plínio Salgado?
de mundo dialogava com a doutrina de Plínio To answer these questions we analyze Curitiba
de Salgado? Para responder tais indagações newspaper excerpts A Razão, 1935. From the
analisamos excertos do jornal curitibano A writings of this intellectual in the publications
Razão de 1935. A partir dos escritos deste of AIB and clippings with the evidence of their
intelectual dentro das publicações da AIB e dos actions, the study aims to understand the network
recortes com os indícios de suas ações, o estudo of relationships that this is integralist inserts.
se propõe a compreender a rede de relações que Keywords: Integralism; Paraná; Biography.
este integralista se insere.
Palavras Chave: Integralismo; Paraná;
Biografia.

Artigo recebido em 27 out. 2015.


Aprovado em 05 mar. 2016.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 211


A TRAJETÓRIA POLÍTICA E INTELECTUAL
DE GORBACHEV E AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS DA URSS
Moisés Wagner Franciscon1

Introdução

À primeira vista, a transformação das ideias e políticas de Mikhail Sergeievitch


Gorbachev (1931-) sobre o papel de seu país no mundo parece inexplicável.
Afastou-se de seus antigos aliados e parceiros comerciais para se aproximar
política e economicamente dos tradicionais inimigos; permitiu, ou mesmo atuou
voluntariamente (como no caso cubano) para o esfacelamento da área de influência
do país que comandava e que constituía um verdadeiro império; converteu
regimes, que por décadas foram alvo da tentativa de aproximação soviética, em
monstros do cenário internacional (como a Líbia de Muammar Kadaffi ou o Iraque
de Saddam Hussein); abandonou as mais caras metas da política externa e de sua
condução típicas a seu país.
Ao permitir que seu império externo se fragmentasse e que fosse sumariamente
ocupado por seus novos parceiros da OTAN, preparou e tornou possível a
desagregação do império interno de um Estado multinacional, como era a URSS.
Ao eliminar a sombra do antigo inimigo externo – e de qualquer outro inimigo que
não fosse o interno, compreendido como o forte setor político e social conservador
– trocou uma política de coesão social interna (e com os antigos regimes satélites),
por uma linha de crescente polarização social e de acirramento das tensões internas,
que por vezes, quase degeneraram em guerra civil. Segundo Medvedev, se o conflito
armado não eclodiu para além de alguns pontos da periferia da União Soviética,
este feito pode ser creditado mais a pura sorte, do que a ação do secretário-geral2.
As fronteiras ainda hoje não são assunto encerrado.
Ao criticar a antiga política externa como ideológica, caduca e irrealista, e o
enfraquecimento internacional de sua pátria, Gorbachev (1985-1991) forjou
uma nova conduta ainda mais ideológica e afastada da realidade mundial e das
necessidades da URSS (ao menos enquanto se desejasse que esta permanecesse
como superpotência).
A corrente de estudos da diplomacia baseada apenas no entendimento do
realismo das ações tomadas, como a de Paul Kennedy3, deparar-se-ia com um objeto

1
Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná. E-Mail: <mw.franciscon@hotmail.
com>.
2
MEDVEDEV, 2002 apud POCH-DE-FELIU, Rafael. La gran transición. Barcelona: Crítica, 2003, p.
11.
3
O autor, escrevendo tão tarde quanto 1989, duvida que Gorbachev realmente transferisse os
investimentos do setor militar para o de bens de consumo ou mesmo nos investimentos para
dinamizar a economia (p. 474). Prefere se ater às tradições russas, e não à vontade e ao pensamento
que se instalaram no Kremlin e que refletiam setores minoritários da sociedade. Percebe a existência
de uma multiplicidade de opiniões, possibilidades e projetos para o futuro da URSS, mas não a
profundidade de sua discrepância nem o potencial liberal dos reformistas e suas bases de apoio

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 213


impenetrável. Ou teria que tomar a versão de Gorbachev como a verdade objetiva.
O país estava falido e o desarmamento precisava ser realizado, independentemente
dos custos políticos e diplomáticos de concessões unilaterais. As ações iniciais de
Gorbachev davam algum amparo a essa análise, como a moratória dos testes
atômicos, decretada tão logo que assumiu o poder. Mas aceitá-la, significa ter que
desconsiderar que a URSS conseguiu acompanhar a escalada militar até aquele
momento.
Andropov estava a construir silos na mesma proporção em que estes eram
implantados por Reagan e seu programa de euromísseis, de forma a manter a
superioridade soviética nos mesmos níveis de antes4. Até então, sempre se
imaginava que a União Soviética havia atingido seu limite (era o discurso ocidental
desde os tempos de Lenin). Entretanto, o sistema conseguia alcançar os objetivos
primários fixados. Os especialistas ocidentais estavam abandonando essa ideia e
já conjeturavam quanto tempo a URSS levaria para formar seu próprio escudo
de defesa espacial5. A crença na ruptura do regime estava presente apenas nos
discursos de Reagan. Com as concessões diplomáticas e a crise econômica do fim
da década de 1980 o discurso do peso dos gastos militares como fator essencial
para a ascensão de Gorbachev e o fim da URSS retornou à academia6. A questão
não passa por uma derrota militar – que não ocorreu, ou uma deserção diante do
poderio inimigo, mas sim nos objetivos traçados pela liderança, que pretendia não
a confrontação ou a competição diplomática e militar internacional, mas se fundir

em grupos sociais. Reconhece seu poderio econômico e militar ao afirmar que “isso [a gama
de dificuldades estratégicas e produtivas soviéticas] não significa que a União Soviética esteja à
beira do colapso [...]. Significa, isso sim, que ela está enfrentando opções difíceis. Como disse um
especialista russo, ‘A política de canhões, manteiga e crescimento – a pedra fundamental política
da era Brejnev – já não é possível’” e as preocupações imperiais eram a prioridade inquestionável.
KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 487.
4
Sem a ratificação do Tratado SALT II pelo Congresso dos EUA, que controlaria a produção de
mísseis balísticos, a URSS de Brejnev substituiu armas antigas pelos novos SS-20. O novo presidente
americano, Ronald Reagan, acusou a União Soviética de provocar uma escalada armamentista e
em 1981 firmou acordos com os membros europeus da OTAN para a fixação de mísseis Pershing
II e cruises (Tomahawk) em seus territórios. A população da Europa Ocidental se mobilizou contra
a nuclearização armada, realizando grandes manifestações em 1983. O historiador E. P. Thompson
foi um de seus líderes. Ver: BLACKBURN, Robin (org). Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993. Alguns autores viram nisso uma “suja campanha soviética” que, ao fracassar, colocou
a diplomacia soviética numa situação delicada. Ver: BIALER, Seweryn; MANDELBAUM & Michael.
The global rivals. Londres: I.B.Tauris, 1989, p. 71.
5
A estação espacial Polyus, Polo, era uma base militar equipada com um sistema de defesa
antissatélite, um lançador espacial de minas nucleares – que poderiam atingir o alvo na Terra em
6 minutos em vez de 30 de um míssil balístico intercontinental ICBM, e camuflagem stealth negra
– ótima para o espaço. O foguete Energia que a levaria ao espaço, em 1987, teria saído de rota.
ERICKSON, Lance. Space flight. Lanham: Government Institutes, 2010, p. 643.
6
Rodrigues afirma que o custo da corrida armamentista era insuportável. Ver: RODRIGUES, Robério
Paulino. O colapso da URSS. Tese (Doutorado em História Econômica). Univrsidade de São Paulo.
São Paulo, 2006, p. 196-193. Segrillo lembra que Israel invertia em defesa uma proporção similar
do PNB e nem por isso entrou em crise. Ver: SEGRILLO, Angelo. O declínio da URSS. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 125-131. Se o complexo industrial-militar de fato correspondesse ao
calcanhar de Aquiles econômico, com a reconversão de Gorbachev e a privatização de Yeltsin
a economia deveria ter florescido. Ocorreu o contrário. O modelo soviético dependia do setor,
que contribuía com moeda forte provinda das exportações de armas para o Terceiro Mundo,
transacionadas em dólar em algum momento.

214 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


ao ocidente e assumir sua cadeira na “casa comum europeia”, enquanto filhos da
Europa e da civilização ocidental.
Para tanto, os estudos de Lévesque e sua análise que une objetivos reais e
crenças ideológicas e a tentativa de estabelecer “concessões mútuas aceitáveis”
– de acordo com o que era aceitável no momento para a liderança soviética, são
fundamentais. Ele abre o quadro de aparente entrega do império soviético para o
questionamento do que a liderança soviética pensava, imaginava ser possível ou
acreditava desejável, e de quanto estava disposta a pagar por isso. Os discursos do
líder soviético, produzidos para seu país, nações aliadas e rivais, é essencial para a
tarefa.

Gorbachev Chega ao Poder

A incompreensão do Ocidente diante de Gorbachev iniciou-se com sua


ascensão ao poder. Apesar de ter sido o número dois do secretário-geral do Partido
Comunista da União Soviética (PCUS) Yuri Andropov (1982-1984) e de participar
de encontros diplomáticos no exterior, o modelo aceito pelos analistas previa que
outro gerontocrata sucedesse a Chernenko (1984-1985), como o líder do partido
em Moscou, Grishin, e não Gorbachev, que estava na problemática pasta da
Agricultura. Em seguida, foi tratado como sucessor natural, por sua juventude.
Mas Romanov, figura de Leningrado imbricada com o complexo industrial-militar
e membro do Politburo, a instância colegiada máxima do país, elegível para a
secretaria, era mais novo que ele.
Gorbachev chegou ao poder máximo da URSS por dois fatores: (1) O jogo entre
as diversas facções do PCUS – que agregava desde stalinistas até socialdemocratas
e liberais sob a falsa aparência de monólito7 – pendia para o sacrifício do setor
militar para empreender as reformas tidas como necessárias para romper o quadro
de zastoi, estagnação econômica, e gerir a delicada situação diplomática do país
(pressão vinda do Ocidente e da China, Afeganistão, novos e débeis aliados). Esse
consenso era frágil, o que explica a ascensão do conservador Chernenko em 1984
e não a de Gorbachev como substituto do reformador Andropov. (2) Pura sorte.
A morte de Chernenko após longa agonia pegou de surpresa os membros do
Politburo com voto. Boa parte dos conservadores estava em viagem. O Ministro
das Relações Exteriores, Andrei Gromiko, acelerou o rito de eleição e Gorbachev
foi escolhido em tempo recorde, num Politburo esvaziado8. Ainda assim, não foi
eleito por unanimidade, como a terminologia política do partido evidenciava9.
Um homem com “apenas” 54 anos, hábil com a fala, preocupado com a
imagem. Era esta a visão ocidental do novo líder, chamado de “fenômeno”, até
1987. Como os demais secretários-gerais, provinha do interior – Stavropol10,
no norte do Cáucaso, e não das grandes cidades. Como a maioria, não era a

7
BROWN, Archie. The rise and fall of Communism. Londres: HarperCollins, 2010, p. 415.
8
BROWN, Archie. The Gorbachev factor. Nova York: Oxford University Press, 1996, p. 84-87.
9
MEDVEDEV, Zhores. Gorbachev. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p. 16.
10
A cidade é capital do Krai (unidade formada por povos de diferentes nacionalidades. Entre
elas, armênios, gregos, chechenos, tártaros) de Stavropol. GALEOTTI, Mark. Gorbachev and his
revolution. Londres: Macmillan, 1997.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 215


imagem de uma pureza étnica russa, como insistem alguns autores11. Provinha,
igualmente de baixos estratos sociais: camponeses. Seu pai, ativista kolkhoziano.
Seu avô paterno foi morto nas purgas. Ao contrário da gerontocracia12 de sua
época, visitou o ocidente ainda jovem, o que o impressionou. Estudou com alunos
do Leste Europeu, provindos do intercâmbio. Como advogado em Moscou,
participou dos processos de reabilitação das vítimas de Stalin. Conhecedor dos
meandros da burocracia, inteligente e bajulador, subiu rapidamente os degraus
do partido do Komsomol até a direção-regional e o Kremlin13. O controle das
estâncias termais, de caça e pesca do sul do Mar Negro possibilitou o contato com
o círculo dirigente. Lewin desvenda o “fenômeno Gorbachev” ao mostrá-lo como
fruto das mudanças na própria URSS: urbanização, escolarização, industrialização,
mudanças demográficas, que tornaram a sociedade autônoma frente ao regime,
que pouco podia controlá-la ou censurá-la de fato – por mais que se esforçasse em
alguns momentos14.
Entre 1985 e meados de 1986 parecia que Gorbachev permaneceria na linha
de Andropov, de reforço da disciplina e dos incentivos materiais à produtividade,
a uskoreniye15. Não se viu menor atuação do Estado, e sim maior. Tentou regular
as feiras livres e a circulação de alimentos vindos dos kolkhozes para a venda
privada. Se reconheceu o trabalho individual por lei em 1986, passou a taxá-lo.
O que representou um esforço para evitar a fuga dos trabalhadores das atividades
nas empresas estatais para seus negócios privados e o mercado negro16. Porém,
no fim do ano, já previa joint-ventures como Mcdonalds e Pierre Cardin. Após
liberar informações de Chernobyl para o Ocidente, passou a acelerar os encontros
e iniciativas diplomáticas. Reformador, mas sem plano de reforma, gradativamente
adotou posturas liberais e da nova socialdemocracia.
A perestroika, ou reconstrução, ganhou contornos sérios em 1987. Previa-se
inicialmente o incentivo ao trabalho e aos negócios que não fossem geridos pelo
Estado ou de sua propriedade, com um crescente mercado submetido ao Gosplan,
o órgão da planificação econômica, convivendo com a economia centralizada. A
privatização surgiu claramente em 1988 e a partir de 1990 falava-se em terapia
de choque. Em 1991 Gorbachev definiu a perestroika: “As metas da perestroika
são a liberdade econômica, liberdade política, saída do isolacionismo e a inclusão
do nosso país no contexto geral da civilização”17. A glasnost, ou transparência,

11
Os olhos puxados de Lenin identificam sangue kalmuk e sua mãe era filha de um judeu e de uma
alemã. Stalin era georgiano. Kruschev era filho de russos e ucranianos. Apesar do sobrenome russo
e provir do Leste da Ucrânia, o passaporte interno da família de Brejnev acusava nacionalidade
ucraniana. A mãe de Gorbachev era ucraniana.
12
Em 1953 a média etária dos membros do Politburo era de 55,4 anos. Em 1980, 70,1. SCHMIDT-
HÄUER, Christian. Gorbachev: the path to power. Londres: I. B. Tauris, 1986, p. 70. A pasta da
Agricultura era um posto escolhido por rivais para se destruir a carreira de seus concorrentes.
Apesar do aumento do salário anual dos camponeses de 100 para 140 rublos, a produção agrícola
soviética declinou profundamente durante os sete anos de ministério de Gorbachev.
13
ZEMTSOV, Ilya & FARRAR, John. Gorbachev: the man and the system. Piscatatway: Transaction,
2007, p. 02.
14
LEWIN, Moshe. O fenômeno Gorbachev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
15
NOVE, Alec. Stalinism and after: the road to Gorbachev. Nova York: Routledge, 1992, p. 180.
16
MEDVEDEV, Gorbachev, p. 249.
17
GORBACHEV, Mikhail. O golpe de agosto: a verdade e as lições. São Paulo: Best Seller, 1991, p.

216 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


era a abertura do tradicionalmente fechado governo à sociedade, liberdade de
informação, de expressão e acesso aos dados do Estado. Demokratizatsiya era a
maior participação política da população e o novo sistema eleitoral.

O Novo Pensamento contra a Velha Escola

A diplomacia soviética começou a se aproximar das concepções da antiga


diplomacia da Rússia czarista ainda nos tempos de Stalin, ao menos na percepção
dos especialistas americanos18. A prioridade dos interesses nacionais sobre os
princípios ideológicos e o “socialismo em um só país”, formaram a estrada que
tornou possível esse retorno, que atingiu seu ápice na Era Brejnev (1964-1982).
O aproveitamento das oportunidades para a expansão de alianças ou áreas de
influência pela diplomacia soviética, pôde pôr a perder a política ocidental de
cordão sanitário e de contenção.
Nos anos 1970, a URSS conseguiu o que até o momento havia sido negado
através dos mais diferentes meios: saída para os oceanos por meio de bases
oferecidas pelos novos aliados do Terceiro Mundo19, possuía uma importante frota
de superfície e uma impressionante armada de submarinos, que junto aos mísseis
SLBM, projetavam o poder do país através do globo20. Um terço da superfície da
Terra compunha o bloco soviético. Detinha acesso aos mais diferentes recursos. Na
Europa, suas divisões e mísseis superavam em número, várias vezes, as forças da
OTAN21. Enfrentou alguns revesses militares e diplomáticos em sua órbita, como a
defecção do Egito para o campo americano (1975), do Sudão (1985), após a URSS
apoiar a Etiópia, ou a invasão americana de Granada (1983). Arcava com custos
elevados com a ajuda aos novos regimes socialistas ou de orientação socialista
(Benin – 1975; Madagascar – 1975; Moçambique – 1975; Argélia – 1963; Congo-
Brazzaville – 1970; Cabo Verde – 1975; Líbia – 1977; Burma – 1962, Síria – 1962;
etc.) e a continuidade de conflitos regionais, como Angola (1975-89), Camboja22
(1978-89) ou Nicarágua (1981-90), e cenários imprevistos como o Iêmen do Sul
(1986), onde grupos marxistas pró-soviéticos se digladiavam, ou a guerra entre
Somália e Etiópia, dois Estados pró-soviéticos, por Ogaden (1977-78). Contudo,
sua economia resistiu até 1989 como a segunda maior do mundo.

110.
18
ENGLISH, Robert. Russia and the idea of the West. Nova York: Columbia University Press, 2000,
p. 18. O autor menciona o retorno do messianismo czarista, das preocupações imperiais e do
isolacionismo agressivo.
19
BERTONHA, João Fábio. Rússia: ascensão e queda de um império. Curitiba: Juruá, 2009, p. 100.
20
MAGNOLI, Demétrio. O mundo contemporâneo. São Paulo: Moderna, 1997, p. 123. SLBM: míssil
balístico lançado de submarino, em comparação com ICBM: míssil balístico intercontinental e ABM:
míssil antibalístico.
21
Paul Kennedy discorda das avaliações da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Para ele, ao se somar as forças ocidentais e do Pacto de Varsóvia, ocorria a predominância da
paridade estratégia das forças convencionais (tanques, soldados, aviões, artilharia, etc). KENNEDY,
Ascenção e queda..., p. 481-482.
22
Exemplo de uma guerra fria dentro do campo socialista, opondo soviéticos e vietnamitas (que
implantaram uma “monarquia socialista”) ao defenestrado regime maoísta de Pol Pot e seus
aliados: China, Estados Unidos e Inglaterra. HOBSBAMW, Eric J. Era dos extremos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, p. 438.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 217


Se o império da União Soviética expunha o espinhoso problema de um poder
militar em ascensão, sustentado por uma economia em declínio23, oferecia por
também algumas soluções para o mesmo. A herança de Gorbachev realmente mais
preocupante era o atoleiro do Afeganistão e a situação da imagem externa do país
– com a questão de um regime que se definia como o futuro da humanidade, mas
que possuía cada vez menos respaldo entre a opinião pública internacional, ou ao
menos, a opinião daqueles que eram o alvo primordial da tese revolucionária: o
proletariado ocidental e seu mundo urbano, e não camponeses do mundo recém-
descolonizado e agrário.
Gromyko havia participado ou comandado a política externa soviética desde
os tempos de Stalin. Estudou a escola da política externa czarista e acabou
imprimindo essa marca na formação dos diplomatas do país. Afastar todo o corpo
diplomático profissional era o primeiro obstáculo para Gorbachev impor seu novo
pensamento, que foi recebido por eles com desconfiança e resistência. O caminho
escolhido foi o da substituição de assessores e ministros experientes por aliados,
como Shevardnadze, totalmente leigo sobre o protocolo, a doutrina e o mundo das
relações internacionais; e na convocação de embaixadores ligados às principais
potências ocidentais, em suas boas relações com os seus interlocutores e na adoção
de seu estilo de vida, como Yakovlev, de Ottawa, Dobrynin, de Washington, e
Falin, de Bonn. Pessoas que, ou faziam parte do círculo dos reformadores e que
eram antigas conhecidas, ou que acolheriam de bom grado suas propostas e as
entenderiam24.
Dez anos após o fim da URSS, Gorbachev classificou a implantação de seu
Novo Pensamento diplomático em três fases distintas: 1985-87, em que foi gestado
teoricamente a partir da situação do país e do mundo do pós-guerra e dos desafios
que se impunham; 1988-89, quando começou a ser aplicado na prática, inclusive
nas relações internacionais dentro do campo socialista, a partir da Conferência da
ONU de 7 de dezembro de 1988; 1990-91, momento em que diz perceber que
as mudanças nas relações internacionais não foram completas ou tão profundas
quanto esperava25.
O novo pensamento destinava-se a ser uma reavaliação da história diplomática
da União Soviética, da importância das forças armadas, dos modelos de dissuasão
empregados na diplomacia atômica, no reconhecimento da emergência de uma
nova mentalidade global e das aspirações da opinião pública internacional, da
realidade de uma “nova ordem mundial” baseada na interdependência econômica,
tecnológica e política, no abandono de antigos modelos ideológicos por uma
postura diretamente ligada à realidade, no repensar do papel da luta armada, da
revolução mundial e em sua condução classista, na progressiva substituição dos
interesses nacionais, de classe e dos grupos progressistas pelos “valores universais” e
da civilização, na reconquista do apelo das ideias socialistas e da imagem renovada
da URSS no cenário externo26. Enfim, de uma nova interação entre os povos e as

23
BIALER, Seweryn. The Soviet paradox: external expansion, internal decline. Londres: I. B. Tauris,
1986, p. 191.
24
BROWN, The Gorbachev Factor…
25
GORBACHEV, Mikhail. Gorbachev. Nova York: Columbia University Press, 2000, p. 187.
26
GORBACHEV, Mikhail. O poder dos sovietes. Rio de Janeiro: Revan, 1988.

218 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


culturas do mundo, dentro do espírito da glasnost.
Para a liderança soviética estes não eram objetivos ambiciosos. Esse sistema já
existia, no entanto era oprimido pela disputa entre as superpotências. Caso esta se
abrandasse, essa nova realidade emergiria (da mesma forma que a opinião pública
ou a sociedade civil da própria URSS, uma vez que o Partido se auto reduzisse).
Porém, este quadro estava cristalizado e só a conquista de uma iniciativa de
audácia, antes impensável, poderia derrotar os grupos aguerridos ao sistema de
confrontação, de ambos os lados da Cortina de Ferro. A doutrina da iniciativa
política do novo pensamento “exige um repensar profundo da situação, decisões
ousadas e ações enérgicas”27. As declarações surpreendentes de Gorbachev
tornaram-se uma marca dessa doutrina da iniciativa.

As Bases Ideológicas do Novo Pensamento

Uma vez que a ideologia oficial, segundo o novo secretário-geral, não passava
de uma ilusão esclerosada, como o relatório do XXVII Congresso de 1986 deixava
entrever e os discursos de 1987 confirmaram, medidas antes inimagináveis não
deveriam ser desconsideradas. Eram até preferíveis como forma de aturdir os
adversários internos e externos, desarmá-los, desmontar suas retóricas, ganhar a
batalha pela opinião pública e consolidar a iniciativa ao lado dos reformadores
soviéticos. Novas relações com os antigos inimigos deveriam ser entabuladas. Uma
ponte de compreensão estabelecida. E só poderia ser solidificada se a imagem do
país no exterior fosse alterada, tanto para os mandatários como para as massas.
O grande plano estratégico de Gorbachev era não ter planos. Tudo o que já
havia sido definido, poderia ser mudado repentinamente. A “vida” estabelecia
novos desafios a cada momento. Situações antes insuspeitadas eclodiam. Não se
deveria ter medo de reviravoltas radicais na condução dos negócios externos –
e nem nos internos, uma vez que o país passaria por “mudanças inéditas e de
envergadura desconhecida”28. A experiência e a vida forneceriam as melhores
respostas, automaticamente. Não deveria se apegar a planos29.
Assim foi com o abandono do plano estratégico da aceleração da perestroika
como descentralização e implante de instrumentos de mercado limitados, da
glasnost confinada ao ambiente de trabalho, com o uso do Partido como motor
das reformas, com a abolição das mais fundamentais instituições econômicas
estatais. Das metas de se proceder primeiramente à reforma econômica para
em seguida se enveredar pela reforma política, e o papel condutor do Partido,
como também com a afirmação de que as superpotências só se sentariam à mesa
depois da Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), ou “Guerra nas Estrelas”, também
abandonadas. Da renúncia do uso do conceito do imperialismo e da confrontação
estrutural entre dois sistemas avessos, da condução dos negócios dos aliados,
da redução dos arsenais para sua abolição, das concessões mútuas pela retirada
unilateral, do reconhecimento do papel dos Estados Unidos no solo da Europa ou
na troca da postura crítica frente ao intervencionismo e militarismo americanos por

27
GORBACHEV, Mikhail. URSS. São Paulo: Revan, 1985, p. 14.
28
GORBACHEV, URSS, p. 79.
29
GORBACHEV, Mikhail. Glasnost. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 86.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 219


uma política de aliança contra o terrorismo e os ditadores do Terceiro Mundo. O
“dogmatismo político” e a doutrina de defesa nacional receberam uma inversão
total. Sua primeira manifestação ocorreu em 1986, ao propor o corte do tempo
das negociações e a tomada de ações de maneira rápida, como forma de superar o
empasse das negociações sobre o desarmamento, o que deu origem às negociações
“cara a cara” de Reykjavík30, que terminou com a proposta de abolição das armas
nucleares (12 out. 1986).
A justificativa para tal comportamento instável (e para o reconhecimento
deste) era sustentado através da leitura singular feita por Gorbachev do leninismo.
A Ideocracia dos regimes socialistas fez com que, aqueles que não sucumbiram
na passagem dos anos 80 para os 90, vestissem as reformas das mais sólidas e
longínquas bases ideológicas do regime. A China pôde justificar sua inserção no
comércio global porque Marx defendia a globalização e a aliança com os Estados
Unidos, porque esta começou a ser construída pelo Grande Timoneiro. Achar
passagens de Lenin e enquadrá-las de acordo com seus objetivos, por mais opostos
que fossem com o que Lenin de fato queria dizer, não era tarefa difícil. E era
ideologicamente recompensadora, como forma de explicar mudanças tão drásticas
que pareciam ferir os princípios mais fundamentais do regime. Não se trataria mais
do que um retorno à pureza ideológica.
Mesmo quando Gorbachev tentou abolir o sistema ideocrático e a ideologia
oficial soviética, Lenin continuava a ser uma figura tão venerada pela maior parte
da população que a vinculação de suas ações às do líder revolucionário não foi
abandonada. Logo, as concessões feitas ao Ocidente em dezembro de 1987,
com a assinatura do Tratado INF e o fim da superioridade estratégica31, foram
legitimadas pelo uso da história: Lenin já havia tomado decisões parecidas em
Brest-Litovsk32. Amplas concessões diplomáticas e militares eram o caminho para o
desenvolvimento do socialismo, ontem e hoje.
Uma das táticas que Gorbachev atribuiu ao verdadeiro leninismo a ser resgatado,
através da reforma e da eliminação das distorções soviéticas (primeiro conservadoras,

30
GORBACHEV, Mikhail. A URSS rumo ao século XXI. Rio de Janeiro: Revan, 1986, p. 31.
31
Para alguns, como Brown, a política externa de Gorbachev teve um êxito surpreendente ao
desnuclearizar a Europa e encerrar a Guerra Fria. Para outros, foram concessões unilaterais,
incapazes de provocar os americanos a contrapartidas. O Tratado INF de 1987, que retirou os
mísseis de ambas as superpotências da Europa, significou o fim de um ponto de força soviético,
já que possuía três vezes mais mísseis que os americanos, que preservaram suas ogivas em aviões
e submarinos, aonde eram mais fortes. A diminuição de tropas e armas convencionais no Leste
Europeu em 1988 não foi seguido de qualquer redução do efetivo da OTAN nas fronteiras de
seu bloco. Como também o fim da base soviética no Vietnã, a retirada do Afeganistão e volta dos
assessores militares soviéticos na África. Para outros, desespero diante da falência econômica, ou
ainda, remanejamento de forças em direção a objetivos mais vantajosos – “seletividade geopolítica”.
BRZEZINSKI, Zbigniew. O grande fracasso. Rio de Janeiro: Bibliex, 1990, p. 222-223. Ver também:
BRESLAUER, George. Gorbachev and Yeltsin as leaders. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p. 60.
32
Com a presença da figura menos apresentável à época de Trotsky, o tratado previu a entrega
para a administração das potências centrais da Polônia, Finlândia, Ucrânia, países bálticos,
Bessarábia, Cáucaso e a maior parte da Bielorrússia. Tal concessão possibilitou aos bolcheviques
se concentrarem nos fronts mais imediatos e derrotar os intervencionistas e generais brancos
aspirantes a czares. Com o tempo, boa parte desses territórios foram recuperados.

220 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


depois stalinistas) era a política de transformar fraquezas em posições de força33. E
seu governo possuía inúmeras fraquezas – por muito tempo não podia contar com
quem de fato queria nomear para cargos importantes, por ter que seguir, mesmo
ele, a lista da Nomemklatura. Por seu programa só ser seguido ou aceito até certo
ponto, por boa parte do Comitê Central e mesmo figuras importantes do Politburo,
que impuseram mudanças nos projetos do secretário-geral, para que fossem
aprovadas. Por precisar desviar recursos do complexo industrial-militar para o setor
civil, urgentemente, e o Ocidente não. Por ter uma imagem de seu regime interno
e de sua conduta internacional, tanto presente, quanto passada, desgastadas frente
a um Ocidente com uma crescente retórica conservadora. Por estar envolvido em
uma guerra de ocupação prolongada no Afeganistão, ao passo que, os EUA já
haviam deixado essa fase para trás e os novos conflitos em que se envolveu em
sua escalada militarista foram de curta duração e de baixo impacto sobre a opinião
pública, como a invasão de Granada. Por seu campo de influência estar mais
dividido (e ter disputas tanto ideológicas, quanto de interesses concretos cada vez
maiores, como o afastamento dos regimes conservadores do Kremlin reformista, os
impasses entre húngaros e romenos e somalis e etíopes) do que o próprio campo
dos Estados Unidos (enquanto este se fortalecia como na obtenção pelos EUA de
novos silos atômicos nos territórios dos membros da OTAN e na adesão ao boicote
econômico e tecnológico ao bloco socialista). Por ter que discutir tanto a escalada
de mísseis na Europa quanto no Pacífico – dividindo seus esforços em dois fronts.
Por apresentar impasses militares, como a frente em Angola, Namíbia e Afeganistão.
Por ter aliados fracos e titubeantes em contraposição a potências regionais cada vez
mais engajadas em fortalecer a política de pressão do parceiro americano. Pelo
desafio da IDE. Essa política de apostar com as fraquezas foi amplamente utilizada
interna e externamente.
O ponto fraco da presente imagem internacional negativa (com a ênfase nos
direitos humanos e na intervenção afegã) foi transformado em ponto de força,
ao condenar Ceaucescu e os demais líderes “duros” do mundo socialista, no
repúdio ao sistema e na conduta pública de buscar um novo socialismo. A imagem
passada foi contornada com o uso de uma crítica mais contundente do que o
próprio discurso conservador ocidental, mais pesada “do que jamais o Ocidente
sonhou em fazer”34, com a revisão e o descolamento do stalinismo, de seu papel na
Segunda Guerra, das intervenções no Leste Europeu. O secretismo foi convertido
em franqueza, cartas abertas ao público, numa maior transparência quanto às
negociações do que a praticada pelos adversários ocidentais.
Gorbachev se tornou a imagem da sinceridade, da honestidade, da confiança,
frente aos velhos políticos conservadores – de ambos os lados da Cortina de Ferro
(ao menos temporariamente no lado ocidental). O não intervencionismo foi dado
como garantia da observância à palavra dada e aos compromissos internacionais.
A negação do eslavofilismo e isolacionismo pela ocidentalização e modernização
segundo o modelo dos países da Europa Ocidental (que era uma confissão do
sentimento de fracasso e inferioridade), foi dado como sinal de amizade, aliança
e no anacronismo do temor frente a URSS. A fraqueza diante dos negociadores

33
LÉVESQUE, Jacques. The enigma of 1989. Berkeley: University of California Press, 1997, p. 27.
34
GORBACHEV, Mikhail. Perestroika. São Paulo: Best Seller, 1988, p. 147-148.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 221


americanos e das concessões sem fim se tornou em força no papel pacifista, a crise
econômica e a reconversão civil da economia (que poderia parecer como a falência
precoce do sistema, como de fato era para os conservadores) foram dadas como
lastro das intenções pacifistas da URSS35.
Derrotas militares e diplomáticas viraram vitórias políticas e morais. E se o
socialismo parecia pouco atrativo do ponto de vista econômico, o apelo da paz, da
liberdade e da esperança, deu um novo fôlego e uma nova presença à ideologia
de um socialismo reformado, humano, e que não constituía uma ameaça ao
capitalismo, pelo contrário. Apesar de ser difícil separar o que era simpatia pelas
ideias do regime e o que era a popularidade de seu líder – a figura mais beneficiada
pela onda de autocrítica, na avassaladora gorbymania de 1988-89.
A ideologia do novo pensamento foi chamada de “ideologia de transição”, por
Lévesque. Ela surgiu a partir de conceitos leninistas, mas estes preceitos foram
substituídos aos poucos. Entretanto, deixou algumas bases gerais, como o otimismo
exagerado, a crença na transformação de decretos em realidade de maneira
instantânea, um messianismo da liderança, “uma ambição prometeica para mudar
a ordem mundial vigente”, “de maneira tipicamente leninista e voluntarista, que
superestimou a possibilidade de moldar e canalizar o curso dos acontecimentos
internacionais”:

Educados em uma tradição marxista, os líderes soviéticos e


seu círculo de intelectuais [...] acreditaram ter compreendido
as “novas e profundas tendências do desenvolvimento
histórico”, as tendências sociais e políticas mais promissoras
para a fixação do lugar da União Soviética e os interesses
e os meios mais eficazes para persegui-los [...] [estavam]
realmente convencidos de que sua empresa era parte do
“sentido da História” [...].
Uma nova ordem mundial emergente foi planejada para
dar a URSS um papel de liderança política e moral
renovada nas relações internacionais através da sua nova
ideologia [...]. Esta ideologia de transição [...] tinha duas
funções específicas. Primeiro, ela serviu como um apoio
que permitiu que a nova liderança soviética assumisse os
riscos inerentes às suas iniciativas no Leste Europeu. Em
segundo lugar, o caráter de mobilização e de inspiração
da ideologia (acompanhado pelos sucessos alcançados
Gorbachev na cena internacional até 1989) ajudou
a neutralizar os adversários conservadores dentro da
URSS.36

O caráter ideológico do novo pensamento foi tão forte que teria sido o fator
primordial para a não intervenção e o não uso da violência, mesmo com a

35
GORBACHEV, Perestroika, p. 152.
36
LÉVESQUE, The enigma of 1989..., p. 06; p. 32.

222 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


fragmentação da própria URSS37. Talvez uma melhor definição fosse a de ideologia
de atualização, tendo em vista que em suas origens oficiais, Gorbachev pretendia
modernizar o marxismo-leninismo, mas progressivamente o foi descartando e o
substituindo por uma ideologia visionária de uma frente ampla de centro-esquerda.

Reformulações sobre o Papel Internacional da URSS


Enquanto membro do Politburo e durante os primeiros meses de 1985,
Gorbachev não fez alterações importantes na retórica diplomática soviética.
Porém, uma variação significativa teve lugar na ação prática38, se tivermos em
conta que nos últimos meses de Chernenko ele já o estava substituindo. Um
secretário-geral recém-empossado reunia-se sempre primeiro com países aliados,
para em seguida, dialogar com os delegados ocidentais. Gorbachev inverteu esse
ritual. Desde Andropov e a crise dos euromísseis, os soviéticos se recusavam a
fazer reuniões sem que esse tema e dos ICBM fossem tratados conjuntamente com
a IDE – imposição que foi revogada em Genebra. A visão realística da diplomacia
precisava recorrer a afirmação de que tratava-se de uma campanha publicitária
soviética, do uso do moralismo no jogo internacional39. A supremacia nuclear na
Europa era o que permitia a URSS entrar na questão da militarização do espaço
pelos EUA. Não poderia se desfazer de seus arsenais por serem seu ponto de
apoio concreto para quaisquer exigências – de negociações de desarmamento até
cooperação econômica. Não foi o que ocorreu.
Pequenas mudanças no discurso eram cercadas por um cerne de continuidade
das formas protocolares. Todavia, essas mudanças cada vez mais atingiam
características fundamentais da conduta soviética e as fórmulas discursivas antigas
cediam espaço, até quando (1987 nas relações com o Ocidente e 1988 nas com
o Leste) são totalmente transtornadas. A crítica às ações do Ocidente, contudo,
prosseguiram, não obstante suaves, até sua última aparição, com a Operação
Causa Justa e o bombardeio da Cidade do Panamá, no fim de 1989, vistos como
“intervencionismo” americano. A partir deste momento, ocorre uma convergência
mais profunda em direção ao apoio à diplomacia dos EUA. Em 1985 dizia que:

Deve ser claro como cristal que as relações internacionais


podem ser canalizadas para a cooperação normal
somente se os imperialistas abandonarem suas tentativas
de equacionar por meios militares o histórico argumento
entre os dois sistemas sociais.40

Em 1986, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Giorge Grechev, em

37
LÉVESQUE, The enigma of 1989..., p. 20.
38
Além das ações práticas, o que foi chamado na época de “mudanças cosméticas” não deixou
de chamar a atenção, como a primeira coletiva de imprensa oferecida por um líder soviético, em
novembro de 1985, em Paris. GORBACHEV, Mikhail. Tempo para a paz. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
39
As concessões soviéticas demonstraram a autonomia dos agentes políticos e de suas percepções
individuais frente a razão de Estado. DONNELLY, Jack. Realism and international relations.
Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 163-164.
40
GORBACHEV, Tempo para a paz..., p. 45.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 223


Reykjavík, ainda podia responder sobre os direitos humanos (e a lista de dissidentes
presos, que foi um tema que ganhou importância na relação entre soviéticos e
americanos ainda nos anos 70) na URSS, que “nós também queríamos falar dos
direitos humanos nos Estados Unidos e apresentar uma lista dos desempregados
nesse país, mas eles são tantos que já perdemos a conta”. Muito da antiga retórica
permanecia inalterada entre os reformistas, e outros elementos eram alterados.
A mesma transformação ocorreu com o Terceiro Mundo – que era a principal
fonte de novos aliados soviéticos. No mesmo ano (1986), o bombardeio ordenado
por Reagan contra Trípoli e Bengazi, como represália ao regime de Kadaffi, foi
visto como uma agressão internacional. Gorbachev questionou como os demais
países reagiriam se, para atacar uma outra nação soberana, a URSS atravessasse
o espaço aéreo europeu41.
1987 foi o ano das negociações para um programa de saída do conflito no
Afeganistão (1979-1989). O início de 1988 marcou a primeira atuação conjunta
da diplomacia americana e soviética. Ambos pressionaram a OLP para que
reconhecesse o Estado de Israel, a fim de avançar com as negociações de paz.
Gorbachev, diante de Arafat em Moscou, foi mais longe: “o reconhecimento do
Estado de Israel e a consideração pelos seus interesses na área da segurança são
elementos necessários para estabelecer a paz”42. Para Gorbachev, as ações militares
de Israel seriam baseadas em uma preocupação com a segurança nacional tão
legítima quanto às reivindicações palestinas. A OLP é que seria intransigente, ao
não aceitar os planos de paz e insistir em seus próprios planos, como o de um
Estado único, tornando-se o principal fator para a continuidade dos conflitos.
No mesmo ano, fez o anúncio de que a URSS (que o Ocidente procurava
de alguma forma vincular às ações terroristas, como as de Carlos o Chacal, da
Fração do Exército Vermelho ou mesmo a governos tidos como patrocinadores
de atentados, como a Líbia de Kadaffi) havia se unido ao “fronte comum contra o
terrorismo internacional”43. As tensões em torno de áreas de influência no Oriente
Médio foram descritas por Gorbachev como motivadas pelas tentativas dos EUA
de expulsarem a URSS desse palco geopolítico e em sua crença de que a URSS
pretenderia o mesmo. “Os EUA também deveriam evitar comprometer-se com
aspirações ou objetivos inalcançáveis”, pois “os americanos precisam de 10 anos
para entender algo que a experiência anterior já deveria ter-lhes ensinado”, de
que a ação unilateral não funciona nesse cenário44. Para analistas ocidentais, a
diminuição ou o fim da ajuda financeira, técnica e militar aos aliados mais fracos
significava uma nova estratégia de realocação de recursos45 em prol de aliados

41
GORBACHEV, Perestroika, p. 244-245.
42
Veja, São Paulo, 20 abr. 1988, n. 1024, p. 40.
43
GORBACHEV, Perestroika, p. 203.
44
GORBACHEV, Perestroika, p. 204.
45
Poderia ser também um misto de propaganda vazia, anunciada para ser descumprida em seguida,
com alguma vantagem diplomática, ou redução dos gastos para uma paridade com a ajuda dos
EUA a seus aliados – enquanto a UNITA recebia US$ 15 milhões deste, o governo angolano
recebia 4 bilhões da URSS. O Vietnã recebeu desde 1978 9 bilhões em ajuda militar e outros 8 em
econômica. Só na Etiópia existiam 1700 assessores militares soviéticos. Os EUA investiriam apenas
1 bilhão por ano com grupos militares antissoviéticos. FLERON, Frederic; HOFFMANN, Erik P. &
LAIRD; Robbin Frederick. (orgs.). Soviet foreign policy. New Brunswick: Transaction Publishers,

224 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


mais fortes ou estratégicos46.
Em 1989 procurou contrapor o intervencionismo americano (a ação contra
o líder panamenho Noriega) com a adoção sincera do não intervencionismo:
manteve suas tropas nos quartéis no Leste Europeu; não apoiou os reformistas que
brevemente colheram o poder dos conservadores; não ameaçou os regimes pró-
ocidentais que os sucederam e desmontaram o COMECON (o mercado comum
comunista) e o Pacto de Varsóvia. A entrada definitiva no concerto das nações
ocorreria com o apoio formal às ações da coalizão na Guerra do Golfo, no início
de 1990. Para Gorbachev, a auto-exclusão da comunidade dos “países civilizados”
teria chegado ao fim com sua promessa de sempre se unir a este grupo quando uma
nação fosse agredida. Significava a troca do campo da “barbárie” pelo do respeito
a lei internacional, como a adesão à versão ocidental de que o país havia apoiado
ditaduras e facínoras47. Esta visão do papel internacional da URSS iniciou-se em
fevereiro de 1986, no 25º Congresso dos Sindicatos soviéticos, quando Gorbachev
disse que “nos anos 70 e 80 a URSS teve uma má imagem no Ocidente, e que
a política dos países do Oeste foi negativa nas relações com Moscou, isto era
motivado, acima de tudo, pela má gestão do país naquele período”48.
O que era visto como propaganda ou guerra de nervos passou a ser considerada
como sinceras preocupações inerentes à conduta internacional soviética
irresponsável. O primeiro sinal concreto dessa mudança foi a reestruturação da
diplomacia internacional do país. No Ocidente, dizia-se que a diplomacia soviética
possuía dois braços: o que preconizava a coexistência pacífica com o Ministério
do Exterior e o braço que conduzia os partidos comunistas dispersos pelo mundo
e promovia a guerra ideológica, do Departamento Internacional. Seria uma fonte
de contradição e desconfiança. Com a nomeação de Eduard Shevardnadze
(1928-2014) e Anatoli Dobrynin (1919-2010), um reformista leigo em assuntos
internacionais e um experiente e bem-visto (pelo Ocidente) embaixador nos
EUA, ambos os organismos convergiam. Abandonou-se o tratamento ideológico
das questões internacionais e a aliança partidária internacional, por relações
diplomáticas formais e “profissionais”. O que foi interpretado como um gesto de
sincera boa vontade. Era o anúncio soviético de que parara de “fazer política com
duas caras”49.
Os conflitos regionais entraram na agenda de Gorbachev após serem usados por
Reagan como uma prova de que havia um plano soviético para “orquestrar uma
série de revoluções socialistas” – e de tomar a iniciativa nos ataques de propaganda

1991, p. 372-373.
46
KATZ, Mark. The USSR and Marxist Revolutions in the Third World. Cambridge: Cambridge
University Press, 1990, p. 4. Outra percepção era a da neutralização do Terceiro Mundo. Ao invés de
abandoná-lo, Gorbachev pretendia instrumentalizá-lo. Apoiar os países não-alinhados, incentivar
a se afastarem dos EUA, arregimenta-los em bloco e se pôr a testa do grupo seria uma estratégia
para enfraquecer a diplomacia americana e atacar a militarização do espaço, sem os problemas de
financiamento e das disputas teóricas sectárias ou entre estados socialistas (como China, Somália
e Etiópia). Ver também: ALLISON, Roy. The Soviet Union and the strategy of non-alignment in the
Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 248-250.
47
YAKOVLEV, Alexander. O que queremos fazer da União Soviética: o pai da Perestroika se explica.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 95.
48
MLYNAR, Zdenek (org.). O projeto Gorbachev. São Paulo: Edições Mandacaru, 1987, p. 146.
49
GORBACHEV, Perestroika, p. 185.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 225


após Gorbachev tocar no assunto explosivo da dívida externa dos países pobres
para com os países ricos. Contudo, a ofensiva diplomática de Gorbachev se
precipitou sobre este tema também. Inicialmente, buscou a manutenção dos
territórios governados por aliados, mas em seguida passou a pressionar para que
estes fizessem concessões. Deste modo, o impasse de dois anos (1987-1988) na
frente de Cuito Cuanavale, no sul de Angola; em que se debatiam assessores
soviéticos, tropas cubanas e do MPLA contra o exército da África do Sul, UNITA50
e o apoio americano; foi resolvido com a retirada sul-africana de Angola, e das
forças cubanas e do MPLA na Namíbia, quase totalmente liberada da ocupação
sul-africana.
A intervenção do Vietnã, aliado soviético, no Camboja do maoísta Khmer
Vermelho, apresentava duas frentes para a nova liderança: uma continuação do
conflito sino-soviético, pelo apoio militar chinês ao Khmer, e com o Ocidente, uma
vez que este, ao se aproximar da China, também forneceu apoio diplomático ao
Khmer51. A solução encontrada pelo Kremlin foi forçar as negociações entre o
Khmer e o governo da República Popular do Kampuchea, que em 1989 resultaram
na formação de um governo de coalizão entre as várias facções, inclusive os
monarquistas, como a introdução de reformas liberalizantes. Entre elas, o fim da
economia planificada e a introdução do capital externo. O resultado prático era
o reconhecimento das influências externas da China e dos Estados Unidos na
Indochina. Para Gorbachev, apoiar o antiamericanismo era coisa de “aventureiros
irresponsáveis”, mais ainda em regiões historicamente de direito dos Estados
Unidos, como o continente latino-americano, “ligado a ele por laços tradicionais”52.
O livro que continha essa afirmação, Perestroika, foi proibido em Cuba53.
A presença militar soviética mundo afora apresentou uma inflexão a partir
de 1988-1989. A busca por uma saída para os oceanos era almejada desde
os tempos dos czares. Com a revolução no Terceiro Mundo, a União Soviética
concretizou esse objetivo. A frota do Índico foi montada com a posse de bases em
Moçambique e Vietnã. O poder soviético poderia ser projetado facilmente sobre o
cenário do Golfo Pérsico ou do Chifre da África. Essas bases entraram na política
de desarmamento de Gorbachev, como também os mísseis no Oriente. Entretanto,
em 1988 Gorbachev propôs não diminuir os efetivos, mas fechar a base no Vietnã,
em troca do fechamento de uma das bases americanas no Oriente, nas Filipinas.
As ações de Gorbachev, oferecendo de início um apoio antecipado à coalizão
formada contra Saddam Hussein, como pediam seus assessores Shevardnadze e

50
MPLA: Movimento Popular de Libertação de Angola, apoiado por URSS, Cuba, Alemanha
Oriental. UNITA: União Nacional para a Independência Total de Angola, apoiada por África do
Sul, EUA, Israel e por breve período, China.
51
Como a manutenção por este do controle da cadeira do país na ONU, apesar da maior parte do
país, inclusive a capital, estarem sob o domínio do novo governo pró soviético.
52
GORBACHEV, Perestroika, p. 219-222.
53
As relações soviético-cubanas começaram a se deteriorar ainda em 1985, quando Gorbachev
obrigou Fidel a comprar açúcar no mercado internacional para cumprir a cota requerida pela URSS,
a preços muito mais altos que os estipulados nos contratos com os soviéticos. O cumprimento
dos contratos pelos cubanos foi cobrado publicamente em 1989, durante sua visita à Cuba.
Para os reformistas, Cuba, com seu protagonismo na América Latina e África, era geradora de
problemas diante da aproximação com os EUA, vista como vital para os reformadores do Kremlin.
GORBACHEV, Mikhail. A proposta. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1990, vol. 4, p. 48.

226 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Yakovlev (1923-2005), e a postura final na ONU de vetar essa mesma operação
militar, produziram o resultado que ele acreditava inalcançável em 1988 – a URSS
se viu privada de presença no Oriente Médio54. Os partidos nacionalistas árabes
ficaram espantados de ver a antiga oferta de amizade e armas com a qual a União
Soviética conquistou aliados como a Síria, tornar-se respaldo à guerra contra o
líder do leigo nacionalismo árabe no Iraque. O afastamento de antigos aliados
árabes ocorreu concomitantemente à surpresa do Ocidente com o repentino
revés da posição soviética, que, com o início das hostilidades, voltou ao discurso
pacifista. A tradicional “fritura” do governo americano através da opinião pública
internacional, que era uma das principais estratégias soviéticas, já havia saído de
uso há algum tempo devido aos ensaios de aproximação intentadas pela nova
liderança do Kremlin.
Mais do que uma tentativa de expor a imagem do inimigo, a reviravolta de
Gorbachev se deve a uma diplomacia da popularidade. A gorbymania de fins dos
anos 80 era um aríete contra as posições contrárias ao desarmamento manifestadas
pelas lideranças conservadoras do ocidente. E atingia onde estas eram mais
vulneráveis: a intenção de voto de milhões de pacifistas ou não-belicistas. A nova
força que Gorbachev buscava para a manutenção do status de superpotência da
URSS, baseava-se não na superioridade estratégica ou de exércitos convencionais,
e sim de superioridade moral. Esta seria alimentada com a liderança clamando por
paz em um cenário de uma guerra prolongada e desgastante entre a coalizão e o
quarto maior exército do mundo (que contava com armas tanto americanas como
soviéticas55). Porém, a estimativa da duração do conflito foi mais um dos graves
erros de cálculo de Gorbachev e seu círculo. Acredita-se também que, a tentativa
de impedir uma guerra terrestre no Iraque, devia-se aos receios de uma explosão
de fundamentalismo religioso entre a população maometana soviética56, ressentida
com a agressão militar dos novos amigos ocidentais ao Islã.

A Mão de Moscou

O quadro chamado por Gorbachev, primeiramente, de degelo e de retomada


do clima da Détente dos anos 70, criada por Brejnev e o presidente americano
Richard Nixon, foi, posteriormente, renomeado de “normalização” das relações
internacionais – expressão já usada pelos chineses como forma de demarcar a
evolução da Diplomacia do “Ping-pong”, entre Nixon e Mao Tsé-Tung, que previa
a criação de estreitos laços políticos e econômicos com os Estados Unidos. A
distensão seria obtida com a convergência econômica, social e política dos sistemas
capitalista e comunista.
Em fins de 1987, Gorbachev via um Terceiro Mundo que acabaria mais cedo ou
mais tarde assumindo voz própria. Entretanto, não deixa de vislumbrar a associação

54
A base naval de Tartus permaneceu sob controle soviético. A Síria de Hafez al-Assad participou
da coalizão contra Saddam. No entanto, a garantia soviética como fornecedora independente de
armas e alternativa aos EUA foi abalada.
55
O Iraque era o terceiro maior importador mundial de armas soviéticas, perdendo apenas para a
Líbia e a Síria. GOODMAN, Melvin. Gorbachev's retreat. Nova York: Praeger, 1991, p. 78.
56
GOODMAN, Gorbachev's retreat..., p. 182.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 227


entre países ricos e a URSS para atuarem economicamente nas nações pobres.
Os países em desenvolvimento deveriam abandonar sua política isolacionista do
Grupo dos Não Alinhados por uma relação mais justa e entre iguais, nas novas
relações norte-sul57. O resultado real de sua política foi a quebra da balança
comercial soviética, já em situação dramática58. As exportações para os países
pobres desabaram, especialmente aço e armas59. Contraditoriamente, define as
relações econômicas entre o Terceiro Mundo e os países desenvolvidos como
prejudiciais aos primeiros, como uma forma de extração de renda, remetida para
o centro do capitalismo, e uma fonte de instabilidade política. Os juros da dívida e
as pressões do capitalismo sobre a sociedade destes países estariam inflando uma
bolha de revolta incontrolável (e indesejável).
Esse discurso surgiu com Fidel Castro e foi muito usado por Brejnev em sua
crítica às instituições financeiras ocidentais. Porém, com Gorbachev, sofreria
alterações que não permitem que seja visto apenas como uma continuidade da
antiga retórica. A “mão de Moscou”, a força promotora das ondas de revolução
social60 nos países pobres não residiria no Kremlin, mas nos centros financeiros das
metrópoles do capitalismo. Para ressaltar o não envolvimento da URSS no que era
chamada de luta anticolonial e anti-imperialista, Gorbachev diz não ter interesse
em atrapalhar as “relações de interesse mútuo historicamente estabelecidas” entre
os países ricos e suas áreas de influência reconhecidas pela URSS.
Até esse momento, acreditava no reconhecimento recíproco das zonas controladas
por cada superpotência, segundo o mapa traçado em Yalta – diferentemente do que
afirmava diante de Husák em 198561. Cada país escolheu o sistema que desejava
seguir. Agora essa decisão deveria ser respeitada. A opção de uma saída do bloco
não era mais uma realidade e não deveria ser defendida por ninguém, dentro
ou fora deste62. Todavia, os povos devem escolher seu lado e ninguém “deve se
orientar exclusivamente por padrões, sejam americanos, sejam soviéticos”. As
fronteiras deveriam permanecer congeladas63. Tal posição perdurou até a crítica
pública à Doutrina Brejnev, e no abandono de qualquer ambiguidade que pudesse
conviver com a defesa implícita dessa doutrina. No fim do ano seguinte, entretanto,
Gorbachev pôs em debate até a sua própria esfera de influência, com o seu discurso
em dezembro de 1988, na ONU:

57
GORBACHEV, Perestroika, p. 240; p. 163.
58
O abandono dos antigos aliados e o embargo armamentício ao Iraque, levaram as exportações de
armas a um nível crítico em 1989-1990. GOODMAN, Gorbachev's retreat…, p. 173.
59
GOODMAN, Gorbachev's retreat..., p. 22.
60
Para Hobsbawm a instabilidade do Terceiro Mundo possuía outras razões que não a ação
revolucionária da URSS e de seus seguidores nos países pobres – como indefinições de fronteira,
questões coloniais não resolvidas, instituições novas e não consolidadas, exposição às crises
econômicas externas. O jogo das superpotências e o papel americano potencializavam os conflitos.
HOBSBAMW, Era dos extremos..., p. 422.
61
GORBACHEV, Tempo para a paz..., p. 134. A Conferência de Yalta (1945) definiu as zonas de
ocupação e influência na Europa, ampliando o “Tratado das Percentagens” elaborado por Churchill
e Stalin. Em 1985 Gorbachev insinuou a ameaça americana diante do líder tchecoslavo Gustav
Husák.
62
GORBACHEV, A URSS rumo ao século..., p. 91.
63
GORBACHEV, Perestroika, p. 164.

228 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


O desejo de democratizar todos os sistemas políticos
que regem o mundo converteu-se numa poderosa força
político-social de primeira ordem.
É evidente, por exemplo, que a força e a ameaça da força
já não podem nem devem continuar a ser um instrumento
da política internacional. Referimo-nos, em primeiro lugar,
ao armamento atômico, mas não se trata unicamente
disso. Todos, e em primeiro lugar os mais fortes, devem
limitar por si mesmos e excluir totalmente o uso da força
no exterior.64

Não em uma reunião às portas fechadas do Pacto de Varsóvia, diante dos


líderes da Europa do Leste, mas em Washington, perante as câmeras do mundo
todo (cujas ondas chegavam aos sistemas improvisados de parabólicas ou aos
rádios de ondas longas, que já não sofriam mais interferência dos jammers65, dos
cidadãos das democracias populares), Gorbachev afirmava que não usaria das
tropas do Pacto e que cada país devia possuir a liberdade de escolher seu próprio
destino. Essa doutrina foi chamada de Sinatra, em virtude da música deste, “I did
it my way”. Era o completo avesso da Doutrina Brejnev ou de soberania limitada,
que havia promovido a estabilidade política desses países desde 1968, através da
ameaça da intervenção militar do Pacto de Varsóvia e da imposição da permanência
na esfera de influência soviética, ou, nos termos dos conservadores, viverem um
futuro compartilhado em que uma ameaça ao regime de um país-membro era uma
ameaça a todos. A invasão soviética do Afeganistão, no natal de 1979, devia-se à
suspeita que os líderes emergidos de uma luta fratricida dentro do partido afegão
poderiam trocar o círculo soviético pelo americano, como fez o Egito de Anuar
Sadat, ainda nos anos Brejnev.
As peripécias de Gorbachev no Leste tiveram início com sua própria ascensão
ao poder. Durante a posse, os secretários-gerais seguiam o protocolo de sempre
atender primeiro os delegados da Europa Oriental, mas Gorbachev ficou quase
todo o tempo com os representantes do Ocidente66. Suas relações foram tensas.
As declarações condenando a intervenção de 1956 na Hungria e de 1968 na
Tchecoslováquia eram uma crítica aos homens que assumiram o poder através
delas – Kádar e Husák. Seus livros foram proibidos por Honecker, premiê da
Alemanha Oriental. Gorbachev gerou incômodo ao líder romeno Ceaucescu por
seus diálogos com trabalhadores romenos: “Se você me responde que em seu país
não há problemas, eu não posso acreditar [...]. Sempre há, e não devemos ter
medo de falar abertamente neles”67. Os líderes conservadores o renegaram e ele
não apoiou os reformistas quando estes finalmente chegaram ao poder68.
Brown, como outros, aponta para um afastamento deliberado de Gorbachev
frente a sua área de influência europeia. Como reformador, não poderia fazer mais

64
GORBACHEV, A proposta, vol. 2, p. 20; p. 42.
65
Sistema que embaralha os sinais de rádio e televisão, impedindo o seu acesso.
66
BROWN, The Gorbachev factor..., p. 75.
67
Veja, São Paulo, 03 jun. 1987, n. 978, p. 46.
68
LÉVESQUE, The enigma of 1989..., p. 03; p. 87.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 229


nada além de se opor e fazer críticas aos antigos chefes comunistas. Lévesque
acredita que a questão não era de afastamento, mas sim de baixa prioridade –
Gorbachev não achava importante dar atenção ao Leste Europeu – a ponto de
não ter um projeto ou programa para embasar suas relações com a região. Quando
crises sucessivas sobrevieram, seu comportamento foi aleatório, exacerbando sua
conduta já contraditória. Ao contrário do que pensava, essas crises não eram
facilmente sanáveis através do uso da iniciativa e a tentativa de jogar com pontos
fracos para assumir posições de força, demonstrou-se desastroso (como incitar as
massas para a reforma contra os conservadores no poder – o que serviu para
tornar as condições inadministráveis para os próprios reformistas), elas saíram
de controle e não sabia como reagir à situação imprevista. Porém, alguns líderes
reformistas, que detiveram o poder rapidamente entre a queda dos conservadores
e a renúncia ou derrota eleitoral frente aos liberais, falam inclusive no abandono
da região por Gorbachev, como Grosz69. Não se pode esquecer também que, uma
maior proximidade com os líderes conservadores (como Jikov e suas restrições
às minorias turcas na Bulgária) arranharia a imagem externa de Gorbachev, tão
importante para a sua diplomacia e influência decisiva sobre o público externo e
na crença de sua confiabilidade.

As Transformações nos Discursos de Gorbachev

Em 1985 nada passava mais longe dos discursos de Gorbachev do que a


Doutrina Sinatra como substituta da Doutrina Brejnev. Previa a unidade de ação
com os países comunistas. Diante do embargo econômico e da pressão militar, a
saída seria o fortalecimento das relações entre os países socialistas, inclusive com
a China70 – mas a essa altura já estava promovendo as alterações dos quadros do
Departamento Internacional. Em seguida, o movimento comunista internacional
deveria se adaptar ao novo mundo de sinceridade e de união com todas as forças
progressistas, como os socialistas ou os socialdemocratas71.
Os elogios e a visão otimista logo cedem lugar à crítica, como a de que as
relações entre os países do bloco “se tornaram pouco sérias” e quase exclusivamente
comerciais. Ainda afirmava nessa época (fins de 1987) que deveria existir uma
tendência geral à união que guiasse todos os países socialistas, mesmo a rival
China. Essa tendência geral fica mais clara quando se fala da futura integração do
COMECOM com a Comunidade Econômica Europeia, CEE, visando à unificação
do bloco europeu e a construção da “casa comum europeia”. Enquanto alguns

69
“Desde meu primeiro encontro com Gorbachev, eu expressei o desejo de que [...] todas as tropas
soviéticas deixassem a Hungria. Ele imediatamente concordou, observando que, no entanto, seria
melhor tratar da retirada no âmbito das negociações com a OTAN, para que a URSS pudesse obter
em troca reduções americanas comparáveis na Europa Ocidental. Então, para minha surpresa,
toda vez que eu pedi a ele algo que eu acreditava ser muito difícil e delicado do ponto de vista
dos interesses soviéticos na Hungria, ele sempre disse que sim. Eu finalmente cheguei à conclusão
de que ele e Shevardnadze já tinham em mente um plano para separar completamente a União
Soviética da Europa Oriental”. LÉVESQUE, The enigma of 1989..., p. 86-87. Károly Grósz era
gorbachevista e assumiu o poder na Hungria após a saída do presidente conservador János Kádar.
70
GORBACHEV, URSS, p. 42.
71
GORBACHEV, Mikhail. Outubro e a Perestroika. Rio de Janeiro: Revan, 1987, p. 72-73.

230 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


países estavam adiantados com a inserção na econômica global (como a Alemanha
Oriental, que através de acordos econômicos com a Alemanha Ocidental, na prática,
era um país-membro da Comunidade Econômica Europeia e em condições de
concorrer e sobreviver nesse mercado, transformando-a numa “Europa dos Treze”),
outros impediam o avanço do conjunto do bloco. O COMECON foi reorganizado
pela liderança soviética (sem levar em consideração o que os demais países-
membros achavam disso) como ferramenta de impulsionar essa aproximação. Não
existiriam desacordos entre a URSS e seus aliados, apenas uma “crítica honesta”72.
Nessa época, Gorbachev cunhou o termo “casa comum europeia”. A imagem
se referia as “kommunalkas”, às casas comunais do tempo de Stalin. Cada nação
europeia teria seu espaço, seu cômodo dentro da casa comum, contudo, teriam que
aprender a se relacionar dentro deste espaço, em que se deparariam constantemente
e teriam que dividir algumas áreas (como são revezados o banheiro, cozinha, etc.).
Ele colocava por terra a noção da partilha da Europa (ao falar da “artificialidade dos
blocos” e da “natureza arcaica da Cortina de Ferro”) e de originalidade da cultura
eslava para falar em um pan europeísmo, de convivência e interdependência em
uma Europa unida geográfica e culturalmente. “A Europa, do Atlântico aos Urais
é uma entidade histórica unida pela herança comum”, até mesmo religiosa, com o
cristianismo73.
A segurança também deveria ser continental. Da mesma forma que os americanos
usaram o Tratado de Helsinque como meio de fazer pressão econômica sobre a
URSS, justificados pelas questões de direitos humanos envolvendo dissidentes
famosos, Gorbachev pretendia usar o mesmo tratado como instrumento para
amenizar as duas alianças rivais em solo europeu e dar força real à Organização de
Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) – uma devaneadora integração militar
continental, abrigando tanto países comunistas quanto capitalistas74. Não faltaram
críticos ocidentais sugerindo que a organização dessa kommunalka de todos os
europeus ficaria a cargo do Kremlin, tornado fiador da segurança militar também
da zona ocidental. Para resolver essa questão e afastar os céticos era necessário
também definir o papel dos Estados Unidos na casa comum. Não era uma questão
apenas formal ou cultural. A Europa Ocidental pululava de bases militares suas.
Ainda em 1985, Gorbachev lançou mão de suas críticas veementes, ou como
Volkogonov prefere dizer, deu-se linguajar praguejador típico do interior75. A
tensão mundial era culpa apenas “da política egoísta e militarista de Washington”.
Ao exercer o figurino de “polícia do mundo”, o resultado concreto da presença
internacional americana era desestabilizar o sistema internacional e “liquidar a

72
GORBACHEV, Perestroika, p. 192-199.
73
Em sua declaração realizada dois anos depois, em 1989, no Parlamento Europeu, propôs “a
criação de uma vasta zona de cooperação econômica que se estenda do Atlântico aos Urais,
mantendo estreita interligação entre as partes oriental e ocidental da Europa”. GORBACHEV,
Mikhail. A proposta, vol. 4, p. 192. A visão de uma futura fusão do COMECON com a CEE, unidos
por trem-bala, fibra ótica, sistemas de energia (reatores nucleares de tecnologia soviética e europeia
ocidental) e de satélites (com recursos do Oeste Europeu, lançados pelos soviéticos) e televisores
digitais era bem diferente das declarações iniciais de aumento do comércio entre os blocos.
74
GORBACHEV, A URSS rumo ao século..., p. 99; GORBACHEV, Perestroika, p. 224-241.
75
VOLKOGONOV, Dmitri. Os sete chefes do Império Soviético. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2008, p. 401.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 231


liberdade e a soberania dos povos”. “O imperialismo tem intensificado ultimamente
a atividade subversiva” desde sua população interna de trabalhadores até aos países
socialistas76 – essa visão não se trataria de uma política equivocada de Brejnev.
Ou em 1986, em que o capitalismo (e a presença americana) era uma ameaça à
civilização e aos valores universais, era uma “cultura de violência, ódio, racismo,
vileza”77. Para fortalecer sua política pan-europeia tentava mostrar os Estados
Unidos como um corpo estranho ao continente e à sua civilização, ao contrário
da União Soviética (o que era a completa inversão do que se pensa no Ocidente).
Seria uma ameaça por roubarem a soberania da região (e daí a necessidade do
continente ser “novamente protagonista de sua própria história” através da união
de suas nações, do fortalecimento da CSCE e do afastamento das influências
externas), promoverem o recuo da “imensa cultura europeia”, diante do avanço
de sua própria, baseada na cultura de massas e na violência78. Ao mesmo tempo,
Gorbachev procurava manter uma posição mais branda ou ambígua sempre que
possível, como no episódio de 1985, em que produziu duas versões diferentes do
mesmo discurso sobre Reagan – um mais enfático para ser lido diante do PCUS e
outro, muito mais afável, que acabou sendo publicado no exterior79.
A visão do papel americano na Europa mudou rapidamente no ano de 1988. O
medo imediato era o de militarização autônoma dos países da Europa Ocidental.
Nesse quadro, a URSS se confrontaria com dois inimigos poderosos: tanto os
Estados Unidos, com a mesma presença no continente, quanto os países mais
desenvolvidos do continente se voltando para uma corrida nuclear. Os EUA foram
vistos como importantes para o cenário europeu e com uma função a desempenhar.
Esse papel, na prática, era o de amortecer as preocupações de segurança e evitar
essa proliferação armamentística, mantendo equilibrada a disposição de forças
nesse cenário geopolítico.
Na segunda metade de 1989 o poder já escapava do POUP, o partido
operário polonês, para o Solidariedade, apoiado pelos partidos políticos que
antes formavam a frente comum encabeçada pelo POUP. Na Hungria o Partido
Socialista dos Trabalhadores Húngaros mudava seu nome para Socialdemocrata e
se fragmentava. O êxodo alemão-oriental já estava em marcha pela recém-aberta
fronteira húngara com a Áustria. Neste momento, Gorbachev falava em mudanças
nas esferas de influência e numa Europa unificada pela liberdade – especialmente
comercial e de capitais:

A Europa foi alvo de uma série de tentativas de unificação


pela força, mas houve também ideias nobres de criação
de uma comunidade democrática e voluntária dos povos
europeus. Victor Hugo disse: “Chegará o dia em que tu,

76
GORBACHEV, URSS, p. 43-44.
77
GORBACHEV, A URSS rumo ao século..., p. 30.
78
GORBACHEV, Perestroika, p. 244-245.
79
VOLKOGONOV, Os sete chefes do Império..., p. 401. O que não era exatamente uma novidade
entre os líderes soviéticos. Durante a Crise dos Mísseis, Kruschev havia enviado duas versões do
mesmo telegrama: um agressivo e confiante, dirigido aos políticos e generais e à divulgação pública
interna. O outro, conciliador e pacificador, foi enviado à Casa Branca. Porém, ambas as versões
foram captadas e entregues ao grupo de Kennedy.

232 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


França, tu, Rússia, tu, Itália, tu, Grã-Bretanha, tu, Alemanha,
todas vós, nações do continente, sem perderdes os vossos
traços distintivos nem a vossa magnífica singularidade,
formareis uma sociedade suprema, uma fraternidade
europeia... Chegará o dia em que os mercados, abertos ao
comércio, e os intelectos, abertos às ideias, serão o único
campo de batalha!” [...].
As ordens sociopolíticas dos países mudaram no passado
e continuarão a mudar no futuro, mas essa alteração é
um direito exclusivo dos povos desses países. Toda e
qualquer ingerência nos assuntos internos dos Estados [...]
sejam amigos e aliados ou quaisquer outros países, são
inadmissíveis.80

A intenção fica clara: não abandonar o Leste Europeu para a OTAN ou a CEE,
mas sim integrar mesmo a URSS no bloco ocidental num movimento conjunto do
Leste em direção ao Oeste81.

As Negociações dos Acordos de Desarmamento

O crescente pan europeísmo de Gorbachev teve princípios nada abonadores,


como a crise com Kohl (em que Gorbachev criticou a visita de Ronald Reagan e o
primeiro-ministro alemão Helmut Kohl a um cemitério da SS e Kohl afirmou que
Gorbachev era um propagandista, “como Goebbels”) e a questão dos euromísseis,
pendente desde o início da década de 1980. Muito se fala de suas boas relações
com os líderes conservadores como Reagan e Thatcher, mas pouco sobre os
espinhos nas relações com os mesmos. O líder com quem Gorbachev teve relações
mais amigáveis foi o socialista González, da Espanha – mais próximo, inclusive,
que o presidente francês, Mitterand, segundo o próprio Gorbachev82. A política
pan-europeia rapidamente se tornou uma política de ocidentalização (vista como
sinônimo, por si só, de modernização) tanto social e econômica interna, quanto
das relações internacionais do país, no sentido de aderir às posições diplomáticas
ocidentais (como na mudança de tratamento dos antigos aliados do Terceiro
Mundo).
Gorbachev, a partir de 1986, passa a frisar que o desarmamento era uma
necessidade primária para a União Soviética. Sem ele, o país não poderia investir
na modernização de seu parque produtivo e realizar a “aceleração do progresso
técnico-científico” - adentrar na terceira revolução industrial. Com o tempo, passa a
afirmar que os custos eram insuportáveis para o país. No entanto, na administração

80
GORBACHEV, A proposta, vol. 4, p. 184-185.
81
Vladimir Putin renovou a proposta quinze anos depois. Tratava-se de uma campanha publicitária,
de embate entre discursos, como forma de minar o projeto de Bush de um escudo de mísseis, em
tese dirigido contra o Irã, mas que na prática ameaçava a Rússia. Putin, ao contrário de Gorbachev,
não possuía nenhuma esperança de que a Rússia fosse aceitada nos círculos fechados existentes
exatamente para isolá-la. O que reforça a tese de que Gorbachev criou sua diplomacia sobre frágeis
pressupostos.
82
BROWN, The Gorbachev Factor..., p. 116.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 233


Andropov a superioridade estratégica era mantida nos mesmos patamares, com
a produção e disposição de mísseis na mesma proporção que o assentamento
dos euromísseis ocidentais83. A necessidade econômica do desarmamento foi
transformada por Gorbachev num dos principais instrumentos de relações-públicas
e afirmação da credibilidade das intenções pacifistas e de redução dos arsenais
atômicos e convencionais.
Em 1985, a superioridade estratégica nuclear deveria ser mantida, pois era o
único obstáculo aos “apetites agressivos do imperialismo”. A guerra fria e a escalada
armamentista eram culpa do imperialismo – do sistema, e não de ações que poderiam
ser mudadas mais facilmente do que estruturas. Do mesmo modo, não havia nada
que previsse a necessidade de segurança por parte do Ocidente. A intenção dos
EUA não eram acordos com concessões mútuas, mas tratados desequilibrados que
lhe permitiriam exercer uma “posição dominante no mundo”. O verdadeiro senhor
“nyet” era a diplomacia americana, e esta máscara cairia diante de seu público
interno, visto que seria impossível participar de negociações de desarmamento, ao
mesmo tempo em que se promove uma corrida armamentista84.
O modelo de paz proposto por Gorbachev era ainda o da Détente de Brejnev. Em
Genebra, Gorbachev acusou o governo Reagan de desrespeitar os acordos SALT
II (de limitação de armas atômicas) com os euromísseis e ABM (de salvaguarda
contra a militarização do espaço) com a IDE85 – quem era digno de descrédito
por descumprir acordos internacionais eram os americanos. Mas o antagonismo
de interesses frente a estas duas posições foi minimizado em seus discursos
subsequentes86. Em 1986 ainda afirmava que, foi “a paridade estratégica que
afastou as chances de uma guerra nuclear”, o que era uma conquista. Se em 1985
alegou que cada país era livre para escolher seu destino, em 1986 detalhou sua
posição. No XXVII Congresso do PCUS estabeleceu a meta para um ano 2000 sem
armas nucleares. Contava com o apelo popular desse anúncio. A diplomacia da
popularidade estava sendo construída: “O programa soviético sensibilizou milhões
de pessoas” ao deixar claro que carecia da desmilitarização, o que fortalecia a
política de sinceridade diplomática, de transparência de propostas e negociações,
de estar na “vanguarda do desarmamento e do pacifismo” e deixava claro que,
quem obtinha lucros com o belicismo era o complexo industrial-militar dos EUA e
sua ramificação política, o que era um ponto de força para colocá-los na defensiva.
Tornou públicas as propostas americanas de desarmamento feitas às portas
fechadas e faz a crítica ao seu estreitismo – o que gerou um embaraço para os
americanos e uma atuação nada comum na diplomacia87.

83
VOLKOGONOV, Os sete chefes do Império..., p. 324.
84
GORBACHEV, URSS, p. 41-51.
85
GORBACHEV, URSS, p. 93.
86
GORBACHEV, Tempo para a paz..., p. 34.
87
GORBACHEV, Tempo para a paz..., p. 98.

234 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Fig. 1 – Reunião do G7 + 1 em julho de 1991, retratada por Gorbachev em seu livro de
memórias, enfatizando o clima otimista e descontraído: “Reuni-me com os líderes dos sete grandes
países industrializados, visando a integração da União Soviética na economia mundial”88.

Figs. 2 e 3 – Jornalistas flagraram em vídeo a apreensão de Gorbachev diante da negativa do


empréstimo de US$ 280 bilhões por parte do G7 e do FMI e da venda das Ilhas Sakalinas para
o Japão. Cenário bem diferente daquele que Gorbachev retratou, até mesmo graficamente, em
seu livro. Mais uma vez o premiê soviético parece ter avaliado mal a situação ao seu redor e as
possibilidades da URSS89.

A necessidade percebida por Gorbachev, de fazer concessões unilaterais, pôde


dar espaço ao jogo publicitário ao dizer que “a URSS está disposta a justificar as
esperanças dos povos dos nossos dois países e de todo o mundo”, em vez de uma

88
GORBACHEV, O Golpe de Agosto..., p. 74-75.
89
COLD War. Episódio 24: “Conclusions”. Direção de Jeremy Isaacs. Produção de Pat Mitchell e
Jeremy Isaacs. Série televisiva de documentários. Nova York:Turner; CNN, 1998 (NTSC; colorido;
inglês; legendado em português; Dolby Digital Stereo; 50 min).

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 235


presumida fraqueza. A noção de diplomacia internacional como reflexo da luta
de classes e da libertação do terceiro mundo foi paulatinamente abandonada, ao
contrário de 1985, quando eram defendidas. As “contradições sociais, políticas
e econômicas” deveriam ser deixadas de lado por um consenso mútuo baseado
nos “valores universais e na civilização”, com a criação de um “sistema global de
segurança econômica internacional” que possa defender todos os Estados “das
discriminações, das sanções, e de outros atributos da política imperialista”. “O
mundo ficou muito pequeno e frágil”, devido à globalização e a interdependência,
para que a guerra ainda tivesse lugar90. Os conflitos armados eram uma herança
milenar que precisava ser superada para que a nova realidade mundial emergisse
definitivamente. Ele aderiu a ideias próximas ao conceito de exterminismo, ao
afirmar que a corrida nuclear engendrou uma lógica própria e fora de controle,
onde “a superioridade militar não interessa a ninguém” já que “a paridade deixará
de ser um fator de contenção” – posições parecidas com a de Eisenhower ao deixar
a Casa Branca, mas avessas a sua concepção um ano antes. Gorbachev atacou
Brejnev (que afirmara que a URSS adotara uma estratégia defensiva e que não
seria a primeira a iniciar um confronto nuclear) ao falar da “construção da doutrina
militar soviética defensiva”, como algo ainda a ser feito.
Portanto, estava em marcha o abandono da crença no imperialismo como causa
única da corrida armamentista, como também o reconhecimento de interesses
legítimos de segurança por parte do Ocidente. “A segurança deve ser de todos”.
Incorporou a ideia, como tantas outras ideias, definições e versões ocidentais, de
que se os americanos apelidaram Molotov ou Gromyko de “Senhor Nyet” (Senhor
Não) era porque de fato eram intransigentes. O velho pensamento serviria apenas
para impor obstáculos caprichosos para o processo de paz. Era a inversão das
posições de 198591.
Em 1987, ainda falava no “dever internacionalista”92 – termo usado no passado
para justificar a atuação externa do país, como a invasão do Afeganistão. Lenin
ensinou a conviver e a participar do sistema internacional com os países capitalistas,
a construir o caminho para a paz e a cooperação internacional, e como afastar o
“radicalismo de esquerda”93. O mundo havia se globalizado e a URSS precisa inserir-
se nele. Não existiria outra opção. Diante da ameaça nuclear, as preocupações de
classe deveriam dar lugar às preocupações humanistas e aos valores universais.
Apenas estes valores e a sinceridade poderiam desarmar o discurso antissoviético,
e mesmo libertar o Ocidente do militarismo. “é possível avançar nessa questão sem

90
A noção de que as guerras poderiam ser superadas pelas ligações econômicas entre as nações (e
o interesse bélico disfarçado sob os embargos ao bloco socialista) foram apontados por Gorbachev
ainda em 1984, na primeira das muitas reuniões do futuro secretário-geral com homens de negócios
do mundo capitalista, em busca de “vantagens mútuas”. GORBACHEV, Tempo para a paz..., p.
153.
91
GORBACHEV, A URSS rumo ao século..., p. 91-97.
92
GORBACHEV, Glasnost..., p. 120.
93
Os termos “esquerda” e “direita” assumiram sentidos diferentes do usual na URSS de Gorbachev.
Aqueles que defendiam mudanças radicais no sistema do socialismo real ou seu fim, eram
classificados como esquerda. Aqueles que defendiam sua preservação, de direita. Gorbachev usa
“esquerda” em seu Perestroika na acepção do Ocidente, já que se dirige a este. BROWN, Archie &
SHEVTSOVA, Lilia. Gorbachev, Yeltsin & Putin. Brasília: Editora da UnB, 2004, p. 27.

236 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


causar prejuízo a ninguém”. Um mundo unificado permitiria à URSS “incorporar-
se na divisão internacional do trabalho e de recursos”, o que asseguraria a paz,
através das interdependências mútuas. O Ocidente deveria ser cativado através
do retorno da URSS aos princípios do verdadeiro socialismo, através do expurgo
das distorções impostas pelos conservadores. Ocorreria uma aproximação e
convergência política, econômica e social de ambos os blocos94.
Em 1990 e 1991 acentuou a aproximação com os países ricos. Com o golpe
conservador de agosto de 1991, que tentou retirá-lo do poder e salvar o caráter
unitário do país antes que o Novo Tratado da União fosse assinado e a URSS
se transformasse na UES95, a cisão com antigos aliados e clientes ou alvos
da diplomacia, se consumou. Gorbachev elogia os líderes que se negaram a
reconhecer o golpe, como Hosni Mubarak, do ex-desafeto Paquistão, e associou
aqueles que apoiaram o golpe, Saddam Hussein e Kadafi, como foras da lei – na
mesma linha das afirmações de Reagan e Bush96. Analistas subsequentes, como
Gaidar, afirmaram que a diplomacia soviética fora direcionada para satisfazer
o Ocidente e assim conseguir empréstimos e investimentos. O que é falso para
o período anterior a 1990. Mas parcialmente correto após. Gorbachev tentou
desanuviar os sentimentos ocidentais de que a URSS se desintegraria em guerra
civil e instabilidade global, ao afirmar que a solução para uma transição pacífica
era o auxílio monetário dos países ricos à URSS. Conhecedor da aproximação
americana com o rival presidente da república russa, Yeltsin, procura se apresentar
como o único agente político capaz de transformar a possível ajuda em paz interna:

Se conseguirmos organizar ações conjuntas em novas


formas e trabalhar com novos órgãos e gente nova, o
Ocidente nos apoiará, pois ele está procurando com quem
negociar. É por esta razão, tanto pelos processos internos
quanto pela cooperação com o mundo exterior (essencial
para nós), que todos estes problemas devem ser tratados
sem demora [...].
Espero agora que o Ocidente dê mais atenção ao que
tenho dito com insistência nas minhas solicitações de uma
cooperação prática e producente com nosso país [...].
O livre comércio e a inversão de dólares na economia
soviética tornariam “irreversível a integração deste vasto
país à comunidade das nações civilizadas. Não sei quanto
isso nos custará, mas tenho certeza de que o preço não se

94
GORBACHEV, Outubro e a Perestroika..., p. 58-59; p. 84.
95
O projeto da União de Estados Soberanos, que substituiu o de União das Repúblicas Soberanas
Soviéticas, previa frouxos laços entre as repúblicas. A nova URSS parecer-se-ia muito com a
sucessora CEI ou a União Europeia, com um presidente com poder nominal. Era a resposta de
Gorbachev para o processo de “derrubamento” do poder central: ao mudar o poder do partido
para o Estado tornando-se presidente da URSS, abriu espaço para as autoridades de cada uma das
quinze repúblicas – inclusive a Rússia de Yeltsin – a fazer o mesmo, reformulando suas leis e esferas
de atribuições, declarando sua autonomia ou independência frente ao poder do Kremlin. Previu-se
até a divisão das forças armadas.
96
GORBACHEV, O Golpe de Agosto..., p. 36.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 237


compara ao que nos custou o confronto”.97

Sobre a posição do país no mundo, tanto presente quanto passada, o fim da


URSS e a prevista criação da UES, repete a visão liberal ocidental, gradualmente
compartilhada com seus assessores:

Teríamos que fazer uma escolha: ou colocar o mundo todo


na nossa mira, ou aceitar nossa inferioridade militar. Fomos
uma superpotência com uma economia ineficaz, tornamo-
nos de fato um apêndice de matérias-primas das nações
desenvolvidas, enquanto nosso padrão de vida era muito
inferior ao deles. Será que é patriótico que os cidadãos
preocupados com o prestígio de sua pátria sintam saudade
de tudo isso?
Acabamos com essa política externa que servia a meta
utópica de disseminar as ideias comunistas pelo mundo,
que nos levou ao beco-sem-saída da “guerra fria” [...]. A
libertação da humanidade da ameaça de um Armagedon
nuclear fortificou, de fato, a segurança do nosso próprio
país. Estabeleceu-se uma base simples para a consolidação
futura da posição externa de nosso país. Lembremos
o famoso ministro das Relações Exteriores do século
passado, o príncipe Gortchakov; “A Rússia se concentra”,
dizia ele, referindo-se ao renascimento de seu prestígio
como consequência das reformas das décadas de 1860 e
1870.98

Considerações Finais

A perda do inimigo ideológico, além de pôr em xeque a diplomacia americana,


trouxe também consequências imprevistas, como o fim de um amálgama social
dentro do Leste Europeu, baseado no medo comum de um ataque ocidental. O
fim do controle sobre o Leste, sem que ocorresse qualquer reação do Kremlin,
estimulou o separatismo interno. A recusa do uso da força e a extinção da zona de
influência soviética sem que esta fosse conquistada militarmente, foram explicadas
por Gaidar, ministro de Yeltsin, como a imposição da falência econômica e da
necessidade de ajuda financeira externa – que não seria entregue se fosse feito o
uso da repressão ou a manutenção de regimes aliados99. A crise econômica teve
influências sobre a capacidade militar e a condução da política externa, mas só
se tornou profunda gradualmente entre 1987-90, quando o déficit orçamentário
anual pulou de 20 para 120 bilhões de rublos.
As propostas de desarmamento eram tão leoninas (como a opção zero
americana, que eliminou os mísseis de médio alcance do solo europeu, mas que

97
GORBACHEV, O Golpe de Agosto..., p. 68; p. 89; p. 92.
98
GORBACHEV, O Golpe de Agosto..., p. 128.
99
GAIDAR, Egor. Collapse of an empire. Washington: Brookings Institution Press, 2007, p. 214-215.

238 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


significou a destruição de três vezes mais ogivas soviéticas que americanas) que
o próprio corpo diplomático técnico teve que ser expurgado para não se opor (a
primeira baixa deu-se dias depois da ascensão de Gorbachev, com a remoção
de Gromyko do Ministério do Exterior). Mesmo assim, os negociadores ocidentais
os contornavam para recorrer diretamente a Gorbachev e Shevardnadze, que,
mais compreensíveis, tendiam a encurtar o tempo de discussão e a defender as
concessões100. Abandonar sólidas posições de força, como a superioridade estratégica
na Europa, em troca de uma ascendência moral e a vanguarda de uma opinião
pública mundial, volúveis, ou arriscar suas fichas (e Gorbachev era um grande
apostador político) numa possível futura integração mundial, primeiramente no
eixo Leste-Oeste, seguida pelo Norte-Sul, se demonstraram rapidamente posições
não mais realistas ou menos ideológicas do que a diplomacia baseada na luta
de classes. Pelo contrário. A URSS não foi aceita economicamente no círculo das
nações capitalistas desenvolvidas, não recebeu a ajuda financeira prometida pelo
FMI (Fundo Monetário Internacional) e G7 (Grupo dos países mais desenvolvidos),
e teve sua área de influência ocupada diplomaticamente pelo Ocidente assim que
se retirou dela.
Para responder e justificar politicamente esses malogros, o assessor e guru de
Gorbachev, Alexander Yakovlev, afirmou que o mundo todo mudou pela ação de
Gorbachev, menos o povo soviético, que não aderiu ao novo pensamento, pois
estava mais preocupado com o fantasma de ter que trabalhar mais e melhor. Alianças
militares não eram necessárias (uma resposta plausível dentro da “realpolitik”, já
que a URSS foi privada de entrar na OTAN – apesar do pedido de Shevardnadze
durante as negociações de unificação alemã – e a que ela comandava evaporou-
se, ficando completamente sozinha, contudo, assombrosa se pensarmos que saiu
de um diplomata). As alianças deveriam ser como as do século XIX, passageiras
e não duradouras, com amigos de ocasião e não aliados, pois isso “busca a
confrontação”. “Para quê aliados se não temos mais inimigos?”. Afinal, os EUA são
ricos, “se quiserem gastar com armamentos, que o façam”101.



100
LÉVESQUE, The enigma of 1989...
101
YAKOVLEV, O que queremos fazer..., p. 84-106.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 239


RESUMO ABSTRACT
Durante a maior parte do século XX, as análises During most of the twentieth century, the
explicativas sobre a conduta diplomática explanatory analyzes on diplomatic conduct
concentraram sua atenção em razões econômicas focused their attention on economic and
e circunstanciais objetivas. Essa abordagem não circumstantial objective reasons. This approach
é capaz de abarcar todos os processos da história is not able to encompass all processes in the
das relações internacionais. Uma abordagem history of international relations. An alternative
alternativa, baseada nas expectativas e nos approach based on the expectations and
julgamentos da liderança, permite perceber judgments made by the leadership, allows realize
que a atuação do Kremlin na Era Gorbachev that the actions of the Kremlin in the Gorbachev
desconsiderou pontos de força que a URSS Era dismissed strong points that the USSR had
possuía (poderio e presença militares, suas (power and military presence, their alliances),
alianças), em virtude de novas preocupações, de due to new concerns, a new perspective
uma nova perspectiva de alinhamento do país, alignment of the country, a little realistic view that
de uma visão pouco realística que acentuava accentuated their weaknesses and their idealized
suas fraquezas e idealizada suas oportunidades, opportunities, shared by reformist sector.
compartilhada pelo setor reformista que assumiu Keywords: Diplomacy; Soviet Union; Mikhail
o poder em 1985. Gorbachev.
Palavras Chave: Diplomacia; União Soviética;
Mikhail Gorbachev.

Artigo recebido em 21 out. 2015.


Aprovado em 05 abr. 2016.

240 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (2012-2014):
O PERMANENTE LEGADO AUTORITÁRIO
EM QUESTÃO
Dmitri Felix Nascimento1

Após a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, a partir da


Lei nº 12.528/ 2011, tornou-se oficial por parte do Estado brasileiro a realização
de um instrumento cujo objetivo almejou elaborar um levantamento dos crimes
de violação dos direitos humanos entre os anos 1946-1988. Com esta iniciativa,
foi dado um importante passo para a elucidação do passado perante a atuação de
agentes do Estado, da sociedade civil e empresarial, principalmente, no período da
ditadura civil-militar brasileira de 1964-1985, experiências que outros Estados com
passado autoritário também o realizaram (Portugal, Grécia, Espanha, Argentina,
Chile, Uruguai, África do Sul e outros) com diferentes impactos sobre a transição
para a democracia.
Ao apresentar o relatório final em 10 de dezembro de 2014, outras questões
de cunho político e historiográfico passaram a emergir sobre o resultado dos
trabalhos da CNV. Questões sobre a abertura dos arquivos, punição de agentes
civis e militares, ajuda e influência externa, revisão da lei da anistia, assim como
os resquícios da Lei de Segurança Nacional (LSN) no judiciário fundamentam a
conflituosa relação presente e passado, ditadura e democracia. Objetivamos, desse
modo, analisar parte dos resultados da CNV e identificar a permanência do legado
autoritário na transição a democracia no Brasil.
Ao se abrir uma porta sobre os estudos da ditadura civil-militar brasileira
(1964-1985), parece-nos que outras passam a ser necessárias de ser desveladas e
questões a ser levantadas. O trabalho realizado pela Comissão Nacional da Verdade
(2012-2014), em um período de abrangência de 42 anos da História brasileira
(1946-1985), focando sobre a violação dos direitos humanos, principalmente na
busca pelos fatos e entendimentos sistêmicos do período de 25 anos da ditadura
civil-militar, nos conduz à prática histórica de apontar parte das raízes do legado
autoritário que a transição política incompleta permanece estruturada nas diversas
dimensões da sociedade brasileira.
A historiografia sobre a transição política para a democracia é vasta2 e nos
traz vários elementos para se identificar as permanências – e também mudanças
pontuais – que o enfrentamento com o passado vem se travando. Este tema ainda
permanece latente na historiografia, visto que a realidade da transição brasileira
consiste num prolongamento de problemas a ser analisados.

1
Doutorando em Política Comparada e Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa.
Bolsista Capes. E-Mail: <dmitri_felix@hotmail.com>.
2
PINHEIRO, Milton. Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014. TELES, Edson
& SAFATLE, Vladimir Pinheiro. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. REIS, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar 40
anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004. D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary
Dillon & CASTRO, Celso. Visões do golpe: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1995.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 241


Por se tratar de uma problemática abrangente com várias perspectivas de
análise (econômica, social, política e cultural) procuraremos apontar três pontos
que dimensionam parte da questão da transição do trabalho da CNV: a questão da
abertura dos arquivos, o processo da revisão da Lei da Anistia, e os decretos de leis
sobre os crimes contra a segurança nacional.
Dito isso, trabalharemos com a perspectiva teórica de autores3, que elaboraram
questões sobre a justiça transicional com olhar sobre as realidades de países como
Portugal, Espanha, e da Europa do sul.
Abordar a Transição
Os estudos sobre justiça transicional e sobre a memória, segundo Costa Pinto,
evoluíram, mas raramente se encontraram, pois, em muitos casos os (alguns)
historiadores desempenharam o duplo papel como estudiosos do autoritarismo e
como guardiões da “verdade sobre o passado”. Isto acontece quando as democracias
após o colapso dos regimes autoritários para superar o legado histórico, por vezes,
tende a buscar a punição das elites associadas com os regimes autoritários (este
que não é o caso do Brasil), e que isto é determinado por “novos fatores, como o
ambiente internacional, condicionalidade, clivagens partidárias, ciclos de memória
e comemorações, políticas de perdão e outros trazem efetivamente o passado de
volta à arena política”4.
Há na realidade uma dificuldade também historiográfica de dimensionar o
impacto sobre um tipo de transição, assim como compará-lo com outras experiências
de regimes autoritários e ditaduras militares. Como enfatiza Costa Pinto, uma destas
dificuldades se baseia em que, “um problema importante aqui é como destrinçar
legados específicos dos regimes autoritários anteriores de legados históricos tout
court, uma vez que o que se encontra no armário quando as transições abrem as
portas das ditaduras é muito mais do que autoritarismo”5.
Algumas questões podem ser levantadas sobre a forma de se tratar dos tipos
e modos de transição. Costa Pinto, ao tentar abordar as características e as
capacidades com que o regime autoritário tinha deixado seu legado, trabalha
com três possíveis pontos que podem ser entendidos como o legado que o regime
autoritário, anterior a democracia, tenha conduzido à transição, a saber; o primeiro
é a estabilidade que o regime autoritário tenha exercido durante um determinado
tempo até sua implosão e/ ou passagem; o segundo, a sua inovação institucional;
e o terceiro, o modo de transição praticado.
A partir destes pontos é possível verificar os elementos de que a democracia
tenha herdado do regime autoritário, ou seja, as estruturas socioeconômicas e
parte da classe política que tenha permanecido no poder.
Ao citar Teitel6, Costa Pinto descreve que, o que se entende sobre justiça
transicional:

3
PINTO, António Costa. A sombra das ditaduras: a Europa do Sul em comparação. Lisboa: Imprensa
de Ciências Sociais, 2013. SCHMITTER, Philippe. Portugal: do autoritarismo à democracia. Lisboa:
ICS, 1999.
4
PINTO, A sombra das ditaduras..., p.19.
5
PINTO, A sombra das ditaduras..., p. 21.
6
TEITEL, Rugi G. Transicional justice. Nova York: Oxford University Press, 2000, p. 06.

242 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Envolve toda uma série de medidas tomadas durante o
processo de democratização, que vão para além da mera
criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores
e agentes repressivos, e implicam uma grande diversidade
de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do anterior
poder repressivo, tais como investigações históricas oficiais
sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos,
reparações, dissolução de institucionais, comissões da
verdade e outras medidas que se tomam durante um
processo de transição democráticas.7
Diante esta afirmação, no caso do Brasil, houve controle quase absoluto das
elites que congregavam a ditadura, podendo ser qualificada mais como uma
“transição por ‘transação’”8, uma longa transição contínua permitindo a antiga elite
autoritária seguir impune com seu passado, ou seja, a inexistência de julgamentos.
Cessarini9 ao comparar a justiça transicional na Europa do Sul, aponta
as tipologias (criminal, histórica, reparadora, administrativa, institucional,
redistributiva) e os objetivos relacionados (retribuição, verdade, reabilitação das
vítimas, marginalização das elites autoritárias e colaboracionistas, democratização
e justiça socioeconômica). Podemos observar que o caso brasileiro é equivalente
ao caso espanhol, onde apenas as dimensões de reparação (parcial) material de
certos grupos e democratização institucional (Constituição, Parlamento e liberdade
de imprensa, e outros) foram atingidas.
Na perspectiva de Schmitter10, ao tratar da realidade portuguesa após a
Revolução dos Cravos (1974), elabora uma análise sobre a tipologia da transição
política. Para o autor, após a queda do antigo regime autoritário o que há não é
necessariamente uma democracia, mas um “regime parcial”, pois:
O que se consolida é antes uma série de instituições
diversas ou ‘regimes parciais’ que estabelecem a ligação
entre os cidadãos e as autoridades públicas, obrigando-
as desse modo a prestarem contas de suas acções. Nem
todas estas instituições estão organizadas de acordo com
os mesmos princípios e não existem necessariamente entre
elas relações estreitas.11
O que está em questão é a consolidação democrática mesmo que não seja
“um prolongamento da transição”, que na realidade as forças sociais passam a ser
reconhecidas de formas diferentes, e que, “a consolidação democrática implica, em
grande medida, novos atores, novas regras, novos processos e talvez mesmo novos

7
PINTO, A sombra das ditaduras..., p. 23.
8
Ressaltamos que houve e há uma continuada resistência da sociedade civil organizada e grupos de
defesa de direitos humanos que denunciam a forma como esta transição foi praticada.
9
CESARINI, Paolo. “Transicional justice”. In: LANDMAN, Todd & ROBINSON, Neil (orgs.). The
Sage handbook of comparative politics. Londres: Sage, 2009, p. 497-521.
10
SCHMITTER, Portugal: do autoritarismo...
11
SCHMITTER, Portugal: do autoritarismo..., p. 406.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 243


valores e recursos”12.
O estreitamento entre políticas do passado exercidas pelos estados e governos
junto com a sociedade no enfrentamento com o passado podem ser realizadas,
segundo Brito13, através de “amnistias, julgamentos ou purgas, criação de
Comissões da Verdade, indenizações e gestos simbólicos”. Porém, seja qual forem
os mecanismos citados pelo tipo de transição, os resultados perante a sociedade
não serão automáticos para o exercício da democracia em questão:
As Comissões da Verdade e os julgamentos somente podem
oferecer uma imagem parcial do universo repressivo e
as respectivas sentenças. Isto implica que se manterá a
necessidade de avaliar e descrever o passado. Pode ser
que estas descrições não ensinem nem dissuadam e que os
criminosos continuem a crer que agiram correctamente e
se considerem mártires. Por isto continuam a existir visões
em confronto sobre o que aconteceu.14

Destruição, Abertura e Persistência do Obscurantismo dos Arquivos


Entende-se que no Brasil o período de transição tenha iniciado e esboçado pelo
ditador Ernesto Geisel (1974-1979) e pelo chefe do Serviço Nacional de Inteligência
(SNI) general Golbery de Couto e Silva, que exerceu a função de Ministro Chefe da
Casa Civil nos governos de Geisel e de João Batista de Figueiredo (1979-1985). E
que a abertura dos arquivos não foi algo negociado e nem citado no processo de
abertura política brasileira.
A questão da abertura dos arquivos é essencial para a construção da memória e
entendimento dos processos sistêmicos que o regime de repressão foi alicerçado, e
pode ser utilizado como ponto de partida para a justiça transicional, a ser acionada
com base em documentos legais elaborados pelos agentes do estado.
Temos que recorrer ao período do golpe em 1964 para entendermos a questão
dos arquivos. No período do ditador Castelo Branco (1964-1967), mesmo em
estado de exceção, ainda estava vigente a Constituição de 1946, assegurando
mesmo que com restrições, o acesso a documentos de acordo com sua classificação
e nível de interesse do Estado.
O regime havia se preparado nos primeiros anos da ditadura após o golpe de
64 para pôr abaixo os sonhos pela redemocratização, acabando com as ilusões
das forças progressistas numa possível volta da democracia ao país mesmo com
vigilância direta do poder militar.
A consolidação do regime provara exatamente o contrário das expectativas,
os oficiais militares ligados ao ditador Castelo Branco se apressaram em redigir
uma nova Constituição (1967), assim como em elaborar vários decretos com o
objetivo de endurecer a ditadura, restringir e blindar as áreas de interesse no campo

12
SCHMITTER, Portugal: do autoritarismo...,p. 296.
13
BRITO, A. B.; GONZALES, E. C.; & AGUILAR, F. P. A política da memória: verdade e justiça na
transição para a democracia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004.
14
BRITO, GONZALES & AGUILAR, A política da memória...,p.60

244 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


econômico, aprovar a Constituição de 1967, realizando manobras a fim de limitar
o poder do próximo Ditador-Presidente, o General Costa e Silva.
Um desses decretos foi redigido pelo próprio SNI: o decreto nº 60.417, de 11
de março de 1967, chamado de Regulamento para Salvaguarda de Documentos
Sigilosos15. Documento elaborado pelo SNI, referendado pelo Secretário-Geral
do Conselho de Segurança Nacional General Ernesto Geisel (futuro Ditador-
Presidente) e aprovado pelo Ditador-Presidente Castelo Branco, exatamente no
corrente ano de sua substituição. Este decreto revogava outro decreto, o de nº
27.583, de 14 de dezembro de 1949, que estabelecia normas sobre o manuseio
dos documentos.
Não era por falta de razões que este documento fora aprovado em tais
circunstâncias, às ações e abusos perpetrados pelo regime em seus anos iniciais, e as
informações contidas nas várias ações ilegais, não poderiam estar em mãos alheias
de governos de diferentes naturezas que porventura pudessem se estabelecer, e
muito menos nas mãos da sociedade, podendo abrir espaço para esclarecimentos
que poderiam trazer consequências para os agentes do Estado responsáveis pelas
arbitrariedades cometidas.
Este documento está dividido em seis capítulos: Disposições Preliminares,
Assuntos Sigilosos, Documentos Sigilosos, Criptografia e Codificação, Áreas
Sigilosas e Material Sigiloso.
Na parte Disposições Preliminares é possível auferir que a preocupação central
reside em controlar o manuseio, a segurança e a difusão dos documentos sigilosos.
Era preciso enfim estabelecer normas mais rígidas e restritivas, condicionar todos
os órgãos do Estado, Ministérios Civis e Militares, Secretaria Geral do Conselho de
Segurança Nacional, Estado Maior das Forças Armadas, e o Serviço Nacional de
Informações, a fim de atualizar suas normas e estabelecer a ordem do silêncio e da
escuridão dos arquivos.
Os documentos ultrassecretos têm por características a preservação dos
assuntos sobre alianças político-militares, planos de guerra, descobertas científicas
e informações sobre países estrangeiros de alto nível, ou seja, assuntos de ordem
da política externa e relações internacionais no campo militar.
Os documentos classificados como Secreto, Confidencial e Reservado, em geral
são aqueles que não devem estar à disposição do público em geral, pois somente
agentes do Estado credenciados poderão ter acesso a tais acervos. Grande parte
dos documentos sobre as perseguições aos cidadãos brasileiros e estrangeiros estão
enquadrados neste quadro de documentos.
O ponto que nos impressiona neste documento está no capítulo III Documentos
Sigilosos na seção 5 – Destruição. Há indícios concretos que muitos documentos
foram queimados indiscriminadamente durante a história brasileira. Um desses
casos é atribuído ao respeitável Rui Barbosa, enquanto exercia o cargo de Ministro
da Fazenda em 1889, que havia então emitido ordens para a destruição de
documentos referentes à escravidão16, com a justificativa de que somente a partir
deste ato os senhores escravocratas não teriam base legal para serem ressarcidos

15
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. BR AN, RIO x9.0.TAI.3/12.
16
BARBOSA, Francisco de Assis. Rui Barbosa e a queima dos arquivos. Brasília: Ministério da Justiça;
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 245


pelo Estado pelas “perdas” causadas pela libertação dos escravos.
No caso dos documentos da ditadura, o caso recente mais emblemático foi
a queima dos arquivos na base da Aeronáutica de Salvador em 2004. Entre os
documentos que resistiram à queima criminosa nas investigações da Polícia Federal
estão “fichas, prontuários e relatórios da inteligência do Exército, Aeronáutica e
Marinha sobre personagens e organismos da esquerda armada”17, segundo o
jornal A Tarde.
Mais recentemente, no ano de 2009, tivemos a tramitação do projeto lei nº 600,
do senador José Sarney, onde esta inscrito em um de seus artigos que determina
a destruição dos processos judiciais após cinco anos de sua conclusão depois de
arquivados. Verificamos em plena atualidade as manobras que são sorrateiramente
utilizadas pelos mandatários eleitos ou não, a fim de destruir o legado das fontes e
apagá-las dos arquivos do Estado.
Voltando aos anos iniciais da consolidação da ditadura militar, notamos que o
decreto elaborado pelo SNI assegurava a autoridade que produziu o documento
sigiloso, ou o seu superior, a destruição do documento se julgar conveniente.
Além disso, explica que normalmente (leia-se que não obrigatoriamente), estes
documentos devem ser destruídos conjuntamente ao lado de duas testemunhas
categorizadas.
A única responsabilidade que reside naquele que destruiu o documento está
no fato que a ação de destruição será registrada em seu nome. Ou seja, caso
estes registros não tenham sido também destruídos, eles devem existir. E neles
poderemos verificar os responsáveis por este ato criminoso, contra nossa história.
O interessante é que não é mencionado qual tipo de autoridade pode fazer a
destruição, e, com isso, qualquer agente da comunidade de informações tem a
liberdade (ou até mesmo o dever) de julgar o que pode ser destruído ou não. O
agente e seu superior são os elaboradores, legisladores, executores, julgadores e
camufladores, um verdadeiro poder paralelo institucionalizado.
Com base na recente abertura de parte dos arquivos do regime militar em
posse do Estado brasileiro, somados ao momento político do país em se desafiar
a entender o regime autoritário que compreende o período histórico da ditadura
civil-militar (1964-1985).
Sabemos que muitas dessas fontes foram e estão sendo destruídas nas mãos das
Forças Armadas, e que tantas outras passam por um processo de burocratização
(induzida por razões políticas), e ingerências pelos setores que as possuem,
insistindo-se na recorrência de repetidos decretos a fim de obstruir a elucidação
de muitos acontecimentos. A luta pela abertura dos arquivos da ditadura no Brasil
vem desde o tempo das reivindicações pela Anistia dos presos políticos e o retorno
dos direitos políticos em 1979.
Os documentos que primeiramente puderam ser acessados estiveram
momentaneamente disponíveis depois do decreto nº 2.134, do ano de 1997,
na gestão do Ministro da Justiça Nelson Jobim, no governo Fernando Henrique
Cardoso, regulamentando o artigo da lei n. 8.159, dando oportunidade para a
pesquisa sobre a comunidade de informações. Porém, no fim deste mesmo governo,

17
“QUEIMA de arquivos da Base Aérea ainda sem respostas”, A Tarde, 26 dez. 2009.

246 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


em dezembro de 2002, foi assinado o decreto nº 4.553, que colocava outra vez
os documentos da Divisão de Segurança de Informações do Ministério da Justiça
(DSI/MJ) e tantos outros, na situação de mudança da classificação, ou seja, fora
aumentado o período de anos e prerrogativas para o acesso. Este último decreto
foi elaborado para que principalmente os documentos envolvendo o processo de
privatização do período FHC (1994-2002) não pudessem ser acessados.
Apesar disto, após uma pressão histórica e persistente dos setores organizados
da sociedade brasileira, apenas para elencar alguns, enfatizando os grupos de
direitos humanos, como a Tortura Nunca Mais, o Movimento Nacional de Direitos
Humanos, a Associação de Anistiados Políticos do Brasil, vários Movimentos Sociais,
intelectuais e clérigos, assim como grupos e organismos internacionais, tornou-se
possível, no ano de 2012, o acesso a importantes documentos e processos que
estão em mãos do Estado brasileiro.
Enfatizando o papel que o projeto Brasil: nunca mais18 realizou como protagonista
histórico para a sistematização dos relatos de prisioneiros, identificação dos
torturadores e vigilante dos arquivos a fim de não serem destruídos.
Com a Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/ 2011) abriram-se portas jurídicas
para o acesso aos documentos da ditadura militar, e com o decreto nº 7.724 de 16
de maio 2012. Acompanhada da abertura com os editais redigidos pelo Arquivo
Nacional, AN nº 1 de 17 de maio de 2012, AN nº 2 de 31 de 31 de maio 2012 e
AN nº 3, de 29 de junho 2012.
De acordo com estes editais, pode-se neste momento ter acesso ao Sistema
Nacional de Informações e Contrainformação – SISNI, aos conjuntos documentais
da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e da Assessoria
de Segurança e Informações da TELEBRÁS, e aos documentos produzidos ou
acumulados pelo extinto Estado Maior das Forças Armadas – EMFA entre 1946 e
1991, ou seja, o coração do sistema de repressão.
Desta forma, torna-se fundamental o trabalho do historiador a partir destes
documentos elencados, que o momento histórico propicia analisar, fundamentar e
produzir materiais que possam elucidar processos e o funcionamento da máquina
de repressão do regime.
No relatório final apresentado pela CNV, foram conseguidas mais de 20 milhões
de páginas de documentos em acesso no Arquivo Nacional, acervos estaduais foram
disponibilizados, principalmente os que tinham acervos sobre o Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS), o acervo Médici, do Ministério do Trabalho e
Emprego, do Superior Tribunal Militar e demais órgãos da Justiça e Executivo.
A maior dificuldade da CNV na aquisição dos documentos foi com as Forças
Armadas. Ao total foram emitidos 84 ofícios para o Ministério da Defesa, Forças
Armadas e seus respectivos comandos, apenas em um quarto obtiveram respostas,
e a resposta foi a negação de que possuíam documentos da comunidade de
informações e informações sobre as prisões, e, sobre violação de direitos humanos
em suas instalações.
A resistência dos militares em aderir à Lei de Acesso à Informação demonstra
como que este setor não se abre às mudanças que a sociedade necessita, se

18
ARNS, D. Paulo Evaristo et al (orgs.). Brasil: nunca mais – um relato para a história. 9. ed. Petrópolis:
Vozes, 1985.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 247


limitando a negar todas as fontes que já foram abertas e tentando reproduzir o
esquecimento.
Ao fazermos uma pequena amostra sobre o grau de confidencialidade de alguns
documentos que foram abertos e de outros que estão com as Forças Armadas,
verificamos a falta de razão com que os documentos ainda permanecem sem
acesso.
Ao acessarmos um documento que se encontra digitalizado no site do Arquivo
Nacional, o documento da Ata da 39º consulta ao Conselho de Segurança
Nacional19 (CSN), presidida pelo ditador Ernesto Geisel em 1974, encontra-se a
discussão do Programa Nacional de Energia Nuclear, o enriquecimento de urânio,
a funcionalidade da Usina de Angra I, as reservas de urânio em Minas e no Paraná
estimadas em 11.000 toneladas, e o planejamento para a sua produção em 12
anos. Será que depois de ter se tornado pública uma informação como esta,
que em dias contemporâneos podem levar um país a guerra, é necessário ainda
permanecerem fechados os documentos das FFAA?
Outro exemplo de abertura de arquivos bem sucedida é o projeto The Opening
the Archives Project20, projeto em conjunto entre a Universidade de Maringá-Paraná,
Brown University, the U.S. National Archives e o Arquivo Nacional brasileiro.
Contendo mais de 100.000 documentos do governo americano, enviados para
o Departamento de Estado dos EUA no período das décadas de 1960-1980,
essa documentação digitalizada, produzida por diferentes agentes diplomáticos,
CIA e colaboradores da ditadura militar, surpreende pela quantidade de dados e
referências que possui. A forma como são produzidos os documentos surpreende,
pelo acompanhamento presencial dos fatos, das reuniões, das movimentações
sociais, dos inimigos do regime, dos ditadores, generais, ministros e imprensa.
Em suas recomendações no relatório final, a CNV declara a necessidade de
continuar a política de abertura dos arquivos principalmente o que estão em posse
das FFAA:
Os acervos das Forças Armadas, incluindo aqueles
de seus centros de informação, bem como do Centro
de Informações do Exterior (Ciex), que funcionou no
Ministério das Relações Exteriores (MRE), deverão ser
integrados em uma plataforma única em todo o país,
que abranja toda a documentação dos órgãos do Sistema
Nacional de Informações e Contrainformação (Sisni). [...]
Nos termos da legislação vigente, devem ser considerados
de interesse público e social os arquivos privados de
empresas e de pessoas naturais que possam contribuir
para o aprofundamento da investigação sobre as graves
violações de direitos humanos ocorridas no Brasil.21

19
Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/>.
20
Disponível em: <http://library.brown.edu/openingthearchives/>.
21
COMISSÃO Nacional da Verdade – CNV. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília:
CNV, 2014, p. 975.

248 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


A Revisão da Lei da Anistia
Outro instrumento de elevado valor para a transição democrática são os
processos de anistia. Uma das indagações primordiais para a legitimação da
anistia está em identificar quem e quando foi determinado os beneficiários de tal
prerrogativa.
As tentativas de revisão da Lei de Anistia de 1979 (lei 6.683), da qual foi
incorporada à Constituição Brasileira de 1988; plenamente criticada por amplos
setores da sociedade civil, a caracteriza mais como uma “auto anistia” das Forças
Armadas e demais protagonistas do regime. O significado da permanência desta lei
abre-se mais um capítulo do prolongado e inconcluso processo de redemocratização.
O julgamento do Superior Tribunal Federal (STF) realizado em 2010 concretizou
mais uma vez em nossa história um compromisso do judiciário brasileiro com
a “estabilidade institucional” em preservar o “acórdão” das partes relativas do
conflito, entre os defensores do golpe e da ditadura (agentes da repressão) e os que
lutaram contra o regime, os “subversivos” segundo a Lei de Segurança Nacional
(LSN), no período de 1961-1979.
Após os 50 anos do golpe militar de 1964, pode-se compreender que a Comissão
Nacional da Verdade (CNV), criada em 2012, foi um avanço que reforça em várias
medidas, com base em entrevistas, sessões públicas e documentos acessados,
evidências históricas ao apontar a necessidade da revisão da Lei da Anistia.
Desta forma, os limites expostos no julgamento são evidentes, na arguição dos
proponentes que defendem a revisão assim como no voto contrário à revisão, com
base no relatório do Ministro Eros Grau.
A atuação do serviço secreto praticamente inexiste na argumentação em defesa
da revisão, todavia, este instrumento de repressão foi responsável pela perpetuação
do regime nas entranhas da administração pública, dos crimes sistêmicos realizados
em diversas esferas do aparelho de repressão, com empenho em dificultar e tentar
impedir o processo de redemocratização, e além de tudo, no descumprimento da
própria Lei da Anistia imposta pelos militares.
Desde sua promulgação pelo ditador João Batista Figueiredo em 28 de agosto
de 1979, a Lei da Anistia passou por revisões nos anos de 1985, 1988, 1992, 1995,
2001 e 2002.
Ao analisarmos os documentos do Conselho Nacional de Segurança22, o
projeto de lei foi debatido em 27 de junho de 1979, e da forma como está descrita
apresenta apenas um detalhe diferencial para a proposta inicial, o tempo vigente
da anistia era de 02 de setembro de 1961 até 31 de dezembro de 1978, data que
vigorou o último ato institucional.
O ditador Figueiredo chega a afirmar a quem não seria concedida a anistia:
Excluem-se dos benefícios da anistia, somente os
condenados pela Justiça Militar em virtude da prática
de crimes de terrorismo, assaltos, seqüestro e atentado
pessoal. Tais crimes não podem considerar-se estritamente
políticos. A ação, no caso, não e contra o Governo ou o

22
Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/>.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 249


regime mas contra a humanidade.
Esta é uma das atas mais breves da história da CSN, possui textualmente quase
três folhas, e não abre para nenhuma discussão, ao contrário das atas da CSN
nos primeiros anos da ditadura (1964-1967) com embates entre Castelo Branco e
Costa e Silva.
Segundo dados obtidos, acrescentados ao trabalho da CNV, na ditadura
militar foram cerca de 50.000 pessoas presas nos primeiros meses de 1964; 7.367
indiciadas e 10.034 atingidas na fase de inquérito, em 707 processos na Justiça
Militar por crimes contra a segurança nacional; 4.862 foram cassadas; 130 banidas;
milhares de exilados e, pelo menos, 434 mortos e desaparecidos políticos, incluindo
30 no exterior (210 os desaparecidos, sendo 33 destes os que tiveram seus corpos
posteriormente localizados). E, aproximadamente 20.000 brasileiros submetidos à
tortura.
A Lei da Anistia beneficiou 4.650 pessoas, havia “52 presos políticos, dos quais
17 foram imediatamente libertados e 35 permaneceram à espera de uma análise
de seus processos”23.
Segundo dados do IPEA24 de 2012:

 42,9% dos brasileiros nunca ouviram falar da Lei da Anistia;


 31,9% ouviram falar;
 24,3% sabiam do conteúdo;
 Para este grupo de 24,3% de pessoas:
 33,4% disseram que deveria haver investigação e punição para todos os
envolvidos nos crimes praticados durante a ditadura;
 22,2% achavam que deveria haver investigação e punição apenas para
os agentes da repressão;
 20,3% opinavam que não deviria haver qualquer investigação;
 11,8% que deveria haver investigação sem punição para ninguém;
 11,4% que deveria haver investigação e punição apenas para os que
participaram de grupos de oposição armada.

Um dos primeiros documentos oficiais que pedem a revisão da Lei da Anistia


foi o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), de 2009, no item Direito à
Memória e à Verdade.
O julgamento da Lei da Anistia no Superior Tribunal Federal (STF) denomina-
se de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF). Esta foi
dada entrada em 2008 pelas entidades: OAB, Associação Juízes para a Democracia,
Centro pela Justiça e o Direito Internacional, Associação Brasileira de Anistiados
Políticos, Associação Democrática e Nacionalista de Militares no STF. O pedido foi
feito pela OAB, e foi relatado pelo Ministro Eros Grau. O julgamento foi retomado
em janeiro de 2010 e julgado em apenas nove dias, em 29 abril de 2010.
Um dos principais argumentos da OAB é que os crimes políticos não se estendem
a crimes comuns:

23
COMISSÃO, Relatório da Comissão..., p. 106.
24
IPEA, Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), 2012.

250 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Se trata de saber se houve ou não anistia dos agentes
públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de
homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade,
lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor
contra opositores políticos ao regime militar.25
Nesta linha de argumentação a OAB questiona o Estado brasileiro sobre a
defesa dos princípios da Constituição de 1988, e que a Lei da Anistia a fere nos
direitos fundamentais dos cidadãos. O papel do poder público deveria ser de não
ocultar a verdade, defender os princípios democráticos e republicanos, e o princípio
da dignidade da pessoa humana. E acrescenta, “num regime autenticamente
republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar
criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que, ao delinquirem,
executaram suas ordens”. Aonde o crime de tortura é imprescritível, segundo a
assinatura do Brasil nas entidades internacionais.
Os argumentos do relator Ministro Eros Grau se caracterizam pelo distanciamento
com que os processos de justiça transicional ainda precisam percorrer um longo
caminho no país. Segundo o ministro:
A anistia é mesmo para ser concedida a pessoas
indeterminadas, e que os militares (o legislador) procurou
estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes do
Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção.
Daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral. Anistia
que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já
condenados – e com sentença transitada em julgado, qual
o Supremo assentou.26
Na arguição do ministro é possível observar muitas contradições, e o jogo de
“empurrar” para outras instituições. O ministro argumenta que em outros países
que agiram de forma diferente da do Brasil, por exemplo, o Chile, a Argentina e
o Uruguai, as leis acompanharam as “mudanças do tempo e da sociedade”, e
por isto a revisão tem que ser feita pelo Poder Legislativo. Outras contradições
decorrem no discurso do relator, ao defender uma posição conservadora sobre
ditas normas-medida, no qual “o direito é algo congelado no tempo e impassível
de interpretação, mero texto” Victor.
Podemos apontar os silêncios no STF. A inexistência sobre o papel dos aparelhos
de repressão do Estado e sua funcionalidade, e, ilegalidade perante as próprias
leis constitucionais do período de exceção. Nenhuma menção sobre o SNI, DOI-
CODIs, OBAN. O período dos crimes cometidos entre os anos de 1979 e 1985/88,
tendo como base os processos do Ministério Público estimando que entre 1979 e
1981 nada menos que 49 atentados terroristas foram consumados por um grupo de
oficiais. Nada foi dito sobre o papel das empresas como agentes complementares
do regime.
Para contrapor os argumentos do relator de que a sociedade não passou por

25
STF, ADPF 153.
26
STF, ADPF 153, p. 12-46.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 251


mudanças para se defrontar com sua História, vamos utilizar uma pesquisa do
DataFolha27 de 2010 e 2014 (compreendemos que há falhas na forma como as
perguntas são feitas e no breve período, dois dias, que foi realizada esta pesquisa)
sobre a opinião de parte/ amostra estatística da sociedade brasileira sobre a punição
aos torturadores da ditadura e sobre a revisão da lei da anistia:

Fonte: DataFolha, 20 fev. 2014.

A revisão da Lei da Anistia foi defendida por 46% dos entrevistados, e, 37%
disseram ser contra, e 17% não souberam opinar. Esta pesquisa também evidenciou
que a maior parte dos entrevistados são a favor (52%) e a favor em parte (22%)
das indenizações aos presos políticos, famílias de desaparecidos e assassinados
durante a ditadura militar.
As posições institucionais se dividem entre a neutralidade da Câmara de
Deputados, e do Senado Federal. Mesmo tendo sido aprovada na Comissão de
Direitos Humanos em 2014 do Senado, foi rejeitada na Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional em Junho de 2015, o relator desta comissão, o
senador Anastasia (PSDB-MG) utilizou-se dos argumentos do julgamento do
STF, porém esqueceu-se de citar a passagem que o ministro Eros Grau repassa a
responsabilidade para o legislativo. O Ministério da Justiça é a favor da revisão. E,
a Advocacia Geral da União e Procuradoria Geral da República contra.
As consequências internacionais são diversas sobre a imagem do Brasil nas
entidades que acompanham o desenvolvimento do cumprimento dos direitos
humanos. Com base no preceito que – “O direito internacional dos direitos
humanos entende que não é possível haver anistia a graves violações dos direitos
humanos” –, a Comissão da Organização das Nações Unidas condenou o desfecho
do julgamento da Lei da Anistia no STF, tendo em vista que o Comitê contra a
Tortura da ONU recomendou, em seu relatório de 2008, que o Brasil lidasse com
seu passado e abolisse a lei.
Assim como a sentença da Corte Interamericana, de 14 de dezembro de 2010,
que condenou o Estado brasileiro a investigar os fatos, julgar e, se forem apontados
culpados, punir os responsáveis. O Brasil é hoje o único país da América Latina

27
DATAFOLHA – Instituto de Pesquisa. “Democracia e Ditadura”, PO813734, 19 e 20 fev. 2014.
Disponível em: <http://www.datafolha.com.br/>.

252 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


que se recusa a cumprir o que firmou no Pacto de San José da Costa Rica-1992.
A CNV recomendou que:
A extensão da anistia a agentes públicos que deram
causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções,
desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres
é incompatível com o direito brasileiro e a ordem
jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e
a sistematicidade com que foram cometidos, constituem
crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis
de anistia.28

Lei de Segurança Nacional: Crimes Políticos


Os decretos de leis que foram promulgados pela ditadura militar sobre os crimes
contra a segurança nacional foram: a lei nº 314 de 1967, nº 898 de 1969, nº 6620
de 1978, e nº 717029 de 1983.
Cada qual faz parte de uma conjuntura particular do regime. A lei nº 7170
de 1983 decretada pelo ditador Figueiredo tem como influência a reforma do
judiciário implementada por Geisel em 1977, o “Pacote de Abril”30.
Com o argumento de que a justiça deve acompanhar “o desenvolvimento
social e econômico” do país ela deveria ser reformada. Quando foi apreciada no
Congresso em 1977, a reforma foi rejeitada, por não obter dois terços dos votos,
mesmo tendo a maioria dos votos com sua base de apoio do partido Arena, Geisel
pede a dissolução do Congresso com base no Ato Institucional nº 5, e legisla a
favor da reforma do judiciário.
Na ata da 52º reunião da CSN Geisel exprime suas indagações:
É uma matéria de suma importância e, também, e urgente,
porque, feita a emenda constitucional, vem uma série de
atos consequentes. A implantação de um sistema que se
imagina e os frutos que se possa colher, em conseqüência,
levarão ainda muito tempo. Quer dizer, não ê uma emenda
milagrosa que do dia para a noite vai transformar a Justiça.
É um embasamento que se vai estabelecer e sobre o qual,
vai se construir um edifício, durante anos. Então, quanto
mais tarde isto se realizar, pior vai ser.31
Geisel havia prenunciado o que estava porvir, as reformas anunciadas em
exercício do Estado de exceção criaram raízes profundas nos sistemas jurídicos e
políticos do Brasil. Mesmo que tenha restabelecido o habeas corpus e a abolição
das penas de morte, prisão perpétua e banimento a reforma garantiria sua extensão

28
COMISSÃO, Relatório da Comissão..., p. 966.
29
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>.
30
Série de emendas constitucionais que foram adotadas após o fechamento do Congresso Nacional
em 1977.
31
Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/>.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 253


autoritária para a democracia.
Esta marca da transição foi incorporada pelo ditador Figueiredo na lei nº 7.170/
1983 que foi introduzida na Constituição de 1988. Ou seja, uma lei redigida em
plena ditadura militar incorporada com seus princípios autoritários na “Constituição
Cidadã”.
Elemento fundamental da transição a lei nº 7.170/ 1983 coloca a tipificação
de terrorismo junto a outros crimes. Os artigos 20, 21 e 22 descreve que “atos
de terrorismo, por inconformismo político”, fazer propaganda em público de
“discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição
religiosa” pode ser condenado de 1 a 10 anos de prisão.
A tipificação de crimes contra a segurança nacional para a legislação penal
desenvolve a continuidade de criminalização a organizações sindicais, sociais e
associativas da transição política.
Esta lei coloca em questão o poder de intervenção do Estado, no artigo 22
de fazer propaganda “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem
política ou social” e que se isto for feito em ambiente de trabalho, por rádio ou
televisão terá uma pena aumentada um terço proporcional de 1 a 4 anos.
Dentre as recomendações feitas pela CNV por reformas constitucionais e legais
está a revogação da Lei de Segurança Nacional pela “substituição por legislação de
proteção ao Estado democrático de direito”32.
No caminho oposto, todavia, o Governo Federal (2015) envia a Câmara dos
Deputados o projeto de Lei nº 101/2015, que altera a lei nº 10.446 de 2002 e a
12.850 de 2013, no artigo 5º da Constituição Federal no inciso XLIII. O projeto
tipifica crime de terrorismo e amplia suas dimensões; do texto original foi retirado
a indicação de “pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais,
religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais
ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo
de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”. Retornando assim os
princípios fundadores da Lei de Segurança Nacional.
Considerações Finais: a Longa Transição ou Retorno?
Destacamos que houve um avanço com a criação da CNV nos aspectos
fundamentais da justiça transicional em tais realizações: a preservação da memória
do passado autoritário; da ampliação do debate com setores da sociedade; da
abertura parcial dos arquivos em posse do executivo, legislativo e judiciário;
recomendações de mudanças constitucionais; e, exposição dos crimes cometidos
pela ditadura militar.
Podemos considerar que, segundo a tipologia de transição abordada por
Cesarini (2009), no caso do Brasil foram iniciadas as dimensões da reparação,
mesmo que parcial, pois a abrangência da reparação não chegou a todas as
famílias de desaparecidos e mortos, assim como de grupos indígenas afetados pela
expansão da fronteira agrícola.
Entretanto, na dimensão histórica com o objetivo de alcançar a verdade com
a posição oficial do Estado houve limitações: como a resistência das FFAA na

32
COMISSÃO, Relatório da Comissão..., p. 971.

254 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


abertura dos arquivos e reconhecimento dos erros praticados; da justiça federal de
permanecer a legitimar a lei da anistia; e ao legislativo em não rever a lei da anistia,
a lei de segurança nacional e em muitos casos retroceder na justiça transicional.
Desta forma elencamos neste trabalho o papel histórico que a CNV exerceu no
breve tempo em que atuou, e que:

Por isso, podemos olhar para os relatórios das comissões


da verdade, um aspecto da justiça transicional, não apenas
como relatos de ‘o que aconteceu’, ou como trampolins para
processos judiciais, mas também como parte de um amplo
processo de socialização política – como os professores
transmitem e os jovens adotam novas ‘narrativas’ sobre o
passado enformadas por valores democráticos.33


RESUMO ABSTRACT
Após a criação da Comissão Nacional da Verdade After the creation of the National Truth
(CNV) em 2012, a partir da Após a criação da Commission (CNV) in 2012, from the Law nº.
Comissão Nacional da Verdade(CNV) em 2012, 12528/2011, was made official by the Brazilian
a partir da Lei nº 12.528/2011, tornou-se oficial government the realization of an instrument
por parte do Estado brasileiro a concretização de with the aim of raising the crimes of violation
um instrumento com o objetivo de levantar os of human rights between the years 1946-1988.
crimes de violação dos direitos humanos entre os This initiative was an important step towards
anos 1946-1988. Com esta iniciativa foi dado um the elucidation of the past before the actions
importante passo para a elucidação do passado of state officials, civil society and business,
perante a atuação dos agentes do Estado, da especially in the period of the Brazilian civil-
sociedade civil e empresarial, principalmente, military dictatorship of 1964-1985, experiences
no período da ditadura civil-militar brasileira that other states with authoritarian past also the
de 1964-1985, experiências que outros Estados realized (Portugal, Greece, Spain, Argentina,
com passado autoritário também o realizaram Chile, Uruguay, South Africa and others) with
(Portugal, Grécia, Espanha, Argentina, Chile, different impacts on the transition to democracy.
Uruguai, África do Sul e outros) com diferentes In this way we aim to scale issues of transitional
impactos sobre a transição para a democracia. justice in relation to the work done by the
Desta forma objetivamos dimensionar CNV and its recommendations on issues such
questões sobre a justiça transicional com as: opening of the archives, in the process of
relação ao trabalho realizado pela CNV e suas reviewing the Amnesty Law, decrees and laws on
recomendações em questões como: abertura crimes against national security.
dos arquivos, no processo da revisão da Lei Keywords: Brazil; 20th Century; Military
da Anistia, e os decretos de leis sobre os crimes Dictatorship; Democratization; Transitional
contra a segurança nacional. Justice.
Palavras Chave: Brasil; Século XX; Ditadura
Militar; Redemocratização; Justiça Transicional.

Artigo recebido em 14 nov. 2015.


Aprovado em 10 mai. 2016.

33
BRITO, Alexandra Barahona de. “Justiça transicional e memória: exploração de perspectivas”. In:
PINTO, A sombra das ditaduras..., p. 47.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 255


RESENHAS

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 257


UN RECORRIDO POR LA HISTORIA
DE LA AMÉRICA PRECOLOMBINA:
UNA RESEÑA DE HOMENAJE Y DESPEDIDA
Horacio Miguel Hernán Zapata1

MANDRINI, Raúl. América aborigen: de los primeros pobladores a la invasión europea.


Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2013. 289 p.

Reseñar un libro nunca es una tarea sencilla, pero siempre resulta apasionante,
puesto que uno siente que realizar una lectura atenta, detenida y profunda de la
obra con el fin de darla a conocer constituye, pues, un indudable privilegio que
sólo puede presentarse en contadas ocasiones. Sí, escribir la reseña de un libro
no es una tarea simple. Y en el caso del libro América aborigen. De los primeros
pobladores a la invasión europea, resulta ser una tarea aún más difícil y compleja,
puesto que nos enfrenta a una obra que fue escrita por un historiador de talla como
Raúl Mandrini, uno de los investigadores más conocidos en el medio académico
argentino y con una amplia proyección en el mundo latinoamericano y europeo.
Habiendo atesorado una prolífica carrera académica docente e investigativa con el
correr de los años2, Raúl Mandrini contribuyó – desde el regreso de la democracia

1
Historiador. Doctorando en Humanidades y Artes por la Universidad Nacional de Rosario. Becario
del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - CONICET, Argentina. E-Mail:
<horazapatajotinsky@hotmail.com>.
2
Raúl Mandrini se graduó de Profesor de Historia en la Universidad de Buenos Aires. Se desempeñó
como docente en las Universidades Nacionales de Buenos Aires (UBA), Lomas de Zamora (UNLZ),
Salta (UNSa), del Centro de la Provincia de Buenos Aires (UNCPBA), Rosario (UNR), y Luján
(UNLu). Se inició en la UBA como Ayudante de Trabajos Prácticos en 1965, culminando como
Profesor titular en las tres últimas. Por razones políticas permaneció alejado de la vida académica
entre 1975 y 1983. Entre enero y marzo de 1989 fue profesor invitado en la Universidad Autónoma
de Puebla (México). En la UNCPBA, se desempeñó como Profesor Titular con dedicación exclusiva,
cargo obtenido por concurso público en 1985, por segunda vez en 1991, renovado por el Consejo
Superior en 1996, y renovado nuevamente por Concurso Público en 2004, teniendo a su cargo
las cátedras de Historia General II (Antigua) e Historia de América I (Prehispánica). Renunció
por jubilación en abril de 2009. Dictó además, como profesor invitado o visitante, seminarios y
cursos especiales de grado y postgrado en universidades argentinas y del exterior (México, Uruguay,
Chile, España). Inició su trabajo en investigación como Auxiliar de Investigaciones en el Instituto de
Historia Antigua Oriental de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA entre 1965 y 1972. Durante
1985 fue becario del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de
la República Argentina, y adscripto al Instituto de Ciencias Antropológicas de la UBA. Ingresó por
concurso al Sistema de Apoyo para Investigadores Universitarios (SAPIU) de CONICET. Desde su
fundación en 1986, y hasta su jubilación en 2009, fue investigador titular del Instituto de Estudios
Histórico-Sociales de la UNCPBA, institución de la que fue director entre 1992 y 2000. Fue además
investigador visitante en el Instituto de Investigaciones Antropológicas de la Universidad Nacional
Autónoma de México, el Centro Nacional Patagónico dependiente del CONICET, la Ecole des
Hautes Etudes en Sciences Sociales y la Universitat de Girona. Desde 2010 y hasta su fallecimiento
fue Investigador adscripto, con categoría de Profesor Titular interino (ad-honorem), en el Museo
Etnográfico “Juan Bautista Ambrosetti” dependiente de la Facultad de Filosofía y Letras de
la Universidad de Buenos Aires. Participó en congresos y jornadas científicas en Argentina y el
exterior con presentación de ponencias; dictó seminarios, conferencias y cursillos sobre temas de
su especialidad en instituciones públicas y privadas de distintas ciudades de la Argentina (Buenos

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 259


en Argentina (1983) – a un giro fundamental en la historiografía de los pueblos
indígenas, presentando una visión original y renovada de esos temas y dejando
una fuerte impronta en los estudios históricos sobre las poblaciones indígenas y
los múltiples contactos que existieron entre el mundo de los nativos y el de los
“blancos” o criollos, con claras proyecciones en las producciones posteriores. Son
numerosos los investigadores que completaron su formación y dieron los primeros
pasos de una carrera de destacada producción académica gracias a su visión y
generosa capacidad de reconocer talentos.
Y qué decir de los retos intelectuales frente al producto de uno de esos autores
que, debemos confesarlo, concitó nuestra atención y entusiasmo desde temprano, al
punto de que somos conscientes de que ha marcado – y sigue haciéndolo – nuestra
propia y actual carrera como docente e investigador universitario. Para quienes
tuvimos la posibilidad de conocer y conversar con Raúl Mandrini, nos encontramos
con uno de esos grandes eruditos en un mundo de sabios del fragmento, sin por
ello dejar de ser un especialista de la primera hora, muy riguroso y crítico; pero
sobre todo, una excelente persona a nivel humano, un hombre amable, honesto,
sensible, abierto y comprometido con una sociedad más democrática y plural. Más
aún, cómo confeccionar una reseña cuando la triste noticia de que Raúl Mandrini
ha fallecido recientemente – 23-XI-2015 – pareciera dejar sin sentido tal empresa,
sugiriendo que la redacción de esas habituales “palabras de despedida” sería, en
todo caso, la tarea más correcta y apropiada en este momento.
Frente a esta serie de condicionantes, nos preguntamos ¿cómo no caer en
el terreno de un halago meramente formal que nos impidiera expresar nuestras
propias opiniones en relación a los aportes del libro y, además, evitar el exceso
descriptivo sin dejar de destacar la importancia que el contenido de la obra en
cuestión puede ofrecer al lector? Por otro lado, ¿cómo soslayar el enfocarse en
aquellos temas que resultan más afines a nuestro interés en desmedro de otros
que no son tan atractivos para nosotros? Finalmente, ¿cómo evitar ser aburrido o
reiterativo, sobre todo suponiendo que el que tiene el libro entre sus manos – o la
posibilidad de acceder a él – lo leerá completamente? En definitiva, ¿de qué modo
es posible congeniar la revisión crítica y la enorme responsabilidad del merecido
homenaje a una persona cuya impronta se ha transformado en legado? Son estos
interrogantes las razones que hacen que escribir una reseña del último libro del
profesor, del historiador, de Raúl – como me dijo “tutéame sin problemas” – sea un
gesto que (nos) cuesta mucho.
Sin embargo, decidimos construir esta recensión a partir del modo que, quizás,
nos hubiera aconsejado seguir, procurando dar cuenta de la cantidad y densidad
de los problemas abordados en las casi trescientas páginas que abarca el volumen
de América aborigen. De los primeros pobladores a la invasión europea, una obra
que ya constituye un referente obligado del mundo académico latinoamericano sin
lugar a dudas. A riesgo de que esta última afirmación pueda resultar una fórmula
muchas veces repetida, no queremos dejar de usarla por varios motivos. En primer

Aires, Bahía Blanca, Azul, Tandil, Balcarce, Olavarría, Salta, Jujuy, Río Gallegos, Mar del Plata,
Posadas, Trelew, La Plata, Venado Tuerto, Carmen de Patagones, Santa Rosa, Neuquén, Necochea
y Puerto Madryn) y del exterior (México, Monterrey, Saltillo, Temuco, Montevideo, Madrid,
Barcelona, Gerona, Huelva, Sevilla, Cádiz, Providence, Pittsburgh y Filadelfia).

260 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


lugar, porque no es común encontrar un libro que refleje tan fielmente su propósito
y contenido en el título, puesto que justamente se aboca a recuperar la historia
– mal conocida, cuando no expresamente borrada de la memoria histórica – de
la vida y la cultura de los diferentes pueblos que ya llevaban habitando varios
milenios el continente en los momentos iniciales de la conquista.
Este libro, enmarcado en el emprendimiento más amplio de la colección Biblioteca
Básica de Historia del sello editorial Siglo XXI, es un producto de una historia social,
esto es, una reconstrucción del pasado prehispánico diferente de aquellos análisis
que pueden ofrecer los arqueólogos y antropólogos sociales, quienes por muchos
años fueron los que indagaron acerca de estas sociedades dadas las tradiciones
disciplinares forjadas al calor de las ideologías decimonónicas. Pero a la vez un
tratamiento específico, que procura dejar en claro que la historia no es una verdad
fijada de una vez y para siempre, sino que se trata de una construcción intelectual
que forjamos desde el presente, producto de los trabajos sucesivos que en conjunto
van modificando la comprensión del pasado prehispánico. De esa manera, el autor
parte de una noción de que no sólo el futuro es impredecible – por el hecho de que
está siendo construido – sino que incluso el ayer nunca es cerrado y definitivo. En
concordancia con estas premisas, Raúl Mandrini cuestiona los parámetros sobre los
cuales se asentó la historiografía americanista del siglo XIX y gran parte del XX, que
mostró a estos colectivos sociales como “pueblos sin historia” o – en algunos casos
– de poca antigüedad, homogéneos en términos culturales y raciales, primitivos y
estáticos. Amparado en una concepción específica de la historia social, su propuesta
contribuye a confirmar la antigüedad de la presencia de estas comunidades, su
gran diversidad y heterogeneidad, la complejidad de sus formas de organización
económica, social y cultural, sus elaboradas expresiones artísticas y estéticas, sus
destrezas y habilidades para adaptarse a un medio a veces hostil, las profundas
transformaciones que experimentaron y, en definitiva, el dinamismo de su vida
histórica.
En segundo lugar, es una obra de síntesis que trata de delinear una perspectiva
general, sistemática y organizada del pasado (o los pasados) de esas poblaciones
originarias a partir de una narración atrapante donde su objeto nunca se desdibuja,
por lo que su redacción no puede más que concebirse como un esfuerzo por
compaginar el ingente volumen de información – producto de los impresionantes
avances de la investigación arqueológica y la disponibilidad de un mayor número
de testimonios – que conforma el estado actual de nuestro conocimiento sobre
los entornos ecológicos y las prácticas socioculturales de aquellas sociedades.
Por tanto, su composición deja entrever las virtudes de quien, como Mandrini,
domina de modo magistral tanto la profesión docente como el oficio de historiador,
permitiéndole ofrecer un texto de lectura sencilla, elocuente y accesible, sin que su
apego a la rigurosidad del conocimiento científico signifique sobrecargar la obra
con los tecnicismos de la jerga académica, las complejidades del lenguaje científico
y el abuso de la cita erudita. Esto no ha impedido que el autor dote varias de sus
afirmaciones con cierto tono hipotético o que no refleje las polémicas vigentes y si
no las soluciones para las mismas, al menos algunas de las distintas interpretaciones
que al día de hoy coexisten y compiten sobre una misma problemática. Y ello no
sólo hace más interesante al libro, sino que además lo convierte en el reflejo de un

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 261


mundo académico en perpetuo debate y construcción.
A lo largo del volumen se traza un cuadro de una historia cercana a veinte
milenios, marcada por profundas y complejas dinámicas sociohistóricas, desde los
primeros pobladores hasta el surgimiento de las formas económicas y sociopolíticas
más complejas, expresadas en las dos grandes construcciones estatales encontradas
por los españoles, los imperios azteca e inca. La obra concluye en torno al año siglo
XV, momento en que la presencia de los europeos, a través de sus instituciones
y prácticas políticas, económicas, sociales y culturales, trastocó definitivamente el
mundo social y espiritual aborigen. En lo que atañe al marco espacial es necesario
remarcar la flexibilidad y pertinencia de su dilucidación, en la medida en que
Mandrini sortea los escollos de las historiografías latinoamericanas nacionalistas
que proyectaron los límites geopolíticos y las jurisdicciones contemporáneas –
nacionales o provinciales – sobre las realidades que se remontan milenios atrás y
plantea que es preciso tener en cuenta que la percepción misma de los medios y
paisajes, así como la organización del espacio, de las poblaciones indígenas eran
distintas de las nuestras. Con destreza analítica el autor explicita que las experiencias
vividas a lo largo de la historia de estas sociedades evidencian la ocupación de una
gran heterogeneidad ecológica, en la cual se ven implicados una pluralidad de
climas, suelos, ambientes y recursos, logrando así sintetizar tanto los cambios como
las continuidades y mostrar que las comunidades humanas no eran receptoras
pasivas de ellas, sino que actuaban sobre el medio y lo transformaban.
En vinculación con este conjunto de consideraciones, otro aspecto que diferencia
este libro de otros volúmenes dedicados a la historia de la América precolombina
es la organización de los contenidos y del relato, la cual en este caso se presenta
alejada de los marcos historiográficos comúnmente aceptados, así como de las
periodizaciones arqueológicas convencionales, al tiempo que enfatiza el análisis de
los grandes procesos sociales que vivieron los pueblos indígenas americanos por
sobre la descripción de la cultura material y documentos. Tampoco se arroga la
ciclópea tarea de ensayar una historia total, sino que por el contrario se centra en
las experiencias más significativas que atravesaron aquellas poblaciones originarias
en el curso del tiempo y que permiten comprender de manera vívida y sugerente
los significados que una comunidad atribuye a los acontecimientos en los que
participa. Así, el libro consta de una introducción, diez capítulos, un epílogo y
un acápite con bibliografía comentada, en el que el lector puede encontrar textos
de referencia susceptibles de ser consultados ante cualquier duda o intento de
profundización de una temática particular o un período específico. De igual modo,
la presente edición se encuentra por fortuna profusamente acompañada por mapas,
imágenes y fuentes, un aspecto que merece subrayarse precisamente porque en
tanto recurso bien empleado, contribuye a hacer entender de mejor manera las
explicaciones y reforzar el sentido del texto, haciendo más vivida la historia, pero
también posibilita concientizar sobre el significado e importancia de ese patrimonio
histórico y cultural.
Luego de la introducción, destinada a plantear sintéticamente algunas
cuestiones vinculadas a los desafíos que significa construir una historia social del
mundo indígena prehispánico, el primer capítulo ofrece un panorama general de
las poblaciones del continente en la etapa inicial de las exploraciones españolas,

262 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


hacia 1500. Además de reseñar lo que serán las “grandes civilizaciones” de
Mesoamérica y los Andes, sobre las que profundizará más adelante, ofrece una
breve aproximación a las sociedades de las tierras frías y templadas de América
del Norte, el área intermedia y las zonas orientales y meridionales de regiones
bajas tropicales y subtropicales de América del Sur. La decisión de comenzar el
libro con ese momento encuentra su justificación en una doble premisa: en primer
lugar, dejar en claro que América no era un continente vacío ni poco poblado, y
que los espacios no ocupados eran aquellos donde las condiciones ambientales
eran tan extremas que hacían imposible la vida humana; y en segundo lugar,
mostrar la multiplicidad de adaptaciones creadas por las comunidades humanas,
la variedad de formas económicas, sociales y políticas, y la diversidad y riqueza
de sus manifestaciones culturales. Seguidamente a los procesos generales del
poblamiento del continente, Mandrini aborda el carácter de los primeros antiguos
cazadores-recolectores que pudieron adaptarse a ambientes desiguales y aprender
a explotar una variedad de recursos a lo largo de diversas latitudes, entre cuyas
transformaciones más fundamentales para hacerlo aparecen el paso al modo de
vida sedentario en aldeas y la domesticación de plantas y animales.
En los siguientes acápites, el autor profundiza en las implicancias que tuvieron
el avance de la producción de alimentos, el aumento sostenido de la población, el
afianzamiento de las aldeas y la incorporación de la alfarería y la metalurgia para
las poblaciones de Mesoamérica y los Andes centrales y meridionales, bases para
el ulterior proceso de emergencia de desigualdades sociales, formación de grandes
áreas de interacción e integración regional y, más tarde, de unidades sociopolíticas
de tamaños variables en dichas macro-regiones. Se estudian las diferentes
tradiciones político-culturales que resultaron en ambas áreas de la profundización
de las diferencias sociales, la consolidación de las sociedades urbanas y la
emergencia de los primeros Estados fuertemente regionalizados, fenómenos que a
su vez implicaron la expansión de las economías políticas, el incremento del poder
de las elites urbanas al vincularlo con el mundo de las divinidades y el surgimiento
de estilos artísticos bien definidos. También se ocupa sobre los procesos de crisis
y colapso de las unidades políticas, así como también de las nuevas tendencias a
la regionalización que estuvieron acompañadas por el incremento de la violencia,
la inestabilidad política, el retroceso en las condiciones medioambientales y el
desplazamientos de poblaciones.
En último capítulo Mandrini enfoca su atención en la construcción de las
formaciones políticas más extensas y complejas del mundo prehispánico con las
que se toparon los españoles, los imperios azteca e inca, que dominaron más
de la mitad del territorio mesoamericano y los Andes centrales y meridionales
respectivamente. Una especial consideración merece en esta sección el profundo
razonamiento explicitado por el autor acerca de que más allá de sus diferencias, las
políticas imperialistas de estos Estados compartían un punto en común: recogiendo
tradiciones y experiencias anteriores, ambos lograron someter a un abigarrado
mosaico de poblaciones cultural, política y lingüísticamente diferentes, exigiéndoles
tributos y distintas prestaciones o servicios. El libro se cierra con el epílogo donde
se vierten algunas líneas acerca del impacto de la presencia europea sobre las
sociedades aborígenes.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 263


Sin demérito de las aportaciones mencionadas hasta el momento – ya que todas
evidencian ser fruto tanto de una profunda investigación empírica como de una
reflexión teórica sensata –, una cuestión que sorprende es la falta de una mayor
atención sobre otras poblaciones amerindias, especialmente aquellas que habitaron
en las llanuras y planicies del tercio meridional de América del Sur y las zonas
interiores de las grandes cuencas fluviales tropicales del Orinoco, el Amazonas y el
Plata, más allá de lo expuesto escuetamente en el capítulo segundo. Desde luego,
este hecho no es el resultado de una decisión deliberada de excluir a tales sociedades
indígenas, sino que puede obedecer a otra serie de razones. En principio, puede
decirse a favor de Mandrini que gran parte de esas poblaciones originarias, en
particular las comunidades que en el curso del tiempo vivieron en el actual territorio
argentino y sus regiones vecinas, fueron objeto de otro de sus libros de divulgación
que publicó en la misma colección y sello editorial3, por lo cual volver a trazar esa
historia resultaba ser una elección poco inteligente cuando el campo historiográfico
ya cuenta con un excelente volumen que pone el foco sobre los grandes procesos
sociales atravesados por esas poblaciones. No obstante, no dejan de brillar por su
ausencia algunos capítulos que reflejen la vida de las poblaciones originarias de la
región amazónica de la América del Sur, sociedades suficientemente investigadas y
documentadas en libros y artículos de revistas editados en las últimas décadas. En
vistas de esto, hubiera sido deseable que Mandrini ahondara más en la experiencia
de tales comunidades humanas, favoreciendo así a un mejor conocimiento – mucho
más claro y explícito – de la antigüedad de su presencia en el entorno selvático, sus
destrezas para adaptarse a un medio a veces hostil, su gran diversidad sociopolítica
y heterogeneidad cultural y la complejidad de su universo simbólico. Esto permitiría
entender los mecanismos concretos que les han posibilitado conservar modalidades
de organización sociopolíticas laxas y segmentarias pese a estar en contacto con
sociedades mucho más centralizadas, cuestiones tan centrales a la problemática
que convoca el libro.
Respecto de esta llamativa ausencia temática en un producto de divulgación
elaborado por un especialista como Mandrini, podemos enunciar – al menos – dos
razones. En primer lugar, la larga vigencia, dentro del mercado editorial de contenido
histórico, de una perspectiva historiográfica localizada casi exclusivamente en las
denominadas “altas culturas” de Mesoamérica y Andes, fuente inagotable de
orgullo nacionalista para ciertos países – como México, Perú y Bolivia – y objeto
de numerosos proyectos de investigación, mientras que las sociedades de áreas
culturales consideradas “marginales”, aquellas que usualmente habitaron las
periferias de las “grandes civilizaciones”, no han recibido la misma atención por
parte de los especialistas ni han sido objeto de una revalorización equivalente en las
obras sobre historia indígena precolombina. Y en segundo lugar, el escaso diálogo del
medio académico argentino con los estudios arqueológicos y etnohistóricos acerca
de las poblaciones amazónicas, llevados a cabo principalmente por antropólogos,
historiadores y arqueólogos de Brasil y que tanto han hecho para reconocer el
lugar de la Amazonía antigua en la historia americana. Esta particular deuda con la
historiografía amazónica constituye una situación que merece ser reevaluada en el

3
MANDRINI, Raúl. La Argentina aborigen. De los primeros pobladores a 1910. Buenos Aires: Siglo
XXI Editores, 2008.

264 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


futuro, procurando acortar la brecha aún existente entre ámbitos y especialidades,
buscando ampliar los contactos personales de los estudiosos y potenciar la
formación de redes académicas, propiciando tanto la articulación de proyectos
individuales en programas más amplios de investigación interdisciplinaria como
la organización de reuniones científicas internacionales que sirvan para socializar
y discutir los resultados; todo un conjunto de actividades que permitan reconocer
la variedad de formaciones sociales nativas que han coexistido e interactuado,
contribuyendo a una comprensión más íntegra de un mundo indígena sumamente
complejo, heterogéneo, dinámico y contrastante.
Más allá de estas últimas puntualizaciones críticas, es indudable que este último
volumen que nos legó Raúl Mandrini constituye un gran aporte a la historiografía
y antropología americanas al ofrecer, a través de una perspectiva original, sintética
y rigurosa, una recorrido ágil y, sobre todo, una prosa sencilla y directa, una muy
buena obra de divulgación para aquel que desee conocer el pasado de estas
sociedades. Un libro como éste se convierte rápidamente – como ha ocurrido con
otros materiales del mismo autor pensados con el mismo propósito4 – en un insumo
básico y obligatorio para estudiantes, docentes e investigadores. Son éstos tipos
de producciones sólidas las que motivan la disposición de continuar explorando
novedosos medios para investigar y divulgar una amplia, prolífica y compleja
realidad sociocultural que todavía ofrece mucha tela para cortar: las diversas
historias de las sociedades originarias del continente americano.


Resenha recebida em 11 fev. 2016.
Aprovada em 25 mai. 2016.

4
Raúl J. Mandrini publicó Volver al país de los araucanos (en coautoría con Sara Ortelli, Buenos
Aires: Sudamericana, 1992), Las fronteras hispanocriollas del mundo indígena latinoamericano
en los siglos XVIII y XIX. Un estudio comparativo (compilado junto a Carlos Paz, Tandil: IEHS-
UNICEN, 2002), Los indígenas de la Argentina. La visión del “otro” (Buenos Aires: Eudeba, 2004),
Vivir entre dos mundos. Las fronteras del sur de la Argentina. Siglos XVIII-XIX (Buenos Aires:
Taurus, 2006) y Sociedades en movimiento. Los pueblos indígenas de América Latina en el siglo
XIX (compilado junto a Antonio Escobar y Sara Ortelli, Tandil: IEHS-UNICEN, 2007).

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 265


OUTRAS PALAVRAS:
SOBRE MANUAIS E HISTORIOGRAFIAS1
Wilton Carlos Lima da Silva2

AURELL, Jaume; BALMACEDA, Catalina; BURKE, Peter & SOZA, Felipe. Comprender
el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico. Madrid: Ediciones
Akal, 2013, 494 p.

Entre minhas aventuras recentes se inclui uma tentativa de praticar exercícios


e alongamentos através de aulas de Pilates, que resultaram ao mesmo tempo em
uma rápida melhoria de minhas condições físicas de homem obeso e sedentário
ao custo de algumas pequenas dores musculares e certas sequelas em minha
autoestima – se a traição amorosa dói, no entanto pode ser relativizada pelas minhas
particularidade e as do objeto do meu desejo, já a percepção de que seu próprio
corpo está lhe traindo e que isso acontece porque somente você é o responsável
dói o dobro.
No entanto, em meio ao desconforto pela constatação de minhas limitações
físicas e certo orgulho pela persistência estoica naquela atividade que expunha
de forma inquestionável uma de minhas muitas limitações, uma sobrinha, que é
fisioterapeuta, me consolou: “Pilates é assim. Se está fácil é porque você não está
fazendo direito!”.
Ensinar história, particularmente na universidade, é um desafio de mesma
natureza e que poderia ser descrito de forma bastante semelhante – quando é feito
de forma simples e fácil é porque não está sendo bem feito.
A tensão entre as exigências de uma boa formação, as limitações de tempo e de
recursos para a construção de um bom curso, os diferentes níveis de envolvimento e
cognição dos alunos, a intensa e extensa produção historiográfica contemporânea,
a acessibilidade limitada aos textos, as dificuldades de intercâmbios intelectuais,
as tendências corporativas e de endogêneses teórico-metodológicas, a crescente
especialização do trabalho docente, entre outros aspectos do ensino universitário,
tornam o surgimento de bons manuais algo extremamente necessário e positivo.
No caso brasileiro, o destaque confirmado pelas seguidas edições de Domínios
da História: ensaios de teoria e metodologia3, de 1997, e o surgimento de Novos
domínios da História4, em 2012, ambos manuais organizados por Ciro Flamarion

1
Este texto é resultado de um estágio de pesquisa realizado na Universidade de Sevilha, Espanha,
entre janeiro e fevereiro de 2016, com bolsa do Programa de Movilidad de Profesores e Investigadores
Brasil-España, da Fundación Carolina.
2
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de
Assis. Professor Livre-Docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História
da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Assis. Coordenador do MEMENTO – Grupo de
Pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias (UNESP Assis/ Diretório CNPq). E-Mail: <wilton@
assis.unesp.br>.
3
CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria
e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
4
CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. Rio de

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 267


Cardoso e Ronaldo Vainfas, entre outros exemplos possíveis, demonstra a
importância desse tipo de publicação enquanto ferramenta de trabalho para
professores e pesquisadores.
Publicações semelhantes em outros idiomas oferecem uma vantagem a mais,
além do mapeamento e da ordenação de natureza didática e expositiva de um
campo amplo e múltiplo que qualquer historiografia dinâmica apresenta, a
possibilidade do reconhecimento de convergências e divergências temáticas e
teórico-metodológicas são um ganho difícil de desprezar.
Nesse sentido, Comprender el pasado: una historia de la escritura y el
pensamiento histórico é um livro com quatro autores, de três países distintos e
diferentes especialidades, o que se traduz em um panorama historiográfico rico e
diferenciado5.
A ambição de se oferecer uma história da historiografia, pelo menos em língua
inglesa, tem outros respeitáveis representantes recentes em distintas tradições
intelectuais, como A History of Histories: epics, chronicles, romances and inquiries
from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century (2007), um alentado
volume de 553 páginas do historiador inglês John Burrow6, A global History of
History (2011), outro volumoso livro, de 605 páginas, do professor anglo-canadense
Daniel Woolf7, ou The Oxford History of historical writing (2011-2012) que é uma
obra coletiva, em cinco volumes, que envolve uma infinidade de autores e editores
distintos por volume8. Embora todas as três tenham méritos indiscutíveis nenhuma
delas está livre de algumas críticas e questionamentos.
O historiador inglês Keith Thomas fez uma elogiosa resenha do livro de Burrow,
professor emérito de Oxford, na qual reconhece no autor, uma das maiores
autoridades sobre a história intelectual dos séculos XVIII e XIX e, na obra, o
resultado de um enorme esforço de erudição, com texto um muito agradável e
repleto de observações agudas9.

Janeiro: Campus; Elsevier, 2012.


5
Jaume Aurell é Professor Titular de Historia Medieval e Teoria da História na Universidade de
Navarra, Espanha; Catalina Balmaceda, professora de Historia Clássica do Instituto de Historia
da Pontifícia Universidade Católica, Chile; Peter Burke, professor emérito da Universidade de
Cambridge, Inglaterra; e Felipe Soza, professor adjunto do Instituto de Historia da Pontifícia
Universidade Católica, Chile.
6
A obra foi traduzida para o português. Ver: BURROW, John. Uma História das Histórias: de
Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro: Record,
2013.
7
A obra foi traduzida para o português. Ver: WOOLF, Daniel. Uma História global da História.
Tradução de Caesar Souza. Petrópolis: Vozes, 2014.
8
FELDHERR, Andrew & HARDY, Grant (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 1:
beginnings to AD 600. Oxford: Oxford University Press, 2011. FOOT, Sarah & ROBINSON, Chase
F. (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 2: 400-1400. Oxford: Oxford University
Press, 2011. RABASA, José; SATO, Masayuki; TORTAROLO, Edoardo & WOOLF, Daniel (orgs.).
The Oxford History of historical writing – Volume 3: 1400-1800. Oxford: Oxford University Press,
2011. MacINTYRE, Stuart; MAIGUASHCA, Juan & POK, Attila (orgs.). The Oxford History of
historical writing – Volume 4: 1800-1945. Oxford: Oxford University Press, 2011. SCHNEIDER,
Axel & WOOLF, Daniel (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 5: historical
writing since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2012.
9
THOMAS, Keith. “Mapping the world – a History of Histories: epics, chronicles, romances and

268 SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.


Embora também assinale a existência de alguns pequenos equívocos só
perceptíveis por especialistas, como por exemplo, a inclusão de somente duas
mulheres entre os historiadores dignos de nota (Anna Commena, um princesa
bizantina do século XII, e Natalie Zemon Davis, a autora norte-americana de O
retorno de Martin Guerre10) ou seu escopo de análise limitado a historiadores da
Europa e da América do Norte (particularmente os que escreveram em inglês ou
estão disponíveis em tradução).
Por sua vez o livro de Woolf, que já havia organizado A global Encyclopedia
of historical writing11, de 1998, impressiona pela combinação de uma significativa
erudição com um estilo agradável e didático, utilizando-se de mútuas referências
entre textos e imagens, em um esforço de apresentação de uma abordagem
claramente desvinculada da perspectiva eurocêntrica, e que em busca de uma
perspectiva verdadeiramente global, ao longo de seus nove capítulos, valoriza
escritos históricos da América do Sul, Coréia, Tailândia, Islândia, Tibete e Pérsia ao
lado de outros da Antiguidade Greco-Romana, do Renascimento e do Iluminismo
no Ocidente.
Os dois últimos capítulos, inclusive, intitulados respectivamente “Clio’s empire:
European historiography in Asia, the Americas and Africa” e “Babel’s tower: history
in the Twentieth Century”, trazem duas questões extremamente interessantes: a
questão da força e influência dos modelos intelectuais europeus na historiografia
não europeia e a poliglosia do discurso historiográfico contemporâneo.
Curiosamente, talvez como sintoma de nosso isolamento intelectual, quer pela
questão idiomática quer por limitações da produção local, nas dezesseis páginas
do índice onomástico da edição em inglês não existe nenhuma referência sobre a
historiografia brasileira.
Finalmente, a extensa obra financiada por Oxford tem uma clara preocupação
em afirmar tanto a excelência acadêmica de sua equipe internacional de estudiosos
quanto a ênfase na diversidade cultural.
O volume 1, com 672 páginas, é organizado por Andrew Feldherr12 e Grant
Hardy13, oferecendo ensaios de diversos autores sobre o desenvolvimento da
escrita histórica a partir do antigo Oriente Próximo, da Grécia clássica, Roma, e do
Leste e Sul da Ásia desde as suas origens até 600 d.C.
O volume 2, também com 672 páginas, sob coordenação de Sarah Foot14 e Chase
F. Robinson15 reúne vinte e oito especialistas que buscam apresentar a diversidade
da escrita da história na Europa e na Ásia entre 400-1400, realçando tanto
características regionais e culturais quanto abordagens temáticas e comparativas

inquiries, from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century”. The Guardian, Londres, 15
dez. 2007. Disponível em: <http://www.theguardian.com/>. Acesso em: 20 out. 2015.
10
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Tradução de Denise Bottmann. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
11
WOOLF, Daniel (org.). A global ecyclopedia of historical writing. Londres: Taylor & Francis; Nova
York: Routledge, 1998.
12
Professor de Antiguidade Clássica na Universidade de Princenton, EUA.
13
Professor da História de Religiões na Universidade da Carolina do Norte, EUA.
14
Professora de História das Religiões na Universidade de Oxford, Reino Unido.
15
Professor da Universidade de Nova York, especializado em História islâmica.

SÆCULUM - REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016. 269


sobre gênero, guerra e religião, entre outros aspectos, que se fazem nos trabalhos
de historiadores do período delimitado.
O volume 3, com 752 páginas, é organizado por quatro especialistas, o argentino
Jose Rabasa16, o japonês Masayuki Sato17, o italiano Edoardo Tortarolo18, e o
canadense, já citado, Daniel Woolf19, abordando o período entre 1400 e 1800,
em ordem geográfica de leste a oeste, da Ásia as Américas, com as principais
contribuições da escrita da história no período.
O volume 4, com 688 páginas e organizado pelo australiano Stuart MacIntyre20,
Juan Maiguashca21 e Attila Pok22, apresenta ensaios sobre a historiografia no mundo
entre 1800 e 1945, abordando um leque de culturas e países que se estende do
pensamento histórico e da erudição europeia passando por Estados Unidos,
Canadá, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, México, Brasil e América do Sul
espanhola, além de China, Japão, Índia, Sudeste da Ásia, Turquia, o mundo árabe
e da África Subsaariana.
Finalmente, o último volume, de número 5, com 744 páginas e organizado pelo
sinólogo Axel Schneider23 e pelo canadense Daniel Woolf, que também participou
da organização de um dos volumes anteriores, apresenta um arco temporal que
se estende de 1945 até os dias atuais, discutindo distintas abordagens teóricas e
interdisciplinares para a história assim como buscando demarcar particularidades e
similitudes entre historiografias nacionais e regionais.
O diferencial de Comprender el pasado: una historia de la escritura y el
pensamiento histórico, em contraste com as obras anteriormente citadas, segundo
seus próprios autores, é que o time de quatro pesquisadores permite superar as
limitações de formação de um único especialista (o caso dos trabalhos de Burrow e
Woolf) ao mesmo tempo em que o número relativamente reduzido de colaboradores
permite a articulação do texto enquanto um panorama mais articulado e menos
semelhante a um jogral com temas estanques – o caso do manual de Oxford –,
resultando em uma combinação específica de volume informacional e inteligibilidade
do quadro panorâmico.
A famosa frase de Gaston Bachelard, que compara o conhecimento a uma fraca
lanterna que é utilizada para iluminar um grande sótão, de modo que iluminar
um dos cantos do aposento é deixar boa parte dele na escuridão, é uma imagem
recorrente para descrever toda obra de síntese.
Assim como os três textos referenciados anteriormente apresentam problemas e
soluções para o pesquisador ou docente interessado em ampliar ou compartilhar
seus conhecimentos em uma perspectiva global da produção historiográfica, o
mesmo se percebe no volume de Aurell, Balmaceda, Burke e Soza.

16
Professor da Universidade de Harvard, EUA, especialista em literatura e estudos pós-coloniais.
17
Professor da área de Teoria da História e Historiografia da Universidade Yamanashi, Kyoto, Japão.
18
Professor de História Moderna e de Historiografia da Universidade de Turim, Itália.
19
Professor da Queen’s University, Kingston, Canadá.
20
Professor da Universidade de Melbourne, Austrália.
21
Professor especialista em História da América Latina da Universidade de York, Toronto, Canadá.
22
Professor da Academia Húngara de Ciências, Budapeste, Hungria.
23
Professor da Universidade de Gottingen, Alemanha.

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Esse trabalho, inclusive, apresenta mais duas particularidades, uma de
dimensão geracional, pois Burke pode facilmente ser reconhecido como um autor
consolidado em termos de tempo, extensão da obra e diversidade de temas, Aurell e
Balmacera seriam autores de produção mais recente, com obras bem referenciadas,
mas que ainda estão se constituindo, e Soza é um jovem pesquisador, e o foco
linguístico cultural, pois o historiador inglês, casado com uma brasileira, tem tanto
familiaridade com a tradição intelectual de língua inglesa e francesa, como também
em português, e os demais autores, enquanto conhecem a historiografia europeia,
também transitam pela produção de língua espanhola – entre outros aspectos isso
permitiu, em contraste com algumas das obras citadas, que a produção espanhola
e portuguesa aparecesse desde de a Idade Média e houvesse um capítulo específico
sobre a América Latina (assim como outros dois sobre a historiografia chinesa e a
árabe).
O esforço em resgatar a prática da cultura historiográfica enquanto rede de
relações que envolve produtores do conhecimento, seus receptores e os mecanismos
de conservação e divulgação aproxima a estrutura do trabalho da obra clássica da
história da literaturas Mimésis24 (1946), de Erich Auerbach, na qual a apresentação
do cânone divide espaço com o incentivo a descoberta e a busca dos originais.
Para isso, ao final de cada capítulo há um conjunto de indicações bibliográficas e
comentários sobre as principais tendências teórico-metodológicas, os autores e as
obras mais representativas de cada período.
Em termos estruturais, os dois primeiros capítulos, sobre a antiguidade greco-
romana (p. 09-94) ficam a cargo de Catalina Balmaceda; o terceiro capítulo, do
período medieval (p. 95-142), é abordado por Jaume Aurell; os capítulos 4º,
do Renascimento e a Ilustração (p. 143-182), e 5º, sobre historiografia islâmica
e chinesa (p. 183-198), são escritos por Peter Burke; o 6º, sobre historicismo,
romanticismo e positivismo (p. 199-236), o 7º, sobre a transição do século XIX ao
XX (p. 237-286) e o 8º, sobre o giro linguístico e as histórias alternativas (p. 287-
340), são tratados por Jaume Aurell e Peter Burke; enquanto que o 9º e último
capítulo (p. 341-437), sobre historiografia latino-americana, é assinado por Felipe
Soza25.
Além da oportunidade de entrar em contato com características das obras de
autores pouco conhecidos na tradição intelectual brasileira, como os árabes Ibn
Khaldun e Mustafa Naima, os chineses Sima Qian e Ouyang Xiu ou o indiano
Ranajit Guha, o livro destaca-se pela síntese rica e ampla sobre a historiografia
latino americana.
Em geral os manuais enfrentam o desafio de equilibrarem-se entre a
representação da extensão de um conhecimento sobre o qual se projetam e a síntese
didática e acessível de um vasto campo de conhecimento, buscando oferecer um

24
AUERBACH, Erich. Mimésis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. Tradução de
G. B. Sperber. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
25
Sobre História e historiografia da/na América Latina, ver também: MAIGUASHCA, Juan. “História
marxista latino-americana: nascimento, queda e ressurreição”. Almanack, São Paulo, UNIFESP, n.
7, mai. 2014, p. 95-116. Disponível em: <http://www.almanack.unifesp.br/>. Acesso em: 21 out.
2015.

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conhecimento mais rico do que a simples cultura de verniz e menos profundo do
que o detalhismo do especialista.
Com certeza todos os trabalhos aqui citados, e em especial, pelas particularidades
anteriormente expressas, o livro Comprender el pasado: una historia de la escritura
y el pensamiento histórico cumpre de forma exemplar tais ambições, merecendo
inclusive uma tradução para o português.
Quem ler, comprovará.


Resenha recebida em 18 mai. 2016.
Aprovada em 05 jun. 2016.

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