Você está na página 1de 15

2023

Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

DESAFIOS E CAMINHOS: UMA VISÃO DO DICASTÉRIO


RESPONSÁVEL PELAS NOVAS COMUNIDADES

Cardeal Kevin Farrell


Prefeito do Dicastério para os Leigos, Família e Vida

Uma saudação cordial a todos que participam deste curso para bispos.
Agradeço ao Cardeal Tempesta pelo convite. O tema que me foi atribuído é:
“Desafios e caminhos: uma visão do Dicastério responsável pelas Novas
Comunidades”.

1. Premissa fundamental. Pastores e movimentos: juntos na evangelização


Gostaria de fazer anteceder a todas as reflexões que se sucederão uma
importante premissa. A perspectiva de fundo do tema que escolheram para este
curso é a evangelização. É uma escolha muito sábia, porque todas as atividades da
Igreja e todo empenho pastoral da parte de nós bispos devem ser pensados e
realizados em função da evangelização. Já há muitos anos os bispos latino-
americanos têm feito mesmo esta prioridade, como se afirma no documento final
da Conferência de Puebla: “O melhor serviço ao irmão é a evangelização que o
dispõe a realizar-se como filho de Deus, o liberta das injustiças e o promove
integralmente”.1
A evangelização é a base sobre a qual se fundamenta toda promoção social e
a busca do verdadeiro bem de todo homem. Nesta grande tarefa que compete à
Igreja e particularmente aos pastores, uma grande ajuda realmente pode vir dos
movimentos e das novas comunidades. O documento de Aparecida, que todos os
senhores conhecem, afirma:
Os movimentos e as novas comunidades são uma oportunidade
para que muitas pessoas afastadas possam ter uma experiência de
encontro vital com Jesus Cristo e, assim, recuperem sua
identidade batismal e sua ativa participação na vida da Igreja.

1 CELAM, III Conferencia geral do episcopado latino-americano, Puebla 1979, A


evangelização no presente e no futuro de América Latina, n. 1145.

1
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

Neles, “podemos ver a multiforme presença e ação santificadora


do Espírito”2.
É um texto muito belo porque faz entender que, em nossos dias, a
evangelização se torna sempre mais uma experiência de primeiro anúncio e de
encontro vital com Jesus Cristo para tantas pessoas que são totalmente estranhas
ou pelo menos indiferentes à fé cristã. Por isso se fala de pessoas distantes. E se
afirma que os movimentos e as novas comunidades oferecem uma oportunidade
para que muitas destas pessoas possam encontrar-se com Jesus, possam
redescobrir o batismo e começar a participar ativamente na vida da Igreja.
Exatamente sobre esteira de quanto afirma o documento de Aparecida,
gostaria imediatamente de dizer, no início desta minha fala, que a abordagem de
fundo que nós pastores deveríamos ter nas relações com estas realidades
agregadoras, deve ser fundamentalmente positiva. Devemos ver nessas uma
oportunidade, um recurso, um auxílio para a evangelização. São estas as palavras
que nós pastores devemos usar e não pensar imediatamente nos movimentos em
termos de problema, preocupação ou até mesmo desconforto. Os movimentos e as
novas comunidades são nossos aliados na evangelização, não são concorrentes
nem muito menos obstáculos à nossa pastoral habitual!
Se observamos o exemplo de Paulo compreendemos como ele viveu a
missão de evangelizar não sozinho, mas sempre junto aos outros, que ele chama de
seus “colaboradores”. Nas suas cartas se encontram tantas expressões deste tipo:
«Marco, Aristarco, Demag e Luca, meus colaboradores» (Fm 1,24);
«Timóteo, meu colaborador» (Rm 16,21); «Tito, meu companheiro
e colaborador» (2Cor 8,23); «Prisca e Áquila, meus colaboradores
em Cristo» (Rm 16,3); «Urbano, nosso colaborador in Cristo» (Rm
16,9).
Quando um pastor é um verdadeiro evangelizador e não simplesmente um
administrator de estruturas eclesiásticas, deseja ter colaboradores na missão.
Seguindo o exemplo de Paulo, se também nós estamos verdadeiramente
preocupados com a evangelização, devemos ver nos movimentos e nas novas
comunidades como nossos colaboradores. A nossa tarefa é mesmo aquela de

2CELAM, V Conferência geral do episcopado latino americano, Aparecida 2007. Documento


conclusivo, n. 312.

2
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

motivá-los, de encorajá-los e de formá-los porque são sempre mais colaboradores


do bispo no anúncio do Evangelho!
Ter bem clara esta perspectiva de fundo é de grande ajuda para impostar
bem a nossa reflexão sobre estas realidades.

2. Alguns esclarecimentos para orientar o discernimento


Para orientar o discernimento que compete aos senhores, como pastores,
penso que seja útil fazer alguns esclarecimentos. Um primeiro esclarecimento diz
respeito a expressão novas comunidades que é muito ampla e nem todos na Igreja a
usam do mesmo modo. Podem-se distinguir pelo menos três modos diferentes de
entendê-la:
a) No âmbito europeu, o termo novas comunidades é usado principalmente
para indicar aquelas associações laicas de fundação mais recente que apresentam
algumas caraterísticas comuns: a) a referência a um carisma comum,
frequentemente iniciado por um fundador ou mais fundadores; b) a vida comum,
pelo menos de alguns membros, em uma mesma casa; c) a coexistência de homens
e mulheres; d) a coexistência de estados de vida diferentes (casados, celibatários,
sacerdotes, religiosos) que colaboram juntos no apostolado, e às vezes convivem
também de modo fraterno. Estas novas comunidades apresentam frequentemente
numerosas semelhanças com as formas institucionalizadas de vida consagrada
(religiosa e secular).
b) Aqui no Brasil, o conceito de novas comunidades inclui o quanto foi dito
no ponto precedente, mas se alarga e se torna ainda mais amplo. Com estes termos,
de fato, indicam-se também todas aquelas realidades que têm como terreno
comum de origem a renovação carismática (católico ou pentecostal), que
sublinham muito a oração comum, o anúncio alegre e kerigmático do Evangelho,
um forte impulso missionário e de testemunho, sobretudo entre os jovens.
Somente alguns desses grupos, além das comunidades de aliança, preveem
também a assim chamada comunidade de vida.
c) Na linguagem da Santa Sé, ao contrário, se usou frequentemente o termo
novas comunidades para procurar incluir todas aquelas realidades laicas que não
faziam parte nem na categoria de associações de fiéis nem na categoria de

3
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

movimentos. Por isso, se fossem ler por exemplo, os discursos dos Papas dirigidos
aos participantes dos Congressos Mundiais dos Movimentos organizados pelo
nosso Dicastério encontrariam a menção “Aos Movimentos eclesiais e às Novas
Comunidades”.
Eu fiz esses acenos só para lhes fazer compreender que a expressão novas
comunidades é ainda muito fluida: se bem que seja muito difusa na Igreja, é
utilizada em contextos diferentes e com significados diversos. Por isso, penso que
não seja oportuno dar aqui definições rígidas. Na minha fala, eu a utilizarei no
sentido amplo, incluindo todas as realidades que acabei de citar.
Um segundo esclarecimento diz respeito à natureza destas comunidades.
Como bem sabem, aqui no Brasil, um percentual altíssimo dos fiéis que praticam a
fé e frequentam a Igreja provém de alguma comunidade ou teve que lidar com
alguma comunidade. Mas, o que se entende por comunidade? Penso que é
importante distinguir entre grupos locais que se definem por comunidade e grupos
que são expressão de um carisma.
a) Muitos grupos locais que se definem como comunidades são
frequentemente grupos de oração, que surgiram por iniciativa dos leigos ou de
sacerdotes ou de religiosos, que começam a se encontrar em uma paróquia para
momentos de oração e de partilha. Na maioria das vezes, aproveitam formas de
oração da renovação carismática, leem a Palavra de Deus em grupo, sublinhando
alguns aspectos da mensagem evangélica (a esperança, a comunhão, a paternidade
de Deus etc.), fazem também algumas atividades de apostolado. Este tipo de
comunidades, que surgem quase diariamente aqui no Brasil e que por isso é até
mesmo difícil de inventariar, frequentemente permanece circunscrito ao nível
local, isto é, estão presentes só em algumas paróquias ou apenas em uma diocese.
Provavelmente para esses grupos não será necessário iniciar um percurso de
reconhecimento jurídico com a elaboração e a aprovação de estatutos próprios,
porque se trata de realidades pouco estruturadas, que permanecem vitais
enquanto são animadas por um ou mais líderes, mas depois, quando estes não
estão mais presentes, os grupos por eles iniciados se extinguem ou fundem com
outras comunidades maiores e mais estruturadas. Entretanto, o fato de não terem
necessidade de reconhecimento jurídico, não quer, porém, dizer que não tenham

4
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

necessidade de acompanhamento pastoral. Este permanece necessário, aliás


indispensável. Retornaremos depois sobre este ponto.
b) Diferente é o caso daquelas comunidades que são expressões de um
carisma. Neste caso se trata de comunidades que têm uma identidade bem
definida. Possuem um rosto, uma fisionomia específica, que congrega todas,
diferentemente dos grupos de oração que aparecem muito diferentes entre eles.
Todos os membros destas comunidades, de fato, se reconhecem num carisma
comum, em um chamado comum e em uma história comum. Na origem desta
história, há frequentemente a história pessoal de um fundador que viveu uma
experiência particular de graça e de encontro com o Senhor, uma experiência de
iluminação a respeito de um aspecto específico da vida de Jesus ou da fé, por vezes
uma experiência de radical conversão, ou também um chamado para responder a
uma necessidade específica na Igreja. Esta experiência fundante, originária, vivida
pelo fundador, foi depois transmitida e compartilhada com um primeiro grupo de
companheiros que com ele tenham interpretado e colocado em prática a inspiração
para viver o Evangelho e modelar toda a própria vida segundo uma perspectiva
particular. Deste modo o carisma do fundador pouco a pouco se tornou um
patrimônio espiritual compartilhado por muitos, um tipo de espiritualidade
comum e coletiva, bastante reconhecido externamente. O que acontece, portanto
nestas comunidades que se constroem a partir de um carisma? Entrar nestas
comunidades, fazer parte delas, significa compartilhar a espiritualidade, o estilo de
vida, os fins apostólicos. É alguma coisa de diferente em relação a outro tipo de
comunidade do qual falei antes. Não se trata simplesmente de compartilhar
momentos de oração com um grupo, mas o entrar na comunidade é percebido
pelas pessoas como um chamado que comporta frequentemente uma mudança de
vida radical.3

3 As características das novas comunidades estão bem traçadas no documento da


Congregação para a Doutrina da Fé “Iuvenescit Ecclesia” (A Igreja está ficando mais jovem)
que fala dessas como «realidades fortemente dinâmicas, capazes de suscitar particular
atração pelo Evangelho e de sugerir uma proposta de vida cristã tendencialmente global,
investindo em cada aspecto da existência humana … estas agremiações eclesiais, nascidas
de um carisma compartilhado, tendem a ter como objetivo «o fim apostólico geral da
Igreja … propõe formas renovadas do seguimento de Cristo no qual aprofundar a
communio cum Deo e a communio fidelium, levando nos novos contextos sociais o fascínio

5
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

Estas comunidades que se referem a um carisma geralmente têm mais


ampla difusão, se estruturam de modo mais articulado, com responsáveis locais e
regionais, os seus membros frequentemente se sentem impulsionados a ir a outros
lugares para fundar novas comunidades, constroem sedes e estruturas próprias
para os seus encontros, organizam reuniões com numerosos participantes etc. Para
este tipo de comunidade geralmente se faz necessário um reconhecimento jurídico
e uma certa institucionalização do carisma, o que permite a sua fiel transmissão, o
desenvolvimento ordenado da vida da comunidade e um acompanhamento mais
próximo da parte da autoridade eclesiástica.
Muitos destes carismas dão vida a associações de fiéis que permanecem
circunscritas à Igreja local e, portanto, são de direito diocesano. Neste caso, ainda
que todas as associações de fiéis estejam sujeitas à vigilância da Santa Sé,4 todavia,
a competência de conceder a elas uma eventual aprovação canônica, de
supervisioná-las mais de perto e de acompanhá-las pastoralmente cabe
diretamente sobre os senhores, os bispos.
Em outros casos se, o carisma deu vida a comunidades que se difundiram
em nível internacional e por isto tornou-se necessário um reconhecimento da
parte da Santa Sé. As realidades agregativas laicas nascidas no Brasil e
reconhecidas pelo nosso Dicastério como associações internacionais de fiéis” são
somente três: a Comunidade Católica Shalom; a Comunidade Canção Nova; a
Família da Esperança.
Portanto, repito, os senhores, os bispos, são os primeiros responsáveis pelos
movimentos e as comunidades difundidas em nível diocesano. O nosso Dicastério,
apesar de permanecer como a referência última para todas as realidades laicas na

do encontro com o Senhor Jesus e a beleza da existência cristã vivida na sua integralidade.
Em tais realidades se exprime também uma peculiar forma de missão e de testemunho se
destina a favorecer e desenvolver seja uma viva consciência da própria vocação cristã,
mais que itinerários estáveis de formação cristã e percursos de perfeição evangélica. A
estas realidades agregativas, de acordo com os diversos carismas, podem participar fiéis
de estados de vida diferentes (leigos, ministros ordenados e pessoas consagradas),
manifestando assim a multiforme riqueza da comunhão eclesial» (IE n. 2).
4Cân 305 §2. Estão sujeitas à vigilância da Santa Sé as associações de qualquer gênero; e à
vigilância do Ordinário local, as associações diocesanas e outras associações, enquanto
exercem atividade na diocese. (Tradução do Código de Direito Canônico).

6
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

Igreja, segue mais de perto os movimentos e as comunidades difundidas em todo o


mundo e reconhecidas canonicamente pela Santa Sé.

3. Alguns critérios de discernimento


Passemos agora aos critérios que devem guiar o discernimento do Bispo.
Um sadio discernimento é feito sempre, seja no caso das comunidades menores,
aquelas locais comparáveis a grupos de oração, seja em comparação àquelas
maiores e estruturadas, sobretudo se se prevê um eventual reconhecimento
jurídico em nível diocesano.
Um ponto de onde partir é a unidade da Igreja e uma justa compreensão da
ação do Espírito Santo. Os senhores conhecem bem a passagem da carta aos
Efésios onde Paulo insiste sobre a unidade da Igreja: «Um só corpo e um só espírito
… uma só esperança … um só Senhor, uma só fé, um só batismo … um só Deus e Pai
de todos» (Ef 4,4-6). Precisamente dentro desta unidade, Paulo coloca a variedade
dos ministérios e diz que Cristo «deu a alguns o dom de ser apóstolos, a outros
profetas, a outros ainda evangelistas, a outros pastores e mestres … a fim de
edificar o corpo de Cristo» (Ef 4,11-12). A Igreja, portanto, é una, e o Espírito Santo
que opera nela é um só. Do único e idêntico Espírito vêm todos os ministérios que
edificam a Igreja. O Espírito Santo suscita em alguns homens a vocação a ser
pastores e o mesmo Espírito Santo suscita os carismas das novas comunidades.
Sem contradição. Não existe um espírito que inspira a hierarquia e um outro
espírito que torna a Igreja viva e carismática. Assim como não é concebível um
Espírito Santo que aja de fora da Igreja! O espírito que vivifica a Igreja é o Espírito
Santo. O espírito que age contra a Igreja e que divide a Igreja é o espírito maligno.
Portanto, um primeiro sinal inequívoco que mostra que uma nova
comunidade provém de Deus e é um fruto do Espírito Santo é o forte desejo dos
seus membros de estar sempre na Igreja e jamais fora dela ou contra ela. Isto não
exclui tensões nem incompreensões, porque o Espírito Santo é criativo e é fonte de
renovação na Igreja e por isso frequentemente as novas comunidades, sendo um
sopro do Espírito, trazem um ar novo, estilos e métodos novos, e tudo isto
inevitavelmente quebra a rotina e os esquemas consolidados e, por isso, acaba por
provocar incômodo e resistência em quem quer manter sempre tudo igual.

7
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

Todavia, o impulso para renovação que vem do Espírito não traz jamais a ruptura
da comunhão, a desobediência ou a divisão.
Na carta da Congregação para a Doutrina da Fé, Iuvenescit Ecclesia, são
elencados alguns “Critérios para o discernimento dos dons carismáticos”. É útil
citá-los neste encontro e fazer referência a eles, quando os senhores precisarem
avaliar as novas comunidades que atuam no território das suas dioceses.
1) Primado da vocação de todo cristão à santidade. Todo carisma autêntico
promove sempre a santidade dos seus membros que, exatamente por
frequentarem a comunidade, crescem na caridade para com Deus e os irmãos.
2) Empenho à difusão missionária do Evangelho. Os carismas autênticos
suscitam sempre zelo missionário para compartilhar aquilo que de belo se
descobriu no Evangelho.
3) Confissão da fé católica. Todo carisma autêntico se torna um lugar
privilegiado de educação para a fé na sua integralidade e leva a abrir as mentes e o
coração àquilo que a Igreja ensina sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo.
4) Testemunho de uma comunhão efetiva com toda a Igreja. Os carismas
autênticos criam em quem os acolhe a atitude para estabelecer uma relação filial
com o Papa e com o Bispo e docilidade para acolher os seus ensinamentos e as suas
orientações pastorais.
5) Reconhecimento e estima da recíproca complementariedade de outros
componentes carismáticos na Igreja. Um carisma é autêntico se não se considera a
si mesmo como o único válido na Igreja, mas reconhece a riqueza dos outros
carismas, é disposto à colaboração e a integrar-se de modo harmônico na vida de
todo o Povo santo de Deus para o bem de todos.
6) Aceitação dos momentos de prova no discernimento dos carismas. Um
carisma é autêntico se as pessoas que o acolhem se demostram humildes no
suportar com paciência eventuais incompreensões, momentos de prova e de
sofrimento sem se endurecer, mas vivendo tudo, segundo uma visão de fé, como
uma purificação e um momento de amadurecimento mais profundo. O carisma de
fato não é jamais separado da cruz.
7) Presença dos frutos espirituais. Os carismas autênticos produzem em
quem os acolhe alegria, paz, crescente benevolência e caridade (cf. Gal 5,22), mais

8
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

intensa participação na vida da Igreja, o amor à Palavra de Deus, gosto pela oração,
vida litúrgica e sacramental, florescer de vocações ao matrimônio cristão, ao
sacerdócio ministerial e à vida consagrada.
8) Dimensão social da evangelização. Os carismas autênticos, partindo do
kerygma, renovam toda a vida das pessoas, fazem surgir no coração um espírito de
desapego e de pobreza evangélica gerando assim uma nova sensibilidade para as
necessidades dos outros, sobretudo para os mais pobres, e um forte desejo de
construir condições mais justas e fraternas dentro da sociedade.
Estes critérios podem servir para orientar-se e para realizar um primeiro
discernimento. Quando estão presentes no seu conjunto, podem fornecer ao Bispo
segurança sobre a autenticidade do carisma e sobre a eclesialidade de toda nova
comunidade que surge. Quero reafirmar, porém, que não se deve limitar ao
primeiro discernimento, mas é necessário acompanhar a vida de toda nova
comunidade no seu aparecimento, no seu crescimento e desenvolvimento, na fase
da sua maturidade. É possível, de fato, que um carisma seja autêntico e que as
origens sejam boas, mas as pessoas que o acolheram podem ser infiéis àquele
mesmo carisma, ou desvirtuá-lo, ou vivê-lo mal, e, portanto, aquilo que iniciou bem
pode se desviar e corromper ao longo do caminho. Por esse motivo o pastor não
pode dar um nihil obstat inicial, mas depois abandonar uma nova comunidade aos
cuidados de si mesma. Deve, porém, seguir passo a passo o desenvolvimento.

4. O papel do Bispo
Passemos à tarefa do Bispo em relação às novas comunidades. Esta tarefa é
bem ilustrada no cânon 305 do Código de Direito Canônico, do qual cito o primeiro
parágrafo:
Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da
autoridade eclesiástica competente, à qual, portanto, cabe cuidar
que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e velar
que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica, cabendo-
lhe, portanto, o dever e o direito de visitar essas associações de
acordo com o direito e os estatutos; ficam sujeitas ao governo
dessa autoridade, de acordo com as prescrições dos cânones
seguintes (Can. 305 - §1).
Estão aqui indicados três aspectos da tarefa de vigilância que compete à
autoridade eclesiástica, que em nível diocesano, é precisamente o Bispo: 1) cuidar

9
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

que seja conservada integridade da fé e dos costumes; 2) velar para que não se
introduzam abusos; 3) visitar tais associações.
Começo do último. Não é só um direito, mas é um dever para o Bispo visitar
as comunidades que estão presentes na sua diocese.5 Infelizmente é preciso
reconhecer que muitos bispos negligenciam este seu dever, que, no entanto, é
fundamental. Gostaria de sublinhar que acompanhar as novas comunidades
significa visitá-las pessoalmente! Não é suficiente receber esporadicamente, nos
gabinetes da diocese, algum representante destas comunidades, ou também, pior
ainda, enviar o vigário episcopal ou um outro sacerdote. O Bispo, como pastor,
deve ir pessoalmente a visitar estas comunidades, deve participar de algum de
seus encontros, deve conhecer os responsáveis ou eventuais fundadores e a sua
história. Deve dar-se conta do estilo de oração e de celebração litúrgica que têm,
dos percursos formativos que propõem, das formas de apostolado e de missão que
desenvolvem. Tudo isto requer tempo, mas é um trabalho indispensável. De fato,
só o conhecimento direto, de primeira mão, faz conhecer o estilo de uma
comunidade e a atmosfera que nela se respira. O Santo Padre repete
frequentemente que a “proximidade é o estilo de Deus” e por isso deve ser também
o estilo dos pastores da Igreja.6 Mais que a simples leitura de um dossiê escrito, é
exatamente a proximidade que permite intuir qual é a qualidade espiritual de uma
comunidade e se eventualmente existem aspectos problemáticos.
Acrescento também que esta proximidade deve ser a proximidade de um
pastor, não aquela de um policial e, portanto, não deve limitar-se a visitas oficiais,
quase de inspeção, de verificação e de relatório, mas procurar se fazer presente
nos vários momentos da vida de uma comunidade, também naqueles mais
informais, de festa, de fraternidade, de troca de ideias. Deste modo, o Bispo, pouco
a pouco, começa a ser visto pela comunidade como um pai que se interessa pelos
seus filhos, que se empenha com o seu crescimento humano e espiritual e também

5Se veja a propósito também o Can. 397 §1: « Estão sujeitos à visita episcopal ordinária as
pessoas, as instituições católicas, as coisas e os lugares sagrados que se encontram no
âmbito da diocese. ».
6 Uma recente ocasião na qual falou foi o Discurso aos seminaristas e sacerdotes que
estudam em Roma, ocorrido na Sala Paolo VI, segunda-feira, 24 de outubro de 2022.

10
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

os seus problemas e as suas crises. Isto ajuda muito a instaurar um clima de


confiança e de estima nas relações do Bispo e a aceitar os conselhos e também as
correções, caso se façam necessárias. Pelo que me foi dito, no povo brasileiro há
ainda uma grande estima pelos sacerdotes e Bispos, e, portanto, também os
membros das novas comunidades, quando encontram acolhida, compreensão e
proximidade da parte dos pastores, se mostram em geral muito dóceis à sua
orientação e às suas indicações pastorais.
Nesta ótica de paternidade e de proximidade, se compreendem bem as
outras duas tarefas que competem ao Bispo: a vigilância a respeito da integridade
da fé e dos costumes e a prevenção ou a eliminação de qualquer tipo de abuso.
Em relação à fé, é raro que haja desvios intencionais da doutrina católica
devido a elaborações teológicas erradas. Isto acontece muito mais com os teólogos
e nos ambientes universitários, porém não com os simples fiéis e nas novas
comunidades! Frequentemente algumas imprecisões na doutrina são devidas à
carência de formação teológica e são facilmente remediáveis oferecendo
oportunidade de aprofundamento no Magistério da Igreja.
O mesmo vale para os costumes: é necessário assegurar que os membros
das comunidades recebam uma adequada formação moral e que pouco a pouco as
suas consciências sejam bem formadas, dando tempo à graça para trabalhar nestas
pessoas de modo que o seu comportamento e a sua vida quotidiana sejam
plenamente conformes à fé que professam e que celebram na sua comunidade.
Uma particular vigilância é requerida na prevenção dos abusos. Os cuidados
que o Bispo deve ter são muitos: deve assegurar-se que sejam sempre respeitados
o foro interno e a inviolável intimidade da consciência individual, por exemplo
durante a partilha de experiências que ocorrem em comunidade ou nos momentos
de revisão de vida. Deve assegurar-se de que não existam exageros, sobretudo em
relação aos jovens, na escolha da própria vocação e do próprio estado de vida.
Deve verificar que seja respeitada a justa autonomia decisória de cada família, em
matéria de educação dos filhos, de gestão dos recursos econômicos ou em outras
áreas particularmente delicadas, evitando também que a comunidade invada o
espaço que deve ser reservado a uma justa intimidade familiar. O bispo deve vigiar
com particular cuidado para que haja o máximo respeito nas relações com os

11
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

menores e com as pessoas vulneráveis, evitando que quem se encontre em uma


posição de autoridade possa aproveitar do seu papel para manipular os mais
frágeis e cometer abusos de consciência, de poder, ou abusos sexuais. O Bispo deve
vigiar também sobre como se exercita o governo dentro destas comunidades, de
modo que seja vivido sempre como um serviço e que não se torne um modo para
alimentar protagonismos, personalismos egocentrismos e ambições de poder.

5. Desafios e percursos
No tema que me foi atribuído se fala de desafios e percursos. Faço alguma
breve indicação a propósito. O desafio principal que o florescer de tantas novas
comunidades apresenta aos pastores é aquele de fazer crescer nelas o senso
eclesial assim que se tornem uma presença e uma força no coração da Igreja e não
ao lado da Igreja, ou pior ainda, fora da Igreja. O Bispo, portanto, com muita
sabedoria pastoral, com muita prudência e com muita paciência, deverá ajudar as
comunidades a superar alguns riscos que são típicos destas novas realidades. O
risco do unilateralismo, quando se pensa que a verdadeira Igreja está só na minha
comunidade, ou também que só nós vivemos verdadeiramente o Evangelho. O
risco do intimismo, quando a fé cristã é reduzida a uma experiência interior
puramente emotiva e sentimental. O risco da alienação, quando se tende a refugiar-
se no ambiente espiritual da comunidade para fugir das problemáticas da própria
vida pessoal, sem jamais afrontá-las e procurar resolvê-las. O risco de excessivo
espiritualismo, quando tudo aquilo que se faz ou se diz em comunidade é
considerado como inspirado pelo espírito e, portanto, aceito incondicionalmente e
sem verificação pessoal. O culto da personalidade, quando aquilo que dizem e
aquilo que fazem os líderes das comunidades é absolutizado e as suas pessoas
quase idolatradas. O risco de confronto com a comunidade local, paroquial e
diocesana, considerada apagada, formalística e superada. Eu poderia continuar,
mas paro aqui. Com isso não quero ser pessimista, quero somente fazer
compreender que o Bispo, na sua sabedoria e paternidade, conhece bem tanto os
méritos como os defeitos da Igreja e os de seus filhos que vivem com entusiasmo a
fé nas novas comunidades. Por isto procura pouco a pouco corrigir os seus defeitos

12
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

de impostação, as visões erradas e sobretudo de conduzi-los a amar a Mãe igreja,


que eles com o tempo aprenderão a considerar como a sua verdadeira casa.
Por quanto diz respeito aos percursos, quero indicar só um particular
aspecto do acompanhamento pastoral ao qual os bispos devem prestar particular
atenção. Me refiro ao equilíbrio entre participação eclesial e respeito à identidade
dos carismas.
De uma parte o Bispo deve suscitar em todos os fiéis o desejo de caminhar
juntos de modo que se crie integração e comunhão na igreja particular da qual ele
é pastor. Por isto procurará educar e também as novas comunidades para que
tomem parte na vida eclesial em um espírito de autêntica sinodalidade. Trata-se da
participação eclesial. Por outro lado, é importante salvaguardar o respeito à
identidade e uma justa autonomia dos carismas, no sentido de que o apelo à
participação eclesial não leve a distorcer completamente a identidade e a vida
própria das novas comunidades. Aqui o discurso deve estar bem articulado.
O respeito à identidade e a justa autonomia não querem dizer que um
movimento ou uma comunidade venham a introduzir em uma diocese os seus
grupos, o seu apostolado e os seus programas pastorais sem o consentimento do
Bispo e sem alguma forma de aprovação eclesial. Cada nova realidade que entra
em uma diocese deve passar pelo atento discernimento dos pastores e deve ter o
seu explícito consenso para iniciar o seu apostolado. Por justa autonomia,
portanto, se entende que, depois do exame de todos os aspectos da sua vida, da sua
espiritualidade e dos conteúdos da sua pregação, e depois da aprovação explicita
dada pelo Bispo, os movimentos ou as novas comunidades serão respeitadas na
sua específica identidade e no seu carisma. Portanto, o Bispo e os sacerdotes, nas
relações com aquelas comunidades aprovadas na diocese, se mostrarão
respeitosos pela sua metodologia, pelos programas, pelas modalidades de
desenvolvimento, pela frequência dos encontros, pelo estilo etc. De tudo isso se
deduz que o Bispo não poderá exigir uma uniformidade absoluta na sua diocese e,
de maneira forçada, enquadrar tudo, inclusive os movimentos e as novas
comunidades, em planos pastorais diocesanos construídos no gabinete. Não se
pode pensar que o Espírito Santo obedeça aos nossos planos pastorais.
Recordemos que Papa Francesco repete frequentemente que o Espírito Santo cria

13
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

harmonia, mas não uniformidade. Neste sentido o Bispo não deve seguir um falso
conceito de comunhão, onde cada tensão e cada variedade de acentuações
espirituais e pastorais desapareceriam para dar lugar a uma vida eclesial em uma
única direção.
Definitivamente, o justo equilíbrio que o Bispo prudentemente deve saber
conservar consiste nisto: de um lado promover uma autêntica e efetiva comunhão
eclesial, de outro respeitar os carismas e a sua identidade consentindo a legítima
variedade de expressões e de manifestações do Espírito.
Uma última observação. É muito importante que os pastores saibam que a
maturidade espiritual e eclesial, no interior de cada comunidade, não é um ponto
de partida. É um ponto de chegada! Ou seja, é fruto de um percurso, de uma
pedagogia que podem durar anos. Consequentemente, não se pode esperar que
tanto as pessoas individualmente como a comunidade em seu conjunto estejam
perfeitamente maduras, perfeitamente formadas, perfeitamente integradas na
comunhão eclesial desde o início. Esta meta se alcança gradualmente e os bispos
devem saber guiar, orientar e sustentar este caminho de crescimento. Portanto, o
pastor não pode tirar conclusões apressadas nem tomar medidas drásticas quando
surge algum sinal de imaturidade espiritual ou eclesial, mas saberá usar de
paciência e discernimento para corrigir eventuais defeitos, conservando, ao
mesmo tempo, os frutos bons do Espírito que tenha reconhecido nas pessoas e nas
comunidades.

Conclusão
Para concluir gostaria de convidá-los a considerar as novas comunidades
como um grande dom que Deus faz à igreja no Brasil. Quem dera que em cada país
existissem tantas comunidades como aqui no vosso país! Diria que é muito melhor
enfrentar os problemas que surgem da efervescência e da riqueza dos carismas
que os dolorosos problemas que muitos de vossos coirmãos bispos enfrentam em
outros países. Penso no contínuo fechamento das paróquias e na venda dos
edifícios sagrados, no abandono dos sacramentos, no desaparecimento dos jovens
da Igreja, na total falta de vocações.

14
2023
Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

Nas nossas sociedades sempre mais secularizadas, os problemas da igreja


não são a reforma das estruturas ou as mudanças da doutrina para adequar-se às
exigências urgentes do mundo. O verdadeiro problema é a falta de fé! Hoje, para
muitos batizados falta totalmente uma formação de base para a vida cristã. Neste
sentido, penso que nós Bispos devemos ver as novas comunidades como um
recurso e um grande potencial porque podem oferecer aos seus membros
caminhos de evangelização e catequese, de primeiro anúncio, de iniciação cristã, de
formação à fé, de acompanhamento no crescimento espiritual, dos quais hoje há
estrema necessidade. Elas, de fato, têm a capacidade de envolver as pessoas e de
reuni-las periodicamente e com frequência, e não propõem suas conferências
escolásticas, mas catequeses vivas e kerigmáticas, uma introdução gradual à vida
sacramental da Igreja e à vida de oração, celebrações litúrgicas alegres,
compreensão existencial da Palavra de Deus, momentos de questionamento e
diálogo, experiências de fraternidade, experiências de serviço e de caridade,
experiências missionárias etc. Nós pastores, portanto, devemos valorizá-las como
verdadeiras e próprias escolas de educação na fé e saber instaurar com elas uma
relação de plena confiança e de colaboração para trabalhar juntos na missão de
evangelização que o Senhor confia à igreja como sua tarefa a cada nova geração.
Agradeço a vossa atenção.

15

Você também pode gostar