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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO - MEC

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN


PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO CERES - PPGHC
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES
MESTRADO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES - MHIST

WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

ZÉ MENINO MILAGREIRO: TRAGÉDIA E DEVOÇÃO NO CATOLICISMO


NÃO-OFICIAL (RIACHÃO, JUCURUTU, 1937-2022)

CAICÓ/RN
2022
WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

ZÉ MENINO MILAGREIRO: TRAGÉDIA E DEVOÇÃO NO CATOLICISMO


NÃO-OFICIAL (RIACHÃO, JUCURUTU, 1937-2022)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História dos Sertões do Centro de
Ensino Superior do Seridó (CERES) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte –
(UFRN), como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em História, sob a orientação do
professor Dr. Lourival Andrade Junior.

CAICÓ/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - -CERES- - Caicó

Simao, Wesley Henrique de Moura.


Zé Menino Milagreiro: tragédia e devoção no catolicismo não-
oficial (Riachão, Jucurutu, 1937-2022) / Wesley Henrique de
Moura Simao. - Caicó, 2023.
102f.: il. color.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó. Programa de Pós-
Graduação em História dos Sertões - PPGHC.
Orientador: Prof. Dr. Lourival Andrade Junior.

1. Milagreiro. 2. Sertões. 3. Devoção. 4. Catolicismo não-


oficial. I. Andrade Junior, Lourival. II. Título.

RN/UF/BS CERES CDU 27-5(091)(913.2)

Elaborado por Martina Luciana Souza Brizolara - CRB-15/844


WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

ZÉ MENINO MILAGREIRO: TRAGÉDIA E DEVOÇÃO NO CATOLICISMO


NÃO-OFICIAL (RIACHÃO, JUCURUTU, 1937-2022)

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em


História, pelo Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões, do Centro de
Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela
seguinte banca:

Caicó, RN, 30 de novembro de 2022

.
______________________________________________________
Prof. Dr. Lourival Andrade Junior (Orientador)
Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________
Prof. Dra Ane Luise Silva Mecenas Santos (Examinadora Interna)
Departamento de História do CERES – UFRN

______________________________________________________
Prof. Dr. Michelle Ferreira Maia (Examinadora Externa)
Dedico à memória das pessoas
invisibilizadas e vozes silenciadas.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Lourival Andrade Junior, orientador dessa pesquisa, quem me


auxiliou do começo ao fim, agradeço toda a atenção, cuidado e generosidade, se hoje
este trabalho está terminado, em grande medida se deve ao seu amor pela pesquisa, e
porquê nos momentos em que nem eu mesmo acreditava que seria capaz de conseguir,
ele me incentivava. Sempre confiou em um potencial que eu duvidava que existia, e
mesmo sendo reconhecidamente exigente com sua produções, não faltou afeto, bom
humor e compreensão durante os percalços dessa caminhada. Obrigado Lourival por
acreditar que seria possível, por trazer luz inúmeras vezes para essa pesquisa e
pesquisador.
Faço um agradecimento especial ao querido professor Helder Macedo, que cuida
tão bem do curso de História em Caicó e do PPGHC-UFRN, com muita
responsabilidade e afinco, recebendo a todos que chegam ao programa com muito
cuidado e carinho, sempre atencioso às normativas internas, minha caminhada com
Helder vem desde a graduação, foi quem me ensinou as bases da pesquisa histórica, as
quais carrego até hoje. Estendo esse agradecimento aos professores e professoras que
estiveram comigo durante o mestrado, compartilhando e produzindo saberes sobre os
nossos sertões.
Ao professor Joel Andrade com quem tive os primeiros contatos com a História
Oral em um projeto sobre a memória do CERES e a professora Ane Mecenas que
conheci recentemente mas já admiro bastante, por aceitarem participar da banca de
qualificação da dissertação pois trouxeram contribuições bastante significativas para
nossa pesquisa, agradeço também a professora Michelle Maia , por aceitar compor da
banca de defesa e pelas contribuições para a História das religiosidades e dos
milagreiros.
A minha mãe Lucia Moura, por todo apoio e incentivo à educação, além do
investimento financeiro que não mede esforços para me proporcionar realizar sonhos.
Ao meu irmão Lindemberg por quem devoto todo amor que tenho, é quem me faz
acreditar que os dias podem ser mais felizes, essa é a minha família, nós três
enfrentando tudo que vier, obrigado por vocês estarem comigo.
Agradeço a disponibilidade fundamental para esse trabalho das narradoras e
narradores que emprestaram suas vozes para dar som à história de Zé Menino, aos
moradores da comunidade Riachão pela hospitalidade e em especial a Francisca
Figueiredo, amiga de longas datas que muito me auxiliou tirando dúvidas, contando a
história quantas vezes fosse necessário, nos recebendo em sua casa sempre com um bolo
de grude e café. A Nanael Simão, por disponibilizar fontes históricas para nossas
análises e sempre nos nossos encontros contar um pouco da história do nosso rincão,
durante esse processo se revelou um bom amigo.
Não poderia deixar de agradecer a pessoas que me ajudaram nos momentos em
que tudo parecia desandar, as minhas amigas Lindalva e Vikelane pelo irrestrito apoio,
inclusive logístico, a Fernando pelas palavras de encorajamento, e a todos que de
diversas maneiras contribuíram para a realização dessa pesquisa, ao companheiro Filipe
Viana amigo que o LABORDOC me deu e até hoje permanece ao meu lado.
Aos meus colegas de curso, enfrentamos duras batalhas, a pandemia, o desmonte
da educação pública, o obscurantismo e o negacionismo da ciência e do saber que
produzimos, mas que apesar dos dissabores conseguimos vencer, agradeço em especial
Brenda com quem sempre falava sobre a vida e as perspectivas sobre o curso, a Hyoga
voz amiga que encoraja, Joalisson e Larisse, colegas que se tornaram amigos, e
pudemos compartilhar todos os momentos que a pós-graduação nos proporcionou.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões da
UFRN/CERES pela acolhida, a CAPES pela concessão da Bolsa de Demanda Social
que foi fundamental na reta final desse trabalho.
Este trabalho foi escrito em dias
chuvosos, ou na esperança de dias de
chuvas.
RESUMO

Reflete sobre a devoção ao milagreiro Zé Menino cultuado na comunidade Riachão,


zona rural do município de Jucurutu-RN. O estudo fez uso das narrativas de devotas e
devotos, coletadas através de entrevistas feitas durante as visitas ao local sagrado e
analisas da luz da metodologia da História Oral, além da estudo etnográfico e da
observação de ex-votos. Essa devoção se enquadra nos cultos do catolicismo não-
oficial, uma vez que não é destinada aos santos oficiais e sim a um sujeito que pertencia
à comunidade estudada e que ao morrer de forma trágica, foi alçado ao sagrado e
cultuado como milagreiro. Nesse sentido, utilizamos o conceito de sublimação de
Lourival Andrade Junior para entendermos o processo pelo qual o milagreiro passa logo
após a morte, o status de lugar sagrado que o local de sua morte recebe, tudo isso
relacionado ao debate sobre os sertões e as representações de uma religiosidade
sertaneja. Veremos José Batista Serafim – Zé Menino, sua morte e sublimação, e como
um local de tragédia se tornou um espaço sagrado de fé, esperança e milagres.

PALAVRAS-CHAVE: Milagreiro. Sertões. Devoção. Catolicismo Não-oficial.


História dos Sertões.
ABSTRACT

ZÉ MENINO MILAGREIRO: TRAGEDY AND DEVOTION IN UNOFFICIAL


CATHOLICISM (RIACHÃO, JUCURUTU, 1937-2022)

It reflects on the devotion to the miracle worker Zé Menino worshiped in the Riachão
community, rural area in the city of Jucurutu-RN. The study has made use of the
narratives of devotees, collected through interviews made during visits to the sacred
place and analyzed in the light of Oral History methodology, in addition to the
ethnographic study and observation of ex-votos. This devotion fits into the cults of
unofficial Catholicism, since it is not intended for official saints, but for a subject who
belonged to the studied community and, when he died tragically, he has been elevated
to holy and worshiped as a miracle worker. In this sense, we use Lourival Andrade
Junior's concept of sublimation to understand the process through which the miracle
worker passes right after death, the status of sacred site that the place of his death
receives, all this related to the debate about the sertões and the representations of a
sertanejo religiosity. We will see José Batista Serafim – Zé Menino, his death and
sublimation, and how a place of tragedy became a sacred space of faith, hope and
miracles.

KEYWORDS: Miraculous. Sertões. Devotion. Unofficial Catholicism. History of


Sertões.

Sertões - Region in the northeast of Brazil.


Sertanejo - People who live in sertões.
ex-votos - Objects taken to a place in gratitude to a saint or unofficial saint after
receiving something that had been spiritually asked.
LISTA DE IMAGENS

Imagem 01: Quadro São Miguel de Jucurutu – 2006. Nanael Simão;


Imagem 02: Mapa RN – Região do Seridó;
Imagem 03: Altar e cruz de Zé Menino – 2019. Wesley Simão;
Imagem 04: Recanto da Saudade – 2022. Wesley Simão;
Imagem 05: Capela três irmãos Pangoá – 2019. Wesley Simão;
Imagem 06: Devota e Anjinhos Queimados – 2019. Wesley Simão;
Imagem 07: Peregrinação – 2019. Wesley Simão;
Imagem 08: Jornal A Ordem – 1937.
Imagem 09: Ex-votos – 2022. Lourival Andrade Junior;
Imagem 10: Cruz com fitas e roupas – 2022. Allan Matson;
Imagem 11: Café compartilhado – 2022. Lourival Andrade Junior;
Imagem 12: Panorama Zé Menino – 2022. Allan Matson;
Imagem 13: Fogos na cruz – 2019. Wesley Simão;
Imagem 14: Chegada da peregrinação – 2019. Wesley Simão.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13

CAPÍTULO 1 ................................................................................................................. 24

VEREDAS SERTANEJAS ............................................................................................ 24

1.1 DOS SERTÕES .................................................................................................... 24

1.2 DOS SERTÕES POTIGUARES, SERIDOENSES E JUCURUTUENSES ........ 31

1.3 UM SERTÃO DENTRO DE OUTROS SERTÕES ............................................ 41

CAPÍTULO 2 ................................................................................................................. 43

RELIGIOSIDADES, CATOLICISMOS E DEVOÇÕES .............................................. 43

2.1 DAS RELIGIOSIDADES SERTANEJAS........................................................... 43

2.2 AGENTES RELIGIOSOS.................................................................................... 47

2.3 EXPLICANDO OS CATOLICISMOS ................................................................ 51

2.4 RELIGIOSIDADE EM JUCURUTU................................................................... 56

CAPÍTULO 3 ................................................................................................................. 68

A DEVOÇÃO NÃO-OFICIAL AO FINADO ZÉ MENINO. ....................................... 68

3.1 O MILAGREIRO, SEU CULTO, SEUS DEVOTOS .......................................... 68

3.2 ENTENDENDO A DEVOÇÃO........................................................................... 69

3.3 ASPECTOS MÍTICOS ......................................................................................... 71

3.4 NARRATIVAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DA CAPELA ............................... 74

3.5 EX-VOTOS .......................................................................................................... 75

3.6 RELAÇÃO DA DEVOÇÃO COM A PARÓQUIA ............................................ 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 88

FONTES ......................................................................................................................... 92

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 93

ANEXOS: ....................................................................................................................... 96
13

INTRODUÇÃO

“Este aqui não está mais aqui. mas, ficou”.


(Muirakytan k. de Macedo).

Durante este trabalho, analisamos a espacialidade sagrada que se forma em torno


da figura de Zé Menino, milagreiro da zona rural do município de Jucurutu, Rio Grande
do Norte. A morte trágica concedeu a José Batista Serafim, a condição de milagreiro na
comunidade rural Riachão. Este lugar, nos sertões do Seridó, abriga entre a vegetação
retorcida da caatinga, uma pequena capela e um cruzeiro onde os devotos se reúnem
para renovar promessas e vínculos com o milagreiro e depositar ex-votos. Numa
demonstração de fé, os crentes se ajuntam diante desse fato e transitam livremente entre
o culto oficial do Catolicismo Romano e do não-oficial por eles vivenciado.
Entendemos as ações em torno desse culto como fontes para percebermos como se
delimita no espaço tido como sertanejo, a formação de um espaço sacralizado, sob uma
religiosidade não-oficial.
Certa vez, durante uma conversa informal de calçada, ouvi pela primeira vez o
relato de uma amiga que, dizia, haver em um sítio próximo da cidade, um lugar em que
as pessoas se dirigiam para pagar promessas e agradecer graças alcançadas, descreveu o
cenário e de igual modo contou o que levou as pessoas a atribuírem a aquele local a
condição de um lugar sagrado.
Tratava-se da história de José Batista Serafim ou Zé Menino como é conhecido
pelos devotos. Segundo as narrativas, em alguma fração do tempo passado, um crime
poria fim à vida de um jovem, e daria início a uma história de fé e devoção. Trabalhador
de uma fazenda muito próspera da região, a fazenda Barra do Olho D’água, tinha na lida
com o gado e os afazeres da casa a sua ocupação, como a maioria dos homens desde
muito novos, ser vaqueiro era a sina da grande maioria dos sujeitos pobres do lugar. O
fato de ser vaqueiro e trabalhador da fazenda, colocou a figura de Zé Menino em
proximidade com os devotos que viveram e vivem realidades parecidas com a sua.
14

A trama se desenvolveu conforme a oralidade nos conta, por meio do desejo


sexual que surgiu por parte da esposa de José Lourenço1, em relação ao jovem José B.
Serafim. Segundo nossas fontes, esse desejo não foi correspondido o que levou a esposa
do fazendeiro a contar ao seu esposo que o jovem vaqueiro teria intentado contra sua
honra, o que de imediato levou José Lourenço a planejar a morte de José Serafim,
armando uma emboscada com dois de seus jagunços, Zé Menino foi surpreendido e foi
vítima de grandes maus tratos, fato que até hoje choca as pessoas.
Teve seu corpo espancado, perfurado por armas de fogo e por fim puxado por
cavalos sendo arrastado pelos pedregulhos que compõem o cenário, ao fim seu corpo foi
depositado ainda com vida sob uma planta, onde faleceu. A partir deste momento,
surgem algumas variações sobre a morte, entre elas algumas versões místicas. A
narrativa da morte trágica, confere ao sujeito a qualificação para a devoção sendo a
justificativa para a sublimação (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 22).
Usamos aqui o conceito de sublimação aplicado por Lourival Andrade Junior
para entendermos o caso do milagreiro Zé Menino, Andrade Junior, ao qualificar a
devoção à milagreira Sebinca Christo, se apropria do conceito utilizado no campo da
Química:

Para identificar a mudança do estado físico da matéria de sólido para gasoso


sem passar pelo líquido, ou seja, a passagem se dá diretamente sem uma fase
intermediária. Assim ocorre com os milagreiros, já que após a morte passam
para o estado de sacralidade, sem passarem por nenhum outro estágio
intermediário de aprovação como ocorre com os santos oficiais nos processos
canônicos (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94)

Assim, o termo sublimação passa a ser usado para caracterizar a sacralização de


sujeitos que não passam pelos processos e trâmites oficiais do catolicismo. Como
Andrade Junior reforça, o conceito de canonização faz referência ao universo oficial da
Igreja Católica e sublimação ao não-oficial, pertencendo ao povo.
O culto a Zé Menino acontece na comunidade Riachão, zona rural do município
de Jucurutu. Anualmente, no dia 19 de março, os devotos percorrem estradas de barro
que dão acesso ao local de culto ao milagreiro. Uma capela no alto de um morro e um
pequeno cruzeiro na beira de um riacho, recebem centenas de pessoas que cantam,
rezam e queimam fogos em homenagem ao milagreiro. Pela oralidade, temos acesso ao

1
Segundo alguns narradores da nossa colônia de fontes, José Lourenço ou Zé Lourenço, foi o fazendeiro
mandante do crime, os narradores não sabem informar o nome da esposa.
15

que aconteceu naquele espaço, apontado como um lugar sagrado, pois foi onde se deu a
morte de Zé Menino, e é ali onde ele opera milagres.
A justificativa para a delimitação espacial se dá pelo fato peculiar de culto não-
oficial na comunidade Riachão, e sobretudo, pela sondagem inicial que fizemos no
município. Na primeira fase da pesquisa, ao decidirmos que trabalharíamos com
religiosidade não-oficial, fizemos uma investigação a respeito dos locais onde
acontecem cultos e devoções não-oficiais: na cidade, no cemitério, em outras
comunidades rurais e detectamos a existência desses espaços, e assim fizemos um
mapeamento.
No nosso mapeamento, visitamos além do cruzeiro de Zé Menino, o túmulo dos
Anjinhos Queimados de Jucurutu2, milagreiros cultuados no cemitério público da
cidade, visitamos a capela Três Irmãos, na comunidade Pangoá, na Serra de João do
Vale, também de culto aos Anjinhos Queimados, a capela da Jovem Milena3,
assassinada em 2011, a capela privada de Dona Odete no Sítio Barro Branco4, que é
uma capela votiva a Santa Luzia, mas que reúne dezenas de pessoas que vão ao lugar
pagar promessas.
A respeito da delimitação temporal, os relatos orais coletados em entrevistas,
dão conta de que o crime aconteceu por volta da década de 19305 e desde então teve
início o culto ao milagreiro. Nesse sentido, recuamos temporalmente até o possível ano
do crime para explicar como se desenvolveu a trama que envolveu as personagens desta
história, porém, estendemos a nossa análise até o tempo presente, visto que discutimos o

2
Os Anjinhos Queimados, foram três crianças que morreram vítimas de um incêndio acidental, no dia 02
de dezembro de 1968 na serra de João do Vale, foram sepultados no cemitério público de Jucurutu, sendo
um dos túmulos mais visitados no dia de finados, chama a atenção a quantidade de fitas amarradas no
gradil que cerca a cova dos meninos.
3
Milena Soares, de nove anos de idade, foi morta em agosto de 2011, de forma violenta, o que gerou uma
grande comoção em toda cidade. No local onde seu corpo foi encontrado, algumas pessoas depositam
objetos em homenagem a menina, embora as informações deem conta de que as pessoas começaram a
receber graças através de Milena, não encontramos no local de sua capela, elementos que sustentassem
essas narrativas, essa seria uma devoção que está em construção.
4
No Sítio Barro Branco, encontramos a capela de Dona Odete, moradora bem conhecida em toda cidade,
ao lado de sua casa temos acesso à capela pelo alpendre, trata-se de uma sala repleta de imagens e
quadros de santos, esse local é dedicado a Santa Luzia, em virtude de uma promessa do falecido marido
de dona Odete, todos os anos na véspera do dia 13 de dezembro, dezenas de pessoas se reúnem na capela
de dona Odete e rezam um terço em honra a Santa Luzia. O que chama a atenção é a quantidade de ex-
votos que se encontram nessa capela, por algum motivo, as pessoas escolhem esse local não-oficial para
depositarem seus agradecimentos, embora Santa Luzia seja uma devoção oficial do Catolicismo, este
local especificamente não é um espaço oficial de culto.
5
Posteriormente, descobrimos uma reportagem do jornal A Ordem que informava o ano do crime, 1937.
Veremos essa discussão no terceiro capítulo.
16

culto ao milagreiro que persiste até hoje, desta forma, as análises feitas nesse trabalho
compreendem o período de tempo das nossas observações entre os anos de 2018 e 2022.
Esse trabalho analisa pela primeira vez a devoção a Zé Menino, inserindo na
historiografia, mais uma representação sobre o sertão, desta vez, partindo da
religiosidade não-oficial que delimita um espaço de culto e tem no agente milagreiro o
centro da fé e das peregrinações. O fato é que investigamos a relação entre a fé moldada
por uma cultura entendida como sertaneja com todos os aspectos do imaginário de um
sertão católico.
Vale salientar a nossa trajetória de pesquisa em torno de práticas não-oficiais do
catolicismo, esse percurso teve início com a pesquisa que resultou na monografia
defendida em 2017 para obtenção do grau de bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde analisamos incelências cantadas para anjos6, esse
estudo também pioneiro em se tratando da história do município de Jucurutu, lançou
olhares para o fenômeno das incelências, ampliou os entendimentos e abriu novos
caminhos para pesquisas futuras sobre a morte e as práticas ritualísticas não oficiais em
torno dela. Esse trabalho, apresenta e pensa um sertão visto pela religiosidade, que
encontra na fé, apoio para as lutas e questões diárias, um sertão entre Deus, o Diabo e as
ações humanas, como bem apresentou Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas.
Cabe evidenciar, que este trabalho está inserido no Campo da História Cultural,
por entendermos que a discussão que tratamos aqui está relacionada por exemplo a
definição de cultura que Peter Burke nos traz ao citar o antropólogo Edward B. Tylor “o
todo complexo que inclui conhecimento, crenças, artes, moral, lei, costumes e outras
aptidões e hábitos adquiridos pelo homem” (BURKE, 2008, p. 43). Nos moldes que a
nossa pesquisa está inserida, a nossa análise somente se tornou viável graças à variedade
de abordagens que se tornaram possíveis a partir da História Cultural.
Propomos nesse trabalho e aqui fazemos uso das palavras de Roger Chartier,
uma discussão sobre como identificar em diferentes momentos e lugares como as
realidades sociais são constituídas e dadas a ler (CHARTIER, 1990), recorremos ao
conceito de representações que é tão caro para nosso programa de mestrado para
entender a relação dos sujeitos com o sagrado e com os sertões. Buscamos entender
como esse espaço é construído, e a partir das experiências religiosas como ele é

6
Em 2017 empreendemos pesquisa sobre o rito fúnebre das incelências na zona rural de Jucurutu-RN,
que resultou na monografia de graduação: “A morte cantada: incelências para anjos no município de
Jucurutu-RN (segunda metade do século XIX)” Orientada pelo professor Dr. Lourival Andrade Junior
DHC – Centro de Ensino Superior do Seridó/ UFRN.
17

moldado, vivenciado e sentido, assim podemos perceber através das nossas fontes, o
imaginário desse grupo sendo refletido nas orações, nas promessas, nos ex-votos que
são dedicados ao milagreiro. A historiadora Sandra Pesavento, define as representações
como geradoras de identidades e que dão sentido as coisas (PESAVENTO, 2003), o
modo como o grupo pensa sua relação com o divino ganha forma e podemos ver isso
através dos ex-votos, da construção da capela, o que o Roger Chartier também chama de
formas simbólicas (CHARTIER, 1990).
Trabalhamos os sertões em relação as suas representações culturais e históricas,
as estruturas do sensível, as crenças, o imaginário e a tradição. Nossa pesquisa está
situada no universo da cultura religiosa, nas representações e práticas do catolicismo
não-oficial. Segundo Andrade Junior, “analisar a religiosidade não-oficial no Brasil é
um exercício de desprendimento das racionalidades e um mergulho num mundo de
imagens, sons, cheiros e devoções marcadas pela emoção e pela entrega” (ANDRADE
JUNIOR, 2021, p. 93). Nesse sentido vemos que no Brasil o catolicismo se pluralizou
(ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 93) e assim temos o catolicismo não-oficial, onde não
há uma teorização do sagrado por parte dos devotos, e os ritos e liturgias são
transmitidos principalmente pela oralidade. (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 90) muito
embora não haja uma separação sólida entre o oficial e o não-oficial, os devotos
convivem nos mesmos espaços sem conflitos aparentes (ANDRADE JUNIOR, 2021, p.
91).
Abordamos o conceito de Sertão como forma de verificação, dos
questionamentos pleiteados aqui, abordamos um sertão sensível, geográfico e da
saudade (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2009) que se estabelece no imaginário dos
sujeitos contatados nessa pesquisa, que encontra nos símbolos sertanejos a narrativa
desse acontecimento: a fazenda, o vaqueiro, o coronel, o jagunço, o próprio cenário
como a vegetação espinhosa e o solo pedregoso, encontra também na religiosidade os
elementos em torno da morte e após a morte a justificativa para a sublimação deste
milagreiro (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94).
Ao diferenciar o catolicismo oficial do não-oficial, Andrade Junior, define o
conceito de milagreiro em oposição ao de santo e desta forma também define as formas
com que os sujeitos atingem nos dois catolicismos esses níveis. Se no âmbito oficial
existe todo um processo para canonização dos elegíveis santos, no âmbito não-oficial
esse processo acontece de forma muito prática, nesse sentido, Andrade Junior define
18

como sublimação a passagem da morte do sujeito para o status de milagreiro.


(ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94).
No trajeto discursivo desse estudo levantamos os seguintes questionamentos:
Entender como se deu a construção imagética do milagreiro Zé Menino? Qual a sua
relação com o conceito de sertão, partindo do lugar sagrado e da oralidade? Como a
religiosidade não-oficial se articula entre a morte trágica e a fé para constituir um
milagreiro e seu espaço de culto?
Inicialmente, propomos que Zé Menino é um milagreiro cultuado no sertão do
Seridó, e que seu culto ocorre em um lugar especifico que é o Sitio Riachão, zona rural
do município de Jucurutu. E que esse culto acontece por meio de uma religiosidade não-
oficial que tem como base o Catolicismo, surgindo da morte trágica de um sujeito que
comoveu todo um grupo de pessoas e que constituiu ao longo do tempo um espaço para
seu culto.
Nessa perspectiva, analisamos as fontes que tínhamos disponíveis, sendo elas as
fontes orais coletadas através de conversas informais nas sondagens iniciais e
entrevistas realizadas principalmente no local de culto ao milagreiro e no dia da
peregrinação anual, tendo em vista que a concentração de devotos é incomparavelmente
maior que no restante do ano.
Aplicamos a metodologia da História Oral na coleta e análise das entrevistas,
lembrando a afirmativa de Thompson, de que a História Oral possibilita o acesso
memória coletiva:

A história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória


nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de
pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial,
como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um
pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos
(THOMPSON, 1992, p. 17).

Nesse caso a História Oral faz referência a memória da comunidade que


estudamos, além do espaço físico e ex-votos, as marcas memoriais estão presentes nas
narrativas desse grupo, e se estendem com o passar dos anos, embora as novas gerações
da comunidade não tenham presenciado a morte de Zé Menino, participam das ações em
torno de sua história como se fizessem também parte, temos uma memória individual
que tornou-se coletiva.
19

Segundo a historiadora Verena Alberti, com a História Oral podemos ter acesso
às histórias dentro da História, nesse sentido esta metodologia, possibilita a
compreensão de determinados acontecimentos históricos, sendo eles recentes ou não,
nos casos recentes temos o testemunho de pessoas que vivenciaram o fato histórico, e
em fatos de temporalidades mais recuadas, temos a transmissão oral que perpassa
gerações, nesse sentido, os narradores que não presenciaram determinados fatos,
relatam com a mesma propriedade de quem vivenciou.

Um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica,...) que


privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma
de se aproximar do objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos
históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos,
etc. (ALBERTI, 1989, p. 52).

Nesse sentido, delimitamos uma colônia de narradores composta por


aproximadamente 10 (dez) narradores e narradoras que são devotos e devotas de Zé
Menino e participam do seu culto. A maior parte das entrevistas foi realizada no dia 19
de março de 2019, durante a peregrinação, e o restante em visita às casas de moradores
da comunidade, sempre sendo recepcionados com muita generosidade, guloseimas e
café. Após as coletas, procedemos na transcrição e análise das fontes.
Também realizamos a investigação do local, uma observação etnográfica, e
utilizamos uma ferramenta mais comum na antropologia que é o caderno de campo, que
serve como depositário da memória da pesquisa, nele podemos formular hipóteses,
anotar diálogos importantes que no momento da visita in loco não seriam possíveis ser
captados em gravação, ajuda perceber as lacunas existentes, e serve também como um
motivador e receptor de ideias que surgem no momento da pesquisa, no mais, o caderno
de campo, serviu para assinalarmos pontos importantes que eram observados no
comportamento dos devotos, além da própria capela e cruzeiro como indícios materiais
e marcas de uma religiosidade que ganhou forma em tijolos e cal.
Nas narrativas coletadas, identificamos por parte dos devotos, o sentimento de
justificação em relação ao milagreiro. A comoção inicial da morte trágica do rapaz
trabalhador e ao mesmo tempo inocente, perpassada até as gerações atuais, gera a
necessidade de uma reparação social e de uma intervenção e ação divina e ao mesmo
tempo o milagreiro surge como representante desse grupo e como conhecedor das
injustiças e agruras que são sentidas e vivenciadas pelo coletivo.
20

Nosso contato inicial foi com a oralidade, entretanto na busca por entender
melhor como se deu a história e como se estendeu até os dias atuais, buscamos outras
fontes. Procuramos fontes paroquiais já que a capela também está inserida no grupo de
espaços religiosos oficiais7 e que mobiliza uma grande quantidade de pessoas em seu
entorno e que esse número de pessoas promove uma espécie de festividade com
comércio de comidas e afins. Procuramos nos livros de Tombo da paróquia, afim de
encontrar alguma referência a essa capela, ou a mobilização das pessoas em torno dela,
porém não encontramos nenhuma informação sobre capela, e a nenhum outro espaço
não-oficial, vale salientar que o silêncio das fontes também fala, nesse caso, fala de um
apagamento sistemático desse culto.
Ainda procuramos por fontes hemerográficas, pesquisamos em jornais estaduais
e regionais alguma informação sobre o crime, ou sobre a movimentação em torno da
capela, mas durante as primeiras buscas não conseguimos localizar nenhuma
reportagem, questionamos muito esse fato, mas seguimos com a pesquisa, nos últimos
meses de escrita conseguimos com a ajuda do historiador Nanael Simão localizar uma
pequena citação no jornal A Ordem que deu nomes aos assassinos e data para o crime.
Nossa empreitada em busca de fontes chegou até as fontes judiciais, também se
estendeu aos fundos da Comarca de Caicó, custodiados pelo Laboratório de
Documentação Histórica do CERES – LABORDOC, procuramos os processos
referentes a São Miguel de Jucurutu. No período informado por um de nossos
entrevistados como sendo a data do crime, a Vila, pertencia judicialmente a Caicó. Ao
analisarmos os catálogos contendo os processos crimes da época, não encontramos
nenhum processo crime ou nenhuma outra peça judicial ou policial que tratasse deste
fato, embora o acontecimento tenha se dado, justamente no final da Primeira República,
com o coronelismo ainda vigente, pensamos na possibilidade que o caso tenha sido
abafado pelas autoridades policiais tendo em vista o poder aquisitivo e a influência de
José Lourenço o proprietário da fazenda Barra do Olho D’água e o lugar social do José
Serafim Batista, um simples empregado da referida fazenda, porém essa especulação
caiu por terra com a descoberta da reportagem do jornal A Ordem, que diz que as
7
A capela de Zé Menino, é entendida pela Paróquia de São Sebastião de Jucurutu-RN, como uma capela
privada. sendo assim para a Igreja a capela é votiva a São José, cuja escultura permanece no altar central.
Entretanto há uma resistência por parte do clero quanto às celebrações no local. A paróquia se ampara no
Diretório de Pastoral da Diocese de Caicó – documento oficial expedido pela Cúria Diocesana de Caicó
que regulamenta, por exemplo, as ações da diocese em relação à aplicação dos sacramentos. Embora esse
documento não ofereça uma normativa específica sobre a realização de missas em capelas privadas,
orienta apenas que a celebração eucarística seja feita em “lugar sagrado” (igrejas ou oratórios) ou “lugar
decente” (art. 86, parágrafo 1)
21

diligencias policiais foram tomadas, o que pode ter acontecido, é a discordância sobre o
verdadeiro nome de Zé Menino, se José Batista Serafim como dizem a oralidade e as
iniciais do cruzeiro, ou José Serafim Filho como diz a reportagem. Infelizmente com
essa descoberta recente não conseguimos avançar nesse sentido, essa lacuna poderá ser
pesquisada mais adiante. Outros problemas fizeram com essa questão não fosse sanada,
como a falta de acesso a documentação da paroquia de Campo Grande, de onde Zé
Menino era natural, segundo as informações das fontes.
Para tratarmos da questão do espaço, onde o culto ao milagreiro acontece,
tomamos por base a explicação de Yi Fu Tuan, sobre como os homens atribuem
subjetividade aos espaços (TUAN, 1983), esses sujeitos entendem o lugar como sagrado
e assim o fazem, constituem o espaço enquanto uma narrativa que supera a
homogeneidade espacial, aquele lugar passa a ser apontado como um espaço divergente
ou no mínimo como um espaço onde devem repousar os signos dessa religiosidade não-
oficial.
A geógrafa cultural Zeny Rosendahl, assinala, no livro Espaço e Religião –
Uma abordagem geográfica - o espaço sagrado como um “campo de forças e valores
que eleva o homem religioso acima de si mesmo” (ROSENDAHL, 1996, p. 30).
Rosendahl, ainda coloca o lugar sagrado como centro das peregrinações, destino para
onde os devotos se dirigem, esse movimento é observável na nossa pesquisa, os devotos
se dirigem ao local das peregrinações, a capela e o cruzeiro de Zé Menino como
demonstração pública da fé e também como forma de depositar os ex-votos ou renovar
as promessas. Entendemos esse espaço sagrado como uma construção, nesse caso uma
construção ritualística do homem religioso que surge do desejo desse sujeito de viver
nesse espaço (ELIADE, 1992, p. 20).
No primeiro capítulo, fazemos uma revisão historiográfica sobre os sertões ao
passo que desenvolvemos e discutimos o conceito empregado na nossa pesquisa.
Realizamos um percurso desde a grafia da palavra sertão e dos vários sentidos que
foram empregados na palavra ao longo da história, em seguida fazemos uma exposição
do macro para o micro, trabalhamos o conceito de sertão discutido na historiografia
brasileira, depois vemos o sertão como elemento criador de uma identidade nacional,
em seguida regionalmente, com relação ao nordeste, e nesse ponto vale salientar a
proximidade e a relação visceral na formação do termo e ideia de Nordeste com o
conceito de sertão.
22

O debate se afunila e chega até o estado do Rio Grande do Norte, onde vemos
que no início da colonização o termo sertão era usado em grande medida para qualificar
os espaços além do litoral. Chegamos à microrregião do Seridó Potiguar e depois ao
município de Jucurutu onde nos apoiamos na historiografia local e em escritos de poetas
da cidade para perceber como o município é entendido por parte de seus habitantes
como um sertão, em seguida descrevemos a comunidade rural que analisamos como
delimitação espacial para esta pesquisa.
Analisamos nesse capítulo, fontes literárias, os poemas e versos escritos por
poetas e cordelistas da cidade, como afirma Antônio Celso Ferreira, a fonte literária
possibilita o acesso a “experiências subjetivas dos homens e mulheres no tempo”
(FERREIRA, 2015, p. 61). A metodologia que buscamos aplicar nessa análise, se dá
pela junção de uma análise textual e contextual, com Ferreira afirma ao tratar do que
chama de “a fonte fecunda”: “texto e contexto não configuram polos incomunicáveis, ao
contrário, é possível ler as marcas da sociedade e da cultura no interior dos escritos, e de
outro lado, compreender o significado deles na sociedade.” (FERREIRA, 2015, p. 82).
Assim contextualizamos o espaço que discutimos afim de no capítulo seguinte
aprofundarmos nossa análise sobre aspectos mais particulares e que superam os
aspectos de sertão que apareciam na historiografia mais tradicional.
No segundo capítulo, examinamos o sertão sob a ótica da religiosidade, e
fazemos o mesmo trajeto de afunilamento da nossa análise, dessa vez com vistas à
religiosidade, nesse capítulo evidenciamos como a cultura do lugar foi moldada a partir
da colonização católica e como a presença de figuras mobilizadoras de massas como
padres e beatos foram importantes na construção imagética desses sertões religiosos.
Voltamos nossa abordagem para o conceito de catolicismo não-oficial trabalhado pelo
professor Lourival Andrade Junior, que contempla melhor o nosso debate, que os
conceitos usados anteriormente como os de catolicismo rústico e catolicismo popular.
Tratamos dos aspectos religiosos por terem relação como o nosso tema e justamente
esse capítulo serve de base para entendermos no terceiro capítulo como essas
construções resultam no culto a Zé Menino.
No terceiro capítulo, apresentamos os fatos que cercam a história de Zé Menino,
as narrativas em torno de sua morte e sublimação e como seu culto perpassou gerações
chegando até os dias atuais. Direcionamos nossa escrita com o intuito de expor as
análises das entrevistas que realizamos e quais os resultados obtivemos através delas,
esta é a seção que explica a devoção em torno da figura de Zé Menino. Neste capítulo
23

ainda fazemos uma prospecção no sentido de entender se este culto está em declínio e
como entendemos esse fenômeno.
Por fim, após o terceiro capítulo trazemos as considerações finais desse trabalho,
ponderamos sobre as análises que obtivemos e sobre os resultados que alcançamos.
Evidenciamos ainda a relevância desse estudo, a partir do milagreiro Zé Menino, para a
pesquisa histórica e suas ramificações para outras investigações nas áreas do domínio
temático da História dos Sertões e das Religiosidades. Nesse sentido, almejamos
direcionar olhares para outras leituras até então invisibilizadas a respeito dos sertões,
somando esta produção com os estudos sobre as religiosidades não-oficiais no campo da
história.
24

CAPÍTULO 1

VEREDAS SERTANEJAS

1.1 DOS SERTÕES

“Adoro beber das águas que correm neste sertão”


(José Bertôldo)

A tarefa de entender e pensar os sertões, ao passo que é desafiadora é também


um exercício de reflexão sobre as noções já existentes. Desta forma, ao escrevermos
essas linhas, compomos um apanhado de outros sujeitos que de múltiplas formas
pensaram e escreveram sobre o que buscamos delimitar como sertão.
Usamos a figura de uma estrada para ilustrar esse dilema, digamos que ao
andarmos por uma estrada já feita, vamos nós também abrindo caminhos por outras
direções. Embora pareça simples percorrer uma estrada onde muitas pessoas já
passaram e os caminhos já estão delimitados, na escrita da História não é tão simples
assim, caminhar por onde outras pessoas já caminharam, exige de nós historiadores e
historiadoras, o cuidado de passar pelas vias que concordamos, ao tempo que
obviamente nos afastamos do que não concordamos.
A estrada que percorreremos aqui, já foi muito explorada, muitas bifurcações
foram feitas, clareiras abertas e terrenos aplanados. Os conceitos são palavras cujos
significados são construídos conforme os entendimentos de cada época e o seu processo
de fabricação dura longos anos, assim como com outros conceitos, esses mesmos
processos ocorreram com o conceito de sertões, a partir de agora vemos de forma
abreviada, como se desenvolveu até chegar ao que entendemos hoje.
O percurso que propomos aqui é resultante da análise sobre a história de Zé
Menino milagreiro, que tem seu espaço de devoção em uma comunidade rural, no
município de Jucurutu-RN, para isso, neste capítulo vemos como o conceito de sertões
foi construído. Por exemplo, é consenso entre os historiadores e pesquisadores o que
nos mostra Gilberto Mendonça Teles:

A palavra sertão tem servido, em Portugal e no Brasil, para designar o


“incerto”, o “desconhecido”, o “longínquo”, o “interior”, o “inculto” (terras
não cultivadas e de gente grosseira), numa perspectiva de oposição ao ponto
25

de vista do observador, que se vê sempre no “certo”, no “conhecido”, no


“próximo”, no “litoral”, no “culto”, isto é, num lugar privilegiado — na
“civilização” (TELES, 2009. p.72).
Como aponta Teles (2009), o lugar de observação e de dar nome ao novo, ao
outro, foi o ponto que levou a instalação do conceito de sertões e que permaneceu
durante muito tempo, contudo o que propomos no nosso trabalho é a observação interna
de como se estabelece o que se entende por sertão.
Perceber a construção da palavra é importante, pois nos faz entender como se
pensava sobre ela. Antes mesmo da palavra portuguesa “desertão”, de onde se extrairia
sertão, já havia significação africana, de onde viria à concepção da palavra sertão, tendo
como significado “lugar entre terras, interior, sítio longe do mar, mato distante da costa”
(NEVES, 2003, p. 154)
Pero Vaz de Caminha em 1500, registrou pela primeira vez a palavra sertão,
durante a invasão portuguesa (TELES, 2009, p. 74). Com a transformação linguística,
junto com a fonética e a grafia os sentidos da palavra também mudaram. Porém o
sentido que se generalizou entre os viajantes do século XVI é o da oposição ao litoral, o
que era distante da costa, o que estaria longe do lugar de onde se fala (TELES, 2009, p.
74). Para Janaina Amado “o sertão foi construído a partir do litoral” (AMADO, 1995,
p.150).
Essa designação do que está oposto, do que está distante, coloca a categoria
“sertão” em oposição ao observador, assim apresenta-se como um “signo de nossa
relação com o colonizador” (ERTZOGUE, et al. 2018, p. 46). Nesse sentido o novo ao
ser nomeado, passa pela ótica do observador no caso o colonizador, nesse ato de
nomear, a perspectiva do colonizado, o observado não é levado em consideração. Pode-
se também perceber o teor pejorativo do termo, já que as regiões que recebiam essa
alcunha eram as “inóspitas, o lugar onde não se queria estar” (ERTZOGUE, et al. 2018,
p. 46).
Assim o sertão era compreendido da forma mais pejorativa possível, tudo que se
relacionava a ele era desqualificado, fosse a terra ou a humanidade (OLIVEIRA, 2002,
p, 512). Era o antissocial, o que ia de contrário a todo o desenvolvimento, ou a toda
civilidade.

O sertão era percebido como território da barbárie, tal como o conceberam,


na primeira metade do século, a elite imperial e o olhar estrangeiro,
marcadamente ilustrado. A ideia de sertão sintetizava a representação do
26

outro indesejado e distante, símbolo daquilo que não se poderia conceber


como nacional (OLIVEIRA, 2002, p. 513)

Com o passar do tempo, e as novas ressignificações do termo, começa a ser


percebido como explica Custódia Selma Sena, que sertão no pensamento social, não é
mais representado apenas de modo negativo. “Ele agora é representado, ao mesmo
tempo, como atrasado e como possuidor de uma brasilidade particular” (SENA, 2010, p.
111).
Assim o sertão também seria representado como um “espaço vazio, o lugar
deserto a ser conquistado” essa era a concepção de muitos dos intelectuais, sobretudo da
primeira metade do século XX (ERTZOGUE, et al. 2018, p. 51). Nesse sentido o sertão
não se configuraria como “um lugar em si, mas uma condição atribuída a lugares
diferenciados” a exemplo do que explica o geógrafo Antônio Carlos Robert Moraes.

O sertão não se configura em lugar, mas uma condição atribuída a lugares


diferenciados: Trata-se de um símbolo imposto, em certos contextos
históricos, a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como
um qualificativo local básico no processo de sua valoração (MORAES. apud
ERTZOGUE, et al. 2018. p. 52)

Segundo Olivia Morais de Medeiros Neta, “o espaço sertão é uma representação


cultural, resultado das ações dos homens. As formas assumidas por estas, espalham-se
pela sociedade” (MEDEIROS NETA, 2007, p. 58), produzindo segundo a historiadora
um conjunto de discursos a respeito deste espaço.
Nesse sentido o sertão aparenta conter um tempo próprio, um tempo que insiste
em contrariar a ordem natural, é como se as características que lhe foram impostas
moldassem esse tempo, como afirma Eduardo Vieira Martins, “O sertão surge, assim,
como um espaço ausente, perdido no passado” (MARTINS, 1997, p. 33).
Ou como afirma Durval Muniz de Albuquerque Junior no livro A Feira dos
Mitos – a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 -1950) onde faz
uma análise das “motivações históricas que levaram a se construir uma dada forma de
ver e dizer o regional que o confina a um dado tempo histórico, aquele que prevaleceu
uma sociedade rural, agrária assentada em relações sociais hierárquicas e estamentais”.
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2013, p. 20).
É como se o tempo estivesse estagnado, e o sertão fosse o lugar do homem que
lida com os animais, que ara a terra. É o sertão que figura entre o gado e o vaqueiro,
27

dando a ideia de que no sertão o homem sertanejo vive em comunhão com a natureza
(MARTINS, 1997, p. 33). Entretanto uma natureza adversa, que produziu o homem
forte característico do sertão, “o sertão é um deserto que demanda travessia; a
inclemência do Sol e a aridez podem matar homens e animais” (SENA, 2011, p. 107). O
sertanejo corre risco de vida quando falta chuva, vive sob insegurança alimentar, além
dos flagelos naturais também tem que enfrentar a pobreza, e a dureza dos coronéis.
Nessa relação entre natureza, homem e discurso, trazemos a verificação feita
por Muirakytan K. de Macêdo, quando analisou o cenário político do Seridó Potiguar
(século XIX)8 e percebeu nas campanhas eleitorais do período, uma tentativa de criação
de um tipo sertanejo, uma formulação do que seria o homem sertanejo, a partir das
repostas dadas pela elite seridoense, para enfrentar os adversários políticos.

Elaborando a imagem do quase ígneo homem sertanejo, do guerreiro


corajoso, num evidente caso de manipulação dos bens simbólicos da
sociedade interiorana. Daí a representação que fizeram de si – elite e eleitores
- selecionando elementos que encontravam dispersos no imaginário social,
conclamando a todos os sertanejos reunirem-se em torno de uma imagem
identitária, no qual se valoraram determinadas características de seu caráter
(MACÊDO, 2012, p. 138)

Com esse discurso elaborou-se a ideia do homem sertanejo “energético e firme”


moldado pelo meio, como ainda afirma Macêdo, “a indigência da natureza esculpia
homens da semelhança de pedras sem porosidades” (MACÊDO, 2012, p. 140).
Metaforicamente comparado com a firmeza das rochas, o homem sertanejo também
carregava a alcunha de ter forte de igual modo a firmeza na sua palavra, “palavra de
homem”, somado a isso também vemos o apego aos costumes e também a “honra que
pode ser ritualizada com a morte” (MACÊDO, 2012, p. 140).
Esses elementos são velhos conhecidos nossos, estão presentes nas nossas
memórias, fazem parte do que fomos ensinados a pensar que era o sertão: o fazendeiro,
os vaqueiros e os capangas são o que poderíamos chamar de tipos sertanejos.
Personagens que tiveram seu lugar na constituição histórica do que entendíamos por
sertão, e que ainda podem ser percebidos. São sujeitos sob os quais, como vimos, foi
atribuída uma ideia de sertão que permanece no imaginário das pessoas. Um sertão que
mesmo com o advento dos novos tempos teima em resistir como um lugar de memória.

8
Ver A Penúltima Versão do Seridó – Uma História do regionalismo seridoense, 2012.
28

E como uma sociedade que centraliza a figura masculina, como explica


Albuquerque Júnior:

Sociedade de relações sociais extremamente violentas, onde uma mitologia


do masculino, do macho, se encarnava em figuras como a do coronel, do
cangaceiro ou do jagunço. Uma sociedade sacralizada, onde a presença da
religiosidade e do misticismo dava origem a manifestações messiânicas e a
revoltas em torno de dadas crenças e figuras místicas. (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2013, p. 20)

Essa afirmativa de Albuquerque Júnior, é facilmente verificável na nossa


pesquisa, uma vez que a história de Zé Menino, é um exemplo claro, dessa sociedade
que se articula centralizando a figura do homem rígido e de palavra, que não mede
esforços para defender a sua honra. Outro aspecto identificado é a questão dos conflitos
sociais, que também soma-se aos itens que geram a ideia de sertão, como explica
Erivaldo Neves:

Por outro lado, os sertões foram cenários de conflitos sociais, impulsionados


pelas ações de bandoleiros comandados por indivíduos como Antônio Silvino
ou Virgulino Ferreira, o Lampião e; coronéis da guarda nacional, pregadores
como Antônio Conselheiro, na Bahia, e Padre Cícero Romão Batista, no
Ceará (NEVES, 2003, p. 157)

Vislumbrando assim, o sertão como “arcaico, lugar de ação do clientelismo


político, dos coronéis, do populismo, da violência” (NEVES, 2003, p. 156) no meio
desses conflitos sociais, surge o sertão como um “espaço simbólico” e que “explica a
dicotomia da sociedade brasileira” (NEVES, 2003, p. 156).
Assim também o sertão foi posto como fronteira, aquilo que está do outro lado.
O sertão é fronteira de conquista, ele assinala uma franja, o ponto de intersecção entre
dois tempos e dois mundos (Martins, 1997, p. 37). Ou ainda como nos apresenta
Custódia Selma Sena:

No pensamento social, o sertão é a fronteira por excelência e se vincula deste


modo à pátria geográfica como possibilidade de expansão da nação através
da incorporação econômica e da ocupação de terras, ou da ocupação de seus
“espaços vazios ” (SENA, 2011, p. 111).

Erivaldo Fagundes Neves, identificou, que no século XIX haviam dois sentidos
diferentes de sertão:
29

Um associado à ideia de semi-árido; outro, priorizando atividades


econômicas e padrões de sociabilidade, articulado à pecuária”. Dentre muitos
exemplos da primeira ideia, uma síntese descritiva do pensamento social
brasileiro caracteriza o sertão como “lugar de reprodução de uma ordem
social específica”, somente entendido “enquanto habitat social”, na relação
estreita entre natureza e sociedade”. E suas “condições históricas seriam
pensadas como determinações que fazem obrigatória a descrição do sertão-
geografia indissociada daquela do sertão-sociedade” (NEVES, 2003, p. 156).

Para Neves, “O sentido de sertão se expressaria na dupla ideia “espacial de


interior” (NEVES, 2003, p. 156) e “social de deserto, região pouco povoada” não se
prendendo a uma “delimitação espacial precisa”. E que as noções de sertão que criam
um imaginário sertanejo, concebidas por viajantes, missionários e cronistas colocam o
sertão em oposição à ideia de “região colonial” (NEVES, 2003, p. 156).
A fronteira entre o moderno e o arcaico, entre a cidade e a roça, o lugar onde os
homens são resistentes e fortes, porque o espaço em que habitam lhes induz a isso.
“Num ambiente agressivo, plantas, animais e homens precisam ser fortes para
sobreviver” (MARTINS, 1997, p, 43). Entre os vários significados atribuídos a palavra
sertão, está como denominador comum “a ideia de distância em relação ao poder
público e a projetos modernizadores” (NEVES, 2003, p. 156)
Câmara Cascudo, definia o sertão como o lugar das mortes sem história, no
trabalho Geografia do Brasil Holandês de 1956, tratando do imaginário sobre o sertão
nas terras portuguesas da América (BONATO, 2014, p. 33). Ainda para Cascudo, o
território em torno dos fortes, além de limitar os holandeses estrangeiros, também os
intimidava. Essa percepção de sertão trazida às luzes por Câmara Cascudo, expõe uma
ideia de sertão que segundo Thiago Bonato, permaneceu até a metade do século XX e
ainda permanece viva no imaginário em torno da região (BONATO, 2014, p. 33).
Segundo Bonato, além de ser uma das categorias mais utilizadas por autores que
tratam da História do Brasil. A partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, em 1838, o sertão foi invocado em todas as tentativas de se apresentar o
Brasil enquanto nação (BONATO, 2014, p. 52).
Para Pimentel, o marco inicial para a ressignificação do sertão seria a
publicação da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, em 1902. Desde então, “muitos
foram os pensadores brasileiros ou movimentos culturais que procuravam expressar sua
compreensão sobre a “natureza” do sertão” (PIMENTEL, 2011, p. 45) Vale salientar
que, como explica Thiago Bonato, história e literatura formam uma região fronteiriça ao
30

abordarem a questão sertão, dividindo de longas datas a narrativa, o contar e o descrever


(BONATO, 2014, p. 62).
Na busca por entender os sertões Custódia Sena, afirma que:

O sertão nunca pôde ser cartografado, creio que por duas razões: a primeira,
pelo fato de que, no imaginário nacional, o sertão é móvel e fluido, ora
coincidindo com algumas regiões ora com outras. Nessa cartografia
imaginária, alguns espaços são definidos como a origem ou o centro da
nação. (SENA, 2011, p. 106)

Essa divisão do que é sertão no Brasil, segundo Sena, não tem necessariamente
nada a ver com uma divisão geográfica, e sim com a construção de um “outro possível”
(SENA, 2011, p. 102). Entra em cena o mito do sertão, o sertão subjetivo, de uma
configuração cultural brasileira, como um lugar sem regras, o sertão do mito é mantido,
como já vimos anteriormente, “num tempo congelado como se a dinâmica histórica não
fosse capaz de altera-lo” o lugar das superstições religiosas (SENA, 2011, p. 102).
Permeia no imaginário nacional a noção de que o espaço que abriga o sertão é
um lugar de encantamento, onde vivem as entidades sobrenaturais como a caipora, o
saci, o lobisomem, a mula sem cabeça, as almas dos vaqueiros. “Lugar de almas
penadas que vagueiam e de santos que fogem das igrejas” (SENA, 2011, p. 110).
Interessante pensar na expressão usada por Sena, quando se refere a santos que fogem
das igrejas, no sentido de não estarem nos altares oficiais das igrejas, mas sim, nos
altares do povo.

No imaginário nacional, o sertão também é uma forma de organização social


e de cultura: a sociedade tradicional sertaneja, organizada em torno das
atividades de plantio e lida com o gado, em que a vida social é orientada
pelas relações pessoais de compadrio, de favor, de proteção e de patronagem;
cenário da violência dos coronéis e dos jagunços, dos movimentos
messiânicos e milenaristas, das romarias e das festas populares e folclóricas
(SENA, 2011, p. 111).

Pensar nos sertões como essa organização social e cultural em torno dos
agentes de uma sociedade sertaneja, que tem como centro os coronéis que comandam a
vida e o trabalho nesses sertões, e que a partir dessa configuração de sociedade, surgem
e são nutridos movimentos messiânicos e milenaristas, que através da fé das pessoas se
estabeleceram e se tornaram identitários da região.
Desta forma, alguns problemas que estiveram na construção histórica desse
espaço/conceito ainda hoje são percebidos. “O sertão que já havia servido de símbolo
31

das desigualdades e das injustiças sociais do país, (...) com seu cortejo de misérias, seca,
fome, cangaço, coronelismo e fanatismo religioso” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009,
p. 197). É a fronteira entre o ser e o estar, o ser sertanejo e estar no sertão, entender essa
fronteira sem reforçar os estereótipos criados historicamente, é o que propomos aqui.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, discutiu a cultura nordestina como uma
construção histórica, fruto do discurso em torno dos flagelos que acometeram a região.
Há também de se ponderar sobre o sertão sensível, Albuquerque Júnior ao
afirmar que “O sertão se sente, é dentro da gente. Mais do que um espaço demarcado,
mais do que um mapa, é uma emoção, uma memória, uma cartografia sentimental”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 198). Além dos discursos formados em torno da
problemática das secas, e de como esses discursos penetraram no imaginário nacional, a
também que se levar em consideração, as experiências dos sujeitos que se intitulam
sertanejos, ou filhos do sertão, para além do discurso dos flagelos, da seca, da fome e da
miséria, há um sentimento de pertencimento ao lugar, de ligação com as chuvas, de
ligação com a natureza. Para Erivaldo Fagundes Neves, a ideia de sertão pode ser
entendida como um conceito misto que abarca os sentidos espaciais, econômicos e
sociais.
Vimos ao longo do tempo, nas representações de Nordeste e sertão vão deixando
de ser apenas naturais e geográficas e tomam a dimensão histórica moldada pelo homem
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Nessas representações vemos os símbolos
sertanejos que compõem o imaginário social, com a questão do banditismo e dos
cangaceiros, dos coronais, dos fanáticos e das lutas coletivas. É aqui que
contextualizamos a história de Zé Menino, os elementos que compõem as narrativas
sobre o caso, são em grande medida, parte dessas representações construídas, temos o
vaqueiro, o fazendeiro, os trabalhos braçais e com o gado que caracterizam o homem
sertanejo, as características do espaço, quem ouve as narrativas, mesmo que não saiba
de qual lugar se trata, percebe facilmente que é um espaço sertanejo.

1.2 DOS SERTÕES POTIGUARES, SERIDOENSES E JUCURUTUENSES

O Rio Grande do Norte, tem na sua composição geográfica, as características


que durante muito tempo definiam o que seriam terras sertanejas ou não, como já
vimos, uma das designações para sertão é a oposição ao litoral, e o estado tem uma
32

grande extensão litorânea e assim as terras que estão no interior foram caracterizadas
como sertanejas, no sentido de oposição ao litoral ou de fronteira com o litoral.
Entretanto as denotações culturais sobre os sertões mostram outros aspectos, se em
algum momento da história brasileira e potiguar, todas a terras do interior fossem tidas
por sertão, talvez esse entendimento tenha mudado, devido a ideia cultural de sertão que
se formulou como base identitária para o Brasil (AMADO, 1995) na formação do
conceito de nação
Segundo a historiadora Denise Matos Monteiro, a ocupação do interior do
Nordeste começa ainda no século XVI, entretanto só é consolidada no século seguinte
com a expulsão dos holandeses, deste modo à colonização portuguesa se expande do
litoral adentrando as terras do interior (MONTEIRO, 2000, p. 93). Esse processo na
capitania do Rio Grande ganha força e se estabelece em 1680 “quando oficiais de
ordenanças começam a ser encaminhados para frentes de conquistas” (TRINDADE,
2010) é nesse momento que algumas ribeiras da região começam a ser invadidas a
exemplo da região do rio Piranhas-açu, dando assim seguimento a um dos trechos mais
sangrentos da história do Rio grande do Norte.
Muirakytan Macêdo referiu-se a esse momento como uma “epopeia sertaneja”,
para Macêdo, a conquista do sertão não foi pacífica “vendo invadido seu território, os
índios se levantaram, com a mais legítima determinação guerreira, contra os primeiros
assentamentos de fazendas no interior na Capitania do Rio Grande” (MACÊDO, 2012,
p. 138) usamos esse fragmento para reforçar as narrativas sobre o massacre indígena no
que hoje é o Seridó e como mesmo afirma Macêdo, é “uma parte da história que até
hoje reclama atenção por parte dos historiadores” (MACÊDO, 2012, p. 138).
Quando as tropas colonizadoras, fixadas nessas ribeiras, travaram um impetuoso
massacre contra os indígenas que habitavam a região desde períodos remotos, nesse
cenário encontramos figuras como Domingos Jorge Velho que “no caminho para
destruir Palmares, travou com os índios do sertão norte-rio-grandense algumas das mais
renhidas batalhas da história brasileira” (TRINDADE, 2010).
É nesse contexto de invasão e massacre indígena, para expansão da pecuária e da
fé católica, que está à base da história do Rio Grande do Norte e da maioria das cidades
que compõem o estado. Nesse contexto são criadas as freguesias, segundo Denise
Monteiro, nas áreas aonde a população vivia dispersa em diferentes fazendas
(MONTEIRO, 2000).
33

Essa questão da expansão católica sertões nos potiguares à dentro, pode ser
observada na arte de Nanael Simão artista e historiador, quando representa por meio do
óleo sobre a tela, o que seria o início da devoção católica nas terras que hoje
entendemos por jucurutuenses e seridoenses. Na imagem vemos ao centro, um oratório
que contém a imagem de São Miguel Arcanjo, que está sobre um móvel com a inscrição
“São Miguel de Jucurutu” diante do oratório estão ajoelhados, respectivamente a figura
de um padre colonizador e de um índio.
Observamos que o padre conduzia um livro – possivelmente um catecismo – e
uma cruz, a figura religiosa tem o olhar fixado na figura do índio, que por sua vez olha
fixamente para a imagem do santo católico ao passo que abandona no chão os seus
instrumentos de guerra. É interessante observar que o quadro pintado por Nanael Simão,
ao ser exposto na casa paroquial, ganha o lugar de narrativa oficial.

Imagem 01

.
Quadro São Miguel de Jucurutu – 2006. Nanael Simão 9

Jucurutu é um município brasileiro, distante 233 km da capital potiguar. Tem


uma extensão territorial de 933,7 km², por possui essa vasta extensão territorial se

9
Quadro de Nanael Simão, óleo sobre tela, de 2006. O quadro pertence à paroquia de São Sebastião de
Jucurutu e fica exposto na casa paroquial.
34

divide em uma quantidade considerável de sítios e comunidades rurais. Segundo o


último censo do IBGE o município contava com aproximadamente 18. 295 habitantes10.
Existe uma divergência quanto ao pertencimento da cidade às microrregiões que
compõem o estado do Rio Grande do Norte. Algumas vezes a cidade é associada à
microrregião do Vale do Assú, isso por que é a única cidade do Seridó que está inserida
na mesorregião do oeste potiguar, gerando assim essa confusão, acerca do seu
pertencimento11. A regionalização proposta pelo Governo do Estado e pelo IDEMA12
aloca Jucurutu entre as cidades ditas seridoenses. Aqui utilizaremos a noção do Seridó
historicamente constituído, proposto pela professora Ione Rodrigues Diniz Morais
(MACEDO, 2013), que trata dos municípios que se desmembraram de Caicó, principal
cidade do Seridó (MACEDO, 2013).

Imagem 02:

Mapa RN – Região do Seridó OPENBRASIL.ORG

Nas primícias da cidade, assim como a maioria das cidades brasileiras, Jucurutu,
teve seu início na relação entre a pecuária e a fé do Catolicismo Romano. A cidade se
desenvolveu a partir da construção de uma capela votiva a São Sebastião. (ARAÚJO,
2012).

10
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
11
OpemBrasil.org
12
Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente – Rio Grande do Norte.
35

Devido suas potencialidades naturais, o que hoje se entende por Jucurutu, foi
reduto indígena, antes da colonização portuguesa (ARAÚJO, 2012). Trata-se da tribo
Jucurutu, possivelmente descendentes das tribos Canindé e Janduí (ARAÚJO, 2012). A
partir do século XVIII dá-se a colonização do interior norte-rio-grandense”
(CASCUDO, apud ARAUJO, 2012) nesse período se deu a instalação de fazendas de
pecuária no território jucurutuense. Essa efetiva ocupação se deu com o extermínio de
parte da população nativa, segundo Helder Macedo:

Lado a lado aos colonos, aos currais e ao gado, a fé e a religiosidade também


imprimiam seus sentidos nos caminhos de penetração da pastorícia no sertão,
ocupando espaços outrora apadroados pelas divindades índias e demarcando
territórios através da edificação de templos cristãos com oragos dedicados à
Virgem Maria ou a santos do panteão católico romano (MEDEIROS, 2013).

É interessante ressaltar essa trajetória histórica da formação da cidade, partindo


das fazendas e da fé católica, uma vez que, são essas as bases para a história que
contamos aqui, fazendas de gado, vaqueiros, fé e orações formam o cenário no qual se
desenvolveu a história de José Menino.
Para entender como a cidade de Jucurutu é percebida como sertaneja ou como
parte de um sertão, já que estamos definindo aqui uma espacialidade sertaneja,
acessamos os discursos de escritores que lançam mão do conceito de sertão para
enquadrar a cidade enquanto um território que tem marcas do imaginário sertanejo e
paisagens geográficas associadas à ideia de sertão.
Fizemos uma sondagem entre memorialistas, poetas e cordelistas para garimpar
nos seus escritos, fragmentos que abordem a temática do sertão relacionado com a ideia
de ser Jucurutu uma cidade sertaneja, o objetivo foi identificar como os espaços que
estamos discutindo são associados ao conceito de sertão.
Poetas e cordelistas já descreveram Jucurutu como sendo um sertão, o lugar
onde vivem ou viveram é assim percebido, nesses fragmentos é possível vermos os
estereótipos comuns à assimilação do lugar com o imaginário constituído em torno dos
sertões. Esses escritos passam pelo crivo dos escritores e escritoras, que pensaram a
cidade como integrante de um sertão.
Vemos o sertão geográfico e o sertão imaginado descrito, por exemplo, no
poema “Jucurutuense como vocês são” de Augusto Diniz:

Nasci em Jucurutu
36

No coração do Sertão
Tenho o meu belo lugar
Dentro de meu coração,
Pois nessa terra tão forte
Eu tive a bendita sorte
De ver a luz, meu patrão.

Terra que me viu nascer


Debaixo do céu azul,
Por onde andar eu direi
Que amo Jucurutu,
O meu verdadeiro pó
Que fica entre o Seridó
E o Vale do Açu.

Sou grato por aqui viver


Nesse pedaço de chão,
Perto do rio Piranhas
Bem no meio do Sertão...
Eu digo sem desatino
Que também sou nordestino
Do jeito que vocês são.

Sou nordestino e não nego


Falo com convicção,
Moro em Jucurutu,
Terra da minha paixão...
O lugar do meu desejo
Porque sou um sertanejo
Do jeito que vocês são.13

Dentro da nossa busca por poetas que tragam Jucurutu como um sertão,
encontramos o “fazedor de versos”14 Augusto Diniz, que ao escrever sobre Jucurutu na
poesia “Jucurutuense como vocês são” insere o município no que entende como coração
do sertão. A qual sertão ele está se referindo? Qual centro geográfico seria esse, a ponto
de ser considerado coração do sertão? Onde estaria localizado esse coração do sertão?
Na segunda estrofe o leitor é informado da localização do que o autor entende por
coração do sertão, trata-se da terra que fica entre o Seridó e o Vale do Assú. Mais a
frente o poeta diz que o seu lugar é o meio do sertão, e ainda completa dizendo que é
nordestino, temos assim uma visão mais ampla desse lugar, agora sabemos que é
nordestino e sertanejo.
Somos inverno abundante
E rios de correnteza,
Somos o Sertão molhado
Pelas mãos da Natureza...

13
Poema de Augusto Diniz, intitulado “Jucurutuense como vocês são.” – acervo particular do autor.
14
Augusto Diniz, professor da rede estadual de ensino é formado em geografia. Durante nosso contato
para coleta das poesias – via WathsApp - ao ser questionado em qual categoria se encaixava, se era poeta
ou cordelista, Augusto responde que “Nem um, nem outro. Mas sim um fazedor de versos. Porque não
vivo de poesia, profissionalmente falando. Mas admiro demais o cordel, os meus versos são sempre em
forma de cordel, seguindo a rima e a métrica”
37

Somos o sabor do campo


Presente na sua mesa.

Somos colaboradores
Produzindo todo dia,
Pra levar pra sua mesa
A saborosa iguaria,
Produzindo o melhor queijo
Com zelo e sabedoria.

Somos o queijo aprovado


No Brasil, de norte a sul,
Entre o chão do Seridó
E o Vale do Assu,
A marca forte, nós somos
A SERTÃO JUCURUTU15.

O poeta ainda se percebe como parte dessa espacialidade ao se identificar como


sertanejo. Augusto, portanto dá outras informações sobre o seu sertão, Jucurutu é
descrito aqui como um sertão molhado, um sertão de invernos abundantes e que é
banhado como já mencionado anteriormente pelo Rio Piranhas16. Por ser um sertão
molhado, é um sertão de fartura na mesa, o poeta ainda relaciona o lugar com pecuária,
o trabalho dos agricultores e com os produtos que são derivados da lida do campo, aqui
destacamos a produção de queijo, pela qual o município se destaca historicamente como
podemos ver no livro: Sertões do Seridó de Oswaldo Lamartine, 1980 – o alto índice de
produção de derivados de leite, Jucurutu comportava um considerável rebanho bovino e
tinha elevada produção de queijos e manteigas.17
Nessa poesia especificamente, Augusto Diniz termina fazendo referência à
Sertão Jucurutu, importante empresa de laticínios que se destaca no estado, o termo
sertão Jucurutu usado para nomear a empresa, carrega aqui o intuito de caracterizar os
produtos como sendo oriundos do sertão, associando assim uma espécie de selo de
qualidade, os legítimos queijos do sertão, já que Jucurutu é uma cidade sertaneja, ou
ainda mais, como apresenta o slogan da empresa “o sabor que vem do campo” campo

15
Poema de Augusto Diniz, intitulado “Jucurutuense como vocês são.” – acervo particular do autor.
16
O Rio Piranhas ou Piranhas-açu, é um importante rio que passa pelos estados da Paraíba e do Rio
Grande do Norte, na região Nordeste do país, tem sua nascente na Serra do Bongá na cidade de Bonito da
Santa fé PB, e tem sua foz no em Macau, desembocando no Oceano Atlântico. Ao cortar o município de
Jucurutu o rio começa ainda no território da cidade, a represar as águas da – até a presente data – maior
barragem do Estado o Reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, porém estão em andamentos as obras da
barragem de Oiticicas, sendo considerada depois de finalizada o maior reservatório de aguas do RN,
assim Jucurutu contará com o final de uma barragem e o inicio de outra dentro de seu território . vale
salientar ainda que a presença do rio favoreceu o passagem de grupos indígenas nômades que habitavam
essas terras, como os Tarairíu. Para maiores informações sobre abacia do rio Piranhas ver:
http://www.aesa.pb.gov.br/ Acesso em: 15/10/2021 às 21:33
17
Para maiores informações, ver Oswaldo Lamartine, Sertões do Seridó. 1980
38

aqui pode ser entendido como já vimos na dicotomia entre cidade e campo, como o
próprio sertão.
Também destacamos aqui os escritos de José Onofre da Cruz Oliveira (1923 –
2019) conhecido como José de Bertôldo18. Podemos classificar seu José Bertôldo como
poeta e memorialista uma vez que em suas poesias vemos fragmentos da história dita
oficial do município com datas específicas por ele vivenciadas e também com a
descrição física da cidade de tempos anteriores, além de aparecerem em seus versos
nomes de personalidades como prefeitos e figuras de renome na cidade.

Na lista dos festivais


Profano e religiosos
Estão as festas juninas
Mais alegres mais gostosas

Ainda reina a alegria


Nas noites de São João
O claro das fogueiras
Nas campinas do sertão

O sertão acidentado
Das encostas e ladeiras
Das mulheres apaixonadas
Das moças namoradeiras

Preservo Jucurutu
Meu berço bendito sejas
Da lembrança da saudade
Das morenas sertanejas19

Nos poemas de José Bertôldo, Jucurutu, por vezes é encaixado nas descrições
sobre o sertão, ao falar de seu lugar de origem e da sua infância, o autor relembra um
sertão sensível, ativado em sua memória pelos cheiros, sons e sentimentos. Quando
relembra, por exemplo, o claro das fogueiras das festas de São João que aconteciam no
que ele descreve como campinas do sertão, faz também uma descrição geográfica desse
espaço “o sertão acidentado das encostas e ladeiras”, a memória afetiva é apresentada
em seus versos quando expressa a saudade das morenas sertanejas.

As paisagens do sertão
Versos feitos em 94 após a seca de 93

18
José Onofre da Cruz Oliveira, nasceu em 1923 e faleceu em dezembro de 2019. Era conhecido como
José de Bertôldo – referência a seu Pai, Bertôldo Domingues - Em seus escritos assinava como J.
Bertôldo ou Bertôldo. Os poemas escritos por ele em um caderno simples de arame, estão sobre posse da
família e algumas cópias desse caderno, estão espalhadas pela cidade em acervos particulares. Tivemos
acesso às informações sobre o poeta através de Nanael Simão e Erika Dantas, bisneta de Bertôldo.
19
Poema de José Bertôldo.
39

Quando a chuva cai na terra


Enverdece o campo vasto
Brota a erva e nasce o pasto
Cobre tabuleiro e a serra
A semente o povo enterra
Arroz milho e feijão
Sangra açude em profusão
Sai o peixe e cai na rede
As chuvas pintam de verde
As paisagens do sertão
A chuva traz água boa
Quando chega a invernada
Sapos cantam a enxurrada
No açude e na lagoa
Toda cachoeira zôa
Fazendo inundação
A cheia do ribeirão
Tora barragem e parede
As chuvas pintam de verde
As passagens do sertão20

No poema intitulado “Nas paisagens do sertão” escrito em 1994, após a seca de


1993. Bertôldo descreve um sertão que passou pelas transformações das chuvas, as
águas do inverno mudaram a paisagem e conferiram um novo aspecto à paisagem
vivenciada pelo autor. Além do relato de como a paisagem muda com a presença das
chuvas, o autor também narra as ações que os sujeitos que habitam esse sertão fazem no
inverno, como arar a terra para o plantio de sementes que serviriam de mantimento
durante todo o ano. Qual a espacialidade a qual Bertôldo se referia ao escrever sobre
esse sertão? Mais a frente o autor afirma o seu lugar enquanto sertanejo filho de
Jucurutu.

Sou do sertão potiguar


Filho de Jucurutu
Cidade a margem direita
Do Piranhas ou rio Assu
Tenho amor a minha terra
Morei no alto da serra
Apanhei muito algodão
Bebia água da fonte
Nas quebradas do sertão21

O sertão ao qual Bertôldo se refere é descrito em seus versos, ele se coloca como
pertencente ao lugar, o sertão potiguar, mais precisamente em Jucurutu, novamente
vemos o Rio Piranhas servindo como ponto de referência, outro aspecto importante que

20
Poema de José Bertôldo.
21
Poema de José Bertôldo.
40

é narrado por J. Bertôldo, foi a produção do algodão mocó, importante meio de


produção econômica para o Seridó e para o Rio Grande do Norte, a partir da segunda
metade do século XIX (TRINDADE, 2010, p. 136). Em outros versos, Bertôldo, fala do
auge do algodão até o seu declínio com o surgimento do Bicudo, que devastou a
produção algodoeira.22

Vou falar da minha terra


Minha cidade querida
No recanto do sertão
Onde passei minha vida
Como viveu Abrão
Na terra prometida

Esta terra nordestina


De um pôvo sofredor
Mas ainda otimista
Tributa ao criador
Com muita perseverança
O seu culto de amor

Do sertanejo gigante
Do trabalhador roceiro
Do bom tocador de fole
Do pescador do oleiro
Do valente que não briga
Do poeta do vaqueiro

O nordestino já vive
Acostumado a sofrer
Principalmente o roceiro
Que não tem de que viver
Fica triste quando olha
A lavoura se perder

Deus abençoi o nordeste


Toda sua região
O Rio Grande do Norte
Jucurutu meu torrão
Adoro beber das aguas
Que correm neste sertão

Meu Rio Grande do Norte


Meu Sertão meu Seridó
O nosso homem do campo
Hoje está vivendo só
Que falta deixou a ele
O teu algodão mocó23

22
Ver: Um outro Nordeste o algodão na economia do Rio Grande do Norte (1880-1915) de Denise
Monteiro Takeya ou Seridó norte-rio-grandense uma cartografia da resistência de Ione Rodrigues Diniz
Morais.
23
Poema de José Bertôdo
41

Para Bertôldo, Jucurutu é o recanto do sertão e para caracterizar esse espaço que
ele descreve em seus versos, o autor se utiliza do imaginário criado sobre o sertão, que
já foi discutido acima. Para isso ele expõe o sentimento do povo quando falta chuva na
terra, vemos assim a problemática da seca, que serviu por muito tempo como nos
apresenta Albuquerque Junior como base para uma construção imagética para o sertão e
para o Nordeste, a seca como um problema regional e o discurso da seca que flagelava o
povo, ganhando enfoque na impressa gerando muitas das imagens sobre o sertão e o
Nordeste que temos até hoje (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994), ou ainda como
menciona a historiadora Olívia Morais de Medeiros Neta “a seca é a mãe do Seridó”
(MEDEIROS NETA, 2007) justificando a construção de uma imagem de “espaço
pedinte” (MEDEIROS NETA, 2007).
Bertôldo, também apresenta a religiosidade do povo que habita a região, e como
os aspectos negativos do lugar fazem dos tipos sertanejos, sujeitos fortes e resistentes,
que suportam as intempéries do tempo, sem que percam o sensível, ao passo que
apresenta funções do trabalho do campo como o de pescar, trabalhar na roça, da lida do
gado, também fala sobre os poetas, oleiros e tocadores.
O sertão Jucurutu que esteve na memória de Bertôldo, é fixado no Nordeste, no
Rio Grande do Norte, no Seridó, é um sertão pertencente a outros sertões, um sertão que
muda com as chuvas, que é molhado por um rio, um sertão de aspectos culturais
desenhados pelo imaginário criado sobre a região e também desenhado pelas próprias
vivencias do autor. Achamos necessário trazermos a este trabalho outras voz que estão
fora da historiografia oficial, para percebermos como Jucurutu é visto/entendido como
um sertão.

1.3 UM SERTÃO DENTRO DE OUTROS SERTÕES

Como já mencionado anteriormente a cidade de Jucurutu possui uma


considerável extensão territorial, associada à pecuária que é fonte de sobrevivência, o
que proporciona a formação de sítios e comunidades rurais.
Para quem sai de Jucurutu pela BR-226, ao observar a paisagem, vê o rio
Piranhas, as serras que cercam a cidade, entre elas a Serra de João do Vale, a vegetação
retorcida da caatinga presente durante todo percurso. Aos 6 km da sede do município,
tendo acesso pela direita, há uma estrada de barro que leva até o nosso destino.
42

O Riachão, é a comunidade na qual se passou a história de Zé Menino e onde até


hoje permanece o culto ao milagreiro. A comunidade tem esse nome, devido ao rio
temporário que no período do inverno, desce da serra de João do Vale até o leito do rio
Piranhas.24 É intrigante pensar que mesmo sendo uma comunidade rural de uma área
tida como sertaneja, e se lembrarmos da construção do conceito de sertão, desde o
desertão lá em Portugal, é interessante pensar nesse riachão - riacho grande - dentro de
um (de)sertão.
A comunidade se divide em três pequenos agrupamentos, os três com o mesmo
nome Riachão, nesses agrupamentos se concentram aproximadamente 86 famílias com
um total de 256 pessoas25. É uma comunidade bem simples com casas populares
espalhas em torno de um agrupamento principal disposto em linha reta. Todos os
caminhos são de barro, com seixos soltos.
Existe uma escola municipal na comunidade que recebe alunos da educação
infantil e anos iniciais do ensino fundamental, uma Unidade Básica de Saúde, uma
igreja evangélica e a capela que é foco da nossa análise. A maioria das pessoas vive da
lida rural, cuidando do gado e das plantações - quando o inverno permite - algumas
pessoas trabalham na sede do município e dada a proximidade com o sitio transitam
facialmente entre um e outro.
Antes de entrar na comunidade há uma bifurcação para a esquerda, seguimos a
estrada de barro, até chegar no lugar da morte e culto ao jovem José Serafim. De
maioria católica a comunidade, mantém os costumes que foram passados desde as
primeiras gerações católicas que aqui chegaram. E como vimos acima, o culto católico
nomeio rural, não obedece necessariamente as regras do catolicismo oficial. No
Riachão, a capela que abriga o cruzeiro de Zé Menino é cuidada por populares, os fiéis
que determinam a forma como as celebrações acontecem.
Na comunidade não faltam pessoas que pediram e tiveram graças alcançadas
através de Zé Menino, basta uma conversa rápida e já identificamos os devotos e
devotas. A capela é parte integrante da comunidade, faz parte do imaginário católico
desse grupo, acolhe os moradores e visitantes, para quem tem fé é um lugar especial.

24
RIACHÃO, Monografia da comunidade. 2010. Equipe da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
25
RIACHÃO, Monografia da comunidade. 2010. Equipe da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
43

CAPÍTULO 2

RELIGIOSIDADES, CATOLICISMOS E DEVOÇÕES

2.1 DAS RELIGIOSIDADES SERTANEJAS

“Tanto milagre, tanto milagreiro


Tanta promessa, tanto promesseiro
Tanto romeiro, tanta romaria
Tanto Jesus, tanta Maria
Tanto devoto, tanta devoção.”
Maria Bethânia

Neste capítulo, analisamos os aspectos religiosos que integram nossa pesquisa.


Como a religião associada ao espaço em que está inserida, ganha contornos
característicos, que lhe conferem singularidade. Nesse sentido, nossa investigação, neste
capítulo, colocou olhares sobre o catolicismo e a sua relação com os sertões e sobre os
frutos que surgem dessa relação. O campo das religiosidades, é um oásis para diversos
profissionais que estudam as relações humanas, sobretudo com o divino, além de uma
esfera espiritual, relações de poder, econômicas, políticas e sociais estão em constantes
e mútuos enlaces. Entender esse catolicismo moldado nos sertões, ajudará a entender
como formou a devoção em torno de Zé Menino.
Ao longo do tempo, a Igreja Católica, sobretudo, propõe uma série de ações que
visam manter o que os teólogos chamam de Unidade da Igreja, a exemplo da bula
pontifícia Unam Sanctam, promulgada pelo Papa Bonifácio VIII, em 1302, por causa da
disputa pelo primado papal, com o então rei da França, Filipe IV “O belo”. A bula foi
escrita com base em diversos versículos bíblicos que tratavam de uma pretensa unidade
entre os primeiros cristãos. Todavia, além da unidade entre seus membros, a Igreja
Católica espera uma unidade administrativa, onde todas as “filiais”, suas dioceses e
paróquias espalhadas por todo o mundo, estejam subordinadas ao trono de Pedro, logo,
em comunhão com o Papa, o bispo de Roma e segundo a tradição, sucessor de São
Pedro. Para a igreja Católica o Papa é “o perpétuo e visível princípio e fundamento da
44

unidade, quer dos Bispos, quer da multidão dos fiéis” (Catecismo da Igreja Católica,
882 - II Concílio do Vaticano, 1965).
Entretanto, manter a igreja Una e Sancta, não é uma tarefa das mais fáceis.
Espalhada por diversos rincões mundo a fora, o desafio da unidade se torna enorme para
o sucessor do apostolo Pedro e seus funcionários, sejam de alta ou baixa patente. É fácil
entender a dificuldade desse ideal de unidade, ao lembrarmos a imensidão de fiéis que
professam a fé católica, segundo os dados do Anuário Pontifício 2021 e o Annuarium
Statisticum Ecclesiae 201926, existem mais de um bilhão de católicos pelo mundo e o
Brasil ocupa a primeira posição na listagem de países com maior população católica,
somando alguns milhões de fiéis, essa opulência, somada a variedade cultural de
diversos países nos cinco continentes gera uma infinidade de ritos que se diferenciam da
liturgia oficial.
Entender essas movimentações no interior da Igreja Católica, nesse capítulo é
parte do trajeto que propomos. Partimos do âmbito oficial para entender as ações
desencadeadas num âmbito que entendemos como não-oficial, e que recebe essa
nomenclatura, por estar em partes, em desconformidade com o que a Igreja oficial
propõe. É nesse sentido, que começamos a abordar como o catolicismo se adequa ao
local que está inserido, lugares como os sertões, onde as forças religiosas, políticas,
sociais e econômicas se mesclam, tornando ainda mais peculiar as formas do culto
sertanejo.
Sabemos que a colonização portuguesa se expandiu por todo território brasileiro,
com êxito, a fé católica foi propagada em proporções pujantes e assim buscou silenciar
de forma sistemática, os credos, a língua e os costumes indígenas; e posteriormente os
dos povos africanos, que foram trazidos de suas terras originárias para serem
escravizados, sob a condescendência católica. Não podemos dizer, porém, que o
catolicismo se mantém na prática, como no discurso. Ora, se o discurso oficial da Igreja
Católica Apostólica Romana, declara como vimos, a Unidade da Igreja em torno das
tradições, na prática, em se tratando do Brasil em geral e mais especificamente nos
sertões nordestinos, de onde parte nossa análise, é totalmente diferente.
Nesse contexto alguns eventos fora da curva oficial, se tornaram emblemáticos e
acionaram o imaginário de diversas gerações de sertanejos. Como já vimos, apesar de
todas as dificuldades que a região Nordeste enfrenta, seja de cunho político, econômico,

26
Informação obtida através do site oficial de noticias do Vaticano, o Vatican News.
45

social ou ambiental, questões que dão margem para uma miríade de debates, e talvez
por isso, esses espaços sertanejos, são berços de uma religiosidade ao passo que é
múltipla, é também singular.
Da mesma forma como foram moldados os discursos em torno do Nordeste, dos
sertões, dos tipos sertanejos, essas ideias também se estruturaram em torno de uma
religiosidade que não desinteressadamente tem a cara do sertão. Uma busca rápida no
Google por “religiosidade sertaneja” nos direciona para uma sequência de imagens de
casas simples, com paredes inteiras dedicadas à uma infinidade de quadros e imagens de
santos e santas católicas com numerosas fitas coloridas ao redor, nos filmes é comum
ver, oratórios e velas queimando enquanto senhoras com rostos enrugados debulham
seus rosários, também se inseriu no nosso imaginário, o sertanejo como pagador de
promessas, ou aquele que através da fé articula embates políticos. Essa imagética
mostra um pouco do que estamos analisando aqui, sobre uma religiosidade que é feita
no âmbito familiar, sem a presença assídua de um sacerdote.
Albuquerque Júnior, discutiu como a ideia de cultura nordestina foi moldada e
nesse sentido, como somos remetidos a um “conjunto de manifestações culturais e uma
dada forma de organização social” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 20). Desta
forma, podemos analisar a partir das suas colocações como se impregnou no imaginário
social, uma religiosidade com aspectos característicos sertanejos, segundo Albuquerque
Júnior, dentre as características desenhadas para essa região, estava “uma sociedade
sacralizada, onde a presença da religiosidade e do misticismo dava origem a
manifestações messiânicas e a revoltas em torno de dadas crenças e figuras místicas”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 20).
A partir dessa perspectiva, de enfoque, começamos a analisar os movimentos
que se desenvolveram no Nordeste brasileiro, que chegaram inclusive a tomar
proporções bélicas e que se colocaram durante muito tempo como pano de fundo, para o
imaginário sertanejo, compondo uma dita identidade de resistência política sertaneja.
Desses movimentos surgem figuras importantes que movimentam massas populacionais
em torno e através da fé.
Assim sendo, os movimentos messiânicos se constituem num cenário de
desgaste político, economicamente esgotado e pelo lado do catolicismo oficial
religiosamente enfraquecido pela falta de assistência sacerdotal, assim sendo esses
movimentos encontraram no Nordeste o ambiente propício para se desenvolver, no
meio de uma sociedade que não vê saída para os problemas que enfrenta. Segundo Süss,
46

“os movimentos messiânicos formam um grupo especial no catolicismo” (SÜSS, 1979),


mas particularmente na religiosidade popular brasileira27
Conforme Süss, o messianismo sempre é produzindo em um ambiente do
Catolicismo Rural (SÜSS, 1979). Nesse cenário de falta de assistência religiosa por
parte do clero, se desenvolve uma religião do povo, que como explica o teólogo Günter
Süss, não precisa de intermediários oficiais para existir, seria um catolicismo sem
sacerdotes (SÜSS, 1979).
No meio de um cenário devastado por toda sorte de flagelos, surgem figuras que
concentram em torno de si, as características necessárias para desenvolvimento do
messianismo, o beato, o padre ou um monge, nos quais o movimento se cristaliza. Esses
sujeitos passam a representar os emissários do Cristo, santos ou até mesmo o próprio
Jesus (SÜSS, 1979).
Dos movimentos messiânicos que se estabeleceram no Nordeste brasileiro
destacamos a fim de tentar entender essa religiosidade particular que se formou nos
sertões, os seguintes movimentos, o de Canudos (BA) com Antônio Conselheiro e no
Juazeiro (CE) com o padre Cícero, respectivamente tendo início na segunda metade do
século XIX, o do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto no Crato (CE) liderado pelo beato
José Lourenço, no século XX. Outro movimento a ser destacado pela proximidade com
o nosso recorte espacial e que também teve grandes proporções é o movimento que
ficou conhecido como dos fanáticos da serra de João do Vale que tinha a frente o beato
Joaquim Ramalho (RN)28. Nesses movimentos os lideres realizavam procissões,
pregações, novenas, ritos que estavam na base do que por muito tempo foi entendido
como Catolicismo Rural Brasileiro.29
Nesses movimentos podemos ver uma organização em torno de sua própria
cidade santa que detinham suas próprias leis, economia e organização política, claro que
esses elementos não passariam despercebidos pelas autoridades civis, políticas e
religiosas. Surgindo assim o embate entre os que esperavam o messias fundar o paraíso
na terra e as autoridades que queriam deter o movimento30.

27
Para um estudo mais aprofundado sobre o messianismo, ver a obra de Maria Isaura Pereira Queiroz, O
Messianismo no Brasil e no Mundo.
28
Para maiores informações sobre o movimento messiânico da Serra de João do Vale ver a dissertação de
mestrado de Vikelane Maria de Oliveira Silva. “Entre estradas e veredas: Messianismo nos sertões do
estado do Rio Grande do Norte (1898-1899)”. Defendida em 2021, no Programa de Pós-Graduação em
História dos Sertões. PPGHC - Ceres, UFRN.
29
SÜSS, Günter Paulo. 1979
30
SÜSS, Günter Paulo. 1979.
47

O papel exercido pela religião no movimento messiânico coere com o papel


que em geral ela tem no interior do Brasil, onde não há médico, nem
agrônomo e só raramente um padre. Os benzedores (para o campo da
medicina) e os beatos (para o setor religioso) exercem essa função com meios
mágicos religiosos. A religião se torna o único e supremo remédio para todos
os males. Por isso o movimento messiânico também é um último remédio
para a desgraça social (SÜSS, 1979).

Como já vimos onde a igreja não conseguia manter uma presença constante,
associada aos problemas sociais, políticos e econômicos, o próprio povo desenvolvia
formas de resistir e existir no meio do sertão.

2.2 AGENTES RELIGIOSOS

Nesse trajeto de entender a construção dessa religiosidade, cabe evidenciarmos


alguns agentes religiosos que são considerados figuras que marcaram significativamente
a presença católica nos sertões, ocupando um lugar muito tenso, na maioria das vezes,
em relação à organização da igreja, porém sendo fundamentais na constituição das
comunidades onde estavam inseridos, dentre eles podemos citar, o padre Ibiapina, o frei
Damião e o padre Cícero. O que essas figuras têm em comum entre si, além de estarem
diretamente ligados ao catolicismo oficial?
O padre José Antônio de Maria Ibiapina, mais conhecido como padre Ibiapina,
nasceu em Sobral (1806 – 1883), além de seu trabalho pastoral, desenvolvia ações
sociais. Durante suas obras missionarias, percorreu parte da região Nordeste e além da
construção de igrejas e capelas que nutriram espiritualmente os fiéis católicos, criou
também casas de caridade, ensinou técnicas agrícolas aos sertanejos e defendia os
direitos dos trabalhadores rurais.31
Por causa desse itinerário, o padre Ibiapina ganhou enorme prestigio social,
fazendo com que seu nome, perpassasse gerações e que se mantivesse no imaginário
acerca da religiosidade sertaneja. Em meio a um cenário de extrema pobreza e sem
respostas efetivas das autoridades, o padre Ibiapina, surgiu como um elo entre a
“dimensão da fé e da promoção social” (OLIVEIRA, 2007, p. 15) no final do século
XIX.
A figura de Ibiapina apareceu como integradora dos sertanejos com o “campo
econômico, sociocultural, politico e religioso” (OLIVEIRA, 2007, p. 37). Nesse
31
Sobre Ibiapina maiores informações em Trilogia Missionária de Damião Lucena 2017.
48

aspecto, parece que figuras como a do padre Ibiapina ganhavam a obediência da


multidão de fiéis, por fazer além de suas obrigações. O povo que sofria, pelo abandono
do estado ou da igreja, encontra nesses sujeitos, um certo tipo de afeto que vai além da
estrutura oficial na qual estavam inseridos, além das necessidades básicas o povo a qual
Ibiapina pastoreava, também era carente de atenção. Segundo Oliveira32 o padre, “foi
fortemente atraído pela dimensão social da religião, levado pelos indicadores sociais de
pobreza e necessidades, acentuadamente fortes no Nordeste em sua época”
(OLIVEIRA, 2007, p. 75). Além do ofício sacerdotal, o padre Ibiapina também ocupou
cargos políticos, aspecto que uni a sua imagem, com a de outros sujeitos, que
mesclavam a vida religiosa, social e política e arregimentavam enormes massas
populacionais.
De outro ângulo, temos Pio Giannotti, o frei Damião de Bozzano (1898 – 1997),
dedicou parte significativa de sua vida às Santas Missões, pelo interior do Nordeste.
Realizava nas cidades do interior grandes procissões e atendia confissões, convidando o
povo a se arrependerem de seus pecados e a se afastarem do demônio. Ao passo que
disseminava as orientações católicas frei Damião se dirigia as comunidades mais
esquecidas pelo poder público e lhes apresentava o acalento da fé33.
Com o objetivo de propagar o Catolicismo Romano, frei Damião de Bozzano
chega ao Brasil em 1931. Segundo Cruz34, o objetivo do frade capuchinho era “moldar
o catolicismo dos nordestinos, conforme o catolicismo oficial” (CRUZ, 2010). A
presença de Frei Damião no imaginário dos sertanejos é perceptível até hoje, é fácil
ouvir os testemunhos de pessoas que viram, caminharam e se confessaram com o frei,
centenas de fiéis contam de sua passagem por diversas cidades Nordeste à dentro, de
como se hospedava nas casas das pessoas, falam de suas profecias, das multidões que à
ele acorriam, pode-se ouvir até relatos de fenômenos sobrenaturais, como o fato de
algumas pessoas verem o frei Damião, não tocar o chão com os pés enquanto
caminhava.

32
Alberto Rodrigues de Oliveira, DA FÉ A PROMOÇÃO SOCIAL: a atividade missionária do padre
Ibiapina. Dissertação de mestrado em Ciência da Religião, 2007. Universidade Católica de Pernambuco.
33
Sobre frei Damião maiores informações em Trilogia Missionária de Damião Lucena 2017.
34
João Everton da Cruz. Frei Damião: a figura do conselheiro no Catolicismo Popular do Nordeste
brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. 2010
49

Por esse motivo, com razão, Silva35 afirma que a “força carismática de frei
Damião invadiu o Nordeste” (SILVA, 2020). Sua presença não passava despercebida
nas cidades que visitava. A Igreja estava preocupada com a forma com que o
catolicismo estava sendo vivenciado no Brasil, o objetivo era moralizar o país. Segundo
Silva, o intuito era “o fortalecimento da catolicidade” (SILVA, 2020). E nesse sentido,
os discursos de frei Damião estavam em harmonia com o trono petrino.
Mais uma vez, vemos a relação de uma figura religiosa com uma população
pobre, sem acesso educação básica e desassistida da presença da Igreja, seja por meio da
catequese ou sacramentos. Essa parece ser a base comum, para o nascimento de uma
movimentação extraordinária em torno dessas figuras, é um fator que se repete em
muitos casos de conselheiros e guias espirituais e políticos. Frei Damião, conforme
percorreu as cidades do Nordeste, passou a ser visto como divino, seu discurso forte de
arrependimento e volta ao catolicismo, fortalecia os fiéis até então distantes da presença
da igreja. Como uma figura emblemática, não poderia faltar na sua trajetória pontos que
vão além das numerosas benesses que seu nome carrega, não faltam relatos do combate
ao protestantismo que o frei capuchinho fazia de forma veemente. Em 2019, frei
Damião, recebeu da Igreja Católica, através do Papa Francisco, a condição de venerável,
diminuindo assim a distância até o seu processo de canonização.
No mesmo grupo de personalidades, que num cenário adverso, ganha à
deferência popular, vemos Cicero Romão Batista, o padre Cícero, nascido no Crato-CE
em 1844 e a sua fama se espalhou do Ceará para todo Nordeste. Em sua obra
missionária, além da pregação do evangelho e da confissão dos pecados, visitava a
comunidade com frequência moralizando os fiéis católicos. Ganhou desta forma a
simpatia e a confiança das pessoas36.
Em torno da figura do padre Cícero circulavam algumas contradições. Para os
fiéis uma devoção inquestionável e uma ligação direta com o divino que se expressava
através dos milagres, para os inimigos políticos, um farsante que usava a influência
religiosa para ganhar força política. Os olhares atenciosos que se voltaram para
Juazeiro-CE não eram apenas políticos e civis, devido o alarde em torno da sua figura, a
Igreja também acompanhava atenta as movimentações que aconteciam nos sertões do
Ceará. Graças ao trato atencioso para com os devotos nas questões espirituais, o padre

35
Jociel João Gomes da Silva, Frei Damião De Bozzano E Sua Contribuição A Evangelização Do
Nordeste. XIII Encontro Estadual De História História E Mídias: Narrativas Em Disputas. 2020.
36
Sobre padre Cícero maiores informações em Trilogia Missionária de Damião Lucena, 2017.
50

Cícero angariou multidões de fiéis, pois “se preocupava com as aflições e problemas
sociais que eram acometidos os fiéis que congregavam em sua paróquia” (FERNADES,
2017, p. 20). Para tanto, não apenas os devotos pertencentes a sua paróquia, fiéis de
outras paróquias e dioceses se dirigiam em romaria para Juazeiro, esse trânsito de
devotos, chamou a atenção das autoridades religiosas.
Os supostos milagres que aconteceram em Juazeiro por intermédio do Padre
Cícero e se materializaram na Beata Maria de Araújo, foram investigados de perto pela
Igreja Católica, que temia uma ruptura a partir da figura do Padim Ciço, algumas
hipóteses foram levantadas e as medidas orientadas pelo direito canônico foram
tomadas.
A hóstia após ser ministrada pelo padre, tornava-se imediatamente sangue em
contato com a língua de Maria de Araújo. O fato miraculoso, obviamente encheu os
olhos dos fiéis e que entenderam as sucessivas repetições desse feito, como um sinal
direto da presença de Deus através do Padre Cícero.
Pertinente avaliar a forma de tratamento dos fiéis para com o padre Cícero, o
Padim Ciço, além de agregar à figura do religioso, as características regionais da fala, o
sotaque nordestino, também o traz para mais perto dos fiéis. A relação do fiel com o
padre é tão próxima que chega a se tornar familiar, “meu padim”, que pode ser um
diminutivo de padre, utilizado como um termo carinhoso, ou uma referência ao
apadrinhamento religioso, o padre Cícero se tornou padrinho de centenas de fiéis,
mesmo sem ter participado do rito batismal, que no catolicismo institui os padrinhos.
Interessante ver o padre Cícero através da beata Maria de Araújo, é nela que o
milagre se materializa, esse fato é expressivo, pois a religiosidade que discutimos aqui,
tem na participação feminina uma base muito sólida, enquanto os homens trabalham, as
mulheres rezam. Na organização desse catolicismo informal que discutimos aqui, as
mulheres assumem a liderança na grande maioria das vezes, são elas que conduzem as
orações.
Segundo Fernandes, essa também seria a questão que suscitou a perplexidade
dos bispos e demais autoridades religiosas, pois em torno da beata Maria de Araújo,
uma mulher mestiça, Deus teria se manifestado ao povo: “Deus havia deixado a Europa
para se manifestar no interior do Ceará, num local tão castigado pela seca e diversas
outras mazelas sociais. Como se não bastasse, uma beata pobre e negra havia sido a
beneficiada pelo milagre divino” (FERNANDES, 2017, p.24)
51

Embora tenha morrido sem o perdão da igreja, e sem poder exercer as funções
sacerdotais, Padre Cícero recebeu em 2015 o perdão pelo papa Francisco como um sinal
de reconciliação com a igreja. No dia 24 de junho de 2022 foi autorizada a abertura do
processo de beatificação do Padim Cícero que recebeu o título de servo de Deus.
Há entre esses sujeitos peculiaridades que vão além do vínculo com a Sé Romana, estes
sacerdotes estavam em constate contato com o povo, se lembrarmos da falta de
assistência religiosa já mencionada acima, o povo carente de atenção foi facilmente
conquistado. Embora estivessem diretamente ligados ao catolicismo oficial, a forma que
o catolicismo toma, a partir de suas figuras, gera práticas complementares ao
catolicismo oficial.

2.3 EXPLICANDO OS CATOLICISMOS

Nesse sentido começamos a tratar o catolicismo no plural, por entendermos que,


no Brasil existam tipos diferentes de catolicismos. Percebemos assim que alguns
conceitos são criados a partir dessa questão, e para entender o que acontece com o
catolicismo em terras brasileiras, Arnaldo Lemos Filho no Livro Os catolicismos
brasileiros (2000), trata da existência de vários catolicismos, e também de uma
oposição entre um catolicismo oficial e um catolicismo do povo (LEMOS FILHO,
2000). Catolicismo Rústico, Catolicismo Popular, Catolicismo Rural, esses catolicismos
se desenvolvem e são praticados sem necessariamente a presença de sacerdotes e é fácil
entender como no Nordeste esses catolicismos ganham força, tendo em vista a demanda
territorial e a falta de contingente de padres católicos para atender as demandas do povo.
A socióloga Maria Isaura Pereira Queiroz, definiu o Catolicismo Rústico como o
conjunto de práticas da religiosidade popular, desenvolvidas em comunidades rurais,
que vivem de uma forma específica com a economia de subsistência. Desse modo, já
podemos perceber a fragilidade desse conceito, uma vez que nos múltiplos lugares, onde
ocorrem práticas religiosas, que se alocam fora da normatividade oficial, podemos
observar diferentes cenários econômicos, embora o fator econômico seja determinante
para a existência desse tipo de religiosidade, não se torna o único meio de condução da
fé, em várias ocasiões, podemos presenciar por exemplo, a participação nesses cultos,
tanto de pessoas de camadas mais baixas da sociedade como de pessoas com um poder
aquisitivo maior. Alguns autores, sejam sociólogos ou historiadores, acabam
52

assimilando o termo rústico, a populações sertanejas ou oriundas de zonas rurais


(OLIVEIRA, 2010).
O chamado Catolicismo Popular, parece ser o conceito mais utilizado nas
pesquisas relacionadas ao tema e que tratam dessas religiosidades, que estão as margens
do oficial, talvez por ser de melhor absorção e de fácil diferenciação das palavras.
No livro Catolicismo Popular no Brasil, Günter Paulo Süss, afirma que para
entender o Catolicismo Popular, não podemos fazer uso de um discurso global37, cada
região ou grupo tem uma forma peculiar de religiosidade, seja de qual matriz for, nesse
caso, tratamos particularmente do catolicismo.

o conceito de “catolicismo popular”, na extensão em que é usado aqui,


também significa um limite para com uma “religiosidade popular” global.
Esta – sob o ponto de vista da sua proveniência étnica e sua gênese religiosa-
abrange todos os costumes e vivencias religiosas do povo, sejam eles de
origem africana, indiana, protestante, católica, espirita ou pagã (SÜSS, 1979,
p. 28).

No livro Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil, os autores afirmam que


“Catolicismo Popular pressupõe que exista outro catolicismo que não o seja. Esse seria
mais erudito, dogmático. Em teoria, ele existe. É o catolicismo dos teólogos e do alto
clero.” (KARNAL; FERNANDES, 2017) Como sabemos, e os autores comentam, as
fronteiras entre o erudito e o popular não são bem definidas. O conceito de popular
exige uma série de explicações para que de alguma forma ele possa ser usado atrelado
ao catolicismo, uma vez que é um conceito bastante emblemático, os autores além de
alertarem quanto à porosidade das fronteiras entre erudito e popular, ainda sugerem que
“soa estranho” (KARNAL; FERNANDES, 2017) falar em um Catolicismo Popular,
“porque ninguém que o pratica, sabe que o está praticando” (KARNAL; FERNANDES,
2017)
É nesse sentido que vemos como o catolicismo não-oficial é vivenciado pelos
fiéis, quando usamos o termo catolicismo popular dá a entender que é algo reservado
apenas as camadas mais baixas da sociedade, quando na verdade, para os autores, ocorre
uma relação mais ampla e democrática: “tipo de ligação entre o fiel e o santo que
independe da sanção da Igreja, ainda que não prescinda dela. Trata-se de uma ligação
mais de foro íntimo com o sagrado, algo pouco doutrinal. Esse sentimento é de uma
democracia sem barreiras de classe, cor, idade ou gênero.”(KARNAL; FERNANDES,
2017).
37
SÜSS, Günter Paulo. 1979 p. 30.
53

Deste modo, adotamos o conceito de catolicismo não-oficial, utilizado pelo


professor Lourival Andrade Junior, para contemplar essas práticas que ocorrem em
paralelo ao culto e tradição oficiais, segundo Andrade Junior:

preferimos a utilização do termo “catolicismo não-oficial”, por tratarmos de


devoções que não se enquadram nos pressupostos e ditames estabelecidos por
leis, decretos, encíclicas, epístolas, constituições, exortações, breves, cartas e
bulas emitidas pela Igreja Católica (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 79).

Embora essas práticas se diferenciem nitidamente das práticas oficiais regradas


pela Igreja, elas não se distanciam muito. “O catolicismo não-oficial não deixa de ser
uma prática católica, mas que segue um caminho próprio, e o devoto não se afasta dos
ritos oficializados” (ANDRADE JUNIOR, 2021, p.79). Isso porque para o fiel que
realiza a ritualística católica a seu modo, não entende que sua prática esteja em
desconformidade com a Igreja, pelo menos, é que percebemos na maioria das vezes, os
fiéis empregam toda atenção e dedicação na realização dos ritos, e intermediam eles
próprios a relação com o divino.
Essa relação ainda é explicada por Andrade Junior, “dessa relação, sem a
presença do padre ou frei, deu-se a construção de um gestual e de uma religiosidade que
se explica por si só, sem os amparos teóricos ou racionais presentes nos ritos
tradicionais ou oficializados pela igreja”. (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 80). Os fiéis
que necessitam de uma vivência religiosa, e não tem um sacerdote que oficialize os
ritos, constroem, como explicou Andrade Junior, seu próprio meio de contato com o
divino, como já comentamos, esse aspecto religioso não é teorizado pelos seus
praticantes, importa para eles reproduzirem seu entendimento sobre o mundo espiritual
conforme presente no imaginário de cada grupo, esse imaginário por sua vez, é uma
construção social, séculos de catequização constituíram esse arcabouço de imagens, a
dualidade entre céu e inferno, bem e mal, além de uma miríade de santos e santas de
todas as sortes e legiões e mais legiões de anjos. Esse imaginário é reproduzido e pode
ser percebido nessas práticas não-oficiais, nas orações e cantos que fervorosamente são
pronunciados por esses grupos.
Para Andrade Junior, “o catolicismo no Brasil se pluralizou” (ANDRADE
JUNIOR, 2021, p. 93) devido a mistura de ritos variados da nossa origem étnica, o
encontro entre as matrizes indígena, africana e europeia, o catolicismo foi
ressignificado. As noções referentes às crenças obedecem uma dinâmica que segundo o
autor não caberiam em religiões ortodoxas,
54

Outra característica importante a ser observada no catolicismo não-oficial é a


questão do espaço, as configurações assumidas pelo espaço sagrado desse viés do
catolicismo, também vão de encontro com o que preconiza a Igreja Católica, como
explicou Andrade Junior:

Essa relação direta contemplada no catolicismo não-oficial, que dispensa o


espaço do templo, pois para o devoto não é somente no lugar já oficializado e
institucionalizado que se dá o fenômeno do sagrado, fez com que diversos
locais se tornassem sacralizados pelo próprio devoto, pois a devoção não está
somente no que define o clero, mas, fundamentalmente, está centrada no
próprio devoto que ritualiza sua fé por meio de gestos e expressões que são
incorporados numa ampla carga de símbolos que expressam sua sincera e
desprendida devoção.(ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 83).

Assim sendo, da mesma forma como os cultos ganham novas roupagens a partir
das experiências dos fiéis, os locais sagrados se tornam múltiplos no catolicismo não-
oficial, os devotos creditam a importância sacra de alguns lugares, que não foram
sacralizados oficialmente pela igreja. Dentre os locais sagrados do Catolicismo não-
oficial, destacamos aqueles que tem relação com essa pesquisa, que são os locais
sagrados votivos a milagreiros e milagreiras. Nesse sentindo, esses lugares para
ganharem um status de sacralidade devem ter alguma relação com o milagreiro, seja o
local da sua morte, ou a sua sepultura; no caso de Zé Menino, o espaço sagrado de sua
atuação e devoção é o local da sua morte, para esse lugar se dirigem dezenas de devotos,
para reafirmarem os vínculos com o milagreiro ou depositar ex-votos.
Atreladas ao espaço sagrado estão às narrativas em torno do milagreiro, são elas
que sustentam a fama do local sagrado e do milagreiro, como afirma Andrade Junior “o
que sustenta tais condições são as narrativas que se perpetuam para manter vivas
histórias e memórias que referendam os poderes milagrosos de determinados sujeitos e
lugares” (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 89). Essas narrativas fazem a manutenção do
espaço sagrado e dessas devoções, os devotos ouvem falar sobre o local e sobre a ação
miraculosa do sujeito que se relaciona com aquele espaço.
Não faltam exemplos de túmulos e capelas dedicados a milagreiros, que recebem
centenas de crentes, que se dirigem a estes locais, para manifestar a sua fé e se
relacionar com o sagrado, o local sacralizado é tão importante quanto o milagreiro, haja
vista que sua atuação, na maior parte das vezes, está circunscrita ao local onde o culto
ao milagreiro se assenta.
Há de se ponderar também que ao tratarmos do sagrado e de como as pessoas o
entendem, requer bastante cuidado, para não cometermos equívocos, já mencionamos
55

aqui o quanto as fronteiras entre sagrado e profano são porosas ou do oficial e não-
oficial, nesse sentido, mesmo um templo oficial, pode acolher devoções não-oficiais,
embora tais práticas sejam combatidas com rigor por parte das autoridades católicas.
Da mesma forma como nos templos oficiais podem acontecer práticas não
oficiais, nos locais sacralizados pela devoção não-oficial em memória de seus
milagreiros, mesclas do culto oficial são visíveis e muitas vezes bastante expressivas,
como é o caso de Zé Menino, a inserção da imagem de São José no altar da pequena
capela, construída depois de uma promessa feita a Zé Menino, evidencia essa questão,
as dezenas de imagens de santos sobrepostas no altar, também revelam um pouco de
como essa fé é mista.
Tanto o culto quanto local sagrado não-oficial se destacam pela forma
diferenciada como são vivenciados, essas práticas se distanciam do oficial, não apenas
na liturgia própria, mas também no aspecto visual. Amontoados de ex-votos, enchem a
vista de quem observa, sejam fitas amarradas na grade de um túmulo, seja nas bonecas
penduradas pelo pescoço, numa cerca de arame farpado ao pé da pista como é o caso da
Cruz da Menina em Jardim do Seridó (RN)38.

Imagem 03:

38
A construção de duas devoções no município de jardim do Seridó-RN: Aproximações e
distanciamentos Antonio Alves De Oliveira Neto e Lourival Andrade Junior.
56

Altar e cruz de Zé Menino em 2019 Wesley Simão

Na foto acima vemos o interior da capela dedicada a Zé Menino, podemos


perceber na foto a mistura entre o oficial e não-oficial, a variedade de santos e santas da
Igreja Católica e ao lado a cruz de Zé Menino, cheia de ex-votos.

2.4 RELIGIOSIDADE EM JUCURUTU

Como vimos anteriormente, a cidade de Jucurutu é de origem e maioria católica,


contudo, percebemos nos últimos anos o crescimento das igrejas evangélicas
neopentecostais, esse aspecto acaba influenciando diretamente nos cultos que
estudamos, uma vez que, o direcionamento desses grupos evangélicos é para a
conversão das pessoas ao que eles entendem por verdade, se historicamente já havia
uma disputa entre as igrejas evangélicas e comunidades católicas pelas almas dos fiéis,
os cultos não-oficiais são vistos para os neopentecostais, como obra do demônio.
Em uma das nossas visitas técnicas a comunidade, ao conversamos com uma
pessoa declaradamente evangélica, nos foi relatado o seguinte: “Eu orei para que Deus
não deixasse que ali obrasse milagre, porque isso é obra de Satanás” Essa resposta se
deu pelo fato de conversarmos sobre uma capela que existe na beira da estrada, o
entrevistado fez essa fala ao mesmo tempo que indicava a capela de Zé Menino como
uma obra do demônio para enganar as almas, essa conversa foi registrada no nosso
57

caderno de campo, resolvemos não gravar a entrevista dada a forma agressiva como o
tema foi tratado.39
A cidade vivência, no seu cotidiano religioso, formas diversificadas de
devoções, oficiais e não-oficiais. Dentre essas práticas, podemos observar na zona rural,
uma variedade maior dessas expressões, uma vez que, como já observamos
anteriormente, a falta de sacerdotes presentes nessas comunidades, induz o povo a se
apropriarem dos ritos e celebrarem de formas distintas. Como exemplo dessas práticas
na zona rural, observamos no sítio Cacimbas, numa das casas, há mais de cem anos
acontece à recitação de um terço todo dia 23 de junho em honra a São João, esse rito é
todo conduzido pelas mulheres, à dona da casa, prepara com antecedência a decoração
do oratório, que fica na sala da casa simples, segundo as narrativas, as mulheres rezam o
terço e entoam cânticos em louvor ao referido santo, os homens que acompanham a
oração, ficam do lado de fora da casa, somente acessando a parte interna na hora de
depositar as ofertas, ainda do lado de fora da residência a fogueira queima e após a
novena as pessoas interagem, conversando, soltando fogos junto com as crianças e
degustam das comidas típicas do dia do santo junino.
Outro aspecto referente ao catolicismo não-oficial que identificamos no
município de Jucurutu, em períodos passados, foram as incelências para anjos, prática
que caiu em desuso à bastante tempo, mas que ainda está presente na memória de
algumas pessoas que vivenciaram ou ouviram falar sobre. Durante a graduação
pesquisamos a prática das incelências na zona rural de Jucurutu.
As incelências são remanescentes das orações para mortos, que foram regidas
pela liturgia da Igreja Católica. Como já vimos à falta de assistência religiosa em alguns
períodos da história, fez com que os grupos se organizassem para, com o conhecimento
que tinham, intermediarem eles próprios a relação com o divino (SIMÃO, 2017). As
incelências são orações cantadas em estrofes com várias repetições, em Jucurutu
constatamos uma peculiaridade, as incelências eram cantadas apenas para crianças
mortas, os anjos ou anjinhos, toda criança que morria até aproximadamente os sete anos
de idade era chamada assim (SIMÃO, 2017).
Todo o processo da morte infantil era acompanhado pelo grupo, desde o quarto
para o anjo, o anúncio feito pelo sino, ou a confecção da mortalha e adornos que

39
Durante nossa pesquisa muitas vezes não conseguimos gravar as entrevistas devido as circunstâncias do
momento, e algumas vezes recorremos ao caderno de campo, para anotação dessas informações, que
julgávamos importantes e que foram coletadas principalmente durante as sondagens iniciais.
58

cobriam o pequeno corpo, durante toda a noite mulheres se revezavam cantando em


coro os lamentos por mais uma criança morta, além do teor triste das letras, algumas
informações não poderiam passar despercebidas, o imaginário do grupo era refletido nas
canções, como imaginavam o céu com milhares de santos e anjos, e como era
importante para a mãe seguir a vida, pois agora teria mais um intercessor junto de Deus.
Nesse sentido as incelências aparecem também como uma prática social/paliativa tendo
em vista o alto índice de mortalidade infantil que acometia o Seridó na segunda metade
do século XX. (SIMÃO, 2017).
Para além dessas práticas do passado e do presente, podemos observar também a
dinâmica que acontece em determinados espaços, o Recanto da Saudade, antigo
cemitério da cidade, localizado no centro, tornou-se um monumento à memória
jucurutuense e local onde a Igreja católica promove orações e inicia procissões, porém
esse espaço ganha vários outros significados à medida que é utilizado pela população.
Por ter sido um cemitério, não faltam histórias sobre almas e visagens, mesmo que o
último enterramento tenha sido realizado em 190840 e a partir de 1909, após o
fechamento da antiga necrópole, foi criado o atual cemitério (ARAÚJO, 2012). A
clássica frase “Este pedaço de chão tem alma! É terra que se espiritualiza, vigília dos
que não esquecem, voz que fala mais forte do que o silêncio dos vivos.” Está exposta
em uma lapide de mármore fixada na parte superior do arco que cobre um pequeno altar
e faz parte da memória coletiva da cidade. Na próxima imagem podemos observar o uso
recreativo do Recanto da Saudade.

Imagem 04:

40
As informações sobre o antigo cemitério podem ser coletadas nos livros de tombo da paroquia ou na
revista O Canto do Jucurutu, publicada pelo historiador Nanael Simão de Araújo, no ano de 2012 em
comemoração aos 150 anos de fundação da cidade.
59

Recanto da Saudade, 2022. Wesley Simão.

Algumas pessoas, vão ao local acender velas e oferecer doses de cachaça em


baixo do altar, nesse ponto percebemos, mesmo que de forma muito discreta, a presença
de religiões de matriz africana, durante o dia há prática de exercícios físicos e muitos
jovens utilizam o espaço durante a noite para o laser, vários grupos distintos levam
caixas de som, bebidas, comidas e se divertem ali, nesse sentido o Recanto da Saudade
aparece como uma opção de lugar alternativo. Mesmo sendo no centro da cidade, por
ser usado dessa forma acabou sendo visto pela maioria das pessoas como um local
marginalizado.

2.4 MILAGREIROS

Observamos aqui também outros exemplos de milagreiros e milagreiras, para


compor o arcabouço de historiadores e historiadoras que antes de nós, já desenvolveram
pesquisas sobre o tema, não apenas no Seridó, mas em outros locais também, Para
Prost, o ato de constituir um fato histórico, contém algumas etapas, e entre elas, analisar
as falas dos nossos pares, quem escreveu e pesquisou o assunto antes da gente. (PROST,
2014).
Desta forma, na área de abrangência da nossa pesquisa podemos citar alguns
trabalhos que foram publicados acerca das religiosidades e milagreiros como é o caso
dos livros Milagreira Cigana Sebinca Crhisto: sublimação no catolicismo não-oficial
brasileiro, de Lourival Andrade Junior (2021) e Milagreioros: Um estudo sobre três
santos populares no Ceará 1929-1978 (2021) de Michelle Ferreira Maia, esses
60

trabalhos são importantes marcos na perspectiva das construções devocionais não-


oficiais.
Nessa seção, optamos por analisar os casos dos seguintes milagreiros e
milagreiras: Benigna Cardoso (CE), o cangaceiro Jararaca (RN), Dr. Carlindo Dantas
(RN), Anjinhos Queimados de Jucurutu (RN), Zé Leão e a Menina Santa ambos de
Florânia (RN).
Vivemos em um país religiosamente plural, uma gama enorme de sujeitos
compõem a lista de milagreiros e milagreiras espalhados pelo território nacional, várias
histórias diferentes, algumas até similares, várias idades, credos, diferentes formas de
morrer, diferentes devoções, mas que tem em comum o campo da não-oficialidade.
Entender como se estabelece a relação do grupo social com os milagreiros, é uma tarefa
delicada, uma vez que, são variadas as formulações para que tipos diferentes de sujeitos
atinjam após a morte o patamar do sagrado.

O Brasil, bem como qualquer país de matriz católica, está cheio de santos
fora do altar, esperando o reconhecimento da Igreja. Ou nem sequer
necessitando dele. A canonização é espontânea. O postulante a santo pode ser
um padre ou um bandido, pobre coitado ou ricaço com fama de evérgeta,
criança ou velho. (KARNAL; FERNADES, 2017)

Apesar de utilizarmos o fragmento do livro “Santos fortes: Raízes do sagrado no


Brasil” para citar a imensa variedade de devoções do catolicismo não-oficial,
entendemos que a nossa afinidade aqui é, principalmente, com os sujeitos que
permanecem sem o reconhecimento da Igreja, também é necessário entender, que
quando tratamos de uma religiosidade não-oficial, os termos oficiais para designar os
trâmites pelos quais os sujeitos passam, não contemplam as ações que acontecem nesses
casos, não podemos dizer, por exemplo, que um milagreiro é canonizado pelo povo, ou
proclamado santo fora da oficialidade.
Como entendemos que esses conceitos constituem os âmbitos oficial e não-
oficial, delimitamos sua utilização, mesmo que para o fiel essa diferença não seja
relevante, “santo e milagreiro acabam ocupando o mesmo lugar na devoção”
(ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 105) salientamos que optamos pelo uso dos termos
milagreiro, e sublimação para tratar e explicar o fenômeno Zé Menino, uma vez que
contemplam melhor essa devoção.
Não faria sentido utilizarmos, mesmo que para facilitar o entendimento das
pessoas sobre o tema, os termos que designam claramente os pontos opostos de cada
61

religiosidade, canonizar e sublimar marcam nesse trabalho os pontos chaves para a


compreensão de como um se opõe ao outro, como esses catolicismos se colocam em
diferentes lugares, ora se pensamos o conceito de sertão como fronteira, seria essa
também uma fronteira a ser compreendida. Para Andrade Junior, a canonização define o
processo pelo qual “passaram e passam os agentes sagrados que enfrentam toda a
burocracia eclesiástica até serem oficializados como santos” (ANDRADE JUNIOR,
2021, p. 94).
Por outro lado, entendemos a sublimação como forma de “identificar a
sacralidade em relação a um agente que não passou pelo esmo processo relativo aos
cânones católicos” (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94). Para o autor, ao se apropriar do
conceito originalmente da Química para identificar a transição de um estado físico para
outro, no caso dos milagreiros, imediatamente após a morte, se tornam sagrados e
operadores de graças e milagres, sem que passem por nenhum processo para que assim
sejam entendidos. Assim como como Andrade Junior também ficamos, para os efeitos
deste trabalho, os limites de cada conceito, sublimação para o campo do não-oficial e
canonização para o campo do oficial. Segundo o autor a “sublimação se dá a partir da
vivência dos devotos com suas crenças, sem intermediações, deixando apenas aflorar a
fé nas potencialidades do morto em fazer e intermediar graças e, em muitos casos,
milagres.” (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94). A sublimação permite aos fiéis viverem
de forma livre a fé em figuras que tiveram na passagem da morte para a vida, condições
que são entendidas por eles como extraordinárias, e dignas de um tratamento diferente
dos demais.

Partindo dessa delimitação, exemplificamos o caso de uma milagreira que passa


a ser santa, que sai das margens e é absorvida pelo oficial. É o caso da cearense Benigna
Cardoso dos Santos, nascida em 15 de outubro de 1928 e assassinada aos 13 anos
quando buscava água em uma cacimba (SILVA, 2021), em 24 de outubro de 1941, a
golpes de facão, por se negar a ter relações sexuais com seu assassino.
Benigna, logo ganhou a atenção dos fiéis desejosos por milagres, a forma como
seu culto acontece é bem peculiar, uma fé que se expressa em poá vermelho e branco.
De imediato sua devoção caiu nas graças do catolicismo oficial, tendo as características
de um martírio em nome da fé e da pureza já bastante conhecido no meio católico como
é o caso das santas Luzia e Inês que dentro da hagiografia católica podem ser entendidas
62

como defensoras da castidade, tendo em vista como se deram, segundo a tradição, as


suas mortes.
Sendo assim, a resistência ao assédio, por parte de Benigna, fez com que ela se
tornasse “um símbolo da defesa da honra e dos valores familiares” (SILVA, 2021)
recebendo o título de “Heroína da castidade”. Sua devoção começa ganhar novos
aspectos e em 2012 após seus restos mortais serem transferidos de Inhumas-CE sua
cidade natal, para a igreja matriz de Santana do Cariri-CE, tornando esse lugar um
santuário, onde se dirigem multidões de devotos à Menina Benigna.
Benigna foi beatificada no dia 24 de outubro de 2022, subiu aos altares oficiais,
deixou de ser uma milagreira não-oficial e passou ao status de beata e mártir e daqui
alguns anos de Santa com a outorga da igreja, podendo ser venerada em seus altares por
todo o mundo.
Para além das capelas erguidas em honra aos milagreiros e também como sinal
físico da sacralização daquele espaço, o cemitério e mais precisamente os túmulos
figuram como locais sagrados da devoção aos milagreiros, quebrando a ordem espacial
do campo santo, alguns túmulos se diferenciam dos demais, seja por meio dos ex-votos
depositados no túmulo ou pela grande quantidade de velas que são acesas. Dos
milagreiros elencados aqui como forma de expressar outras devoções, alguns deles são
que chamamos de milagreiros de cemitério.
Como é o caso de José Leite de Santana, o cangaceiro Jararaca, que morreu na
cidade de Mossoró em 1927. De bandido a milagreiro, obteve uma redenção post
mortem:

O cemitério, como espaço onde provavelmente ocorreu a morte de Jararaca e


local onde as visitações e devoções são postas em prática, é muito mais que o
espaço para a devoção, se configura como lugar de conflito entre os que
vêem Jararaca como um criminoso sanguinário, que não merece perdão e os
que se sensibilizaram com as narrativas sobre sua trajetória em Mossoró.
(FALCÃO, 2011, p. 12).

Todas as histórias contadas sobre o cangaço e passadas de geração a geração,


toda a valentia, rebeldia e coragem dos cangaceiros, o medo dos povos da cidade, as
invasões, a truculência das abordagens, o rastro de sangue, havia também toda uma
mítica que envolvia os homens e mulheres do cangaço, a religiosidade também era
bastante presente, a título de lembrança, no filme O Auto da Compadecida, a história se
desenrola como popularmente dizemos aqui pelos sertões do Seridó “com mentiras e
63

tudo” até o momento em que João Grilo, ludibria o cangaceiro chefe do bando no filme,
com uma gaita que segundo ele teria sido benta por seu padrinho Padre Cícero, logo o
cangaceiro, se prontifica a morrer para ter um encontro com seu padrinho, à intenção de
relembrar essa passagem do filme inspirada na obra de Ariano Suassuna, foi para relatar
como no imaginário popular, esses sujeitos se relacionavam, apesar da vida que
levavam, com o sagrado. No caso de Jararaca, acontece uma espécie de redenção, de
bandido sanguinário após sua morte, passa para o patamar do sagrado, realizando
milagres.
Como em outros casos, o túmulo mais visitado no cemitério São Sebastião, em
Mossoró (RN), é o de Jararaca, e que chama a atenção de curiosos para o túmulo
(FALCÃO, 2011). A forma como os devotos se comportam diante do túmulo do
milagreiro, e como contam as suas experiências servem ainda, como uma expansão da
devoção. Da maneira como aconteceu a morte de Jararaca é somada as dezenas de
graças alcançadas, nesse sentido a devoção é propagada, além da oralidade e notícias de
jornal, a história do cangaceiro que virou milagreiro ganhou também as páginas dos
cordéis, como foi analisado por Andrade Junior em 2018. Os cordéis são clássicos da
cultura nordestina e ainda são bastante lidos e divulgados, parte do que os devotos
sabem a respeito da vida e morte de Jararaca foi informado por cordéis, também por
conta da facilidade de acesso a estes folhetos, a análise de Andrade Junior se estendeu
por cordéis que tratavam da história do cangaço, de Jararaca e das suas aventuras
enquanto cangaceiro e de sua fama como “santo”41 após a morte bastante violenta por
parte seus agressores.
Nesse aspecto, durante a construção da devoção a Jararaca, o túmulo passou a
ocupar um lugar simbólico, ali convergem céu e terra, é o encontro dos planos espiritual
e terreno, lugar onde a fé dos devotos encontra espaço para se expressar e divulgar,
como forma de agradecimento, os feitos miraculosos do milagreiro.
Ainda tratando dos milagreiros que tem no cemitério seu local de devoção,
encontramos o caicoense e médico Carlindo de Souza Dantas. Um sujeito que após a
morte, continua, segundo as narrativas operando, atendendo e receitando as pessoas nos
mais diversos hospitais ou casas do Seridó (OLIVEIRA, 2015).

41
Nos cordéis analisados por Andrade Junior, aparece a menção a “santo” quando se referem à atuação de
Jararaca após a morte, alguns exemplos são: POETA, Nando. Jararaca o cangaceiro que virou santo. São
Paulo: Luzeiro, 2014; SENNA, Costa. Jararaca, o cangaceiro santo. Fortaleza: Tupynanquim, 2013.
64

Carlindo Dantas nasceu em Caicó no ano de 1934 e foi assassinado em 1967. A


vida e morte de Carlindo Dantas, como vemos na dissertação de mestrado de Mary
Campelo, foi cercada de polêmicas, além de médico a vida pública lhe deu bastante
notoriedade entre as camadas sociais do Seridó, ao entrar na política com uma
campanha com bastante popularidade foi eleito deputado estadual aumentado ainda
mais a sua fama principalmente junto aos mais pobres, entretanto a vida na política não
lhe rendeu apenas os bons frutos do reconhecimento, angariou também alguns inimigos
políticos, Carlindo chegou a ser preso acusado de um assassinato, mas logo foi liberado,
porém teria sua vida interrompida logo depois também vítima de um assassinato,
chegando ao fim sua carreira política e profissional. (OLIVEIRA, 2015).
Contudo após sua morte, toda uma comunidade que reconhecia nele o médico
dos pobres passou a creditar milagres a sua figura, tornando seu túmulo no cemitério
Campo Jorge em Caicó-RN o mais frequentado no dia de finados. Não faltam relatos de
pessoas que foram atendidas pelo próprio Dr. Carlindo Dantas depois de morto, além da
sua fama como caridoso em vida, sua fama como milagreiro se estabeleceu após sua
morte. Pode-se observar entre os fiéis que visitam o túmulo de Carlindo uma variedade
de credos, como afirmou Oliveira, “os devotos que vão à sepultura de Carlindo são
advindos de muitas religiões, Espiritismo, Umbanda, Catolicismo” (OLIVEIRA, 2015).
Quando decidimos fazer o mestrado, nas nossas pesquisas também estavam os
Anjinhos Queimados de Jucurutu-RN, porém ao afunilarmos a nossa abordagem,
optamos apenas pela devoção a Zé Menino. Destes milagreiros mais próximos
espacialmente da nossa pesquisa talvez esse seja o caso mais cinematográfico, a forma
como se deu a morte dos três meninos, foi no mínimo surpreendente, segundo as
narrativas tudo começou com um sonho premonitório42, “três malas brancas cheias de
vísceras”, como manda a tradição, quando se tem pesadelos tão intensos assim, contar o
sonho em voz alta em baixo de uma arvore é um resguardo ou uma tentativa de
afugentar o mal que se aproxima, porém segundo a narrativa, se valer desse método não
adiantou e o pior aconteceu.
No dia 2 de dezembro de 1969, um incêndio ceifou a vida de Edval, Antônio e
Ednaldo, o pai dos meninos era devoto de Nossa Senhora da Conceição, festejada em 8

42
A informação do sonho premonitório sobre a morte dos Anjinhos Queimados de Jucurutu, foi obtida no
dia 8 de dezembro de 2019, quando visitamos a comunidade Pangoá para a missa de 50 anos da morte dos
meninos. Uma devota que participava da missa nos contou sobre essa versão da história, o relato foi
documentado no caderno de campo, já que nesse dia especificamente, não conseguimos gravar as
entrevistas em virtude do pouco tempo que dispúnhamos.
65

de dezembro, como forma de devoção tinha o costume de soltar fogos em homenagem a


virgem, porém naquele ano, os fogos foram acionados pelas chamas do incêndio
anunciando a morte das crianças. O fato comoveu toda cidade de Jucurutu, a morte das
crianças teve grande repercussão e permanece até hoje na memória daqueles que
vivenciaram o ocorrido. Pelo fato da morte ter acontecido de forma trágica e com
crianças inocentes, havia a necessidade de uma reparação divina como era entendido
pelo imaginário das pessoas que presenciaram o ocorrido, estes meninos após a morte se
tornariam anjinhos a assim operariam milagres.

Imagem 05:

Capela 3 irmãos no Pangoá, 2019. Wesley Simão

Na imagem vemos a capela dos Anjinhos Queimados no Pangoá43 (local da


morte) no dia 2 de dezembro de 2019, na missa em memória dos 50 anos da morte dos
meninos.
Nesse caso especificamente temos dois locais distintos para o culto, a cova onde
os meninos estão sepultados no cemitério público de Jucurutu e a capela votiva aos três
irmãos que fica localizada na Serra de João do Vale, na comunidade Pangoá, no mesmo
local onde era a casa das crianças e aconteceu o incêndio. Restou como testemunha
física do acontecimento, uma tora de madeira queimada da casa onde os meninos
moravam. No cemitério encontramos uma cova simples na terra, com um cercado de
metal onde são amarradas inúmeras fitas de cetim coloridas representando os ex-votos,
no Pangoá na capela vemos três cruzes abarrotadas de fitas, ex-votos e muitas imagens
de santos católicos.

43
O Pangoá é uma das muitas comunidades da Serra de João do Vale, com acesso bem difícil e distante
para chegar até lá.
66

Imagem 06:

Devota amarra fitas no gradil dos Anjinhos Queimados de Jucurutu, 2019 Wesley Simão.

Percebemos uma variação espacial dessas devoções, seja em cemitérios, ruas ou


capelas isoladas no meio dos sertões, a fé das pessoas em torno dos milagreiros e
milagreiras, sacraliza diferentes espaços. Vale salientar que as pesquisas sobre
milagreiros no Seridó Potiguar, partem da perspectiva inicial e orientação do professor
Lourival Andrade Junior.
Ainda no Seridó, vemos também a devoção a Zé Leão, milagreiro muito famoso
em toda a região. Na Vila de Flores, antes de se tornar Florânia-RN, um acontecimento
trágico comoveu não apenas a pequena Vila, mas as cidades vizinhas que ficaram
sabendo do ocorrido. Conta-se de um jovem fazendeiro, com grandes posses e muito
famoso, o cabedal do rapaz teria provocado em outros fazendeiros, segundo as
narrativas, a ganância e ambição. Zé Leão foi vítima de uma emboscada, no dia 20 de
janeiro de 1887, teve seu corpo esquartejado e jogado em uma fogueira, tal
acontecimento comoveu o grupo social do qual Zé Leão fazia parte e logo começou a
realizar milagres segundo os devotos.
Durante muito tempo, Florânia ficou conhecida como a terra do mata e
queima, numa referência ao que aconteceu com Zé Leão, a fama de milagreiro logo se
espalhou, na cidade não faltam narrativas sobre as obras miraculosas que acontecem em
torno da sua figura, no local de sua morte construíram uma capela que abriga dezenas de
ex-votos. É interessante mencionar que muitas vezes durantes conversas com os devotos
ou pessoas que conhecem a devoção a Zé Menino, observamos que algumas pessoas
acabam se confundido e misturando as histórias de Zé Leão e Zé Menino, dada a
67

semelhança e também proximidade geográfica, nesse sentido redobramos o cuidado ao


analisar as falas dos devotos e perceber onde as duas histórias se misturam.
Segundo os relatos, em 1947 a cidade de Florânia recebeu a visita de um
religioso informando que havia sonhado com uma montanha próxima a cidade, e que ali
havia o corpo santo de uma menina, tal mistério deveria ser revelado (SILVA, 2010). A
partir de então se desencadeou a devoção a Menina Santa, o pé de umburana onde
supostamente seu corpo teria sido encontrado passou a ser também representação dessa
devoção que só crescia, ao monte que ficou conhecido como Monte das Graças centenas
de devotos, recorriam a Menina Santa, pedindo e agradecendo as graças recebidas.
Numa perspectiva atualizada, percebemos que apesar da origem não-oficial, a
devoção a Menina Santa vem ganhando formas e características oficias, ao ser agregada
a devoção a Nossa Senhora das Graças, o monte onde outrora era dedicado a menina,
hoje está passando por uma reforma para se tornar oficialmente o Santuário Das Graças.
Percebemos aqui a anexação e até mesmo uma fundição da fé não-oficial com a oficial,
sendo méritos da administração paroquial em inibir o culto a Menina Santa em vários
aspectos, inclusive ao indicar que a devoção seja a Nossa Senhora Menina44, ignorando
a origem devocional do próprio monte e também da imagem da menina. Nesse caso é
praticamente impossível distinguir atualmente os votos e ex-votos dedicados a Menina
Santa e ou a Nossa Senhora das Graças. Na visita técnica que realizamos no monte,
pouco percebemos do culto originário à menina.
Entendemos que essas práticas devocionais são bastante fluídas, como já vimos
no decorrer do texto, ao passo que são geridas pelos devotos, vez ou outra a igreja se
apropria de devoções que lhe são convenientes, seja pela semelhança com os mártires da
fé católica, ou invisibilizando essas devoções para não dividir seu rebanho. Algumas
crenças podem entrar em declínio, é uma questão delicada de se tratar, que abre um
leque de possibilidades a serem observadas, como por exemplo a questão do direito ao
esquecimento ou em alguns casos a efetivação do silenciamento por parte do viés
oficial.

44
Ainda há muito o que se entender a respeito da devoção a Menina Santa de Florânia, cabe menção a
presença peculiar da imagem de Nossa Senhora Menina, padroeira da Igreja Católica Apostólica
Brasileira.
68

CAPÍTULO 3

A DEVOÇÃO NÃO-OFICIAL AO FINADO ZÉ MENINO.

3.1 O MILAGREIRO, SEU CULTO, SEUS DEVOTOS

“O terreiro dessa casa é um terreiro de flor, nele


está pra chegar um santo tão milagroso, nele está
pra chegar um santo tão milagroso.”
Da tradição popular

Neste terceiro capítulo apresentaremos a devoção a José Batista Serafim ou Zé


Menino, milagreiro cultuado na Zona Rural do munícipio de Jucurutu RN, onde
analisamos os relatos orais em torno da devoção e do seu local de culto. É aqui onde
abordamos as fontes desta pesquisa, fontes orais coletadas através de entrevistas
aplicando a metodologia da História Oral, as fontes materiais, além da análise
etnográfica feita nas visitas em campo.
Veremos a relação entre devotos e o milagreiro bem como o culto em torno de
sua figura, sendo essas ações que produzem as marcas materiais como os ex-votos, a
capela, o cruzeiro, as velas, as fitas e as marcas imateriais como as orações, canções, o
barulho dos fogos entre outros.
No amanhecer do dia 19 de março de 2019 nas primeiras horas da manhã, nos
dirigimos até o sítio Riachão, seria a primeira vez que acompanharíamos de perto a
peregrinação anual, no dia separado para a comemoração do finado Zé Menino, ao
chegar na comunidade, percebemos que um burburinho entre as casas quebrava o
silêncio do início da manhã, os devotos e devotas já estavam se preparando para mais
uma demonstração de fé.
Ansiosas, as mulheres começam a peregrinação, entre uma Ave Maria e outra,
conversas sobre o dia a dia, entre um bendito e outro, a fé era compartilhada, os
meninos corriam e soltavam fogos durante o percurso, as meninas brincavam de mãos
dadas com suas mães. Os raios do sol refletiam nas gotas de orvalho que molhavam a
grama no chão e as folhas das arvores que emolduravam a estrada de terra molhada por
onde andavam os pés desejosos pelo lugar sagrado, desviando das poças de água e
pequenos riachos provenientes das ultimas chuvas, as conversas, orações e cantorias
69

fervorosas se misturavam ao cantar dos pássaros que terciam mais uma manhã de
inverno naquele sertão.
Tradicionalmente o dia 19 de março é muito aguardado pelo sertanejo, pois
segundo a tradição, é preciso que chova no dia de São José como uma espécie de
confirmação que o ano será bom de inverno, e as plantações teriam água suficiente, para
se desenvolver, inclusive o ato de plantar em “São José para colher em São João”,
plantando por exemplo, milho no dia de São José, as espigas estariam prontas para
retirada nos festejos do santo junino. As secas castigam muito os sertões ao longo do
tempo, e se valer de um santo que pode abrir as comportas do céu e fazer chover, parece
ser uma boa opção para quem mora por aqui, e esse percebemos ser um forte indicativo
da relação entre as fervorosas devotas ao patriarca São José.

Imagem 07:

Peregrinação, 2019. Wesley Simão

3.2 ENTENDENDO A DEVOÇÃO

Nas narrativas sobre o crime que fez Zé Menino tornar-se milagreiro,


encontramos algumas variações, desde a forma como se deu o planejamento e execução
da sua morte e os desdobramentos depois desse acontecimento e até mesmo alguns
aspectos míticos, que segundo algumas fontes estiveram presentes no desenrolar da
história, até surgirem os primeiros indicativos da devoção como o que nos foi relatado
pelos narradores e narradoras.
70

Quando perguntamos como se deu o crime que tirou a vida de José Batista
Serafim, nossos interlocutores, parecem ter vivenciado o acontecimento, devido a forma
como nos passam as informações, embora o crime tenha acontecido na década de 30 do
século passado, a comoção com que os narradores contam a história é de impressionar, é
algo que está tão arraigado no imaginário coletivo, que parece que eles próprios
presenciaram todo o sofrimento de Zé Menino.

Diz que houve uma vaquejada aqui pro lado de Triunfo e vieram de lá pra cá
vieram dessa vaquejada, pegaram ele por aqui (inaudível) vieram judiando
de lá pra cá, ai chegaram aqui, parece que mataram ou cegaram ele, cortaram
língua, penduraram (...) arrastando, lançaram no cavalo aí vieram arrastando
nesses pedregulhos e ele: Eu sou inocente! eu sou inocente! Aí deram demais
nele. (COSTA, 2019)

Triunfo ao qual o narrador se refere, é a cidade de Triunfo Potiguar, distante 30


km de Jucurutu, entendemos que havia uma certa movimentação de pessoas entre esses
municípios, principalmente na zona rural, alguns narradores indicam que Zé Menino era
natural de Campo Grande, distante 46km de Jucurutu, o que explicaria que muitos
devotos eram campograndenses.
Analisando as fontes orais, não conseguíamos definir uma data exata para o
crime, nos aproximávamos da década de 30 do século passado, mas nenhum narrador ou
narradora conseguiu com exatidão informar a data correta, quando tentavam explicar
afirmavam que “foi no tempo antigo”, “minha mãe nem era nascida” entre outras
afirmativas que para eles indicavam um tempo histórico, e de fato indicam o tempo que
para eles fazia sentido. Porém, pesquisando no jornal A Ordem45 encontramos uma
pequena menção ao crime, que resultou na morte de Zé Menino.
Imagem 08:

45
Jornal da Arquidiocese de Natal, fundado em 1935.
71

Jornal A Ordem, 1937

Nesse pequeno informativo, publicado no dia 12 de fevereiro de 1937, temos


acesso ao ano da morte, o local Olho d’Agua e o nome dos assassinos como o próprio
jornal afirma, os dois executores Joaquim Pereira e Eduardo Lopes, e o mandante do
crime José Lourenço, como podemos ver na imagem, a reportagem indica que
“assassinaram barbaramente” José Serafim filho, aqui encontramos uma divergência
entre as fontes orais e a fonte hemerográfica sobre o nome do milagreiro, no cruzeiro
menor que fica no local onde o corpo de Zé Menino foi encontrado, na cruz esta a
inscrição “J. B. S” indicativo de José Batista Serafim como relatado pela colônia de
narradores. Por tanto optamos para chama-lo pelo nome que as fontes orais e o cruzeiro
indicam.

3.3 ASPECTOS MÍTICOS

Nas entrevistas podemos perceber alguns aspectos míticos que dão ênfase a
questão da devoção, tirando a morte de Zé Menino de um lugar comum e alçando ao
extraordinário, para a comunidade o espaço que serviu de palco para a trágica morte de
José Batista Serafim, começou a dar demonstrações de que tinha se tornado diferente de
outros lugares, passando a ser sagrado:

Tinha um pé de pereiro acho que penduraram ele nesse pé de pereiro, esse pé


de pereiro podia dar a maior seca (fogos) diz que secava todos os pés de
arvore que tinha aqui secava a folha caia tudo e o pezinho de pereiro chovia
direto nele era bem verdinho e chovendo, começou a obrar milagre muita
gente rezava pedia prece fazia prece pra ele era e essa prece sempre a pessoa
72

ficava boa, quebrava uma perna (fogos) fazia a prece, o braço adoecia ficava
muita gente de cama pedia e sempre recebia a prece dele que eu sei que eu
vejo o povo falando é isso (COSTA, 2019).

Nesse trecho transcrito de uma entrevista realizada no dia 19 de março de 2019,


com o senhor Mauro Batista da Costa (65 anos), podemos perceber algumas
particularidades, que podem diferenciar e qualificar essa devoção, pelas características
que são descritas pelo narrador, um pé de pereiro46, planta nativa da caatinga e
facilmente encontrada em grande quantidade nesses sertões. Nas narrativas o pé de
pereiro, miraculosamente resistiu a todas a intempéries do tempo, suportando as mais
terríveis secas, permanecendo verde, e mais impressionante ainda, sempre tendo orvalho
sobre suas folhas, esse fenômeno segundo a oralidade, indicou que aquele não era mais
um pé de pereiro comum, após ter sustentado o corpo desfalecido de Zé Menino, a
madeira do pereiro tornou-se um indicativo da sacralidade daquele espaço.
Podemos identificar na fala do devoto, a presença de vida no pé de pereiro,
mesmo que ao seu entorno as outras arvores estivessem adormecidas pela seca, esse fato
se caracteriza como uma manifestação do sagrado, e indicação de que a partir da morte
de Zé Menino, aquele espaço demonstrou para o devoto uma diferença visível se
transformando em um espaço onde o sagrado era manifesto, essa questão pode ser
entendida pelo conceito de hierofania, Mircea Eliade (1992) para designar a
materialização do divino.
Para Eliade, a manifestação do sagrado por meio das hierofanias é parte
fundamental para a constituição da história das religiões, sejam “as mais elaboradas ou
as mais primitivas”, como mencionado pelo autor. Essa manifestação pode acontecer
com qualquer objeto, uma arvore ou uma pedra por exemplo. Nesse sentindo esses
objetos quebram a ordem espacial, mostram-se diferentes da realidade.
No caso De Zé Menino, o pé de pereiro assumiu esse papel, de manifestação do
extraordinário, do divino, ocorreu uma mudança de sentido em relação aquela árvore,
passou a revelar que não era mais apenas uma planta tão comum ali, e sim o próprio
sagrado. Ao romper com a homogeneidade espacial a hierofania, funda um centro
sacralizado, revelando um ponto fixo. (ELIADE, 1992, p. 17).

46
Aspidosperma pyrifolium – é uma planta de origem nativa, característica da Caatinga, que ocorre
amplamente em regiões semiáridas e em solos pedregosos. É uma espécie, segundo a literatura, adaptada
a baixa pluviosidade e a altas temperaturas. É uma arvore de tronco ereto, não muito grosso, seu fruto e
popularmente chamado de “galinha” pelo formato de gota achatada. Informações do NEMA – Núcleo de
Ecologia e Monitoramento Ambiental - UNIVASF
73

Em outro ponto de vista mítico sobre a morte de Zé Menino, a narradora


Francisca Maria de Figueiredo (60 anos), conta que segundo as histórias que ouvia, a
própria Nossa Senhora teria cuidado e conduzido o finado Zé Menino até sua casa,
temos aqui outra versão da história:

Mas ai que diz que eles pensavam que tinham deixado ele morto. O burro era
muito bravo assim muito, ninguém chegava perto mas ai diz que que ele tava
na noite, e chegou uma mulher toda com um lenço azul um pano azul na
cabeça e perguntou se ele queria sair dali e ele disse que queria, ai disse que
mulher pegou no cabresto do burro e conseguiu botar ele no burro, aí diz que
ele chegou até em casa e quando chegou em casa que falou botou a mão nos
ferimentos que dizem que eram nas costelas muito fortes saindo os fígados
sei lá pra fora e falou quando chamou e diz que a mulher saiu e ele caiu
(FIGUEIREDO, 2019).

Ao associar a imagem da virgem Maria auxiliando o moribundo a retornar para


sua casa e contar aos seu familiares o que aconteceu e quem teria feito aquilo com ele,
essa narrativa demonstra como esse grupo entende as questões espirituais, no
imaginário católico, além de intercessora, Maria também é vista como advogada no
tribunal celeste, e auxiliadora nos últimos momentos da vida, é para quem os sertanejos
católicos recorrem na oração Ave Maria Sertaneja de Luiz Gonzaga, a forma como ela
é inserida na história, é muito significativa, pois demonstra que a morte de Zé Menino,
fugia da realidade de tantas outras mortes, e ainda mais, a manifestação do divino teria
feito saber a notícia sobre quem teria praticado o crime, a versão contada por Figueiredo
não é a mais conhecida pelos devotos, já que a maioria afirma que o milagreiro foi
encontrado já sem vida no mesmo local, onde deixaram seu corpo.
Outro fator que insere na história de Zé Menino aspectos sobrenaturais, foi a
forma como segundo os devotos terminou a vida de seus assassinos, “conversa que já
viram o José Lourenço o que mandou matar as vezes ele se agoniava por lá vinha aqui
pedir perdão” (COSTA, 2019) essa reviravolta que acontece na história, para os devotos
é mais uma afirmação da inocência e da sacralidade do milagreiro.

muita gente falou isso e esse Eduardo que matou ele, ele virou corpo seco em
vida em vida mesmo, os braços dele aqui a parte do músculo aqui, era bem
fininha e o meio do braço dele era todo inchado (...) ele virou corpo seco em
vida eu conheci ele demais (fogos) Zé Lourenço e Eduardo foi quem matou
(COSTA, 2019).

O torna-se corpo seco ou secar ainda em vida teria sido um dos castigos que os
algozes de Zé Menino teriam enfrentado, no imaginário do sertão o corpo seco
74

representa uma espécie de punição para pessoas más e também é motivo de


assombração para os que ficam, visualizar um corpo seco segundo as narrativas é de
causar horror em qualquer um, na maioria dos relatos coletados os devotos atribuem o
mesmo fim para os malfeitores, inclusive atribuindo outros castigos de ordem genética
para as gerações que sucederam, que por ser um assunto bastante delicado, tendo em
vista a descendência desses personagem, preferimos não adentrar nessas questões por
motivos éticos.

3.4 NARRATIVAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DA CAPELA

Passada a morte de Zé Menino e todos os acontecimentos sobrenaturais ou não,


que se seguiram, os devotos começaram a aparecer e se multiplicarem, nesse momento
já tendo fama de milagreiro, o finado recebe um pedido, que se atendido resultaria na
construção de uma capela em sua memória.

A história que eu sei que o povo contava que o finado Martin Mariz, “Martim
Beiçudo”, sabe? É fez um voto lá onde mataram esse rapaz fez um voto diz
que a esposa dele era paralítica, sabe, a história que o povo conta, não é eu
que tô (...) como se diz é... era paralítica, ele fez esse voto que se a esposa
ficasse boa ele construiria uma capela lá no local onde tinham matado Zé
Menino, ai a esposa ficou boa e ele construiu essa capela (FIGUEIREDO,
2019).

Outra história que dá indícios segundo a oralidade, embora seja uma versão
menos conhecida e citada pela nossa colônia de narradores, nos foi relatado por dona
Maria José de Melo da Silva Fonseca (70 anos):

De um menino que se perdeu ou caiu dentro de um minério a conversa é


assim não sei dizer direito não, ai esse homem já tava sem poder, sem saber
como que fazia ai pediu um voto ao finado Zé Menino se ele ajudasse a tirar
o menino de dentro do minério, da banqueta ele construía a capela.
(FONSECA, 2019).

Os relatos sobre como a capela surgiu a partir das graças pedidas e alcançadas
através de Zé Menino podem ser explicadas a partir de Yi Fu Tuan que caracterizou o
espaço como um lugar que se constitui a partir da experiência. Utilizamos o conceito de
lugar experimental, para entender como esse espaço toma formas de lugar sagrado a
parir das vivências e experiências dos sujeitos que frequentam esse espaço, atribuindo a
ele significado (TUAN, 1983, p. 5).
75

Diante do exposto, podemos perceber que a fama do milagreiro já existia antes


mesmo da construção da capela, e que a variação de versões sobre o início da devoção
pode está associada a desencontros de informações sobre o acontecimento, embora
muitos pontos sejam semelhantes e se cruzem a cada versão, por exemplo, tanto a
promessa feita para a recuperação da esposa, quanto para encontrar o menino perdido no
minério encontra da figura de seu Martins Mariz seu construtor. Trouxemos esses
exemplos por entendermos que esse espaço se tornou após a morte de Zé Menino, parte
daquela comunidade, um lugar de significativa experiência como afirmou Tuan ao tratar
dos espaços.

3.5 EX-VOTOS

Dada à construção da capela e de suas reformas, centenas de ex-votos foram


depositados, a cada novo encontro dos devotos com o lugar sagrado “sei que o povo
começou a fazer votos começaram a botar perna, braço de madeira sabe, fazer o voto ai
é válido botar roupas, camisa, calça essas coisas e era válido, até cabelo botam lá”
(FIGUEIREDO, 2019). Embora a narradora cite esses ex-votos, constatamos uma
variedade maior de peças depositadas pelos devotos, como peças em madeira e gesso
representando partes do corpo, caixas de remédio, fotos, roupas de santos, uma
imensidão de fitas coloridas, cordões de São Francisco, além de velas e fogos, outras
ações também caracterizam o pagamento das dívidas com o milagreiro, como o cuidado
e zelo pela capela e a manutenção do seu enxoval: lavar as peças de roupas depositadas,
bem como os panos do altar, são exemplos de outras formas de gratidão além dos ex-
votos.
Os ex-votos, além de representarem a gratidão do crente para com a benesse do
milagreiro, também servem como propagação de seus poderes, divulgando seus feitos,
ampliando sua fama e conquistando mais devotos. “Quase todo dia a gente escuta fogos
de lá, (...) difícil num mês pra não ter duas, três vezes no mês pra não ter fogos lá gente
pagando promessa que lá não é fechado não” (FONSECA, 2019).
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Imagem 09:

Ex-votos, 2022, Lourival Andrade Junior

Imagem 10:

Cruz com fitas e roupas, 2022. Allan Matson

Muitos são os relatos de graças alcançadas através de Zé Menino, a prova física


desses milagres é a presença dos ex-votos. Seja relacionado a doenças de causas
naturais ou acidentes, o finado atende sem demora quem o solicitar, nas nossas
abordagens, não identificamos milagres feitos em outras áreas que não da saúde. É
interessante ressaltar a presença dos ex-votos, pois eles são indicativos da existência do
milagreiro, para Andrade Junior “não há milagreiro sem devoto” (ANDRADE JUNIOR,
2021, p. 90) o mesmo vale para os ex-votos, não há milagreiro sem ex-voto, pois a
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presença do ex-voto garante a presença de devotos e a manutenção da devoção, é uma


espécie de propaganda das ações do milagreiro.

No tempo que eu quebrei minha perna eu fiz uma promessa que quando eu
tirasse o gesso (...) quando eu tirei o gesso foi a primeira viagem que eu fiz
foi de pés daqui pra acolá meio dia me ponto uma hora da tarde, fui até mais
uma vizinha ali, aí eu subi, quando subisse o alto entrava na capela de
joelhos, mas não tinha aquele altar nem aquela cruz, era uma cruzinha do pé
de pereiro que o povo dizia que acharam ele, a cruz era um pé de pereiro
dentro da capela ai era uma tabuinha aqui assim apregado nesse pé de
pereiro, (...) quando eu fui entrando na capela de joelho (...) foi quando eu
acreditei que Jesus e São José e o finado Zé Menino protege (...) quando eu
entrei na capela, tenho uma testemunha, ai tinha uma abelhas que chama,
como é meu Deus... o nome das abelhas? Caboclas! Umas vermelhas
grandes, essas abelhas caíram em cima de mim, pegaram nos meus braços no
meu rosto, ai foi comadre Natividade disse: Comadre Zezé se levante! Eu
disse não! Não, me levanto não. Vou mostrar a São José e ao finado Zé
Menino como eles tem proteção eu não vou sentir nada, nem me dar dor de
cabeça nem febre nem nada, ela disse comadre se levante! Não me levanto!
Ai quando eu fui arrodeando o altarzinho de joelho sabe? Que eu fui dando a
curva ai tinha a capa delas ai foi que caíram em cima de mim, e eu aguentei
até o fim ai quando arrodeei todinho a cruz e o altarzinho ai voltei pro
altarzinho e rezei (...) Graças a Deus vim embora não inchou nada, não tive
febre, não tive dor de cabeça. (FONSECA, 2019).

O relato de dona Zezé, demostra como a fé pode ser força motora para algumas
ações, mesmo sob o ataque das abelhas terminaria de pagar sua promessa e assim seria
manifesto como um atestado de veracidade, as ações poderosas de São José e Zé
Menino, em outra oportunidade durante as conversas, perguntada se fazia as promessas
para São José ou para o finado Zé Menino, a entrevistada disse que para os dois, pois
os considera a mesma coisa.

Eu quebrei essa perna ai pedi um voto a São José se eu ficasse boa, não
ficasse com negocio ai ele me valeu ai dai pra cá graças a Deus,
_São José ou Zé Menino?
Os Dois! Os dois porque eu me vali de São José e do finado Zé Menino né e
todos dois me valeram peço pra mim, peço pros meus seis filhos que eu tenho
tudo são validos, sou muito devota a meu pai eterno também e nossa senhora
de Fátima. (FONSECA, 2019)

Observamos também a relação bem visceral da comunidade rural Riachão com a


capela e cruz do finado Zé Menino, no dia 19 de março, as mulheres da comunidade,
preparam um café da manhã compartilhado, levam para a capela variadas guloseimas da
tradição sertaneja, diferentes tipos de bolo, bolachas, tapiocas, café e chás, estendem
panos sobre a calçada, do lado direito da capela (lado da sombra) dispondo os alimentos
sobre eles, e assim está montado uma espécie de piquenique ritualístico.
78

Essa ação orquestrada pelas devotas, muito nos lembra, a prática descrita por
Cláudia Rodrigues do que a autora chama de banquete funerário, que consistia na
reunião das famílias em torno dos túmulos de seus mortos, “oferecendo assim esses
banquetes sobre as tumbas – cada família possuía seu túmulo – ocasiões nas quais a
parentela se reunia para uma refeição funerária” (RODRIGUES, 2005, p. 41).
No caso de Zé Menino, a capela faz às vezes de túmulo, em vez dos restos
mortais, permanece como lugar de memória, se antes, como descreve Rodrigues, as
famílias se reuniam em torno das catacumbas para ofertar toda piedade ao morto, as
devotas ressignificam essa prática ao se deliciarem com as suas iguarias em memória do
finado Zé Menino, nesse caso como em um banquete comemorativo. Vemos assim
outro aspecto importante dessa peregrinação, que é o de sociabilização, rever pessoas
que há muito tempo não se via, colocar as conversas em dia e até mesmo compartilhar
receitas.
Este é um espaço de experiências, ele é sentido, visto, tocado e cheirado (TUAN,
1986, p. 203). A imagem que segue mostra como o café compartilhado é servido,
mostrando também o consumo no local.

Imagem 11:

Café compartilhado, 2022. Lourival Andrade Junior.

É nessa confraternização que as pessoas vão conversando e sempre relembrando


o sofrimento de Zé Menino, contando das graças alcançadas, falando sobre a vida e o
cotidiano, a reunião dos devotos no alpendre da capela, parece mais a reunião de uma
grande família. A cuidadora da capela, dona Raimunda passa o ano todo na expectativa
79

para o dia 19, neste dia, chega à capela bem cedo e passa o dia recepcionando as
dezenas de fiéis, dona Raimunda nos conta como começou a tomar conta da capela:

_Eu era casada com o filho do finado Martins, o que fez aqui, construiu, fez
um voto e foi valido.
_Fez um voto a quem?
_Ao finado Zé Menino ai ele foi valido ai ele construiu aqui, ai muitos anos
ele ficou que era vivo ficou fazendo, aí quando ele morreu eu tomei conta, aí
eu me separei do meu marido, o filho dele, mas aí eu me ajuntei com esse
outro e continuei fazendo a mesma coisa todos os anos todos os anos.
(2019).

Embora a narradora saiba da origem da capela, percebemos nela uma espécie de


entrave, quando falamos sobre a devoção ao finado Zé Menino, para ela a devoção mais
importante e que deve ser lembrada é a devoção oficial a São José. Esse ponto abre
espaço para questionamentos e precisaríamos entender qual o motivo faz com que dona
Raimunda insista tanto na devoção a São José, quais os pormenores que afastam da
devota a possibilidade de afirmar a devoção a Zé Menino, por ser algo que está fora dos
patamares do oficial, alguns devotos mais engajados na Igreja Católica, têm certo
cuidado ao mencionarem a crença.

3.6 RELAÇÃO DA DEVOÇÃO COM A PARÓQUIA

Nesses termos, algumas questões precisam ser levadas em consideração no que


diz respeito à relação entre a paroquia de São Sebastião de Jucurutu e a capela de São
José na comunidade Riachão, selecionamos após nossas análises dois pontos
importantes a serem discutidos, o primeiro tem relação com a questão hierárquica e
econômica, para os devotos e fiéis católicos que fazem parte da comunidade estudada, a
capela de São José integra o todo católico, afinal, como já vimos os devotos não fazem
distinção entre o oficial e o não-oficial. Para a geografa Zeny Rosendahl, essa questão
pode ser entendida da seguinte maneira, para ela a forma como essa religiosidade se
apresenta é “como um campo de forças e valores que eleva o homem religioso acima de
si mesmo” (ROSENDAHL, 1996, p. 30).
Quando as celebrações são suprimidas pela paróquia, gera nos devotos alguns
questionamentos sobre os motivos e também certa revolta, que se dá pelo fato da capela
pertencer a memória coletiva da comunidade e individual e cada devoto ou pessoa que
ali recebeu graças ou sacramentos. Segundo os relatos orais, o motivo para a não
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realização das missas e ações litúrgicas como batizados e casamentos, seria porque, as
ofertas em dinheiro que são depositadas no dia 19 de março, permanecem em poder da
cuidadora da capela, para realização de reparos estruturais, troca de telhado, pinturas,
entre outros. E a igreja alega que as ofertas deveriam ser destinadas para a sede
paroquial, e de lá os recursos seriam destinados conforme a necessidade da capela.
O segundo ponto a ser levado em consideração, é a questão do silenciamento por
parte da Igreja oficial, não é difícil relembrar diversas situações ao longo da história em
que a igreja impôs silêncio, aquelas situações que fugiam do seu controle, a devoção a
um milagreiro e por mais que esteja em comunhão com os ideais cristãos, sempre vai
causar um desconforto na instituição, pelo fato dela não conseguir conter totalmente as
ações dos fiéis em torno dessas devoções, o incomodo se dá por não controlar também
as ações litúrgicas e o pensamento teológico do rebanho a cerca de toda tradição e
dogmas que instituem os santos, é claro que, em alguns muitos casos, a Igreja Católica
simpatiza com a devoção não-oficial e a partir disso, busca meios de adequá-la aos seus
ritos e tradições, outras vezes para não dispensar uma multidão de fiéis, fazem vistas
grossas a certas devoções, mesmo estas não sendo bons exemplos de piedade para o
povo católico. Prova disso que nos livros de tombo da paróquia que pesquisamos, não
encontramos nenhuma menção a capela de São José, tampouco sobre a movimentação
de centenas de fiéis em peregrinação a referida capela.
Embora a capela tenha sido resultado de um voto feito ao finado Zé Menino
como as narrativas dão conta, um fato importante marca a forma como o culto se
perpetuou, basta vermos que no lugar central da capela, está um altar dedicado a São
José, que abriga além de várias imagens do onomástico de Zé Menino, outras imagens
de santos oficiais católicos, e mais recentemente, também como resultado das ações da
cuidadora da capela que insiste na devoção a São José, toda parede frontal no interior da
capela, foi pintada com uma imagem da sagrada família, São José, Maria e o menino
Jesus, são imediatamente vistos por quem entra na capela.

Imagem 12:
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Panorama Zé Menino, 2022. Állan Matson

Essa pintura foi feita no início de 2022, pelo artista jucurutuense José
Constantino da Silva, conhecido por Miguel Pintor, junto com a troca do teto de
madeira e telhas por uma laje e também pintura externa. O dinheiro para essas obras
vem da doação dos fiéis e ofertas coletadas no dia 19 de março.
É importante pensar que a presença da pintura da Sagrada família demarca
muito bem as intenções da cuidadora em relação à capela, que é, como percebemos
durante nossas conversas, delimitar a devoção ao senhor São José. Mesmo que na frente
da capela, esteja pintado o letreiro “Capela de São José” os moradores da localidade e
devotos das redondezas, conhecem aquele oratório como a cruz de Zé Menino, ou
capela da cruz do finado Zé Menino.
Durante a peregrinação a capela, dezenas de fiéis se misturam ali, podemos
perceber pessoas que estão lá por causa de São José, e pessoas que estão lá por causa de
Zé Menino, além de pessoas que não veem diferenças de um para outro. Durante uma
de nossas entrevistas, perguntando a uma devota que “puxava” um terço em intenção do
finado Zé Menino, indaguei sobre a sua presença ali, qual voto ela teria feito, e desde
quando conhecia e história e era devota, enquanto a senhora gentilmente nos respondia,
mesmo que com algumas inconsistências em relação às datas - quem trabalha com
História Oral sabe bem como funciona as narrativas em torno das datas e tempo dos
memorialistas - um senhor que participava do momento do terço, ao ouvir nossa
conversa falou o seguinte:

A gente não faz o voto a José que morreu aqui, devido ele ter morrido e já
merece, muito a ajuda de São José que é o santo do nome dele e São José é o
pai do menino Deus (inaudível) quando a gente faz o voto é pra vir pagar
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aqui porque aqui é um lugar milagroso, mas quem vai dar a (proteção?) da
gente ser valido pelo pedido que ele tá fazendo é São José que é o pai do
menino Deus e através dele, se achar que a gente merece aquela graça, se a
gente alcançar, ai o local escolhido da gente pagar é aqui esse lugar é
milagroso (...) por causa que Jesus e São José olha o lado desse pobre
sofredor que morreu aqui, e a gente escolheu e pede a Jesus pra abençoar
cada vez mais, ai a gente acha que isso aqui é um lugar milagroso, abençoado
por Jesus (SILVA, 2019)

Naquele momento, ainda na empolgação inicial para entender melhor essa


devoção, não demos a devida atenção a fala daquele senhor, afinal ele interrompeu uma
devota que falava sobre uma graça alcançada através de Zé Menino e como entusiastas
da pesquisa sobre devoções não-oficiais, achamos que sua fala não seria tão interessante
para a abordagem que traríamos sobre o culto ao milagreiro, porém durante o trabalho
de transcrição das entrevistas orais, nos deparamos novamente com a fala deste homem,
e pudemos perceber nesse momento, alguns aspectos que imaturamente deixamos
passar no momento da entrevista.
Vejamos, o homem tinha pressa em afirmar que toda aquela movimentação no
dia 19 de março era dedicada a São José, e que seria ele, através de Jesus que operava os
milagres ali, que o finado Zé Menino não seria milagreiro, e sim o local de seu
sofrimento era considerado milagroso, justamente por Jesus e São José verem todo o
martírio que Zé Menino teria sofrido. Esse discurso tenta invisibilizar uma série de fatos
que estão presentes em dezenas de narrativas, inclusive sobre a própria construção da
capela, embora afirme que escolheram aquele lugar como milagroso, quem realizaria
esses milagres seria São José.
Em um outro momento podemos pensar a questão da inserção tão veemente da
devoção oficial a São José, como uma forma de resistência, encontrada pelo grupo para
manter viva a devoção ao finado Zé Menino, sem desagradar ou se afastar da Igreja
Católica e assim poder cultuar a sua maneira o seu milagreiro, Rosendahl ver essa
questão como uma expressão de resistência e protesto das pessoas oprimidas.
(ROSENDAHL, 1996, p. 73). Esse ponto pode ser analisado sob a perspectiva de
Certeau, quando ele procurou entender as maneiras de fazer as práticas cotidianas “uma
maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar o
indissociável de uma arte de utilizar” (CERTEAU, 2011, p. 41). A relação de disputa
entre o oficial e o não-oficial, lutas de poder entre dominador e dominado, nas práticas
83

devocionais do grupo podemos perceber essas ações que fazem parecer seu uma forma
de resistir estrategicamente.
Observamos algumas características importantes que precisam ser mencionadas
nesse trabalho no que se refere à organização espacial do lugar sagrado e como também
podemos perceber embates entre o oficial e o não-oficial, e como se estabelece nas
entrelinhas esse jogo de forças. As narrativas contam que anteriormente, no centro da
capela ficava a cruz do finado Zé Menino, confeccionada ainda com o troco do pé de
pereiro, na atualidade observamos que a cruz do finado foi substituída por uma maior e
de outra madeira, além de lateralizada, deixando o espaço central para a devoção a São
José, mesmo assim, os ex-votos são amarrados e depositados sobre a cruz do finado,
numa insistente resistência. No dia 19 de março deste ano de 2022, depois da reforma os
ex-votos em madeira, estavam acondicionados em um balde de plástico, ao
perguntarmos pelos ex-votos as devotas de imediato começaram a tirar peça por peça de
dentro do recipiente e organiza-las ao pé da cruz, como se estivem esperando por esse
momento, de alguém que perguntasse por aquilo.
Outra situação que salta os olhos é um pequeno cruzeiro localizado na beira do
riacho onde segundo os relatos o corpo do milagreiro foi encontrado, ali dezenas de fiéis
se dirigem para acenderem velas e soltar fogos, chegamos à conclusão que nesse
específico momento em que grupos de devotos se reúnem em torno desse pequeno
cruzeiro para rezar, e soltar uma quantidade enorme de fogos, é alí que acontece a forma
de devoção mais genuína ao finado Zé Menino, sem nenhuma interferência ou relação
com o oficial.

Imagem 13:
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Fogos na cruz, 2019. Wesley Simão

Para Michel de Certeau (2011), os sujeitos manipulam o discurso da instituição,


e induzem os mecanismos de controle, uma imagem bem clara dessa relação de poder
entre os devotos de Zé Menino e a Igreja, foi presenciada por nós no dia 19 de março de
2019 e documentada no nosso caderno de campo, durante a ultima missa que foi
realizada até essa data na capela da cruz do finado Zé Menino.
O cenário é o seguinte, a missa já tinha começado enquanto as devotas e
devotos vinham no caminho fazendo suas orações, algumas pessoas já acompanhavam o
padre na celebração que acontecia em um altar improvisado no alpendre da capela. O
que nos chamou atenção foi o fato das devotas seguirem a romaria sem se importar com
a quebra da liturgia da missa, chegaram cantando os benditos, interrompendo a
celebração, o padre fica em silêncio até elas terminarem de cantar e depositar no altar
uma imagem de São José que elas carregavam.

Imagem 14:
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Chegada da peregrinação, 2019. Wesley Simão

Ainda usando a imagem da caminhada sugerida por Certeau, voltamos para a


romaria, o percurso que os devotos fazem até local sagrado do milagreiro. Essa é uma
caminhada ritualística diferente de quem vai à feira ou trabalhar, a ida até o local
sagrado de relação com o milagreiro em si já se constitui como sagrada, há um empenho
e intensão diferente nessa caminhada.

Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de


ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem
somente um “suplemento” aos enunciados pedestres e às retóricas
caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo
da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou
enquanto os pés executam (CERTEAU, 2011, p. 183).

E nessa ocasião de partilha de fé e caminhada os devotos vão orantes até o local


devocional, a caminhada para o povo cristão tem um significado bastante forte, seja
rememorando o caminho traçado pelo povo Hebreu no deserto, ou o caminho feito por
José e Maria para Belém. No decorrer peregrinação de 2019 foi entoado durante o
percurso o seguinte bendito:

São José já caminhava


junto com a virgem Maria
tanto caminha de noite
como caminha de dia

Quando chegar em Belém


já todo povo dormia
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abre a porta cordeiro


pra entrar a virgem Maria

São José foi ver uma luz


que na casa não havia
quando São José chegou
já Jesus era nascido

A virgem não quis o ter


em colchão de fantasia
foi ter numa manjedoura
onde o boi dentro comia

A mula já descobria
amaldiçoada seja a mula
que tanto nos perseguia
Desceu dois anjinhos do céu
rezando uma Ave Maria
Ave Maria rezando
lá no céu mesmo subia

Pai eterno perguntou


mais quem deixasse Maria
deixei coberta de ouro
junto com seu bento filho

A barca que ele embarcou


nem foi prata nem latão
assim terminou Maria
nessa santa oração

Ofereço esse bendito


ao Senhor que está na cruz
patriarca São José e seu menino Jesus.
(FIGUEIREDO, 2019)

Podemos ver na estrutura melódica simples desse bendito, como é o imaginário


católico desse grupo em relação aos santos e a espacialidade espiritual, toda a estrutura
hierárquica divina entre Deus, anjos e santos. Alguns aspectos podem ser destacados
nessas estrofes, além da figura dos viajantes que passam por percalços e falta de
assistência, podemos identificar na “mula que tanto nos perseguia” os sofrimentos
impostos em decorrência das condições de vida de cada um, podemos lembrar ainda que
ao devotarem suas orações ao finado Zé Menino, esses devotos e devotas estão de certa
forma se aproximado sem barreira nenhuma do sagrado, José Batista Serafim viveu ali,
percorreu aqueles caminhos se empenhou nos mesmos afazeres que muita gente daquela
comunidade é acostumada a fazer. “A mula” aqui também pode ser pensada como
representação de flagelos como a fome, a seca, as desigualdades sociais, a falta de
condições dignas de trabalho, essa mula que no bendito perseguiu São José, perseguiu
87

Zé Menino e nas durezas da vida do campo também persegue aqueles devotos que
buscam sua proteção.
Esta metáfora do caminhante de Certeau, permite pensar que a experiência é
construída ao longo do caminho, isso se aplica bem aos locais sagrados não-oficiais que
são ressignificados com o passar do tempo, as experiências dos devotos, fazem com que
a devoção não seja algo estático mas que tem um ritmo próprio e se reformula a cada
ex-voto depositado ou vela acesa.
Uma das questões que discutimos durante às reuniões sobre a pesquisa, se deu
pelo fato de toda nossa colônia de narradores, mencionar que em anos anteriores o dia
19 de março era marcado por uma imensidão de devotos que visitavam a cruz do finado
Zé Menino, inclusive não apenas devotos das comunidades circunvizinhas, mas também
de outras cidades, como é o caso das menções feita aos numerosos devotos da cidade de
Campo Grande, cidade natal de José Batista Serafim.
Os relatos fazem referência a um grande fluxo de devotos, que passavam todo o
dia 19 festejando seu milagreiro, a movimentação era tamanha que um pequeno
comércio se formava nesse dia, com barracas espalhadas pelos arredores da capela onde
eram comercializadas comidas e bebidas durante toda a celebração.
Embora seja variada a faixa etária dos fiéis e muitas pessoas jovens vão até a
capela no dia 19 e participam das trocas de conhecimento a respeito do local sagrado,
percebe-se que a devoção é mais forte em pessoas de mais idade. Ao mesmo tempo que
pensamos num possível declínio dessa devoção pela diminuição da presença de devotos,
alguns pontos podem dizer o contrário, como a constante manutenção da capela e a
presença de crianças que acompanham seus pais em todo o trajeto devocional.
Ao final dessa dissertação, temos um anexo com várias fotos da devoção a Zé
Menino, os devotos, ex-votos, temos um acervo fotográfico considerável e decidimos
expor algumas fotos que demonstram bem a prática devocional que apresentamos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relembrando o que destacamos anteriormente, após os recortes feitos no projeto


inicial, propomos neste estudo analisar as práticas devocionais do catolicismo não-
oficial, em torno da figura do finado Zé Menino, milagreiro cultuado em Jucurutu-RN.
Nesse sentido, partimos na busca por fontes, tendo em vista que seria uma jornada bem
difícil no que tange a disponibilidade documental, tivemos que procurar com bastante
atenção as fontes que não estavam dadas. Durante as nossas sondagens, conversamos
com muita gente, devotos, devotas ou pessoas que sabiam da história de Zé Menino,
depois das investigações iniciais delimitamos uma colônia de dez (10) narradores e
narradoras, dos quais ainda selecionamos as entrevistas que melhor atendiam as nossas
questões. Tivemos a nossa disposição, uma carta que contava o que tinha acontecido e
com se deu a construção da capela, um trabalho realizado pela escola da comunidade
que mencionava alguns aspectos locais, e uma pequena citação no jornal A Ordem, que
tirou a dúvida quanto ao ano do acontecimento e deu nome aos assassinos.
Deste modo, fizemos uma revisão bibliográfica, afim de conhecer os caminhos
que já foram trilhados antes da nossa pesquisa, sobre os sertões, milagreiros e
devoções, nas produções acadêmicas do Seridó, no Rio Grande do Norte e no Brasil e
encontramos solo firme para nossas discussões. Nas visitas de campo, fizemos uma
análise etnográfica, percebendo as características, o comportamento, os costumes e
crenças da comunidade. Refletindo sobre como se manifesta essa prática, a ocupação do
local sagrado, os aspectos tipificados como sertanejos. Conseguimos identificar, as
ações em torno da devoção, as ações comemorativas, os ex-votos, as orações, músicas,
romarias, a mistura de gerações, as disputas de poder e a relação como a espacialidade
sagrada.
Traçamos um caminho inicial, falando dos sertões, de como o conceito foi sendo
construído ao longo do tempo. Tratamos da espacialidade que nosso objeto de pesquisa
está circunscrito, as percepções sobre os sertões de uma perspectiva macro para o micro,
e entendemos sua constituição histórica através da historiografia. Conforme
apresentamos, conseguimos captar como o município de Jucurutu e mais precisamente a
comunidade Riachão são percebidos como sertão, seja pelas fontes orais ou pela poesias
que caracterizam esse como um espaço sertanejo, delimitado pelos traços culturais e
físicos das narrativas sobre o é sertão.
89

Dando continuidade, expomos como o domínio católico moldou as


religiosidades nestes sertões, nesse processo entendemos as bases para a devoção que
analisamos. Como os aspectos culturais, fazem com que haja a possibilidade de haver
uma religiosidade tipificada como sertaneja, que se distingue de tantas outras
religiosidades, uma fé que é híbrida, constituída de outras crenças, podendo ser indicada
por símbolos bem conhecidos como: a beata, a benzedeira, o vaqueiro de gibão que às
18 horas reza a Ave Maria. Porém ao fazermos essa relação podemos cair no erro de
continuar estereotipando os sertões como algo arcaico ou parado no tempo, o que
diferenciaria os processos que estudamos aqui, dos cultos a milagreiros de outros
lugares, seria em grande medida o pertencimento ao espaço, todavia a forma como os
crentes participam da religião pode produzir fenômenos como das grandes figuras
religiosas que apresentamos e também dos milagreiros.
Diante do que foi posto e durante nossas visitas ao local sagrado, percebemos
alguns fatores que foram determinantes para o percurso de escrita dessa dissertação. Nas
falas dos devotos e devotas, as demarcações de um sertão árido, com elementos de
representação cultural como vaqueiros, vaquejadas, figuras divinas presentes no
imaginário religioso, aspectos geográficos como as paisagens descritas, o solo
pedregoso, a vegetação espinhosa, o mundo do trabalho, as relações de poder.
Observamos que a trágica morte de José Batista Serafim, instalou nas pessoas que no
passado viveram esse acontecimento e naquelas que no presente tomaram conhecimento
do fato, a comoção necessária para que a devoção se tornasse tão forte a ponto de
permanecer desde o ano da morte, até os dias atuais, a construção e manutenção do
cruzeiro e capela demonstram isso. Por outro lado, percebemos os jogos de poder nas
demarcações desse território sagrado. A mescla devocional entre Zé Menino e São José,
é algo bastante marcante uma vez que revela as estratégias internas.
Entretanto, essa questão pode ser entendida de duas formas, a inserção e
permanência da imagem e culto a São José junto a devoção a Zé menino pode significar
a primeira vista uma forma de silenciamento da devoção não-oficial, colocando no
centro o culto a um santo de grande prestigio na igreja, tanto que recebe entre outros, os
títulos de patrono da igreja e pai adotivo de Jesus, sendo bastante presente na vida da
figura mais importante do cristianismo. Tendo o mesmo nome e operando os mesmos
milagres seria uma forma de sem um grande impacto negativo, a igreja fazer com que os
fiéis devotos de Zé Menino, migrassem aos poucos para a devoção a São José, ao passo
que esqueceriam, por quem aquela capela foi construída, já que este, por não ter o
90

reconhecimento litúrgico e outorga da igreja católica, não representaria a devoção e


piedade que a sé petrina exige de seus membros.
Por outro lado, entendemos que a presença da devoção a São José também
representa uma espécie de resistência ao culto oficial. Inserindo o culto a figura do pai
adotivo de Jesus, os devotos de Zé Menino poderiam manter o culto ao seu milagreiro
sem que a igreja tentasse proibir ou silenciar, para todos os efeitos a devoção da capela
seria ao santo oficial, embora atualmente a capela receba o nome de “Capela de São
José” os devotos continuam chamando o lugar de “A cruz de Zé Menino”, entender essa
situação como uma forma de resistir e continuar com a devoção ao milagreiro que viveu
ali, representa as lutas internas e de poderes para a manutenção daquele culto, parece
que os fiéis insistem em preservar mesmo que discretamente ou com uma camuflagem o
culto ao seu milagreiro. Assim não precisariam dar maiores explicações, para as
autoridades eclesiásticas sobre a devoção.
Nesse sentido, conseguimos também entender como esses indivíduos, se
relacionam com o divino e o plano espiritual, como percebem a hierarquia celeste, e
como a justiça para as ações terrenas pode ser feita. A observação do comportamento e
falas da colônia de narradores nos apresentaram as representações do sagrado que o
grupo manifesta, as práticas e liturgia própria, conduzidas sem as regras engessadas da
oficialidade, deixam que o culto ao milagreiro ocorra de forma mais fluída e com a
autonomia do devoto para intermediar a sua relação com o sagrado sem interferências.
Deste modo, notamos uma peculiaridade estética nessa prática devocional que
difere de tantas outras, ao receber uma graça, em sinal de gratidão o devoto do
milagreiro vai até o local do culto e centro das peregrinações para depositar o que
representa o poder e benesse do milagreiro que são os ex-votos, na devoção a Zé
Menino, observamos que um dos ex-votos mais presentes em seu local devocional são
as fitas de cetim que em uma grande quantidade de cores e larguras tornam a cruz do
finado, um emaranhado de tons e nós que praticamente cobrem toda estrutura da cruz,
além das fitas outros ex-votos chamam a atenção e comprovam a existência do
milagreiro, são as peças de madeira e gesso representando partes do corpo que foram
curadas pelo finado Zé Menino, cabeça, braços, pernas, mãos e pés, mechas de cabelo,
caixas de remédio, fotografias dos devotos e roupas de santos.
Além da parte estética, essa devoção pode ser também marcada pela sonoridade,
seja pela grande quantidade de fogos que os devotos soltam tanto ao lado da capela
quanto ao pé do pequeno cruzeiro, mas também pelo som das vozes em oração que sai
91

de dentro da capela no momento em que as mulheres rezam o terço e cantam os


benditos, ou as conversas mais variadas dos que estão do lado de fora. Nas devoções
não-oficiais as marcas sensoriais são bem explícitas, em adição ao visual e sonoro,
temos também outros sentidos explorados, seja o olfato ativado pelo cheiro das velas
que queimam em honra ao milagreiro e também causam um efeito visual acentuado,
nessa devoção especificamente também temos o paladar aguçado pelo generoso e farto
café da manhã que é compartilhado pela comunidade. Assim constatamos a construção
imagética da devoção ao finado Zé Menino e sua relação com os sertões e como
articulada entre a morte trágica e a religiosidade não-oficial a fé do mencionado grupo,
constituiu para si um milagreiro e um espaço de culto para chamar de seu.
Diante da metodologia que utilizamos, conseguimos atender a proposta dessa
dissertação, de entender essa devoção e quais aspectos lhe caracterizavam como
pertencente aos sertões e ao catolicismo não-oficial. A relação da comunidade com o
milagreiro nos confirmou que o sentimento de pertencimento, torna os vínculos entre
fiel e figura sagrada, ainda mais íntimo, como foi destacado por outros trabalhos que se
debruçaram sobre a existência de devoções a milagreiros nos sertões do Seridó.
É importante lembrar que diversos trabalhos sobre milagreiros tiveram origem
no Departamento de História do CERES-UFRN, sob a orientação do professor Dr.
Lourival Andrade Junior, que mapeou diversos casos de devoções não-oficiais pelo
Seridó potiguar. Nossa trajetória, começou ainda em 2019 quando fizemos as primeiras
sondagens sobre essa devoção, e nosso processo de amadurecimento das discussões
dessa religiosidade se deu junto ao campo da História Cultural e no domínio temático da
História dos Sertões, delimitamos o caminho que seguiríamos para culminar nesse
trabalho.
Conseguimos avançar nos estudos sobre o tema e abrir espaço para novos
trabalhos na área, iniciamos esse trabalho fazendo referência ao caminho que nós
historiadores e historiadoras pavimentamos a cada trabalho escrito, a imagem da estrada
também foi importante para entendermos os percurso religioso que leva a constituição
de uma devoção não-oficial, afinal os devotos seguem em romarias. Por fim, estamos
satisfeitos por chegarmos nesse ponto de descanso na caminhada, trouxemos para o
espaço acadêmico a voz a pessoas que talvez não tivessem lugar na história oficial,
mostramos a resistência através da fé. Mais que sobre Zé Menino, escrevemos sobre
seus devotos, seus sertões e sua religiosidade.
92

FONTES

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Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
FIGUEIREDO, Francisca Maria De. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de
Moura Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
COSTA, Mauro Batista da. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de Moura Simão.
Jucurutu/RN, 19/03/2019.
FONSECA, Maria José de Melo da Silva. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de
Moura Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
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REFERÊNCIAS

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TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
96

ANEXOS:

Foto: Iniciais no cruzeiro de Zé Menino, 2022. Lourival Andrade Junior.

Foto: Devoto rezando diante do cruzeiro, 2019. Wesley Simão.


97

Foto: Devotos acendem velas, 2019. Wesley Simão.

Foto: Fogos para Zé Menino, 2019. Wesley Simão.


98

Foto: Visita ao milagreiro, 2019. Wesley Simão.

Foto: Devoto amarra fitas na cruz do finado, 2019. Wesley Simão.


99

Foto: Velário, 2019. Wesley Simão.

Foto: Cruz de Zé Menino, 2019. Wesley Simão.


100

Foto: Cruz de Zé Menino, 2022. Lourival Andrade Junior.

Foto: Devotos rezando, 2022. Lourival Andrade Junior.


101

Foto: Vaqueiros, 2022. Lourival Andrade Junior.

Foto: Café compartilhado, 2022. Lourival Andrade Junior.

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