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CURITIBA
2009
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CURITIBA
2009
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Introdução
1
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslau, em 1768 e morreu em Berlin em 1834. Pertencente a
uma família de pastores protestantes, foi educado numa comunidade moravita, iniciando em 1785 seus estudos
de Teologia. Em Leben Schleiermachers, biografia escrita por Dilthey, esse descreve a produção do autor como
sendo representada por duas fases: uma primeira intuitiva, e uma segunda crítica. Na primeira fase, que
corresponde ao período em que havia entrado em contato com o grupo de românticos, dentro dos quais
encontrava-se Friedrich Schlegel, publica várias obras sobre religião; na segunda fase, a qual é considerada seu
período mais profícuo, surgem suas obras sobre dialética e hermenêutica. Ele mesmo um tradutor reconhecido,
traduziu os diálogos de Platão, cujo famoso prólogo marcou decisivamente os estudos platônicos.
10
análise comparativa mais detida dos textos mais importantes de Schleiermacher sobre a
hermenêutica, e o já referido ensaio “Sobre os diferentes métodos de tradução”.
Voltaire
A jurisprudência é outra área que emerge no período Renascentista, e também desempenhou um papel relevante
na história da hermenêutica. Este aspecto, entretanto, não será contemplado neste trabalho.
4
É provável que o primeiro registro da palavra “hermenêutica” como título de livro tenha ocorido na obra de J.C
Danhauser, Hermenêutica sacre sive methodus exponendarum sacrarum litterarum, publicada em 1654. (Cf.
Hermenêutica de Richard Palmer, 1969, p. 44).
12
Wolff7
expressão de sua personalidade, e sim com o gênero especifico de escrita que ele pretende
produzir, carregando, portanto, uma denotação essencialmente genérica e objetiva. Por
conseqüência, Wolff discute os diferentes tipos e gêneros de escritos históricos de acordo com
o tipo de intenção específica que o governa: a intenção da história natural, da história da igreja
ou a da história secular. Julgar um livro a partir de sua intenção autoral, portanto, significa
julgar se o autor foi ou não bem sucedido em atender as exigências genéricas do discurso
escolhido (MUELLER-VOLLMER, 1988, p. 9). Para Wolff, o significado de certa passagem
não era visto como um problema, visto que os recursos lingüísticos deveriam sempre
transmitir a intenção do autor, desde que usados corretamente. A compreensão, portanto, era
tida como um fato garantido, sendo a incompreensão meramente casual, fórmula que será
submetida a uma inversão por Schleiermacher, conforme veremos adiante, no segundo
capítulo.
Chladenius9
9
Johann Martin Chladenius ( 1710 - 1759) foi um teólogo e historiador alemão. Luterano ortodoxo, esteve
ligado ao racionalismo de Wolff e é considerado o fundador da interpretação (Auslegung) dos escritos históricos.
10
Especialmente em sua obra Einleitung zur richtigen Auslegung vernünftiger Reden und Schriften. (Introdução
à correta interpretação de Discursos e Textos racionais).
14
Tradução
almejar um valor de originalidade para a tradução era o preceito máximo. Para tanto, os
tradutores do período pretendiam assimilar completamente um ideal racional válido de poesia,
visto que para eles o sentido universal subjacente às formas era mais importante do que
questões ligadas à autoria e a historicidade da obra. De acordo com Peter Szondi15
15
SZONDI, Peter, Introduction to Literary Hermeneutics. Peter Szondi (1929-1971) foi um filólogo e crítico
literário húngaro, especializado em literatura comparada.
16
The question as to how another person, a stranger, can be understood is unknown to Enlightenment
hermeneutics, because it considers texts not as the expression of their authors but as the latter’s explanation of a
third thing, the object of the passage. Author and interpreter agree on this third thing.
16
17
Entendemos o conceito de a-historicidade, como o nivelamento de características específicas de determinadas
culturas e épocas à noção de razão universal e atemporal.
18
A estética neoclássica não vê a forma e o conteúdo como um todo orgânico, o que ocorrerá no Romantismo.
17
discurso. O elemento unificador não será mais a razão universal, mas um Ideal projetado para
além, que dependerá das diferenças, consideradas essenciais, para se realizar.
22
É preciso ressaltar que o tema da Ursprache foi bastante debatido entre os românticos dentro de três noções
principais: antropológico-especulativa (que estuda o desenvolvimento da linguagem desde a infância); histórico-
especulativa (associada à lingüística comparada) e metafísica (em que a teoria da linguagem está associada à um
sistema filosófico). Ver cf. BÄR, Jochen A.: Sprachreflexion Der Deutschen Fruhromantik: Konzepte Zwischen
Universalpoesie Und Grammatischem Kosmopolitismus Mit Lexikographischem Anhang, pgs. 85, 86, 1999.
23
“hermeneutics concerned itself with the idea of the author as creator and of the work of art as an expression of
his creative self. In harmony with the poets and philosophers of the period, hermeneutic thinkers advanced the
conception of the organic unity of a work, subscribed to a notion of style as the inner form of a work and
adhered to a concept of the symbolic nature of art which gave rise to the possibility of infinite interpretations.
The ancient task of interpreting and explicating texts suddenly appeared in a new and pristine light. Even more
important than the ideas of the new aesthetics was the transcendental turn hermeneutic thinking underwent in the
hands of the Romantics theorists – particularly F. Schlegel, Schleiermacher und Alexander von Humboldt”.
.
19
busca incessante pela essência original das obras literárias. O exame que Antoine
Berman24(2002) realiza da revolução crítica promovida especialmente por Friedrich Schlegel
e Novalis, ajuda-nos a sinalizar o estado em que se encontrava a mentalidade romântica do
início do século XIX25.
De acordo com Berman, a problemática do sujeito infinito kantiano é desdobrada
pelos românticos no medium da arte e da poesia, num espaço de “intensa reflexão da obra
ausente, desejada ou por vir” (BERMAN, 2002, p. 128) que não é filosófico e tampouco o da
simples criação poética, mas uma mistura de ambos. O espaço da especulação romântica
movimenta-se dentro do ideal da Universalapoesie de Schlegel, em que se pretende uma
fusão da totalidade dos gêneros e formas poéticas, a qual consiste num tipo de reflexão
sincrética cuja operação é incessante e infinitizante. Para Schlegel e Novalis, a linguagem
dependia inteiramente da poesia, pois só através dela a linguagem poderia atingir uma
‘significação pura’, de uma linguagem universal, afastada de seu sentido ‘natural’ e ‘comum’:
Friedrich Schlegel27
27
Karl Wilhelm Friedrich von Schlegel (1772 - 1829), foi um poeta, crítico, filósofo e tradutor alemão. Era o
irmão mais novo de August Wilhelm Schlegel.
28
Schlegel e Schleiermacher eram amigos íntimos, o que demonstra o projeto conjunto de tradução da obra
completa de Platão, que afinal acabou ficando ao encargo apenas de Schleiermacher.
29
Cf. LEVENTHAL, Richard: Disciplines of Interpretation e Sprachreflexion Der Deutschen Fruhromantik:
Konzepte Zwischen Universalpoesie Und Grammatischem Kosmopolitismus Mit Lexikographischem Anhang .
Schlegel e Schleiermacher eram amigos íntimos, o que demonstra o projeto conjunto de tradução da obra
completa de Platão, que afinal acabou ficando ao encargo apenas de Schleiermacher.
30
Com os quais Schleiermacher irá polemizar em seus Discursos Acadêmicos de 1829, conforme veremos no
capítulo seguinte.
31
Na época de Christian Gottlob Heyne, a gramática era considerada o fundamento e o pressuposto tanto da
atividade hermenêutica quanto crítica: é preciso dominar a gramática antes de partir para uma interpretação dos
textos.
32
Sobre a hermenêutica de Schlegel: cf. LEVENTHAL, Robert S.; Capítulo 8: “Friedrich Schlegel’s
Hermeneutic Philology and the Eclipse of the Aesthetic Culture” in Disciplines of interpretation, 1994, pgs. 258-
281.
21
será retomada por Schleiermacher e desenvolvida por Heidegger e Gadamer33: não há, na
verdade, um fundamento prévio, e sim uma interdependência entre as partes – um movimento
oscilante entre o contexto histórico e a ampliação da compreensão –, e que significa um não-
acabamento da tarefa compreensiva, um eterno projetar-se à frente numa aproximação de um
Ideal totalizante34.
Por isso, para Schlegel, o exercício compreensivo só poderia ser exercido com aquelas
obras de natura “semiótica”, as quais associava aos textos clássicos de natureza artística ou
histórica (e como veremos adiante, Schleiermacher estabelece um tipo de hierarquia
semelhante ao considerar como tradutor genuíno somente aquele que debruça sobre obras de
natureza artística ou científica). Nestas obras, a linguagem – antecipando a formulação de
Humboldt – funcionaria como uma “presentação formativa” (bildende darstellung) dos
objetos, significados e idéias, e, portanto, ‘poética’ em sua essência: o mundo existe através
de um processo de simbolização, e a linguagem jamais deixa de ser poética em alguma
medida. Esta noção de incompletude e tarefa progressiva, assim como da poetização do
mundo, ilustra o elemento metafísico-especulativo na reflexão romântica sobre tradução,
como veremos.
34
Bastante ilustrativo deste aspecto do não-acabamento é o seu conceito de ‘incompreensibilidade’. Para o
filósofo a comunicação das idéias jamais ocorre de modo inequívoco e completo, não havendo uma divisão
estanque entre a ‘compreensão’ e a ‘incompreensão’. A verdade mais elevada, segundo Schlegel, era comum, e
por isso deveria ser sempre repetida de uma maneira inteiramente nova e paradoxal, a fim que de não perder de
vista que elas jamais poderão ser exprimidas em sua totalidade. Schlegel enxerga o incompreensível como fator
constitutivo da tarefa compreensiva, e enxerga o ato interpretativo como sendo parcial e dependente de constante
aperfeiçoamento. (Cf. Leventhal: “On incomprehensibility” in Disciplines of interpretation). Veremos adiante
como este valor ‘positivo’ da incompreensão é retomado em Schleiermacher.
35
Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand Freiherr von Humboldt (1767 –1835), linguista e educador
alemão, realizou importantes contribuições para a teoria da linguagem e sistema educacional.
22
hermenêutica de Chladenius). Para Humboldt, cada língua constitui uma forma única de ver o
mundo, e por isso, o estudo de outras línguas torna-se uma forma de ganhar uma nova
perspectiva. Esse processo de compreensão poderia se repetir dentro da própria língua, desde
enunciados falados, palavras escritas, até trabalhos de arte e literatura, os quais expressariam a
individualidade de quem os produziu. Assim como Schlegel e Schleiermacher, para Humboldt
a língua era vista como um veículo (Vereinwerk) e produto da sociabilidade (Geselligkeit) de
uma determinada sociedade ou nação. A compreensão só se dá quando os seres humanos
testam a inteligibilidade de suas declarações com outros seres humanos, a compreensão é
problematizada de maneira que todo conhecimento seja controlado por um processo de
construção e reconstrução (MUELLER-VOLLMER, 2000, pp. 170-176).
Este caráter do relativismo lingüístico de pensadores como Schleiermacher, Humboldt
e Schlegel, deve ser considerado com relação ao elemento universalista do idealismo alemão.
As línguas não eram consideradas entidades fechadas em si, mas sua diversidade era a própria
condição para a troca mútua entre as culturas. Para os românticos, o elemento diversitarista,
como foi apontado na introdução, era condição para a realização do ideal da Bildung, ou, num
plano mais metafísico, de ‘plenitude do cosmos’. Schlegel, por exemplo, mesmo assimilando
o historicismo de Herder, chegou a rejeitar, entretanto, a sua idéia acerca de uma completa
incomensurabilidade entre línguas e culturas, pois nisso enxergava uma limitação ao
movimento contínuo em direção ao Todo. O próprio Humboldt e sua concepção de um
protótipo lingüístico universal subjacente às línguas naturais coloca um desafio às propostas
relativistas36, ao reivindicar um elemento comum de compreensão lingüística presente em
todas as sociedades, o que serviria de base para garantir a objetividade nas ciências
humanas37.
Tradução
É neste contexto romântico do interesse crescente pelos traços típicos dos povos e por
uma perspectiva histórica ampliada, que a tradução aparece ao mesmo tempo como um
36
Sobre a questão do relativismo linguístico em Humboldt, ver cf. Kurt Mueller-Vollmer: “Language theory and
the art of understanding, pg. 176” in The Cambridge Companion of Literary Criticism (2000), e Rodrigo Tadeu
Gonçalves (tese): Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o relativismo lingüístico e o aspecto
criativo da linguagem. (2008), pg. 52-66.
37
Lembramos que algumas décadas mais tarde, a solução de Dilthey para o relativismo imposto por seu próprio
historicismo foi o recurso ao Espírito Universal, elemento de unificação de todas as épocas e culturas.
23
desafio e uma resposta ao dilema do hiato entre línguas e culturas 38, e como um protótipo da
própria função poética de desenraizar a linguagem de seu lugar origem.
Conforme vimos no primeiro capítulo, a crença na assimilação direta do significado e
a exigência de fidelidade ao original concretizava-se através da adoção de um tipo de tradução
normativa, que ‘interpretava’ o conteúdo original de acordo com os imperativos da própria
convenção cultural. A crítica ao dogma da “razão universal”, a instauração da noção
constitutiva da língua e do nexo histórico pelos românticos, resultado da valorização da
identidade histórica e cultural dos povos, estimulou a retomada do método literal de tradução,
através do qual se pretendia contemplar o original dentro de sua especificidade lingüística e
histórica.
O original, portanto, é entendido em sua relação com a criação individual, cuja
expressão está indissociamente ligada à sua forma lingüística:
40
“Uma tradução é, seja gramatical, ou modificadora, ou mítica. Traduções míticas são traduções no mais alto
estilo. Expõem o caráter puro, perfeito e acabado da obra de arte individual. Não nos dão a obra de arte efetiva,
mas o ideal dela. Ainda não existe, ao que creio, nenhum modelo inteiro dela. No espírito de muitas críticas e
descrições de obras de arte encontram-se porém claros traços. É preciso para isso uma cabeça, onde espírito
poético e espírito filosófico se interpenetraram em sua inteira plenitude. A mitologia grega é em parte uma tal
tradução de uma religião nacional. Também a madona moderna é um tal mito.
Traduções gramaticais são as traduções no sentido costumeiro. Exigem muita erudição – mas apenas aptidões
discursivas. As traduções modificadoras requerem, se devem ser genuínas, o mais alto espírito poético.
Resvalam facilmente para o travesti – como o Homero em jambos de Bürguer – o Homero de Pope – as
traduções francesas em seu conjunto. O verdadeiro tradutor dessa espécie tem na realidade de ser o próprio
artista e poder dar a idéia de todo assim ou assim a seu bel-prazer – Tem de ser o poeta do poeta e assim poder
fazê-lo falar segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo. Numa relação semelhante está o gênio da
humanidade com cada homem individual. Não meramente livros, tudo pode ser traduzido destas três maneiras.”
Cf. NOVALIS, Friedrich von Hardenberg in Pólen, 2001, pg. 72.
41
HUYSSEN, Andreas: Die frühromantische Konzeption von Ubersetzung and Aneignung: Studien zur
frühromantischen Utopie einer deutschen Weltliteratur, Zurich, Beitrage zur deutschen Literatur, 1969, pg. 121-
225.
25
Ora, o que se questiona nessa divisão é que a tradução como tal, como ato,
não tenha campo próprio claramente delimitado (como trabalho de
linguagem e com a linguagem), é que ela esteja ora ao lado da poesia, ora
ao lado da filologia. (BERMAN, 2002, p. 184; grifo original).
Tendo em vista este contexto geral das discussões sobre a tradução no Romantismo,
nosso objetivo, a partir deste ponto, é destacar em que medida o discurso sobre tradução de
42
“Alle Dichtung ist sowohl fur Novalis als auch für die Bruder Schlegel reproduktiv and also übersetzerisch.
Dies ist das vielleicht überraschendste Ergebnis dieser Untersuchungen.”
43
“Em primeiro lugar, eles desenvolveram, com a Enciclopédia, o Witz e a poesia universal progressiva, uma
teoria da traduzibilidade generalizada que é a transposição especulativa e fantasista da experiência concreta do
campo do transformável. Em segundo lugar, eles propuseram uma teoria da poesia que faz desta uma tradução e,
inversamente, faz da tradução um duplo da poesia. Em terceiro lugar, eles obviamente pressentiram que a
tradução restrita constituía talvez o paradigma da tradução generalizada, mas obscureceram essa intuição ao
privilegiar filosoficamente a tradução generalizada”. Cf. BERMAN, pg. 144-155.
26
44
DILTHEY, Wilhelm: Die Entstehung der Hermeneutik, apud LAU,Viktor: Erzählen und Verstehen, pg. 249,
1997.
45
Cabe ressaltar que não é uma visão compartilhada por todos os teóricos. O crítico literário Peter Szondi, por
exemplo, considera que a hermenêutica universal concebida como análise da compreensão não começou com
Schleiermacher, e sim muito antes, com Chladenius e Meyer. Cf. Szondi: Introduction to literary hermeneutics.
Ver também cf. Disciplines of Interpretation de Richard Leventhal, em que o autor atribui a Schlegel as
inovações mais decisivas neste campo.
46
Friederich Daniel Ernst Schleiermacher, Sämmtliche Werke, 31 volumes. (Berlin, 1835 – 64)
28
1959, com o aparecimento da nova edição realizada por Heinz Kimmerle, a autoridade de
Dilthey é questionada.47
Na segunda metade do século XX, a obra de Schleiermacher é submetida a uma
renovada interpretação por teóricos de orientação tão distinta quanto Heinz Kimmerle, Peter
Szondi, Frank Manfred e Andrew Bowie. Em linhas gerais, esta nova recepção tende a
combater o rótulo de “psicologismo” ao qual a hermenêutica do filósofo havia sido reduzida,
ressaltando o aspecto da “interpretação gramatical” – antes ignorada em favor da
“interpretação psicológica” –, assim como a atualidade de Schleiermacher no contexto dos
debates contemporâneos.
Selecionamos como ponto de partida o Compêndio, de 1819, e também os Discursos
Acadêmicos – Sobre o conceito de hermenêutica, com referência às definições de F.A Wolf e
ao Compêndio de Ast, escrito em 1829, pelo fato de ser o seu trabalho mais sistemático e
também por incorporar grande parte de sua reflexão anterior, presente nas Notas, de 1805, e
no já referido Compêndio. Não é nossa intenção retraçar o desenvolvimento da Hermenêutica
de Schleiermacher, mas identificar seus aspectos mais gerais e relevantes.
Hermenêutica Geral
47
Esta nova edição, realizada por Heinz Kimmerle, não buscava alcançar uma unidade e coerência de pensamento
como a edição anterior de Lücke, mas sim apresentar a obra de Schleiermacher na ordem em que havia sido
produzida. Esta edição apresenta os aforismos produzidos em 1805 e 1809; os manuscritos escritos entre 1809 e
1810; um compêndio em forma de apresentação de 1819; um tratamento separado da segunda parte do
compêndio entre 1820 a 1829; os Discursos Acadêmicos de 1929, e finalmente a marginalia produzida entre
1832 a 1833. Manfred Frank complementa o trabalho de Kimmerle em seu Hermeneutik und Kritik, que recebeu
uma tradução para o inglês com introdução de Andrew Bowie.
A edição em que nos baseamos é a tradução para o português de uma parte da edição de Kimmerle intitulada
Hermenêutica e Crítica: Arte e técnica da interpretação, Editora Vozes, 1999, a qual inclui Os discursos
acadêmicos, os manuscritos, e a exposição separada do compêndio.
29
(...) como metodologia propriamente dita, não somente (...) seja o fruto
sempre alcançado dos trabalhos magistrais dos artistas nesse domínio, mas
que ela exponha também sob uma forma adequada e científica toda a
extensão e as razões de ser do processo.49 (grifo nosso).(idem)
48
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E: “Discursos Acadêmicos – Sobre o conceito de hermenêutica, com
referência às indicações de F.A Wolf e ao Compêndio de Ast” in Hermenêutica – Arte e técnica da
interpretação, 1999, pg. 64.
49
30
50
“Eingentlich gehort nur das zur Hermeneutik was Ebing subtilitas inteligendi nennt. Denn die (subtilitas)
explicanti sobald sie mehr ist als die äussere Seite des Vertehens ist wiederum ein Object Der Hermeneutik und
gehort zur Kunst des Darstellens”.
51
Neste aspecto Schleiermacher está consonância com Wolfgang Iser, o qual, ao definir o “espaço liminal”
associa a interpretação antes a um ato performático do que um ato explicativo. (Cf. ISER, Wolfgang:
“Interpretation as Translatability” in Range of interpretation, 2001, pg. 7.)
52
Entretanto, conforme já foi salientado, a hermenêutica de Schleiermacher começou a ser elaborada antes do
surgimento da hermenêutica de Wolf e Ast, já nos aforismo de 1805.
31
Wolf, por sua vez, quem Schleiermacher considera “a genialidade mais livre” da
filologia, em contraposição ao estilo filosófico de Ast, é quem formula uma hermenêutica
enquanto uma ciência de regras específicas para cada área do conhecimento, as quais teriam a
tarefa de resolver as dificuldades lingüísticas e históricas levantadas pelos textos antigos.
Nele também se expressa o mote romântico subjetivista da congenialidade ao preconizar a
decifração do pensamento do autor como um dos objetivos da hermenêutica. O intérprete,
nesse caso, deverá ser capaz de entrar em sintonia com outros pensamentos e possuir a
aptidão para o diálogo, de modo a “captar o pensamento do autor como ele desejaria ter
captado” (Ibid., p. 89).
O que Ast e Wolf possuem em comum ao tratar da ‘hermenêutica’, é o fato de ambos a
considerarem juntamente com as demais disciplinas da crítica e da gramática, ou um apêndice
ou um estudo introdutório da filologia. A limitação desses dois filólogos, segundo
Schleiermacher, consiste no fato de que entendem a tarefa da hermenêutica apenas quando se
trata de compreender um escritor ou decifrar um texto artístico numa língua estrangeira,
quando na verdade essa tarefa deveria ser estendida a toda conversação, discurso imediato e
escritos dos mais variados tipos, de maneira que “(...) em todo lugar onde houve(sse) qualquer
coisa de estranho, na expressão do pensamento pelo discurso, para um ouvinte, h(averia) ali
um problema que apenas pode(ria) se resolver com a ajuda de nossa teoria.”
(SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 31). A hermenêutica, portanto, não deveria servir
apenas como um simples organon filológico das obras clássicas, e sim satisfazer a todos os
domínios da linguagem onde a incompreensão ocorresse, seja numa língua estrangeira ou na
própria língua.
53
Nesta passagem é possível perceber que Ast não enxerga no círculo a pré-condição para a compreensão, e sim
uma contradição que pode ser eliminada.
32
54
“The less rigorous practice of the art [at first the manuscript read “the artless practice,” that is, of
interpretation] is based on the assumption that understanding occurs as a matter of course: and expresses the goal
negatively as a “Misunderstanding is to be avoided.” […] The more rigorous practice is based in the assumption
that misunderstanding occurs as a matter of course and the understanding must be willed and sought at every
point”.
33
Tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com a totalidade da
linguagem quer com o pensamento do autor, também em toda compreensão
de um discurso há dois momentos: a sua compreensão como algo extraído
55
Inicialmente Schleiermacher empregava o termo interpretação técnica, e em seus últimos escritos passou a
adotar interpretação psicológica.
56
Uma possível razão para este tipo de recepção, deve-se possivelmente ao fato de a filosofia da virada do século
XIX ter enfatizado a subjetividade e psicologia em contraposição à ênfase excessiva do Positivismo na
objetividade. Cf. Szondi, Introduction, pg. 118.
57
A questão do todo e das partes em Schleiermacher, o fato do intérprete buscar as intenções específicas do
indivíduo no contexto em que foram declaradas, manifestam a importância atribuída por Schleiermacher em
considerar a Hermenêutica junto com a sua Dialética.
34
58
Definição que se assemelha ao conceito de relação sintagmática, de Saussure.
59
Schleiermacher exemplifica tal relação referindo-se ao ato de retirar frases de seu contexto original e de
incorporá-las a um outro a fim de gerar representações falsas. Cf. ibid. pg. 52.
35
conhecimento do “todo”, de modo que operamos apenas com uma compreensão provisória,
que vai se ampliando na medida em que avançamos no texto. O sentido particular é dado a
partir do contexto mais geral no qual se insere, e esse, por sua vez, se constitui daqueles
mesmos elementos aos quais dá sentido. Isto é, a compreensão não é formulada a partir da
fusão do intérprete com um ponto de vista universal, conforme ocorria na hermenêutica
iluminista, mas ela passa pelo crivo da linguagem, e opera-se numa dialética interdependente
entre o todo e as partes.
A interpretação técnica/psicológica, por sua vez, deve ser entendida na sua relação
com a totalidade da linguagem, por um lado, e com a totalidade do indivíduo e sua vida, por
outro. A finalidade desta modalidade interpretativa é a completa compreensão do estilo do
autor.
O filósofo irá conceber dois períodos nos quais o processo criativo se engendra: o
primeiro seria destinado à germinação da forma literária e enriquecimento da língua a partir
da força produtiva do artista, enquanto do segundo faria parte a cristalização dessas formas e
sua subseqüente adoção por outros escritores. O conhecimento dessas duas fases, de acordo
com Schleiermacher, é fundamental para o intérprete que pretenda reconstruir da melhor
forma possível a “evolução interior da atividade compositora do escritor” (ibid., p. 39), de
modo a entender “o autor melhor do que ele mesmo se compreendeu” (ibid., p. 50) – topos
romântico também repetido por Fichte, Kant e Schlegel60.
É importante ressaltar a implicação para a hermenêutica ao propor um conhecimento
do autor que a ele escapa. Vimos que com Chladenius e Wolff, a busca pela intenção autoral
tinha a ver com a constatação pelo leitor/intérprete quanto à adequação do discurso do autor
com o gênero do texto, ou seja, autor e intérprete deveriam concordar com o conteúdo do
texto, e mantinham uma relação de subordinação com a autoridade por ele representada. Para
a hermenêutica romântica, a questão da intenção autoral terá outro significado. De acordo
com Peter Szondi,
60
Segundo Gadamer, é bem provável que Schleiermacher tenha sido o primeiro a levar em consideração uma
fórmula que reivindique com tanta ênfase a superioridade do intérprete sobre seu objeto. Segundo o autor, Fichte
e Kant tinham um propósito bem diferente quando pronunciaram esta fórmula, o qual dizia respeito ao desejo da
filosofia racionalista de superar as contradições numa tese através de uma maior clareza conceitual. Cf.
Gadamer, Verdade e Método, pg. 267.
36
Nessa citação encontramos algumas das razões pelas quais Schleiermacher foi
associado ao modelo da hermenêutica psicologista: o que ele sugere, e que para nós hoje soa
como carecendo de fundamentação, é a possibilidade de se elevar o sujeito a uma esfera de
incondicionalidade, como se as contingências de ordem histórica desempenhassem um papel
inferior (embora não nulo) ao próprio imperativo individual. Este é um tipo de psicologismo
fortemente atacado pela Hermenêutica do século XX, já preocupada com a questão da fusão
dos horizontes e história efeitual63. Aqui fica nítido que o fato de Wolf e Schleiermacher
dissociarem, ao menos em algum grau, o indivíduo do seu contexto histórico específico,
implicava a exigência da complementaridade da interpretação psicológica, cuja tarefa é
considerada mais fundamental, e cuja ênfase substitui a noção de que “a interdependência
entre a interpretação técnica e gramatical torna sua igualdade evidente”. Segundo o
Schleiermacher da interpretação psicológica, mesmo o intérprete mais hábil e competente
com relação a todos os conhecimentos adequados à língua e à situação histórica da época, não
63
Cf. Gadamer: “A extensão da questão da verdade à compreensão nas ciências de espírito”, in Verdade e
Método, 2008, a partir da pg. 241.
38
teria sucesso em atingir a concepção exata do processo criativo do autor caso não pudesse
apreender, intuitivamente, sua vida interior.
A transição da interpretação técnica para a psicológica, segundo Peter Szondi,
representou mais uma mudança de ênfase, visto que Schleiermacher mantém basicamente o
mesmo conceito (SZONDI, 1995, p. 131): enquanto na interpretação técnica, a ênfase residia
na questão do estilo individual como sendo um modo particular de composição e um fator que
modificava a língua, na interpretação psicológica ela reside na vida individual como um todo.
Gadamer, por sua vez, lamenta a transição e considera que Schleiermacher caíra numa má
metafísica, desistindo assim da possibilidade mais fértil de uma hermenêutica
verdadeiramente centrada na linguagem64.
O período da hermenêutica de Schleiermacher que a recepção da segunda metade do
século XX pretende resgatar é justamente aquele em que o filósofo considerava a linguagem e
pensamento como indissociáveis, e enxergava mesmo os processos psíquicos ainda à luz da
linguagem. Sua percepção de que “tudo o que se pressupõe em hermenêutica é apenas
linguagem e é também só linguagem aquilo que encontramos na hermenêutica
(SCHLEIERMACHER apud Palmer, 1969, p. 98)” e que “o lugar a que pertencem os outros
pressupostos objetivos e subjetivos tem que ser encontrado através (ou a partir) da
linguagem”(idem), reforça a atualidade de sua ‘primeira hermenêutica’ e sua afinidade com a
filosofia da linguagem do século XX.
A contribuição da hermenêutica de Schleiermacher, portanto, reside no abandono da
visão do texto como uma unidade fechada, visto que a compreensão, ao ampliar-se
indefinidamente em seu movimento circular entre o geral e o específico, constitui-se sempre
tarefa não acabada. Como veremos, é possível verificar em alguns momentos de seu discurso
sobre a tradução, a circularidade estabelecida pela relação dialética entre o contexto histórico
e criação individual, o que constitui o elemento ‘hermenêutico’ de sua teoria tradutória.
64
Cf. Gadamer, Verdade e Método, 2008, pgs. 254-270). Palmer compartilha a mesma opinião (cf.
Hermenêutica, 1969, pgs. 97-103).
39
Até aqui, vimos como o pensamento sobre tradução, que se desenvolveu no início do
século XIX na Alemanha, esteve associado tanto ao projeto estético romântico expresso pela
filosofia da Progressivepoesie, quanto à emergência das questões filológicas e das teorias de
linguagem. Schleiermacher, assim como Humboldt, são os principais pensadores a tratar o
problema da tradução dentro de uma pretensão científica, fazendo uso das teorias de
linguagem disponíveis na época. Como diz Steiner, “o vocabulário e moldura metodológica
com os quais Herder, Schleiermacher e Humboldt discutem a teoria da tradução são
obviamente novos. O debate sobre a traduzibilidade é agora aberta e inteiramente parte da
epistemologia”65. (STEINER, 2005, p. 287).
Segundo Berman, pode-se dizer que a conferência realizada por Schleiermacher na
Academia Real das Ciências de Berlim intitulada “Sobre os diferentes métodos da tradução”
constitui um capítulo das pesquisas do filósofo no domínio da hermenêutica. Nosso objetivo é
justamente divisar as questões de fundo teórico que constituem o discurso de tradução de
Schleiermacher, especialmente aquelas associadas à sua teoria da compreensão. Com isso
pretendemos avaliar em que medida Schleiermacher se valeu de pressupostos hermenêuticos
ao falar sobre a tradução, e em que medida também sua teoria da tradução representa um
descompasso com relação ao avanço representado por sua teoria hermenêutica.
Schleiermacher inicia o texto apontando para a tradução como um fenômeno a um só
tempo interlinguístico e intralingüístico, recorrente tanto na tradução de uma língua
estrangeira quanto de um discurso de um contemporâneo que compartilhe o mesmo idioma,
cuja forma de expressão individual seja distinta da nossa66. Esta noção universalizante de
tradução, longe de subscrever algo semelhante ao universo pan-semiótico de Novalis e
Schlegel, aponta para uma dimensão essencialmente hermenêutica. A idéia de que a tradução
65
STEINER, George: Depois de Babel.
66
“Se, de um lado, pessoas que, em princípio, estão separadas pelo diâmetro da terra podem entrar em contato, se
as produções de uma língua morta há muitos séculos podem ser incorporadas a uma outra; assim, nós, do outro
lado, nem podemos sair do campo de uma só língua para encontrar o mesmo fenômeno (...) freqüentemente
precisamos traduzir o discurso de um outro que é igual a nós, porém de personalidade e mentalidade diferentes,
quando sentimos que as mesmas palavras teriam um sentido vem diferente na nossa boca ou ao menos um valor
mais forte ou mais fraco que na dele e que, se quiséssemos expressar à nossa maneira o mesmo que ele
expressou, utilizaríamos palavras e locuções totalmente diferentes?”. SCHLEIERMACHER: “Sobre os
diferentes métodos de tradução” (doravante SMT), 2001, pg. 27.
40
não se limita à mediação entre dois idiomas separados geográfica ou historicamente, podendo
ocorrer também dentro de um mesmo idioma, numa conversa entre contemporâneos de
classes sociais distintas, ou mesmo ente dois semelhantes, é a própria tarefa geral que ele
atribui à sua nova hermenêutica, que não se limita à compreensão de obras clássicas ou em
língua estrangeira, mas se estende a ‘toda forma de diálogo humano’. A consciência da
historicidade inerente ao discurso e da estrutura dialogal da compreensão está presente
quando aponta para a distinção entre as próprias formas individuais de expressão, ao dizer que
“às vezes, os nossos próprios discursos devem ser traduzidos depois de um certo tempo, se
quisermos que continuem sendo nossos” (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 29). Ou seja, há a
pressuposição de que o discurso é sempre deslocado de seu lugar de origem, precisando por
isto ser recomposto ‘depois de um certo tempo’ ao seu contexto, a fim de ser compreendido.
Este aspecto geral da tradução aplicada a todos os tipos de discurso não é levado
adiante por Schleiermacher, que declara não querer “entrar em tudo que pertence a esse
campo amplo” mas sim tratar “primeiramente da tradução de uma língua estrangeira para
outra”(idem).
Schleimermacher distingue a tarefa do “intérprete” (Dolmetscher), associada à
oralidade, daquela exercida pelo “tradutor genuíno”, associada à escrita. O “intérprete” exerce
seu ofício no domínio da vida comercial, na qual a ‘tradução’(referida nesse contexto por
Schleiermacher como ‘transposição’, pelo fato de a equivalência entre os termos ser realizada
sem dificuldade, de uma forma quase mecânica) possui uma finalidade geralmente burocrática
ou meramente informativa, não representando, portanto, grandes desafios. Aqui, quanto
menos se distancia do original, e quanto mais se atua como ‘órgão receptor do objeto e se
segue a ordem local e temporal’, mais próximo se estará da “interpretação”, sendo que o
tradutor de artigos de jornal e relatos de viagem é equiparado ao intérprete oral, pela essência
de sua tarefa. O tradutor genuíno, por sua vez, exerce seu ofício no domínio da ciência e da
arte, aonde a ‘irracionalidade’ das línguas invade todos os elementos, tornando o tipo de
equivalência presente na tarefa do intérprete impossível. (SCHLEIERMACHER, SMT, p.
32).
Neste aspecto, é no mínimo curioso que Schleiermacher reduza de modo tão
peremptório a tradução realizada fora da esfera dos textos artísticos e filosóficos à mediação
por um tipo de equivalência automática. Como vimos nos Discursos Acadêmicos, a
41
hermenêutica era operada sempre que não se ‘atingisse o nível ordinário de compreensão 67’.
Ou seja, mesmo que se admita ser o texto artístico ou filosófico detentor de desafios
tradutórios mais elevados, isso não deveria relegar o trabalho do ‘intérprete’ a uma categoria
de mera equivalência, afinal, qualquer trabalho de tradução pressupõe a operação de um
empenho interpretativo de algum tipo. Disto Schleiermacher demonstrava estar consciente,
pois em seus Compêndios sobre hermenêutica de 1809 e 1810, anteriores ao seu ensaio sobre
tradução, já contemplavam a interpretação como uma tarefa geral existente até mesmo no
diálogo humano.
Esta hierarquia estabelecida entre os tipos de tradução, de acordo com a natureza do
material com que lidam – neste caso, obras artísticas e filosóficas ou documentos comerciais e
jurídicos –, apresenta, no entanto, uma certa correspondência com um de seus fragmentos, em
que diz que os textos artísticos apresentam um índice mais elevado de significação, enquanto
que, por exemplo, em uma conversa sobre o tempo, este índice seria mais reduzido (ibid., p.
39). De fato, Schleiermacher avalia a tarefa do tradutor e do intérprete em termos de graus
distintos de aproximação e afastamento. Por exemplo, o intérprete pode se aproximar do
tradutor genuíno ao interpretar negociações em que ‘novas relações jurídicas são
determinadas’, o que exigiria o desempenho, ao menos em partes, de uma competência
associada ao tradutor genuíno. De qualquer forma, Schleiermacher admite a possibilidade de
um processo de equivalência em certo tipo de ‘tradução’ (na terminologia dele, interpretação).
Para Schleiermacher, quanto mais se tenha exercido a atividade criativa do autor em
sua livre combinação e impressão, mais se estará operando num domínio superior de arte,
carecendo o tradutor de habilidades especiais para realizar o seu trabalho. De acordo com o
filósofo, “o objeto não domina mais de forma alguma, mas é dominado pelos pensamentos e
pelo espírito, muitas vezes ele só surge através da enunciação e ao mesmo tempo só existe
com ela”. Aqui o filósofo diferencia o discurso do objeto, e por outro lado aproxima
pensamento e ‘discurso’. ‘Objeto’, para Schleiermacher, aqui se refere àquelas convenções e
regras de uso comuns a todas as culturas, do qual a palavra apenas representa um signo
arbitrário e que não impõe, na interpretação, desafios maiores à busca de expressões
equivalentes. Por outro lado, a opacidade entre as línguas, e conseqüentemente, os desafios e
exigências maiores impostas ao tradutor, se dariam mais naqueles domínios da arte e da
67
Schleiermacher, Discursos, pg. 33. Cf.,acima, pg. 30.
42
ciência em que o pensamento formaria uma unidade com o discurso. Para Schleiermacher, a
tradução se distingue totalmente da interpretação pelo seguinte fato:
Sempre que o discurso que ela [a tradução] deve expressar não estiver
ligado a objetos ou situações exteriores que estão bem diante dos olhos,
onde, pois, o enunciador pensa mais ou menos espontaneamente e pretende
pronunciar-se, o enunciador está em dupla relação com a língua, e seu
discurso só será bem entendido à medida que essa relação for bem
compreendida. (SCHLEIERMACHER, SMT, p. 39).
Ou seja, sempre que ocorrer um uso mais ‘abstrato’ da linguagem, haverá uma ‘dupla’
relação com língua, pois a equivalência semântica só era possível entre pensamento e
‘objetos’, e não pensamento e ‘discurso’. Isso decorre do fato de que cada pessoa é “dominada
pela língua que fala”, não sendo possível pensar nada que estivesse fora dos seus limites,
embora, por outro lado, pudesse moldar e influenciar a língua à sua maneira caso pensasse de
uma ‘maneira livre e independente’. Aqui, como já foi referido, está presente o paradigma
romântico da língua como elemento constitutivo da estrutura da consciência, assim como do
enunciado como expressão da individualidade de quem o produziu.
Todo discurso elevado, para o filósofo, deve apresentar esse duplo aspecto: o modo
como o enunciador é moldado pela língua, e o modo como essa é moldada e produzida pelo
enunciador68. É necessário compreender esta relação mútua a fim de perceber qual das formas
predomina no discurso, se força da língua, ou a inventividade do enunciador:
68
Neste aspecto Schleiermacher aproxima-se de Schlegel, na medida em que os textos de natureza estética ou
filosófica representam um objeto mais desafiador e produtivo para a hermenêutica.
43
Tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com a totalidade da
linguagem quer com o pensamento do autor, também em toda compreensão
de um discurso há dois momentos: a sua compreensão como algo extraído
da linguagem e como um ‘fato’ no pensamento daquele que fala. (cf. acima,
p. 32).
69
“Quanto mais não será elevada, quando produções de uma língua estranha estiverem em jogo!”. SMT, pg. 39
44
estão relacionadas com o verdadeiro sentido da arte e da língua, e tentam afastar ou evitar as
dificuldades presentes na empresa tradutória.
A paráfrase, utilizada para a linguagem científica, tentaria dominar a irracionalidade
presente nas línguas de maneira mecânica, ao acrescentar complementos limitados ou
ampliados àquelas palavras não existentes no idioma da tradução. Deste modo o conteúdo
seria apresentado de maneira limitada, mas a impressão estaria sendo negligenciada. Portanto,
neste procedimento, nem o espírito da língua traduzida nem o espírito da língua original
conseguem aparecer. A imitação, por sua vez, utilizada no ramo das belas artes, curva-se ante
a irracionalidade das línguas e reconhece a impossibilidade de reprodução de uma obra de arte
de uma língua para outra, de modo que a impressão é salva, mas a identidade da obra não,
sendo que o imitador não permite uma união entre o autor da obra e o leitor
(SCHLEIERMACHER, ibid., 41-42). Esses dois procedimentos, entretanto, apenas são
mencionados enquanto demarcadores de limite para o assunto do qual o filósofo pretende
tratar, pois não cabem dentro do conceito mais rigoroso de tradução associado à ampliação do
campo de ação de uma obra-prima sobre os leitores da língua do tradutor.
É partir deste ponto que Schleiermacher apresenta o que para ele constitui os dois
únicos modos de traduzir, empregados pelo tradutor que pretenda ‘conduzir o leitor a uma
apreciação tão completa quanto possível (do autor da língua original), sem tirá-lo da língua
materna'. (ibid., p. 43). Tais modos constituem em deixar o autor intacto e levar o leitor até o
ele, ou deixar o leitor intacto, e levar o autor até ele. No primeiro caso, o tradutor pretende
transmitir a mesma imagem, ou impressão que ele mesmo teve através do conhecimento da
língua de origem da obra; no segundo o tradutor produz um texto em sua própria língua da
forma como o autor produziria se falasse o mesmo idioma que ele (ibid., p. 45).
Schleiermacher considera dispensável discorrer sobre a tradução literal e livre, visto que os
dois métodos incorporam tal discussão.
Sobre o método de levar o autor até o leitor (também conhecido como domesticador,
ou etnocêntrico)70, o qual, segundo ele, é considerado o mais prestigiado e a mais
freqüentemente empregado, o tradutor deve manter o ‘zelo pela limpeza e perfeição da língua,
seguir a mesma leveza e naturalidade estilísticas louvadas em seu autor da língua
original’(ibid., p. 63). Em suma, deverá mostrar o autor da mesma maneira como este teria
70
Lawrence Venutti e Antoine Berman foram os autores que trabalharam, respectivamente, com os termos
‘tradução domesticadora’ e ‘tradução etnocêntrica’.
45
71
“Em ninguém a língua fica montada apenas mecânica e externamente com mediante cintas”. In SMT, pg 67.
46
justamente esta familiaridade que possui o autor com a própria língua, que não deve ser
almejada pelo tradutor. Visto que o leitor da tradução precisa ter a impressão de se deparar
com um texto de um autor estrangeiro, Schleiermacher, portanto, apenas considera válida a
compreensão do tradutor produzida a partir da estranheza.
Para Schleiermacher, a língua é um fenômeno histórico, cujo sentido equivale a um
sentido para sua própria história. A ciência e a arte são aqueles domínios através dos quais a
descoberta da língua é incentivada e aperfeiçoada, ou seja, as concepções geradas sob esses
domínios influenciam fortemente a formação do próprio idioma. Tal organicidade torna
desafiador o trabalho do tradutor, visto que a obra é animada pelo espírito da língua, e
representa a história da própria ‘descoberta’ do idioma. O tradutor, portanto, deverá perceber
(...) então se deduzirá a intensidade de sua força produtiva [do autor] e sua
força na língua, que ele não produziu somente obras isoladas, mas que um
tipo fixo na língua nasce em parte com e por ele (...)
(SCHLEIERMACHER, Discursos, p. 40).
desafiadora e profícua, porém goza de menos prestígio. Numa crítica ao modo francês de
traduzir, Schleiermacher afirma:
Conclusão
da conversação em relação a qualquer ato de compreender. Ele nos ensinou que compreender
e interpretar são, no final das contas, uma única e mesma coisa.” (GADAMER, 2008, p.273).
De fato, ao lançar o precedente da ‘estrutura prévia da compreensão’, Schleiermacher
assinala o caráter inacabado de toda interpretação, a qual constitui uma tarefa aproximativa,
dependente de um movimento de ir e vir entre o contexto geral da linguagem e o pensamento
individual. Enquanto a hermenêutica clássica concebe métodos específicos para abordar o que
se julgava universal, Schleiermacher concebe um método universal para abordar o específico.
É possível dizer que o seu discurso sobre tradução se situa no âmbito de sua teoria
hermenêutica, na medida em que questões relativas à compreensão do estilo do autor,
contextualização histórica, comparação entre gêneros e funcionamento da linguagem estão
presentes nos dois âmbitos. Neste sentido, há uma consonância entre discurso sobre tradução
e teoria hermenêutica. Entretanto, o aspecto mais proeminente de seu discurso tradutório, que
é a validação da tradução estrangeirizante como a única forma legítima de se entrar em
relação com outra língua estrangeira, não indica a aplicação de uma lógica compreensiva da
linguagem. De fato, o método estrangeirizante de tradução não só é um corolário do topos
romântico acerca da indissiociabilidade entre língua e pensamento, quanto uma tentativa de
introduzir um elemento que visava uma modificação progressiva da língua, tendo um
propósito eminentemente político.
Como vimos, a acuidade crítica dos românticos em outros domínios teóricos era mais
desenvolvida do que suas idéias sobre tradução, a qual acabava sendo tratada como mais um
item em seu repertório de temas místico-especulativos, ou da sua agenda político-cultural
associada ao ideal da Bildung. Que generalizações teóricas de maior validade não tenham sido
realizadas, portanto, diz respeito ao fato de que nenhum teórico dispensou ao problema da
tradução, então incipiente, os mesmos esforços aplicados em outras áreas do conhecimento,
visto que a tradução tampouco era vista à luz de todas as conseqüências teóricas
desenvolvidas no campo da hermenêutica e da teoria da linguagem. Uma das razões
possivelmente reside no fato de que as questões de tradução tinham um forte apelo cultural-
programático, algo que talvez interessasse mais aos românticos, naquele contexto de guerras
napoleônicas e definição da própria identidade cultural, do que discutir os pressupostos
teóricos da disciplina.
A crença no caráter monolítico da língua é outro obstáculo ao desenvolvimento de sua
teoria tradutória, pois considera que qualquer tipo de tradução que não seja o estrangeirizante
51
Referências Bibliográficas
LOVEJOY, Arthur: The Great Chain of Being: A study of the history of an idea. Harper
Torchbooks, 1960.
MUELLER-VOLLMER, Kurt: The hermeneutic reader: Texts of the German Tradition from
the Enlightenment to the Present. Continuum International Publishing Group, 1988.
MARGOLIS, Joseph: Schleiemacher among the theorist of language and interpretation. The
Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 45, no 4, 161-368, 1987.
PALMER, Richard: Hermenêutica. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Edições 70, 1969.
GONÇALVES, Rodrigo Tadeu: Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o
relativismo lingüístico e o aspecto criativo da linguagem. 2008. Tese (doutorado em Letras).
Universidade Federal do Paraná, Curitiba.