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CAICÓ/RN
2022
WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO
CAICÓ/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - -CERES- - Caicó
.
______________________________________________________
Prof. Dr. Lourival Andrade Junior (Orientador)
Departamento de História do CERES – UFRN
______________________________________________________
Prof. Dra Ane Luise Silva Mecenas Santos (Examinadora Interna)
Departamento de História do CERES – UFRN
______________________________________________________
Prof. Dr. Michelle Ferreira Maia (Examinadora Externa)
Dedico à memória das pessoas
invisibilizadas e vozes silenciadas.
AGRADECIMENTOS
It reflects on the devotion to the miracle worker Zé Menino worshiped in the Riachão
community, rural area in the city of Jucurutu-RN. The study has made use of the
narratives of devotees, collected through interviews made during visits to the sacred
place and analyzed in the light of Oral History methodology, in addition to the
ethnographic study and observation of ex-votos. This devotion fits into the cults of
unofficial Catholicism, since it is not intended for official saints, but for a subject who
belonged to the studied community and, when he died tragically, he has been elevated
to holy and worshiped as a miracle worker. In this sense, we use Lourival Andrade
Junior's concept of sublimation to understand the process through which the miracle
worker passes right after death, the status of sacred site that the place of his death
receives, all this related to the debate about the sertões and the representations of a
sertanejo religiosity. We will see José Batista Serafim – Zé Menino, his death and
sublimation, and how a place of tragedy became a sacred space of faith, hope and
miracles.
CAPÍTULO 1 ................................................................................................................. 24
CAPÍTULO 2 ................................................................................................................. 43
CAPÍTULO 3 ................................................................................................................. 68
FONTES ......................................................................................................................... 92
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 93
ANEXOS: ....................................................................................................................... 96
13
INTRODUÇÃO
1
Segundo alguns narradores da nossa colônia de fontes, José Lourenço ou Zé Lourenço, foi o fazendeiro
mandante do crime, os narradores não sabem informar o nome da esposa.
15
que aconteceu naquele espaço, apontado como um lugar sagrado, pois foi onde se deu a
morte de Zé Menino, e é ali onde ele opera milagres.
A justificativa para a delimitação espacial se dá pelo fato peculiar de culto não-
oficial na comunidade Riachão, e sobretudo, pela sondagem inicial que fizemos no
município. Na primeira fase da pesquisa, ao decidirmos que trabalharíamos com
religiosidade não-oficial, fizemos uma investigação a respeito dos locais onde
acontecem cultos e devoções não-oficiais: na cidade, no cemitério, em outras
comunidades rurais e detectamos a existência desses espaços, e assim fizemos um
mapeamento.
No nosso mapeamento, visitamos além do cruzeiro de Zé Menino, o túmulo dos
Anjinhos Queimados de Jucurutu2, milagreiros cultuados no cemitério público da
cidade, visitamos a capela Três Irmãos, na comunidade Pangoá, na Serra de João do
Vale, também de culto aos Anjinhos Queimados, a capela da Jovem Milena3,
assassinada em 2011, a capela privada de Dona Odete no Sítio Barro Branco4, que é
uma capela votiva a Santa Luzia, mas que reúne dezenas de pessoas que vão ao lugar
pagar promessas.
A respeito da delimitação temporal, os relatos orais coletados em entrevistas,
dão conta de que o crime aconteceu por volta da década de 19305 e desde então teve
início o culto ao milagreiro. Nesse sentido, recuamos temporalmente até o possível ano
do crime para explicar como se desenvolveu a trama que envolveu as personagens desta
história, porém, estendemos a nossa análise até o tempo presente, visto que discutimos o
2
Os Anjinhos Queimados, foram três crianças que morreram vítimas de um incêndio acidental, no dia 02
de dezembro de 1968 na serra de João do Vale, foram sepultados no cemitério público de Jucurutu, sendo
um dos túmulos mais visitados no dia de finados, chama a atenção a quantidade de fitas amarradas no
gradil que cerca a cova dos meninos.
3
Milena Soares, de nove anos de idade, foi morta em agosto de 2011, de forma violenta, o que gerou uma
grande comoção em toda cidade. No local onde seu corpo foi encontrado, algumas pessoas depositam
objetos em homenagem a menina, embora as informações deem conta de que as pessoas começaram a
receber graças através de Milena, não encontramos no local de sua capela, elementos que sustentassem
essas narrativas, essa seria uma devoção que está em construção.
4
No Sítio Barro Branco, encontramos a capela de Dona Odete, moradora bem conhecida em toda cidade,
ao lado de sua casa temos acesso à capela pelo alpendre, trata-se de uma sala repleta de imagens e
quadros de santos, esse local é dedicado a Santa Luzia, em virtude de uma promessa do falecido marido
de dona Odete, todos os anos na véspera do dia 13 de dezembro, dezenas de pessoas se reúnem na capela
de dona Odete e rezam um terço em honra a Santa Luzia. O que chama a atenção é a quantidade de ex-
votos que se encontram nessa capela, por algum motivo, as pessoas escolhem esse local não-oficial para
depositarem seus agradecimentos, embora Santa Luzia seja uma devoção oficial do Catolicismo, este
local especificamente não é um espaço oficial de culto.
5
Posteriormente, descobrimos uma reportagem do jornal A Ordem que informava o ano do crime, 1937.
Veremos essa discussão no terceiro capítulo.
16
culto ao milagreiro que persiste até hoje, desta forma, as análises feitas nesse trabalho
compreendem o período de tempo das nossas observações entre os anos de 2018 e 2022.
Esse trabalho analisa pela primeira vez a devoção a Zé Menino, inserindo na
historiografia, mais uma representação sobre o sertão, desta vez, partindo da
religiosidade não-oficial que delimita um espaço de culto e tem no agente milagreiro o
centro da fé e das peregrinações. O fato é que investigamos a relação entre a fé moldada
por uma cultura entendida como sertaneja com todos os aspectos do imaginário de um
sertão católico.
Vale salientar a nossa trajetória de pesquisa em torno de práticas não-oficiais do
catolicismo, esse percurso teve início com a pesquisa que resultou na monografia
defendida em 2017 para obtenção do grau de bacharel em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde analisamos incelências cantadas para anjos6, esse
estudo também pioneiro em se tratando da história do município de Jucurutu, lançou
olhares para o fenômeno das incelências, ampliou os entendimentos e abriu novos
caminhos para pesquisas futuras sobre a morte e as práticas ritualísticas não oficiais em
torno dela. Esse trabalho, apresenta e pensa um sertão visto pela religiosidade, que
encontra na fé, apoio para as lutas e questões diárias, um sertão entre Deus, o Diabo e as
ações humanas, como bem apresentou Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas.
Cabe evidenciar, que este trabalho está inserido no Campo da História Cultural,
por entendermos que a discussão que tratamos aqui está relacionada por exemplo a
definição de cultura que Peter Burke nos traz ao citar o antropólogo Edward B. Tylor “o
todo complexo que inclui conhecimento, crenças, artes, moral, lei, costumes e outras
aptidões e hábitos adquiridos pelo homem” (BURKE, 2008, p. 43). Nos moldes que a
nossa pesquisa está inserida, a nossa análise somente se tornou viável graças à variedade
de abordagens que se tornaram possíveis a partir da História Cultural.
Propomos nesse trabalho e aqui fazemos uso das palavras de Roger Chartier,
uma discussão sobre como identificar em diferentes momentos e lugares como as
realidades sociais são constituídas e dadas a ler (CHARTIER, 1990), recorremos ao
conceito de representações que é tão caro para nosso programa de mestrado para
entender a relação dos sujeitos com o sagrado e com os sertões. Buscamos entender
como esse espaço é construído, e a partir das experiências religiosas como ele é
6
Em 2017 empreendemos pesquisa sobre o rito fúnebre das incelências na zona rural de Jucurutu-RN,
que resultou na monografia de graduação: “A morte cantada: incelências para anjos no município de
Jucurutu-RN (segunda metade do século XIX)” Orientada pelo professor Dr. Lourival Andrade Junior
DHC – Centro de Ensino Superior do Seridó/ UFRN.
17
moldado, vivenciado e sentido, assim podemos perceber através das nossas fontes, o
imaginário desse grupo sendo refletido nas orações, nas promessas, nos ex-votos que
são dedicados ao milagreiro. A historiadora Sandra Pesavento, define as representações
como geradoras de identidades e que dão sentido as coisas (PESAVENTO, 2003), o
modo como o grupo pensa sua relação com o divino ganha forma e podemos ver isso
através dos ex-votos, da construção da capela, o que o Roger Chartier também chama de
formas simbólicas (CHARTIER, 1990).
Trabalhamos os sertões em relação as suas representações culturais e históricas,
as estruturas do sensível, as crenças, o imaginário e a tradição. Nossa pesquisa está
situada no universo da cultura religiosa, nas representações e práticas do catolicismo
não-oficial. Segundo Andrade Junior, “analisar a religiosidade não-oficial no Brasil é
um exercício de desprendimento das racionalidades e um mergulho num mundo de
imagens, sons, cheiros e devoções marcadas pela emoção e pela entrega” (ANDRADE
JUNIOR, 2021, p. 93). Nesse sentido vemos que no Brasil o catolicismo se pluralizou
(ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 93) e assim temos o catolicismo não-oficial, onde não
há uma teorização do sagrado por parte dos devotos, e os ritos e liturgias são
transmitidos principalmente pela oralidade. (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 90) muito
embora não haja uma separação sólida entre o oficial e o não-oficial, os devotos
convivem nos mesmos espaços sem conflitos aparentes (ANDRADE JUNIOR, 2021, p.
91).
Abordamos o conceito de Sertão como forma de verificação, dos
questionamentos pleiteados aqui, abordamos um sertão sensível, geográfico e da
saudade (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2009) que se estabelece no imaginário dos
sujeitos contatados nessa pesquisa, que encontra nos símbolos sertanejos a narrativa
desse acontecimento: a fazenda, o vaqueiro, o coronel, o jagunço, o próprio cenário
como a vegetação espinhosa e o solo pedregoso, encontra também na religiosidade os
elementos em torno da morte e após a morte a justificativa para a sublimação deste
milagreiro (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 94).
Ao diferenciar o catolicismo oficial do não-oficial, Andrade Junior, define o
conceito de milagreiro em oposição ao de santo e desta forma também define as formas
com que os sujeitos atingem nos dois catolicismos esses níveis. Se no âmbito oficial
existe todo um processo para canonização dos elegíveis santos, no âmbito não-oficial
esse processo acontece de forma muito prática, nesse sentido, Andrade Junior define
18
Segundo a historiadora Verena Alberti, com a História Oral podemos ter acesso
às histórias dentro da História, nesse sentido esta metodologia, possibilita a
compreensão de determinados acontecimentos históricos, sendo eles recentes ou não,
nos casos recentes temos o testemunho de pessoas que vivenciaram o fato histórico, e
em fatos de temporalidades mais recuadas, temos a transmissão oral que perpassa
gerações, nesse sentido, os narradores que não presenciaram determinados fatos,
relatam com a mesma propriedade de quem vivenciou.
Nosso contato inicial foi com a oralidade, entretanto na busca por entender
melhor como se deu a história e como se estendeu até os dias atuais, buscamos outras
fontes. Procuramos fontes paroquiais já que a capela também está inserida no grupo de
espaços religiosos oficiais7 e que mobiliza uma grande quantidade de pessoas em seu
entorno e que esse número de pessoas promove uma espécie de festividade com
comércio de comidas e afins. Procuramos nos livros de Tombo da paróquia, afim de
encontrar alguma referência a essa capela, ou a mobilização das pessoas em torno dela,
porém não encontramos nenhuma informação sobre capela, e a nenhum outro espaço
não-oficial, vale salientar que o silêncio das fontes também fala, nesse caso, fala de um
apagamento sistemático desse culto.
Ainda procuramos por fontes hemerográficas, pesquisamos em jornais estaduais
e regionais alguma informação sobre o crime, ou sobre a movimentação em torno da
capela, mas durante as primeiras buscas não conseguimos localizar nenhuma
reportagem, questionamos muito esse fato, mas seguimos com a pesquisa, nos últimos
meses de escrita conseguimos com a ajuda do historiador Nanael Simão localizar uma
pequena citação no jornal A Ordem que deu nomes aos assassinos e data para o crime.
Nossa empreitada em busca de fontes chegou até as fontes judiciais, também se
estendeu aos fundos da Comarca de Caicó, custodiados pelo Laboratório de
Documentação Histórica do CERES – LABORDOC, procuramos os processos
referentes a São Miguel de Jucurutu. No período informado por um de nossos
entrevistados como sendo a data do crime, a Vila, pertencia judicialmente a Caicó. Ao
analisarmos os catálogos contendo os processos crimes da época, não encontramos
nenhum processo crime ou nenhuma outra peça judicial ou policial que tratasse deste
fato, embora o acontecimento tenha se dado, justamente no final da Primeira República,
com o coronelismo ainda vigente, pensamos na possibilidade que o caso tenha sido
abafado pelas autoridades policiais tendo em vista o poder aquisitivo e a influência de
José Lourenço o proprietário da fazenda Barra do Olho D’água e o lugar social do José
Serafim Batista, um simples empregado da referida fazenda, porém essa especulação
caiu por terra com a descoberta da reportagem do jornal A Ordem, que diz que as
7
A capela de Zé Menino, é entendida pela Paróquia de São Sebastião de Jucurutu-RN, como uma capela
privada. sendo assim para a Igreja a capela é votiva a São José, cuja escultura permanece no altar central.
Entretanto há uma resistência por parte do clero quanto às celebrações no local. A paróquia se ampara no
Diretório de Pastoral da Diocese de Caicó – documento oficial expedido pela Cúria Diocesana de Caicó
que regulamenta, por exemplo, as ações da diocese em relação à aplicação dos sacramentos. Embora esse
documento não ofereça uma normativa específica sobre a realização de missas em capelas privadas,
orienta apenas que a celebração eucarística seja feita em “lugar sagrado” (igrejas ou oratórios) ou “lugar
decente” (art. 86, parágrafo 1)
21
diligencias policiais foram tomadas, o que pode ter acontecido, é a discordância sobre o
verdadeiro nome de Zé Menino, se José Batista Serafim como dizem a oralidade e as
iniciais do cruzeiro, ou José Serafim Filho como diz a reportagem. Infelizmente com
essa descoberta recente não conseguimos avançar nesse sentido, essa lacuna poderá ser
pesquisada mais adiante. Outros problemas fizeram com essa questão não fosse sanada,
como a falta de acesso a documentação da paroquia de Campo Grande, de onde Zé
Menino era natural, segundo as informações das fontes.
Para tratarmos da questão do espaço, onde o culto ao milagreiro acontece,
tomamos por base a explicação de Yi Fu Tuan, sobre como os homens atribuem
subjetividade aos espaços (TUAN, 1983), esses sujeitos entendem o lugar como sagrado
e assim o fazem, constituem o espaço enquanto uma narrativa que supera a
homogeneidade espacial, aquele lugar passa a ser apontado como um espaço divergente
ou no mínimo como um espaço onde devem repousar os signos dessa religiosidade não-
oficial.
A geógrafa cultural Zeny Rosendahl, assinala, no livro Espaço e Religião –
Uma abordagem geográfica - o espaço sagrado como um “campo de forças e valores
que eleva o homem religioso acima de si mesmo” (ROSENDAHL, 1996, p. 30).
Rosendahl, ainda coloca o lugar sagrado como centro das peregrinações, destino para
onde os devotos se dirigem, esse movimento é observável na nossa pesquisa, os devotos
se dirigem ao local das peregrinações, a capela e o cruzeiro de Zé Menino como
demonstração pública da fé e também como forma de depositar os ex-votos ou renovar
as promessas. Entendemos esse espaço sagrado como uma construção, nesse caso uma
construção ritualística do homem religioso que surge do desejo desse sujeito de viver
nesse espaço (ELIADE, 1992, p. 20).
No primeiro capítulo, fazemos uma revisão historiográfica sobre os sertões ao
passo que desenvolvemos e discutimos o conceito empregado na nossa pesquisa.
Realizamos um percurso desde a grafia da palavra sertão e dos vários sentidos que
foram empregados na palavra ao longo da história, em seguida fazemos uma exposição
do macro para o micro, trabalhamos o conceito de sertão discutido na historiografia
brasileira, depois vemos o sertão como elemento criador de uma identidade nacional,
em seguida regionalmente, com relação ao nordeste, e nesse ponto vale salientar a
proximidade e a relação visceral na formação do termo e ideia de Nordeste com o
conceito de sertão.
22
O debate se afunila e chega até o estado do Rio Grande do Norte, onde vemos
que no início da colonização o termo sertão era usado em grande medida para qualificar
os espaços além do litoral. Chegamos à microrregião do Seridó Potiguar e depois ao
município de Jucurutu onde nos apoiamos na historiografia local e em escritos de poetas
da cidade para perceber como o município é entendido por parte de seus habitantes
como um sertão, em seguida descrevemos a comunidade rural que analisamos como
delimitação espacial para esta pesquisa.
Analisamos nesse capítulo, fontes literárias, os poemas e versos escritos por
poetas e cordelistas da cidade, como afirma Antônio Celso Ferreira, a fonte literária
possibilita o acesso a “experiências subjetivas dos homens e mulheres no tempo”
(FERREIRA, 2015, p. 61). A metodologia que buscamos aplicar nessa análise, se dá
pela junção de uma análise textual e contextual, com Ferreira afirma ao tratar do que
chama de “a fonte fecunda”: “texto e contexto não configuram polos incomunicáveis, ao
contrário, é possível ler as marcas da sociedade e da cultura no interior dos escritos, e de
outro lado, compreender o significado deles na sociedade.” (FERREIRA, 2015, p. 82).
Assim contextualizamos o espaço que discutimos afim de no capítulo seguinte
aprofundarmos nossa análise sobre aspectos mais particulares e que superam os
aspectos de sertão que apareciam na historiografia mais tradicional.
No segundo capítulo, examinamos o sertão sob a ótica da religiosidade, e
fazemos o mesmo trajeto de afunilamento da nossa análise, dessa vez com vistas à
religiosidade, nesse capítulo evidenciamos como a cultura do lugar foi moldada a partir
da colonização católica e como a presença de figuras mobilizadoras de massas como
padres e beatos foram importantes na construção imagética desses sertões religiosos.
Voltamos nossa abordagem para o conceito de catolicismo não-oficial trabalhado pelo
professor Lourival Andrade Junior, que contempla melhor o nosso debate, que os
conceitos usados anteriormente como os de catolicismo rústico e catolicismo popular.
Tratamos dos aspectos religiosos por terem relação como o nosso tema e justamente
esse capítulo serve de base para entendermos no terceiro capítulo como essas
construções resultam no culto a Zé Menino.
No terceiro capítulo, apresentamos os fatos que cercam a história de Zé Menino,
as narrativas em torno de sua morte e sublimação e como seu culto perpassou gerações
chegando até os dias atuais. Direcionamos nossa escrita com o intuito de expor as
análises das entrevistas que realizamos e quais os resultados obtivemos através delas,
esta é a seção que explica a devoção em torno da figura de Zé Menino. Neste capítulo
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ainda fazemos uma prospecção no sentido de entender se este culto está em declínio e
como entendemos esse fenômeno.
Por fim, após o terceiro capítulo trazemos as considerações finais desse trabalho,
ponderamos sobre as análises que obtivemos e sobre os resultados que alcançamos.
Evidenciamos ainda a relevância desse estudo, a partir do milagreiro Zé Menino, para a
pesquisa histórica e suas ramificações para outras investigações nas áreas do domínio
temático da História dos Sertões e das Religiosidades. Nesse sentido, almejamos
direcionar olhares para outras leituras até então invisibilizadas a respeito dos sertões,
somando esta produção com os estudos sobre as religiosidades não-oficiais no campo da
história.
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CAPÍTULO 1
VEREDAS SERTANEJAS
dando a ideia de que no sertão o homem sertanejo vive em comunhão com a natureza
(MARTINS, 1997, p. 33). Entretanto uma natureza adversa, que produziu o homem
forte característico do sertão, “o sertão é um deserto que demanda travessia; a
inclemência do Sol e a aridez podem matar homens e animais” (SENA, 2011, p. 107). O
sertanejo corre risco de vida quando falta chuva, vive sob insegurança alimentar, além
dos flagelos naturais também tem que enfrentar a pobreza, e a dureza dos coronéis.
Nessa relação entre natureza, homem e discurso, trazemos a verificação feita
por Muirakytan K. de Macêdo, quando analisou o cenário político do Seridó Potiguar
(século XIX)8 e percebeu nas campanhas eleitorais do período, uma tentativa de criação
de um tipo sertanejo, uma formulação do que seria o homem sertanejo, a partir das
repostas dadas pela elite seridoense, para enfrentar os adversários políticos.
8
Ver A Penúltima Versão do Seridó – Uma História do regionalismo seridoense, 2012.
28
Erivaldo Fagundes Neves, identificou, que no século XIX haviam dois sentidos
diferentes de sertão:
29
O sertão nunca pôde ser cartografado, creio que por duas razões: a primeira,
pelo fato de que, no imaginário nacional, o sertão é móvel e fluido, ora
coincidindo com algumas regiões ora com outras. Nessa cartografia
imaginária, alguns espaços são definidos como a origem ou o centro da
nação. (SENA, 2011, p. 106)
Essa divisão do que é sertão no Brasil, segundo Sena, não tem necessariamente
nada a ver com uma divisão geográfica, e sim com a construção de um “outro possível”
(SENA, 2011, p. 102). Entra em cena o mito do sertão, o sertão subjetivo, de uma
configuração cultural brasileira, como um lugar sem regras, o sertão do mito é mantido,
como já vimos anteriormente, “num tempo congelado como se a dinâmica histórica não
fosse capaz de altera-lo” o lugar das superstições religiosas (SENA, 2011, p. 102).
Permeia no imaginário nacional a noção de que o espaço que abriga o sertão é
um lugar de encantamento, onde vivem as entidades sobrenaturais como a caipora, o
saci, o lobisomem, a mula sem cabeça, as almas dos vaqueiros. “Lugar de almas
penadas que vagueiam e de santos que fogem das igrejas” (SENA, 2011, p. 110).
Interessante pensar na expressão usada por Sena, quando se refere a santos que fogem
das igrejas, no sentido de não estarem nos altares oficiais das igrejas, mas sim, nos
altares do povo.
Pensar nos sertões como essa organização social e cultural em torno dos
agentes de uma sociedade sertaneja, que tem como centro os coronéis que comandam a
vida e o trabalho nesses sertões, e que a partir dessa configuração de sociedade, surgem
e são nutridos movimentos messiânicos e milenaristas, que através da fé das pessoas se
estabeleceram e se tornaram identitários da região.
Desta forma, alguns problemas que estiveram na construção histórica desse
espaço/conceito ainda hoje são percebidos. “O sertão que já havia servido de símbolo
31
das desigualdades e das injustiças sociais do país, (...) com seu cortejo de misérias, seca,
fome, cangaço, coronelismo e fanatismo religioso” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009,
p. 197). É a fronteira entre o ser e o estar, o ser sertanejo e estar no sertão, entender essa
fronteira sem reforçar os estereótipos criados historicamente, é o que propomos aqui.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, discutiu a cultura nordestina como uma
construção histórica, fruto do discurso em torno dos flagelos que acometeram a região.
Há também de se ponderar sobre o sertão sensível, Albuquerque Júnior ao
afirmar que “O sertão se sente, é dentro da gente. Mais do que um espaço demarcado,
mais do que um mapa, é uma emoção, uma memória, uma cartografia sentimental”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 198). Além dos discursos formados em torno da
problemática das secas, e de como esses discursos penetraram no imaginário nacional, a
também que se levar em consideração, as experiências dos sujeitos que se intitulam
sertanejos, ou filhos do sertão, para além do discurso dos flagelos, da seca, da fome e da
miséria, há um sentimento de pertencimento ao lugar, de ligação com as chuvas, de
ligação com a natureza. Para Erivaldo Fagundes Neves, a ideia de sertão pode ser
entendida como um conceito misto que abarca os sentidos espaciais, econômicos e
sociais.
Vimos ao longo do tempo, nas representações de Nordeste e sertão vão deixando
de ser apenas naturais e geográficas e tomam a dimensão histórica moldada pelo homem
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Nessas representações vemos os símbolos
sertanejos que compõem o imaginário social, com a questão do banditismo e dos
cangaceiros, dos coronais, dos fanáticos e das lutas coletivas. É aqui que
contextualizamos a história de Zé Menino, os elementos que compõem as narrativas
sobre o caso, são em grande medida, parte dessas representações construídas, temos o
vaqueiro, o fazendeiro, os trabalhos braçais e com o gado que caracterizam o homem
sertanejo, as características do espaço, quem ouve as narrativas, mesmo que não saiba
de qual lugar se trata, percebe facilmente que é um espaço sertanejo.
grande extensão litorânea e assim as terras que estão no interior foram caracterizadas
como sertanejas, no sentido de oposição ao litoral ou de fronteira com o litoral.
Entretanto as denotações culturais sobre os sertões mostram outros aspectos, se em
algum momento da história brasileira e potiguar, todas a terras do interior fossem tidas
por sertão, talvez esse entendimento tenha mudado, devido a ideia cultural de sertão que
se formulou como base identitária para o Brasil (AMADO, 1995) na formação do
conceito de nação
Segundo a historiadora Denise Matos Monteiro, a ocupação do interior do
Nordeste começa ainda no século XVI, entretanto só é consolidada no século seguinte
com a expulsão dos holandeses, deste modo à colonização portuguesa se expande do
litoral adentrando as terras do interior (MONTEIRO, 2000, p. 93). Esse processo na
capitania do Rio Grande ganha força e se estabelece em 1680 “quando oficiais de
ordenanças começam a ser encaminhados para frentes de conquistas” (TRINDADE,
2010) é nesse momento que algumas ribeiras da região começam a ser invadidas a
exemplo da região do rio Piranhas-açu, dando assim seguimento a um dos trechos mais
sangrentos da história do Rio grande do Norte.
Muirakytan Macêdo referiu-se a esse momento como uma “epopeia sertaneja”,
para Macêdo, a conquista do sertão não foi pacífica “vendo invadido seu território, os
índios se levantaram, com a mais legítima determinação guerreira, contra os primeiros
assentamentos de fazendas no interior na Capitania do Rio Grande” (MACÊDO, 2012,
p. 138) usamos esse fragmento para reforçar as narrativas sobre o massacre indígena no
que hoje é o Seridó e como mesmo afirma Macêdo, é “uma parte da história que até
hoje reclama atenção por parte dos historiadores” (MACÊDO, 2012, p. 138).
Quando as tropas colonizadoras, fixadas nessas ribeiras, travaram um impetuoso
massacre contra os indígenas que habitavam a região desde períodos remotos, nesse
cenário encontramos figuras como Domingos Jorge Velho que “no caminho para
destruir Palmares, travou com os índios do sertão norte-rio-grandense algumas das mais
renhidas batalhas da história brasileira” (TRINDADE, 2010).
É nesse contexto de invasão e massacre indígena, para expansão da pecuária e da
fé católica, que está à base da história do Rio Grande do Norte e da maioria das cidades
que compõem o estado. Nesse contexto são criadas as freguesias, segundo Denise
Monteiro, nas áreas aonde a população vivia dispersa em diferentes fazendas
(MONTEIRO, 2000).
33
Essa questão da expansão católica sertões nos potiguares à dentro, pode ser
observada na arte de Nanael Simão artista e historiador, quando representa por meio do
óleo sobre a tela, o que seria o início da devoção católica nas terras que hoje
entendemos por jucurutuenses e seridoenses. Na imagem vemos ao centro, um oratório
que contém a imagem de São Miguel Arcanjo, que está sobre um móvel com a inscrição
“São Miguel de Jucurutu” diante do oratório estão ajoelhados, respectivamente a figura
de um padre colonizador e de um índio.
Observamos que o padre conduzia um livro – possivelmente um catecismo – e
uma cruz, a figura religiosa tem o olhar fixado na figura do índio, que por sua vez olha
fixamente para a imagem do santo católico ao passo que abandona no chão os seus
instrumentos de guerra. É interessante observar que o quadro pintado por Nanael Simão,
ao ser exposto na casa paroquial, ganha o lugar de narrativa oficial.
Imagem 01
.
Quadro São Miguel de Jucurutu – 2006. Nanael Simão 9
9
Quadro de Nanael Simão, óleo sobre tela, de 2006. O quadro pertence à paroquia de São Sebastião de
Jucurutu e fica exposto na casa paroquial.
34
Imagem 02:
Nas primícias da cidade, assim como a maioria das cidades brasileiras, Jucurutu,
teve seu início na relação entre a pecuária e a fé do Catolicismo Romano. A cidade se
desenvolveu a partir da construção de uma capela votiva a São Sebastião. (ARAÚJO,
2012).
10
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
11
OpemBrasil.org
12
Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente – Rio Grande do Norte.
35
Devido suas potencialidades naturais, o que hoje se entende por Jucurutu, foi
reduto indígena, antes da colonização portuguesa (ARAÚJO, 2012). Trata-se da tribo
Jucurutu, possivelmente descendentes das tribos Canindé e Janduí (ARAÚJO, 2012). A
partir do século XVIII dá-se a colonização do interior norte-rio-grandense”
(CASCUDO, apud ARAUJO, 2012) nesse período se deu a instalação de fazendas de
pecuária no território jucurutuense. Essa efetiva ocupação se deu com o extermínio de
parte da população nativa, segundo Helder Macedo:
Nasci em Jucurutu
36
No coração do Sertão
Tenho o meu belo lugar
Dentro de meu coração,
Pois nessa terra tão forte
Eu tive a bendita sorte
De ver a luz, meu patrão.
Dentro da nossa busca por poetas que tragam Jucurutu como um sertão,
encontramos o “fazedor de versos”14 Augusto Diniz, que ao escrever sobre Jucurutu na
poesia “Jucurutuense como vocês são” insere o município no que entende como coração
do sertão. A qual sertão ele está se referindo? Qual centro geográfico seria esse, a ponto
de ser considerado coração do sertão? Onde estaria localizado esse coração do sertão?
Na segunda estrofe o leitor é informado da localização do que o autor entende por
coração do sertão, trata-se da terra que fica entre o Seridó e o Vale do Assú. Mais a
frente o poeta diz que o seu lugar é o meio do sertão, e ainda completa dizendo que é
nordestino, temos assim uma visão mais ampla desse lugar, agora sabemos que é
nordestino e sertanejo.
Somos inverno abundante
E rios de correnteza,
Somos o Sertão molhado
Pelas mãos da Natureza...
13
Poema de Augusto Diniz, intitulado “Jucurutuense como vocês são.” – acervo particular do autor.
14
Augusto Diniz, professor da rede estadual de ensino é formado em geografia. Durante nosso contato
para coleta das poesias – via WathsApp - ao ser questionado em qual categoria se encaixava, se era poeta
ou cordelista, Augusto responde que “Nem um, nem outro. Mas sim um fazedor de versos. Porque não
vivo de poesia, profissionalmente falando. Mas admiro demais o cordel, os meus versos são sempre em
forma de cordel, seguindo a rima e a métrica”
37
Somos colaboradores
Produzindo todo dia,
Pra levar pra sua mesa
A saborosa iguaria,
Produzindo o melhor queijo
Com zelo e sabedoria.
15
Poema de Augusto Diniz, intitulado “Jucurutuense como vocês são.” – acervo particular do autor.
16
O Rio Piranhas ou Piranhas-açu, é um importante rio que passa pelos estados da Paraíba e do Rio
Grande do Norte, na região Nordeste do país, tem sua nascente na Serra do Bongá na cidade de Bonito da
Santa fé PB, e tem sua foz no em Macau, desembocando no Oceano Atlântico. Ao cortar o município de
Jucurutu o rio começa ainda no território da cidade, a represar as águas da – até a presente data – maior
barragem do Estado o Reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, porém estão em andamentos as obras da
barragem de Oiticicas, sendo considerada depois de finalizada o maior reservatório de aguas do RN,
assim Jucurutu contará com o final de uma barragem e o inicio de outra dentro de seu território . vale
salientar ainda que a presença do rio favoreceu o passagem de grupos indígenas nômades que habitavam
essas terras, como os Tarairíu. Para maiores informações sobre abacia do rio Piranhas ver:
http://www.aesa.pb.gov.br/ Acesso em: 15/10/2021 às 21:33
17
Para maiores informações, ver Oswaldo Lamartine, Sertões do Seridó. 1980
38
aqui pode ser entendido como já vimos na dicotomia entre cidade e campo, como o
próprio sertão.
Também destacamos aqui os escritos de José Onofre da Cruz Oliveira (1923 –
2019) conhecido como José de Bertôldo18. Podemos classificar seu José Bertôldo como
poeta e memorialista uma vez que em suas poesias vemos fragmentos da história dita
oficial do município com datas específicas por ele vivenciadas e também com a
descrição física da cidade de tempos anteriores, além de aparecerem em seus versos
nomes de personalidades como prefeitos e figuras de renome na cidade.
O sertão acidentado
Das encostas e ladeiras
Das mulheres apaixonadas
Das moças namoradeiras
Preservo Jucurutu
Meu berço bendito sejas
Da lembrança da saudade
Das morenas sertanejas19
Nos poemas de José Bertôldo, Jucurutu, por vezes é encaixado nas descrições
sobre o sertão, ao falar de seu lugar de origem e da sua infância, o autor relembra um
sertão sensível, ativado em sua memória pelos cheiros, sons e sentimentos. Quando
relembra, por exemplo, o claro das fogueiras das festas de São João que aconteciam no
que ele descreve como campinas do sertão, faz também uma descrição geográfica desse
espaço “o sertão acidentado das encostas e ladeiras”, a memória afetiva é apresentada
em seus versos quando expressa a saudade das morenas sertanejas.
As paisagens do sertão
Versos feitos em 94 após a seca de 93
18
José Onofre da Cruz Oliveira, nasceu em 1923 e faleceu em dezembro de 2019. Era conhecido como
José de Bertôldo – referência a seu Pai, Bertôldo Domingues - Em seus escritos assinava como J.
Bertôldo ou Bertôldo. Os poemas escritos por ele em um caderno simples de arame, estão sobre posse da
família e algumas cópias desse caderno, estão espalhadas pela cidade em acervos particulares. Tivemos
acesso às informações sobre o poeta através de Nanael Simão e Erika Dantas, bisneta de Bertôldo.
19
Poema de José Bertôldo.
39
O sertão ao qual Bertôldo se refere é descrito em seus versos, ele se coloca como
pertencente ao lugar, o sertão potiguar, mais precisamente em Jucurutu, novamente
vemos o Rio Piranhas servindo como ponto de referência, outro aspecto importante que
20
Poema de José Bertôldo.
21
Poema de José Bertôldo.
40
Do sertanejo gigante
Do trabalhador roceiro
Do bom tocador de fole
Do pescador do oleiro
Do valente que não briga
Do poeta do vaqueiro
O nordestino já vive
Acostumado a sofrer
Principalmente o roceiro
Que não tem de que viver
Fica triste quando olha
A lavoura se perder
22
Ver: Um outro Nordeste o algodão na economia do Rio Grande do Norte (1880-1915) de Denise
Monteiro Takeya ou Seridó norte-rio-grandense uma cartografia da resistência de Ione Rodrigues Diniz
Morais.
23
Poema de José Bertôdo
41
Para Bertôldo, Jucurutu é o recanto do sertão e para caracterizar esse espaço que
ele descreve em seus versos, o autor se utiliza do imaginário criado sobre o sertão, que
já foi discutido acima. Para isso ele expõe o sentimento do povo quando falta chuva na
terra, vemos assim a problemática da seca, que serviu por muito tempo como nos
apresenta Albuquerque Junior como base para uma construção imagética para o sertão e
para o Nordeste, a seca como um problema regional e o discurso da seca que flagelava o
povo, ganhando enfoque na impressa gerando muitas das imagens sobre o sertão e o
Nordeste que temos até hoje (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994), ou ainda como
menciona a historiadora Olívia Morais de Medeiros Neta “a seca é a mãe do Seridó”
(MEDEIROS NETA, 2007) justificando a construção de uma imagem de “espaço
pedinte” (MEDEIROS NETA, 2007).
Bertôldo, também apresenta a religiosidade do povo que habita a região, e como
os aspectos negativos do lugar fazem dos tipos sertanejos, sujeitos fortes e resistentes,
que suportam as intempéries do tempo, sem que percam o sensível, ao passo que
apresenta funções do trabalho do campo como o de pescar, trabalhar na roça, da lida do
gado, também fala sobre os poetas, oleiros e tocadores.
O sertão Jucurutu que esteve na memória de Bertôldo, é fixado no Nordeste, no
Rio Grande do Norte, no Seridó, é um sertão pertencente a outros sertões, um sertão que
muda com as chuvas, que é molhado por um rio, um sertão de aspectos culturais
desenhados pelo imaginário criado sobre a região e também desenhado pelas próprias
vivencias do autor. Achamos necessário trazermos a este trabalho outras voz que estão
fora da historiografia oficial, para percebermos como Jucurutu é visto/entendido como
um sertão.
24
RIACHÃO, Monografia da comunidade. 2010. Equipe da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
25
RIACHÃO, Monografia da comunidade. 2010. Equipe da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
43
CAPÍTULO 2
unidade, quer dos Bispos, quer da multidão dos fiéis” (Catecismo da Igreja Católica,
882 - II Concílio do Vaticano, 1965).
Entretanto, manter a igreja Una e Sancta, não é uma tarefa das mais fáceis.
Espalhada por diversos rincões mundo a fora, o desafio da unidade se torna enorme para
o sucessor do apostolo Pedro e seus funcionários, sejam de alta ou baixa patente. É fácil
entender a dificuldade desse ideal de unidade, ao lembrarmos a imensidão de fiéis que
professam a fé católica, segundo os dados do Anuário Pontifício 2021 e o Annuarium
Statisticum Ecclesiae 201926, existem mais de um bilhão de católicos pelo mundo e o
Brasil ocupa a primeira posição na listagem de países com maior população católica,
somando alguns milhões de fiéis, essa opulência, somada a variedade cultural de
diversos países nos cinco continentes gera uma infinidade de ritos que se diferenciam da
liturgia oficial.
Entender essas movimentações no interior da Igreja Católica, nesse capítulo é
parte do trajeto que propomos. Partimos do âmbito oficial para entender as ações
desencadeadas num âmbito que entendemos como não-oficial, e que recebe essa
nomenclatura, por estar em partes, em desconformidade com o que a Igreja oficial
propõe. É nesse sentido, que começamos a abordar como o catolicismo se adequa ao
local que está inserido, lugares como os sertões, onde as forças religiosas, políticas,
sociais e econômicas se mesclam, tornando ainda mais peculiar as formas do culto
sertanejo.
Sabemos que a colonização portuguesa se expandiu por todo território brasileiro,
com êxito, a fé católica foi propagada em proporções pujantes e assim buscou silenciar
de forma sistemática, os credos, a língua e os costumes indígenas; e posteriormente os
dos povos africanos, que foram trazidos de suas terras originárias para serem
escravizados, sob a condescendência católica. Não podemos dizer, porém, que o
catolicismo se mantém na prática, como no discurso. Ora, se o discurso oficial da Igreja
Católica Apostólica Romana, declara como vimos, a Unidade da Igreja em torno das
tradições, na prática, em se tratando do Brasil em geral e mais especificamente nos
sertões nordestinos, de onde parte nossa análise, é totalmente diferente.
Nesse contexto alguns eventos fora da curva oficial, se tornaram emblemáticos e
acionaram o imaginário de diversas gerações de sertanejos. Como já vimos, apesar de
todas as dificuldades que a região Nordeste enfrenta, seja de cunho político, econômico,
26
Informação obtida através do site oficial de noticias do Vaticano, o Vatican News.
45
social ou ambiental, questões que dão margem para uma miríade de debates, e talvez
por isso, esses espaços sertanejos, são berços de uma religiosidade ao passo que é
múltipla, é também singular.
Da mesma forma como foram moldados os discursos em torno do Nordeste, dos
sertões, dos tipos sertanejos, essas ideias também se estruturaram em torno de uma
religiosidade que não desinteressadamente tem a cara do sertão. Uma busca rápida no
Google por “religiosidade sertaneja” nos direciona para uma sequência de imagens de
casas simples, com paredes inteiras dedicadas à uma infinidade de quadros e imagens de
santos e santas católicas com numerosas fitas coloridas ao redor, nos filmes é comum
ver, oratórios e velas queimando enquanto senhoras com rostos enrugados debulham
seus rosários, também se inseriu no nosso imaginário, o sertanejo como pagador de
promessas, ou aquele que através da fé articula embates políticos. Essa imagética
mostra um pouco do que estamos analisando aqui, sobre uma religiosidade que é feita
no âmbito familiar, sem a presença assídua de um sacerdote.
Albuquerque Júnior, discutiu como a ideia de cultura nordestina foi moldada e
nesse sentido, como somos remetidos a um “conjunto de manifestações culturais e uma
dada forma de organização social” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 20). Desta
forma, podemos analisar a partir das suas colocações como se impregnou no imaginário
social, uma religiosidade com aspectos característicos sertanejos, segundo Albuquerque
Júnior, dentre as características desenhadas para essa região, estava “uma sociedade
sacralizada, onde a presença da religiosidade e do misticismo dava origem a
manifestações messiânicas e a revoltas em torno de dadas crenças e figuras místicas”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 20).
A partir dessa perspectiva, de enfoque, começamos a analisar os movimentos
que se desenvolveram no Nordeste brasileiro, que chegaram inclusive a tomar
proporções bélicas e que se colocaram durante muito tempo como pano de fundo, para o
imaginário sertanejo, compondo uma dita identidade de resistência política sertaneja.
Desses movimentos surgem figuras importantes que movimentam massas populacionais
em torno e através da fé.
Assim sendo, os movimentos messiânicos se constituem num cenário de
desgaste político, economicamente esgotado e pelo lado do catolicismo oficial
religiosamente enfraquecido pela falta de assistência sacerdotal, assim sendo esses
movimentos encontraram no Nordeste o ambiente propício para se desenvolver, no
meio de uma sociedade que não vê saída para os problemas que enfrenta. Segundo Süss,
46
27
Para um estudo mais aprofundado sobre o messianismo, ver a obra de Maria Isaura Pereira Queiroz, O
Messianismo no Brasil e no Mundo.
28
Para maiores informações sobre o movimento messiânico da Serra de João do Vale ver a dissertação de
mestrado de Vikelane Maria de Oliveira Silva. “Entre estradas e veredas: Messianismo nos sertões do
estado do Rio Grande do Norte (1898-1899)”. Defendida em 2021, no Programa de Pós-Graduação em
História dos Sertões. PPGHC - Ceres, UFRN.
29
SÜSS, Günter Paulo. 1979
30
SÜSS, Günter Paulo. 1979.
47
Como já vimos onde a igreja não conseguia manter uma presença constante,
associada aos problemas sociais, políticos e econômicos, o próprio povo desenvolvia
formas de resistir e existir no meio do sertão.
32
Alberto Rodrigues de Oliveira, DA FÉ A PROMOÇÃO SOCIAL: a atividade missionária do padre
Ibiapina. Dissertação de mestrado em Ciência da Religião, 2007. Universidade Católica de Pernambuco.
33
Sobre frei Damião maiores informações em Trilogia Missionária de Damião Lucena 2017.
34
João Everton da Cruz. Frei Damião: a figura do conselheiro no Catolicismo Popular do Nordeste
brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. 2010
49
Por esse motivo, com razão, Silva35 afirma que a “força carismática de frei
Damião invadiu o Nordeste” (SILVA, 2020). Sua presença não passava despercebida
nas cidades que visitava. A Igreja estava preocupada com a forma com que o
catolicismo estava sendo vivenciado no Brasil, o objetivo era moralizar o país. Segundo
Silva, o intuito era “o fortalecimento da catolicidade” (SILVA, 2020). E nesse sentido,
os discursos de frei Damião estavam em harmonia com o trono petrino.
Mais uma vez, vemos a relação de uma figura religiosa com uma população
pobre, sem acesso educação básica e desassistida da presença da Igreja, seja por meio da
catequese ou sacramentos. Essa parece ser a base comum, para o nascimento de uma
movimentação extraordinária em torno dessas figuras, é um fator que se repete em
muitos casos de conselheiros e guias espirituais e políticos. Frei Damião, conforme
percorreu as cidades do Nordeste, passou a ser visto como divino, seu discurso forte de
arrependimento e volta ao catolicismo, fortalecia os fiéis até então distantes da presença
da igreja. Como uma figura emblemática, não poderia faltar na sua trajetória pontos que
vão além das numerosas benesses que seu nome carrega, não faltam relatos do combate
ao protestantismo que o frei capuchinho fazia de forma veemente. Em 2019, frei
Damião, recebeu da Igreja Católica, através do Papa Francisco, a condição de venerável,
diminuindo assim a distância até o seu processo de canonização.
No mesmo grupo de personalidades, que num cenário adverso, ganha à
deferência popular, vemos Cicero Romão Batista, o padre Cícero, nascido no Crato-CE
em 1844 e a sua fama se espalhou do Ceará para todo Nordeste. Em sua obra
missionária, além da pregação do evangelho e da confissão dos pecados, visitava a
comunidade com frequência moralizando os fiéis católicos. Ganhou desta forma a
simpatia e a confiança das pessoas36.
Em torno da figura do padre Cícero circulavam algumas contradições. Para os
fiéis uma devoção inquestionável e uma ligação direta com o divino que se expressava
através dos milagres, para os inimigos políticos, um farsante que usava a influência
religiosa para ganhar força política. Os olhares atenciosos que se voltaram para
Juazeiro-CE não eram apenas políticos e civis, devido o alarde em torno da sua figura, a
Igreja também acompanhava atenta as movimentações que aconteciam nos sertões do
Ceará. Graças ao trato atencioso para com os devotos nas questões espirituais, o padre
35
Jociel João Gomes da Silva, Frei Damião De Bozzano E Sua Contribuição A Evangelização Do
Nordeste. XIII Encontro Estadual De História História E Mídias: Narrativas Em Disputas. 2020.
36
Sobre padre Cícero maiores informações em Trilogia Missionária de Damião Lucena, 2017.
50
Cícero angariou multidões de fiéis, pois “se preocupava com as aflições e problemas
sociais que eram acometidos os fiéis que congregavam em sua paróquia” (FERNADES,
2017, p. 20). Para tanto, não apenas os devotos pertencentes a sua paróquia, fiéis de
outras paróquias e dioceses se dirigiam em romaria para Juazeiro, esse trânsito de
devotos, chamou a atenção das autoridades religiosas.
Os supostos milagres que aconteceram em Juazeiro por intermédio do Padre
Cícero e se materializaram na Beata Maria de Araújo, foram investigados de perto pela
Igreja Católica, que temia uma ruptura a partir da figura do Padim Ciço, algumas
hipóteses foram levantadas e as medidas orientadas pelo direito canônico foram
tomadas.
A hóstia após ser ministrada pelo padre, tornava-se imediatamente sangue em
contato com a língua de Maria de Araújo. O fato miraculoso, obviamente encheu os
olhos dos fiéis e que entenderam as sucessivas repetições desse feito, como um sinal
direto da presença de Deus através do Padre Cícero.
Pertinente avaliar a forma de tratamento dos fiéis para com o padre Cícero, o
Padim Ciço, além de agregar à figura do religioso, as características regionais da fala, o
sotaque nordestino, também o traz para mais perto dos fiéis. A relação do fiel com o
padre é tão próxima que chega a se tornar familiar, “meu padim”, que pode ser um
diminutivo de padre, utilizado como um termo carinhoso, ou uma referência ao
apadrinhamento religioso, o padre Cícero se tornou padrinho de centenas de fiéis,
mesmo sem ter participado do rito batismal, que no catolicismo institui os padrinhos.
Interessante ver o padre Cícero através da beata Maria de Araújo, é nela que o
milagre se materializa, esse fato é expressivo, pois a religiosidade que discutimos aqui,
tem na participação feminina uma base muito sólida, enquanto os homens trabalham, as
mulheres rezam. Na organização desse catolicismo informal que discutimos aqui, as
mulheres assumem a liderança na grande maioria das vezes, são elas que conduzem as
orações.
Segundo Fernandes, essa também seria a questão que suscitou a perplexidade
dos bispos e demais autoridades religiosas, pois em torno da beata Maria de Araújo,
uma mulher mestiça, Deus teria se manifestado ao povo: “Deus havia deixado a Europa
para se manifestar no interior do Ceará, num local tão castigado pela seca e diversas
outras mazelas sociais. Como se não bastasse, uma beata pobre e negra havia sido a
beneficiada pelo milagre divino” (FERNANDES, 2017, p.24)
51
Embora tenha morrido sem o perdão da igreja, e sem poder exercer as funções
sacerdotais, Padre Cícero recebeu em 2015 o perdão pelo papa Francisco como um sinal
de reconciliação com a igreja. No dia 24 de junho de 2022 foi autorizada a abertura do
processo de beatificação do Padim Cícero que recebeu o título de servo de Deus.
Há entre esses sujeitos peculiaridades que vão além do vínculo com a Sé Romana, estes
sacerdotes estavam em constate contato com o povo, se lembrarmos da falta de
assistência religiosa já mencionada acima, o povo carente de atenção foi facilmente
conquistado. Embora estivessem diretamente ligados ao catolicismo oficial, a forma que
o catolicismo toma, a partir de suas figuras, gera práticas complementares ao
catolicismo oficial.
Assim sendo, da mesma forma como os cultos ganham novas roupagens a partir
das experiências dos fiéis, os locais sagrados se tornam múltiplos no catolicismo não-
oficial, os devotos creditam a importância sacra de alguns lugares, que não foram
sacralizados oficialmente pela igreja. Dentre os locais sagrados do Catolicismo não-
oficial, destacamos aqueles que tem relação com essa pesquisa, que são os locais
sagrados votivos a milagreiros e milagreiras. Nesse sentindo, esses lugares para
ganharem um status de sacralidade devem ter alguma relação com o milagreiro, seja o
local da sua morte, ou a sua sepultura; no caso de Zé Menino, o espaço sagrado de sua
atuação e devoção é o local da sua morte, para esse lugar se dirigem dezenas de devotos,
para reafirmarem os vínculos com o milagreiro ou depositar ex-votos.
Atreladas ao espaço sagrado estão às narrativas em torno do milagreiro, são elas
que sustentam a fama do local sagrado e do milagreiro, como afirma Andrade Junior “o
que sustenta tais condições são as narrativas que se perpetuam para manter vivas
histórias e memórias que referendam os poderes milagrosos de determinados sujeitos e
lugares” (ANDRADE JUNIOR, 2021, p. 89). Essas narrativas fazem a manutenção do
espaço sagrado e dessas devoções, os devotos ouvem falar sobre o local e sobre a ação
miraculosa do sujeito que se relaciona com aquele espaço.
Não faltam exemplos de túmulos e capelas dedicados a milagreiros, que recebem
centenas de crentes, que se dirigem a estes locais, para manifestar a sua fé e se
relacionar com o sagrado, o local sacralizado é tão importante quanto o milagreiro, haja
vista que sua atuação, na maior parte das vezes, está circunscrita ao local onde o culto
ao milagreiro se assenta.
Há de se ponderar também que ao tratarmos do sagrado e de como as pessoas o
entendem, requer bastante cuidado, para não cometermos equívocos, já mencionamos
55
aqui o quanto as fronteiras entre sagrado e profano são porosas ou do oficial e não-
oficial, nesse sentido, mesmo um templo oficial, pode acolher devoções não-oficiais,
embora tais práticas sejam combatidas com rigor por parte das autoridades católicas.
Da mesma forma como nos templos oficiais podem acontecer práticas não
oficiais, nos locais sacralizados pela devoção não-oficial em memória de seus
milagreiros, mesclas do culto oficial são visíveis e muitas vezes bastante expressivas,
como é o caso de Zé Menino, a inserção da imagem de São José no altar da pequena
capela, construída depois de uma promessa feita a Zé Menino, evidencia essa questão,
as dezenas de imagens de santos sobrepostas no altar, também revelam um pouco de
como essa fé é mista.
Tanto o culto quanto local sagrado não-oficial se destacam pela forma
diferenciada como são vivenciados, essas práticas se distanciam do oficial, não apenas
na liturgia própria, mas também no aspecto visual. Amontoados de ex-votos, enchem a
vista de quem observa, sejam fitas amarradas na grade de um túmulo, seja nas bonecas
penduradas pelo pescoço, numa cerca de arame farpado ao pé da pista como é o caso da
Cruz da Menina em Jardim do Seridó (RN)38.
Imagem 03:
38
A construção de duas devoções no município de jardim do Seridó-RN: Aproximações e
distanciamentos Antonio Alves De Oliveira Neto e Lourival Andrade Junior.
56
caderno de campo, resolvemos não gravar a entrevista dada a forma agressiva como o
tema foi tratado.39
A cidade vivência, no seu cotidiano religioso, formas diversificadas de
devoções, oficiais e não-oficiais. Dentre essas práticas, podemos observar na zona rural,
uma variedade maior dessas expressões, uma vez que, como já observamos
anteriormente, a falta de sacerdotes presentes nessas comunidades, induz o povo a se
apropriarem dos ritos e celebrarem de formas distintas. Como exemplo dessas práticas
na zona rural, observamos no sítio Cacimbas, numa das casas, há mais de cem anos
acontece à recitação de um terço todo dia 23 de junho em honra a São João, esse rito é
todo conduzido pelas mulheres, à dona da casa, prepara com antecedência a decoração
do oratório, que fica na sala da casa simples, segundo as narrativas, as mulheres rezam o
terço e entoam cânticos em louvor ao referido santo, os homens que acompanham a
oração, ficam do lado de fora da casa, somente acessando a parte interna na hora de
depositar as ofertas, ainda do lado de fora da residência a fogueira queima e após a
novena as pessoas interagem, conversando, soltando fogos junto com as crianças e
degustam das comidas típicas do dia do santo junino.
Outro aspecto referente ao catolicismo não-oficial que identificamos no
município de Jucurutu, em períodos passados, foram as incelências para anjos, prática
que caiu em desuso à bastante tempo, mas que ainda está presente na memória de
algumas pessoas que vivenciaram ou ouviram falar sobre. Durante a graduação
pesquisamos a prática das incelências na zona rural de Jucurutu.
As incelências são remanescentes das orações para mortos, que foram regidas
pela liturgia da Igreja Católica. Como já vimos à falta de assistência religiosa em alguns
períodos da história, fez com que os grupos se organizassem para, com o conhecimento
que tinham, intermediarem eles próprios a relação com o divino (SIMÃO, 2017). As
incelências são orações cantadas em estrofes com várias repetições, em Jucurutu
constatamos uma peculiaridade, as incelências eram cantadas apenas para crianças
mortas, os anjos ou anjinhos, toda criança que morria até aproximadamente os sete anos
de idade era chamada assim (SIMÃO, 2017).
Todo o processo da morte infantil era acompanhado pelo grupo, desde o quarto
para o anjo, o anúncio feito pelo sino, ou a confecção da mortalha e adornos que
39
Durante nossa pesquisa muitas vezes não conseguimos gravar as entrevistas devido as circunstâncias do
momento, e algumas vezes recorremos ao caderno de campo, para anotação dessas informações, que
julgávamos importantes e que foram coletadas principalmente durante as sondagens iniciais.
58
Imagem 04:
40
As informações sobre o antigo cemitério podem ser coletadas nos livros de tombo da paroquia ou na
revista O Canto do Jucurutu, publicada pelo historiador Nanael Simão de Araújo, no ano de 2012 em
comemoração aos 150 anos de fundação da cidade.
59
2.4 MILAGREIROS
O Brasil, bem como qualquer país de matriz católica, está cheio de santos
fora do altar, esperando o reconhecimento da Igreja. Ou nem sequer
necessitando dele. A canonização é espontânea. O postulante a santo pode ser
um padre ou um bandido, pobre coitado ou ricaço com fama de evérgeta,
criança ou velho. (KARNAL; FERNADES, 2017)
tudo” até o momento em que João Grilo, ludibria o cangaceiro chefe do bando no filme,
com uma gaita que segundo ele teria sido benta por seu padrinho Padre Cícero, logo o
cangaceiro, se prontifica a morrer para ter um encontro com seu padrinho, à intenção de
relembrar essa passagem do filme inspirada na obra de Ariano Suassuna, foi para relatar
como no imaginário popular, esses sujeitos se relacionavam, apesar da vida que
levavam, com o sagrado. No caso de Jararaca, acontece uma espécie de redenção, de
bandido sanguinário após sua morte, passa para o patamar do sagrado, realizando
milagres.
Como em outros casos, o túmulo mais visitado no cemitério São Sebastião, em
Mossoró (RN), é o de Jararaca, e que chama a atenção de curiosos para o túmulo
(FALCÃO, 2011). A forma como os devotos se comportam diante do túmulo do
milagreiro, e como contam as suas experiências servem ainda, como uma expansão da
devoção. Da maneira como aconteceu a morte de Jararaca é somada as dezenas de
graças alcançadas, nesse sentido a devoção é propagada, além da oralidade e notícias de
jornal, a história do cangaceiro que virou milagreiro ganhou também as páginas dos
cordéis, como foi analisado por Andrade Junior em 2018. Os cordéis são clássicos da
cultura nordestina e ainda são bastante lidos e divulgados, parte do que os devotos
sabem a respeito da vida e morte de Jararaca foi informado por cordéis, também por
conta da facilidade de acesso a estes folhetos, a análise de Andrade Junior se estendeu
por cordéis que tratavam da história do cangaço, de Jararaca e das suas aventuras
enquanto cangaceiro e de sua fama como “santo”41 após a morte bastante violenta por
parte seus agressores.
Nesse aspecto, durante a construção da devoção a Jararaca, o túmulo passou a
ocupar um lugar simbólico, ali convergem céu e terra, é o encontro dos planos espiritual
e terreno, lugar onde a fé dos devotos encontra espaço para se expressar e divulgar,
como forma de agradecimento, os feitos miraculosos do milagreiro.
Ainda tratando dos milagreiros que tem no cemitério seu local de devoção,
encontramos o caicoense e médico Carlindo de Souza Dantas. Um sujeito que após a
morte, continua, segundo as narrativas operando, atendendo e receitando as pessoas nos
mais diversos hospitais ou casas do Seridó (OLIVEIRA, 2015).
41
Nos cordéis analisados por Andrade Junior, aparece a menção a “santo” quando se referem à atuação de
Jararaca após a morte, alguns exemplos são: POETA, Nando. Jararaca o cangaceiro que virou santo. São
Paulo: Luzeiro, 2014; SENNA, Costa. Jararaca, o cangaceiro santo. Fortaleza: Tupynanquim, 2013.
64
42
A informação do sonho premonitório sobre a morte dos Anjinhos Queimados de Jucurutu, foi obtida no
dia 8 de dezembro de 2019, quando visitamos a comunidade Pangoá para a missa de 50 anos da morte dos
meninos. Uma devota que participava da missa nos contou sobre essa versão da história, o relato foi
documentado no caderno de campo, já que nesse dia especificamente, não conseguimos gravar as
entrevistas em virtude do pouco tempo que dispúnhamos.
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Imagem 05:
43
O Pangoá é uma das muitas comunidades da Serra de João do Vale, com acesso bem difícil e distante
para chegar até lá.
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Imagem 06:
Devota amarra fitas no gradil dos Anjinhos Queimados de Jucurutu, 2019 Wesley Simão.
44
Ainda há muito o que se entender a respeito da devoção a Menina Santa de Florânia, cabe menção a
presença peculiar da imagem de Nossa Senhora Menina, padroeira da Igreja Católica Apostólica
Brasileira.
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CAPÍTULO 3
fervorosas se misturavam ao cantar dos pássaros que terciam mais uma manhã de
inverno naquele sertão.
Tradicionalmente o dia 19 de março é muito aguardado pelo sertanejo, pois
segundo a tradição, é preciso que chova no dia de São José como uma espécie de
confirmação que o ano será bom de inverno, e as plantações teriam água suficiente, para
se desenvolver, inclusive o ato de plantar em “São José para colher em São João”,
plantando por exemplo, milho no dia de São José, as espigas estariam prontas para
retirada nos festejos do santo junino. As secas castigam muito os sertões ao longo do
tempo, e se valer de um santo que pode abrir as comportas do céu e fazer chover, parece
ser uma boa opção para quem mora por aqui, e esse percebemos ser um forte indicativo
da relação entre as fervorosas devotas ao patriarca São José.
Imagem 07:
Quando perguntamos como se deu o crime que tirou a vida de José Batista
Serafim, nossos interlocutores, parecem ter vivenciado o acontecimento, devido a forma
como nos passam as informações, embora o crime tenha acontecido na década de 30 do
século passado, a comoção com que os narradores contam a história é de impressionar, é
algo que está tão arraigado no imaginário coletivo, que parece que eles próprios
presenciaram todo o sofrimento de Zé Menino.
Diz que houve uma vaquejada aqui pro lado de Triunfo e vieram de lá pra cá
vieram dessa vaquejada, pegaram ele por aqui (inaudível) vieram judiando
de lá pra cá, ai chegaram aqui, parece que mataram ou cegaram ele, cortaram
língua, penduraram (...) arrastando, lançaram no cavalo aí vieram arrastando
nesses pedregulhos e ele: Eu sou inocente! eu sou inocente! Aí deram demais
nele. (COSTA, 2019)
45
Jornal da Arquidiocese de Natal, fundado em 1935.
71
Nas entrevistas podemos perceber alguns aspectos míticos que dão ênfase a
questão da devoção, tirando a morte de Zé Menino de um lugar comum e alçando ao
extraordinário, para a comunidade o espaço que serviu de palco para a trágica morte de
José Batista Serafim, começou a dar demonstrações de que tinha se tornado diferente de
outros lugares, passando a ser sagrado:
ficava boa, quebrava uma perna (fogos) fazia a prece, o braço adoecia ficava
muita gente de cama pedia e sempre recebia a prece dele que eu sei que eu
vejo o povo falando é isso (COSTA, 2019).
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Aspidosperma pyrifolium – é uma planta de origem nativa, característica da Caatinga, que ocorre
amplamente em regiões semiáridas e em solos pedregosos. É uma espécie, segundo a literatura, adaptada
a baixa pluviosidade e a altas temperaturas. É uma arvore de tronco ereto, não muito grosso, seu fruto e
popularmente chamado de “galinha” pelo formato de gota achatada. Informações do NEMA – Núcleo de
Ecologia e Monitoramento Ambiental - UNIVASF
73
Mas ai que diz que eles pensavam que tinham deixado ele morto. O burro era
muito bravo assim muito, ninguém chegava perto mas ai diz que que ele tava
na noite, e chegou uma mulher toda com um lenço azul um pano azul na
cabeça e perguntou se ele queria sair dali e ele disse que queria, ai disse que
mulher pegou no cabresto do burro e conseguiu botar ele no burro, aí diz que
ele chegou até em casa e quando chegou em casa que falou botou a mão nos
ferimentos que dizem que eram nas costelas muito fortes saindo os fígados
sei lá pra fora e falou quando chamou e diz que a mulher saiu e ele caiu
(FIGUEIREDO, 2019).
muita gente falou isso e esse Eduardo que matou ele, ele virou corpo seco em
vida em vida mesmo, os braços dele aqui a parte do músculo aqui, era bem
fininha e o meio do braço dele era todo inchado (...) ele virou corpo seco em
vida eu conheci ele demais (fogos) Zé Lourenço e Eduardo foi quem matou
(COSTA, 2019).
O torna-se corpo seco ou secar ainda em vida teria sido um dos castigos que os
algozes de Zé Menino teriam enfrentado, no imaginário do sertão o corpo seco
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A história que eu sei que o povo contava que o finado Martin Mariz, “Martim
Beiçudo”, sabe? É fez um voto lá onde mataram esse rapaz fez um voto diz
que a esposa dele era paralítica, sabe, a história que o povo conta, não é eu
que tô (...) como se diz é... era paralítica, ele fez esse voto que se a esposa
ficasse boa ele construiria uma capela lá no local onde tinham matado Zé
Menino, ai a esposa ficou boa e ele construiu essa capela (FIGUEIREDO,
2019).
Outra história que dá indícios segundo a oralidade, embora seja uma versão
menos conhecida e citada pela nossa colônia de narradores, nos foi relatado por dona
Maria José de Melo da Silva Fonseca (70 anos):
Os relatos sobre como a capela surgiu a partir das graças pedidas e alcançadas
através de Zé Menino podem ser explicadas a partir de Yi Fu Tuan que caracterizou o
espaço como um lugar que se constitui a partir da experiência. Utilizamos o conceito de
lugar experimental, para entender como esse espaço toma formas de lugar sagrado a
parir das vivências e experiências dos sujeitos que frequentam esse espaço, atribuindo a
ele significado (TUAN, 1983, p. 5).
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3.5 EX-VOTOS
Imagem 09:
Imagem 10:
No tempo que eu quebrei minha perna eu fiz uma promessa que quando eu
tirasse o gesso (...) quando eu tirei o gesso foi a primeira viagem que eu fiz
foi de pés daqui pra acolá meio dia me ponto uma hora da tarde, fui até mais
uma vizinha ali, aí eu subi, quando subisse o alto entrava na capela de
joelhos, mas não tinha aquele altar nem aquela cruz, era uma cruzinha do pé
de pereiro que o povo dizia que acharam ele, a cruz era um pé de pereiro
dentro da capela ai era uma tabuinha aqui assim apregado nesse pé de
pereiro, (...) quando eu fui entrando na capela de joelho (...) foi quando eu
acreditei que Jesus e São José e o finado Zé Menino protege (...) quando eu
entrei na capela, tenho uma testemunha, ai tinha uma abelhas que chama,
como é meu Deus... o nome das abelhas? Caboclas! Umas vermelhas
grandes, essas abelhas caíram em cima de mim, pegaram nos meus braços no
meu rosto, ai foi comadre Natividade disse: Comadre Zezé se levante! Eu
disse não! Não, me levanto não. Vou mostrar a São José e ao finado Zé
Menino como eles tem proteção eu não vou sentir nada, nem me dar dor de
cabeça nem febre nem nada, ela disse comadre se levante! Não me levanto!
Ai quando eu fui arrodeando o altarzinho de joelho sabe? Que eu fui dando a
curva ai tinha a capa delas ai foi que caíram em cima de mim, e eu aguentei
até o fim ai quando arrodeei todinho a cruz e o altarzinho ai voltei pro
altarzinho e rezei (...) Graças a Deus vim embora não inchou nada, não tive
febre, não tive dor de cabeça. (FONSECA, 2019).
O relato de dona Zezé, demostra como a fé pode ser força motora para algumas
ações, mesmo sob o ataque das abelhas terminaria de pagar sua promessa e assim seria
manifesto como um atestado de veracidade, as ações poderosas de São José e Zé
Menino, em outra oportunidade durante as conversas, perguntada se fazia as promessas
para São José ou para o finado Zé Menino, a entrevistada disse que para os dois, pois
os considera a mesma coisa.
Eu quebrei essa perna ai pedi um voto a São José se eu ficasse boa, não
ficasse com negocio ai ele me valeu ai dai pra cá graças a Deus,
_São José ou Zé Menino?
Os Dois! Os dois porque eu me vali de São José e do finado Zé Menino né e
todos dois me valeram peço pra mim, peço pros meus seis filhos que eu tenho
tudo são validos, sou muito devota a meu pai eterno também e nossa senhora
de Fátima. (FONSECA, 2019)
Essa ação orquestrada pelas devotas, muito nos lembra, a prática descrita por
Cláudia Rodrigues do que a autora chama de banquete funerário, que consistia na
reunião das famílias em torno dos túmulos de seus mortos, “oferecendo assim esses
banquetes sobre as tumbas – cada família possuía seu túmulo – ocasiões nas quais a
parentela se reunia para uma refeição funerária” (RODRIGUES, 2005, p. 41).
No caso de Zé Menino, a capela faz às vezes de túmulo, em vez dos restos
mortais, permanece como lugar de memória, se antes, como descreve Rodrigues, as
famílias se reuniam em torno das catacumbas para ofertar toda piedade ao morto, as
devotas ressignificam essa prática ao se deliciarem com as suas iguarias em memória do
finado Zé Menino, nesse caso como em um banquete comemorativo. Vemos assim
outro aspecto importante dessa peregrinação, que é o de sociabilização, rever pessoas
que há muito tempo não se via, colocar as conversas em dia e até mesmo compartilhar
receitas.
Este é um espaço de experiências, ele é sentido, visto, tocado e cheirado (TUAN,
1986, p. 203). A imagem que segue mostra como o café compartilhado é servido,
mostrando também o consumo no local.
Imagem 11:
para o dia 19, neste dia, chega à capela bem cedo e passa o dia recepcionando as
dezenas de fiéis, dona Raimunda nos conta como começou a tomar conta da capela:
_Eu era casada com o filho do finado Martins, o que fez aqui, construiu, fez
um voto e foi valido.
_Fez um voto a quem?
_Ao finado Zé Menino ai ele foi valido ai ele construiu aqui, ai muitos anos
ele ficou que era vivo ficou fazendo, aí quando ele morreu eu tomei conta, aí
eu me separei do meu marido, o filho dele, mas aí eu me ajuntei com esse
outro e continuei fazendo a mesma coisa todos os anos todos os anos.
(2019).
realização das missas e ações litúrgicas como batizados e casamentos, seria porque, as
ofertas em dinheiro que são depositadas no dia 19 de março, permanecem em poder da
cuidadora da capela, para realização de reparos estruturais, troca de telhado, pinturas,
entre outros. E a igreja alega que as ofertas deveriam ser destinadas para a sede
paroquial, e de lá os recursos seriam destinados conforme a necessidade da capela.
O segundo ponto a ser levado em consideração, é a questão do silenciamento por
parte da Igreja oficial, não é difícil relembrar diversas situações ao longo da história em
que a igreja impôs silêncio, aquelas situações que fugiam do seu controle, a devoção a
um milagreiro e por mais que esteja em comunhão com os ideais cristãos, sempre vai
causar um desconforto na instituição, pelo fato dela não conseguir conter totalmente as
ações dos fiéis em torno dessas devoções, o incomodo se dá por não controlar também
as ações litúrgicas e o pensamento teológico do rebanho a cerca de toda tradição e
dogmas que instituem os santos, é claro que, em alguns muitos casos, a Igreja Católica
simpatiza com a devoção não-oficial e a partir disso, busca meios de adequá-la aos seus
ritos e tradições, outras vezes para não dispensar uma multidão de fiéis, fazem vistas
grossas a certas devoções, mesmo estas não sendo bons exemplos de piedade para o
povo católico. Prova disso que nos livros de tombo da paróquia que pesquisamos, não
encontramos nenhuma menção a capela de São José, tampouco sobre a movimentação
de centenas de fiéis em peregrinação a referida capela.
Embora a capela tenha sido resultado de um voto feito ao finado Zé Menino
como as narrativas dão conta, um fato importante marca a forma como o culto se
perpetuou, basta vermos que no lugar central da capela, está um altar dedicado a São
José, que abriga além de várias imagens do onomástico de Zé Menino, outras imagens
de santos oficiais católicos, e mais recentemente, também como resultado das ações da
cuidadora da capela que insiste na devoção a São José, toda parede frontal no interior da
capela, foi pintada com uma imagem da sagrada família, São José, Maria e o menino
Jesus, são imediatamente vistos por quem entra na capela.
Imagem 12:
81
Essa pintura foi feita no início de 2022, pelo artista jucurutuense José
Constantino da Silva, conhecido por Miguel Pintor, junto com a troca do teto de
madeira e telhas por uma laje e também pintura externa. O dinheiro para essas obras
vem da doação dos fiéis e ofertas coletadas no dia 19 de março.
É importante pensar que a presença da pintura da Sagrada família demarca
muito bem as intenções da cuidadora em relação à capela, que é, como percebemos
durante nossas conversas, delimitar a devoção ao senhor São José. Mesmo que na frente
da capela, esteja pintado o letreiro “Capela de São José” os moradores da localidade e
devotos das redondezas, conhecem aquele oratório como a cruz de Zé Menino, ou
capela da cruz do finado Zé Menino.
Durante a peregrinação a capela, dezenas de fiéis se misturam ali, podemos
perceber pessoas que estão lá por causa de São José, e pessoas que estão lá por causa de
Zé Menino, além de pessoas que não veem diferenças de um para outro. Durante uma
de nossas entrevistas, perguntando a uma devota que “puxava” um terço em intenção do
finado Zé Menino, indaguei sobre a sua presença ali, qual voto ela teria feito, e desde
quando conhecia e história e era devota, enquanto a senhora gentilmente nos respondia,
mesmo que com algumas inconsistências em relação às datas - quem trabalha com
História Oral sabe bem como funciona as narrativas em torno das datas e tempo dos
memorialistas - um senhor que participava do momento do terço, ao ouvir nossa
conversa falou o seguinte:
A gente não faz o voto a José que morreu aqui, devido ele ter morrido e já
merece, muito a ajuda de São José que é o santo do nome dele e São José é o
pai do menino Deus (inaudível) quando a gente faz o voto é pra vir pagar
82
aqui porque aqui é um lugar milagroso, mas quem vai dar a (proteção?) da
gente ser valido pelo pedido que ele tá fazendo é São José que é o pai do
menino Deus e através dele, se achar que a gente merece aquela graça, se a
gente alcançar, ai o local escolhido da gente pagar é aqui esse lugar é
milagroso (...) por causa que Jesus e São José olha o lado desse pobre
sofredor que morreu aqui, e a gente escolheu e pede a Jesus pra abençoar
cada vez mais, ai a gente acha que isso aqui é um lugar milagroso, abençoado
por Jesus (SILVA, 2019)
devocionais do grupo podemos perceber essas ações que fazem parecer seu uma forma
de resistir estrategicamente.
Observamos algumas características importantes que precisam ser mencionadas
nesse trabalho no que se refere à organização espacial do lugar sagrado e como também
podemos perceber embates entre o oficial e o não-oficial, e como se estabelece nas
entrelinhas esse jogo de forças. As narrativas contam que anteriormente, no centro da
capela ficava a cruz do finado Zé Menino, confeccionada ainda com o troco do pé de
pereiro, na atualidade observamos que a cruz do finado foi substituída por uma maior e
de outra madeira, além de lateralizada, deixando o espaço central para a devoção a São
José, mesmo assim, os ex-votos são amarrados e depositados sobre a cruz do finado,
numa insistente resistência. No dia 19 de março deste ano de 2022, depois da reforma os
ex-votos em madeira, estavam acondicionados em um balde de plástico, ao
perguntarmos pelos ex-votos as devotas de imediato começaram a tirar peça por peça de
dentro do recipiente e organiza-las ao pé da cruz, como se estivem esperando por esse
momento, de alguém que perguntasse por aquilo.
Outra situação que salta os olhos é um pequeno cruzeiro localizado na beira do
riacho onde segundo os relatos o corpo do milagreiro foi encontrado, ali dezenas de fiéis
se dirigem para acenderem velas e soltar fogos, chegamos à conclusão que nesse
específico momento em que grupos de devotos se reúnem em torno desse pequeno
cruzeiro para rezar, e soltar uma quantidade enorme de fogos, é alí que acontece a forma
de devoção mais genuína ao finado Zé Menino, sem nenhuma interferência ou relação
com o oficial.
Imagem 13:
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Imagem 14:
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A mula já descobria
amaldiçoada seja a mula
que tanto nos perseguia
Desceu dois anjinhos do céu
rezando uma Ave Maria
Ave Maria rezando
lá no céu mesmo subia
Zé Menino e nas durezas da vida do campo também persegue aqueles devotos que
buscam sua proteção.
Esta metáfora do caminhante de Certeau, permite pensar que a experiência é
construída ao longo do caminho, isso se aplica bem aos locais sagrados não-oficiais que
são ressignificados com o passar do tempo, as experiências dos devotos, fazem com que
a devoção não seja algo estático mas que tem um ritmo próprio e se reformula a cada
ex-voto depositado ou vela acesa.
Uma das questões que discutimos durante às reuniões sobre a pesquisa, se deu
pelo fato de toda nossa colônia de narradores, mencionar que em anos anteriores o dia
19 de março era marcado por uma imensidão de devotos que visitavam a cruz do finado
Zé Menino, inclusive não apenas devotos das comunidades circunvizinhas, mas também
de outras cidades, como é o caso das menções feita aos numerosos devotos da cidade de
Campo Grande, cidade natal de José Batista Serafim.
Os relatos fazem referência a um grande fluxo de devotos, que passavam todo o
dia 19 festejando seu milagreiro, a movimentação era tamanha que um pequeno
comércio se formava nesse dia, com barracas espalhadas pelos arredores da capela onde
eram comercializadas comidas e bebidas durante toda a celebração.
Embora seja variada a faixa etária dos fiéis e muitas pessoas jovens vão até a
capela no dia 19 e participam das trocas de conhecimento a respeito do local sagrado,
percebe-se que a devoção é mais forte em pessoas de mais idade. Ao mesmo tempo que
pensamos num possível declínio dessa devoção pela diminuição da presença de devotos,
alguns pontos podem dizer o contrário, como a constante manutenção da capela e a
presença de crianças que acompanham seus pais em todo o trajeto devocional.
Ao final dessa dissertação, temos um anexo com várias fotos da devoção a Zé
Menino, os devotos, ex-votos, temos um acervo fotográfico considerável e decidimos
expor algumas fotos que demonstram bem a prática devocional que apresentamos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES
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OLIVEIRA, José Onofre da Cruz. s.d. Caderno de poemas, Jucurutu/RN.
FONTES ORAIS:
ARAÚJO, Emanuel Rufino de. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de Moura
Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
FIGUEIREDO, Francisca Maria De. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de
Moura Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
COSTA, Mauro Batista da. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de Moura Simão.
Jucurutu/RN, 19/03/2019.
FONSECA, Maria José de Melo da Silva. [entrevista concedida a] Wesley Henrique de
Moura Simão. Jucurutu/RN, 19/03/2019.
93
REFERÊNCIAS
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ANEXOS: