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TRACTATUS PSALMI II (1-3)

TRATADO DO SALMO 2 (1-3)

HILARIUS PICTAVIENSIS (HILÁRIO DE POITIERS)


MAURI FURLAN (TRADUTOR)

H ILÁRIO DE POITIERS (Hilarius Pictaviensis) (ca. 315-367), oriundo do


centro-oeste da Gália, foi bispo e teólogo da Igreja Católica.
Fervoroso combatente contra o arianismo, heresia que negava o
dogma da Santíssima Trindade, escreveu, entre outros, De Trinitate, tratado pelo qual
recebeu o título de Doutor da Igreja pelo Papa Pio IX, em 1851. É considerado o
“Atanásio do Ocidente” – comparado ao teólogo e arcebispo Atanásio de Alexandria
(295-373) por sua luta contra a mesma heresia –, tendo defendido em toda sua obra a
divindade de Jesus Cristo. Entre 364 e 367, últimos três anos de sua vida, compôs
Tractatus super Psalmos, comentários a 58 salmos interpretados segundo o princípio
apresentado na Introdução (Instructio Psalmorum, 5), pelo qual todas as coisas que se
dizem nos salmos devem ser entendidas como referindo-se “ao conhecimento da
vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, à sua encarnação, paixão e reino, e à glória e
poder de nossa ressurreição”. Mas a mensagem divina das Escrituras depende de
interpretação e tradução.

Testemunhos como o de Tertuliano (ca. 160-220), em Aduersus Marcionem


(207), aludem à existência da Bíblia em latim desde o século II d.C., em crescente
número de traduções, que hoje são conhecidas singularmente como Vetus Latina em
diferença à tradução de Jerônimo (ca. 347-420), a Vulgata, que acabou se tornando o
texto oficial da Igreja Católica ocidental. Antes de Jerônimo, as traduções ao latim
eram feitas a partir de distintas fontes gregas, que, por sua vez, em relação ao Antigo
Testamento, eram traduções do texto hebraico, como a da Septuaginta, a de Áquila, a
de Símaco, a de Teodócio, a Quinta, a Sexta, e outras. As divergências entre as
traduções latinas apontavam também para as diferentes fontes gregas, e neste contexto
Hilário de Poitiers, em seu Tractatus super Psalmos, criticando traduções gregas e
latinas, vai apresentar seu grande argumento a favor da Septuaginta, cujo ponto
essencial é o de que os Setenta tradutores seriam os herdeiros de uma tradição oral
secreta que remontaria a Moisés. De posse desse segredo, munidos de um saber
espiritual, eles estariam mais aptos a traduzir ao grego a mensagem divina, dissipando

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as ambiguidades do hebraico. A coerência entre uma tradução feita antes da


encarnação do Senhor e o cumprimento de toda a lei pelo Senhor no mistério de sua
encarnação, paixão e ressurreição confere à tradução dos Setenta uma autoridade
indissolúvel (2,3). A Septuaginta é, pois, uma tradução fruto de uma compreensão
espiritual (138,32: doctrinam caelestem intellegere) e fiel ao hebraico (65,3: ex
hebraeo proximi), exata e possibilitadora do entendimento da palavra do profeta, é a
tradução verdadeira (66,4: ueram translationem), é o texto de referência capaz de
resolver todas as ambiguidades, dificuldades, obscuridades das traduções latinas.1

Ao iniciar o comentário ao Salmo 2, com o pretexto de esclarecer uma


divergência em torno à numeração atribuída a este salmo, é quando Hilário apresenta
seu argumento em defesa da Septuaginta, elegendo-a como o texto sagrado capaz de
dirimir dúvidas. O fato de Paulo Apóstolo ter-se referido ao salmo como sendo o
primeiro e não o segundo pode ser elucidado por uma dupla argumentação filológico-
teológica: os salmos são desordenados no original hebraico, e os Setenta tradutores,
instruídos na doutrina secreta mosaica, traduziram extinguindo todos os equívocos.
Por possuir o mistério mosaico, mesmo a Septuaginta trazendo um texto diferente do
hebraico, sua autoridade permanece indissolúvel.

Hilário defende, assim, a autoridade absoluta da Septuaginta, incisivamente ao


comentar o Salmo 2, o qual, desde o início da Igreja, depois da ressurreição de Jesus,
foi lido como um salmo messiânico, isto é, relativo ao futuro Messias, buscando
esclarecer o sentido de alguns acontecimentos essenciais de sua vida.2 Mais do que
revelar a concepção de tradução de Hilário de Poitiers, o Tractatus Psalmi II expressa
sua visão teológica com as filiações conceptuais.3 No entanto, Hilário revela que, com
relação às Escrituras, a possibilidade de uma tradução correta está limitada ao
reduzido número de descendentes daquela tradição espiritual mosaica, independente-
mente de critérios linguísticos, culturais ou outros. Para Hilário, os setenta anciãos de
Moisés de certa forma prefiguravam os pósteros Setenta tradutores. E mais do que
inspiração profética, foi a natureza espiritual da tradição oral recebida pelos Setenta
tradutores que atuou na tradução perfeita que executaram. À sua abordagem teológica
da tradução, submetem-se as questões filológicas.4

Mauri Furlan
maurizius@gmail.com
Prof. dr., Universidade Federal de Santa Catarina

Fonte: Migne, Jacques-Paul. “Tractatus super Psalmos”, pg. 230-231,


Patrologia Latina Tomus IX – Hilarius Pictaviensis

1
Milhau, Marc. “Le grec, une ‘clé pour l’intelligence des psaumes’. Études sur les citacions grecques
du Psautier contenues dans les Tractatus super Psalmos d’Hilaire de Poitiers”, in Revue des Études
Augustiniennes 36, 1990, 67-79.
2
Grelot, Pierre. El misterio de Cristo en los Salmos. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2000.
3
Kamesar, Adam. “Hilary of Poitiers, Judeo-Christianity, and the origins of the LXX: a translation of
Tractatus super Psalmos 2.2-3 with introduction and commentary”, in Vigiliae Christianae 59, 2005,
264-285.
4
Kato, Teppei. “Hebrews, Apostles, and Christ: Three Authorities of Jerome’s Hebraica Veritas”, in
Vigiliae Christianae 73, 2019, 420-439.

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TRACTATUS PSALMI II / TRATADO DO SALMO 2

Tractatus Psalmi II (1-3) Tratado do Salmo 2 (1-3)


(ca. 365)

1 Plures nostrum ambiguos facit aposto- 1 A autoridade apostólica deixa insegu-


lica auctoritas, utrum psalmum hunc co- ros a muitos de nós quanto a considerar
haerentem primo, et veluti primi extimum se este salmo é conexo ao primeiro, e
putent esse: an vero subjacentem et se- como que o final do primeiro, ou se de
cundum potius connumerent. Namque in fato antes numerá-lo como subsequente e
Actis Apostolorum primum hunc haberi segundo. Pois que nos Atos dos Apóstolos
atque esse, sub oratione beati Pauli ita [13,32-34] este é considerado e seria o
docemur: primeiro, somos assim instruídos nas
palavras de São Paulo:

Nosque vobis evangelizamus eam quae ad patres E nós vos anunciamos a promessa que foi feita a
facta est repromissio: hanc Deus explevit filiis nossos pais: Deus a cumpriu em vossos filhos,
vestris, suscitans Dominum nostrum Jesum, sicut ressuscitando nosso Senhor Jesus, assim como
in psalmo primo scriptum est, Filius meus es tu, está escrito no salmo primeiro, “Tu és meu Filho,
ego hodie genui te, cum suscitavit eum a mortuis eu hoje te gerei”, porque o ressuscitou dos
amplius non regressurum in interitum. mortos, não mais voltará a morrer.

Ob hanc ergo apostolicam auctoritatem Por causa então desta autoridade apostó-
errore scribentium fieri creditur, ut in lica, acredita-se haver erro dos copistas
ordine secundus psalmus iste numeretur, para que se enumerasse este salmo como
cum primus esse ipso doctore gentium segundo na ordem sucessiva, quando é
testante noscatur. Cognoscenda itaque ea reconhecido ser o primeiro com o próprio
ratio est, cur et a nobis secundus esse mestre dos gentios atestando. Por isso,
intelligendus sit, et ab Apostolo esse deve-se conhecer a razão por que é
primus ostensus sit. entendido por nós como sendo o segundo,
e é mostrado pelo Apóstolo como sendo o
primeiro salmo.

2 Mediis namque legis temporibus, 2 Pois que, nos tempos intermediários da


priusquam unigenitus Dei Filius, ante lei, antes que o Filho unigênito de Deus,
saecula manens Deus Verbum, homo permanecendo o Deus Verbo de antes dos
nasceretur, poscente rege Ptolemaeo séculos, nascesse como homem, setenta
septuaginta seniores libros Veteris Testa- anciãos traduziram os livros do Antigo
menti ex hebraeis litteris in graecas trans- Testamento das letras hebraicas às gregas
tulerunt. Erat autem jam a Moyse antea por solicitação do rei Ptolomeu II Filadel-
institutum, in synagoga omni septuaginta fo. Havia sido porém já anteriormente
esse doctores. Nam idem Moyses, quam- instituído por Moisés que em cada
vis Veteris Testamenti verba in litteris sinagoga haveria setenta doutores. Pois o
condidisset, tamen separatim quaedam ex mesmo Moisés, embora tivesse redigido
occultis legis secretiora mysteria septua- em texto as palavras do Antigo Testa-
ginta senioribus, qui doctores deinceps mento, anunciara, contudo, separadamen-
manerent, intimaverat. Cujus doctrinae te, de fontes ocultas, certos mistérios
etiam Dominus in Evangeliis meminit, mais secretos da lei a setenta anciãos,
dicens: para que permanecessem doutores da lei

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sucedendo-lhe. Daquela instrução tam-


bém se lembra o Senhor nos Evangelhos
dizendo:

Super cathedram Moysi, inquit, sederunt Na cátedra de Moisés sentaram-se os


Scribae et Pharisaei: omnia ergo quaecum- escribas e os fariseus: portanto, guardai e
que dixerint vobis, servate et facite; fazei tudo quanto eles vos disserem; não
secundum vero facta eorum nolite facere. façais, no entanto, segundo os feitos deles.
[Mt 23,2-3]

Doctrina ergo horum mansit in posterum A instrução deles permaneceu, pois, para
quae ab ipso scriptore legis accepta, in os pósteros, a qual tendo sido recebida
hoc seniorum et numero et officio conser- pelo próprio escritor da lei, foi conserva-
vata est. Hi itaque seniores libros hos da tanto em função quanto no número de
transferentes, et spiritalem secundum anciãos. Por isso estes anciãos, que
Moysi traditionem occultarum cognitio- verteram estes livros depois de terem
num scientiam adepti, ambigua linguae obtido a ciência dos conhecimentos ocul-
hebraicae dicta et varia quaedam ex se tos conforme a lei espiritual de Moisés,
nuntiantia, secundum virtutes rerum traduziram os termos ambíguos da língua
certis et propriis verborum significatio- hebraica, e que por si expressam certas
nibus transtulerunt, doctrinae scientia variações, com significações precisas e
multimodam illam sermonum intelligen- próprias das palavras segundo os valores
tiam temperantes. Et ex eo fit, qui postea das coisas, combinando a noção diversa
transtulerunt, diversis modis interpretan- das expressões com a ciência da doutrina.
tes, magnum gentibus attulerint errorem: E disso se dá que, os que posteriormente
dum occultae illius et a Moyse profectae traduziram, interpretando de maneiras
traditionis ignari, ea quae ambigue lingua distintas, induziram os gentios a grande
hebraea commemorata sunt, incerti suis erro: porque desconhecedores daquela
ipsi judiciis ediderunt. Ambiguitatis fonte oculta e da lei provinda de Moisés,
autem linguae hebraicae unum afferemus as quais foram lembradas de forma
exemplum, ex quo caetera istius modi ambígua na língua hebraica, divulgaram-
esse, atque ita ut sunt, intelligantur. nas eles mesmos incertos de seus
Bresith verbum hebraicum est. Id tres discernimentos. Contudo, traremos um
significantias in se habet, id est, in princi- único exemplo de ambiguidade da língua
pio, et in capite, et in filio. Sed transla- hebraica, a partir do qual outros deste tipo
tores septuaginta in principio ediderunt, possam ser entendidos assim como são.
caeteris diverse transferentibus: et secun- Bresith é uma palavra hebraica, que
dum hanc ambiguitatem haec ab illis in possui três significados em si, isto é, no
omni translatione est facta confusio. princípio, na cabeça, e no filho. Mas os
setenta tradutores escolheram no princí-
pio, de modo distinto de outras traduções;
e com esta ambiguidade, a confusão foi
produzida pelos outros em todas as
demais traduções.

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TRACTATUS PSALMI II / TRATADO DO SALMO 2

3 LXX interpretum auctoritas. Sed 3 A autoridade dos 70 tradutores. Mas a


perfecta horum septuaginta interpretum autoridade daqueles setenta tradutores
auctoritas manet. Primum, quod ante permanece absoluta. Primeiramente, por-
adventum corporalem Domini transtule- que traduziram antes do advento corporal
runt, nec adulatio interpretandi adhibita do Senhor, e nenhuma adulação é
tempori arguitur, tanto interiore interpre- demonstrada como tendo sido praticada
tationis aetate; dehinc quod illi ipsi no momento de traduzir, sendo a época
principes doctoresque synagogae, et da tradução em muito anterior; depois,
praeter scientiam legis per Moysen porque sendo eles mesmos autoridades e
quoque doctrina secretiori perfecti, non doutores da sinagoga, e, além do conhe-
potuerunt non probabiles esse arbitri cimento da lei mediante Moisés, também
interpretandi, qui certissimi et gravissimi instruídos na doutrina mais secreta, não
erant auctores docendi. Hi ergo psalmos puderam deixar de ser louváveis peritos
inter caeteros libros transferentes, et in em traduzir, que eram também os mais
numerum redegerunt, et in ordinem confiáveis e mais sérios mestres em ensi-
collocaverunt, et diapsalmis distinxerunt, nar. Estes, pois, traduzindo, entre outros
qui omnes secundum Hebraeos confusi et livros, os Salmos, reduziram-nos em
habebantur et habentur. Horum igitur número e os colocaram em ordem, e os
translationes Hebraeis tum lingua tantum separaram internamente com pausas
sua utentibus non erant necessariae. Ipsis musicais (diapsalmata), uma vez que
tamen omnibus diligenti et religiosa todos os salmos são e eram considerados
custodia observatis, quibus postea quam desordenados no texto hebraico. As
Dominus legem omnem sacramento et traduções daqueles, contudo, não eram
corporationis suae et passionis et necessárias aos hebreus, então usuários
resurrectionis impleverat, cum his libris apenas de sua língua. Porém, àqueles
quos regi iidem translatores ediderant mesmos constituiu-se, pelo privilégio da
collatis, et fideliter consonantibus doutrina e do tempo, uma autoridade
compertis, indissolubilis constituta est indissolúvel, uma vez que todas as coisas
privilegio doctrinae et aetatis auctoritas. foram observadas com diligente e religio-
sa vigilância, com as quais, depois que o
[...] Senhor completara toda a lei com o
mistério de sua encarnação, paixão e
ressurreição, estes livros, que os mesmos
tradutores publicaram para o rei, foram
comparados e suas consonâncias fielmen-
te estabelecidas.

[...]

***

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