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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – CERES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
MESTRADO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES – MHIST
LINHA DE PESQUISA II – HISTORIOGRAFIA E REPRESENTAÇÕES DOS SERTÕES

MATHEUS BARBOSA SANTOS

NESTE MESMO CHÃO, OUTROS PASSOS:


INDIVÍDUOS NÃO-BRANCOS NOS SERTÕES DO RIO GRANDE
(RIBEIRA DO ACAUÃ, TOTORÓ, SÉCULOS XVIII-XIX)

CAICÓ/RN
2022
MATHEUS BARBOSA SANTOS

NESTE MESMO CHÃO, OUTROS PASSOS:


INDIVÍDUOS NÃO-BRANCOS NOS SERTÕES DO RIO GRANDE
(RIBEIRA DO ACAUÃ, TOTORÓ, SÉCULOS XVIII-XIX)

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de mestre
no Programa Pós-Graduação em
História do Centro de Ensino Superior
do Seridó, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, com Área de
Concentração em História dos Sertões,
vinculado à Linha de Pesquisa II:
Historiografia e Representações dos
Sertões.
Orientador: Prof. Dr. Helder Alexandre
Medeiros de Macedo.

CAICÓ/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - -CERES- - Caicó

Santos, Matheus Barbosa.


Neste mesmo chão, outros passos: indivíduos não-brancos nos
Sertões do Rio Grande (Ribeira do Acauã, Totoró, Séculos XVIII-
XIX) / Matheus Barbosa Santos. - Caicó, 2022.
195f.: il.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó. Programa de Pós-
Graduação em História.
Orientação: Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo.

1. Sertão. 2. Totoró. 3. Não-brancos. 4. Mestiçagens. 5.


História dos Sertões. I. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de.
II. Título.

RN/UF/BS-CERES CDU 94(813.2)

Elaborado por Giulianne Monteiro Pereira Marques - CRB-15/714


AGRADECIMENTOS

Essa dissertação de mestrado, teve seu início no ano de 2020 e foi atravessada pela
Pandemia da Covid-19. Desde então, discentes, docentes e todos os funcionários foram
para suas casas, onde aguardávamos com medo e receio os desdobramentos de um vírus
que, no dia de hoje, enquanto escrevo estes agradecimentos, matou mais de 686 mil
pessoas somente no Brasil. Enquanto tentávamos nos adaptar em um novo modo de ser e
estar no mundo, esse trabalho também nasceu no contexto de desmonte da educação,
ataques contra ciência, aos pesquisadores e à universidade pública. Este cenário foi
potencializado por termos, ao longo de quatro anos, o pior presidente da história do Brasil.
Ser historiador, produzir conhecimento histórico, é um ato de resistência, de luta
e de esperança na construção de um mundo melhor. Apesar deste cenário que transpôs,
em muito, essa breve narrativa, estendo aqui os meus agradecimentos e minha gratidão
para todos que compõe este trabalho, que fazem parte da minha vida e que estiverem
presentes de todas formas possíveis ao longo destes anos.
Agradeço, primeiramente, a Deus, Nossa Senhora e Sant’Ana, por abençoarem
meus caminhos, intercederem pela minha vida e das pessoas que amo e me circundam.
Por estarem presentes nos momentos mais difíceis e de aflição deste trabalho, me
permitindo ter forças e sabedoria para sua conclusão.
Também agradeço a minha família (in memoriam), meus maiores incentivadores
e apoiadores, presentes em todos os momentos da minha vida. Ao longo destes dois anos,
me permitiram e proporcionaram, dentro do que podiam, o melhor cuidado, zelo, atenção
e abdicações para que esse trabalho fosse possível. Plínio Assis dos Santos, Maria Célia
Barbosa, Rodrigo Barbosa e Lucas Santos, obrigado por todo apoio e amor.
Externo minha gratidão ao meu amor, companheira de todos os instantes, com
quem partilho este e outros sonhos, com quem divido essa vida, tornando os dias mais
leves e bonitos. Yasmim Alves, que possamos vislumbrar e vivermos cruzeiros e sertões
atemporais. Obrigado por ter estado e por estar.
Eu e Alda Medeiros acontecemos em 2016, e desde então dividimos nossa
formação, orientador, pesquisas e o processo seletivo para ingressarmos no mestrado, mas
também compartilhamos o mesmo teto, o cotidiano, os sonhos, nossas angústias e
realizações. Obrigado por fazer parte da minha família, pela irmandade, por ser inspiração
e por juntos desbravarmos estes e outros sertões.
Apesar de todos os descaminhos que poderiam ter moldado essa relação, não havia
escapatória para mim e Beatriz Alves. Gratidão pela irmandade, por atenuar os dias e os
contextos mais difíceis, por acreditar que seria possível e por ter me ensinado que
precisamos, também, de pragmatismo e combustão. Obrigado por ser mar no sertão.
Este trabalho não seria possível sem que, lá atrás, em 2016, Helder Macedo tivesse
me convidado para ser bolsista de iniciação científica. Desde então, ele foi o responsável
por me instruir e ensinar o ofício do historiador, os caminhos da História, e que no sertão
sempre existem veredas para serem percorridas e trilhadas. Ao orientador, mestre, espelho
e amigo, minha gratidão.
Beatriz Dias, Clara Silva, Letícia Dantas e Izabely Oliveira, que me proporcionou
ser padrinho de Saulo Miguel, obrigado pela irmandade de todos estes anos, por torcermos
uns pelos outros e compartilharmos nossas conquistas e vitórias. Também sou grato pela
amizade de Camilly Silveira, Láira Pontes, Paula Fernandes e Raquel Lima Siqueira,
desafogos e lembranças de tempos bons, de termos para onde irmos e voltarmos. Gustavo
Albuquerque, Heitor Santos e Joellyson Silva, obrigado pela parceria e amizade.
Institucionalmente agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Centro de Ensino Superior do Seridó – Campus de Caicó, por ter me acolhido desde 2016.
Aos meus professores de graduação e pós-graduação, nas pessoas de Abrahão Sanderson,
Airan Oliveira, Ane Santos, Antônio Oliveira, Cleyton Silva, Durval Muniz de
Albuquerque Júnior, Evandro dos Santos, Fábio Mafra Borges, Jailma Lima, João
Quintino de Medeiros Filho, Joel Andrade, Juciene Andrade, Lourival Andrade Júnior,
Muirakytan Macêdo (in memoriam), e Thiago Dias.
Ao Programa de Pós-Graduação em História, mestrado com área de concentração
em História dos Sertões. Aos meus colegas e companheiros de graduação e pós-
graduação, nas pessoas de Brena Dantas, Cleydson Pessoa, Dikson Freire, Eduardo
Medeiros, Ledson Silva, Maria Dolores Vicente, Maria Luiza Farias, Maria Luiza Lins,
Matheus Araújo, Mazzuki Macêdo e Remo Cruz.
Sou grato, também, ao Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos, na
pessoa de João Gustavo Guimarães, responsável por agenciar nosso contato aos
inventários post-mortem que compõe este trabalho, no Fórum Municipal Desembargador
Tomaz Salustino. Obrigado pela colaboração e por partilharmos pelo gosto da história
dos sertões, do Totoró e de Currais Novos.
Também agradeço ao Laboratório de Práticas de Pesquisa – LHCP, na pessoa de
Evandro dos Santos, que me acolheu de 2016 até 2019, enquanto bolsista de iniciação
científica. Grato, também sou, ao Laboratório de Documentação História – LABORDOC,
nos sujeitos de Helder Macedo e Paula Fernandes, coordenadores quando fiz migração
para um projeto de extensão.
De igual forma, sou grato a Central do Cidadão de Currais Novos, na pessoa de
Sheila Suerda. Obrigado pela amizade e pela oportunidade investida em mim. Agradeço,
também, a Rede Mais Você, através de Maria Souza da Silva (Duda), amiga e colega de
trabalho. Obrigado por todos os ensinamentos, por tornar os dias mais brandos e risonhos.
Por fim, agradeço aos professores que estiveram presentes no exame de
qualificação e de defesa desta dissertação de mestrado, nas pessoas de Ane Santos,
Antônio Oliveira e Ana Sara Cortez Irffi.
“Eu careço de que o bom seja bom e o
rúim ruim, que dum lado esteja o preto e
do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Quero os todos pastos
demarcados... Como é que posso com
este mundo? A vida é ingrata no macio de
si; mas transtraz a esperança mesmo do
meio do fel do desespero. Ao que, este
mundo é muito misturado...”
(Grande Sertão: Veredas – João Guimarães Rosa, 1994)
Ao sertão do Seridó, ao Totoró e para
Currais Novos.
RESUMO

Investiga representações acerca dos indivíduos não-brancos no Totoró e suas adjacências,


espaço situado na Ribeira do Acauã, durante os séculos XVIII e XIX. Metodologicamente
parte de revisão historiográfica, transcrição e leitura de inventários post-mortem, fontes
sesmariais e cartas de alforria com registros de batismo, casamento e óbito relativos ao
sertão do Seridó. Acreditamos que a constituição e as vivências no Totoró não
envolveram apenas sujeitos lusitanos ou luso-brasílicos, bem como, não se restringiu
somente ao núcleo familiar dos Lopes Galvão, mas também houve a presença e
participação de pessoas e famílias formadas por índios, negros, Gentio de Angola e Mina,
crioulos, cabras, mulatos, pardos e mestiços nas condições de livres, cativos ou forros.
Operando os conceitos de dinâmicas de mestiçagens e qualidade, dialogando com os
pressupostos da História Quantitativa e Serial e da Micro-História, buscamos
compreender como estes indivíduos participavam e se inseriam nas dinâmicas sociais,
econômicas, políticas e religiosas do seu tempo e espaço. Para isso, reconstruímos
arranjos familiares que foram constituídos no cativeiro e rastreamos trajetórias específicas
de pessoas não-brancas situados nesta territorialidade: Miguel Figueira Galvão, José
Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, e Diogo de Melo e Paula Maria da
Conceição; visando perceber estratégias e formas de resistência que driblassem os limites
que a sociedade colonial tentou impor.

Palavras-chave: Sertão. Totoró. Não-Brancos. Mestiçagens. História dos Sertões.


ABSTRACT

It investigates representations about non-white individuals in Totoró and its surroundings,


a space located in Ribeira do Acauã, during the 18th and 19th centuries.
Methodologically, it starts with a historiographical review, transcription and reading of
post-mortem inventories, sesmarial sources and manumission letters with baptism,
marriage and death records related to the sertão do Seridó. Believe that the constitution
and experiences in Totoró did not involve only lusitanian or luso-brazilian subjects, as
well as, it was not restricted only to the family nucleus of Lopes Galvão, but there was
also the presence and participation of people and families formed by indians, blacks,
gentiles from Mina, Costa, Angola, creoles, goats, mulattoes, pardos and mestizos in the
conditions of free, captive or free. Operating the concepts of dynamics of miscegenation
and quality, dialoguing with the assumptions of Quantitative and Serious History and
Micro-History, seek to understand how these individuals participated and were inserted
in the social, economic, political and religious dynamics of their time and space. For this,
we reconstruct family arrangements that were constituted in captivity and track specific
trajectories of non-white people located in this territoriality: Miguel Figueira Galvão, José
Lopes Galvão and Paula Barbalho de Vasconcelos, and Diogo de Melo and Paula Maria
da Conceição; aiming perceive tactics, strategies and forms of resistance that circumvent
the limits that colonial society tried to impose.

Key words: Sertão. Totoró. Non-Whites. Miscegenation. History of the Sertões.


RESUMEN

Investiga representaciones sobre individuos no blancos en Totoró y su entorno, espacio


ubicado en Ribeira do Acauã, durante los siglos XVIII y XIX. Metodológicamente, se
parte de una revisión historiográfica, transcripción y lectura de inventarios post-mortem,
fuentes sesmariales y cartas de manumisión con actas de bautismo, matrimonio y
defunción relacionadas con el Sertão do Seridó. Creemos que la constitución y las
experiencias en Totoró no involucraron solo sujetos lusitanos o luso-brasileños, así como
tampoco se restringió solo al núcleo familiar de Lopes Galvão, sino que también hubo
presencia y participación de personas y familias formadas. por indios, negros, gentiles de
Angola y Mina, criollos, cabras, mulatos, pardos y mestizos como libres, cautivos o forro.
Operando los conceptos de dinámica de mestizaje y cualidad, dialogando con los
presupuestos de la Historia Cuantitativa y Serial y de la Micro-Historia, buscamos
comprender cómo estos individuos participaron y se insertaron en las dinámicas sociales,
económicas, políticas y religiosas de su tiempo y espacio. Para eso, reconstruimos
arreglos familiares que se constituyeron en cautiverio y trazamos trayectorias específicas
de personas no blancas ubicadas en esta territorialidad: Miguel Figueira Galvão, José
Lopes Galvão y Paula Barbalho de Vasconcelos, y Diogo de Melo y Paula Maria da
Conceição; con el objetivo de percibir estrategias y formas de resistencia que eludan los
límites que la sociedad colonial trató de imponer.

Palabras clave: Sertão. Totoró. No Blancos. Mestizaje. Historia de los Sertões.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

1º CJ – 1º Cartório Judiciário

AVCCCN – Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos

BNSGA – Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari

CC – Comarca de Caicó

CERES – Centro de Ensino Superior do Seridó

CJC – Cidade Judiciária de Caicó

CPSJ – Casa Paroquial São Joaquim

FGSSAS – Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó

FL – Folha

FMDTS – Fórum Municipal Desembargador Tomaz Salustino

FNSDGA – Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari

LABORDOC – Laboratório de Documentação Histórica

N – Número

MSC – Matriz de San'Ana de Caicó

SP – Secretaria Paroquial

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

V – Verso
LISTA DE GENEAGRMAS

Geneagrama 01 – Descendência de Inácia ....................................................................109

Geneagrama 02 – Descendência de Tereza ...................................................................110

Geneagrama 03 – Descendência de Maria ....................................................................111

Geneagrama 04 – Descendência de Leonor ..................................................................113

Geneagrama 05 – Descendência de Vicente e Maria ....................................................115

Geneagrama 06 – Descendência de Agostinho e Maria ................................................117

Geneagrama 07 – Descendência de Joana .....................................................................120

Geneagrama 08 – Descendência de Tereza ...................................................................124

Geneagrama 09 – Descendência de José e Domingas ...................................................126

Geneagrama 10 – Descendência de Josefa ....................................................................128

Geneagrama 11 – Descendência de Luiz e Josefa .........................................................130

Geneagrama 12 – Descendência de João Tavares e Vicência .......................................132

Geneagrama 13 – Descendência de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena .........139

Geneagrama 14 – Microcosmo de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos


.......................................................................................................................................144

Geneagrama 15 – Descendência de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos


.......................................................................................................................................146

Geneagrama 16 – Netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos


.......................................................................................................................................151

Geneagrama 17 – Matrimônios dos netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho
de Vasconcelos ..............................................................................................................154

Geneagrama 18 – Descendência de José Roberto de Castro e Maria Manoela do Rosário


.......................................................................................................................................157

Geneagrama 19 – Descendência de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus .......160

Geneagrama 20 – Netos e netas de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus ........163

Geneagrama 21 – Descendência dos casais Paula Maria da Conceição-Francisco Pereira,


Diogo de Melo-Hilária Maria do Livramento e Patrício da Rocha-Ana Francisca .......169
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 01 – Ocorrência de “P” e Mulato(a) nos Registros de Batismo da Freguesia do


Seridó (1803-1831) ........................................................................................................122
LISTA DE MAPAS

Mapa 01 – Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (1748) ........................22

Mapa 02 – Mapa de Localização da Região do Seridó ...................................................28


LISTA DE QUADROS

Quadro 01 – Sesmarias da Data de Terra do Totoró (1701-1729) ..................................66

Quatro 02 – Sesmarias requeridas e concedidas para Cipriano Lopes Galvão (1737) ....67

Quadro 03 – Arrolamento de Bens do Inventário post-mortem de Diogo de Melo (1839)


.......................................................................................................................................170
LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Qualidade dos escravos e escravas no Totoró (XVIII-XIX) .......................72

Tabela 02 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Francisca Xavier de Moura (1789) ......................................91

Tabela 03 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793) .....................93

Tabela 04 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Miguel Pinheiro Teixeira (1825) .........................................96

Tabela 05 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Maria Benedicta de Bitancourt (1825) .................................98

Tabela 06 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Dona Ana de Araújo Pereira (1841) ....................................99

Tabela 07 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno Júnior (1842) .................................100

Tabela 08 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845).............................................102

Tabela 09 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha do


Inventário post-mortem de Dona Josefa Maria da Conceição (1813) ...........................105

Tabela 10 – Ocorrência de pessoas qualificadas como “P.C” nos Registros de Batismo da


Freguesia do Seridó (1803-1831) ..................................................................................123
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................19

1 – O TOTORÓ, SEUS CORPOS E HISTÓRIAS MONOCROMÁTICAS ...........41


1.1 Sertão Tudo, Sertão Nada ..........................................................................................41
1.2 Sinopses do Totoró, Retoques de Currais Novos ......................................................50
1.3 (Des)caminhando o Totoró ........................................................................................60

2 – OUTROS PASSOS, OUTRAS PESSOAS .............................................................65


2.1 Mesmos Passos? ........................................................................................................65
2.2 Outras Pegadas, Outras Gentes ..................................................................................68
2.3 Por Detrás das Letras .................................................................................................81
2.4 Dois Momentos: Mudanças e Permanências .............................................................90

3 – CAMINHOS DE LIBERDADE ...........................................................................108


3.1 – Além de Escravos, Família ...................................................................................108
3.2 – Além de Família, Livres .......................................................................................134
3.2.1 – Neste Chão, Outros Caminhos: Miguel Figueira Galvão ..................................137
3.2.2 – Neste Chão, Outros Caminhos: José Lopes Galvão ..........................................143
3.2.3 Neste Chão, Outros Caminhos: Paula Maria da Conceição e Diogo de Melo .....166

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................176

FONTES .......................................................................................................................183

REFERÊNCIAS ..........................................................................................................189
19

INTRODUÇÃO

Há um sentimento indígena
No torto passo que dou
No pouco tato que tenho
Vou sentindo ôca
A raiz em que me lenho1

Herança, escrita por Iara Carvalho e musicalizada por Wescley Gama, falou
acerca de um sentimento indígena expressado através dos corpos, dos gestos e de raízes
que se encontram no tronco/lenho da constituição dos sujeitos. Compondo o álbum
Seridolendas (2013), título dado em referência à região do Seridó, sertão localizado na
porção centro-sul do Rio Grande do Norte, no qual autora e músico residem na cidade de
Currais Novos, a canção fez menção à ocupação autóctone e sua herança, primeiras
sementes que compõe este chão.
Epigrafar esse texto com um trecho de uma canção produzida por curraisnovenses,
onde heranças indígenas atravessam os modos de ser e estar no mundo, é dissonante com
o que foi produzido e propagado acerca da história do município de Currais Novos/RN,
no qual o passado nativo é apenas um breve capítulo anterior ao processo de colonização,
dada referências de sua dizimação ou silenciamentos quando da chegada dos homens
brancos, civilizados e cristãos, aqui ensejados e corporificados pela família Lopes Galvão,
dita e tida como fundadora desta municipalidade. Desta maneira, interessa acessar não
apenas os indígenas que estiveram localizados no gérmen desta municipalidade, mas os
sujeitos e famílias não-brancos do Totoró e suas adjacências, entre os séculos XVIII e
XIX, igualmente responsáveis pelas vivências, heranças e constituição deste espaço.
Este legado passou por (re)modificações quando, no período colonial, foi iniciada
a expansão para conhecimento e posterior povoamento do sertão. Marchando ao lado do
gado por terras “devolutas e desabitadas”2, desbravando os rincões do Novo Mundo, os
colonizadores adentraram e usurparam territorialidades indígenas, tendo em vista que os
nativos foram considerados obstáculos ao projeto colonial, sendo assim, ambos os lados

1
GAMA, Wescley. Herança. Currais Novos/RN: Seridolendas, 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=AtNosmQ0cjQ>. Acesso em: 21 set. 2021.
2
O sertão foi visto e construído pelo discurso colonial enquanto espaço de fronteira, territorialidade vazia
dos referenciais de mundo lusitanos a serem conquistados, civilizados e tornados rentáveis para a máquina
colonial. Sertão, semanticamente construído enquanto espaço inóspito e vazio, justifica ações sobre ele,
sobretudo do ponto de vista econômico (SOUZA, Candice Vidal e. A Pátria Geográfica: Sertão e Litoral
no Pensamento Social Brasileiro. 2.ed. Goiânia: Editora UFG, 2015).
20

conviveram e coexistiram em relações tensas, de interesses e conflituosas. Após a


expulsão dos holandeses (1654), esses embates se tornaram cada vez mais numerosos,
haja vista os empreendimentos e tentativas de implantação e desenvolvimento da
atividade pastorícia, refreada pelos ataques e formas de resistência das populações
indígenas ao criatório e plantações, conflagrando o que ficou conhecido, na época, como
“Guerra dos Bárbaros” (1651-1704), etnocídio indígena, direcionado em sua maioria aos
nativos localizados no sertão, o gentio tapuia3.
O sertão do Seridó foi um dos palcos de maior acirramento e radicalidade dos
confrontos, levando em consideração a violência das batalhas e o grande número de
mortos. Olavo de Medeiros Filho, em Índios do Açu e Seridó, afirmou que os embates
neste local tiveram seu início no ano de 1683, sendo um dos palcos deste confronto a
Serra d’Acauã4, possivelmente no ano de 1690, onde existiu um combate “entre as tropas
governamentais e os tapuias levantados. Foram aprisionados mais de mil silvícolas. Entre
mortos e fugitivos, houve cause um milhar5”.
No limiar da guerra, no sertão da Capitania do Rio Grande, na última década do
século XVII6, quando armas foram baixadas e corpos amontoados, destacando a legítima
determinação guerreira, formas de organização e estratégia que às populações nativas
resistiram e refrearam o braço armado da Coroa Portuguesa, o processo de colonização
dos sertões se processou com mais afinco, sendo retomada e incentivada doações de
sesmarias para ocupação daquelas terras com o gado, fincando currais de madeira,
construindo cercas de pedra, erguendo sítios e fazendas para o desenvolvimento da
atividade pastorícia e o cultivo de lavouras.
Cronologias de histórias locais, sobremaneira de Pernambuco, Ceará e Rio Grande
do Norte, escreveram e propagaram em suas histórias episódios acerca da “Guerra dos
Bárbaros” (1651-1704), aludindo sobre o “desaparecimento indígena” e seu “extermínio”
em decorrência dos embates empreendidos contra os súditos d’El Rey. Pedro Puntoni7,
investigando estes confrontos de forma abrangente espaço e temporalmente, apontou que
os povos autóctones, apesar da grande perca demográfica, não deixaram de existir, mas
se somaram ao aparelho colonial através de concessões culturais, se mesclaram

3
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do
Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 2002.
4
Atualmente, a Serra d’Acauã se localiza no município de Currais Novos/RN.
5
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1984, p.97.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
21

biologicamente, se alinharam aos empreendimentos coloniais oferecendo em troca à


“salvação de suas almas”, se submetendo aos ritos católicos, como o batismo, numa
tentativa de salvarem suas próprias vidas e cultura. Houveram, também, indivíduos e
grupos que continuaram rebelados enquanto seus mundos e seus povos resistiam nas
poucas forças que ainda dispunham, fugindo e buscando outras formas e espaços de vida,
reticentes à expansão colonial.
Em se tratando da Capitania do Rio Grande, Fátima Martins Lopes, através do
estudo das missões religiosas, do contato e experiências entre índios, colonos e
missionários, questiona sobre o “desaparecimento” e/ou “assimilação cultural” que os
povos nativos teriam sofrido, defendendo que nem tentativas de imposições culturais nem
o projeto de genocídio contra esses grupos foi suficiente ou eficaz para tal feito8.
Helder Macedo, trabalhando mais especificamente o sertão da Capitania do Rio
Grande, buscou compreender o remodelamento causado na vida das populações indígenas
pelo fenômeno da ocidentalização. Demonstrou que apesar dos danos causados nas
questões territoriais, corporais e de almas, resultantes dos conflitos de guerra entre povos
originários e colonos das mais diversas proveniências, os remanescentes indígenas e os
mestiços deles descentes sobreviveram das mais variadas maneiras, seja na condição de
cativos de guerra, de trabalho servil, exercendo cargos militares e civis ou perambulando
incertos entre campos e manchas populacionais9.
Dessa forma, não temos o fim da presença indígena, mas o dissipar das suas
formas de estarem, compreenderem e lidarem com o mundo. Nessa nova produção
territorial, corporal e simbólica, o Arraial do Caicó, situado na Ribeira do Seridó, foi
fundado em 1700 nos entornos da Capela de Santa Ana, erguida em 169510.
Este local foi escolhido para sediar a Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do
Seridó, instalada em 1748, recortada pelos cursos fluviais do Rio Piranhas, Espinharas,
Seridó e Acauã, espaços ocupados pela atividade pastorícia das Capitanias do Rio Grande
e Paraíba, no que Helder Macedo nomeou como “cartografia da fé” 11.

8
LOPES, Fátima Martins. Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande
do Norte. Natal/RN: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), 1998.
9
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
10
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
11
Se refere ao território produzido e formado pela ação da Igreja Católica no período colonial, constituindo
a freguesia enquanto unidade administrativa (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias
do Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR:
CRV, 2020).
22

A partir de 1788, a abrangência territorial e o controle administrativo da Freguesia


do Seridó passaram por algumas fragmentações, face à criação de novos curatos,
rearranjando os domínios e organizações territoriais das Capitanias do Norte. Neste
mesmo ano, por meio de alvará de 31 de julho, foi criada a Vila Nova do Príncipe,
compreendendo, na esfera civil, os primeiros contornos da Freguesia do Seridó, em uma
perceptível configuração de superposições territoriais e administrativas no período
colonial12.
O espraiamento das ambições coloniais provocou o confronto entre povos, fez
com que gados e colonos marchassem até o sertão, gestando uma nova concepção
territorial, social, econômica, política e religiosa. Dentro dos contornos que foram
constituídos no sertão do Seridó, nossos interesses estão voltados para Ribeira do Acauã,
mais especificamente o Totoró13 e suas adjacências.

Mapa 01 – Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (1748)14

Legenda: 1 – Vila Nova do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó, contando com a Capela de
Nossa Senhora do Rosário e a Matriz da Senhora Santa Ana do Seridó; 2 – Povoação da Nossa

12
Ibidem.
13
Totoró ou Tororó, é uma palavra de origem indígena e provavelmente significa “lugar onde se acha água”.
(SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008).
14
Os limites da Freguesia do Seridó compreendiam, também, o Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe,
criada em 1788 (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias
Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020).
23

Senhora do Ó da Serra Negra; 3 – Povoação de Nossa Senhora da Guia do Acari; 4 – Povoação


de Santa Luzia do Sabugi; 5 – Povoação de Nossa Senhora da Guia dos Patos; 6 – Povoação de
Nossa Senhora da Luz da Pedra Lavrada; 7 – Povoação de Nossa Senhora das Mercês da Serra
do Cuité.

O mapa, fruto de um exercício de aproximação do apogeu territorial desta


circunscrição no período colonial, tentou esboçar quais seriam os domínios da Freguesia
do Seridó e do Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe. A área demarcada acima,
sinaliza a localização da Ribeira do Acauã em relação aos domínios eclesiásticos,
administrativos e jurídicos do sertão do Seridó. É nessa circunscrição que se encontra o
Totoró15, embrião do município de Currais Novos/RN16.
José Augusto (2002 [1940]), intelectual seridoense, escreveu acerca da criação do
gado e como essa atividade havia sido fundamental para o povoamento do Seridó através
do sistema sesmarial, das concessões e requerimentos de sesmarias, já que os “perigos de
encontros sangrentos com a indiana bravia foram diminuindo até cessarem todo”17. Ele
destaca que são desta época os primeiros desbravadores “da melhor estirpe” que
chegaram, instalaram suas fazendas de gado e povoaram este chão com seus
descendentes. Nomeando estes “opulentos sujeitos”, o autor destaca três indivíduos:
Tomaz de Araújo Pereira, Caetano Dantas Correia e o primeiro Cipriano Lopes Galvão,
“todos os povoadores iniciais do Seridó, troncos das tradicionais famílias que ainda hoje
vivem na região, em que trabalham e a que servem”18.
Em Famílias Seridoenses, José Augusto (2002 [1940]) se propôs e narrou acerca
das origens e procedências das famílias que teriam povoado o Seridó, dedicando uma
sessão aos Lopes Galvão. Contou que o primeiro Cipriano Lopes Galvão havia casado
em Igarassu, na Capitania de Pernambuco, com Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos,
ambos procedentes de famílias abastadas e importantes. Havendo adquirido terras no
Seridó, mais precisamente no Totoró, se mudaram e fundaram “grandes fazendas de
criação de gado”, sendo o primeiro Cipriano Lopes Galvão o fundador do que hoje
compreendemos enquanto município de Currais Novos/RN19.

15
A Data de Terra do Totoró, era uma porção territorial que abrigava sítios e fazendas. O nome “Totoró”,
por sua vez, nomeou o rio, um pico rochoso e unidades familiares destinadas ao criatório e ao plantio.
16
O Rio Totoró nasce na Serra de Santana e se encontra com o Rio São Bento, antigo Maxinaré, com foz
localizada na Serra do Doutor, e desaguam no Rio Acauã (SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008).
17
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940], p.13-14.
18
AUGUSTO, José. Op. Cit., p. 14.
19
Ibidem.
24

Afim de endossar e legitimar características acerca das heranças lusas e luso-


brasílicas da família Lopes Galvão, tentando estender um fio condutor entre Portugal e o
Totoró, provocando o apagamento e silenciamento dos povos indígenas nestas terras, o
autor remontou a ascendência genealógica do núcleo familiar supracitado, apontando,
pelo lado paterno, uma linhagem que descenderia de Manoel Lopes Galvão, secretário
das mercês em Portugal, no reinado de D. João IV. Este, por sua vez, gerando um filho
homônimo que embarcou para o além-mar, ganhou destacada posição na ordem militar,
graças aos seus feitos nas lutas contra os holandeses e dos Palmares. Ele casou com Dona
Margarida Lins Acioli, filha de Cristóvão Lins, alcaide de Porto Calvo, e de Dona Adriana
de Holanda20.
Pelo lado materno, José Augusto (2002 [1940]) recompôs à linhagem de Dona
Adriana de Holanda e Vasconcelos direcionada para Arnal de Holanda, que teria sido um
dos “homens nobres” que acompanharam Duarte Coelho, primeiro capitão-donatário da
Capitania de Pernambuco. Além disso, poderia descender do papa Adriano VI, que sentou
na cadeira de São Pedro em 152221.
Outro erudito que se dedicou em escrever sobre o Seridó e suas famílias, foi Olavo
de Medeiros Filho (1981), mencionando que este espaço foi formado por pessoas
provenientes da Capitania do Rio Grande, Paraíba e Pernambuco, além de sujeitos
advindos do Reino, sobremaneira do norte de Portugal e dos Açores, “os quais se
tornaram os fundadores de estirpes, que viriam a se constituir na elite social, econômica
e política da região”22. Dentre estas “velhas famílias” e os “fundadores de estirpe”,
encontramos o primeiro Cipriano Lopes Galvão, que para além do que já mencionamos,
foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da Ribeira do Seridó, tomando posse
de suas terras no Totoró em 175523.
Essa breve historização sobre o espaço que conformou a Ribeira do Seridó e, mais
especificamente, o Totoró, também foi discutido por outros escritos produzidos durante

20
Ibidem.
21
Ibidem.
22
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal,
1981, p. 4.
23
O exercício crítico feito na obra de Olavo de Medeiros Filho, segundo Helder Macedo (2020), deve ser
cuidadoso, tendo em vista o amadurecimento intelectual do autor, do acesso e contato com novas e outras
fontes, possibilitando discorrer acerca de uma população mais plural do sertão do Seridó, como os
levantamentos estatísticos realizados pelo Padre Francisco de Brito Guerra entre os anos de 1809 a 1811,
constatando a presença de elementos pretos, indígenas, mulatos, pardos e, certamente, brancos entre os
fregueses de Santa Ana (MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó:
Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020).
25

o século XX por intelectuais germinados em solo seridoense24. Estes sujeitos, estavam


interessados em valorizarem e glorificarem o passado lusitano e luso-brasílico do Seridó,
elegendo e reverenciando os “pais fundadores”, “sujeitos de estirpes” das “famílias
tradicionais”, ou do que eles consideraram enquanto as “velhas famílias do Seridó”, égide
da civilidade e da fé cristã. Através destes escritos, foram responsáveis por forjarem um
passado comum para este espaço, se pautando nos elementos hegemônicos, ou seja, um
local discursado enquanto majoritariamente masculino, branco, ocidental e cristão25.
No que hoje corresponde ao município de Currais Novos/RN, se situa à
Comunidade Remanescente de Quilombo de Negros do Riacho26, titulada e reconhecida
pela Fundação Cultural Palmares em 2006, evidência incontornável e inconteste acerca
da presença histórica de não-brancos neste espaço27. Tal existência motivou o Prof. Luiz
Assunção em elaborar um levantamento e registro da população negra escrava nos
inventários post-mortem desta localidade, no período de 1788 a 1888, demonstrando a
presença de não-brancos e brancos coexistindo e vivendo nesta mesma territorialidade28.
O autor deste texto, natural e munícipe de Currais Novos/RN, ingressou no curso
de graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) – Campus de Caicó, em 2016.1. No
segundo semestre, em 2016.2, se tornou bolsista do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação do Prof. Helder Alexandre Medeiros de
Macedo. Com ele, desenvolveu pesquisas e trabalhos ligado ao projeto História das
Mestiçagens nos Sertões do Rio Grande do Norte Por Meio de Um Léxico das Qualidades
(Séculos XVIII-XIX).

24
Ver: DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo. Natal: Sebo Vermelho, 2008 [1962];
DANTAS, Manoel. Homens de Outr’ora. Natal: Sebo Vermelho, 2001 [1941].
25
Acerca dos silenciamentos promovidos pelos escritos que se debruçaram sobre o sertão do Seridó, ver:
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões
do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
26
Enquanto escrevemos este trabalho, no dia 27 de maio de 2022, a Prefeitura Municipal de Currais Novos,
através da assessoria do antropólogo Geraldo Barboza, elabora um estudo socioeconômico na Comunidade
Rural de Queimadas, também conhecida como Negros do Ludugério. Este trabalho tem como objetivo
acompanhar o processo de reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares, da Comunidade de
Remanescente de Quilombo das Queimadas. Essa comunidade negra, que existe há quase 270 anos,
abrigando 16 famílias, se localiza na zona rural da cidade de Currais Novos/RN, no Povoado Totoró.
(NOVOS, Prefeitura Municipal de. Prefeitura de Currais Novos Inicia Estudo para Reconhecimento
de Comunidade Negra como Remanescente de Quilombo. Instagram: Currais Novos/RN. Disponível
em: <https://www.instagram.com/p/CeEZOiIr9iz/?igshid=MDJmNzVkMjY=>. Acesso em: 27 mai. 2022).
27
PALMARES, Fundação Cultural. Comunidade Quilombola de Negros do Riacho é Titulada no Rio
Grande do Norte. Brasília/DF: Governo Federal, 2006. Disponível em: <
https://www.palmares.gov.br/?p=1610>. Acesso em: 10 fev. 2022.
28
ASSUNÇÃO, Luiz. Levantamento de Fontes Sobre Escravidão no Sertão Potiguar – Século XIX.
Projeto de Pesquisa: Departamento de Antropologia, PROPESQ, UFRN. Natal, 2008.
26

Novas leituras, acesso e trabalho com fontes documentais no âmbito da iniciação


científica, fizeram com que o autor, também provocado pelo orientador, se questionasse
acerca das narrativas sobre a história da cidade de Currais Novos/RN. Assim, foram
buscadas fontes para investigação e trabalho da temática das mestiçagens neste local,
tendo em vista o conhecimento precedente fruto do trabalho do Prof. Luiz Assunção, de
tal maneira que, entre os meses de maio e setembro de 2017, foi realizada a digitalização
dos inventários post-mortem do Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos
(1788-1863), pelo Prof. Helder Macedo e Matheus Barbosa Santos.
Os primeiros dados e frutos do contato com essa documentação principiaram em
2018, provenientes de pesquisas e trabalhos realizados na iniciação científica por Maria
Alda Jana Dantas de Medeiros e Matheus Barbosa Santos, ambos orientados pelo Prof.
Helder Macedo. Tais fontes resguardam potencial de investigação em variadas temáticas,
sendo do nosso interesse nos debruçarmos acerca dos sujeitos e dos grupos não-brancos
que habitaram o Totoró colonial.
Desta forma, partindo do que foi exposto, pretendemos investigar representações
acerca dos indivíduos não-brancos29 no sertão do Seridó, em uma de suas vias fluviais, a
Ribeira do Acauã, mais especificamente no Totoró e suas adjacências, durante os séculos
XVIII e XIX. Acreditamos que a constituição e as vivências no Totoró não envolveram
apenas sujeitos lusitanos ou luso-brasílicos, bem como, não se restringiu somente ao
núcleo familiar dos Lopes Galvão, mas também houveram a presença e participação de
pessoas e famílias formadas por índios, negros, gentio da Mina, da Costa, de Angola,
crioulos, cabras, mulatos, pardos e mestiços30 nas condições de livres, cativos ou forros.
Buscamos compreender como estes indivíduos participavam e se inseriam nas dinâmicas
sociais, econômicas, políticas e religiosas do seu tempo e espaço, visando perceber

29
Consideramos, para fins desse estudo, aqueles considerados enquanto integrantes das matrizes puras:
índio, negro, preto e crioulo. Também trabalhamos com sujeitos qualificados enquanto mestiços, termo
utilizado para aqueles indivíduos frutos dos intercursos biológicos ocorridos entre pessoas que foram
qualificadas pelo Estado e pela Igreja como mamelucos, pardos, mulatos cabras e curibocas – qualidades
predominantes na Ribeira do Seridó. Dessa forma, não estamos tratando de uma categoria homogênea, mas
um termo plural e flexível, incluindo pessoas de diferentes qualidades e condições no contexto ultramarino.
Esse termo, configurando-se enquanto móvel e maleável, sofreu alterações ao longo do tempo e do espaço,
sendo empregado, inicialmente, para designar apenas os filhos de pessoas provindas da Europa com nativas
do Novo Mundo. Todavia, a partir do século XVIII, contemplou uma maior abrangência, definindo e
qualificando pessoas de diferentes tipos. Portanto, um conceito equivalente ao de mestiço seria o de
mestiçagem (PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015).
30
Qualidades presentes no Totoró e suas adjacências, conforme consta nos inventários post-mortem do
Arquivo da Vara Cível da Comarca de Currais Novos e do Laboratório de Documentação Histórica (1754-
1863).
27

táticas, estratégias e formas de resistência que driblassem os limites que a sociedade


colonial tentou impor.
Nossas delimitações espaciais se assentam no sertão do Seridó, em um dos
afluentes que constituiu uma pequena mancha populacional ao longo do seu curso, o
Totoró, desaguadouro na Ribeira do Acauã. Administrativamente pertencia a Freguesia
da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (criada em 1748) e do Termo Judiciário da Vila
Nova do Príncipe (instituído em 1788), situados na Ribeira do Seridó.
Banhados pelos rios Seridó, Acauã, Espinharas e Piranhas, a Freguesia do Seridó
foi desmembrada da Freguesia de Nossa Senhora da Guia de Patos, na Capitania da
Paraíba, em 1788. Em 1835, o território passou por outra remodelação frente ao
desmembramento da Freguesia do Acari, sob o culto de Nossa Senhora da Guia31.
Atualmente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o
Seridó se localiza na mesorregião central do estado do Rio Grande do Norte, abrangendo
17 municípios, dividido em duas microrregiões geográficas: o Seridó Ocidental,
abarcando os municípios de Caicó, São João do Sabugi, Ipueira, São Fernando, Timbaúba
dos Batistas, Jardim de Piranhas e Serra Negra do Norte; e o Seridó Oriental, contendo as
municipalidades de Currais Novos, Acari, Carnaúba dos Dantas, Cruzeta, São José do
Seridó, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Santana do Seridó, Parelhas e Equador32.
Para os fins deste trabalho, consideraremos o Seridó historicamente construído,
discutido por Ione Morais (2020), numa cartografia que ponderou a historicidade deste
espaço, formado por 23 municípios, que de forma direta ou indireta se desmembraram de
Caicó, primeira municipalidade constituída, apreciando um território atravessado por
relações políticas, econômicas e culturais, em uma relação histórica entre sociedade e
espaço33.

31
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças
nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
32
MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: Uma Geografia da Resistência.
Natal/RN: EDUFRN, 2020.
33
O Seridó cartograficamente construído contempla 23 municípios, são eles: Caicó, Acari, Jardim do
Seridó, Serra Negra do Norte, Currais Novos, Florânia, Parelhas, Jucurutu, Jardim de Piranhas, São João
do Sabugi, Ouro Branco, Cruzeta, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, São Vicente, São Fernando, Equador,
Santana do Seridó, São José do Seridó, Timbaúba dos Batistas, Lagoa Nova, Ipueira e Tenente Laurentino
Cruz. MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Op. Cit., 2020.
28

Mapa 02 – Mapa de Localização da Região do Seridó

Fonte: Malha Digital do IBGE. Disponível em: ftp://geoftp.ibge.gov.br. Adaptação feita por
Diógenes F. S. Costa, Jucicléa Medeiros de Azevedo e Francisco Fransualdo de Azevedo em 01
de maio de 2011.

Nossas balizas temporais compreendem os séculos XVIII e XIX, observando que


os fenômenos humanos aqui estudados não se fundaram e aconteceram tendo como
premissas marcos cronológicos bem definidos. No entanto, de forma mais delimitada,
tomamos como marco inicial, a partir da nossa documentação, a data de sesmaria
requerida pelo Capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo, Alferes Diogo Pereira de
Mendonça, João Batista de Freitas, Alferes Antônio Batista de Freitas e Antônio
Fernandes de Souza, no tocante ao Rio Quinturaré e/ou Picuí, na Capitania do Rio Grande
em 170134; nosso limite temporal, por sua vez, se estende até 1870, no registro de batismo
de Sebastião35, fonte mais longeva que trabalhamos.
Nossos intentos se inserem e dialogaram com uma produção acadêmica que se
preocupou em problematizar noções acerca de um sertão do Seridó discutido e constituído
em moldes conservadores, responsáveis por cristalizarem, em certa medida, uma noção
de que este espaço foi formado pretensa e unicamente por pessoas brancas, de grandes
homens e grandes feitos, irradiadores da civilidade e fé cristã. Estes trabalhos, objetivando
imprimir noções mais realistas e plurais sobre o Seridó, suas diversas gentes e cultura,

34
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque/Fundação Vingt-Un Rosado, 2002.
35
Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari (BNSGA), Secretaria Paroquial (SP). Livro de Batismo nº
07 (1868-1874). Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari (FNSGA), fl. 56v.
29

abriram caminhos e expandiram horizontes, possibilitaram a percepção de novas vias e


rotas que ainda podiam e podem ser trilhadas sobre os estudos do Seridó e dos sertões.
Dentre estes trabalhos, destacamos o de Maria Regina Mendonça Furtado Mattos,
preocupada em investigar e compreender a realidade socioeconômica da Vila do Príncipe
na segunda metade do século XIX. Trabalhou e discutiu acerca da estrutura fundiária e
do monopólio de terras nas mãos de grandes latifundiários. Suas atenções estiveram
centradas nas pessoas pobres e seus modus vivendi, tendo em vista que elas eram herdeiras
de um sistema de produção e mão de obra escravista, onde a atividade pastorícia e o
cultivo de lavouras se baseavam na subsistência. Essa estrutura social, econômica e
política, acentuada com os efeitos da seca que assolavam o sertão periodicamente,
potencializou o quadro de extrema pobreza que essas pessoas viviam36.
Douglas Araújo, por sua vez, investigou o desmoronamento das fazendas
agropecuaristas no sertão do Seridó, mais especificamente nos municípios de Caicó e
Florânia, durante os anos de 1970 a 1990. Seu trabalho se centrou na desestruturação da
velha sociedade rural existente na região e como os indivíduos viveram e assistiram o seu
antigo modo de vida se dissipar frente exigências de modernização do trabalho e da mão
de obra37.
Escravos em Ação na Comarca do Príncipe, trabalho de Ariane de Medeiros
Pereira, abordou ações escravas na Comarca do Príncipe, na Província do Rio Grande do
Norte, entre os anos de 1870 a 1888. A autora investigou como ocorreram negociações
sobre as condições do cativeiro e da liberdade por parte dos sujeitos escravizados,
entendendo estes agentes como pessoas que lutaram por melhoras condições de vida,
buscaram suas liberdades e recorreram a atos de resistência, considerados como
criminosos, afim de subverter o sistema em que eles estavam inseridos38.
O primeiro trabalho de Muirakytan Macêdo visa examinar o discurso regionalista
sobre o Seridó. Interessou compreender como e quando este espaço foi valorado,
contendo características unas nas suas pessoas, na terra e nos produtos que dali advinham.
Partiu como instante inicial das suas investigações, o final do século XVII, momento em

36
MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – Um
Estudo de Caso da Pobreza. 1985. 247f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1985.
37
ARAÚJO, Douglas. A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o Desmoronamento das Fazendas
Agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-1990). 2003. 225f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
38
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em Ação na Comarca do Príncipe: Província do Rio Grande
do Norte. 2014. 157f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014.
30

que o espaço do sertão do Seridó foi cartografado e territorializado por freguesias e vilas,
motivado pela expansão da pecuária. O limite final do seu estudo repousa nos discursos
regionalistas das elites algodoeiras-pecuaristas ao final do século XIX e início do XX39.
Seu segundo trabalho, intitulado Rústicos Cabedais, ponderou acerca do
patrimônio familiar nos sertões do Seridó durante o século XVIII. A temática do seu livro
é a história da família nos sertões da pecuária colonial, refletindo nas relações entre
cabedal familiar e cotidiano setecentista. Ao tratar do habitual dia a dia dos núcleos
familiares na colônia, Muirakytan Macêdo trata do território da terra à fazenda, da casa,
discorre sobre os corpos dos sujeitos, abordando aspectos das sesmarias e suas cerimônias
de posse, a produção das fazendas, a cultura material das casas e os ritos de vida e morte
dos indivíduos40.
Helder Macedo, em obra decorrente da sua dissertação de mestrado, objetivou
compreender algumas das modificações no território, nos corpos e nas almas das
populações indígenas causadas pelo fenômeno da ocidentalização no sertão da Capitania
do Rio Grande, em vista que a tentativa de imposição cultural ocidental acarretou na
morte de uma expressiva quantidade destes povos. Portanto, o autor percorreu os passos
dos remanescentes e decentes dos grupos nativos no que se instituiu enquanto a Freguesia
do Seridó e o Termo Judiciário da Vila Nova do Príncipe, entre os séculos XVIII e XIX.
Em outro trabalho, tendo como cerne o estudo de genealogias mestiças no mesmo
recorte espaço-temporal, Helder Macedo tentou perceber qual o lugar dos mestiços na
formação de famílias. Esse fenômeno abarca os núcleos familiares formados no período
colonial a partir de mestiçagens, ou seja, em que os sujeitos que formam essas parentelas
não descendem apenas de lusitanos ou luso-brasílicos. Destarte, o autor examinou a
trajetória e vida de três sujeitos – Nicolau Mendes da Cruz, Francisco Pereira da Cruz e
Feliciano da Rocha Vasconcelos –, motivado pelo empreendimento e representatividade
de suas experiências enquanto mestiços na colônia, no sertão do Seridó.
Por fim, citamos o trabalho de Maiara Araújo, que analisou o processo de
institucionalização da administração militar na Capitania do Rio Grande e o seu papel
institucional no processo de territorialização da Ribeira do Seridó entre os séculos XVII,
XVIII e XIX. Suas motivações recaíram no exame e ingresso de sujeitos mestiços na

39
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Penúltima Versão do Seridó: Uma História do Regionalismo
Seridoense. EDUFRN: Natal; EDUEPB: Campina Grande, 2012.
40
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos e Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
31

empresa militar, sobretudo daqueles que residiam no sertão do Seridó, afim de


compreender o lugar ocupado por estes indivíduos nas tropas coloniais em relação aos
que eram brancos, indígenas ou negros41.
Essas produções acadêmicas se preocuparam e investiram em desconstruir
concepções conservadoras sobre o sertão do Seridó, descortinaram e contaram a história
de outras formas e compreensões de mundo, de outras gentes, suas realidades e cultura.
Nossas inquietações, desta maneira, visam contribuir com essa produção historiográfica,
agregando novos conhecimentos a esses já produzidos, possibilitando novos olhares,
tramas e agentes que estiveram e viveram nessas plagas, mais especificamente nas terras
banhadas pelo Rio Acauã, no assentamento humano formado nas terras do Totoró,
sobretudo daquelas pessoas não-brancas, sejam livres, cativas ou forras.
Desse modo, trabalhamos e operamos com alguns conceitos, afim de que eles
alicercem, sustentem e possam contribuir para um melhor entendimento e compreensão
do fenômeno humano estudado. O primeiro deles é o conceito de “representação”, a partir
das discussões propostas por Roger Chartier, partindo da concepção de que toda leitura,
apreensão e compreensão sobre o que é nomeado enquanto diferente e distinto é uma
operação abstrata de intelecção, uma construção humana sobre outrem, utilizando e
mobilizando seu corpo, inscrevendo-o no tempo e no espaço. Essa atividade faz com que
se gere e se construa esquemas e sistemas de classificação, somados à formas de
representações coletivas, de práticas que constituem, tornam palatáveis e inteligíveis o
mundo social, a realidade e o passado.42 Essas noções que operam e articulam
representações no mundo social e simbólico partem de três eixos:

1º O trabalho de classificação e de recorte que produz as configurações


intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente
construída pelos diferentes grupos que compõe uma sociedade; 2º as
práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir
uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente
um estatuto e uma posição; 3º as formas institucionalizadas e
objetivadas graças às quais “representantes” (instâncias coletivas ou
indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuado a
existência do grupo, da comunidade ou da classe43.

41
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2019.
42
CHARTIER, Roger A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990; CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a História Entre
Incertezas e Inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS,
2002.
43
CHARTIER, Roger. Op. Cit, 2002, p.73.
32

Construir noções de representação é um instrumento essencial de análise cultural,


tendo em vista que este arcabouço simbólico, dotado de sentido e que visa a compreensão
e a inteligibilidade sobre o outro, sobre aquilo que é dito enquanto assimétrico, sobre o
passado e o modo de ser e estar na realidade social, opera para que pessoas compreendam
a sua própria sociedade, dirimindo desfoques de entendimento. No entanto, a
representação também é uma ferramenta capaz de mobilizar formas de poder, de fabricar
respeito e submissão, produzindo imposições, limitando e delimitando formas de viver,
apreender, estar e pensar o meio social, levando em conta aqueles que representam e são
representados, em um fluxo de poder e domínios em constantes disputas.
O conceito de representação é primordial para o campo da História Cultural,
discutindo a cultura como uma forma de expressão e decodificação da realidade,
produzida pelo universo do simbólico, conferindo sentidos aos atores sociais, suas
palavras e ações. Este domínio se interessou em decifrar e dar a ler a realidade do passado,
tentando alcançar formas discursivas e imagéticas pelas quais os sujeitos se expressaram
e manifestaram seus mundos. É certo que este é um processo complexo, dado a
impossibilidade de acesso ao tempo que passou, contudo, através dos sinais passados, dos
seus registros e daquilo que se faz presente na contemporaneidade, seu desafio implica
em chegar até o interior das sensibilidades que formaram o real em outro tempo e
espaço44.
Assim, o debate de Sandra Pesavento sobre o conceito abordado e o campo da
História Cultural, elucida que as representações construídas e gestadas sobre o mundo
não só se colocam em seus lugares, como permitem que os sujeitos percebem a realidade
e pautem sua existência através delas. Representar é estar no lugar de, é a presença de
uma ausência, um apresentar de novo. Deste modo, o conceito não pretende ser uma cópia
do real, uma imagem perfeita, mas um reflexo, algo construído e feito a partir dele45.
O segundo conceito manuseado é o de qualidade, coevo aos empreendimentos da
Ibero-América. Destrinchou Bluteau (1712) sobre esse termo:

Qualidade. Ou calidade. Nas Escolas dos Filosofos tem esta palavra


muytas, & muyto diversas accepções. Algũas vezes toma-se por aquella
razaõ, que determina a própria essência da cousa, & assim o que os

44
BURKE, Peter. O que é História Cultural? 2º Ed. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro/RJ: Zahar,
2004.
45
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 3º Ed. Belo Horizonte/MG: Autêntica,
2012.
33

Logicos chamaõ Differença, he chamado dos mesmos Qualidade


essencial, quando a qualidade determina algum ente exterormente, &
fora da essencia, entaõ chama-se Qualidade accidental, segundo alguns
Thomistas, qualidade he Accidente, consecutivo à fórma, segundo
outros da dita Escola, qualidade he, Modo, ou determinação do subjeyto
no seu ser accidental. A muytos, mais agrada esta definição, Qualidade
he hum Accidente absoluto, que aperfeyçoa a substancia assim no
obrar, como no ser. Mas he necessario confessar, que naõ se póde
perfeytamente definir a qualidade, porque nenhũa definição dela
convèm às especies da qualidade todas, sómente, & sempre, requisitos
absolutamente necessarios para hũa prefeyta definição. Divide se este
Accidente em qualidades espirituaes, que saõ proprias do
entendimento, como saõ Setecia, Opiniaõ, &c. ou proprias da vontade,
como he qualquer virtude moral; & qualidades corpóreas, como
Figura, movimento, quietação, grandeza. (...) Dizem os Criticos, que
foy Cicero o primeyro que alatinou esta palavra; porque os antigos
Latino usavão do concreto quale, & fugião do abstracto qualitas, como
de torpe barbarismo. Vide na letra C.Calidade46.

É possível notarmos, na definição acima, que o termo se refere as substâncias que


compõe o ser, não sendo possível se definir com precisão o que abrange a qualidade, haja
vista que nenhum ser ou espécie agrega o todo. Essa definição contempla o universo
espiritual, que seriam próprias do entendimento, da vontade e das “virtudes morais”.
Ainda, aspectos que tocam no corpo, na “figura, movimento, quietação e grandeza”.
Em seguida, Bluteau (1712) discorre sobre calidade:

CALIDAE. Accidẽte natural, ou propriedade de huma coufa. Qualitas,


atis [...]. O calor he huma calidade natural do fogo. Calor est nativa
ignis qualitas, ou ingenitus igni affectus.
O mesmo diz, que a cere fe faz com as flores, & o mel com o orvalho
da menhaã, & que ele toma hũa calidade tanto mais excelente, quanto
mais agradável he a materia, de que fe compõem a cera. Idem ait ex
floribus ceras fieri, ex matutino rore mella, que tanto meliorem
qualitatem capiunt, quanto jucundiore fit materià cera confecta. Taõ
benignas Calidades reconhecia o Anjo na luz, & tam rigorofas no Sol.
Vieira, Tom.I.25347.
Calidade. Prenda do corpo, como a belleza, ou da alma, como a
ciencia, & a virtude, &c. Dos,tis.Fem.Ovid.Ornamentum,i. Neut.Cic.
Tinhaõ os Graccos todas as calidades naturaes, & acquiridas para

46
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico,
Botanico, Brasilico, Comico, Crítico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico,
Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico,
Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico,
Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico, Ortographico, Optico,
Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitutivo(sic),
Rethorico, Rústico, Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico,
Technologico, Uranologico, Xenophonico, Zoologico: Autorizado com Exemplos dos Mehlores
Escritores Portuguezes, e Latinos; e Offerecido a El Rey de Portugal D. Joaõ V. Coimbra, Collegio das
Artes da Companhia de Jesu: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1712, p.09-10. 8 v.
47
BLUTEAU, Raphael. Op. Cit., p.60-61, grifo nosso.
34

fallar em publico. Graccbi amnibus vel naturae, vel doctrinae prafidys


paratierant. Os que tem eftas calidades, fam chamados engenhofes. Eas
virtudes qui habent, ingeniofi vocantur.Cic.5.de Fin.36. A calidade de
huma arvore. Arboris vatus.Cic.I.de Leg.45. Poffuya Metello todas as
calidades, que podem fazer hum moço digno de eftimação. Metelli
adolefcentia ad fummam laudem annubus rebus ornata. Cic.pro C.
Corn.I.Vid.Prenda
Calidade. Nobreza. Nobilitas, atis. Fem. Dignitas, atis. Fem.
Homem de calidade. Vir nobilis, ou genere clarus.
Homem de grande calidade. Vir nobilitate praftans, ou fumma
nobilitate praftans. Homo illuftris honore, ac [...] Cic.de Clari.174.
Hum homem defta calidade. Vir tali dignitate pracditus. Cic.pro
Cluent.

Diz respeito as propriedades que compõe alguma coisa, seja o calor produzido
pelo fogo ou todo o engenho em se fazer uma cera mais agradável a partir de determinadas
flores e do sol da manhã. Aqui, nos interessa a calidade intrínseca ao corpo, sua beleza e
alma, podendo ser naturais aos sujeitos ou adquiridas, tornando os indivíduos dignos de
estima e nobreza. Estamos falando, segundo Bluteau (1712), do “homem de calidade”,
tipicamente masculino, do genere clarus.
Eduardo Paiva evidenciou que os termos distinguiam as pessoas que possuíam
qualidade/calidade daquelas não tinham, ou das pessoas que tinham resquícios em menor
proporção ou intensidade. Era uma categoria empregada para diferenciar as formas dos
corpos, aparência e fisionomia. Estava associada aos preceitos de nobreza,
particularizando “nobres, brancos, ocidentais e cristãos” em oposição aos “mouros,
orientais e infiéis”.
Com os empreendimentos ultramarinos na América Portuguesa, estes conceitos
passaram por modificações, designando os fenótipos dos indivíduos que não eram nobres
ou brancos europeus. As qualidades, categoria adotada e usada de modo mais geral,
diferenciavam, classificavam e hierarquizavam os indivíduos e os grupos sociais a partir
de ferramentas que levavam em conta ascendência e descendência genealógica,
proveniência, origem religiosa, condição jurídica, seja o sujeito livre, cativo ou forro, a
ocupação, e aqueles elementos mais tangíveis, como a cor da pele, o tipo de cabelo e o
delineamento dos lábios e/ou bocas. Ainda, quando este exercício não era possível, os
elementos mais salientes e aparentes eram tomados para atribuir a qualidade48.
Este cenário possibilitou que Eduardo Paiva cunhasse o conceito de dinâmicas de
mestiçagens, mesclas biológicas – consentidas ou não – e culturais que pretendeu servir

48
Ibidem.
35

de suporte para compreensão das misturas, das mobilidades e dos trânsitos, além de
superposições e coexistências de elementos que não se misturaram ou deram origem a um
novo produto misto. Importou, sobremaneira, observar os processos históricos destas
mesclas, tendo conhecimento da participação e importância de agentes históricos não-
mestiços, tais como os índios, negros e brancos, que não eram definidos e nem se definiam
como provenientes de misturas.
Interessa ressaltar que os dois últimos conceitos supracitados não se configuram
enquanto fenômenos reguladores, fórmulas bem definidas e/ou delimitadas,
compreensões inflexíveis acerca de eventos que não retratavam um mundo unificado ou
uma realidade mestiça, mas se sobrepunha a diversidade de um conjunto, matizes e cores
de diversas formas e jeitos. Portanto, são conceitos flexíveis e maleáveis, que sofreram
modificações ao longo do tempo e do espaço, dependendo do contexto e das percepções
sociais em que estava inserido, tendo em vista que a qualidade eram formas de
representação dos sujeitos e podiam ser alteradas ao longo de suas vidas.
O autor ainda pondera que o emprego das qualidades também passava pelas mãos
de populares, das autoridades e dos autores de registros49, nos fazendo pensar acerca dos
atos de escrita, de tal modo que devemos considerar acerca de quem esteve entre a
pena/lápis e o papel. Ora, estes indivíduos, frutos de seus contextos, das suas leituras
sobre a realidade e dos seus filtros particulares, desempenharam consciente e
inconscientemente mecanismos de poder através da escrita50.
A tessitura das palavras não é imparcial, versa sobre a redação de algo, registrando
intenções através de estratégias e objetivos, portanto, um objeto ideológico. A escrita,
conhecimento restrito em se tratando do período colonial, se imbrica em uma malha de
poder, articulando jogos de dominação, participação, exclusão e mediando relações
culturais a partir e através do escrito51.
Entendemos a escrita como manifestação e artefato, produto e produtora de
cultura, na medida em que ela possibilita a materialização de pensamentos, intenções e
discursos. É capaz de viabilizar o contato das pessoas e as instituições de poder, sendo
compreendida enquanto uma dimensão da linguagem, em relação ao seu simbolismo e

49
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015.
50
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora PUC
Minas, 2016.
51
Ibidem.
36

materialidade. Silvia Rachi (2016) assimilou que a escrita é um ato humano, racional e
técnico, é a fixação da palavra, uma representação gráfica e visível da linguagem.
Mobiliza signos convencionais, sistemáticos e identificáveis, sendo uma produção
contextualizada, individual e/ou coletiva, por meio do qual os indivíduos registraram suas
experiências.
Estando este trabalho inserido no campo temático da História dos Sertões,
compreendemos o sertão enquanto uma categoria simbólica, forjada espacialmente e
temporalmente por agentes, discursos e práticas. É possível vermos o uso deste vocábulo
desde o século XII, mas ele foi debatido e empregado de forma mais preponderante a
partir do século XIV, se referindo a áreas localizadas dentro do território português, mas
distantes de Lisboa52.
Janaína Amado (1995) sustentou que estamos falando de uma categoria construída
de forma mais tangível e nítida durante a colonização, pois no século XV sertão é
empregado para nomear espaços vastos, que estavam situados no interior das possessões
conquistadas ou se localizavam contíguos a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam os
colonos. Isso fez com que sertão adquirisse uma acepção nova, vinculada ao ponto de
observação e localização do enunciante ao emitir o conceito.
Neste contexto, nasceram dualidades complementares, como “litoral” e “costa”,
oposta ao de sertão. Uma expressou/expressa o reverso da outra para além dos aspectos
geográficos que compõe a faixa litorânea e o interior, pois nas terras banhadas pelo mar
se denotava um espaço conhecido, que apesar de coabitarem outros povos, como índios
e negros, havia a presença do elemento branco colonizador, sua fé e cultura. Os recantos
do Novo Mundo, em oposição, eram espaços desconhecidos, muitas vezes inacessíveis,
perigosos e habitados, pela óptica colonial, por bárbaros e hereges53.
Em outra perspectiva, sertão significou para os nativos, os escravos, degradados,
miseráveis e leprosos a liberdade e possibilidade de vida frente a uma sociedade colonial
opressora. “Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem falava”54.
A partir do século XIX, vimos despontar dois sentidos de sertão presentes na
historiografia e na literatura: um se vinculou geograficamente ao semiárido, espaço do
interior, oposto ao litoral, como debatido; e o outro importou atividades econômicas e

52
AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV;
Ed. FGV, v. 8, n. 15, p. 145-152, jan./jul. 1995.
53
Ibidem.
54
AMADO, Janaína. Op. Cit., 1995, p., 150.
37

padrões de sociabilidade articulados à pecuária, geralmente caracterizando localidades e


regiões pouco povoadas55.
Entretanto, o sertão não se definiu/define do ponto de vista da geografia, como
um tipo empírico de lugar. Pouco importa, apenas, suas características naturais em relação
ao clima, relevo ou formações vegetais, pois o sertão aqui debatido e entendido não é
uma obra da natureza. Assim sendo, não podemos estabelecer delimitações, tornar
individualizável e cartografar localidades sertanejas, conquanto elas não atendem a
caracterizações geográficas56.
O sertão não é um lugar, mas uma condição, um conceito atravessado por variados
sentidos. É um símbolo, frente aos seus contextos históricos, que qualificou/qualifica
localidades e sujeitos, sendo este “momento empírico” variável através do espaço-tempo,
expressando uma forma preliminar de apropriação simbólica57. Por isto, como categoria
cultural, sertão tem o “poder de evocação de imagens, sentimentos, raciocínios e sentidos,
construídos ao longo da sua experiência história”58.
Essa apropriação e construção simbólica, dialeticamente produzida, foi
acompanhada de um projeto povoador, civilizador e modernizador, buscando a superação
da condição sertaneja. Candice Vidal e Souza (2015) demonstrou como o sertão foi
discursado enquanto espaço de fronteira, vazio dos referenciais de mundo lusitanos,
caracterizando terras que os olhos não alcançavam, onde pouco se sabia, no qual o dedo
indicador traçou horizontes capazes de se tornaram rentáveis ao projeto colonial e se
igualarem aos espaços de possessões estabelecidas, tentando eliminar qualquer
disparidade, aplainando diferenças, afim de uma realidade coesa59.
Tomando como base o que foi discutido até o momento, trabalhamos com três
conjuntos documentais, manuseados e problematizados ao longo desta pesquisa. O
primeiro deles é de caráter bibliográfico, onde nos propusemos realizar uma revisão
historiográfica, tomando como fontes-obras, sob propriedade do autor: Sinopse do
Município de Currais Novos (1975), de José Bezerra Gomes (1911-1982); Retoques da
História de Currais Novos (1985), de Celestino Alves (1929-1991); História de Currais

55
NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como Recorte Espacial e Como Imaginário Cultural. POLITEIA:
História e Sociedade, Vitória Conquista/BA, v. 3, n. 1, p.153-162, 2003.
56
MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão: Um “Outro” Geográfico. Terra Brasilis (Nova Série).
Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2003, p.1-8.
57
Ibidem.
58
NEVES, Erivaldo Fagundes Neves. Op. Cit., 2003, p.158.
59
SOUZA, Candice Vidal e. A Pátria Geográfica: Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. 2.ed.
Goiânia: Editora UFG, 2015.
38

Novos (2009 [1987]), de Antônio Quintino Filho (1911-?); e Totoró, Berço de Currais
Novos (2008), de Joabel Rodrigues de Souza (1937-2014).
Trabalhamos com fontes paroquiais, capazes de nutrir informações variadas
acerca dos sujeitos históricos, como seus locais de nascimento, qualidade, condição,
dentre outras nuances, como ascendência e descendência familiar, dia e causa mortis. São
elas: os assentos de batismo (1803-1809; 1814-1818; 1818-1822), de casamento (1788-
1809; 1809-1821) e de óbito (1788-1811; 1812-1838; 1838-1857) da Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, disponível para consulta online pelo site do
Family Search, onde seus registros físicos se encontram conservados na Casa Paroquial
São Joaquim, da Paróquia de Sant’Ana de Caicó/RN. Estes registros se encontram
indexados em um banco de dados no software Microsoft Access, modo pelo qual
operaremos essa documentação, construídos pelo Prof. Muirakytan Macêdo, Prof. Helder
Macedo e suas equipes de pesquisa, dos anos de 1999 em diante.
Também operamos, de forma mais pontual, alguns registros eclesiásticos
referentes a Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari, igualmente disponíveis para
consulta online pelo site do Family Search, onde seus registros se acham alocados na
Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari, na Secretaria Paroquial de Acari/RN. Os
registros são: os assentos de batismo (1868-1874) e de casamento (1835-1853; 1853-
1871).
Provenientes do meio jurídico, utilizamos cartas de alforria (1792-1814),
registradas e transcritas a partir dos livros de notas, que se encontram na Cidade Judiciária
de Caicó. Também indexadas nos bancos de dados, essa documentação pode nos fornecer
os processos de liberdade dos sujeitos até então cativos, quem eram seus senhores, suas
qualidades, dentre outras questões, como testemunhas e condições, quando houveram,
para alforria.
Utilizamos, também de caráter judicial, processos de arrolamento dos bens e
partilha de uma pessoa falecida, munindo nossos dados sobre o universo material do
sujeito, sua morada, atividades desempenhadas e demais informações, como o
conhecimento das pessoas em regime escravista, suas qualidades, e dos indivíduos que
compunham e participavam do processo inventariante, tais como os juízes, escrivães,
partidores e avaliadores. Usamos os inventários post-mortem do Fundo da Comarca de
Caicó (1737-1815), custodiados pelo Laboratório de Documentação Histórica
(LABORDOC), do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), disponível para consulta física e parcialmente
39

disponibilizado no sistema de gerenciamento dos acervos da UFRN. Também


trabalhamos com os processos de mesmo caráter do Arquivo da Vara Cível da Comarca
de Currais Novos (1788-1863), disponível para consulta digital através do autor.
Para o trabalho e manejo destas fontes, utilizamos a abordagem da Micro-História,
tendo como suporte os jogos de escala, discutidos por Jacques Ravel60. Nossas lentes,
como já explicitado, estão focadas e centradas no rastreio e compreensão das trajetórias
dos indivíduos não-brancos situados no sertão do Seridó, na Ribeira do Acauã, mais
especificamente no espaço do Totoró e suas adjacências. Com isso, mudaremos nossos
eixos e realinharemos nossas lupas afim de traçarmos diálogos macros a partir deste
fenômeno, seja na realidade da Capitania do Rio Grande ou em outros contextos da Ibero-
América.
Essa finalidade foi alcançada a partir da variedade de fontes que temos sob nossas
mãos, não sendo nossa pretensão o esgotamento das mesmas, por isso dialogamos com
perspectivas acerca da História Quantitativa e Serial61, auxiliando nos dados que tratam
sobre o número de pessoas não-brancas e mestiças situadas no espaço de nosso interesse,
léxico sobre o quantitativo das qualidades, de tal modo que conseguimos perscrutar e
verticalizar nossas análises utilizando o método do paradigma indiciário62, possibilitando
o recolhimento de indícios, esquadrinhando nossa documentação, com o objetivo de
coletarmos dados e os cruzarmos e compararmos com outras tipologias documentais e
realidades históricas.
Assim, também utilizamos o método onomástico63, tomando aquilo que os sujeitos
tem como uma de suas coisas mais preciosas: o nome. Ele será usado como fio condutor
para construção de redes de sociabilidade, sejam elas sanguíneas ou espirituais, e na
reconstituição de famílias e trajetórias.

60
REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas: a Experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
61
GUEDES, Roberto; FRAGOSO, João (Org.). História Social em Registros Paroquiais (Sul-Sudeste
do Brasil, Séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2016; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al
(Org.). História Quantitativa e Serial no Brasil: um Balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001; GUEDES,
Roberto; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Org.). Arquivos Paroquiais e História Social na América
Lusa: Métodos e Técnicas de Pesquisa na Reinvenção de um Corpus Documental. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2014.
62
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
63
GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O Nome e o Como: Troca Desigual e Mercado Historiográfico. In: A
Micro- História e Outros Ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989. p. 169-178.
40

Essa dissertação se estruturou em três capítulos: no primeiro, realizamos uma


revisão historiográfica acerca das fontes-obras supracitadas, pretendendo discutir os
silenciamentos dos indivíduos não-brancos na história do que hoje compreendemos
enquanto gênese do município de Currais Novos/RN.
No segundo capítulo, discutimos o processo de territorialização do Totoró e suas
adjacências, promovendo uma discussão acerca do léxico das qualidades e do fenômeno
das dinâmicas de mestiçagens, problematizando os agentes que estariam por detrás do
exercício qualificativo.
Por fim, no terceiro capítulo, estivemos dedicados acerca dos sujeitos não-brancos
cativos, daqueles que já tenham nascidos livres ou conseguiram sua liberdade por meio
de compra ou alforria, investigando suas dinâmicas sociais e redes de sociabilidade, afim
de percebermos formações de arranjos familiares e de microcosmos sociais, buscando
compreendermos suas estratégias e mecanismos de ascensão e inserção social.
41

1 – O TOTORÓ, SEUS CORPOS E HISTÓRIAS MONOCROMÁTICAS

1.1 Sertão Tudo, Sertão Nada

Sertão, lugar onde a racionalidade maniqueísta e binária da civilização


ocidental parece soçobrar. Quem carece que o bom seja bom e o ruim
ruim, que de um lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza, que pare o são longe do
doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do
pobre, não vá ao sertão. Os pastos aí não são bem demarcados; é um
mundo muito misturado. O sertão é barroco; não é clássico ou
neoclássico. É onde o pensamento se forma mais forte que o poder do
lugar; o sertão dá asas à imaginação; é ficção, fantasiação; é poesia,
mais do que ciência; é literatura mais do que história. Mas haverá
diferença? Sertão, onde se inventam maravilhas glorionhas, que depois
acabam sendo cridas e temidas. Onde comparece porca com ninhada de
pintos e galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado,
remendante, sem completação. O sertão é violência à racionalidade,
foge a todas as explicações, não se deixa governar nem pela razão; é um
espaço para os de meia-razão. O sertão se sente, é dentro da gente. Mais
do que um espaço demarcado, mais do que um mapa, é uma emoção,
uma memória, uma cartografia sentimental. É barulho de coisas se
rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, sem identidade,
trapos de ser, tudo incerto, tudo certo64.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em uma leitura de Grande Sertão: Veredas,


dissertou sobre uma história nacional e uma possível interpretação de país a partir da
temática do sertão, atravessada na obra de João Guimarães Rosa, face ao desenvolvimento
que pretendia e prometia colocar o Brasil nas linhas e nos eixos da modernidade, tendo
em vista a construção da capital federal no interior do seu território, projeto empreendido
pelo governo de Juscelino Kubitschek. O sertão foi compreendido para além de um lugar
georreferenciado e temporalmente delimitado, recaindo sobre a reflexão do ser, dos
sentidos, problemas e interrogações acerca dos ideais de região, nação e povo, fazendo
emergir novos olhares e releituras sobre estes conceitos65.
Fazendo uma bricolagem de trechos da obra estudada, o autor discorreu sobre o
sertão enquanto “tudo” e “nada”, abarcando noções como barbárie, distância e tristeza,
ao passo que se prometeu civilização, integração e esperança. É o lugar onde é possível o
fruir da imaginação e fantasia, na medida que os sonhos são solapados pela escassez da

64
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Quando a Gente Não Espera, o Sertão Vem: Grande Sertão:
Veredas, Uma Interpretação da História do Brasil e de Outros Espaços. Artcultura, v. 11, n. 18, p.195-
205, 2009, p.198.
65
Ibidem.
42

realidade difícil e limitadora. Se o sertão é um sentimento, ele se sentiu de maneira


controversa, num jogo de espelhos e reflexos, onde antes de ser já deixou de existir, e
quando foi se deparou com antagônicos, promessas e ambições de ser outra coisa, é “tudo
incerto, tudo certo”.
No sertão, onde diferenças duais e maniqueísmos se manifestaram e conviveram,
nesta expressão barroca que lhe é própria, Euclides da Cunha (1984), em sua obra célebre,
intitulada Os Sertões, discorreu sobre as gentes que ele encontrou e conviveu enquanto
cobriu o crime e o assalto que foi a Campanha de Canudos. Sobre estas pessoas,
etnologicamente indefinidas, diz o autor:

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos,


prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando
reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam
vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um
retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o
tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o
cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do
primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos
dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças,
breve existência individual em que se comprimem esforços
seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-
os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em
tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências
antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num
organismo isolado. Não se compreende que após divergirem
extremadamente, através de largos períodos entre os quais a História é
um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito,
combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo
distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas
algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se
acrescentam, subtraem-se ou destróem-se segundo os caracteres
positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mamaluco
ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a
energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual
dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso
possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos
fulgurantes, às vezes, mais frágeis, irrequietos, inconstantes,
deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela
fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça
menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre
as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos
predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta —
não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de
associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental
repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o
conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o
automatismo impulsivo das raças inferiores66.
66
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984, p.43, grifo nosso.
43

No lugar que pode e tem potencial para abarcar e ser tudo, criando e nascendo
coisas maravilhosas, o sertão, policromático em suas gentes, em seus genes e na sua tez,
recaiu sobre uma realidade “crida e temida”. Euclides da Cunha (1984), embebido e
influenciado pelas teses da eugenia, discutidas ao longo do século XIX, se preocupando
com conceitos de “evolucionismo” e “raça”, presentes na citação acima, acreditou que os
descendentes de pessoas de diferentes etnias são prejudiciais, um retrocesso. O indo-
europeu, ponta e norte do que seria o desenvolvimento humano, com o contato cultural e
biológico com povos indígenas e africanos, em estágios evolutivos inferiores, anulariam
qualidades e potenciais do primeiro, sendo o fruto desta relação um desequilibrado e
desarmonioso traço na régua evolutiva67.
O mestiço, contemplando qualidades destas três raças diferentes, para usar o
conceito vigente na época, era um decaído, pois essas características não se justapõem ou
se somam, mas se anulam, se subtraem e se dizimam. Todavia, apesar da carga pejorativa
que o conceito de sertão carregava/carrega, desqualificando os lugares e humanidades a
ele relacionadas, o sertanejo não teria “o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos
do litoral”68, pois o isolamento promovido por sua localização nos rincões do Brasil havia
sido benéfico, evitando que eles fossem degenerados e corrompidos moralmente, como
discorreu o autor:

Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do


litoral. São formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições
do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O
sertanejo tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o
meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente,
reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas
aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente69.

Desse modo, o mestiço ensejado no sertão é um retrógrado, não um degenerado.


Essa distinção humana e espacial é importante, pois temos o recorte e o modelamento
inicial de um território que se constituiria, na lógica de Euclides da Cunha (1984),
enquanto nacional, estabelecendo um tipo étnico específico, que representasse e
encarnasse a nação, ou seja, o sertanejo.

67
Ibidem.
68
CUNHA, Euclides da. Op. Cit., 1984, p.51.
69
CUNHA, Euclides da. Op. Cit., 1984, p.49.
44

Discutindo os conceitos de “sertão” e “nação” presentes na obra Os Sertões,


Ricardo Oliveira (2002) buscou compreender o mito da brasilidade sertaneja construída
por Euclides da Cunha (1984). O tempo, no sertão, passa de outro modo, numa rítmica e
dimensão diferente, é o ponteiro das origens cósmicas e imemoriais da nação, onde os
mestiços sertanejos são uma raça distinta, elaborada nos rincões selvagens e profundos,
não removendo “no escritor a possibilidade de afirmar que nos sertões estavam os
verdadeiros brasileiros, pelo menos em forma embrionária, carregando dentro de si a
responsabilidade de fazer a nação”70 protegida do corrosivo estrangeirismo do litoral. O
Brasil, no seu íntimo território e na potencial pluralidade de sua gente, resguardaria sua
verdadeira autenticidade.
Indo de contra mão, tentando “demarcar seus pastos”, abandonar o barroco que
lhe é próprio, traçando e fabricando uma identidade e um jeito de ser, o sertão do Seridó
foi escrito e discursado em uma paleta monocromática, numa tez comum e de tons claros
por escritos produzidos ao longo do século XX, que reforçaram e valorizaram sujeitos e
famílias com ascendência lusitana na gestação e formação do Seridó. Esses trabalhos,
segundo Helder Macedo (2020), estavam centrados na eleição de “patriarcas” para
famílias que detinham o poder político e econômico destas terras, responsáveis por
desbravarem, se estabelecerem e povoarem este espaço com seus descendentes,
sinônimos de civilidade e alta moral, responsáveis pela prática da fé cristã, onde seus
troncos genealógicos frondosos se apresentam e se estendem até os dias atuais71.
Esses discursos refletiram, segundo o autor, numa tentativa de branqueamento da
história e da genealogia do sertão do Seridó, pari passu aos silenciamentos de pessoas
não-brancas na territorialização deste espaço, suas contribuições nas mais diversas esferas
sociais, na constituição e formação de famílias que também povoaram e deixaram seus
entes neste chão72.
Para os fins deste trabalho, tomamos o discurso enquanto método de compreensão
dos objetos da linguagem, considerando sua constituição, formação e significação
tangível, encarando-a como um fato visível, portanto, dizível. Eni Orlandi (1990),
debatendo o instrumento metodológico, sublinhou que a história tem fundamental
importância para quem se dispõe em analisar os enunciados, não sendo entendida somente

70
OLIVEIRA, Ricardo. Euclides da Cunha, Os Sertões, e a Invenção de um Brasil Profundo. Revista
Brasileira de História, vol. 22, n. 44, São Paulo, 2002, p.524.
71
Para saber mais: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias
Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
72
Ibidem.
45

na sua dimensão temporal, mas ligada ao que se pratica, se sente, suas relações de poder
e políticas, aquilo que se localizou no interior, percebendo os confrontos, se preocupando
com a historicidade do que é/foi falado, como e quando, suas intenções e objetivos73.
O discurso é histórico e dotado de historicidade, pois ele tem capacidade de
influenciar novos acontecimentos, seja manipulando o passado, alterando percepções do
mundo real/presente, ou colocando arestas acerca dos pensamentos e possibilidades de
futuro. O caráter histórico atravessado e entranhado nos discursos opera no plano da
ideologia, pois “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”74, de tal modo
que os indivíduos só produzem unicidade nas suas relações com e a partir linguagem, na
medida em que ela parcialmente se torna una quando é possível de dizê-la. A ideologia,
nos processos de significação e direcionamento, a partir do exercício de interpretação do
sentido, produz e carrega consigo o político, frente a impossibilidade dos seres humanos
não significarem, lerem e apreenderem em condições específicas dada realidade
histórica75.
Dessa forma, todo dizer tem uma relação primordial com o não-dizer, nos levando
para errância dos sentidos, provocando equívocos, formações incompletas e
fragmentadas, do fugaz e do não palpável. Eni Orlandi (2007), preocupada com o silêncio,
apontou que essas configurações desformes e errantes da linguagem não são meros
acasos, mas funcionam como seus cernes. Ora, há modos de estar em silêncio que
significam estar no sentido, distintivamente do que se tem entendido enquanto “implícito”
ou presente nas entrelinhas, há dimensões do silêncio que produzem sentidos76.
O silêncio, presente e atravessado nas palavras, possibilitando formações e
movimentos de sentidos, é encarado como “fundante”, pois “quando dizemos que há
silêncio nas palavras, estamos dizendo que elas são atravessadas de silêncio; elas
produzem silêncio; o silêncio ‘fala’ por elas; elas silenciam”77. Nesse sentido, longe de
ser um delimitador, o silêncio permite significação e interpretação, abrange o múltiplo e
o plural, não permite que “um” seja estanque, mas cause movimentos nos campos do
simbólico e nos sujeitos, pois para que o sentido faça sentido é necessário esse recuo da
palavra.

73
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
74
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 1990, p. 36.
75
Ibidem.
76
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007.
77
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 2007, p.14.
46

O elemento que vai permear formações discursivas, imbricadas com suas formas
de silêncio, é a história, a historicidade do texto, constituída pelo seu supra e intra
contexto, dos sujeitos e suas ideologias, presente na tessitura da materialidade linguística.
Aqui, não nos interessou somente o discurso pronto, formação linguística modelada e
dada, muito menos observar a historicidade dos escritos tentando traçar uma linha
transversal no tempo e no espaço, afim de estabelecer uma continuidade, se esforçando
para evidenciar um pulsado vibrante no presente. Almejamos, desta feita, perceber a
proliferação e composição dos acontecimentos, do fenômeno aqui investigado.
Por isso, traçamos diálogos com Michel Foucault acerca do conceito de
genealogia. Contrariamente ao continuum que o termo se refere em seus outros usos –
como na constituição de árvores genealógicas familiares –, sua meta é manter o que se
passou na dispersão que lhe é própria, demarcando os desvios, acidentes, (des)encontros,
conflitos e (des)caminhos que geraram dada coisa, dado objeto. Portanto, “é descobrir
que na raiz daquilo que nós somos – não existem a verdade ou o ser, mas a exterioridade
do acidente”78.
Essa tentativa de branqueamento da história e da genealogia familiar, também foi
um fenômeno percebido, de maneira mais específica, nas narrativas acerca da história do
município de Currais Novos/RN, onde é possível vermos recorrências e semelhanças dos
discursos que abarcaram o Seridó em sua amplitude. O Poti, jornal de veiculação no Rio
Grande do Norte, em edição de 1976, dedica um texto ao Capitão-mor Galvão, cujo título
é Homens do Seridó Antigo:

Vários estudiosos da crônica seridoense já se ocuparam do capitão-mor


Cipriano Lopes Galvão. Pretendemos aqui apenas traçar-lhe um perfil
de poucas linhas e tratar dos fatos que deram origem, ou foram ligados,
em nosso modo de ver, à fundação de Currais Novos.
[...]
Contam-se aos milhares os descendentes dessa notável figura dos
tempos coloniais. A família Lopes Galvão ramificou-se, em
numerosos rebentos. Um deles é a família Bezerra procedente de
Teresa Maria José, de São Bento, o que vale dizer, os Bezerra do Seridó.
No começo da segunda metade do século XVII existiam no sertão três
Regimentos de Milícia: o da ribeira do Açu, o da ribeira do Apodi e o
da ribeira do Seridó. Neste último um Cipriano Lopes Galvão era
coronel. Um Cipriano Lopes Galvão, com certeza o segundo, mais tarde
foi nomeado capitão-mor de Ordenanças para a Vila do Príncipe e a
Freguesia da Serra do Cuité. Escolhia-se esta classe de autoridade
entre os homens de maior força moral numa região, independentes
e abastados, visto como tinha de manter a tranquilidade geral e

78
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 22.
47

proceder com justiça, às suas próprias expensas. Podiam dispor de


soldados, que faziam parte das Ordenanças, em determinados casos.
Não raro, os capitães-mores eram arbitrários e violentos; o capitão-
mor Galvão, entretanto, era um homem justo, de boas maneiras,
enérgico sem ser violento, provido com abundância, vestindo-se
bem e de passadio franco e variado em sua casa, onde havia mobília
regular, aparelho de porcelana, faqueiro, copos e salva de prata. Os
arreios de montar eram de fino acabamento, e de prata as peças
metálicas.
Mas como fisicamente se apresentava? Conversamos com alguns
descendentes dedicados à história regional, como José Braz de
Albuquerque Galvão, e nenhum possuía a respeito conhecimento
seguro. A deduzir das características gerais da família, conjetura-
se que ele fosse alto, corpulento, vermelho, de cabelo alourado.
Talvez bem corado, de pestanas amarelo-claras que não protegem
satisfatoriamente os olhos contra a luz solar.
[...]
Considera-se o capitão-mor Galvão como o fundador de Currais
Novos por haver construído a capela consagrada a Santana, que em
maio de 1908 já estava pronta para os ofícios religiosos. No fim do
século passado esta capela foi demolida e no lugar levantada a nova
igreja.
[...]
Não há dúvida de que Cipriano Lopes Galvão, o primeiro, e o filho de
igual nome, que continuou as atividades paternas, viveram na sede da
Fazenda Totoró e possuiam extensas áreas de terra em aberto, isto é, em
terrenos que na época não eram cercados. O gado, espalhado em pastos
de léguas em léguas, bebia no verão em poços de rios e riachos, bem
como olhos d’água, nas vizinhanças de suas malhadas.
O capitão-mor sempre morou no Totoró, segundo declarou no
testamento datado em 6 de dezembro de 1813, sete dias antes de falecer
aos 60 anos de idade presumíveis, de um antraz (septcemia).
É verdade que tinha casa da rua, para hospedar-se por poucos dias, em
Acari, Caicó e por fim na povoação de Currais Novos. Preferia residir
em Totoró. Deveria gostar da paisagem bonita e grandiosa descortinada
de sua casa. Além do mais, havia lá as pequenas comodidades e
conveniências com que se acostumara.
Possuia terras que se estendiam à Serra de Santana, à Serra do Piauí, ao
Catunda, ao Juazeiro do Cipó, à Serra da Dorna, ao Quinquê, conforme
também seu testamento [...]79.

Anteriormente discutido, a família Lopes Galvão versou nos estudos e nos escritos
de pessoas que se dedicaram acerca da história e genealogia do Seridó, recorrentemente
ligados à fundação da cidade de Currais Novos/RN. Esse núcleo familiar teria chegado e
se assentado nas terras do Totoró, por volta do século XVIII, povoaram este chão com
seus descendentes, presentes até os dias atuais na região e município referido.

79
ROSA, Jayme Santa. Homens do Seridó Antigo: Capitão-Mór Galvão. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=031151_03&pesq=Cipriano%20Lopes%20Galv
%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pagfis=6656>. Acesso em: 24 de set. 2021, grifo nosso.
48

Ocupando cargos no Regimento de Ordenanças do sertão da Capitania do Rio


Grande, o primeiro Cipriano Lopes Galvão despontou entre os homens de maior força
moral e autoridade da região, capaz de exercer justiça e assegurar a ordem. No trecho,
direcionado de forma mais particular ao filho, assinala que os capitães-mores eram
arbitrários e violentos, entretanto, o segundo Cipriano Lopes Galvão era um homem
íntegro, de boas maneiras, capaz de ser enérgico sem ser violento, de boa aparência,
residindo numa casa de mobília regular, onde até os arreios do seu cavalo se destacavam
por serem de prata e fino acabamento.
Não sabendo ao certo quais feições tinha o capitão-mor Galvão, o autor da matéria
fez um balanço dos traços fenotípicos dos descendentes de sua família, descrevendo um
homem alto de considerável massa corpórea, cabelos alourados e tez vermelha,
provavelmente corado, possivelmente pela branquidão de sua pele castigada pelos raios
solares.
Fazer e contar sua história, dotá-lo de valores íntegros, de alta moral e ética, prover
um corpo onde repousam estas qualidades, corporeidade bem definida e colocada como
modelo, Jayme Santa Rosa (1976) fez sobressair neste e em outros de seus escritos,
segundo Helder Macedo (2020), os colonizadores de origem lusíada, detentores de uma
longa tradição de cultura e organização, das artes e dos ofícios, legadas pelos “romanos,
godos e árabes, sociedades que participaram da formação dos territórios da Península
Ibérica”80.
Estes ecos, perpetuação destas narrativas e personagens, se fizeram e fazem
presentes quando os discursos históricos sobre o Totoró, embrião de Currais Novos/RN,
são mobilizados e contados. No Inventário Turístico de Currais Novos – RN (2019), feito
pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo, em parceria com
a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e o Centro de Ensino Superior
do Seridó (CERES), também esboçaram uma narrativa histórica acerca deste município81:

Inicialmente habitada por índios Cariris, o município de Currais


Novos tem sua origem ligada ao período conhecido como Ciclo do
Gado, no século XVIII. No ano de 1755, o Coronel Cipriano Lopes
Galvão, vindo de Igarassu, PE, onde casara com dona Adriana de
Holanda e Vasconcelos, fixou residência na “data do Totoró”,
estendendo pela região do “São Bento” uma fazenda de gado. Na

80
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
81
TAVEIRA, Marcelo da Silva (Coord.). Inventário Turístico de Currais Novos - RN. Currais
Novos/RN: UFRN, 2019
49

bifurcação dos rios Totoró e Maxinaré, confluência de vaqueiros,


construiu, em 1760, uma casa e três “novos currais”, de pau-a-pique
com troncos de aroeira, usados para o gerenciamento da criação,
compra e venda do gado. O Coronel Cipriano Lopes Galvão morreu em
1764, deixando seis filhos.
O primeiro de seus filhos, o Capitão-Mór Cipriano Lopes Galvão
(nascido em 1753), proprietário do Sítio São Bento, a pedido do pai,
constrói uma capela em honra de Sant’Ana, custeando e doando “meia
légua de terra”, na ponta da Serra do Catunda, para patrimônio da santa.
Em 1808, devido ao desenvolvimento agropecuário, já havia outras
famílias de colonizadores fixados na região, constituindo um
povoado. Assim em 26 de julho de 1808, concluída a capela,
realizou-se a primeira procissão com a imagem de Sant’Ana
(trazida do Recife), levada pelo Capitão-Mór, sua família, criados
e amigos, do Totoró até a capela.
[...]
Quanto a sua denominação, deu-se que os famosos “currais novos”,
construídos pelo Capitão-Mór Galvão, tornaram-se símbolos do
desenvolvimento pastoril da região, passando a designar, com o tempo,
a fazenda, a capela, o povoado, a vila, e, consequentemente, o próprio
município82.

Neste breve resumo sobre a história da cidade, que se formara a partir do Totoró,
temos a demarcação de uma ocupação indígena nestas terras antes da chegada da família
Lopes Galvão. No entanto, esses povos são mencionados em uma única frase,
desaparecendo ao longo do texto, silenciados quando a narrativa se detém aos efeitos da
colonização, suas outras gentes e cultura83.
Por volta de 1808, em decorrência da prosperidade da atividade pastorícia, é que
se mencionou sobre outras “famílias colonizadoras” que haviam se fixado nesta terra,
provavelmente herdeiras e detentoras de princípios conservadores e valores lusos aos
moldes do que já foi dito sobre os Lopes Galvão. Saindo em procissão do Totoró em 26
de julho do mesmo ano, o capitão-mor Galvão e sua família, “criados e amigos”, seguiram
até a capela erigida sob voto de Santa Ana, na ponta da Serra do Catunda, meia légua de
terra doada para o patrimônio da santa pelo segundo Cipriano Lopes Galvão, atendendo
aos pedidos do seu pai. Soubemos, levando em consideração o contexto histórico e o
inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes Galvão, que estes “criados”

82
TAVEIRA, Marcelo da Silva (Coord.). Op. Cit., 2019, p.15.
83
O grupo indígena mencionado acima, nomeado enquanto Cariri, segundo Helder Macedo (2011), não
habitou o sertão do Seridó. O designativo de tapuia, pejorativamente dado aos nativos que habitavam os
sertões, não se constituíam enquanto uma população amorfa ou genérica, mas por uma diversidade étnica
e cultural dos indígenas espacialmente localizados no sertão: Kariri, Kaririwasy, Cereryjouw e os Tarairiu.
Chefiados pelo principal Janduí, os Tarairiu se situavam na Capitania do Rio Grande, também nas plagas
do Seridó. Para saber mais: MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio
Grande do Norte: História e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
50

seriam, provavelmente, os escravos que estiveram sob sua posse e residiam nesta
espacialidade84.
Não nomear estes “criados” enquanto escravos, é uma das formas de
silenciamento que encontramos através dos eufemismos, discursos tornados visíveis e
dizíveis, mas incapazes de abranger e evidenciar o caráter desconstrutivista dos métodos
de silêncio, já que eles não têm marcas formais, mas se apresentam através de pistas, de
traços e de outras coisas e palavras que não abarcam sua significação85.
A linguagem é a categorização do silêncio, produz e enrijece os sentidos,
representando uma disciplinarização da palavra, do dizível e do audível. Serve para
administração, gestão e delimitação da significação, sendo “à unificação do sentido e à
unicidade do sujeito”86. Desta forma, considerando o que se reverberou/reverbera acerca
do sertão do Seridó e de algumas narrativas que tratam sobre a história do município de
Currais Novos/RN, como acima exemplificadas, acreditamos que os autores que trataram
e se dedicaram em tecer e contar a história deste local sofreram influência e reforçaram
tais discursos, numa tentativa de não apenas representar o real, mas de instituí-lo através
deles e dos seus escritos.

1.2 Sinopses do Totoró, Retoques de Currais Novos

Levando em consideração a ordem cronológica das obras, iniciaremos com


Sinopse do Município de Currais Novos, de José Bezerra Gomes (1911-1982). Formado
em Direito pela Universidade de Minas Gerais, foi membro efetivo da Ordem dos
Advogados do Brasil – Seção do Rio Grande do Norte/Natal-RN, do Instituto
Genealógico Brasileiro e membro fundador da Academia Potiguar de Letras87, sendo
imortalizado na cadeira nº 7, patrocinada pelo Prof. Angione Costa. Nascido na Vila de
Currais Novos, no Sítio Brejuí, foi vereador nessa cidade entre os anos de 1948 a 1953,
também romancista, ficcionista e poeta88.

84
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem. Caixa 02 (1814-1832), Inventário post-mortem de Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS. Currais Novos/RN.
85
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007.
86
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 2007, p.26.
87
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
88
Não é do nosso interesse nos debruçarmos acerca da vida e obra dos autores estudados para além dos
eixos que delimitamos. Nossas preocupações repousam, como já explicitado, no silenciamento de
indivíduos não-brancos em escritos acerca do município de Currais Novos/RN, no período colonial. Não
obstante, para saber mais acerca do autor aludido, é possível visitar a Fundação Cultural José Bezerra
51

A obra, baseada em fontes documentais e diálogos bibliográficos, citou uma carta


de doação, de 5 de março de 1535, outorgada ao donatário João de Barros, associado de
Aires da Cunha, em que já foi possível termos uma das primeiras menções “ao primitivo
sertão do Acauã, conhecido por sertão do Seridó”89. “Acauã”, segundo o autor, é um
vocábulo de origem tupi, formado do wa-ká-wã, o mesmo que sanã-de-sanambaia, uma
espécie de gavião.
Também elucidou acerca do vocábulo “Seridó”, afirmando que o mesmo tem
origem Kariri, formado por ceri-tob, significando “pouca folhagem”. Gomes (1975)
discorreu sobre este grupo indígena alegando que o mesmo foi afastado do litoral para o
interior, diante da chegada do “branco conquistador” e da “supremacia da raça tupi” em
todo o litoral do que hoje se compreende enquanto Nordeste.
Mencionou sobre práticas e costumes destes nativos, citando o cultivo de
mandioca, o plantio do algodão, fabricação de objetos caseiros a partir do manejo da
cerâmica, seus hábitos de se banharem em rios e religiosamente adorarem a lua. Ainda,
citando Francisco Adolfo Varnhagen, José Bezerra Gomes (1975) assegura que a
denominação de “cariri” quer dizer “tristonho”, “calado” e “silencioso”.
Esbanjavam disposição e saúde, alcançavam vida longa, sendo uma herança
“racial do índio cariri a chamada cabeça chata. Manifesta no pronunciamento do tipo
morfológico nordestino”90. No antigo sertão do Acauã, o tuxaua Canindé era “rei entre os
seus”, uma das principais figuras reveladas pelos embates da Guerras dos Bárbaros,
ocorrida na metade do século XVII.
Após o fim dos conflitos, quando houve a pacificação da região sublevada, em
1688, segundo o autor, o testemunho da presença indígena na região do Seridó era
encontrado através de inscrições rupestres, remontando “uma civilização apresentada
como avoenga”91.
Mesmo após essa breve explanação acerca dos vocábulos nativos, suas práticas e
seus costumes, José Bezerra Gomes (1975) evocou o coronel Cipriano Lopes Galvão,
titular da Data de Sesmaria do Totoró, Primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria do
Seridó, casado com Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, e defendeu que eles foram
“os primitivos povoadores do chão curraisnovense, nele se situando com fazenda de

Gomes, situada em Currais Novos/RN, ou conhecer a obra: SOUSA, Joabel Rodrigues de. Centenário de
José Bezerra Gomes. Currais Novos/RN, 2011.
89
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 07.
90
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 08.
91
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 10.
52

gadaria (Totoró) e aviamento para o fabrico de farinha (Serra de Santana), depois de


1755”92.
Gomes (1975), dialogando com Nestor Lima, afirmou que o coronel Cipriano
Lopes Galvão mandou construir novos currais na bifurcação entre os rios Maxinaré e
Totoró. Caracterizado enquanto um homem de certo gosto e requinte para o período em
que viveu, o autor afirmou que ele mandou fazer currais de pau a pique dos troncos de
aroeira, sendo bem aparados, ao ponto de pessoas virem de longe para verem os currais
novos, que denominou “a fazenda, depois a capela, o povoado, a vila, o município, a
comarca e a cidade, consagrando-se, de público, a homenagem a uns currais bem
acabados, como símbolo do desenvolvimento pastoril daquela região”93.
O autor discorreu sobre a ascendência genealógica do primeiro Cipriano Lopes
Galvão, filho do coronel Cipriano Lopes Pimentel e de Dona Teresa da Silva, moradores
em Goianinha, na atual Rio Grande do Norte. Seu avô paterno foi o sargento-mor
Francisco Lopes, que desempenhou papel de importância na reconquista da Capitania do
Rio Grande, casado que foi com Dona Joana Dorneles Pimentel94.
Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, por sua vez, descendia de Arnal de
Holanda, um dos homens nobres que acompanhou Duarte Coelho, sendo filha de João da
Rocha Moura e de Dona Maria Madalena de Vasconcelos, naturais da Capitania de
Pernambuco. Quando o primeiro Cipriano Lopes Galvão faleceu em 1764, ela contraiu
matrimônio pela segunda vez com Félix Gomes Pequeno. Voltando a enviuvar, adquiriu
terceiras núpcias com o coronel Antônio de Silva e Sousa, da Vila do Príncipe (atual
Caicó)95.
Estendendo suas atenções para a família Lopes Galvão, reconstruindo sua
descendência em duas gerações, afirmando o valor, importância, protagonismo e prestígio
destes desbravadores e povoadores, José Bezerra Gomes (1975) escreveu sobre o
processo de mestiçagem ocorrido no sertão do Seridó entre os elementos de origem
portuguesa e os remanescentes indígenas, fazendo nascer o que ele se referiu enquanto
mamelucos e caboclos (curibocas).
Na sua obra, destacou que o povoamento do sertão da Capitania do Rio Grande
teve como predomínio o desenvolvimento da atividade pastorícia, não exigindo grandes

92
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 10.
93
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 27.
94
Ibidem.
95
Ibidem.
53

quantidades de mão de obra como na lavoura canavieira. Desta forma, os escravos de


origem africana representavam “elemento de abastança”, pois segundo o autor “o negro
se adaptava melhor a vida agrícola, enquanto o índio se afeiçoava a vida pastoril do campo
de criar”96.
Mesmo tentando atenuar a presença do elemento negro, José Bezerra Gomes
(1975) apontou sobre a influência étnica exercida por estas pessoas, citando o
aparecimento do elemento mulato, que seria “fruto dos amores ávidos do elemento
português, luxurioso”97.
O autor de Sinopse do Município de Currais Novos, citou o levantamento sobre o
número de habitantes do Seridó, datado de 1824, feito e organizado pelo vigário e padre
Francisco de Brito Guerra, da Freguesia da Vila do Príncipe, onde apresentou os seguintes
números: Brancos – 2.112; Pardos – 2.799; e Pretos – 1.45598. Em um total de 6.366
pessoas, foi possível percebermos a predominância de elementos não-brancos no
levantamento em contraposição dos que foram nomeados enquanto brancos. Todavia,
para Gomes (1975), “observa-se a presença ainda hoje viva do elemento branco, de olhos
azuis e cabelos brancos, caracterizando o seridoense, enobrecido pela sua origem
genealógica, oriundo do antigo marinheiro (dólico-louro), de origem lusa, lembrando
loirões e alentajanos, originários de Portugal”99.
Dialogando na mesma perspectiva, Celestino Alves (1929-1991) foi vendedor de
redes e cobertores, mestre de obras, radialista, guarda fiscal e vereador na cidade de
Currais Novos/RN; dirigiu a Associação de Poetas Populares do Rio Grande do Norte
(1988) e foi membro da Sociedade de Vaqueiros e Montadores do Seridó100. Fruto de um
trabalho com mais de 30 anos de pesquisa cartorial e paroquial, de relatos orais, Retoques
da História de Currais Novos, nas palavras do autor, “é uma homenagem que presto, à
minha cidade e às famílias, que, com tanto amor e carinho a construíram, legando-nos um
passado digno, cheio de brio e honradez [...]”.101 Este passado, por sua vez, se inicia com
o reforço das narrativas acerca da família Lopes Galvão, não havendo nenhuma menção

96
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41.
97
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41.
98
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 42.
99
GOMES, José Bezerra. Op. Cit., 1975, p. 41-42.
100
DANTAS, Fabiana Alves. A Produção de Uma História Local: Concepções de História e Memória
na Obra de Celestino Alves. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). João Pessoa, 2021.
101
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985, p.11.
54

em relação aos povos autóctones que estavam situados nesta espacialidade antes da
chegada dos colonos.
Celestino Alves (1985) afirmou que o coronel Cipriano Lopes Galvão foi o
“primeiro morador civilizado” da atual cidade de Currais Novos/RN, defendendo que a
ocupação do Totoró era anterior ao ano de 1720, quando do falecimento do seu pai, já
que o mesmo não herdara terras, apenas punhos de prata e uma casaca de baeta preta. O
requerimento da sesmaria em 1754 não se refere, necessariamente, ao ano de ocupação
das terras, sendo apenas para formalizar e legalizar onde já se plantava e criava gado. O
autor também acreditava que Cipriano Lopes Galvão já era fazendeiro no Totoró em
1753, quando partiu para Recife, Capitania de Pernambuco, e se casou com Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos.
Na Fazenda Totoró, segundo o escritor, se criava muito gado, sendo de boa
pastagem os arredores do Rio São Bento, no qual grande parte do seu rebanho se
deslocava para pastar, dificultando o pastoril dos seus vaqueiros. Decidiu construir uma
casa e currais suficientes para lidar e cuidar do gado que se situava na várzea do Rio São
Bento. A Fazenda Boa Vista, erguida em um alto, possibilitando uma visão privilegiada,
teve como primeiro morador “um escravo livre chamado Mulatinho [...], que descende a
família Mulatinho, que ainda hoje existe em Currais Novos e conservam o mesmo
nome”102.
Dando prosseguimento, Celestino Alves (1985) dedicou um capítulo acerca de
Currais Novos e a Religião Católica, onde tivemos a família Lopes Galvão como
incentivadora, implementadora, propagadora e transmutada com a história do catolicismo
em Currais Novos/RN, que segundo o autor, tinha iniciado em 24 de fevereiro de 1808,
quando o bispo de Olinda Dom Frei José Maria de Araújo, na Capitania de Pernambuco,
autorizou construir uma capela por invocação de Santa Ana, na Fazenda dos Currais
Novos.
No dia 26 de julho do mesmo ano, a capela foi inaugurada sob o rogo de Santa
Ana, onde partiu uma procissão da Fazenda Totoró “acompanhada por toda família do
Capitão-mor, filhos, noras e genros, bem como todos os escravos e moradores da região
[...]”103. O escritor, após esse momento, narrou biograficamente sobre a vida dos
religiosos que estiveram frente ao templo e administração paroquial, são eles: o Vigário
Manoel Joaquim da Silva Chacom; Padre José Antônio da Silva Pinto, “Padre Pinto”;

102
ALVES, Celestino. Op. Cit., 1985, p.13.
103
ALVES, Celestino. Op. Cit. 1985, p.35.
55

Padre Luiz Borges de Sales; Padre Francisco Coelho de Albuquerque; Padre Antônio
Brilhante de Alencar; Padre Ulisses Maranhão; Padre Benedito Basílio Alves; e
Monsenhor Paulo Herôncio de Melo.
Depois de tomar notas sobre a história administrativa, construindo uma linha
temporal desde o status de povoação até a criação do município, passando pelos
administradores, coronéis, intendentes e prefeitos, na quarta seção do livro, Celestino
Alves (1985) se dedicou e teceu acerca das famílias de Currais Novos/RN, estando dentre
os 34 núcleos pesquisados, a Família Luciano, composta por pretos, descendentes de
escravos, “que por suas qualidades foram livres há cerca de 150 anos”104.
A família Luciano descende do casal Luciano da Silva e Ana Francisca, sendo
frutos desta relação: João Luciano, que se casou com Maria Macário; Pedro Luciano,
casado que foi com Luísa da Conceição; Antônio Luciano, que contraiu matrimônio com
Josefa; Joaquina, que foi esposa de João Rodrigues, também descendente de escravo;
Sebastiana Luciano, legítima que foi de Manoel Garcia dos Anjos; e Lusia Luciano, que
contraiu núpcias com Manoel Paulino Nascimento105.
Retoques da História de Currais Novos, nas palavras de Fabiana Dantas, é um
“olhar nostálgico para o passado, com ele se voltando principalmente para as elites sobre
as quais se discorre em grande parte do livro”106. Apesar das menções sobre “pessoas
comuns” na obra, elas apareceram em caráter de curiosidades, dignos de nota pelo seu
caráter excepcional, uma vez que o livro remete “especialmente aos grandes homens das
elites políticas locais e incorporando também personagens notáveis da esfera
religiosa”107.
Dando prosseguimento, Antônio Quintino Filho (1911-?) é mais um autor que se
dedicou em perscrutar e narrar a história de Currais Novos/RN. Foi escrivão da Coletoria
(1933), tipógrafo e proprietário do Tipografia Galvanópolis (1939-1969), técnico em
contabilidade (1960-1962), formado em Letras – Patos/PB (1973-1976), foi professor
(1963-1981) e autor de textos em prosa, poemas e pesquisas de cunho histórico e religioso

104
ALVES, Celestino. Op. Cit. 1985, p.210.
105
Ibidem.
106
DANTAS, Fabiana Alves. A Produção de Uma História Local: Concepções de História e Memória na
Obra de Celestino Alves. 2021. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). João Pessoa, 2021, p.35.
107
DANTAS, Fabiana Alves. Op. Cit., 2021, p.46.
56

publicados em periódicos de Currais Novos/RN, onde manteve um programa na Rádio


Brejuí108.
Assim como os outros eruditos até aqui discutidos, o autor de História de Currais
Novos não tem formação acadêmica em História, mas o seu trabalho com fontes
documentais, narrativas orais e diálogos com outros autores se destaca pelo exercício
crítico e de problematização das fontes. Seguindo o exemplo dos seus antecessores, um
dos primeiros e principais pontos do seu texto foi sobre a família Lopes Galvão, no
capítulo intitulado O Primeiro Povoador do Município, onde Quintino Filho (2009
[1987]) questiona “o fato do Cel. Cipriano Lopes Galvão ser considerado como o primeiro
povoador do município de Currais Novos não significa ter sido ele o primeiro homem a
criar família na região”109.
Para assegurar sua tese, o autor elencou um requerimento e quatro concessões de
sesmaria que seriam anteriores ao coronel Cipriano Lopes Galvão, se indagando e
provocando: “o primeiro, chegando depois? Importância não significa antecedência”110.
No entanto, mesmo lançando dúvidas e defendendo que a família Lopes Galvão não foi
pioneira no desbravamento do Totoró, reconheceu o primogênito de mesmo nome
“fundador da cidade – o Capitão-mor Galvão, foi o tronco fecundo na fase decisiva do
nosso povoamento”111.
Antônio Quintino Filho (2009 [1987]) também colocou dúvidas sobre a versão
pela qual o nome “Currais Novos” provém dos novos currais feitos pelo Capitão-mor
Cipriano Lopes Galvão em relação aos velhos. Defendendo sua hipótese, o autor
mencionou uma data de sesmaria em que fica “provado que o topônimo CURRAIS
NOVOS, que, erroneamente, dizia a tradição ser de 1808, já existia em 1744; bem como
a situação na fazenda [...], que se julgava tivesse sido pelo Cel. Cipriano Lopes Galvão
(o 1º) em 1755, também já existia em 1744”112.
O escritor fez algumas menções a populações de diferentes qualidades e condições
ao longo de sua História de Currais Novos, como, por exemplo, comentando acerca dos
bens deixados pelo segundo Cipriano Lopes Galvão, em seu inventário post-mortem, que
“comove pelas belezas de uma alma cristã, como tal impregnada do espírito de justiça,

108
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
109
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.18.
110
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.18.
111
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.19.
112
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.35.
57

sem esquecer pormenores nem pessoas”113. Assim, após nomeado seus escravos, o
capitão-mor Galvão se refere “às mulatas Sebastiana e Aniceta, e à preta velha Mariana,
às quais já concedera título de alforria, para quietação da sua consciência”114.
Pediu aos seus testamenteiros que concedessem carta de liberdade ao escravo
Lázaro, pois havia prometido. O mulatinho João, dado ao seu filho Joaquim, recomendou
que o educasse com base no cristianismo e depois o alforriasse. Ainda “deixou para a
mulatinha Francisca, casada com José Fideles, 250 braças de terra, a partir do Riacho
Maracajá”115.
Apesar destas menções, um importante capítulo presente na obra de Antônio
Quintino Filho (2009 [1987]), se considerarmos seu contexto de produção e os seus pares
aqui tratados, foi A Escravidão em Currais Novos. O autor, apesar de defender que o
processo de fixação e povoamento do Totoró foi protagonizado pela família Lopes
Galvão, menciona que os primeiros desbravamentos, os trabalhos de penetração e
conhecimento destas terras, iniciados por volta de 1720, contavam com os primeiros
escravos que pisaram no que hoje compreendemos enquanto o município de Currais
Novos/RN116.
O autor observou e compreendeu que os indivíduos em regime de escravidão não
se configuraram apenas como mão de obra, força de trabalho forçada e compulsiva aos
serviços dos seus senhores, pois após o processo de fixação nas terras do Totoró a
“escravaria definiu-se, constituindo-se num verdadeiro organismo social”117. Mencionou
que faltavam registros históricos sobre a escravidão local, discorrendo sobre os cativos
presentes no inventário post-mortem de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos,
particularizando arranjos familiares nele presentes e citando, de modo avulso e diverso,
escravos mencionados em fontes soltas.
Apesar do seu caráter inovador, Quintino Filho (2009 [1987]) afirmou que a
escravidão ocorrida no Seridó, mais especificamente em Currais Novos/RN, se deu em
um “clima de paz e de relativa compreensão humana, o que em parte se deve ao espírito
de religiosidade de senhores e de escravos”118, sendo os casos de crueldade esporádicos.
Tal acepção tentou diminuir e relativizar o regime escravocrata, desconsiderando seus

113
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
114
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
115
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.31.
116
Ibidem.
117
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.53.
118
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.53.
58

danos e consequências para pessoas sob regime escravista e os efeitos sociais decorridos
do trabalho compulsório.
Por fim, temos o autor Joabel Rodrigues de Souza, que cursou Desenho e Pintura
na Escola de Belas Artes – Belo Horizonte/MG (1995), fez curso pedagógico no Instituto
Vivaldo Pereira – Currais Novos/RN (1968), e Estudos Sociais (1984), História (1988) e
Letras (2007) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Currais
Novos/RN. Também atuou no serviço público como diretor escolar, superintendente de
ensino, secretário de educação, de obras e planejamento, diretor de serviços urbanos,
chefe de gabinete, diretor de patrimônio e arquivo e presidente da Fundação Cultural José
Bezerra Gomes (1994-1996)119.
Totoró, Berço de Currais Novos, se divide em três partes: I – A Terra, II – O
Tempo e III – Os Homens. Essa divisão, provavelmente, teve como inspiração Os Sertões,
de Euclides da Cunha (1984), tendo em vista que na primeira parte da obra, também
intitulada A Terra, os autores deram forma aos seus espaços, categorizados e nomeados
enquanto sertão, descrevendo características no tocante ao relevo, fauna, flora e o
clima120.
Na segunda parte, nomeada por Euclides da Cunha (1984) como O Homem, vimos
uma descrição sobre o sertanejo e seus costumes, fruto do seu meio, da mestiçagem e do
momento histórico que vivia. Para Joabel Rodrigues de Souza (2008) não será diferente,
tendo em vista suas narrativas acerca do desbravamento e povoamento do Totoró, levando
em consideração a descendência lusa da família Lopes Galvão, seus costumes baseados
na “civilidade” e “fé cristã”, germinando o solo para o que posteriormente ficaria
conhecido enquanto município de Currais Novos/RN.
A Luta, terceira parte da obra de Euclides da Cunha (1984), dedicada em narrar os
episódios da Guerra de Canudos, se distancia do texto de Joabel Rodrigues de Souza
(2008), pois havendo nomeado sua terceira parte como a segunda do autor de Os Sertões,
o escritor de Totoró, Berço de Currais Novos, elenca e tece biograficamente sobre pessoas
que ajudaram a constituir e são importantes para o município originário do Totoró.
Apesar de ser o único autor com formação acadêmica em História dentre os
intelectuais que trabalhamos, Joabel Rodrigues de Souza (2008) produziu uma história
conservadora, reforçando referenciais de mundo hegemônicos, afirmando que os povos
indígenas só estiveram presentes no sertão da Capitania do Rio Grande até a chegada do

119
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
120
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008.
59

colonizador, e no que tange o “Totoró, mais precisamente na Lagoa do Santo,


desapareceram com a chegada do Coronel Cipriano Lopes Galvão, em 1755”121.
A chegada destes colonos no sertão foi incentivada após o fim dos conflitos da
“Guerra dos Bárbaros”, que na óptica do autor foi uma revolta nativa contra os indivíduos
chegados do além-mar, instigada pelos holandeses, responsáveis por causar duas grandes
consequências: “1) o extermínio da população indígena, com uma matança brutal; 2) o
desbravamento territorial da Capitania do Rio Grande, porque foi toda percorrida e
explorada na época da luta”122.
Além das poucas e frágeis notas que Joabel Rodrigues de Souza (2008) fez acerca
das populações indígenas, suas referências sobre os indivíduos negros na história de
Currais Novos/RN se restringem aos “negros do Totoró” e da Povoação dos Negros do
Riacho. Afirmou que essas pessoas são descendentes de indivíduos que vieram de
Angola, Moçambique ou fugidos de outros quilombos, vivendo numa comunidade
fechada.

Desenvolvem técnicas rudimentares na fabricação de panelas, potes,


tigelas, alguidares, quartinhas e jarras – todas as peças comercializadas
na feira livre semanal da cidade. Cultivam o algodão e a lavoura;
praticam esporte; cantam e tocam violão. Curam doenças com ervas
e raízes. Casam-se entre si; por vezes são incestuosos. Gostam de
brigar e sempre encontram as coisas facilmente. Pedem esmola às
sextas-feiras. Aproveitam murrinhas. Veneram São Francisco, e
colocam Padre Cícero e Frei Damião antes do Sagrado Coração de
Jesus. Nas festas e novenas, “bebem”, e bebem sempre. Dançam e
divertem-se bastante. Moram em mocambos sem água, sem luz, sem
nenhuma condição de higiene nem de habitação humana123.

O autor mencionou, de forma pejorativa, atribuindo juízo de valor diminuto, que


os indivíduos residentes na comunidade quilombola desenvolvem técnicas rudimentares
na fabricação de panelas, potes, tigelas, dentre outros utensílios, como alguidares e jarras.
Rústicos, curam suas moléstias com o uso de ervas e raízes, moram em mocambos,
habitações precárias sem água, luz e nenhuma condição de higiene e conforto. Joabel
Rodrigues de Souza escreveu que eles gostam de brigar e bebem sempre, seja nas festas
ou nas novenas, preterindo o Sagrado Coração de Jesus para adoração do Padre Cícero e

121
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.79.
122
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.77.
123
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Op. Cit., 2008, p.199.
60

Frei Damião, não reconhecidos pelo clero enquanto santos. Além disso, ainda manteriam
hábitos incestuosos, se relacionando entre si.
Joelma Tito da Silva, estudando essa comunidade rural negra, afirmou que a
história daquele local e das pessoas que ali residem, pode ser narrada e contada de três
formas diferentes: “no primeiro, desenrola-se a história de um ex-escravo de origem
pernambucana que se apossa das terras do Riacho dos Angicos e gera família extensa. No
segundo, a história é semelhante, entretanto, não há qualquer referência direta ou indireta
à escravidão124”. Aqui, escreveu à autora, Trajano teria se deslocado da Província de
Pernambuco para o interior do Rio Grande do Norte, no contexto de uma “grande guerra”,
que provavelmente seria a do Paraguai (1864-1870).
Chegando no sertão do Seridó, ele teria trabalhado por algum tempo para um
senhor, de nome Pedro Gomes de Melo. Após este momento, Trajano haveria se
deslocado para as terras do Riacho dos Angicos e ali se fixado. A última versão “alcança
os tempos e o corpo de D. Pedro II, no diálogo entre o Imperador e um certo negro faminto
que pede e recebe a possa terra”125.
Lançando uma nova perspectiva sobre os Negros do Riacho, Joelma Tito da Silva
esteve preocupada em ouvir os relatos daquelas pessoas sobre suas histórias, percebendo
como havia se dado o processo de chegada naquele local, constituição de famílias e os
modos como elas se organizavam. Também se preocupou acerca das práticas da feitura
de cerâmicas, da religiosidade expressa na sacralização de Damião e o culto a São
Sebastião, numa tentativa de perceber como essas pessoas falam destes elementos para
tratarem sobre suas histórias, memórias e identidades126.

1.3 (Des)caminhando o Totoró

Os movimentos e articulações são provocados por inquietações que partem do


tempo presente, da contemporaneidade. Nossas aproximações e críticas sobre os autores
acima trabalhados partiram do pressuposto de que todo fenômeno e produção humana é
dotada de historicidade, na condição de que o discurso é histórico porque se produziu em

124
SILVA, Joelma Tito da. O Riacho e as Eras: Memórias, Identidades e Território em Uma Comunidade
Rural Negra no Seridó Potiguar. 2009. 206 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do
Ceará (UFC). Fortaleza, 2009, p.33.
125
SILVA, Joelma Tito da. Op. Cit., 2009, p.34.
126
Ibidem.
61

determinadas condições, fabricando tradição, passado e influenciando novos


acontecimentos e interpretações127.
Nas obras que apresentamos, foi possível percebermos, dadas algumas
particularidades, menções e referências que não desconstroem ou atrapalham o que foi
colocado em palco, o reforço e a proeminência de narrativas que elegem e valorizam
famílias e indivíduos portugueses e/ou de origem luso-brasílica, em detrimento do
silenciamento e/ou subjugação de elementos não-brancos, de pessoas de diferentes
qualidades e condições.
Frutos do seu tempo e espaço, estes autores são herdeiros de uma tradição
historiográfica pautada nas premissas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), onde não houve uma preocupação em analisar relações sociais ou os diversos
indivíduos que faziam parte e compunham a vida no Totoró, berço do município de
Currais Novos/RN. Em suas produções houveram disputas em torno do universo do
simbólico, usando o passado como instrumento político, na relação e produção de
sentidos pautados em moldes conservadores, levando “seu lugar” para o outro,
universalizando a interpretação e atribuição de sentido acerca do passado128.
Foi possível percebermos que durante o século XX, no Rio Grande do Norte, a
maior parte da atividade intelectual fez referências aos acontecimentos históricos da
colônia à organização da província no início do século XIX. Estes autores estavam
organizados e comprometidos em forjar e reforçar o que eles compreendiam ser a
memória norte-rio-grandense, uma escrita comprometida e preocupada com a verdade,
porém sem o exercício crítico acerca de fontes e discursos. Foi uma produção, segundo
Bruno Costa (2017), que buscou legitimação social, que estava e prestava serviço aos
grupos políticos, econômicos e de estirpe129.
Se estamos tratando de uma história pautada nos moldes dos grandes feitos e dos
grandes homens, estes letrados ainda tinham como condição de reforço o fato de
descenderem dos desbravadores e povoadores do sertão da Capitania do Rio Grande,
como é o caso de José Bezerra Gomes (1975) e Celestino Alves (1985). Além disso, não
podemos deixar de considerar Antônio Quintino Filho (2009 [1987]) e Joabel Rodrigues

127
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
128
Ibidem.
129
COSTA, Bruno Balbino Aires da. Introdução. In. A Casa da Memória Norte-Rio Grandense: O
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a Construção do Lugar do Rio Grande do Norte
na Memória Nacional (1902-1927). 2017. 587f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017, p.14-36.
62

de Souza (2009) como sujeitos de envergadura social, levando em conta seus cenário de
atuação, postos e cargos ocupados durante suas vidas. Ao considerarmos essa relação de
autor e texto, percebemos que sua função é caracterizar a existência, circulação e operação
de certos discursos, ligando os autores aos sistemas legais e institucionais que delimitam,
determinam e organizam o domínio do que foi/é dito. De toda forma, estes sujeitos
colaram suas imagens no imaginário de Currais Novos/RN, se tornaram sacrários
humanos e referências no tocante a história deste município, se revestindo de um estatuto
de autoridade enquanto escrevem e (de)marcam o eu, nesta relação de escrita de si e do
que se passou130.
O modo pelo qual eles contaram suas e, consequentemente, a história dos outros,
como eles reconstituíram este fio dos primeiros passos e destes troncos genealógicos
frondosos que venceram o tempo, faz parte do modo pelo qual adquirimos, reunimos e
modificamos nossas experiências. Quando narrativas como essas são reforçadas e dotadas
de legitimidade, a aquisição, modificação e a experiência se desdobram no tempo,
surgindo novas histórias e (re)interpretações sobre um passado que se pretende comum e
homogêneo, frente aos esforços de silenciamentos de outras gentes e outros povos131.
Ao comporem uma escrita para Currais Novos/RN, estes autores subjetivaram e
significaram o vivido, suas experiências transpassaram os papéis e os contornos espaciais
desta localidade, ganhando forma e atribuição de sentido nas pessoas e nas práticas
culturais. Assim, falamos de uma produção imagética e textual das relações de poder e
das marcas do espaço narrativo, pois na medida que estes textos se formaram enquanto
fabricadores e emissores de signos, deram forma e imagem para o espaço, “os autores, ao
mesmo tempo em que inventam [...], iam se inventando ao mesmo tempo como
sujeitos”132 do sertão e de Currais Novos/RN.
Quando estes eruditos mencionam a presença autóctone antes da chegada dos
colonizadores, falando sobre o passado indígena enquanto passado do projeto colonial,
de um obstáculo e entrave superado, eles utilizaram a linguagem para organizar e
domesticar a significação, silenciando a presença e as formas de resistência destes povos
após o contato e os conflitos com o elemento colonizador. Portanto, falar do silêncio se
torna uma dificuldade maior, já que ele se configura enquanto absoluto, contínuo e

130
MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. Ser(Tão) Seridó em Suas Cartografias Espaciais. 2007. 119f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
131
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto:
PUC-Rio, 2014, p. 19-89.
132
MEDEIROS NETA. Olívia Morais de. Op. Cit., 2007, p.21.
63

escorregadio, sendo necessário sua observação de forma indireta, utilizando os métodos


históricos, críticos e desconstrutivistas, pois “quando se pensa o sujeito em relação com
o silêncio, a opacidade do ‘outro’ se manifesta”133.
Ao escolherem citar pessoas negras de forma esparsa, esporádica, como se fossem,
na maioria dos autores, apêndices incontornáveis de histórias que tentam abarcar o todo,
estes indivíduos não aparecem como protagonistas, não sabemos de suas vidas e histórias
além das menções de sua condição jurídica enquanto escravo, liberto ou associado ao seu
senhor, que parte das suas heranças formaram espaços e sujeitos decadentes, com hábitos
rudimentares, pois este processo de significação resulta no silenciamento como forma não
de calar, mas enunciar uma coisa para não dizer outras134.
O que foi tecido sobre a história de Currais Novos/RN evidenciou processos
mobilizadores de disputas no universo do simbólico, de como se lida com o passado e
com o presente, de olhar e observar a realidade enquanto comum e aplainada daquilo que
é distinto e assimétrico, tentando dominar seus acontecimentos e fenômenos, polindo suas
arestas e contornando todo encontro e coalizão135. Este esforço em tornar a história, suas
gentes e seus costumes empática e reconhecível para o elemento e os moldes europeus,
reforça nossa construção enquanto os outros deles, nos apagando e excluindo, haja vista
que não nos colocamos e eles não ocupam o lugar de serem o nosso outro136.
O outro cunhado por estes autores nas narrativas sobre o Totoró e o município de
Currais Novos/RN, são os portugueses ou seus descendentes. Foi redigida uma história
em que os indivíduos e os grupos não-europeus são silenciados enquanto alteridade,
dotados de singularidades e particularidades, mas não compreendidos enquanto seres
históricos137. Tampouco interessa falar, delimitar ou defender uma identidade una,
instituir ou compor um sujeito reconhecível de dada espacialidade ou genes, numa
tentativa de revés ou exemplo, pois onde se pretende unificar é possível seguir rastros,
marcas sutis e singulares, capazes de “formar uma rede difícil de desembaraçar; longe de

133
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. Campinas/SP: Editora
da UNICAMP, 2007, p.48.
134
Ibidem.
135
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a História Entre Incertezas e Inquietude. Tradução de Patrícia
Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002; CHARTIER, Roger A História Cultural:
Entre Práticas e Representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1990.
136
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
137
Ibidem.
64

ser uma categoria da semelhança, tal origem permite ordenar, para coloca-las a parte,
todas as marcas diferentes”138.
Estes escritos são lacunares e amorfos, pois se encontra, na maioria dos lugares,
histórias, corpos e vidas de sujeitos que não foram considerados desbravadores e
povoadores do sertão do Totoró. Em meio ao quase impossível exercício de silenciar,
ignorar e não ver essas outras gentes, estes intelectuais tentaram moldar uma identidade
que desde o princípio o plural habita, que vozes inumeráveis disputam, onde sistemas se
entrecruzam e se dominam, no qual o exercício de síntese por si só é frustrante139.
A experiência colonial ainda se faz presente no cotidiano que consideramos
ordinário, nas nossas relações, nos aparatos administrativos e burocráticos. Este efeito
ideológico, que atravessa nossos modos de sermos e estarmos no mundo, não surgiu do
nada, sua materialidade específica é o discurso, onde o sujeito colonizado não pode
ocupar o lugar do colonizador. “Mais do que isso, é a partir das posições do colonizador
que são projetas as posições possíveis (e impossíveis) do colonizado”140.
A colonialidade elegeu histórias e corpos, segregou vidas e faces, silenciando
trajetórias e promovendo o apagamento dos sentidos de outras concepções de mundo.
Mas é através deste silêncio que somos capazes de ouvir o que se quer mudo, de
escutarmos para além do que é vocalizado, “em uma fala (a do colonizador) já vem o que
o outro não pode falar [...]. Para isso é preciso sempre se observar: o que o colonizador
não está dizendo quando está dizendo ‘x’?141”. Assim, podemos compreender os
indivíduos não-brancos enquanto sujeitos históricos do processo de desbravamento e
povoamento do Totoró, estando desdou início pluralizando cores e costumes, sendo
alicerces para constituição de Currais Novos/RN, numa tentativa de confrontarmos e
descolonizarmos o saber.

138
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 21.
139
Ibidem.
140
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990, p.52.
141
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. Cit., 1990, p.52.
65

2 – OUTROS PASSOS, OUTRAS PESSOAS

2.1 Mesmos Passos?

A terra sob os pés


É a mesma sob as unhas
Que não cessam de
Crescer até que a roda
Gire em grama e magna142

A partir do século XVIII, após os conflitos bélicos entre os povos nativos e os


agentes da Coroa Portuguesa, como foi discutido anteriormente, houve uma maior
celeridade no processo de chegada, assentamento e povoamento do elemento colonizador
no sertão do Seridó. No Totoró, tal empreendimento foi protagonizado pela família Lopes
Galvão, assim como consta nos escritos produzidos sobre essa dada espacialidade143.
Antônio Quintino Filho, em História de Currais Novos (2009[1987])144, provocou
e questionou acerca deste vanguardismo da família Lopes Galvão na ocupação e
povoamento das terras banhadas pelo Rio Totoró. Afirmou que antes da chegada do
coronel Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, já haviam
formações familiares neste local, elencando um requerimento e quatro concessões de
sesmarias anteriores aos Lopes Galvão:

1º) A 30 de julho de 1719, Antônio Rodrigues Moreira requereu uma


data de terra nos Riachos Maxinaré e Juazeiro.
2º) A 4 de julho de 1719 foi concedida uma data de terra a Francisco de
Sousa Oliveira e Matias Cavalcanti, no Riacho do Maxinaré.
3º) A 8 de janeiro de 1744 foi concedida a Bento do Rego Barros uma
sesmaria, no Riacho Arerê, respeitando as terras do Totoró e São Bento.
4º) A 19 de janeiro de 1747 foi concedida uma sesmaria ao Cap. David
Barbosa, sob a designação de “sobras do Totoró”.
5º) A 19 de novembro de 1749 foi concedida a sesmaria de São Bento
a Antônio Pereira de Castro que, residindo na Paraíba, já tinha o Sítio
Santo Antônio145
142
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Defronte ao que Miras. Natal/RN: Instagram, 2020. Disponível
em: <https://www.instagram.com/p/B-0DwLvBC1W/?igshid=MDJmNzVkMjY=>. Acesso em: 25 ago.
2022.
143
Estes escritos foram debatidos no Capítulo I deste trabalho: ALVES, Celestino. Retoques da História
de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto/PMCN, 1985; GOMES, José Bezerra. Sinopse do
Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975; QUINTINO FILHO, Antônio. História de
Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009 [1987]; SOUZA, Joabel Rodrigues de.
Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
144
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
145
QUINTINO FILHO, Antônio. Op. Cit., 2009 [1987], p.18.
66

O autor declarou, que antes destes homens requerentes e donos destas sesmarias,
faltavam evidências acerca de pessoas que estivessem diretamente ligadas à terra, lidando
com o gado ou com o cultivo de lavouras, que houvessem se estabelecido e contribuído
de forma mais preponderante no Totoró. Em Cronologia Seridoense, obra de Olavo de
Medeiros Filho146, reunindo requerimentos e concessões de sesmarias do sertão do
Seridó, dos atuais Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, selecionamos aquelas que
tocam, a partir dos apontamentos do autor, no que hoje corresponde ao atual município
de Currais Novos/RN:

Quadro 01 – Sesmarias da Data de Terra do Totoró (1701-1729)


Nº Atual
Data Requerentes Território
Sesmaria Localização
Capitão-mor Teodósio
de Oliveira Ledo,
Alferes Diogo Pereira
de Mendonça, João Nova Palmeira,
Rio Quinturaré
1701 Batista de Freitas, 28 Frei Martinho e
e/ou Picuí
Alferes Antônio Currais Novos
Batista de Freitas e
Antônio Fernandes de
Souza
Dona Isabel da
Câmara, Capitão
Nova Palmeira,
Antônio de Mendonça
Picuí, Frei
1704 Machado, Alferes 48 Rio Picuí
Martinho e
Pedro de Mendonça e
Currais Novos
Vasconcelos e Antônio
Carvalho
Dona Joana da Câmara
e Albuquerque,
Antônio de Oliveira Nova Palmeira,
Ledo, Tenente-Coronel Picuí, Frei
Rio Quinturaré
1709 Simão Alves de 82 Martinho,
e/ou Picuí
Vasconcelos, Alferes Currais Novos e
Antônio Batista de Cuité
Freitas e Antônio
Fernandes
Capitão Antônio dos
1725 Santos Guimarães e 245 Totoró Currais Novos
outros

146
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque/Fundação Ving-Um Rosado, 2002.
67

Entre serras
chamadas de
Piracinunga,
Capitão Antônio dos
Quinquê,
1729 Santos Guimarães e 257 Currais Novos
Maxinaré e
outros
outra ao norte,
cujo nome não
se sabe precisar
Fonte: Elaboração feita a partir de MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró:
Fundação Guimarães Duque/Fundação Ving-Um Rosado, 2002.

Foi no ano de 1737, que o primeiro Cipriano Lopes Galvão requereu duas datas
de sesmarias que corresponderiam ao que hoje compreendemos enquanto o município de
Currais Novos/RN:

Quatro 02 – Sesmarias requeridas e concedidas para Cipriano Lopes Galvão (1737)


Nº Atual
Data Requerentes Território
Sesmaria Localização
Sargento-mor Cipriano Riacho
Lopes Galvão e o Quinquezinho e
1737 634 Currais Novos
Sargento-mor José Riacho
Lopes Galvão Quinquê
Sargento-mor Cipriano Olho d’Água de
1737 635 Currais Novos
Lopes Galvão Santana
Fonte: Elaboração feita a partir de MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense. Mossoró:
Fundação Guimarães Duque/Fundação Ving-Um Rosado, 2002.

Mas foi somente no ano de 1755, segundo relatos orais, apontados por Medeiros
Filho, que “o primeiro Cipriano Lopes Galvão, casado com d. Adriana de Holanda e
Vasconcelos, transferiu-se de Igaraçu/PE para a região de Currais Novos/RN”147.
Além destas requisições e concessões anteriores ao pedido do primeiro Cipriano
Lopes Galvão, considerando sua chegada somente na segunda metade do século XVIII,
temos outros moradores, no Totoró, que não descendiam diretamente de Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos e seu primeiro marido148, como foi possível percebermos
através do inventário post-mortem de José Gomes Nobre (1764), casado com Dona Tereza

147
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. Cit., 2002, p.55.
148
Foi possível percebermos outras pessoas que não descendiam diretamente do casal mencionado, mas
eram cônjuges dos descendentes dos Lopes Galvão, como José de Freitas Leitão, casado com Francisca
Xavier de Moura (1789) e o coronel Antônio Garcia de Sá Barroso (1793), casado com Ana Lins de
Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixas 01 (1788-1814). Inventário de Francisca
Xavier de Moura (1789) e o inventário do coronel Antônio Garcia de Sá Barroso (1793). FMDTS, Currais
Novos, RN).
68

José de Jesus, moradores na Fazenda dos Currais Novos149 e no inventário de Manoel


Rodrigues da Cruz (1799), casado com Dona Tereza Maria José, moradores na Fazenda
Jesus Maria150.
Apesar das menções e da presença destes outros indivíduos, Antônio Quintino
Filho, para além da problematização e rompimento com narrativas cristalizadas, defendeu
que o desenvolvimento colonial do Totoró é fruto da atividade pastorícia, “e é
notadamente com os Lopes Galvão que se estabelece e cresce o povoamento do futuro
município”151. Existe uma recorrência nos escritos produzidos sobre o Totoró em tornar
sinônimo, em instituir um cordão umbilical inseparável e tenaz entre esse chão e essa
família. Aqui, não se pretende negar esse laço e suas contribuições, não almejamos negar
essa “verdade”, mas dialogarmos e tomarmos conhecimento que ela não é única, pois este
discurso das descobertas, de patriarcas e responsáveis por toda uma complexidade
histórica, tentou instituir “uma” modalidade de existência, uma “única” versão dos
sentidos, do simbólico e do pertencimento152.
O poema que inicia este capítulo, de autoria de Muirakytan Macêdo, fez referência
ao chão do Totoró, historicamente dado e legado a família Lopes Galvão, pretensamente
os únicos responsáveis e capazes de pisar nessa terra, em tocá-la e tateá-la. Mesmo
quando se tentou fugir deste sobrenome, se recaiu em outros sobrenomes, em outros
homens, provavelmente brancos. Tentaremos, a partir daqui, fazer com que essa roda gire,
para que possamos discutir sobre outros atores históricos, também responsáveis pela
formação deste chão, da grama, superfície e gérmen do município de Currais Novos/RN
– o Totoró.

2.2 Outras Pegadas, Outras Gentes

Ao longo do século XVIII e XIX, chegaram e nasceram, fizeram estada e moradia,


constituíram família e estiveram inseridas no Totoró, pessoas de diversas qualidades e

149
LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). Fundo da Comarca de Caicó
(FCC), 1º Cartório Judiciário (1ºCJ), Inventário post-mortem, Caixa 321 (1737-1768). Inventário de José
Gomes Nobre (1764). LABORDOC, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), Campus de Caicó/RN.
150
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixas 01 (1788-1814). Inventário de Manoel Rodrigues da
Cruz (1799). FMDTS, Currais Novos/RN.
151
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987], p.19.
152
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990.
69

condições, responsáveis por pluralizar fenótipos, culturas e modos de ser e estar naquela
dada realidade colonial. Estes indivíduos foram igualmente responsáveis pelo processo
de territorialização daquele chão, fruto de ações conduzidas pelos agentes históricos em
qualquer nível, ao se apropriarem e tomarem o espaço para si, instituindo redes e fluxos
socias, produzindo o espaço em território153.
Para Claude Raffestin, espaço e território não são termos equivalentes, pois o
espaço, por si só, não apresenta valor de troca, não tem uso ou utilidade, de tal maneira
que podemos considerá-lo e tomá-lo enquanto uma “realidade dada”, uma matéria-prima,
preexistente a qualquer ação, “a qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais
será o objeto a partir do momento em que um ator manifeste a intenção de se apoderar”154.
O território, por sua vez, se forma por e a partir do espaço, são ações e movimentos
conduzidos por um indivíduo ou pelos grupos socais, relações que se envolvem e se
inscrevem nos campos de poder. É um local onde se projetou ou almejou um trabalho,
uma ação, seja de forma mais incisiva ou apenas abstrata, de tal maneira que o território
é, em outras palavras, fruto da ação antrópica155. Essa territorialidade reflete a
complexidade do vivido, é decorrente dos seus processos e colhe os produtos desta
relação, gerando tessituras e redes em todas as escalas espaciais e sociais, “é a ‘face
vivida’ da ‘face agida’ do poder”156.
A energia e informação projetada no território, atende necessidades de um
indivíduo ou de um agrupamento humano, é o local dotado pela historicidade dos sujeitos
e de suas apropriações, seja na produção dos bens de consumo e subsistência, dos serviços
prestados para comunidade, dos trabalhos, das mediações e das relações que se dão entre
pessoas no território, pois é “lógico afirmar que não é a geografia que faz a história, mas,
ao contrário, é a história que faz a geografia revelando, através do tempo, as
potencialidades de um rio, de uma planície ou de uma montanha”157.
Nesta dinâmica, onde os territórios formam e constituem o mundo material
percebido, realidade palpável e tangível geográfica, ele é oferecido para imaginação, no
qual serão gestadas imagens e representações que podem ser manifestadas e mobilizadas

153
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
154
RAFFESTIN, Claude. Op. Cit., 1993, p.144.
155
Ibidem.
156
RAFFESTIN, Claude. Op. Cit., 1993, p.162.
157
RAFFESTIN, Claude. A Produção das Estruturas Territoriais e sua Representação. In: SAQUET,
Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério. Territórios e Territorialidades: Teorias, Processos e
Conflitos. São Paulo: UNESP, 2008, p.26-27.
70

acerca daquela localidade158. Essa etapa pode ser experienciada pelos indivíduos
localizados naquele território, a partir dos seus sonhos, desejos, ambições e afetividades
para aquele lugar; ou pode ser mobilizada por terceiros, olhos estrangeiros que observam,
inferem e significam dado local a partir dos seus referenciais de mundo, dos seus
interesses e objetivos.
Essa dinamicidade e historicidade do processo de territorialização, expõe
processos de poder atravessados neste fenômeno, tensionando e produzindo
territorialidades. É resultado da capacidade dos indivíduos de agirem em grupo, pois este
é o elemento que define e atravessa relações humanas, e destes com o seu entorno; não é
propriedade de um ou de outros, mas do grupo, das articulações deles em conjunto,
enquanto assim existirem. Dessa forma, Marcelo Lopes de Souza encarou o território
enquanto relações sociais e de poder projetadas e dadas no espaço, em constante formação
e dissolução, sendo mais instáveis do que estáveis, uma vez que elas podem ser vistas
numa escala temporal de séculos ou até mesmo dias, acontecendo no mesmo instante de
formas diferentes para dadas pessoas e grupos humanos159.
Estes territórios flexíveis, são frutos de continuidades e descontinuidades
decorrentes das relações de poder, das experiências do vivido, de como os grupos
humanos estão organizados, distribuídos e se relacionam entre si, pois “não apenas o que
existe, quase sempre, é uma superposição de diversos territórios, com formas variadas e
limites não-coincidentes, como, ainda por cima, podem existir contradições entre as
diversas territorialidades”160.
Defender ou conquistar estes territórios, interessa pelo acesso aos recursos e
riquezas, captação de posições estratégicas e/ou acesso e manutenção de melhores modos
e condições de vida, a partir do controle sobre símbolos materiais e identidades. É o
substrato espacial e suas formas são os objetos visíveis e tangíveis, com seu apreço
simbólico e suas representações161.
O território, podendo ser compreendido enquanto um “campo de força”, é uma
dimensão do espaço social, que depende, em várias partes e de diversas maneiras, da

158
Ibidem.
159
SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Território: Sobre Espaço e Poder, Autonomia e Desenvolvimento.
In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA, Paulo César da; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e
Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.77-116.
160
SOUZA, Marcelo José Lopes de. Op. Cit., 2001, p.94.
161
SOUZA, Marcelo Lopes. “Território” da Divergência (e da Confusão): em Torno das Imprecisas
Fronteiras de Um Conceito Fundamental. In: SAQUET, Marcos Aurelio; SPOSITO, Eliseu Savério.
Territórios e Territorialidades: Teorias, Processos e Conflitos. São Paulo: UNESP, 2008, p.57-72.
71

importância material daquele lugar. “O poder é uma relação social (ou, antes, uma
dimensão das relações sociais), e o território é a expressão espacial disso. A existência do
território é impossível e inconcebível sem o substrato espacial material, da mesma
maneira que não se exerce o poder sem contato com e referência à materialidade em
geral”162.
Considerando o recorte espaço-temporal deste trabalho, situamos e encaramos o
território face ao fenômeno da ocidentalização, debatido por Helder Macedo, no qual o
processo de conquista e colonização empreendido pelas forças mercantilistas da Europa
Ocidental, acarretou na conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo.
Este evento, iniciado no século XV, produziu misturas entre os sujeitos, seus imaginários
e suas formas de vida, levando em consideração que nas terras situadas abaixo da linha
do Equador, aconteceu o contato e conhecimento de pessoas das quatro partes do mundo:
América, Europa, África e Ásia163.
Dessa maneira, frente ao intenso fluxo de circulação planetária de pessoas, a
ocidentalização contribuiu para construção e formação dos territórios coloniais, das
relações entre pessoas de diversas partes do planeta, que tiveram como motivador, no
caso específico de nosso espaço de investigação, a criação de gado no sertão na Capitania
do Rio Grande164. A discussão sobre território e territorialização é adensada, quando
ponderamos e investigamos um acontecimento humano localizado numa área designada
e nomeada enquanto sertão, intimamente atrelada ao imaginário de conquista territorial,
de mudança e transformação, de um projeto povoador, civilizador e modernizador165.
Distanciando noções e interpretações europeias, inserindo outros agentes não
mencionados neste processo de territorialização e conformação do território, pessoas não-
brancas também desempenharam uma nova forma de domínio e experiência territorial no
Totoró, localizado na Ribeira do Acauã. Este processo foi responsável por abrigar, neste
dado lugar e nos seus arredores, pessoas de diferentes qualidades e condições, como é
possível percebermos na tabela abaixo:

162
SOUZA, Marcelo Lopes. Op. Cit., 2008, p.66.
163
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
164
Ibidem.
165
MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão: Um “Outro” Geográfico. Terra Brasilis (Nova Série).
Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2003, p.1-8.
72

Tabela 01 – Qualidade dos escravos e escravas no Totoró (XVIII-XIX)166


QUALIDADE QUANTIDADE PORCENTAGEM
Mulato ou mulata 80 27,4%
Crioulo ou crioula 76 26,03%
Cabra 51 17,47%
Sem qualificação 34 11,65%
Gentio de Angola 27 9,25%
Pardo ou parda 14 4,8%
Índio ou índia 4 1,37%
Gentio de Mina 3 1,03%
Mestiço de Pardo e Preto 2 0,69%
Negra 1 0,35%
TOTAL: 292
Fonte: Elaboração feita a partir de 46 processos do AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixas 01,
02 e 03 (1788-1854). FMDTZ, Currais Novos/RN; E 01 processo do LABORDOC. 1ºCJ. Inventários post-
mortem, Caixa 321 (1737-1768). Inventário de José Gomes Nobre (1764). LABORDOC, CERES, UFRN,
Campus de Caicó/RN. Total de documentos: 47.

A qualidade de “mulato”, representando 27,4% dos cativos que viveram no


Totoró, foi amplamente utilizada a partir do século XVI nos domínios espanhóis e
portugueses da Ibero-América. Eram os filhos de mães negras e pais brancos, ou vice-
versa, que carregaram marcas nos seus corpos fruto da visão sobre a animalização deste
contato, uma vez que o termo “vinha sendo associado a ‘mula’ (animal nascido do
cruzamento entre asno e égua ou entre cavalo e asna), a híbrido e até mesmo a
bastardo”167.
Essa animalização do termo e dos humanos que foram assim designados, refletiu
uma intrínseca relação ao ambiente escravista, formas de trabalho compulsório e
obrigações que refletiram, no contexto colonial, depreciações e humilhações168. Pessoas
que foram qualificadas enquanto “mulatas”, tinham mais dificuldade de mobilidade e
ascensão social, se particularizavam “pelos dotes físicos e pela falta de qualidade oriunda
do cativeiro”169.
Ronald Raminelli, investigou e refletiu sobre classificações sociais baseadas na
hierarquia da cor e seus impedimentos no Brasil e em Portugal. Em se tratando dos

166
Utilizamos os inventários post-mortem, para o levantamento do léxico das qualidades dos cativos do
Totoró e suas adjacências, entre os séculos XVIII e XIX, pois nesta fonte não existe abreviaturas acerca do
qualificativo do indivíduo, sendo possível verificarmos o designativo de maneira extensa, o que permite
uma maior proximidade e segurança de análise para um fenômeno complexo como o das mestiçagens.
167
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.217.
168
Ibidem.
169
RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da Cor: Mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750. Varia
História, v. 28, p. 699-723, 2012., p.722.
73

mulatos, afirmou que essas pessoas eram desprovidas de nobreza, fruto da relação
perniciosa entre pessoas livres e cativas, do sangue livre e outro escravizado, responsável
pela “proliferação de sujeitos ‘inclinados a maldades, faltos de fé, contumazes, rebeldes,
dados a vícios, incorrigíveis; razão porque são justamente excluídos dos ofícios
públicos”170.
Os “crioulos”, escreveu Eduardo Paiva, também foi uma categoria utilizada pelas
Coroas Portuguesa e Espanhola desde o século XVI. O autor, dialogando com o Inca
Garcilaso de la Vega, afirmou que este vocábulo teve origem em África, citando que são
“a los hijos de espanõl y de española nascidos allá [Peru do Quinhentos] dicen criollo o
criolla, por decir que son nacidos en Indias. Es nombre que lo inventaron los negros – y
así lo muestra la obra. Quiere decir, entre ellos, ‘negro nacido en Indias’”171. Essa
categorização foi criada para “diferenciar los que van de acá [Espanha], nacidos em
Guinea, de los que nacen allá. Porque se tienen por más honrados y de más calidad por
haber nacido en la pátria, que sus hijos porque nascieran en la ajena. Y los padres se
ofenden si les llaman criollos”172.
Na América Portuguesa, por sua vez, “crioulo” foi usado para qualificar o
descendente de mãe africana, o escravo que não nascera em África; sendo possível
também observar o emprego deste termo em filhos de mães “crioulas”173. Compondo
26,03% das pessoas sob regime de escravidão no Totoró, o “crioulo” nascera escravo,
não conheceu nenhuma realidade anterior ao cativeiro, sendo seu processo de vida e
socialização construído sob este estigma e limites. Carlos Engemann chamou atenção que
essas pessoas não passaram pela violência da captura e travessia do Atlântico como
provavelmente seus progenitores, sendo suas memórias de África dadas “por meio de
filtros estabelecidos por aqueles que experimentaram ambas as vicissitudes: a expatriação
e o cativeiro. Ou seja, a África que conhecem é aquela que os africanos o deram a
conhecer”174.
Em Na Cor da Pele, O Negro (2018), Gian Carlo de Melo Silva, debruçado nas
anotações dominicais de Tollenare, um francês que caminhou por Recife e seus arredores,

170
RAMINELLI, Ronald. Op. Cit., 2012, p.721.
171
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.202.
172
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.202.
173
Ibidem.
174
ENGEMANN, Carlos. Gerações de Cativos: Escravos Africanos e Crioulos no Sudeste Brasileiro do
Século XIX. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França (Org.). Dinâmicas de Mestiçagens no
Mundo Moderno: Sociedade, Culturas e Trabalho. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2016, p.74.
74

afirmou que os senhores de escravos, no momento da compra, preferiam os filhos de


pessoas vindas de África que tenham nascido na América, uma vez que estariam mais
ambientados com o clima dos trópicos, tinham fluidez na língua portuguesa e não
carregavam recordações acerca do seu passado, da sua origem e da sua terra. No entanto,
este tipo de escravo era difícil de se obter175.
O autor se dedicou em pesquisar pessoas que tivessem ascendência com a
escravidão, na Freguesia do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio do Recife, no
século XVIII. Discorreu que os “crioulos” eram escravos difíceis de se adquirir, pois eles
eram criados na casa, dificilmente seriam comprados, representando um investimento
senhorial mais demorado, tendo em vista o tempo de espera para o seu crescimento,
amadurecimento e desenvolvimento de aptidões e ofícios, quando fosse o caso. Ainda
assim, elucidou Gian Silva, que vender um sujeito nestas condições só seria uma opção
em caso de necessidade e deveria ser feito fora da região onde este senhor e sua família
moravam. Segundo o autor, “tal fato decorria por ser o crioulo, cria da casa,
possivelmente conhecer dos segredos familiares”176.
Faziam parte das pessoas sob regime de escravidão, no Totoró, 17,47% de
“cabras”, categoria animalizante, como o termo deixa explícito. Era denominativo de
mamífero ruminante, sendo empregado para depreciar pessoas, utilizando o próprio termo
de “cabra”, mas também de “cabrón” ou “cabrão” e “cabrito”. Pouco usado nos domínios
espanhóis, essa qualidade foi bastante comum na América Portuguesa, sobretudo durante
o século XVIII177.
Marcia Amantino, ao mapear o uso da qualidade de “cabra” no período colonial,
afirmou que essa categoria lexical, em especial, variou intensamente ao longo do tempo
e do espaço, sendo possível localizar no emprego inicial do termo os filhos frutos das
relações entre índios e negros. Na segunda metade do século XVIII, observou que o
vocábulo tinha menos haver com a ancestralidade indígena: sua nova concepção, agora,
direcionava aos filhos de negros com seus descendentes mestiçados178.

175
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió/AL: EDUFAL, 2018.
176
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.60.
177
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
178
AMANTINO, Marcia. Cabras. In: PAIVA, Eduardo França; CHAVES, Manuel F. Fernández Chaves;
GARCÍA, Rafael M. Pérez (Orgs.). De que Estamos Falando? Antigos Conceitos e Modernos
Anacronismos – Escravidão e Mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.83-97.
75

No final do século XVIII e início do XIX, a autora percebeu o emprego do


designativo de “cabra” para o mestiço de africano com mulato. Eram sujeitos que cada
vez mais tornavam o léxico das qualidades complexo e denso, pois sua ancestralidade e
mesclas eram difíceis de precisar. O que se pode afirmar é que essa categoria deve ser
compreendida “no conjunto das qualidades de menor valor hierárquico”179, posto que
“cabra” foi empregado para “designar pessoas nascidas da mestiçagem entre índios e
negros ou de negros (crioulos ou africanos) com mulatos ou pardos”180.
Se tornando uma categoria particular dentro do rol qualificativo, haja vista sua
intensa mudança no tempo-espaço, e nos fluxos de pessoas de diversas categorias que
poderiam estar envolvidas na geração de um indivíduo nomeado como “cabra”, Marcia
Amantino conseguiu chegar numa percepção comum face a juízos sociais da colônia:
“tratava-se de gente vis, desordeiras, de baixíssima categoria”181.
Uma das práticas mais comuns de sociabilidade dos escravos, no Cariri do século
XIX, foi a formação de núcleos familiares. Segundo afirmou Ana Sara Cortez Irffi, os
processos de arranjos de diferentes condições sociais e mesclas de distintos tons de pele,
fizeram com que se constituíssem famílias caracterizadas pela grande quantidade de
cabras, caboclos, negros e mulatos182.
Sobre os cabras, no Cariri cearense, aparentemente, não se denotava valor
depreciativo sobre os mesmos, pois, a partir de 1840, escravos que foram qualificados
desta forma crescem de maneira significativa e contínua. Este termo “designava os cativos
de raça mista, provenientes de outras misturas. Nesse caso, o cativo pertencente a esta
categoria apresentava uma tez tipicamente mais escura que os outros, pois era ‘mestiço
de mulato com negro’”183.
A autora também afirmou que pessoas nomeadas como “cabras”, remetiam para
presença do elemento indígena entre os escravos, pois, por detrás do termo, se
caracterizaram sujeitos descendentes dos processos de miscigenação entre africanos e/ou
mestiços. Além disso, Ana Sara Cortez Irffi apontou que também seria “provável que esse
termo implicasse um conceito mais regional, com caracteres de sertão”184.

179
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
180
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
181
AMANTINO, Marcia. Op. Cit., 2016, p.97.
182
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. Cabras, Caboclos, Negros e Mulatos: a Família Escrava no
Cariri Cearense (1850-1884). Curitiba: CRV, 2018
183
Ibidem.
184
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. Op. Cit., 2018, p.46.
76

Continuando suas pesquisas de forma mais detalhada sobre os cabras, a autora,


em O Cabra do Cariri Cearense, compreendeu essa categoria como uma classificadora
social. No oitocentos, este termo foi utilizado e entendido pela classe dominante daquele
lugar como um diferenciador social, delimitador dos papéis sociais que poderiam ser
ocupados pelas pessoas, classificadas dentre ocupações que lhe competiam185.
Além da sua íntima relação com localidades nomeadas enquanto sertão, o conceito
de cabra, compreendido enquanto fruto dos processos de mestiçagens, também
“respondia ao interesse de estabelecer uma rígida divisão social, pautada, sobretudo, na
posse ou não de propriedades. Em última instância, era a condição econômica de um
indivíduo que definia sua “cor” e, por consequência, sua alcunha”186.
Nomeando os sujeitos na condição de cativos, pessoas designadas como cabras,
na maioria das vezes, mantinham relação com o mundo rural, dos sítios e fazendas de
gado. Eram os trabalhadores pobres, encarregados de ofícios pesados e extenuantes. Para
os livres e libertos assim nomeados, essa qualidade inferiu nos seus estilos de vida, nas
percepções tidas sobre estes sujeitos, ligando estes com à vadiagem187.
Dentre essas qualidades discutidas até aqui, 34 escravos não foram qualificados,
representando 11,65% dos cativos do Totoró. Todavia, sua condição jurídica enquanto
sujeitos em regime de escravidão, figurando nos inventários post-mortem como um bem
dos seus senhores, permitiu que discutíssemos sobre suas qualidades, considerando que a
partir do século XVI, “preto” e “negro” se tornaram sinônimos de escravo, por mais que
nem todo cativo fosse um “negro” proveniente de África, malgrado a maioria deles neste
período o fossem188.
“Negro”, quando assim foi expressamente nomeado, representando 0,35% dos
escravos no Totoró, foi um termo amplamente utilizados por espanhóis e portugueses,
fazendo referência aos africanos escravizados. “Preto”, desta feita, foi menos utilizado,
mas assim como “negro” figurou como qualidade e como cor. Nas Américas, a categoria
cor foi usada como ferramenta de identificação e classificação social, “um verdadeiro
caleidoscópio de origens, mesclas biológicas e cores de pele na Ibero-América pode,

185
IRFFI, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez. O Cabra do Cariri Cearense: a Invenção de Um Conceito
Oitocentista. 2015. 354 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza,
2015.
186
IRFFI, Ana Sara ribeiro Parente Cortez. Op. Cit., 2015, p.17.
187
Ibidem.
188
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
77

desde o início, ter incentivado o uso dessa categoria, que, de resto, não apenas coloriu
aquele universo, mas serviu de marcador social de distinção, de vivência, de convivência
e de mobilidade”189.
Por conseguinte, os escravos de África que foram qualificados nos inventários
post-mortem como “Gentio de Angola”, representavam 9,25% do escopo social cativo do
Totoró. O designativo de “gentio”, utilizado largamente entre os séculos XVI e XIX pelos
agentes portugueses e espanhóis, foi empregado, no início, para os índios do Novo
Mundo, uma vez que o termo provém do latim e foi indicativo de paganismo, se opondo
aos cristãos190.
Quando pessoas de África aportaram nas Américas, o qualificativo de “gentio”
também foi empregado para suas classificações e distinções sociais, se valendo das
associações feitas aos bárbaros e selvagens. Muitas vezes, essas pessoas nomeadas como
“Gentio de Angola” ou “Gentio de Mina” – o segundo, que representou 1,03% dos
escravos de África situados nas terras do Totoró –, foram usados como sinônimo de
“cativo” provindo do outro lado do Atlântico191.
Bruna Marina Portela, tentando compreender o processo de transição da mão de
obra indígena para o trabalho de africanos e afrodescendentes na Capitania de São Paulo,
entre os anos de 1697 a 1780, escreveu que durante os séculos XVI e XVII, a região da
Costa da Mina, na África Ocidental, foi responsável pelo maior fornecimento e
abastecimento de cativos para América Portuguesa, desembarcando e comercializando
estes indivíduos, em sua maioria, nos portos de Bahia e Pernambuco192.
Um século depois, este provimento havia mudado seu eixo e se localizava nos
portos da África Centro-Ocidental, em Angola, se estabelecendo “como o grande
fornecedor de cativos a partir da década de 1730 e manteve-se no posto até o fim do
tráfico, em meados do século XIX”193. O maior receptor destes escravos foi o Rio de
Janeiro, do qual se estima que 255 mil cativos atravessaram forçadamente o mar entre os

189
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.154.
190
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
191
Ibidem.
192
PORTELA, Bruna Marina. Gentio da Terra, Gentio da Guiné: a Transição da Mão de Obra Escrava
e Administrada Indígena para Escravidão Africana (Capitania de São Paulo, 1697-1780). 2014. 386 f. Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, 2014.
193
PORTELA, Bruna Marina. Op. Cit., 2014, p.149.
78

anos de 1701 e 1730; 54% desembarcaram no litoral fluminense, algo aproximadamente


calculado em 137 mil pessoas194.
Fruto do contato com negros, crioulos e mulatos, que poderia ter ocorrido com
brancos e índios, a partir do século XVI, “pardo” se tornou uma categoria comum,
indicativa de qualidade. Eduardo Paiva, trabalhando com os registros do jurista Juan de
Solórzano Pereyra, percebeu que essa categoria foi interpretada pelo espanhol também na
dimensão da condição jurídica das pessoas, se associando aos pais ou pelo menos a mãe
livre, que geraria um descendente de igual condição195.
Observando essa qualidade no contexto das cores, é importante dizer que não foi
comum encontrar pessoas que tivessem “cor parda”, conquanto nos dicionários antigos
“cor/color baça” se aproximaria de “pardo”. Mas também foram encontrados registros
que contradizem essa leitura, onde essas duas dimensões foram usadas, podendo a cor do
indivíduo ser “baça” e sua qualidade “parda”196. Ainda assim, temos documentos de
ordem militar, trabalhados por Maiara Araújo, no contexto da Capitania do Rio Grande,
em que foi possível vermos um sujeito chamado Antônio de Freitas da Costa, que
assentou praça de soldado aos 34 anos de idade, em 13 de maio de 1735, e foi descrito
como “homem pardo, estatura alta, seco do corpo, cara comprida, olhos pardos, com os
dentes de antes da parte de cima menor, com um sinal de ferida acima da sobrancelha
direita; sobrancelhas abertas”197.
De toda forma, pessoas qualificadas como “pardas” tinham mais facilidade e
dispunham de um maior trânsito e movimentações dentro de contextos relegados a
indivíduos que se encontravam em regime de escravidão. Eram pessoas que normalmente
se distanciavam do universo escravista, que poderiam almejar, dadas suas relações e
conveniências, ascensão e inserção social dentro do contexto que estivessem inseridas,
como é possível percebermos nas palavras de Alejandro Gómez, citado por Eduardo
Paiva, em que os “pardos” “hacían lo posible – y hasta lo imposible – por blanquear sus
linajes o esconder las pruebas que delatasen su ascendencia africana”198. Para este fim,
continua o autor: “esto lo lograban favoreciendo uniones conyugales con personas de

194
Ibidem.
195
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
196
Ibidem.
197
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019, p.30-31, grifo nosso.
198
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.214.
79

mejor calidad, o valiéndose de los favores de algún cura complaciente o corruptible, que
consintiese en mudar alguna partida de bautismo, convenientemente escogida, del libro
de los pardos al de los blancos”199.
No entanto, por mais que desfrutassem de certas facilidades e pudessem
vislumbrar outros horizontes em comparação com outras qualidades do léxico nominativo
das Américas, era praticamente indelével o sinal da escravidão ou de seus ascendentes
escravos nos seus corpos, na sua tez, “vistos aqui com sumo deprecio, y son tenidos y
reputados en la clase de gente vil, ya por su origen, ya por los pechos que vuestras reales
leyes les imponen, y ya por los honores de que ellas mismas los privan” 200.
Em São Paulo, durante os anos de 1797 e 1831, Fernando Prestes de Souza
investigou os milicianos pardos que atuaram no Regimento dos Úteis, onde afirmou que
a cor era um fator central na estrutura militar das sociedades escravistas das Américas.
Compondo o maior contingente de milicianos do regimento, os considerados “pardos”
não eram brancos, pretos ou tampouco índios, “não cabiam adequadamente nas outras
categorias de cor em que se pautava a organização das milícias”201. Dessa maneira, a
qualidade de “pardo” advinha do intercurso sexual entre pessoas de diferentes
qualificações, mas era ainda mais envolva de relações sociais, interpretações e
conveniências.
Voltando para o léxico das qualidades que compunham o Totoró e suas
adjacências durante os séculos XVIII e XIX, representando 1,37% dos escravos presentes
nestas terras, “índio” foi uma categoria usada por espanhóis, portugueses, ingleses,
franceses e holandeses ainda no século XV, sendo largamente empregado a partir dos
últimos anos do século XVI, de forma preponderante para se referir aos nativos do Novo
Mundo202.
Os nativos localizados no interior dos domínios portugueses, situados no sertão,
não foram usualmente qualificados como “índios”, mas pejorativamente como “tapuias”,
tomados como bravios e perigosos203. Essa distinção havia surgido pelo critério
linguístico, uma vez que os Tupi, nativos localizados no litoral, inimigos dos “tapuias”,

199
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.214.
200
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.215.
201
SOUZA, Fernandes Prestes de. Pardos Livres em Um Campo de Tensões: Milícia, Trabalho e Poder
(São Paulo, 179701831). 2018. 520 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH). São Paulo, 2018, p.175.
202
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
203
Ibidem.
80

falavam a chamada “língua geral” ou nheengatu, em contraponto aos “tapuias”,


conhecidos por falarem, na visão ocidentalizante, a “língua travada”, “tremendo o
papo”204.
Por isto, essa diferenciação permitiu que os “tapuias” fossem chamados de
bárbaros, gentios e gentios bárbaros, não se configurando enquanto um etnônimo, e sim
uma qualidade colonial, forjada por indígenas do litoral e colonos. Helder Macedo,
dialogando com Pedro Puntoni e Cristina Pompa, afirmou que era importante “perceber
uma determinada associação entre tapuias e o sertão, como se essas duas categorias
estivessem a tal ponto entrelaçadas que seria mesmo dificultoso separá-las”205.
Por fim, figurando 0,69% da escravaria presente no Totoró, temos a qualidade de
“mestiço de pardo e preto”. Excetuando o que já foi abordado sobre pardos e pretos,
“mestiço” seria fruto das relações entre ibéricos e nativas, sendo, seus sinônimos, no
início da conquista da América Portuguesa, “mameluco” e “bastardo”. O termo,
entretanto, com o tempo, passou a abranger conotações generalizantes, pois aludia aos
descendentes de uniões mistas206, encarados como potencialmente perigosos, pois não se
estava falando somente do fruto entre pessoas de qualidades e condições diferentes, mas
do descendente de um europeu, do desnaturamento deste indivíduo, dos seus potenciais
vícios e desregramentos, mobilizando um processo de educação completo, embora
penoso, face suas origens207.
Carmen Bernand, fazendo uma leitura sobre os “mestiços” além de suas heranças
biológicas e genéticas, trata essa qualidade “como un estatus liminal, es decir, intermédio
entre dos estados, ambiguo, incierto, imprevisible e inquietante”208, levando em
consideração este novo elemento, fruto não somente de pessoas de qualidades e condições
diferentes, mas de mundos e proveniências distintas.
Mas, no Totoró, temos um vocábulo que fez referência à qualidade de preto, pardo
e mestiço, bem como do fenômeno das mesclas e das misturas, logo, “mestiço de pardo e
preto” seria uma qualidade ou seria o descendente proveniente do contato entre um pardo

204
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
205
MACEDO, Helder Alexandre de. Op. Cit., 2011, p.98
206
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
207
BERNAND, Carmen. Ambiguedad y Ambivalencia: lo Mestizo como Estatus Liminal. In: PAIVA,
Eduardo França; CHAVES, Manuel F. Fernández Chaves; GARCÍA, Rafael M. Pérez (Orgs.). De que
Estamos Falando? Antigos Conceitos e Modernos Anacronismos – Escravidão e Mestiçagens. Rio de
Janeiro: Garamond, 2016.
208
BARNAND, Carmen. Op. Cit., 2016, p.206.
81

e um preto? Seria possível falar sobre o filho do contato entre três qualidades diferentes?
Apesar da dinamicidade e de suas mudanças ao longo do tempo e do espaço, haveriam
limites de nomeação no léxico?

2.3 Por Detrás das Letras

Os questionamentos que encerram a seção anterior, fazem pensar sobre quem


nomeava e qualificava pessoas, quem foram os responsáveis por grafar e categorizar
indivíduos de toda sorte, das mais diversas proveniências, jeitos e fenótipos; dado que o
léxico havia se formado, espalhado e consolidado por toda América Portuguesa e
Espanhola. Presente na fala, no cotidiano ordinário, e nos registros dos letrados e das
autoridades, foi atravessado por dinamismos, pelas alterações espaciais e temporais, fruto
das percepções particulares, coletivas e dos seus respectivos interesses.
Tivemos acesso aos escravos situados no Totoró e nos seus arredores, através dos
inventários post-mortem dos séculos XVIII e XIX, “registro oficial do patrimônio deixado
por pessoa falecida, do qual consta o tipo e o valor monetário dos bens acumulados ao
longo da vida, bem como a lista de créditos [dívidas ativas] e débitos [dívidas passivas]
pendentes”209.
Seguindo legislação vigente para época, nas Ordenações Filipinas, o inventário se
referia ao processo formado em juízo competente, afim de legalizar a transferência dos
bens e do patrimônio do falecido para os seus herdeiros e sucessores. Se o defunto havia
deixado testamento, por exemplo, ele deveria ser anexado ou transcrito no início dos autos
da inventariação das posses, sendo parte constituinte deste processo:

1) o termo de abertura, em que, entre outros dados, informa-se o local,


a data, o juiz responsável e a data do óbito;
2) a transcrição do testamento, quando há;
3) a designação de tutor, quando há herdeiros menores e o conjugue
sobrevivente é mulher, sendo obrigatória quando o espólio é de
valor elevado;
4) a inventariação e avaliação dos bens por avaliador designado (bens
móveis, destacando-se prata e ouro; bens móveis; bens semoventes,
animais e escravos; dívidas ativas e passivas);
5) partilha dos bens entre os herdeiros;
6) codicilo, quando houver210.

209
FURTADO, Júnia Ferreira. Testamentos e Inventários: a Morte como Testemunha da Vida. In: PINSKY,
Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). o Historiador e Suas Fontes. São Paulo: Contexto,
2009, p.103.
210
FURTADO, Júnia Ferreira. Op. Cit., 2009, p.105.
82

Constituído por diversas peças jurídicas, também era um documento formado por
diversas mãos, por diferentes pessoas que estavam presentes na constituição dos autos,
como o juiz ordinário e/ou de órfãos, responsável, muitas vezes, pela abertura e por
presidir o processo; o inventariante, geralmente cônjuge do inventariado – quando fosse
o caso –, ou seja, da pessoa falecida, era o administrador do espólio e responsável por sua
prestação de contas; também haviam os louvados, pessoas incumbidas na avaliação dos
bens; e os partidores, encarregados de fazer a partilha da herança entre os herdeiros.
Outro agente da justiça que estava presente na feitura dos inventários post-
mortem, era o escrivão e/ou tabelião, responsável pela redação da peça jurídica, por
escrever o que havia sido decidido pelas demais partes, ser o último encarregado de
colocar no papel falas, ações, decisões, vontades e desejos daquele dado tempo e daquele
dado espaço. Este sujeito é de interesse particular deste estudo, pois ele foi o responsável
direto em legar para posteridade os registros daquela época, os vocábulos e categorias
que qualificaram os cativos do Totoró colonial.
A 14ª edição das Ordenações Filipinas, ordenamento jurídico que vigorou nas
Coroas Ibéricas, constituído por cinco livros, no Título LXXXIX, que diz respeito aos
escrivães dos órfãos, assegurou que nas vilas e lugares que houvessem trocentas ou mais
pessoas e não tivesse tabelião, era necessário um escrivão dos órfãos. Ele ficaria
responsável por olhar estes indivíduos que perderam seus pais, devendo contabilizar
quantos órfãos haviam naquela jurisdição, seus nomes, de quem eram filhos, suas idades,
onde moravam e quem eram seus responsáveis, bem como, seus tutores e em quais
condições estariam vivendo211.
Desta forma, coube ao escrivão redigir o inventário destes órfãos, contando todos
os bens e arrendamentos que houvessem, posto o que havia sido ordenado pelo juiz,
tutores, partidores e curadores212. Mesmo que o escrivão fosse ordinário, não tivesse
posse legal deste cargo, era necessário conhecimento para redação de um processo
jurídico, como foi possível se perceber no acesso e progressão na Casa dos Contos em
Goa, entre os anos de 1554 a 1638, onde Susana Miranda apontou que havia uma
progressão interna avaliada por critérios técnicos, entendidos como “saber de experiência
feito”, adquiridos quando da ocupação do cargo e sua permanência. O primeiro degrau

211
CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: Recompiladas por Mandado d’El-Rei
D. Filipe I. 14.ed.fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2004. Livro Primeiro, Título LXXXIX.
212
Ibidem.
83

seria o posto de escrivão, que só poderia ser acedido depois de um exame prévio,
conduzido pelo provedor mor, “destinado a comprovar aptidões e competências”213.
Abimael Lira, no seu trabalho intitulado Um Império de Papel, investigou o ofício
de escrivão da Câmara do Natal e a função desempenhada por estes agentes dentro da
burocracia administrativa da Coroa Portuguesa. Tentando compreender o indivíduo
revestido por este ofício, reiterou que estes agentes estavam, por vezes, ligados à nobreza
rasa e aos plebeus reinóis, que não encontraram oportunidade para ascenderem
socialmente na hierarquia do Antigo Regime. Seu ingresso no que poderia ser chamado
de elite, dado o contexto, foi através da burocracia jurídica portuguesa, numa tentativa de
enobrecimento e reconhecimento social214.
O tabelião, diferente do escrivão ordinário, tinha conhecimento jurídico e estava
legalmente apto para ocupar o ofício de autor de registros, documentos e escrituras no
período colonial. O inventário post-mortem, como foi visto, dispunha de uma estrutura
para sua feitura, assim como qualquer modalidade da linguagem que é conduzida por um
número de regras intrínsecas e extrínsecas. Esses modelos, adotados pelas instâncias
representativas, foram feitos para conferir legitimidade ao escrito, mas no “interior dos
textos redigidos com base nessas normas e valendo-se dos espaços sociais onde são
constituídos, os conteúdos individualizaram-se. Daí as elaborações discursivas adquirem
sentido somente no contexto social e cultural apropriado”215.
Sigamos com exemplos, a partir do conjunto de nossas fontes, examinadas na
pesquisa, para exemplificar tais afirmativas. No processo inventariante do casal formado
por Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá de Meneses (1788), moradores no Sítio Santa
Luzia, havia no seu espólio uma escrava, qualificada como cabra, de nome Catarina, tendo
aproximadamente 22 anos no ano do inventário, que era costureira e arrumadeira, e foi
avaliada em 110$000 mil réis216.

213
MIRANDA. Susana Munch. Entre o Mérito e a Patrimonialização: o Provimento de Oficiais na Casa
dos Contos de Goa (Séculos XVI e XVII). In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini. Cargos
e Ofícios nas Monarquias Ibéricas: Provimento, Controlo e Venalidade (Séculos XVII e XVIII). Lisboa:
Centro de História de Além-Mar (CHAM), 2012, p.90.
214
LIRA, Abimael Esdras Carvalho de Moura. Um Império de Papel: Um Histórico do Ofício de Escrivão
da Câmara do Natal (1613-1759). 2018. 385 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2018.
215
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.340-341.
216
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
84

Catarina, a partir de uma relação com um sujeito que não conhecemos, foi mãe de
Simoa, escrava que tinha 4 anos de idade na época do processo e que havia sido
qualificada, também, como cabra, avaliada em 45$000 mil réis no decorrer do certame217.
Como foi possível que uma mulher cabra gerasse uma descendente de mesma
qualidade? Se nos apegarmos aos fatores genéticos das qualidades, para um indivíduo ser
nomeado enquanto cabra, era necessário que seus pais não compusessem categorias
mescladas, ou que pelo menos um dos progenitores integrasse o que Eduardo Paiva
chamou de “matrizes puras”, pessoas que não provinham ou descendiam de mistura218.
Portanto, o pai de Simoa seria um preto, negro, crioulo ou índio? Infelizmente não se teve
acesso ao dado que responderia, em alguma medida, estes questionamentos.
Dando prosseguimento na análise do inventário post-mortem dos referidos acima,
no dia 05 de fevereiro de 1789, haviam sido avaliados todos os bens pelos louvados,
apresentados pela escrava Catarina. Normalmente, os bens da pessoa falecida ficavam
sob responsabilidade do inventariante, que poderia ser seu cônjuge, quando o
inventariante fosse casado, ou um dos filhos mais velho; sendo solteiro ou viúvo, essa
responsabilidade, geralmente, quando os pais não fossem vivos, recaia para um dos
irmãos mais velhos ou, se tivesse apenas filhas, para o genro de uma delas.
No processo de Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá Meneses, todos os
herdeiros colaterais, irmãos da inventariada, abriram mão da herança, afirmando que o
montante deveria ser usado para o pagamento das dívidas do casal. Desse modo, é
bastante particular e incomum que os bens tenham ficado sob posse e responsabilidade
da escrava do casal até o início da abertura do processo.
Talvez, aqui, estejamos presenciando uma relação, entre senhores e escrava, para
além da dicotomia entre donos e mão de obra. Catarina, possivelmente, integrou essa
família por tempo considerável, tendo em vista que ela não somente ficou com esses bens,
mas foi e deve ter sido permitido pelos demais herdeiros sua resguarda. O cotidiano, o
trânsito dentro e fora da fazenda, presente nos encontros familiares, onde todos os
integrantes devem ter acompanhado sua gravidez, fez com que se gerasse uma relação de
confiança e, supostamente, de afetividade, apesar da subserviência ainda estar presente
nesta ação.

217
Ibidem.
218
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
85

Ou, porventura, estejamos tratando de um acordo, uma negociação feita por


Catarina com os irmãos da sua senhora, tendo em vista que no inventário post-mortem o
escrivão e tabelião Antônio Vaz Ferreira Júnior fez o Termo de Requerimento que Fiz a
Escrava e Mulata Catarina, onde pedia ao juiz ordinário, o tenente Antônio de Carlos
Figueiredo, sua liberdade, que fizessem sua carta de alforria, “para com ela poder viver
isenta de cativeiro”219.
Não sabemos precisar por quais motivos Catarina ficou responsável pelos bens e
posses dos seus senhores após os seus falecimentos, mas o requerimento apresentado por
ela, qualificada agora como mulata, foi acatado. Desta forma, ela comprou sua liberdade
pelo seu mesmo valor, no qual havia sido avaliada pelos louvados, pagando em dinheiro
de contado, em moedas de ouro e prata220. Ao final das contas, devemos considerar
Catarina como cabra ou mulata? É sabido que, na constituição da segunda categoria,
pessoas provenientes de mesclas normalmente não compunham sua origem, que não
existe, assim como na qualidade de cabra, heranças indígenas na composição da cadeia
genética dos sujeitos nomeados como mulatos.
Seria, dessa maneira, o qualificativo dado por suas leituras fenotípicas? Isto leva
para outro questionamento: o que teria mudado quando Catarina apareceu no Título de
Escravos para o seu requerimento de liberdade, considerando que o escrivão do processo
foi o mesmo? Talvez essa mudança de qualificação estivesse envolta de percepções
socioculturais, uma vez que nomeada enquanto cabra, sua aparição no registro foi na
condição de escrava, e quando foi designada como mulata, estaria vislumbrando um
princípio de liberdade, apesar destas duas categorias estarem diretamente ligadas ao
cativeiro.
O que podemos inferir, no meio destas indagações, é o papel desempenhado pelo
escrivão Antônio Vaz Ferreira Júnior, encarregado de colocar no papel o que havia sido
acordado pelas demais partes, na perspectiva de que este sujeito é fruto das suas leituras
e percepções pessoais no contexto em que se insere, da sua realidade social, dos filtros
feitos por ele, pois se estes conteúdos discursivos “apresentam aspectos de um gênero
textual específico, por outro, envolvem sonhos, desejos e afetividades, personagens,
situações, representações e percepções reais via-à-vis do contexto em que viviam”221.

219
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
220
Ibidem.
221
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47-48.
86

Adiante, se registrou uma Justificação de Dívida do Tenente Custódio de Oliveira


Lima, que, pelo falecimento da sua irmã Quitéria Lopes Correia e do seu cunhado Manoel
de Sá de Meneses, o casal ficou devendo 12$100 réis, sobre um sítio chamado Cabaceiras,
na Ribeira do Seridó. A petição, despachada pelo juiz ordinário, requeria que o escrivão
preparasse e autuasse testemunhas sobre este dividendo, na tentativa de provar sua
veracidade, no qual o redator organizou e autuou os indivíduos apontados pelo
justificante222.
O primeiro que prestou juramento aos Santos Evangelhos e prometeu ser
verdadeiro, foi Constantino Barbosa da Silva, pardo, de 36 anos, casado, morador na Serra
do Cuité, que vivia de suas lavouras. Sendo perguntado pelo que havia na petição do
justificante, confirmou que o casal devia o referido valor ao tenente Custódio de Oliveira
Lima, assinando o seu juramento depois de lido pelo juiz223.
O segundo juramentista foi Martinho Pereira, com casta de pardo, casado, de idade
de 45 anos, que também vivia do cultivo de lavouras na Serra do Cuité. Disse que sabia
que o casal de defuntos devia ao justificante e confirmou ser verdadeira uma dívida no
valor mencionado anteriormente224.
O terceiro e último indivíduo, indicado pelo tenente Custódio de Oliveira Lima,
foi Roque Soares de Sá, qualificado como pardo, casado, que, assim como os dois sujeitos
supracitados, era morador na Serra do Cuité e vivia de lavouras, contanto com 60 anos de
idade. Estava alinhado com o pedido do justificante, sobre uma causa do Sítio de Terras
da Cabaceira, contabilizada em 12$100 réis225.
Essas três testemunhas, indicadas para atestar uma dívida do casal Quitéria Lopes
Correia e Manoel de Sá de Meneses (1788), considerando que foram perguntadas e que
suas respostas foram registradas pelo escrivão Antônio Vaz Ferreira Júnior, se
identificavam enquanto pardos, e não somente foram qualificadas por terceiros, pois se
concebermos que o ritual jurídico foi seguido e cumprido como consta na documentação,
estes indivíduos assinaram “seu juramento com o dito juiz depois de lido”226.
Também é importante salientar que o justificante, o tenente Custódio de Oliveira
Lima, convidou três pessoas não-brancas para atestarem seu requerimento, darem fé

222
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
223
Ibidem.
224
Ibidem.
225
Ibidem.
226
Ibidem.
87

perante o aparelho jurídico colonial e os sujeitos que o representavam. Desse modo, foi
possível observarmos que dentre outras coisas, estes indivíduos são pardos, e pela
ausência de condição jurídica definida, provavelmente eram homens livres, capazes de se
inserirem e se movimentarem com maior fluidez, respeito e reconhecimento no bojo
social colonial.
Outra certidão de dívida no processo do casal falecido, foi apresentada por
Francisco de Araújo, ainda no dia 05 de fevereiro de 1789. Quitéria Lopes Correia e
Manoel de Sá de Meneses deviam, procedidos de sete bois, o valor de 14$000 mil réis. O
justificante, morador que foi nos Currais Novos, seguindo o normativo judicial anterior,
convocou sua primeira testemunha: Manoel Cavalcanti de Albuquerque, qualificado
como pardo, morador que era na Serra do Cuité, vivia de lavouras, era casado e tinha 67
anos. Disse que sabia que o casal era devedor do justificante, devido aos sete bois que
foram emprestados e nunca pagos227.
Atuando como testemunha pela segunda vez, Roque Soares de Sá atestou que o
casal falecido devia o que estava sendo requerido por Francisco Araújo. Desta vez, no
entanto, foi qualificado e assinou se juramento depois de lido pelo juiz, como pardo
disfarçado228.
O último indivíduo convidado para ser testemunha na Certidão de Dívida de
Francisco Araújo, foi o tenente Miguel Pinheiro Teixeira, branco, casado, assistente na
Serra do Cuité, de idade de 39 anos, que vivia de criar seus gados. Afirmou que o
justificante havia emprestado seu gado para Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá de
Meneses (1788), mas que não havia pago o valor cobrado229.
Foi perceptível, nas duas certidões de dívidas apresentadas no inventário post-
mortem, onde Roque Soares de Sá atuou duas vezes como testemunha, que no primeiro
momento ele foi qualificado e se reconheceu como pardo, e no segundo teve seu
qualificativo alterado para “pardo disfarçado”, categoria utilizada desde o século
XVIII230.
Utilizando o conceito de cor, Jocélio Santos tentou mostrar e compreender o
complexo sistema de classificações desta categoria, no âmbito da Santa Casa da
Misericórdia, focando na Roda dos Expostos, destinada ao abrigo, amparo e assistência

227
Ibidem.
228
Ibidem.
229
Ibidem.
230
SANTOS, Jocélio Teles. De Pardos Disfarçados a Brancos Pouco Claros: Classificações Raciais no
Brasil dos Séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, Salvador, n. 32, 2005, 115-137.
88

das crianças recém-nascidas enjeitadas, entre os séculos XVIII e XIX. Utilizando um


repertório limitado de classificação das crianças, denotando para existência de um sistema
distintivo de cores, pelo menos para aquele lugar e naquela época, os expostos foram
nomeados como brancos, mulatos, pardos, cabras, crioulos, mestiços, negros e pardos
disfarçados231.
Discutindo sobre este léxico classificatório, e mais especificamente o último
qualificativo inferido, o autor utiliza correspondência de 07 de maio de 1825, do capitão-
mor de São Cristóvão, Governador da Bahia, onde falou que em Sergipe haviam sido
presos “moços brancos, pardos disfarçados e não de cor apertada”232.
Assim sendo, traçando diálogo com Luiz Mott, Jocélio Santos afirmou que os
designativos de pardo disfarçado, branco misturado, pardo apertado e cabra eram bastante
tênues, pois era o indicativo de que “atributos tanto físicos (não somente a cor) e sociais
(a identificação de parentes ou a inserção no mundo dos brancos) faziam parte do ‘modus
operandi’ na classificação colonial brasileira”233.
Em vista disto, se pode considerar Roque Soares de Sá como um pardo com traços
e/ou heranças mais próximas de um cabra? Por desfrutar, provavelmente, de liberdade,
ser casado, viver de suas lavouras, ter tido moradia regular e estar inserido “no mundo
dos brancos”, foi considerado como pardo disfarçado, distintivamente nomeado na
segunda ocasião, mas aceito como testemunha e pessoa dotada de fé pública nas duas
certidões de dívidas do inventário post-mortem de Quitéria Lopes Correia e Manoel de
Sá de Meneses (1788)234.
Adiante, temos mais uma Justificação de Dívida de Francisco Nunes Pimentel,
requerida no dia 20 de abril de 1789, devido ao casal de defuntos ter ficado devendo
58$000 mil réis ao suplicante, relativo a uns bois e “outras tantas”. Alinhados e atestando
o requerimento feito pelo justificante, sua primeira testemunha foi Salvador Carreiros de
Albuquerque, branco, casado, de idade de 53 anos, morador no Sítio Tapera, que vivia de
criar seus gados235.
Sua segunda testemunha se chamava Francisco Mendes de Castro, também
branco, casado, que viveu de criar seus gados no Sítio Itans, contando 57 anos de vida. O

231
Ibidem.
232
SANTOS, Jocélio Teles dos. Op. Cit., 2005, p.132.
233
SANTOS, Jocélio Teles dos. Op. Cit., 2005, p.132.
234
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia
e Manoel de Sá de Meneses (1788). FMDTS, Currais Novos/RN.
235
Ibidem.
89

terceiro juramentista foi Manoel Nunes de Azevêdo, de 40 anos, qualificado como branco,
morador no Sítio Barbosa, onde vivia de criar seus gados236.
O quarto e último testemunho indicado por Francisco Nunes Pimentel, foi João de
Araújo Frazão, de 39 anos, casado, que vivia da atividade pastorícia na Fazenda Bom
Sucesso e tinha casta. Provavelmente, essa remissão de que o sujeito tinha “casta”, fosse
uma referência de que não estamos tratando de uma pessoa branca, mas de um sujeito de
cor.
Diferente de Martinho Pereira, que foi testemunha do tenente Custódio de Oliveira
Lima e foi grafado com “casta de pardo”, João de Araújo Frazão teve apenas o indicativo
de ser possuidor de “casta”. Esse vocábulo, segundo Eduardo Paiva, muitas vezes se
confundiu e/ou se associou com “qualidade”, sendo mais usado nos domínios espanhóis
do que na América Portuguesa237.
A partir do século XVIII, afirmou o autor, o uso desta categoria já era mais
corriqueiro, no qual foi possível ver ocorrências do termo em um relato anônimo,
publicado em 1794, na região do Rio da Prata, onde o autor se referiu à riqueza dos
campos platinados, o grande número de cabeças de gado e como Montevidéu se tornou
atrativa, “corriendo por toda la tierra la fama de este tesoro, acudiesen gentes de muchas
castas a esquilmar esta heredad a la cual tenía derecho todo el que careciese de
conciencia”238.
Usada com menos frequência nos domínios portugueses, Paiva localizou o uso
desta categoria para Capitania de Mato de Grosso, usada pelo governador Antônio Rolim
de Moura, para escrever sobre a população das vilas e dos arraiais da região, afirmando
que “não havia ‘mais que duas castas de pessoas que são homens falidos, ou os que têm
carijós’”239.
O emprego deste vocábulo também esteve atrelado na nomeação de pessoas e
grupos indígenas240, como foi possível perceber na Freguesia do Seridó, onde José Pereira
de Souza, indivíduo apontado por Helder Macedo, prestou depoimento numa justificação
de dívida, ao lado de dois pardos, relativo ao inventário de Manuel Marques do

236
Ibidem.
237
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015.
238
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.140, grifo nosso.
239
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.139, grifo nosso.
240
Ibidem.
90

Nascimento (1789). Na assentada das testemunhas, o escrivão do processo grafou o


juramentista “com casta da terra”, que seria uma expressão usada para designar índios241.
Assim, qual casta pertenceria João de Araújo Frazão? Seria ele, assim como os
outros juramentistas não-brancos, um pardo? É possível que somente pessoas qualificadas
como pardas ou com casta de pardo tivessem tal espaço para aturem como testemunhas
em justificações de dívidas nos inventários post-mortem? Podemos falar que os escrivães
eram instruídos acerca do léxico nominativo, levando em consideração o uso de
qualidades, mencionar um termo como casta, incomum para América Portuguesa, e
mobilizar outras categorias para adjetivação dos indivíduos?
No momento, não temos respostas para todos os questionamentos lançados, mas
apenas caminhos que nos fazem refletir sobre a formação, construção, dissipação e
nuances que o léxico das qualidades adquiriu ao longo de sua história. Os sujeitos até aqui
nomeados, presentes nos inventários post-mortem dos séculos XVIII e XIX, do Totoró e
do seu entorno, podem ter tido seus qualificativos influenciados pelo juiz que presidia o
processo, pelos avaliadores que viam e tinham contato com os bens, os partidores e o
inventariante, responsável, algumas vezes, por fazer uma lista das posses que seriam
inventariadas antes da abertura do processo.
De toda forma, cabia ao escrivão, o redator da peça jurídica, chegar ao consenso
deste processo que era e podia ser plural, pois neste “jogo das interações sociais, a escrita
assume status de arranjo estrutural das práticas, medidas norteadoras das ações e, ao
mesmo tempo, o espaço definido pelos acontecimentos diários. Traduz, em sua lógica, as
formas de pensar e a síntese das histórias pessoais”242.

2.4 Dois Momentos: Mudanças e Permanências

O ato de qualificar outra pessoa, manobrar diferentes tipos de ferramentas


elásticas e móveis neste exercício, ponderar sobre o que se sabia sobre o léxico das
qualidades, embebido por sua visão de mundo e suas leituras sobre estas diferentes
variáveis, fez com que estes vocábulos, muitas vezes, não passassem de instantes nas
tezes e nos corpos destas pessoas, mas que todo o rol qualificativo marcasse nas suas

241
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
242
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47-48.
91

vidas diferenças de uma sociedade hierárquica como dos indivíduos que viviam nas
Américas.
Continuando debruçados sobre os inventários post-mortem e os agentes
burocráticos da Coroa Portuguesa, era parte constituinte deste processo duas peças
jurídicas: o Arrolamento de Bens e o Auto de Partilha. O primeiro, como já foi dito, servia
para conhecimento e avaliação das posses do inventariado, da pessoa falecida; o segundo,
para distribuição destes bens entre os seus herdeiros, e em alguns casos, para o pagamento
de dívidas deixadas pelo sujeito.
Nestes dois momentos, os escravos foram citados e qualificados, mas foi possível
percebermos alterações nos seus designativos, como aconteceu no processo inventariante
de Francisca Xavier de Moura (1789)243, casada que foi com José de Freitas Leitão,
moradores no Totoró de Baixo. Iniciado o arrolamento dos bens no dia 15 de setembro
de 1789 e feito sua posterior partilha no mês seguinte, em 20 de outubro do mesmo ano,
os escravos foram nomeados da seguinte forma244:

Tabela 02 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Francisca Xavier de Moura (1789)245
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um mulato, por nome Nicolau, sem moléstia Um escravo mulato, por nome Nicolau, de
alguma nem ofício, de idade de vinte e cinco idade de vinte e cinco anos, lançado neste
anos, avaliado em 115$000. inventário, avaliado em 115$000.
Um negro do Gentio da Angola, por nome Um escravo preto, do Gentio de Angola, por
Antônio, de idade de quarenta anos, pouco nome Antônio, de idade de quarenta anos,
mais ou menos, ao que parecia sem moléstia lançado neste inventário, avaliado em 65$000.
alguma, avaliado em 65$000.
Uma crioula, por nome Cipriana, de idade de Uma crioula, por nome Cipriana, de idade de
vinte e quatro, pouco mais ou menos, sem vinte e quatro anos, lançada neste inventário,
moléstia alguma, sem habilidade alguma, avaliada em 100$000.
avaliada em 105$000.
Uma crioula, por nome Manuela, filha da dita
A escrava mulata, por nome Manuela, de
escrava Cipriana, de idade de um ano, idade de um ano, filha da dita escrava
avaliada em 40$000. Cipriana, lançada neste inventário, avaliada
em 40$000.
Uma crioula, por nome Paula, de idade de Uma crioula, por nome Paula, de idade de
vinte e três anos, sem moléstia alguma nem vinte e três anos lançada neste inventário,
habilidade alguma, avaliada em 100$000. avaliada em 100$000.

243
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
244
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier de
Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
245
Para uma melhor compreensão e inteligibilidade dos documentos trabalhados neste estudo, fizemos
adequações ortográficas em relação ao vocabulário coevo.
92

A crioula Luiza, de idade de vinte anos, pouco Uma escrava crioula, por nome Luiza, de
mais ou menos, sem habilidade alguma nem idade de vinte anos, lançada neste inventário,
moléstia, avaliada em 100$000. avaliada em 100$000.

Uma crioula, por nome Joana, de idade de Uma escrava crioula, chamada Joana, de idade
vinte e dois anos, sem habilidade nem vinte e dois anos, lançada neste inventário,
moléstia alguma, avaliada em 100$000. avaliada em 100$000.
Um moleque, crioulinho, filho da dita escrava
Um escravo, moleque, crioulo, chamado
Joana, por nome Joaquim, de idade de Joaquim, filho da escrava Joana, de idade de
dezesseis dias, avaliado em 25$000 doze dias de nascido, lançado neste
inventário, avaliado em 25$000.
Uma crioula, por nome Verônica, de idade de A escrava crioula, por nome Verônica, de
dezessete anos, sem moléstia alguma nem idade dezessete anos, lançada neste
habilidade, avaliada em 100$000. inventário, avaliada em 100$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier
de Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.

Dentro do que foi destacado, podemos ver que Antônio, do Gentio de Angola, foi
nomeado como negro, no primeiro momento, e como preto, quando da partilha dos bens.
Essa alteração, que poderia passar despercebida pela sutil diferença dos termos, faz
remissão ao que já foi discutido em relação ao qualificativo de pessoas vindas de África,
e sua condição jurídica enquanto escravo, demonstrando que os termos “preto” e “negro”
tinham íntima ligação com estes sujeitos, muitas vezes sendo considerados como
equivalentes.
Além disso, Manuela, qualificada como crioula, de apenas um ano de idade, no
momento da partilha dos bens foi nomeada como mulata. Como uma qualidade que não
envolvia intercursos biológicos foi alterada para outra fruto de mistura? Teria o escrivão
Antônio Vaz Ferreira Júnior, redator deste processo, mudado o designativo da escrava?
Se sim, por quais motivos e utilizando quais critérios?
É possível que o termo tenha sido alterado para mulata, dado que Manuela era
escrava, integrava o rol dos cativos sob posse de Francisca Xavier de Moura (1789), e
essa qualidade mantinha íntima relação com os indivíduos que faziam parte das forças de
trabalho compulsório no período colonial, daqueles que uma vez estigmatizados por essa
condição e marca, tinham dificuldades em se inserirem socialmente, para além dos limites
do cativeiro.
Tal fenômeno também foi percebido no inventário post-mortem de Dona Adriana
de Holanda e Vasconcelos (1793), casada com seu terceiro marido, Antônio da Silva e
Souza, moradores na Fazenda do Totoró de Cima. O escrivão e tabelião do seu processo
foi João de Sousa e Silva, abertos os autos em 02 de agosto de 1793, para se arrolarem os
93

bens; e sua posterior divisão, iniciada somente em 07 de julho do ano seguinte, em


1794246.

Tabela 03 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793)247
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um escravo mulato, chamado Luiz, de idade
de cinquenta anos, pouco mais ou menos, sem
-
moléstia nem habilidade alguma, avaliado em
45$000.
Um escravo mulato, chamado Francisco, sem Um escravo, denominado Francisco, mulato,
habilidade e moléstia alguma, avaliado em casado, lançado neste inventário, avaliado em
100$000. 100$000.
Um escravo mulato, chamado Manoel, de
idade de vinte e um anos, sem habilidade nem -
moléstia alguma, avaliado em 100$000.
Um escravo mulato, chamado Agostinho, de Um escravo, mulato, denominado Agostinho,
idade de dezenove anos, sem habilidade nem lançado neste inventário, avaliado em
moléstia, avaliado em 100$000. 100$000.
Um escravo, chamado José, Mina, sem
habilidade nem moléstia, de idade de quarenta
-
anos, pouco mais ou menos, avaliado em
100$000.
Um escravo, por nome José, do Gentio de
Angola, de idade de vinte e dois anos, ao que
-
mostrava sem habilidade nem moléstia
alguma, avaliado em 100$000.
Um escravo, chamado Cipriano, do Gentio de
Angola, ao que mostrava sem habilidade, -
avaliado em 80$000.
Um escravo, chamado Joaquim, do Gentio de
Um moleque, denominado Joaquim, de
Angola, de idade de doze anos, ao que
Angola, lançado neste inventário, avaliado
mostrava sem moléstia e habilidade alguma,
em 75$000.
avaliado em 75$000.
Um escravo, por nome Manoel Gomes, do
Um escravo, denominado Manoel, Angola,
Gentio da Costa da Mina, de idade de
lançado neste inventário, avaliado em
cinquenta e cinco anos, sem habilidade
40$000.
alguma nem moléstia, avaliado em 40$000.
Um escravo, por nome José Gomes, do Gentio
da Costa da Mina, de idade de cinquenta anos,
Um escravo, José Gomes, de nação Angola,
ao que mostra quebrado das cadeiras e de um
lançado neste inventário, avaliado em [...].
pé, sem alguma habilidade, avaliado em
100$000.
Uma escrava, por nome Inácia, mulata, de
idade de cinquenta anos, ao que mostrava Uma escrava, mulata, Inácia, lançada neste
malhada na cor por fígado de que é doente, inventário, avaliada em 75$000.
avaliada em 75$000.

246
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda
e Vasconcelos (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
247
Não foi possível localizarmos todos os escravos no Auto de Partilha, pois o inventário post-mortem de
Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793) encontra-se desfalcado, faltando páginas e algumas estão
danificadas, impossibilitando transcrição e legibilidade das palavras.
94

Uma escrava mulata, chamada Ana Tereza,


Uma escrava, mulata, denominada Tereza,
filha da dita escrava Inácia, de idade de
lançada neste inventário, avaliada em
dezessete anos, sem habilidade nem moléstia
150$000.
alguma, avaliada em 150$000.
Uma escrava, mulata, por nome Sebastiana, de
idade de quinze anos, filha da dita escrava
-
Inácia, sem habilidade nem moléstia, avaliada
em 110$000.
Uma escrava, por nome Leonarda, mulata, de
idade de dez anos, pouco mais ou menos, com
A mulatinha Leonarda, avaliada em 70$000.
moléstia, sem agilidade alguma, filha da dita
escrava Inácia, avaliada em 70$000.
Uma escrava, mulata, de nome Florência, filha
da dita escrava Inácia, idade de nove anos,
-
sem habilidade, nem moléstia alguma,
avaliada em 65$000.
Uma escrava, mulata, por nome Emerenciana,
filha da dita escrava Inácia, de idade de cinco -
anos, sem lesão alguma, avaliada em 45$000.
Uma escrava, mulata, por nome Rosa, filha da
dita escrava Inácia, de idade de dois anos, sem -
moléstia, avaliada em 30$000.
Uma escrava, parda, por nome Tereza, casada,
Uma escrava, mulata, denominada Tereza,
de idade de sessenta anos, pouco mais ou
lançada neste inventário, avaliada em
menos, achadas de algumas moléstias,
20$000.
avaliada em 20$000.
Uma escrava, chamada Luiza, mestiça de
pardo e preta, filha da dita escrava Tereza, de
-
idade de vinte anos, entrevada na presente
ocasião por moléstia, avaliada em 30$000.
Uma escrava, mulata, por nome Mônica, sem
lesão nem moléstia alguma, filha da dita
-
escrava por nome Luiza, de idade de quatro
anos, avaliada em 45$000.
Uma escrava, crioula, de nome Maria, casada,
Uma escrava, crioula, denominada Maria,
de idade de trinta e cinco anos, sem moléstia,
casada, avaliada em 65$000.
avaliada em 65$000.
Uma escrava, crioula, de idade de quatorze
anos, por nome Rita, filha da dita escrava Uma escrava, denominada Isaura, crioula,
Maria, casada, sem habilidade, nem moléstia, lançada neste inventário, avaliada em
nem lesão alguma, digo, denominada Isaura, 100$000.
crioula, avaliada em 100$000.
Uma escrava, crioula, de idade de vinte anos,
por nome Maria, digo, Rita, filha da escrava Uma escrava crioula, denominada Maria,
Maria, com infecção nas pernas e corpo, lançada neste inventário, avaliada em
rendida das virilhas, sem habilidade vista, 70$000.
avaliada em 20$000.
Um escravo, por nome Miguel, mulato, de
idade de trinta anos, pouco mais ou menos,
cujo escravo pertencia ao defunto herdeiro
-
Manoel, que de menor faleceu filho do
Coronel Cipriano Lopes Galvão, primeiro
marido da mulher falecida dele inventariante,
95

sem lesão nem ofício, senão o de campo, visto


e avaliado pelos louvados em 85$000
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.

Foi perceptível que Manoel Gomes e José Gomes, arrolados enquanto


provenientes da Costa da Mina, no momento da divisão dos bens, foram ditos enquanto
de Angola. Eduardo Paiva também mostrou, para o contexto ibero-americano no período
colonial e parte do imperial, que, por exemplo, o termo “negros da Guiné” foi utilizado
“como sinônimo de africanos e de escravos africanos”248. Também se tem conhecimento
que os sujeitos escravizados e que saíram da Costa da Mina e de Angola para América
Portuguesa, não necessariamente faziam parte desta localidade, muitas vezes eram
indivíduos capturados em outras regiões de África, e quando embarcados nestes portos,
eram assim denominados.
Muirakytan Macêdo afirmou que foi um problema para América Portuguesa essa
classificação e localização da proveniência dos escravos, pois nem sempre o negro tido
como “Angola” vinha desta região, podendo ter nascido na colônia, mas por alguma
semelhança fenotípica e/ou cultural, acabava sendo designado assim249. Mas, por qual
motivo o escrivão João de Sousa e Silva mudou a origem de Manoel Gomes e José Gomes
entre estes dois momentos do processo? Talvez, para o sertão do Seridó, Angola seria o
sinônimo equivalente para africanos e/ou escravos africanos; ou, decerto, o escrivão não
demonstrasse conhecimento geográfico sobre África e seus descendentes.
Vimos, conforme destaque presente na tabela, que Tereza, qualificada como
parda, mais ou menos com 60 anos de idade e já afetada por algumas moléstias,
provavelmente pelo passado do tempo e pela condição jurídica e de vida em que estava,
foi designada como mulata quando foi partilhada entre os herdeiros de Dona Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1793).
Essas qualidades, de pardo e mulato, têm proximidade em relação ao contato
biológico que gera seus descendentes, fruto do envolvimento de pessoas brancas com
negros, pretos e/ou crioulos, consequentemente são indivíduos de traços e feições
semelhantes. No entanto, compreendidas de forma social e cultural diferentes, dado que
mulato estaria mais próximo ao cativeiro e o pardo do “mundo dos brancos”, essas

248
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre os Séculos
XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p.199.
249
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
96

adjetivações não foram equivalentes. Tereza, vista como parda e posteriormente grafada
como mulata, passou por um processo de desqualificação, uma vez que estava sendo
descrita e avaliada, partilhada enquanto um bem e uma posse, marcada por viver sob
regime escravista.
Também foi possível vermos esse fenômeno se repetir, no processo inventariante
de Miguel Pinheiro Teixeira (1825), viúvo de Ana Lins de Holanda250, morador no Sítio
Cacimba do Meio. O escrivão Antônio do Rêgo Leite de Araújo, em um rol de 15
escravos, mudou o designativo de somente um deles251:

Tabela 04 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Miguel Pinheiro Teixeira (1825)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um escravo, mulato, de nome Manoel, de
Escravo, mulato, de nome Manoel, avaliado
idade de trinta e cinco anos, sem moléstia,
em 200$000.
avaliado em 200$000.
Outro escravo, cabra, de nome João, de idade
de vinte seis anos, sem moléstia, avaliado em Escravo, João, cabra, avaliado em 200$000.
200$000.
Outro escravo, cabra, de nome Lourenço, de
Escravo, Lourenço, cabra, avaliado em
idade de vinte e cinco anos, sem moléstia,
200$000.
avaliado em 200$000.
Outro escravo, crioulo, de nome José, de idade
Escravo, crioulo, de nome José, avaliado em
que disse ter vinte dois anos, sem moléstia,
200$000.
avaliado em 200$000.
Outro escravo, mulato, de nome Antônio, de
Escravo, mulato, de nome Antônio, avaliado
idade que disse ter vinte anos, sem moléstia,
em 200$000.
avaliado em 200$000.
Outro escravo, cabra, de nome Marcos, de
Escravo, cabra, de nome Marcos, avaliado
idade que disse ter, dezoito anos, sem
em 200$000.
moléstia, avaliado em 200$000.
Outro escravo, crioulo, de nome Vitoriano, de
Escravo, crioulo, Vitoriano, avaliado em
idade de quarenta e oito anos, sem moléstia,
160$000.
avaliado em 160$000.
Outro escravo, mulato, de nome André, de Escravo, cabra, de nome André, avaliado em
idade de doze anos, sem moléstia, avaliado em 130$000.
130$000.
Outro escravo, cabra, de nome Estevam, Escravo, Estevam, cabra, avaliado em
avaliado em 150$000. 150$000.
Outro escravo, cabra, de nome Joaquim, de
Escravo, cabra, de nome Joaquim, avaliado
idade de onze anos, sem moléstia, avaliado em
em 110$000.
110$000.
Outro escravo, cabra, de nome Alexandre, de Escravo, cabra, de nome Alexandre, avaliado
idade de oito anos, avaliado em 90$000. em 90$000.

250
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN).
251
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
97

Outra escrava, cabra, de nome Tereza, de


Escrava, cabra, de nome Tereza, avaliada em
idade de vinte e oito anos, sem moléstia,
200$000.
avaliada em 200$000.
Outra escrava, cabra, de nome Narcisa, de
Escrava, cabra, de nome Narcisa, avaliada
idade de doze anos, sem moléstia, avaliada em
em 150$000.
150$000.
Outra escrava, cabra, de nome Maria, de idade
Escrava, de nome Maria, avaliada em
de treze anos, sem moléstia, avaliada em
150$000.
150$000.
Outra escrava, cabra, de nome Luiza, de idade Escravo, de nome Luiza, avaliada em
de cinquenta e três anos, avaliada em 50$000. 50$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.

André, nomeado como mulato no dia 07 de setembro de 1825, um mês e um dia


depois, em 08 de outubro do mesmo ano, foi designado como cabra. Afinal de contas,
qual seria a “verdadeira” qualidade de André? Provavelmente os dois termos, se
considerarmos o envolvimento depreciativo que esses vocábulos carregavam, sobretudo
em se referindo ao universo escravista.
Talvez, não possamos falar sobre “verdades” em se tratando do léxico das
qualidades. Seria, de certa forma, imprudente, levando em consideração o dinamismo e
flexibilidade com que o fenômeno das dinâmicas de mestiçagens pode ser compreendido
na Ibero-América, pois, considerando o esquema acima, os outros sujeitos escravizados
tiveram suas qualidades mantidas entre os dois momentos do processo – apesar de Maria
e Luiza, designadas como cabras, não terem sido qualificadas no momento da partilha.
Foi normal percebermos essa ausência de qualificação e de descrição do sujeito no
momento da divisão dos bens, não somente em se tratando das pessoas escravizadas, mas
de outras posses, como, por exemplo, ouro, prata, bens móveis e de raiz.
Provavelmente, os partidores já tinham conhecimento dos bens que seriam
divididos entre os herdeiros, considerando que o arrolamento já havia sido feito e os bens
descritos e avaliados. Dessa forma, no momento da destinação das posses, eles eram
descritos de forma mais objetiva, sem tantas especificações, dado que o Arrolamento de
Bens estava feito e anexado ao processo.
Essa alteração de mulato para cabra, também foi vista no inventário post-mortem
de Maria Benedicta de Bitancourt (1830), casada com Leonardo Pinheiro Teixeira252,

252
Ele era filho de Miguel Pinheiro Teixeira com Ana Lins de Holanda. Seus avós maternos eram o casal
formado pelo primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro Teixeira (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN).
98

moradores no Sítio Riacho Fundo253. O mesmo escrivão, Antônio do Rêgo Leite e Araújo,
entre os dias 21 e 22 de junho do mesmo, nomeou Florência de duas maneiras diferentes,
como se pode ver na tabela abaixo:

Tabela 05 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Maria Benedicta de Bitancourt (1830)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um mulato, de nome Inácio, de idade de
dezoito anos, perfeito de saúde, avaliado em Escravo, Inácio, avaliado em 200$000.
200$000.
Uma mulata, de nome Tereza, de idade de
Escrava, Tereza, avaliada em 200$000.
vinte e nove anos, avaliada em 200$000.
Outra mulata, de nome Inês, perfeita de saúde,
Escrava, mulata, de nome Inês, avaliada em
de idade de vinte e três anos, avaliada em
200$000.
200$000.
Outra escrava, mulata, de idade de um ano e Escrava, cabra, de nome Florência, de idade
meio, avaliada em 70$000. um ano, avaliada em 70$000.
Outra escrava, mulata, de nome Joana, de Escrava, Joana, mulata, de idade de um ano e
idade de um ano, avaliada em 60$000. meio, avaliada em 60$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Benedicta de
Bitancourt (1830). FMDTS, Currais Novos/RN.

Considerando o escrivão, como o principal agente responsável por essa


denominação, será que o primeiro designativo não pode ter sido dado pelo inventariante
do processo, o esposo da inventariada, considerando que o mesmo tenha preparado uma
lista dos bens que iriam estar presentes no arrolamento? Se este questionamento tiver
algum fundo de verdade, Florência teria sido consultada sobre sua qualidade; se sim, ela
seria dada pelo conhecimento dos seus pais, pela condição em que vivia ou pelas duas
coisas?
Florência, em 1830, tinha apenas um ano de idade, logo, seria pouco provável que
ela tivesse se autoqualificado. Mas no processo de Miguel Pinheiro Teixeira (1825)254,
mencionado e discutido anteriormente, existe, na primeira menção dos escravizados, mais
especificamente nas de José, Antônio e Marcos, a expressão “disse ter”, fazendo
referência para suas idades. Neste momento, teriam eles se autodenominados e por isso o
escrivão preservou suas designações no momento da partilha?
Infelizmente, não temos respostas para essas indagações, apenas caminhos que
podem satisfazer, em parte, o desconforto de não se saber como o léxico das qualidades

253
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Benedicta de
Bitancourt (1830). FMDTS, Currais Novos/RN.
254
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
99

se comportava entre os séculos XVIII e XIX no Totoró e suas adjacências. Porém


sabemos e tentamos, através destes registros coevos, o esforço de, como Sílvia Rachi nos
ensina, resgatar indícios e “lembranças, de fazer sentir os afetos, de expressar as crenças,
desejos e valores, as narrativas acomodam indícios de um modo de viver que extrapola
as paredes das casas, para, teimosamente, dar a conhecer no papel, a organização e a
percepção do lugar social supostamente ocupado, a expressão dos vínculos sociais e a
comunicação do almejado”255.
Com mais ocorrências dentro de um mesmo processo, vimos o fenômeno das
mudanças de qualidade se repetir no inventário post-mortem de Dona Ana de Araújo
Pereira (1841), moradora que foi no Sítio Riacho da Areia, deixando viúvo Manoel Lopes
Galvão256. O escrivão do seu processo, Miguel Pinheiro de Vasconcelos, quando os bens
foram arrolados e posteriormente divididos, registrou os cativos da seguinte maneira257:

Tabela 06 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Dona Ana de Araújo Pereira (1841)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um escravo, João, do Gentio de Angola, de Escravo, João, de Angola, doente do peito,
idade de quarenta anos, doente do peito, avaliado em 260$000.
avaliado em 260$000.
Outro escravo, do Gentio de Angola, de nome Um escravo, de Angola, de nome Joaquim, de
Joaquim, de idade de trinta e cinco anos, idade de trinta e cinco anos, avaliado em
avaliado em 300$000. 300$000.
Um escravinho, pardo, de nome Joaquim, de Escravinho, Joaquim, mulato, de idade de dois
idade dois anos, avaliado em 125$000. anos, avaliado em 125$000.
Um escravinho, pardo, de nome Manoel, de Um escravinho, mulato, de nome Manoel, de
idade de mês e meio, avaliado em 50$000. idade de mês e meio, avaliado em 50$000.
Uma escrava, parda, de nome Luiza, de idade Escrava, Luiza, mulata, de idade de trinta e
de trinta e quatro anos, avaliada em 300$000. quatro anos, avaliada em 300$000.

Uma escrava, parda, de nome Maria, de idade Uma escravinha, mulata, de nome Maria, de
de quatro anos, avaliada em 260$000. idade de catorze, avaliada em 260$000.
Outra escravinha, parda, de nome Escravinha, mulata, de nome Alexandrina, de
Alexandrina, de idade de nove anos, avaliada idade de nove anos, avaliada em 250$000.
em 250$000.
Outra escravinha, parda, de nome Florência, Escravinha, Florência, mulata, de idade de
de idade de sete anos, avaliada em 240$000. sete anos, avaliada em 240$000.

255
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.47.
256
Filho do segundo Cipriano Lopes Galvão com Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos
eram o primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (QUINTINO FILHO,
Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
257
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Dona Ana de Araújo
Pereira (1841). FMDTS, Currais Novos/RN.
100

Outra escrava, parda, de nome Guilhermina, Uma escravinha, de nome Guilhermina,


de idade de seis anos, avaliada em 200$000. mulata, de idade de seis anos, avaliada em
200$000.
Outra escravinha, de nome Tereza, parda, de Escravinha, Tereza, mulata, de idade de
idade de quatro anos, avaliada em 200$000. quatro anos, avaliada em 200$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Dona Ana de Araújo
Pereira (1841). FMDTS, Currais Novos/RN.

Concebendo o evento da desqualificação como válido, em se tratando dos sujeitos


que no momento da descrição e avaliação dos bens foram qualificados como pardos e
posteriormente, no momento dos herdeiros dividirem e receberem suas posses, foram
nomeados enquanto mulatos, vemos o episódio acontecer de maneira mais evidente nos
escravos Joaquim, Manoel, Luiza, Maria, Alexandrina, Florência, Guilhermina e Tereza.
O desqualificativo destes sujeitos, acontecido no intervalo de dois dias, entre 11 e
13 de outubro de 1841, remete para sua condição enquanto cativos, uma posse herdada
para os herdeiros da inventariada acima. O mesmo processo ocorreu na inventariação dos
bens de Félix Gomes Pequeno Júnior (1842)258, casado com Dona Rita Maria de Jesus,
moradores na Fazenda Totoró259:

Tabela 07 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno Júnior (1842)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um escravo, pardo, de nome Gonçalo, de Um escravo, mulato, de nome Gonçalo, idade
idade de trinta e oito anos, robusto, avaliado de trinta e oito anos, avaliado em 400$000.
em 400$000.
Um escravo, pardo, de nome Cosme, de idade Escravo, mulato, de nome Cosme, idade de
de vinte anos, robusto, avaliado em400$000. vinte anos, avaliada em 400$000.
Um escravo, do Gentio de Angola, de nome Um escravo, de Angola, de nome Joaquim
Joaquim, de idade de trinta anos, avaliado em idade de trinta anos, avaliado em 350$000.
350$000.
Outro escravo, de Angola, de nome Pedro, Escravo, Pedro, de Angola, idade de trinta e
idade trinta e um anos, avaliado em 350$000. um anos, avaliado em 350$000.
Outro escravo, Angola, de nome Joaquim, Um escravo, de nome Joaquim, Cassange, de
idade de trinta anos, avaliado em 300$000. idade trinta anos, avaliado em 40$000.
Outro escravo, de Angola, de nome Francisco, Outro escravo, de Angola, de nome Francisco,
bastante achacado, de idade de quarenta anos, de idade de quarenta anos, avaliado em
avaliado em 200$000. 200$000.
Uma escrava, parda, de nome Bernarda, idade Uma escrava, mulata, de nome Bernarda,
de cinquenta anos, adoentada, avaliada em achacada, idade de cinquenta anos, avaliada
80$000. em 80$000.

258
Filho de Félix Gomes Pequeno com Dona Ana Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos eram Félix
Gomes Pequeno e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem,
Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos (1789). FMDTS, Currais
Novos/RN).
259
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
Júnior (1842). FMDTS, Currais Novos/RN.
101

Outra escrava, parda, de nome Maria, idade de Uma escrava, parda, de nome Maria, de idade
trinta anos, avaliada em 300$000. de vinte e oito anos, avaliada em 300$000.
Outra escrava, parda, de nome Alexandrina, Uma escrava, parda, de nome, Alexandrina,
idade de oito anos, avaliada em 150$000. de idade de oito anos, avaliada em 150$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes
Pequeno Júnior (1842). FMDTS, Currais Novos/RN.

Seu escrivão, também Miguel Pinheiro de Vasconcelos, desqualificou de pardos


para mulatos os escravos Gonçalo, Cosme e Bernarda. Contudo, no intervalo de 72:00
horas, de 24 a 27 de maio de 1842, Maria e Alexandrina, nomeadas como pardas, não
passaram pelo processo de desqualificação no Auto de Partilha.
Teria sido, no caso destas duas escravas, levado em consideração somente sua
herança biológica e/ou suas feições e cores? Se sim, o que diferenciou elas dos três
sujeitos que passaram pelo processo de desqualificação? Sabemos que, no bojo do
processo das dinâmicas de mestiçagens, o ato de qualificar e se autoqualificar, não se
configurava como uma camisa engessada, como uma fórmula pronta para ser seguida
pelos agentes históricos, mas que mudou ao longo do seu uso e reuso, das percepções
particulares e coletivas, em toda extensão das Américas, até mesmo de três dias para o
outro, como no processo acima.
Outro destaque desta causa, foi o escravizado Joaquim, de 30 anos, avaliado em
300$000 mil réis, qualificado como proveniente de Angola no Título de Escravos,
presente no Arrolamento de Bens. No momento da partilha, o mesmo escravo teve sua
proveniência especificada para Cassange, um importante povoado situado no interior de
Angola, onde também havia tráfico negreiro260.
Com o objetivo de investigar o processo de redefinição dos grupos étnicos e a
construção de identidades africanas na primeira metade do século XIX, Regiane Mattos
concentrou suas atenções nos espaços de sociabilidade na cidade de São Paulo, onde
afirmou que, no contexto da escravidão, normalmente se atribuía a incorporação da
pessoa vinda de África ao seu grupo étnico. Destarte, essa identificação não era estática,
podendo ser alterada pelo escravo como também pelo seu proprietário261.
Não sabemos se Joaquim era natural de Cassange ou foi traficado lá, mas é
possível que estejamos tratando, para o momento da partilha, de uma procedência
informada pelo próprio sujeito escravizado, uma autolocalização de onde ele vinha e/ou

260
MATTOS, Regiane Augusto de. De Cassange, Mina, Benguela a Gentio da Guiné: Grupos Étnicos e
Formação de Identidades Africanas na Cidade de São Paulo (1800-1850). 2006. 239 f. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006.
261
Ibidem.
102

pertencia. Esse dado, nossas projeções, fazem refletir sobre o indivíduo que estava para
além da sua condição e da sua qualidade, um ser humano com sua própria vivência e
experiência, que provavelmente mantinha ligação e memórias afetivas com sua terra, que
foram usurpadas de si, mas que estariam vivas com ele e presente nesta simples referência
que tivemos acesso através das nossas fontes.
Para discussão aqui proposta, não é possível acessar os acontecimentos que
extrapolam o limite das palavras grafadas no inventário post-mortem, dos fatos que
ocorriam no momento da feitura do documento, de como se deu o partilhamento dos bens
entre meeira e herdeiros. Mas é possível sabermos que cabia ao escrivão, colocar no papel
o que havia sido decidido, acordado entre os agentes presentes na feitura do processo.
Dando continuidade, Félix Gomes Pequeno (1845)262, que vivia no Sítio Totoró,
casado com Dona Ana Lins de Vasconcelos, teve como escrivão do seu processo Manoel
Jorge de Medeiros. Seus bens foram vistos e avaliados pelos avaliadores no dia 09 de
setembro de 1845, e partilhado pelos partidores no dia 15 do mesmo mês e ano263:

Tabela 08 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Um escravo, Angola, de nome Ventura, de
idade de setenta e cinco anos, avaliado em Escravo, Ventura, avaliado em 20$000.
40$000.
Um escravo, cabra, de nome Felipe, de idade
Escravo, Felipe, avaliado em 40$000.
de sessenta e cinco anos, avaliado em 40$000.
Um escravo, crioulo, de nome Agostinho, de
idade de cinquenta e sete anos, avaliado em Escravo, Agostinho, avaliado em 40$000.
40$000.
Um escravo, índio, de nome Luiz, de idade de
Escravo, Luiz, avaliado em 250$000.
cinquenta e cinco anos, avaliado em 250$000.
Um mulato, de nome Lázaro, de idade de
Escravo, Lázaro, avaliado em 400$000.
quarenta e quatro anos, avaliado em 400$000.
Um escravo, índio, de nome Afonso, idade de
Negro, Afonso, avaliado em 118$914.
trinta e seis anos, avaliado em 350$000.
Um escravo, Angola, de idade de cinquenta
Escravo, Angola, Sebastião, avaliado em
anos, denominado Sebastião, avaliado em
180$000.
180$000.
Um escravo, mulato, de nome Antônio, de
idade de trinta e cinco anos, avaliado em Escravo, Antônio, avaliado em 350$000.
350$000.
Um escravo, mulato, de nome José, de idade
Escravo, mulato, José, avaliado em 350$000.
de trinta e cinco anos, avaliado em 350$000.

262
Filho de Félix Gomes Pequeno com Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (AVCCCN. 1ºCJ.
Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN).
263
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
(1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
103

Um escravo, cabra, de nome Bernardo, de


idade de vinte e nove anos, avaliado em Cabra, Bernardo, avaliado em 400$000.
400$000.
Um escravo, Angola, de nome José, de idade
Escravo, Angola, José, avaliado em 350$000.
de cinquenta anos, avaliado em 350$000.
Um escravo, cabra, de nome João, de idade
Escravo, João, avaliado em 380$000.
catorze anos, avaliado em 380$000.
Um índio, de nome Ricarte, de idade de
Escravo, Ricarte, avaliado em 370$000.
catorze anos, avaliado em 380$000.
Um escravo, cabra, de nome Joaquim, de Escravo, moleque, de nome Joaquim,
idade de seis anos, avaliado em 250$000. avaliado em 250$000.
Um escravo, cabra, de nome Raimundo, de
Escravo, Raimundo, avaliado em 125$000.
idade de um ano, avaliado em 125$000.
Uma escrava, cabra, de nome Vicência, de
Escrava, Vicência, avaliada em 480$000.
idade de trinta anos, avaliada em 480$000.
Uma escrava, cabra, de nome Josefa, de idade
Escrava, Josefa, avaliada em 400$000.
de trinta e seis anos, avaliada em 400$000.
Uma escrava, Angola, de nome Maria, de
Escrava, Angola, Maria, avaliada em
idade de cinquenta e seis anos, avaliada em
180$000.
180$000.
Uma escrava, cabra, de nome Maria, de idade Escrava, Maria Romana, avaliada em
de trinta e dois anos, avaliada em 480$000. 480$000.
Uma escrava, cabra, de nome Ana, de idade de
Escrava, Ana, avaliada em 450$000.
vinte e cinco anos, avaliada em 450$000.
Uma escrava, mulata, de nome Joaquina, de
Escrava, Joaquina, avaliada em 300$000.
idade de dez anos, avaliada em 300$000.
Uma escrava, mulata, de nome Ana, de idade Escrava, Ana, avaliada em 250$000.
de oito anos, avaliada em 250$000.
Uma escrava, mulata, de nome Silveira, de Escrava, Silveira, avaliada em 200$000.
idade de seis anos, avaliada em 200$000.
Um escravo, de nome Januário, que foi
deixado de idade de quarenta e quatro anos, ao -
herdeiro Tomaz, avaliado em 130$000.
Um escravo, de nome Pedro, índio, que foi
doado em idade de dez anos ao herdeiro José, Escravo, Pedro, avaliado em 110$000.
avaliado em 110$000.
Um escravo, cabra, de nome Alexandre, que
foi doado ao herdeiro Alexandre, em idade de Escravo, Alexandre, avaliado em 120$000.
dezesseis anos, avaliado em 120$000.
Um escravo, cabra, de nome Luiz, que foi
doado ao herdeiro Joaquim, avaliado em Escravo, Luiz, avaliado em 120$000.
120$000.
Um escravo, cabra, de nome Joaquim, doado
Cabra, Joaquim, avaliado em 120$000.
ao herdeiro Cipriano, avaliado em 120$000.
Um escravo, de nome Reginaldo, doado ao
herdeiro Bartolomeu, filho do finado Félix
Escravo, Reginaldo, avaliado em 100$000.
Gomes Pequeno Júnior, avaliado em
100$000.
Um escravo, de nome Miguel, doado ao
herdeiro Manoel, filho de Manoel Lopes -
Pequeno, avaliado em 100$000.
Uma escrava, cabra, de nome Sebastiana,
doada à sua neta Maria do Carmo, avaliada em -
100$000.
104

Uma escrava, de nome Ana, doada ao herdeiro


Escrava, Ana, avaliada em 110$000.
Joaquim Lopes, avaliada em 110$000.
Uma escravinha, de nome Severina, filha da
escrava Sebastiana, doada à sua neta Maria do
Carmo, depois do falecimento do finado -
Capitão Félix Gomes Pequeno, avaliada em
30$000.
Uma escrava, de nome Maria, doada ao
herdeiro Félix Gomes Pequeno Júnior, já -
falecido, avaliada em 300$000.
Uma escrava, de nome Josefa que foi doada ao Escrava, cabocla, de nome Josefa, avaliada
herdeiro João Lopes, avaliada em 100$000. em 100$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes
Pequeno (1845). FMDTS, Currais Novos/RN.

Afonso, arrolado como índio no Título de Escravos, foi qualificado como negro
no momento da divisão dos bens. Essa categoria foi utilizada como eufemismo para
ocultar a condição de escravizado de algum índio, assim como também ocorreu no uso da
expressão “negros da terra”264.
Qualificar um nativo como negro, não foi algo bem aceito, como é possível
vermos no Diretório dos Índios, datado de 1755, citada por Eduardo Paiva:

Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem


resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles
a injusta, e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros;
querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome, persuadir-lhes,
que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como
regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da África.
E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos
Índios este abominável abuso, seria indecoroso às Reais Leis de Sua
Majestade chamar Negros a uns homens, que o mesmo Senhor foi
servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qualquer
infâmia, habilitando-os para todo emprego honorífico: Não
consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma
chame Negros os Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste
nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que
lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas
nobres ideias, que naturalmente infundem nos homens a estimação, e a
honra265.

Por mais que fosse ilegal a escravização de mão de obra indígena quando da
feitura do processo de Félix Gomes Pequeno (1845), é sintomático que o termo negro seja
lido como sinônimo de escravo, passível de legalizar, através dos silenciamentos e

264
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015
265
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.197-198, grifo nosso.
105

ocultamentos, formas de trabalho compulsórias. Ainda, é preciso mencionar o lugar


ocupado pelos negros escravizados no período colonial, pois se quase nenhuma pessoa
estivera no mesmo patamar dos sujeitos brancos e luso-brasílicos pelos olhos ocidentais,
ser qualificado, chamado e se autodeclarar negro, até mesmo pelos nativos entre si, que
estiveram longe de serem lidos como iguais, seria “injusto” e “escandaloso”.
No mesmo documento, também temos Josefa, que não foi qualificada, quando do
momento da feitura do Arrolamento de Bens. No Auto de Partilha, por sua vez, foi
nomeada como cabocla, equivalente ao vocábulo de índio ou do nativo mestiço de branco,
pelo “mesmo étimo tupi de curiboca e de carioca: kara’iwa ‘homem branco’ e tupi
‘oka‘casa’”266.
Apesar destas mudanças, ocorridas entre o Arrolamento de Bens e o Auto de
Partilha dos inventários post-mortem, também se notaram permanências, como no
processo de Dona Josefa Maria da Conceição (1813), casada com José Lopes Galvão267,
onde residiram no Riacho da Areia de Baixo. Manoel Pereira da Silva Castro, escrivão
do processo, entre os dias 21 de junho de 1813 e 22 de julho do mesmo ano, descreveu a
escravaria da seguinte forma268:

Tabela 09 – Qualidade dos Escravos no Arrolamento de Bens e no Auto de Partilha


do Inventário post-mortem de Dona Josefa Maria da Conceição (1813)
ARROLAMENTO DE BENS AUTO DE PARTILHA
Uma escrava, Maria, crioula, de idade de
Escrava, Maria, crioula, idade de trinta anos,
trinta anos, vista pelos louvados, acharam
avaliada em 100$000.
valer 100$000.
Uma escrava, Ana, crioula, de idade de nove
Escrava, Ana, crioula, de idade de nove anos,
anos, vista pelos louvados, acharam valer
avaliada em 100$000.
100$000.
Uma escrava, de nome Izabel, crioula, de
Escrava, Izabel, crioula, de idade de quatro
idade de quatro anos, vista pelos louvados,
anos, avaliada em 40$000.
acharam valer 40$000.
Um escravo, de nome Matheus, mulato, de
Escravo, Matheus, mulato, idade de onze
idade de onze anos, vista pelos louvados,
anos, avaliado em 100$000.
acharam valer 100$000.
Um escravo, de nome Félix, crioulo, de idade
Escravo, Félix, crioulo, de idade de cinco
de cinco anos, vista pelos louvados, acharam
anos, avaliado em 50$000.
valer 50$000.

266
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.190.
267
Filho do segundo Cipriano Lopes Galvão com Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós paternos
eram o primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. (QUINTINO FILHO,
Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
268
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Josefa Maria da
Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN.
106

Um escravo, de nome Vicente, crioulo, idade


Escravo, Vicente, crioulo, de idade cinco
de cinco meses, vista pelos louvados, acharam
meses, avaliado em 30$000.
valer 30$000.
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Josefa Maria
da Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN.

Maria, Ana, Izabel, Matheus, Félix e Vicente, entre os dois momentos do


processo, no intervalo de um mês e um dia depois, pelo mesmo escrivão, tiveram suas
qualidades mantidas. Selecionamos esse processo, pois excetuando o escravo qualificado
como mulato, os outros são crioulos, descendentes de pais vindos de África que tiveram
seus filhos na colônia.
Essa mesma permanência também foi registrada nos documentos já citados e
trabalhados aqui, incluindo os sujeitos nomeados como “Gentio de Angola”.
Aparentemente, quando não estamos tratando de pessoas frutos de misturas, foi mais
recorrente que seus qualificativos fossem preservadas, pois se considerarmos a qualidade
expressa nos dois momentos do processo, dos 76 crioulos presentes nos inventários post-
mortem do Totoró e suas adjacências, 20 estiveram nomeados enquanto tais nas duas
ocasiões, representando 26,4% de constância; dos 27 escravos de Angola, 22 tiveram sua
proveniência respeitada entre o dia do arrolamento e partilha dos bens, equivalendo
81,5%269.
Entretanto, os indivíduos que tiveram suas qualidades nomeadas expressamente
de um jeito no Arrolamento de Bens e foram qualificadas de outra forma no Auto de
Partilha, ou vice-versa, em se tratando dos mulatos, presentes nas escravarias do Totoró
em 80 pessoas adjetivadas desta forma, 13 mudaram no decorrer do processo
inventariante, representando 16,3%270; das 14 pessoas escravizadas nomeadas como
pardas, 85,8% foram qualificadas de outra forma se comparando os dois momentos dos
inventários post-mortem.
É perceptível, até este momento, que o fenômeno das dinâmicas de mestiçagens e
a construção, adoção e espraiamento do léxico foi um evento que dependeu das
coletividades e das particularidades dos indivíduos. Para o contexto aqui em investigação,

269
Para esse cálculo, como já foi dito, apenas consideramos os escravos nomeados como crioulos e Gentio
de Angola nos dois momentos do processo. Muitas vezes se teve o qualificativo presente em uma das duas
peças do inventário post-mortem, mas não se levou em consideração a condição jurídica de escravo como
sinônimo de negro, preto e/ou crioulo para este resultado.
270
Encontramos os indivíduos em regime de escravidão nomeados como mulatos, em significativas
ocorrências, apenas em uma das duas partes do processo. No entanto, para este levantamento, não tomamos
a condição jurídica de escravo como equivalente de outra qualidade. Apenas computamos aquelas pessoas
que foram qualificadas de uma forma na peça jurídica e na outra foi nomeada diferente, para este caso,
como mulata.
107

tomamos o escrivão como o capitaneador deste processo, não desconsiderando outras


variáveis, sabendo da influência dos demais agentes históricos, mas por esse personagem
ser o responsável de filtrar decisões, tomá-las, legar ao papel o que temos acesso do seu
momento histórico, pois a escrita é sempre sobre algo, faz referência aos acontecimentos
da vida, “subjazem aos valores, hábitos, crenças, enfim, aos modos de viver. O recurso à
escrita, sob tal ótica, é flagrantemente construção, produto, e produtor das práticas
sociais”271.
O escrivão, compreendido como agente qualificante, através do fenômeno
discursivo, cria representações das qualidades dos sujeitos sob regime de escravidão no
Totoró e seu entorno, entre os séculos XVIII e XIX, uma vez este exercício de
qualificação implica na participação do agente da justiça, dando o conhecimento da cor,
do corpo, da tez e da qualidade sobre determinado sujeito; age por intermédio da escrita,
mobilizando estruturas inteligíveis e simbólicas da sua sociedade, que passaram pelo seu
crivo e escolha. Este exercício qualificativo não apenas representa ou reproduz, mas ele
produz, perpassa pelos afetos e subjetividades.

271
RACHI, Sílvia. Por Mãos Alheias: Usos da Escrita na Sociedade Colonial. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2016, p.50.
108

3 – CAMINHOS DE LIBERDADE

3.1 – Além de Escravos, Família

Do caminho por onde andei


Fazes trilha certa sob os pés infantes
Reinaugura-se o ciclo do viver
E do conhecer as estradas
Por onde ancestrais passaram272

Os sujeitos escravizados, situados no Totoró, entre os séculos XVIII e XIX, para


além de figurarem na condição de cativos nos inventários post-mortem, estavam vivendo,
relacionavam-se entre si, com os seus senhores, lidavam com o gado, plantavam lavouras,
comiam e viam o sol nascer e se pôr, ocupando o espaço que foi relegado para eles naquela
dada sociedade. Essas pessoas conviviam com gentes de diferentes qualidades e
condições, foram os pés infantes, como mencionou Helder Macedo no poema que inicia
este capítulo, do chão deste sertão, dos leitos dos rios, pioneiros e desbravadores destas
terras, povoando-a com seus genes, tez e modos de ser.
Neste momento, trabalharemos com arranjos familiares que se constituíram a
partir dos sujeitos sob regime da escravidão, que estavam presentes nas folhas dos
inventário post-mortem enquanto bens, cativos de seus senhores; mas, que apesar disto,
constituíram família, deixaram seus descendentes – de forma consensual ou não –, nas
terras banhadas pelo Rio Totoró. Essas genealogias, diferentes das que foram produzidas
no Seridó, como podemos ver nas obras de José Augusto (2002 [1940])273 e Olavo de
Medeiros Filho (1981)274, de José Bezerra Gomes (1975)275 e Celestino Alves (1985)276,
são provenientes das dinâmicas de mestiçagens processadas na Ibero-América.
Trabalhando com o conceito de “genealogias mestiças”, Helder Macedo
compreende essa formação como “um conjunto de antepassados de uma ou mais famílias,
cujos ancestrais mais remotos, no período colonial, propiciaram a existência de relações
de parentesco consanguíneo e espiritual com pessoas de diferentes qualidades e

272
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Homem do Céu. Caicó/RN: Instagram, 2020. Disponível
em: <https://www.instagram.com/p/COrUkqgBB0J/>. Acesso em 07 set. 2022.
273
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
274
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1981.
275
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
276
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
109

condições”277. O estudo das formações genealógicas se constituiu enquanto algo cultural,


social e ideológico, envolvendo aspectos ditos, não-ditos e implícitos dos
genealogistas278.
Elaborar uma genealogia, construir uma árvore genealógica, é um trabalho que
passa por seleções, por motivações do sujeito considerado como genealogista, “é
empreender escolhas através da miríade de nomes de antepassados que se relacionam de
alguma maneira com estes ou aqueles indivíduos, é percorrer um labirinto de filiações e
casamentos e estabelecer certas escolhas que trazem a marca da subjetividade”279.
Desta forma, com intuito de construirmos genealogias de pessoas não-brancas e
de diversificadas condições, é possível observarmos formações familiares dentro de uma
mesma escravaria, como no inventário post-mortem de Dona Adriana de Holanda e
Vasconcelos (1793)280:

Geneagrama 01 – Descendência de Inácia

Não Inácia
identificado

Ana Sebastiana Leonarda Florência Emerenciana Rosa


T ereza

Geneagrama Relacionamento Legenda

Natural Não identificado

Masculino Feminino
Mulata

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de


Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.

277
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020, p.11.
278
BARROS, José d'Assunção. A Operação Genealógica – Considerações Sobre as Implicações Histórico-
Sociais das Genealogias, a Partir do Exame dos Livros de Linhagens (Séc. XIII-XIV). História: Revista
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 3, 2013.
279
BARROS, José d’Assunção. Op. Cit., 2013, p.148.
280
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
110

Inácia, com um ou mais sujeitos que não tivemos conhecimento, podendo ser da
escravaria que ela fazia parte ou não, foi mãe de seis mulheres: Ana Tereza, Sebastiana,
Leonarda, Florência, Emerenciana e Rosa. Todas elas, incluindo sua progenitora, foram
qualificadas como mulatas.
Outra formação familiar presente no inventário post-mortem de Dona Adriana de
Holanda e Vasconcelos (1793), é composta por duas gerações, ou seja, mãe, filha e
neta281:

Geneagrama 02 – Descendência de Tereza

Não T ereza
identificado

Não Luiza
identificado

Mônica

Geneagrama Relacionamento Legenda


Não identificado

Legítima Parda
Natural
Masculino Feminino
Mestiça de pardo e preta

Mulata

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de


Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.

Tereza, qualificada como parda, com um homem que não podemos precisar, gerou
Luiza, nomeada como mestiça de pardo e preto; ela, por sua vez, com uma pessoa que
não identificamos, gerou Mônica, designada enquanto mulata.

281
Ibidem.
111

Ainda neste mesmo processo inventariante, dentre os 24 cativos sob posse da


referida senhora acima, temos a descendência de Maria, que com um homem que não
conhecemos, deu à luz para Rita e Isaura, todas três nomeadas como crioulas, como
podemos ver abaixo282:

Geneagrama 03 – Descendência de Maria

Não Maria
identificado

Rita Isaura

Geneagrama Relacionamento Legenda

Natural Não identificado

Masculino Feminino
Crioula

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de


Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.

Para além de Tereza, que apareceu como casada, Inácia, Luiza e Maria, todas
presentes no inventário post-mortem de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793),
foram mães de forma natural, não tinham matrimônio estabelecido, o que não foi um
impedimento para que elas construíssem ou tivessem alguma espécie de relação, que
gerassem descendentes, pois mesmo no cativeiro, devemos considerar que “práticas
amorosas se circunscreveram a partir de objetivos diversificados que envolveram
interesses díspares entre pessoas de ‘qualidades’ e ‘condições’ diferentes, foram frutos,
em última instância, dos processos de mestiçagens que, paralelamente, também ajudaram
a forjar a sociedade colonial”283.

282
Ibidem.
283
SANTOS, Igor Bruno Cavalcante dos. As Famílias Plurais e as Contribuições Para Uma Sociedade
Mestiça na Comarca de Sabará (1720-1800). 2017. 157 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana, 2017.
112

Investigando a Comarca de Sabará, entre os anos 1720 a 1800, Igor Santos se


preocupou em pensar na complexidade sociocultural do que ele chamou de “famílias
plurais”, que seriam resultado e resultantes, dentre outras coisas, dos processos de
mestiçagens. Assim, esses arranjos familiares promoveram uma ampliação e
complexificação do que foi compreendido enquanto família no período colonial, e no
fenômeno das dinâmicas de mestiçagens, pois ao mesmo tempo que contribuíam para
esse meio, sofriam ação dele284.
Essas formações familiares, fizeram com que o exercício de qualificação e auto
qualificação, práticas nominativas do léxico, fossem adensados, pois partindo do que se
sabe sobre a categoria de mulato, como Inácia, qualificada enquanto tal, teria gerado
outras filhas de mesma qualidade? Podemos supor que ela poderia ter outro designativo
que não fosse proveniente de mistura, mas no momento da inventariação dos bens, o
escrivão do processo, João de Sousa e Silva, nomeou ela desta forma por estar integrada
ao mundo da escravidão? É possível que todas ali presentes tenham sido nomeadas
considerando apenas o cativeiro como parâmetro?
Sabemos, a partir dos dados que dispomos e da discussão aqui proposta, que cabia
ao escrivão, agente qualificativo, o exercício de adjetivação destes sujeitos, bem como,
se soubéssemos quem foi o progenitor das filhas de Inácia, do lado paterno das suas
descendentes, teríamos mais embasamento para nossas ponderações. Apesar disto, no
segundo geneagrama, encabeçado pela matriarca Tereza, quais critérios teriam sido
mobilizados para definir alguém como “mestiça de pardo e preto”? Seria, como escrito
anteriormente, uma nova qualidade envolvendo três termos ou o fenômeno das dinâmicas
de mestiçagens entre estes três vetores?
Dentro da discussão do léxico das qualidades, por que somente Maria teria gerado
filhas que estivessem de acordo, no sentido biológico, com o seu designativo? O que
podemos inferir, é que de todas essas variáveis e ferramentas que compunham o rol dos
vocábulos presente e constituído no Novo Mundo, sua formação se deu “a partir da
mistura entre diferentes e diferenças; de mesclas que resultadas no envolvimento de
homens e mulheres de diferentes ‘qualidades’ e ‘condições’ que constituíram uma
família, ora em harmonia, ora nem tanto, com características multifacetadas que
abarcaram desde os aspectos físicos, biológicos, até, e principalmente, culturais”285.

284
Ibidem.
285
SANTOS, Igor Bruno Calcante dos. Op. Cit., 2017, p.99.
113

No interior das escravarias, vimos outra formação familiar, dos cativos de D.


Tereza Maria da Visitação (1793)286, que morreu solteira, moradora que foi no Sítio
Totoró, sendo inventariante do processo, seu irmão Félix Gomes Pequeno. Dentre suas
escravas, podemos ver que Manoela, qualificada como mulata, de 14 anos, avaliada em
95$000 mil réis, era irmã de Aniceta, também nomeada como mulata, avaliada em 35$000
mil réis287.
Além destas irmãs, temos um arranjo familiar constituído por Leonor, escrava e
mulata, de vinte e tantos anos, à época do inventário. No momento da arrolação dos bens,
estava grávida, já era mãe de Sebastião, de 03 anos, e de Manoel, com apenas 01 ano de
idade, os dois também qualificados como mulatos288.

Geneagrama 04 – Descendência de Leonor

Não Leonor
identificado

Sebastião Manoel

Geneagrama Relacionamento Legenda


Mulato/Mulata
Natural
Masculino Feminino Não identificado

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Tereza Maria da
Visitação (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.

Nas quatro descendências até o momento citadas, estes arranjos genealógicos


foram pautados apenas pela mãe dos indivíduos, formações no ambiente escravista
pautadas na matrifocalidade, uma vez que a família escrava se constituía apenas pela

286
Ela, filha do primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos. AVCCCN.
1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda e Vasconcelos
(1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
287
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Tereza Maria da
Visitação (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
288
Ibidem.
114

cativa e sua prole, sendo seus filhos frutos das relações, por vezes consensuais, entre os
sujeitos escravizados289.
Elizabeth Abrantes e Francinete Pereira, elucidam que os homens pouco
participavam da vida dos filhos nos ambientes escravistas, e essas mulheres, dadas
condições em que viviam, tinham uma maternidade difícil, pois além de serem exploradas
nos ofícios domésticos, também eram expostas como amas de leite, geralmente
ocasionando o afastamento com os seus descendentes290.
Dialogando com Maria Mott, as autoras narraram que quando não havia uma
escrava mais velha para cuidar das crianças e dos recém-nascidos, os mesmos eram
amarrados nas costas das mães, enquanto elas trabalhavam nas lavouras, lavavam e
cozinhavam. Quando não era possível e até mesmo proibido que essas mulheres
estivessem com seus filhos, sobretudo no contexto em que elas eram amas de leite, foram
encontrados subterfúgios, formas de resistência para se vingarem, demonstrarem suas
insatisfações e poderem voltar para os seus filhos, como, por exemplo, ingerindo
alimentos que seriam prejudiciais ao leite e/ou colocando substâncias no bico do seio para
impedir o aleitamento, como pimenta291.
Os filhos destas escravas, por outro lado, normalmente permaneciam nas
escravarias, conquanto não tivessem suas mães por perto e os cuidados necessários de
uma criança, pois os senhores “não costumavam se desfazer dos recém-nascidos das
escravas, já que os mesmos poderiam trazer futuros lucros”292. Isto fez com que, algumas
vezes, surgissem uma “rede de proteção em volta dos filhos das cativas de forma a tentar
uma sobrevida maior aos mesmos”293.
Além destes conjuntos familiares centrados nas mulheres, em que os pais destes
filhos não eram citados ou mencionados, encontramos casamentos legítimos perante os
olhos da Igreja Católica nas escravarias do Totoró, como o núcleo familiar presente no
inventário post-mortem de Dona Josefa Maria da Conceição (1813), casada que foi com

289
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Cotidiano e Resistência de
Mulheres Escravizadas no Maranhão Oitocentista. In: ABRANTES, Elizabeth de Sousa; BARROSO
JÚNIOR, Reinaldo dos Santos (Orgs.). O Maranhão e a Escravidão Moderna. São Luís: Eduema, 2016,
p.13-29.
290
Ibidem.
291
Ibidem.
292
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Op. Cit., 2016, p.23.
293
ABRANTES, Elizabeth de Sousa; PEREIRA, Francinete Poncadilha. Op. Cit., 2016, p.23.
115

José Lopes Galvão, moradores que eram no Riacho da Areia de Baixo, como podemos
ver no geneagrama abaixo294:

Geneagrama 05 – Descendência de Vicente e Maria

Vicente Maria

Ana Félix

Geneagrama Relacionamento Legenda

Legítimo Crioulo/Crioula
Masculino Feminino

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Josefa Maria
da Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando
os registros paroquiais da Matriz de Sant’Ana de Caicó (MSC), Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ).
Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1838.

O registro da união matrimonial do patriarca e matriarca da família foi encontrado


nos livros paroquiais da Freguesia de Santa Ana. No dia 17 de agosto de 1802, pelas nove
horas da manhã, na Matriz do Seridó, o Reverendo Padre Coadjutor Gonçalo Bezerra de
Brito, casou os escravos de José Lopes Galvão, Vicente e Maria, sendo os dois
qualificados como crioulos, moradores no Riacho da Areia295. No ano seguinte, no dia
24 de agosto de 1803, no Acari, batizaram sua filha, de nome Ana, também escrava296.
Vicente e Maria, geraram outro filho, chamado Félix, também escravo, foi
batizado no dia 20 de maio de 1806297. Havia uma lógica em relação aos casamentos e
seus consequentes filhos em se tratando dos escravos de um mesmo senhor, pois o casal
“gerava uma dependência mútua que diminuía as possibilidades de se envolverem em

294
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Josefa Maria da
Conceição (1813). FMDTS, Currais Novos/RN.
295
Matriz de Sant’Ana de Caicó (MSC), Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Casamento nº 01
(1788-1809). Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), fl. 83-83v.
296
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 15v.
297
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 102v.
116

fugas”298, de acordo com Muirakytan Macêdo. Dessa forma, também haviam estratégias
e objetivos na concessão dos senhores em permitir esse tipo de relação, uma vez que
houvesse consentimento em determinada coisa, havia uma ampliação de autonomia e
poder do senhor dentro do cativeiro e nas suas relações299.
Em Na Senzala, Uma Flor, obra de Robert Slenes, discutindo a família escrava
numa perspectiva da cultura africana, o autor afirmou que os casamentos e os batismos
frutos destas uniões, muitas vezes, eram incentivados pelos senhores. Havia uma espera
e organização para o número de matrimônios e batismos serem celebrados juntos, pois
além de tornarem o uso do tempo eficiente, considerando o trabalho nos sítios e os
deslocamentos até o templo religioso, se suspeitava que essa ação deveria causar um
clima festivo entre os cativos, o que influenciaria nas suas reproduções, logo, mais
geração de mão de obra e uma potencial posse que poderia ser vendida300.
Dentro de uma mesma escravaria, sob posse de um mesmo senhor, temos o
casamento de Agostinho, que no inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão (1814), foi qualificado como mulato, pelo escrivão Manoel Pereira da Silva
Castro, contanto com 38 anos de idade, achacado de gálico na ocasião301.
Ele casou com Maria, escrava do inventariado dito acima, também qualificada
como mulata, de idade de 33 anos, bem de saúde e avaliada em 100$00 mil réis302, à
época. A cerimônia de casamento, aconteceu na fazenda do seu senhor e da sua mulher
Dona Vicência Lins de Vasconcelos, provavelmente também local de moradia dos dois
sujeitos escravizados, no dia 26 de abril de 1801. Naturais do sertão do Seridó, foi o
responsável pela celebração no Sítio Totoró e pelo registro, o Cura José Gonçalves de
Medeiros, estando Maria e Agostinho qualificados como pardos no matrimônio303.
Vejamos, adiante, o geneagrama que representa a descendência do casal:

298
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.206.
299
Ibidem.
300
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor – Esperanças e Recordações na Formação da Família
Escrava: Brasil Sudeste, Século XIX. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011.
301
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
302
Ibidem.
303
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 72v.
117

Geneagrama 06 – Descendência de Agostinho e Maria

Agostinho Maria

Josefa Miguel Maria

Geneagrama Relacionamento Legenda

Mulato-Mulata/Pardo-Parda
Legítimo
Masculino Feminino
Mulato/Mulata

Fonte: Consideramos uma pessoa mulata e parda, o sujeito que na documentação histórica ora apareceu
designado como mulato, ora como pardo. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832).
Inventário do capitão-mor Cipriano Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a
partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

Josefa, primeira filha do casal, nascida enquanto escrava, se batizou em 17 de


fevereiro de 1805, na Capela da Senhora da Guia do Acari304. A segunda filha destes pais,
foi Maria, também escrava, como consta no testamento do senhor destes cativos305.
Miguel, o último filho do casal que conseguimos rastrear, era escravo, e em 1806 foi
batizado no dia 24 de fevereiro306. Os três foram qualificados enquanto mulatos no
inventário post-mortem.
Por que Agostinho e Maria foram qualificados como mulatos, no processo
inventariante, e na celebração do seu matrimônio apareceram no registro enquanto
pardos? Seria o escrivão Manoel Pereira da Silva Castro e o Cura José Gonçalves de
Medeiros responsáveis por essas nomeações? O capitão-mor Cipriano Lopes Galvão, em
testamento anexo ao seu inventário post-mortem, nomeou Agostinho enquanto mulato,
mas não adjetivou Maria; teria ele ou sua esposa, inventariante do processo,
responsabilidade nas designações destas qualidades? Os três descendentes do casal
apareceram grafados enquanto mulatos no processo. Qual das qualidades dos pais teria

304
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 61v.
305
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
306
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 101.
118

sido levada em consideração nesta nomeação, se este potencialmente era um dos


parâmetros de aferição do léxico? Se os pais foram desconsiderados, estarem presentes
na escravaria foi determinante para essa qualificação? Em alguns destes momentos, foi
possível que estes sujeitos tivessem se autoqualificado?
É certo que quando ampliamos nossos olhares, para outras pessoas e esferas
sociais da vida destes sujeitos frutos das dinâmicas de mestiçagens, vemos o quanto este
rol qualificativo é muito mais efêmero do que duradouro, perpassa múltiplas pessoas e
diversas situações, mas serviram de igual maneira para distinguir e classificar os sujeitos
nomeados por estes vocábulos.
Em se tratando da formação familiar acima, temos sobreposições de situações e
vozes plurais interagindo neste exercício qualificativo, pois Agostinho e Maria se casaram
em 1801, estando presente na ocasião, considerando que ela ocorreu no Totoró, os seus
senhores e o padre responsável, quando foram nomeados como pardos. Voltaram aos
templos religiosos, segundo registros, nos dois batizados dos seus filhos, dos quais
conseguimos localizar, entre os anos de 1805 e 1806, não sendo qualificados e nem os
seus descendentes, apenas com suas condições jurídicas em destaque. Em 1813, vemos o
capitão-mor Cipriano Lopes Galvão mencionando seus cativos no testamento e
percebemos essa família escrava, em que todos foram adjetivados como mulatos no
arrolamento de bens, em 1814, podendo essa aferição ter sido dada pela inventariante,
avaliadores ou pelo escrivão. No auto de partilha, última vez que vemos menção ao casal
e seus descendentes, apenas Agostinho não foi qualificado como mulato, tendo apenas
sua condição expressa, o que nos faz pensarmos se os partidores tiveram influência na
qualidade destes indivíduos. Isto posto, considerando que o termo tenha sido dado por
terceiros, desconsiderando auto qualificação próprias e dos seus filhos.
É provável que estes indivíduos, quando não estivessem atrelados ao mundo da
escravidão, como, por exemplo, quando estavam casando ou batizando seus filhos, outras
qualidades surgissem ou elas fossem silenciadas, apenas se destacando suas posições
enquanto cativos307. Nos inventários post-mortem, presentes como um bem, sob regime

307
Sabemos que, sob exceção de casos de alforria, estes sujeitos estavam atrelados ao mundo da escravidão,
suas condições jurídicas eram destacadas enquanto escravos e cativos. Aqui, estamos nos referindo, de
modo mais restrito, aos registros paroquiais, responsáveis por conhecer e catalogar pessoas de diversas
qualidades e condições, que mesmo apregoando o condicionamento jurídico dos indivíduos escravizados,
os colocou – em termos do livro, nas páginas daqueles assentos –, ao lado de pessoas brancas e de outras
de diferentes qualidades. Nos inventários post-mortem e nos testamentos, por sua vez, essas pessoas
figuravam como bens, posses descritas e avaliadas, onde vimos se descortinar de forma mais abissal a
desigualdade social no período colonial.
119

de trabalho compulsório, estes sujeitos seriam, na maioria das vezes, nomeados como
mulatos, levando em conta que essa categoria estava intimamente ligada ao cativeiro.
A formação destas famílias, os filhos delas descendentes, expandem o fenômeno
das dinâmicas de mestiçagens, suas representações e qualidades nas terras do Totoró,
entre os séculos XVIII e XIX, pois estes homens e mulheres viveram numa realidade onde
existiam pessoas integrantes das “matrizes puras” e outras frutos de mesclas, de diversas
condições. Assim sendo, podemos compreender estes matrimônios “enquanto estratégias
de sobrevivência em um mundo altamente hierarquizado e mesclado como o resultado de
visões de mundos distintas”308.
Ainda debruçados no inventário post-mortem do capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão (1814), o seu cativo Manoel, durante o processo de arrolamento, designado como
crioulo, de 20 anos de idade309, era casado com Tereza, do Gentio de Angola, escrava de
outro senhor, filho do inventariado acima, Manoel Lopes Galvão. A cerimônia aconteceu
antes da realização do inventário, no dia 26 de abril de 1812, na Capela dos Currais
Novos,310 tendo como testemunhas outros filhos do capitão-mor, Sebastião Lopes Galvão
e João Lopes Galvão311.
Estes cativos, por residirem no Totoró, integrarem escravarias de uma mesma
família, deveriam se conhecer, compartilhar os mesmos espaços e trocarem experiências.
O casamento acima, além de apontar para o convívio que eles provavelmente tinham,
sugere que os senhores poderiam ter alguma espécie de participação na escolha dos
cônjuges. Considerando o matrimônio forçado uma prática que poderia gerar atritos e
adversidades entre os escravos e na escravaria, o interesse e influência que haveria dos
senhores, se configurou num incentivo dos cativos procurarem uniões formais, deixando
para estes sujeitos “a escolha dos casais, mas reservando ao senhor o direito ‘paternalista’
de sugerir, persuadir, pressionar e, finalmente, aprovar ou vetar nomes escolhidos”312.

308
SANTOS, Igor Bruno Cavalcante dos. As Famílias Plurais e as Contribuições Para Uma Sociedade
Mestiça na Comarca de Sabará (1720-1800). 2017. 157 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana, 2017, p.23.
309
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
310
A Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos, filial da Matriz do Seridó, foi erigida em
1808, por petição feita pelo capitão-mor Cipriano Lopes Galvão e sua mulher Dona Vicência Lins de
Vasconcelos, no qual mandaram erguer o templo religioso na sua Fazenda Currais Novos, na porção de
terra da Serra do Catunda. (Paróquia de Sant’Ana de Currais Novos, Secretária Paroquial. Provisão Para
se Erigir a Capela de Santa Ana da Fazenda de Currais Novos do Capitão-mor Cipriano Lopes
Galvão e sua Mulher, Para o Reverendo Pároco do Seridó. FGSSAS).
311
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 72v.
312
SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor – Esperanças e Recordações na Formação da Família
Escrava: Brasil Sudeste, Século XIX. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011, p.102.
120

No Sítio Cascavel, onde morou João Lopes Galvão (1825)313 e sua mulher Dona
Joana Francisca de Jesus, no arrolamento de bens do seu processo, temos uma composição
familiar encabeçada pela escrava Joana314:

Geneagrama 07 – Descendência de Joana

Não Joana
identificado

Maria Miguel T ereza

Geneagrama Relacionamento Legenda


Não identificado

Natural P/Mulato
Masculino Feminino
Mulata

P.C./Mulata

Fonte: Consideramos uma pessoa “P” e mulata, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
“P”, ora como mulato; da mesma forma, consideramos uma pessoa “P.C” e mulata, aquela que nas fontes
históricas foi registrada ora como “P.C”, ora como mulata. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem,
Caixa 02 (1814-1832). Inventário de João Lopes Galvão (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração
feita a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

Sua primeira filha, de nome Maria, também escrava, com qualidade registrada no
espaço ao lado do assento de batismo como “P.C.”, foi batizada pelo Padre Antônio
Batista Coelho e o responsável pelo seu termo registrado nos livros de batismo foi o
Vigário Francisco de Brito Guerra. O sacramento aconteceu no dia 28 de dezembro de
1815, na Capela dos Currais Novos, sendo seus padrinhos Sebastião Lopes Galvão e
Maria Xavier315.

313
Ele era filho do segundo Cipriano Lopes Galvão e Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Seus avós
paternos eram o casal formado pelo primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e
Vasconcelos. (QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora
Universitária da UFPE, 2009 [1987]).
314
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
315
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 91v.
121

Joana, matriarca desta família, deu à luz também para Miguel, batizado pelo Padre
Manoel André em 01 de janeiro de 1819, nomeado, na averbação do registro, enquanto
“P”, moradores nos Currais Novos, como consta no registro316. Sua última descendente,
de nome Tereza, batizada na Capela da Senhora Santa Ana dos Currais Novos, pelo Padre
Francisco Rodrigues da Rocha, no dia 27 de abril 1821, apareceu na fonte como “P.C.”317.
Como foi visto, os descendentes da escrava Joana foram qualificados de forma
abreviada nos seus batizados, como “P.C.” e “P”. É pouco provável que o responsável
por estes registros, o Vigário Francisco de Brito Guerra, tenha qualificado os sujeitos
desta forma, dado que dois destes batizados estão espacialmente localizados no templo
religioso que se ergueu na Fazenda dos Currais Novos e foi celebrado por clérigos
diferentes. O responsável pela administração da Freguesia do Seridó se mantinha na sede
principal, na Matriz de Santa Ana de Caicó.
Por isso, acreditamos que o Padre Antônio Batista Coelho, Manoel André e
Francisco Rodrigues da Rocha, celebrantes destes batizados na Capela dos Curais Novos,
registravam os dados necessários da cerimônia e posteriormente eles eram enviados à
Vila Nova do Príncipe e transcritos para os livros de assentos religiosos da Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. Este percurso, era semelhante ao fenômeno das
desobrigas que acontecia neste mesmo território, uma vez que os párocos envolvidos
nestas campanhas, que tinham como intuito a cristianização da população, desenvolveram
funções que foram para além das religiosas, como das alçadas civis no sertão da Capitania
do Rio Grande. Esses padres realizaram os ritos católicos com os indivíduos que
habitavam este território e após sua volta para sede da administração religiosa, se fazia o
registro do que havia sido promovido, pois “muitas das informações acerca da população
colonial são provenientes de arquivos paroquiais, os quais seriam bem menos volumosos
se não fossem as ações dos padres nas desobrigas318”.
Desta forma, em se tratando do léxico das qualidades, o que “P.C.” e “P”
representariam? Dentro do que sabemos, acreditamos que essas abreviaturas poderiam
significar, em se tratando da primeira, como “preto cativo”, “preto crioulo”, ou “pardo
cativo”; da segunda qualidade contraída, “preto” ou “pardo”. Nossas conjecturas versam
nestas hipóteses, tendo como parâmetro que Joana, Maria, Miguel e Tereza eram

316
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 19v.
317
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 180.
318
MEDEIROS, Isac Alisson Viana de. Matriz, Capelas e Desobrigas: Um Olhar Sobre a Cristianização
do Espaço da Freguesia do Seridó (1788-1838). 2020. 289 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2020, p.216.
122

escravos, e foram nomeados no inventário post-mortem do seu senhor, pelo escrivão


Antônio do Rego Leite de Araújo, enquanto mulatos319.
Essa qualidade, de mulato, relacionada e próxima ao mundo da escravidão, que
nomeou pessoas que estavam sob regime escravista, pouco aparece nos registros de
batismo da Freguesia do Seridó, ao contrário da contração “P”:

Gráfico 01 – Ocorrência de “P” e Mulato(a) nos Registros de Batismo


da Freguesia do Seridó (1803-1831)

P Mulato/Mulata

609
601
346
8

0
LIVRO DE LIVRO DE LIVRO DE LIVRO DE
BATISMO 01 BATISMO 02 BATISMO 03 BATISMO 04
(1803-1806) (1814-1818) (1818-1822) (1825-1831)
Fonte: MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01, 02, 03 e 04 (1803-1831). FGSSAS.

Em um universo amostral de 4.824 assentos de batismos, fizemos um


levantamento das ocorrências de pessoas que foram qualificadas como “P” e “mulatas”.
No primeiro livro de registros, que vai de 1803 até 1806, 08 pessoas foram registradas
como “P” e 03 como mulatas. Entretanto, nos outros três livros de batismos da Freguesia
do Seridó, operados para este trabalho, o termo mulato(a) desaparece destes assentos e
temos uma quantidade considerável de ocorrências para pessoas grafadas como “P” – 346
no segundo livro; 601 no segundo; e 609 no último livro de registros.
Ainda realizando o cotejamento de dados destes termos abreviados, foi feito um
levantamento acerca da abreviatura “P.C” nos espaços ao lado dos registros, nos mesmos
livros de batismos do espaço que foi dedicado para Santa Ana:

319
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
123

Tabela 10 – Ocorrência de pessoas qualificadas como “P.C” nos Registros de Batismo


da Freguesia do Seridó (1803-1831)
P.C
Livro de Batismo 01 (1803-1806) 01
Livro de Batismo 02 (1814-1818) 24
Livro de Batismo 03 (1818-1822) 60
Livro de Batismo 04 (1825-1831) 106
Total: 191
Fonte: Fonte: MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01, 02, 03 e 04 (1803-1831). FGSSAS.

Destas 191 ocorrências constatadas, no mesmo universo amostral referido acima,


189 destes sujeitos qualificados como “P.C.”, tinham suas mães na condição de cativa.
Portanto, como já é sabido, o ventre atuou nos aspectos sociais da vida destes indivíduos,
determinando se o descendente de determinada mulher, seria cativo ou livre. Não cabia
ao pai, podendo nas suas condições ser forro ou livre, designar esse primeiro rumo da
vida do seu filho.
Isto posto, permite endossar nossas suposições de que estes sujeitos, enquanto
estivessem levando suas vidas nas áreas que suas condições jurídicas não fossem o
primeiro requisito destacado, que suas condições enquanto cativos atuassem como pano
de fundo e não determinassem dada ocasião, o qualificativo de mulato, atuante e
nomeando pessoas no cativeiro, ligado em representações e significados depreciativos,
não figuraria como suas qualidades e designações, pois “o mulato não se destacava por
uma ancestralidade infiel ou gentia, mas pela origem cativa indiciada pela cor da pele”320.
A cor preta e a pele escura, se tornaram sinônimo da origem cativa, frente ao
processo de chegada e implementação de pessoas vindas de África para América
Portuguesa, também criando um imaginário sobre moral e costumes destes indivíduos e
seus descendentes, classificando-os e hierarquizando-os321. Portanto, como já
mencionado, Joana e seus filhos foram assim designados no inventário post-mortem de
seu senhor, João Lopes Galvão (1825)322, tendo em vista que ali figuravam como uma
posse, um bem descrito e avaliado, ligado ao trabalho e mão de obra forçados,
desumanizados por sua condição.

320
RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da Cor: Mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750. Varia
História, v. 28, p. 699-723, 2012., p.722.
321
Ibidem.
322
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário João Lopes Galvão (1825).
FMDTS, Currais Novos/RN.
124

Podemos perceber semelhante processo, na escravaria de Miguel Pinheiro


Teixeira (1825), na qual, dentre seus escravos, destacamos Tereza, de vinte e oito anos,
qualificada como cabra, no inventário post-mortem do seu senhor323, que foi mãe de duas
crianças:

Geneagrama 08 – Descendência de Tereza

Não T ereza
identificado

Alexandre Severina

Geneagrama Relacionamento Legenda


Não identificado

P.C
Natural
Feminino Masculino Falecida
Cabra/Parda

P/C

Fonte: Consideramos uma pessoa cabra e parda, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
cabra, ora como parda; da mesma forma, consideramos uma pessoa “P” e “C”, aquela que nas fontes
históricas foi registrada ora como “P”, ora como “C”. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02
(1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita
a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

O primeiro dos filhos de Tereza foi batizado no dia 08 de agosto de 1819, pelo
Padre Francisco Rodrigues da Rocha, na Capela dos Currais Novos, chamado de
Alexandre e qualificado como “P.C.”. Segundo registro, era filho natural de Tereza,
escrava, de qualidade parda324.
A outra filha da matriarca, batizada por forra, na Capela dos Currais Novos, pelo
Padre Francisco Rodrigues da Costa, em 08 de dezembro de 1821, foi Severina, liberta
no primeiro mês da sua vida, designada como “P”325.

323
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN.
324
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 66v.
325
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 203v.
125

Falecida com apenas um ano de idade, no assento do seu óbito, apesar de constar
como forra no registro de batismo visto acima, Severina teve sua condição marcada
enquanto escrava, ligada a Miguel Pinheiro Teixeira, nomeada como “C” no seu registro
de óbito. Foi encomendada pelo Padre José Pereira da Ponte, sepultada no dia 30 de
novembro de 1822, na Capela de Santa Ana dos Currais Novos326.
Tereza, no processo de inventário do seu senhor, apareceu nomeada como cabra,
mas quando estava batizando seu primogênito, sendo uma mãe não-branca, passando por
um dos ritos católicos coloniais na Capela dos Currais Novos, onde não havia exercício
da sua mão de obra, foi qualificada como parda. Seu filho, por sua vez, foi registrado
como “P.C.”, que dentre o que foi visto até aqui, poderia ser o sinal que remetia Tereza e
consequente seu ventre ao cativeiro.
Severina, que nascera no dia 08 de novembro327, sendo liberta até o dia do seu
batizado, ocorrido, como vimos acima, em 1821, no dia 08 de dezembro, foi nomeada
como “P”. É provável, pelo que se tem discutido, pela qualificação de Tereza como parda
na celebração batismal do seu primeiro filho, que este adjetivo contraído fizesse menção
ao qualificativo de pardo.
Este termo, dentre o léxico qualificativo aqui mencionado, estava distante do
universo da escravidão e das pessoas que o integrassem, que de alguma forma fossem
vistas de modo aviltante. Severina, que nos primeiros dias de vida foi alforriada, poderia
viver sem o estigma da escravidão, conquanto descendesse dele.
No entanto, Severina não resistira ao primeiro ano de sua vida, considerando o
contexto precário em que nascera e todas faltas que deveriam fazer parte da ordem do dia
no sertão do Totoró, entre os séculos XVIII e XIX. Mesmo assim, no registro do seu
sepultamento, esteve marcada como escrava e qualificada como “C”.
Essa contração, faria referência ao designativo da sua mãe no inventário post-
mortem do seu senhor? Poderia ser o equivalente de crioulo, cabra, curiboca ou caboclo?
Ou estamos tratando, desde o princípio, da condição de Severina como cativa?
É provável que “C” designasse o qualificativo de crioulo ou cabra, remetendo
Severina para sua condição de escrava, pois de acordo com Gian Carlo Silva, no contexto
do Recife colonial, “crioulo ‘era termo só para escravos nascidos no Brasil’ em se tratando
de filhos de ventres africanos já libertos ‘sua indicação era de pardo’, no entanto,

326
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 66v.
327
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 203v.
126

existiram somente entre os libertos ‘preto forro, pardo forro, cabra forro’ ocorrendo
raramente a existência de ‘mulato forro’”328.
Se tomarmos os dois designativos de Tereza, presente no assento batismal e no
inventário post-mortem como mais uma ferramenta mobilizada para grafar Severina
enquanto “C”, provavelmente ela não poderia fazer referência ao termo crioula, uma vez
que sua mãe descendia das mesclas biológicas e culturais processadas na Ibero-América.
Portanto, no momento do seu registro de óbito, acreditamos que essa contração fazia
referência ao qualificativo de cabra, “uma forma de ‘regressão’ no cruzamento que
acarretaria uma tez mais negra, porém que não poderia ser classificada como ‘negro’,
sinônimo de escravo”329.
Miguel Pinheiro Teixeira (1825), o mesmo senhor da matriarca Tereza, ainda
tinha sob sua posse o filho de José e Domingas, os dois do Gentio de Angola, casados na
Fazenda Totoró pelo Cura José Antônio Caetano de Mesquita, no dia 28 de abril de
1795330. Observemos o geneagrama abaixo:

Geneagrama 09 – Descendência de José e Domingas

José Domingas

José

Geneagrama Relacionamento Legenda


Gentio de Angola
Legítima
Masculino Feminino Crioulo

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro
Teixeira (1825). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando os
registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

328
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018, p.62.
329
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.65.
330
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 25.
127

O filho do casal, que herdou o nome do pai, foi qualificado como crioulo,
certamente por descender de pessoas vindas de África e por estar na condição de
escravizado. O mesmo padre derramou água santa em José quando ele tinha um ano de
idade, em 14 de junho de 1804331, pois conforme orientava as Constituições Primeira do
Arcebispado da Bahia, o senhor deveria batizar seu escravo, entregando o mesmo
tratamento para com ele que havia com seus filhos, em relação ao primeiro sacramento,
assegurando que ele aceitasse a fé católica e conseguisse a salvação da sua alma332.
Voltemos nossas observações para o Totoró, onde residia Dona Vicência Lins de
Vasconcelos, viúva do Capitão-mor Cipriano Lopes Galvão. No inventário post-mortem
processado após a morte da referida senhora, consta, dentre o rol de escravos, a pessoa de
Josefa, qualificada como mulata333. De acordo com os documentos da Freguesia do
Seridó, que rastreamos, a primeira filha de Josefa faleceu em 08 de dezembro de 1823,
na condição de escrava, grafada como “C”. Maria foi encomendada pelo Padre José
Pereira da Ponte, sepultada na Capela de Santa Ana dos Currais Novos334.
Seu segundo filho, chamado Bartolomeu, recebera liberdade de Dona Vicência
Lins de Vasconcelos, de acordo com seu registro de batismo. Qualificado como “N.C.”,
nasceu no dia 19 de maio de 1827 e foi batizado cinco dias depois, em 24 de maio do
mesmo ano, na Fazenda Totoró, pelo Padre Coadjutor Manoel José Fernandes335.

331
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 44v.
332
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018.
333
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN.
334
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 79v.
335
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 64.
128

Geneagrama 10 – Descendência de Josefa

Não Josefa
identificado

Bartolomeu Maria

Geneagrama Relacionamento Legenda


Não identificado

N.C.
Natural
Feminino Masculino Falecida
Mulata

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando
os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

O abreviamento “N.C.”, dado para Bartolomeu no momento do seu batismo,


poderia fazer referência a qual qualidade? É provável que estejamos falando de um léxico
que gire em torno de “negro cativo”, “negro crioulo”, “negro cabra”, “negro caboclo” ou
“negro curiboca”? Talvez todas essas variações recaiam sobre o fato de Bartolomeu
descender de uma escrava e ter sido libertado na pia batismal, marcado enquanto
descendente do cativeiro – liberto, mesmo que tenha sido por alguns dias.
De toda forma, sua condição enquanto liberto, não o eximiu do espaço reservado
aos escravizados, tendo em vista sua pouca idade, o necessário contato com sua mãe para
o aleitamento e os cuidados maternos, sua tez e sua ascendência, crescendo e vivendo
colado aos trabalhos desempenhados pelos cativos, seja no interior da casa, na cozinha
ou no lavabo da casa senhorial, entre o gado ou nas roças, pois “mesmo tendo mais
chances de aceitação do que outros libertos adultos, o passado escravo ainda estaria
presente na vida destas crianças alforriadas enquanto fossem vivas as memórias sociais
129

de sua condição anterior336”, como atestou Gian Carlo Silva, em se tratando do Recife
dos séculos XVIII e XIX.
A alforria, muitas vezes, era fruto das relações construídas pelos pais da criança
ao longo de suas vidas, podendo ser influenciada pela escravaria ou por outras relações
estabelecidas dentro e/ou fora do cativeiro. Mães escravas que conseguiram possibilitar
para os seus filhos o processo de liberdade, muitas vezes recorreram ao uso das
submissões, fizeram favores aos seus senhores, desempenharam atividades ilícitas ou não,
apenas conseguiram por meio da subserviência, do contato e proximidade com o interior
da casa e dos seus donos, levando em consideração que o processo de liberdade poderia
representar um primeiro passo para o sujeito em situação escrava, uma diferenciação entre
os seus.
No intuito de conquistar alforria, haviam intenções por detrás de certos
matrimônios, por exemplo, quando vemos o relacionamento de um escravo com uma
forra, ou vice-versa. Ainda em relação aos campos do Totoró, rastreamos, pelas fontes
históricas, o casamento de Agostinho, escravo, grafado no registro como “N”, com
Mariana, também “N”, naturais da Freguesia do Seridó.337
A cerimônia aconteceu na Capela dos Currais Novos, no dia 18 de setembro de
1814. Eram escravos de Félix Gomes Pequeno, que tinha morada no Sítio Totoró. O
nubente, quando feito o inventário post-mortem do seu senhor, em 1845, foi qualificado
como crioulo338.
Mariana, liberta pelo senhor de Agostinho, provavelmente agregaria mão de obra
na fazenda, pois a mulher forra se incorporava ao trabalho do marido, para além da relação
de proximidade que já existira entre ela e Félix Gomes Pequeno (1845); isto se
considerarmos que após o seu processo de liberdade, Mariana seguiu outros rumos,
desempenhou diferentes tarefas, para outras pessoas e quiçá para ela mesma. De todo
modo, estes casamentos almejavam a alforria do indivíduo que ainda estivesse na
condição de escravizado, do mesmo modo que servia aos interesses dos senhores339.
Entre os escravos de Félix Gomes Pequeno (1845), temos a presença de Luiz e
Josefa. No seu casamento, foram nomeados como pardos. Celebrado por volta de uma

336
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018, p.182.
337
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 55-55v.
338
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes
Pequeno (1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
339
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
130

hora da tarde, os nubentes consumaram matrimônio no dia 13 de maio de 1819, na Capela


dos Currais Novos340. Abaixo, vemos o geneagrama com sua descendência.

Geneagrama 11 – Descendência de Luiz e Josefa

Luiz Josefa

Luiz Mônica João

Geneagrama Relacionamento Legenda


Pardo/Parda

Legítimo
Masculino Feminino Falecido P.C.

Fonte: Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838.

O primeiro filho do casal formado por Luiz e Josefa, foi chamado de João, também
escravo, que faleceu aos quatro anos de idade, em 12 de julho de 1823. Grafado como
“C”, teve seu corpo e alma encomendado pelo Padre José Pereira da Ponte, na Capela de
Santa Ana dos Currais Novos341.
Os irmãos de João tiveram abreviaturas diferentes das suas, como é possível
vermos no batizado de Luiz, ocorrido na Fazenda do Totoró. O celebrante do ritual
católico, o Pároco Manoel José Fernandes, no dia 24 de maio de 1827, grafou ao lado do
registro, o filho de Luiz e Josefa como “P.C.”342.
A segunda filha do casal Luiz e Josefa, chamada de Mônica, que foi batizada no
dia 03 de julho de 1829, na Fazenda do Totoró, também foi qualificada com o

340
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 147v.
341
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 79.
342
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 64.
131

abreviamento de “P.C.”. O sacramento batismal foi dado pelo Clérigo Joaquim Álvares
da Costa343.
No inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845), encontramos
registrado no Título de Escravos, um sujeito chamado de Luiz, qualificado como índio344.
Seria ele o mesmo Luiz que estamos tratando acima, apenas com sua qualidade alterada
de pardo para índio? Em nossas hipóteses estando certas, não foi possível localizarmos
Josefa, esposa de Luiz, dentre os cativos presentes no processo de Félix Gomes Pequeno.
Mas será possível que estejamos tratando de um casamento entre dois índios?
Infelizmente, pelos dados que dispomos, não é possível assegurarmos tais informações.
No entanto, afim de problematizarmos essa possibilidade, como foi debatido
anteriormente, pardo poderia ser fruto da mistura entre negros, crioulos e mulatos com
brancos ou índios345, ou seja, existe uma possibilidade, em nossas conjecturas estando
certas, de que Josefa não estivesse nomeada como índia, mas poderia descender de pais
nativos.
Este arranjo familiar, fruto do casamento de um índio com uma parda, não é o
primeiro que aconteceu na Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos.
Helder Macedo registrou uma união mista no dia 13 de novembro de 1814, entre o índio
Manoel Acioli do Nascimento e Joaquina Maria da Conceição, cabra. Essas uniões, por
mais que intuíssem uma forma legal e pia do viver “permitia, por outro lado, que os noivos
escolhessem seus parceiros dentro do mesmo grupo social. Isto aconteceu com frequência
no Seridó, onde foram comuns uniões entre índios, negros e pardos”346.
Ainda debruçados no inventário post-mortem de Félix Gomes Pequeno (1845), no
Título de Escravos do processo, temos o registro de Vicência, qualificada como cabra,
que na época em que os bens foram arrolados, tinha 36 anos e foi avaliada em 400$000
mil réis. Fazendo buscas nos registros paroquiais da Freguesia de Santa Ana, foi possível
localizar o seu batizado.
Nestes mesmos registros da Freguesia do Seridó, encontramos o casamento dos
pais da escrava acima, que não estão presentes na descrição e avaliação dos bens, mas

343
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 153v.
344
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno
(1845). FMDTS, Currais Novos/RN.
345
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
346
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011, p.221.
132

que eram cativos do mesmo senhor Félix Gomes Pequeno. O pai de Vicência, chamado
João Tavares, foi qualificado como cabra e casou com Vicência, mãe da referida escrava,
registrada com o mesmo designativo e condição do seu marido347.
Casados no dia 04 de junho de 1805 na Matriz do Seridó, o primeiro filho do casal
que foi possível localizar se chamava João. Assim como seus pais, era cativo, batizado
no dia 21 de maio de 1805348.
Sua segunda filha, como já é do nosso conhecimento, mencionada acima, foi
batizada no dia 14 de agosto de 1814 na Capela dos Currais Novos. Na ocasião, sua
qualidade consistia na contração “N.C.”349.

Geneagrama 12 – Descendência de João Tavares e Vicência

Esméria João Vicência


T avares

Vicência João

Geneagrama Relacionamento Legenda


Cabra

Legítimo Qualidade não identificada


Masculino Feminino
N.C./Cabra

Fonte: Consideramos uma pessoa “N.C” e cabra, o sujeito que na documentação história ora apareceu como
“N.C”, ora como cabra. AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de
Félix Gomes Pequeno (1845). FMDTS, Currais Novos/RN; Elaboração feita a partir do Microsoft Access,
utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

Vimos, ainda, que provavelmente Vicência faleceu, apesar de não termos


encontrado seu registro de óbito. No entanto, João Tavares se casou novamente com
Esméria, registrada como “P” quando morreu em 6 de outubro de 1829, devido uma

347
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 107.
348
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103v.
349
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 34.
133

cobra. Foi encomendada pelo Padre Joaquim Álvares da Costa, sepultada na Capela dos
Currais Novos350.
Estes núcleos familiares, que demonstramos até aqui, presentes nos interiores das
escravarias, nos fazem pensar sobre os espaços ocupados por estes cativos, por esses
pequenos arranjos genealógicos, já que Muirakytan Macêdo afirmou que não foi
encontrado referências às senzalas na documentação do sertão do Seridó351. Dialogando
com Sheila de Castro Faria, levantam três hipóteses para essa ausência: “a) não possuíam
valor venal; b) famílias escravas construíam eles mesmos suas choupanas, que se
tornavam propriedade do casal e c) os escravos dormiam no interior das casas de morada,
embora em compartimentos separados”352.
Devido ao baixo contingente de pessoas escravizadas, se comparado aos engenhos
canaviais espalhados pela costa da América Portuguesa, que requeriam mão de obra em
quantidade significativa, é provável que os escravos do sertão do Seridó e do Totoró,
fossem abrigados no interior das casas de morada dos senhores, uma vez que “até os dias
de hoje encontramos compartimentos anexos à casa-grande, onde dormem trabalhadores
solteiros junto a instrumentos de trabalho e produtos da terra armazenados nesses quartos-
galpões”353. De todo modo, “casais escravos certamente construíram seus fogos à sua
própria custa, não figurando nos bens de seus amos”354.
Essas formações familiares, presentes no Totoró e suas adjacências, constituídas
ao longo do século XVIII e XIX, por mais que não sejam frondosas e não tenham
ultrapassado outras gerações, pelos dados que conseguimos rastrear e reconstituir, são
contemporâneas aos Araújo Pereira do Sítio São Pedro, aos Dantas Correia localizados
nos Picos de Cima, dentre outros sobrenomes grafados nas páginas genealógicas do
Seridó, inclusive os Lopes Galvão do Totoró355.

350
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 111v.
351
Existe uma única menção sobre senzalas, presente no inventário post-mortem do Sargento-mor Felipe
de Moura e Albuquerque. Transcrito parcialmente por Olavo de Medeiros Filho, destacou Macêdo: “uma
morada de casas de vivenda térreas e de taipa cobertas de telhas, com um oratório e altar de madeira lisa
pintada chamente onde se celebra Missa, com casas de senzala coberta de telhas já derrotadas”. Essas
construções se situavam no Sítio Belém, em Acari, no ano de 1789. Levando em consideração o estado
descrito, essas casas de senzala não pareciam abrigar numerosos contingentes de escravos, quiçá fosse
habitada por algum. (MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano
Familiar nos Sertões da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.176).
352
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.175.
353
MACÊDO, Muirakytan Kenedy de. Op. Cit., 2015, p.176.
354
MACÊDO, Muirakytan Kenedy de. Op. Cit., 2015, p.176.
355
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
134

Apesar das suas condições enquanto sujeitos escravizados, essas pessoas


integravam o cotidiano colonial do Totoró, presentes dentro da casa senhorial, dos currais
e das plantações, nos caminhos entre os lugarejos, bem como sacramentando seus filhos
na pia batismal, se casando e pluralizando qualidades, condições e cores, bem como sendo
sepultados nos templos religiosos, mais especificamente o de Santa Ana dos Currais
Novos.
Essas vivências, sua diversidade de contextos, permitiu que o fenômeno das
dinâmicas de mestiçagens e o léxico das qualidades fosse dinamizado e adensado nestes
rincões, demandando uma nova organização, interpretação e compreensão dos fenômenos
humanos aqui presentes, urgindo necessária distinção e hierarquização dos grupos sociais.
Os sujeitos presentes nas escravarias ou marcados pela ascendência cativa,
extrapolaram os limites do cativeiro e dos olhos dos seus senhores. Os espaços da Ibero-
América foram sendo construídos e constituíram-se de um universo social múltiplo e
generalizante, onde pessoas foram distinguidas e se distinguiram – mesmo que em menor
medida –, algo que nunca foi uma exigência dos poderosos colonizadores sob pobres e
indefesas pessoas vítimas da expansão do mundo moderno356, mas que todos foram
integrados, ensinados e reproduziram um comportamento dos seus respectivos contextos
históricos.

3.2 – Além de Família, Livres

Entre os séculos XV e XIX, abrangendo todo o recorte temporal da escravidão na


América Portuguesa, alforria e manumissão – termo usado em menor frequência –, foram
processos utilizados para tratar da condição jurídico-social de um sujeito que se
encontrasse escravizado. Esse processo de liberdade recobria dinâmicas complexas e
relações de poder que nem sempre desfilavam face aos olhos desatentos. Portanto, não
podemos tomar essa prática como um fenômeno homogêneo espaço-temporalmente,
tendo em vista suas particularidades a partir de onde e quando foram usadas, das pessoas
envolvidas e dos sujeitos alforriados e/ou libertos357.

356
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
357
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
135

Prática comum na Península Ibérica, foi transladada para os domínios espanhóis,


onde existiu a possibilidade de alforria para o cativo que desempenhasse seu trabalho e
seu ofício de maneira exemplar. Portanto, em se tratando das terras situadas do outro lado
do Atlântico, pela óptica colonial, as primeiras libertações de negros ocorreram entre os
imigrados de Sevilha, levados contra suas vontades para Ilha Espanhola e Cuba358.
Eduardo Paiva, o autor de Dar Nome ao Novo, escreveu que a partir do século
XVII, “muito mais alforrias seriam conquistadas, negociadas, compradas e concedidas e
cada vez mais envolvendo negros, crioulos, mulatos e pardos”359, como visto no
testamento de Vicência Lins de Vasconcelos (1828), havendo declarado que “pelos bons
serviços e fiel compromisso que se tem feito a minha escrava Joaquina, a deixo fora,
assim os testamenteiros lhe façam sua carta de liberdade”360.
Na época do testamento, Joaquina havia sido qualificada como mulata, com
moléstias pelo corpo, contanto com 40 anos de vida361. Antes disso, em 1820, moradora
no Totoró, em 02 de junho dera à luz para Joaquim, qualificado como “N.C.”, sendo
batizado no dia 19 do mesmo mês pelo Reverendo Coadjutor Inácio Gonçalves Melo362.
Muitas vezes, a libertação de um cativo tinha relação com os preceitos católicos,
no qual os seus senhores buscavam se redimir dos seus pecados na vida terrena, realizar
boas ações antes das suas partidas, numa tentativa de salvação das suas almas, de
assegurarem seu lugar no que seria o paraíso. Mas essas alforrias, presentes nos
testamentos, também podem evidenciar relações entre os cativos e seus amos, acordos e
interesses, práticas e consórcios que levaram estes sujeitos para liberdade, provavelmente
em troca de benesses e favores para com seus senhorios363.
Estudando os significados e dinâmicas de alforrias presentes nos Livros de Notas
da antiga Comarca do Rio das Velhas, na Vila de Sabará, em Minas Gerais, durante os
anos de 1711 e 1740, Douglas Lima percebeu que o registro de cartas de alforria
demandavam um grau maior de burocracia. Após ser redigida pelo proprietário do cativo

358
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
359
PAIVA, Eduardo França. Op. Cit., 2015, p.116.
360
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Lins de
Vasconcelos (1828). FMDTS, Currais Novos/RN.
361
Ibidem.
362
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 106v.
363
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
136

ou outra pessoa de sua confiança, eram necessárias mais duas assinaturas para que uma
carta tivesse legitimidade e validade364.
De acordo com o autor, na Vila de Sabará, foi comum que os libertos
encaminhassem aos juízes petições solicitando o registro de suas alforrias nos cartórios;
em havendo despacho favorável, a carta poderia ser registrada. Esse processo poderia ser
feito pelo liberto ou por uma pessoa indicada por ele, pois uma vez estando no cartório,
o tabelião reconheceria a autenticidade das assinaturas, transcreveria a petição, seu
encaminhamento dado pelo juiz, a carta de alforria e o reconhecimento das assinaturas
nos Livros de Notas365.
Após estes protocolos, “era necessária, ainda, outra assinatura para assegurar que
todo processo tinha sido realizado segundo os protocolos legais e que o documento
original fora novamente entregue para o liberto ou para o requerente do registro de sua
liberdade”366. Muitas vezes, esse registro levava meses, até mesmo anos, pois muitos
forros não sentiam necessidade de ratificar suas libertações em cartório, ou até mesmo
desconheciam os trâmites que deveriam ser percorridos para essa feitura.
É provável que o registro destas cartas, ocorresse pelas custas dos alforriados, que
resguardados seus lugares sociais na colônia, na maioria das vezes não tinham condições
de arcar com essas formalidades jurídicas para os registros de suas libertações. Portanto,
se asseguravam no reconhecimento das pessoas em vê-los como forros, libertos naquele
território em que viviam, ou esperavam acumular o necessário para fazerem seus registros
nos cartórios quando achassem convenientes ou quando se sentissem ameaçados367.
Havia também, no contexto das Minas Gerais, na Comarca do Rio das Velhas,
escrituras de alforrias, onde normalmente se extrapolava o cotidiano entre senhores e
escravos. Essas escrituras eram registradas diretamente nos Livros de Notas pelo tabelião,
prescindindo o reconhecimento das assinaturas, tendo em vista que o responsável pela
redação da peça jurídica estava presente e observava as testemunhas atestarem e
legitimarem o documento368.
Nesta modalidade, não foi comum que os libertos estivessem presentes no registro
de suas alforrias em cartório, pois para o documento ter validade, foi suficiente as palavras
dos senhores e as assinaturas das testemunhas. Neste contexto, por ser um registro legal

364
Ibidem.
365
Ibidem.
366
LIMA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.70.
367
Ibidem.
368
Ibidem.
137

com menos formalidades, “o registro de uma alforria na modalidade escritura era o


caminho mais cômodo para um senhor com pouca ou nenhuma vivência com a escrita.
Também é presumível que mesmo que soubessem ler e escrever, nem todos os
proprietários conhecessem os protocolos de produção de uma carta”369, deixando essa
tarefa para mãos responsáveis dos agentes da justiça.
Afim de compreendermos os caminhos que poderiam ser percorridos e alcançados
quando um indivíduo não-branco estivesse alforriado ou tenha nascido livre, nos
debruçaremos nas trajetórias de quatro sujeitos, utilizando o nome como fio condutor dos
caminhos por eles trilhados, pelas relações estabelecidas, pois “as linhas que convergem
para o nome e que dele partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao
observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido”370.

3.2.1 – Neste Chão, Outros Caminhos: Miguel Figueira Galvão

Havia, dentre os cativos de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos (1793),


moradora que foi no Totoró de Cima, registrado pelo escrivão e tabelião João de Sousa e
Silva, um mulato, que na altura da feitura do processo da inventariada, tinha
aproximadamente 30 anos, que ficou por herança do falecimento de seu filho Manoel
Lopes Galvão, falecido antes da mãe. Sem moléstia alguma, com o ofício de campo,
Miguel, como foi denominado, foi visto e avaliado pelos louvados em 85$000 mil réis371.
No mesmo ano da morte da sua senhora, em 16 de dezembro de 1793, foi
registrada uma carta de alforria na Vila do Príncipe, pelo mesmo escrivão e tabelião
responsável por redigir o inventário post-mortem da dita acima. Miguel, agora também
Figueira, morador que era no Totoró, foi alforriado pelo valor de 100$000 mil réis. Entre
cunhados e irmãos do seu primeiro senhor, segundo consta no registro, libertaram o
escravo de livre e espontânea vontade372.
O então agora forro, longe do cativeiro, ficou conhecido como Miguel Figueira
Galvão, como foi possível vermos na celebração de batismo da sua primeira filha, nascida

369
LIMA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.87.
370
GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O Nome e o Como: Troca Desigual e Mercado Historiográfico. In:
A Micro- História e Outros Ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989. p. 175.
371
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de Holanda
e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN.
372
Comarca de Caicó (CC), Cidade Judiciária de Caicó (CJC). Livro de Notas nº 02 (1792-1799). Vila
Nova do Príncipe, fl. 73.
138

no dia 27 de abril de 1806 e que foi levada para pia batismal no dia 22 de maio do mesmo
ano. Casado com Maria Madalena da Conceição, moradores no Totoró, deram o nome de
Tereza para sua primogênita373.
O segundo filho do casal, que nasceu no ano de 1820, também participou de um
dos ritos cristãos mais tradicionais da colônia, sendo batizado no dia 24 de dezembro do
ano de seu nascimento, na Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos.
Realizado o batismo pelo Padre Francisco Rodrigues da Rocha, José foi qualificado como
“P”374.
A última descendente de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena da Conceição,
se chamava Ana Maria da Conceição, assim como seu irmão, grafada como “P”. Havia
se casado no dia 13 de janeiro de 1818, com Manoel Bernardo de Morais, também “P”,
filho de Tereza de Jesus Maria375. Atentemos para essa parentela no geneagrama abaixo:

373
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103.
374
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 127.
375
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 113v.
139

Geneagrama 13 – Descendência de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena

Não T ereza Miguel Maria


identificado de Jesus Figueira Madalena
Maria Galvão

Manoel Ana José T ereza


Bernardo Maria da
de Morais Conceição

Francisca Cipriana Ana

Geneagrama Relacionamento Legenda

Qualidade não identificada


Legítimo
Natural P
Masculino Feminino

Mulato

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de D. Adriana de


Holanda e Vasconcelos (1793). FMDTS, Currais Novos/RN; CC, CJC. Livro de Notas nº 02 (1792-1799).
Vila Nova do Príncipe, fl. 73; Elaboração feita a partir do Microsoft Access, utilizando os registros
paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838.

Fruto do casamento de Ana Maria da Conceição com Manoel Bernardo de Morais,


nasceu Cipriana, batizada pelo Padre André Vieira de Medeiros, na Capela do Acari, em
09 de abril de 1820376.
Outra neta de Miguel Figueira Galvão, fruto da união da sua filha com o filho de
Tereza de Jesus Maria, foi Ana, batizada no dia 06 de maio de 1821, pelo Padre Francisco
Rodrigues da Rocha, na Capela de Santa Ana dos Currais Novos377.
A última filha deste casal, batizada na Capela da Senhora da Guia do Acari, pelo
padre Manoel da Silva Ribeiro, em 01 de fevereiro de 1826, foi Francisca. Na ocasião,

376
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 82v.
377
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 179v.
140

constava no seu registro o abreviamento da sua qualidade enquanto “P”, assim como
aconteceu com suas duas irmãs acima378.
Devemos pontuar alguns elementos em relação ao arranjo familiar exposto acima,
como, por exemplo, quando Miguel adotou dois sobrenomes ao longo de sua trajetória,
sendo o primeiro no momento da sua alforria e o segundo, provavelmente, anterior ao
momento de batismo do seu primeiro filho.
Por mais que o processo de liberdade fosse uma distinção do sujeito entre sua
anterior condição de escravizado e agora liberto, também o diferenciando dentre o seu
grupo e da escravaria que ele fazia parte, é o primeiro passo que poderia ser dado por um
cativo num processo de ascensão e mobilidade bastante tímido e incipiente na sociedade
colonial, tendo em vista que os libertos não-brancos também ocuparam um lugar marginal
nas Américas379.
Não existem dúvidas que as alforrias eram o pontapé de um novo estágio, do
surgimento de outras possibilidades, antes negadas pela marca do cativeiro. Mas o
estigma da escravidão, dos corpos não-brancos, teimava em permanecer e continuar
distinguindo estes indivíduos, pois “a ambivalência do mundo dos libertos, localizado no
entremeio da escravidão e da liberdade, impedia que os ex-escravos se livrassem ‘do forte
e persistente estigma ligado à condição do liberto, que se mantinha por gerações’”380.
Para o sertão do Seridó, explicou Muirakytan Macêdo, que mesmo livre, o forro
continuava refém da sua procedência étnica, limitado das suas condições políticas e
sociais, pois mesmo o trabalho livre não estava isento das coerções, dos costumes e das
práticas de uma sociedade escravista381, sobretudo quando os aspectos das qualidades
eram colocados em pauta.
Buscando formas de driblar estes obstáculos que vinham com sua libertação,
Miguel Figueira Galvão incluiu dois sobrenomes ao longo da sua vida, sendo um deles
referente ao seu senhor e uma das famílias do Totoró, pois como decifrou Helder Macedo,
“no período colonial era comum que os forros, após a liberação dos laços oficiais da

378
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 22v.
379
LIMA, Douglas. A Polissemia das Alforrias: Significados e Dinâmicas das Libertações de Escravos
nas Minas Geria Setecentistas. 2014. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2014.
380
SILVA, Douglas. Op. Cit., 2014, p.111.
381
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
141

escravidão, por meio da alforria, se apropriassem de sobrenomes de seus antigos senhores,


para usufruírem de prestígio social no mundo dos livres”382.
Essas estratégias para amealhar melhores condições para transitar, estar e
permanecer no universo que fosse o mais distante possível da escravidão, foi vista na
adjetivação dos seus filhos e netos, com exceção de Tereza, no qual não conseguimos
localizar sua qualidade. Os demais, entretanto, foram qualificados como “P”.
É possível, como já argumentado, que essa contração possa fazer referência aos
designativos de preto ou pardo. Todavia, quando os sujeitos escravizados figuravam e
estavam em outros ambientes que não o do cativeiro, que sua força de trabalho e sua
condição não fossem determinantes em dada ocasião, esses indivíduos eram qualificados
com termos “mais brandos”, geralmente pardo ou “P”, que não os remetessem
diretamente ao mundo escravista, como preto e mulato. De toda forma, essas adjetivações
não deixaram de classificar, distinguir, hierarquizar e marcar pejorativamente.
Considerando que o qualificativo de pardo era o mais distante do universo
escravista e das noções ultrajantes de qualidades que estivessem próximas ao cativeiro,
ele também representaria não somente um processo de ascensão do sujeito, mas do seu
embranquecimento. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, por exemplo, mesclas de negros,
como os pardos, gradativamente foram inseridos nas sociedades e embranquecidos,
mesmo que sua tez denunciasse uma procedência cativa. Conforme Eduardo Paiva, “o
clareamento da cor da pele de uma pessoa se dava de acordo com a ascendência
socioeconômica, sobretudo do pai, e com a conveniência de alterar a ‘qualidade’ do
filho”383.
Investigando o fato de Manoel de Souza Forte, a quem se atribuiu, na
historiografia tradicional de Caicó, as honras de “fundador”, ser provavelmente um
mestiço, tendo em vista que parte dos seus descendentes foram qualificados como pardos,
Maiara Araújo não conseguiu localizar nenhum registro que designasse o qualificativo
deste sujeito. Mas essa “omissão da qualidade ou mesmo o embranquecimento oficial

382
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020, p.85.
383
PAIVA, Eduardo França. Dar Nome ao Novo: Uma História Lexical da Ibero-América Entre
os Séculos XVI e XVIII (as Dinâmicas de Mestiçagens e o Mundo do Trabalho). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015, p. 106.
142

podem ter sido algumas das estratégias utilizadas pelos mestiços para conseguirem se
distanciar das mestiçagens”384, como poderia ter sido o caso de Tereza.
Outro fator que poderia influenciar nesse fenômeno, decorreu da relação que o
Miguel Figueira Galvão provavelmente mantinha com a família Lopes Galvão, mesmo
após sua alforria, de tal modo que para dois dos seus filhos que encontramos o registro
de batismo, os padrinhos de Tereza foram o terceiro Cipriano Lopes Galvão e sua mulher
Dona Tereza Maria de Jesus385, e o apadrinhamento de José ficou encarregado para João
Lopes Galvão386.
No caso de pessoas não-brancas, selecionar os padrinhos dos seus descendentes
não deveria ser uma tarefa aleatória, pois um bom apadrinhamento era garantia, muitas
vezes, da ampliação dos laços e interações sociais. Na Matriz de Santo Antônio do Recife,
Gian Carlo Silva observou que dos registros de crianças livres batizadas, os pais de
rebentos cabras, crioulos, pardos, pretos e índios escolheram primordialmente pessoas
livres para batizarem seus filhos387.
Estes apadrinhamentos objetivavam que os filhos não-brancos de pessoas de cor,
formassem “laços com pessoas de melhor condição, seja ela social ou econômica,
favorecia o futuro das crianças, garantindo novos laços e inserção na comunidade a qual
passariam a fazer parte desde o seu nascimento”388.
Considerando o jogo de relações socias, políticas e de poder em que Miguel
Figueira Galvão estava inserido, tendo em vista seu contato com os Lopes Galvão,
também moradores no Totoró, que mantinham postos militares e de considerável cabedal
para o sertão do Seridó, este sujeito conseguiu sair do cativeiro e se inserir mais
intimamente na realidade das pessoas livres que compunham estas plagas.
A partir da formação de família e de uma rede de proteção e solidariedade, o pai
de Ana Maria da Conceição, José e Tereza, assegurou que seus descendentes não somente
nascessem livres, mas que fossem qualificados, diferente de si, como pardos – se
considerarmos que o “P” dado para estes sujeitos tenha feito essa referência. Além disso,

384
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019, p.193.
385
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 103.
386
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 127.
387
SILVA, Gian Carlo de Melo. Na Cor da Pele, o Negro: Escravidão, Mestiçagens e Sociedade no Recife
Colonial (1790-1810). Maceió: EDUFAL, 2018.
388
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2018, p.139.
143

apesar de Tereza não ter sido adjetivada, seus sobrinhos foram e estiveram
qualificativamente e condicionalmente, mais distantes do universo escravista.

3.2.2 – Neste Chão, Outros Caminhos: José Lopes Galvão

Sujeitos não-brancos escravizados, após o seu processo de alforria, normalmente


adotavam os sobrenomes dos seus amos, afim de estabelecerem uma ligação e um
reconhecimento por parte das pessoas de sua procedência e de suas referências. No sertão
do Seridó, essa prática foi comum, como apontou Helder Macedo enquanto investigava
os rastros de Sebastião Mendes das Neves, escravo que havia sido de Ana Mendes da
Silva e Manoel Antônio das Neves389.
Em abril de 1806, qualificado como cabra, Sebastião teve sua carta de alforria
registrada no cartório da Vila do Príncipe. Na ocasião, adotou o sobrenome Mendes, de
sua senhora; e Neves, do seu senhor. Após liberto, contraiu matrimônio com Simôa
Tavares das Neves390.
Tal prática também foi percebida no Totoró e seus arredores, como foi visto no
caso de Miguel Figueira Galvão. No entanto, conseguimos rastrear a trajetória e o
microcosmo em que estava imbricado João Lopes Galvão e sua família, que, apesar de
ainda não sabermos qual seu vínculo com os familiares descendentes do primeiro
Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda Vasconcelos, vimos que este sujeito
circundava esse lugarejo, mantinha relações com pessoas de diferentes qualidades e
condições, e provavelmente não era branco.

389
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
390
Ibidem.
144

Geneagrama 14 – Microcosmo de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos391

José de Úrsula Não Rita


Lira Rosa identificado Maria da
Conceição

Não Mônica Cosme Izabel Antônio Izabel José Paula José de Angélica Não Ana Cosme Luiza Não Francisca Alexandre Ana
identificado Maria da Ferreira de Martins Emiliano Maria Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria Pedro Bernarda do identificado Inácia Guedes Isidória de
Conceição Oliveira Cabral da Silva Galvão Vasconcelos Rangel Jesus de Lira Sacramento da Cruz Carvalho

Não Josefa Não Joana José Ana Manoel T ereza Ana Antônio José Helena Ana Miguel Silvestre Maria Vicência Apolônia José T ereza Fidélis José Anônimo Francisco Angélica Francisco Manoel José de Aniceta Ana Manoel Antônio Joana Izabel José Maria da Raimundo
identificado Maria da identificado Maria de Antônio Joaquina de Pequeno Maria Joaquina da Oliveira Joaquim de Maria Maria da Figueira Soares Maria Lopes de Jesus José de Maria Caetano Antônio de Oliveira Maria da Maria da Silva da das Mercês
Conceição Vasconcelos da Silva Santa Ana de Moura de Jesus Conceição Soares Santa Ana da Guia Conceição Galvão Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia de Oliveira Oliveira Rangel Rangel Conceição Penha Conceição Guedes

Ana

José Maria
Roberto Manoela Manoel Paula T eodora Maria Ana Não Luiza
de Castro do Rosário identificado Maria da
Conceição
Felipe

Alexandre Joaquim Noberto T omé Maria Antônio Manoel João José de Maria Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Mônica
Francisco Santa Felipa da Florêncio Fausta Francisca Figueira Maria
da Silva Ana Conceição de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior da Guia Umbelina Luiz Maria
Francelina
da Guia

Sebastião

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Pardo/Parda

Índio/Índia
Legítimo

Natural P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida

P.C.

Preta

Anônimo(a)

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da Basílica de Nossa Senhora da Guia do Acari (BNSGA), Secretaria Paroquial (SP). Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari (FNSGA), 1835-
1874.

391
Para uma melhor visualização do microcosmo de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, aplicar zoom. De toda forma, ele será destrinchado nas páginas que
se seguem.
145

Pessoas não-brancas, grupos de diferentes condicionamentos jurídicos e tezes,


mantiveram relações de amizade e parentesco, interagiram uns com outros, formando
redes de sociabilidade e solidariedade, afim de que essas (inter)relações pudessem
amenizar o cotidiano colonialista. Este microcosmo, demonstrando uma ampla rede de
elos e conexões, partiu da busca pelo casal encabeçado por José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, que como o próprio nome denota, também adotou essa
linhagem como sua.
Para uma melhor compreensão desta rede, buscando didatizar essa malha
genealógica e de solidariedade, destrinchemos ela e observemos este fenômeno por
partes. Vamos iniciar com os filhos de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos.
146

Geneagrama 15 – Descendência de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos

Não Mônica Cosme Izabel Antônio Izabel José Paula José de Angélica Não Luiza
identificado Maria da Ferreira de Martins Emiliano Maria Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria da
Conceição Oliveira Cabral da Silva Galvão Vasconcelos Rangel Jesus Conceição

Ana Antônio José Helena Ana Miguel Silvestre Maria Vicência Apolônia José T ereza Fidélis Mônica
Joaquina da Oliveira Joaquim de Maria Maria da Figueira Soares Maria Lopes de Jesus José de Maria
Conceição Soares Santa Ana da Guia Conceição Galvão Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Pardo/Parda
Legítimo

Natural P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida

Índia

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
147

Era manhã no sertão da Capitania do Rio Grande, quando em 30 de outubro de


1811, ocorreu o matrimônio de José Joaquim de Santa Ana, qualificado como pardo, com
Helena Maria da Guia, também nomeada enquanto parda. Ele era filho de Antônio
Emiliano Cabral – que não viveu ao ponto de ver o seu filho casando, recebendo um dos
sacramentos católicos coloniais –, com Izabel Maria da Silva. Sua esposa era filha de José
Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos – também impossibilitada de presenciar
sua filha contraindo núpcias, haja vista seu anterior falecimento –, moradores que foram
na Barra. Os noivos, naturais da Freguesia do Seridó, celebraram sua união na Fazenda
Remédio392.
Dentre os pais do genro de João Lopes Galvão e sua esposa, percebemos que sua
mãe foi nomeada enquanto índia, moradora na Cruzeta393. José Joaquim de Santa Ana,
por sua vez, foi qualificado como pardo no seu assento de casamento, talvez por ser fruto
de mescla, considerando que não tivemos acesso ao designativo do seu pai; outra
possibilidade é sua mãe, provavelmente livre, já que não teve sua condição definida, ter
gerado seu filho longe do universo escravista e conseguido que ele fosse adjetivado como
pardo; ou, também é possível, que o mesmo tenha conseguido, através das suas
conveniências e estratégias, ter sido qualificado desta forma.
É importante lembrar, que por mais que os sujeitos nomeados como pardos
integrassem o contingente de pessoas não-brancas, fruto do fenômeno das dinâmicas de
mestiçagens, havia um corte social e uma mobilização de representações diferentes se
comparados com outras qualidades, haja vista que estes indivíduos podiam ser lidos como
não-cativos, desfrutando de uma posição social e política inserida e bem tolerada pelo
“universo branco”. Muitas vezes, ascendências familiares e feições poderiam denunciar
um passado mestiço, até mesmo ligado ao mundo da escravidão, mas estar registrado
como pardo, por exemplo, foi o suficiente.
O casamento entre dois pardos, como é o caso de José Joaquim de Santa Ana e de
Helena Maria da Guia, não foi um evento adverso. No Recife, entre os anos de 1796 e
1800, nos registros de casamentos, Gian Silva percebeu que de 163 uniões em que os
nubentes tiveram suas qualidades designadas, houve uma recorrência de uniões dentro do

392
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 13v-14.
393
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 51v-52.
148

mesmo grupo qualificativo. Separados entre brancos, crioulos, pretos e mistos, os pardos
foram o segundo grupo que mais casou entre si, contanto com 31 uniões394.
Estes casamentos, dentro de um mesmo grupo, segundo o autor, seguiam “um
princípio de igualdade social”, pois uniões entre sujeitos qualificados de modos
diferentes, tinham más impressões, eram malvistos pela sociedade. Isto é “um reflexo de
como o cotidiano estava moldado pelas hierarquias sociais, e o casamento estava incluído
entre os elementos que garantiam o status social”395.
Tal situação também foi percebida e constatada por Helder Macedo, em se
tratando do sertão do Seridó, pois nos registros de matrimônio, que abarcam os anos de
1788 até 1809, das 537 uniões realizadas na Freguesia de Santa Ana, 91,79% envolviam
pessoas de um mesmo grupo social, considerando o qualificativo como parâmetro.
Destes, 4,28% envolviam pessoas nomeadas como pardas396. Continuemos com a
descendência de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos.
O sol deveria pairar imponente, quando, às onze horas da manhã, no dia 05 de
novembro de 1812, na Fazenda Mulungu, casaram o filho de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, com a filha de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus.
Batizado com o mesmo nome do seu pai, José Lopes Galvão se casou com Tereza de
Jesus Maria, onde os dois foram grafados, no assento do ritual, como “P”397.
Seguindo com a listagem dos irmãos de José Lopes Galvão, chegamos em Ana
Maria da Conceição, que casou com Antônio Oliveira Soares, qualificado como “P”,
nascido nas terras do sertão do Seridó e na época morador no Cuité, filho de Cosme
Ferreira de Oliveira – falecido na época do casamento –, e de Izabel Martins. Ana Maria
da Conceição, também foi qualificada como “P”, no assento de seu casamento. Era, então,
natural e moradora na Freguesia do Seridó. Eram sete horas da manhã, na Matriz do
Seridó, quando em 08 de janeiro de 1813, ocorreu o laço marital398.
Em outra localidade, na Capela do Acari, a filha de José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, chamada Apolônia Maria, adjetivada como parda, casou com
Fidelis José de Oliveira, mais um filho descendente do casal José de Oliveira Rangel e

394
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014.
395
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2014, p.157.
396
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.
397
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 25v.
398
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 28v.
149

Angélica Maria, igualmente chamado de pardo. A união ocorreu no dia 01 de novembro


de 1814399.
O matrimônio acima contou com dispensa de sanguinidade, que poderia ocorrer
de forma natural, quando os contraentes eram parentes e compartilhavam os mesmos
genes, até certo grau; a partir de relações espirituais, como o batismo e confirmação; e
através da perfilhação400.
Os mesmos motivos para estas dispensas foram encontrados na Matriz de Santo
Antônio, no Recife, em que Gian Carlo Silva afirmou que tais isenções atendiam um
público seleto, que tinham interesses por detrás dos “consórcios matrimoniais”,
“tendendo facilitar a permanência de bens, manutenção de riqueza e status por parte de
uma determinada classe social”401. Também havia tratativas específicas nos casos em que
uma mulher deveria ser protegida, “no caso de passar alguma necessidade que seria
solucionada com o casamento, ela recebia dispensa para casar”402.
Dando prosseguimento, conseguimos rastrear o casamento de mais um filho do
casal José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, que casou no Oratório da
Fazenda Remédio, em 13 de junho de 1834. O Reverendo Manoel Cassiano da Costa
Pereira, uniu os cônjuges Silvestre Soares Galvão – proveniente do casal acima referido
–, e Mônica Maria da Guia, filha natural de Luiza Maria da Conceição403.
O próximo dos filhos de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos foi
Miguel Figueira Galvão. O casamento celebrado pelo Padre Manoel da Silva Ribeiro, no
ano de 1824, deu-se com Ana Joaquina da Conceição, filha natural de Mônica Maria da
Conceição, dispensados no terceiro grau atingente ao segundo404.
Não estamos tratando, como o nome sugere, do primeiro indivíduo que
perscrutamos sua trajetória, também chamado de Miguel Figueira Galvão, na seção 3.2.1
do presente trabalho. Porém, esse problema de homonímia, nos faz pensar se estes
indivíduos tinham alguma relação entre si ou não. De princípio, acreditamos que
estávamos tratando de pai e filho; posteriormente desconfiávamos que poderia ser uma
relação de irmandade, que descendessem dos mesmos pais; por fim, também refletimos

399
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 58v.
400
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
401
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014, p. 96.
402
SILVA, Gian Carlo de Melo. Op. Cit., 2014, p. 96.
403
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 198-198v.
404
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 61v.
150

se havia alguma conexão ao nível do uso e adoção de um mesmo nome. Todos estes
caminhos, entretanto, não puderam ser sustentados ou averiguados, face às ausências de
qualquer ligação dos dois nas fontes históricas pesquisadas.
Por fim, finalizando essa etapa, dedicada aos filhos do casal João Lopes Galvão e
Paula Barbalho de Vasconcelos, encontramos os óbitos de duas das suas filhas, ambas
sepultadas na Capela de Nossa Senhora da Guia do Acari. Vicência, de apenas dois meses
e meio, registrada como parda, foi enterrada no dia 25 de janeiro de 1800405. Sua outra
filha, de nome Maria, encomendada pelo Padre André Vieira, faleceu aos 28 anos de
idade, tendo sido qualificada como “P”. Seu descanso ocorreu no dia 06 de abril de 1816,
sendo sua causa mortis, tísica406.
Dos oito filhos conhecidos de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos, dedicamos tempo na busca e rastreio dos seus netos, frutos destas uniões
que acabamos de narrar acima. Destes seis matrimônios, apenas três tiveram filhos,
deixaram seus descendentes no chão e na vida do sertão do Seridó, da família Lopes
Galvão não-branca, descendentes de mistura. O início do percurso se dá com os filhos
do casal Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição, como descrito em seguida
no próximo geneagrama.

405
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 74v.
406
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 02 (1812-1838). FGSSAS, fl. 26v.
151

Geneagrama 16 – Netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos


(Filhos dos casais Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição; José Joaquim de Santa Ana e Helena Maria da Guia; e Fidélis José de Oliveira e Apolônia Maria)

José
Lopes Paula
Galvão Barbalho de
Vasconcelos

Ana Miguel José Helena Antônio Ana Silvestre Mônica Maria Vicência José T ereza Fidélis
Joaquina da Figueira Joaquim de Maria Oliveira Maria da Soares Maria Lopes de Jesus Apolônia José de
Conceição Galvão Santa Ana da Guia Soares Conceição Galvão da Guia Galvão Maria Maria Oliveira

Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Ana Manoel Paula T eodora Maria Ana
Florêncio Fausta Francisca Figueira
de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Pardo/Parda
Legítimo
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
152

O primeiro dos filhos de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição,


que conhecemos, é o homônimo Miguel – posteriormente vimos menções ao seu nome
como Miguel Figueira Galvão Júnior –, qualificado pela abreviatura de “P” no
recebimento do primeiro sacramento católico. O Padre Manoel Teixeira da Fonseca, na
Capela do Acari, realizou o batismo no dia 17 de abril de 1827407.
O casal teve duas outras filhas das quais localizamos o seu assento de batizado. A
primeira, chamada de Claudina, foi batizada no dia 28 de novembro de 1828, na Fazenda
Remédio, registrada como “P”, pelo Padre Manoel Cassiano da Costa Pereira. Este
mesmo padre, no dia 01 de abril de 1841, celebrou na pia batismal o sacramento de Maria,
sua irmã, registrada enquanto “P”. Seus pais, assim como consta no registro, eram naturais
da Freguesia do Acari408.
Os outros filhos de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição, foram,
respectivamente, Francelina Fausta de Jesus409, Mônica Francisca de Jesus410 e Manoel
Florêncio de Miranda411, sobre quem trataremos a posteriori.
Outra neta de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos foi fruto do
casal José Joaquim de Santa Ana e Helena Maria da Guia. Trata-se de Ana, batizada pelo
Padre André Vieira, no dia 13 de novembro de 1814, na Capela do Acari, foi registrada
como “P”412.
O casal formado por Apolônia Maria – esta, filha de José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos – e Fidélis José de Oliveira, teve cinco filhos, sendo um deles
homem e o restante mulheres. Assim como parte dos seus primos, todos foram
qualificados como “P”, como foi o caso de Maria, nascida em 07 de fevereiro de 1816.
Na Fazenda Remédio, no mesmo ano do seu nascimento, o Reverendo André Vieira de
Medeiros, realizou o batismo da dita pessoa acima413.
No mesmo local do batismo anterior, na Fazenda Remédio, o Padre André Vieira
de Medeiros ungiu Paula, como afirmado, grafada enquanto “P”, no dia 26 de junho de

407
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 71v.
408
Após os processos de desmembramentos da Freguesia do Seridó, se erigiu uma nova administração
religiosa no sertão da Capitania do Rio Grande, em 1835, a Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari.
A Capela dos Currais Novos, a partir deste momento, se tornou filial e respondeu administrativamente para
Matriz do Acari.
409
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871). FNSGA, fl. 53v.
410
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 02.
411
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 16v.
412
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 28v.
413
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 97v.
153

1819414. Sua irmã, chamada Teodora, no mesmo local, pelo mesmo pároco, também
nomeada como “P”, foi batizada em 09 de outubro de 1820415.
O mesmo pároco, desta vez celebrando o batizado na Capela do Acari, ungiu Ana,
“P”, no dia 30 de dezembro de 1821416. Neste mesmo local, o último filho do casal
formado por Fidélis José de Oliveira e Apolônia Maria, foi nomeado como Manoel, visto
e registrado como “P”. Foi levado para o batismo pelo Padre Manoel Teixeira, no dia 27
de setembro de 1827417.
Neste momento, voltemos a nos preocupar com os elos estabelecidos pelos netos
de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, mais especificamente os
descendentes de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição, tendo em vista
que conseguimos perscrutar e buscar seus matrimônios, bem como, o bisneto do casal
referência da reconstituição deste microcosmo, do arranjo familiar e dessa rede de
solidariedade. No próximo geneagrama estão listados os filhos desse último casal, seus
respectivos cônjuges, sogros e sogras:

414
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 52v.
415
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 116v.
416
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 199.
417
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 93.
154

Geneagrama 17 – Matrimônios dos netos e netas de João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos
(Filhos de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição)

José Paula
Lopes Barbalho de
Galvão Vasconcelos

José Maria José Ana Manoel T ereza Ana Miguel Angélica Raimundo
Roberto Manoela Antônio Joaquina de Pequeno Maria Joaquina da Figueira Maria das Mercês
de Castro do Rosário da Silva Santa Ana de Moura de Jesus Conceição Galvão da Guia Guedes

João José de Maria Manoel Francelina Mônica Maria Claudina Miguel Umbelina
Francisco Santa Felipa da Florêncio Fausta Francisca Figueira Francelina
da Silva Ana Conceição de Miranda de Jesus de Jesus Galvão Júnior da Guia

Sebastião

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Legítimo P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
Índio

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
155

O filho homônimo do casal formado por Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina
da Conceição – Miguel Figueira Galvão Júnior –, casou pela manhã, na Matriz do Acari,
ao fim do ano, em 05 de novembro de 1850. Ele levou ao altar Umbelina Francelina da
Guia, filha do casal formado por Raimundo das Mercês e Angélica Maria da Guia.
Celebrada pelo Vigário Tomaz de Pereira Araújo, o ritual contou com dispensa de
parentesco418.
Essa união, foi responsável por gerar o bisneto de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, batizado pelo nome de Sebastião. Nascido no dia 09 de agosto
de 1870, recebeu o santo sacramento no dia 11 de setembro do mesmo ano, na Matriz do
Acari419.
Outra filha do casal formado por Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da
Conceição, como mencionado anteriormente, foi Francelina Fausta de Jesus. Ela casou
com José de Santa Ana, sendo seus pais José Antônio da Silva e Ana Joaquina de Santa
Ana. Também precedendo dispensa de parentesco, o matrimônio foi celebrado pelo
Vigário Tomaz Pereira de Araújo, no dia 08 de janeiro de 1855, na Matriz do Acari420.
O irmão da referida pessoa acima, Manoel Florêncio de Miranda, casou com
Maria Felipa da Conceição, filha do casal formado por Manoel Pequeno de Moura e
Tereza Maria de Jesus. O responsável pela cerimônia e registro foi o mesmo vigário
acima, da Matriz de Nossa Senhora da Guia do Acari, celebrando o casamento em
novembro de 1857421.
Por fim, a outra filha de Miguel Figueira Galvão e Ana Joaquina da Conceição,
chamada Mônica Francisca de Jesus, casou com o filho de José Roberto de Castro e Maria
Manoela do Rosário – nesta altura, já falecida –, de nome João Francisco da Silva. O casal
teve sua cerimônia celebrada pelo Vigário da Matriz do Acari, Tomaz Pereira de Araújo,
que se deslocou até o Sítio da Barra, nesta mesma Freguesia do Acari, e em novembro de
1853 uniu-os em matrimônio422.
Além de tentarmos reconstruir o arranjo familiar protagonizado por João Lopes
Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, também é importante investigarmos relações
horizontais que os seus descendentes foram construindo, se ligando e agregando numa

418
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 01 (1835-1853) FNSGA, fl. 164v.
419
BNSGA, SP. Livro de Batismo nº 07 (1868-1874) FNSGA, fl. 56v.
420
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 16v.
421
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 53v.
422
BNSGA, SP. Livro de Casamento nº 02 (1853-1871) FNSGA, fl. 02v.
156

rede de solidariedade, num microcosmo formado por pessoas não-brancas. A união destas
famílias, seja por laços matrimoniais, sanguíneos, de amizade ou compadrio, criaram
relações de dependência, de subsistência, interesses e até mesmo, supomos, afetividade.
Os sogros de Mônica Francisca de Jesus, filha de Miguel Figueira Galvão e Ana
Joaquina da Conceição, casaram na Capela do Acari, em 30 de abril de 1813. Seu sogro,
José Roberto de Castro, era filho natural de Josefa Maria da Conceição, naturais e
moradores que eram da Freguesia do Seridó, os dois qualificados como índios no registro.
Sua sogra, também natural e moradora neste sertão, descendia da preta Joana Maria de
Vasconcelos423, como podemos verificar no geneagrama a seguir.

423
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 31v-32.
157

Geneagrama 18 – Descendência de José Roberto de Castro e Maria Manoela do Rosário

Não Josefa Não Joana José Paula


identificado Maria da identificado Maria de Lopes Barbalho de
Conceição Vasconcelos Galvão Vasconcelos

José Maria Ana Miguel


Roberto Manoela Joaquina da Figueira
de Castro do Rosário Conceição Galvão

Alexandre Joaquim Noberto T omé Maria Antônio Manoel João Mônica


Francisco Francisca
da Silva de Jesus

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Índio/Índia
Legítimo
Feminino Masculino Falecida Natural P

Preta

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
158

Não sabemos o qualificativo de Maria Manoela do Rosário. Provavelmente, por


descender de uma preta, integrasse essa mesma paleta cultural, ou seja, em algum
momento pode ter sido vista ou se autodenominado enquanto preta, negra ou crioula. Seu
esposo, assim como vimos escrito no seu registro de casamento, descendia de uma índia
e assim também foi adjetivado.
Considerando que estejamos descrevendo uma união entre duas qualidades
distintas, apesar de não ter representado o maior contingente de casos, Gian Carlo Silva
demonstrou que entre 1796 até 1800, para Recife, foram encontradas 27 uniões entre
pessoas de grupos diferentes. Em sua maioria, esses laços foram formados entre crioulos,
pardos e pretos424.
Na Freguesia de Santa Ana, Helder Macedo se preocupou com essas uniões mistas
envolvendo pessoas nativas, registrando enlaces envolvendo índios com negro, preto,
cabra, crioulo, pardo e Angola. Esses matrimônios, ocorridos entre 1788 e 1838,
contabilizaram 39 registros.
Voltando ao casamento de José Roberto de Castro e Maria Manoela do Rosário,
com exceção de João Francisco da Silva, genro de Miguel Figueira Galvão e Ana
Joaquina da Conceição, o casal gerou sete filhos em que suas qualidades constam como
“P”, são eles: Manoel425, João426, Antônio427, Maria428, Tomé429, Norberto430, Joaquim431
e Alexandre432.
Outro casal constituinte desta rede de solidariedade, compondo o microcosmo no
qual João Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos e seus descendentes estavam
envolvidos, era formado por José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus, pais de Tereza
de Jesus Maria e Fidélis José de Oliveiro; casados, respectivamente, com José Lopes
Galvão e Apolônia Maria, filhos do casal basilar para constituição deste organismo social.

424
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só Corpo, Uma só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no
Recife Colonial (1790-1800). 2. Ed. Maceió/AL: EDUFAL, 2014.
425
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 31.
426
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 71v.
427
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 12.
428
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 97v.
429
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 199.
430
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 11.
431
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 77.
432
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 141.
159

Os descendentes de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus, para além dos


dois mencionados acima, era formado por Francisco433, José434 e outro filho falecido, no
qual não sabemos o gênero nem o nome, registrado como “Anônimo”435.

433
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 90-90v.
434
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 47v.
435
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 09.
160

Geneagrama 19 – Descendência de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus

José de Úrsula Não Rita


Lira Rosa identificado Maria da
Conceição

José Paula José de Angélica Não Ana Cosme Luiza Não Francisca Alexandre Ana
Lopes Barbalho de Oliveira de identificado Maria Pedro Bernarda do identificado Inácia Guedes Isidória de
Galvão Vasconcelos Rangel Jesus de Lira Sacramento da Cruz Carvalho

Apolônia José T ereza Fidélis José Anônimo Francisco Angélica Francisco Manoel José de Aniceta Ana Maria da Raimundo
Maria Lopes de Jesus José de Maria Caetano Antônio de Oliveira Maria da Maria da Silva da das Mercês
Galvão Maria Oliveira da Guia de Oliveira Oliveira Rangel Rangel Conceição Penha Conceição Guedes

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Pardo/Parda

Legítimo
P
Natural
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P.C.

Anônimo/Anônima

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874
161

Além dos filhos mencionados acima, conseguimos localizar os matrimônios de


outros dos seus descendentes, como Angélica Maria da Guia, que casou com Raimundo
das Mercês Guedes, vindo da Freguesia do Aracati e estabelecido no sertão do Seridó.
Este era filho de Alexandre Guedes da Cruz e Ana Isidória de Carvalho. Registrados como
“P”, o casamento ocorreu na Matriz de Santa Ana, em 04 de novembro de 1813436.
Carregando o nome do seu pai, José de Oliveira Rangel casou com Aniceta Maria
da Conceição, filha natural de Ana Maria, mãe solteira. Os dois tiveram suas qualidades
contraídas como “P”, eram parentes de sangue e se casaram no dia 26 de novembro de
1816, na Fazenda do Totoró, em casas de morada de Francisco Lopes Galvão437.
Na Matriz de Santa Ana do Caicó, em 01 de maio de 1820, casaram Manoel
Antônio de Oliveira Rangel, filho do casal que compõe o microcosmo investigado – José
de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus –, com Ana Maria da Penha, filha de Cosme Pedro
de Lira e Luiza Bernarda do Sacramento. Os dois, segundo constou no assento de
matrimônio, foram grafados como “P”438.
Nessa busca, conseguimos localizar os avós de Ana Maria da Penha, que pelo lado
paterno eram José de Lira e Úrsula Rosa. Pelo lado de sua mãe, vimos que ela descendia
de uma relação não legitimada pela Igreja Católica, sendo filha de Rita Maria da
Conceição439.
Eram nove horas da manhã, na Matriz do Seridó, quando o último filho de José
de Oliveira Rangel e Angélica Maria, que conseguimos localizar o registro de casamento,
subiu ao altar. Francisco Caetano de Oliveira, “P”, casou com Maria da Silva da
Conceição, também “P”, filha natural de Francisca Inácia. O matrimônio aconteceu no
dia 19 de agosto de 1822440.
Dando corpo para este organismo de relações sociais, dos nove filhos de José de
Oliveira Rangel e Angélica de Jesus, seis destes casaram, mas apenas da metade
provieram netos ao casal referido, até onde conseguimos rastrear. Já discorrido
anteriormente sobre os descendentes de Fidélis José de Oliveira com Apolônia Maria,
quando percorríamos o núcleo familiar de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos, nos detemos aos dois últimos casais, a seguir.

436
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 40v.
437
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 97v.
438
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 165v-166.
439
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 55.
440
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 16v-17.
162

Angélica Maria da Guia com Raimundo das Mercês Guedes, deram à luz para três
netos de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus, sendo eles: Maria441 e Luiz442,
qualificados como “P”.
A outra descendente do casal, como já é do nosso conhecimento, era Umbelina
Francelina da Guia, que com o neto de José Lopes Galvão e Paula Barbalho de
Vasconcelos, o Miguel Figueira Galvão Júnior, que geraram Sebastião, bisneto destes.
Consequentemente, essa criança também era bisneta de José de Oliveira Rangel e
Angélica de Jesus.
O último neto do casal investigado neste momento, se chamava Felipe, filho de
Manoel Antônio de Oliveira e Ana Maria da Penha. O responsável pela cerimônia de
batismo e pelo registro foi o Vigário Francisco de Brito Guerra, que provavelmente
qualificou, no dia 13 de maio de 1821, na Matriz de Santa Ana do Seridó, o descendente
do casal como “P”443.

441
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 50v.
442
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 172v.
443
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 143v.
163

Geneagrama 20 – Netos e netas de José de Oliveira Rangel e Angélica de Jesus


(Filhos de Fidélis José de Oliveira e Apolônia Maria; de Raimundo das Mercês Guedes e Angélica Maria da Guia; e de Manoel Antônio de Oliveira Rangel e Ana Maria da Penha)

José Paula José de Angélica Cosme Luiza


Lopes Barbalho de Oliveira de Pedro Bernarda do
Galvão Vasconcelos Rangel Jesus de Lira Sacramento

Ana Miguel Apolônia José T ereza Fidélis Angélica Raimundo Francisco Maria da José de Aniceta Manoel Ana Manoel Antônio Joana Izabel José
Joaquina da Figueira Maria Lopes de Jesus José de Maria das Mercês Caetano Silva da José Anônimo Francisco Oliveira Maria da Antônio de Maria da
Conceição Galvão Galvão Maria Oliveira da Guia Guedes de Oliveira Conceição Rangel Conceição Oliveira Rangel Penha

Miguel Manoel Paula T eodora Maria Ana Umbelina


Figueira Francelina Luiz Maria Felipe
Galvão Júnior da Guia

Sebastião

Geneagrama Relacionamento Legenda


Qualidade não identificada

Pardo/Parda

Legítimo P
Masculino Feminino Falecido(a) Falecida
P.C.

Anônimo/Anônima

Fonte: Elaboração feita por Matheus Barbosa Santos e Helder Alexandre Medeiros de Macedo, a partir do Microsoft Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ.
FGSSAS, 1788-1838; e da BNSGA, SP. FNSGA, 1835-1874.
164

Manoel Antônio de Oliveira Rangel com Ana Maria da Penha, tiveram um filho
chamado Felipe. Os tios deste menino, por parte da sua mãe, excetuando Manoel, que não
teve nenhum designativo de sua qualidade apresentado no registro444, se chamavam
Antônio445, Joana446 e Isabel447, e foram nomeados como “P”; José, por sua vez, constou
como pardo448.
Reconstituir esse arranjo familiar tendo como cerne José Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, percebendo redes e malhas sociais em que eles estavam
inseridos, suas formações familiares horizontais e constituição de uma cadeia solidária,
possibilitou o alargamento político, econômico e social, tendo em vista os núcleos
formados por José Roberto de Castro e Maria Manoela do Rosário, e José de Oliveira
Rangel com Angélica de Jesus.
Essas uniões matrimoniais, de solidariedade, afetivas e de apoio, entre sujeitos e
grupos não-brancos, possibilitou que, provavelmente, tivessem surgido “brechas
camponesas” no sistema colonial, ou seja, ser escravo, forro ou livre não-branco não
significava o fechamento de possibilidades de mobilidade social, negociações e
independência financeira449.
Acreditamos que o Miguel Figueira Galvão, filho de João Lopes Galvão e Paula
Barbalho de Vasconcelos, por estar inserido e emaranhado numa rede social e solidária
estruturada, tenha sido o proprietário do escravo Lisbão Ferreira, residente na Serra de
Santa Ana, alforriado no dia 17 de janeiro de 1808, pelo valor de 60$000 mil réis450.
Além deste escravo, segundo constou no inventário post-mortem do segundo
Cipriano Lopes Galvão (1814), havia um escravo, qualificado como crioulo, chamado
Henrique, de 20 anos, que estava empenhado por Miguel Figueira Galão, avaliado em
87$000 mil réis451.

444
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 101.
445
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 02 (1814-1818). FGSSAS, fl. 26.
446
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 04.
447
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 03 (1818-1822). FGSSAS, fl. 99.
448
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 86.
449
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
450
CC, CJC. Livro de Notas nº 05 (1806-1809). Vila Nova do Príncipe, fl. 124.
451
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 02 (1814-1832). Inventário do capitão-mor Cipriano
Lopes Galvão (1814). FMDTS, Currais Novos/RN.
165

O sujeito casado com Ana Joaquina da Conceição, por mais que não tenhamos
conseguido constatar sua qualidade, é provável que fosse um indivíduo não-branco, tendo
em vista seus irmãos terem sido qualificados como “P” e pardo, e seus filhos como “P”.
Mesmo que nossas hipóteses estejam equivocadas, que os dois ou pelo menos um
destes escravos tenha pertencido ao primeiro Miguel Figueira Galvão que tratamos aqui,
casado com Maria Madalena da Conceição, “uma vez posto o princípio de diferenciação
racial para toda sociedade, todos seriam considerados a partir desse prisma
onipresente”452. Isso permitiu que existissem “‘inúmeros casos de libertos que possuíam
escravos, de posse de cativos até mesmo agricultores pobres, e até mesmo de escravos
que adquiriam escravos’”453, indicando o poder de difusão de preceitos, formas de
organização e administração de uma época.
Esse microcosmo social e político também possibilitou acontecimentos mais
simples e usuais, não se caracterizando enquanto brechas no sistema colonial, como
acabamos de ver, mas uma comunidade formada por pessoas não-brancas, relacionadas
de forma mais recente ou remota com o cativeiro, que mantinham toda sorte de relação
uns com os outros. Tal como Mônica Oliveira observou para os espaços das Minas Gerais,
“podiam compartilhar os mesmos espaços da produção, como as roças e os animais
criados conjuntamente e que atendiam a todos os membros da família. Nessa perspectiva,
podiam compartilhar também o mesmo fogo, reunir-se à mesma mesa, criando, assim,
uma rede de sustentação para superação dos desafios”454.
Lopes Galvão e Vasconcelos, de várias qualidades, cores e misturas, vindos dos
fundos das casas, do trabalho nas roças, intimamente relacionados com outras gentes de
diversas origens e condições, povoaram o chão do Totoró com seus descendentes,
formaram redes de solidariedade e microcosmos sociais e políticos, capazes de permitir
e possibilitar amenidades e vantagens dentro do sistema colonial português, pois “nos
espaços agrários coloniais, a família foi o suporte social mais eficaz para se organizar a
produção da vida material e espiritual dos sertões”455.

452
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.183.
453
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.183.
454
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.221.
455
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Op. Cit., 2015, p.201.
166

3.2.3 Neste Chão, Outros Caminhos: Paula Maria da Conceição e Diogo de Melo

Paula foi uma, dentre nove cativos existentes na escravaria do Totoró de Baixo.
Nos idos de 1789, era uma mulher com seus 23 anos, qualificada como crioula, saudável,
não apresentava nenhuma moléstia e, provavelmente, lidava com os afazeres domésticos
e da roça456.
Sua senhora, Francisca Xavier de Moura (1789), teve seus bens arrolados quando
do seu falecimento, ficando responsável por suas posses o seu marido, José de Freitas
Leitão457. Ele, em 14 de janeiro de 1791, alforriou e deu carta de liberdade para Paula458.
Desfrutando de possibilidades menos restritas, considerando não mais se
encontrar na condição de escravizada, seis anos depois de sua liberdade, Paula, agora
chamada de Paula Maria da Conceição, se casou. Eram oito horas da manhã, na terra
dedicada ao culto de Santa Ana, quando na Matriz do Seridó, o Cura José Antônio
Caetano de Mesquita, uniu em matrimônio Francisco Pereira, natural do Piauí, filho de
André Pereira e Ana Quitéria; com Paula Maria da Conceição, grafada no seu registro
como negra, no dia 19 de setembro de 1797459.
Paula Maria da Conceição, antes da sua liberdade e consequentemente do seu
casamento, havia ficado grávida e dado à luz para Maria. Não sabemos quem foi o pai
desta filha, apenas que ela faleceu nos seus quatro primeiros meses de vida e foi sepultada
no dia 30 de agosto de 1790, na Capela do Acari460.
Liberta e casada com Francisco Pereira, residindo na Fazenda Totoró, o primeiro
fruto do casal também faleceu jovem, sendo sepultado no dia 08 de outubro de 1797. Seu
corpo foi encomendado pelo Padre Manoel Gomes de Azevêdo, na Capela de Nossa
Senhora da Guia do Acari461.
A primeira descendente do casal, que conseguiu atravessar os primeiros meses de
vida no Totoró, se chamava Ana, nascida em fevereiro e batizada no dia 12 de março de
1804462.

456
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier de
Moura (1789). FMDTS, Currais Novos/RN.
457
Ibidem.
458
CC, CJC. Livro de Notas nº 02 (1792-1799). Vila Nova do Príncipe, fl. 51.
459
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 01 (1788-1809). FGSSAS, fl. 38-38v.
460
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 13v.
461
MSC, CPSJ. Livro de Óbito nº 01 (1788-1811). FGSSAS, fl. 62-62v.
462
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 37v.
167

Conseguimos localizar outra descendente deste casal, chamada Tereza Maria de


Jesus, que no dia do seu casamento foi registrada como “P”. Ela casou com José Patrício
da Rocha, natural da Vila do Arez, sendo filho de Patrício da Rocha e Ana Francisca. O
casamento, ministrado pelo Padre Francisco Rodrigues da Rocha, aconteceu no dia 21 de
agosto de 1821, na Capela dos Currais Novos463.
O casal foi responsável por tornar Paula Maria da Conceição e Francisco Pereira
avós. Estamos nos referindo ao nascimento de Manoela, em 22 de junho de 1825, filha
de José Patrício da Rocha e Tereza Maria de Jesus. Registrada como “P”, e batizada no
dia 22 de agosto do ano sobredito, o sacramento foi ministrado na Capela dos Currais
Novos464.
O segundo neto de Paula Maria da Conceição e Francisco Pereira – igualmente,
filho de José Patrício da Rocha e Tereza Maria de Jesus –, batizado no mesmo templo
religioso, pelo Padre Manoel José Fernandes, em 29 de maio de 1827, se chamava José e
também foi qualificado de forma abreviada como “P”465.
Por fim, o último filho de Tereza Maria de Jesus e José Patrício da Rocha que
tivemos conhecimento, foi batizado como Manoel, assim como os seus irmãos,
diferenciado no assento paroquial como “P”. Sua cerimônia aconteceu no dia 29 de junho
de 1828, na Capela dos Currais Novos, pelo Padre Joaquim Álvares da Costa466.
Contatamos, no rastreamento feito nas fontes históricas, mais um casamento
envolvendo outra filha de Paula Maria da Conceição e Francisco Pereira, chamada Rita
Maria do Rosário, qualificada como “P”. Ela casou com Diogo de Melo Rosa, também
“P”, filho de Diogo de Melo e Hilária Maria do Livramento. O laço ocorrido em 30 de
maio de 1831, na Capela dos Currais Novos, foi celebrado pelo Reverendo Joaquim
Álvares da Costa467.
Este casamento, em específico, nos interessa sobremaneira, tendo em vista o laço
formado entre os filhos de Paula Maria da Conceição e Francisco Pereira, com Diogo de
Melo e Hilária Maria do Livramento. A mãe da nubente e o pai do esposo tem algo em
comum: os dois são descendentes do cativeiro.
Diogo de Melo havia sido escravo do capitão Félix Gomes Pequeno, quando em
23 de dezembro de 1801, comprou sua alforria. Registrada quatro dias depois no cartório

463
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 04v.
464
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 33.
465
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 65.
466
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 04 (1825-1831). FGSSAS, fl. 108v.
467
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 140v.
168

da Vila Nova do Príncipe, pelo escrivão e tabelião Antônio Vaz Ferreira Júnior, o liberto
foi registrado como preto na qualidade expressa e na averbação como crioulo468.
Casado com Hilária Maria do Livramento, preta e forra, Diogo de Melo foi pai do
forro João. Batizado no dia 15 de junho de 1804, pelo Padre Antônio Caetano de
Mesquita, o sacramento foi ministrado na Capela do Acari 469. Neste mesmo templo
religioso, outra filha do casal, de nome Maria, foi batizada no dia 02 de novembro de
1805470.
Além dos três filhos que já mencionados – Diogo de Melo Rosa, João e Maria –,
Diogo de Melo e Hilária Maria do Livramento também foram pais de José Joaquim de
Melo, Manoel dos Santos Melo – que foi casado com Ana Francisca do Livramento471 –,
Maria Félix do Espírito Santo – que foi casada com Francisco Antônio de Brito –, e
Damásia Maria do Livramento, esposa de Joaquim de Santa Ana472.
O primeiro e único neto que conseguimos rastrear deste casal, se deu por uma
relação não oficial de Maria Félix do Espírito Santo. Ela foi mãe de Ana Tereza da
Conceição, natural de Goianinha, que casou com Joaquim Rodrigues de Almeida, este
natural da Freguesia da Cidade do Natal, filho de Bernardo Rodrigues de Almeida e
Úrsula Maria, sua mãe. O casamento foi celebrado no dia 29 de outubro de 1815, na
Capela da Gloriosa Senhora Santa Ana dos Currais Novos473. No próximo geneagrama
detalhamos as relações genealógicas até então aqui discutidas.

468
CC, CJC. Livro de Notas nº 04 (1802-1805). Vila Nova do Príncipe, fl. 172v.
469
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 43.
470
MSC, CPSJ. Livro de Batismo nº 01 (1803-1806). FGSSAS, fl. 87.
471
GURGEL, Olívia. Casamento de Manoel dos Santos Melo e Ana Francisca do Livramento. BNSGA,
SP. Livro de Casamento nº 01 (1835-1853) FNSGA, fl. 30v-31. Disponível em:
<https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:939K-79KS-1?from=lynx1UIV8&treeref=KJZQ
F6K&i=32>. Acesso em: 26 set. 2022.
472
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839).
FMDTS, Currais Novos/RN.
473
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 02 (1809-1821). FGSSAS, fl. 73v-74.
169

Geneagrama 21 – Descendência dos casais Paula Maria da Conceição-Francisco Pereira, Diogo de Melo-Hilária Maria do Livramento e Patrício da Rocha-Ana Francisca

Diogo Hilária Francisco Paula Patrício Ana


de Maria do Pereira Maria da da Francisca
Melo Livramento Conceição Rocha

Bernardo Maria Francisco Joaquim Damásia Maria Félix Ana Manoel José João Maria Diogo Rita Anônimo Maria "Anônimo" Ana T ereza José
Rodrigues Antônio de Santa Maria do do Espírito Francisca do dos Santos Joaquim de Melo Maria do Maria Patrício
de Almeida de Brito Ana Livramento Santo Livramento Melo de Melo Rosa Rosário de Jesus da Rocha

Manoela José Manoel

Joaquim Ana
Rodrigues T ereza da
de Almeida Conceição

Geneagrama Relacionamento Legenda

Não identificado

P
Legítimo
Natural Crioulo/Preto
Masculino Feminino Falecido Falecida

Crioula, Negra e Preta

Anônimo(a)

Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839). FMDTS, Currais Novos/RN; elaboração feita a partir do Microsoft
Access, utilizando os registros paroquiais da MSC, CPSJ. FGSSAS, 1788-1838
170

Em Outras Famílias do Seridó, Helder Macedo, investigando os rastros do crioulo


forro Nicolau Mendes da Cruz, se deparou com um dos seus netos, Joaquim Francisco
Mendes, provavelmente um homem mestiço, que deixou inventário post-mortem orçado
em 418$400 réis474.
Maiara Araújo, em Tropas Pagas e Ordenanças, conseguiu localizar o inventário
post-mortem de Manoel de Souza, datado de 1793, que provavelmente também era
mestiço, sendo o total dos bens avaliados em 2:546$320 réis475.
Não foi e não é comum encontrarmos processos inventariantes de pessoas fruto
das dinâmicas de mestiçagens, seja numa escala mais ampla, como das Américas, ou
numa realidade mais circunscrita, como o sertão do Seridó. Todavia, configurando mais
uma exceção, localizamos o inventário post-mortem de Diogo de Melo, casado, como
sabemos, com Hilária Maria do Livramento, moradores que foram no Totoró de Baixo476.
Falecido em 04 de agosto de 1839, o processo de inventariação dos bens foi
iniciado em 14 de outubro do mesmo ano, sendo o responsável por presidir o processo o
juiz de órfãos Gregório José Dantas. O escrivão responsável foi Miguel Pinheiro de
Vasconcelos, que com Hilária Maria do Livramento, inventariante e viúva de Diogo de
Melo, juntamente com os louvados, o capitão Gonçalo Lopes Galvão e Bartolomeu de
Medeiros Galvão, iniciaram o arrolamento de bens477. Sistematizamos esse rol no quadro
abaixo:

Quadro 03 – Arrolamento de Bens do Inventário post-mortem de Diogo de Melo (1839)

ARROLAMENTO DE BENS
Título Bens
Um par de argolas de ouro, com o peso de uma oitava,
avaliado em 2$560
Ouro
Outro par de argolas de ouro, com o peso de três quartos,
avaliado em 1$920
Um par de esporas de prata, com o peso de setenta e seis
oitavas, avaliado em 12$160
Prata
Uma espada, ponta direta, aparelhada, de prata, com o peso
de uma libra, avaliada em 21$480
Cobre Um tacho usado, avaliado em 6$000
474
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do Seridó: Genealogias Mestiças nos
Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR: CRV, 2020.
475
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2019.
476
AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo (1839).
FMDTS, Currais Novos/RN.
477
Ibidem.
171

Um par de estribeiras de ferro, avaliado em 3$000


Uma enxada nova, avaliada em 1$000
Duas ditas [enxadas] velhas, avaliadas em $640
Dois machados em bom uso, avaliado em 1$000
Outro dito quebrado, avaliado em $160
Ferro Uma marreta, avaliada em 1$000
Um ferro de cova velho, avaliado em $320
Duas marcas de ferrar gado, avaliado em $480
Uma espingarda, avaliada em 2$000
Dois chocalhos, avaliados em $640
Uma caixa de flande, avaliada em $640
Um garrafão, avaliado em 1$000
Um jogo de malas de pregaria, avaliado em 18$000
Oito carros de gado com cabelo, avaliado em 10$240
Um par de barris em bom uso, avaliado em 2$000
Outro dito velho, avaliado em 1$000
Bens Móveis
Dez cangalhas, avaliadas em 3$000
Um carro velho, avaliado em 14$000
Duas cangas de boi, avaliado em 1$280
Um roçado de covas do ano passado, avaliado em 25$000
Outro roçado deste ano, avaliado em 15$000
Quarenta e nove vacas, avaliadas em 539$000
Seis novilhotas, avaliadas em 48$000
Sete garrotas, avaliadas em 28$000
Quatro bezerros, avaliados em 8$000
Quatro bois mansos, avaliados em 80$000
Vacum Quatro bois de lote, avaliados em 60$000
Dois novilhos, avaliados em 20$000
Dois ditos menores, avaliados em 18$000
Sete novilhotes capados, avaliado em 56$000
Doze garrotes, avaliado em 48$000
Seis bezerros, avaliados em 52$000
Sete bestas novas, avaliadas em 112$000
Duas éguas velhas, avaliadas em 20$000
Duas poldras do ano trazado, avaliadas em 24$000
Duas poldras do ano passado, avaliadas em 16$000
Duas ditas deste ano, avaliadas em 12$000
Seis cavalos capados, avaliados em 150$000
Dois ditos velhos, avaliados em 24$000
Cavalar
Um cavalo russo cardão em grão, avaliado em 30$000
Outro cavalo cardão em grão, avaliado em 30$000
Um cavalo alazão em grão, avaliado em 32$000
Um cavalo castanho pequeno, avaliado em 20$000
Um poldro de primeira muda, avaliado em 16$000
Três poldros do ano passado, avaliados em 30$000
Dois poldros deste ano, avaliados em 14$000
Ovelhum Trinta e três ovelhas, avaliadas em 16$500
172

Um escravo, crioulo, de nome Lourenço, de idade de


cinquenta anos, avaliado em 200$000
Um escravo, mulato, de nome Joaquim, de idade de
dezesseis anos, quebrado de uma virilha, avaliado em
250$000
Escravos Outro escravinho crioulo, de nome José, de idade de dois
anos, avaliado em 100$000
Uma escrava, cabra, de nome Cosma, de idade de quarenta
anos, avaliada em 300$000
Uma escrava, mulata, de nome Rosa, de idade de vinte
anos, doente do ar, avaliada em 250$000
Na Serra de plantar, denominada Santa Ana, uma parte de
terra, avaliada em 100$000
Uma parte de terra de criar, nos Sítios Totoró de Baixo e
Riacho Fundo, avaliado em 200$000
Benz de Raiz Uma morada de casas de tijolos, ainda por acabar, com
algumas benfeitorias, cita no mesmo Sítio Riacho Fundo,
avaliada em 250$000
Uma morada de casas de taipa velha, com aviamentos de
fazer farinha também velhos, avaliada em 10$000
Lourenço Xavier Paiva, deve a quantia de 85$600
Tenente Joaquim Bezerra Galvão, deve a quantia de
72$600
José Apolinário Dantas, deve a quantia de 40$000
João Alves Caiama, deve a quantia de 40$000
Inácio Ferreira de Macêdo Júnior, deve a quantia de
16$000
Gonçalo de Freitas Galvão, deve a quantia de 15$360
Manoel Ludovico, deve a quantia de 23$000
Dívidas Passivas
Joaquim de Santa Ana, deve a quantia de 23$000
Manoel Garcia Pinheiro, deve a quantia de 12$000
Tomaz Lopes Pequeno, deve a quantia de 7$500
José Januário, deve a quantia de 7$000
Antônio Pio Galvão, deve a quantia de 6$000
José Joaquim de Sousa, deve a quantia de 5$000
Francisco Antônio de Brito, deve a quantia de 4$480
João da Cruz, deve a quantia de 4$160
Silvestre Lopes Galvão, deve a quantia de 4$000
Monte Maior 3:636$640
Fonte: AVCCCN. 1ºCJ. Inventários post-mortem, Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo
(1839). FMDTS, Currais Novos/RN.

Através do inventário post-mortem de Diogo de Melo (1839), é possível


adentrarmos, pelo menos parcialmente, na sua fazenda, no interior da sua casa, levando
em consideração toda cultura material e de posses presentes nestes processos. Como
afirmou Muirakytan Macêdo, para o contexto da Ribeira do Seridó, com base nos
processos inventariais da Comarca de Caicó, um documento dessa natureza “é uma porta
173

aberta para espiarmos as atividades do campo, suas fazendas, gados, escravos,


instrumentos de trabalho”478.
Vimos que Diogo de Melo, ora qualificado como preto, ora nomeado como
crioulo, nas suas propriedades do Totoró de Baixo e Riacho Fundo, mantinha posses sobre
gados vacum, cavalares e ovelhum479, além de ter roçados para o plantio na Serra de Santa
Ana, dentre outras culturas, o cultivo de mandioca, tendo em vista seus aviamentos para
o fabrico de fazer farinha.
Na Ribeira do Seridó, soerguer uma fazenda contava com os braços e mãos da
população livre e escrava, face que nos espaços pastoris pessoas de diferentes qualidades
e condições se envolviam na labuta que envolvia terra e gado. Normalmente haviam
poucos escravos e muito gado para lidar, vaquejar, alimentar e tirar o leite480, como é
possível vermos nas posses de Diogo de Melo (1839), no qual haviam cinco escravos –
um destes tinha apenas dois anos de idade –, e, contando somente vacas, quarenta e nove
cabeças.
Muirakytan Macêdo, contando os 56 inventários trabalhados por ele em Rústicos
Cabedais, no período de 1737 até 1813, localizou apenas dois inventários em que o
montante contabilizou uma soma entre 3:000$001 e 4:000$000481. Por mais que o
inventário de Diogo de Melo (1839) ultrapasse este recorte temporal, é bastante
significativo que um ex-escravo tenha somado um cabedal de 3:636$640, adquirindo mais
de uma porção terra, sendo senhor de gados e plantador de lavouras.
O autor do livro acima referido também elucidou sobre os elementos que
compunham de forma mais significativa o cabedal dos habitantes do sertão do Seridó,
onde a tríade terra-escravo-gado, correspondeu por 79% do patrimônio dos inventariados.
Dessa forma, em se tratando do inventário de Diogo de Melo (1839), do Totoró, temos
estes três elementos presentes nas folhas do seu inventário.
Já discutimos sobre os processos de embranquecimento que os descendentes de
pessoas antes ligadas ao mundo da escravidão desfrutavam quando estes conseguiam
amealhar cabedal, gozar de certos privilégios e conveniências, e se inserirem numa rede
de estratégias e interesses. Desta forma, é importante mencionar que dos seis

478
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões
da Pecuária (Seridó – Século XVIII). Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015, p.82.
479
“Vacum”, “cavalar” e “ovelhum”, era uma nomenclatura usada, na época, para se referir,
respectivamente, a bois e vacas, cavalos e ovelhas.
480
Ibidem.
481
Ibidem.
174

descendentes diretos de Paula Maria da Conceição, qualificada como crioula, e Francisco


Pereira, apenas três foram registrados com suas qualidades, grafadas de forma contraída,
como “P”, provavelmente fazendo alusão ao qualificativo de pardo.
Tratando de Diogo de Melo, registrado como preto e também crioulo, e sua
esposa, Hilária Maria do Livramento, designada como preta, dos sete filhos do casal,
apenas um teve sua qualidade nomeada como “P”, os demais não foram registrados com
qualidades ou suas formas contraídas, ao lado dos registros.
Paula Maria da Conceição e Diogo de Melo, dois crioulos forros, desfrutaram de
privilégios, possibilitaram que facilidades e horizontes fossem alargados para os seus
descendentes e para o grupo que eles compunham, tendo em vista o microcosmo
construído por estes sujeitos não-brancos. Conforme Mônica Oliveira, para o contexto
das Minas Gerais, “mobilidade social se constituía em um aspecto preferencial do
comportamento dos homens coloniais e que não se dava por iniciativa meramente
individual, mas sim como uma decisão regulada pela família”482, pelos laços espirituais,
sanguíneos e afetivos que se construíam dentro de uma mesma rede, entre estes sujeitos
e destes para com outros.
Estes outros, muitas vezes, como aludido no parágrafo anterior, em se tratando
dos dois sujeitos no qual estamos debruçados – Paula Maria da Conceição e Diogo de
Melo –, eram os integrantes ou estavam envolvidos com os descendentes da família do
primeiro Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, como, por
exemplo, quando José Lopes Galvão e José Bezerra Galvão, apareceram como
testemunhas do casamento da filha de Paula Maria da Conceição, o matrimônio de Tereza
Maria de Jesus e José Patrício da Rocha483.
No batizado de João, filho de Diogo de Melo (1839) com Hilária Maria do
Livramento, as testemunhas foram Félix Gomes Pequeno e sua mulher Dona Ana Lins de
Vasconcelos.
No casamento que uniu os laços envolvendo os descendentes de Paula Maria da
Conceição e Diogo de Melo, por exemplo, os padrinhos de Diogo de Melo Rosa e Rita
Maria do Rosário foram José Lopes Pequeno e João Lopes Pequeno484.

482
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.226.
483
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 04v.
484
MSC, CPSJ. Livro de Casamento nº 03 (1821-1834). FGSSAS, 140-140v.
175

O envolvimento e ligação destes sujeitos com os Lopes Galvão, com o mundo das
pessoas consideradas brancas e livres, possuidoras de prestígio social e político, serviu
como possibilidade de ascensão social, de defesa, de referência sobre os indivíduos,
promovendo distinção social entre os próprios sujeitos não-brancos, recriando e
sedimentando relações hierarquizadas da sociedade colonial e imperial, fazendo e tecendo
suas próprias redes de solidariedade, criando “padrões diferenciados entre os próprios
homens de cor, tornando-se um processo de mudança social no todo, mas principalmente
no interior do grupo”485, como observado por Mônica Oliveira para os sertões das Minas
Gerais.
Os indivíduos não-brancos, seus descendente e os laços horizontais construídos
por eles e suas famílias, demonstram que o Totoró e suas adjacências se configuraram
enquanto uma espacialidade onde se conviveu toda sorte gente, pessoas de variadas
qualidades e condições, envolvendo indivíduos que não se misturaram e outros fruto de
mesclas, pluralizando matizes, promovendo outras experiências sociais e históricas neste
espaço, povoando e contribuindo para o embrião do que viria ser, futuramente, o
município de Currais Novos/RN.

485
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Viver de Favor em Terras Alheias: Trajetórias de Indivíduos e Grupos
de Egressos do Cativeiro (Minas Gerais, Século XVIII). In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre
(Orgs.). Micro-História: Um Método em Transformação. São Paulo: Letra e Voz, 2020, p.226.
176

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é certo, o que é sertão486

Investigar os sujeitos não-brancos, no Totoró, entre os séculos XVIII e XIX, é


perscrutar e atravessar, nem sempre de modo eficaz e eficiente, camadas de
silenciamentos. De modo superficial, foi preciso que rompêssemos os espaços,
representações e mobilizações do simbólico em se tratando do sertão, conceito dado e
usado para o interior da Capitania do Rio Grande, o Seridó. Neste local, visto e dito pela
óptica dos ocidentais, haviam se configurado localidades pagãs, vazias acerca dos dogmas
católicos e da fé cristã, havendo uma ausência de normas, leis e reis.
Do litoral, o lugar que os olhos não alcançavam, onde mais se imaginou do que se
soube ou quis saber, o sertão foi tido como espaço de fronteira, vazio dos referenciais de
mundo lusitanos, urgindo motivações e necessidades para se conhecer, chegar e
conquistar. O açúcar necessitou das amenidades da costa, de espaço para suprir o mercado
europeu, na mesma medida que o gado foi indispensável, força motriz que levou cana das
plantações para o engenho, destes para as naus coloniais. Este mamífero, entretanto,
também precisou de espaço, de terra resistente, não sendo mais possível coexistir criatório
e canaviais.
O conceito de sertão, provavelmente, não satisfazia os povos nativos localizados
para além da costa, habitantes autóctones destas plagas, sendo e estando no mundo de
acordo com seus preceitos, hábitos e costumes, incompreensíveis para os estranhos que
chegaram do outro lado do Atlântico. De toda forma, o sertão não apenas nomeava ou se
referia aos espaços desconhecidos ou ignotos, na maioria das vezes, menos importava
características geográficas acerca destes lugares, pois este termo também atravessou
corpos, transplantou desconhecimento e incompreensão nos indivíduos, adjetivou como
bravios, bárbaros e gentios.
Não se trata aqui de criar ou articular dualismos, de falar sobre “certo” ou
“errado”, entre “bom” e “mal”, pois como se soube, o sertão teve capacidade para abarcar
o conhecido e o desconhecido, vazio em algumas interpretações e abundante em outras,
teve potencial para ser tudo, ao mesmo tempo que nada. Desse modo, numa relação

486
PIMENTEL, Oswaldo Lenine Macedo. Meu Amanhã (Intuindo o Til). São Paulo/SP: Na Pressão,
1999. Disponível em: <https://open.spotify.com/album/18gEdE7EJMpVeBCSDZgOdG>. Acesso em: 21
set. 2022.
177

complexa, onde haviam interesses de todos os lados, nativos e colonos se enfrentaram,


combateram e promoveram o etnocídio das populações nativas, seja pelos interesses
econômicos dos Impérios Ultramarinos, do desejo e ambição de conhecer e conquistar o
interior do Novo Mundo, ou pelas “guerras justas”, também considerando camadas de
sertões intrínsecas ao espaço e aos corpos das populações nativas.
No apaziguar dos combates da Guerra dos Bárbaros, a partir do século XVIII,
permaneceram no sertão do Seridó índios, chegaram negros, Gentios de Angola e Mina,
também crioulos, assim como pardos, mulatos, cabras e brancos. Estes últimos, figuraram
por muito tempo como os protagonistas, colonizadores e povoadores do Seridó,
responsáveis por criar e forjar este território e suas gentes. Intelectuais como José Augusto
(2002 [1940])487, Manoel Dantas (2001 [1941])488, José Adelino Dantas (2008 [1962])489
e Olavo de Medeiros Filho (1981)490, herdeiros de uma tradição historiográfica do século
XIX, pautada nas premissas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
perpetuaram e cristalizaram nos seus escritos essas noções, dos homens brancos e dos
seus grandes feitos.
No Totoró, gérmen do atual município de Currais Novos/RN, estes vanguardistas,
colonizadores e semeadores, já haviam sido apontados pelos autores acima, e foram
personagens de apreço e maior dedicação pelos eruditos que se preocuparam em escrever
especificamente sobre essa cidade, dentre os quais José Bezerra Gomes (1975)491,
Celestino Alves (1985)492, Antônio Quintino Filho (2009 [1987])493 e Joabel Rodrigues
de Souza (2008)494, deram corpo, feição e cor para Cipriano Lopes Galvão e Dona
Adriana de Holanda e Vasconcelos, sendo este casal e seus descendentes, os supostos e
únicos habitantes e povoadores das terras do Totoró.
Seria injusto não mencionar fissuras e brechas existentes nas obras supracitadas,
que apesar de terem resguardado maior dedicação, atenção e protagonismo para os
patriarcas brancos, lusos ou luso-brasílicos que habitaram o Seridó, também fizeram
menções para pessoas não-brancas residentes nestas terras, como nos escritos de

487
AUGUSTO, José. Famílias Seridoenses. Natal: Sebo Vermelho, 2002 [1940].
488
DANTAS, Manoel. Homens de Outr’ora. Natal: Sebo Vermelho, 2001 [1941].
489
DANTAS, José Adelino. Homens e Fatos do Seridó Antigo. Natal: Sebo Vermelho, 2008 [1962].
490
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1981.
491
GOMES, José Bezerra. Sinopse do Município de Currais Novos. Natal: Gráfica Manimbu, 1975.
492
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
493
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
494
SOUZA, Joabel Rodrigues de. Totoró, Berço de Currais Novos. Natal/RN: EDUFRN, 2008.
178

Celestino Alves (1985)495 e Antônio Quintino Filho (2009 [1987])496. Este último,
também, responsável por problematizar o vanguardismo da família Lopes Galvão no
tocante ao Totoró. Essas obras, possíveis no seu tempo, espaço e contextos de produção
dos seus autores, foram os primeiros escritos que se dedicaram em contar o Seridó e, mais
especificamente, o Totoró e Currais Novos/RN; sem elas, provavelmente este trabalho
não existiria, ou seria mais dificultoso seu nascimento e escrita.
Pretendemos, desta forma, expandir noções e percepções que vigoraram e ainda
vigoram, no tocante ao Seridó e ao Totoró, sobre suas histórias e suas gentes. De igual
modo, também nos situamos em um contexto de produção historicizado, no qual visamos
contribuir com escritos acadêmicos recentes acerca destes espaços, trilhados
anteriormente por Maria Regina Mendonça Furtado Mattos497, Douglas Araújo498, Olívia
Morais de Medeiros Neta499, Helder Macedo500, Muirakytan Macêdo501, Ariane
Pereira502, Maiara Araújo503 e Isac Medeiros504.
A última camada dos silenciamentos que tentamos romper, foi na investigação das
trajetórias e das vidas de pessoas não-brancas situadas no Seridó, em um espaço
localizado na Ribeira do Acauã, o Totoró, entre os séculos XVIII e XIX. Estes sujeitos,
representados e qualificados como índios, cabras, mulatos, Angolas, crioulos, Minas,

495
ALVES, Celestino. Retoques da História de Currais Novos. Natal: Fundação José Augusto, PMCN,
1985.
496
QUINTINO FILHO, Antônio. História de Currais Novos. 2. Ed. Recife, Editora Universitária da
UFPE, 2009 [1987].
497
MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890: Sertão do Seridó – Um
Estudo de Caso da Pobreza. 1985. 247f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1985.
498
ARAÚJO, Douglas. A Morte do Sertão Antigo no Seridó: o Desmoronamento das Fazendas
Agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-1990). 2003. 225f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
499
MEDEIROS NETA, Olívia Morais de. Ser(Tão) Seridó em Suas Cartografias Espaciais. 2007. 119f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
500
MACEDO, Helder Alexandre de. Populações Indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte: História
e Mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011; MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras Famílias do
Seridó: Genealogias Mestiças nos Sertões do Rio Grande do Norte (Séculos XVIII-XIX). Curitiba/PR:
CRV, 2020.
501
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Penúltima Versão do Seridó: Uma História do Regionalismo
Seridoense. EDUFRN: Natal; EDUEPB: Campina Grande, 2012; MACÊDO, Muirakytan Kennedy de.
Rústicos e Cabedais: Patrimônio e Cotidiano Familiar nos Sertões da Pecuária (Seridó – Século XVIII).
Natal: Flor do Sal: EDUFRN, 2015.
502
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em Ação na Comarca do Príncipe: Província do Rio Grande
do Norte. 2014. 157f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014.
503
ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas Pagas e Ordenanças: Perfil Social dos Militares da Capitania do Rio
Grande (Séculos XVII-XIX). 2019. 234f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2019.
504
MEDEIROS, Isac Alisson Viana de. Matriz, Capelas e Desobrigas: Um Olhar Sobre a Cristianização
do Espaço da Freguesia do Seridó (1788-1838). 2020. 289 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2020.
179

pardos, negros, caboclos e mestiços de pardo e preto, fruto do fenômeno das dinâmicas
de mestiçagens, foram nomeados, classificados e hierarquizados, seja por suas
ascendências ou descendências familiares, seja por, dentre outros, sua fisionomia, cor,
ofício ou condição.
O uso destas qualidades foi algo comum, estava presente nos interiores das casas,
das famílias e nas escravarias de um mesmo senhor. Esse fenômeno foi responsável por
forjar um universo social múltiplo e generalizante, onde, provavelmente, todos exerciam
a tarefa de distinção e qualificação, mesmo que essas pessoas e seus grupos operassem
essas ferramentas em modos e intensidades diferentes, a partir de motivações distintas. O
que importa sabermos, é que não foi algo restrito para um determinado grupo, usado de
um para outro, mas era sabido por eles, adotado, disseminado e, muitas das vezes,
valorado.
O léxico das qualidades e o fenômeno das mestiçagens, por mais que tivesse sido
adotado e usado pela maioria das pessoas, agenciou e possibilitou que representantes do
Estado, da Igreja e da Justiça, usufruíssem do seu uso, numa tentativa de compreensão e
organização daquela sociedade, através dos exercícios qualificativos, que poderia contar
com inúmeras mãos, sejam eles os juízes, inventariantes, louvados, partidores, padres,
escrivães e tabeliães.
É certo que esse processo não aconteceu somente enquanto um qualificava o
outro, mas, também, como ele, possivelmente, se autodenominava. Dinâmicas de
mestiçagens e qualidades, se comportaram a partir de especificidades locais e temporais,
mas também contaram e estiveram envoltas em relações de poder, interesses e estratégias,
levando em consideração que um indivíduo podia alterar sua adjetivação ao longo da vida
e/ou podia prover seus descendentes e pessoas próximas de facilidades e conveniências.
Nomear o novo nos domínios espanhóis e portugueses, no contexto da colonização
moderna, partiu da necessidade dos agentes históricos em compreenderem, organizarem,
dividirem e classificarem os indivíduos. Talvez, e só talvez, o fenômeno das mestiçagens,
em se tratando de lugares e de pessoas que estavam atreladas e atravessadas pelo conceito
de sertão, tenha se dado e tenha sido empregado de modo mais complexo e denso do que
em outras áreas coloniais. Ora, qualidade e dinâmicas de mestiçagens se configuraram
enquanto processos voláteis e maleáveis, e se considerarmos as representações e noções
mobilizadas pelo conceito de sertão, revestimos algo profundo com uma noção
igualmente melindrosa, pois do sertão não se teve escapatória, ele esteve incrustado no
chão e nos corpos dos indivíduos.
180

O que foi certo e o que foi sertão, quando tratamos do fenômeno das mestiçagens,
do léxico qualificativo, e das formas das pessoas serem representadas e se representarem?
Neste momento, não temos respostas, mas sabemos que estes fenômenos e estes conceitos
compuseram uma tessitura social, política, econômica e religiosa complexa e densa, em
se tratando do sertão do Seridó e do lugarejo que foi do nosso primordial interesse neste
estudo, o Totoró dos séculos XVIII e XIX.
Os sujeitos não-brancos, localizados nesse espaço e suas adjacências, foram
responsáveis por chegarem, se assentarem e povoarem este chão com seus descendentes,
legando suas formas de ser e estar naquela dada sociedade, pluralizando fenótipos e
espaços, antes ditos e circunscritos equivocadamente somente para família e descendente
de Cipriano Lopes Galvão e Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos.
Conquanto este casal não fosse os únicos brancos situados no Totoró dos séculos
XVIII e XIX, buscamos aqui, reconstruir outras famílias e trajetórias que estiveram
situadas neste território, silenciadas pelos escritos dos eruditos anteriormente
mencionados, de pessoas não-brancas cativas, como os arranjos familiares da mulata
Inácia, da parda Tereza, da crioula Maria, da mulata Leonor, do casal de crioulos Vicente
e Maria, do casal de mulatos Agostinho e Maria, da mulata Joana, da cabra Tereza, dos
Gentios de Angola José e Domingas, da parda Josefa, do casal formado pelo índio Luiz e
da parda Josefa, e dos cabras João Tavares e Vicência.
Essas pequenas genealogias, constituídas a partir do cativeiro, de pessoas que
foram escravizadas, são encabeçadas, em sua maioria, por mulheres, tendo em vista o
silenciamento e ocultamento dos pais destes indivíduos, seja por estarmos falando de
relações não oficiais pela visão cristã, por contatos forçados, ou por esses pequenos
grupos familiares terem se originado do universo da escravidão.
Apesar disto, os pais e os frutos destas uniões, conseguiram constituir família,
apesar das suas condições de sujeitos escravizados. Essa rede de solidariedade, face o
contexto em que ela foi formada, foi importante para estes grupos, uma vez que eles
poderiam contar uns com os outros para amenizar o cotidiano de trabalho forçado, na
busca de estratégias e concessões que pudessem promover movimentações numa
sociedade rigidamente hierarquizada, que se não assistissem os pais, pelo menos
beneficiariam seus filhos.
Além destes, foi possível percebermos trajetórias de pessoas não-brancas e
formações de microcosmos sociais a partir de suas relações espirituais, sanguíneas e
afetivas, como nos casos de Miguel Figueira Galvão e Maria Madalena da Conceição,
181

José Lopes Galvão e Paula Barbalho de Vasconcelos, Francisco Pereira e Paula Maria da
Conceição, e Diogo de Melo com Hilária Maria do Livramento.
Vimos que a partir do processo de alforria, da conquista da carta de liberdade,
essas pessoas conseguiam transitar com maior mobilidade, se inserirem socialmente de
modo mais eficaz, e até mesmo desfrutarem de ascensão social. Tal perspectiva é
demonstrada na formação e constituição dos arranjos familiares e dos microcosmos
sociais, capazes de aumentar o nível de interação e convivência entre os indivíduos e os
grupos, estarem localizados socialmente e comporem uma rede de solidariedade, que
poderia fornecer proteção, referências, benesses e todo um sistema de apoio para os
sujeitos não-brancos.
Os indivíduos e os grupos não-brancos situados no Totoró e suas adjacências,
constituíram família, participaram dos ritos católicos coloniais, como o casamento, o
batismo, e enterram seus entes nos templos religiosos deste território. Essas pessoas não
eram e não passaram despercebidas naquele dado tempo e espaço, estavam presentes nos
interiores das casas senhoriais, na cozinha e no preparo das comidas, transitando entre
cômodos e cumprindo os afazeres domésticos, ou até mesmo alimentando os filhos dos
senhores com seus leites maternos.
Aravam o chão, plantavam e cuidavam dos roçados, ao mesmo tempo que tangiam
e vaquejavam os bois, os alimentavam, tiravam leite e faziam inúmeros objetos para
diferentes usos com seus couros. Essas pessoas se encontravam nas estradas e nos
caminhos do Totoró, nas missas das capelas, dividiam o mesmo teto, mesma mesa e
comida, o fogo e cama, sonhos, desejos e esperanças.
O Totoró e seus arredores não foram espaços somente de pessoas brancas ou dos
Lopes Galvão e seus descendentes, como se compreendeu por muito tempo através dos
livros daqueles eruditos que anteriormente mencionamos. Tampouco foi um território
formado apenas por pessoas não-brancas, não foi sobre isso que tratamos. Falamos sobre
uma localidade onde pessoas que não se misturaram, conviviam com outras provindas de
mesclas.
Estes grupos, no dia a dia, além de dividirem os mesmos espaços, trabalharem
juntos, conversavam uns com outros, tinham trocas de experiências e mantinham relações
de interesses, de poder, com determinadas finalidades. Apesar disto, é sabido que os
sujeitos não-brancos, sobretudo os que se encontravam na situação de escravizados,
foram forçados física e emocionalmente, viviam em condições insalubres e precárias, e
conviviam diariamente com os olhos e os lápis/penas que os viam e registravam enquanto
182

diferentes, socialmente abaixo e inferiores, limitando suas capacidades e cerceando seus


horizontes.
Apesar disto, essas pessoas e seus grupos, não deixaram se limitar e cercear,
mesmo com suas qualidades e condições, que como sabemos, foram ferramentas que
promoveram distinções e segregações. Estes homens e mulheres, suas famílias e suas
redes de solidariedade, também protagonizaram suas histórias, por mais que tenhamos
apenas uma ou outra menção destes sujeitos.
Ao final deste texto, talvez tenhamos levantado mais perguntas do que poderíamos
responder, ou pelo menos responder satisfatoriamente. Não tivemos e não temos
pretensão de resolver tudo, de finalizarmos estes caminhos. Veredas que foram aqui
abertas, caminhos outros que surgiram no Totoró dos séculos XVIII e XIX, esperam ser
trilhadas por outros pesquisadores, outras pessoas, por outras gentes.
Neste Mesmo Chão, Outros Passos, foi uma tentativa de descaminharmos e
adentrarmos o chão do Totoró dos séculos XVIII e XIX, preocupados em sermos justos
e honestos com pessoas que ali estavam, viveram e passaram toda sua vida. O que
compreendemos hoje enquanto município de Currais Novos/RN, das pessoas que ali
estão, se deve ao fato destes outros sujeitos, que sempre estiveram presentes nestas terras.
183

FONTES

1 BIBLIOGRÁFICAS

1.1 Dicionário
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino Aulico, Anatomico,
Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Crítico, Chimico, Dogmatico,
Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero,
Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico, Hydrographico,
Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico,
Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico,
Ortographico, Optico, Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico,
Quidditativo, Qualitativo, Quantitutivo(sic), Rethorico, Rústico, Romano,
Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico,
Uranologico, Xenophonico, Zoologico: Autorizado com Exemplos dos Mehlores
Escritores Portuguezes, e Latinos; e Offerecido a El Rey de Portugal D. Joaõ V. Coimbra,
Collegio das Artes da Companhia de Jesu: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1712,
p.09-10. 8 v. Disponível em: <https://www.bbm.usp.br/pt-br/dicionarios/vocabulario-
portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/>. Acesso em: 30 set. 2022.

1.2 Inventário Turístico


TAVEIRA, Marcelo da Silva (Coord.). Inventário Turístico de Currais Novos - RN.
Currais Novos/RN: UFRN, 2019.

1.3 Sesmarias
Documentos citados por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Cronologia Seridoense.
Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-Un Rosado, 2002.

Sesmaria nº 28 – 1701, Capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo, Alferes Diogo Pereira


de Mendonça, João Batista de Freitas, Alferes Antônio Batista de Freitas e Antônio
Fernandes de Souza. p.20.

Sesmaria nº 48 – 1704, Dona Isabel da Câmara, Capitão Antônio de Mendonça Machado,


Alferes Pedro de Mendonça e Vasconcelos e Antônio de Carvalho. p.21.

Sesmaria nº 82 – 1709, Dona Joana da Câmara e Albuquerque, Antônio de Oliveira Ledo,


Tenente-Coronel Simão Alves de Vasconcelos, Alferes Antônio Batista de Freitas e
Antônio Fernandes. p.22

Sesmaria nº 245 – 1725, Capitão Antônio dos Santos Guimarães. p.30.

Sesmaria nº 257 – 1729, Capitão Antônio dos Santos Guimarães e outros. p.31.

Sesmaria nº 634 – 1737, Sargento-mor Cipriano Lopes Galvão e o Sargento-mor José


Lopes Galvão. p.37.

Sesmaria nº 635 – 1737, Sargento-mor Cipriano Lopes Galvão. p.37.


184

2 DIGITAIS

2.1 BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL DO BRASIL


ROSA, Jayme Santa. Homens do Seridó Antigo: Capitão-Mór Galvão. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=031151_03&pesq=Cipriano%2
0Lopes%20Galv%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pagfis=6656>. Acesso em: 24 set.
2021.

3 MANUSCRITAS

3.1 ARQUIVO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CURRAIS NOVOS

3.1.1 Fórum Desembargador Tomaz Salustino


Currais Novos/RN.

3.1.2 Inventários post-mortem, 1º Cartório Judiciário


Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Quitéria Lopes Correia e Manoel de Sá de Meneses.
Inventariante: Luciano Gomes de Lima. Serra do Cuité, 1788.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Francisca Xavier de Moura. Inventariante: José de


Freitas Leitão. Fazenda Totoró de Baixo, 1789.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário do Coronel Antônio Garcia de Sá Barroso.


Inventariante: Capitão Tomaz de Araújo Pereira. Povoação do Acari, 1793.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos.


Inventariante: Fazenda do Totoró de Cima, 1793.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Tereza Maria da Visitação. Inventariante:


Félix Gomes Pequeno. Fazenda do Totoró, 1793.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Manoel Rodrigues da Cruz. Inventariante: Dona


Tereza Maria José. Fazenda Jesus Maria, 1799.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Salvador de Souza Castro. Inventariante: Dona


Bernarda Roiz do Rosário. Sítio Riacho Fechado, 1807.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário de Dona Josefa Maria da Conceição. Inventariante:


José Lopes Galvão. Sítio Riacho da Areia de Baixo, 1813.

Caixa 01 (1788-1814). Inventário do Capitão-mor Cipriano Lopes Galvão. Inventariante:


Dona Vicência Lins de Vasconcelos. Fazenda do Totoró de Cima, 1814.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Cipriano Lopes Galvão. Inventariante: Dona Tereza


Maria de Jesus. Sítio São Bento, 1814.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de José Freire de Amorim. Inventariante: Josefa Maria


dos Prazeres. Sítio Santo André, 1817.
185

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Francisca de Jesus. Inventariante: Luiz de


Bulhões Júnior. Fazenda Jesus Maria, 1821.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Francisca Vieira de Santa Ana. Inventariante: Luiz


José Gomes Torres. Fazenda Olho d’Água, 1823.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de José Gomes Torres. Inventariante: Rita Maria de


Sena. Sítio Olho d’Água, 1826.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Izabel de Oliveira. Inventariante: Diogo Mendes de


Oliveira. Sítio Mulungu, 1824.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de João Lopes Galvão. Inventariante: Dona Joana


Francisca de Jesus. Fazenda da Cascavel, 1825.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Miguel Pinheiro Teixeira. Inventariante: Joaquim


Pinheiro Galvão. Sítio Cacimba do Meio, 1825.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Manoel Lopes Galvão. Inventariante: Dona Ana de


Araújo Pereira. Sítio Riacho da Areia, 1826.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Vicência Lins de Vasconcelos. Inventariante:


Gonçalo Lopes Galvão. Fazenda Totoró, 1828.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Antônio José da Silva. Inventariante: Izabel Rita de


Bulhões. Sítio Jesus Maria, 1829.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Maria Benedicta de Bitancourt. Inventariante:


Leonardo Pinheiro Teixeira. Sítio Riacho Fundo, 1830.

Caixa 02 (1814-1832). Inventário de Manoel de Luiz de Bulhões. Inventariante: Inês


Maria de Barros. Sítio Trapuá, 1831.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Ana Gertrudes de Jesus. Inventariante: João Batista


dos Santos Júnior. Sítio Mulungu, 1837.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Ana Maria da Circuncisão. Inventariante: Manoel


Lopes Pequeno. Sítio Mulungu, 1837.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Ana Tereza de Jesus. Inventariante: Joaquim Manoel


de Vasconcelos. Sítio Santa Ana, 1837.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Diogo de Melo. Inventariante: Hilária Maria do


Livramento. Sítio Totoró de Baixo, 1839.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Luiz Rodrigues da Silva. Inventariante: Antônia


Maria da Conceição. Sítio Maracajá, 1840.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Dona Ana de Araújo Pereira. Inventariante:


Bartolomeu Medeiros Galvão. Sítio Riacho da Areia, 1841.
186

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno Júnior. Inventariante: Dona


Rita Maria de Jesus. Fazenda Totoró, 1842.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Ana Maria de Jesus. Inventariante: Manoel


Rodrigues da Cruz. Sítio São Bento, 1844.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Antônio José Ferreira. Inventariante: Mônica


Francelina de Jesus. Sítio São Bento, 1844.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Félix Gomes Pequeno. Inventariante: Dona Ana


Lins de Vasconcelos. Sítio Totoró, 1845.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de João Bezerra Galvão. Inventariante: Reverendo


Joaquim Galvão de Medeiros. Fazenda São Bento, 1845.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Alexandre Freire de Andrade. Inventariante: José


Freire de Amorim. Sítio Santo André, 1846.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Ana Maria do Rosário. Inventariante: Capitão


Gonçalo Lopes Galvão. Povoação de Currais Novos, 1846.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Bartolomeu de Medeiros Galvão. Inventariante:


Luiz de Medeiros Galvão. Sítio Areia, 1846.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Cipriana Joaquina de Medeiros. Inventariante:


Reverendo Joaquim Galvão de Medeiros. Fazenda da Areia, 1846.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Alexandrina Fausta da Fonsêca. Inventariante:


Joaquim Manoel da Fonsêca. Sítio Totoró, 1847.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Francisca Xavier de Lima. Inventariante: Francisco


Inácio Galvão. Fazenda São Bento, 1847.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Joana Batista de Jesus. Inventariante: Pedro Gomes


de Melo. Sítio Jesus Maria, 1847.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Joaquim José da Silva. Inventariante: Luiz de


Medeiros Galvão. Sítio Areia, 1848.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Manoela Joaquina de Medeiros. Inventariante: Padre


Joaquim Galvão de Medeiros. Sítio São Bento, 1848.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Maria da Conceição de Vasconcelos. Inventariante:


Félix Gomes Galvão. Sítio Cascavel, 1849.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Francisco Lopes Galvão. Inventariante: Ana


Joaquina de Vasconcelos. Sítio Totoró, 1851.
187

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Gonçalo da Costa Lima. Inventariante: Antônio


Vicente da Costa. Sítio Mulungu, 1851.

Caixa 03 (1837-1854). Inventário de Izabel Maria da Conceição. Inventariante: Manoel


Pinheiro Lima. Sítio Santa Rita, 1851.

3.2 BASÍLIA DE NOSSA SENHORA DA GUIA DO ACARI


Secretaria Paroquial, Acari/RN.

3.2.1 Livros de Registros Paroquiais, Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari


Livro de Batismo nº 02 (1814-1818)
Livro de Batismo nº 07 (1868-1874)
Livro de Casamento nº 01 (1835-1853)
Livro de Casamento nº 02 (1853-1871)

3.3 COMARCA DE CAICÓ


Cidade Judiciária de Caicó, Caicó/RN.

3.3.1 Livros de Notas, Vila Nova do Príncipe


Livro de Notas nº 02. Vila Nova do Príncipe, 1792-1799
Livro de Notas nº 03. Vila Nova do Príncipe, 1799-1802
Livro de Notas nº 04. Vila Nova do Príncipe, 1802-1805
Livro de Notas nº 05. Vila Nova do Príncipe, 1806-1809

3.4 LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA


LABORDOC – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ensino Superior
do Seridó, Campus de Caicó.

3.4.1 Fundo da Comarca de Caicó


Caicó/RN

3.4.2 Inventários post-mortem, 1º Cartório Judiciário


Caixa 321 (1737-1768). Inventário de José Gomes Nobre. Inventariante: Dona Tereza
José de Jesus. Fazenda dos Currais Novos, 1764.

3.5 PARÓQUIA DE SANTANA DE CAICÓ


Casa Paroquial São Joaquim, Caicó/RN.

3.5.1 Livros de Registros Paroquiais, Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do


Seridó
Livro de Batismos nº 01, 1803-1806
Livro de Batismos nº 02, 1814-1818
Livro de Batismos nº 03, 1818-1822
Livro de Batismo nº 04, 1825-1831
Livro de Casamentos nº 01, 1788-1809
Livro de Casamento nº 02, 1809-1821
Livro de Casamento nº 03, 1821-1834
Livro de Óbito nº 01, 1788-1811
Livro de Óbito nº 02, 1812-1838
188

3.6 PARÓQUIA DE SANT’ANA DE CURRAIS NOVOS


Currais Novos/RN

3.6.1 Secretaria Paroquial


Provisão Para se Erigir a Capela de Santa Ana da Fazenda de Currais Novos do Capitão-
mor Cipriano Lopes Galvão e sua Mulher, Para o Reverendo Pároco do Seridó. 1808.
189

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