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Christoph Schneider-Harpprecht

Roberto E. Zwetsch (Orgs.)

T e o l o g ia P r á t ic a no contexto

da A m é r ic a L a t in a

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3a edição

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2011
Edificação de comunidade

Por isso o pietismo (séculos 17/18) representou outra vez um a reação a uma
forma de ser igreja fria, descompromissada, atrelada ao Estado. Em contrapartida,
destacavam-se a conversão como opção decidida e consciente da fé e a santificação
para manter viva essa opção. E para que isso fosse possível, houve o empenho em
Capítulo 8 criar pequenas comunidades. Nessas aconteceriam a santificação dos convertidos,
bem como o desenvolvimento da comunhão entre os mesmos. Portanto o pietismo é
um exemplo típico de preocupação com a edificação de comunidade.
Edificação de comunidade
Não foi diferente o caso do metodismo, em última análise, um a ramificação
do pietismo. Pois, na sua origem, foi um movimento de avivamento no seio da igreja
Martin Volkmann estatal inglesa a partir da experiência pessoal de conversão de John Wesley (1703-
1791).
Olhando para o nosso contexto mais imediato de América Latina, o grande
8.1 Introdução
desenvolvimento das comunidades eclesiais de base (CEBs) não é outra coisa do que
um movimento renovador da igreja em que se volta a atenção para a comunidade, a
O assunto “edificação de comunidade” não é novo. Ele acompanha a comu­ igreja na base.
nidade cristã desde as suas origens. Ao longo da história da igreja, repetidamente a
Permanecendo ainda em nosso contexto mais imediato, também todo o desen­
preocupação em tomo da comunidade, de sua vida em comunhão, de seu crescimen­
volvimento das igrejas pentecostais não deixa de ser reflexo de uma insatisfação com
to e desenvolvimento esteve no centro das atenções. Evidentemente, essa atenção
as igrejas tradicionais. Sem entrar no mérito da questão em tomo do movimento pen-
podia receber ênfases distintas e, em consequência, ter caráter diverso. No entanto,
tecostal (neopentecostalismo etc.)1, é preciso reconhecer que a grande afluência que
nunca a comunidade e a estruturação de sua vida intem a deixaram de estar no foco
essas igrejas estão tendo revela carências nas comunidades das igrejas tradicionais.
de atenção da igreja.
Por isso o assunto “edificação de comunidade” volta constantemente à tona
Entretanto, o que se pode observar é que, em certos momentos da história, o
quando a proposta das igrejas constituídas parece emperrar, se fossilizar. Ainda as­
assunto ganha uma importância e atenção maiores. Em momentos de crise, quando
sim, não só nos momentos de crise, na ausência de propostas é que a constmção da
a “proposta de edificação da igreja oficial” não agrada ou não se coaduna com as
comunidade de fé deve merecer atenção. Edificação de comunidade não é assunto
bases da própria igreja, nessa hora se levantam as vozes contrárias e se desenvolvem
apenas para quando a crise se instalou. Pelo contrário, faz parte da essência da igreja
novas propostas.
se preocupar com a questão. A tarefa está dada no próprio testemunho bíblico.
O que foi a Reforma do séc. 16? E claro que não podemos reduzir esse movi­
Assim, o tema “edificação de comunidade” faz parte do ser-igreja. Por isso ele
mento a uma proposta de renovação da vida comunitária. A origem do problema é
voltou ao centro das atenções nos últimos anos, principalmente a partir dos meios
mais profunda. Está na compreensão do próprio evangelho. Mas essa redescoberta
evangelicais, em especial nos Estados Unidos e na Europa, mas com reflexos tam­
do evangelho levou também a um a nova compreensão de igreja e à renovação da
bém por aqui. Mais ainda, não se acentua apenas a importância das igrejas e comuni­
vida dessa igreja: na comunidade local está a igreja; ela é igreja. E a grande preo­
dades se preocuparem com a questão de sua edificação, ou seja, um assunto no âmbi­
cupação dos reformadores foi justam ente criar condições para que essa comunidade
to da prática comunitária. Um passo mais adiante, o que se reivindica é a inclusão da
desenvolvesse a comunhão entre os seus membros: culto com pregação da Palavra
temática no estudo acadêmico.2 Para superar a exagerada dicotomia entre formação
na língua do povo, possibilidade de leitura da Escritura através da tradução da Bíblia,
estritamente acadêmica (ênfase primordial das universidades europeias) e prepara-
formação e aprofundamento nos elementos essenciais da fé (os Catecismos de Lute-
ro). Tudo isso levou a um grande desenvolvimento de comunidades vivas, atuantes
e dinâmicas. 1 Cf. BOBSIN, Oneide. Teologia da prosperidade ou estratégia de sobrevivência. Estudos Teológicos, v. 35, n. 1, p.
21-38, 1995. D ’ARAÙJO JR., Caio F. Igreja: crescimento integral. Niterói: Vinde, 1995.
Todo movimento renovador, porém, ao se institucionalizar, corre o risco de 2 Cf. SEITZ, M. Missionarische Existenz der Gemeinde in der Volkskirche. In: SEITZ, M. Erneuerung der Ge­
emperrar e cair novamente em situação semelhante à que fora alvo de sua crítica. E meinde: Gemeindeaufbau und Spiritualität. 2. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1991. p. 45s. Veja tam­
o que ocorreu com a ortodoxia luterana. bém HERBST, M. Missionarischer Gemeindeaufbau in der Volkskirche. 2. ed. Stuttgart: Calwer, 1993. p. 71s;
MÖLLER, C. Lehre vom Gemeindeaufbau. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1987. v. 1: Konzepte, Program­
me, Wege, p. 9 Iss.

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Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

ção para o ministério pastoral (implícita na formação acadêmica, mas preocupação “Edificação”, no português, é um termo em uso especialmente na área da cons­
explícita após a conclusão daquela), M anfred Seitz pleiteia que a reflexão em tomo trução civil. O mesmo vale para a língua grega. Também ali oikodomé pode significar
do assunto seja valorizada também na formação acadêmica. Ele mesmo fez desse o edifício ou a edificação, e o verbo oikodomein igualmente designa o ato de construir.
tema uma atividade acadêmica regular na Universidade de Erlangen, na Alemanha. Mas, ao lado desse sentido literal, em ambas as línguas os termos têm também um
sentido figurado, referindo-se ao desenvolvimento de uma pessoa ou de um grupo.
Sem dúvida nenhuma, aqui na América Latina nossos seminários e faculdades
de Teologia não se caracterizam tão fortemente por tal dicotomia. Desde o princípio, No entanto, a distinção entre esses dois empregos no Novo Testamento não é
a formação está mais acentuadamente vinculada com a realidade eclesial (são insti­ tão rígida assim. Às vezes, o limite entre o sentido literal e o figurado não é clara­
tuições ligadas a determinadas confissões) e tem em vista a preparação de ministros mente delineável. Fala-se de uma construção em sentido literal, mas, pelo contexto,
e ministras para o trabalho comunitário. Com isso a preocupação com a edificação o conjunto ganha claramente um sentido figurado: a imagem concreta da construção
da comunidade já está bem mais presente na perspectiva da formação acadêmica em passa a ser uma metáfora para a vida de pessoas ou da comunidade (cf. Mt 7.24-27).
geral, e na Teologia Prática, mais especificamente.3
Antes de enfocarmos mais especificamente os termos relativos à edificação, con­
Assim, há um a relação dialética entre a Teologia Prática e a práxis eclesial em vém atentarmos para o fato de que os termos oikodomé/oikodomein têm embutidos em si
tomo da edificação da comunidade. De um lado, a edificação da comunidade é, pri­ a palavra oikos (casa)4. Na linguagem bíblica, o termo não designa apenas a construção,
mordialmente, um assunto da práxis eclesial; ela está relacionada com a concretização mas o próprio grupo de pessoas que mora nessa construção (At 11.14; 16.15; ICo 1.16)
e a vivência da fé no mundo. É mais prática do que reflexão teórica. Por outro lado, ou todo um povo (Mt 10.6; 15.24). Assim também oikos thou theou, referindo-se inicial­
nenhuma prática pode prescindir de uma sólida fúndamentação teórica. Assim como mente ao santuário (Mt 23.38; Lc 11.51), passa a ser a designação para a comunidade
toda teoria só levará a uma boa prática quando tiver o seu ponto de partida numa práti­ (Hb 3.1-6; E f 2.19-22; lTm 3.15; IPe 4.17). Nessa casa espiritual, cada crente é incorpo­
ca sobre a qual se teoriza com vistas a uma nova prática, da mesma forma toda prática rado como pedra viva (IPe 2.5; E f 2.22). Desta maneira, as primeiras comunidades nada
só trará frutos e será condizente com seus fundamentos se estiver fundamentada numa mais eram do que “comunidades familiares”, e as moradias dessas pessoas, as “casas
sólida teoria. Por isso toda proposta de edificação de comunidade deve ter uma solidez comunitárias” (At 11.14; 16.15,34; 18.8; ICo 1.16; 16.15; Fm 2), onde se celebravam
teológica comprovada e, por sua vez, toda reflexão teológica sólida não pode prescin­ conjuntamente palavra e sacramento (At 2.46; 5.42; 16.31; 20.20).
dir de incluir a edificação da comunidade no âmbito de sua reflexão.
Olhando especificamente para o emprego dos termos oikodomé e oikodomein
Portanto, para que na prática eclesial de fato aconteça a edificação da comu­ no Novo Testamento, podemos constatar o seguinte:
nidade, importa que na educação teológica haja a disciplina “Edificação de Comu­
• Nos evangelhos, tanto o verbo quanto o substantivo aparecem geralmente
nidade” como parte integrante da Teologia Prática. Nela se reflete sistematicamente
no sentido literal (Mt 7.24, 26; 16.18; 26.61; Lc 7.5; 14.28, 30; Mc 13.1).
sobre a prática eclesial com vistas à organização e à estruturação das diversas ati­
Mas justamente as passagens de Mateus, onde se fala claramente de uma
vidades comunitárias. Importa que tal reflexão sistemática ocorra no decorrer do
construção, mostram que aí o interesse é o sentido figurado: a construção é
estudo acadêmico e, principalmente, durante a formação contínua de ministros e
apenas uma metáfora para algo maior, diferente, relativo à vida das pessoas.
ministras e demais pessoas engajadas no trabalho comunitário.
• Esse sentido figurado prevalece em Atos (9.31; 20.32) e, especialmente, em
Paulo. É provável que tenha sido o próprio apóstolo que cunhou essa expres­
8.2 Fundamentação bíblica são para o seu uso nesse sentido. Paulo a emprega de diversas maneiras: a)
Para caracterizar a sua atuação apostólica. Ele tem autoridade para edificar a
comunidade (2Co 10.8; 13.10). Em ICo 3.10ss, Paulo usa uma parábola em
Para compreendermos a razão e os objetivos desta área da reflexão teológica,
que a comunidade é expressamente caracterizada como theou oikodomé, onde
vejamos a fundamentação bíblica para tal, enfocando especificamente o tema “edifi­
um lançou o fundamento, outro continua a construção; b) Em outro conjun­
cação” no testemunho bíblico.
to de passagens, a expressão é usada para caracterizar a presença atuante do

3 Cf. KIRST, N. A reforma do estudo - marca registrada da última década. In: HOCH, Lothar C. (Ed.). Formação
teológica em terra brasileira. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 52-60; KIRST, N. Lances de uma jornada - traços 4 Cf. quanto ao que se segue, MICHEL, O. Verbete “Oikos”. In: KITTEL, G. (Ed.). Theologisches Wörterbuch zum
de um perfil. Estudos Teológicos, v. 36, número especial, p. 19-25, 1996; VOLKMANN, M. A realidade das Neuen Testament. Stuttgart: Kohlhammer, 1966. v. 5, p. 139-150; BRATTGARD, H. Im Haushalt Gottes: eine
comunidades e a teologia praticada na Faculdade de Teologia. Estudos Teológicos, v. 36, número especial, p. Studie über Grundgedanken und Praxis des Stewardship. Berlin; Hamburg: Lutherisches Verlagshaus, 1964. p.
32-38, 1996. 37-72.

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Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

Espírito de Deus na comunidade, sendo, por assim dizer, um termo técnico Por isso ele é o único proprietário da comunidade (IC o 3.9); a comunidade
para descrever o processo de crescimento e desenvolvimento da comunidade é a sua morada (E f 2.22). Por ser propriedade de Deus, a comunidade é santa
como comunidade salvífica: “Consolai-vos, pois, uns aos outros e edificai- e intocável (IC o 3.16s).
vos reciprocamente” (lT s 5.11; veja também Rm 14.19; 15.2; ICo 14.26). Aí • Cristo tem função fundamental na edificação da comunidade: é o mestre da
transparece bem claramente que a edificação não se dá por alguém especial, obra (Mt 16.18); ele é o fundamento (IC o 3.11), respectivamente a pedra
mas cada qual participa deste processo: há uma relação do indivíduo com a angular (E f 2.20). Ele também é o novo templo onde Deus pode ser encon­
comunidade e dos diversos membros entre si. O termo não tem caráter moral trado (Mc 14.58).
ou sentimental, mas refere-se ao crescimento espiritual, isto é, sob o domínio
do Espírito de Deus. Além disso, percebe-se que edificação é uma questão • Deus habita em sua comunidade através do Espírito Santo (IC o 3.16s; E f
pessoal/individual e, necessariamente, também comunitária; c) Relevância 2.21s).
especial tem a expressão em dois contextos da Primeira Carta aos Coríntios. • Edificação de comunidade significa que pessoas sejam convidadas a fazer
No capítulo 14 (w . 3, 4, 5, 12, 17), Paulo contrapõe o profetizar e o falar em parte desse povo de Deus: que sejam incluídas como pedras nessa constru­
línguas. Enquanto este reverte apenas em benefício próprio (v. 4a), o profeta ção (E f 2.19s; IPe 2.4-8). Nesse sentido é um a edificação extensiva (IC o
edifica, exorta e consola os outros (v. 4b). Portanto, assim como a atuação 14.23-25). Mas ao mesmo tempo é um a edificação intensiva que visa ao
apostólica de Paulo se caracteriza por edificar a comunidade, da mesma forma crescimento das pessoas individual e comunitariamente (E f 4.13-15; ICo
o profeta, o mensageiro autorizado de Deus, contribui nessa tarefa. O outro 14.3). Por isso crescimento intensivo e extensivo não se contradizem nem
contexto são os capítulos 8-10 da mesma carta, onde Paulo polemiza com o se excluem mutuamente.
mesmo grupo de entusiastas em tomo do tema da liberdade. Em contraposição
ao “tudo é lícito” (10.23) dos entusiastas, Paulo destaca que nem tudo convém • Edificação de comunidade parte do pressuposto de que a comunidade como
nem edifica. Enquanto para os coríntios o saber é sinal de liberdade e de edifi­ um todo e cada pessoa individualmente são o santuário de Deus, a morada do
cação, Paulo entende a edificação a partir de Cristo: só a partir da agápe se dá Espírito Santo (IC o 3.16; 2Co 6.16). Por isso elas são santas e intocáveis (IC o
verdadeira edificação; só o amor constrói (8.1). 3.17). Ao mesmo tempo vale que a comunidade e cada pessoa individual­
mente estão a caminho de se tomar santuário de Deus: elas continuam sendo
• O tema “edificação” ainda aparece com destaque em duas outras cartas, canteiro de obras onde a edificação continua sendo realizada (IC o 3.10-12).
ambas sob forte influência da teologia paulina: Efésios e Primeira Pedro.
Em E f 2, refletindo sobre a relação entre judeus e gentios (vv. 11 ss), o autor • Edificação de comunidade acontece por intermédio de pessoas. O proprie­
destaca que os gentílico-cristãos foram edificados para dentro da casa de tário da obra se vale de cooperadores para a constmção da mesma. Entre
Deus (“santuário dedicado ao Senhor” - v. 21; “habitação de Deus no Espí­ esses, apóstolos e profetas representam as testemunhas primárias. São, por
rito” - v. 22), que tem apóstolos e profetas como fundamento e Jesus Cristo isso, o fimdamento da comunidade, sendo Cristo a pedra angular (E f 2.20).
como a pedra angular. A mesma ideia aparece em IPe 2.5 (“como pedras vi­ Além dessas testemunhas primárias, Deus se vale de um a multiplicidade de
vas, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo”). Já em E f outros colaboradores e colaboradoras para continuar a sua obra (E f 4.11;
4.12, 16 volta a imagem da edificação, mas agora se referindo à edificação ICo 12.28; Rm 16). Logo, edificação de comunidade é sempre um traba­
do corpo de Cristo. lho conjunto de diferentes ministérios, preparando e subsidiando os demais
membros para o seu serviço (E f 4.12).

Sem apresentarmos aqui uma análise mais detalhada dessas diversas passa­ • Assim, edificação de comunidade se dá através do testemunho e do serviço
gens em que o assunto “edificação” é tematizado em relação à comunidade ou à pes­ de cada crente. Deus se vale de cada membro de seu povo para construir a
soa individualmente5 e conscientes de que há um a variedade de enfoques em tomo sua igreja. Para tanto, cada qual é agraciado com um dom. Ninguém tem
do tema, podemos, mesmo assim, tirar algumas conclusões sobre o assunto. a totalidade dos dons e ninguém está sem dom algum (IC o 12.4ss; E f 4.7,
11). Esses dons servem para o testemunho do senhorio de Jesus Cristo (IC o
• Edificação de comunidade é sempre obra exclusiva de Deus. Ele mesmo 12.3), para o serviço em amor (IC o 13) e para a edificação da comunidade
possibilita o surgimento e o desenvolvimento da comunidade (IC o 3.5-9). (IC o 14.3).
• A edificação da comunidade através dos dons de cada qual se dá no culto
comunitário. Esse é o lugar privilegiado para a edificação, pois é o momento
5 Cf. HERBST, 1993, p. 128ss.

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Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

do anúncio, do testemunho, do louvor, da oração, da Eucaristia (At 2.42-47; desenvolvida nas igrejas luteranas dos Estados Unidos e difundida pelo mundo afora
ICo 14). Mas a edificação da comunidade através dos dons de cada qual através da Federação Luterana M undial (FLM), principalmente a partir de sua 2a
também se dá no culto do dia a dia (Rm 12.1s). É nesse culto diário que os Assembleia Geral, realizada em Hannover, Alemanha, em 1952. Mas as influências
crentes se ajudam mutuamente (lT s 5.11; G1 6.10), mantêm a unidade bus­ dessa proposta não ficaram restritas ao ambiente luterano. Também em outras con­
cando aperfeiçoá-la sempre mais (E f 4.16) e se respeitam mutuamente em fissões essa ideia lançou suas raízes.7
liberdade e amor (IC o 8-10).
Quais as características da mordomia8? Num a caracterização um tanto sim­
• Ao mesmo tempo, toda edificação de comunidade vai ao encontro do fim dos plista e até deturpada desse movimento, dizia-se que se tratava de motivar as pessoas
tempos. Todo trabalho de ministros e ministras, bem como toda aplicação para a administração de seus dons, do tempo e do dinheiro como mordomos respon­
dos dons de cada qual passam pelo crivo do Senhor da obra (Mt 25.14-30). sáveis. No entanto, a partir da fundamentação bíblica mais ampla, pode-se perce­
Será também o fim da própria edificação, quando se evidenciará o resultado ber que o movimento da mordomia não está interessado apenas nos dons, tempo e
do serviço de cada qual (IC o 3.13-15). dinheiro das pessoas, mas representa uma dimensão total de vida. Também não se
trata de uma simples ativação da vida comunitária com novas técnicas e muito movi­
mento. Trata-se, isto sim, de compreender mordomia como postura de vida, ou seja,
8.3 Concepções de edificação de comunidade como compreensão de toda a vida pessoal e comunitária a partir de um fundamento
sólido colocado pelo próprio Deus através daquele que é o exemplo de mordomo:
Jesus Cristo. Por isso mordomia, antes de ser um programa, é uma ideia; antes de
Em sentido geral, poder-se-ia dizer que o debate em tom o deste assunto re­
desenvolver formas e métodos de trabalho, é uma compreensão de vida.
acendeu-se, a partir da década de 1970, dentro da controvérsia entre dois campos:
de um lado, o movimento ecumênico, reunido em tom o do Conselho M undial de Essa compreensão de vida está baseada no agir de Deus que tom a a pessoa
Igrejas (CMI), ou da ala progressista da Igreja Católica Romana ligada à teologia participante da salvação, integrando-a como pedra viva (IP e 2.5) na casa de Deus, a
da libertação; e, de outro, o movimento evangelical, em tom o do Pacto de Lausanne comunidade (lT m 3.15). Estar integrado nessa constmção significa participar como
(1974). Em cada um dos campos houve a preocupação muito séria e autêntica de ser mordomo que, em resposta à confiança nele depositada, responde com sua fidelidade
fiel ao mandato do Senhor e de dar continuidade à obra de Cristo, congregando o e criatividade (Lc 16.1-9; 19.11-28). Mas ser pedra na constmção é ser simultanea­
povo de Deus. Mas como entender quem é esse povo de Deus e como congregá-lo? mente parte do povo de Deus (IP e 2.9). Ambos os aspectos - o de estar integrado na
Aí é que os caminhos se dividem. casa de Deus e o de fazer parte do povo de Deus - se complementam mutuamente
nessa ideia de mordomia. Enquanto o primeiro destaca mais a ideia de reunião da
Por isso importa ter clareza sobre a concepção de edificação que irá nor­
comunidade, o segundo enfatiza o envio. Ambos são fundamentais para perceber a
tear nossa atuação. Por “concepção de edificação de com unidade” entendemos a
ideia de mordomia em sua amplitude. Porque a restrição ao aspecto da casa de Deus
compreensão clara sobre o que é comunidade e qual a sua tarefa e, a partir daí, a
pode levar à falsa compreensão de que se é mordomo apenas no âmbito da comuni­
elaboração de um plano de ação com vistas à organização e à estruturação da vida
dade de fé. Mas justamente a ideia de povo de Deus dá a dimensão global da m ordo­
comunitária.
mia, ou seja, todo o ambiente de vida é lugar de vivência como mordomo de Deus.
Ao longo da caracterização desse modelo já se apontou para pontos críticos
8.3.1 Stewardship - mordomia do mesmo. Quando se enfatiza em demasia a ideia de mordomia na casa de Deus,
corre-se o risco de limitá-la ao ambiente eclesiástico. Busca-se incrementar uma
série de atividades e de grupos em que a pessoa possa se envolver. E aí o passo é bas­
Esse modelo de edificação de comunidade6 é de um a época anterior à con­
tante curto para se entender mordomia apenas como o desenvolvimento de métodos
trovérsia entre ecumênicos/progressistas e evangelicais. Trata-se de uma proposta
e de técnicas que ativem a vida comunitária. Por outro lado, abrindo espaços para
as pessoas colocarem os seus dons, seu tempo e seu dinheiro a serviço, destacando
especialmente esse trinômio, corre-se o risco de entender mordomia apenas como
6 Cf. BRATTGARD, 1964; COCKEL, H. E. A mordomia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960; KAN­
TONEN, T. A. A teologia da mordomia cristã. São Paulo: Luterana, 1965; LINDHOLM, P. R. Mordomia cristã e
finanças na Igreja. São Paulo: Casa Publicadora Presbiteriana, 1963. Reflexões mais recentes sobre o tema veja
em HALL, D. J. The Steward: a Biblical Symbol Come o f Age. New York: Friendship, 1991; HAUSHALTER­
SCHAFT. Unsere Verantwortung vor G o tt: Dokumentation über die Internationale Tagung über Haushalterschaft 7 Cf. BRATTGARD, 1964, p. 29s.
in Bulawayo/Simbabwe. LWB Dokumentation, Genebra, n. 34, abr. 1994. (idem em inglês). 8 Cf. BRATTGARD, 1964, p. 247-254.

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uma questão que gira em tom o de dinheiro, tempo e talentos. Além disso, permane­ Em concordância com isso, também a história é vista sob um novo ângulo.
cendo apenas nesta ênfase no envolvimento e no agir, o passo para um legalismo é História salvífica e história da humanidade não são duas histórias distintas. A história
igualmente bastante curto. salvífica não está desvinculada da história da humanidade.
Por isso, antes de pensar no programa, nas técnicas e nos métodos, importa Qual a função da igreja nesse interesse de Deus no mundo? Já que o interesse
semear a semente da ideia de mordomia; importa que as pessoas descubram que essa primordial de Deus não é a igreja, mas o mundo, a sequência não é: Deus - igreja -
ideia representa uma dimensão total de vida em que a pessoa entenda toda a sua vida mundo, e sim: Deus - mundo - igreja. Assim, a igreja é apenas instrumento para que
a partir e nas mãos de Deus e encontre espaços, na comunidade de fé e na sociedade o shalom de Deus se tom e realidade neste mundo.
em geral, para pôr-se, em todas as dimensões, a serviço de Deus. Justamente aí reside
Com isso está colocada a questão básica sobre a autocompreensão da igreja:
o lado forte desse modelo.
a essência da igreja é a sua própria tarefa. Ou ela é missionária ou ela deixa de ser
igreja. Porque o próprio Deus é missionário. Por isso o lema para a igreja não é: fazer
crescer a igreja aumentando o número de seus membros, mas é: serviço ao mundo
8.3.2 Igreja para o mundo em favor do shalom de Deus. Por isso uma comunidade não deve visar, em primeiro
lugar, a si mesma, mas deve estar voltada para as necessidades do mundo. E nessa
No movimento ecumênico, em conexão com a ênfase na dimensão de povo de tarefa ela pode e deve colaborar com todas as demais instâncias que têm em vista um
Deus, houve uma preocupação muito grande em tom o da estrutura de uma comuni­ mundo mais sadio, mais fraterno, mais humano.
dade missionária. Como deve ser a comunidade que leva a sério a sua incumbência
É evidente que nessa compreensão não cabe muito bem a expressão “edi­
de ser missionária? Como deve ser a estrutura da comunidade que não pensa em
ficação de com unidade” . É evidente tam bém que essa concepção está imbuída de
primeiro lugar em si mesma, mas no contexto em que está inserida?9
um a profunda seriedade e de amor para com o m undo e a humanidade. Ela eviden­
Ponto de partida foi a reflexão em tomo do reino de Deus. Nesta reflexão, bus- cia a preocupação da comunidade cristã que não quer perm anecer voltada para si
ca-se superar a conceituação por demais limitada de reino de Deus como abrangendo mesma, mas que se sabe com prom etida com o mundo. Por isso é um a concepção
apenas os convertidos ou aqueles que se declaram pertencentes à igreja. Pelo contrá­ profundam ente m issionária, ou seja, com prom etida com a missão de Deus neste
rio, o reino de Deus já é um a realidade presente neste mundo, a partir da Páscoa. É mundo.
bem verdade, não em sua realização plena. N a Páscoa, Deus disse sim a este mundo, O problem a está no perigo de um a avaliação por demais positiva do mundo
que se afastara dele, mas que não caíra fora de seu amor. Logo, não é a igreja o alvo e da hum anidade. Falando apenas em pecado estrutural, corre-se o risco de m e­
do plano de Deus, mas o shalom para o mundo; o que interessa não é a expansão da
nosprezar o pecado individual. Sem negar que o Reino já é realidade e que dele
igreja, mas a implantação do shalom de Deus neste mundo.
faz parte toda a hum anidade, será que não é tarefa da igreja apontar tam bém para
Consequentemente, faz-se também uma releitura do mundo e da história. O a necessidade de m udança no ser hum ano no sentido de dizer um sim ao sim de
mundo não é visto apenas negativamente, como o inimigo a ser vencido. É o mundo Deus? O shalom de Deus não significa também a aceitação dessa dádiva na fé?
criado por Deus (Gn 1-2), amado por Deus ao enviar o seu Filho (Jo 3.16), recon­ Com isso a igreja como a comunidade de fé passa a ter um valor em si também,
ciliado pela morte e ressurreição de Cristo (E f 1,9s). No entanto, enquanto o reino ou seja, ali se antecipa esse shalom sem, no entanto, se esquecer de que é apenas
de Deus não se tom a realidade consumada, o mundo está marcado pelo pecado, não a antecipação de algo que vale para toda a hum anidade e sem pensar que a igreja
apenas das pessoas individualmente, mas como pecado estrutural e social. Por isso tenha o m onopólio do Reino.
essa visão positiva em relação ao mundo não se deve a uma qualidade inerente ao
mesmo, mas única e exclusivamente à ação libertadora de Deus. Em combinação
com essa visão positiva do mundo está um a avaliação positiva da humanidade, ou
seja, todos têm participação na salvação. Salvas não são apenas as pessoas filiadas
à igreja. Todas já foram reconciliadas. A diferença é que algumas pessoas já têm
consciência disso, outras não.

9 Cf. CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Uma Igreja para o mundo: estudo das estruturas missionárias da
congregação. Publicação Eclesia, [s. d.], p. 72-198.

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8.3.3 Igreja a partir dos pobres b) As CEBs nascem da palavra de Deus. O que faz esse grupo ser um a comu­
nidade é a palavra de Deus. Mas essa Palavra não é trazida simplesmente por alguém
de fora e vista como verdade distante e abstrata. Ela é confrontada com a vida, com
Esse modelo está em continuidade com o anteriormente visto. É a forma como a situação das pessoas. E são elas mesmas que tomam a palavra, que a interpretam e
aqui, na América Latina, em conexão com a teologia da libertação, se desenvolveu
relacionam com a vida.
um jeito próprio de ser igreja: as comunidades eclesiais de base (CEBs).10
c) As CEBs são uma maneira nova de ser igreja. Quando a comunidade de
A semelhança do que havíamos escrito acima, também aqui é fundamental a
base se reúne sob a Palavra, aí acontece igreja, porque essa Palavra gera comunhão e
articulação correta entre Reino, mundo e igreja. O reino de Deus é o postulado e a
fraternidade. Nas CEBs se repete o que marcava as primeiras comunidades cristãs: a
oferta de Deus desde o início da criação; por isso é o centro do anúncio, em palavra
koinonia e a diakonia, além da martyria. E onde há essa forma comunitária de viver
e ação, de Jesus. Nele, esse Reino se realiza antecipadamente e passa a ser, assim, a
a fé, ali surgem também novos ministérios: todos os serviços realizados na e a partir
esperança que move e direciona o povo de Deus. Portanto o Reino é a grandeza que
da comunidade são entendidos como dons do Espírito Santo.
engloba a igreja e o mundo. “O mundo é o lugar da realização histórica do Reino [...].
A Igreja é aquela parte do mundo que, na força do Espírito, acolheu o Reino de forma d) As CEBs são sinal e instrumento de libertação. O fato de se fazer a ligação
explícita na pessoa de Jesus Cristo [...]. A Igreja não é o Reino, mas seu sinal [...] e entre fé e vida faz com que essas comunidades sejam abertas para a realidade social,
instrumento [...] de implementação no mundo.” 11 Logo, a igreja não tem finalidade façam uma análise crítica da mesma e busquem uma nova sociedade.
em si mesma, mas é sinal e instrumento do Reino em função e a serviço do mundo. e) Nas CEBs acontece celebração de fé e de vida. Fé e vida formam uma uni­
Um segundo aspecto fundamental para essa maneira de viver comunidade é a dade. Ao lado da preocupação de perceber a presença de Deus na realidade da vida,
compreensão de igreja como povo de Deus. Não mais a hierarquia simboliza a igreja, há também a percepção da presença de Deus na celebração. Por isso a dimensão ce-
mas o conjunto dos fiéis. Os leigos não são mais meros receptores e consumidores lebrativa está fortemente desenvolvida, que se evidencia, entre outras coisas, numa
dos bens sagrados; eles mesmos participam da missão da igreja. grande criatividade litúrgica.
E ainda um terceiro aspecto, combinando os dois anteriores, determinou esse Num a avaliação crítica dessa maneira de ser igreja, deve-se destacar inicial­
novo jeito de ser igreja: a percepção do “anti-Reino” neste mundo, que gera a grande mente a sua proximidade com o modelo anterior, sobretudo na dimensão social da fé.
massa de pobres e marginalizados. Mas justam ente entre essa massa, que não suporta Nisso reside igualmente o lado forte dessa proposta. A diferença fundamental entre
mais ser objeto de manobra nas mãos das elites (econômicas, políticas e, inclusive, os dois modelos está na forma de se ver a relação igreja-mundo. Enquanto na propos­
eclesiásticas), surgem grupos de resistência que tomam a história nas próprias mãos. ta anterior ainda está bastante forte a ideia da comunidade que está aí para os outros,
A partir do encontro com a Palavra e da percepção da identificação de Deus com o as CEBs são a igreja a partir e dos pobres. O perigo dessa proposta é considerar por
pobre, nasce a comunidade: a massa é feita povo, povo de Deus. demais a graça, sem levar em consideração a recusa à graça e o pecado pessoal, além
de um a visão um tanto ingênua do processo social.
Quais as características fundamentais das CEBs?12
a) Nas CEBs há o encontro do povo oprimido e crente. Porque as necessidades
fundamentais se apresentam muito mais prementes entre os pobres, o espírito comu­ 8.3.4 Comunidade missionária: convite à conversão
nitário é ainda mais presente entre eles. Por isso se reúnem para ouvir a palavra de
Deus, tratar dos problemas que os afligem e procurar uma solução para os mesmos
No outro extremo se encontram diversas propostas que partem do seguinte
sob a orientação dessa Palavra. Assim, a comunidade se sente igreja toda vez que se
princípio: tarefa primordial da igreja é chamar pessoas à decisão pessoal por Cristo.
reúne.
Igreja existe apenas quando as pessoas assumem essa posição clara de terem passa­
do por um processo de transformação e de desligamento do mundo pecador. Logo,
é tarefa da igreja fazer missão com vistas a integrar as pessoas à comunidade. Meta
primordial da missão não é o mundo, mas a igreja.
10 A literatura sobre esse assunto é muito ampla. Cito apenas exemplarmente BOFF, L. E a Igreja se fe z povo'.
eclesiogênese: a igreja que nasce da fé do povo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986; BOFF, L. Igreja: carisma e Fica evidente que aqui a missão tem bem outro caráter do que na concepção
poder: ensaios de eclesiologia militante. São Paulo: Ática, 1994. cap. 8-10. Além disso, na REB, os fascículos
183, 195,201 e 208. anterior. Aqui a missão é entendida como evangelização, ou seja, levar pessoas a se
11 BOFF, 1994, p. 20. converterem e assumirem um compromisso pessoal com Cristo.
12 Cf. BOFF, 1994, p. 209ss.

158 159
Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

Essa concepção tem sua origem no movimento evangelical. É nesse âmbito Num a avaliação crítica dessa concepção, também aqui deve ser destacada a
que o termo “edificação de comunidade” voltou a ser usado com grande intensidade, seriedade do envolvimento com a causa. Além disso, deve-se apontar para a ênfase
principalmente na Alemanha, onde, inclusive, há toda uma discussão em tomo de no comprometimento consciente com o evangelho e no cultivo de um a profunda es­
uma “teologia da edificação de comunidade” 13. Os impulsos para tal, no entanto, vie­ piritualidade. Mas é também a esse aspecto que se ligam as dificuldades: há o perigo
ram dos Estados Unidos da América, do movimento Church Growth (“Crescimento do individualismo. A fé é um a questão puramente pessoal, que diz respeito apenas a
da igreja”). mim e a meu Deus. Junto com o individualismo, há o perigo de se desvincular a fé
das questões de ordem social, política e econômica. Também os grupos e círculos
Apesar de não haver uniformidade nas diferentes tendências dentro do mo­
correm o sério risco de fazer essa separação entre vida de fé e vida no dia a dia. Neste
vimento evangelical também quanto à concepção de edificação de comunidade14, é
possível arrolar certos elementos essenciais que aparecem constantemente: sentido, no entanto, não se pode deixar de registrar que houve um grande avanço em
setores evangelicais na América Latina, especialmente a partir da teologia da missão
a) Edificação de comunidade é, antes de tudo, um programa de evangelização, integral.15
não apenas em relação a quem não é cristão, mas também em relação aos chamados
“cristãos nominais”. Por isso todo trabalho comunitário deve ter essencialmente ca­
ráter evangelístico. 8.3.5 Renovação carismática
b) Objetivo desse trabalho evangelístico é provocar uma decisão pessoal e
consciente a favor da fé. Esse aspecto não é novo. Essa ênfase é uma característica Essa concepção deve ser vista em conexão com o movimento pentecostal.
clássica de todo movimento de evangelização e reavivamento. O novo neste momen­ Esse é essencialmente um movimento carismático. N o entanto, a renovação caris­
to é a sua vinculação íntima com o trabalho de edificação de comunidade, enquanto mática atualmente não se restringe às igrejas pentecostais; é um a realidade em prati­
antes geralmente acontecia ao lado ou até contra o trabalho comunitário normal. camente todas as confissões, inclusive nas igrejas tradicionais.
A evangelização necessariamente deve vir acompanhada da edificação, para que o
amor inicial não esfrie. As raízes desse movimento encontram-se na ânsia por uma profunda e au­
têntica vida espiritual, em lugar de um a fé estéril; na ânsia pela experiência real e
c) Um terceiro aspecto é a criação e o acompanhamento de um grupo de co­ concreta da força do Espírito Santo, em lugar de um cristianismo intelectualizado.
laboradores, fruto desse trabalho evangelístico. Esse grupo recebe um a atenção es­ Vejamos algumas características desse movimento16:
pecial - o discipulado. É o treinamento para o engajamento na prática comunitária.
Aqui se busca exercitar o sacerdócio geral de todos os crentes. Este aspecto - o a) A experiência do Espírito Santo se manifesta bem concretamente nos ca­
rismas, sobretudo no falar/orar em línguas, nas curas, no exorcismo e no profetizar.
grande envolvimento de colaboradores não ordenados no trabalho comunitário - é
uma característica do movimento evangelical. b) Essa manifestação do Espírito não é exclusividade de alguns privilegiados;
d) Um quarto aspecto é a visitação evangelística, sobretudo para membros todos são carismáticos ou então não são cristãos. Mas isso não significa que necessa­
menos engajados na vida comunitária, tarefa assumida especialmente pelo grupo de riamente todos tenham que ter o carisma de falar/orar em línguas.
colaboradores. c) Diferentemente dos pentecostais, a renovação carismática não dá tanta ên­
fase ao batismo no Espírito Santo, como um segundo momento especial, além do
e) Outro elemento são os núcleos em que se reúnem tais membros que passa­
ram por esse momento de conversão, sob a liderança de um dos colaboradores. batismo na água. Em lugar disso, entende-se o “batismo no Espírito Santo” como o
tomar-se cristão consciente, passando a ser sinônimo de conversão ou renascimento.
d) Em lugar disso, destaca-se mais a renovação espiritual ou carismática. Essa
13 Cf. WETH, R. (Ed.). Diskussion zur “Theologie des Gerneindeaujbaus Neukirchen, 1986. engloba diversos aspectos. Em primeiro lugar, a conversão com a entrega total a
14 Quanto a diferentes propostas de edificação de comunidade no âmbito evangelical, cf. HERBST, 1993; SEITZ,
M. Erneuerung der Gemeinde: Gemeindeaufbau und Spiritualität. 2. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1991; SCHWARZ, F.; SCHWARZ. C. Theologie des Gemeindeaufbaus: ein Versuch. 2. ed. Neukirchen; Vluyn:
Aussaat, 1985; EICKOFF, E. Gemeinde entwickeln fiir die Volkskirche der Zukunft'. Anregungen zur Praxis. 15 Cf., p.ex., PADILLA, R. Missão integral', ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo: FTL-B; Temática Publi­
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1992. Quanto ao Brasil, especificamente no âmbito da Igreja Evangélica cações, 1992; HOFFMANN, A. A grande cidade: um desafio para a Igreja. In: Pastoral Urbana: Cadernos de
de Confissão Luterana no Brasil, é representativo para tal o Movimento Encontrão, que, no entanto, ainda não Estudos da RE IV, São Leopoldo, n. 1, p. 2-19, 1987.
fixou literariamente essa sua concepção. Exemplarmente seja mencionado apenas EQUIPE “LEIGA” DO MO­ 16 Cf. quanto a isso D ’ARALJJO, 1995; HERB ST, 1993, p. 268ss; JENSEN, R. O toque do Espírito', a luta de um
VIMENTO ENCONTRÃO. Discipulado. In: Encontrão Estudos. Canoas, [s. d.]; FRENZEL, R. Estudo sobre E f homem para compreender a sua experiência com o Espírito Santo. São Leopoldo: Sinodal, 1985. Além disso,
4.7-16. Encontrão, v. 5, n. 14, p. 4-5, mar. 1987. todo o fascículo 129 de Concilium.

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Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

Deus. Em segundo lugar, a renovação da promessa batismal. Em terceiro lugar, a a) Parte-se do fato de que as pessoas, por terem sido batizadas, fazem parte da
abertura para a ação do Espírito Santo e seus dons. igreja. Aqui se leva consequentemente a sério que o Batismo é graça de Deus. Não é
por mérito ou por obra nossa que fazemos parte da igreja. É obra exclusiva de Deus.
e) Renovação carismática se evidencia sobretudo nos cultos extremamente É bem verdade que, para muitas pessoas, o Batismo parece ter pouca relevância, por­
vivos e participativos.
que não há um engajamento m aior dessas pessoas na vida comunitária. Mas - assim
f) Os carismas são postos a serviço da comunidade. Cada carismático é al­ se argumenta - será que nós temos o direito de negar ou impedir o agir autônomo de
guém que se entende como membro do sacerdócio geral de todos os crentes. Deus? Por isso, no trabalho comunitário, se busca levar a sério todas essas pessoas
que constam no fichário da comunidade e não as considerar simplesmente “arquivo
Avaliando essa concepção, deve ser destacado que edificação de comunida­
morto” .
de é, antes de tudo, oportunizar e provocar a renovação carismática, o que coloca
esse modelo muito próximo ao da comunidade missionária no que tange à ênfase na b) Grande parte dos membros acima caracterizados procura a comunidade
conversão e aceitação consciente da fé. Além disso, não pode passar despercebido o apenas e principalmente em conexão com ofícios casuais: Batismo, confirmação ou
destaque dado ao sacerdócio geral. crisma, bênção matrimonial, enterro. Muitas pessoas procedem dessa maneira por­
que, assim parece, a igreja pouco significa para elas. E mais um a convenção social.
Os perigos se situam num certo menosprezo do Batismo como dádiva incon­ Mesmo assim, nós não temos o direito de anular o agir de Deus e declará-las não
dicional de Deus em detrimento da aceitação consciente da fé. Além disso, uma pertencentes ao povo de Deus. Isso cabe a elas mesmas, pela negação expressa da
demasiada emotividade de experiência religiosa que não se satisfaz com a palavra de fé, ou ao próprio Deus. No entanto, principalmente nas cidades, há cada vez mais
Deus que vem de fora de nós. Em lugar de se satisfazer com o crer, busca-se o ver, pessoas que têm outros grupos em que também experimentam comunhão, de m a­
o experimentar o poder de Deus. Outro perigo é o de se repetir o que Paulo critica neira que a comunidade de fé não é a única fonte de vida comunitária. Por isso, na
na comunidade de Corinto, ou seja, a supervalorização de certos carismas em detri­ proposta de ação pastoral, se busca valorizar profundamente aqueles momentos em
m ento dos mais simples e a arrogância de algumas pessoas sobre as demais. Conse­
que essas pessoas procuram a comunidade, por ocasião de ofícios, fazendo com que
quentemente, corre-se o risco de não edificar comunidade, mas de apenas alimentar
os mesmos se tom em especialmente significativos e forneçam a elas alimento do
indivíduos e fomentar individualismos.
qual poderão nutrir-se por muito tempo. Além disso, tais momentos poderão ser um
desafio para uma valorização e um envolvimento maior com a comunidade.
8.3.6 Edificação da comunidade constituída c) Onde acontece a vivência de fé da pessoa? Apenas no âmbito da comuni­
dade de fé? Ou também e especialmente no dia a dia? Essa concepção parte do pres­
suposto de que toda a vida é um viver na presença de Deus. Portanto não é apenas a
Um último grupo, igualmente com múltiplas variações, pode ser caracterizado comunidade de fé que importa. Tudo o que ali acontece —culto, educação, aconse­
como a tentativa de ativar e dinamizar as comunidades constituídas ou tradicionais.17 lhamento, acompanhamento nos momentos de passagem - tem em vista preparar a
Se nos modelos anteriormente analisados se percebia certo menosprezo ou pessoa para o culto no dia a dia. Vida de fé e vida sociopolítica formam um a unidade.
desconsideração da comunidade tradicional, por motivos diversos, esse modelo toma Ou, visto de outro ângulo, não é possível restringir as questões de fé apenas à esfera
o seu ponto de partida justam ente na comunidade constituída, buscando desenvolver íntima, como sendo apenas uma questão pessoal entre Deus e o indivíduo.
propostas de trabalho que venham a tom ar a vida de fé e de comunhão significativa
d) Se em nível individual não é possível separar vida de fé e vida social, o
para as pessoas que a constituem. Vejamos algumas características básicas desse mesmo vale também para a comunidade como um todo. Ela não tem finalidade em si
modelo:
mesma; é um sinal da presença do reino de Deus neste mundo. Por isso ela não pode
estar alheia aos problemas, desafios, questionamentos que a cercam. Irá preparar
17 Cf. quanto a esse modelo MÖLLER, v. 1, 1987 e v. 2, 1990; MÖLLER, C. Reconstruindo comunidade', cartas
seus membros para enfrentar esses desafios. Por outro lado, ela buscará exercitar, em
aos presbíteros. São Leopoldo: Sinodal, 1995; LINDNER, H. Kirche am Ort\ eine Gemeindetheorie. Stuttgart: seu meio, formas de vida que possam ser por si mesmas sinais do Reino.
Kohlhammer, 1994; WERNER, D. Theologische Perspektiven: Ziele ökumenischer Gemeindeemeuerung. In­
formationen: Evangelische Missionswerk in Deutschland, n. 101, p. 13-24; STRECK, E. E. A tarefa, o lugar e a e) Por isso se tenta fomentar, principalmente em ambiente urbano, o desen­
atuação do pastor da IECLB a partir da experiência realizada no PIAI. 1995. Dissertação (Mestrado) - Escola volvimento de diferentes grupos na comunidade constituída: grupos de interesse, por
Superior de Teologia, São Leopoldo, 1995; CENTRO DE ELABORAÇÃO DE MATERIAL. Aprendizagem e
faixa etária, por desafios para o engajamento, permanecendo a celebração do culto
vivência do evangelho. São Leopoldo: Sinodal, 1977; VOLKMANN, M. Catecumenato permanente —um desa­
fio que permanece. Estudos Teológicos, v. 34, n. 2, p. 205-218, 1994. Veja também outras contribuições sobre o como o centro de encontro e de partida para a comunidade dos grupos.
tema no mesmo número de Estudos Teológicos, v. 34, n. 3, 1994.

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Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

f) Como comunidade de Jesus Cristo, cada comunidade local faz parte da e avaliação devem ser necessariamente participativos. Não podem se limitar a m i­
communio sanctorum (comunhão dos santos), ou seja, ela é igreja de Jesus Cristo nistros e ministras e demais pessoas em funções diretivas, mas devem dar a oportu­
junto com todas as demais comunidades e igrejas. Isso significa que ninguém é igreja nidade de participação ao maior número possível de pessoas: através dos diferentes
sozinho. Por isso se valorizam o convívio e a cooperação ecumênicos. grupos, em encontros, seminários e retiros.
Num a avaliação crítica dessa concepção, deve ser dito também com relação a No entanto, assim se poderá questionar, planejamento e elaboração de modelo
esse modelo que se busca levar a sério o ser igreja. Se há certo tradicionalismo e aco­ não significam contrariar a livre ação do Espírito Santo? Sem dúvida alguma, todo
modação dos membros, isso muitas vezes não é por culpa deles. Poderá ter faltado trabalho na igreja, todo crescimento, todo engajamento e toda decisão pela fé são
valorização de suas necessidades ou da oferta feita nos momentos em que as pessoas frutos do Espírito Santo. É ele que, em última análise, tudo conduz. Mas ele não
buscam a comunidade. Além disso, o individualismo, o anonimato, o utilitarismo, prescinde de nosso envolvimento, de nossa participação, assim como já está implí­
especialmente no ambiente urbano com sua multiplicidade de ofertas e, ao mesmo cito na ordem de Deus de zelar pela criação (Gn 2.15) e como é dito expressamente
tempo, dificuldade da pessoa “sentir-se em casa”, fazem com que a comunidade seja nas diversas orientações missionárias de Jesus aos discípulos (Mt 10.5ss; 28.19s).
mais um a proposta. Nesse ponto reside a grande dificuldade, mas, ao mesmo tempo, Portanto esforçar-se para ter um projeto claro de ação não contraria a ação do Espíri­
a grande oportunidade para a igreja. Indo ao encontro das pessoas, valorizando suas to Santo. Pelo contrário, é justam ente isso que Deus espera de nós para fazer de nós
necessidades e seus anseios, oferecendo conteúdo, diversificando as ofertas, o tra­ os seus cooperadores.
balho comunitário poderá ser de valor para as pessoas, e as pessoas poderão voltar a
Conscientes disso, cremos ser justificável estabelecer os seguintes princípios
valorizar a vida comunitária.
norteadores para um a proposta de edificação de comunidade em nosso contexto:
No entanto, esse modelo não deixa de correr o risco de permanecer num mero
a) A expressão “edificação” pode trazer implícita a suspeita de que se parta do
tradicionalismo: manutenção de tradições arcaicas sem vida e sem significado para as
nada e que, a partir de agora, à base do nosso engajamento, vá se iniciar a construção
pessoas. O trabalho comunitário, por sua vez, passa a ser simplesmente de atendimen­
do Reino. Pelo contrário, toda a nossa atuação parte do pressuposto de que a comuni­
to, sobretudo quando ser membro é encarado como “ser sócio” da comunidade, e quan­
dade já existe, já está edificada em sua base a partir da ação do próprio Deus. Nossa
do todo o trabalho está centrado na pessoa do pastor ou da pastora (pastorcentrismo).
atuação na edificação é sempre um segundo passo: ela se baseia no agir primeiro do
próprio Deus. Por outro lado, de certa forma no extremo oposto, o termo “edifica­
ção” pode transmitir a ideia de uma construção pronta, acabada, na qual os cristãos
8.4 Perspectivas e propostas para o nosso contexto
se sentem em casa, sem se preocupar com o que acontece ao seu redor. Em lugar
disso, o termo “edificação” deve implicar a ideia de desenvolvimento constante.19
A opção por determinado modelo de edificação de comunidade vai depender
b) Em conexão com essa suspeita inicial, devemos estar conscientes de que
basicamente da identificação teológica com a proposta. Isso tem sua lógica e não
todo o nosso engajamento está na continuidade do trabalho de outras pessoas. A edi­
deve ser desprezado totalmente. Se, no entanto, apresentamos um a descrição um
ficação não inicia conosco; outros já trabalharam nesse edifício antes de nós, como
tanto ampla de diferentes modelos, fazemo-lo com o intuito de alargar horizontes e
de oferecer a possibilidade de enriquecimento mútuo. diz Paulo: “Eu plantei, Apoio regou; mas o crescimento veio de Deus” (IC o 3.6). E
se atentarmos para a segunda parte dessa afirmação, veremos que, em última análise,
Além disso, a elaboração de um a proposta de edificação de comunidade não quem edifica é o próprio Deus. Nós somos apenas “cooperadores de Deus” (IC o
pode prescindir de uma acurada avaliação da situação. Não é possível estabelecer 3.9). Isso impede que se faça do programa de edificação de comunidade um projeto
um modelo e tentar adotá-lo em todas as situações e contextos. Antes de elaborar de interesses pessoais ou de grupos. Estar consciente disso e agir nesse espírito é
um plano de trabalho, importa fazer um diagnóstico claro; antes de fixar as metas e realizar o trabalho sob a condução do Espírito Santo.
estabelecer os passos e estratégias de ação, importa ter clareza sobre os fundamentos
c) A tarefa da edificação cabe a toda a comunidade: como membros do povo
teológicos dessa ação. Em suma, a elaboração de uma proposta de edificação de co­
de Deus, todos são responsáveis pela vida desse povo e, consequentemente, pela
munidade requer planejamento e avaliação constantes.18 Além disso, considerando
missão que lhe cabe. Por isso qualquer proposta de edificação de comunidade não
o princípio reformatório do sacerdócio geral de todos os crentes, tal planejamento
pode prescindir dessa contribuição. É o que se percebe, p.ex., nas CEBs e na pro-

18 Cf. BRIGHENTI, A. Metodologia para um processo de planejamento participativo. 2. ed. Sào Paulo: Paulinas,
1988; SANRINI, M. et al. Planejar é... Porto Alegre: IPJ, 1988. 19 Cf. o título Gemeinde entwickeln (“desenvolver comunidade”) no livro de EICKHOFF, 1992.

164 165
Teologia Prática no contexto da América Latina Edificação de comunidade

posta de “ministério compartilhado” da IECLB, na “Ação com Leigos” do Sínodo g) Retomando um dos aspectos enfatizados pela mordomia, edificação de co­
Centro-Campanha Sul (IECLB) e em modelos de atuação Movimento Encontrão munidade deve partir da ideia e criar nas pessoas a consciência da ideia de que toda
(Missão Zero - IECLB). a vida é uma dádiva de Deus e um compromisso diante de Deus. Em todos os artigos
d) Mas a tarefa da edificação cabe, com destaque especial, às lideranças da do credo - criação, redenção e santificação - é sempre Deus que toma a iniciativa e
comunidade. Muitas vezes essas lideranças são identificadas com ministros e minis­ “encampa” a vida integral da pessoa. Por isso também a vivência da fé é um com­
tras ordenados. Como tais, sem dúvida alguma, eles e elas têm uma responsabilida­ promisso integral com Deus em todos os ambientes da vida. Isso significa concre-
de especial. Devem zelar para que haja pregação, administração dos sacramentos, tamente que a edificação de comunidade de forma alguma se restringe ao âmbito da
educação na fé, ajuda aos necessitados e outras atividades. Mas, muitas vezes, não comunidade de fé. A comunidade de fé não é o fim último. Pelo contrário, tudo o que
distinguindo entre zelar para que tais tarefas sejam cumpridas e realizá-las pessoal­ acontece nesse âmbito deve estar relacionado com o contexto cultural e social em
mente, muitos ministros acabam concentrando tudo em suas mãos. São os mestres que as pessoas vivem e deve equipá-las, prepará-las, animá-las a viver a partir de sua
de cerimônia, os donos do poder, o centro de tudo (pastorcentrismo). Isso, na reali­ fé dentro desse contexto maior. A edificação da comunidade de fé, em última análise,
dade, significa um abuso da própria função e uma desconsideração da comunidade é a edificação da grande comunidade para que, em seu meio, transpareçam cada vez
como corpo de Cristo onde cada membro tem a sua função.20 Por isso edificação de mais os sinais do reino de Deus.
comunidade deve ser um a tarefa conjunta entre ministros e ministras ordenados, h) Indo um passo mais adiante, edificação de comunidade é viver comunidade
lideranças e membros da comunidade.21 no seu contexto. Considerando que o contexto de nossas comunidades e das pessoas
e) Qual a tarefa primordial de ministros e ministras? Zelar para que a palavra individualmente é cada vez mais de marginalização e de miséria e considerando,
de Deus seja pregada e ensinada, os sacramentos administrados, que os doentes se­ por outro lado, a opção de Jesus pelos marginalizados e desprezados, edificação de
jam visitados e outras tarefas, isso não significa que o ministro não tenha a função comunidade acontece na convivência diaconal e missionária justamente com essas
de realizar pessoalmente tais tarefas. Mas não implica exclusividade. Que tudo isso pessoas. Por isso edificação de comunidade deve abrir os olhos e preparar a comuni­
aconteça é incumbência dada à comunidade: ela é detentora do ministério. Cabe por dade para tal realidade e, além disso, viver comunidade convivendo nessa realidade.
isso aos ministros e ministras investir na descoberta e na formação de lideranças que É o que ocorre, p.ex., nas diversas ações práticas da Pastoral Popular Luterana (PPL
irão assumir conjuntamente essa tarefa. Tarefa daqueles é animar, equipar, subsidiar - IECLB).
todo o povo de Deus para que ele possa viver o seu sacerdócio ali onde se encontra i) Em íntima relação com o tópico anterior, importa levar em consideração ou­
e, desta forma, ir colocando sinais do Reino aqui e agora. tro aspecto: o povo de Deus não vive apenas em função da comunidade. Como numa
f) Edificação de comunidade, principalmente em contexto urbano, precisa le­ rede, a vida dos membros do povo de Deus está entrelaçada com um a multiplicidade
var em consideração a complexidade desse contexto, oferecendo um a diversidade de outras instâncias: grupos, amizades, vizinhança, sindicato, partido. E nesses con­
de grupos de integração (por idade, por afinidade, por interesse), em especial para textos que importa viver a comunhão, também como integrante do povo de Deus. E
aquelas pessoas que sentem as maiores dificuldades de integração nesse contexto aí importa ter consciência de outro aspecto: não podemos querer identificar o povo
ou estão à margem da sociedade. Além de proporcionar aconchego a essas pessoas, de Deus com um a determinada comunidade ou confissão. Isso significa: edificação
tais grupos devem proporcionar um aprofundamento em questões de fé para que de comunidade - como ação do povo de Deus - acontece de múltiplas formas, pe­
essas pessoas tenham um a base sólida em que se firmar e estejam em condições de quenas e muitas vezes não identificadas como tais, mas onde Deus não permite que
se posicionar e fazer as suas opções diante das múltiplas ofertas com as quais são a sua palavra volte vazia.
bombardeadas constantemente.

Bibliografia

20 Quanto à reflexão em tomo do ministério eclesiástico e da relação do mesmo com os membros de comunidade, BOFF, L . E a Igreja se fe z povo: eclesiogênese: a igreja que nasce da fé do povo. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
cf. neste mesmo volume meu ensaio intitulado “Teologia Prática e o ministério da igreja” (Capítulo 4). ______ . Igreja: carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante. São Paulo: Ática, 1994.
21 Veja a proposta de “ministério compartilhado” da IECLB, em que se busca uma atuação conjunta dos diferentes
BRATTGARD, H. Im Haushalt Gottes: eine Studie über Grundgedanken und Praxis des Stewardship. Berlin; Ham­
ministérios ordenados entre si, respectivamente com lideranças locais em diferentes setores, bem como com os
membros em geral. Considerando a diversidade de tarefas, a IECLB optou também por uma diversificação do burg: Lutherisches Verlagshaus, 1964.
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São Leopoldo, n. 1, p. 2-19, 1987. 9.1 Visão geral da questão missionária
HOFFMANN, A. A cidade na missão de Deus: o desafio que a cidade representa para a Bíblia e à Missão de Deus.
Curitiba: Encontro; São Leopoldo: Sinodal; CLAI, 2007.
9.1.1 Situando o tema
JENSEN, R. O toque do Espírito: a luta de um homem para compreender a sua experiência com o Espírito Santo.
São Leopoldo: Sinodal, 1985.
KANTONEN, T. A. A teologia da mordomia cristã. São Paulo: Luterana, 1965. Vamos estudar neste capítulo o desafio da missão cristã como testemunho do
KIRST, N. A reforma do estudo - marca registrada da última década. In: HOCH, Lothar C. (Ed.). Formação teoló­ evangelho no horizonte do reino de Deus. Para tanto é necessário considerar a nossa
gica em terra brasileira. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 52-60. realidade concreta num continente que apresenta contrastes sociais gritantes, uma
• Lances de uma jornada —traços de um perfil. Estudos Teológicos, v. 36, número especial, p. 19-25, 1996. diversidade religiosa e cultural extraordinária, e um clamor surdo que nos chega dos
LINDHOLM, P. R. Mordomia cristã e finanças na Igreja. São Paulo: Casa Publicadora Presbiteriana, 1963. campos e das cidades sem que se dê a devida atenção a ele.
LINDNER, H. Kirche am Ort: eine Gemeindetheorie. Stuttgart: Kohlhammer, 1994.
MICHEL, O. Verbete “Oikos”. In: KITTEL, G. (Ed.). Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart: Comecemos dando voz ao que um grupo de estudantes de Teologia recolheu
Kohlhammer, 1966. v. 5, p. 139-150. ao sair pela cidade entrevistando pessoas sobre o que entendiam por missão. Algu­
MÖLLER, C. Lehre vom Gemeindeaufbau, v. 1: Konzepte, Programme, Wege. Göttingen: Vandenhoeck & Ru­ mas respostas podem nos ajudar no início desta reflexão:
precht, 1987. v. 2: Durchblicke, Einblicke, Ausblicke. 1990.
a) Um a mulher de meia-idade, membro da Igreja Evangélica de Confissão
• Reconstruindo comunidade: cartas aos presbíteros. São Leopoldo: Sinodal, 1995.
Luterana no Brasil (IECLB), respondeu que missão 4é procurar alcançar pessoas
PADILLA, R. Missão integral: ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo: FTL-B; Temática Publicações, 1992.
SANRINI, M. et al. Planejar é... Porto Alegre: IPJ, 1988.
com a mensagem do evangelho, de forma que cheguem a Deus e Jesus, consequen­
temente à salvação. O trabalho com crianças, por exemplo, exige estudo e preparo
SCHWARZ, F.; SCHWARZ. C. Theologie des Gemeindeaufbaus: ein Versuch. 2. ed. Neukirchen; Vluyn: Aussaat,
1985. da professora para que as crianças ganhem carinho e possam expressar-se. E bom
SEITZ, M. Erneuerung der Gemeinde: Gemeindeaufbau und Spiritualität. 2. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ru­ perguntar-se pelas razões que nos levam ao trabalho de missão e ver o que é que
precht, 1991. nos desperta. N a verdade, há pouca preparação da igreja em procurar pessoas para o
STRECK, E. E. A tarefa, o lugar e a atuação do pastor da IECLB a partir da experiência realizada no PIAI. 1995. trabalho missionário” .
Dissertação (Mestrado) - Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 1995.
b) Uma senhora idosa, participante ativa na Assembleia de Deus, respondeu:
VOLKMANN, M. Catecumenato permanente - um desafio que permanece. Estudos Teológicos, v. 34, n. 2, p. 205-
218, 1994. “A pessoa (= missionária) deve ter conhecimento do que é missão, pois é um a res­
■A realidade das comunidades e a teologia praticada na Faculdade de Teologia. Estudos Teológicos, v. 36, ponsabilidade séria assumida diante de Deus. Missão é anunciar o evangelho da
número especial, p. 32-38, 1996. salvação aos doentes, aleijados, enfim, aos que sofrem privações. Mas é também
WETH, R. (Ed.). Diskussion zur "Theologie des Gemeindeaufbaus ". Neukirchen, 1986. auxiliar esses nas suas necessidades, por exemplo, dar pão ao faminto, roupa a quem
não tem, e assim por diante. É preciso trabalhar e ir em busca das almas perdidas,
anunciando-lhes a boa-nova do evangelho. Essa mensagem deve ter base bíblica.

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