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Introdução: O que pode ser a hermenêutica?

1 Mesmo assim, como lembraremos todo o tempo, essa concepção se encontra nos
(Jean Grondin) antípodas daquilo que a hermenêutica sempre quis ser: uma doutrina da verdade no campo
da interpretação. A hermenêutica clássica realmente quis propor regras a fim de combater a
A coiné relativista de nosso tempo? arbitrariedade e o subjetivismo nas disciplinas que têm a ver com a interpretação. Uma
hermenêutica votada à [11] arbitrariedade e ao relativismo encarna, consequentemente, o
[09]2 Faz algum tempo, Jean Bricmont e Alan Sokal montaram uma farsa, a fim de mais completo dos contrassensos. Contudo, o percurso que leva da concepção clássica à
denunciar o charlatanismo que, segundo eles, frequentemente grassa nas ciências humanas. hermenêutica "pós-moderna" não ó destituído de lógica. Ele segue paralelamente a certa
Eles submeteram um artigo coalhado de absurdos à revista americana Social Text, título que ampliação do campo da interpretação, mas do qual não se tem certeza se ele leva
sugere um pouco que toda produção cultural ou científica pode ser considerada como um necessariamente ao relativismo pós-moderno.
simples "texto social" logo, como uma interpretação ou uma construção ideológicas. O
artigo pretendia demonstrar que a física quântica, apesar de sua pretensão à objetividade, Três possíveis grandes acepções da hermenêutica
não passava de uma construção social. Apinhado de referências às equações de Einstein,
mas também aos mais eminentes mestres da "desconstrução" (entre os quais, Lacan e No sentido mais restrito e mais usual do termo, a hermenêutica serve atualmente
Derrida), o artigo foi aceito e publicado. Os autores imediatamente divulgaram a fraude, para caracterizar o pensamento de autores como Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Paul
que provocou numerosas reações no mundo.3 Ricoeur (1913-2005), que desenvolveram uma filosofia universal da interpretação e das
[10] Se essa polêmica pode nos servir aqui de ponto de partida, é unicamente ciências humanas que acentua a natureza histórica e linguística de nossa experiência de
porque o termo "hermenêutica" figurava no título do artigo submetido à revista: mundo. De um lado, esses pensamentos marcaram grande parte dos maiores debates
"Transgredir fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica". intelectuais que balizaram a segunda metade do século XX (estruturalismo, crítica das
Estejamos certos, a ideia ininteligível de uma "hermenêutica transformativa" não remete a ideologias, desconstrução, pós-modernismo), recepções que fazem parte daquilo que
nada de muito preciso. Mas, ao se valerem do termo hermenêutica, os autores retomavam podemos chamar de o pensamento hermenêutico contemporâneo. De outro, os
um termo da moda, que às vezes serve para descrever o pensamento contemporâneo "pós- pensamentos de Gadamer, Ricoeur e de seus herdeiros frequentemente se vinculam à
moderno" e relativista, justamente aquele que Bricmont e Sokal buscavam denunciar. tradição mais antiga da hermenêutica, quando ela ainda não designava uma filosofia
Pois é, então, justamente esse um dos sentidos possíveis do termo hermenêutica: universal da interpretação, e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente os textos.
designar um espaço intelectual e cultural onde não há verdade, porque tudo é uma questão Mas como essa concepção mais antiga é sempre pressuposta e discutida pela hermenêutica
de interpretação. Essa universalidade do reino interpretativo encontrou sua primeira mais recente, é preciso levá-la em conta em uma apresentação [12] de conjunto da
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expressão na afirmativa fulminante de Nietzsche: “Não há fatos, só interpretações”. É hermenêutica. Desse modo, podemos distinguir três grandes acepções possíveis da
dessa hermenêutica relativista que Gianni Vattimo pôde dizer que ela era a coiné, a língua hermenêutica, que se sucederam no decorrer da história, mas que se mantêm integralmente
comum, de nosso tempo.5 como concepções absolutamente atuais e defensáveis da tarefa hermenêutica.

1. No sentido clássico do termo, a hermenêutica designava outrora a arte de interpretar os


textos. Essa arte se desenvolveu sobretudo no seio das disciplinas ligadas à interpretação

1 GRONDIN, Jean. Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. dos textos sagrados ou canónicos: a teologia (que elaborou uma hermeneutica sacra), o direito
2 Os números entre colchetes indicam a numeração da página do livro.
3 Cf. Bricmont & Sokal. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Record. 2006. (hermeneutica iuris) e a filologia (hermeneutica profana). A hermenêutica desempenhava, então,
4 F. Nietzsche, A vontade de poder, n. 481.
5 G. Vattimo, “L’herméneutique comme nouvelle koinè”, in Éthique de l’ínterprétation. Paris: La Découverte,
uma função auxiliar, no sentido de que vinha secundar uma prática da interpretação, que
1991, pp. 45-58.

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tinha necessidade, sobretudo, de um socorro hermenêutico quando tinha de enfrentar interpretação surge então, cada vez mais, como uma característica essencial de nossa
passagens ambíguas (ambígua) ou chocantes. Ela possuía um objetivo essencialmente presença no mundo. Essa ampliação do sentido da interpretação é responsável pelo avanço
normativo: propunha regras, preceitos ou cânones que permitissem bem interpretar os do qual a hermenêutica do século XX se beneficiou. Esse avanço pode invocar dois
textos. A maioria dessas regras eram tomadas de empréstimo da retórica, uma das ciências padrinhos: um padrinho anônimo, Nietzsche (anônimo porque ele não falou muito de
fundamentais do trivium (ao lado da gramática e da dialética) e no seio da qual hermenêutica) e sua filosofia universal da interpretação, e um padrinho mais evidente em
encontravam-se com frequência reflexões hermenêuticas sobre a arte de interpretar. É esse Heidegger, mesmo que ele defenda uma concepção bem particular da hermenêutica, em
o caso de Quintiliano (30-100), que trata da exegesis (enarratio) em sou De institutione oratoria ruptura com a hermenêutica clássica e metodológica: para ele, a hermenêutica não tem
(I, 9), mas especialmente Agostinho (354-430), que compilou regras para a interpretação inicialmente a ver com textos, mas com a própria existência, que já é penetrada por
dos textos em seu tratado sobre A doutrina cristã (396-426), que marcou toda a história da interpretações, que a hermenêutica pode esclarecer. A hermenêutica se vê, então, posta a
hermenêutica. Essa tradição passou [13] por uma importante renovação no protestantismo, serviço de uma filosofia da existência, chamada a um autodespertar. Passamos aqui de uma
que deu origem a vários tratados de hermenêutica, em sua maioria inspirados na Rhetorica "hermenêutica de textos" para uma "hermenêutica da existência".
(1519) de Melanchton (1497-1560). Essa tradição, que faz da hermenêutica uma disciplina
auxiliar e normativa nas ciências que praticam a interpretação, persistiu até Friedrich A maior parte dos grandes representantes da hermenêutica contemporânea
Schleiermacher (1768-1834). Mesmo que ele ainda faça parte dessa tradição, seu projeto de (Gadamer, Riccour e seus herdeiros) situam-se na trilha de Heidegger, mas não seguiram
uma hermenêutica mais universal anuncia uma segunda concepção da hermenêutica, que realmente sua "via direta" de uma filosofia da existência. Eles preferiram retomar o diálogo
será inaugurada sobretudo por Wilhelm Dilthey (1833-1911). com as ciências humanas, mais ou menos negligenciado por Heidegger. Desse modo,
reataram com a tradição de Schleiermacher e Dilthey, sem com isso subscrever a [15] ideia
2. Dilthey conhece bem a tradição mais clássica da hermenêutica e sempre a pressupõe, de que a hermenêutica estava, por princípio, investida de uma função metodológica. Seu
sem deixar de enriquecê-la com uma nova tarefa: se a hermenêutica se inclina sobre as objetivo era, especialmente, desenvolver uma melhor hermenêutica das ciências humanas,
regras e os métodos das ciências do entendimento, ela poderia servir de fundamento aliviada do paradigma exclusivamente metodológico, que faz mais justiça à dimensão
metodológico a todas as ciências humanas (letras, história, teologia, filosofia e aquilo que linguística e histórica do entendimento humano. Ao assumir a forma de uma filosofia
hoje se chama de as "ciências sociais"). A hermenêutica se torna, assim, uma reflexão universal do entendimento, essa hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão
metodológica sobre a pretensão de verdade e o estatuto científico das ciências humanas. sobre as ciências para criar uma pretensão universal. Veremos aqui que essa universalidade
Essa reflexão se eleva contra o pano de fundo do desenvolvimento pelo qual passaram as pode assumir várias formas.
ciências puras no século XIX, sucesso amplamente atribuído ao rigor de seus métodos,
diante dos quais as ciências humanas parecem muito deficientes. Se as ciências humanas Capítulo 1: Concepção clássica da hermenêutica
quiserem se tornar ciências respeitáveis, devem basear-se em uma metodologia que cabe à
hermenêutica fazer surgir. [17] O termo hermeneutica só veio a lume no século XVII, quando o teólogo
estraburguense, Johann Conrad Dannhauer o inventou para nomear o que se chamava
3. A terceira grande concepção nasceu muito claramente em reação a essa compreensão antes dele de Auslegungslehre [Auslegekunst) ou a arte da interpretação. Dannhauer foi
metodológica da hermenêutica. Ela assume a forma de uma filosofia [14] universal da também o primeiro a utilizar o termo no título de uma obra, em sua Hermeneutica sacra sive
interpretação. Sua ideia fundamental (prefigurada no último Dilthey) é que o entendimento methodus exponendarum sacrarum litterarum, de 1564, titulo que resume por si só o sentido
e a Interpretação não são apenas métodos encontráveis nas ciências humanas, mas clássico da disciplina: a hermenêutica sagrada, ou seja, o método para interpretar [exponere:
processos fundamentais que podemos encontrar no próprio núcleo da vida. A expor, explicar) os textos sacros. Se há necessidade de um método desses é porque o

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sentido das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia. A interpretação [exponere, regra de composição retórica em seu Fedro (264 c): um discurso deve ser composto como
interpretari) é aqui o método ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido, um organismo vivo no qual as partes estão ordenadas a serviço do todo. É claro que o
o intelligere. É importante gravar bem esse vínculo de finalidade entre a interpretação e o hermeneuta deve conhecer perfeitamente bem as grandes figuras do discurso, os "tropos"
entendimento, porque os termos às vezes assumirão sentidos muito diversos na tradição da retórica, se quiser interpretar corretamente os textos. Os grandes teóricos da concepção
hermenêutica posterior, especialmente em Heidegger. clássica da hermenêutica quase sempre foram professores de retórica.
[18]O termo interpretação vem do verbo grego hermeneuein, que tem dois sentidos É o caso de santo Agostinho, profundamente marcado pela retórica de Cícero.
importantes: o termo designa, ao mesmo tempo, o processo de elocução (enunciar, dizer, Antes de ser o teórico da interpretação, ele foi seu praticante. Encontramos em santo
afirmar algo) e o da interpretação (ou de tradução). Nos dois casos, estamos diante de uma Agostinho várias interpretações (expositiones) dos textos sagrados, especialmente das
transmissão de sentido, que pode se operar em duas direções: ela pode (1) ir do Epístolas e do Gênesis, e já em suas Confissões (cujos três últimos livros propõem uma
pensamento para o discurso, ou (2) remontar do discurso para o pensamento. Atualmente, interpretação dos primeiros versículos [20] do Gênesis). Em seu comentário literal do
só falamos de interpretação para caracterizar o segundo processo, que remonta do discurso Gênesis, ele retoma a doutrina clássica, que remonta a Orígenes (c.185-254) e a Fílon de
para o pensamento que se encontra por trás, mas os gregos já pensavam a elocução como Alexandria (c. 13-54). Segundo a qual as Escrituras comportariam um quádruplo sentido:
um processo "hermenêutico" de mediação de sentido, designado, então, pela expressão ou "Em todos os livros santos, importa distinguir as verdades eternas que são inculcadas
pela tradução do pensamento em palavras. O termo hermeneia serve, portanto, para nomear (aeterna), os fatos que são narrados (facta), os acontecimentos futuros (futura), as regras para
o enunciado que afirma algo. O segundo livro do Organon de Aristóteles, dedicado ao as ações (agenda) que são prescritas ou aconselhadas".
enunciado, é um Peri hermeneias, que foi traduzido em latim por De interpretatione. Mas para entender essas verdades, esses fatos, os acontecimentos que virão e as
Não se trata, é claro, da interpretação no sentido em que nós a entendemos, ou máximas de ação, há necessidade de algumas regras (praecepta) de interpretação, que
seja, como a explicação do discurso que retorna a sua vontade de sentido, mas, ao Agostinho apresenta em seu De doctrina christiana. Seu princípio fundamental é que toda
contrário, das componentes da própria elocução, já entendida como transmissão de ciência tem a ver ou com coisas (res) ou com signos (signa). Claro que é necessário
sentido. Mas se a compreensão grega do termo é esclarecedora, é porque ela nos ajuda a reconhecer uma prioridade à coisa sobre os signos, dado que o conhecimento dos signos
ver que o processo de interpretação deve, nem mais nem menos, inverter a ordem da pressupõe necessariamente o conhecimento da coisa por eles designada. O primeiro livro
elocução, ordem que vai do pensamento ao discurso, do "discurso interior" [logos endiathetos) da Doctrina christiana também será dedicado à exposição da "coisa" que quer ser apresentada
ao "discurso exterior"(logos prophorikos), como o dirão soberbamente os estóicos. no texto bíblico, a saber, o relato da criação fundada no Deus trinitário e a salvação que ele
Podemos então distinguir aqui o esforço hermenêutico de explicação do sentido, propõe.
que remonta do discurso [19] exterior para seu interior, do esforço retórico de expressão Agostinho distingue, então, dois tipos de coisas, aquelas das quais fruímos por elas
que antecede a tarefa propriamente hermenêutica e lhe dá todo o seu sentido: não se pode mesmas (frui), que têm seu fim em si mesmas, e aquelas que utilizamos (uti) para outro fim.
querer interpretar uma expressão a fim de compreender seu sentido, exceto porque se Apenas as coisas eternas oferecem uma fruição real, e o conhecimento delas corresponde
pressupõe que ela quer dizer algo, que ela é a expressão de um discurso interior. ao Soberano Bem, ao summum bonum. Segundo Agostinho, o fim da [21] Encarnação era
Então, não é por acaso que as principais regras hermenêuticas foram exatamente ensinar essa diferença, que se exprime no princípio do amor (que é, em
frequentemente extraídas da retórica, a arte do bem dizer, que se funda na ideia de que o primeiro lugar, o amor de Deus por sua criatura). Daí Agostinho extrai um primeiro
pensamento que se procura comunicar deve ser apresentado de maneira eficaz no discurso. princípio hermenêutico: é preciso interpretar todos os textos em função desse
É especialmente o caso da importante regra hermenêutica do todo e das partes, segundo a mandamento de amor, que remete tudo o que é cambiante ao que é imutável.
qual as partes de um escrito devem ser entendidas a partir do todo constituído por um Os dicta (ditos) e signa (signos) das Escrituras devem ser entendidos em vista dessa
discurso e por sua intenção geral, que é a inversão daquilo que Platão apresenta como uma res essencial. Mas para entender em que os signos remetem a essa res, é preciso estudar as

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ciências, particularmente a gramática e a retórica. A retórica também nos ensina a discernir ideias de Schleiermacher sob o título Hermenêutica e crítica, sobretudo em vista do Novo
os tropos, as figuras de estilo da Bíblia e a distinguir o sentido próprio do sentido figurado. Testamento, título que o inscreve na tradição clássica da hermenêutica ("crítica" designa aqui
As regras, de inspiração retórica, da Doctrina christiana serviram de fundamento a toda a a disciplina filológica que se interessa pela edição crítica dos textos).
exegese medieval. Amplamente retomadas pelos primeiros grandes teóricos da A exemplo de todos os grandes teóricos da hermenêutica, Schleiermacher inspira-se
hermenêutica protestante (Melanchton. Flácio, Dannhauer), elas foram mantidas até em grande medida na tradição retórica. Já no princípio de sua hermenêutica, realmente
Schleiermacher, quando a hermenêutica começa a adquirir nova abrangência. lemos que "todo ato de entendimento é a inversão de um ato de discurso em virtude da
qual deve ser trazido à consciência o pensamento que se [25] encontra na base do
Capítulo 2: Emergência de uma hermenêutica mais universal no século XIX discurso". Se é verdade que "todo discurso baseia-se em um pensamento anterior", não
resta dúvida de que a primeira tarefa do entender é reconduzir a expressão à vontade de
1. Friedrich Schleiermacher (1768-1834) sentido que a anima: "Busca-se no pensamento a mesma coisa que o autor quis exprimir".
A hermenêutica pode ser compreendida, então, como a inversão da retórica.
[23] Contemporâneo dos grandes pensadores do idealismo alemão, Fichte, Hegel e Desse modo, "a tarefa é entender o sentido do discurso a partir da língua". "Tudo o
Schelling, e mais próximo ao romantismo de Friedrich Schlegel, Schleiermacher foi, ao que se deve pressupor em hermenêutica", dirá Schleiermacher em um adágio votado a uma
mesmo tempo, um grande filólogo, um teólogo expressivo, um filósofo e um teórico da grande posteridade, "é a linguagem". Destinada à linguagem, a hermenêutica se divide em
hermenêutica. Em sua posição de filólogo, ele traduziu os diálogos de Platão, na íntegra, duas grandes partes: a interpretação gramatical, que entende todo discurso a partir de uma
para o alemão, para os quais redigiu introduções fundamentais, que marcam os estudos língua dada e de sua sintaxe, e a interpretação psicológica (eventualmente chamada de
platônicos até hoje. Mas foi, antes de tudo, no campo da teologia que ele fez carreira. "técnica"), que vê no discurso sobretudo a expressão de uma alma individual. Se o
Depois de ter publicado seus poderosos discursos Sobre a religião em 1799, onde defende a intérprete deve sempre partir do quadro global da língua, não é menos claro que as pessoas
ideia de que a fé exprime um sentimento de dependência total (segundo uma leitura nem sempre pensam a mesma coisa sob as mesmas palavras (o que é verdadeiro
subjetivista que, por sinal, irá caracterizar sua teologia e também sua hermenêutica), ele foi especialmente das criações geniais que enriquecem o tesouro da língua). Do contrário,
nomeado professor de teologia em Halle, em 1804, antes de se tornar, em 1810, o primeiro "tudo seria decorrência da gramática", suspira Schleiermacher.
decano [24] da Faculdade de Teologia da nova Universidade de Berlim. Ele publicou uma A interpretação psicológica encarna, sem dúvida, a contribuição mais original de
importante obra de dogmática sobre A fé cristã em 1821-1822. Mas Schleiermacher também Schleiermacher (Gadamer insistirá nisso, mas para criticar o que ele classificará [26] de
deu cursos de filosofia: foram publicadas postumamente sua Dialética (1839), sua Ética deriva psicologizante que levaria a perder de vista a intenção de verdade do entendimento).
(1836) e sua Estética (1842). Se o próprio Schleiermacher deu-lhe desde o princípio o nome de interpretação “técnica”,
Mas ele só nos interessa aqui enquanto hermeneuta. É importante saber que é porque ela busca entender a arte (techné) bem específica de um autor, sua virtuosidade
Schleiermacher se formou em Halle, que fora um grande centro de hermenêutica no século característica.
XVIII e onde se sucederam antes dele grandes mestres da hermenêutica racionalista e A esperança de Schleiermacher é desenvolver uma "hermenêutica universal" que
pietista. Schleiermacher propriamente nunca publicou uma exposição sistemática de sua ainda não existia: "A hermenêutica como arte do entender ainda não existe sob uma forma
hermenêutica. Durante sua vida, ele publicou apenas o texto dos dois discursos que geral, mas existem apenas várias hermenêuticas especiais". O objetivo aqui é uma
pronunciou na Academia de Berlim em 1829: "Sobre o conceito da hermenêutica, a partir hermenêutica geral que não se limitaria a um setor restrito, como é o caso das
das sugestões de F. A. Wolf e do tratado de Ast". Mas ao longo do tempo em que lecionou, hermenêuticas especiais do Novo Testamento ou do direito. E se a hermenêutica deve
em Halle e em Berlim, Schleiermacher dedicou vários cursos à hermenêutica. Inspirando-se adquirir um estatuto universal, é enquanto arte geral do entender, Kunst (frequentemente:
em manuscritos de seu mestre, seu aluno, Lücke, publicou em 1838 um apanhado das Kunstlehre) des Verstehens.

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A tônica reservada ao entender é absolutamente inédita. Até então, a hermenêutica deriva constante do desentendimento, tenho de poder reconstruí-lo a partir de seus
era mais encarada como uma arte da interpretação [ars interpretandi, Auslegungslehre), que elementos, como se eu fosse seu autor.
devia conduzir ao entendimento. Agora é o próprio ato de entender que tem necessidade A tarefa da hermenêutica será, dessa maneira, "entender o discurso, de início, tão
de ser assegurado por uma arte, insistência na qual podemos reconhecer o momento bem e, posteriormente, melhor que seu autor", seguindo uma máxima frequentemente
subjetivo já visível na teologia do sentimento de Schleiermacher. retomada por Schleiermacher (com variantes). Essa máxima, sem dúvida, foi usada pela
Essa ênfase segue paralelamente a uma temática típica de Schleiermacher, a da primeira vez por Kant, que dizia em sua Crítica da razão pura: 'Nada de surpreendente há
universalização do fenômeno do desentendimento possível. O que é que nos permite dizer em se poder entender Platão melhor do que ele mesmo se entendeu, inclusive porque ele
que determinado entendimento é justo? Nesse [27] sentido, Schleiermacher distingue duas próprio determinou insuficientemente seu conceito” (A 314 / B 370). Schleiermacher fará
compreensões bem distintas da interpretação: disso [29] um princípio geral de sua hermenêutica, que seguirá a via de uma explicação
a. Uma prática distensa, que "parte da ideia segundo a qual o entendimento se genética: a partir de então, entender quer dizer "reconstruir a gênese de..." (vertente
produz por si mesmo". Nessa prática, o desentendimento é, sobretudo, a exceção. Essa genética, e psicologizante, que caracterizará, aliás, as interpretações que começarão a
prática da hermenêutica "exprime o propósito negativamente: é preciso evitar o erro de florescer no século XIX). A ideia vem do idealismo alemão: entendemos algo quando
entendimento". Reconhecemos aqui a concepção clássica da hermenêutica, que fazia dela apreendemos sua gênese, a partir de um primeiro princípio. Para o romântico
uma ciência auxiliar à qual só se recorria para interpretar passagens ambíguas. Schleiermacher, esse primeiro princípio é a decisão germinal do escritor. Dessa maneira,
b. Uma prática estrita partiria, ao contrário, "do fato de que o desentendimento Schleiermacher confere um aspecto psicológico à hermenêutica. Em seus discursos de
se produz por si mesmo e que o entendimento deve ser querido e buscado para cada 1829, ele dirá que "a tarefa da hermenêutica consiste em reproduzir o mais perfeitamente
ponto". possível todo o processo da atividade de composição do escritor".
Essa distinção provoca consequências maiores. A prática distensa da interpretação Mantendo-se fiel a sua vocação clássica, dedicada à interpretação de textos, a
encontra-se aqui assimilada a uma prática intuitiva, que não obedece a regra alguma, nem a hermenêutica adquire com Schleiermacher um alcance mais universal.
arte alguma. Ora, ela pressupõe que o entendimento se produz espontaneamente. E se o Um primeiro momento de universalidade se anuncia no projeto de uma
desentendimento fosse algo natural que se devesse combater a todo momento? Essa será a hermenêutica geral, que deveria preceder, a título de arte do entender, as hermenêuticas
pressuposição de Schleiermacher. O entendimento deverá, então, proceder em todos os especiais consagradas a tipos de textos definidos (é essa versão da universalidade a que
pontos seguindo as regras estritas de uma arte: "O trabalho da hermenêutica não deve Schleiermacher defende). Mas uma segunda forma de universalidade atualiza-se na ideia
intervir apenas quando a compreensão se torna incerta, mas desde os primeiros começos segundo a qual a hermenêutica deve poder ser aplicada a todo justo entendimento.
de todo empreendimento que visa compreender um discurso". Seguindo a prática rigorosa da interpretação que ele preconiza, Schleiermacher, enquanto
[28] Dirá Schleiermacher que a hermenêutica carece, portanto, de “mais método". romântico que sabe que alguém sempre pode ficar prisioneiro de suas próprias
Desse modo, Schleiermacher abre caminho para uma compreensão mais resolutamente representações, universaliza aqui o risco do [30] desentendimento possível. É ele que leva a
metódica da hermenêutica (que Gadamer também criticará), a fim de conter o perigo do uma compreensão mais metódica e mais reconstrutora da tarefa hermenêutica. Um terceiro
desentendimento, potencialmente universal. A partir de então, a hermenêutica deixará de elemento de universalidade pode ser discernido na ideia, desenvolvida no discurso de 1829,
ocupar uma função auxiliar para se tornar a condição sine qua non de todo entendimento segundo a qual a hermenêutica não deve se limitar apenas aos textos escritos, mas também
digno desse nome. No sentido estrito, ela passará a ser uma Kunstlehre, a "doutrina de uma deve poder ser aplicada a todos os fenômenos de entendimento: "A hermenêutica não deve
arte" do entender. estar simplesmente limitada às produções literárias; porque eu quase sempre me surpreendo
É por isso que a operação fundamental da hermenêutica ou do entendimento no decorrer de uma conversa familiar fazendo operações hermenêuticas (...); a solução do
assumirá a forma de uma reconstrução. A fim de bem entender um discurso e de conter a problema, para o qual buscamos justamente uma teoria, não está de maneira alguma ligada

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ao fato de o discurso ser fixado para os olhos pela escrita, mas surgirá em todos os lugares altura, entendemos por metodologia uma reflexão sobre os métodos constitutivos de um
onde venhamos a perceber pensamentos ou sucessões de pensamento por meio das tipo de ciência. O problema de uma justificação metodológica das ciências humanas ainda
palavras". não existia para Schleiermacher. Ele só veio a se tornar urgente na segunda metade do
A partir daí, tudo pode se tornar objeto de hermenêutica. Essa universalização século XIX, diante do prodigioso impulso pelo qual passaram as ciências exatas, cuja
avança paralelamente com uma ampliação da estranheza. Se o discurso falado não fazia metodologia teria sido proposta por Kant. Kant é, então, amplamente tido como aquele
parte da alçada da hermenêutica clássica, era justamente porque ele era contemporâneo, que teria aplicado um golpe mortal à metafísica tradicional, ciência impossível do
imediatamente presente e, portanto, diretamente inteligível. Apenas o discurso escrito, e suprassensível, e que teria transformado a filosofia em uma metodologia das ciências
mais especialmente o dos autores antigos e remotos, comportava um elemento de exatas. Mas o que se passava com as ciências humanas, especialmente a história e a
estranheza que requeria uma mediação hermenêutica. filologia, que conheceram um inegável desenvolvimento no século XIX? Se elas forem
Schleiermacher universaliza essa dimensão: o discurso de outros, mesmo que seja realmente ciências, devem se basear em métodos que fundamentem seu rigor. É essa
meu contemporâneo, encerra sempre um momento de estranheza. A primeira condição da reflexão metodológica que Dilthey espera poder fazer sob a palavra de ordem, de
hermenêutica é, efetivamente, que algo de [31] estranho deve ser entendido, segundo uma inspiração kantiana, de uma "crítica da razão histórica". Dilthey apresentou o projeto dessa
ideia que Schleiermacher toma emprestada de Ast. Essa problemática, para não dizer essa crítica no primeiro tomo de sua Introdução às ciências humanas de 1883, que foi o único
aporia, leva Schleiermacher a abordar a questão do círculo do todo e das partes (que, mais volume a ser publicado durante sua vida. Ao se situar sob o patrocínio de uma "crítica da
tarde, dará nascimento ao "círculo hermenêutico"). Schleiermacher conhecia bem essa razão histórica", cem anos depois da Crítica da razão pura de Kant, Dilthey se propõe a
regra, simultaneamente retórica e hermenêutica, do todo e das partes, mas ele se pergunta expor ali uma fundamentação "lógica, epistemológica e metodológica" das ciências
expressamente "até onde se pode ir na utilização dessa regra?". Isso porque ela pode ser humanas. Ela se propõe a fundar as ciências do entendimento sobre categorias que lhes
ampliada a horizontes de sentido sem pre mais englobantes: uma frase deve ser entendida a sejam próprias [33] (lógica), sobre uma teoria do conhecimento (epistemologia) e sobre
partir de seu contexto, o contexto deve ser entendido a partir do todo de um livro, todo uma teoria do método específico. Nessa época, Dilthey está em luta contra dois grandes
que deve ser entendido a partir da obra e da biografia de um autor, que, por sua vez, deve adversários: de um lado, contra o positivismo empírico de Auguste Comte ou de John
ser entendido a partir de sua época histórica, época que só pode ser entendida a partir da Stuart Mill, que afirmam que não existem métodos específicos às ciências humanas e que
história em seu conjunto. Pouco antes de Schleiermacher, o hermeneuta Ast, aluno de elas devem replicar a metodologia das ciências da natureza se quiserem ser ciências; de
Schelling, realmente reconhecera uma extensão infinita a essa regra: é necessário entender o outro, contra a "metafísica da história" da filosofia idealista, e de Hegel em especial, que
Espírito de uma época se se quiser interpretar uma obra. Schleiermacher se mostrará, por pretendia reconstruir a priori o curso da história segundo as exigências de seu sistema
sua vez, preocupado em limitar a "potencialização" do círculo do todo e das partes. Ele filosófico. Mais ou menos o que Kant fizera lutando contra o ceticismo empírico de Hume
estabelecerá seus marcos, objetivos e subjetivos. Do ponto de vista objetivo, dirá ele, a e contra a metafísica visionária, Dilthey buscará conduzir o navio da razão histórica por
obra deve ser inicialmente entendida a partir do gênero literário do qual faz parte. Mas do entre os dois escolhos do positivismo e do idealismo.
ponto de vista subjetivo, uma obra também é o feito de seu autor, ela faz parte do todo de Em vista de fundar a especificidade metodológica das ciências humanas, Dilthey se
sua vida, cujo conhecimento deve esclarecer o entendimento de sua obra. inspira na distinção do historiador Droysen (1808-1884) entre o explicar [Erklären) e o
entender (Verstehen). Enquanto as ciências puras tentam explicar os fenômenos a partir de
2. Wilhelm Dilthey (1833-1911) hipóteses e de leis gerais, as ciências humanas querem entender uma individualidade
histórica a partir de suas manifestações externas. A metodologia das ciências humanas será,
[32] A hermenêutica, que ainda era amplamente considerada como uma disciplina dessa forma, uma metodologia do entendimento.
filológica em Schleiermacher, receberá um sentido mais metodológico em Dilthey. A essa

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Geralmente lembramos que o termo entendimento e a ideia de uma teoria geral do Essa meta subsistirá amplamente como um programa na obra de Dilthey, mas a
entender detinham um papel fundamental em Schleiermacher. Entre seus muitos méritos, ideia segundo a qual ela poderia servir de base metodológica às ciências humanas conferiu à
Dilthey era um fino conhecedor da obra de Schleiermacher. Depois de ter defendido uma hermenêutica uma pertinência e uma visibilidade que, antes dele, ela realmente nunca
tese de doutorado sobre a ética schleiermacheriana em 1864 e redigido um estudo conhecera. Até o dia de hoje, destacados pensadores como Emílio Betti e E. D. Hirsch
fundamental sobre o "sistema hermenêutico" de [34] Schleiermacher (que permaneceu ainda veem na hermenêutica uma reflexão metodológica sobre o estatuto científico das
inédito até 1966), Dilthey publicou uma volumosa biografia de Schleiermacher em 1870. ciências humanas. Para eles. uma hermenêutica que renunciasse a essa tarefa perderia toda a
Mesmo que a hermenêutica tenha ficado absolutamente ausente de sua Introdução às ciências razão de ser.
humanas de 1883, ela ocupa um lugar de primeira grandeza em um estudo definitivo de [36] Mas há ainda outra ideia na última obra de Dilthey que iria propulsionar o
1900, que abre o século da hermenêutica, sobre "A origem da hermenêutica". Dilthey essencial da herança hermenêutica em uma direção muito distinta. Trata-se da ideia
esboça ali, em grandes traços, a história de uma disciplina ainda muito amplamente segundo a qual o entendimento que se desdobra nas ciências humanas é justamente o
desconhecida do grande público e da qual Schleiermacher terá sido para ele o maior prolongamento de uma busca de entendimento e de formulação que distingue de antemão
teórico, mas ele lhe confere uma nova função, ligada ao grande problema da metodologia a vida humana e histórica como tal. "A própria vida se articula", dirá Dilthey, através das
das ciências humanas: várias formas de expressão que as ciências humanas buscam entender recriando a
experiência da qual elas brotam. Instalada sobre uma filosofia universal da vida histórica, a
Trata-se agora de resolver a questão do conhecimento científico dos indivíduos e até
mesmo das grandes formas da existência humana singular em geral. Um conhecimento intuição fundamental de Dilthey, prenhe de consequências, é que o entendimento e a
desses é possível e que meios temos para chegar a ele? (...) E se as ciências morais
sistemáticas [as ciências humanas] extraem leis gerais (...) dessa apreensão do singular, interpretação não São apenas "métodos" característicos das ciências humanas, mas
os processos de entendimento e de interpretação também não deixam de estarem sua
base. Do mesmo modo, sua certeza, tanto quanto a da história, depende da questão de
traduzem uma busca de sentido e de expressão ainda mais originária da própria vida.
saber se a compreensão do singular pode adquirir uma validade universal. (Dilthey. Esse caráter "hermenêutico" da própria vida era confirmado pelas ideias quase
Origens e desenvolvimento da hermenêutica)
simultaneamente desenvolvidas pelo último Nietzsche em sua filosofia universal da
É essa a questão a que a hermenêutica procura responder, entendendo-se
vontade de potência, para a qual não existem fatos e sim "apenas interpretações". O que se
hermenêutica como "a arte da interpretação tias manifestações vitais fixadas por escrito". O
perfila em Nietzsche, assim como nos últimos trabalhos de Dilthey, é então um novo rosto
objetivo da interpretação é entendera individualidade a partir de seus sinais exteriores:
da universalidade da hermenêutica ou do reino interpretativo, mas que parece questionar
"Chamamos entendimento o processo pelo qual conhecemos um interior pelo auxílio [35]
justamente o sonho diltheyano de uma fundamentação epistemológica das ciências
de sinais percebidos desde o exterior por nossos sentidos. Esse interior que se trata de
humanas. Para a maioria dos herdeiros de Dilthey (Heidegger e Gadamer), esse sonho
entender corresponde ao sentimento vivido (Erlebnis) pelo autor, sentimento que não é
parecerá incompatível com o caráter essencialmente histórico da vida no qual desembocam
acessível diretamente, mas apenas por seus sinais exteriores. O processo de entendimento
os últimos trabalhos de Dilthey. Ele confrontará a hermenêutica com novas tarefas.
consiste em "recriar" em si o sentimento vivido pelo autor, partindo de suas expressões.
Remontando de uma expressão à Erlebnis, do exterior a seu interior, o entendimento
inverte aqui o processo criador, do mesmo modo como a tarefa hermenêutica da
interpretação podia ser vista como a inversão do ato de expressão retórica. A tríade da
experiência, da expressão e do entendimento aparece desde então como constitutiva da
hermenêutica das ciências humanas. Se assim é, a hermenêutica poderia ser investida de
uma nova tarefa, sugere Dilthey: "O papel essencial da hermenêutica" será "estabelecer
teoricamente, contra a intrusão constante do arbitrário romântico e do subjetivismo cético
no campo da história, a validade universal da interpretação, base de toda certeza histórica".

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