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CAICÓ/RN
2022
MATHEUS BARBOSA SANTOS
CAICÓ/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - -CERES- - Caicó
Essa dissertação de mestrado, teve seu início no ano de 2020 e foi atravessada pela
Pandemia da Covid-19. Desde então, discentes, docentes e todos os funcionários foram
para suas casas, onde aguardávamos com medo e receio os desdobramentos de um vírus
que, no dia de hoje, enquanto escrevo estes agradecimentos, matou mais de 686 mil
pessoas somente no Brasil. Enquanto tentávamos nos adaptar em um novo modo de ser e
estar no mundo, esse trabalho também nasceu no contexto de desmonte da educação,
ataques contra ciência, aos pesquisadores e à universidade pública. Este cenário foi
potencializado por termos, ao longo de quatro anos, o pior presidente da história do Brasil.
Ser historiador, produzir conhecimento histórico, é um ato de resistência, de luta
e de esperança na construção de um mundo melhor. Apesar deste cenário que transpôs,
em muito, essa breve narrativa, estendo aqui os meus agradecimentos e minha gratidão
para todos que compõe este trabalho, que fazem parte da minha vida e que estiverem
presentes de todas formas possíveis ao longo destes anos.
Agradeço, primeiramente, a Deus, Nossa Senhora e Sant’Ana, por abençoarem
meus caminhos, intercederem pela minha vida e das pessoas que amo e me circundam.
Por estarem presentes nos momentos mais difíceis e de aflição deste trabalho, me
permitindo ter forças e sabedoria para sua conclusão.
Também agradeço a minha família (in memoriam), meus maiores incentivadores
e apoiadores, presentes em todos os momentos da minha vida. Ao longo destes dois anos,
me permitiram e proporcionaram, dentro do que podiam, o melhor cuidado, zelo, atenção
e abdicações para que esse trabalho fosse possível. Plínio Assis dos Santos, Maria Célia
Barbosa, Rodrigo Barbosa e Lucas Santos, obrigado por todo apoio e amor.
Externo minha gratidão ao meu amor, companheira de todos os instantes, com
quem partilho este e outros sonhos, com quem divido essa vida, tornando os dias mais
leves e bonitos. Yasmim Alves, que possamos vislumbrar e vivermos cruzeiros e sertões
atemporais. Obrigado por ter estado e por estar.
Eu e Alda Medeiros acontecemos em 2016, e desde então dividimos nossa
formação, orientador, pesquisas e o processo seletivo para ingressarmos no mestrado, mas
também compartilhamos o mesmo teto, o cotidiano, os sonhos, nossas angústias e
realizações. Obrigado por fazer parte da minha família, pela irmandade, por ser inspiração
e por juntos desbravarmos estes e outros sertões.
Apesar de todos os descaminhos que poderiam ter moldado essa relação, não havia
escapatória para mim e Beatriz Alves. Gratidão pela irmandade, por atenuar os dias e os
contextos mais difíceis, por acreditar que seria possível e por ter me ensinado que
precisamos, também, de pragmatismo e combustão. Obrigado por ser mar no sertão.
Este trabalho não seria possível sem que, lá atrás, em 2016, Helder Macedo tivesse
me convidado para ser bolsista de iniciação científica. Desde então, ele foi o responsável
por me instruir e ensinar o ofício do historiador, os caminhos da História, e que no sertão
sempre existem veredas para serem percorridas e trilhadas. Ao orientador, mestre, espelho
e amigo, minha gratidão.
Beatriz Dias, Clara Silva, Letícia Dantas e Izabely Oliveira, que me proporcionou
ser padrinho de Saulo Miguel, obrigado pela irmandade de todos estes anos, por torcermos
uns pelos outros e compartilharmos nossas conquistas e vitórias. Também sou grato pela
amizade de Camilly Silveira, Láira Pontes, Paula Fernandes e Raquel Lima Siqueira,
desafogos e lembranças de tempos bons, de termos para onde irmos e voltarmos. Gustavo
Albuquerque, Heitor Santos e Joellyson Silva, obrigado pela parceria e amizade.
Institucionalmente agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Centro de Ensino Superior do Seridó – Campus de Caicó, por ter me acolhido desde 2016.
Aos meus professores de graduação e pós-graduação, nas pessoas de Abrahão Sanderson,
Airan Oliveira, Ane Santos, Antônio Oliveira, Cleyton Silva, Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, Evandro dos Santos, Fábio Mafra Borges, Jailma Lima, João
Quintino de Medeiros Filho, Joel Andrade, Juciene Andrade, Lourival Andrade Júnior,
Muirakytan Macêdo (in memoriam), e Thiago Dias.
Ao Programa de Pós-Graduação em História, mestrado com área de concentração
em História dos Sertões. Aos meus colegas e companheiros de graduação e pós-
graduação, nas pessoas de Brena Dantas, Cleydson Pessoa, Dikson Freire, Eduardo
Medeiros, Ledson Silva, Maria Dolores Vicente, Maria Luiza Farias, Maria Luiza Lins,
Matheus Araújo, Mazzuki Macêdo e Remo Cruz.
Sou grato, também, ao Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos, na
pessoa de João Gustavo Guimarães, responsável por agenciar nosso contato aos
inventários post-mortem que compõe este trabalho, no Fórum Municipal Desembargador
Tomaz Salustino. Obrigado pela colaboração e por partilharmos pelo gosto da história
dos sertões, do Totoró e de Currais Novos.
Também agradeço ao Laboratório de Práticas de Pesquisa – LHCP, na pessoa de
Evandro dos Santos, que me acolheu de 2016 até 2019, enquanto bolsista de iniciação
científica. Grato, também sou, ao Laboratório de Documentação História – LABORDOC,
nos sujeitos de Helder Macedo e Paula Fernandes, coordenadores quando fiz migração
para um projeto de extensão.
De igual forma, sou grato a Central do Cidadão de Currais Novos, na pessoa de
Sheila Suerda. Obrigado pela amizade e pela oportunidade investida em mim. Agradeço,
também, a Rede Mais Você, através de Maria Souza da Silva (Duda), amiga e colega de
trabalho. Obrigado por todos os ensinamentos, por tornar os dias mais brandos e risonhos.
Por fim, agradeço aos professores que estiveram presentes no exame de
qualificação e de defesa desta dissertação de mestrado, nas pessoas de Ane Santos,
Antônio Oliveira e Ana Sara Cortez Irffi.
“Eu careço de que o bom seja bom e o
rúim ruim, que dum lado esteja o preto e
do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Quero os todos pastos
demarcados... Como é que posso com
este mundo? A vida é ingrata no macio de
si; mas transtraz a esperança mesmo do
meio do fel do desespero. Ao que, este
mundo é muito misturado...”
(Grande Sertão: Veredas – João Guimarães Rosa, 1994)
Ao sertão do Seridó, ao Totoró e para
Currais Novos.
RESUMO
1º CJ – 1º Cartório Judiciário
CC – Comarca de Caicó
FL – Folha
N – Número
SP – Secretaria Paroquial
V – Verso
LISTA DE GENEAGRMAS
Geneagrama 17 – Matrimônios dos netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho
de Vasconcelos ..............................................................................................................154
Quatro 02 – Sesmarias requeridas e concedidas para Cipriano Lopes Galvão (1737) ....67
INTRODUÇÃO .............................................................................................................19
FONTES .......................................................................................................................183
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................189
19
INTRODUÇÃO
Há um sentimento indígena
No torto passo que dou
No pouco tato que tenho
Vou sentindo ôca
A raiz em que me lenho1
Herança, escrita por Iara Carvalho e musicalizada por Wescley Gama, falou
acerca de um sentimento indígena expressado através dos corpos, dos gestos e de raízes
que se encontram no tronco/lenho da constituição dos sujeitos. Compondo o álbum
Seridolendas (2013), título dado em referência à região do Seridó, sertão localizado na
porção centro-sul do Rio Grande do Norte, no qual autora e músico residem na cidade de
Currais Novos, a canção fez menção à ocupação autóctone e sua herança, primeiras
sementes que compõe este chão.
Epigrafar esse texto com um trecho de uma canção produzida por curraisnovenses,
onde heranças indígenas atravessam os modos de ser e estar no mundo, é dissonante com
o que foi produzido e propagado acerca da história do município de Currais Novos/RN,
no qual o passado nativo é apenas um breve capítulo anterior ao processo de colonização,
dada referências de sua dizimação ou silenciamentos quando da chegada dos homens
brancos, civilizados e cristãos, aqui ensejados e corporificados pela família Lopes Galvão,
dita e tida como fundadora desta municipalidade. Desta maneira, interessa acessar não
apenas os indígenas que estiveram localizados no gérmen desta municipalidade, mas os
sujeitos e famílias não-brancos do Totoró e suas adjacências, entre os séculos XVIII e
XIX, igualmente responsáveis pelas vivências, heranças e constituição deste espaço.
Este legado passou por (re)modificações quando, no período colonial, foi iniciada
a expansão para conhecimento e posterior povoamento do sertão. Marchando ao lado do
gado por terras “devolutas e desabitadas”2, desbravando os rincões do Novo Mundo, os
colonizadores adentraram e usurparam territorialidades indígenas, tendo em vista que os
nativos foram considerados obstáculos ao projeto colonial, sendo assim, ambos os lados
1
GAMA, Wescley. Herança. Currais Novos/RN: Seridolendas, 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=AtNosmQ0cjQ>. Acesso em: 21 set. 2021.
2
O sertão foi visto e construído pelo discurso colonial enquanto espaço de fronteira, territorialidade vazia
dos referenciais de mundo lusitanos a serem conquistados, civilizados e tornados rentáveis para a máquina
colonial. Sertão, semanticamente construído enquanto espaço inóspito e vazio, justifica ações sobre ele,
sobretudo do ponto de vista econômico (SOUZA, Candice Vidal e. A Pátria Geográfica: Sertão e Litoral
no Pensamento Social Brasileiro. 2.ed. Goiânia: Editora UFG, 2015).
20
3
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do
Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 2002.
4
Atualmente, a Serra d’Acauã se localiza no município de Currais Novos/RN.
5
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1984, p.97.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
21
8
LOPES, Fátima Martins. Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande
do Norte. Natal/RN: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), 1998.
9
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
10
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
11
Se refere ao território produzido e formado pela ação da Igreja Católica no período colonial, constituindo
a freguesia enquanto unidade administrativa (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias
do Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR:
CRV, 2020).
22
Legenda: 1 – Vila Nova do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó, contando com a Capela de
Nossa Senhora do Rosário e a Matriz da Senhora Santa Ana do Seridó; 2 – Povoação da Nossa
12
Ibidem.
13
Totoró ou Tororó, é uma palavra de origem indígena e provavelmente significa “lugar onde se acha água”.
(SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008).
14
Os limites da Freguesia do Seridó compreendiam, também, o Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe,
criada em 1788 (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias
Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020).
23
15
A Data de Terra do Totoró, era uma porção territorial que abrigava sítios e fazendas. O nome “Totoró”,
por sua vez, nomeou o rio, um pico rochoso e unidades familiares destinadas ao criatório e ao plantio.
16
O Rio Totoró nasce na Serra de Santana e se encontra com o Rio São Bento, antigo Maxinaré, com foz
localizada na Serra do Doutor, e desaguam no Rio Acauã (SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008).
17
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940], p.13-14.
18
AUGUSTO, José. Op. Cit., p. 14.
19
Ibidem.
24
20
Ibidem.
21
Ibidem.
22
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal,
1981, p. 4.
23
O exercício crítico feito na obra de Olavo de Medeiros Filho, segundo Helder Macedo (2020), deve ser
cuidadoso, tendo em vista o amadurecimento intelectual do autor, do acesso e contato com novas e outras
fontes, possibilitando discorrer acerca de uma população mais plural do sertão do Seridó, como os
levantamentos estatísticos realizados pelo Padre Francisco de Brito Guerra entre os anos de 1809 a 1811,
constatando a presença de elementos pretos, indígenas, mulatos, pardos e, certamente, brancos entre os
fregueses de Santa Ana (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó:
Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020).
25
24
Ver: DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo. Natal: Sebo Vermelho, 2008 [1962];
DANTAS, Manoel. Homens de Outr’ora. Natal: Sebo Vermelho, 2001 [1941].
25
Acerca dos silenciamentos promovidos pelos escritos que se debruçaram sobre o sertão do Seridó, ver:
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões
do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
26
Enquanto escrevemos este trabalho, no dia 27 de maio de 2022, a Prefeitura Municipal de Currais Novos,
através da assessoria do antropólogo Geraldo Barboza, elabora um estudo socioeconômico na Comunidade
Rural de Queimadas, também conhecida como Negros do Ludugério. Este trabalho tem como objetivo
acompanhar o processo de reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares, da Comunidade de
Remanescente de Quilombo das Queimadas. Essa comunidade negra, que existe há quase 270 anos,
abrigando 16 famílias, se localiza na zona rural da cidade de Currais Novos/RN, no Povoado Totoró.
(NOVOS, Prefeitura Municipal de. Prefeitura de Currais Novos Inicia Estudo para Reconhecimento
de Comunidade Negra como Remanescente de Quilombo. Instagram: Currais Novos/RN. Disponível
em: <https://www.instagram.com/p/CeEZOiIr9iz/?igshid=MDJmNzVkMjY=>. Acesso em: 27 mai. 2022).
27
PALMARES, Fundação Cultural. Comunidade Quilombola de Negros do Riacho é Titulada no Rio
Grande do Norte. Brasília/DF: Governo Federal, 2006. Disponível em: <
https://www.palmares.gov.br/?p=1610>. Acesso em: 10 fev. 2022.
28
ASSUNÇÃO, Luiz. Levantamento de Fontes Sobre Escravidão no Sertão Potiguar – Século XIX.
Projeto de Pesquisa: Departamento de Antropologia, PROPESQ, UFRN. Natal, 2008.
26
29
Consideramos, para fins desse estudo, aqueles considerados enquanto integrantes das matrizes puras:
índio, negro, preto e crioulo. Também trabalhamos com sujeitos qualificados enquanto mestiços, termo
utilizado para aqueles indivíduos frutos dos intercursos biológicos ocorridos entre pessoas que foram
qualificadas pelo Estado e pela Igreja como mamelucos, pardos, mulatos cabras e curibocas – qualidades
predominantes na Ribeira do Seridó. Dessa forma, não estamos tratando de uma categoria homogênea, mas
um termo plural e flexível, incluindo pessoas de diferentes qualidades e condições no contexto ultramarino.
Esse termo, configurando-se enquanto móvel e maleável, sofreu alterações ao longo do tempo e do espaço,
sendo empregado, inicialmente, para designar apenas os filhos de pessoas provindas da Europa com nativas
do Novo Mundo. Todavia, a partir do século XVIII, contemplou uma maior abrangência, definindo e
qualificando pessoas de diferentes tipos. Portanto, um conceito equivalente ao de mestiço seria o de
mestiçagem (PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015).
30
Qualidades presentes no Totoró e suas adjacências, conforme consta nos inventários post-mortem do
Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos e do Laboratório de Documentação Histórica (1754-
1863).
27
31
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças
nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
32
MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: Uma Geografia da Resistência.
Natal/RN: EDUFRN, 2020.
33
O Seridó cartograficamente construído contempla 23 municípios, são eles: Caicó, Acari, Jardim do
Seridó, Serra Negra do Norte, Currais Novos, Florânia, Parelhas, Jucurutu, Jardim de Piranhas, São João
do Sabugi, Ouro Branco, Cruzeta, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, São Vicente, São Fernando, Equador,
Santana do Seridó, São José do Seridó, Timbaúba dos Batistas, Lagoa Nova, Ipueira e Tenente Laurentino
Cruz. MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. Cit., 2020.
28
Fonte: Malha Digital do IBGE. Disponível em: ftp://geoftp.ibge.gov.br. Adaptação feita por
Diógenes F. S. Costa, Jucicléa Medeiros de Azevedo e Francisco Fransualdo de Azevedo em 01
de maio de 2011.
34
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque/Fundação Vingt-Un Rosado, 2002.
35
Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari (BNSGA), Secretaria Paroquial (SP). Livro de Batismo nº
07 (1868-1874). Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari (FNSGA), fl. 56v.
29
36
MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – Um
Estudo de Caso da Pobreza. 1985. 247f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1985.
37
ARAÚJO, Douglas. A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o Desmoronamento das Fazendas
Agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-1990). 2003. 225f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
38
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em Ação na Comarca do Príncipe: Província do Rio Grande
do Norte. 2014. 157f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014.
30
que o espaço do sertão do Seridó foi cartografado e territorializado por freguesias e vilas,
motivado pela expansão da pecuária. O limite final do seu estudo repousa nos discursos
regionalistas das elites algodoeiras-pecuaristas ao final do século XIX e início do XX39.
Seu segundo trabalho, intitulado Rústicos Cabedais, ponderou acerca do
patrimônio familiar nos sertões do Seridó durante o século XVIII. A temática do seu livro
é a história da família nos sertões da pecuária colonial, refletindo nas relações entre
cabedal familiar e cotidiano setecentista. Ao tratar do habitual dia a dia dos núcleos
familiares na colônia, Muirakytan Macêdo trata do território da terra à fazenda, da casa,
discorre sobre os corpos dos sujeitos, abordando aspectos das sesmarias e suas cerimônias
de posse, a produção das fazendas, a cultura material das casas e os ritos de vida e morte
dos indivíduos40.
Helder Macedo, em obra decorrente da sua dissertação de mestrado, objetivou
compreender algumas das modificações no território, nos corpos e nas almas das
populações indígenas causadas pelo fenômeno da ocidentalização no sertão da Capitania
do Rio Grande, em vista que a tentativa de imposição cultural ocidental acarretou na
morte de uma expressiva quantidade destes povos. Portanto, o autor percorreu os passos
dos remanescentes e decentes dos grupos nativos no que se instituiu enquanto a Freguesia
do Seridó e o Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe, entre os séculos XVIII e XIX.
Em outro trabalho, tendo como cerne o estudo de genealogias mestiças no mesmo
recorte espaço-temporal, Helder Macedo tentou perceber qual o lugar dos mestiços na
formação de famílias. Esse fenômeno abarca os núcleos familiares formados no período
colonial a partir de mestiçagens, ou seja, em que os sujeitos que formam essas parentelas
não descendem apenas de lusitanos ou luso-brasílicos. Destarte, o autor examinou a
trajetória e vida de três sujeitos – Nicolau Mendes da Cruz, Francisco Pereira da Cruz e
Feliciano da Rocha Vasconcelos –, motivado pelo empreendimento e representatividade
de suas experiências enquanto mestiços na colônia, no sertão do Seridó.
Por fim, citamos o trabalho de Maiara Araújo, que analisou o processo de
institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande e o seu papel
institucional no processo de territorialização da Ribeira do Seridó entre os séculos XVII,
XVIII e XIX. Suas motivações recaíram no exame e ingresso de sujeitos mestiços na
39
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Penúltima Versão do Seridó: Uma História do Regionalismo
Seridoense. EDUFRN: Natal; EDUEPB: Campina Grande, 2012.
40
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos e Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
31
41
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2019.
42
CHARTIER, Roger A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990; CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a História Entre
Incertezas e Inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS,
2002.
43
CHARTIER, Roger. Op. Cit, 2002, p.73.
32
44
BURKE, Peter. O que é História Cultural? 2º Ed. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro/RJ: Zahar,
2004.
45
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 3º Ed. Belo Horizonte/MG: Autêntica,
2012.
33
46
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico,
Botanico, Brasilico, Comico, Crítico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico,
Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico,
Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico,
Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico, Ortographico, Optico,
Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitutivo(sic),
Rethorico, Rústico, Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico,
Technologico, Uranologico, Xenophonico, Zoologico: Autorizado com Exemplos dos Mehlores
Escritores Portuguezes, e Latinos; e Offerecido a El Rey de Portugal D. Joaõ V. Coimbra, Collegio das
Artes da Companhia de Jesu: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1712, p.09-10. 8 v.
47
BLUTEAU, Raphael. Op. Cit., p.60-61, grifo nosso.
34
Diz respeito as propriedades que compõe alguma coisa, seja o calor produzido
pelo fogo ou todo o engenho em se fazer uma cera mais agradável a partir de determinadas
flores e do sol da manhã. Aqui, nos interessa a calidade intrínseca ao corpo, sua beleza e
alma, podendo ser naturais aos sujeitos ou adquiridas, tornando os indivíduos dignos de
estima e nobreza. Estamos falando, segundo Bluteau (1712), do “homem de calidade”,
tipicamente masculino, do genere clarus.
Eduardo Paiva evidenciou que os termos distinguiam as pessoas que possuíam
qualidade/calidade daquelas não tinham, ou das pessoas que tinham resquícios em menor
proporção ou intensidade. Era uma categoria empregada para diferenciar as formas dos
corpos, aparência e fisionomia. Estava associada aos preceitos de nobreza,
particularizando “nobres, brancos, ocidentais e cristãos” em oposição aos “mouros,
orientais e infiéis”.
Com os empreendimentos ultramarinos na América Portuguesa, estes conceitos
passaram por modificações, designando os fenótipos dos indivíduos que não eram nobres
ou brancos europeus. As qualidades, categoria adotada e usada de modo mais geral,
diferenciavam, classificavam e hierarquizavam os indivíduos e os grupos sociais a partir
de ferramentas que levavam em conta ascendência e descendência genealógica,
proveniência, origem religiosa, condição jurídica, seja o sujeito livre, cativo ou forro, a
ocupação, e aqueles elementos mais tangíveis, como a cor da pele, o tipo de cabelo e o
delineamento dos lábios e/ou bocas. Ainda, quando este exercício não era possível, os
elementos mais salientes e aparentes eram tomados para atribuir a qualidade48.
Este cenário possibilitou que Eduardo Paiva cunhasse o conceito de dinâmicas de
mestiçagens, mesclas biológicas – consentidas ou não – e culturais que pretendeu servir
48
Ibidem.
35
de suporte para compreensão das misturas, das mobilidades e dos trânsitos, além de
superposições e coexistências de elementos que não se misturaram ou deram origem a um
novo produto misto. Importou, sobremaneira, observar os processos históricos destas
mesclas, tendo conhecimento da participação e importância de agentes históricos não-
mestiços, tais como os índios, negros e brancos, que não eram definidos e nem se definiam
como provenientes de misturas.
Interessa ressaltar que os dois últimos conceitos supracitados não se configuram
enquanto fenômenos reguladores, fórmulas bem definidas e/ou delimitadas,
compreensões inflexíveis acerca de eventos que não retratavam um mundo unificado ou
uma realidade mestiça, mas se sobrepunha a diversidade de um conjunto, matizes e cores
de diversas formas e jeitos. Portanto, são conceitos flexíveis e maleáveis, que sofreram
modificações ao longo do tempo e do espaço, dependendo do contexto e das percepções
sociais em que estava inserido, tendo em vista que a qualidade eram formas de
representação dos sujeitos e podiam ser alteradas ao longo de suas vidas.
O autor ainda pondera que o emprego das qualidades também passava pelas mãos
de populares, das autoridades e dos autores de registros49, nos fazendo pensar acerca dos
atos de escrita, de tal modo que devemos considerar acerca de quem esteve entre a
pena/lápis e o papel. Ora, estes indivíduos, frutos de seus contextos, das suas leituras
sobre a realidade e dos seus filtros particulares, desempenharam consciente e
inconscientemente mecanismos de poder através da escrita50.
A tessitura das palavras não é imparcial, versa sobre a redação de algo, registrando
intenções através de estratégias e objetivos, portanto, um objeto ideológico. A escrita,
conhecimento restrito em se tratando do período colonial, se imbrica em uma malha de
poder, articulando jogos de dominação, participação, exclusão e mediando relações
culturais a partir e através do escrito51.
Entendemos a escrita como manifestação e artefato, produto e produtora de
cultura, na medida em que ela possibilita a materialização de pensamentos, intenções e
discursos. É capaz de viabilizar o contato das pessoas e as instituições de poder, sendo
compreendida enquanto uma dimensão da linguagem, em relação ao seu simbolismo e
49
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015.
50
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora PUC
Minas, 2016.
51
Ibidem.
36
materialidade. Silvia Rachi (2016) assimilou que a escrita é um ato humano, racional e
técnico, é a fixação da palavra, uma representação gráfica e visível da linguagem.
Mobiliza signos convencionais, sistemáticos e identificáveis, sendo uma produção
contextualizada, individual e/ou coletiva, por meio do qual os indivíduos registraram suas
experiências.
Estando este trabalho inserido no campo temático da História dos Sertões,
compreendemos o sertão enquanto uma categoria simbólica, forjada espacialmente e
temporalmente por agentes, discursos e práticas. É possível vermos o uso deste vocábulo
desde o século XII, mas ele foi debatido e empregado de forma mais preponderante a
partir do século XIV, se referindo a áreas localizadas dentro do território português, mas
distantes de Lisboa52.
Janaína Amado (1995) sustentou que estamos falando de uma categoria construída
de forma mais tangível e nítida durante a colonização, pois no século XV sertão é
empregado para nomear espaços vastos, que estavam situados no interior das possessões
conquistadas ou se localizavam contíguos a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam os
colonos. Isso fez com que sertão adquirisse uma acepção nova, vinculada ao ponto de
observação e localização do enunciante ao emitir o conceito.
Neste contexto, nasceram dualidades complementares, como “litoral” e “costa”,
oposta ao de sertão. Uma expressou/expressa o reverso da outra para além dos aspectos
geográficos que compõe a faixa litorânea e o interior, pois nas terras banhadas pelo mar
se denotava um espaço conhecido, que apesar de coabitarem outros povos, como índios
e negros, havia a presença do elemento branco colonizador, sua fé e cultura. Os recantos
do Novo Mundo, em oposição, eram espaços desconhecidos, muitas vezes inacessíveis,
perigosos e habitados, pela óptica colonial, por bárbaros e hereges53.
Em outra perspectiva, sertão significou para os nativos, os escravos, degradados,
miseráveis e leprosos a liberdade e possibilidade de vida frente a uma sociedade colonial
opressora. “Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem falava”54.
A partir do século XIX, vimos despontar dois sentidos de sertão presentes na
historiografia e na literatura: um se vinculou geograficamente ao semiárido, espaço do
interior, oposto ao litoral, como debatido; e o outro importou atividades econômicas e
52
AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV;
Ed. FGV, v. 8, n. 15, p. 145-152, jan./jul. 1995.
53
Ibidem.
54
AMADO, Janaína. Op. Cit., 1995, p., 150.
37
55
NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como Recorte Espacial e Como Imaginário Cultural. POLITEIA:
História e Sociedade, Vitória Conquista/BA, v. 3, n. 1, p.153-162, 2003.
56
MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão: Um “Outro” Geográfico. Terra Brasilis (Nova Série).
Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2003, p.1-8.
57
Ibidem.
58
NEVES, Erivaldo Fagundes Neves. Op. Cit., 2003, p.158.
59
SOUZA, Candice Vidal e. A Pátria Geográfica: Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. 2.ed.
Goiânia: Editora UFG, 2015.
38
Novos (2009 [1987]), de Antônio Quintino Filho (1911-?); e Totoró, Berço de Currais
Novos (2008), de Joabel Rodrigues de Souza (1937-2014).
Trabalhamos com fontes paroquiais, capazes de nutrir informações variadas
acerca dos sujeitos históricos, como seus locais de nascimento, qualidade, condição,
dentre outras nuances, como ascendência e descendência familiar, dia e causa mortis. São
elas: os assentos de batismo (1803-1809; 1814-1818; 1818-1822), de casamento (1788-
1809; 1809-1821) e de óbito (1788-1811; 1812-1838; 1838-1857) da Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, disponível para consulta online pelo site do
Family Search, onde seus registros físicos se encontram conservados na Casa Paroquial
São Joaquim, da Paróquia de Sant’Ana de Caicó/RN. Estes registros se encontram
indexados em um banco de dados no software Microsoft Access, modo pelo qual
operaremos essa documentação, construídos pelo Prof. Muirakytan Macêdo, Prof. Helder
Macedo e suas equipes de pesquisa, dos anos de 1999 em diante.
Também operamos, de forma mais pontual, alguns registros eclesiásticos
referentes a Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari, igualmente disponíveis para
consulta online pelo site do Family Search, onde seus registros se acham alocados na
Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari, na Secretaria Paroquial de Acari/RN. Os
registros são: os assentos de batismo (1868-1874) e de casamento (1835-1853; 1853-
1871).
Provenientes do meio jurídico, utilizamos cartas de alforria (1792-1814),
registradas e transcritas a partir dos livros de notas, que se encontram na Cidade Judiciária
de Caicó. Também indexadas nos bancos de dados, essa documentação pode nos fornecer
os processos de liberdade dos sujeitos até então cativos, quem eram seus senhores, suas
qualidades, dentre outras questões, como testemunhas e condições, quando houveram,
para alforria.
Utilizamos, também de caráter judicial, processos de arrolamento dos bens e
partilha de uma pessoa falecida, munindo nossos dados sobre o universo material do
sujeito, sua morada, atividades desempenhadas e demais informações, como o
conhecimento das pessoas em regime escravista, suas qualidades, e dos indivíduos que
compunham e participavam do processo inventariante, tais como os juízes, escrivães,
partidores e avaliadores. Usamos os inventários post-mortem do Fundo da Comarca de
Caicó (1737-1815), custodiados pelo Laboratório de Documentação Histórica
(LABORDOC), do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), disponível para consulta física e parcialmente
39
60
REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas: a Experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
61
GUEDES, Roberto; FRAGOSO, João (Org.). História Social em Registros Paroquiais (Sul-Sudeste
do Brasil, Séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2016; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al
(Org.). História Quantitativa e Serial no Brasil: um Balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001; GUEDES,
Roberto; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Org.). Arquivos Paroquiais e História Social na América
Lusa: Métodos e Técnicas de Pesquisa na Reinvenção de um Corpus Documental. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2014.
62
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
63
GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O Nome e o Como: Troca Desigual e Mercado Historiográfico. In: A
Micro- História e Outros Ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989. p. 169-178.
40
64
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Quando a Gente Não Espera, o Sertão Vem: Grande Sertão:
Veredas, Uma Interpretação da História do Brasil e de Outros Espaços. Artcultura, v. 11, n. 18, p.195-
205, 2009, p.198.
65
Ibidem.
42
No lugar que pode e tem potencial para abarcar e ser tudo, criando e nascendo
coisas maravilhosas, o sertão, policromático em suas gentes, em seus genes e na sua tez,
recaiu sobre uma realidade “crida e temida”. Euclides da Cunha (1984), embebido e
influenciado pelas teses da eugenia, discutidas ao longo do século XIX, se preocupando
com conceitos de “evolucionismo” e “raça”, presentes na citação acima, acreditou que os
descendentes de pessoas de diferentes etnias são prejudiciais, um retrocesso. O indo-
europeu, ponta e norte do que seria o desenvolvimento humano, com o contato cultural e
biológico com povos indígenas e africanos, em estágios evolutivos inferiores, anulariam
qualidades e potenciais do primeiro, sendo o fruto desta relação um desequilibrado e
desarmonioso traço na régua evolutiva67.
O mestiço, contemplando qualidades destas três raças diferentes, para usar o
conceito vigente na época, era um decaído, pois essas características não se justapõem ou
se somam, mas se anulam, se subtraem e se dizimam. Todavia, apesar da carga pejorativa
que o conceito de sertão carregava/carrega, desqualificando os lugares e humanidades a
ele relacionadas, o sertanejo não teria “o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos
do litoral”68, pois o isolamento promovido por sua localização nos rincões do Brasil havia
sido benéfico, evitando que eles fossem degenerados e corrompidos moralmente, como
discorreu o autor:
67
Ibidem.
68
CUNHA, Euclides da. Op. Cit., 1984, p.51.
69
CUNHA, Euclides da. Op. Cit., 1984, p.49.
44
70
OLIVEIRA, Ricardo. Euclides da Cunha, Os Sertões, e a Invenção de um Brasil Profundo. Revista
Brasileira de História, vol. 22, n. 44, São Paulo, 2002, p.524.
71
Para saber mais: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias
Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
72
Ibidem.
45
na sua dimensão temporal, mas ligada ao que se pratica, se sente, suas relações de poder
e políticas, aquilo que se localizou no interior, percebendo os confrontos, se preocupando
com a historicidade do que é/foi falado, como e quando, suas intenções e objetivos73.
O discurso é histórico e dotado de historicidade, pois ele tem capacidade de
influenciar novos acontecimentos, seja manipulando o passado, alterando percepções do
mundo real/presente, ou colocando arestas acerca dos pensamentos e possibilidades de
futuro. O caráter histórico atravessado e entranhado nos discursos opera no plano da
ideologia, pois “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”74, de tal modo
que os indivíduos só produzem unicidade nas suas relações com e a partir linguagem, na
medida em que ela parcialmente se torna una quando é possível de dizê-la. A ideologia,
nos processos de significação e direcionamento, a partir do exercício de interpretação do
sentido, produz e carrega consigo o político, frente a impossibilidade dos seres humanos
não significarem, lerem e apreenderem em condições específicas dada realidade
histórica75.
Dessa forma, todo dizer tem uma relação primordial com o não-dizer, nos levando
para errância dos sentidos, provocando equívocos, formações incompletas e
fragmentadas, do fugaz e do não palpável. Eni Orlandi (2007), preocupada com o silêncio,
apontou que essas configurações desformes e errantes da linguagem não são meros
acasos, mas funcionam como seus cernes. Ora, há modos de estar em silêncio que
significam estar no sentido, distintivamente do que se tem entendido enquanto “implícito”
ou presente nas entrelinhas, há dimensões do silêncio que produzem sentidos76.
O silêncio, presente e atravessado nas palavras, possibilitando formações e
movimentos de sentidos, é encarado como “fundante”, pois “quando dizemos que há
silêncio nas palavras, estamos dizendo que elas são atravessadas de silêncio; elas
produzem silêncio; o silêncio ‘fala’ por elas; elas silenciam”77. Nesse sentido, longe de
ser um delimitador, o silêncio permite significação e interpretação, abrange o múltiplo e
o plural, não permite que “um” seja estanque, mas cause movimentos nos campos do
simbólico e nos sujeitos, pois para que o sentido faça sentido é necessário esse recuo da
palavra.
73
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
74
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 1990, p. 36.
75
Ibidem.
76
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007.
77
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 2007, p.14.
46
O elemento que vai permear formações discursivas, imbricadas com suas formas
de silêncio, é a história, a historicidade do texto, constituída pelo seu supra e intra
contexto, dos sujeitos e suas ideologias, presente na tessitura da materialidade linguística.
Aqui, não nos interessou somente o discurso pronto, formação linguística modelada e
dada, muito menos observar a historicidade dos escritos tentando traçar uma linha
transversal no tempo e no espaço, afim de estabelecer uma continuidade, se esforçando
para evidenciar um pulsado vibrante no presente. Almejamos, desta feita, perceber a
proliferação e composição dos acontecimentos, do fenômeno aqui investigado.
Por isso, traçamos diálogos com Michel Foucault acerca do conceito de
genealogia. Contrariamente ao continuum que o termo se refere em seus outros usos –
como na constituição de árvores genealógicas familiares –, sua meta é manter o que se
passou na dispersão que lhe é própria, demarcando os desvios, acidentes, (des)encontros,
conflitos e (des)caminhos que geraram dada coisa, dado objeto. Portanto, “é descobrir
que na raiz daquilo que nós somos – não existem a verdade ou o ser, mas a exterioridade
do acidente”78.
Essa tentativa de branqueamento da história e da genealogia familiar, também foi
um fenômeno percebido, de maneira mais específica, nas narrativas acerca da história do
município de Currais Novos/RN, onde é possível vermos recorrências e semelhanças dos
discursos que abarcaram o Seridó em sua amplitude. O Poti, jornal de veiculação no Rio
Grande do Norte, em edição de 1976, dedica um texto ao Capitão-mor Galvão, cujo título
é Homens do Seridó Antigo:
78
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 22.
47
Anteriormente discutido, a família Lopes Galvão versou nos estudos e nos escritos
de pessoas que se dedicaram acerca da história e genealogia do Seridó, recorrentemente
ligados à fundação da cidade de Currais Novos/RN. Esse núcleo familiar teria chegado e
se assentado nas terras do Totoró, por volta do século XVIII, povoaram este chão com
seus descendentes, presentes até os dias atuais na região e município referido.
79
ROSA, Jayme Santa. Homens do Seridó Antigo: Capitão-Mór Galvão. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=031151_03&pesq=Cipriano%20Lopes%20Galv
%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pagfis=6656>. Acesso em: 24 de set. 2021, grifo nosso.
48
80
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
81
TAVEIRA, Marcelo da Silva (Coord.). Inventário Turístico de Currais Novos - RN. Currais
Novos/RN: UFRN, 2019
49
Neste breve resumo sobre a história da cidade, que se formara a partir do Totoró,
temos a demarcação de uma ocupação indígena nestas terras antes da chegada da família
Lopes Galvão. No entanto, esses povos são mencionados em uma única frase,
desaparecendo ao longo do texto, silenciados quando a narrativa se detém aos efeitos da
colonização, suas outras gentes e cultura83.
Por volta de 1808, em decorrência da prosperidade da atividade pastorícia, é que
se mencionou sobre outras “famílias colonizadoras” que haviam se fixado nesta terra,
provavelmente herdeiras e detentoras de princípios conservadores e valores lusos aos
moldes do que já foi dito sobre os Lopes Galvão. Saindo em procissão do Totoró em 26
de julho do mesmo ano, o capitão-mor Galvão e sua família, “criados e amigos”, seguiram
até a capela erigida sob voto de Santa Ana, na ponta da Serra do Catunda, meia légua de
terra doada para o patrimônio da santa pelo segundo Cipriano Lopes Galvão, atendendo
aos pedidos do seu pai. Soubemos, levando em consideração o contexto histórico e o
inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes Galvão, que estes “criados”
82
TAVEIRA, Marcelo da Silva (Coord.). Op. Cit., 2019, p.15.
83
O grupo indígena mencionado acima, nomeado enquanto Cariri, segundo Helder Macedo (2011), não
habitou o sertão do Seridó. O designativo de tapuia, pejorativamente dado aos nativos que habitavam os
sertões, não se constituíam enquanto uma população amorfa ou genérica, mas por uma diversidade étnica
e cultural dos indígenas espacialmente localizados no sertão: Kariri, Kaririwasy, Cereryjouw e os Tarairiu.
Chefiados pelo principal Janduí, os Tarairiu se situavam na Capitania do Rio Grande, também nas plagas
do Seridó. Para saber mais: MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio
Grande do Norte: História e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
50
seriam, provavelmente, os escravos que estiveram sob sua posse e residiam nesta
espacialidade84.
Não nomear estes “criados” enquanto escravos, é uma das formas de
silenciamento que encontramos através dos eufemismos, discursos tornados visíveis e
dizíveis, mas incapazes de abranger e evidenciar o caráter desconstrutivista dos métodos
de silêncio, já que eles não têm marcas formais, mas se apresentam através de pistas, de
traços e de outras coisas e palavras que não abarcam sua significação85.
A linguagem é a categorização do silêncio, produz e enrijece os sentidos,
representando uma disciplinarização da palavra, do dizível e do audível. Serve para
administração, gestão e delimitação da significação, sendo “à unificação do sentido e à
unicidade do sujeito”86. Desta forma, considerando o que se reverberou/reverbera acerca
do sertão do Seridó e de algumas narrativas que tratam sobre a história do município de
Currais Novos/RN, como acima exemplificadas, acreditamos que os autores que trataram
e se dedicaram em tecer e contar a história deste local sofreram influência e reforçaram
tais discursos, numa tentativa de não apenas representar o real, mas de instituí-lo através
deles e dos seus escritos.
84
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem. Caixa 02 (1814-1832), Inventário post-mortem de Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS. Currais Novos/RN.
85
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007.
86
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 2007, p.26.
87
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
88
Não é do nosso interesse nos debruçarmos acerca da vida e obra dos autores estudados para além dos
eixos que delimitamos. Nossas preocupações repousam, como já explicitado, no silenciamento de
indivíduos não-brancos em escritos acerca do município de Currais Novos/RN, no período colonial. Não
obstante, para saber mais acerca do autor aludido, é possível visitar a Fundação Cultural José Bezerra
51
Gomes, situada em Currais Novos/RN, ou conhecer a obra: SOUSA, Joabel Rodrigues de. Centenário de
José Bezerra Gomes. Currais Novos/RN, 2011.
89
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 07.
90
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 08.
91
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 10.
52
92
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 10.
93
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 27.
94
Ibidem.
95
Ibidem.
53
96
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41.
97
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41.
98
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 42.
99
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41-42.
100
DANTAS, Fabiana Alves. A Produção de Uma História Local: Concepções de História e Memória
na Obra de Celestino Alves. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). João Pessoa, 2021.
101
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985, p.11.
54
em relação aos povos autóctones que estavam situados nesta espacialidade antes da
chegada dos colonos.
Celestino Alves (1985) afirmou que o coronel Cipriano Lopes Galvão foi o
“primeiro morador civilizado” da atual cidade de Currais Novos/RN, defendendo que a
ocupação do Totoró era anterior ao ano de 1720, quando do falecimento do seu pai, já
que o mesmo não herdara terras, apenas punhos de prata e uma casaca de baeta preta. O
requerimento da sesmaria em 1754 não se refere, necessariamente, ao ano de ocupação
das terras, sendo apenas para formalizar e legalizar onde já se plantava e criava gado. O
autor também acreditava que Cipriano Lopes Galvão já era fazendeiro no Totoró em
1753, quando partiu para Recife, Capitania de Pernambuco, e se casou com Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos.
Na Fazenda Totoró, segundo o escritor, se criava muito gado, sendo de boa
pastagem os arredores do Rio São Bento, no qual grande parte do seu rebanho se
deslocava para pastar, dificultando o pastoril dos seus vaqueiros. Decidiu construir uma
casa e currais suficientes para lidar e cuidar do gado que se situava na várzea do Rio São
Bento. A Fazenda Boa Vista, erguida em um alto, possibilitando uma visão privilegiada,
teve como primeiro morador “um escravo livre chamado Mulatinho [...], que descende a
família Mulatinho, que ainda hoje existe em Currais Novos e conservam o mesmo
nome”102.
Dando prosseguimento, Celestino Alves (1985) dedicou um capítulo acerca de
Currais Novos e a Religião Católica, onde tivemos a família Lopes Galvão como
incentivadora, implementadora, propagadora e transmutada com a história do catolicismo
em Currais Novos/RN, que segundo o autor, tinha iniciado em 24 de fevereiro de 1808,
quando o bispo de Olinda Dom Frei José Maria de Araújo, na Capitania de Pernambuco,
autorizou construir uma capela por invocação de Santa Ana, na Fazenda dos Currais
Novos.
No dia 26 de julho do mesmo ano, a capela foi inaugurada sob o rogo de Santa
Ana, onde partiu uma procissão da Fazenda Totoró “acompanhada por toda família do
Capitão-mor, filhos, noras e genros, bem como todos os escravos e moradores da região
[...]”103. O escritor, após esse momento, narrou biograficamente sobre a vida dos
religiosos que estiveram frente ao templo e administração paroquial, são eles: o Vigário
Manoel Joaquim da Silva Chacom; Padre José Antônio da Silva Pinto, “Padre Pinto”;
102
ALVES, Celestino. Op. Cit., 1985, p.13.
103
ALVES, Celestino. Op. Cit. 1985, p.35.
55
Padre Luiz Borges de Sales; Padre Francisco Coelho de Albuquerque; Padre Antônio
Brilhante de Alencar; Padre Ulisses Maranhão; Padre Benedito Basílio Alves; e
Monsenhor Paulo Herôncio de Melo.
Depois de tomar notas sobre a história administrativa, construindo uma linha
temporal desde o status de povoação até a criação do município, passando pelos
administradores, coronéis, intendentes e prefeitos, na quarta seção do livro, Celestino
Alves (1985) se dedicou e teceu acerca das famílias de Currais Novos/RN, estando dentre
os 34 núcleos pesquisados, a Família Luciano, composta por pretos, descendentes de
escravos, “que por suas qualidades foram livres há cerca de 150 anos”104.
A família Luciano descende do casal Luciano da Silva e Ana Francisca, sendo
frutos desta relação: João Luciano, que se casou com Maria Macário; Pedro Luciano,
casado que foi com Luísa da Conceição; Antônio Luciano, que contraiu matrimônio com
Josefa; Joaquina, que foi esposa de João Rodrigues, também descendente de escravo;
Sebastiana Luciano, legítima que foi de Manoel Garcia dos Anjos; e Lusia Luciano, que
contraiu núpcias com Manoel Paulino Nascimento105.
Retoques da História de Currais Novos, nas palavras de Fabiana Dantas, é um
“olhar nostálgico para o passado, com ele se voltando principalmente para as elites sobre
as quais se discorre em grande parte do livro”106. Apesar das menções sobre “pessoas
comuns” na obra, elas apareceram em caráter de curiosidades, dignos de nota pelo seu
caráter excepcional, uma vez que o livro remete “especialmente aos grandes homens das
elites políticas locais e incorporando também personagens notáveis da esfera
religiosa”107.
Dando prosseguimento, Antônio Quintino Filho (1911-?) é mais um autor que se
dedicou em perscrutar e narrar a história de Currais Novos/RN. Foi escrivão da Coletoria
(1933), tipógrafo e proprietário do Tipografia Galvanópolis (1939-1969), técnico em
contabilidade (1960-1962), formado em Letras – Patos/PB (1973-1976), foi professor
(1963-1981) e autor de textos em prosa, poemas e pesquisas de cunho histórico e religioso
104
ALVES, Celestino. Op. Cit. 1985, p.210.
105
Ibidem.
106
DANTAS, Fabiana Alves. A Produção de Uma História Local: Concepções de História e Memória na
Obra de Celestino Alves. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). João Pessoa, 2021, p.35.
107
DANTAS, Fabiana Alves. Op. Cit., 2021, p.46.
56
108
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
109
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.18.
110
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.18.
111
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.19.
112
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.35.
57
sem esquecer pormenores nem pessoas”113. Assim, após nomeado seus escravos, o
capitão-mor Galvão se refere “às mulatas Sebastiana e Aniceta, e à preta velha Mariana,
às quais já concedera título de alforria, para quietação da sua consciência”114.
Pediu aos seus testamenteiros que concedessem carta de liberdade ao escravo
Lázaro, pois havia prometido. O mulatinho João, dado ao seu filho Joaquim, recomendou
que o educasse com base no cristianismo e depois o alforriasse. Ainda “deixou para a
mulatinha Francisca, casada com José Fideles, 250 braças de terra, a partir do Riacho
Maracajá”115.
Apesar destas menções, um importante capítulo presente na obra de Antônio
Quintino Filho (2009 [1987]), se considerarmos seu contexto de produção e os seus pares
aqui tratados, foi A Escravidão em Currais Novos. O autor, apesar de defender que o
processo de fixação e povoamento do Totoró foi protagonizado pela família Lopes
Galvão, menciona que os primeiros desbravamentos, os trabalhos de penetração e
conhecimento destas terras, iniciados por volta de 1720, contavam com os primeiros
escravos que pisaram no que hoje compreendemos enquanto o município de Currais
Novos/RN116.
O autor observou e compreendeu que os indivíduos em regime de escravidão não
se configuraram apenas como mão de obra, força de trabalho forçada e compulsiva aos
serviços dos seus senhores, pois após o processo de fixação nas terras do Totoró a
“escravaria definiu-se, constituindo-se num verdadeiro organismo social”117. Mencionou
que faltavam registros históricos sobre a escravidão local, discorrendo sobre os cativos
presentes no inventário post-mortem de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos,
particularizando arranjos familiares nele presentes e citando, de modo avulso e diverso,
escravos mencionados em fontes soltas.
Apesar do seu caráter inovador, Quintino Filho (2009 [1987]) afirmou que a
escravidão ocorrida no Seridó, mais especificamente em Currais Novos/RN, se deu em
um “clima de paz e de relativa compreensão humana, o que em parte se deve ao espírito
de religiosidade de senhores e de escravos”118, sendo os casos de crueldade esporádicos.
Tal acepção tentou diminuir e relativizar o regime escravocrata, desconsiderando seus
113
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
114
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
115
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
116
Ibidem.
117
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.53.
118
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.53.
58
danos e consequências para pessoas sob regime escravista e os efeitos sociais decorridos
do trabalho compulsório.
Por fim, temos o autor Joabel Rodrigues de Souza, que cursou Desenho e Pintura
na Escola de Belas Artes – Belo Horizonte/MG (1995), fez curso pedagógico no Instituto
Vivaldo Pereira – Currais Novos/RN (1968), e Estudos Sociais (1984), História (1988) e
Letras (2007) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Currais
Novos/RN. Também atuou no serviço público como diretor escolar, superintendente de
ensino, secretário de educação, de obras e planejamento, diretor de serviços urbanos,
chefe de gabinete, diretor de patrimônio e arquivo e presidente da Fundação Cultural José
Bezerra Gomes (1994-1996)119.
Totoró, Berço de Currais Novos, se divide em três partes: I – A Terra, II – O
Tempo e III – Os Homens. Essa divisão, provavelmente, teve como inspiração Os Sertões,
de Euclides da Cunha (1984), tendo em vista que na primeira parte da obra, também
intitulada A Terra, os autores deram forma aos seus espaços, categorizados e nomeados
enquanto sertão, descrevendo características no tocante ao relevo, fauna, flora e o
clima120.
Na segunda parte, nomeada por Euclides da Cunha (1984) como O Homem, vimos
uma descrição sobre o sertanejo e seus costumes, fruto do seu meio, da mestiçagem e do
momento histórico que vivia. Para Joabel Rodrigues de Souza (2008) não será diferente,
tendo em vista suas narrativas acerca do desbravamento e povoamento do Totoró, levando
em consideração a descendência lusa da família Lopes Galvão, seus costumes baseados
na “civilidade” e “fé cristã”, germinando o solo para o que posteriormente ficaria
conhecido enquanto município de Currais Novos/RN.
A Luta, terceira parte da obra de Euclides da Cunha (1984), dedicada em narrar os
episódios da Guerra de Canudos, se distancia do texto de Joabel Rodrigues de Souza
(2008), pois havendo nomeado sua terceira parte como a segunda do autor de Os Sertões,
o escritor de Totoró, Berço de Currais Novos, elenca e tece biograficamente sobre pessoas
que ajudaram a constituir e são importantes para o município originário do Totoró.
Apesar de ser o único autor com formação acadêmica em História dentre os
intelectuais que trabalhamos, Joabel Rodrigues de Souza (2008) produziu uma história
conservadora, reforçando referenciais de mundo hegemônicos, afirmando que os povos
indígenas só estiveram presentes no sertão da Capitania do Rio Grande até a chegada do
119
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
120
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008.
59
121
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.79.
122
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.77.
123
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.199.
60
Frei Damião, não reconhecidos pelo clero enquanto santos. Além disso, ainda manteriam
hábitos incestuosos, se relacionando entre si.
Joelma Tito da Silva, estudando essa comunidade rural negra, afirmou que a
história daquele local e das pessoas que ali residem, pode ser narrada e contada de três
formas diferentes: “no primeiro, desenrola-se a história de um ex-escravo de origem
pernambucana que se apossa das terras do Riacho dos Angicos e gera família extensa. No
segundo, a história é semelhante, entretanto, não há qualquer referência direta ou indireta
à escravidão124”. Aqui, escreveu à autora, Trajano teria se deslocado da Província de
Pernambuco para o interior do Rio Grande do Norte, no contexto de uma “grande guerra”,
que provavelmente seria a do Paraguai (1864-1870).
Chegando no sertão do Seridó, ele teria trabalhado por algum tempo para um
senhor, de nome Pedro Gomes de Melo. Após este momento, Trajano haveria se
deslocado para as terras do Riacho dos Angicos e ali se fixado. A última versão “alcança
os tempos e o corpo de D. Pedro II, no diálogo entre o Imperador e um certo negro faminto
que pede e recebe a possa terra”125.
Lançando uma nova perspectiva sobre os Negros do Riacho, Joelma Tito da Silva
esteve preocupada em ouvir os relatos daquelas pessoas sobre suas histórias, percebendo
como havia se dado o processo de chegada naquele local, constituição de famílias e os
modos como elas se organizavam. Também se preocupou acerca das práticas da feitura
de cerâmicas, da religiosidade expressa na sacralização de Damião e o culto a São
Sebastião, numa tentativa de perceber como essas pessoas falam destes elementos para
tratarem sobre suas histórias, memórias e identidades126.
124
SILVA, Joelma Tito da. O Riacho e as Eras: Memórias, Identidades e Território em Uma Comunidade
Rural Negra no Seridó Potiguar. 2009. 206 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do
Ceará (UFC). Fortaleza, 2009, p.33.
125
SILVA, Joelma Tito da. Op. Cit., 2009, p.34.
126
Ibidem.
61
127
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
128
Ibidem.
129
COSTA, Bruno Balbino Aires da. Introdução. In. A Casa da Memória Norte-Rio Grandense: O
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a Construção do Lugar do Rio Grande do Norte
na Memória Nacional (1902-1927). 2017. 587f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017, p.14-36.
62
de Souza (2009) como sujeitos de envergadura social, levando em conta seus cenário de
atuação, postos e cargos ocupados durante suas vidas. Ao considerarmos essa relação de
autor e texto, percebemos que sua função é caracterizar a existência, circulação e operação
de certos discursos, ligando os autores aos sistemas legais e institucionais que delimitam,
determinam e organizam o domínio do que foi/é dito. De toda forma, estes sujeitos
colaram suas imagens no imaginário de Currais Novos/RN, se tornaram sacrários
humanos e referências no tocante a história deste município, se revestindo de um estatuto
de autoridade enquanto escrevem e (de)marcam o eu, nesta relação de escrita de si e do
que se passou130.
O modo pelo qual eles contaram suas e, consequentemente, a história dos outros,
como eles reconstituíram este fio dos primeiros passos e destes troncos genealógicos
frondosos que venceram o tempo, faz parte do modo pelo qual adquirimos, reunimos e
modificamos nossas experiências. Quando narrativas como essas são reforçadas e dotadas
de legitimidade, a aquisição, modificação e a experiência se desdobram no tempo,
surgindo novas histórias e (re)interpretações sobre um passado que se pretende comum e
homogêneo, frente aos esforços de silenciamentos de outras gentes e outros povos131.
Ao comporem uma escrita para Currais Novos/RN, estes autores subjetivaram e
significaram o vivido, suas experiências transpassaram os papéis e os contornos espaciais
desta localidade, ganhando forma e atribuição de sentido nas pessoas e nas práticas
culturais. Assim, falamos de uma produção imagética e textual das relações de poder e
das marcas do espaço narrativo, pois na medida que estes textos se formaram enquanto
fabricadores e emissores de signos, deram forma e imagem para o espaço, “os autores, ao
mesmo tempo em que inventam [...], iam se inventando ao mesmo tempo como
sujeitos”132 do sertão e de Currais Novos/RN.
Quando estes eruditos mencionam a presença autóctone antes da chegada dos
colonizadores, falando sobre o passado indígena enquanto passado do projeto colonial,
de um obstáculo e entrave superado, eles utilizaram a linguagem para organizar e
domesticar a significação, silenciando a presença e as formas de resistência destes povos
após o contato e os conflitos com o elemento colonizador. Portanto, falar do silêncio se
torna uma dificuldade maior, já que ele se configura enquanto absoluto, contínuo e
130
MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. Ser(Tão) Seridó em Suas Cartografias Espaciais. 2007. 119f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
131
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto:
PUC-Rio, 2014, p. 19-89.
132
MEDEIROS NETA. Olívia Morais de. Op. Cit., 2007, p.21.
63
133
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007, p.48.
134
Ibidem.
135
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a História Entre Incertezas e Inquietude. Tradução de Patrícia
Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002; CHARTIER, Roger A História Cultural:
Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1990.
136
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
137
Ibidem.
64
ser uma categoria da semelhança, tal origem permite ordenar, para coloca-las a parte,
todas as marcas diferentes”138.
Estes escritos são lacunares e amorfos, pois se encontra, na maioria dos lugares,
histórias, corpos e vidas de sujeitos que não foram considerados desbravadores e
povoadores do sertão do Totoró. Em meio ao quase impossível exercício de silenciar,
ignorar e não ver essas outras gentes, estes intelectuais tentaram moldar uma identidade
que desde o princípio o plural habita, que vozes inumeráveis disputam, onde sistemas se
entrecruzam e se dominam, no qual o exercício de síntese por si só é frustrante139.
A experiência colonial ainda se faz presente no cotidiano que consideramos
ordinário, nas nossas relações, nos aparatos administrativos e burocráticos. Este efeito
ideológico, que atravessa nossos modos de sermos e estarmos no mundo, não surgiu do
nada, sua materialidade específica é o discurso, onde o sujeito colonizado não pode
ocupar o lugar do colonizador. “Mais do que isso, é a partir das posições do colonizador
que são projetas as posições possíveis (e impossíveis) do colonizado”140.
A colonialidade elegeu histórias e corpos, segregou vidas e faces, silenciando
trajetórias e promovendo o apagamento dos sentidos de outras concepções de mundo.
Mas é através deste silêncio que somos capazes de ouvir o que se quer mudo, de
escutarmos para além do que é vocalizado, “em uma fala (a do colonizador) já vem o que
o outro não pode falar [...]. Para isso é preciso sempre se observar: o que o colonizador
não está dizendo quando está dizendo ‘x’?141”. Assim, podemos compreender os
indivíduos não-brancos enquanto sujeitos históricos do processo de desbravamento e
povoamento do Totoró, estando desdou início pluralizando cores e costumes, sendo
alicerces para constituição de Currais Novos/RN, numa tentativa de confrontarmos e
descolonizarmos o saber.
138
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 21.
139
Ibidem.
140
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990, p.52.
141
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 1990, p.52.
65
O autor declarou, que antes destes homens requerentes e donos destas sesmarias,
faltavam evidências acerca de pessoas que estivessem diretamente ligadas à terra, lidando
com o gado ou com o cultivo de lavouras, que houvessem se estabelecido e contribuído
de forma mais preponderante no Totoró. Em Cronologia Seridoense, obra de Olavo de
Medeiros Filho146, reunindo requerimentos e concessões de sesmarias do sertão do
Seridó, dos atuais Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, selecionamos aquelas que
tocam, a partir dos apontamentos do autor, no que hoje corresponde ao atual município
de Currais Novos/RN:
146
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque/Fundação Ving-Um Rosado, 2002.
67
Entre serras
chamadas de
Piracinunga,
Capitão Antônio dos
Quinquê,
1729 Santos Guimarães e 257 Currais Novos
Maxinaré e
outros
outra ao norte,
cujo nome não
se sabe precisar
Fonte: Elaboração feita a partir de MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró:
Fundação Guimarães Duque/Fundação Ving-Um Rosado, 2002.
Foi no ano de 1737, que o primeiro Cipriano Lopes Galvão requereu duas datas
de sesmarias que corresponderiam ao que hoje compreendemos enquanto o município de
Currais Novos/RN:
Mas foi somente no ano de 1755, segundo relatos orais, apontados por Medeiros
Filho, que “o primeiro Cipriano Lopes Galvão, casado com d. Adriana de Holanda e
Vasconcelos, transferiu-se de Igaraçu/PE para a região de Currais Novos/RN”147.
Além destas requisições e concessões anteriores ao pedido do primeiro Cipriano
Lopes Galvão, considerando sua chegada somente na segunda metade do século XVIII,
temos outros moradores, no Totoró, que não descendiam diretamente de Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos e seu primeiro marido148, como foi possível percebermos
através do inventário post-mortem de José Gomes Nobre (1764), casado com Dona Tereza
147
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. Cit., 2002, p.55.
148
Foi possível percebermos outras pessoas que não descendiam diretamente do casal mencionado, mas
eram cônjuges dos descendentes dos Lopes Galvão, como José de Freitas Leitão, casado com Francisca
Xavier de Moura (1789) e o coronel Antônio Garcia de Sá Barroso (1793), casado com Ana Lins de
Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixas 01 (1788-1814). Inventário de Francisca
Xavier de Moura (1789) e o inventário do coronel Antônio Garcia de Sá Barroso (1793). FMDTS, Currais
Novos, RN).
68
149
LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). Fundo da Comarca de Caicó
(FCC), 1º Cartório Judiciário (1ºCJ), Inventário post-mortem, Caixa 321 (1737-1768). Inventário de José
Gomes Nobre (1764). LABORDOC, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), Campus de Caicó/RN.
150
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixas 01 (1788-1814). Inventário de Manoel Rodrigues da
Cruz (1799). FMDTS, Currais Novos/RN.
151
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987], p.19.
152
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
69
condições, responsáveis por pluralizar fenótipos, culturas e modos de ser e estar naquela
dada realidade colonial. Estes indivíduos foram igualmente responsáveis pelo processo
de territorialização daquele chão, fruto de ações conduzidas pelos agentes históricos em
qualquer nível, ao se apropriarem e tomarem o espaço para si, instituindo redes e fluxos
socias, produzindo o espaço em território153.
Para Claude Raffestin, espaço e território não são termos equivalentes, pois o
espaço, por si só, não apresenta valor de troca, não tem uso ou utilidade, de tal maneira
que podemos considerá-lo e tomá-lo enquanto uma “realidade dada”, uma matéria-prima,
preexistente a qualquer ação, “a qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais
será o objeto a partir do momento em que um ator manifeste a intenção de se apoderar”154.
O território, por sua vez, se forma por e a partir do espaço, são ações e movimentos
conduzidos por um indivíduo ou pelos grupos socais, relações que se envolvem e se
inscrevem nos campos de poder. É um local onde se projetou ou almejou um trabalho,
uma ação, seja de forma mais incisiva ou apenas abstrata, de tal maneira que o território
é, em outras palavras, fruto da ação antrópica155. Essa territorialidade reflete a
complexidade do vivido, é decorrente dos seus processos e colhe os produtos desta
relação, gerando tessituras e redes em todas as escalas espaciais e sociais, “é a ‘face
vivida’ da ‘face agida’ do poder”156.
A energia e informação projetada no território, atende necessidades de um
indivíduo ou de um agrupamento humano, é o local dotado pela historicidade dos sujeitos
e de suas apropriações, seja na produção dos bens de consumo e subsistência, dos serviços
prestados para comunidade, dos trabalhos, das mediações e das relações que se dão entre
pessoas no território, pois é “lógico afirmar que não é a geografia que faz a história, mas,
ao contrário, é a história que faz a geografia revelando, através do tempo, as
potencialidades de um rio, de uma planície ou de uma montanha”157.
Nesta dinâmica, onde os territórios formam e constituem o mundo material
percebido, realidade palpável e tangível geográfica, ele é oferecido para imaginação, no
qual serão gestadas imagens e representações que podem ser manifestadas e mobilizadas
153
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
154
RAFFESTIN, Claude. Op. Cit., 1993, p.144.
155
Ibidem.
156
RAFFESTIN, Claude. Op. Cit., 1993, p.162.
157
RAFFESTIN, Claude. A Produção das Estruturas Territoriais e sua Representação. In: SAQUET,
Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério. Territórios e Territorialidades: Teorias, Processos e
Conflitos. São Paulo: UNESP, 2008, p.26-27.
70
acerca daquela localidade158. Essa etapa pode ser experienciada pelos indivíduos
localizados naquele território, a partir dos seus sonhos, desejos, ambições e afetividades
para aquele lugar; ou pode ser mobilizada por terceiros, olhos estrangeiros que observam,
inferem e significam dado local a partir dos seus referenciais de mundo, dos seus
interesses e objetivos.
Essa dinamicidade e historicidade do processo de territorialização, expõe
processos de poder atravessados neste fenômeno, tensionando e produzindo
territorialidades. É resultado da capacidade dos indivíduos de agirem em grupo, pois este
é o elemento que define e atravessa relações humanas, e destes com o seu entorno; não é
propriedade de um ou de outros, mas do grupo, das articulações deles em conjunto,
enquanto assim existirem. Dessa forma, Marcelo Lopes de Souza encarou o território
enquanto relações sociais e de poder projetadas e dadas no espaço, em constante formação
e dissolução, sendo mais instáveis do que estáveis, uma vez que elas podem ser vistas
numa escala temporal de séculos ou até mesmo dias, acontecendo no mesmo instante de
formas diferentes para dadas pessoas e grupos humanos159.
Estes territórios flexíveis, são frutos de continuidades e descontinuidades
decorrentes das relações de poder, das experiências do vivido, de como os grupos
humanos estão organizados, distribuídos e se relacionam entre si, pois “não apenas o que
existe, quase sempre, é uma superposição de diversos territórios, com formas variadas e
limites não-coincidentes, como, ainda por cima, podem existir contradições entre as
diversas territorialidades”160.
Defender ou conquistar estes territórios, interessa pelo acesso aos recursos e
riquezas, captação de posições estratégicas e/ou acesso e manutenção de melhores modos
e condições de vida, a partir do controle sobre símbolos materiais e identidades. É o
substrato espacial e suas formas são os objetos visíveis e tangíveis, com seu apreço
simbólico e suas representações161.
O território, podendo ser compreendido enquanto um “campo de força”, é uma
dimensão do espaço social, que depende, em várias partes e de diversas maneiras, da
158
Ibidem.
159
SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Território: Sobre Espaço e Poder, Autonomia e Desenvolvimento.
In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA, Paulo César da; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e
Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.77-116.
160
SOUZA, Marcelo José Lopes de. Op. Cit., 2001, p.94.
161
SOUZA, Marcelo Lopes. “Território” da Divergência (e da Confusão): em Torno das Imprecisas
Fronteiras de Um Conceito Fundamental. In: SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério.
Territórios e Territorialidades: Teorias, Processos e Conflitos. São Paulo: UNESP, 2008, p.57-72.
71
importância material daquele lugar. “O poder é uma relação social (ou, antes, uma
dimensão das relações sociais), e o território é a expressão espacial disso. A existência do
território é impossível e inconcebível sem o substrato espacial material, da mesma
maneira que não se exerce o poder sem contato com e referência à materialidade em
geral”162.
Considerando o recorte espaço-temporal deste trabalho, situamos e encaramos o
território face ao fenômeno da ocidentalização, debatido por Helder Macedo, no qual o
processo de conquista e colonização empreendido pelas forças mercantilistas da Europa
Ocidental, acarretou na conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo.
Este evento, iniciado no século XV, produziu misturas entre os sujeitos, seus imaginários
e suas formas de vida, levando em consideração que nas terras situadas abaixo da linha
do Equador, aconteceu o contato e conhecimento de pessoas das quatro partes do mundo:
América, Europa, África e Ásia163.
Dessa maneira, frente ao intenso fluxo de circulação planetária de pessoas, a
ocidentalização contribuiu para construção e formação dos territórios coloniais, das
relações entre pessoas de diversas partes do planeta, que tiveram como motivador, no
caso específico de nosso espaço de investigação, a criação de gado no sertão na Capitania
do Rio Grande164. A discussão sobre território e territorialização é adensada, quando
ponderamos e investigamos um acontecimento humano localizado numa área designada
e nomeada enquanto sertão, intimamente atrelada ao imaginário de conquista territorial,
de mudança e transformação, de um projeto povoador, civilizador e modernizador165.
Distanciando noções e interpretações europeias, inserindo outros agentes não
mencionados neste processo de territorialização e conformação do território, pessoas não-
brancas também desempenharam uma nova forma de domínio e experiência territorial no
Totoró, localizado na Ribeira do Acauã. Este processo foi responsável por abrigar, neste
dado lugar e nos seus arredores, pessoas de diferentes qualidades e condições, como é
possível percebermos na tabela abaixo:
162
SOUZA, Marcelo Lopes. Op. Cit., 2008, p.66.
163
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
164
Ibidem.
165
MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão: Um “Outro” Geográfico. Terra Brasilis (Nova Série).
Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2003, p.1-8.
72
166
Utilizamos os inventários post-mortem, para o levantamento do léxico das qualidades dos cativos do
Totoró e suas adjacências, entre os séculos XVIII e XIX, pois nesta fonte não existe abreviaturas acerca do
qualificativo do indivíduo, sendo possível verificarmos o designativo de maneira extensa, o que permite
uma maior proximidade e segurança de análise para um fenômeno complexo como o das mestiçagens.
167
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.217.
168
Ibidem.
169
RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da Cor: Mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750. Varia
História, v. 28, p. 699-723, 2012., p.722.
73
mulatos, afirmou que essas pessoas eram desprovidas de nobreza, fruto da relação
perniciosa entre pessoas livres e cativas, do sangue livre e outro escravizado, responsável
pela “proliferação de sujeitos ‘inclinados a maldades, faltos de fé, contumazes, rebeldes,
dados a vícios, incorrigíveis; razão porque são justamente excluídos dos ofícios
públicos”170.
Os “crioulos”, escreveu Eduardo Paiva, também foi uma categoria utilizada pelas
Coroas Portuguesa e Espanhola desde o século XVI. O autor, dialogando com o Inca
Garcilaso de la Vega, afirmou que este vocábulo teve origem em África, citando que são
“a los hijos de espanõl y de española nascidos allá [Peru do Quinhentos] dicen criollo o
criolla, por decir que son nacidos en Indias. Es nombre que lo inventaron los negros – y
así lo muestra la obra. Quiere decir, entre ellos, ‘negro nacido en Indias’”171. Essa
categorização foi criada para “diferenciar los que van de acá [Espanha], nacidos em
Guinea, de los que nacen allá. Porque se tienen por más honrados y de más calidad por
haber nacido en la pátria, que sus hijos porque nascieran en la ajena. Y los padres se
ofenden si les llaman criollos”172.
Na América Portuguesa, por sua vez, “crioulo” foi usado para qualificar o
descendente de mãe africana, o escravo que não nascera em África; sendo possível
também observar o emprego deste termo em filhos de mães “crioulas”173. Compondo
26,03% das pessoas sob regime de escravidão no Totoró, o “crioulo” nascera escravo,
não conheceu nenhuma realidade anterior ao cativeiro, sendo seu processo de vida e
socialização construído sob este estigma e limites. Carlos Engemann chamou atenção que
essas pessoas não passaram pela violência da captura e travessia do Atlântico como
provavelmente seus progenitores, sendo suas memórias de África dadas “por meio de
filtros estabelecidos por aqueles que experimentaram ambas as vicissitudes: a expatriação
e o cativeiro. Ou seja, a África que conhecem é aquela que os africanos o deram a
conhecer”174.
Em Na Cor da Pele, O Negro (2018), Gian Carlo de Melo Silva, debruçado nas
anotações dominicais de Tollenare, um francês que caminhou por Recife e seus arredores,
170
RAMINELLI, Ronald. Op. Cit., 2012, p.721.
171
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.202.
172
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.202.
173
Ibidem.
174
ENGEMANN, Carlos. Gerações de Cativos: Escravos Africanos e Crioulos no Sudeste Brasileiro do
Século XIX. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França (Org.). Dinâmicas de Mestiçagens no
Mundo Moderno: Sociedade, Culturas e Trabalho. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2016, p.74.
74
175
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió/AL: EDUFAL, 2018.
176
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.60.
177
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
178
AMANTINO, Marcia. Cabras. In: PAIVA, Eduardo França; CHAVES, Manuel F. Fernández Chaves;
GARCÍA, Rafael M. Pérez (Orgs.). De que Estamos Falando? Antigos Conceitos e Modernos
Anacronismos – Escravidão e Mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.83-97.
75
179
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
180
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
181
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
182
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. Cabras, Caboclos, Negros e Mulatos: a Família Escrava no
Cariri Cearense (1850-1884). Curitiba: CRV, 2018
183
Ibidem.
184
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. Op. Cit., 2018, p.46.
76
185
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. O Cabra do Cariri Cearense: a Invenção de Um Conceito
Oitocentista. 2015. 354 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza,
2015.
186
IRFFI, Ana Sara ribeiro Parente Cortez. Op. Cit., 2015, p.17.
187
Ibidem.
188
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
77
desde o início, ter incentivado o uso dessa categoria, que, de resto, não apenas coloriu
aquele universo, mas serviu de marcador social de distinção, de vivência, de convivência
e de mobilidade”189.
Por conseguinte, os escravos de África que foram qualificados nos inventários
post-mortem como “Gentio de Angola”, representavam 9,25% do escopo social cativo do
Totoró. O designativo de “gentio”, utilizado largamente entre os séculos XVI e XIX pelos
agentes portugueses e espanhóis, foi empregado, no início, para os índios do Novo
Mundo, uma vez que o termo provém do latim e foi indicativo de paganismo, se opondo
aos cristãos190.
Quando pessoas de África aportaram nas Américas, o qualificativo de “gentio”
também foi empregado para suas classificações e distinções sociais, se valendo das
associações feitas aos bárbaros e selvagens. Muitas vezes, essas pessoas nomeadas como
“Gentio de Angola” ou “Gentio de Mina” – o segundo, que representou 1,03% dos
escravos de África situados nas terras do Totoró –, foram usados como sinônimo de
“cativo” provindo do outro lado do Atlântico191.
Bruna Marina Portela, tentando compreender o processo de transição da mão de
obra indígena para o trabalho de africanos e afrodescendentes na Capitania de São Paulo,
entre os anos de 1697 a 1780, escreveu que durante os séculos XVI e XVII, a região da
Costa da Mina, na África Ocidental, foi responsável pelo maior fornecimento e
abastecimento de cativos para América Portuguesa, desembarcando e comercializando
estes indivíduos, em sua maioria, nos portos de Bahia e Pernambuco192.
Um século depois, este provimento havia mudado seu eixo e se localizava nos
portos da África Centro-Ocidental, em Angola, se estabelecendo “como o grande
fornecedor de cativos a partir da década de 1730 e manteve-se no posto até o fim do
tráfico, em meados do século XIX”193. O maior receptor destes escravos foi o Rio de
Janeiro, do qual se estima que 255 mil cativos atravessaram forçadamente o mar entre os
189
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.154.
190
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
191
Ibidem.
192
PORTELA, Bruna Marina. Gentio da Terra, Gentio da Guiné: a Transição da Mão de Obra Escrava
e Administrada Indígena para Escravidão Africana (Capitania de São Paulo, 1697-1780). 2014. 386 f. Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, 2014.
193
PORTELA, Bruna Marina. Op. Cit., 2014, p.149.
78
194
Ibidem.
195
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
196
Ibidem.
197
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019, p.30-31, grifo nosso.
198
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.214.
79
mejor calidad, o valiéndose de los favores de algún cura complaciente o corruptible, que
consintiese en mudar alguna partida de bautismo, convenientemente escogida, del libro
de los pardos al de los blancos”199.
No entanto, por mais que desfrutassem de certas facilidades e pudessem
vislumbrar outros horizontes em comparação com outras qualidades do léxico nominativo
das Américas, era praticamente indelével o sinal da escravidão ou de seus ascendentes
escravos nos seus corpos, na sua tez, “vistos aqui com sumo deprecio, y son tenidos y
reputados en la clase de gente vil, ya por su origen, ya por los pechos que vuestras reales
leyes les imponen, y ya por los honores de que ellas mismas los privan” 200.
Em São Paulo, durante os anos de 1797 e 1831, Fernando Prestes de Souza
investigou os milicianos pardos que atuaram no Regimento dos Úteis, onde afirmou que
a cor era um fator central na estrutura militar das sociedades escravistas das Américas.
Compondo o maior contingente de milicianos do regimento, os considerados “pardos”
não eram brancos, pretos ou tampouco índios, “não cabiam adequadamente nas outras
categorias de cor em que se pautava a organização das milícias”201. Dessa maneira, a
qualidade de “pardo” advinha do intercurso sexual entre pessoas de diferentes
qualificações, mas era ainda mais envolva de relações sociais, interpretações e
conveniências.
Voltando para o léxico das qualidades que compunham o Totoró e suas
adjacências durante os séculos XVIII e XIX, representando 1,37% dos escravos presentes
nestas terras, “índio” foi uma categoria usada por espanhóis, portugueses, ingleses,
franceses e holandeses ainda no século XV, sendo largamente empregado a partir dos
últimos anos do século XVI, de forma preponderante para se referir aos nativos do Novo
Mundo202.
Os nativos localizados no interior dos domínios portugueses, situados no sertão,
não foram usualmente qualificados como “índios”, mas pejorativamente como “tapuias”,
tomados como bravios e perigosos203. Essa distinção havia surgido pelo critério
linguístico, uma vez que os Tupi, nativos localizados no litoral, inimigos dos “tapuias”,
199
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.214.
200
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.215.
201
SOUZA, Fernandes Prestes de. Pardos Livres em Um Campo de Tensões: Milícia, Trabalho e Poder
(São Paulo, 179701831). 2018. 520 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH). São Paulo, 2018, p.175.
202
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
203
Ibidem.
80
204
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
205
MACEDO, Helder Alexandre de. Op. Cit., 2011, p.98
206
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
207
BERNAND, Carmen. Ambiguedad y Ambivalencia: lo Mestizo como Estatus Liminal. In: PAIVA,
Eduardo França; CHAVES, Manuel F. Fernández Chaves; GARCÍA, Rafael M. Pérez (Orgs.). De que
Estamos Falando? Antigos Conceitos e Modernos Anacronismos – Escravidão e Mestiçagens. Rio de
Janeiro: Garamond, 2016.
208
BARNAND, Carmen. Op. Cit., 2016, p.206.
81
e um preto? Seria possível falar sobre o filho do contato entre três qualidades diferentes?
Apesar da dinamicidade e de suas mudanças ao longo do tempo e do espaço, haveriam
limites de nomeação no léxico?
209
FURTADO, Júnia Ferreira. Testamentos e Inventários: a Morte como Testemunha da Vida. In: PINSKY,
Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). o Historiador e Suas Fontes. São Paulo: Contexto,
2009, p.103.
210
FURTADO, Júnia Ferreira. Op. Cit., 2009, p.105.
82
Constituído por diversas peças jurídicas, também era um documento formado por
diversas mãos, por diferentes pessoas que estavam presentes na constituição dos autos,
como o juiz ordinário e/ou de órfãos, responsável, muitas vezes, pela abertura e por
presidir o processo; o inventariante, geralmente cônjuge do inventariado – quando fosse
o caso –, ou seja, da pessoa falecida, era o administrador do espólio e responsável por sua
prestação de contas; também haviam os louvados, pessoas incumbidas na avaliação dos
bens; e os partidores, encarregados de fazer a partilha da herança entre os herdeiros.
Outro agente da justiça que estava presente na feitura dos inventários post-
mortem, era o escrivão e/ou tabelião, responsável pela redação da peça jurídica, por
escrever o que havia sido decidido pelas demais partes, ser o último encarregado de
colocar no papel falas, ações, decisões, vontades e desejos daquele dado tempo e daquele
dado espaço. Este sujeito é de interesse particular deste estudo, pois ele foi o responsável
direto em legar para posteridade os registros daquela época, os vocábulos e categorias
que qualificaram os cativos do Totoró colonial.
A 14ª edição das Ordenações Filipinas, ordenamento jurídico que vigorou nas
Coroas Ibéricas, constituído por cinco livros, no Título LXXXIX, que diz respeito aos
escrivães dos órfãos, assegurou que nas vilas e lugares que houvessem trocentas ou mais
pessoas e não tivesse tabelião, era necessário um escrivão dos órfãos. Ele ficaria
responsável por olhar estes indivíduos que perderam seus pais, devendo contabilizar
quantos órfãos haviam naquela jurisdição, seus nomes, de quem eram filhos, suas idades,
onde moravam e quem eram seus responsáveis, bem como, seus tutores e em quais
condições estariam vivendo211.
Desta forma, coube ao escrivão redigir o inventário destes órfãos, contando todos
os bens e arrendamentos que houvessem, posto o que havia sido ordenado pelo juiz,
tutores, partidores e curadores212. Mesmo que o escrivão fosse ordinário, não tivesse
posse legal deste cargo, era necessário conhecimento para redação de um processo
jurídico, como foi possível se perceber no acesso e progressão na Casa dos Contos em
Goa, entre os anos de 1554 a 1638, onde Susana Miranda apontou que havia uma
progressão interna avaliada por critérios técnicos, entendidos como “saber de experiência
feito”, adquiridos quando da ocupação do cargo e sua permanência. O primeiro degrau
211
CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: Recompiladas por Mandado d’El-Rei
D. Filipe I. 14.ed.fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2004. Livro Primeiro, Título LXXXIX.
212
Ibidem.
83
seria o posto de escrivão, que só poderia ser acedido depois de um exame prévio,
conduzido pelo provedor mor, “destinado a comprovar aptidões e competências”213.
Abimael Lira, no seu trabalho intitulado Um Império de Papel, investigou o ofício
de escrivão da Câmara do Natal e a função desempenhada por estes agentes dentro da
burocracia administrativa da Coroa Portuguesa. Tentando compreender o indivíduo
revestido por este ofício, reiterou que estes agentes estavam, por vezes, ligados à nobreza
rasa e aos plebeus reinóis, que não encontraram oportunidade para ascenderem
socialmente na hierarquia do Antigo Regime. Seu ingresso no que poderia ser chamado
de elite, dado o contexto, foi através da burocracia jurídica portuguesa, numa tentativa de
enobrecimento e reconhecimento social214.
O tabelião, diferente do escrivão ordinário, tinha conhecimento jurídico e estava
legalmente apto para ocupar o ofício de autor de registros, documentos e escrituras no
período colonial. O inventário post-mortem, como foi visto, dispunha de uma estrutura
para sua feitura, assim como qualquer modalidade da linguagem que é conduzida por um
número de regras intrínsecas e extrínsecas. Esses modelos, adotados pelas instâncias
representativas, foram feitos para conferir legitimidade ao escrito, mas no “interior dos
textos redigidos com base nessas normas e valendo-se dos espaços sociais onde são
constituídos, os conteúdos individualizaram-se. Daí as elaborações discursivas adquirem
sentido somente no contexto social e cultural apropriado”215.
Sigamos com exemplos, a partir do conjunto de nossas fontes, examinadas na
pesquisa, para exemplificar tais afirmativas. No processo inventariante do casal formado
por Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá de Meneses (1788), moradores no Sítio Santa
Luzia, havia no seu espólio uma escrava, qualificada como cabra, de nome Catarina, tendo
aproximadamente 22 anos no ano do inventário, que era costureira e arrumadeira, e foi
avaliada em 110$000 mil réis216.
213
MIRANDA. Susana Munch. Entre o Mérito e a Patrimonialização: o Provimento de Oficiais na Casa
dos Contos de Goa (Séculos XVI e XVII). In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini. Cargos
e Ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento, Controlo e Venalidade (Séculos XVII e XVIII). Lisboa:
Centro de História de Além-Mar (CHAM), 2012, p.90.
214
LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. Um Império de Papel: Um Histórico do Ofício de Escrivão
da Câmara do Natal (1613-1759). 2018. 385 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2018.
215
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.340-341.
216
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
84
Catarina, a partir de uma relação com um sujeito que não conhecemos, foi mãe de
Simoa, escrava que tinha 4 anos de idade na época do processo e que havia sido
qualificada, também, como cabra, avaliada em 45$000 mil réis no decorrer do certame217.
Como foi possível que uma mulher cabra gerasse uma descendente de mesma
qualidade? Se nos apegarmos aos fatores genéticos das qualidades, para um indivíduo ser
nomeado enquanto cabra, era necessário que seus pais não compusessem categorias
mescladas, ou que pelo menos um dos progenitores integrasse o que Eduardo Paiva
chamou de “matrizes puras”, pessoas que não provinham ou descendiam de mistura218.
Portanto, o pai de Simoa seria um preto, negro, crioulo ou índio? Infelizmente não se teve
acesso ao dado que responderia, em alguma medida, estes questionamentos.
Dando prosseguimento na análise do inventário post-mortem dos referidos acima,
no dia 05 de fevereiro de 1789, haviam sido avaliados todos os bens pelos louvados,
apresentados pela escrava Catarina. Normalmente, os bens da pessoa falecida ficavam
sob responsabilidade do inventariante, que poderia ser seu cônjuge, quando o
inventariante fosse casado, ou um dos filhos mais velho; sendo solteiro ou viúvo, essa
responsabilidade, geralmente, quando os pais não fossem vivos, recaia para um dos
irmãos mais velhos ou, se tivesse apenas filhas, para o genro de uma delas.
No processo de Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá Meneses, todos os
herdeiros colaterais, irmãos da inventariada, abriram mão da herança, afirmando que o
montante deveria ser usado para o pagamento das dívidas do casal. Desse modo, é
bastante particular e incomum que os bens tenham ficado sob posse e responsabilidade
da escrava do casal até o início da abertura do processo.
Talvez, aqui, estejamos presenciando uma relação, entre senhores e escrava, para
além da dicotomia entre donos e mão de obra. Catarina, possivelmente, integrou essa
família por tempo considerável, tendo em vista que ela não somente ficou com esses bens,
mas foi e deve ter sido permitido pelos demais herdeiros sua resguarda. O cotidiano, o
trânsito dentro e fora da fazenda, presente nos encontros familiares, onde todos os
integrantes devem ter acompanhado sua gravidez, fez com que se gerasse uma relação de
confiança e, supostamente, de afetividade, apesar da subserviência ainda estar presente
nesta ação.
217
Ibidem.
218
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
85
219
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
220
Ibidem.
221
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47-48.
86
222
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
223
Ibidem.
224
Ibidem.
225
Ibidem.
226
Ibidem.
87
perante o aparelho jurídico colonial e os sujeitos que o representavam. Desse modo, foi
possível observarmos que dentre outras coisas, estes indivíduos são pardos, e pela
ausência de condição jurídica definida, provavelmente eram homens livres, capazes de se
inserirem e se movimentarem com maior fluidez, respeito e reconhecimento no bojo
social colonial.
Outra certidão de dívida no processo do casal falecido, foi apresentada por
Francisco de Araújo, ainda no dia 05 de fevereiro de 1789. Quitéria Lopes Correia e
Manoel de Sá de Meneses deviam, procedidos de sete bois, o valor de 14$000 mil réis. O
justificante, morador que foi nos Currais Novos, seguindo o normativo judicial anterior,
convocou sua primeira testemunha: Manoel Cavalcanti de Albuquerque, qualificado
como pardo, morador que era na Serra do Cuité, vivia de lavouras, era casado e tinha 67
anos. Disse que sabia que o casal era devedor do justificante, devido aos sete bois que
foram emprestados e nunca pagos227.
Atuando como testemunha pela segunda vez, Roque Soares de Sá atestou que o
casal falecido devia o que estava sendo requerido por Francisco Araújo. Desta vez, no
entanto, foi qualificado e assinou se juramento depois de lido pelo juiz, como pardo
disfarçado228.
O último indivíduo convidado para ser testemunha na Certidão de Dívida de
Francisco Araújo, foi o tenente Miguel Pinheiro Teixeira, branco, casado, assistente na
Serra do Cuité, de idade de 39 anos, que vivia de criar seus gados. Afirmou que o
justificante havia emprestado seu gado para Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá de
Meneses (1788), mas que não havia pago o valor cobrado229.
Foi perceptível, nas duas certidões de dívidas apresentadas no inventário post-
mortem, onde Roque Soares de Sá atuou duas vezes como testemunha, que no primeiro
momento ele foi qualificado e se reconheceu como pardo, e no segundo teve seu
qualificativo alterado para “pardo disfarçado”, categoria utilizada desde o século
XVIII230.
Utilizando o conceito de cor, Jocélio Santos tentou mostrar e compreender o
complexo sistema de classificações desta categoria, no âmbito da Santa Casa da
Misericórdia, focando na Roda dos Expostos, destinada ao abrigo, amparo e assistência
227
Ibidem.
228
Ibidem.
229
Ibidem.
230
SANTOS, Jocélio Teles. De Pardos Disfarçados a Brancos Pouco Claros: Classificações Raciais no
Brasil dos Séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, Salvador, n. 32, 2005, 115-137.
88
231
Ibidem.
232
SANTOS, Jocélio Teles dos. Op. Cit., 2005, p.132.
233
SANTOS, Jocélio Teles dos. Op. Cit., 2005, p.132.
234
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
235
Ibidem.
89
terceiro juramentista foi Manoel Nunes de Azevêdo, de 40 anos, qualificado como branco,
morador no Sítio Barbosa, onde vivia de criar seus gados236.
O quarto e último testemunho indicado por Francisco Nunes Pimentel, foi João de
Araújo Frazão, de 39 anos, casado, que vivia da atividade pastorícia na Fazenda Bom
Sucesso e tinha casta. Provavelmente, essa remissão de que o sujeito tinha “casta”, fosse
uma referência de que não estamos tratando de uma pessoa branca, mas de um sujeito de
cor.
Diferente de Martinho Pereira, que foi testemunha do tenente Custódio de Oliveira
Lima e foi grafado com “casta de pardo”, João de Araújo Frazão teve apenas o indicativo
de ser possuidor de “casta”. Esse vocábulo, segundo Eduardo Paiva, muitas vezes se
confundiu e/ou se associou com “qualidade”, sendo mais usado nos domínios espanhóis
do que na América Portuguesa237.
A partir do século XVIII, afirmou o autor, o uso desta categoria já era mais
corriqueiro, no qual foi possível ver ocorrências do termo em um relato anônimo,
publicado em 1794, na região do Rio da Prata, onde o autor se referiu à riqueza dos
campos platinados, o grande número de cabeças de gado e como Montevidéu se tornou
atrativa, “corriendo por toda la tierra la fama de este tesoro, acudiesen gentes de muchas
castas a esquilmar esta heredad a la cual tenía derecho todo el que careciese de
conciencia”238.
Usada com menos frequência nos domínios portugueses, Paiva localizou o uso
desta categoria para Capitania de Mato de Grosso, usada pelo governador Antônio Rolim
de Moura, para escrever sobre a população das vilas e dos arraiais da região, afirmando
que “não havia ‘mais que duas castas de pessoas que são homens falidos, ou os que têm
carijós’”239.
O emprego deste vocábulo também esteve atrelado na nomeação de pessoas e
grupos indígenas240, como foi possível perceber na Freguesia do Seridó, onde José Pereira
de Souza, indivíduo apontado por Helder Macedo, prestou depoimento numa justificação
de dívida, ao lado de dois pardos, relativo ao inventário de Manuel Marques do
236
Ibidem.
237
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
238
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.140, grifo nosso.
239
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.139, grifo nosso.
240
Ibidem.
90
241
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
242
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47-48.
91
vidas diferenças de uma sociedade hierárquica como dos indivíduos que viviam nas
Américas.
Continuando debruçados sobre os inventários post-mortem e os agentes
burocráticos da Coroa Portuguesa, era parte constituinte deste processo duas peças
jurídicas: o Arrolamento de Bens e o Auto de Partilha. O primeiro, como já foi dito, servia
para conhecimento e avaliação das posses do inventariado, da pessoa falecida; o segundo,
para distribuição destes bens entre os seus herdeiros, e em alguns casos, para o pagamento
de dívidas deixadas pelo sujeito.
Nestes dois momentos, os escravos foram citados e qualificados, mas foi possível
percebermos alterações nos seus designativos, como aconteceu no processo inventariante
de Francisca Xavier de Moura (1789)243, casada que foi com José de Freitas Leitão,
moradores no Totoró de Baixo. Iniciado o arrolamento dos bens no dia 15 de setembro
de 1789 e feito sua posterior partilha no mês seguinte, em 20 de outubro do mesmo ano,
os escravos foram nomeados da seguinte forma244:
243
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
244
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier de
Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
245
Para uma melhor compreensão e inteligibilidade dos documentos trabalhados neste estudo, fizemos
adequações ortográficas em relação ao vocabulário coevo.
92
A crioula Luiza, de idade de vinte anos, pouco Uma escrava crioula, por nome Luiza, de
mais ou menos, sem habilidade alguma nem idade de vinte anos, lançada neste inventário,
moléstia, avaliada em 100$000. avaliada em 100$000.
Uma crioula, por nome Joana, de idade de Uma escrava crioula, chamada Joana, de idade
vinte e dois anos, sem habilidade nem vinte e dois anos, lançada neste inventário,
moléstia alguma, avaliada em 100$000. avaliada em 100$000.
Um moleque, crioulinho, filho da dita escrava
Um escravo, moleque, crioulo, chamado
Joana, por nome Joaquim, de idade de Joaquim, filho da escrava Joana, de idade de
dezesseis dias, avaliado em 25$000 doze dias de nascido, lançado neste
inventário, avaliado em 25$000.
Uma crioula, por nome Verônica, de idade de A escrava crioula, por nome Verônica, de
dezessete anos, sem moléstia alguma nem idade dezessete anos, lançada neste
habilidade, avaliada em 100$000. inventário, avaliada em 100$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier
de Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
Dentro do que foi destacado, podemos ver que Antônio, do Gentio de Angola, foi
nomeado como negro, no primeiro momento, e como preto, quando da partilha dos bens.
Essa alteração, que poderia passar despercebida pela sutil diferença dos termos, faz
remissão ao que já foi discutido em relação ao qualificativo de pessoas vindas de África,
e sua condição jurídica enquanto escravo, demonstrando que os termos “preto” e “negro”
tinham íntima ligação com estes sujeitos, muitas vezes sendo considerados como
equivalentes.
Além disso, Manuela, qualificada como crioula, de apenas um ano de idade, no
momento da partilha dos bens foi nomeada como mulata. Como uma qualidade que não
envolvia intercursos biológicos foi alterada para outra fruto de mistura? Teria o escrivão
Antônio Vaz Ferreira Júnior, redator deste processo, mudado o designativo da escrava?
Se sim, por quais motivos e utilizando quais critérios?
É possível que o termo tenha sido alterado para mulata, dado que Manuela era
escrava, integrava o rol dos cativos sob posse de Francisca Xavier de Moura (1789), e
essa qualidade mantinha íntima relação com os indivíduos que faziam parte das forças de
trabalho compulsório no período colonial, daqueles que uma vez estigmatizados por essa
condição e marca, tinham dificuldades em se inserirem socialmente, para além dos limites
do cativeiro.
Tal fenômeno também foi percebido no inventário post-mortem de Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos (1793), casada com seu terceiro marido, Antônio da Silva e
Souza, moradores na Fazenda do Totoró de Cima. O escrivão e tabelião do seu processo
foi João de Sousa e Silva, abertos os autos em 02 de agosto de 1793, para se arrolarem os
93
246
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda
e Vasconcelos (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
247
Não foi possível localizarmos todos os escravos no Auto de Partilha, pois o inventário post-mortem de
Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793) encontra-se desfalcado, faltando páginas e algumas estão
danificadas, impossibilitando transcrição e legibilidade das palavras.
94
248
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.199.
249
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
96
adjetivações não foram equivalentes. Tereza, vista como parda e posteriormente grafada
como mulata, passou por um processo de desqualificação, uma vez que estava sendo
descrita e avaliada, partilhada enquanto um bem e uma posse, marcada por viver sob
regime escravista.
Também foi possível vermos esse fenômeno se repetir, no processo inventariante
de Miguel Pinheiro Teixeira (1825), viúvo de Ana Lins de Holanda250, morador no Sítio
Cacimba do Meio. O escrivão Antônio do Rêgo Leite de Araújo, em um rol de 15
escravos, mudou o designativo de somente um deles251:
250
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN).
251
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
97
252
Ele era filho de Miguel Pinheiro Teixeira com Ana Lins de Holanda. Seus avós maternos eram o casal
formado pelo primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro Teixeira (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN).
98
moradores no Sítio Riacho Fundo253. O mesmo escrivão, Antônio do Rêgo Leite e Araújo,
entre os dias 21 e 22 de junho do mesmo, nomeou Florência de duas maneiras diferentes,
como se pode ver na tabela abaixo:
253
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Benedicta de
Bitancourt (1830). FMDTS, Currais Novos/RN.
254
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
99
Uma escrava, parda, de nome Maria, de idade Uma escravinha, mulata, de nome Maria, de
de quatro anos, avaliada em 260$000. idade de catorze, avaliada em 260$000.
Outra escravinha, parda, de nome Escravinha, mulata, de nome Alexandrina, de
Alexandrina, de idade de nove anos, avaliada idade de nove anos, avaliada em 250$000.
em 250$000.
Outra escravinha, parda, de nome Florência, Escravinha, Florência, mulata, de idade de
de idade de sete anos, avaliada em 240$000. sete anos, avaliada em 240$000.
255
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47.
256
Filho do segundo Cipriano Lopes Galvão com Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos
eram o primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (QUINTINO FILHO,
Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
257
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Dona Ana de Araújo
Pereira (1841). FMDTS, Currais Novos/RN.
100
258
Filho de Félix Gomes Pequeno com Dona Ana Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos eram Félix
Gomes Pequeno e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem,
Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos (1789). FMDTS, Currais
Novos/RN).
259
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
Júnior (1842). FMDTS, Currais Novos/RN.
101
Outra escrava, parda, de nome Maria, idade de Uma escrava, parda, de nome Maria, de idade
trinta anos, avaliada em 300$000. de vinte e oito anos, avaliada em 300$000.
Outra escrava, parda, de nome Alexandrina, Uma escrava, parda, de nome, Alexandrina,
idade de oito anos, avaliada em 150$000. de idade de oito anos, avaliada em 150$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes
Pequeno Júnior (1842). FMDTS, Currais Novos/RN.
260
MATTOS, Regiane Augusto de. De Cassange, Mina, Benguela a Gentio da Guiné: Grupos Étnicos e
Formação de Identidades Africanas na Cidade de São Paulo (1800-1850). 2006. 239 f. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006.
261
Ibidem.
102
pertencia. Esse dado, nossas projeções, fazem refletir sobre o indivíduo que estava para
além da sua condição e da sua qualidade, um ser humano com sua própria vivência e
experiência, que provavelmente mantinha ligação e memórias afetivas com sua terra, que
foram usurpadas de si, mas que estariam vivas com ele e presente nesta simples referência
que tivemos acesso através das nossas fontes.
Para discussão aqui proposta, não é possível acessar os acontecimentos que
extrapolam o limite das palavras grafadas no inventário post-mortem, dos fatos que
ocorriam no momento da feitura do documento, de como se deu o partilhamento dos bens
entre meeira e herdeiros. Mas é possível sabermos que cabia ao escrivão, colocar no papel
o que havia sido decidido, acordado entre os agentes presentes na feitura do processo.
Dando continuidade, Félix Gomes Pequeno (1845)262, que vivia no Sítio Totoró,
casado com Dona Ana Lins de Vasconcelos, teve como escrivão do seu processo Manoel
Jorge de Medeiros. Seus bens foram vistos e avaliados pelos avaliadores no dia 09 de
setembro de 1845, e partilhado pelos partidores no dia 15 do mesmo mês e ano263:
262
Filho de Félix Gomes Pequeno com Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ.
Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN).
263
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
(1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
103
Afonso, arrolado como índio no Título de Escravos, foi qualificado como negro
no momento da divisão dos bens. Essa categoria foi utilizada como eufemismo para
ocultar a condição de escravizado de algum índio, assim como também ocorreu no uso da
expressão “negros da terra”264.
Qualificar um nativo como negro, não foi algo bem aceito, como é possível
vermos no Diretório dos Índios, datado de 1755, citada por Eduardo Paiva:
Por mais que fosse ilegal a escravização de mão de obra indígena quando da
feitura do processo de Félix Gomes Pequeno (1845), é sintomático que o termo negro seja
lido como sinônimo de escravo, passível de legalizar, através dos silenciamentos e
264
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015
265
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.197-198, grifo nosso.
105
266
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.190.
267
Filho do segundo Cipriano Lopes Galvão com Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos
eram o primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (QUINTINO FILHO,
Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
268
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Josefa Maria da
Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN.
106
269
Para esse cálculo, como já foi dito, apenas consideramos os escravos nomeados como crioulos e Gentio
de Angola nos dois momentos do processo. Muitas vezes se teve o qualificativo presente em uma das duas
peças do inventário post-mortem, mas não se levou em consideração a condição jurídica de escravo como
sinônimo de negro, preto e/ou crioulo para este resultado.
270
Encontramos os indivíduos em regime de escravidão nomeados como mulatos, em significativas
ocorrências, apenas em uma das duas partes do processo. No entanto, para este levantamento, não tomamos
a condição jurídica de escravo como equivalente de outra qualidade. Apenas computamos aquelas pessoas
que foram qualificadas de uma forma na peça jurídica e na outra foi nomeada diferente, para este caso,
como mulata.
107
271
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.50.
108
3 – CAMINHOS DE LIBERDADE
272
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Homem do Céu. Caicó/RN: Instagram, 2020. Disponível
em: <https://www.instagram.com/p/COrUkqgBB0J/>. Acesso em 07 set. 2022.
273
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
274
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1981.
275
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
276
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
109
Não Inácia
identificado
Masculino Feminino
Mulata
277
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020, p.11.
278
BARROS, José d'Assunção. A Operação Genealógica – Considerações Sobre as Implicações Histórico-
Sociais das Genealogias, a Partir do Exame dos Livros de Linhagens (Séc. XIII-XIV). História: Revista
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 3, 2013.
279
BARROS, José d’Assunção. Op. Cit., 2013, p.148.
280
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
110
Inácia, com um ou mais sujeitos que não tivemos conhecimento, podendo ser da
escravaria que ela fazia parte ou não, foi mãe de seis mulheres: Ana Tereza, Sebastiana,
Leonarda, Florência, Emerenciana e Rosa. Todas elas, incluindo sua progenitora, foram
qualificadas como mulatas.
Outra formação familiar presente no inventário post-mortem de Dona Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1793), é composta por duas gerações, ou seja, mãe, filha e
neta281:
Não T ereza
identificado
Não Luiza
identificado
Mônica
Legítima Parda
Natural
Masculino Feminino
Mestiça de pardo e preta
Mulata
Tereza, qualificada como parda, com um homem que não podemos precisar, gerou
Luiza, nomeada como mestiça de pardo e preto; ela, por sua vez, com uma pessoa que
não identificamos, gerou Mônica, designada enquanto mulata.
281
Ibidem.
111
Não Maria
identificado
Rita Isaura
Masculino Feminino
Crioula
Para além de Tereza, que apareceu como casada, Inácia, Luiza e Maria, todas
presentes no inventário post-mortem de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793),
foram mães de forma natural, não tinham matrimônio estabelecido, o que não foi um
impedimento para que elas construíssem ou tivessem alguma espécie de relação, que
gerassem descendentes, pois mesmo no cativeiro, devemos considerar que “práticas
amorosas se circunscreveram a partir de objetivos diversificados que envolveram
interesses díspares entre pessoas de ‘qualidades’ e ‘condições’ diferentes, foram frutos,
em última instância, dos processos de mestiçagens que, paralelamente, também ajudaram
a forjar a sociedade colonial”283.
282
Ibidem.
283
SANTOS, Igor Bruno Cavalcante dos. As Famílias Plurais e as Contribuições Para Uma Sociedade
Mestiça na Comarca de Sabará (1720-1800). 2017. 157 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana, 2017.
112
284
Ibidem.
285
SANTOS, Igor Bruno Calcante dos. Op. Cit., 2017, p.99.
113
Não Leonor
identificado
Sebastião Manoel
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Tereza Maria da
Visitação (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
286
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
287
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Tereza Maria da
Visitação (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
288
Ibidem.
114
cativa e sua prole, sendo seus filhos frutos das relações, por vezes consensuais, entre os
sujeitos escravizados289.
Elizabeth Abrantes e Francinete Pereira, elucidam que os homens pouco
participavam da vida dos filhos nos ambientes escravistas, e essas mulheres, dadas
condições em que viviam, tinham uma maternidade difícil, pois além de serem exploradas
nos ofícios domésticos, também eram expostas como amas de leite, geralmente
ocasionando o afastamento com os seus descendentes290.
Dialogando com Maria Mott, as autoras narraram que quando não havia uma
escrava mais velha para cuidar das crianças e dos recém-nascidos, os mesmos eram
amarrados nas costas das mães, enquanto elas trabalhavam nas lavouras, lavavam e
cozinhavam. Quando não era possível e até mesmo proibido que essas mulheres
estivessem com seus filhos, sobretudo no contexto em que elas eram amas de leite, foram
encontrados subterfúgios, formas de resistência para se vingarem, demonstrarem suas
insatisfações e poderem voltar para os seus filhos, como, por exemplo, ingerindo
alimentos que seriam prejudiciais ao leite e/ou colocando substâncias no bico do seio para
impedir o aleitamento, como pimenta291.
Os filhos destas escravas, por outro lado, normalmente permaneciam nas
escravarias, conquanto não tivessem suas mães por perto e os cuidados necessários de
uma criança, pois os senhores “não costumavam se desfazer dos recém-nascidos das
escravas, já que os mesmos poderiam trazer futuros lucros”292. Isto fez com que, algumas
vezes, surgissem uma “rede de proteção em volta dos filhos das cativas de forma a tentar
uma sobrevida maior aos mesmos”293.
Além destes conjuntos familiares centrados nas mulheres, em que os pais destes
filhos não eram citados ou mencionados, encontramos casamentos legítimos perante os
olhos da Igreja Católica nas escravarias do Totoró, como o núcleo familiar presente no
inventário post-mortem de Dona Josefa Maria da Conceição (1813), casada que foi com
289
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Cotidiano e Resistência de
Mulheres Escravizadas no Maranhão Oitocentista. In: ABRANTES, Elizabeth de Sousa; BARROSO
JÚNIOR, Reinaldo dos Santos (Orgs.). O Maranhão e a Escravidão Moderna. São Luís: Eduema, 2016,
p.13-29.
290
Ibidem.
291
Ibidem.
292
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Op. Cit., 2016, p.23.
293
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Op. Cit., 2016, p.23.
115
José Lopes Galvão, moradores que eram no Riacho da Areia de Baixo, como podemos
ver no geneagrama abaixo294:
Vicente Maria
Ana Félix
Legítimo Crioulo/Crioula
Masculino Feminino
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Josefa Maria
da Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando
os registros paroquiais da Matriz de Sant’Ana de Caicó (MSC), Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ).
Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1838.
294
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Josefa Maria da
Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN.
295
Matriz de Sant’Ana de Caicó (MSC), Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Casamento nº 01
(1788-1809). Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), fl. 83-83v.
296
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 15v.
297
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 102v.
116
fugas”298, de acordo com Muirakytan Macêdo. Dessa forma, também haviam estratégias
e objetivos na concessão dos senhores em permitir esse tipo de relação, uma vez que
houvesse consentimento em determinada coisa, havia uma ampliação de autonomia e
poder do senhor dentro do cativeiro e nas suas relações299.
Em Na Senzala, Uma Flor, obra de Robert Slenes, discutindo a família escrava
numa perspectiva da cultura africana, o autor afirmou que os casamentos e os batismos
frutos destas uniões, muitas vezes, eram incentivados pelos senhores. Havia uma espera
e organização para o número de matrimônios e batismos serem celebrados juntos, pois
além de tornarem o uso do tempo eficiente, considerando o trabalho nos sítios e os
deslocamentos até o templo religioso, se suspeitava que essa ação deveria causar um
clima festivo entre os cativos, o que influenciaria nas suas reproduções, logo, mais
geração de mão de obra e uma potencial posse que poderia ser vendida300.
Dentro de uma mesma escravaria, sob posse de um mesmo senhor, temos o
casamento de Agostinho, que no inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão (1814), foi qualificado como mulato, pelo escrivão Manoel Pereira da Silva
Castro, contanto com 38 anos de idade, achacado de gálico na ocasião301.
Ele casou com Maria, escrava do inventariado dito acima, também qualificada
como mulata, de idade de 33 anos, bem de saúde e avaliada em 100$00 mil réis302, à
época. A cerimônia de casamento, aconteceu na fazenda do seu senhor e da sua mulher
Dona Vicência Lins de Vasconcelos, provavelmente também local de moradia dos dois
sujeitos escravizados, no dia 26 de abril de 1801. Naturais do sertão do Seridó, foi o
responsável pela celebração no Sítio Totoró e pelo registro, o Cura José Gonçalves de
Medeiros, estando Maria e Agostinho qualificados como pardos no matrimônio303.
Vejamos, adiante, o geneagrama que representa a descendência do casal:
298
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.206.
299
Ibidem.
300
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor – Esperanças e Recordações na Formação da Família
Escrava: Brasil Sudeste, Século XIX. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011.
301
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
302
Ibidem.
303
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 72v.
117
Agostinho Maria
Mulato-Mulata/Pardo-Parda
Legítimo
Masculino Feminino
Mulato/Mulata
Fonte: Consideramos uma pessoa mulata e parda, o sujeito que na documentação histórica ora apareceu
designado como mulato, ora como pardo. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832).
Inventário do capitão-mor Cipriano Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a
partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
304
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 61v.
305
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
306
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 101.
118
307
Sabemos que, sob exceção de casos de alforria, estes sujeitos estavam atrelados ao mundo da escravidão,
suas condições jurídicas eram destacadas enquanto escravos e cativos. Aqui, estamos nos referindo, de
modo mais restrito, aos registros paroquiais, responsáveis por conhecer e catalogar pessoas de diversas
qualidades e condições, que mesmo apregoando o condicionamento jurídico dos indivíduos escravizados,
os colocou – em termos do livro, nas páginas daqueles assentos –, ao lado de pessoas brancas e de outras
de diferentes qualidades. Nos inventários post-mortem e nos testamentos, por sua vez, essas pessoas
figuravam como bens, posses descritas e avaliadas, onde vimos se descortinar de forma mais abissal a
desigualdade social no período colonial.
119
de trabalho compulsório, estes sujeitos seriam, na maioria das vezes, nomeados como
mulatos, levando em conta que essa categoria estava intimamente ligada ao cativeiro.
A formação destas famílias, os filhos delas descendentes, expandem o fenômeno
das dinâmicas de mestiçagens, suas representações e qualidades nas terras do Totoró,
entre os séculos XVIII e XIX, pois estes homens e mulheres viveram numa realidade onde
existiam pessoas integrantes das “matrizes puras” e outras frutos de mesclas, de diversas
condições. Assim sendo, podemos compreender estes matrimônios “enquanto estratégias
de sobrevivência em um mundo altamente hierarquizado e mesclado como o resultado de
visões de mundos distintas”308.
Ainda debruçados no inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão (1814), o seu cativo Manoel, durante o processo de arrolamento, designado como
crioulo, de 20 anos de idade309, era casado com Tereza, do Gentio de Angola, escrava de
outro senhor, filho do inventariado acima, Manoel Lopes Galvão. A cerimônia aconteceu
antes da realização do inventário, no dia 26 de abril de 1812, na Capela dos Currais
Novos,310 tendo como testemunhas outros filhos do capitão-mor, Sebastião Lopes Galvão
e João Lopes Galvão311.
Estes cativos, por residirem no Totoró, integrarem escravarias de uma mesma
família, deveriam se conhecer, compartilhar os mesmos espaços e trocarem experiências.
O casamento acima, além de apontar para o convívio que eles provavelmente tinham,
sugere que os senhores poderiam ter alguma espécie de participação na escolha dos
cônjuges. Considerando o matrimônio forçado uma prática que poderia gerar atritos e
adversidades entre os escravos e na escravaria, o interesse e influência que haveria dos
senhores, se configurou num incentivo dos cativos procurarem uniões formais, deixando
para estes sujeitos “a escolha dos casais, mas reservando ao senhor o direito ‘paternalista’
de sugerir, persuadir, pressionar e, finalmente, aprovar ou vetar nomes escolhidos”312.
308
SANTOS, Igor Bruno Cavalcante dos. As Famílias Plurais e as Contribuições Para Uma Sociedade
Mestiça na Comarca de Sabará (1720-1800). 2017. 157 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana, 2017, p.23.
309
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
310
A Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos, filial da Matriz do Seridó, foi erigida em
1808, por petição feita pelo capitão-mor Cipriano Lopes Galvão e sua mulher Dona Vicência Lins de
Vasconcelos, no qual mandaram erguer o templo religioso na sua Fazenda Currais Novos, na porção de
terra da Serra do Catunda. (Paróquia de Sant’Ana de Currais Novos, Secretária Paroquial. Provisão Para
se Erigir a Capela de Santa Ana da Fazenda de Currais Novos do Capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão e sua Mulher, Para o Reverendo Pároco do Seridó. FGSSAS).
311
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 72v.
312
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor – Esperanças e Recordações na Formação da Família
Escrava: Brasil Sudeste, Século XIX. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011, p.102.
120
No Sítio Cascavel, onde morou João Lopes Galvão (1825)313 e sua mulher Dona
Joana Francisca de Jesus, no arrolamento de bens do seu processo, temos uma composição
familiar encabeçada pela escrava Joana314:
Não Joana
identificado
Natural P/Mulato
Masculino Feminino
Mulata
P.C./Mulata
Fonte: Consideramos uma pessoa “P” e mulata, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
“P”, ora como mulato; da mesma forma, consideramos uma pessoa “P.C” e mulata, aquela que nas fontes
históricas foi registrada ora como “P.C”, ora como mulata. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem,
Caixa 02 (1814-1832). Inventário de João Lopes Galvão (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração
feita a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
Sua primeira filha, de nome Maria, também escrava, com qualidade registrada no
espaço ao lado do assento de batismo como “P.C.”, foi batizada pelo Padre Antônio
Batista Coelho e o responsável pelo seu termo registrado nos livros de batismo foi o
Vigário Francisco de Brito Guerra. O sacramento aconteceu no dia 28 de dezembro de
1815, na Capela dos Currais Novos, sendo seus padrinhos Sebastião Lopes Galvão e
Maria Xavier315.
313
Ele era filho do segundo Cipriano Lopes Galvão e Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós
paternos eram o casal formado pelo primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e
Vasconcelos. (QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora
Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
314
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
315
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 91v.
121
Joana, matriarca desta família, deu à luz também para Miguel, batizado pelo Padre
Manoel André em 01 de janeiro de 1819, nomeado, na averbação do registro, enquanto
“P”, moradores nos Currais Novos, como consta no registro316. Sua última descendente,
de nome Tereza, batizada na Capela da Senhora Santa Ana dos Currais Novos, pelo Padre
Francisco Rodrigues da Rocha, no dia 27 de abril 1821, apareceu na fonte como “P.C.”317.
Como foi visto, os descendentes da escrava Joana foram qualificados de forma
abreviada nos seus batizados, como “P.C.” e “P”. É pouco provável que o responsável
por estes registros, o Vigário Francisco de Brito Guerra, tenha qualificado os sujeitos
desta forma, dado que dois destes batizados estão espacialmente localizados no templo
religioso que se ergueu na Fazenda dos Currais Novos e foi celebrado por clérigos
diferentes. O responsável pela administração da Freguesia do Seridó se mantinha na sede
principal, na Matriz de Santa Ana de Caicó.
Por isso, acreditamos que o Padre Antônio Batista Coelho, Manoel André e
Francisco Rodrigues da Rocha, celebrantes destes batizados na Capela dos Curais Novos,
registravam os dados necessários da cerimônia e posteriormente eles eram enviados à
Vila Nova do Príncipe e transcritos para os livros de assentos religiosos da Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. Este percurso, era semelhante ao fenômeno das
desobrigas que acontecia neste mesmo território, uma vez que os párocos envolvidos
nestas campanhas, que tinham como intuito a cristianização da população, desenvolveram
funções que foram para além das religiosas, como das alçadas civis no sertão da Capitania
do Rio Grande. Esses padres realizaram os ritos católicos com os indivíduos que
habitavam este território e após sua volta para sede da administração religiosa, se fazia o
registro do que havia sido promovido, pois “muitas das informações acerca da população
colonial são provenientes de arquivos paroquiais, os quais seriam bem menos volumosos
se não fossem as ações dos padres nas desobrigas318”.
Desta forma, em se tratando do léxico das qualidades, o que “P.C.” e “P”
representariam? Dentro do que sabemos, acreditamos que essas abreviaturas poderiam
significar, em se tratando da primeira, como “preto cativo”, “preto crioulo”, ou “pardo
cativo”; da segunda qualidade contraída, “preto” ou “pardo”. Nossas conjecturas versam
nestas hipóteses, tendo como parâmetro que Joana, Maria, Miguel e Tereza eram
316
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 19v.
317
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 180.
318
MEDEIROS, Isac Alisson Viana de. Matriz, Capelas e Desobrigas: Um Olhar Sobre a Cristianização
do Espaço da Freguesia do Seridó (1788-1838). 2020. 289 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2020, p.216.
122
P Mulato/Mulata
609
601
346
8
0
LIVRO DE LIVRO DE LIVRO DE LIVRO DE
BATISMO 01 BATISMO 02 BATISMO 03 BATISMO 04
(1803-1806) (1814-1818) (1818-1822) (1825-1831)
Fonte: MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01, 02, 03 e 04 (1803-1831). FGSSAS.
319
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
123
320
RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da Cor: Mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750. Varia
História, v. 28, p. 699-723, 2012., p.722.
321
Ibidem.
322
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
124
Não T ereza
identificado
Alexandre Severina
P.C
Natural
Feminino Masculino Falecida
Cabra/Parda
P/C
Fonte: Consideramos uma pessoa cabra e parda, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
cabra, ora como parda; da mesma forma, consideramos uma pessoa “P” e “C”, aquela que nas fontes
históricas foi registrada ora como “P”, ora como “C”. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02
(1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita
a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
O primeiro dos filhos de Tereza foi batizado no dia 08 de agosto de 1819, pelo
Padre Francisco Rodrigues da Rocha, na Capela dos Currais Novos, chamado de
Alexandre e qualificado como “P.C.”. Segundo registro, era filho natural de Tereza,
escrava, de qualidade parda324.
A outra filha da matriarca, batizada por forra, na Capela dos Currais Novos, pelo
Padre Francisco Rodrigues da Costa, em 08 de dezembro de 1821, foi Severina, liberta
no primeiro mês da sua vida, designada como “P”325.
323
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
324
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 66v.
325
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 203v.
125
Falecida com apenas um ano de idade, no assento do seu óbito, apesar de constar
como forra no registro de batismo visto acima, Severina teve sua condição marcada
enquanto escrava, ligada a Miguel Pinheiro Teixeira, nomeada como “C” no seu registro
de óbito. Foi encomendada pelo Padre José Pereira da Ponte, sepultada no dia 30 de
novembro de 1822, na Capela de Santa Ana dos Currais Novos326.
Tereza, no processo de inventário do seu senhor, apareceu nomeada como cabra,
mas quando estava batizando seu primogênito, sendo uma mãe não-branca, passando por
um dos ritos católicos coloniais na Capela dos Currais Novos, onde não havia exercício
da sua mão de obra, foi qualificada como parda. Seu filho, por sua vez, foi registrado
como “P.C.”, que dentre o que foi visto até aqui, poderia ser o sinal que remetia Tereza e
consequente seu ventre ao cativeiro.
Severina, que nascera no dia 08 de novembro327, sendo liberta até o dia do seu
batizado, ocorrido, como vimos acima, em 1821, no dia 08 de dezembro, foi nomeada
como “P”. É provável, pelo que se tem discutido, pela qualificação de Tereza como parda
na celebração batismal do seu primeiro filho, que este adjetivo contraído fizesse menção
ao qualificativo de pardo.
Este termo, dentre o léxico qualificativo aqui mencionado, estava distante do
universo da escravidão e das pessoas que o integrassem, que de alguma forma fossem
vistas de modo aviltante. Severina, que nos primeiros dias de vida foi alforriada, poderia
viver sem o estigma da escravidão, conquanto descendesse dele.
No entanto, Severina não resistira ao primeiro ano de sua vida, considerando o
contexto precário em que nascera e todas faltas que deveriam fazer parte da ordem do dia
no sertão do Totoró, entre os séculos XVIII e XIX. Mesmo assim, no registro do seu
sepultamento, esteve marcada como escrava e qualificada como “C”.
Essa contração, faria referência ao designativo da sua mãe no inventário post-
mortem do seu senhor? Poderia ser o equivalente de crioulo, cabra, curiboca ou caboclo?
Ou estamos tratando, desde o princípio, da condição de Severina como cativa?
É provável que “C” designasse o qualificativo de crioulo ou cabra, remetendo
Severina para sua condição de escrava, pois de acordo com Gian Carlo Silva, no contexto
do Recife colonial, “crioulo ‘era termo só para escravos nascidos no Brasil’ em se tratando
de filhos de ventres africanos já libertos ‘sua indicação era de pardo’, no entanto,
326
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 66v.
327
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 203v.
126
existiram somente entre os libertos ‘preto forro, pardo forro, cabra forro’ ocorrendo
raramente a existência de ‘mulato forro’”328.
Se tomarmos os dois designativos de Tereza, presente no assento batismal e no
inventário post-mortem como mais uma ferramenta mobilizada para grafar Severina
enquanto “C”, provavelmente ela não poderia fazer referência ao termo crioula, uma vez
que sua mãe descendia das mesclas biológicas e culturais processadas na Ibero-América.
Portanto, no momento do seu registro de óbito, acreditamos que essa contração fazia
referência ao qualificativo de cabra, “uma forma de ‘regressão’ no cruzamento que
acarretaria uma tez mais negra, porém que não poderia ser classificada como ‘negro’,
sinônimo de escravo”329.
Miguel Pinheiro Teixeira (1825), o mesmo senhor da matriarca Tereza, ainda
tinha sob sua posse o filho de José e Domingas, os dois do Gentio de Angola, casados na
Fazenda Totoró pelo Cura José Antônio Caetano de Mesquita, no dia 28 de abril de
1795330. Observemos o geneagrama abaixo:
José Domingas
José
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando os
registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
328
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018, p.62.
329
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.65.
330
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 25.
127
O filho do casal, que herdou o nome do pai, foi qualificado como crioulo,
certamente por descender de pessoas vindas de África e por estar na condição de
escravizado. O mesmo padre derramou água santa em José quando ele tinha um ano de
idade, em 14 de junho de 1804331, pois conforme orientava as Constituições Primeira do
Arcebispado da Bahia, o senhor deveria batizar seu escravo, entregando o mesmo
tratamento para com ele que havia com seus filhos, em relação ao primeiro sacramento,
assegurando que ele aceitasse a fé católica e conseguisse a salvação da sua alma332.
Voltemos nossas observações para o Totoró, onde residia Dona Vicência Lins de
Vasconcelos, viúva do Capitão-mor Cipriano Lopes Galvão. No inventário post-mortem
processado após a morte da referida senhora, consta, dentre o rol de escravos, a pessoa de
Josefa, qualificada como mulata333. De acordo com os documentos da Freguesia do
Seridó, que rastreamos, a primeira filha de Josefa faleceu em 08 de dezembro de 1823,
na condição de escrava, grafada como “C”. Maria foi encomendada pelo Padre José
Pereira da Ponte, sepultada na Capela de Santa Ana dos Currais Novos334.
Seu segundo filho, chamado Bartolomeu, recebera liberdade de Dona Vicência
Lins de Vasconcelos, de acordo com seu registro de batismo. Qualificado como “N.C.”,
nasceu no dia 19 de maio de 1827 e foi batizado cinco dias depois, em 24 de maio do
mesmo ano, na Fazenda Totoró, pelo Padre Coadjutor Manoel José Fernandes335.
331
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 44v.
332
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018.
333
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN.
334
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 79v.
335
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 64.
128
Não Josefa
identificado
Bartolomeu Maria
N.C.
Natural
Feminino Masculino Falecida
Mulata
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando
os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
de sua condição anterior336”, como atestou Gian Carlo Silva, em se tratando do Recife
dos séculos XVIII e XIX.
A alforria, muitas vezes, era fruto das relações construídas pelos pais da criança
ao longo de suas vidas, podendo ser influenciada pela escravaria ou por outras relações
estabelecidas dentro e/ou fora do cativeiro. Mães escravas que conseguiram possibilitar
para os seus filhos o processo de liberdade, muitas vezes recorreram ao uso das
submissões, fizeram favores aos seus senhores, desempenharam atividades ilícitas ou não,
apenas conseguiram por meio da subserviência, do contato e proximidade com o interior
da casa e dos seus donos, levando em consideração que o processo de liberdade poderia
representar um primeiro passo para o sujeito em situação escrava, uma diferenciação entre
os seus.
No intuito de conquistar alforria, haviam intenções por detrás de certos
matrimônios, por exemplo, quando vemos o relacionamento de um escravo com uma
forra, ou vice-versa. Ainda em relação aos campos do Totoró, rastreamos, pelas fontes
históricas, o casamento de Agostinho, escravo, grafado no registro como “N”, com
Mariana, também “N”, naturais da Freguesia do Seridó.337
A cerimônia aconteceu na Capela dos Currais Novos, no dia 18 de setembro de
1814. Eram escravos de Félix Gomes Pequeno, que tinha morada no Sítio Totoró. O
nubente, quando feito o inventário post-mortem do seu senhor, em 1845, foi qualificado
como crioulo338.
Mariana, liberta pelo senhor de Agostinho, provavelmente agregaria mão de obra
na fazenda, pois a mulher forra se incorporava ao trabalho do marido, para além da relação
de proximidade que já existira entre ela e Félix Gomes Pequeno (1845); isto se
considerarmos que após o seu processo de liberdade, Mariana seguiu outros rumos,
desempenhou diferentes tarefas, para outras pessoas e quiçá para ela mesma. De todo
modo, estes casamentos almejavam a alforria do indivíduo que ainda estivesse na
condição de escravizado, do mesmo modo que servia aos interesses dos senhores339.
Entre os escravos de Félix Gomes Pequeno (1845), temos a presença de Luiz e
Josefa. No seu casamento, foram nomeados como pardos. Celebrado por volta de uma
336
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018, p.182.
337
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 55-55v.
338
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes
Pequeno (1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
339
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
130
Luiz Josefa
Legítimo
Masculino Feminino Falecido P.C.
Fonte: Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838.
O primeiro filho do casal formado por Luiz e Josefa, foi chamado de João, também
escravo, que faleceu aos quatro anos de idade, em 12 de julho de 1823. Grafado como
“C”, teve seu corpo e alma encomendado pelo Padre José Pereira da Ponte, na Capela de
Santa Ana dos Currais Novos341.
Os irmãos de João tiveram abreviaturas diferentes das suas, como é possível
vermos no batizado de Luiz, ocorrido na Fazenda do Totoró. O celebrante do ritual
católico, o Pároco Manoel José Fernandes, no dia 24 de maio de 1827, grafou ao lado do
registro, o filho de Luiz e Josefa como “P.C.”342.
A segunda filha do casal Luiz e Josefa, chamada de Mônica, que foi batizada no
dia 03 de julho de 1829, na Fazenda do Totoró, também foi qualificada com o
340
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 147v.
341
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 79.
342
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 64.
131
abreviamento de “P.C.”. O sacramento batismal foi dado pelo Clérigo Joaquim Álvares
da Costa343.
No inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845), encontramos
registrado no Título de Escravos, um sujeito chamado de Luiz, qualificado como índio344.
Seria ele o mesmo Luiz que estamos tratando acima, apenas com sua qualidade alterada
de pardo para índio? Em nossas hipóteses estando certas, não foi possível localizarmos
Josefa, esposa de Luiz, dentre os cativos presentes no processo de Félix Gomes Pequeno.
Mas será possível que estejamos tratando de um casamento entre dois índios?
Infelizmente, pelos dados que dispomos, não é possível assegurarmos tais informações.
No entanto, afim de problematizarmos essa possibilidade, como foi debatido
anteriormente, pardo poderia ser fruto da mistura entre negros, crioulos e mulatos com
brancos ou índios345, ou seja, existe uma possibilidade, em nossas conjecturas estando
certas, de que Josefa não estivesse nomeada como índia, mas poderia descender de pais
nativos.
Este arranjo familiar, fruto do casamento de um índio com uma parda, não é o
primeiro que aconteceu na Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos.
Helder Macedo registrou uma união mista no dia 13 de novembro de 1814, entre o índio
Manoel Acioli do Nascimento e Joaquina Maria da Conceição, cabra. Essas uniões, por
mais que intuíssem uma forma legal e pia do viver “permitia, por outro lado, que os noivos
escolhessem seus parceiros dentro do mesmo grupo social. Isto aconteceu com frequência
no Seridó, onde foram comuns uniões entre índios, negros e pardos”346.
Ainda debruçados no inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845), no
Título de Escravos do processo, temos o registro de Vicência, qualificada como cabra,
que na época em que os bens foram arrolados, tinha 36 anos e foi avaliada em 400$000
mil réis. Fazendo buscas nos registros paroquiais da Freguesia de Santa Ana, foi possível
localizar o seu batizado.
Nestes mesmos registros da Freguesia do Seridó, encontramos o casamento dos
pais da escrava acima, que não estão presentes na descrição e avaliação dos bens, mas
343
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 153v.
344
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
(1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
345
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
346
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011, p.221.
132
que eram cativos do mesmo senhor Félix Gomes Pequeno. O pai de Vicência, chamado
João Tavares, foi qualificado como cabra e casou com Vicência, mãe da referida escrava,
registrada com o mesmo designativo e condição do seu marido347.
Casados no dia 04 de junho de 1805 na Matriz do Seridó, o primeiro filho do casal
que foi possível localizar se chamava João. Assim como seus pais, era cativo, batizado
no dia 21 de maio de 1805348.
Sua segunda filha, como já é do nosso conhecimento, mencionada acima, foi
batizada no dia 14 de agosto de 1814 na Capela dos Currais Novos. Na ocasião, sua
qualidade consistia na contração “N.C.”349.
Vicência João
Fonte: Consideramos uma pessoa “N.C” e cabra, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
“N.C”, ora como cabra. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de
Félix Gomes Pequeno (1845). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access,
utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.
347
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 107.
348
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103v.
349
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 34.
133
cobra. Foi encomendada pelo Padre Joaquim Álvares da Costa, sepultada na Capela dos
Currais Novos350.
Estes núcleos familiares, que demonstramos até aqui, presentes nos interiores das
escravarias, nos fazem pensar sobre os espaços ocupados por estes cativos, por esses
pequenos arranjos genealógicos, já que Muirakytan Macêdo afirmou que não foi
encontrado referências às senzalas na documentação do sertão do Seridó351. Dialogando
com Sheila de Castro Faria, levantam três hipóteses para essa ausência: “a) não possuíam
valor venal; b) famílias escravas construíam eles mesmos suas choupanas, que se
tornavam propriedade do casal e c) os escravos dormiam no interior das casas de morada,
embora em compartimentos separados”352.
Devido ao baixo contingente de pessoas escravizadas, se comparado aos engenhos
canaviais espalhados pela costa da América Portuguesa, que requeriam mão de obra em
quantidade significativa, é provável que os escravos do sertão do Seridó e do Totoró,
fossem abrigados no interior das casas de morada dos senhores, uma vez que “até os dias
de hoje encontramos compartimentos anexos à casa-grande, onde dormem trabalhadores
solteiros junto a instrumentos de trabalho e produtos da terra armazenados nesses quartos-
galpões”353. De todo modo, “casais escravos certamente construíram seus fogos à sua
própria custa, não figurando nos bens de seus amos”354.
Essas formações familiares, presentes no Totoró e suas adjacências, constituídas
ao longo do século XVIII e XIX, por mais que não sejam frondosas e não tenham
ultrapassado outras gerações, pelos dados que conseguimos rastrear e reconstituir, são
contemporâneas aos Araújo Pereira do Sítio São Pedro, aos Dantas Correia localizados
nos Picos de Cima, dentre outros sobrenomes grafados nas páginas genealógicas do
Seridó, inclusive os Lopes Galvão do Totoró355.
350
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 111v.
351
Existe uma única menção sobre senzalas, presente no inventário post-mortem do Sargento-mor Felipe
de Moura e Albuquerque. Transcrito parcialmente por Olavo de Medeiros Filho, destacou Macêdo: “uma
morada de casas de vivenda térreas e de taipa cobertas de telhas, com um oratório e altar de madeira lisa
pintada chamente onde se celebra Missa, com casas de senzala coberta de telhas já derrotadas”. Essas
construções se situavam no Sítio Belém, em Acari, no ano de 1789. Levando em consideração o estado
descrito, essas casas de senzala não pareciam abrigar numerosos contingentes de escravos, quiçá fosse
habitada por algum. (MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano
Familiar nos Sertões da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.176).
352
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.175.
353
MACÊDO, Muirakytan Kenedy de. Op. Cit., 2015, p.176.
354
MACÊDO, Muirakytan Kenedy de. Op. Cit., 2015, p.176.
355
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
134
356
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
357
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
135
358
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
359
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.116.
360
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN.
361
Ibidem.
362
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 106v.
363
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
136
ou outra pessoa de sua confiança, eram necessárias mais duas assinaturas para que uma
carta tivesse legitimidade e validade364.
De acordo com o autor, na Vila de Sabará, foi comum que os libertos
encaminhassem aos juízes petições solicitando o registro de suas alforrias nos cartórios;
em havendo despacho favorável, a carta poderia ser registrada. Esse processo poderia ser
feito pelo liberto ou por uma pessoa indicada por ele, pois uma vez estando no cartório,
o tabelião reconheceria a autenticidade das assinaturas, transcreveria a petição, seu
encaminhamento dado pelo juiz, a carta de alforria e o reconhecimento das assinaturas
nos Livros de Notas365.
Após estes protocolos, “era necessária, ainda, outra assinatura para assegurar que
todo processo tinha sido realizado segundo os protocolos legais e que o documento
original fora novamente entregue para o liberto ou para o requerente do registro de sua
liberdade”366. Muitas vezes, esse registro levava meses, até mesmo anos, pois muitos
forros não sentiam necessidade de ratificar suas libertações em cartório, ou até mesmo
desconheciam os trâmites que deveriam ser percorridos para essa feitura.
É provável que o registro destas cartas, ocorresse pelas custas dos alforriados, que
resguardados seus lugares sociais na colônia, na maioria das vezes não tinham condições
de arcar com essas formalidades jurídicas para os registros de suas libertações. Portanto,
se asseguravam no reconhecimento das pessoas em vê-los como forros, libertos naquele
território em que viviam, ou esperavam acumular o necessário para fazerem seus registros
nos cartórios quando achassem convenientes ou quando se sentissem ameaçados367.
Havia também, no contexto das Minas Gerais, na Comarca do Rio das Velhas,
escrituras de alforrias, onde normalmente se extrapolava o cotidiano entre senhores e
escravos. Essas escrituras eram registradas diretamente nos Livros de Notas pelo tabelião,
prescindindo o reconhecimento das assinaturas, tendo em vista que o responsável pela
redação da peça jurídica estava presente e observava as testemunhas atestarem e
legitimarem o documento368.
Nesta modalidade, não foi comum que os libertos estivessem presentes no registro
de suas alforrias em cartório, pois para o documento ter validade, foi suficiente as palavras
dos senhores e as assinaturas das testemunhas. Neste contexto, por ser um registro legal
364
Ibidem.
365
Ibidem.
366
LIMA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.70.
367
Ibidem.
368
Ibidem.
137
369
LIMA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.87.
370
GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O Nome e o Como: Troca Desigual e Mercado Historiográfico. In:
A Micro- História e Outros Ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989. p. 175.
371
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda
e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
372
Comarca de Caicó (CC), Cidade Judiciária de Caicó (CJC). Livro de Notas nº 02 (1792-1799). Vila
Nova do Príncipe, fl. 73.
138
no dia 27 de abril de 1806 e que foi levada para pia batismal no dia 22 de maio do mesmo
ano. Casado com Maria Madalena da Conceição, moradores no Totoró, deram o nome de
Tereza para sua primogênita373.
O segundo filho do casal, que nasceu no ano de 1820, também participou de um
dos ritos cristãos mais tradicionais da colônia, sendo batizado no dia 24 de dezembro do
ano de seu nascimento, na Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos.
Realizado o batismo pelo Padre Francisco Rodrigues da Rocha, José foi qualificado como
“P”374.
A última descendente de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena da Conceição,
se chamava Ana Maria da Conceição, assim como seu irmão, grafada como “P”. Havia
se casado no dia 13 de janeiro de 1818, com Manoel Bernardo de Morais, também “P”,
filho de Tereza de Jesus Maria375. Atentemos para essa parentela no geneagrama abaixo:
373
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103.
374
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 127.
375
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 113v.
139
Mulato
376
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 82v.
377
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 179v.
140
constava no seu registro o abreviamento da sua qualidade enquanto “P”, assim como
aconteceu com suas duas irmãs acima378.
Devemos pontuar alguns elementos em relação ao arranjo familiar exposto acima,
como, por exemplo, quando Miguel adotou dois sobrenomes ao longo de sua trajetória,
sendo o primeiro no momento da sua alforria e o segundo, provavelmente, anterior ao
momento de batismo do seu primeiro filho.
Por mais que o processo de liberdade fosse uma distinção do sujeito entre sua
anterior condição de escravizado e agora liberto, também o diferenciando dentre o seu
grupo e da escravaria que ele fazia parte, é o primeiro passo que poderia ser dado por um
cativo num processo de ascensão e mobilidade bastante tímido e incipiente na sociedade
colonial, tendo em vista que os libertos não-brancos também ocuparam um lugar marginal
nas Américas379.
Não existem dúvidas que as alforrias eram o pontapé de um novo estágio, do
surgimento de outras possibilidades, antes negadas pela marca do cativeiro. Mas o
estigma da escravidão, dos corpos não-brancos, teimava em permanecer e continuar
distinguindo estes indivíduos, pois “a ambivalência do mundo dos libertos, localizado no
entremeio da escravidão e da liberdade, impedia que os ex-escravos se livrassem ‘do forte
e persistente estigma ligado à condição do liberto, que se mantinha por gerações’”380.
Para o sertão do Seridó, explicou Muirakytan Macêdo, que mesmo livre, o forro
continuava refém da sua procedência étnica, limitado das suas condições políticas e
sociais, pois mesmo o trabalho livre não estava isento das coerções, dos costumes e das
práticas de uma sociedade escravista381, sobretudo quando os aspectos das qualidades
eram colocados em pauta.
Buscando formas de driblar estes obstáculos que vinham com sua libertação,
Miguel Figueira Galvão incluiu dois sobrenomes ao longo da sua vida, sendo um deles
referente ao seu senhor e uma das famílias do Totoró, pois como decifrou Helder Macedo,
“no período colonial era comum que os forros, após a liberação dos laços oficiais da
378
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 22v.
379
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
380
SILVA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.111.
381
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
141
382
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020, p.85.
383
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015, p. 106.
142
podem ter sido algumas das estratégias utilizadas pelos mestiços para conseguirem se
distanciar das mestiçagens”384, como poderia ter sido o caso de Tereza.
Outro fator que poderia influenciar nesse fenômeno, decorreu da relação que o
Miguel Figueira Galvão provavelmente mantinha com a família Lopes Galvão, mesmo
após sua alforria, de tal modo que para dois dos seus filhos que encontramos o registro
de batismo, os padrinhos de Tereza foram o terceiro Cipriano Lopes Galvão e sua mulher
Dona Tereza Maria de Jesus385, e o apadrinhamento de José ficou encarregado para João
Lopes Galvão386.
No caso de pessoas não-brancas, selecionar os padrinhos dos seus descendentes
não deveria ser uma tarefa aleatória, pois um bom apadrinhamento era garantia, muitas
vezes, da ampliação dos laços e interações sociais. Na Matriz de Santo Antônio do Recife,
Gian Carlo Silva observou que dos registros de crianças livres batizadas, os pais de
rebentos cabras, crioulos, pardos, pretos e índios escolheram primordialmente pessoas
livres para batizarem seus filhos387.
Estes apadrinhamentos objetivavam que os filhos não-brancos de pessoas de cor,
formassem “laços com pessoas de melhor condição, seja ela social ou econômica,
favorecia o futuro das crianças, garantindo novos laços e inserção na comunidade a qual
passariam a fazer parte desde o seu nascimento”388.
Considerando o jogo de relações socias, políticas e de poder em que Miguel
Figueira Galvão estava inserido, tendo em vista seu contato com os Lopes Galvão,
também moradores no Totoró, que mantinham postos militares e de considerável cabedal
para o sertão do Seridó, este sujeito conseguiu sair do cativeiro e se inserir mais
intimamente na realidade das pessoas livres que compunham estas plagas.
A partir da formação de família e de uma rede de proteção e solidariedade, o pai
de Ana Maria da Conceição, José e Tereza, assegurou que seus descendentes não somente
nascessem livres, mas que fossem qualificados, diferente de si, como pardos – se
considerarmos que o “P” dado para estes sujeitos tenha feito essa referência. Além disso,
384
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019, p.193.
385
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103.
386
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 127.
387
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018.
388
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.139.
143
apesar de Tereza não ter sido adjetivada, seus sobrinhos foram e estiveram
qualificativamente e condicionalmente, mais distantes do universo escravista.
389
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
390
Ibidem.
144
Não Mônica Cosme Izabel Antônio Izabel José Paula José de Angélica Não Ana Cosme Luiza Não Francisca Alexandre Ana
identificado Maria da Ferreira de Martins Emiliano Maria Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria Pedro Bernarda do identificado Inácia Guedes Isidória de
Conceição Oliveira Cabral da Silva Galvão Vasconcelos Rangel Jesus de Lira Sacramento da Cruz Carvalho
Não Josefa Não Joana José Ana Manoel T ereza Ana Antônio José Helena Ana Miguel Silvestre Maria Vicência Apolônia José T ereza Fidélis José Anônimo Francisco Angélica Francisco Manoel José de Aniceta Ana Manoel Antônio Joana Izabel José Maria da Raimundo
identificado Maria da identificado Maria de Antônio Joaquina de Pequeno Maria Joaquina da Oliveira Joaquim de Maria Maria da Figueira Soares Maria Lopes de Jesus José de Maria Caetano Antônio de Oliveira Maria da Maria da Silva da das Mercês
Conceição Vasconcelos da Silva Santa Ana de Moura de Jesus Conceição Soares Santa Ana da Guia Conceição Galvão Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia de Oliveira Oliveira Rangel Rangel Conceição Penha Conceição Guedes
Ana
José Maria
Roberto Manoela Manoel Paula T eodora Maria Ana Não Luiza
de Castro do Rosário identificado Maria da
Conceição
Felipe
Alexandre Joaquim Noberto T omé Maria Antônio Manoel João José de Maria Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Mônica
Francisco Santa Felipa da Florêncio Fausta Francisca Figueira Maria
da Silva Ana Conceição de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior da Guia Umbelina Luiz Maria
Francelina
da Guia
Sebastião
Pardo/Parda
Índio/Índia
Legítimo
Natural P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P.C.
Preta
Anônimo(a)
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari (BNSGA), Secretaria Paroquial (SP). Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari (FNSGA), 1835-
1874.
391
Para uma melhor visualização do microcosmo de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, aplicar zoom. De toda forma, ele será destrinchado nas páginas que
se seguem.
145
Não Mônica Cosme Izabel Antônio Izabel José Paula José de Angélica Não Luiza
identificado Maria da Ferreira de Martins Emiliano Maria Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria da
Conceição Oliveira Cabral da Silva Galvão Vasconcelos Rangel Jesus Conceição
Ana Antônio José Helena Ana Miguel Silvestre Maria Vicência Apolônia José T ereza Fidélis Mônica
Joaquina da Oliveira Joaquim de Maria Maria da Figueira Soares Maria Lopes de Jesus José de Maria
Conceição Soares Santa Ana da Guia Conceição Galvão Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia
Pardo/Parda
Legítimo
Natural P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
Índia
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
147
392
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 13v-14.
393
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 51v-52.
148
mesmo grupo qualificativo. Separados entre brancos, crioulos, pretos e mistos, os pardos
foram o segundo grupo que mais casou entre si, contanto com 31 uniões394.
Estes casamentos, dentro de um mesmo grupo, segundo o autor, seguiam “um
princípio de igualdade social”, pois uniões entre sujeitos qualificados de modos
diferentes, tinham más impressões, eram malvistos pela sociedade. Isto é “um reflexo de
como o cotidiano estava moldado pelas hierarquias sociais, e o casamento estava incluído
entre os elementos que garantiam o status social”395.
Tal situação também foi percebida e constatada por Helder Macedo, em se
tratando do sertão do Seridó, pois nos registros de matrimônio, que abarcam os anos de
1788 até 1809, das 537 uniões realizadas na Freguesia de Santa Ana, 91,79% envolviam
pessoas de um mesmo grupo social, considerando o qualificativo como parâmetro.
Destes, 4,28% envolviam pessoas nomeadas como pardas396. Continuemos com a
descendência de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos.
O sol deveria pairar imponente, quando, às onze horas da manhã, no dia 05 de
novembro de 1812, na Fazenda Mulungu, casaram o filho de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, com a filha de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus.
Batizado com o mesmo nome do seu pai, José Lopes Galvão se casou com Tereza de
Jesus Maria, onde os dois foram grafados, no assento do ritual, como “P”397.
Seguindo com a listagem dos irmãos de José Lopes Galvão, chegamos em Ana
Maria da Conceição, que casou com Antônio Oliveira Soares, qualificado como “P”,
nascido nas terras do sertão do Seridó e na época morador no Cuité, filho de Cosme
Ferreira de Oliveira – falecido na época do casamento –, e de Izabel Martins. Ana Maria
da Conceição, também foi qualificada como “P”, no assento de seu casamento. Era, então,
natural e moradora na Freguesia do Seridó. Eram sete horas da manhã, na Matriz do
Seridó, quando em 08 de janeiro de 1813, ocorreu o laço marital398.
Em outra localidade, na Capela do Acari, a filha de José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, chamada Apolônia Maria, adjetivada como parda, casou com
Fidelis José de Oliveira, mais um filho descendente do casal José de Oliveira Rangel e
394
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014.
395
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2014, p.157.
396
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
397
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 25v.
398
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 28v.
149
399
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 58v.
400
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
401
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014, p. 96.
402
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2014, p. 96.
403
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 198-198v.
404
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 61v.
150
se havia alguma conexão ao nível do uso e adoção de um mesmo nome. Todos estes
caminhos, entretanto, não puderam ser sustentados ou averiguados, face às ausências de
qualquer ligação dos dois nas fontes históricas pesquisadas.
Por fim, finalizando essa etapa, dedicada aos filhos do casal João Lopes Galvão e
Paula Barbalho de Vasconcelos, encontramos os óbitos de duas das suas filhas, ambas
sepultadas na Capela de Nossa Senhora da Guia do Acari. Vicência, de apenas dois meses
e meio, registrada como parda, foi enterrada no dia 25 de janeiro de 1800405. Sua outra
filha, de nome Maria, encomendada pelo Padre André Vieira, faleceu aos 28 anos de
idade, tendo sido qualificada como “P”. Seu descanso ocorreu no dia 06 de abril de 1816,
sendo sua causa mortis, tísica406.
Dos oito filhos conhecidos de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos, dedicamos tempo na busca e rastreio dos seus netos, frutos destas uniões
que acabamos de narrar acima. Destes seis matrimônios, apenas três tiveram filhos,
deixaram seus descendentes no chão e na vida do sertão do Seridó, da família Lopes
Galvão não-branca, descendentes de mistura. O início do percurso se dá com os filhos
do casal Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição, como descrito em seguida
no próximo geneagrama.
405
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 74v.
406
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 26v.
151
José
Lopes Paula
Galvão Barbalho de
Vasconcelos
Ana Miguel José Helena Antônio Ana Silvestre Mônica Maria Vicência José T ereza Fidélis
Joaquina da Figueira Joaquim de Maria Oliveira Maria da Soares Maria Lopes de Jesus Apolônia José de
Conceição Galvão Santa Ana da Guia Soares Conceição Galvão da Guia Galvão Maria Maria Oliveira
Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Ana Manoel Paula T eodora Maria Ana
Florêncio Fausta Francisca Figueira
de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior
Pardo/Parda
Legítimo
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
152
407
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 71v.
408
Após os processos de desmembramentos da Freguesia do Seridó, se erigiu uma nova administração
religiosa no sertão da Capitania do Rio Grande, em 1835, a Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari.
A Capela dos Currais Novos, a partir deste momento, se tornou filial e respondeu administrativamente para
Matriz do Acari.
409
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871). FNSGA, fl. 53v.
410
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 02.
411
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 16v.
412
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 28v.
413
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 97v.
153
1819414. Sua irmã, chamada Teodora, no mesmo local, pelo mesmo pároco, também
nomeada como “P”, foi batizada em 09 de outubro de 1820415.
O mesmo pároco, desta vez celebrando o batizado na Capela do Acari, ungiu Ana,
“P”, no dia 30 de dezembro de 1821416. Neste mesmo local, o último filho do casal
formado por Fidélis José de Oliveira e Apolônia Maria, foi nomeado como Manoel, visto
e registrado como “P”. Foi levado para o batismo pelo Padre Manoel Teixeira, no dia 27
de setembro de 1827417.
Neste momento, voltemos a nos preocupar com os elos estabelecidos pelos netos
de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, mais especificamente os
descendentes de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição, tendo em vista
que conseguimos perscrutar e buscar seus matrimônios, bem como, o bisneto do casal
referência da reconstituição deste microcosmo, do arranjo familiar e dessa rede de
solidariedade. No próximo geneagrama estão listados os filhos desse último casal, seus
respectivos cônjuges, sogros e sogras:
414
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 52v.
415
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 116v.
416
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 199.
417
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 93.
154
Geneagrama 17 – Matrimônios dos netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos
(Filhos de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição)
José Paula
Lopes Barbalho de
Galvão Vasconcelos
José Maria José Ana Manoel T ereza Ana Miguel Angélica Raimundo
Roberto Manoela Antônio Joaquina de Pequeno Maria Joaquina da Figueira Maria das Mercês
de Castro do Rosário da Silva Santa Ana de Moura de Jesus Conceição Galvão da Guia Guedes
João José de Maria Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Umbelina
Francisco Santa Felipa da Florêncio Fausta Francisca Figueira Francelina
da Silva Ana Conceição de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior da Guia
Sebastião
Legítimo P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
Índio
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
155
O filho homônimo do casal formado por Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina
da Conceição – Miguel Figueira Galvão Júnior –, casou pela manhã, na Matriz do Acari,
ao fim do ano, em 05 de novembro de 1850. Ele levou ao altar Umbelina Francelina da
Guia, filha do casal formado por Raimundo das Mercês e Angélica Maria da Guia.
Celebrada pelo Vigário Tomaz de Pereira Araújo, o ritual contou com dispensa de
parentesco418.
Essa união, foi responsável por gerar o bisneto de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, batizado pelo nome de Sebastião. Nascido no dia 09 de agosto
de 1870, recebeu o santo sacramento no dia 11 de setembro do mesmo ano, na Matriz do
Acari419.
Outra filha do casal formado por Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da
Conceição, como mencionado anteriormente, foi Francelina Fausta de Jesus. Ela casou
com José de Santa Ana, sendo seus pais José Antônio da Silva e Ana Joaquina de Santa
Ana. Também precedendo dispensa de parentesco, o matrimônio foi celebrado pelo
Vigário Tomaz Pereira de Araújo, no dia 08 de janeiro de 1855, na Matriz do Acari420.
O irmão da referida pessoa acima, Manoel Florêncio de Miranda, casou com
Maria Felipa da Conceição, filha do casal formado por Manoel Pequeno de Moura e
Tereza Maria de Jesus. O responsável pela cerimônia e registro foi o mesmo vigário
acima, da Matriz de Nossa Senhora da Guia do Acari, celebrando o casamento em
novembro de 1857421.
Por fim, a outra filha de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição,
chamada Mônica Francisca de Jesus, casou com o filho de José Roberto de Castro e Maria
Manoela do Rosário – nesta altura, já falecida –, de nome João Francisco da Silva. O casal
teve sua cerimônia celebrada pelo Vigário da Matriz do Acari, Tomaz Pereira de Araújo,
que se deslocou até o Sítio da Barra, nesta mesma Freguesia do Acari, e em novembro de
1853 uniu-os em matrimônio422.
Além de tentarmos reconstruir o arranjo familiar protagonizado por João Lopes
Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, também é importante investigarmos relações
horizontais que os seus descendentes foram construindo, se ligando e agregando numa
418
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 01 (1835-1853) FNSGA, fl. 164v.
419
BNSGA, SP. Livro de Batismo nº 07 (1868-1874) FNSGA, fl. 56v.
420
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 16v.
421
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 53v.
422
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 02v.
156
rede de solidariedade, num microcosmo formado por pessoas não-brancas. A união destas
famílias, seja por laços matrimoniais, sanguíneos, de amizade ou compadrio, criaram
relações de dependência, de subsistência, interesses e até mesmo, supomos, afetividade.
Os sogros de Mônica Francisca de Jesus, filha de Miguel Figueira Galvão e Ana
Joaquina da Conceição, casaram na Capela do Acari, em 30 de abril de 1813. Seu sogro,
José Roberto de Castro, era filho natural de Josefa Maria da Conceição, naturais e
moradores que eram da Freguesia do Seridó, os dois qualificados como índios no registro.
Sua sogra, também natural e moradora neste sertão, descendia da preta Joana Maria de
Vasconcelos423, como podemos verificar no geneagrama a seguir.
423
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 31v-32.
157
Índio/Índia
Legítimo
Feminino Masculino Falecida Natural P
Preta
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
158
424
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. Ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014.
425
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 31.
426
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 71v.
427
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 12.
428
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 97v.
429
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 199.
430
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 11.
431
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 77.
432
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 141.
159
433
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 90-90v.
434
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 47v.
435
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 09.
160
José Paula José de Angélica Não Ana Cosme Luiza Não Francisca Alexandre Ana
Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria Pedro Bernarda do identificado Inácia Guedes Isidória de
Galvão Vasconcelos Rangel Jesus de Lira Sacramento da Cruz Carvalho
Apolônia José T ereza Fidélis José Anônimo Francisco Angélica Francisco Manoel José de Aniceta Ana Maria da Raimundo
Maria Lopes de Jesus José de Maria Caetano Antônio de Oliveira Maria da Maria da Silva da das Mercês
Galvão Maria Oliveira da Guia de Oliveira Oliveira Rangel Rangel Conceição Penha Conceição Guedes
Pardo/Parda
Legítimo
P
Natural
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P.C.
Anônimo/Anônima
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874
161
436
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 40v.
437
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 97v.
438
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 165v-166.
439
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 55.
440
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 16v-17.
162
Angélica Maria da Guia com Raimundo das Mercês Guedes, deram à luz para três
netos de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus, sendo eles: Maria441 e Luiz442,
qualificados como “P”.
A outra descendente do casal, como já é do nosso conhecimento, era Umbelina
Francelina da Guia, que com o neto de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos, o Miguel Figueira Galvão Júnior, que geraram Sebastião, bisneto destes.
Consequentemente, essa criança também era bisneta de José de Oliveira Rangel e
Angélica de Jesus.
O último neto do casal investigado neste momento, se chamava Felipe, filho de
Manoel Antônio de Oliveira e Ana Maria da Penha. O responsável pela cerimônia de
batismo e pelo registro foi o Vigário Francisco de Brito Guerra, que provavelmente
qualificou, no dia 13 de maio de 1821, na Matriz de Santa Ana do Seridó, o descendente
do casal como “P”443.
441
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 50v.
442
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 172v.
443
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 143v.
163
Ana Miguel Apolônia José T ereza Fidélis Angélica Raimundo Francisco Maria da José de Aniceta Manoel Ana Manoel Antônio Joana Izabel José
Joaquina da Figueira Maria Lopes de Jesus José de Maria das Mercês Caetano Silva da José Anônimo Francisco Oliveira Maria da Antônio de Maria da
Conceição Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia Guedes de Oliveira Conceição Rangel Conceição Oliveira Rangel Penha
Sebastião
Pardo/Parda
Legítimo P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P.C.
Anônimo/Anônima
Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
164
Manoel Antônio de Oliveira Rangel com Ana Maria da Penha, tiveram um filho
chamado Felipe. Os tios deste menino, por parte da sua mãe, excetuando Manoel, que não
teve nenhum designativo de sua qualidade apresentado no registro444, se chamavam
Antônio445, Joana446 e Isabel447, e foram nomeados como “P”; José, por sua vez, constou
como pardo448.
Reconstituir esse arranjo familiar tendo como cerne José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, percebendo redes e malhas sociais em que eles estavam
inseridos, suas formações familiares horizontais e constituição de uma cadeia solidária,
possibilitou o alargamento político, econômico e social, tendo em vista os núcleos
formados por José Roberto de Castro e Maria Manoela do Rosário, e José de Oliveira
Rangel com Angélica de Jesus.
Essas uniões matrimoniais, de solidariedade, afetivas e de apoio, entre sujeitos e
grupos não-brancos, possibilitou que, provavelmente, tivessem surgido “brechas
camponesas” no sistema colonial, ou seja, ser escravo, forro ou livre não-branco não
significava o fechamento de possibilidades de mobilidade social, negociações e
independência financeira449.
Acreditamos que o Miguel Figueira Galvão, filho de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, por estar inserido e emaranhado numa rede social e solidária
estruturada, tenha sido o proprietário do escravo Lisbão Ferreira, residente na Serra de
Santa Ana, alforriado no dia 17 de janeiro de 1808, pelo valor de 60$000 mil réis450.
Além deste escravo, segundo constou no inventário post-mortem do segundo
Cipriano Lopes Galvão (1814), havia um escravo, qualificado como crioulo, chamado
Henrique, de 20 anos, que estava empenhado por Miguel Figueira Galão, avaliado em
87$000 mil réis451.
444
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 101.
445
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 26.
446
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 04.
447
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 99.
448
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 86.
449
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
450
CC, CJC. Livro de Notas nº 05 (1806-1809). Vila Nova do Príncipe, fl. 124.
451
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
165
O sujeito casado com Ana Joaquina da Conceição, por mais que não tenhamos
conseguido constatar sua qualidade, é provável que fosse um indivíduo não-branco, tendo
em vista seus irmãos terem sido qualificados como “P” e pardo, e seus filhos como “P”.
Mesmo que nossas hipóteses estejam equivocadas, que os dois ou pelo menos um
destes escravos tenha pertencido ao primeiro Miguel Figueira Galvão que tratamos aqui,
casado com Maria Madalena da Conceição, “uma vez posto o princípio de diferenciação
racial para toda sociedade, todos seriam considerados a partir desse prisma
onipresente”452. Isso permitiu que existissem “‘inúmeros casos de libertos que possuíam
escravos, de posse de cativos até mesmo agricultores pobres, e até mesmo de escravos
que adquiriam escravos’”453, indicando o poder de difusão de preceitos, formas de
organização e administração de uma época.
Esse microcosmo social e político também possibilitou acontecimentos mais
simples e usuais, não se caracterizando enquanto brechas no sistema colonial, como
acabamos de ver, mas uma comunidade formada por pessoas não-brancas, relacionadas
de forma mais recente ou remota com o cativeiro, que mantinham toda sorte de relação
uns com os outros. Tal como Mônica Oliveira observou para os espaços das Minas Gerais,
“podiam compartilhar os mesmos espaços da produção, como as roças e os animais
criados conjuntamente e que atendiam a todos os membros da família. Nessa perspectiva,
podiam compartilhar também o mesmo fogo, reunir-se à mesma mesa, criando, assim,
uma rede de sustentação para superação dos desafios”454.
Lopes Galvão e Vasconcelos, de várias qualidades, cores e misturas, vindos dos
fundos das casas, do trabalho nas roças, intimamente relacionados com outras gentes de
diversas origens e condições, povoaram o chão do Totoró com seus descendentes,
formaram redes de solidariedade e microcosmos sociais e políticos, capazes de permitir
e possibilitar amenidades e vantagens dentro do sistema colonial português, pois “nos
espaços agrários coloniais, a família foi o suporte social mais eficaz para se organizar a
produção da vida material e espiritual dos sertões”455.
452
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.183.
453
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.183.
454
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.221.
455
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.201.
166
3.2.3 Neste Chão, Outros Caminhos: Paula Maria da Conceição e Diogo de Melo
Paula foi uma, dentre nove cativos existentes na escravaria do Totoró de Baixo.
Nos idos de 1789, era uma mulher com seus 23 anos, qualificada como crioula, saudável,
não apresentava nenhuma moléstia e, provavelmente, lidava com os afazeres domésticos
e da roça456.
Sua senhora, Francisca Xavier de Moura (1789), teve seus bens arrolados quando
do seu falecimento, ficando responsável por suas posses o seu marido, José de Freitas
Leitão457. Ele, em 14 de janeiro de 1791, alforriou e deu carta de liberdade para Paula458.
Desfrutando de possibilidades menos restritas, considerando não mais se
encontrar na condição de escravizada, seis anos depois de sua liberdade, Paula, agora
chamada de Paula Maria da Conceição, se casou. Eram oito horas da manhã, na terra
dedicada ao culto de Santa Ana, quando na Matriz do Seridó, o Cura José Antônio
Caetano de Mesquita, uniu em matrimônio Francisco Pereira, natural do Piauí, filho de
André Pereira e Ana Quitéria; com Paula Maria da Conceição, grafada no seu registro
como negra, no dia 19 de setembro de 1797459.
Paula Maria da Conceição, antes da sua liberdade e consequentemente do seu
casamento, havia ficado grávida e dado à luz para Maria. Não sabemos quem foi o pai
desta filha, apenas que ela faleceu nos seus quatro primeiros meses de vida e foi sepultada
no dia 30 de agosto de 1790, na Capela do Acari460.
Liberta e casada com Francisco Pereira, residindo na Fazenda Totoró, o primeiro
fruto do casal também faleceu jovem, sendo sepultado no dia 08 de outubro de 1797. Seu
corpo foi encomendado pelo Padre Manoel Gomes de Azevêdo, na Capela de Nossa
Senhora da Guia do Acari461.
A primeira descendente do casal, que conseguiu atravessar os primeiros meses de
vida no Totoró, se chamava Ana, nascida em fevereiro e batizada no dia 12 de março de
1804462.
456
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier de
Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
457
Ibidem.
458
CC, CJC. Livro de Notas nº 02 (1792-1799). Vila Nova do Príncipe, fl. 51.
459
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 38-38v.
460
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 13v.
461
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 62-62v.
462
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 37v.
167
463
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 04v.
464
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 33.
465
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 65.
466
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 108v.
467
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 140v.
168
da Vila Nova do Príncipe, pelo escrivão e tabelião Antônio Vaz Ferreira Júnior, o liberto
foi registrado como preto na qualidade expressa e na averbação como crioulo468.
Casado com Hilária Maria do Livramento, preta e forra, Diogo de Melo foi pai do
forro João. Batizado no dia 15 de junho de 1804, pelo Padre Antônio Caetano de
Mesquita, o sacramento foi ministrado na Capela do Acari 469. Neste mesmo templo
religioso, outra filha do casal, de nome Maria, foi batizada no dia 02 de novembro de
1805470.
Além dos três filhos que já mencionados – Diogo de Melo Rosa, João e Maria –,
Diogo de Melo e Hilária Maria do Livramento também foram pais de José Joaquim de
Melo, Manoel dos Santos Melo – que foi casado com Ana Francisca do Livramento471 –,
Maria Félix do Espírito Santo – que foi casada com Francisco Antônio de Brito –, e
Damásia Maria do Livramento, esposa de Joaquim de Santa Ana472.
O primeiro e único neto que conseguimos rastrear deste casal, se deu por uma
relação não oficial de Maria Félix do Espírito Santo. Ela foi mãe de Ana Tereza da
Conceição, natural de Goianinha, que casou com Joaquim Rodrigues de Almeida, este
natural da Freguesia da Cidade do Natal, filho de Bernardo Rodrigues de Almeida e
Úrsula Maria, sua mãe. O casamento foi celebrado no dia 29 de outubro de 1815, na
Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos473. No próximo geneagrama
detalhamos as relações genealógicas até então aqui discutidas.
468
CC, CJC. Livro de Notas nº 04 (1802-1805). Vila Nova do Príncipe, fl. 172v.
469
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 43.
470
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 87.
471
GURGEL, Olívia. Casamento de Manoel dos Santos Melo e Ana Francisca do Livramento. BNSGA,
SP. Livro de Casamento nº 01 (1835-1853) FNSGA, fl. 30v-31. Disponível em:
<https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939K-79KS-1?from=lynx1UIV8&treeref=KJZQ
F6K&i=32>. Acesso em: 26 set. 2022.
472
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839).
FMDTS, Currais Novos/RN.
473
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 73v-74.
169
Geneagrama 21 – Descendência dos casais Paula Maria da Conceição-Francisco Pereira, Diogo de Melo-Hilária Maria do Livramento e Patrício da Rocha-Ana Francisca
Bernardo Maria Francisco Joaquim Damásia Maria Félix Ana Manoel José João Maria Diogo Rita Anônimo Maria "Anônimo" Ana T ereza José
Rodrigues Antônio de Santa Maria do do Espírito Francisca do dos Santos Joaquim de Melo Maria do Maria Patrício
de Almeida de Brito Ana Livramento Santo Livramento Melo de Melo Rosa Rosário de Jesus da Rocha
Joaquim Ana
Rodrigues T ereza da
de Almeida Conceição
Não identificado
P
Legítimo
Natural Crioulo/Preto
Masculino Feminino Falecido Falecida
Anônimo(a)
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839). FMDTS, Currais Novos/RN; elaboração feita a partir do Microsoft
Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838
170
ARROLAMENTO DE BENS
Título Bens
Um par de argolas de ouro, com o peso de uma oitava,
avaliado em 2$560
Ouro
Outro par de argolas de ouro, com o peso de três quartos,
avaliado em 1$920
Um par de esporas de prata, com o peso de setenta e seis
oitavas, avaliado em 12$160
Prata
Uma espada, ponta direta, aparelhada, de prata, com o peso
de uma libra, avaliada em 21$480
Cobre Um tacho usado, avaliado em 6$000
474
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
475
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019.
476
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839).
FMDTS, Currais Novos/RN.
477
Ibidem.
171
478
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.82.
479
“Vacum”, “cavalar” e “ovelhum”, era uma nomenclatura usada, na época, para se referir,
respectivamente, a bois e vacas, cavalos e ovelhas.
480
Ibidem.
481
Ibidem.
174
482
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.226.
483
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 04v.
484
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 140-140v.
175
O envolvimento e ligação destes sujeitos com os Lopes Galvão, com o mundo das
pessoas consideradas brancas e livres, possuidoras de prestígio social e político, serviu
como possibilidade de ascensão social, de defesa, de referência sobre os indivíduos,
promovendo distinção social entre os próprios sujeitos não-brancos, recriando e
sedimentando relações hierarquizadas da sociedade colonial e imperial, fazendo e tecendo
suas próprias redes de solidariedade, criando “padrões diferenciados entre os próprios
homens de cor, tornando-se um processo de mudança social no todo, mas principalmente
no interior do grupo”485, como observado por Mônica Oliveira para os sertões das Minas
Gerais.
Os indivíduos não-brancos, seus descendente e os laços horizontais construídos
por eles e suas famílias, demonstram que o Totoró e suas adjacências se configuraram
enquanto uma espacialidade onde se conviveu toda sorte gente, pessoas de variadas
qualidades e condições, envolvendo indivíduos que não se misturaram e outros fruto de
mesclas, pluralizando matizes, promovendo outras experiências sociais e históricas neste
espaço, povoando e contribuindo para o embrião do que viria ser, futuramente, o
município de Currais Novos/RN.
485
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.226.
176
CONSIDERAÇÕES FINAIS
486
PIMENTEL, Oswaldo Lenine Macedo. Meu Amanhã (Intuindo o Til). São Paulo/SP: Na Pressão,
1999. Disponível em: <https://open.spotify.com/album/18gEdE7EJMpVeBCSDZgOdG>. Acesso em: 21
set. 2022.
177
487
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
488
DANTAS, Manoel. Homens de Outr’ora. Natal: Sebo Vermelho, 2001 [1941].
489
DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo. Natal: Sebo Vermelho, 2008 [1962].
490
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1981.
491
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
492
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
493
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
494
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
178
Celestino Alves (1985)495 e Antônio Quintino Filho (2009 [1987])496. Este último,
também, responsável por problematizar o vanguardismo da família Lopes Galvão no
tocante ao Totoró. Essas obras, possíveis no seu tempo, espaço e contextos de produção
dos seus autores, foram os primeiros escritos que se dedicaram em contar o Seridó e, mais
especificamente, o Totoró e Currais Novos/RN; sem elas, provavelmente este trabalho
não existiria, ou seria mais dificultoso seu nascimento e escrita.
Pretendemos, desta forma, expandir noções e percepções que vigoraram e ainda
vigoram, no tocante ao Seridó e ao Totoró, sobre suas histórias e suas gentes. De igual
modo, também nos situamos em um contexto de produção historicizado, no qual visamos
contribuir com escritos acadêmicos recentes acerca destes espaços, trilhados
anteriormente por Maria Regina Mendonça Furtado Mattos497, Douglas Araújo498, Olívia
Morais de Medeiros Neta499, Helder Macedo500, Muirakytan Macêdo501, Ariane
Pereira502, Maiara Araújo503 e Isac Medeiros504.
A última camada dos silenciamentos que tentamos romper, foi na investigação das
trajetórias e das vidas de pessoas não-brancas situadas no Seridó, em um espaço
localizado na Ribeira do Acauã, o Totoró, entre os séculos XVIII e XIX. Estes sujeitos,
representados e qualificados como índios, cabras, mulatos, Angolas, crioulos, Minas,
495
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
496
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
497
MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – Um
Estudo de Caso da Pobreza. 1985. 247f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1985.
498
ARAÚJO, Douglas. A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o Desmoronamento das Fazendas
Agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-1990). 2003. 225f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
499
MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. Ser(Tão) Seridó em Suas Cartografias Espaciais. 2007. 119f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
500
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do
Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR:
CRV, 2020.
501
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Penúltima Versão do Seridó: Uma História do Regionalismo
Seridoense. EDUFRN: Natal; EDUEPB: Campina Grande, 2012; MACÊDO, Muirakytan Kennedy de.
Rústicos e Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões da Pecuária (Seridó – Século XVIII).
Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
502
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em Ação na Comarca do Príncipe: Província do Rio Grande
do Norte. 2014. 157f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014.
503
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2019.
504
MEDEIROS, Isac Alisson Viana de. Matriz, Capelas e Desobrigas: Um Olhar Sobre a Cristianização
do Espaço da Freguesia do Seridó (1788-1838). 2020. 289 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2020.
179
pardos, negros, caboclos e mestiços de pardo e preto, fruto do fenômeno das dinâmicas
de mestiçagens, foram nomeados, classificados e hierarquizados, seja por suas
ascendências ou descendências familiares, seja por, dentre outros, sua fisionomia, cor,
ofício ou condição.
O uso destas qualidades foi algo comum, estava presente nos interiores das casas,
das famílias e nas escravarias de um mesmo senhor. Esse fenômeno foi responsável por
forjar um universo social múltiplo e generalizante, onde, provavelmente, todos exerciam
a tarefa de distinção e qualificação, mesmo que essas pessoas e seus grupos operassem
essas ferramentas em modos e intensidades diferentes, a partir de motivações distintas. O
que importa sabermos, é que não foi algo restrito para um determinado grupo, usado de
um para outro, mas era sabido por eles, adotado, disseminado e, muitas das vezes,
valorado.
O léxico das qualidades e o fenômeno das mestiçagens, por mais que tivesse sido
adotado e usado pela maioria das pessoas, agenciou e possibilitou que representantes do
Estado, da Igreja e da Justiça, usufruíssem do seu uso, numa tentativa de compreensão e
organização daquela sociedade, através dos exercícios qualificativos, que poderia contar
com inúmeras mãos, sejam eles os juízes, inventariantes, louvados, partidores, padres,
escrivães e tabeliães.
É certo que esse processo não aconteceu somente enquanto um qualificava o
outro, mas, também, como ele, possivelmente, se autodenominava. Dinâmicas de
mestiçagens e qualidades, se comportaram a partir de especificidades locais e temporais,
mas também contaram e estiveram envoltas em relações de poder, interesses e estratégias,
levando em consideração que um indivíduo podia alterar sua adjetivação ao longo da vida
e/ou podia prover seus descendentes e pessoas próximas de facilidades e conveniências.
Nomear o novo nos domínios espanhóis e portugueses, no contexto da colonização
moderna, partiu da necessidade dos agentes históricos em compreenderem, organizarem,
dividirem e classificarem os indivíduos. Talvez, e só talvez, o fenômeno das mestiçagens,
em se tratando de lugares e de pessoas que estavam atreladas e atravessadas pelo conceito
de sertão, tenha se dado e tenha sido empregado de modo mais complexo e denso do que
em outras áreas coloniais. Ora, qualidade e dinâmicas de mestiçagens se configuraram
enquanto processos voláteis e maleáveis, e se considerarmos as representações e noções
mobilizadas pelo conceito de sertão, revestimos algo profundo com uma noção
igualmente melindrosa, pois do sertão não se teve escapatória, ele esteve incrustado no
chão e nos corpos dos indivíduos.
180
O que foi certo e o que foi sertão, quando tratamos do fenômeno das mestiçagens,
do léxico qualificativo, e das formas das pessoas serem representadas e se representarem?
Neste momento, não temos respostas, mas sabemos que estes fenômenos e estes conceitos
compuseram uma tessitura social, política, econômica e religiosa complexa e densa, em
se tratando do sertão do Seridó e do lugarejo que foi do nosso primordial interesse neste
estudo, o Totoró dos séculos XVIII e XIX.
Os sujeitos não-brancos, localizados nesse espaço e suas adjacências, foram
responsáveis por chegarem, se assentarem e povoarem este chão com seus descendentes,
legando suas formas de ser e estar naquela dada sociedade, pluralizando fenótipos e
espaços, antes ditos e circunscritos equivocadamente somente para família e descendente
de Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos.
Conquanto este casal não fosse os únicos brancos situados no Totoró dos séculos
XVIII e XIX, buscamos aqui, reconstruir outras famílias e trajetórias que estiveram
situadas neste território, silenciadas pelos escritos dos eruditos anteriormente
mencionados, de pessoas não-brancas cativas, como os arranjos familiares da mulata
Inácia, da parda Tereza, da crioula Maria, da mulata Leonor, do casal de crioulos Vicente
e Maria, do casal de mulatos Agostinho e Maria, da mulata Joana, da cabra Tereza, dos
Gentios de Angola José e Domingas, da parda Josefa, do casal formado pelo índio Luiz e
da parda Josefa, e dos cabras João Tavares e Vicência.
Essas pequenas genealogias, constituídas a partir do cativeiro, de pessoas que
foram escravizadas, são encabeçadas, em sua maioria, por mulheres, tendo em vista o
silenciamento e ocultamento dos pais destes indivíduos, seja por estarmos falando de
relações não oficiais pela visão cristã, por contatos forçados, ou por esses pequenos
grupos familiares terem se originado do universo da escravidão.
Apesar disto, os pais e os frutos destas uniões, conseguiram constituir família,
apesar das suas condições de sujeitos escravizados. Essa rede de solidariedade, face o
contexto em que ela foi formada, foi importante para estes grupos, uma vez que eles
poderiam contar uns com os outros para amenizar o cotidiano de trabalho forçado, na
busca de estratégias e concessões que pudessem promover movimentações numa
sociedade rigidamente hierarquizada, que se não assistissem os pais, pelo menos
beneficiariam seus filhos.
Além destes, foi possível percebermos trajetórias de pessoas não-brancas e
formações de microcosmos sociais a partir de suas relações espirituais, sanguíneas e
afetivas, como nos casos de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena da Conceição,
181
José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, Francisco Pereira e Paula Maria da
Conceição, e Diogo de Melo com Hilária Maria do Livramento.
Vimos que a partir do processo de alforria, da conquista da carta de liberdade,
essas pessoas conseguiam transitar com maior mobilidade, se inserirem socialmente de
modo mais eficaz, e até mesmo desfrutarem de ascensão social. Tal perspectiva é
demonstrada na formação e constituição dos arranjos familiares e dos microcosmos
sociais, capazes de aumentar o nível de interação e convivência entre os indivíduos e os
grupos, estarem localizados socialmente e comporem uma rede de solidariedade, que
poderia fornecer proteção, referências, benesses e todo um sistema de apoio para os
sujeitos não-brancos.
Os indivíduos e os grupos não-brancos situados no Totoró e suas adjacências,
constituíram família, participaram dos ritos católicos coloniais, como o casamento, o
batismo, e enterram seus entes nos templos religiosos deste território. Essas pessoas não
eram e não passaram despercebidas naquele dado tempo e espaço, estavam presentes nos
interiores das casas senhoriais, na cozinha e no preparo das comidas, transitando entre
cômodos e cumprindo os afazeres domésticos, ou até mesmo alimentando os filhos dos
senhores com seus leites maternos.
Aravam o chão, plantavam e cuidavam dos roçados, ao mesmo tempo que tangiam
e vaquejavam os bois, os alimentavam, tiravam leite e faziam inúmeros objetos para
diferentes usos com seus couros. Essas pessoas se encontravam nas estradas e nos
caminhos do Totoró, nas missas das capelas, dividiam o mesmo teto, mesma mesa e
comida, o fogo e cama, sonhos, desejos e esperanças.
O Totoró e seus arredores não foram espaços somente de pessoas brancas ou dos
Lopes Galvão e seus descendentes, como se compreendeu por muito tempo através dos
livros daqueles eruditos que anteriormente mencionamos. Tampouco foi um território
formado apenas por pessoas não-brancas, não foi sobre isso que tratamos. Falamos sobre
uma localidade onde pessoas que não se misturaram, conviviam com outras provindas de
mesclas.
Estes grupos, no dia a dia, além de dividirem os mesmos espaços, trabalharem
juntos, conversavam uns com outros, tinham trocas de experiências e mantinham relações
de interesses, de poder, com determinadas finalidades. Apesar disto, é sabido que os
sujeitos não-brancos, sobretudo os que se encontravam na situação de escravizados,
foram forçados física e emocionalmente, viviam em condições insalubres e precárias, e
conviviam diariamente com os olhos e os lápis/penas que os viam e registravam enquanto
182
FONTES
1 BIBLIOGRÁFICAS
1.1 Dicionário
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino Aulico, Anatomico,
Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Crítico, Chimico, Dogmatico,
Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero,
Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico, Hydrographico,
Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico,
Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico,
Ortographico, Optico, Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico,
Quidditativo, Qualitativo, Quantitutivo(sic), Rethorico, Rústico, Romano,
Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico,
Uranologico, Xenophonico, Zoologico: Autorizado com Exemplos dos Mehlores
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Collegio das Artes da Companhia de Jesu: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1712,
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1.3 Sesmarias
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Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-Un Rosado, 2002.
Sesmaria nº 257 – 1729, Capitão Antônio dos Santos Guimarães e outros. p.31.
2 DIGITAIS
3 MANUSCRITAS
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