O episódio bíblico da vinha de Nabot (que significa frutos) é narrado com requintes de detalhes para descrever como o rei Acabe e Jezabel procederam para toma-la de Nabot, o jezreelita (1 Reis 21,1-24). A vinha de Nabot ficava próxima ao palácio do rei Acabe, que quis apropriar-se dela para si. Como era uma herança familiar, portanto, sagrada, somente poderia ser repassada para um parente próximo. E esta propriedade retornaria aos proprietários originais no ano jubilar (Lv 25, 23-25; Nm 36, 7). Diante da recusa de Nabot, o rei ficou profundamente desgostoso, indignado e perdeu o apetite (1 Reis 21,4). A rainha Jezabel, vendo o descontentamento do rei, arquitetou um plano para que ele conseguisse a vinha, envolvendo inclusive pessoas influentes do supremo tribunal de justiça, terminando por incriminar e condenar à morte a Nabot e obtendo a apropriação indevida de sua vinha. Essa narrativa bíblica repete-se hoje, de maneira ampla na sociedade brasileira, conforme registrada no Caderno de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra CPTi, lançado em 2018. Os conflitos no campo em 2017 aumentaram escandalosamente e está sendo pago com o sacrifício da própria vida dos camponeses, indígenas e quilombolas, estes nossos irmãos e irmãs representantes das comunidades tradicionais. Segundo o professor Carlos Walter, coordenador da pesquisa, nos últimos dois anos, após a ruptura política desencadeada no Brasil, assistimos a um verdadeiro ataque aos princípios da democracia, aumentando, de modo assustador, a fúria, o ódio e o requinte de crueldade contra os camponeses. Foram 71 assassinatos no campo, portanto, uma morte violenta a cada cinco dias. Este é o maior número registrado desde 2003 com 73 vítimas. Em 2016 foram 61 assassinatos e é praticamente o dobro de 2014 que registrou 36 vítimas. O mais assustador mesmo foram os cinco massacres com 31 vítimas, em Colniza no Mato Grosso e Pau d'Arco no Pará, superando ao massacre de Eldorado dos Carajás - Pará, aos 17 de abril de 1996 com 19 mortos. Massacres semelhantes ocorreram somente em 1985 com 10 casos e em 1987 com 6 casos, mas nenhum destes com o número tão elevado de mortes. Desde 1988 não se registrava em um único ano mais do que dois massacres. O que mais nos assusta é o grau de brutalidade e o requinte de crueldade desses massacres, como um verdadeiro teatro do terror, uma pedagogia do medo que marca para sempre a alma de homens e de mulheres, de jovens e de crianças familiares dessas vitimas. Entre os assassinados estão 6 mulheres, 6 indígenas, 11 quilombolas, 4 assentados, 1 ribeirinho, 1 pescador, 33 sem terra, 12 posseiros e 3 aliados. Em 2016/2017 os conflitos no campo foram os mais elevados desde quando a CPT começou a fazer esse registro em 1985. As ocorrências em 2015 foram 771, em 2016, 1079 e 2017, 989. Em 2017 ocorreram também 197 conflitos pela água e 124 provocados pelas mineradoras. Em 2017 não foram apenas os assassinatos no campo que cresceram, também aumentaram as ameaças de morte 226, torturados 263 e tentativas de assassinatos 120. Registrou-se também em 2017, uma drástica diminuição dos números de combate ao trabalho escravo, com redução de orçamento, diminuição de fiscais e mudança na legislação. Associada à violência no campo, maior é a violência no Congresso Nacional com a aprovação de leis prejudiciais aos camponeses. Associadas a tudo isso estão as sentenças suspeitas de juízes. A subprocuradora geral da República Deborah Duprat afirma que há na prática judiciária brasileira um grande apego à figura jurídica da propriedade privada, tornando-a um direito patrimonial que acaba se impondo sobre os direitos fundamentais do cidadão. Esta dramática realidade clama as céus e faz sangrar o nosso coração, como nos alerta Jesus: Deste modo, recairá sobre vós todo o sangue dos justos derramado na terra, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que assassinastes entre o santuário e o altar. Em verdade vos digo: tudo isto vai recair sobre esta geração (Mateus 23,35). iA CPT é um organismo vinculado à CNBB, fundada há 40 anos. Desde 1985 ela registra os conflitos no campo brasileiro e a cada ano publica um caderno.