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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

Mauri Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo

Lawrence Humphrey compendiou a reflexão renascentista sobre a arte de traduzir produzindo o


ingente tratado Interpretatio linguarum (Tradução de línguas), publicado em 1559. Dividido em
três livros, com mais de 600 páginas, o tratado do teólogo puritano inglês, que, apesar de sua
reconhecida importância, nunca foi reimpresso, nem recebeu edição crítica ou tradução integral a
qualquer língua até hoje, é aqui apresentado em tradução ao português brasileiro. Abdicando de boa
parte dos inúmeros exemplos oferecidos por Humphrey, selecionamos para esta publicação excertos
do primeiro livro, o mais teórico de seu tratado, intitulado De ratione interpretandi (Da arte de
traduzir).

Palavras-chave

Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, teoria da tradução

Mauri Furlan é professor de Latim no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC.


Possui Doutorado em Filologia Clássica pela Universidad de Barcelona (2002), Mestrado em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), graduação em Letras–Licenciatura
em Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduação em Jornalismo pela
Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso/RJ (1989). Professor Associado da
Universidade Federal de Santa Catarina, atua na área de Letras, com ênfase em Teoria da Tradução
da Antiguidade ao Renascimento, e Língua Latina. É fundador das revistas acadêmicas da área dos
Estudos da Tradução Cadernos de Tradução e Scientia Traductionis. Coordena o Centrum
Inuestigationis Latinitatis, na UFSC, e traduz.

MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016


Interpretatio Linguarum, the most thorough Renaissance treatise on translation
Mauri Furlan
Federal University of Santa Catarina

Abstract

Lawrence Humphrey summarized the thought of the Renaissance on the art of translating in his
extensive treatise Interpretatio linguarum (The translation of languages), published in 1559.
Divided into three books and with more than 600 pages, the treatise written by the English Puritan
theologian, which, despite of its great importance, has never been reprinted, nor received a critical
edition or an integral translation into any language up to this day, is here presented in a translation
into Brazilian Portuguese. Forgoing much of the many examples offered by Humphrey, we have
selected excerpts from the first book, the most theoretical in his treatise, entitled De ratione
interpretandi (On the art of translating).

Keywords

Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, translation theory

Mauri Furlan teaches Latin in the Department of Vernacular Language and Literature at UFSC. He
holds a Ph.D. in Classical Philology from the University of Barcelona (2002), a Master Degree in
Literature from the Federal University of Santa Catarina (1998), a degree in Letters - German, from
the Federal University of Santa Catarina (1993) and a degree in Journalism from the Faculty of
Communication and Tourism Hélio Alonso / RJ (1989). He is Associate Professor at Federal
University of Santa Catarina, working in the area of Letters, with an emphasis on Theory of
Translation from Antiquity to Renaissance and Latin Language. He is the founder of the academic
journals in the area of Translation Studies Cadernos de Tradução and Scientia Traductionis. He
also coordinates the Centrum Inuestigationis Latinitatis, at UFSC, and works with translation.

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

AWRENCE HUMPHREY (1527-1590), erudito e teólogo puritano inglês,


escritor prolífico, abordou temas relativos à teologia, à patrística, à
filologia clássica e à tradução. Foi diretor do Magdalen College (1561) em
Oxford, e decano de Gloucester (1571) e Winchester (1580). Das
biografias a seu respeito sabemos que, em sua formação acadêmica,
contam-se os títulos de Bacharel (1548) e Mestre (1549) em Artes Liberais,
Bacharel (1552) e Doutor (1562) em Teologia. Foi discípulo do teólogo italiano e reformador
protestante Pietro Martire Vermigli (1499-1462) e defensor de uma visão protestante
progressista. Por isso, quando da ascensão de Mary Tudor ao trono e o início da recatolização,
em 1553, obteve permissão para viajar ao estrangeiro. Residiu, assim, em Zurique, Basileia,
Frankfurt e Gênova. Durante sua estada na Suíça, reuniu-se com John Parkhurst (1512-1575),
posteriormente sagrado bispo de Norwich em 1560, e John Jewel (1522-1571), sagrado bispo
de Salisbury em 1560 – ambos caçadores de bruxas –, e outros exilados protestantes.
Retornou à Inglaterra em 1558, no início do reinado de Elizabeth I. Assumiu a cadeira de
professor de teologia em Oxford, em 1560. No ano seguinte foi eleito diretor do Magdalen
College, e transformou o centro de ensino num reduto do Puritanismo – uma doutrina da fé
cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da
Reforma. Por causa de sua posição crítica frente à Igreja Católica foi chamado de
papistomastix (chicote ou castigo papal). Teve 12 filhos com sua esposa Joan Inkfordby
(1537-1611).
Acorde ao espírito de sua época, Lawrence Humphrey interessou-se sobremodo pela
questão da arte da tradução, participando de debates sobre o tema quando de sua permanência
na Suíça, onde foi publicado o que hoje é considerado o maior tratado compendiador sobre
tradução produzido no Renascimento: Interpretatio linguarum, seu de ratione conuertendi &
explicandi autores tam sacros quam prophanos (“Tradução de línguas ou da arte de traduzir e
interpretar autores sacros e profanos”). Nas palavras de Glyn Norton, “It is the only work
from this period that approaches an encyclopedia of doctrine on translation.” (1984, p. 11)
A originalidade de Humphrey está mais na produção do compêndio que nas linhas
mestras de seu pensamento sobre tradução – é de Leonardo Bruni o mérito de ter composto o
primeiro e mais impactante tratado sobre tradução no Renascimento, De interpretatione recta1
(1420), cuja grande novidade é a exigência de produção de arte no texto de chegada –, isto é,
o tratado de Humphrey destaca-se por sua extensão e por detalhar e sumarizar o pensamento
da época em torno da arte de traduzir. No entanto, apesar de sua reconhecida importância, é
ainda uma obra pouquíssimo estudada e referenciada, que nunca foi reimpressa nem recebeu
edição crítica ou tradução integral a qualquer língua. A erudição do teólogo inglês, que
dominava ademais do latim, também o grego e o hebraico, leva-o a rechear o texto latino com
palavras e citações gregas e hebraicas – sem traduzi-las –, servindo-se frequentemente de duas
línguas numa mesma frase, e seu conhecimento transita pelas áreas da filologia, da teologia,
da exegese bíblica, da história da igreja, da filosofia, da literatura e cultura clássicas, da
mitologia, etc. Seu texto também apresenta uma profusão vocabular não dicionarizada. Ele é,
afinal, um homem do Renascimento.
A única edição do tratado humphreyano que veio à luz foi publicada em 1559 pela
editora Froben, na Basileia, constando de 624 páginas, das quais 588 são dedicadas ao tratado,
e as demais, conforme anunciado na segunda parte do título, No final, o profeta judeu Abdias,
traduzido e interpretado, e o livro de Filon de Alexandria De iudice, em grego e latim.

1
BRUNI, L. “De interpretatione recta / Da tradução correta”. Apresentação e tradução de Mauri Furlan, in
Scientia Traductionis, nº 10. Florianópolis, 2011. Online:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/1980-4237.2011n10p16/27998. N.E.: Outra tradução
deste texto de Bruni está disponível no presente número da revista Morus.

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Mauri Furlan

O tratado Interpretatio linguarum compõe-se de três partes ou livros: I. De ratione


interpretandi, cujos pontos centrais abordados por Humphrey são os três tipos de tradução, as
virtudes da tradução, e as tarefas do tradutor; II. De ratione imitandi, onde o autor dedica-se
principalmente à discussão sobre a imitação; e III. De ratione interpretandi –
progymnasmatum & exemplorum syluulam continens, que trata da prática dos preceitos
teóricos expostos na primeira e segunda partes. Dos três livros, sem dúvida, o primeiro é o
mais importante no sentido de apresentar formalmente a concepção teórica de tradução do
autor inglês. E é sobre este primeiro livro que tratamos aqui e do qual oferecemos excertos,
sobretudo teóricos, traduzidos ao português brasileiro.
Humphrey abre seu tratado com um prefácio de 14 páginas, no qual exalta a tradução,
assinalando sua dignidade, comunidade, utilidade e necessidade, e o dedica a seu amigo Sir
Thomas Wroth2.
De ratione interpretandi, o primeiro livro do tratado, inicia com uma reflexão sobre a
utilidade da língua e da tradução: A utilidade da língua é seu uso, mas ele só será eficaz se ela
for entendida por todos, e é aí que entra o papel da tradução. A seguir define sua concepção
de tradução:

A tradução [interpretatio] foi chamada Ἐξκελεία 3 [interpretação] pelos


gregos, mas é ambíguo o nome de tradutor [interpres], pois pode ser tomado
em vários sentidos: nós, por certo, aqui e agora, o atribuímos àquele que
aclara, mediante a tradução a uma língua mais conhecida e familiar, o
dialeto ou idioma pouco conhecido de muitos, e converte algo de uma
língua estrangeira a outra mais considerada e comum.4

Tal definição é acompanhada por um breve relato da história da tradução, no qual cita
os nomes de Jerônimo – e seu opúsculo De optimo genere interpretandi –, Cícero – e seu De
optimo genere oratorum –, Joaquim Periônio – tradutor de obras de Aristóteles –, Moisés –
mediador entre Deus e o povo israelense –, Ptolomeu – responsável pela tradução da
Septuaginta –, São Paulo – e sua Epístola aos Efésios –, Agostinho – por sua crítica e
posterior aceitação à tradução de Jerônimo –, e Orígines – e sua Héxapla5.
Dito isto, Humphrey argumenta em defesa da produção de seu tratado, com o qual
almeja prescrever “uma regra fixa e um método determinado”, seja para aperfeiçoar o
trabalho dos tradutores e render-lhes renome, seja para dar a conhecer a verdade ou avaliar as
traduções. No entanto, ao considerar a abundância de autores gregos e latinos, os diversos

2
Thomas Wroth (1516-1573), cortesão e político, serviu ao rei Edward VI também como camareiro e guarda-
costas pessoal. Depois da morte de Edward VI, exilou-se em Estrasburgo e Frankfurt, regressando à Inglaterra
após a ascensão (1558) de Elizabeth I (também chamada de Isabel I) (1533-1603) ao trono, e foi eleito cavaleiro
e representante no parlamento, entre outras funções.
3
A palavra grega ἑξκελεία (hermeneia), e sua equivalente latina interpretatio, foi na época clássica um termo
técnico para tradução. É interessante observar que o termo ἑξκελεία, que significava inicialmente expressão,
linguagem, produção de um discurso, relação entre linguagem e pensamento, significação, elocutio, muda
paulatinamente de sentido ao misturar-se com outras acepções do termo latino interpretatio: da relação entre um
texto dado e seus leitores se estendeu às funções intermediárias de explicação e tradução, um „ir entre‟, „mediar‟
entre duas línguas.
4
Haec Interpretatio dicta est Graecis α: estque hoc nomen Interpretis ambiguum, et in uarios sensus
trahi potest: nos hoc quidem loco et tempore eum uocamus, qui Dialectum seu idioma minus multis notum,
linguae notioris et familiaris interpretatione illustrat, et aliquid ex peregrina língua conuertit in aliam
celebratam magis et peruagatam. (03)
5
A Héxapla [sêxtupla] é uma edição compilada pelo erudito Padre da Igreja Orígenes (185-254) em seis
colunas, das escrituras do Antigo Testamento com (1) texto hebraico, (2) transliteração para o grego, e as
traduções gregas disponíveis de (3) Áquila, (4) Símaco, (5) Orígenes, e (6) Teodócio. Orígenes, acredita-se,
produziu a primeira excelente crítica textual da Bíblia.

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gêneros literários e as traduções, com suas discrepâncias, e seus tradutores, bem como
características inerentes às edições existentes dos originais e de suas línguas, e fatores
culturais, Humphrey reconhece a dificuldade de prescrever, mas não de ensinar um modo de
traduzir como o melhor.

Não ouso prescrever esta arte de traduzir, mas ela pode ser ensinada por um
método racional.6

Em seguida, o tratadista inglês passa a abordar os três diferentes tipos de tradução


adotados – uma concepção que no Renascimento se tornou um lugar-comum a muitos
pensadores da questão, manifestamente em Juan Luis Vives7 –, elegendo o terceiro como o
melhor método para traduzir.

I. Tradução pueril e escrupulosa (Interpretatio puerilis et superstitiosa)

Chamada de dura, grosseira, escabrosa, servil, pueril, escrupulosa e presa porque em


nada se aparta das palavras, extremamente literal é a tradução ad uerbum. Nela perde-se a
elegância do autor primeiro, os ornamentos, o idiomatismo, a clareza. Os que produzem tais
traduções são veementemente criticados:

[...] da mesma maneira como as amas de leite que dão aos bebês, na boca,
alimentos mastigados e em pedacinhos, quando balbuciam com os que
balbuciam, assim os professores que foram privados da palavra viva levam
quase que pela mão os aprendizes como que a um tênue conhecimento dos
poetas.8
[...]
Na verdade, neste século áureo e erudito, parecerão ocupar-se de inação, não
do proveito dos estudiosos, os que, desta forma, enquanto tudo esmiúçam,
acrescentam palavras às palavras, de modo que os zelos não deixem nada
para pensar e indagar por si próprios. Não é por maldade que, assim, por
este mesmo aprendizado constante, apresentam aos estudantes, de forma
articulada e distinta, rudimentos em sua prosa, em que cada palavrinha vale
por si, e por fim levam-nos aos poucos gradativamente em frente. E quem,
pois, os ensina a rastejar – quando na poesia deveriam voar às alturas –
buscando o mais sutil, negligenciando o melhor, também atua como se os
quisesse novamente a berrar nos berços, enquanto delicada e
timidazinhamente sustenta-os e nutre-os com este mastigado como fosse
pasto, indulgente com o ócio e a estupidez deles, e inteiramente favorecedor
da indolência. Semelhantemente, como se alguém ensinasse a um outro já
crescidinho e que pode saltar e correr a andar e a mover-se pé ante pé e a
avançar lentamente como criança, assim, na leitura dos gregos, a estes já
crescidos e adultos faz, de certo modo, tornarem-se meninos, e chama

6
Hanc interpretandi artem dicere non audeo: uia tamen et ratione de ea praecipi potest. (03-04)
7
Cf. FURLAN, M. (Org.), Clássicos da Teoria da Tradução - VI. Antologia do Renascimento (séc. XVI)
(bilíngue). 2ª ed. revista e modificada. Florianópolis: UFSC, 2016. Online:
https://www.researchgate.net/publication/309385009_Classicos_da_teoria_da_traducao_-
_VI_Antologia_do_Renascimento_sec_XVI_bilingue
8
[...] tanquam nutrices infantibus mansa ac comminuta frustulatim in os ingerant, cum balbis balbutientes, ut ad
aliquam Poetarum tenuem cognitionem quasi manuducant tyrunculos, qui magistri uiua uoce destituti sunt. (14)

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novamente ao berço os que sustentariam certas tarefas mais varonis e mais


sérias. E também executam rapidamente as que são facilmente aprendidas
sem contenção do espírito, embora as alcançadas com empenho
permaneçam por mais tempo. No entanto, enquanto estão presos às palavras,
não aprendem realmente, e o sentido se perde ou se obscurece, de forma que
é necessário um douto tradutor para as traduções certamente esclarecedoras
dos mesmos, as quais dizem realizar para toscos e aprendizes.9
[...]
Deve-se aprender apenas o melhor desde pequenos. Por isso, portam-se
pessimamente com seus moços os mestres-escolas, que, assim, ensinam
toscamente os toscos, de forma a que aprendam o pior de uma elocução em
ambas as línguas, ζνινηθίδεηλ [falar incorretamente]; a que considerem as
palavras isoladamente, e trabalhem muito pouco sobre as agrupadas; a que
traduzam, assim, palavra por palavra, de maneira a fazer dos bons gregos
algo latino nada bom. Deixam, por certo, sair de sua oficina para construir a
república e a igreja, como se fosse do cavalo de Tróia, artífices pouco
habilidosos, sofistas, bárbaros, scotistas10 que odeiam e perseguem as boas
artes e toda a humanidade.11

Os estragos produzidos por tais traduções se refletem e podem ser exemplificados em


todos os âmbitos, na Dialética, na Filosofia, no Direito, na Teologia.

9
Verum
 hoc aureo et erudito seculo, consulere uidebuntur ignauiae, non utilitati studiosorum, dum omnia ita
minutatim dissecant, uerba uerbis sic apponentes, ut nihil ad cogitandum et indagandum ipsorum relinquant
diligentiae. Non male uolunt, qui sic, ab ipso statim tirocinio, in oratione soluta rudimenta discentibus,
articulate et distincte ostendunt, quid quaeque uocula per se ualeat, et deinde paulatim ad altiora per gradus
quosdam prouehunt. At enim qui docet eos reptare, quum in poesi ad summa deberent euolare, minutiora
captans, negligens potiora: perinde facit, ac si in cunis eos uelit denuo uagire, dum hoc praemanso uelut pabulo
tenere et molliuscule alit et educat, indulgens eorum otio ac hoc aureo et erudito supinitati, ac plane fouens
socordiam. Similiter ac si quis aliquem grandiusculum iam qui saltare potest et currere, cum infantibus
pedetentim ire et mouere se ac sensim progredi doceat: sic istos in lectione Graecorum prouectos adultosque
iam quodammodo facit repuerascere, et ad incunabula reuocat, qui uiriliora quaedam pensa et grauiora
susciperent. Et cito quoque efficiunt, quae citra contentionem animi cito discuntur: labore acquisita
adhaerescunt diutius. Imo dum uerbis affixi sunt, ne discunt quidem, sed perit sensus, aut obscuratur, ut ad
ipsorum dilucidas scilicet interpretationes, quas rudibus et tyrunculis se dicunt parare, docto opus sit interprete.
(14-16)
10
Scotista: relativo ao scotismo, sistema filosófico desenvolvido pelo franciscano beato Iohannes Duns Scotus
(ca. 1266-1308), teólogo e filósofo escocês. Diferencia-se do tomismo (de Thomas Aquinas ou São Tomás de
Aquino (1225-1274), dominicano italiano considerado o maior dos filósofos medievais) por reconhecer o
primado do amor e da vontade sobre o do conhecimento e do intelecto. O scotismo opõe-se abertamente ao
tomismo em muitas teses: defende o caráter prático da teologia, negando-lhe que possa conter uma verdade
teórica revelada; afirma a indemonstrabilidade de proposições filosóficas e teológicas como a dos atributos de
Deus e da imortalidade da alma; prega a univocidade do ser, na qual a essência do homem e aquela divina é da
mesma natureza, entre outras.
11
Tantum est a teneris optima discere. Pessime merentur ergo de pube sua ludimagistri, qui sic crasse crassos
docent, ut contempta phrasi utriusque linguae, ζ discant: ut simplicia uerba attendant, de coniunctis
parum laborent: sic uerbum ex uerbo exprimant, ut ex bonis Graecis Latina faciant non bona. Emittent hinc
nimirum ex officina sua uelut ex equo Troiano fabros ad aedificandam rempublicam et ecclesiam parum
dexteros, sophistas, barbaros, scotistas qui bonas artes ac omnem humanitatem odio habeant et persequantur.
(19-20)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

II. Tradução licenciosa (Interpretationis ratio licentiosa)

O segundo método apresentado por Humphrey é o que se permite demasiadas licenças,


extremamente liberal, vai de encontro ao método anterior.

Como, pois, o primeiro apresenta-se dentro de uma medida, assim, o


segundo estende-se para fora dos limites com uma audácia totalmente
imódica: abundando em sinônimos, jogando com tropos não necessários,
brincando com as traduções, impudente nos vocábulos que devem ser
formados, rejeitando os próprios, mendigando alheios, afetando adornos e
ornato onde não é o lugar, como diz o ditado In lente unguentum 12 ,
apregoando o luxo e as delícias do discurso e ostentando ornamentos,
reivindica, com a sentença, a frugalidade e a simplicidade, para o leviano o
sério, para o cômico o trágico, para o frio o quente, o frio para o quente,
toda ela enfim imitando a condução e o fio do seu engenho, mas não
servindo ao autor, que tem um objetivo proposto, que olha atentamente.13

O tradutor licencioso acaba por não se diferenciar do próprio autor. Porém,

O autor, com efeito, é livre para dizer o que quiser, e em qualquer ordem, e
com quaisquer palavras agora aceitas; o tradutor tem uma meta prefixada
diante dos olhos, e não pode apartar-se para além dos termos estabelecidos
se quiser reproduzir fielmente o sentido do autor, se quiser realizar bem sua
tarefa. Aquele vai em busca dos seus sentidos, este, dos sentidos alheios
encontrados; àquele é dada a liberdade, a este acomete a necessidade, não de
refletir sobre quaisquer coisas com seus próprios meios, e, uma vez
refletidas, de explicar expondo-as, mas de buscar o achado (inuentio) do
autor – e de permanecer nele –, e também a elocução (elocutio) e os
ornamentos do discurso, e as palavras da língua para a qual traslada, os
quais devem exprimir a mesma coisa com a mesma forma e figura14. Estes
sãos os limites, estes os marcos além dos quais o trabalho e a faculdade de
um tradutor não ultrapassam, e que devem ser contidos pelos que o autor
circunscreveu em sua composição.15

12
“Unguento na lentilha”, provérbio de origem grega indicando incongruência, irracionalidade na associação de
idéias.
13
Vt enim illa intra modum consistit, sic haec extra fines sane immodica procurrit audacia: Synonymis
luxurians, tropis ludens non necessariis, translationibus lasciuiens, in fingendis uocabulis inuerecunda, propria
repudians, aliena corrogans, affectans flosculos, et ornatum, ubi locus non est, nimirum quod aiunt, In lente
unguentum, lautitiam et delicias orationis uenditans, et pigmenta ostentans, cum sententia frugalitatem poscit et
simplicitatem, in leuibus grauis, in comicis tragica, in frigidis feruens, frigens in feruidis, tota denique ductum et
filum ingenii sui imitans, non autori seruiens, quem tanquam scopum propositum habet, quem intueatur. (23)
14
A teoria da linguagem pela qual Humphrey plasma sua concepção de tradução é a da retórica clássica, e por
ela se esclarece muito da nomenclatura utilizada nos textos da época. Cf. FURLAN, M. La retórica de la
traducción en el Renacimiento. Tesi doctoral, Universitat de Barcelona, 2002. Online:
http://www.tdx.cat/handle/10803/1717
15
Scriptor enim liber est, ut dicat quae uelit, et quo ordine, ac quibuscunque uerbis, modo probatis: interpres
praefixam habet ob oculos metam, et terminos extra quos euagari non potest, si autoris sensum reddere fideliter,
si officio suo satis uelit facere. Ille sensa sua, hic inuenta aliena sequitur: libertas illi datur, incumbit huic
necessitas, non ut quaecunque suo Marte excogitet, et excogitata dicendo explicet, sed ut ab autore petat
inuentionem, et in ea conquiescat, elocutionem quoque et ornamenta orationis, uerba uero ab ea lingua in quam
transfert, quae eandem rem eadem forma et figura declarent. Hi sunt limites, hi cancelli, extra quos munus et
facultas interpretis non egreditur: sed his contineri debet, quos autor sua scriptione circumdedit. (23-24)

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E compara o tradutor a um pintor, como Horácio o fizera na Ars poetica – “ut pictura
poesis” (como a pintura é a poesia), v. 361. A intertextualidade produzida por Humphrey
perpassa todo seu tratado, abarcando autores de todas as épocas e de vários gêneros.

Que o tradutor nunca difira de seu original, nem acrescentando nem


subtraindo. Age torpemente o pintor que se aparta de seu modelo, se, levado
a desenhar o retrato de algum rei, erra nas pernas ou noutra parte do corpo
ou se se interessa por outra coisa que não pela representação proposta. Mais
torpe, ou, completamente torpe, quem, aplicando-se a traduzir o pensamento
de outrem, não o reproduzir, mas em vez disso nos impuser uma outra ideia
ou representação. Isso é outra coisa, como mostrar uma nuvem em vez de
Juno, uma sombra em vez do corpo, nada em vez de algo. Certamente
Apeles, artífice hábil, representaria, com suas cores vivas e reais, a mesma
coisa que propusera ser imitada e descrita. Nem em lugar de Agamenon
ofereceria Menelau, ou em lugar de Heitor, seu irmão Alexandre, em lugar
de Filipe, seu pai Antígono, nem em lugar de Aquiles, Pátroclo, seu
consímile em tudo, mas representaria o verdadeiro Aquiles, perfeito e não
obscuro, vívido e não ensombreado, verdadeiro e não simulado, inteiro e
não pela metade. Assim o tradutor, escultor e pintor do engenho alheio,
resgatará seu autor com todas suas partes e membros, e não o apresentará
amputado ou mutilado nem diminuído em alguma coisa.16
[...]
Sei também que as vestes e os costumes, assim como a língua de cada país e
povo são diversos, e que não é necessário levar a língua incorrompida e
elegante dos gregos e romanos ao uso vulgar e corrompido da plebe. Νόκνο
θαὶ ρώξα17, „costume e região‟ [a cada região seu costume], dizem, assim, a
todas as línguas é próprio e vernáculo um certo idiomatismo.18

Sobre os tradutores e os dois modos de traduzir acima apresentados, conclui dizendo:

Destes, porém, deduz-se, por fim, que se encontram em dois vícios, ou


traduzem de forma demasiadamente tímida, ou demasiadamente túmida.
Àquele acuso de escrupuloso, a este de ousado, aquele porque ousa pouco,

16
ut interpres nunquam uariet ab archetypo, uel addendo uel adimendo. Turpe ducimus, si pictor deflectat ab
exemplari, si conductus ad Regis alicuius effigiem delineandam, uel in tibia erret uel in ulla parte corporis: aut
si alio respiciat quam ad propositam imaginem. Turpius sane imo turpissimum, si quis ad interpretandum
alicuius animum accendens, non expresserit, sed pro illo phantasma aliud aut idolum nobis obtruserit. Hoc quid
aliud est, quam pro Iunone nubem, pro corpore umbram, pro aliquo nihil exhibere. Certe Apelles peritus artifex,
ipsam rem quam ad imitandum et describendum proposuit, suis, id est, uiuis atque ueris depinget coloribus. Nec
enim pro Agamemnone Menelaum, aut pro Hectore dabit Alexandrum fratrem, pro Philippo Antigonum patrem,
nec pro Achille Patroclum licet per omnia consimilem, sed uerum Achillem graphice non obscure, uiuide non
adumbrate, uere non simulate, totum etiam non dimidiatum repraesentabit. Sic interpres ingenii alieni fictor et
pictor, suum autorem omnibus partibus ac membris absoluet, truncatum aut mutilum ulla ue in re diminutum
non proponet. (25-26)
17
PLUTARCHUS, De proverbiis Alexandrinorum [Sp.] (0007: 149), edição eletrônica de: Plutarchi de proverbiis
Alexandrinorum libellus ineditus. Ed. Crusius, O. Tübingen: Fues & Kostenbader, 1887. Fragmento 10, linha 1.
18
Scio quoque cuique genti, populoque ut uestes et mores, sic linguam esse diuersa

α α aiunt, mos et regio, sic omnibus linguis proprium quoddam est idioma atque
uernaculum. (27-28)

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este porque demais; naquele repreendo a rusticidade de linguagem, neste os


ornamentos alheios do discurso.19

III. Tradução intermédia (Interpretationis ratio media)

Capital do pensamento de Humphrey sobre tradução, o primeiro livro, De ratione


interpretandi, revela em seu índice uma visão geral da teoria de tradução do autor. Depois de
apresentar brevemente os dois modos de traduzir que são condenáveis por seus vícios, o
tratadista aborda o cerne de sua proposta, a media uia, como o melhor método de traduzir. Sua
explanação é bipartida em 1. De interpretatione (Da tradução), em que trata da tradução e
suas características, e 2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor), quando versa sobre as
características do bom tradutor e os recursos para sua instrução e preparação.

1. De interpretatione (Da tradução) (30-115)


1.1. Plenitudo: plenitude (31-41)
1.2. Proprietas: propriedade (41-57)
1.3. Puritas: pureza (57-80)
1.4. Aptitudo: aptidão (81-115)

2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor) (115-200)


2.1. Natura: natureza (116-125)
2.2. Doctrina: instrução (125-170)
2.3. Fides & religio: fé e religião (170-180)
2.4. Diligentia: diligência (180-200)

O terceiro modo de traduzir constitui a via intermédia (media uia), ou seja, participa
de ambos os modos apresentados acima,

da simplicidade mas da erudição, da elegância mas da fidelidade, a qual não


é assim elevada que ultrapasse a medida, nem assim baixa que seja sórdida,
mas frugal, moderada, comedida, que não ama a torpeza nem o fausto, mas
o refinamento apurado.20

1. De interpretatione (Da tradução)

São quatro as virtudes da boa tradução: plenitude, propriedade, pureza, aptidão.

1.1. Plenitudo: plenitude


– assunto & sentença, forma da sentença, ritmo –

Chamo de tradução plena aquela que reproduz o sentido íntegro, em que


uma sentença ecoa a partir da sentença correspondente e segue a mente do
autor em tudo e plenamente, na qual nada falta nem sobra. [...] Por isso, para
que tudo corresponda à perfeição, deve-se considerar que há três coisas a

19
Ex his autem illud tandem efficitur, haec duo in uitio esse, uel nimis timide uertere, uel nimis tumide: hoc
accuso ut superstitiosulum, illud ut audax, hoc quod parum, illud quod nimium audeat; in hoc barbariem, in illo
pigmenta orationis alieniora reprehendo. (29-30)
20
simplicitatis sed eruditae, elegantiae sed fidelis: quae nec ita exaggerata est ut modum transeat, nec ita
depressa ut sit sordida, sed frugalis, aequabilis, temperata, nec sordes amans nec luxuriam, sed mundum
apparatum. (30)

19 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

serem examinadas com atenção em cada discurso. Devem, pois, ser


observadas primeiramente a res [o assunto] e as sententiae [as frases]; em
seguida, a forma e a figura; e por fim o numerus [ritmo], isto é, como disse
Cícero, a própria collocatio [posição] e a conformatio [figura de dicção
relativa à disposição] das palavras. [...] Pois nos bons escritores não há nada
colocado de forma errônea ou descuidada; por isso nada deve ser destruído
ou mutilado. Pois nos assuntos e na sentença, devem ser observados o corpo
do discurso e o nervo do argumento, ou a πξόζιεςηο21 [proslepsis] (Cícero
[De Divinatione, II, 108] chama de adsumptio [proposição menor de um
silogismo]), invocada e demandada a ampliar e adornar 22 , bem como o
lugar, o tempo, a ocasião, e as atribuições das coisas e das pessoas. Se não
traduzes em tua elocução o espírito daquele, os sentidos sutis, os
movimentos rápidos do pensamento, que chamo de inuentio, e não adaptas
tua língua à língua e alma daquele a quem segues, então não é a ele mas a ti
mesmo que fazes falar a nós, de onde acontece que o vejamos apenas de
relance, quando deverias apresentar toda sua alma e sua mente como devem
ser vistas num painel, e igualmente observadas num espelho. E por que não
deveria ser conservada a mesma figura do discurso? Por que revestes com
novo semblante a um corpo alheio que não é teu? Pois para nós, também
nisto o autor nos deve ser imitado e não mudado, e, acredito realmente, nem
devem ser seguidos nem aceitos os que convertem interrogações em
sentenças afirmativas e simples, os que alteram totalmente a aparência dos
autores, introduzem espectros ao discurso alheio que não lhe são próprios
nem genuínos. E do mesmo modo, uma atenção diligente deve ser dada aos
períodos e locuções, a fim de que respeitemos o quanto for possível as
diástoles23, hipodiástoles24 e todo o estilo da sentença do autor, e para que
correspondam não apenas o assunto com o assunto, a arte com a arte, a
causa com a causa, mas as partes com as partes, os pares com os pares, as
figuras com as figuras, a ordem e o ritmo do período.25

21
A proslepsis é entendida aqui não como uma figura de linguagem, mas, parte do silogismo, que é o método do
argumento. As duas premissas (ιεκκαηα, lemata), que preparam a conclusão de um silogismo, são chamadas em
grego, respectivamente, ιεκκα („lema‟, a premissa maior) e πξόζιεςηο („proslepsis‟, a premissa menor).
22
Os argumenta (argumentos) funcionam, além de meios comprobatórios, como recursos da amplificatio
(ampliação) – que é “uma intensificação preconcebida e gradual dos dados naturais mediante os recursos da
arte”, e que participa tanto da inuentio como da elocutio, logo, da argumentação e da ornamentação. Cf.
Lausberg, §§ 259; 400.
23
Na retórica, a diástole (ou êctasis) é uma figura literária de dicção, que em latim permitia que uma sílaba breve
fosse pronunciada como longa. Nas línguas em que não existe a quantidade vocálica, como o português, a figura
se aplica à acentuação: alterar a posição do acento de uma sílaba para outra, como em ocasiões para possibilitar a
formação de certas rimas.
24
Caracteres misturados ao texto para indicar pausa, fim de sentido ou separação entre palavras. Outra marca
textual desenvolvida na antiga Grécia era o hífen, usado entre palavras quando se queria indicar sua leitura como
uma única palavra.
25
Plenam uoco eam interpretationem quae sensum reddit integrum, ut sententia respondeat ex aduerso
, , b […]
Vt igitur omnia ad unguem consentiant, considerandum est, tres esse res in omni oratione perlustrandas.
Intuendae sunt enim primum res atque sententiae: tum forma et figura: post numerus, id est ut ait Cicero, ipsa
collocatio conformatioque uerborum. […] N b b h h
h N b ,
, (Cicero uocat assumpta) ad amplificandum ornandumque aduocata et accersita, ut
locus, tempus, occasio, rerumque ac personarum attributiones. Nisi enim animum eius, argutos sensus, celeres
cogitationis motus, inuentionem dico, elucutione tua exprimas, et linguam tuam ad linguam animumque eius,
quem sequeris, accommodes: iam non illum nobis, sed te ipsum loquentem facis, unde fit ut illum uix per

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 20


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

A plenitude de uma tradução diz respeito tanto à manutenção do conteúdo quanto da


forma. E os maiores vícios em que incorre são o pleonasmo e a perissologia.

Tampouco é permitido transformar a forma do discurso, e o tradutor deve


conservar o mesmo teor, e não se afastar em nada do autor que ele traduz.
Por tanto, agem incorretamente os que criam dialogismos 26 nas coisas
sagradas a serem traduzidas, e removem narrações κηκεηηθάο [miméticas], e
substituem-nas completamente, com exceção apenas das personagens
envolvidas.27
[...]
Resulta, pois, que é preciso que uma tradução não seja defeituosa ou
mutilada, mas que, observando com suma atenção todo o corpo da sentença,
expressemos o todo e o particular, não apenas o nervo e as forças do
argumento, mas as cores, a pele e a carne, sem dúvida estes três móveis das
artes, a forma e a natureza, e o ritmo e a posição dos períodos. Mormente
isto sobre a tradução plena, que deve ser completa em todas as suas partes.
Na qual, deve-se precaver sobretudo de dois vícios, πιενλαζκόο
[pleonasmo], ou πεξηζζνινγία 28 [perissologia], para que não sejam
acrescentadas palavras supérfluas, e para que não pereça ou seja destruído,
ἒθιεηςζηο [desaparecimento], por nossa negligência aquilo que é
considerado no autor.29

1.2. Proprietas: propriedade


– harmonia & analogia das palavras, luta, etimologia –

Resta que se fale a seguir sobre a propriedade, chamada de idiomatismo, que


se observa em todas as línguas. Chamam os romanos de latinidade, de
helenismo os gregos, de aticismo os áticos, os judeus, de hebraísmo,
quando, com efeito, alguma característica marca seu nome de forma real,

transennam aspiciamus, cum totum eius pectus ac mentem quasi in tabula spectandam, et uelut in speculo
contuendam deberes proponere. Et cur non eadem orationis figura seruanda? cur nouam indues faciem alieno
corpori non tuo? Quare et hic quoque autor nobis imitandus non mutandus, nec sunt, ut ego quidem existimo,
sequendi neque probandi qui interrogationes conuertunt in aientes et simplices sententias: qui schema autorum
commutantes, adsciscunt laruas orationi alienae, non proprias neque genuinas. Eodemque modo in periodis et
conuersionibus diligens animaduersio adhibenda est, ut autoris diastolas, hypodiastolas totumque orbem
sententiae quoad eius fieri potest, compleamus, utque non res modo cum re, ratio cum ratione, causa cum causa
consentiat, sed membra membris, paria paribus, fugurae figuris, ordo numerusque periodorum respondeant.
(31-34)
26
Na retórica, figura que consiste em construir uma reflexão sob a forma de diálogo, com perguntas a que o
próprio autor responde, ou em reproduzir em diálogo as idéias e os sentimentos dos personagens.
27
Iam formam quoque orationis non licet transformare, sed eundem tenorem obtinere debet Interpres, nec latum
digitum ab eo autore quem conuertit discedere. Proinde perperam faciunt qui dialogismos tollunt in uertendis
sacris, et narrationes amouent, et perpetuas absque personis interpositis substituunt. (38-39)
28
O solecismo por acréscimo é uma falta contra a breuitas dentro da elocutio. Esta falta se chama „pleonasmo‟
quando há uma ou outra palavra em demasia („os astros do céu‟); mas se o excesso é uma oração ou todo um
pensamento, a falta se chama „perissologia‟ („viva o rei e não morra‟). Cf. Lausberg, § 502.
29
Sequitur igitur, non mancam aut mutilam interpretationem esse oportere, sed ut totum corpus sententiae
attentione summa inspicientes, exprimamus omnia et singula, non modo neruum et uires argumenti, sed colores,
cutem et carnem, nimirum tria haec, momenta rationum, formam et habitum, et periodorum numerum atque
collocationem. Atque haec de plena interpre-tatione, quae suis omnibus expleta sit partibus. In qua duo
praecipue uitia cauenda sunt, α seu α, ne uerba inania adsuantur, et ne quid
quod apud autorem habetur, nostra negligentia pereat aut intercidat. (40-41)

21 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

própria e fiel. Há, pois, helenismo, segundo Aristóteles [Retórica,


1407a.30]: ηνηο ἰδίνηο ὀλόκαζη ιέγεηλ θαὶ κὴ ηνῖο πεξηέρνπζηλ [dizer com os
nomes mesmos e não com os circunstantes], todas as vezes que não
definimos com uma noção geral qualquer, mas nominamos com um
vocábulo próprio. Em cuja forma está o primeiro emprego por nossa raça,
quando o pai Adão deu nomes às coisas no paraíso. E de grande louvor é o
tradutor que traslada com propriedade, θπξηνινγεῖλ 30 [ciriologia], assim
como os camponeses e os aldeões que falam mais toscamente, porém mais
claramente, chamam de enxada a enxada, de figo o figo: homens simples e
desconhecedores da retórica enfeitada, a qual, com suas figuras de
amplificar e diminuir, e outras ζθηα... εηο ζθηόεηο [sombras... para as coisas
sombrias], obscurece e obnubila o assunto, ou o oculta com seus rodeios,
fazendo de uma colina uma montanha, de um veadinho um leão, de um
mosquito um elefante, de um anão um Hércules. Por isso, devem ser
observadas as coisas vicinais, como superstição e religião, audácia e
coragem, e os vícios aproximados, que imitam falaciosamente um tipo de
virtude. Não devem ser ditas coisas duras de modo suave, ou coisas cruéis
de modo doce, nem devem ser dissimuladas coisas más sob um bom nome
ou coisas torpes sob um nome honesto. Mas é a θπξηνιεμία [uso das
palavras em seu sentido próprio] que deve ser preservada, para que não nos
afastemos de nosso modelo, e restituamos uma palavra com outra, não
apenas com pertinência mas com propriedade.31
[...]
É realmente necessário conhecer e compreender a natureza e a força das
palavras, a fim de que nossa tradução se iguale à própria ἔκθαζηο [força
enunciativa]. Para que isso se realize mais convenientemente, deve-se
compreender que umas palavras são simples, outras agrupadas; umas
nativas, outras inventadas ou modificadas de certa forma com habilidade. Às
simples Cícero chama de isoladas; eu nomino as agrupadas de compostas,
ou também de expressões. Por outro lado, estão as nativas, que sem alegoria
mostram com propriedade o assunto, as inventadas, as modificadas, as
figuradas. A diferença entre elas não deve ser absolutamente desprezada por
nós, pois é fácil o engano com elas, e torpe quando usamos ou uma isolada
em lugar de uma agrupada, ou próprias em lugar de figuradas. De aí que às
vezes perde-se a graça, e diminui ou perece a força da significação.32

30
Por vezes tomados como sinônimo, os conceitos também podem ser diferençados entendendo a ciriologia
como a significação „própria‟ de uma palavra, seu uso literal, e a „propriedade‟ como o emprego de uma palavra
com o máximo de sua significação.
31
Sequitur, ut de proprietate dicendum esse uideatur: ea Idiotismus dicitur, qui in omnibus linguis conspicitur.
Romani Latinitatem, Hellenismum Graeci, Atticismum Attici, Iudaei Hebraismum uocant, quum scilicet quaeque
res suo nomine signatur uere, proprie et fideliter. Est enim Hellenismus apud Aristotelem, α
α υ : quum non circunscribimus notione quacunque generali, sed propio uocabulo
nominamus. Quo genere usus est primus generis nostri parens Adamus, cum in paradiso sua rebus nomina
imponeret. Et magna laus est interpretis υ , quemadmodum agrestes ac rustici qui rudius loquuntur sed
planius, ligonem ligonem, uocantes, ficum ficum: simplices homines et fucatae rhetoricae ignari, qui suis figuris
amplificandi et diminuendi, aliisque α... obscurant res et obumbrant, uel obuoluunt ambagibus: ex
tumulo montem, ex hinnulo leonem, ex culice elephantum, ex pumilione Herculem facientes. Videnda sunt igitur
uicina, ut superstitio et religio, audacia fortitudo, et propinqua uitia, quae speciem uirtutis imitantur fallaciter.
Nec enim sunt aspera molliter dicenda, aut acerba blande: nec mala bono nomine aut turpia honesto uelo
contegenda. Sed est illa υ α seruanda, ut a duce nostro non deerremus: sed uerbum uerbo proprie, modo
non inepte reddamus. (41-42)
32
Maxime uero naturam uimque uerborum cognitam habere oportet et intellectam: ut φα ipsam

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 22


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

[...]
Não apenas a harmonia das demais palavras nas línguas deve ser observada,
mas também seu combate e dessemelhança. E entre os sinônimos, não há
nada tão afim que não difira em algum aspecto, ou no som ou na
significação; algo que Aristóteles ensinou perfeitamente na Retórica [III,
1405b.10ss.], dizendo: “Uma coisa é mais própria do que outra”, θαὶ
νἰθεηόηεξνλ, ηῷ πνηεῖλ ηὸ πξᾶγκα πξὸ ὀκκάησλ. [...] θαὶ νὔησο ἄιινπ ἂιιν
θάιιηνλ θαὶ αἴζρηνλ ζεηένλ.33 [e mais apropriado, para que o feito salte à
vista. [...] por isto há de se aceitar que um nome seja mais belo ou mais feio
que outro]. Por certo, há uma que é mais apropriada para expor o assunto à
vista, e uma que é mais bela que outra ou mais distinta. Necessitamos, por
isso, de preparo, e de palavras provindas de todas as partes, recolhidas e
obtidas com muito empenho nos melhores escritores, que possam estar à
mão para escolhermos cuidadosamente e com discernimento aquelas que
mais se aproximam da coisa.34

A tradução com propriedade implica, por vezes, colar-se às palavras ou mesmo


estruturas da língua estrangeira.

De modo breve, o quanto seja possível: tomemos a via intermédia, a fim de


traduzirmos as palavras sagradas não de um modo mais altivo nem mais
econômico e frio, mas empregando um método em que estejamos pegados
às palavras, muitíssimo mantenedores da propriedade, muitíssimo
observadores dos idiomatismos das línguas, sobretudo nas letras sagradas,
onde aquele que mais se aproxima das palavras, mais se aproximará do
sentido; aquele que se afasta das palavras, também se afastará muitíssimo do
pensamento. Não desdenhemos grecizar, às vezes, com Cristo, como eu
disse, nem fujamos dos helenismos sagrados, do mesmo modo como Cristo
não hesitou em hebraicizar com o Pai. Pois a palavra Amen, ainda que seja
hebraica, conservaram-na os gregos, e foi usada pelos homens antigos,
como é evidente em Paulo, quando o povo cantava Amen com função de

interpretatio nostra exaequet. Quod ut praestetur commodius, intelligendum est alia uerba esse simplicia, alia
coniuncta: alia natiua, alia reperta, uel arte aliqua modificata. Simplicia Cicero singula uocat: coniuncta
composita, seu etiam phrases appello. rursus natiua sunt quae citra figuram proprie rem declarant, reperta ac
modificata, figurata. Horum discrimen est a nobis minime cotemnendum: facilis est enim in his lapsus, sed
turpis, quum uel simplici utimur pro composito, pro figuratis propriis: unde saepe gratia amittitur, et uis
significationis aut imminuitur, aut deperit. (44-45)
33
A citação completa é: ἔζηηλ γὰξ ἄιιν ἄιινπ θπξηώηεξνλ θαὶ „σκνησκέλνλ κᾶιινλ θαὶ νἰθεηόηεξνλ, ηῶ πνηεῖλ
ηὸ πξᾶγκα πξὸ ὀκκάησλ, ἔηη νὐρ „νκνίσο ἔρνλ ζεκαίλεη ηόδε θαὶ ηόδε, ὤζηε θαὶ νὔησο ἄιινπ ἄιιν θάιιηνλ θαὶ
αἴζρηνλ ζεηένλ, Retórica, III, 1405b.10ss. [há, pois, nomes mais específicos que outros, e também de maior
semelhança e mais apropriados, para que o feito salte à vista. Além do que, não estando numa disposição
semelhante, significam ora uma coisa ora outra, de modo que também por isto há de se aceitar que um nome seja
mais belo ou mais feio que outro.]
34
Caeterum non modo uocum concordia in linguis est notanda, sed pugna et dissimilitudo. Et in Synonymis nihil
est tam affine, quod non aliquo discrimine, uel sono, uel significatione differat. Quod Aristoteles ad Theod. 3
, , , α , α [ ] α
υ α α Nimirum aliud esse accommodatius, ut rem ponat ob oculos, et
aliud esse alio pulchrius, seu honestius. Apparatu nobis ergo opus est, et uerbis undique summo studio ex
optimis scriptoribus collectis et accersitis, ut ad manum esse possint, quo ea quae rem attingunt maxime,
studiose et cum iudicio seligamus. (46-47)

23 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

exclamação. E igualmente não rejeitaram Hosanna, Sabaoth, Alleluia 35 e


outras introduzidas na linguagem e usadas comumente. Que disso
aprendêssemos que, se as palavras não podem ser reproduzidas com tanta
graça e propriedade, permaneçam gregas, na forma em que foram recebidas,
para evitarmos as significações absurdas, estranhas e impróprias, que não
expressam inteiramente ou suficientemente a natureza das palavras.36
[...]
Por tanto, é necessário que nesta parte evitemos o vício da ἀθπξνινγία
[impropriedade], se quisermos traduzir com propriedade e devolvermos os
pares de um modo não inferior, o que seria, por certo, como o Glauco de
Homero [Ilíada, VI, 236], ἄκεηβε ρξύζεα ραιθείσλ [trocou a armadura de
ouro37], mudar completamente a áurea Eneida.38

1.3. Puritas: pureza


– elegância & verdade –

A terceira virtude é a pureza, θαζαξόηεο, algo clara e elegante como deve


ser uma tradução. Não nos agrada, pois, a propriedade, assim como nos
desagrada a elegância pura, se, contudo, se apresenta como perda ou
violação dos sentidos; ou seja, ela deve ser buscada se não vem por sua livre
vontade. É, pois, algo certamente magnífico e divino não apenas dispor aos
ouvidos latinos, de modo verdadeiro e próprio, os ensinamentos escritos de
homens notáveis, mas também e muito mais traduzi-los de modo puro,
correto, esplêndido, não apenas o que se quer que entendam, mas que leiam
com avidez e vontade. Nem me parece inteiramente digno deste grande
nome o tradutor que não consiga reproduzir com elegância os sentidos do
outro, com ornato os seus pensamentos. E querer confiar às letras latinas
autores egrégios, que não aprenderam a falar nem a se expressar em latim, e
não atrair os leitores pela elegância de estilo, é demasiada audácia e
desconsideração de homens que escrevem, bem como demasiado descaro de
homens que abusam da paciência no ócio e nas letras. Por isso, o tradutor
deve dedicar-se muito e por muito tempo a esta parte, para que se conserve a
riqueza da expressão e do discurso, na qual tenham sempre tomado parte a
proporção (commoditas) e os recursos (facultas), que devem ser buscados

35
Amen, na verdade, assim seja; Hosana, exclamação de júbilo, com que se vitoria alguém: salve!; Sabaoth,
„exércitos‟, „hostes‟, denominação de Deus, o Senhor ou Deus dos exércitos, indicativo de poder e soberania
absoluta; Alleluia, interjeição de alegria, significando „louvar a Deus‟.
36
Breuiter, quantum fieri potest, mediam uiam teneamus, ut nec magnificentius nec parcius et frigidius sacras
uoces conuertamus, sed modum adhibentes, uerborum simus tenaces, proprietatis retentissimi, linguarumque
idiomatis obseruantissimi, in sacris praesertim literis, ubi qui quam proxime ad uerba accedit, proxime ad
sensum perueniet: qui recedit a uerbis, a sententia quoque abit longissime. Ne dedignemur cum Christo
interdum graecari, ut dixi, et sacros Hellenismos ne refugiamus: quemadmodum Christum cum Patre non piguit
Hebraissare. Nam uerbum Amen quum sit Hebraicum, Graeci retinuerunt, et ueteribus hominibus frequentantum
est, ut ex Paulo liquet, quum acclamationis uice populus accineret Amen. Item Osanna, Sabaoth, Alleluia et
caetera in consuetudine posita, et uulgo usitata non reiecerunt: ut inde disceremus, si non reddi tanta gratia
uerba possint et proprietate, relinquant Graeca, modo recepta, ut absurdas, alienas et improprias significationes
fugiamus, quae uel non omnino, uel non satis exprimunt uerborum naturam. (55-56)
37
É a passagem em que Glauco troca sua armadura de ouro pela de bronze de Diomedes, o valor de cem bois por
nove.
38
Itaque uitium υ α in hac parte deuitemus necesse est, si proprie uelimus interpretari, et paria
reddamus non deteriora, quod est β α α , nempe cum Glauco Homerico, aurea permutare
aeneis. (57)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 24


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

em tudo, e alcançados inteiramente pelos escritores; e o estilo deve ser


produzido e polido com longo esforço, exercitado na reflexão, no
comentário, na fala, na escrita, de modo que possa abundar em palavras as
mais escolhidas, e não apenas ter em abundância, mas uma seleção, a fim de
que esteja presente esta elegância do falar e o uso das boas palavras. Pois se
não for apurada a abundante ornamentação, deve-se preferir uma pobreza
elegante e esmerada a uma opulência sórdida. Seja, portanto, não apenas
rico e apropriado o tesouro da linguagem latina à nossa disposição, mas, o
quanto pudermos, bom e o mais puro; dele elejamos o mais adequado e
mostremos o mais distinto para nosso uso.39

Entre os vários exemplos que Humphrey oferece de tradução pura em vários âmbitos
da escrita, o da pureza vocabular merece destaque, seja pela clareza do exemplo, seja pelo
estilo do tratadista:

Porque a suma da religião cristã foi colocada por seres hediondos em


palavras exóticas e estrangeiras, afastada da pureza da língua romana. Que
outra coisa, pois, atormenta hoje os teólogos, inquieta os estudiosos, é
tratada nas discussões dos cristãos, além da missa, do purgatório, das
exéquias, das opera supererogationis40, opera de congruo e de condigno41,
praeuisa 42 , fé formada e informe 43 , quando, em toda a Escritura, não se

39
Tertia uirtus puritas, α α , perspicua quaedam et elegans ut sit interpretatio. Non enim ita nobis placet
proprietas, ut displiceat pura elegantia, si modo citra sensus detrimentum ac uiolationem se offerat: imo
quaerenda, si sponte sua non ueniat. Est enim magnifica profecto res et diuina, non solum uere et proprie
scripta hominum doctrina excellentium, Latinis auribus tradere, sed ac multo etiam magis, pure, emendate,
splendide conuertere, ut non solum quid sibi uelint, intelligantur, sed cum auiditate et uoluptate legantur. Nec
sane mihi interpres magno hoc nomine dignus uidetur is, quinon alterius sensa eleganter, cogitationes ornate
proferre posset: Et literis Latinis mandare uelle egregios autores, qui nec dicere nec loqui Latine norunt, nec
styli elegantia allicere lectores, hominum est audacter nimis et inconsiderate scribentium, et ocio et literis et
hominum patientia nimis impudenter abutentium. Quare elaborandum diu multumque est in hac parte interpreti,
ut adsit dicendi copia et orationis, in quam se cumque partem dederit, commoditas atque facultas, eaque ex
omnibus est conquirenda, et undique aucupanda scriptoribus, diutinoque studio ornandus stylus et perpoliendus,
meditando, commentando, loquendo, scribendo exercendus, ut uerbis abundare queat electissimis, et non modo
copiae cornu domi habere, sed delectum: quo demum suppetat haec loquendi elegantia, et uerborum usus
bonorum. nam si copiosa suppellex sit non munda, praeponenda est elegans et nitida paupertas, sordidae
opulentiae. Sit ergo nobis ad manum orationis Latinae thesaurus non diues solum et locuples, sed quantum
maxime possumus, bonus et purissimus: ex quo aptissima eligamus et lectissima ad usum nostrum proferamus.
(57-59)
40
Humphrey elenca nesta oração várias questões teológicas altamente polêmicas da Igreja de seu tempo. Opera
supererogationis (obras pagas em acréscimo), doutrina escolástica, elevada a dogma em 1518 por Pio X, sobre o
mérito de Jesus Cristo, segundo a qual Ele teria feito mais do que o necessário para a salvação dos homens. Esta
doutrina está relacionada à das indulgências. O mérito de Cristo e o mérito dos santos, que fazem mais do que o
exigido pela lei para sua salvação, produzem um excedente que compõe o thesaurus ecclesiae, o tesouro da
Igreja, que fica à disposição do papa. Este tesouro de graças representa de certa forma o capital com o qual o
papa salda a dívida imaterial do pecador mediante um contrapagamento material, vendendo-lhe indulgências,
para reduzir-lhe o tempo ou livrá-lo do purgatório.
41
A escolástica elaborou a noção de mérito e as condições necessárias para que uma obra seja considerada
meritória. As opera de congruo [obras de congruidade] e as opera de condigno [obras de condignidade] referem-
se ao tipo e valor do mérito dos que produziram boas obras. Santo Tomás de Aquino diferencia entre a obra
enquanto procedente do livre arbítrio, e a obra enquanto efeito da graça do Espírito Santo que habita no justo.
Tem o meritum de congruo aquele que agiu com suas débeis forças humanas; tem o meritum de condigno, aquele
que atuou pela graça do Espírito Santo.
42
Questão teológica de várias ramificações sobre a predestinação: praedestinatio ante praeuisa merita
[predestinação antes dos méritos previstos], ou seja, há predestinação à vida eterna sem consideração das ações

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Mauri Furlan

encontra uma única letra de suas palavras? O que está na boca de quase
todos, o que é tratado nos círculos dos doutos e indoutos, ademais de
aquelas palavras transelementatio 44 , substantialiter, realiter, corporaliter,
essentialiter, figuraliter, significatiue45? 46

De que África ou de que povos ciméricos 47 foram, pois, tomadas estas


quimeras de palavras? Pois tão prodigiosos vocábulos não nasceram nem se
educaram em Roma, e por causa deles todo o universo cristão, que se
estende amplamente, muito se atormenta há tempos e quase se digladia de
modo o mais cruel; contudo, não os conheceu a sacra língua dos hebreus
nem as letras gregas na Bíblia. Se a má índole dos adversários ou uma razão
mais séria nos empurrar a isso por necessidade, sirvamo-nos das palavras
dos gregos, desde que nas palavras a serem formadas e criadas haja, por um
certo privilégio seu sobre as demais, tanto as mais ditosas como as mais
audaciosas: em vez de transubstantiatio [transubstanciação], κεηνπζία
[participação], em vez de transelementatio [transelementação],
κεηαζηνηρείνζηο [mudança da natureza elementar de uma coisa];
substituamos os advérbios por ζσκαηηθῶο [corpνralmente], ὄλησο
[verdadeiramente], ou, νὐζίσο [essencialmente], e, ζπκβνιηθῶο
[simbolicamente], e, ηξνπηθῶο [figuradamente]; ou, com segurança, as mais

das pessoas? A predestinação é consequência da previsão absoluta dos méritos? Para os tomistas, a execução do
decreto divino, contudo, depende das ações humanas. Ou seja, o processo é predestinado, não o resultado final.
43
Fides formata et informis [fé formada e informe], doutrina católica na qual a fé ativa na caridade e nas boas
obras (fides formata) possui poder para justificar o homem, enquanto que a fé desprovida de caridade e de boas
obras (fides informis) é uma fé morta e insuficiente para a justificação aos olhos de Deus.
44
A transelementatio, do grego κεηαζηνηρεηνζηο [mudança da natureza elementar de uma coisa], refere-se ao
mistério da eucaristia, que começa a ser explicado ainda no século IV e V pelos Padres gregos: por meio da
transelementatio os elementos do pão e do vinho se convertem e transformam no corpo e sangue de Cristo.
Passando por diversas interpretações entre os latinos, desde Tertuliano e Agostinho, que acentuam mais o caráter
sacramental do símbolo do pão e do vinho, é com Tomás de Aquino que se acentua mais no caráter sacramental
da missa e o modo em que Cristo se torna presente na Eucaristia: não é o corpo glorioso de Cristo que se
transfere para o pão e o vinho na consagração destes elementos, mas são estes elementos que se convertem em
corpo e sangue de Cristo. Para este fenômeno cunhou-se o termo transubstantiatio [transubstanciação]. Os
fundadores do protestantismo ofereceram outras interpretações, contra as quais o Concílio de Trento apropriou-
se do termo transubstantiatio e o definiu, em 1551, como “a conversão de toda a substância do pão na substância
do corpo de Cristo... e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue” [Ecclesia de Eucharistia,
2003, cap.1 §15], que se realiza com as palavras do sacerdote no momento da consagração.
45
Substantialiter, realiter, corporaliter, essentialiter, figuraliter, significatiue [substancialmente, realmente,
corporalmente, essencialmente, figurativamente, significativamente]: advérbios de uso frequente entre os
escolásticos, com importantes implicações em questões teológicas.
46
quod summa Christianae religionis in his uerbis exoticis et peregrinis, a castimonia Romanae linguae ab
horrentibus, sita est. Quid enim hodie aliud torquet Theologos, exercet studiosos, tractatur in disputationibus
Christianorum, quam Missa, Purgatorium, Exequiae, opera supererogationis, opera de congruo, de condigno,
praeuisa, fides formata et informis, cum in tota scriptura illorum uerborum ne litera una reperiatur? Quid
iactatur in ore pene omnium, quid in circulis agitatur doctorum et indoctorum, praeter illa, Transelementatio,
substantiliter, realiter, corporaliter, essentialiter, figuraliter, significatiue? (68)
47
A Ciméria é um país descrito por Homero como a região da noite eterna (para alguns, situado ao norte ou
noroeste do Mar Negro, atual Ucrânia): Odisséia, XI, 13-19:
Nessa paragem se encontra a cidade dos homens Cimérios,
Que se acham sempre envolvidos por nuvens e brumas espessas;
Nunca foi dado alcançá-los os raios do sol resplendente,
Nem ao subir, ao vingar ele a estrada do céu estrelado,
Nem quando baixa de novo, na volta do céu para a terra.
Noite nociva se estende sem pausa sobre esses míseros.
(trad. de Carlos Alberto Nunes)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 26


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

latinas: mutatio elementorum [mutação dos elementos] ou mutatio


substantiae [mutação da substância], reuera, reapse [realmente], figurate,
symbolice [figuradamente], ou, se há, outras deste gênero. Sejam, pois,
aquelas exiladas do domínio da língua romana, banidas dos confins latinos,
retornem aos infernos de onde partiram, na refrega dos homens eruditos, e
não sejam doravante ouvidas entre as boas letras dos instruídos. Nasceu a
Ate homérica48 das coisas humanas, e o inimigo da tranquilidade pública,
que as Graças49 de toda a caridade e concórdia repudiem os engodos. Não
discuto aqui sobre a questão: estas palavras sármatas 50 , e góticas 51 ,
compostas com os tipos ηνῦ δηαβόινπ [do diabo], e impressas no prelo ηνπ
θαθνδάηκνληνπ [do desgraçado], e publicadas por um certo gênio mau
enquanto tipógrafo autor e corretor, desde as oficinas liberais dos cristãos e
das escolas, as quais têm perturbado há tantos anos a paz da Igreja com
grande dor e calamidade dos devotos, creio, devem ser extirpadas
completamente, uma vez que nem Deus as usou no Antigo Testamento, nem
Cristo as cunhou no Novo, nem Cícero e a tribuna romana alguma vez as
ouviram. Além disso, aquelas, seguramente inventadas agora, coloco-as
nesta classe de barbarismos 52: tentoriauit, sinistrauit, dextrauit, aurizauit,
posteriorauit, inimicatus est, ingrossatus fuit, primogeniauit, superioritatem
obtinuit, e praeualescentiam incinerauit, as quais alguns, cujos ouvidos e
olhos se acostumaram aos livros ciceronianos, antes admiram que
entendem; e assim temas hebraicos são reproduzidos pelos lexicógrafos, e
traduzidos por muitos, e, em razão de ensinar, como dizem, são empregados
48
Ate, do grego ἄηε [cegueira da alma, loucura], filha de Zeus. A deusa Ate, segundo Homero, preside o destino.
A Ate homérica é uma espécie de erro trágico, com sentido religioso, em que os deuses ou um princípio
demoníaco cegaria arbitrariamente os homens, deixando-os em situação de consciência perplexa. A consciência
perplexa é aquela que, tendo sido posta diante de um dilema, julga haver pecado em qualquer opção tomada, e
„não vê como evitar a culpa. Ilíada XIX, 85-94 (Agamenon dirigindo-se a Aquiles e aos gregos):
Frequentemente inculpavam-me os fortes Argivos; contudo,
culpa não tenho nenhuma, senão tão-somente, Zeus grande,
a fatal Moira e as Erínias que vagam nas trevas espessas.
Uma cegueira feroz me ensejaram tais deuses no peito,
A qual me fez no conselho, ao Pelida privar do alto premio.
Como pudera eu reagir? São os deuses que tudo dispõem.
A Culpa é filha de Zeus, deusa excelsa que os homens conturba,
Nume funesto de pés muito leves, que a terra não roça,
Ao caminhar, mas passeia por sobre a cabeça dos homens
Ocasionando tropeços. Té seres mais altos enleia.
(trad. de Carlos Alberto Nunes)
49
As três Graças ou Cárites, Ληηαη, Litae, são, na mitologia grega, filhas de Zeus e Eurínome, companheiras de
Afrodite.
50
Os sármatas, valorosos guerreiros, nômadas e pastores, compreendem um número de tribos iranianas mais ou
menos autônomas procedentes da Ásia Central que se instalaram, entre os séculos VI-IV a.C., ao norte do Mar
Negro até ao Mar Cáspio. Ainda hoje a língua indoiraniana dos sármatas nos é quase completamente
desconhecida. Imagina-se que tenha sido um agregado de diversos dialetos locais.
51
A língua gótica, a mais antiga das línguas germânicas, não possui descendentes modernos. Seu declínio
começa por volta do séc. VI, com a derrota dos godos pelos francos e por sua eliminação da Itália; sobrevive,
contudo, na Espanha, até o séc. VIII, extinguindo-se no séc. X.
52
Humphrey apresenta aqui uma série de neologismos, a que chama de barbarismos. Vocábulos como esses,
criados na Idade Média e no Renascimento, não foram assimilados pela língua latina, e o significado de muitos
deles, para o leitor contemporâneo, pode apenas ser intuído: tentoriauit [armou uma tenda], sinistrauit [provocou
dano], dextrauit [prestou juramento], aurizauit [escutou às escondidas], posteriorauit [postergou], inimicatus est
[está mal-intencionado], ingrossatus fuit [foi aumentado], primogeniauit [agiu como um primogênito],
superioritatem obtinuit [obteve a posição mais elevada], e praeualescentiam incinerauit [reduziu a onipotência a
cinzas].

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pelos professores. Como estas palavras são novas, produzidas em nosso


século, e não corroboradas mediante uma boa tradição, são desaprovadas
nas escolas, e nos murmúrios de todos. Que as cátedras sagradas dos
teólogos não se corrompam pela torpeza de tais palavras, e nem se firam e
se irritem os ouvidos dos cristãos, e o mais importante, que a dignidade dos
mistérios de Deus não decresça pela indignidade de palavras inauditas e as
mais obscuras; que possam ser traduzidas o quanto possível mais
expressivamente, mais claramente, mais elegantemente, se não uma palavra
por outra, uma por duas, como fez muitas vezes Cícero e recomendou como
deve ser feito, e nós, forçados pela necessidade, como soem os pobres que
trabalham na indigência, devemos e somos compelidos a fazê-lo.53

Depois de todo o exposto, Humphrey reitera a necessidade de cuidar da força da


sentença, da eloquência e do gênero do autor.

São, contudo, duas as coisas que devemos diligentemente observar: uma,


que, enquanto nos dedicamos à elegância das palavras, não percamos e
negligenciemos a força da sentença; a outra, que não afetemos ou aspiremos
a uma eloquência nossa, mas das próprias fontes dos autores que
traduzimos, e que acomodemos a cada gênero dos autores o seu próprio, não
um ornato postiço. Nem deve ser maior o cuidado das palavras que o das
coisas, nem se deve apartar do modelo, como alguns florilégios que
mencionamos; nem devemos apresentar e traduzir todos os escritores da
mesma forma e modo, com o mesmo tipo e gênero de discurso, doutos e
indoutos, profanos e sacros, eloquentes e concisos, os maiores, os medianos,
os menores; mas atribuamos virtudes diferentes e desiguais aos desiguais,
nem meçamos a todos os homens com o mesmo pé e medida.54

53
Hae chimaerae uerborum ex qua tandem Aphrica, aut ex quibus Cimmeriis gentibus petitae sunt? Non enim
Romae nata nec educata sunt tam prodigiosa uocabula, pro quibus totus orbis Christianus late patens, misere et
diu conflictatur, et modo non acerbissime digladiatur: quae tamen Hebraeorum sacra lingua non agnoscit, nec
literae Graecae in Bibliis. Si uel aduersariorum importunitas, uel grauior causa eo necessitates nos detrudat,
utamur Graecorum uerbis, quoniam in fingendis ac faciendis uocibus, sint reliquis suo quodam priuilegio et
feliciores et audaciores, pro Transubstantiatione υ α, pro Transelementatione α , pro
aduerbiis, substituamus, α uel et et υ β et : aut certe Lationiora,
mutatio elementorum aut mutatio substantiae, reuera reapse, figurate symbolice, aut si quae sint alia eiusdem
generis. Exulent uero haec ex ditione Romanae linguae, ex Latinis finibus eiiciantur, redeant ad inferos unde
profecta sunt, in coetu hominum eruditorum, et bonis literis excultorum posthac non audiantur. Genuit Ate
Homerica rerum humanarum, et tranquillitatis publicae hostis, expellant Litae omnis charitatis, concordiaeque
illices. Non de re hic disputo: uerba haec Sarmatica et Gottica, typis αβ υ composita, et υ
α υ praelo impressa, ac malo quodam genio autore Typografo et correctore edita, e liberalibus
Christianorum officinis ac Gymanisiis, quae magno piorum cum dolore tum malo tot annos Ecclesiae pacem
turbarunt, prorsus profliganda censeo: cum nec Deus in Veteri Testamento usus fuerit, nec Christus in Nouo
cuderit, nec Cicero unquam Romanaque rostra audierint. Praeterea illa nunc demum excogitata, in hac classe
barbarorum repono, Tentoriauit, sinistrauit, dextrauit, aurizauit, posteriorauit, inimicatus est, ingrossatus fuit,
primogeniauit, superioritatem obtinuit, praeualescentiamque incinerauit: quae nonnulli, quorum aures et oculi
Ciceronianis libris assueti sunt, mirabuntur potius quam intelligent: at sic a Lexicographis redduntur, et a
multis transferuntur Themata Hebraica, et a professoribus docendi causa, ut aiunt, adhibentur. Quae uoces cum
nouae sint, nostro seculo repertae, et nulla consuetudine bona confirmatae e scholis explodendae sunt, omnium
sibilis: ne turpitudine talium uerborum sacrae Theologorum cathedrae inquinentur, auresque Christianorum
radantur et exasperentur, et quod praecipuum est, ne dignitas mysteriorum Dei, indignitate uerborum
inauditorum et obscurissimorum imminuatur: maxime cum significantius, clarius, elegantius, reddi queant, si
non uno uerbo, at duobus, quod saepe fecit M. Tullius et faciendum praecepit, et nos coacti necessitate, ut
pauperes solent qui laborant inopia, facere debemus et compellimur. (68-71)
54
Duo tamen sunt nobis diligenter tenenda: unum ne dum uerborum studemus elegantiae, sententiae uim

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

[...]
Omito muitas coisas obscuras e ambíguas, que ofuscam a sentença, e
destroem aquela elegância, de que falo. Não abordo todas as coisas; bastante
mostrei do que estabeleci e propus para impedir de traduzir barbarismos, e
levar a elegância e a pureza; e esta não a bel prazer, mas a que nasce da
própria letra e do autor, não a que é produzida por nós em oposição ao
pensamento e ao plano do autor. Tem, pois, cada um o seu gênio, cada um a
sua língua, mediante a qual Deus concedeu falar.55

1.4. Aptitudo: aptidão


– é adquirida dos assuntos, dos gêneros de estilos, da variedade de autores, das línguas –

O modo realmente apto e congruente de traduzir, em todos os gêneros, tem


as maiores vantagens. O essencial, pois, desta arte é ser conveniente, e torpe
é o que é inconveniente; e quem faz o que não convém, o que é indigno de
uma pessoa, é inepto e grosseiro. Pois deve-se ter consideração pela
dignidade das coisas e das pessoas. Não nos apresentemos torpemente neste
espetáculo, e, como maus atores, representemos de forma inepta nossa
história.56

É necessário adequar temas, estilos, gêneros, caráteres, escritores, etc.

Nem os temas são, pois, sempre os mesmos, nem o movimento do discurso


é sempre similar. [...] Os temas sublimes devem, pois, ser tratados de forma
tal a que não sejam expostos de modo exagerado, os ordinários, de um modo
não excessivo, os frívolos, de um modo não lacônico e seco. Mas aqueles
três estilos dos retóricos, o grande, o moderado e o humilde, devem ser
postos e expostos cada qual em seu lugar. Nem convém, pois, qualquer
sapato a todos os pés, nem qualquer roupa a Hércules; do mesmo modo nem
qualquer forma de discurso a todos os temas, mas devem ser expressas as
coisas sérias dignamente, as moderadas temperadamente, as ínfimas num
certo estilo humilde e simples. Depois, deve ser traçada a natureza dos
personagens, e é grande a diferença entre os escritores. Os poetas requerem
um tipo de discurso, os oradores outro, e os historiadores57 outro; e, entre

amittamus et negligamus: alterum, ut eam elegantiam non affectemus, aut a nobis petamus, sed ex ipsis autorum
fontibus, quos interpretamur, utque cuique autorum generi proprium suum non ascititium ornatum
accommodemus. Nec enim uerborum maior, quam rerum cura habenda est, nec ut accersamus aliquot flosculos,
discedendum est ab exemplo: nec omnes scriptores, doctos indoctos, prophanos sacros, copiosos breues,
summos, medios, infimos, eadem forma et modo, eadem specie ac genere orationis exhibere debemus et
conuertere: sed dissimiles uirtutes ac dispares tribuamus disparibus, nec uno omnes homines pede, ac mensura
metiamur. (71-72)
55
Praetereo multa obscura, et ambigua, quae offuscant sententiam, et hanc, qua de loquor, tollunt ellegantiam.
Non prosequor omnia: satis docui quod institui et proposui, ad interpretandum officere barbariem, conducere
elegantiam et puritatem: eamque non quamlibet, sed quae ex litera ipsa et autore nascitur, non quae a nobis
praeter autoris mentem et institutum adfertur. Suus est enim cuique genius, et sua singulis lingua, qua loqui
dedit Deus. (80)
56
Aptum uero et congruens interpretandi genus, in omnes partes, maximas commoditates habet. Caput enim
artis est, decere, et turpe est quod indecorum est: et qui facit quod dedecet, quod rebus, quod personis indignum
est, ineptus est, et inconcinuus. Nam et rerum et personarum pro diginitate ratio est habenda: ni turpiter nos
dare uelimus in hac scena, et ut mali actores, inepte nostram agere fabulam. (81)
57
Esta tríplice distinção de estilos entre os escritores vem desde a Antigüidade. Historici se referia não apenas
aos „historiadores‟, stricto sensu, mas a qualquer escritor que tratava seu tema de uma forma instrutiva,

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estes mesmos, um mais elevado que outro, mais copioso, mais pleno; outro
mais polido, mais rebuscado, mais suntuoso; outro mais austero, mais
rasteiro, mais árido. Mas nem sempre cada um corresponde ao seu, nem
significa do mesmo modo em todas as passagens.58

Alguns exemplos:

Virgílio apresenta um estilo chão nas Bucólicas, e canta os bosques e os


humildes tamarindos59; nas Geórgicas é um pouco mais cultivado e florido.
Já na Eneida [I, 1-5],

Ille is qui quondam gracili modulatus auena,


Carmen, et egressus siluis uicina coegit,
Vt quamuis auido parerent arua colono,
Gratum opus Agricolis: at nunc horrentia Martis,
Arma uirumque canit60;

fazendo, na verdade, ecoar o bélico da guerra. No modo como Teócrito fez


nas Églogas, Hesíodo em Os trabalhos e os dias, e Homero na Ilíada,
Virgílio seguiu aos três naqueles livros. E assim como entre os gregos,
Platão ζαπκαζηώηαηνο [maravilhosamente], Aristóteles κεζνδηθώηαηνο
[metodicamente] ao ensinar, θξππηηθόο [obscuramente] ao argumentar,
Isócrates κνπζηθώηαηνο [à maneira das musas], também entre os latinos
cada um excede e se sobressai em seu estilo, o que é necessário que o
tradutor não ignore a fim de atribuir a cada qual o seu: a Píndaro δεκλόηεηα

desapaixonada, caracterizada pelo desejo de informar. De maneira que a este grupo pertenciam os filósofos e os
tratadistas de qualquer assunto. Quanto aos oratores e poetae, a linha que os separava era determinada pela
quantidade e pelo tipo de ornamentação empregados; era mais da ordem da técnica que da substância.
58
N , […] b
tractandae sunt ut non tumide, mediocres ut non nimie, tenues ut non exiliter ieiuneque dicantur. Sed tria illa
genera Rhetorum, Grande, modicum, humile, suo quodque loco ponendum et exponendum est. Nec enim omni
pedi quiuis calceus conuenit, nec Herculi quaeuis uestis: sic nec omni rei quaelibet orationis idea, sed grauia
ample, moderata temperate, infima humili et attenuato quodam stylo sunt enuncianda. Deinde personarum ratio
ducenda est, et in scriptoribus magna est dissimilitudo. Aliam enim orationis speciem, Poetae, aliam oratores,
aliam Historici desiderant: et inter hosce ipsos alius alio grandior, copiosior plenior: alius nitidor, comptior,
lautior: alius horridior, abiectior, aridior. Imo nec unus semper sibi constat, nec eodem modo in omnibus locis
dicit. (81-82)
59
Bucolicae, IV, 2: Non omnis arbusta iuvant humilesque myricae [Não a todos agradam os bosques e os
humildes tamarindos].
60
Humphrey trouxe aqui os primeiros versos da Aeneis [I, 1-5] trocando a primeira pessoa do singular do
original pela terceira:
Ille ego qui quondam gracili modulatus auena
Carmen, et, egressus siluis, uicina coegi
Vt quamuis auido parerent arua colono,
Gratum opus agricolis: at nunc horrentia Martis
Arma virumque cano [...]

Eu, que entoava na delgada avena


Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Aos aldeãos; de Marte ora as horriveis
Armas canto, e o varão que [...]
(trad. de Odorico Mendes)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

[a magnificência], δεηλόηεηα [o talento oratório] e a força de Demóstenes, a


sutileza de Lísias, a agudeza de Hipérides, a suavidade de Ésquines. Se ele
trasladar Heródoto, que lhe permita continuar sem qualquer aspereza, como
o fluir de um rio tranquilo; se Tucídides, que seja mostrado mais incitado e,
sobre os feitos bélicos, que conclame, de certo modo, às armas. Assim, pois,
retratou-os o Orator 61, de Cícero, dedicado a Bruto, e não são, pois, todos
semelhantes, ainda que tratem de coisas semelhantes, mas dessemelhantes
no mesmo gênero, como, entre os historiadores latinos, Tito Lívio é
chamado com o nome peculiar de lácteo, proveniente de um certo estilo de
discurso de uso corrente, rico. Salústio, por outro lado, sobressai-se por sua
expressão e brevidade; pelo candor do discurso e pela propriedade de outras
coisas, Júlio César sobrepuja. Por conseguinte, os que não conservam esta
conveniência, fazem-no ineptamente, como os que crêem que nada se
diferencia nas comédias, se fala Davo ou um soberano, Taís ou Fedria, o
jovem Panfilo ou o pai e velho Simo62. 63

É tarefa do tradutor preservar a diversidade:

De um modo representam os comediantes seus papéis no teatro, de outro, os


atores de tragédia. Se tratarem de atores em cena, o que convenha, o que não
convenha a cada personagem; se Homero não descreve do mesmo modo
seus heróis, mas expõe o deforme Tersites com cores dignas, faz Aquiles
πνδάξθεο [de pés ágeis] e πόδαο ὠθύο [rápido de pés], Heitor θνξπζαίνινο
[guerreiro impetuoso], Agamenon como pastor de povos, e como que um
belíssimo touro que se eleva a chefe de uma manada, e que excede aos
demais em grandeza e estatura 64 . Acaso não julgaremos ser tarefa do

61
Orator, 39: Alter enim sine ullis salebris quasi sedatus amnis fluit, alter incitatior fertur et de bellicis rebus
canit etiam quodam modo bellicum [Um, pois, sem qualquer aspereza, flui quase como um rio tranqüilo, o outro
é mostrado mais incitado e, sobre os feitos bélicos, conclama, de certo modo, às armas].
62
Davo é nome de escravo; Taís ou Taide é o nome de uma célebre meretriz de Atenas, e Fedria é nome de
personagem cômico; Panfilo é nome de personagem cômico, e Simo é o nome com que designavam o ator que
fazia de velho nas comédias.
63
Humi repit Virgilius in Bucolicis, et arbusta canit, humilesque myricas: in Georgicis cultior est et floridior
aliquanto. Iam in Aeneide,
Ille is qui quondam gracili modulatus auena,
Carmen, et egressus siluis uicina coegit,
Vt quamuis auido parerent arua colono,
Gratum opus Agricolis: at nunc horrentia Martis,
Arma uirumque canit:
De bello nimirum resonans bellicum. Vt Theocritus fecit in Aeglogis, Hesiodus in Operibus et Diebus, et
Homerus in Iliade, quos Virgilius tribus hisce libris est sequutus. αυ α α ,
α , υ , υ α sic apud Latinos
suo quisque in genere excellit et eminet: quod interpretem ignorare non oportet, ut suum cuique attribuat,
α, h α et uim, Lysiae subtilitatem, acumen Hyperidi, lenitatem Aeschini. Si
Herodotum uertat, illum sinat sine ullis salebris quasi sedatum amnem fluere, si Thucydidem, incitatior feratur
hic, et de rebus bellicis canat quodammodo bellicum. Sic enim illos depinxit Ciceronis ad Brutum Orator, nec
enim sunt omnes similes, etiamsi tractent simila, sed in eodem genere dissimiles, ut apud Latinos Historicos,
Liuius peculiari nomine lacteus dicitur, tracto quodam orationis genere usus profluente, ubere. Sallustius sua
contra dictione praestat et breuitate: candore sermonis et proprietate caeteris Iulius Caesar antecellit. Proinde
hoc decorum qui non tenent, inepte faciunt, ueluti qui in Comoediis nihil interesse putant, Dauus loquatur an
herus, Thais an Phaedria, Panphilus iuuenis, an Simo pater et senex. (82-84)
64
Ilíada, II, 480-483:
Bem como o touro de grande manada, que a todos os outros
bois sobre-excede, e após si vai levando, reunidas, as vacas:

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Mauri Furlan

tradutor conservar esta diversidade, a fim de que se a traslade a qualquer


parte, de que represente bem e convenientemente quem criou o que deve ser
traduzido, para que não seja vaiado no palco sob a zombaria de todos, dando
a todos o que pode ser objeto de escárnio? Porque a mim bastante parece
que estes gostariam de como que todos os autores compreendessem o
mesmo do mesmo modo, expusessem os sentimentos das almas com as
mesmas palavras e a mesma língua, bem como desejariam que todos os mais
dissímiles falassem de consímile modo e expressão, os escritores de
tragédias, os comediógrafos, os poetas, os historiadores, os sacros, os
profanos; e que todos forçassem uma certa imitação inepta e às avessas de
Cícero, de forma a que Platão, Aristóteles, Moisés, Cristo, Paulo, Homero,
Aristófanes não entoassem outra língua que a ciceroniana; algo que os
próprios não quiseram, nem nunca puderam, a não ser que queiramos
misturar tudo indiferentemente, perverter o sagrado e o profano, o divino e o
humano; a não ser que façamos da Igreja um senado, de Cristo um acólito,
dos anciãos e epíscopos pontífices ou flâmines, ou senadores. Não me refiro
à expressão, quando se dá, quando não é forçada e afetada, quando
representa plenamente o espírito do escritor, mas ao gênero de estilo,
quando alguns são grandiosos, outros simples, outros intermediários, alguns
pagãos, outros cristãos, alguns relaxados e livres, outros rítmicos e
prosaicos, alguns concisos, econômicos, débeis, outros copiosos, amplos, e
acompanham o modo de dizer claro e fluente; considero algo ineptíssimo
que todos eles concluam com os mesmos períodos, se expressem com as
mesmas palavras sem diferença e misturadamente.65

Não ignoro que todos possam extrair do mesmo Cícero tesouros de


eloquência, ou que fales de modo historiográfico, ou de modo filosófico, ou
de modo oratório, ou de modo teológico, ou ainda de modo poético; há pois
uma fonte copiosíssima, de onde haure o tradutor, esteja ele empenhado no
gênero estilístico elevado, ou no mediano, ou ainda no humilde. Cícero sabe
dizer de forma moderada e comedida, passar a um modo inferior e débil,
conformar-se ao jeito de ser dos meninos, e também, quando quer, elevar-se
a um gênero de discurso nobre e sublime. Quem, pois, mais distinto que ele

tal aparência emprestou nesse dia Zeus grande a Agamêmnone


(trad. de Carlos Alberto Nunes)
65
Et aliter Comoedi suas partes in Theatro agunt, aliter Tragoedi. Si in scena Histriones obseruent, quid
quamque personam deceat, quid dedeceat: si Homerus heroas suos non eodem modo describit, sed Thersitem
deformem dignis exprimit coloribus, Achillem et α facit, Hectorem υ α ,
Agamemnonem ut pastorem populorum, et uelut pulcherrimum taurum in grege caput efferentem, et magnitudine
ac proceritate antestantem reliquis: nonne interpretis officium esse existimabimus, hanc diuersitatem tenere, ut
quocunque se uertat, apte appositeque fingat quem suscepit interpretandum, ne in hoc proscenio cunctorum
irrisione exibiletur, et deridendum se propinet omnibus? Quod sane hi mihi uidentur uelle, qui perinde quasi
omnes autores idem saperent, eodem ore et lingua sensa animorum efferrent, ita omnes dissimillimos consimili
modo et oratione loqui uolunt, Tragicos, Comicos, Poetas, Historicos, Sacros, Profanos: omnesque ad ineptam
quandum et praeposteram Ciceronis imitationem astrigunt, ut Plato, Aristoteles, Moses, Christus, Paulus,
Homerus, Aristophanes, non aliam sonent linguam, quam Ciceronianam: quod neque uoluerunt ipsi, nec
unquam poterunt, nisi omnia susque deque miscere, sacra prophana, diuina et humana peruertere uelimus, nisi
ex Ecclesia senatum, ex Christo Camillum, ex Senioribus et Episcopis Pontifices aut Flamines, aut Patres
Conscriptos faciamus. De phrasi non loquor, quum se offert, quum non est coacta et affectata, quum plene
mentem scriptoris repraesentat: sed de genere styli, quum alii grandes sint, alii tenues, alii intermedii alii
Ethnici, aii Christiani, alii soluti et liberi, alii numerosi et pedestres, alii concisi contracti minuti, alii copiosi,
fusi, et liquidum ac profluens dicendi genus sequantur, quos omnes iisdem periodis claudere, iisdem uerbis
exprimere citra discrimen et delectum, ineptissimum iudico. (84-86)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 32


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

em todos os gêneros? Quem mais sublime no estilo superior, mais simples


no inferior, mais comedido no mediano? Pois que, ensinou tudo na Retórica,
e naquilo que ensinou, qual excelente mestre excedeu. Por isso, diz-se haver
contendido com Róscio 66 , qual dos dois venceria pela abundância e
variedade; aquele pela gesticulação e declamação variada, este pela
diversidade e corrente de palavras. E nunca neguei que o mesmo autor
latino, esmerado, limado pudesse ser acomodado a todos os gregos; por
outro lado, apenas relutantemente eu permitiria a um tradutor rematar o
discurso de outros não polidos a serem lidos, exceto deste. No entanto, que a
verdade das coisas e a propriedade dos autores ocupem o primeiro lugar,
para que não pareçam outras do que o são por causa de uma versão nossa
diferente e díspar.67

E sempre considerei que Joaquim Periônio, ao traduzir Aristóteles,


trabalhou com empenho a belíssima obra, o qual, mediante esplêndida
expressão, libertou de vocábulos bárbaros os livros de dialética, física,
moral e outros. Mas observei, pois, em Aristóteles, aquilo que já demonstrei
e provei anteriormente: que difere a expressão latina da vernácula e grega
em quase todo o gênero, que são omitidos os estorvos dos períodos, que de
uma circunlocução mais breve faz-se uma conversação longa e estendida,
ora no início das sentenças, ora em outro lugar. O que é próprio de Cícero
não deve tornar-se comum a todos; que os tradutores repudiem isto ao
máximo em sua língua sempre que puderem. Tão sutil quanto arguto é
Aristóteles, preferindo palavras próprias, não metafóricas, não dilatando os
limites do discurso, restrito a uma certa concisão severa, aspirando a uma
brevidade, não àquele ὄγθνο, ou amplitude. Porque quem subtrai esta
propriedade e as argúcias de Aristóteles, e apresenta novos períodos ou
metáforas a partir de si, não me parece um tradutor veraz de Aristóteles, mas
quase um novo autor, o que certamente diz respeito a uma maneira de falar.
Hoje, pois, não atentam os doutos para aquela corrente áurea do discurso em
Aristóteles, para aquela admirável abundância, que, em época anterior,
Cícero viu e elogiou nele; tais qualidades convêm antes ao preceptor Platão
que ao discípulo. Por isso, para que se conserve aquele ηό πξέπνλ [aspecto],
uma vez empregada esta atenção diligente e distinção, deve ser reproduzido
na traslação, com discernimento, o que a cada um é próprio seu, e devem ser
tomadas de Cícero não aquelas coisas que cheiram a Cícero, mas que
possam da melhor maneira e a mais adequada saber a idiomatismos,
natureza, engenho e expressão em seu sabor nativo. 68
66
Róscio, famoso comediante de Roma.
67
Non me latet omnes ex Cicerone uno thesauros eloquentiae depromi posse, siue historice, siue filosofice, siue
oratorie, siue theologice, siue etiam poetice loquaris: est enim fons uberrimus, unde hauriat interpres, seu in
summo genere occupatus sit, seu in medio, seu etiam humili: nouit ille modice et temperate dicere, ad depressum
ac tenuem modum descendere, et ad puerorum captum se demittere, et etiam ubi uult, ad altum et exaggeratum
genus orationem attollere. Nam quis illo in omni genere praestantior? quis in illo summo charactere sublimior,
gracili tenuior, in medio temperatior? Quoniam in Rhetoricis omnia docuit, et quae docuit uelut optimus
magister praestitit. Itaque cum Roscio contendisse dicitur, uter alterum copia uarietateque superaret: ille gestu
ac pronunciatione uaria, iste uerborum diuersitate et flumine. Neque unquam inficias iui, posse omnibus Graecis
eundem autorem Latinum, tersum, limatum accomodari: imo uix alios impolitos praeter hunc interpreti ad
exaedificandam orationem suam admitterem sequendos. Tamen ueritati rerum, proprietati autorum primus locus
sit, ut non alii quam sunt, nostra uersione differente et dispare uideantur. (86-87)
68
Et Ioach. Perionium pulcherrimam operam in Aristotele conuertendo nauasse semper existimaui, qui
Dialectica, Physica, Moralia, aliosque libros a barbaris uocabulis, splendida dictione uindicauit. Sed enim illud

33 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

O respeito ao gênio de cada língua, o da qual traduzimos e o para a qual traduzimos.

De tudo isto, dois preceitos devem ser observados: primeiramente que, o


quanto for possível, conservemos o idiomatismo da língua da qual
traduzimos. Assim, com efeito, os estudiosos das línguas obtêm mais
rapidamente conhecimento sobre aquela que lhes interessa. Há, pois, grande
afinidade e relação entre idiomatismos, como já se viu em exemplos
apresentados. Portanto, menor a possibilidade de nos equivocarmos de
caminho se trilharmos aquele que o autor nos mostra e, sobretudo, nos abre.
Do contrário, confiados em nosso engenho, podemos muito facilmente, e
costumamos muito frequentemente, enganar-nos, iludir-nos, delirar.69

Em segundo lugar, que ajamos cautelosamente, e não sirvamos àquela


língua a ponto de termos pouquíssima obrigação com a nossa, que
utilizamos, mas que lhe seja dada toda a atenção, a fim de que utilizemos as
palavras adequadas ao uso da língua na qual traduzimos. Do contrário,
trasladarás muitas coisas de modo ridículo, inadequado, obscuro,
monstruoso, visto que há como que uma certa proximidade e semelhança,
bem como uma insigne e clara desarmonia entre todas as línguas.70
[...]
Para este ponto se dirige todo este discurso, para que se atinja a aptidão, por
ser necessário, de conhecer perfeitamente a similitude e a dissimilitude das
línguas; para que, uma vez conhecidas todas as palavras, as simples e as
compostas, com suas propriedades e suas diferenças, aprendamos exata e
adequadamente a traduzir as coisas, e não comecemos, como pintores
inexperientes humano capiti ceruicem iungere equinam 71 [a juntar a uma
cabeça humana um pescoço equino], e a unir coisas discordantes que não

in Aristotele obseruaui, quod et ante demonstraui et probaui, dictionem Latinam a uernacula et Graeca toto
propemodum genere dissidere, periodorum septa transiliri, ex breuiore ambitu, longam et circumductam
conuersionem effici, tum in sententiarum initiis, tum alibi: quod quum sit Ciceronis proprium, cum omnibus fieri
commune non debet: maxime quum ipsi hoc quantum possunt repudient in sua lingua: et subtilis est Aristoteles
et argutus, propriis uerbis non translatitiis gaudens, non dilatans orationis pomoeria, sed quibusdam arctis
circumscriptus angustiis, breuitatem, non illum , seu amplitudinem affectans. Quare hanc proprietatem et
argutias qui Aristoteli detrahit, et nouas circumductiones aut metaphoras accersit de suo, no mihi germanus
explicator Aristotelis, sed nouus fere autor uidetur, quod ad eloquutionem quidem attinet. Non enim hodie
aureum illud flumen orationis, animaduertunt docti in Aristotele, non illam admirabilem copiam, quam in eo,
superiori aetate, uidit et praedicauit Cicero: illae uirtutes praeceptori potius Platoni, quam discipulo congruunt.
Itaque quo illud conseruetur, hac diligenti animaduersione et distinctione adhibita, cum iudicio suum
est cuique proprium in translatione reddendum, et ex Cicerone sumenda sunt non quae Ciceronem redoleant,
sed autoris idiomata naturam, ingenium, dictionemque resipere natiuo suo sapore optime possint et aptissime.
(87-89)
69
In his omnibus, duo praecepta tenenda sunt: primum ut quantum fieri potest, eius linguae idiotismum
retineamus, ex qua transferimus. Sic etenim citius pertingent linguarum studiosi ad eam quam cupiunt,
cognitionem. Est enim magna idiomatum affinitas et cognatio, ut iam adductis exemplis declaratum est. tum
minus errabimus a uia, cum eandem ineamus, quam autor et monstrat, et prior intendit: alioqui nostro freti
ingenio, labi, falli, hallucinari et possumus facillime, et solemus saepissime. (99)
70
Alterum est, ut caute agamus, ne ita seruiamus illi linguae, ut nostrae qua utimur parum pensi habeamus, sed
danda omnino opera est, ut uerbis utamur aptis ad eius linguae consuetudinem, in quam conuertimus. Alio qui
multa uerteris ridicule, inepte, obscure, monstrose, quippe cum sit, omnium linguarum ut quaedam uicinitas et
similitudo, sic insigne et manifestum dissidium. (99-100)
71
Horácio, Ars poética, 1-2: Humano capiti ceruicem pictor equinam / iungere si uelit [Quisesse um pintor
juntar a uma cabeça humana um pescoço equino].

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 34


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

permitem qualquer associação. Nem é, pois, único e mesmo o sistema de


todas as línguas, ou seja, não há uma paridade única com nenhuma, nem
entre as palavras isoladas, nem na junção das palavras.72

A clareza, companheira de todos.

Apresento agora a clareza (perspicuitas) seguidora de todas estas virtudes,


mais propícia no conhecimento, necessária no uso, para que seja levada,
como se um tipo de sangue, a todas as partes do discurso. Que é, pois, um
discurso se for de tal modo obscuro que não possa ser entendido, de tal
modo tenebroso que não possa ser apreendido? Aristóteles convoca a
ζαθήλεηα [clareza] e afirma sua necessidade e utilidade quando diz que não
deve ser proferido qualquer discurso, nem é cumprido seu dever, se não
significar clara e perspicuamente. Será, pois, o discurso do tradutor dilúcido
e aberto, se trouxer de novo ao espírito e guardar na memória aquelas coisas
por mim referidas sobre a propriedade, a pureza e a aptidão. São, pois, a
propriedade e a clareza companheiras inseparáveis; e nada mais dilúcido que
a pureza, ao contrário, nada mais obscuro que a barbárie. E claro é o que
quer que for apto, e é mais emaranhado, atrasa o movimento do leitor e
estorva a inteligência o que não é traduzido de modo conveniente e
conforme. Cícero, em De partitione oratoria, sobre a ilustre e dilúcida luz
do discurso, e Aristóteles, πεξὶ θαὶ πξὸ ηῶλ ὀκκάησλ πνηεῖλ 73 [fazer
próximo e diante dos olhos], devem ser consultados a fim de entendermos
os preceitos da clareza, se, ao traduzir, tivermos querido trazer luz, e não
espalhar trevas, o que muitas vezes acontece quando o autor é não raramente
mais claro que o tradutor.74

Vícios a serem evitados: hermetismo, hipérbato, sínquese.

O tradutor deve se afastar dos vícios, se não quiser falar de modo bárbaro e
ambíguo e nem as sentenças sejam mutiladas, nem as palavras obscuras,
nem a ordem perturbada ou destroçada, nem o discurso transborde ou
vagueie, nem claudique no sentido. Se eles forem também espinhos ou
pedras no autor, se herméticos, uma expressão de certa forma mais arrastada

72
Huc tendit omnis oratio, ut ad hanc aptitudinem deueniatur, per opus esse, linguarum callere similitudinem et
dissimilitudinem: ut cognitis omnium uerborum, simplicium et continuatorum proprietatibus ac differentiis, apte
discamus et commode res interpretari, nec cum imperitis Pictoribus, Humano capiti ceruicem iungere equinam,
incipiamus, et absurda connectere, quae nullam societatem patiuntur. Nec enim una est et eadem ratio omnium
linguarum, imo unius est non una parilitas, nec in uerbis singulis, nec in uerborum coniunctione. (112)
73
Em Retórica, 1411b : ηῷ πξὸ ὀκκάησλ πνηεῖλ.
74
Pedissequam harum uirtutum omnium nunc addo perspicuitatem, cognitione facillimam, usu necessariam: ut
quae per omnes partes orationis, tanquam sanguis quidam, sit diffusa. Quid enim est oratio si ita sit obscurata,
ut non intelligi, ita tenebricosa, ut comprehendi nequeat? Aristotel. αφή α uocat, eiusque declarat
necessitatem et utilitatem, cum ait ne orationem qudem dici debere neque officium suum facere, si non clare et
perspicue significet. Erit autem sermo interpretis dilucidus et apertus, si quae de proprietate, puritate et
aptitudine sunt a me recitata, animo repetere uelit et memoria tenere. Sunt enim proprietas et perspicuitas
indiuiduae comites:et puritate nihil dilucidius, e contrario barbarie nihil obscurius. Et clarum est, quicquid est
aptum, et impeditius est, ac remoratur cursum legentis, impeditque intelligentiam, quod non apposite et
accommodate transfertur. Cic. de Illustri et Dilucido orationis lumine in Partitionib. Oratoriis, et Aristot.
α , in consilium adhibendi sunt: ut perspicuitatis praecepta intelligamus: si lucem
affere, non tenebras offundere, uoluerimus interpretando: quod saepe fit cum autor non raro sit explicatore
lucidior. (114-115)

35 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

e mais longa, se uma elipse ou uma reticência, se uma sínquese 75 ou um


hipérbato, se um anantapódoto 76 , fazem parte e são tarefas do tradutor
competente aplainar, encurtar, ampliar, completar, explicar, corrigir.77

2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor)

A segunda parte do primeiro livro do tratado de Humphrey, que é também a segunda


parte que aborda a uia media, trata das tarefas do tradutor: natureza, instrução, fé & religião,
diligência.

Resta que eu trate, com a brevidade que possa, da formação do próprio


tradutor. Requer-se, pois, dele, principalmente quatro coisas, com as quais
deve se preparar e se munir: uma natureza idônea, uma educação refinada,
uma fé religiosa, uma dedicação exclusiva. Pois de modo algum incluo nesta
classe de pessoas o homem indócil e inepto, ignorante e inexperiente, de
pouca fé e irreligioso, que boceja e mesmo dormita. Os recursos, pois, de
tradução, que supra mencionei, poderiam ser apresentados e preservados por
um homem deste tipo? O tradutor provido e dotado deve ser considerado
por sua boa condição e pleno mérito, se sua natureza sabe criar, sua arte
nutre e educa, sua fé realiza e fortalece, impele e anima a fazer um trabalho
com aplicação. E se foi feito e gerado pela natureza para esta tarefa, mas for
indouto, nada produzirá; e se, embora douto, não realizar pela boa fé aquilo
que deve, e se também for negligente e de parca consideração, parecerá
pouco digno ante tamanha dignidade do tradutor. São, por isso, essas coisas
praticamente imprescindíveis. Outras ainda são auxílios e reforços, mas
porque, apesar de serem muito úteis, não são fundamentais, omiti-las-ei
neste livro e momento. Em outro lugar, haverá um espaço maior para
desenvolvê-las.78

75
Inversão da ordem natural das palavras, que obscurece a frase.
76
Tipo de anacoluto, no qual se dá ausência de apódose, isto é, quando falta a segunda parte de um período
gramatical, de cujo sentido é complemento; uma oração incompleta.
77
Vitia sunt declinanda interpreti, ne barbare loquat, ne ambigue: ne discerptae sint sententiae, ne uerba
obscura, ne ordo perturbatior, aut hiulcus, ne fluat aut uagetur oratio, aut ne in sensu claudicet. Si quae sint
etiam spinae aut salebrae in autore, si Hermes, tractior scilicet conuersio ac longior, si Eclipsis aut reticentia, si
Synchysis aut hyperbata, si anandapodota: complanare, contrahere, dilatare, supplere, explanare, corrigere,
probi interpretis partes sunt et munia. Sed de interpretatione finem dicendi faciam. (115)
78
RELIQVVM est, ut de formando ipso interprete quanta possum breuitate agam. Quatuor itaque in eo
requiruntur potissimum, quibus praeparari et praemuniri debet. Natura idonea, doctrina elegans, religiosa fides,
singularis diligentia. Nam hominem indocilem et ineptum, ignarum rerum ac imperitum, parum fidum et
irreligiosum, oscitantem denique et dormitantem in hoc numero neutiquam colloco. Quae enim supra posui
interpretationis ornamenta, ab eiusmodi homine adhiberi et praestari qui poterunt? His ornatus et auctus
interpres iure bono et suo sane merito habendus est: si Natura fingat, doctrina alat et educet, fides perficiat et
corroboret, moueat et excitet ad opus faciendum diligentia. Et si a natura ad eam rem factus et natus sit, tamen
indoctus, nihil efficiet: sin doctus quoque, nisi bona fide quod debet exequatur, et si negligens quoque sit et
incogitans, minime dignus hac tanta interpretis dignitate uidebitur. Sunt ergo haec pene necessaria. Alia quoque
sunt adiumenta et subsidia interpretis, sed quia utilia sunt tantum, non ita pernecessaria, hoc libro et loco missa
faciam: alibi fusius explicandi de illis locus erit. (115-116)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 36


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2.1. Natura: natureza


– feliz, mediana, inepta –

A disposição natural, pois, por ser a primeira na ordem e no tempo, deve,


assim, ocupar aqui o lugar principal. Os pagãos pensavam ser essa uma certa
força admirável, ou um deus; eu acredito que é o fogo e o sopro do Espírito
Santo para as coisas que devem ser geradas com ardor e realizadas com
valor, introduzido e concedido ao homem, e um certo dom superior de Deus,
estendido a elas por um arrebatamento generoso da alma, que, diz-se, foi
estabelecida, ou antes, instruída, pela natureza ou pelo Espírito Santo.79

Assim como Platão atribui aos vates uma certa loucura e uma fúria, e os
poetas apoderam-se, reivindicam uma certa luz com a qual deve-se recitar a
poesia, também devemos considerar que cada um recebe por graça divina
sua inspiração, ἐλζνπζηαζκόο [inspiração], e estando ela em atuação, ele se
inflama e é por ela tomado; não a mesma para todos os homens, mas de
acordo com sua origem, têm naturezas distintas, para que não todos possam
tudo, mas cada um uma determinada coisa, consoante foi chamado pelo
Deus justo dispensador e administrador dos bens. Ninguém, na verdade,
assuma uma tradução, se não tiver sido para isso provido com os dons da
natureza. “Os engenhos forçados desempenham-se mal” [De tranquillitate
animi, VI, 4], escreveu Sêneca. Assim, pois, deve-se considerar a habilidade
e o engenho, do mesmo modo que para outras coisas, também para esta
obter o máximo vigor; e, de certo, ninguém, a não ser um desprovido da luz
da natureza, negará o lustre e o brilho de todas as coisas mais belas dali
nascidos. De modo preclaro, Cícero disse [Oratio por Archia, VII]: “Mais
freqüentemente a habilidade sem educação contribuiu para a glória e a
virtude do que a educação sem habilidade”.80

Pode-se, pois, perceber muitos, tão hábeis e aptos por graça da boa mãe
natureza, que parecem não natos mas feitos por Deus. Por outro lado,
outros, de tal modo infelizes, deselegantes e inapropriados, como se, contra
Minerva81 e com as Graças iradas e as Musas pouco favoráveis, tivessem
nascido apenas por direito. Assim são os ἀπάιαηζηξνη [desvalidos] e os
totalmente incapazes, aos quais se dirigem aquelas palavras de Horácio82:
nada fazem ou dizem estando contrária Minerva, isto é, na interpretação de

79
Natura igitur, ut prima est ordine et tempore, ita hic principem locum obtinere debet. Hanc Ethnici
admirabilem quandam uim esse putauerunt, siue Deum: ego Spiritus S. inflammationem atque afflatum ad res
gnauiter suscipiendas, et perficiendas fortiter homini inditum ac tributum esse credo, et Dei quoddam donum
eximium, quo fertur generoso animi impetu ad quae est a natura institutus, uel a Spiritu S. potius edoctus. (116-
117)
80
Vt Plato Vatibus furorem quemdam et rabiem attribuit, et Poetae sibi numen quoddam quo ad carmen
canendum rapiuntur, uendicant: sic consiteri debemus esse cuique suum diuinitus ἐ υ α ,
agitante incalescit et corripitur: nec eundem uni homini, sed ut orti sunt, dissimiles habent singuli naturas, ut
non omnia possint omnes, sed quaedam quisque, prout est a iusto dispensatore et administratore bonorum Deo
uocatus. Ad hanc interpretationem uero nemo se recipiat, nisi muneribus naturae ad id instructus. Male enim ut
Seneca scripsit, respondent coacta ingenia. Sic enim est existimandum naturam atque ingenium, ut ad caetera,
sic ad hoc uim afferre maximam: et profecto scintillas et igniculos omnium rerum pulcherrimarum hinc natos
nemo nisi naturae lumine uacuus diffitebitur. Praeclare Cicero ut omnia, Saepius ad laudem, inquit, et ad
uirtutem naturam sine doctrina, quam sine natura ualuisse doctrinam. (117-118)
81
Inuita Minerua, isto é, contra a natureza, o gênio, o talento, a aptidão.
82
Ars poética, 385: Tu nihil inuita dices faciesue Minerua [Tu nada farás ou dirás contra a vontade de Minerva].

37 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

Cícero [De officiis, I, 110], “contrário e incompatível com a natureza”. É,


pois, necessário aqui o voto de Minerva para aprovar a lista e a ordem dos
bons tradutores. A estes os gregos chamaram de engenhosos e bem
nascidos, εὐθπεῖο [talentosos], nos quais infundiram-se as falculdades tanto
da eloqüência quanto de todas as outras coisas, como Isócrates deixou
escrito em Contra os Sofistas. A técnica pode ajudar, mas não dar; limar,
mas não inserir; corrigir e melhorar, mas não dar ou conceder a qualidade
própria da natureza.83
[...]
Na verdade, estas coisas não devem ser tratadas por muitos, pois envolve
toda a questão da natureza, não da técnica, e por isso nenhum preceito pode
ser aqui estabelecido, a não ser o de que a boa qualidade do engenho e da
natureza seja aperfeiçoada mediante uma preservação e um cultivo
diligente; e a formação, que pouco vale para aqueles outros, seja
continuamente estimulada e fortalecida, para que progrida. Contudo, porque
cada um se distingue do outro de uma forma, aplique nisso suas forças e
engenho, o quanto for conveniente. Assim como fazem os histriões, que
representam não as melhores histórias, mas as mais adequadas, escolham
aqueles os livros mais convenientes para os traduzirem.84

Existem, pois, alguns de uma natureza mais grave e recôndita, estes são
levados à tragédia; e outros impetuosos, como Homero ou Tucídides,
preferem cantar a guerra. Em outros, encontra-se a graça e a alegria, e mais
os deleitará o cômico da urbanidade. De outro lado, este lê e traduz com
prazer a história, aquele é atraído mais avidamente para a poética, outro é
impelido mais vivamente para os oradores; todos são seduzidos por uma
certa paixão inata sua e são chamados para onde a alma, a vontade e a
natureza melhor conduz. Embora todos possamos todas estas coisas, tanto o
cantar de modo poético, como o declamar de modo oratório, e o narrar de
modo histórico, contudo, preferimos lançar-nos sobre umas mais que outras,
como se dependesse de nossa vontade e arbítrio a escolha dos autores, e não
da obediência à solicitação, à deliberação, à ordem de outros. Na verdade,
como já disse, o procedimento sobre estas coisas não pode ser prescrito pela
técnica, e nem toca, pois, obviamente, na técnica. Deve-se rogar a Deus para
que não se recuse a conceder este talento, se faltar; se existir, que o
engrandeça; que suavize o engenho plúmbeo, aguce o obtuso, para que seja
permitido aos mais notáveis escritores publicarem os textos ocultos em pó e
deterioração, e darem à luz os emendados, a fim de que possam ser
83
Cernere enim licet multos, ita naturae benignae parentis beneficio habiles et aptos, ut non nati, sed ficti a Deo
esse uideantur. Contra alios adeo infelices, inelegantes et auersos, ut inuita Minerua, et iratis Gratiis, Musisque
parum propitiis genitos fuisse iures. Ita sunt α bh b H ,
Nihil eos facere aut dicere inuita Minerua, id est, Cicerone interpretante, repugnante et aduersante natura. Est
ergo necessarium hic Mineruae suffragium, ut in hoc album ordinemque bonorum interpretum asciscatur. Istos
b φυ , b f ,
caeterarum rerum omnium ingenerantur, ut scriptum reliquit in Orat. contra Sophistas Isocrates. Hanc naturae
bonitatem adiuuare potest Ars, non dare, limare non inserere, corrigere et meliorem facere, non donare aut
tribuere. (118-119)
84
Verum haec pluribus non sunt tractanda, est enim res haec tota naturae non artis, itaque nulla hic comparari
potest praeceptio: nisi ut ingenii ac naturae bonitas cultu diligenti et custodia excolatur: et disciplina, qui illis
aliis parum ualet, se assidue exerceat atque confirmet, ut proficiat. Quoniam autem alius in alio genere praestet,
ad id uires suas ingeniumque conferat, ad quod erit accommodus: ut histriones faciunt, qui fabulas agunt non
optimas sed aptissimas, sic illi libros sibi ad interpretandum deligant accommodatissimos. (123-124)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 38


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

abarcados pela ciência, expostos em discurso latino, e conservados na


memória.85

2.2. Doctrina: instrução


– conhecimento dos assuntos, polimento do discurso –

A seguinte é a formação, guia e aperfeiçoadora da natureza; o que Cícero, o


mais eloquente dos sábios, o mais sábio dos eloquentes, assim ensinou em
Oratio pro Archia poeta [7]: “E também sustento eu que, quando a uma
natureza superior e distinta se tenha unido uma formação metódica e
profunda, então costuma resultar um não-sei-quê luminoso e
extraordinário”.86
[...]
À formação, portanto, se dirige nosso discurso; é necessário, pois, que seja
experiente aquele que deseja ser um tradutor fiel e verdadeiro, o qual
buscamos. E não queremos, pois, um tradutor rude e ignaro, ou um homem
de recados que, ademais de vazio de palavras, do ruído e do alarido, não é
provido de nenhuma ciência. Frequentemente, pois, adentra um caminho
não sempre uniforme e plano, mas coberto com matagais e espinhos, no
qual encontram-se muitos obstáculos, e retardos e dificuldades, os quais o
artífice versado e douto facilmente desembaraça. Aqui, há de se buscar a
força da instrução e da inteligência, caso ocorra um mau encadeamento.
Mas assim como requeremos erudição, também excluímos desta classe e
posição a má educação. Existem, pois, alguns doutos mas não
suficientemente sãos e corretos, porém corrompidos e enviesados, de modo
que teria sido melhor se lhes tivesse cabido ser rudes e desprovidos antes
que como se cheios de dicas para artes inúteis e desnecessárias, ou
impregnados de opiniões perniciosas; dentre os quais sobressaíram os
donatistas, os arianos, Porfírio, Martion, os maniqueístas87 e outras pestes,

85
Sunt enim quidam natura seueriore et recondita, hi ad Tragica feruntur: et classicum alii animosi cum
Homero aut Thucydide malunt canere. In aliis lepos inest et hilaritas, illos magis comica delectabit urbanitas.
Rursus hic legit et conuertit historica lubentius, ille ad poetica rapitur auidius, alter ad oratores impellitur
incitatius: omnes sua quadam innata cupiditate trahuntur et uocantur eo quo animus, quo uoluntas et natura
ducit maxime. Quanquam haec possumus omnes omnia, et poetice canere, et oratorie declamare, et historice
narrare, sed tamen ad alia magis quam ad alia deuolare malumus, si sponte nostra arbitrioque eligendi autores
essent, ac non aliorum impulsu uel consilio uel imperio parendum. Verum de istis, uti iam dixi, arte praecipi non
potest: nec enim uidelicet cadit in artem haec tractatio. Rogandus est Deus, ut is commoditatem hanc non
grauetur dare si desit, si adsit, augere: ac ingenium plumbeum emollire, obtusum exacuere, ut praestantissimos
scriptores puluere et situ obductos publicare liceat, et conuersos in lucem emittere, quo scientia comprehendi,
oratione Latina explicati, queant, et memoria custodiri. (124-125)
86
Proxima est Doctrina, naturae dux et perfectrix: quod pro Archia poeta sic docuit Cicero sapientum
eloquentissimus, eloquentium sapientissimus. Idem ego contendo, cum ad naturam eximiam atque inlustrem
accesserit ratio quaedam conformatioque doctrinae, tum illud nescio quid praeclarum ac singulare solere
exsistere. (125)
87
Sectários de doutrinas religiosas consideradas heréticas pela Igreja Católica.
- O donatismo deve seu nome a dois bispos com o mesmo nome, Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia, e
Donato, o Grande, bispo de Cartago. Os donatistas defendiam que os sacramentos só eram válidos se quem os
ministrasse fosse digno. Na religião católica, porém, crê-se que os sacramentos valem por si, seja o ministrante
(geralmente um sacerdote) um indivíduo corrupto ou não. Os donatistas foram muito influenciados por São
Cipriano, Montano e Tertuliano, e muito combatidos por Santo Agostinho, bispo de Hipona.
- O arianismo, um pensamento sustentado pelos seguidores de Arius nos primórdios da Igreja, negava a
consubstancialidade entre Jesus e Deus. Jesus seria subordinado a Deus, seu filho, e não o próprio Deus, que é
único. Esta doutrina foi condenada pelo Concílio de Nicéia, em 325.

39 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

que se esforçaram por atacar os ortodoxos, armados com ciências e línguas


tanto quanto com flechas e dardos; e, com todos os recursos de sua doutrina
e as armas e como que com os aríetes, investir em sacrifício contra a santa fé
dos católicos.88

2.2.1. Conhecimento da matéria, da teologia e da filosofia a serem traduzidas

Há, assim, o conhecimento das coisas, γλῶζηο, e o da elocução das palavras,


ιόγνο. Primeiramente, pois, é mister que se obtenha o conhecimento das
coisas, tanto das divinas como das humanas, a fim de que o tradutor possa
ser formado nas artes e no aprendizado de muitas e grandes coisas. O saber
e o discernimento das artes é, pois, a base e a sede das palavras; assim como
o conhecimento é a luz das coisas, da humanidade e dos escritos dos mais
bem instruídos. Por isso, assim como o tradutor silente, mudo, ineloquente
ao se expressar, costuma ser criticado com razão, porque, ali onde se privou
de recursos deveria manifestar as coisas obscuras e ocultas em sua natureza,
e exibi-las aos olhos e ouvidos dos homens; também não está isento de
repreensão aquele que, nu e desarmado, e sem experiência das coisas mais
úteis para o traduzir, aspira a uma função árdua e difícil. Assim, a ele deve
ser disposto o conhecimento.89

A principal, a primeira e a rainha de todos é a sabedoria de nossa religião,


que é chamada certamente com o mais digno nome de teologia. Ela é
concebida das fontes sagradas dos escritos divinos, de onde a água flui e
avança para a vida eterna. Mas também as explicações, ou esclarecimentos,

- Porfírio (ca.232-ca.304), filósofo neoplatônico e um dos mais importantes discípulos de Plotino, foi um
violento opositor do cristianismo e defensor do paganismo. Escreveu uma obra intitulada Contra os Cristãos, da
qual nos chegaram apenas fragmentos, em que atacava os apóstolos, os líderes de Igreja, o Antigo e o Novo
Testamento. Diversos tratados foram escritos contra ela, destacando-se os de Eusébio de Cesaréia, Sidônio
Apolinário, Metódio de Olímpo e Macarius Magnes. Foi também criticado por Santo Agostinho em famosa
polêmica com o paganismo, expressa na obra De ciuitate Dei contra paganos.
- Martion, herege que ensinava que as criações de Deus, como a carne, o pão, o vinho não valiam nada e eram
impuras.
- O maniqueísmo surge da filosofia ensinada pelo profeta persa Mani (séc. III), na qual um dualismo divide o
mundo entre o Bem e o Mal. A matéria seria intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom.
88
Ad doctrinam ergo nostra se conferat oratio: peritus enim sit oportet qui interpres fidus et uerus esse cupit,
qualem quaerimus. Nec enim rudem et ignarum uolumus, aut baiulum interpretem qui praeter inanem uerborum
sonitum et strepitum, nulla sit ornatus scientia. Saepe enim uiam ingredietur non semper aequabilem aut
planam, sed uirgultis ac spinis obsitam, in qua impeditio multa, ac remorae atque difficultates incidunt, quas
gnarus et doctus artifex facile expediet. Hic ergo doctrinae et intelligentiae cuneus est quaerendus, si malus
forte nodus accidat. Sed ut eruditum requirimus, ita male institutum ab hoc ordine numeroque excludimus. Sunt
enim nonnuli docti sed non satis sane et recte, at uitiose et praepostere, ut praestiterit rudem et uacuum uenisse,
quam inutilibus et superuacaneis artibus quasi retro odore tinctum, aut perniciosis infectum opinionibus: quales
extiterunt Donatistae, Ariani, Porphyrius, Martion, Manichaei et caeterae pestes, qui armati disciplinis et
linguis tanquam spiculis aut iaculis, orthodoxos confodere nixi sunt: omnibusque doctrinae praesidiis et
machinis, quasique arietibus sacro sanctam Catholicorum fidem oppugnare (125-126)
89
, b Primum enim rerum cognitio tum
diuinarum tum humanarum summo est acquirenda opere, ut interpres ab artibus, et a multarum et magnarum
rerum disciplina instructus esse possit. Fundamentum enim et sedes uerborum, est haec artium prudentia et
elegantia: ut lumen rerum est, humanitatis et politiorum literarum notitia. Ergo ut elinguis et mutus ac in
dicendo infans interpres iure culpari solet, quod eo sit destitutus ornamento quo res abstrusas et sua natura
absconditas aperire deberet, et auribus oculisque hominum explicare: ita reprehensione non caret is, qui nudus
et inermis, rerumque utilissimarum peritia inanis ad interpretandi aspirat arduam difficilemque prouinciam. Est
ergo comparanda illi cognitio. (128)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 40


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

ou homilias, ou sermões, ou comentários, ou anotações, ou notas 90, ou outro


tipo de discussões piedosas devem ser cuidadosa e atentamente lidos pelo
nosso tradutor. Não são poucas as coisas neles contidas, as quais ele pode
verter para sua língua, mas que, com critério, no entanto, selecione as
adequadas. Muitas vezes, pois, o infeliz joio nasce no campo junto ao
melhor trigo.91

Com efeito, a filosofia e outras artes devem ser provadas e absorvidas; em


suma, em todos os casos, ele trata e traduz um assunto, seja na Política, seja
na Ética, seja na Matemática, seja na Lógica, seja também nos livros De re
rustica, ou De re nautica92, nas demais artes [liberais] ou nas mecânicas, em
sua língua ou em uma estrangeira, e deve entendê-lo e conhecê-lo
perfeitamente; ignorá-lo é vergonhoso e inaceitável. Pois querer traduzir o
que desconheces é estultice e insanidade; e declarar que sabes o que ignoras
é como que mercadejar publicamente tua ignorância com uma declaração
própria.93

Além disso, visto que muitas vezes exemplos ocorrem em todos os escritos,
deve ser ampliado o conhecimento de toda a Antiguidade, deve a história ser
continuamente revisitada, devem ser conhecidos os cânones, os escritores,
os concílios da Igreja, o quanto for necessário, e os anais e as obras literárias
da Judéia, da Grécia, e da República romana. Tudo isso deve estar muito à
mão, porque será de grande proveito. Mas, principalmente porque importa
para a eloquência do tradutor, deve-se dar atenção sobretudo à palavra a ser
polida e aperfeiçoada. Na verdade, esta parte abarca ὁ ιόγνο [a expressão],
evidentemente, todos os elementos lógicos, os quais consideram o aparato, a
construção e a estrutura do discurso. Depois, as línguas. Mas primeiramente
tratarei de umas poucas artes, da Gramática, da Retórica e da Dialética. Sem

90
Homiliae, Commentarii, Annotationes e Scholia são referências a gêneros de textos que tratavam de explicar,
comentar, estudar, assuntos da religião e dos escritos sagrados.
91
Princeps et prima ac regina omnium est religionis nostrae sapientia: quae Theologia nomine certe dignissimo
appellatur. Hauritur illa e sacris fontibus diuinarum literarum unde aqua fluit et exilit in uitam aeternam. Sed et
interpretum enarrationes, siue expositiones, siue Homiliae, siue sermones, siue Commentarii, siue Annotationes,
siue Scholia, siue aliae piae tractationes nostro interpreti diligenter sunt legendae et attente. Habentur in illis
non pauca, quae in usum suum conuertat, sed cum iudicio tamen excerpat consentanea. Agro enim saepe et
tritico optimo infelix lolium innascitur. (128-129)
92
Aparentemente, Humphrey, ao aludir à Política, Ética, Matemática e Lógica, estaria referindo-se ao
pensamento de Aristóteles e sua obra, no entanto, Aristóteles não tratou da matemática. Por outro lado,
Humphrey também poderia estar ampliando o leque de assuntos com os quais o tradutor se depara, seja na
filosofia, seja em outras artes. Na época de Aristóteles, o saber por antonomásia constituía-se pelos quatro
mathemata [conhecimentos]: aritmética, geometria, astronomia e música; são essas quatro artes que comporão o
quadriuium, que, junto ao triuium (gramática, retórica, dialética), constituem a rede de „artes liberais‟, próprias
do sistema educacional durante a Idade Média. Às artes liberales opunham-se as artes mechanicae, que são as
atividades manuais. De re rustica [Sobre questões rurais], de Columela; De re nautica [Sobre questões náuticas]
pode ser a obra de Lilius Gregorius Giraldus, publicada em 1540.
93
Quinimo philosophia et aliae artes sunt uel libandae uel imbibendae etiam: in summa quam rem cunque
tractat et intepretatur, siue in Politicis, siue in Ehticis, siue in Mathematicis, siue in Logicis, siue in libris etiam,
De re rustica, siue re nautica, r ’ h , b
ignorare deforme est et dedecet. Nam quod nescis, uelle interpretari stultitiae est insaniae: et profiteri te scire
quod ignoras, est inscitiam tuam domestico praeconio quasi publice uenditare. (129)

41 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

dúvida, estas são as artes primeiras e menores94, contudo, elas servem ao


máximo o interesse do tradutor, acima das outras.95

2.2.2. Submetem-se ao discurso: Gramática, Retórica, Dialética, Línguas

A gramática, na forma como foi concebida e compreendida, é considerada a


mais baixa, e o é completamente, porque seu fundamento está colocado na
parte mais baixa; e se tentares construir e rematar outras [artes], sem como
que sujeitá-las à base gramatical, nunca ascenderás ao cume, mas ruirá e
sucumbirá, contudo, toda a esplêndida e ilustre invenção. Nem os fastígios
subsistem sem fundamentos, nem se atinge as alturas sem as profundezas.
“De todas as grandes artes, assim como das árvores, deleita-nos sua altura,
não da mesma forma suas raízes e troncos; mas ela não pode existir sem
eles” [Orator, XLIII, 147], deste modo, expressou-se muito elegantemente o
Orador ciceroniano. Por causa das proporções e dos sentidos das palavras,
ou seja, da „etimologia‟96, e do mesmo modo que Cícero traduziu ad uerbum
os étimos, sejam, pois, os preceitos e as normas dos gramáticos inteiramente
esmiuçados na mente e guardados na memória. Com efeito, uma multidão
de doutos, porque negligenciaram tais regras e minúcias, que são os
rudimentos da infância, agora que são velhos e educadores de outros falam
mal o latim, e falham muitas vezes em assuntos mais sérios, não sem
zombaria, vituperação e erro de muitos.97

A retórica, hoje, certamente não é mais incômoda, mas está entre os hábitos
dos homens. Deve ser despertada e restituída à sua dignidade. Ela ensina os
tropos de palavras e de linguagem, mostra as partes do discurso e sua
ordem, expõe formas e figuras de pensamento, dispõe preceitos para ornar,
deleitar, ampliar, delineia ornamentos, ideias e modos de falar; sem isto, os
autores não podem ser entendidos nem apresentados, muito menos
traduzidos de modo que realmente alcances o sentido, que descrevas com

94
O chamado triuium (gramática, retórica, dialética) constituía o grupo de artes „primeiras‟ e „menores‟ porque
era considerado a base das artes „maiores‟, ou quadriuium (aritmética, geometria, astrologia e música).
95
Praeterea quoniam saepe incidunt in omnibus scriptis exempla, euoluenda est omnis antiquitatis memoria,
peruolutandae historiae, cognoscendi Canones, scriptores, concilia Ecclesiae, quantum satis erit, annalesque ac
monumenta Iudaeae, Graeciae, Romanaeque Reipublicae. Esse illa maxime ad manum debent, quae maximo
erunt usui. Sed enim quia interest cumprimis interpretis eloqui: orationi expoliendae et excolendae danda est
opera potissimum. Continet uero haec pars ὁ , , m et
fabricam spectant atque structuram. Dein linguas: Sed de artibus primum aggrediar agere, et paucis,
Grammatica, Rhetorica, Dialectica. Nimirum hae sunt primae artes et minimae, tamen interpreti prae caeteris
maxime inseruiunt. (129-130)
96
A etymologia, estudo das palavras enquanto elementos isolados, era considerada, desde a Antiguidade, uma
das matérias da gramática, e buscava a „verdade original‟ ao querer mostrar a coincidência originária entre forma
e significado das palavras.
97
Grammatica cum tenetur et percepta est, uidetur infima: et sane est, quia infimo loco fundamentum
substernitur: at si reliqua extruere coneris et exaedificare, non subiecta tanquam basi Grammatica, ad culmen
nunquam ascendes, sed concidet ac corruet tota quantumuis splendida et illustris machina. Nec enim constant
sine fundamentis fastigia, nec sine imis ad summa peruenitur. Omnium artium magnarum, sicut arborum
altitudo nos delectat, radices stirpesque non item: sed esse illa sine his non potest: quemadmodum Ciceronianus
Orator dixit pereleganter. Quare rationes et interpretationes uerborum, etymologiae scilicet, et, ut ad uerbum
transtulit Cic. ueriloquia, tum praeceptiones ac normae Grammaticorum omnimo animo percursae, ac retentae
sint memoria. Etenim doctorum uulgus, cum has regulas ac minutias neglexerit, quae primae sunt rudimenta
pueritiae, male Latine loquuntur iam senes et doctores aliorum, offenduntque saepenumero in grauioribus non
sine et irrisione et uituperatione et errore multorum. (130-131)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 42


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

esmero e habilidade sua força e aparência nativa por seu próprio valor. Com
que nome, pois, chamaremos a estes vituperadores da eloquência, que
tratam levianamente as excelsas dádivas de Deus, ou as louvam
maldosamente, ou as difamam abominavelmente? Por certo, são chamados
por São Paulo [Rm, 1:30] de ζενζηπγεῖο [inimigos de Deus], aqueles que
atacam a Deus ou seus dons divinos; algo que fazem alguns homens
tristemente ociosos, os quais, como foram dura e desgraçadamente nutridos
com alimento sofístico, invejam os lautíssimos manjares dos outros; porcos
cobertos de lama, βαιαλεθάγνη [comedores de bolotas 98 ], saciados e
acostumados com a fumaça, nada lhes cheira bem a não ser o fedorento e o
fuliginoso.99

E do mesmo modo, avalio a dialética, que, com Platão como testemunha,


eleva dos homens os olhos enterrados no lodo, pela qual os pregadores se
tornam δηδαθηηθνὶ [aptos para ensinar], o que Paulo [1Tm, 3:2] cobra de um
epíscopo, e aprendem a νξζνηνκεῖλ [ensinar bem], separar, dividir,
distinguir corretamente a palavra de Deus. Não engana, pois, os homens
com uma probabilidade capciosa, não arma ciladas esta verdadeira doutrina
do dissertar, não impera, como muitos imaginam, somente nas discussões,
na casa e nas reuniões de sofistas e de debates, não consiste numa questão
ou jogo de palavras, mas esclarece teses e conjecturas dos livros divinos,
separa os gêneros em espécies, discerne o verdadeiro do falso, distingue as
ambiguidades; enfim, no que faz por algo, e no que concerne mais
propriamente ao nosso objeto, aporta-lhe a luz das artes; para que então o
tradutor, e se se quiser o autor, veja, e, de alguma maneira, prove,
compreenda, e de certo modo proponha, argumente, conclua, examine
claramente e julgue. Se isto, pois, não for observado, no modo como
anteriormente já foi demonstrado, o tradutor se equivocará no sentido ou na
colocação das palavras e na ordem dos enunciados, e não dirá as mesmas
coisas que aquele, ou não as reconhecerá nem apresentará na mesma ordem.
Uma vez que, assim, esta faculdade confere não só sagacidade para discutir
e sutileza para arbitrar, mas também acrescenta agudeza ao método de
ensinar e de avaliar, de modo algum podemos desprezar tamanha mestra de
instrução, regra de julgamento, guia de caminho, árbitra de controvérsias,
juíza de causas, luz nas trevas mais espessas. Abracemos, pois, aquela
eloquência contraída e comprimida, e esta dialética propagada, para, com
razão, tomarmos desta a força e como que o gume do argumento, daquela,

98
Ainda hoje, em algumas regiões da Europa, os porcos são alimentados com bolotas, os frutos do carvalho, da
azinheira e do sobreiro.
99
Rhetorica hodie iacet non quidem suo uitio, sed moribus hominum: Excitanda est et suae dignitati restituenda.
Tropos uerborum et linguarum docet, partes orationum et dispositionem monstrat, colores et figuras
sententiarum aperit, ornandi, delectandi, amplificandi praecepta tradit, lumina, ideas et formas eloquendi
deliniat: sine his non intelligi autores nec exponi possunt, nedum conuerti, ut sensum attingas uere, ut graphice
et affabre uim natiuamque speciem cuiusque pro dignitate describas. Quo ergo nomine appellabimus istos
uituperatores eloquentiae, qui excellentia Dei munera aut leuiter curant, aut maligne laudant, aut odiose
lacerant? υ f
homines male feriati, qui cum ipsi duriter ac male pasti Sophistico pabulo fuerint, lautissimis aliorum deliciis
, βα α φ , f mo satiati et adsueti, quibus nihil bene olet nisi olidum et
fuliginosum. (131-132)

43 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

os ornamentos e embelezamentos do discurso aplicados não tanto para


persuadir quanto para ornar.100

Das línguas clássicas:

Passarei às línguas, as quais é necessário sobretudo que o tradutor saiba e


domine. Mediante as línguas, pois, ele realiza seu trabalho, e o que realiza
mediante as línguas é dado por certo, mas, se tiver carências nas línguas,
também terá carências o título e o nome do tradutor. As artes tornam-no
hábil, as línguas, elegante na expressão; aquelas encherão o seu espírito com
vasto conhecimento e com experiências, e o seu depósito com colheitas;
estas lapidarão sua linguagem; aquelas obrarão para que não seja
considerado inábil, superficial, inexperiente, estas, para que, ao se expressar,
não seja tomado por ressequido, seco, estéril. De todas elas, deve-se tomar a
abundância e os recursos do falar.101

A língua latina, uma vez que se tornou comum na boca e na conversação de


todos os povos em toda a parte, e é declarada própria dos cristãos, e faz-se
tradução de todas as línguas para ela, não há como não conhecê-la, mas
convém estar cientíssimo dela, cujo conhecimento edificou de muitos
modos pelo escrever, pregar, ensinar, em livros, sermões, escolas, na igreja
cristã. Seu desconhecimento e imperícia apresenta e oferece diariamente
ocasiões de erro a muitos. Daí que certos judeus temerários, não tendo
nenhum ou muito pouco conhecimento desta língua, põem-se, contudo, a
traduzir da língua hebraica, os quais podem até ser grandes rabinos e os
mais doutos na língua pátria, mas não sendo bons latinos é inevitável que
realizem mal e perfidamente seu ofício, o que também pode ser traduzido
com erros por alguns tradutores cristãos, com escassez da opulência latina
pelos trabalhadores, e um hebraísmo e um grecismo de modo pouco latino
pelos trasladadores. E acredito mesmo que muitas coisas dos antigos gregos,
que falaram grego de modo muito elegante, foram traduzidas por alguns que

100
Eodemque modo de Dialectica iudico, quae Platone teste, oculos hominum coeno defossos attollit, qua
f α , quod in episcopo exigit Paulus: et dis ,
secare, diuidere, distinguere. Non enim captiosa probalitate fallit homines, non struit insidias uera haec
disserendi doctrina, non in palaestris solum et umbra et phrontisteriis sophistarum et disputantium, ut multi
somniant, dominatur, non in concertatione aut captatione uerborum consistit: sed theses et conciones diuinorum
codicum explicat, genera in species dispertit, uera a falsis diiudicat, distinguit ambigua: denique, quod ad rem
facit, propiusque ad institutum nostrum pertinet, lucem artium affert: ut inde interpres et quid uelit scriptor,
uideat, et quo modo probet, intelligat, et quo ordine proponit, argumentatur, concludit, clare perspiciat et
iudicet. Haec enim nisi obseruentur, ut ante quoque demonstratum est, aut in sensu aberrabit interpres, aut in
collocatione uerborum et serie enunciationum: ut non eadem dicat quae ille, aut non eodem probet et proponat
ordine. Cum ergo non ad disputandi solum prudentiam subtilitatemque disceptandi conferat haec facultas, sed
ad methodum docendi iudicandique acumen conducat: tantam doctrinae magistram, regulam iudicii, uiae
ducem, controuersiarum disceptatricem, causarum iudicem, densissimis in tenebris facem, contemnere nullo
modo possumus. Amplectamur potius et hanc astrictam compressamque eloquentiam, et illam dilatatam
dialecticam: ut ex hac uim et mucronem quasi argumenti, ex illa pigmenta et insignia orationis adiecta non tam
confirmandi quam ornandi causa addita deprehendamus, ut nihil nos praeteriisse uideatur. (132-134)
101
Veniam ad linguas, quibus ualere et excellere potissimum interpretem necesse est. Linguis enim suum
officium facit, linguis quod facit acceptum fert, linguis si careret, interpretis quoque titulo careret et nomine.
Artes illum prudentem reddent, linguae disertum: illae pectus multiplici cognitione et rebus tanquam horreum
messibus complebunt: hae linguam polient: efficient illae ne imprudens, leuis, imperitus dicatur, hae ne in
dicendo exuccus, siccus, sterilis habeatur: ex quibus omnis sylua atque copia eloquendi ducenda est. (134)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 44


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

não tinham aprendido muito bem nem a língua grega nem a latina, como se
vê em Crisóstomo e Orígenes e em outros.102
[...]
A língua grega já não pode ser ignorada sem vergonha, pois todas as artes, e
quase todos os livros que devem ser traduzidos, sejam aqueles profanos,
sejam os sacros, encerram-na, e não ouse chamar-se de tradutor, teólogo ou
estudioso o inexperiente ou ignorante da língua grega, cuja riquíssima
abundância, grandíssima utilidade, admirável encanto, certíssima
necessidade e várias oportunidades para muitas coisas são celebrados no
elogio de todos e nos escritos de todos. Desta língua são tirados os nomes
das artes, da gramática, da retórica, da dialética, da filosofia, da aritmética,
da geometria; sem ela os próprios artífices e os professores não sabem
corretamente e com certeza as designações de suas artes. A partir dela, a
língua romana, que agora é comuníssima, se originou, foi adornada, e
separou-se. A partir dela, Cícero se fez e se poliu tão grande quanto é. A
partir dela floresceram todas as coisas dignas de dizer, a inteligência de
julgar, a habilidade de entender, em cujas artes, que devem ser traduzidas a
outra língua, é leve e fácil um deslize nas coisas mais graves. Pelo que, os
estudos de suas letras devem ser cultivados pelo tradutor, que, de modo
algum, deve ser estrangeiro ou peregrino na filosofia, na teologia e nos
outros saberes, como são alguns, não poucos, teólogos, cardeais da igreja,
afastados também da própria gramática, ὀςηκαζεῖο [velhos demais para
aprender], ou antes ἀκαζεῖο [ignorantes], e verdadeiramente καηαηνιόγνη
[vaníloquos].103

Sobre a língua hebraica, é importante dizer várias coisas, porque ora é


negligenciada por muitos, ora é ignorada, mas a santíssima língua tem
injustamente má fama. Sem ela ninguém pode ser versado, de algum modo,
com louvor, ao traduzir o Novo ou o Antigo Testamento. Tudo está repleto
de muitos hebraísmos. Por isso, o texto hebraico deve ser manuseado dia e

102
Latina lingua cum omnium ore et sermone ubique gentium percrebuerit, et Christianorum propria censeatur,
et ex aliis linguis in eam plerunque fiat conuersio: non modo illam non nescire, sed eius scientissimum esse
conuenit, cuius cognitio multis modis aedificauit scribendo, praedicando, profitendo: libris, concionibus,
scholis, Christianam ecclesiam: ignoratio et ruditas quotidie occasiones errandi multis praebet et porrigit. Hinc
quidam temerarii Iudaei huius linguae cum nullam aut pertenuem cognitionem habeant, tamen ad
interpretandum ex lingua Hebraea assiliunt, qui licet essent Rabini magni, et patrii sermonis doctissimi, si
tamen Latini non sint boni, suo male et perfide fungantur officio necesse est. quod etiam Christianis
interpretibus nonnullis uitio uerti potest, Latinae opulentiae penuria laborantibus, et Hebraismum ac
Graecismum parum Latine reddentibus. et sane puto, multa antiquorum Graecorum Graece elegantissime
loquentium, uersa esse ab aliquot qui nec Graecam satis nec Latinam linguam perdidicerant, ut in Chrysostomo
et Origene et aliis apparet. (134-135)
103
Graecus porro sermo sine dedecore ignorari non potest: quo artes omnes, libri pene omnes qui uertendi sunt,
seu prophani illi sint, seu sacri, continentur. neque se uel interpretem, uel theologum, uel studiosum audeat
nominare, Graecae linguae expers aut ignarus: cuius ubertas amplissima, utilitas maxima, iucunditas
admirabilis, necessitas certissima, opportunitatesque ad multa uariae, omnium praedicatione, omniumque
monumentis celebrantur. Ex hac lingua nomina artium, Grammaticae, Rhetoricae, Dialecticae, Philosophiae,
Arithmeticae, Geometriae deducta sunt: sine qua ne suarum artium nomenclationes recte et certo scient ipsi
artifices et professores. Ex hac, Romana lingua, quae nunc communissima est, orta, ornata, absoluta est. Ex hac
Cicero totus quantus quantus est, effectus est et perpolitus. Ex hac omnia dicendi insignia, iudicandi
intelligentia, intelligendi scientia, effloruerunt: quibus artibus in alium sermonem conuertendis, lenis et facilis
est prolapsio in grauissimis. Quare harum literarum studia colenda sunt interpreti, qui in Philosophia, ac
Theologia, aliisque scentiis hospes esse aut peregrinus nullo pacto debet: ut sunt quidam absque Grammatica
etiam ipsa Theologi non pauci, cardines ecclesiae, α , α , αα (140-141)

45 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

noite. Se há algo insigne entre os rabinos, transmitiram-no de boa fé


Pagninus, Munsterus, Pellicanus104 e outros homens cristãos, embora talvez
alguém ainda queira procurar algo quiçá precioso, por muito tempo e em
vão, de modo impuro nos livros hebraicos, com muito suor e nenhum fruto
ou tão pequeno quanto em um monte de estrume. Mas é necessário não
desconhecer a gramática, nem se deve desprezar o menor detalhe que seja,
nem um i, nem um ponto. Santo Agostinho, porque não dispensava uma
atenção mais especial às línguas, lamenta sua sorte, e os doutores gregos,
como fossem inexperientes, erraram mais de uma vez enquanto se
esforçavam para traduzir as palavras hebraicas. Portanto, os mínimos pontos
dos hebreus devem ser conhecidos, para que não se obrigue a confiar em
outros argumentos de comentadores, mas deguste os princípios elementares,
cuide na leitura, grave na memória, fixe com o exercício. Pois enquanto
estas coisas estiverem sujeitas à negligência e ao desprezo, tropeça-se,
muitas vezes, como o Velho tradutor, com a propriedade dos nomes.105

Louvor e defesa das línguas clássicas:

Todo o labor dos tradutores é despendido não para que o estudo das línguas
seja desprezado, ou os estudiosos se entorpeçam, mas para que aquele seja
mais inflamado, estes, mais dispostos. Ainda que, em verdade, grande parte
das coisas tenham sido disponibilizadas às línguas vulgares, não o foram,
contudo, todas elas, e as que se sobressaem não são verdadeiramente todas,
não são claramente todas, nem são todas inteiramente expostas. Todas as
coisas, pois, ao traduzir, são piores, como o vinho transvasado a um e outro
recipiente, e a árvore muitas vezes transplantada de seu lugar. E aquelas
línguas têm algo genuíno e seu, que as outras não podem enunciar com igual
proporção e destreza, esforcem-se o quanto quiserem, e extraiam todos os
tesouros da eloquência. Envergonha, por isso, que certas coisas sejam ditas

104
- Santes Pagninus (1470-1541), hebraísta italiano, da ordem dos dominicanos, estudou línguas orientais e foi
o primeiro despois de São Jerônimo a traduzir a Bíblia para o latim (1528) baseado nos originais hebraico e
grego, uma tradução reconhecidamente literal. Foi também o primeiro a dividir os capítulos da Bíblia em
versículos numerados.
- Sebastianus Munsterus (1489-1552), humanista e hebraísta alemão, convertido à Reforma luterana, foi
professor de teologia e de hebraico, e entre numerosas obras publicou a famosa Cosmographia uniuersalis
(1554), uma das primeiras descrições do mundo em língua alemã, traduzida a várias línguas; esta foi uma das
obras mais lidas no séc. XVI, sendo-lhe atribuído o segundo lugar em popularidade depois da Bíblia.
- Conrad Pellicanus (1478-1556), humanista e teólogo alemão, professor de grego e hebraico – foi um dos
maiores especialistas de seu tempo da língua hebraica –, estudou e traduziu grande quantidade de textos
rabínicos e talmúdicos, produziu um vasto comentário sobre a Bíblia. Em 1501 escreveu a primeira gramática
hebraica em uma língua europeia.
105
De Hebraea lingua opus est pluribus dicere, quia tum negligitur a pluribus, tum ignoratur: sed immerito
male audit lingua sanctissima. Nemo sine ea in nouo aut ueteri Instrumento interpretando cum laude aliqua
uersari potest. tot Hebraismis plena sunt omnia. Textus itaque Hebraicus diurna est ac nocturna manu terendus.
In Rabinis si quid est insigne, Pagninus, Munsterus, Pellicanus, et alii homines Christiani bona fine tradiderunt:
nisi quis etiam uelit in libris impure Hebraicis, magno cum sudore, nullo cum fructu aut exiguo tanquam in
sterquilinio aliquid forte pretiosum diu et frusta quaerere. Sed Grammaticae rudem esse non oportet, nec
contemnendum est quantumuis minutulum, non iota, non apiculus. Augustinus quod his linguis operam magis
egregiam non impenderit, uicem suam deplorat, et Graeci doctores quum imperiti fuerint, non semel errarunt,
dum in uocibus Hebraicis interpretandis laborant. Proinde minima Hebraeorum puncta debent esse cognita: ne
cogatur fidere aliis commentis commentatorum, sed elementa puerilia degustet, lectione obseruet, memoriae
imprimat, exercitatione confirmet. Dum enim ista neglectui habentur et contemptui, saepe impingitur ut in
propriis nominibus Vetus interpres. (141-142)

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 46


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

por homens no aspecto e na veste sábios, e pelos que ostentam grande


prudência, de que as línguas mais preclaras sejam inúteis; porque ninguém,
na posse do juízo e da razão, ou do bom senso, pode dizer isso sem
enrubescer. E sem aquelas, nosso tradutor, seja germano, seja ítalo, seja
inglês, seja gaulês, seja hispano, não poderá ocupar-se com suas tarefas e
responder satisfatoriamente ao seu dever, nem o pregador será apreciado em
todas as passagens comuns, nem abundará em notas escritas, ainda que
instruído em todas as bibliotecas, e tendo toda a Bíblia traduzida, nem seu
trabalho valerá ser visto abundante, completa e honrosamente, se não souber
latim, grego ou hebraico.106

2.3. Fides & religio: fé e religião (170-180)


– paixão & contenda, amor à gloria, desejo de lucro –

Deve-se tratar ainda da fé [= compromisso] e da religião. Pois nos autores


profanos a fé deve ser mantida, nos sacros, a religião e a fé. Traduz
fielmente quem traduz como deve, e com o propósito que convém. Estas
duas coisas devem ser compreendidas. Pois a fé postula que não se mutile a
sentença, mas que se a deixe inteira e incorrompida. É próprio da fé que
nada de seu seja acrescentado, nem nada do autor seja suprimido. Mostrará a
fé aquele que não apenas restabelece de modo não superficial ou
negligentemente em qualquer parte de forma casual e fortuita tudo aquilo
que o cálamo gravara, mas o faz o quanto puder do modo mais verdadeiro e
mais elegante. E acompanham estes preceitos aquelas coisas que foram
acima expostas por mim, quando falei da tradução propriamente dita.
Assim, como eu disse, fará fielmente e como deve.107

Paixão & contenda:

Também agora deve-se refletir sobre o caráter daquele que traduz. Três
coisas, em nome da fidelidade, devem ser evitadas pelo tradutor. Chamo o
tradutor fiável ou fiel de homem bom. Ele não segue suas paixões, nem
busca louvor, nem sua comodidade. A paixão, com efeito, cega, não quer
ver a verdade, e, sem dúvida, é uma não desconsiderável praga dos estudos,

106
Huc totus labor interpretum impenditur, non ut studium linguarum iaceret, aut studiosi torpescerent: sed ut
illud foret inflammatius, hi alacriores. Etsi uero uulgaribus linguis tradita sint pleraque, tamen non omnia: et
quae extant, non omnia uere, non omnia explicate, nec ad plenum omnia expressa. Sunt enim uertendo omnia
deteriora: ut uinum in aliud atque aliud uas transfusum, et arbor saepe de suo loco transplantata. Et habent hae
linguae quippiam geniuinum et suum, quod aliae pari commoditate et dexteritate non possunt eloqui,
quantumuis nitantur, omnesque thesauros depromant eloquentiae. Pudeat itaque haec dici ab hominibus fronte
et pallio sapientibus, magnamque prae se ferentibus prudentiam, inutiles esse linguas praeclarissimas: quia hoc
nemo mentis et rationis sensus ue communis compos posset sine rubore dicere. Nec sine his interpres noster siue
Germanus sit, siue Italus, siue Anglus, siue Gallus, siue Hispanus, satagere suarum partium, officioque suo satis
respondere poterit. nec Concionator licet omnibus locis communibus, Postillisque abundet, omnibus bibliothecis
instructus, omniaque Biblia translata habeat, tueri suum munus abunde, cumulate, magnifice ualet, nisi Latine
sciat, Graece, aut Hebraice. (146-147)
107
FIDES et religio tractandae sunt. Nam in prophanis autoribus fides praestanda est, in sacris religio et fides.
Fideliter uertit, qui conuertit ut debet, et quo decet animo. Haec duo sunt tenenda. Nam fides postulat, ut
sententiam non mutilet, sed ut totam ponat ac syncere. Fidei est, nihil uel ex suo assuere, uel de autore
circuncidere. Fidem praestabit is qui non obiter aut negligenter quocunque modo temere ac fortuito reponit
quicquid in calamum incidit, sed quam poterit uerissime et elegantissime: eaque praecepta sequitur quae sunt a
me supra posita, quum de ipsa interpretatione uerba facerem. Itaque faciet fideliter, uti dixi, ac ut debet. (170)

47 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

um veneno da religião, quando o que deve ser verdadeira e cuidadosamente


avaliado é corrompido sujeitando-se às paixões e ao poder. Por outro lado,
realiza de boa fé sua tarefa aquele que almeja mais a utilidade pública que a
privada, aquele que dirige seus trabalhos para a glória de Cristo, não para
sua própria ostentação, aquele que olha o proveito dos outros leitores, não a
cegueira ou o lucro ou a vantagem de seu próprio parecer. Não posso não
louvar veementemente aqueles que, piedosamente ocupados com os escritos
dos Padres divulgados em língua latina, não os interpretam e distorcem ao
seu gosto, mas os conservam como que em sua seiva natural, de modo que
os expõem seja piamente, seja impiamente, os proferem seja contrariamente
à nossa opinião, seja favoravelmente, que permanecem com seu Senhor e
Juiz, ou perecem. Tradutores, não adulteremos o que não percebemos da
mesma maneira, mas reproduzamos como o autor o percebeu, em seu
sentido perfeito e completo.108

Amor à glória:

Certamente, submete-se e entrega-se à paixão e é também levado por certas


cócegas a um desejo de glória aquele que tenta, com uma certa má intenção,
não traduzir bem, mas de uma forma nova, não recolocar os elementos
primeiros e talvez mais congruentes, mas os divergentes dos daquele que lhe
precedeu. Deve-se considerar então uma tal façanha vã em todo seu
conjunto como uma sarna e um comichão pestíferos e detestáveis. Na
verdade, dever-se-ia desejar, se fosse possível, um consenso e uma
conspiração dos tradutores, e, para dizer realmente o que eu percebo de um
modo não ruim, deve-se condenar as inquietações e os cuidados,
πνιππξαγκνζύλε [zelo excessivo], de alguns que furam os olhos às
gralhas109, deixam o caminho conhecido e público em situação precária; não
contentes com as traduções dos outros, os mesmos acrescentam as suas
novas, o que está mais para um exercício a fim de apresentarem outras e
diferentes opções do que melhores, buscam nó no junco110, constroem as
maiores tragédias com coisas de pouca importância; e se por acaso
surpreendem alguma palavra não trasladada corretamente pelo tradutor, todo
o livro é traduzido de novo, é reconduzido ao prelo, e é impresso, para que
os demais pareçam míopes e remelentos, eles próprios perspicazes e

108
Iam etiam et animus eius considerandus est, qui uertit. Tria enim sunt fido interpreti euitanda: fidum seu
fidelem uoco interpretem uirum bonum. Is nec affectum sequetur suum, nec laudem quaeret, nec suum
commodum. Affectus etenim caecutit, uerum uidere non uult. ac sane studiorum pestis est non minima,
religionisque uenenum, dum quod iudicio uere considerateque fieri debet, id obsequendo affectui ac factioni
corrumpitur. Contra fide bona praestat officium suum, qui utilitatis publicae auidior est quam priuatae, qui ad
gloriam Christi, non ad suam ostentationem labores suos refert, qui aliorum legentium spectat emolumentum,
non iudicii sui caecitatem aut lucrum, aut compendium. Eos non possum non uehementer probare, qui in Patrum
scriptis euulgandis Latina lingua, pie occupati, non trahunt et detorquent ad suum stomachum, sed suo ipsos
quasi naturali succo relinquunt, ut siue pie, siue impie dicant, siue aduersaria nostrae opinioni, siue
consentientia proferant, suo stent Domino ac Iudici, aut cadant: ne adulteremus quod ita non sentimus, sed quod
sensit ille, sensu perfecto et completo reddamus, interpretes. (170-171)
109
A frase de Humphrey reproduz o provérbio latino, extraído de Cícero, Pro Murena 25 : Cornicum oculos
configere [furar os olhos às gralhas], cujo significado equivale, de certa forma, ao nosso “ensinar o pai-nosso ao
padre”, ou seja, querer enganar o mais esperto, querer ver melhor que os outros, etc.
110
Nodum in scirpo quaerere [buscar nó no junco] (em Plauto, Menaechmi 247; em Terêncio, Andria 941), isto
é, procurar dificuldades onde não as há, à semelhança de nossos “procurar cabelo em ovo”, “procurar chifre em
cabeça de cavalo”.

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 48


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

esclarecidos. Vimos isto em traduções latinas e também em vernáculas,


tanto em sacras quanto em profanas, feito por homens complacentes
sobretudo com seu desejo, e que se amam mais que à verdade.111

Desejo de lucro:

O terceiro ponto vicioso, além daquele da glória e da paixão, é o desejo do


lucro e da vantagem. Considera-se, pois, algo muito pobre, quando aquilo
que devia ser realizado pelo amor às letras, é empreendido por cobiça de
dinheiro; e isto se dá nas artes lucrativas, e por mercenários imorais, em
cultores das musas, por certo, e, do modo mais sórdido, por doutos
candidatos das artes liberais. Que a deusa e rainha do mundo afaste das
Camenas virgens a θηινθεξδεία [afeição ao lucro] e a θηιαξγπξία [avareza].
Deve-se, contudo, recear que alguns, levados a traduzir por pagamento, os
quais alugam seu serviço para outros, realizem fraudulentamente seu ofício,
e muito pouco se ocupem de suas questões. Presumo que isso, em parte,
aconteça porque, quando as traduções deles são chamadas à pedra de toque,
às fontes, certamente, observa-se que algumas foram mudadas ao traduzir,
outras, aniquiladas, umas apresentam faltas, outras, redundâncias, e às
vezes, simultaneamente, muitas linhas subtraídas por estes que somam.
Acontece que se frauda o leitor, e se injuria o tipógrafo e aquele que
demanda o serviço. Abstenho-me de nomes; contudo, vi e ouvi fazerem isso
muitas vezes. Por conseguinte, aquele que quiser ser considerado um
tradutor fiel não deve agir de acordo com a sua vontade, nem aspirar à
glória, nem se preocupar com sua recompensa antes que com o proveito
público. Seja, portanto, a fé o fundamento, e como que subjaza a verdade
naquele que trata da matéria e com ela se ocupa. Esta fé deve mostrar-se em
todos os autores, ainda que sejam os mais afastados de Cristo. E para eu
falar de religião, a qual deve estar unida às letras sagradas, é preciso aqui
vigiar com a maior atenção e cautela.112

111
Seruit profecto, et indulget affectui, atque etiam gloriae quadam titillatione ducitur, qui malo quodam studio
conatur non ut bene transferat, sed noue, non ut priora reponat, ac fortassis congruentiora, sed ut ab eo qui
praecessit dissentientia. Scabies et pruritus hic uanae laudis in omni re pestifer haberi debet atque detestabilis.
Verum optanda esset interpretum consensio, si fieri posset, et conspiratio: et ut uere dicam quod non male
, x υ α , b , , f
minima tritam et publicam uiam relinquunt: non contenti translationibus aliorum, ipsi nouas affingunt suas,
magisque id studio est, ut alia et diuersa quam ut meliora afferant, in scirpo nodum quaerentes, et in rebus
leuiculis maximas excitantes tragoedias: ac si quam uocem non recte ab interprete redditam arripiunt, totus
liber denuo conuertitur, sub praelum reuocatur, et in lucem excuditur: quo caeteri lusciosi et lippi, ipsi
perspicaces et oculati uideantur. Id in Latinis uersionibus, factum uidimus et in uulgaribus quoque, tam in sacris
quam etiam prophanis, ab hominibus suo potius stomacho indulgentibus, seque magis quam ueritatem
amantibus. (171-173)
112
Tertius finis praeter gloriam et affectum uitiosus, est lucri et quaestus studium. Pessime enim se res habet,
quum id quod amore literarum effici debuit, cupiditate pecuniae suscipitur: idque in quaestuosis artibus, et a
mercenariis uitio datur: in musarum uero cultoribus, et a doctis liberalium artium candidatis sordidissimum.
absit a Camaenis uirginibus Dea ac regina ,φ α, φ α υ α V
interpretandum conducti mercede, qui suam aliis locant operam, fraudulenter suum agant negotium, rerumque
suarum parum fideliter satagant. Id partim coniicio fieri, quod ubi interpretationes eorum ad Lydium lapidem
reuocantur, ad fontes nimirum: quaedam in uertendo inuersa, quaedam peruersa, alia deesse, alia redundare,
nonnunquam plures simul lineas ablatas ab his qui conferunt animaduertitur.Ita fit, ut fraus fiat lectori: et
Typographo alterique qui condicit, iniuria. A nominibus abstineo, hoc tamen factitatum uidi et audiui. Proinde
neque animo suo gerere morem, nec gloriam expetere, neque praemium suum potius quam commodum publicum
respicere debet, qui fidus interpres haberi uoluerit. Fundamentum autem sit fides, et materia quasi illi, quam

49 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

Os escritos sacros devem ser traduzidos religiosamente.

Traduz religiosamente aquele que o faz cientemente, não audaciosamente,


considerando que muitos, quanto menos sabem, tanto mais ousam.
Religioso é aquele que suplica e ora, e receia, desconfiando de si, confiado
em Deus, temendo e implorando auxílio daquele que o provê, e não
repreende a ninguém. Produz religião aquele que vem não corrompido por
nenhuma falsa crença, mas contrário a todo modo falso de pensar. O
fundamento da religião e a causa eficiente é a fé. É necessário, portanto,
àquele que traduz, que creia. Pois a fé inflama o fogo do amor divino, o
amor gera admiração, a admiração acende o ardor e a diligência. Assim,
deve-se tirar o calçado com Moisés, lavar os pés segundo o preceito de
Cristo, para que nem a simplicidade da palavra ofenda, nem a sublimidade
destrua e atemorize, e apliquemo-nos com honestidade e integridade àquele
sacrossanto ofício, não com as mãos sujas, mas com os corações puros.113
[...]
Mas talvez tenha exposto mais coisas sobre a religião do que necessário. Ela
não carece, pois, de preceitos, mas a graça do Espírito, que é um excelente
mestre, nos conduzirá a toda a verdade, a fim de que tratemos as coisas
sagradas com prudência, com reverência, com modéstia. É permitido
estender-se mais livremente e apartar-se das palavras em livros profanos;
nas escrituras canônicas, nenhuma licença é tolerável. O homem não tem
nenhuma concessão para mudar a linguagem de Deus. Por isso os judeus
riem de nossas traduções, como testemunha-o Jerônimo, quando, nos
Salmos e em outras passagens, são acrescentadas certas coisas, são tiradas
certas coisas, são expostas muitas coisas de outro modo.114

2.4. Diligentia: diligência (180-200)

A diligência, criada e serva de todas as demais coisas, vem, pois, em último


lugar. O que Demóstenes atribui à atuação [actio]115, eu atribuo à diligência.

tractet, et in qua uersetur, subiecta sit ueritas. Haec in omnibus autoribus praestanda fides est, licet sint a
Christo alienissimi. Atque ut de religione dicam, quae in sacris literis adhibenda est, hic attentione summa et
cautione uigilandum. (174-176)
113
Religiose conuertit qui scienter, non audacter, ut multi quo minus sciunt, eo magis audent. Religiosus est qui
precatur et orat, et tremit, diffidens sibi, fisus Deo: metuens et implorans auxilium ab eo qui dat, et nemini
exprobrat. Religionem affert, qui nulla falsa superstitione corruptus accedit, sed ab omni opinatione fictitia
alienus. Religionis firmamentum et causa efficiens est fides. Credat ergo oportet qui conuertit. Fides enim ignem
diuini amoris inflammat, amor gignit admirationem, admiratio incendit alacritatem et diligentiam. Sic exuendi
sunt calcei cum Mose, lauandi pedes iussu Christi, ut nec simplicitas uerbi offendat, nec frangat et terreat
sublimitas: sed caste et integre in eo sacrosancto munere non illotis manibus, sed puris animis uersemur. (177-
178)
114
Sed plura de Religione fortassis, quam est necesse. Nec enim praeceptionibus eget, sed Spiritus gratia, qui
magister optimus, inducet nos in omnem ueritatem: ita ut sacra tractemus timide, reuerenter, uerecunde.
Liberius in aliis prophanis licet expatiari, et digredi a uerbis: in Canonica scriptura nulla licentia est tolerabils.
Non enim concessum est homini, Dei linguam mutare. Hinc Iudaei rident interpretationes nostras, ut
Hieronymus testatur, quum in Psalmis aliisque locis quaedam adponuntur, quaedam adimuntur, multa aliorsum
exponuntur. (179-180)
115
Na retórica clássica, a actio [ação, atuação] ou pronuntiatio [expressão] é a realização do discurso mediante a
voz e os gestos que a acompanham. Demóstenes (384-322 a.C.) é considerado o maior orador grego, e são bem
conhecidas as histórias nas quais ele superou sua gagueira com exercícios de recitação com pedras na boca e
também correndo na praia contra o vento.

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 50


Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

A ela dou o primeiro, o segundo, e o terceiro lugar, a ela que é medianeira,


auxiliadora, vigia e conservadora, e sem ela não poderás fazer alguma vez
algo nobre ou grandioso. Que seria, pois das outras virtudes, ainda que
exímias e insignes, se a diligência não estivesse presente como um aguilhão
e como que uma espora? Pois também a boa natureza é diligente, aplicada,
industriosa, mas, como o bom campo, se não é cultivado, torna-se estéril.
Assim, o engenho prolífero e fecundo como que degenera e torna-se um
matagal se não é renovado e conservado mediante um cultivo constante.116

De que modo também o tradutor adquirirá tanta variedade de informação, de


conhecimento das coisas, quanto é preciso, e a elegância, a riqueza, o
esplendor do discurso, se faltar esta θηινπνλία [dedicação ao trabalho] e a
diligência? Pois ele tem necessidade de possuir uma bagagem não somente
rica e copiosa, mas bela, esclarecida, ordenada; de onde ele como que tira de
um enxoval um aparato elegante e abundante, para todas as circunstâncias.
A diligência é igualmente companheira e serva da religião, tornando-se
laboriosa ao buscar, trabalhadora ao traduzir, atenta, cauta, engenhosa ao
obrar muito. Por isso ela pertence a esta esta fé e religião, cujo dever, em
qualquer circunstância, é sempre necessário, e nunca foi desagradável aos
que se exercitam nesta habilidade.117
[...]
Distinta é pois esta virtude, que contém todas as demais virtudes. A
diligência existe para que o sentido seja extraído completamente. Para que o
espírito se exercite em todas as passagens que devem ser consideradas e
investigadas, para que se introduza completamente na matéria, para que seja
profundo no cuidado e na reflexão, para que expresse com propriedade,
pureza, ornato, habilidade e abundância o tema concebido existe a
diligência. Pelo que, ela deve ser cultivada e sempre empregada pelo
tradutor, porque é sempre necessária; deve estar presente em toda parte,
porque será útil em toda parte, tanto porque persegue o que quer, quanto
porque nada há que ela não consegue118.119

116
Diligentia enim ultimo loco uenit, omnium reliquarum famula et ministra. Quod Demosthenes tribuit actioni,
id ego diligentiae. Huic primas do, huic secundas, huic tertias, quae omnium rerum necessariarum conciliatrix
est, adiutrix, custos, ac conseruatrix: nec sine hac quicquam unquam praeclarum aut magnum effeceris.
Quorsum enim uirtutes caeterae, quantumuis eximiae et insignes, si non stimulus hic et quasi calcar adsit
diligentia? Nam et natura bona est diligens, sedula, industria: ut ager bonus si non colatur, sterilescit. Sic
degenerat, et ueluti syluescit ingenium ferax atque foecundum, si non cultu assiduo renouetur et conseruetur.
(180-181)
117
Quonam etiam pacto tantam doctrinae uarietatem sibi comparabit interpres, rerum scientiam, quanta satis
est, orationisque elegantia , , , φ α ? N h
supellectile non referta modo et copiosa, sed lauta, explicata, digesta: unde tanquam e mundo depromat, ad
omnem usum, apparatum elegantem et abundantem. Religionis item comes et ancillula est diligentia, ut in
quaerendo fiat laboriosa, in uertendo operosa, in opere faciundo attenta, cauta, acuta. Itaque inest haec in fide
et religione, cuius officium omni in re semper est necessarium, ingratum nunquam fuit in hac se palaestra
exercentibus. (181)
118
Humphrey está, aqui, citando livremente Cícero, em De oratore, II, XXXV, 148: Haec praecipue colenda est
nobis; haec semper adhibenda; haec nihil est quod non adsequatur. [Devemos sobretudo cultivá-la e sempre
empregá-la; pois nada há que ela não alcance.]
119
Illustris ergo est haec uirtus, qua omnes reliquae uirtutes continentur. Sensus ut penitus eliciatur, diligentia
est. Vt in illis omnibus locis considerandis et inuestigandis peruoluatur animus, ut se in causam penitus insinuet,
ut sit cura et cogitatione intentus, ut proprie, pure, ornate, apte, plene rem conceptam eloquatur, diligentia est.
Quare haec colenda est interpreti, semperque adhibenda, quia semper ea opus habet: nusquam non adesse
debet, quia nusquam non erit utilis, et quia quod uult sequitur, et quia haec nihil est quod non assequitur. (183)

51 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016


Mauri Furlan

[...]
Em primeiro lugar, que se estabeleça o verdadeiro significado, o poder, a
força enunciativa, a forma de cada palavra. [...] Em segundo lugar, que não
nos perca, a nós negligentes ou ociosos, algo não considerado. Em terceiro
lugar, que não acrescentemos a partir de nós o que é alheio e não está
presente no autor.120

O tempo ideal para traduzir:

Existem alguns inimigos da diligência que antes arrojam e precipitam com


uma rapidez excessiva seus trabalhos do que publicam, os quais se gabam
de que traduzem em um mês na íntegra o que outros, com dificuldade, em
seis. Mas quando as traduções vêm à luz, vê-se que são imperfeitas, rudes,
cheíssimas de erros. Devem, pois, ser aqui admoestados desta maneira uma
e outra vez para que não sejam precipitados para escrever e para publicar.121
[...]
No entanto, assim como não louvo uma produção muito rápida, tampouco
aprovo a diligência lenta e tarda de outros, que se arrastam, não sei como,
semelhantes a tartarugas, até se tornarem estúpidos e ineptos, pois os
obtusos demoram muito, mas não avançam, e hesitando, detendo-se,
demorando-se, mesmo se se movem, com ou sem dificuldade, contudo
retardam.122

Nunca deve o tradutor desanimar.

Tanto mais devemos nós exigir isto do tradutor de coisas divinas: que seja
ativo, vigilante, diligente! Que sempre repise este ponto, que se dedique
incessantemente a este trabalho santíssimo por dias e noites! São, pois, aqui,
as sacratíssimas palavras, com o favo e o mel, de longe as mais doces; mas
se mel, fel; se queres a amêndoa, quebre-se a noz; se buscas abelhas,
considerem-se os espinhos; se desejas o suave, não se recuse o amaro. Por
isso, se às vezes encontrares um nó, não te desesperes prontamente, não tires
a mão da massa; tampouco deve-se desanimar ou descuidar, mas uma vez e
outra deve-se examinar, reler, analisar a passagem, reunir os sequentes com
os antecedentes, os primeiros com os últimos, para que tu, por fim, possas
superar estas dificuldades pelo trabalho incansável e extrair o sentido oculto
e secreto, para que eles, ao bater e chocar, obtenham, por fim, fogo das
rochas. Assim, tu, se for possível, tira água das pedras. Atacando, pois, os
gregos chegaram à Tróia, e os generais alcançaram os Alpes, e, pela fé,
movem-se montanhas. Em suma, o trabalho contínuo produz e realiza coisas

120
Primum, ut cuiusque uerbi uera significatio, uis, emphasis, figura ponatur. [...] Secundum, ne quid
negligentibus, aut oscitantibus nobis, non animaduersum intercidat. Tertium, ne de nostro adiungamus quod est
alienum, et non in autore collocatum. (184)
121
Sunt nonnulli huius inimici diligentiae, qui nimia quadam celeritate eiiciunt et praecipitant sua opera potius
quam edunt: qui se uno mense translaturos iactitant qd alii uix sex integris. sed cum in lucem prodeunt,
imperfecti, rudes, erratis plenissimi conspiciuntur. Monendi sunt ergo hic huiusmodi iterum atque iterum, ne sint
ad scribendum praecipites, uel ad publicandum. (186)
122
Quanquam ut praeproperam maturationem non laudo, ita nec probo lentam et tardam aliorum diligentiam:
qui nescio quo modo instar testudinum reptant adeo ut hebetes cum sint, et plumbei, ualdeque obtusi moram
faciant, sed non proficiant: et haerendo, insistendo, immorando etsi moueant, tamen uix, aut ne uix quidem
promoueant. (188)

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admiráveis, e torna ἀδύλαηα δύλαηα [as coisas impossíveis possíveis], como


ensina Isócrates com o exemplo de Hércules e Teseu.123

Em poucas palavras, a diligência não faz nada que não seja corretamente.
Todas as coisas são, para ela, não somente possíveis, mas fáceis. O que,
pois, é difícil àquele que quer e que trabalha? Ele enxerga todas as coisas
recônditas, explora, examina, percorre os recessos dos autores e os mais
obscuros enredamentos, de modo que nada lhe seja impenetrável. Não em
vão, repito e repiso isto com tantas palavras. Todas as coisas difíceis, belas e
divinas devem ser tratadas pelo tradutor, as quais, por sua sublimidade, às
vezes refreiam a diligência deste, e a destroem. Mas deve-se pensar que
Homero disse espirituosamente que a moli 124 é uma erva preciosíssima,
difícil de ser encontrada pelos mortais, tem a raiz negra, a flor láctea, os
frutos dulcíssimos. Hesíodo também disse que a emulação e coisas
grandiosas foram ocultadas por Deus nas raízes da terra, e que o caminho
para o auge da virtude é laborioso 125 . Por isso, quanto mais difíceis
encontrares as coisas, quanto maior for o trabalho, tanto mais bela se dará a
vitória.126

Outros recursos do tradutor:

Dispõe, pois, o nosso tradutor de certos outros recursos, que podem aqui ser
referidos mais extensamente. Assim, considerando que a prudência é
necessária, quando os modelos se opõem, quando ocorrem palavras
contrárias, que escolha uma à outra. Também deve ser aqui empregada a
constância, virtude não ínfima, para que o tradutor seja consequente
consigo, e não se contradiga a si mesmo em uma passagem com outra.
Porque acontece muitas vezes que o que se esquece de si mesmo aprova em
alguns lugares a mesmíssima coisa que desaprova em outros por uma

123
Quanto magis hoc requirere debemus ab interprete rerum diuinarum, ut sit gnauus, uigilans, diligens? ut
incudem semper hanc tundat, ut in hoc opere sanctissimo noctes et dies urgeatur? Sunt enim hic fauo et melle
uerba sacratissima longe dulciora. at si mel, fel: si nucleum cupias, nux frangenda: si apes, spinae ferendae: si
suauia uelis, amara non sunt recusanda. Itaque si aliquando in nodum incidas, ne continuo desperes, ne tollas
manum de tabula. nec despondendus est animus aut cura abiicienda, sed iterum atque iterum introspiciendum,
relegendum, locus considerandus, sequentia cum antecedentibus prima cum ultimis componenda: ut tandem
inuicto labore has difficultates superes, et sensum abditum ac latentem elicias. ut hi qui tundendo et collidendo
ex silice tandem ignem elidunt: ita tu si fieri potest, aquam petas e pumice. Tentando enim Graeci uenerunt ad
Troiam, et Alpes ascenderunt duces, et fide montes mouentur. In summa, mira labor continuus producit et efficit,
et α αf α α, H Th x . (191-192)
124
Moli (κῶιπ) é uma planta mágica, fictícia, referida por Homero na Odisséia, X:304ss. :
Tinha a raiz de cor negra, mas branca era a flor, como leite.
Móli chamavam-lhe os deuses; difícil aos homens seria,
De vida curta, arrancá-la; mas tudo os eternos conseguem.
(trad. de Carlos Alberto Nunes)
125
Cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 11-24.
126
Breuiter nihil non recte facit diligentia. sunt omnia illi non solum possibilia, sed facilia. Quid enim difficile
uolenti et laboranti? Omnia uidet abstrusa, recessus autorum et inuolucra obscurissima explorat, inspicit,
euoluit, ita ut nihil ei sit non penetrabile. Non frustra tot uerbis haec repeto et inculco. Omnia enim difficilia
pulchra, et diuina sunt tractanda interpreti: quae sublimitate sua nonnunquam frangunt eius diligentiam, et
enecant. At cogitandum Homerum non insulse dixisse Moly herbam preciosissimam, mortalibus inuentu esse
arduam, radicem habere nigram, florem lacteum, fructus dulcissimos. Hesiodus quoque ait, aemulationem et res
praeclaras a Deo in terrae radicibus occultatas, et ad uirtutis fastigium iter esse laboriosum. Itaque quo duriora
inueneris, eo sit labor maior, quo pulchrior contingat uictoria. (192)

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avaliação oposta, e, assim, ele mesmo degola sua sentença com sua espada.
É, pois, um grande vício a leviandade e o esquecimento.127

Aqui também uma certa fortuna favorece os exemplares a serem analisados


e comparados, como deva obter todos os livros, tanto editados quanto
manuscritos, e adquiri-los desenterrando das bibliotecas onde foram
arredados e escondidos.128

Ademais, uma particular distinção de um tradutor é a ηαπεηλνθξνζύλε


[humildade], sem dúvida, simplicidade, para que não se arrogue demasiado,
nem tome além de suas forças o que não pode cumprir, porque o vício é um
vigorosíssimo pai. A arrogância e a soberba é a mãe das demais coisas. Pelo
que se diz, brilhantemente, “conhece-te a ti mesmo”129, e Ele desceu do céu,
sem dúvida, para que cada um examine e conheça a si, suas capacidades,
forças e nervos, e não para saber as coisas mais elevadas130, e que não abra
asas maiores que o ninho 131 , como se diz. Aqui, pois, deve-se buscar e
debater com os mais doutos sobre as passagens duvidosas; e é necessário
não somente tomarmos uma resolução própria, mas também consultar a
opinião de outros.132
[...]
Com isso, põe-se aqui um fim e um limite do falar sobre estas qualidades do
traduzir.133

E Humphrey conclui o primeiro livro de seu tratado apresentando como epílogo um


rol dos pontos abordados.

*****

127
Sunt enim alia quaedam interpreti nostro admnicula, quae huc prolixius referri possent: Nam in iudicando
prudentia est necessaria, cum repugnant exemplaria, cum uoces diuersae occurrunt, ut alteram alteri praeferat.
Constantia etiam huc adhibenda est, uirtus non infima: ut sibi nimirum constet interpres: ne aliis atque aliis
locis sibiipsi sit contrarius. Quod saepe accidit, ut sui immemor alicubi probet, alicubi idem ipsum calculo
diuerso improbet, suamque ipse suo ense iugulet sententiam. Est autem magnum uitium leuitas et obliuio. (198-
199)
128
Huc accedit etiam quaedam felicitas in conquirendis comparandisque exemplaribus, ut habeat omnes tum
editos tum manuscriptos codices, illosque ex Bibliothecis ubi retrusi et abditi sunt, erutos nanciscatur. (199)
129
Oráculo na entrada do templo de Apolo, em Delfos, visitado por Sócrates. Do que resultou o pensamento
socrático “sei que nada sei”, base de sua filosofia e de seu método, a maiêutica.
130
Este nec sapiat altiora, de Humphrey, é provável referência a Eclesiástico 3:22: Altiora te ne quaesieris [Não
procurarás saber o que excede a tua capacidade].
131
Pennas nido maiores extendere [abrir asas maiores que o ninho], provérbio latino aplicado a quem nutre
ambições maiores que suas capacidades, a quem “dá o passo maior que a perna”.
132
α φ , b , b ,
ultra uires sumat, quod praestare non ualet: quod uitium latissime pater. Est enim mater reliquorum arrogantia
et superbia. Quare praeclare dicitur, Nosce teipsum, de coeloque descendit, nimirum, ut se, facultates, uires
neruosque suos quisque libret et cognoscat, nec sapiat altiora, pennasque nido maiores non extendat, ut dicitur.
Hic ergo quaerendum, et in dubiis locis cum doctioribus conferendum: nec solum in nos descendere, sed etiam
alios in consilium oportet adhibere. (199)
133
Quare de his interpretandi uirtutibus hic dicendi finis modusque adhibeatur. (200)

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Referências bibliográficas

FURLAN, M. La retórica de la traducción en el Renacimiento. Tesi doctoral, Universitat de


Barcelona, 2002. Online: http://www.tdx.cat/handle/10803/1717
HOMERO. Ilíada e Odisseia. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2015.
HUMPHREY, L. Interpretatio linguarum, seu de ratione conuertendi & explicandi autores tam
sacros quam prophanos, libri tres. Basileia: Froben, 1559.
LAUSBERG, H. Manual de retórica literaria. Fundamentos de una ciencia de la literatura.
Trad. de José Pérez Riesco. Madri: Gredos, 1966.
NORTON, G. The ideology and language of translation in Renaissance France and their
humanist antecedents. Genebra: Droz, 1984.
VIRGILIO. Eneida. Trad. de Manuel Odorico Mendes. Online: http://www.unicamp.br/
iel/projetos/OdoricoMendes/

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