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2023

Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

SACERDOTES E NOVAS COMUNIDADES

Prof. Luis Navarro


Pontificia Università della Santa Croce
Roma

1. Introdução
Nesta segunda sessão, gostaria de tratar da presença dos clérigos e das
vocações sacerdotais nos movimentos e nas novas comunidades. Ainda que os
modos de conceituar estas realidades sejam variados, nos escritos da Conferência
Episcopal brasileira, esta optou, baseando-se na experiência de décadas, em
descrever as novas comunidades como uma nova forma associativa que se
distingue tanto das formas tradicionais como também dos movimentos1: têm uma
matriz carismática, podem ter como fundadores tanto leigos, como clérigos e
religiosos, nascem muitas vezes de grupos de oração da Renovação carismática e
realizam uma vasta tarefa de evangelização. Agrupam pessoas de diferentes
estados de vida e atraem muitos jovens. Uma característica essencial é que
constituem comunidades, têm fortes laços comunitários. Na terminologia cunhada
nestas terras, distinguem-se entre as comunidades de Vida e as de Aliança2.
Nas primeiras, vivem juntos fiéis que se consagram a Deus, dedicando-se
com todas as suas forças a realizar este carisma: alguns deles vivem o celibato pelo
Reino, outros não assumem esse compromisso e podem estar casados ou
permanecer solteiros. Nestas comunidades de vida, os seus membros trabalham

1 -se
a uma forma associativa, em grande parte nova na Igreja, diferenciando-se das comunidades
paroquiais, das comunidades eclesiais de base e das comunidades religiosas, bem como dos demais
.C ê N B B I j P M
Eclesiais e Novas Comunidades, 2009, n. 25.
2 O

j . P
consagrados assume a vida celibatária. As comunidades maiores possuem a ch
q j serviço da
. consagração formação
. consagração não opção
consequência do engajamento na própria
comunidade . Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Igreja Particular, Movimentos Eclesiais e
Novas Comunidades, n. 28.

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juntos, dedicam-se a tarefas de direção, de formação ou mais diretamente ligadas à


missão evangelizadora, rezam juntos, partilham momentos conviviais. Os casados e
suas famílias vivem em casas ou áreas especialmente dedicadas a eles, assim como
as mulheres e os homens que assumem o celibato, alojam-se em casas separadas.
Nas comunidades de Aliança, ao contrário, os membros vivem em suas próprias
casas, com suas famílias, têm um trabalho profissional e vivem no mundo, na
sociedade. Participam em momentos de formação, de apostolado e de oração
comuns.
Pois bem, entre os membros destas novas realidades eclesiais encontram-se
sacerdotes e vocações ao sacerdócio3. É certo que este fenômeno se vê confrontado
com múltiplos desafios, como é o governo destes clérigos, o seu estilo de vida, a sua
formação, a sua inserção na Igreja particular, a sua comunhão com o Bispo
diocesano e com o presbitério. Todos estamos conscientes de que há dificuldades e
ao mesmo tempo há frutos notáveis, a ponto de que se fala de um novo estilo de
viver o sacerdócio e o ministério sacerdotal, no qual se acentua a dimensão de
serviço, longe do carreirismo clerical. No final, voltarei a este aspecto.

2. A situação dos clérigos em relação com estas comunidades


Antes de nos concentrarmos nos sacerdotes que desejam servir ao
movimento com o próprio ministério (os sacerdotes do movimento e para o
movimento), abordarei dois pontos brevemente:

a. As vocações que nascem nesse carisma e que são destinadas às dioceses


João Paulo II, na Exortação apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis,
baseando-se na experiência e saindo ao passo de possíveis abusos, defendeu a

3 sacerdócio, proporcionando-
lhes formação própria, que uma vez ordenados continuam estreitamente a elas ligados. Geralmente,
são aquelas que têm maior tempo de existência j
. q
.
alguns casos, os candidatos participam
.
-
.Q
.C
Nacional dos Bispos do Brasil, Igreja Particular Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades, n. 29.

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legitimidade para o clero secular e, portanto, para os seminaristas, de nutrir a


própria vida espiritual com o carisma e espiritualidade destas novas comunidades:
Os jovens que receberam sua formação de base nelas e as têm
como ponto de referência para sua experiência de Igreja, não
devem sentir-se convidados a afastar-se de seu passado e cortar
as relações com o ambiente que tem contribuído para a sua
decisão vocacional nem têm por que cancelar os traços
característicos da espiritualidade que ali aprenderam e viveram,
em tudo o que têm de bom, edificante e enriquecedor4.

Se Deus chama uma pessoa ao sacerdócio a partir do seu encontro numa


nova comunidade, é lógico que não se peça para cortar radicalmente com esta
experiência. Há espaços de liberdade na vida espiritual do sacerdote secular e
também do seminarista. Neste último caso, a liberdade é mais limitada, pois
encontra-se num momento de discernimento vocacional especial: toda formação
do Seminário, a vida nessa estrutura, as relações com os superiores, estão
destinadas a compreender se Deus chama essa pessoa ao sacerdócio na diocese, se
é idóneo e adquiriu a necessária formação humana, doutrinal, espiritual etc. Por
isso, a participação na comunidade carismática de origem é legítima, na medida em
que é compatível com a vida do seminário.
No caso do clérigo, os espaços de liberdade são maiores, sempre dentro dos
limites de sua própria condição e função na diocese:
A participação do seminarista e do presbítero diocesano em
particulares espiritualidades ou instituições eclesiais é
certamente, em si mesma, um fator benéfico de crescimento e de
fraternidade sacerdotal. Mas esta participação não deve impedir,
mas ajudar o exercício do ministério e da vida espiritual que são
próprios do sacerdote diocesano, o qual «permanece sempre
pastor de todo o conjunto5.

A pastoral da diocese e a vida do seminário devem ser organizadas de modo


a facilitar a participação na vida e apostolado das comunidades, permitindo ao
candidato ao sacerdócio e ao sacerdote exercer o seu direito de associação e de
reunião (cf. cân. 2156 y 2787).

4João Paulo II, Ex. ap. Pastores Dabo Vobis, n. 68.


5João Paulo II, PDV 68.
6C . 215: Os fiéis têm o direito de fundar e dirigir livremente associações para fins de caridade ou
piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo; e também a reunir-se para procurar em
comum esses mesmos fins .

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b. Clérigos diocesanos que participam da espiritualidade de uma comunidade


Dentro do amplo leque de possibilidades oferecidas ao clérigo secular para
melhorar a vida espiritual, está a participação em atividades promovidas por estas
novas realidades eclesiais. Ainda que a vocação sacerdotal não tenha sido
descoberta através da comunidade, Deus se serve de encontros aparentemente
casuais para acender o zelo pastoral dos sacerdotes, para viver experiências de
redescoberta de Deus através da Palavra e de oração compartilhada, da
fraternidade sacerdotal com formas novas da caridade etc.
Tanto o Concílio Vaticano II, Decr. Presbyterorum Ordinis 8 8, como o CIC de
19839, dão um relevo especial às associações sacerdotais, que são perfeitamente
compatíveis e complementares com a condição do sacerdote diocesano e sua
espiritualidade10. Esta participação não está isenta de perigos, especialmente se o
clérigo absolutiza a sua pertença à nova comunidade. Se a sua espiritualidade fosse
só e exclusivamente a da comunidade, poder-se-ia criar uma ruptura interior:
formalmente pertence à diocese, mas de fato a sua vida gira em torno da
comunidade; a paróquia serve-lhe para transmitir o carisma da comunidade, o
presbitério e os laços de comunhão são irrelevantes, pois se sente unido apenas
7
Can. 278 § 1 “Os clérigos seculares têm o direito de se associar com outros para alcançar fins que
estejam de acordo com o estado clerical. § 2 “Os clérigos seculares devem ter em grande estima
sobretudo aquelas associações que, com estatutos revistos pela autoridade competente, mediante um
plano de vida adequado e convenientemente aprovado, assim como também mediante a ajuda fraterna,
fomentam a busca da santidade no exercício do ministério e contribuem para a união dos clérigos entre si
e com o seu próprio Bispo”. § 3 "Abstenham-se os clérigos de constituir ou participar em associações,
cuja finalidade ou atuação sejam incompatíveis com as obrigações próprias do estado clerical ou possam
ser obstáculo para o cumprimento diligente da tarefa que lhes foi confiada pela autoridade eclesiástica
competente".
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“Devem ser também muito estimadas e diligentemente promovidas as associações que, com estatutos
reconhecidos pela competente autoridade eclesiástica, promovam a santidade dos sacerdotes no exercício
do ministério por meio de uma adequada ordenação da vida, convenientemente aprovada, e pela fraternal
ajuda, e assim tentam prestar um serviço a toda a ordem dos presbíteros". C. Vaticano II, Decr.
Presbyterorum Ordinis, n. 8. Antes a comissão conciliar tinha confirmado a existência do direito de
associação dos presbíteros: “Non potest negari Presbyteris id quod laicis, attenta dignitate naturae
humanae, Concilium declaravit congruum, utpote iuri naturali consentaneum” (Schema decreti
Presbyterorum ordinis, Typis Poliglottis Vaticanis, 1965, p. 68).
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Can. 278 § 2 “Os clérigos seculares devem ter em grande estima sobretudo aquelas associações que,
com estatutos revisados pela autoridade competente, mediante um plano de vida adequado e
convenientemente aprovado, assim como também mediante a ajuda fraterna, fomentam a busca da
santidade no exercício do ministério e contribuem para a união dos clérigos entre si e com o seu próprio
Bispo”.
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Quando se absolutiza o caráter da "diocesaneidade", excluindo a presença de carismas na vida
sacerdotal, apresenta-se o perigo de empobrecer o sacerdote diocesano. É verdade que há diferenças entre
a espiritualidade do clero secular e do clero religioso, e enquanto o magistério conciliar e pontifício
sublinha a riqueza das associações sacerdotais nas dioceses, porque não afetam a pertença ao presbitério
nem a relação com o Bispo diocesano.

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aos membros da comunidade. Da diocese recebe os meios materiais para subsistir.


Mas onde vive realmente é na comunidade11.
O clérigo que participa ou é membro de uma comunidade deve estar atento
para encontrar o justo equilíbrio, tendo muito claras as prioridades próprias da
sua condição de clérigo secular que exerce o seu ministério numa diocese. Sua
relação com a comunidade, longe de ser um obstáculo, deve levá-lo a ser melhor
sacerdote diocesano12.

3. Os clérigos da comunidade e para a comunidade


Refiro-me às vocações sacerdotais que nascem no movimento ou
comunidade e que se sentem chamadas a servir com o seu ministério à realidade
carismática de pertença. Trata-se de algo desejado e querido pelas novas
comunidades. Além disso, estas vocações podem ser um fruto requintado e muito
apreciado da comunidade, algo que lhes pode encher de satisfação e seja motivo de
glorificar a Deus. São "nossos sacerdotes, nossos diáconos". Diante deste
fenômeno, bom em si, é preciso não perder de vista alguns princípios

11 I ropria indistintamente e in modo


acritico la spiritualità di un movimento ecclesiale o di una nuova comunità, potrebbe andare
incontro a un dissidio interiore che si può esprimere così: di nome egli appartiene alla diocesi o
’I o però il suo cuore batte per il movimento o per la nuova comunità cui ha
’ ’
à è ’ torale o educativo, ma il
metodo e lo stile per compierlo glieli suggerisce il movimento o la nuova comunità; il presbiterio o
la comunità religiosa è il luogo di incontro formale, mentre il movimento o la nuova comunità
diventa il luogo della comunicazion ’ à
è ’ à
assimilazione e interpretazione passano al vaglio di una certa mentalità formatasi a contatto con il
à à è ’
è ’
. . F Presbiteri, movimenti e nuove comunità, in Salesianum, 62
(2000), p. 563. A respeito da vida religiosa e da participação de religiosos em movimentos e
comunidades, expressou-se João Paulo II na ex. ap. Vita Consacrata n. 56: «Nestes anos não poucas
pessoas consagradas entraram a fazer parte de algum dos movimentos eclesiais surgidos no nosso
tempo. Muitas vezes os interessados se beneficiam especialmente no que se refere à renovação
espiritual. No entanto, não se pode negar que, em alguns casos, isto cria mal-estar e desorientação a
nível pessoal e comunitário, sobretudo quando tais experiências entram em conflito com as
exigências da vida comunitária e da espiritualidade do próprio Instituto. É necessário, portanto, ter
muito cuidado para que a adesão aos movimentos eclesiais se realize sempre respeitando o carisma
e a disciplina do próprio Instituto, com o consentimento dos Superiores e das Superioras, e com
disponibilidade para aceitar as suas decisões».
12 É normal que haja movimentos que tenham uma seção especial dedicada aos sacerdotes

diocesanos que compartilham o carisma, cuidando do respeito devido a sua tarefa e identidade
diocesana. Assim acontece por exemplo com a Obra de Maria (Focolares).

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fundamentais que dão razão de muitas disposições da Igreja em relação aos fiéis
ordenados.

1. Os sacerdotes e diáconos são ministros da Igreja


Os sacerdotes trabalham in persona et nomine Christi Capitis, são
continuadores do Sacerdócio de Cristo: são sacerdotes de Jesus Cristo; ao
contrário, os diáconos identificam-se com Cristo Servidor. Por isso, em ambos os
casos, sua atividade, seu ministério não é algo privado, algo que o clérigo
administra por conta própria ou, no melhor dos casos, com seu superior. No
ministério sagrado, nas ações litúrgicas, na celebração sacramental, na pregação da
Palavra, há algo que supera amplamente as pessoas envolvidas: Deus atua através
dos clérigos, atua a Igreja como tal. Por isso é necessário ter consciência de servir à
Igreja particular ou à estrutura de incardinação, mas com uma abertura a toda a
Igreja. Não sou sacerdote da diocese onde estou incardinado, mas sacerdote da
Igreja Católica. Por isso existem normas que sublinham esta abertura, esta
dimensão universal do sacerdócio13. As faculdades para confessar se estendem
habitualmente a todo o mundo (cf. cân. 967 § 2), a celebração eucarística não é algo
circunscrito à Igreja particular: aí está toda a Igreja. Além disso, há aspectos do
culto que permanecem sempre sob a direção do Bispo diocesano e da Santa Sé
(disposições litúrgicas para toda a diocese, baseadas no que dispõe a Igreja
universal).
A consciência desta realidade deve levar cada sacerdote a desenvolver uma
pastoral aberta, não exclusivista, não fechada. Ainda que um sacerdote viva a
espiritualidade de um carisma específico na Igreja, não deverá impô-la aos outros,
mas poderá compartilhá-la. Isto é particularmente importante na pastoral
diocesana. A paróquia não pode ser exclusivista. É comunidade de comunidades e
por isso aberta a todos.

13 O í ã ão os dispõe para uma missão


limitada e restrita, mas para uma missão amplíssima e universal de salvação "até os extremos da
terra" (At. 1, 8), porque qualquer ministério sacerdotal participa da mesma amplitude universal da
missão confiada por Cristo aos apóstolos. Porque o sacerdócio de Cristo, de cuja plenitude
participam verdadeiramente os presbíteros, se dirige por necessidade a todos os povos e a todos os
ã ã . C. V II .
Presbyterorum ordinis, n. 10.

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2. São ministros da Igreja também quando servem a seus irmãos e irmãs na


Comunidade
Nestes casos, o clérigo continua sendo e atuando como ministro da Igreja.
Não é um encarregado do moderador da comunidade. Continua a representar a
Igreja com a sua pregação e a sua ação sacramental. Por isso, a fonte da qual se
deve saciar e inspirar o seu ministério é a da Igreja, da Palavra de Deus, da
Tradição, do Magistério, dos Padres da Igreja, dos santos e santas, dos escritores
clássicos de espiritualidade etc. Devem usar os escritos de espiritualidade dos
fundadores da comunidade, mas não reduzir a isso seu ensino e orientação.

3. Com relação a sua identidade na Comunidade


O sacerdote, sem que isto afete a sua condição de irmão na comunidade, tem
uma posição peculiar nela. Não é um a mais. Nas palavras de João Paulo II,
"independentemente das funções e tarefas que no movimento é chamado a
desempenhar, o sacerdote deve colocar-se dentro do movimento como uma
presença especial de Cristo, Cabeça e Pastor, ministro da Palavra de Deus e dos
Sacramentos, educador na fé, meio de conexão com o ministério hierárquico"14.
Esta posição, compatível com a condição de membro da comunidade, depende das
autoridades competentes da comunidade, desempenhando as tarefas que lhe são
confiadas, trabalhando manual e intelectualmente, deslocando-se para onde for
necessário. Tudo isto não pode ofuscar esta posição de serviço ministerial que
corresponde à sua identidade. O sacerdote na comunidade não é só sacerdote
quando celebra a Eucaristia, ou prega a Palavra de Deus, ele o é sempre e deve ser
notado. A condição plena do carisma não pode obscurecer a distinção existente
entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos fiéis15. Por isso, sempre

14 «O sacerdote deve ser colocado dentro de um movimento, além das funções e tarefas que ele é
chamado a assumir nele, como uma presença única de Cristo, Cabeça e Pastor, ministro da Palavra
de Deus e dos Sacramentos, educador na fé, através da ligação com o ministério hierárquico».
Giovanni Paolo II, Messaggio al Card. Stafford, in occasione del Convegno Teologico Pastorale su
I nuova ev 21 j 2001
https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2001/06/27/0375/01109.ht
ml.
15 O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora difiram

essencialmente e não apenas em grau, são, no entanto, ordenados um ao outro, uma vez que ambos,
cada um à sua maneira, participam no único sacerdócio de Cristo. O sacerdote ministerial, com o
poder sagrado que lhe é conferido, forma e governa o povo sacerdotal, realiza o sacrifício
eucarístico no papel de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo; os fiéis, em virtude do

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se cuidará que ao sacerdote sejam atribuídos encargos de pregação, de formação


ou inclusive de guia, sem usurpar suas funções, nem despojá-lo de quanto
ministerial há em sua vida: deve poder celebrar a Eucaristia, confessar, pregar. Isso
é totalmente compatível com o fato de que também serve em tarefas humildes e
insignificantes aos olhos humanos, como lavar os pratos, limpar o chão, levar
alguém de carro, responder às chamadas telefônicas etc.

4. As novas comunidades e movimentos podem incardinar?


Falar de sacerdotes nos movimentos e comunidades leva imediatamente a
levantar a questão de sua incardinação. A resposta imediata à pergunta é não, pois
estas comunidades não são entidades incardinantes16. Todas as entidades
hierárquicas (diocese, vicariatos, prelazias territoriais etc.) possuem a faculdade
de incardinar. Entre as associativas algumas sim, outras não. Os institutos
religiosos sempre; as sociedades de vida apostólica em princípio sim, mas alguns
casos não. Os institutos seculares não, mas excepcionalmente sim. As associações
de fiéis, não, exceto algumas associações clericais que, por privilégio apostólico,
podem incardinar. Há como que uma progressiva restrição da concessão dessa
faculdade nas entidades associativas.
Por isso se pode afirmar sem duvidar que as novas comunidades não
possuem esta faculdade.

Conteúdo da incardinação
Para entender esta negativa é necessário compreender o que significa
incardinar para a entidade e para os seus superiores. Quanto aos sacerdotes
incardinados, deve-se garantir-lhes a satisfação dos seus direitos, o que exige que
se disponha de meios econômicos e humanos adequados. Pense-se no devido
sustento do clero: o que lhes permite moradia digna e alimentação adequada,

seu sacerdócio real, contribuem para a oferta eucarística e exercem o seu sacerdócio recebendo os
sacramentos, pela oração e a ação de graças, pelo testemunho de uma vida santa, pelo sacrifício
pessoal e pela caridade ativa . C V II C .L . 10.
16 Sobre a incardinação nestas realidades, cf. meus artigos: L’incardinazione nei movimenti

ecclesiali? Problemi e prospettive, en Fidelium iura, 2005, p. 63-96, La incardinación de los clérigos de
los nuevos movimientos asociativos, en Ius Canonicum, 48 (2008), 247-276, Clergy and New Ecclesial
Movements, in Studia Canonica 46 (2012), p. 375-400, e Incardinación, en Diccionario General de
Derecho Canónico, bajo la dirección de J. Otaduy-A. Viana-J. Sedano, vol. VI, Pamplona 2012, p. 503-
508.

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assistência e seguros médicos, um sistema de pensões. Além disso, devem procurar


que o clérigo disponha dos meios adequados para exercer seu ministério com a
competência requerida: a formação permanente, meios para melhorar sua vida
espiritual e ao devido descanso necessário para poder servir às almas.
Outro campo onde o superior da entidade incardinante exerce certas
funções refere-se ao ministério, aos encargos pastorais que os clérigos recebem.
Em certos casos, o superior atribui diretamente o encargo e pode conceder a
faculdade de confessar. E, se surgirem problemas, comportamentos criminosos ou
imorais, o superior deve intervir, pelo menos informar a autoridade competente, e,
em outros casos aplicar sanções canônicas.
Em relação aos candidatos ao sacerdócio, uma função fundamental é
exercer o discernimento final sobre a sua idoneidade 17. Mas também intervém
durante o processo de formação, pois alguns aspectos podem ser decididos pela
entidade incardinante ou de acordo com este: o seminário ou casa de formação, o
centro de estudos teológicos ao qual irão, o tipo de trabalho pastoral que
contribuirá para a sua formação etc. Geralmente, os superiores das entidades
também têm a capacidade de dar as demissões para solicitar a um bispo a
ordenação do candidato. Como se vê a entidade incardinante e seu superior têm
uma grande responsabilidade.
Tudo isto leva a concluir que não basta haver vocações ao sacerdócio, mas é
necessária uma maturidade eclesial que corresponde a uma entidade que sabe
selecionar, formar, cuidar, governar os ministros da Igreja. Por isso a Igreja é
prudente e, antes de conceder tal faculdade avalia, reflete muito e pede alguns
requisitos que demonstram a maturidade eclesial da entidade18.
Seria possível no futuro conceder esta faculdade às novas comunidades?
Penso que sim. Mas há uma pergunta fundamental que ainda não coloquei: o

17 Ainda que no processo de discernimento possam intervir diversas pessoas, a autoridade do ente
com capacidade de incardinar é responsável de que os escrutínios, instrumento necessário para o
discernimento, se realizem adequadamente e, além disso, a decisão última é sua. Corolário desta
função de discernimento, é que os responsáveis da entidade incardinante têm o dever e o direito de
informar sobre as causas da saída ou expulsão de um candidato que depois pede para ser admitido
em outro seminário ou casa de formação.
18 São indicativos os critérios indicados pela C. para o Clero para avaliar a ereção de uma associação

clerical com a faculdade de incardinar. Cf. C. para el Clero, Nota a proposito dell’incardinazione dei
membri chierici in Associazioni Pubbliche Clericali, en
http://www.clerus.va/content/dam/clerus/Plenaria%202017/01p%20-%20Incardinazione.pdf.

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carisma exige que essa comunidade necessite do sacerdócio e possa incardinar? Há


tempos escrevi que deve haver uma íntima relação entre o ministério dos clérigos
e a entidade associativa: por exemplo, que o carisma incida no modo de exercer o
ministério, que a finalidade da entidade exija uma total disponibilidade para servir
com o ministério em lugares longínquos, onde ainda se deve realizar a implantatio
Ecclesiae, ou motivos semelhantes. Esta relação entre ministério e associação
manifesta-se no fato de o ministério se exercer em harmonia com o carisma da
entidade.

5. Modalidades utilizadas para ter sacerdotes nas novas comunidades


Dado que as novas comunidades e movimentos não receberam a faculdade
de incardinar e é preciso que cada clérigo esteja incardinado, seja escolhido
habitualmente por encontrar um bispo diocesano que aprecie a comunidade e o
seu carisma, pedir-lhe que acolha um sacerdote dessa realidade, incardine-o na
diocese, destinando-o às tarefas apostólicas da comunidade.
O que de fato começou como um acordo verbal, sem formalidades, com o
passar do tempo deu lugar a contratos semelhantes aos que subscrevem dois
bispos diocesanos sobre o serviço pastoral de um clérigo numa diocese diferente
da de incardinação (cf. cân. 271). Nesses acordos os dois bispos e o clérigo
pactuam por escrito múltiplos aspectos que manifestam a responsabilidade
compartilhada pelos bispos por garantir um serviço pastoral adequado e uma
proteção dos direitos do clérigo, seja na diocese de origem seja na de destino (por
exemplo, o tempo de serviço, sua modalidade, o sustento do clérigo, a cobertura
sanitária, o sistema de pensões etc.). Nos acordos entre a diocese de incardinação e
comunidade ou movimento onde se exerce o ministério, contemplam-se também
estes pontos 19, com a diferença de que o moderador do movimento não é o
Ordinário do clérigo, nem tem poder de governo. De qualquer modo, a
comunidade, através do seu presidente, partilha algumas responsabilidades com o
Ordinário da Incardinação, sem que este possa delegar a sua função àquele.

19Por exemplo, o moderador pactua com o Bispo de incardinação o local onde aquele clérigo
exercerá o ministério, compromete-se a garantir apoio financeiro e de saúde a esse clérigo,
podendo também garantir ajuda espiritual ao clérigo.

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É muito possível que essa incardinação seja realmente fictícia: que o


sacerdote não tenha tido nenhum contato com a diocese, com o bispo, com o
presbitério e com o povo de Deus presente nessa circunscrição; que de fato esse
clérigo viva em outra diocese sem contato com o presbitério da nova diocese, que
sua tarefa pastoral seja governada exclusivamente pela comunidade ou movimento
(dela recebe os encargos e a ela presta contas). Em definitivo, esse sacerdote não
se sente em absoluto clérigo da diocese. É sacerdote da comunidade e basta. E isto
não é bom, nem admissível.
Enquanto as coisas vão bem, não há problemas. Mas o que acontece se
mudam as circunstâncias, as pessoas, ou aparecem problemas no exercício do
ministério? Um risco associado a estes acordos é que quando o bispo que assinou
os acordos muda, pode acontecer que seu sucessor exija o retorno desse sacerdote
à diocese. Diante dessa chamada, pouco há a opor, senão o respeito do contrato em
virtude do princípio pacta sunt servanda (os pactos devem ser respeitados)20. Se o
bispo insiste e dá razões de peso, o clérigo terá que regressar à diocese, um lugar
totalmente estranho, alheio aos seus interesses, distante do seu coração e que pode
considerar hostil.
Para amenizar este problema, há anos, estes acordos foram indiretamente
reforçados pela Santa Sé, recebendo uma confirmação da bondade do instrumento,
já que se faz referência explícita a eles em estatutos aprovados pela Santa Sé
(inclusive incorporando um modelo de convenção como anexo). Consequência
desta prática é que quando essa comunidade ou movimento se apresenta diante de
um bispo diocesano para ser recebido na diocese, se ele os aceitar, consinta que
sacerdotes do movimento possam exercer seu ministério em sua própria
circunscrição em virtude do acordo entre a diocese de incardinação e o
movimento. Um bispo não pode aceitar parcialmente o movimento; deve aceitá-lo
como é. De qualquer forma, pode, por razões graves (é legítimo), rejeitá-lo.
Outra intervenção da Santa Sé para favorecer que a incardinação não seja
fictícia se encontra no Diretório para a vida e ministério dos presbíteros de 2013. O

20Não convence uma visão positivista do direito, segundo a qual, como esses acordos não estão
previstos no Código de Direito Canônico, não possuem valor jurídico algum.

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Dicastério para o Clero deu algumas orientações destinadas a reforçar a


consciência de pertencer à diocese:
Os presbíteros incardinados numa Diocese, mas que estão ao
serviço de algum movimento eclesial ou nova comunidade
aprovados pela autoridade eclesiástica competente, sejam
conscientes da sua pertença ao presbitério da Diocese em que
desenvolvem o seu ministério e levem à prática o dever de
colaborar sinceramente com ele. O bispo de incardinação, por sua
vez, deve favorecer positivamente o direito à própria
espiritualidade que a lei reconhece a todos os fiéis, deve respeitar
o estilo de vida requerido pelo movimento, e estar disposto - a
norma do direito - a permitir que o presbítero possa prestar seu
serviço em outras Igrejas, se isto é parte do carisma do próprio
movimento, comprometendo-se em qualquer caso a reforçar a
comunhão eclesial21.

Como se vê, não é fácil conjugar tantos elementos: direito à própria


espiritualidade, pertença ao presbitério, facilitar a transferência para outras
dioceses. Sem dúvida a via dos acordos entre comunidade e diocese pode ser
percorrida, procurando integrar elementos que sirvam, por um lado, a sublinhar a
pertença destes sacerdotes à diocese e, por outro, o benefício da presença destes
sacerdotes para essa diocese ou outras para onde se possam deslocar. Do ponto de
vista dos bispos diocesanos, a presença destes sacerdotes é uma grande ajuda.
Facilmente se esquece que os membros de uma comunidade devem receber uma
pastoral adequada à sua condição. E isto é da responsabilidade do Bispo da diocese
de que são membros. O Bispo deve cuidar de todos, é Pastor de todos. A melhor
solução é que sejam sacerdotes dessa comunidade os que a atendam: sacerdotes
que conhecem perfeitamente o carisma, que têm uma forte sintonia espiritual etc.
Por isso, é bom que o Bispo tenha sacerdotes preparados dos quais possa dispor,
de acordo com a comunidade.

6. Elementos que podem favorecer a relação entre o Bispo e o sacerdote da


Comunidade.
Enquanto não houver uma incardinação na comunidade, é de vital
importância para a Igreja que se favoreça a relação entre o bispo e o sacerdote da
comunidade. Conseguir que haja contatos pelo menos anuais, também quando o

21 Congregação para o Clero, Diretório para a vida e o ministério dos presbíteros 2013, n. 35.

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Novas Comunidades e a Evangelização Hoje

clérigo passe períodos exercendo legitimamente o ministério a favor da


comunidade em outros países ou lugares, é vital. Favorecer o conhecimento mútuo
é um investimento para o futuro e para evitar tragédias. É importante ter
consciência de que algumas comunidades atravessam crises profundas, que levam
à divisão e mesmo à extinção. Não vivemos num mundo de fantasia onde se repete
ao infinito: tudo acabará bem. Se não se cuidar desta relação vital, podemos perder
tantos ministros da Igreja, pessoas que acreditaram na chamada de Deus e depois
se viram desiludidas. Se o relacionamento foi cuidado, o sacerdote poderá
encontrar um lugar onde se refazer, onde recuperar essa esperança. Um
pressuposto é que a diocese de incardinação seja um lugar onde se sente acolhido,
onde pode ir se houver problemas.

7. Um novo estilo de sacerdócio na Igreja


Nas novas comunidades se favorece uma forte experiência de fraternidade,
onde todos vivem o carisma e põem ao seu serviço os dons que receberam. João
Paulo II descreve esta realidade nestes termos: "tocados e atraídos pelo mesmo
carisma, participam da mesma história, metidos na mesma barca, sacerdotes e
leigos compartilham uma interessante experiência de co-fraternidade entre
christifideles que se edificam uns aos outros, sem jamais se confundirem 22.

Fazer parte da mesma aventura, respeitando a identidade de cada um, pode


ser em muitos casos uma nova realização da verdadeira complementariedade
entre o sacerdócio ministerial e o comum, onde o ministério é visto e vivido como
serviço ao irmão, à irmã que compartilha o mesmo carisma e onde o exercício da
função de governo é outro serviço, sem que recaia necessariamente na pessoa do
clérigo. Ser membro de uma comunidade ou participar de sua espiritualidade,
"traduzir-se-á para os sacerdotes em uma possibilidade de enriquecimento
espiritual e pastoral. Participando deles (os movimentos), os presbíteros podem

22 "Toccati" e "attratti" dallo stesso carisma, partecipi di una stessa storia, inseriti in una stessa
compagine, sacerdoti e laici condividono un'interessante esperienza di con-fraternità tra
"christifideles" che si edificano a vicenda, senza mai confondersi». Giovanni Paolo II, Messaggio al
Card. Stafford, in occasione del C T P I
nuova 21 2001.
https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2001/06/27/0375/01109.ht
m

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aprender melhor a viver a Igreja na coessencialiade de dons sacramentais,


hierárquicos e carismáticos que são seus, segundo a pluriformidade de ministérios,
estados de vida e tarefas que a edificam 23.

Conclusão
É verdade que existem problemas, mas nestas comunidades há sementes do
Espírito que podem ser vias de verdadeira evangelização e escolas de santidade
para leigos e clérigos. Encontramo-nos num momento em que o necessário
acompanhamento destas realidades se concretizará em favorecer uma formação
cristã profunda que faça compreender melhor a identidade das comunidades, a sua
inserção na Igreja. Parte desta formação deve centrar-se no sacerdócio e no
ministério sacerdotal, nas vocações que nascem desses carismas ou se alimentam
deles. Creio que, se cada um cumprir a missão que Deus lhe confia, podemos olhar
para a Igreja com grande esperança.

23 «L'inserimento nei movimenti ecclesiali si tradurrà per i sacerdoti in una possibilità di


arricchimento spirituale e pastorale. Partecipando ad essi, infatti, i presbiteri possono meglio
imparare a vivere la Chiesa nella coessenzialità dei doni sacramentali, gerarchici e carismatici che le
à .G
P II M C .S C T P I
ecclesiali per 21 2001.

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