Você está na página 1de 9

Mariologia

Pe. Dr. Françoá Costa


Ao Clero da Diocese de Franca – SP, 14 de Julho de 2020

Referências bibliográficas:

Françoá COSTA, Jesus Cristo, o único Salvador, São Paulo: Cultor de Livros, 2ª ed., 2020,
511 p.

Juan Luis BASTERO DE ELEIZALDE, María, Madre del Redentor, Pamplona: EUNSA, 3ª
ed, 2009,

Angelo GILA, Maria nelle origini Cristiane, Milano: Paoline, 2017, 504 p.

Entre as mulheres que se encontram aos pés da cruz (cf. Mc 15,40), João destaca
a presença de Maria e as palavras que Jesus disse à sua Mãe e ao discípulo
amado (cf. Jo 19,25-26). Além de ser um ato de piedade filial de Jesus – deixar
sua mãe amparada por alguém que lhe foi fiel até o fim, como João – essa cena
do Evangelho também nos mostra outras profundas realidades teológicas1.

Jesus chama Maria de “mulher” em lugar de “mãe”. E isso é de significado denso.


Nas bodas de Caná, Jesus também a tinha chamado “mulher” (cf. Jo 2,4). Na
origem da raça humana, quando Deus apresentou Eva a Adão, ele a chamou
“mulher”: “Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem” (Gn 2,23),
de Adão. Assim como São Paulo apresenta Cristo como Novo Adão (cf. Rm 5,12-
21), não é problema algum para João apresentar Maria como a Nova Eva, a
“mulher”.

Gn 3,15 fala da “hostilidade” entre a mulher e a serpente (diabo) e que a


linhagem da mulher esmagará a cabeça da serpente. Esclarece bastante a nota
a esse versículo da Bíblia de Jerusalém:

1
Para tratar esse tema, nos baseamos frequentemente em Joseph RATZINGER, Jesús de Nazaret.
Desde la entrada en Jerusalén hasta la Resurrección, o. c., p. 256-259.
“Este versículo (...) é um primeiro clarão de salvação, ou “Protoevangelho”. A
tradução grega, começando a última frase com um pronome masculino, atribui
essa vitória não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos filhos da mulher;
dessa forma é estimulada a interpretação messiânica já presente na tradição
judaica antiga, depois retomada e explicitada por muitos Padres da Igreja. Com
o messias, sua mãe é implicada, e a interpretação mariológica da tradução latina
ipsa conteret tornou-se tradicional na Igreja”2. Com o ipsa conteret, se entenderia
que Maria esmagaria a cabeça da serpente.

No primeiro livro da Bíblia aparece a inimizade da mulher e da serpente e no


último livro, o Apocalipse, aparece não somente a hostilidade, mas também a
vitória da mulher sobre a serpente (cf. Ap 12,1-17). Maria, para São João, é a
mulher forte que está de pé aos pés da cruz (cf. Jo 19,25). Para o discípulo
amado – João e cada cristão – é uma honra tê-la perto de si, recebê-la em casa
(cf. Jo 19,27).

Aos pés da cruz, a corredenção

Maria aos pés da cruz, de pé, é acontecimento que mostra a participação da


mulher na obra da redenção: a linhagem que esmaga a cabeça da serpente é
Jesus, e ela, Maria, não quer perder um só instante desse momento salvador. Ela
acompanha o seu Filho e, ao ver o amor e a coragem do Filho ao entregar-se
pela humanidade, une-se a ele obedecendo e amando. O Concílio Vaticano II,
depois de falar que a mediação de Maria não obscurece o único Mediador (cf. LG,
60), não deixou de falar dessa cooperação de Maria na obra da redenção:
A bem-aventurada Virgem, predestinada desde toda a eternidade, junto com a
encarnação do Verbo divino, para ser Mãe de Deus, foi na terra, por disposição
da divina Providência, a Mãe do Redentor divino, mais que ninguém sua
companheira generosa e a humilde escrava do Senhor. Concebendo a Cristo,
gerando-o, alimentando-o, apresentando-o no tempo ao Pai, sofrendo com seu
Filho que morria na cruz, ela cooperou de modo absolutamente singular, pela
obediência, pela fé, pela esperança e a caridade ardente, na obra do Salvador
para restaurar a vida sobrenatural das almas. Por tudo isso, ela é nossa mãe na
ordem da graça (LG, 61).

Para entender melhor como Maria participa ativa e decisivamente na salvação


redentora da humanidade, vejamos o que diz a Tradição através de S. Ambrósio:

2
BÍBLIA DE JERUSALÉM, nota a Gn 3,15.
O mal veio da mulher, igualmente o bem veio através da mulher. Por Eva caímos,
por Maria estamos de pé; por Eva estamos prostrados, por Maria levantados. Eva
nos levou à escravidão, Maria nos alcançou a liberdade. Eva, durante muito
tempo, manteve-nos escravizados; Maria nos restaurou. Eva nos causou a
condenação pelo fruto da árvore; Maria nos absolveu pelo fruto de outra árvore,
pois Cristo esteve pregado na cruz como um fruto em sua árvore3.

Do século X ao século XVII chamou-se Maria de “redentora”; para limitar esse


título, apareceu, no século XV, o título de “corredentora”. Contudo corredentora
aplicado a Maria não se fez comum até a primeira metade do século XX, utilizado
inclusive pelos Papas Leão XIII, Pio X, Pio XI e Pio XII. O título praticamente
desaparece nos anos anteriores e posteriores ao Concílio Vaticano II, ainda que
mais recentemente houvesse o desejo de que a Igreja proclamasse o dogma da
corredentora. A Congregação para a Doutrina da Fé deu resposta negativa a esse
desejo, já que aquilo que o título “corredentora” quer dizer já aparece em outros
títulos de Maria; também porque “corredentora” afasta-se da linguagem bíblica
e patrística e, portanto, pode provocar interpretações errôneas4.

No entanto, hoje em dia pensamos que se pode suavizar esse juízo, pois até
mesmo a linguagem espiritual da Igreja não teme chamar aqueles que estão
unidos a Jesus Cristo de “corredentores” nele e com ele. O mesmo Apóstolo Paulo
expressa essa realidade quando diz: “completo o que falta às tribulações de Cristo
em minha carne pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). Pelo sacerdócio
comum, todos somos chamados a ser corredentores com Cristo e, desta maneira,
colaborar efetivamente na obra da redenção5. Sendo assim, Maria, a discípula
fiel, por ser Mãe de Deus e estar sempre tão unida ao seu Filho, com maior razão,
pode ser corredentora: “De tal modo, juntamente com o seu Filho paciente e
moribundo, pela salvação dos homens, abdicou dos seus direitos maternos sobre
o Filho e o imolou, no que dela dependia, para aplacar a justiça de Deus, que se
pode com razão dizer que ela redimiu o gênero humano juntamente com Cristo” 6.

3
AMBRÓSIO, Sermo 45, 2; em Aurélio FERNÁNDEZ, Teología Dogmática. Curso Fundamental de
la Fe Catolica, o. c., p. 441.
4
Para essa parte mais histórica sobre a corredenção, veja Ib., p. 441-442.
5
São Josemaria Escrivá considera que o apostolado é corredenção: “Não são coisas compatíveis
viver segundo o Coração de Jesus Cristo e não nos sentirmos enviados, como Ele, peccatores
salvos facere (1 Tim 1,15), a salvar todos os pecadores, convencidos de que nós mesmos
necessitamos de confiar cada vez mais na misericórdia de Deus. Daí o desejo veemente de nos
considerarmos corredentores com Cristo, de salvar com Ele todas as almas, porque somos,
queremos ser ipse Christus, o próprio Jesus Cristo” (São Josemaria ESCRIVÁ, É Cristo que passa,
tradução de Emérico da Gama, São Paulo: Quadrante, 3ª ed., 2009, n. 120).
6
Bento XV, Carta Inter sodalicia, 22/03/1918, AAS 10 (1919) 182.
Bem unido ao tema da corredenção está o da mediação materna de Maria, e
assim como a corredenção encontra oposição, mais ainda a mediação7. Já vimos,
efetivamente, que mediação implica uma realidade ontológica: Jesus Cristo é
Mediador em sua humanidade, de maneira intrínseca; ele é Deus verdadeiro e
homem verdadeiro, e essa sua condição permite-lhe ser Mediador em sua
humanidade. Maria, ao contrário, não é Deus, é criatura e, portanto, estritamente
não pode ser meio entre Deus e os homens, pois participa da nossa mortalidade
e, enquanto vivia, não era eternamente feliz, por mais que não fosse miserável,
isto é, ela nunca foi pecadora. Por outro lado, afirmar a mediação de Maria parece
contradizer o texto de 1 Tm 2,15 segundo o qual há “um único mediador entre
Deus e os homens”, que é Jesus Cristo.

Em primeiro lugar, há que dizer que a finalidade da mediação é unir o homem


com Deus através da humanidade de Jesus Cristo. Mas, a humanidade de Jesus
Cristo é a realidade material que acolhe todos os seres humanos. Se bem é
verdade que antes de Jesus Cristo não houve mediadores, mas intermediários, a
partir do momento em que o Verbo encarnado une a si os seus discípulos em
união tão estreita a tal ponto de que se deve afirmar que nós somos o corpo de
Cristo (cf. 1 Cor 12,27), então é possível afirmar que nós somos, nele,
mediadores. Neste caso, podemos incluir a Virgem Maria. Contudo, no caso dela
há algo a acrescentar: o corpo físico de Jesus é criado a partir do dela. Isto é,
enquanto no antigo paraíso, o corpo da mulher fora tirado da realidade material
do homem, no novo paraíso, é o corpo do homem Jesus que foi tirado da
realidade material da mulher. Vistas as coisas neste prisma, não nos resulta difícil
ver uma influência material de Maria em toda a mediação de Jesus em sua
humanidade e intuir também a influência de Cristo em Maria durante os nove
meses que morou em suas entranhas puríssimas irradiando nela o seu mistério,
ao mesmo tempo que recebia dela sua própria humanidade.

Em segundo lugar, o fato de Maria ser medianeira não contradiz o texto de 1 Tm


2,5, já que estamos falando sempre de uma mediação em Jesus Cristo e
subordinada a ele. Se fôssemos estritos em afirmar a mediação de Cristo negando
a mediação de Maria, baseando-nos no texto de 1 Tm 2,5, também deveríamos
fazer o mesmo com o sacerdócio de Cristo: pois Jesus é o único sacerdote que
ofereceu de uma vez por todas o único sacrifício (cf. Hb 7,20-28) e, contudo, há
vários sacerdotes na Igreja que continuam atualizando o seu sacrifício na
celebração da Eucaristia. Assim como o entendimento da Igreja compreendeu
que existe uma participação capital no único sacerdócio de Cristo, pode

7
O Papa São João Paulo II tratou amplamente do assunto da mediação materna de Maria na sua
Encíclica Redemptoris Mater, de 1987. Leia especialmente a terceira parte, a partir do número 38
do documento: cf. http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-
ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html , visto em 25/04/2019.
perfeitamente desenvolver de maneira cada vez mais elevada o fato de que existe
uma mediação que participa na mediação do único Mediador. Mais ainda, não
vemos problema algum em afirmar que esta mediação se dá de maneira comum
em todos os cristãos ao participarem do Corpo de Cristo, que é a Igreja, com
também se dá, de maneira especial, na Virgem Maria, por sua união singular ao
Verbo encarnado.

São João Paulo II anota esse algo “especial” que tem a mediação materna de
Maria com as seguintes palavras:

Efetivamente, a mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e


possui um caráter especificamente maternal, que a distingue da mediação das
outras criaturas que, de diferentes modos e sempre subordinados, participam na
única mediação de Cristo; também a mediação de Maria permanece
subordinada8. Se, na realidade, «nenhuma criatura pode jamais colocar-se no
mesmo plano que o Verbo Incarnado e Redentor», também é verdade que «a
mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas uma
cooperação multiforme, participada duma única fonte»; e assim, «a bondade de
Deus, única, difunde-se realmente, de diferentes modos, nas criaturas» (LG, 62)”
(JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, 1987, n. 38).

Como a maternidade divina de Maria está ligada à sua mediação e por sua vez à
corredenção, vamos entender um pouco melhor o fato de Maria ser Mãe de Deus
para, posteriormente, tirar conclusões mais específicas quanto à sua
corredenção-mediação.

A maternidade divina e sua relação com as demais verdades


marianas

É bem sabido que o Concílio da maternidade divina foi o de Éfeso, ainda que
indiretamente. Vejamos um pouco sua história: Nestório (+451) era bispo de
Constantinopla, onde tinha chegado o prestígio da escola de Antioquia. O
Patriarca da “segunda Roma” sublinhava tanto a distinção das naturezas que
chegou a afirmar que em Cristo havia duas pessoas. A união do divino e do
humano em Cristo era considerada por Nestório como algo extrínseco e confuso.
Sendo assim, em Cristo, há duas pessoas: a divina e a humana, mas tão unidas
que formam uma espécie de uma única pessoa, constituindo certa pessoa de

8
Cf. a fórmula: de mediadora ad Mediatorem de S. Bernardo, In Dominica infra oct. Assumptionis
Sermo, 2: S. Bernardi Opera, V, 1968, p. 263. Maria, como um espelho límpido, reenvia para o
filho toda a glória e honra que recebe: Id., In Nativitate B. Mariae Sermo De aquaeductu , 12: ed.
cit., p. 283.
união. Essa maneira de pensar sobre Cristo levou-o a dizer que Maria não era
Mãe de Deus (Theotókos), mas tão somente (Christotókos), mãe da pessoa
humana de Jesus. Parece que o erro de Nestório foi porque ele pensava que toda
natureza constitui necessariamente uma pessoa. Ao contrário, a Igreja entendeu
esses conceitos (natureza, pessoa) no sentido comum, isto é, natureza é um
princípio de operações, mas quem possui o ser e pode atuar é a pessoa.

Talvez seja interessante recordar alguns conceitos que nos ajudem a


compreender melhor essa discussão:

 Essência: aquilo que faz com que uma coisa seja esta coisa e não outra,
trata-se do modo de ser de cada ente; o modo de ser da pessoa
humana, por exemplo, é como “animal racional”.
 Natureza: é a essência enquanto age de determinada maneira, isto é,
segundo sua maneira própria ou segundo sua natureza. Exemplo disso
é ver como os seres agem: os homens atuam como homens na sua
maneira de pensar e amar, os cachorros latem, os gatos miam.
Observar essas realidades de ação é ver como cada indivíduo age
segundo a sua própria natureza. Efetivamente, seria contrário à
natureza do cavalo voar, pois voar é uma atividade própria da natureza
das aves.
 Suposto ou indivíduo: sujeito concreto, individualizado; se for um
animal racional, suposto será sinônimo de pessoa (persona ou
hypostasis). João é um indivíduo da natureza humana, Paulo também
o é; diferenciados na sua individualidade, é comum entre eles a mesma
natureza humana.
 Relação real: quando duas realidades interagem e uma delas depende
da outra. Por exemplo, existe uma relação real entre os homens e Deus
porque os homens dependem de Deus. Quando não existe essa
dependência, diz-se que se trata de uma relação de razão. Por
exemplo, a relação que existe entre a essência de Deus e sua justiça é
de razão porque não há dependência entre Deus e sua justiça, mas
identificação total e, contudo, precisamos fazer essa distinção para que
possamos entender do que falamos.

Porém, voltando às disputas teológicas do século V, São Cirilo de Alexandria


(+444) reagiu contra a doutrina do bispo de Constantinopla. Ambos se
anatematizaram e a situação foi complicando. Teodósio II convocou então o
Concílio de Éfeso (431), presidido por Cirilo, no qual a doutrina de Nestório foi
condenada. O próprio Nestório, ao não aceitar a doutrina do Concílio, foi deposto
da sua Sede com a aprovação do Papa Celestino e recluído num mosteiro.
Resumidamente, segundo o Concílio de Éfeso, Cristo é uma só pessoa, ele é
perfeito Deus e perfeito homem por causa da união da natureza divina com a
natureza humana; Maria é Mãe de Deus (Theotókos) porque gerou o Verbo, não
segundo a divindade, mas segundo a sua humanidade; Cristo é o Filho de Deus
que se fez homem, ele não é um homem divinizado ou adotado por Deus; a carne
de Cristo é vivificadora por ser a carne do Verbo; Cristo deve ser adorado com
uma única adoração (isto é, não deve ser adorado como Deus e separadamente
como homem), ao Verbo se atribuem também as operações e paixões humanas
de Jesus9. O que aqui sintetizamos, se poderá ler mais abaixo na famosa Segunda
Carta de Cirilo a Nestório, escrita em fevereiro do ano 430, texto este que foi lido
e aprovado no Concílio de Éfeso, no dia 22 de junho do ano 431.

Santo Tomás de Aquino, antes de argumentar, afirma que o ensinamento de


Nestório, que diz que Jesus é “chamado Filho de Deus, não porque seja
verdadeiro Deus, mas devido à inabitação n’Ele do Filho de Deus que fez pela
graça”, contradiz a Sagrada Escritura. Logo depois, explica o seguinte: “com
efeito, a esta união de Deus com o homem o Apóstolo chama aniquilamento,
conforme se lê: ‘Ele, estando na forma de Deus não usou de seu direito de ser
tratado como um Deus, mas despojou, tomando a forma de escravo’ (Fil 2,6-7).
Não há, porém, aniquilamento de Deus por in-habitar pela graça em uma criatura
racional. Se o houvesse, o Pai e o Espírito Santo também seriam aniquilados
porque ambos in-habitam na criatura racional pela graça, conforme o Senhor
refere-se a Si mesmo e ao Pai: ‘Viremos a ele e nele faremos morada nossa’ (Jo
14,23), e, o Apóstolo, ao Espírito Santo: ‘O Espírito de Deus habita em nós’ (I
Cor 3,16)”10.

O Concílio de Éfeso “assenta os seus ensinamentos na união das duas naturezas


de Jesus Cristo num único sujeito pessoal, na união segundo a hypóstasis: trata-
se de uma união incompreensível, mas que é real e ontológica. O Verbo na
verdade tornou sua a natureza humana, de tal forma que lhe pertence realmente,
não só moralmente. O Verbo é o único sujeito de todos os atos divinos e humanos
de Cristo, como ensina o símbolo de Nicéia (o filho de Deus eterno, pelo qual se
fizeram todas as coisas, encarnou de Maria Virgem, foi crucificado, foi sepultado,
e ressuscitou ao terceiro dia etc.)”11.

A partir da afirmação dogmática de Maria como Mãe de Deus, pode-se afirmar


todas as demais verdades sobre Nossa Senhora: ela é a Sempre Virgem por que
é a Mãe de Deus; é a Imaculada porque é a Mãe de Deus; é Assunta ao céu por

9
F. OCÁRIZ, L. F. MATEO-SECO, J. A. RIESTRA, El misterio de Jesucristo, o. c., p. 152-156.
10
TOMÁS DE AQUINO, Compêndio de Teologia, 203,2, o. c., p. 213-214.
11
Vicente Ferrer BARRIENDOS, Jesus Cristo nosso Salvador, o. c., p. 67.
que é Mãe de Deus. Desta maneira, a maternidade divina é a verdade central em
torno da qual todas as demais se resolvem.

A piedade mariana

Após a Ave-Maria, em sua primeira parte composta a partir dos textos de Lc 1,28.
42, a oração mais antiga a Maria é Sub tuum praesidium (À vossa proteção
recorremos, Santa Mãe de Deus...), que remonta ao século III. A mais bela
composição mariana da Igreja bizantina, o akathistos (“cantato de pé”) é do
século V, canta o mistério da encarnação a partir da perspectiva de Maria.
Especialmente a partir do século VIII são introduzidas muitas festas marianas
tanto no Oriente quanto no Ocidente. Em torno ao ano 800 se realiza a tradução
latina do Akathistos, a qual foi popularizada. O hino Ave, maris stella, que exalta
a maternidade virginal de Maria é, provavelmente, uma composição do século
VIII.
Um dos primeiros edifícios cristãos em honra de Santa Maria foi a “Igreja de
Santa Maria”, feita pelo patriarca de Alexandria, Teona (+307). Flavio Cresconio,
poeta africano do século VI, elevou a seguinte oração à Maria: “E tu, o Geradora
de Deus, estende a tua mão sobre mim e ajuda-me; tenho um grande sofrimento
e estendo meus braços débeis para suportar os pesos”. Santo Idelfonso de
Toledo, no seu Tratado sobre a Virgindade de Maria, reza: “Eu te peço e te
suplico, Santa Virgem Maria, para que eu acolha Jesus através do mesmo Espírito
que operou em ti e do qual gerastes Jesus”.
Já no começo do século VII era rezada a primeira parte da Ave-Maria, aquela que
vem de Lc 1,28. 42 como espécie de Saltério dos Leigos, os quais, aos não
saberem ler, imitavam os monges rezando por vezes 150 Pai-Nossos, por vezes
150 Saudações Angélicas; nos séculos IX e X acrescentou-se o nome de Jesus no
final dessa primeira parte da oração: “Bendito fruto do teu ventre, Jesus”. Essa
devoção se consolidou especialmente a partir do século XIII, bem unida à história
de São Domingos de Gusmão e ao combate à heresia dos cátaros, os quais
afirmavam a existência de dois deuses: um mal, o criador da matéria, e um bom,
o criador do espírito. Os cátaros ou albigenses eram particularmente endurecidos
em seus erros e, portanto, muito difíceis de se converterem.
São Domingos de Gusmão (1170-1121), preocupado com essa heresia e
procurando combatê-la por todos os meios, refugiou-se em oração por três dias.
No último dia de oração intensa, apareceu-lhe Nossa Senhora acompanhada de
três anjos. A Mãe de Deus mostrou-lhe então o seu Saltério como arma poderosa
para vencer a heresia: “Querido Domingos – perguntou-lhe Nossa Senhora – você
sabe qual é a arma que a Santíssima Trindade quer usar para mudar o mundo?
Quero que saiba que neste tipo de guerra a arma sempre foi o Saltério Angélico
– isto é, as palavras do Arcanjo Gabriel a Nossa Senhora na Anunciação –, que é
a pedra fundamental do Novo Testamento. Portanto, se você quer converter
estas almas endurecidas e ganhá-las para Deus, difunda o meu saltério”. Nessa
visão, Maria Santíssima teria mostrado o Terço a São Domingos que, a partir
daquele momento ficou conhecido como o “Saltério de Nossa Senhora”. Rezado
aquele Terço por três vezes, os fiéis rezavam 150 saudações angélicas e, desta
maneira, imitavam os monges que rezavam os 150 salmos. Mais tarde, Nossa
Senhora apareceu novamente ao Beato Alano de Rupe (1428-1475), também
dominicano, e pediu-lhe para avivar a devoção ao Saltério mariano. Foi Alano
quem criou as agrupações de cada 50 Ave-Marias como Mistérios Gozosos,
Dolorosos e Gloriosos e acrescentou os Pai-Nossos no início de cada dezena.
Estava, portanto, estruturado o Rosário tal como o conhecemos atualmente, com
a exceção da segunda parte – “Santa Maria, Mãe de Deus...” – e dos Mistérios
Luminosos acrescentados por São João Paulo II, em 2001. A segunda parte da
Ave Maria foi introduzida em torno ao ano 1480.

Você também pode gostar