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O NUMINOSO

BIRCK, Bruno Odélio. O sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 1993.

l - O NUMINOSO

1.1 O racional e o não-racional na idéia do sagrado

1.1.1 - O acesso racional ao divino

Rudolf Otto, em sua obra O sagrado apresenta como título Um estudo do


elemento não-racional (Das Irrationale) na idéia do divino e a sua relação
com o racional.

Antes de expormos o problema que Otto se propõe estudar, é necessária


uma observação de ordem lingüística. Prócoro Velasques Filho, tradutor de
O sagrado, transpõe para o português o termo das Irrationale como o
não-racional. Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira, o termo não-racional é sinônimo de irracional[1]. Com o termo
irracional usualmente indicamos o que se opõe à razão; o que não
raciocina; animal sem razão; bruto, estúpido. Mas o termo não-racional
foge ao sentido de oposição pura e simples ao racional. Concordamos com
o tradutor de que a forma neutra das Irrationale se traduz melhor com o
termo não-racional. Assim se evita o sentido usual, pejorativo do termo
irracional. Otto também mostra sua preocupa​ção com os mal-entendidos:
"... por não-racional não entendemos o que é sem forma e estúpido, o que
não está ainda submisso ao controle da razão, o que é rebelde à
racionalização em nossa vida instintiva ou nos mecanismos do mundo"[2].

O problema fundamental que Otto se propõe investigar é a possibilidade de


um acesso racional ao divino. É oportuno observar

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que o autor em análise situa o problema de Deus na perspectiva do


agnosticismo kantiano. Para tal, procede a um exame minucioso da
categoria especial do sagrado. O sagrado é uma categoria complexa,
constituída por dois elementos: o elemento não-racional (numinoso) e o
elemento racional (predicador). A conexão dos elementos dá-se por uma
necessidade racional. Assim, o sagrado se constitui numa categoria
complexa, em virtude de seus elemen​tos.

"O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais


(...), dão-nos a categoria complexa do sagrado, no sentido pleno da palavra,
na totalidade de seu conteúdo"[3].

Como, então, se dá o acesso racional ao divino? Deus não pode ser objeto
da razão pura. Na religião encontramos a idéia do sagrado, do santo. Aí o
sagrado aparece como idéia, portanto carregado de noções racionais. Mas
na idéia do sagrado propria​mente não encontramos um objeto contido em
seus conceitos correspondentes. Assim, as noções racionais aparecem
apenas como predicados. Os predicados racionais esquematizam ou
racionalizam o elemento originalmente não-racional, o numinoso. O
numen é o objeto próprio da idéia do sagrado. Este não pode ser
apreendido em conceitos racionais, mas pelo sentimento numinoso, que é
um estado afetivo da alma. A essência da idéia do sagrado está no
numinoso.

O acesso racional a esta essência não-racional se dá por uma necessidade


racional, ou seja, a ligação necessária que existe entre as categorias e seus
esquemas. As noções racionais aparecem em primeiro plano como um
verdadeiro esquema da essência não-raci​onal do sagrado. Consideramos
que Rudolf Otto não faz uma aplicação correia da teoria do esquematismo
de Kant. Em verdade, faz uma descrição fenomenológica do sagrado, de
acordo com o método de Husserl.

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1.1.2 - Os elementos da categoria do sagrado

Para possibilitar uma posterior análise da categoria especial ou complexa


do sagrado, é necessário precisar as noções racional e não-racional em
Rudolf Otto. Ele define racional como "um objeto que pode ser captado
pelo pensamento conceituai"[4]. Assim, as concepções teístas apresentam
como características conceitos claros da divindade. Esta compreensão vem
expressa de predicados racionais como: todo-poderoso, onipotente,
espírito, sumo bem, unidade de essência e outros. Todos eles são claros,
acessíveis ao pensamento; é possível defini-los? Estas noções claras são
con​dições para o ensinamento da fé. A doutrina, a catequese e os próprios
livros sagrados utilizam-se de predicados racionais, de conceitos claros
para o ensinamento da fé. O uso de conceitos que formam o corpo
doutrinário é uma característica essencial que mostra a superioridade de
uma religião, como é o caso do cristianismo, segundo Otto.

A idéia do divino não esgota com os predicados racionais. Porém, estes


aparecem em primeiro plano. Mas, enquanto predicados, estão na
dependência de um objeto.

"São predicados essenciais, mas sintéticos. Para se compreender


exatamente o que são, é necessário vê-los como atributos de um objeto que
lhes sirva de apoio, mas que não possam esgotá-lo"[5].

Este objeto é percebido de forma diferente, tanto que o entendimento não


pode nos fornecer um conceito deste. Portanto, estamos diante do segundo
elemento da categoria especial do sagrado, o elemento não-racional. Este é
percebido na experiência religiosa, mais especificamente pelo sentimento
numinoso (sensus numinis). O sentimento numinoso não é uma mera
emoção, mas é um estado afetivo. O numinoso é um sentimento original e

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específico. O numinoso é uma categoria de interpretação e avaliação, quer


dizer, a categoria numinosa é um estado de alma que se manifesta quando
um objeto é concebido como numinoso. O objeto numinoso não é possível
definir, mas ele se torna presente à consciência na vida íntima das pessoas.
Não é definível, mas é possível descrever as reações provocadas no
consciente e fazer uma avaliação. O sentimento numinoso é o sentimento
do objeto numinoso; é onde experimentamos a presença do numen.

A categoria do sagrado é complexa por ser um de seus elementos


absolutamente especial, ou seja, subtrai-se a qualquer apreensão
conceituai. Por outro lado, este elemento não-racional está
necessariamente conectado com predicados racionais, que o
esquematizam. Ambos os elementos constitutivos da categoria do sagrado
são puramente a priori. Segundo Otto, aplicam-se com exatidão as
características que Kant destaca dos conceitos e dos sentimentos puros. É
diferente ou distinto o que é recebido por meio das nossas impressões e o
que a nossa faculdade de conhe​cimento produz, excitada pela experiência
sensível. O numinoso aparece como faculdade a priori do entendimento:
ele não está na fonte empírica, mas na faculdade de conhecimento.

"Os elementos racionais como os não-racionais da categoria do sagrado são


elementos 'a priori'. A religião não está nem sob a dependência do 'telos'
(finalidade), nem do 'ethos' (moral) e não vive de postulados. O que nela
há de não-racional possui, por sua vez, origem independente e mergulha
diretamente as suas raízes nas profundezas ocultas do espírito"[6].

1.1.3 - Colocação do problema

[...]

16

1.2 - Sentimento numinoso como experiência vivida

1.2.1 - O numinoso: experiência exclusivamente religiosa

Muitos teólogos e pensadores protestantes, dentre os quais Kant,


reduziram a religião praticamente a um fim moral. Rudolf Otto quer
chamar a atenção à exclusividade do domínio religioso. A experiência
religiosa é sui generis, original e fundamental. Por isso, entende a
categoria do sagrado como "... interpretação e avaliação do que existe no
domínio exclusivamente religioso"[7]. O sagrado é uma categoria que
abrange algo inefável. Possibilita uma avaliação daquilo que é
exclusivamente religioso e que, a seu tempo, escapa ao domínio racional.
Neste sentido, a categoria do sagrado contém um elemento absolutamente
especial.

A palavra sagrado é, muitas vezes, empregada em sentido figurado e


completamente desvirtuado do seu sentido original. Por exemplo, fala-se
no caráter sagrado da lei, do dever. É neste sentido que Kant utiliza a
expressão vontade santa. Segundo Otto, não é este sentido dado ao termo
sagrado nas línguas semíticas, grega e latina e em outras línguas antigas.
Nestas, o elemento moral não é encontrado. Na linguagem atual, os
significados morais ligam-se sempre ao sagrado. Para designar com
exatidão as características próprias da religião e, assim, abstrair do
elemento moral e do elemento racional, é necessário encontrar outra
palavra.

Para denominar o caráter particular e exclusivamente religioso do sagrado,


Otto cunha a palavra numinoso. Numinoso vem da palavra latina numen e
serve para indicar a característica essencial e exclusiva da religião, livre das
conotações éticas e racionais contidas no termo sagrado.

"Falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de


interpretação e de avaliação de um estado de alma que se manifesta

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quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que um objeto é


concebido como numinoso"[8].

Esta categoria não pode ser objeto de compreensão através de conceitos,


mas pode ser objeto de estudo. Quer dizer, não é possível passar a um
interlocutor um conceito de numinoso, mas podemos chamar-lhe a
atenção para encontrá-lo em sua vida íntima e aí se torna consciente.
Como diz Otto:

"Convidamos o leitor para o momento em que o sentimento de emoção


religiosa profunda surge. Se ele é incapaz ou se ele desco​nhece tais
momentos devemos parar aqui a nossa conversa"[9].
De uma forma análoga o artista conhece a experiência estética e a
reconhece como uma experiência sui generis, particular, sem dependência
de outro sentimento.

O termo numinoso pode ser colocado na mesma categoria de palavras


como mana, termo cunhado pelo antropólogo inglês Robert Ranulph
Marett (1866-1943). Esta expressão Marett a tem das religiões primitivas
do oceano Pacífico. Mana é uma força completamente diferente do poder
físico e esta pode atuar para o bem ou para o mal. O mana pode estar
vinculado aos amuletos e até a certas pessoas. O mana é amoral e não-
racional. É mais uma atitude emotiva do que uma idéia. Como diz bem
Marett,

"A religião primitiva mais que pensar-se, se baila; se desenvolve a partir de


umas condições que fomentam processos emocionais e motores, enquanto
que a ideação permanece em um estado relativa​mente latente"[10].

O mana, como o numinoso, não pode ser definido, apenas descrito. 25

No domínio religioso, como em outros, encontramos diversos sentimentos


como: gratidão, confiança, amor, segurança, submis​são, resignação. Estes
sentimentos, embora acompanhem a emoção religiosa, não reproduzem e
não exaurem o sentimento propriamen​te religioso. Otto descreve o
sentimento numinoso como sendo o sentimento de ser criatura.

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1.2.3 - O numinoso como vivência do numen

Voltemos à descrição do numinoso. Este, situado para além do racional,


encontramos no terreno das experiências vividas. Mais especificamente no
sentimento. Otto descreve a experiência do numinoso como o sentimento
de ser criatura. "O sentimento de ser criatura ou a reação provocada no
consciente pelo sentimento de ser objeto do numinoso"[11]. O numinoso
não pode ser captado conceitualmente, mas apreendido no sentimento.

O que é sentimento para Otto? O sentimento não se confunde com uma


mera emoção. O sentimento é um estado afetivo; é um estado de alma da
criatura frente ao numen. Este estado afetivo envolve a pessoa como um
todo. Não é uma simples emoção, pois penetra a região do sentido do
homem. Além disso, este estado de alma permite uma interpretação e uma
avaliação preconceitual.

Otto aproxima-se muito do que Edmund Husserl chama de vivido, embora


não faça nenhuma referência a este autor.

O que é sentimento de ser criatura? O sentimento de criatura é de alguma


maneira um sentimento de depreciação diante de uma realidade
majestosa. É o estado de alma de quem se sente finito, aniquilado diante
do objeto numinoso que "é de tal natureza que cativa e emudece a alma
humana"[12]. No sentimento especificamen​te religioso há um sentimento
de presença de duas realidades: o numen e a criatura. Sentimento de
criatura é a reação emocional que experimentamos quando estamos na
presença do numen. Podemos indicar, assim, o que é o numinoso pelas
reações Sentimentais que seu contato provoca em nós. Na descrição do
numinoso tentamos especificar o matiz dos sentimentos que se relacionam
com este objeto. O objeto numinoso é o elemento primário, e o sentimento
de ser criatura o elemento secundário. Quer dizer, o sentimento de criatura
é como uma sombra projetada pelo objeto na consciência. 29

O sentimento de criatura, ou seja, as expressões emocionais que


acompanham a vivência religiosa nos indica o numinoso como o
mysterium tremendum et fascinans. Estes são os elementos que exprimem
a reação sentimental diante do objeto numinoso.
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1.3 A descrição do numinoso

Passaremos agora a uma descrição mais detalhada dos elementos que


compõem o senso criatural. O numen é objeto racionalmente
incompreensível que provoca no sujeito religioso um estado de ânimo. O
numinoso, apenas sentido, manifesta-se como algo real fora do eu. Este
objeto provoca no sujeito não uma percepção sensível, no sentido
kantiano, mas uma reação nos sentimentos. O numinoso é apreendido pelo
sentimento numinoso. Este estado de alma Otto especifica como sendo o
sentimento de criatura. É um estado afetivo não derivado de outros
elementos emocionais, mas produzido pela presença do objeto numinoso.
Portanto, a vivência religiosa é este estado afetivo produzido através da
excitação do sentimento religioso pela presença de Deus.

O numinoso é o núcleo, o elemento primário na experiência religiosa. Este


núcleo é inacessível conceitualmente. Como então poderemos falar deste
objeto? O objeto numinoso provoca em nós uma reação emocional.
Portanto, os sentimentos numinosos correspondem a um objeto numinoso.
O conjunto destes sentimen​tos correspondem à apreensão do numinoso.
Podemos falar de Deus a partir de uma descrição e análise dos sentimentos
cor​respondentes por ele provocados, nas profundezas de nossa alma.

Segundo Macquarrie, "o mais valioso do estudo de Otto radica


precisamente na sua meticulosa análise dos estados sentimen​tais que
constituem a experiência numinosa"[13]. Esta análise pode ser sintetizada
na expressão mysterium tremendum et fascinans.

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Prócoro Velasques, no Prefácio à tradução portuguesa da obra O sagrado,


dá uma explicação sintética da expressão. O tremendum é o tremendo, o
todo-poderoso, a energia; o mysterium é o qualitativamente diferente (das
ganz Andere) e o fascinans. Assim, o mysterium tremendum é a harmonia
dos contrastes que sugere o "terror incontrolável, penetrando e
subjugando a alma"[14]. Do sentimento numinoso podemos apreender a
sua forma, que é o mistério (mysterium). Podemos apreender ainda o
conteúdo qualitativo numinoso, que é em parte um elemento repulsivo que
causa terror (tremendum) e, em outra parte, é um elemento atrativo,
fascinante (fascinans). O divino apresenta-se em nosso sentimento como
mistério inefável, supraracional. Este ser numinoso, qualitativamente
diferente, exerce sobre nós uma estranha harmonia de contrastes: uma
repulsão, um terror demo​níaco e, ao mesmo tempo, uma atração que
fascina e cativa.
A descrição que Otto faz dos elementos componentes do sentimento
numinoso situa-se no campo puramente psicológico. Faz igualmente
referências históricas das experiências religiosas do antigo judaísmo e do
cristianismo. Estes sentimentos são exclusiva​mente religiosos. Quer dizer,
não são derivados de outros sen​timentos naturais. Portanto, para descrevê-
los não é possível utilizar conceitos e evoluções em forma de graduação de
sentimen​tos naturais. Só é possível indicar para estes sentimentos onde
acontece a experiência religiosa. Só é possível uma relação com os
sentimentos naturais através de analogias ou de metáforas.

1.3.1 O tremendo

A forma mais primitiva de manifestação do numinoso no sentimento é o


mysterium tremendum, o mistério que faz tremer. O sentimento
correspondente que o mistério causa na alma é como um calafrio. Segundo
Otto, este sentimento pode ser um estado constante, cessando quando a
alma volta ao estado profano. Pode,

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também, manifestar-se de forma mais abrupta e conduzir a alucinações, a


transportes e a êxtases.

O mistério normalmente é definido como oculto, o extraor​dinário, o


estranho, o incompreensível. Esta é forma negativa de defini-lo, ou seja,
dizer o que ele não é. No entanto, o mistério é uma realidade positiva, que
não se manifesta à compreensão conceitual. A sua qualidade positiva
manifesta-se exclusivamente nos sentimentos. Para chegarmos a sua
compreensão é preciso fazer um exame minucioso do sentimento, onde se
manifesta.

1.3.1.1 O tremor místico

"A qualidade positiva do objeto é indicada pelo adjetivo 'tremendo'"[15]. O


adjetivo tremendo aparece como predicado do objeto que é o mistério, que
descreveremos mais adiante. Tremen​do vem de tremor, ou do sentimento
de medo. A pessoa que faz a sua experiência religiosa, diante do numinoso
tem o sentimento de medo.

Otto insiste em dizer que o termo medo, que é um sentimento natural, se


aplica aqui somente por analogia. A reação sentimental diante do
numinoso tem uma qualidade particular, não derivada do medo natural.
Este terror místico só pode ser compreendido aplicando a categoria do
numinoso. Para exprimir este sentimento encontram-se, na literatura
religiosa antiga, muitos termos. No Antigo Testamento emât Jahveh (um
temor de Deus) tem a conotação de um temor demoníaco que faz paralisar.
Dos gregos temos o termo panicon, que significa o temor que provoca
pânico. Os abundantes textos do Antigo Testamento que descrevem este
temor de Deus transcendem qualquer causa psíquica, ou mesmo externa
que o possa inspirar. Este temor tem uma conotação espectral. Da mesma
forma que os primeiros cristãos utilizavam o termo grego sebastos (atitude
de prudência diante dos deuses -Temor: nem superstição nem desprezo),
designando uma qualidade

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numinosa. Chamar alguém de sebastos era incorrer em idolatria, pois era


um título que não convinha a nenhuma criatura.

No sentimento do temor podemos observar graus evolutivos. O grau


preliminar do temor religioso é o temor demoníaco ou pânico. Este
sentimento de terror liga-se a alguma coisa de sinistro. Daí surge na
mitologia antiga a figura do demônio como a objetivação deste sentimento.
Nas religiões primitivas o terror numinoso aparece sob formas
rudimentares como o medo dos demônios. Estas primeiras manifestações
do sentimento numinoso aparece em formas brutais. É o horror sentido
diante do sinistro que inclusive provoca reações físicas como o calafrio.

Este temor demoníaco é rejeitado pelas religiões superiores como um


elemento da religião primitiva ultrapassada. Afirma Otto que estas
emoções primitivas podem reaparecer espontaneamente, mesmo em
pessoas cultas, por exemplo, na literatura do terror. "Lutero afirma que o
homem natural não pode temer a Deus. (...) Pode-se acrescentar que o
homem natural é incapaz de tremer de medo, no sentido próprio da
palavra"[16]. O sentimento do horror não é derivado do medo natural. Este
sentimento sob a forma de sinistro é um vago pressentimento do mistério.
Este sentimento, ainda que rudimentar, revela a capacidade do espírito
humano em avaliar e sentir o numinoso. Poderia dizer-se que é a excitação
da categoria numinosa em seu grau mais primitivo.

Algo que faz gelar o sangue transparece como alguma coisa sobrenatural.
Este terror místico é inteiramente diferente dos estados psíquicos de medo,
de angústia, de temor. O pânico espectral, sinistro é diferente em grau e em
qualidade do temor natural. Este estado de alma particular do terror
demoníaco é o grau preliminar do temor religioso.

O temor religioso, em seu grau mais evoluído, é chamado, por Otto, de


temor místico. É o estágio mais profundo, que abrange os últimos graus de
interioridade do sentimento religioso. Embora apareça de forma muito
mais nobre do que o terror demoníaco, mantém com esse traços afins. O
tremer de horror 34

aparece de forma muito mais atenuada na fé pura em Deus do que o terror


demoníaco. Mas permanece um traço de afinidade, porém, evolutivo entre
o sentimento de terror demoníaco e o temor de Deus.

A crença nos demônios manifesta-se no sentimento na forma de sinistro. A


fé em Deus manifesta-se sob o sentimento de ser criatura. O tremor não
mais surpreende, mas mantém a sua força. A característica do poder
aparece na forma da grandeza. Diante do objeto de absoluta grandeza,
pressentido pelo sujeito, temos como sentimento correspondente o
aniquilamento; o sentimento de nada ser; o sentimento de ser criatura.
Otto exemplifica este estado afetivo pelos hinos de Tersteegen:

"Deus está presente

que tudo se cale em nós

e prostremo-nos diante dele"[17]


O numen é pressentido no seu caráter terrífico como gran​deza. Diante da
grandeza de Deus surge o sentimento de ani​quilamento, o temor místico, o
temor de Deus. Este elemento do sentimento numinoso é de extrema
importância em muitos textos sagrados. No Antigo Testamento aparece
sob a expressão de cólera de Jahveh. A ira de Deus aparece nos textos de
forma surpreen​dente e enigmática. A sua incompreensibilidade embaraça
a exegetas e teólogos.

Otto ressalta o caráter não-racional da cólera de Jahveh. A ira de Deus não


é relacionada com atributos morais na sua origem. Esta não é outra coisa
que o tremendum. Na cólera de Jahveh encontramos o elemento não-
racional que lhe dá um caráter terrificante, temor. Este sentimento
numinoso é racionalizado na medida em que é saturado por elementos
éticos. Aí aparece sob a denominação de justiça divina.

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A cólera de Jahveh como o zelo de Jahveh são estados de consciência


numinosa em que o homem experimenta a impressão do tremendum.

"Este elemento é estranho, repulsivo, que inspira o terror, surpreen​dente


àqueles que querem admitir apenas a divindade como bondade, doçura,
amor, familiaridade e, em geral, os atributos que se relacionam
unicamente à face de Deus voltada para o mundo"[18].

Miguel Frederico Sciacca faz uma crítica feroz a Otto, que quer resgatar o
elemento do tremendum na concepção cristã de Deus.

"... Otto nunca chega a apreender a religião e o senso do divino senão nas
reações do 'tremendum', da 'ira dei', do temor, do aniquilamento, que são
justamente as reações peculiares das religiões primitivas, inferiores,
bárbaras. O 'numen', mesmo quando 'fascinans' e 'sanctum', é sempre o
Deus do terror, da ira, o Deus que aniquila e aterroriza, que petrifica,
emudece e faz recuar pelo pavor que desperta. Onde está aqui o Deus Pai,
Amor, Providência da Revelação Cristã?"[19].
O antropólogo inglês Robert Ranulph Marett entende, como Otto, que o
temor reverencial é o que melhor expressa o sentimen​to religioso
fundamental. Segundo Marett, "a maravilha, a admiração, o interesse, o
respeito e inclusive o amor, são, tanto como o medo, constituintes
essenciais do talante elementar do temor"[20].

É oportuno ressaltar que Sciacca coloca-se numa posição de defesa do


racionalismo e classifica Otto de irracionalista. Otto destaca diversas
passagens do Novo Testamento onde aparece o elemento do temor. Por
exemplo: "não temais os que matam o

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corpo e não podem matar a alma; temei antes aqueles que podem fazer
perecer no inferno a alma e o corpo" (Mt 10,28); "Quão terrível é cair nas
mãos do Deus Vivo" (Hb 10,31); "Porque o nosso Deus é um fogo
consumidor" (Hb 12,29). Jesus prega o Reino do Pai celestial. Diz Otto que
este nome pode soar hoje como uma expressão familiar, de doçura,
sinônimo de bom Deus. O Pai é o rei, santamente sublime. O Reino se
aproxima como ameaça obscura, carregada do temor de Jahveh.
"Desconhecer isso é transformar em romance o Evangelho de Jesus"[21].

Para Otto, diferente de Sciacca, a superioridade de uma religião não


consiste na eliminação do numinoso, mas no seu reconhecimento como
elemento fundamental. Eliminar o numinoso significa reduzir a religião a
um fim puramente racional e moral.

1.3.1.2 Majestas ou a superioridade absoluta do poder

O que foi descrito até aqui sobre o tremendum pode-se expressar no


ideograma: inacessibilidade absoluta. A inaces​sibilidade não esgota o
elemento do tremendum. Otto acresce a este o elemento do poder, da
força, da preponderância absoluta. Denomina-o de majestas ou com a
expressão tremenda majestas. O numinoso manifesta-se sob três aspectos
distintos enquanto sentimento do tremendum: o temor (tremendum), o
poder (majesta​de) e a energia (orgé).

O numen manifesta-se no sentimento numinoso do tremendum também


como força, como poder. À majestas do numinoso corresponde o
sentimento de ser criatura. O sentimento de aniquilamento, de nada ser,
de esfacelamento está em contraste com o poder, a majestade. No primeiro
aspecto do tremendum temos a cólera de Deus que tem como contraponto
no sujeito o sentimento de ser criatura. O mesmo sentimento de
esfacelamento aparece no sentimento numinoso como correlato do poder,
a

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majestade divina. Portanto, este é um segundo aspecto do tremendum.

O sentimento de ser criatura aparece como contraste, relacionado ao poder


divino que está fora do sujeito. Este estado de humilhação, de
esfacelamento é provocado no sujeito pelo sentimento de presença do
poder, da majestade divina. Este estado emocional é mais uma coloração
do sentimento numinoso que percepciona Deus.

Otto ressalta o caráter não-racional do sentimento de ser criatura,


distinguindo-o do sentimento de dependência do Absoluto de
Schleiermacher. O sentir-se dependente não é outra coisa que sentir-se
determinado. Não se trata de um sentimento de ser criatura, mas de um
sentimento de ser criado. Ser criado é a antítese do Criador. Partindo do
sentimento de ser criado e chegar ao Criador é estabelecer o princípio de
causalidade.

Schleiermacher faz um desenvolvimento lógico racional do sentimento de


dependência. É aqui que Otto estabelece a sua crítica a Schleiermacher,
colocando o sentimento de dependência como um elemento racional da
idéia de Deus. Portanto, não se trata de um elemento numinoso. "O
contraste da 'majestas' e a consciência de ser pó e cinza conduz a uma
ordem de idéias que não tem relação nenhuma com a ordem da criação e
da conservação"[22].

O sentimento de aniquilamento, de nada ser é uma deprecia​ção que


somente surge como correlato do objeto transcendente absolutamente
superior. O místico exclama: "Eu não sou nada, tu és tudo"! Não se trata
aqui de uma relação de causa e efeito. Esta depreciação não é, portanto, o
sentimento de dependência absoluta, mas o sentimento de soberania
absoluta. Quer dizer, não se chega à plenitude do ser pela pequenez do
próprio ser. Mas chega-se ao sentimento de nada ser diante da grandeza,
do poder do ser pleno. No primeiro caso trata-se de uma relação racional,
aplicando o princípio da causalidade. No segundo, trata-se de uma
experiência vivida de caráter não-racional. Otto demonstra o caráter não-
racio​nal da experiência do sentimento da própria pequenez, que
surge 38

na consciência como contraste a partir da grandeza de Deus, nas palavras


do místico muçulmano, Bejesid Bortami:

"O senhor, o altíssimo, revela-me os seus mistérios e revela em mim toda


sua glória. E quando eu o contemplava, não com os meus olhos, mas com
os seus olhos, eu vi que a minha luz, comparada com a sua, era treva e
obscuridade. Mesmo a minha grandeza e o meu esplendor nada são diante
dos seus. E quando eu examinava as obras de piedade e obediência que
havia realizado para seu serviço, reconheci que elas tinham a sua origem
nele e não em mim"[23].

Em todo misticismo aparece essencialmente a exaltação dos elementos


não-racionais da religião. Não é outra coisa que a exaltação levada ao
extremo do sentimento de ser criatura. Em outras palavras, é sentimento
da insignificância de tudo aquilo que é criado diante, ou a partir da
majestade daquilo que está acima de toda criatura. O poder, a majestas do
numinoso é o segundo aspecto de manifestação do Deus vivo na
experiência vivida do religioso.

1.3.1.3 Orgé ou a energia do numinoso

Os elementos do tremendum e da majestas implicam um terceiro


elemento que é a energia do numinoso. Este elemento pode ser indicado
por expressões simbólicas como vida, paixão, sensibilidade, movimento,
excitação, impulso. Como diz Otto:
"Eles formam, no 'numen', o elemento cuja experiência coloca a alma
humana em estado de atividade, excita o zelo, provoca a tensão e a energia
prodigiosa da qual o homem prova, seja no ascetismo ou na luta ardente
contra o mundo e a carne, seja nos atos de vida heróica na qual a excitação
tem lugar"[24].

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Este elemento, segundo Otto, tem causado as mais fortes reações entre os
místicos e os, filósofos. Os filósofos têm rejeitado este elemento da energia,
de orgé, como produto do antropomorfis​mo. Deus seria um produto das
formas humanas da paixão, da excitação, da vida etc. Por outro lado, os
homens religiosos voltam-se contra o Deus da filosofia por não
reconhecerem o caráter analógico dos termos tomados de diversos
domínios da vida humana. O racionalista é incapaz de reconhecer este
sentimento autenticamente não-racional. A bandeira anti-racionalista
coloca o Deus vivo em oposição ao Deus idéia da especulação filosófica.

Para Otto, o elemento da energia numinosa aparece particular​mente no


misticismo do amor. É o Deus que é fogo, de ardor devorante; é o Deus de
amor impetuoso. Esta energia impetuosa é um elemento não-racional da
experiência religiosa. Quer dizer, os qualificativos reais, ou os predicados
naturais de energia só podem servir de ideogramas para designar um
objeto inefável. Neste sentido, incorre em erro a especulação de Fichte que
considera o absoluto como um gigantesco e incessante impulso cósmico.

O Deus vivo, o Deus que queima é a expressão simbólica do terceiro


aspecto do tremendo, a energia do numinoso. As energia do numen
provoca na alma humana o estado de excitação. Diante da potente
vitalidade, o homem enche a alma de ardor, muitas vezes heróico.

Apresentamos em síntese a descrição que Otto faz do elemento tremendo.


Este aparece no sentimento numinoso de três formas: o tremendum, a
majestas e a orgé. Estes três elementos formam a qualidade positiva do
objeto, exterior a nós, que se manifesta exclusivamente nos sentimentos,
denominado de mysterium tremendum.
1.3.2 O mistério

O objeto numinoso é o mysterium tremendum et fascinans. Descrevemos


o elemento do tremendum. Passaremos agora a descrever a noção
principal do objeto numinoso, o mistério. O tremendo e o mistério não se
identificam, mas mantêm uma estreita

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relação. Como diz Otto, "facilmente o mistério se torna terrível". Na


verdade, o elemento do tremendo é um predicado sintético do mistério.
Portanto, o mistério é a forma do objeto numinoso, e o tremendo a sua
qualidade positiva. Em muitas formas de misticis​mo, contudo, o elemento
do tremendo pode tomar conta do sentimento numinoso a ponto de o
mistério não aparecer. Este exemplo demonstra a clara diferença entre
ambos, mesmo que normalmente estejam estreitamente relacionados.

Otto descreve o mysterium como mirum ou mirabile. A emoção que surge


no sentimento numinoso não é ainda a ad​miração, o que acontece quando
são acrescidos os elementos do fascinans e do augustum. A emoção que
corresponde ao elemento do mistério é a surpresa. Este estado de surpresa
pertence exclusi​vamente ao domínio do numinoso. Pode-se tomar do
domínio natural o sentimento de estupor ou a surpresa que paralisa para
indicar por analogia a reação psíquica provocada pelo mirum. Podemos
ainda citar outros termos tomados do domínio natural que ajudam a
indicar a realidade do mysterium: o que é secreto; algo de estranho,
incompreensível e inexplicável.

"Mas esta realidade, ou mistério num sentido religioso, o verdadeiro


'mirum', é o qualitativamente diferente (thateron, anyad, alienum), aquilo
que nos é estranho e nos surpreende, o que está fora do domínio das coisas
habituais, compreensíveis, bem conhecidas e, portanto, familiares; é aquilo
que se opõe à ordem conhecida das coisas e, por isso mesmo, nos enche de
surpresa e nos paralisa"[25].
Segundo Otto, o elemento do mistério já esteve presente nas religiões
primitivas, ainda que de forma rudimentar. Contesta a teoria animista que
coloca na idéia da alma a origem da religião. "A idéia de alma e concepções
semelhantes são racionalizações posteriores, tentativas de esclarecer o
enigma do 'mirum'"[26].

41

O mito, de igual forma, é uma tentativa de criar formas fabulosas para


expressar qualquer coisa qualitativamente diferente. Estas figuras e
objetos fabulosos, criados pela imaginação mítica, indicam apenas o
sentimento natural de surpresa, de mistério. Ainda não é a surpresa
demoníaca. Não podemos chamar de mistério aquilo que
momentaneamente é incompreensível. A maioria dos mitos surgiram para
explicar os fenômenos aparen​temente inexplicáveis.

Aqui é fundamental colocarmos a distinção que Otto faz entre um objeto


incompreensível para o conhecimento humano e um objeto
qualitativamente diferente.

"O objeto realmente misterioso é incompreensível e inconcebível não


apenas porque o meu conhecimento relativo deste objeto tem limites
determinados e inflexíveis, mas porque meus limites chocam-se com
alguma coisa qualitativamente diferente, uma realidade que, por sua
natureza e essência, é incomensurável e diante da qual eu manifesto o meu
estupor"[27].

Também se pode caricaturar o mistério no medo dos es​pectros. O aspecto


dos fantasmas provoca um sentimento de terror que causa calafrio. Este
elemento causa a atração nas histórias de espectro. Apesar do terror que
nos trazem, sentimos uma atração que é o mirum. Não é a forma, a
aparência do fantasma que atrai, mas por ser alguma coisa
qualitativamente diferente, alguma coisa que não entra na nossa esfera de
realidade. Esta realidade absoluta​mente diferente e oposta à nossa que
provoca um interesse em nossa alma.

O sentimento do qualitativamente diferente torna-se mais claro e intenso


no sentimento demoníaco. Nas suas formas superiores o objeto numinoso
opõe-se a tudo que é habitual, a natureza em geral, inclusive o domínio
sobrenatural. O sobrenatural e o transcendente são predicados negativos e
exclusivos em relação à natureza e ao mundo. No sentimento numinoso o
transcendente adquire um conteúdo positivo. O transcendente aí designa
um 42

objeto qualitativamente diferente, do qual pressentimos a natureza sem


poder exprimi-la em noções claras.

O sentimento do totalmente outro é a hipertensão dos elementos não-


racionais na religião. O objeto numinoso, enquanto outro, está em
oposição a tudo aquilo que é natural e, mais, opõe-se ao ser e ao que existe.
O totalmente outro, frente ao mundo existente, é um nada. O nada é o que
é absoluta e essencial​mente oposto a tudo aquilo que é e que pode ser. Este
é o paradoxo da negação e oposição que se delineia frente à reflexão
conceitual. No sentimento numinoso o qualitativamente diferente aparece
como qualidade positiva, como uma realidade viva. O vazio e o nada não
têm aqui um sentido niilista, mas passam a ser um ideograma numinoso
do qualitativamente diferente.

O elemento numinoso do mistério, enquanto manifestação do sentimento


religioso, é o mirum. Otto descreve neste sentimento numinoso uma
evolução em três graus: a surpresa pura e simples, o paradoxo e a
antinomia. No primeiro grau o mirum aparece incompreensível ao
entendimento, na medida em que transcende nossas categorias. No
segundo grau o sentimento do mistério aparece não apenas como
incompreensível, mas como paradoxal; não é apenas supra-racional, mas é
anti-racional. No grau mais elevado do mirum os enunciados sobre o
mesmo objeto não apenas aparecem contrários à razão, mas como
irreconciliáveis e ir​redutíveis entre si. É a forma mais aguda de paradoxo, a
an​tinomia.

Estas formas contrastantes e desconcertantes que cegam a razão são


encontradas na teologia mística, onde predomina o elemento não-racional
da idéia de Deus. O misticismo, segundo Otto, desenvolve uma teologia do
extraordinário, livre da lógica natural, teologia do mirum, do
qualitativamente diferente. Além disso reconhece como fonte mais
profunda do sentimento religioso o sentimento numinoso do
qualitativamente diferente.

"O misticismo não está em oposição direta à religião. Suas ver​dadeiras


relações se tornam imediatamente claras se considerarmos que os
elementos que indicamos têm como fonte um elemento

43

universalmente religioso, o sentimento numinoso do qualitativamente


diferente, sem o qual não há o sentimento religioso verdadeiro"[28].
Aqui, inevitavelmente, devemos voltar à questão do racionalismo e do
irracionalismo. Otto descreve o sentimento do mirum em graus evolutivos.
O mistério não é apenas incompreensível, supra-racional, mas anti-
racional. E no grau mais evoluído o mistério é irreconciliável com a razão.
Miguel Frederico Sciacca critica duramente esta formulação: "Otto não
quer ver que irracionalismo, em religião, significa supra-racional e não
anti-racional..."[29]. Sciacca entende toda concepção religiosa de Otto
como irracional. Além disso, faz uma crítica ao que o autor em questão diz
do sobrenatural. Para Sciacca, a sobrenatureza de Deus não é uma negação
da natureza humana. Para Otto, o sobrenatural é uma forma negativa
(racional) em relação à natureza, para expressar uma noção de Deus. Quer
dizer, que sobrenatural é um conceito racional, em forma negativa, tirado
do mundo da natureza e que não serve para indicar o que o sentimento
numinoso capta como qualitativamente diferente. Para Otto, isto não
significa uma negação da natureza humana, mas resgatar o elemento não-
racional da idéia do divino obscurecido pelo racionalismo. Portanto, o
supra-racional é uma derivação do racional. O numinoso é um elemento
totalmente diferente do racional. Quer dizer, é não-racional, e não
irracional.

José Todoli faz igualmente uma crítica a Otto que nos parece
surpreendente ao se referir à teoria da divinização.

"Esta teoria da divinização e dos 'sinais' é uma verdadeira teoria em


conceitos rígidos; é uma prova, uma demonstração estritamente pensada.
É a teoria do sobrenaturalismo ingênuo e da dogmática. É grosseiramente
racionalista"[30].

44

A faculdade de divinização é a faculdade que permite conhecer e


reconhecer genuinamente o sagrado no sentimento. É a percepção de um
objeto não-racional, ou numinoso. À crítica de Todoli podemos contrapor o
texto de Otto:

"A verdadeira divinização nada tem a ver com as leis naturais. De fato, o
seu relacionamento com as leis naturais não é problema para ela. Ela não
busca saber como é produzido o fato, o evento, ou qualquer outra coisa, ou
como uma pessoa tomou-se o que é; ela se preocupa com a significação e se
o fato é um sinal do sagrado"[31].
A teoria de divinização a que Todoli se refere Otto chama de teoria supra-
naturalista, e concorda com a crítica de que é uma faculdade do raciocínio.
Otto afirma literalmente: "Essa teoria da divinização e do sinal é uma
teoria formada por conceitos massivos e uma demonstração"[32]. Também
na crítica de José Todoli não há clareza quanto à compreensão do supra-
natural e do anti-natural; do supra-racional e do anti-racional. O supra-
natural é demonstrado quando se tira, de premissas dadas (no mundo
natural), uma conclusão lógica. A verdadeira divinização é o
reconhecimento de um objeto qualitativamente diferente, sem vínculo com
a natureza.

Estas duas críticas feitas situam-se dentro da perspectiva metafísica


clássica. Otto rejeita a via racionalista da metafísica tradicional e das
ciências naturais. Na faculdade de divinização, o numinoso é conhecido
pelo sentimento numinoso, que somente pode ser descrito e não
conceituado. A via de Otto é não-racional, e não irracional.

1.3.3 O fascinante

O objeto numinoso tem como forma o mistério. Este elemento nuclear tem
um conteúdo qualitativo numinoso. Este conteúdo

45

qualificativo do mistério é, em parte, um elemento repulsivo, o


tremendum, ligado à majestas e à orgé. Por outro lado, o mistério é
qualificado por um elemento que exerce uma atração peculiar, que cativa e
fascina. Este elemento que fascina forma com o tremendo uma estranha
harmonia de contrastes. Este duplo caráter do numinoso, formando uma
harmonia de contrastes, está presente em todas as religiões e até mesmo
nos cultos demoníacos. Otto exclama: "É o fenômeno mais estranho e mais
notável de toda essa história. O divino, sob a forma do demoníaco, é para a
alma objeto de terror e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz"[33].

O mistério, diz Otto, além de surpreendente, é também maravilhoso. Ao


lado do elemento repulsivo surge algo que seduz. Na medida em que este
elemento cresce de intensidade pode até chegar ao delírio; é o elemento
dionisíaco da religião. A este elemento Otto denomina de fascinante.

O fascinante é um elemento não-racional. O amor, a com​paixão, a piedade


e o consolo são noções, conceitos que acompa​nham e esquematizam este
elemento numinoso. Estes não podem esgotar seu conteúdo, apenas
relacionam-se analogicamente. Assim, a beatitude religiosa é muito mais
que ser consolado, ter confiança, felicidade presente no amor. A felicidade
religiosa não se esgota em elementos naturais elevados à perfeição pelo
pensamento. Esta experiência inclui elementos profundamente não-
racionais.

Otto reconhece que o sentimento religioso, em seus graus primitivos,


surgiu unicamente em um de seus pólos, o elemento do terror, da repulsa.
Esta forma primitiva do sentimento religioso é o terror demoníaco. Os
cultos religiosos, onde predomina este elemento terrífico, destinam-se a
apaziguar a cólera do numen. Os atos religiosos seriam basicamente atos
de expiação. Como explicar o fato de que nas religiões o numinoso é objeto
de busca? O elemento do terror não explica as práticas sacramentalistas
nem os ritos de comunhão pelos quais o homem busca apossar-se do
numinoso.

46

As práticas religiosas de ofertas, sacrifícios, ação de graças aparecem em


primeiro plano na história das religiões. Estas práticas religiosas são uma
forma de aproximação do mistério.

"Ao meio de uma quantidade de atos estranhos e de formas fan​tasiosas de


meditação, o homem religioso busca dominar a realidade misteriosa, a
penetrá-la e a identificá-la, identificando-se com ela"[34].

Otto ainda classifica estas práticas em dois tipos: a identificação mágica do


eu com o numen, pelos cultos mágicos, vida con​sagrada, encantamento
etc.; e pelos cultos naturalistas de posses​são, pelos quais a realidade
misteriosa está numa pessoa, que entra em estado de êxtase.

Nas suas origens, o elemento fascinante aparece mais em formas mágicas


de apropriação do numen, com o fim de alcançar objetivos naturais. Este
elemento desapareceu. Nas formas mais evoluídas da religião esta
possessão do numen passou a ser o objetivo em si. Com a maturação da
experiência religiosa desapa​rece a busca dos bens profanos pela magia.
Nas formas nobres do misticismo há uma busca do mistério que produz
uma beatitude rara que não pode ser expressa e compreendida, mas pode-
se ter uma experiência viva. É a experiência do elemento fascinante, que
pode maravilhar e embriagar.

O estado de alma, de estar maravilhado, normalmente vem expresso por


imagens ou fórmulas negativas. Estas imagens ou fórmulas negativas são
noções que se relacionam, apenas analogicamente, ao conteúdo positivo do
elemento fascinante, que é captado pelo sentimento. Exemplo destas
formas negativas, para expressar um conteúdo positivo, encontramos nas
palavras do apóstolo Paulo:

"O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem
não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (I Cor 2,9). O
amor, o consolo vividos no nível profano
47

não explicam de forma alguma o estado de Jubilo vivido pela presença do


numen.

Este estado é descrito por figuras como: abismo do prazer mais perfeito,
delícia sem fim, sol magnífico. Aqui aparece o algo mais do fascínio que
não pode ser expresso por conceito. Este estado de bem-aventurança, de
fascínio encontra-se em todas as religiões que têm esperança na salvação.
A doutrina da salvação torna-se incompreensível ao homem natural.
Quando Paulo fala na esperança da ressurreição, culmina assim: "E,
quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho
se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em
todos" (I Cor 15,28). As doutrinas de salvação são expressas e ensinadas
por noções análogas, ou ideogramas do sentimento religioso. Quem não
possui esta visão beatífica de Deus, terá uma compreensão muito
imperfeita da salvação. Que Deus seja tudo em todos poderá não ter
nenhum sentido para o homem natural.

A salvação não é apenas a busca de realização de aspirações religiosas. A


salvação não produz um estado de bem-aventurança pelo simples fato de
ter alcançado um objetivo. O sentimento numinoso do fascinante pode
aparecer de diversas formas, como diz Otto.

"Seja sob a forma de Reino de Deus que virá ou sob a forma de acesso do
sujeito à realidade supra-terrestre e beatífica; seja na espera e no
pressentimento ou na experiência presente; sob as formas e nas
manifestações as mais diversas, aparece uma tendência fundiária única,
estranha e poderosa, em direção a um bem (salvação) que conhece apenas
a religião e que não é racional"[35].

O sentimento de felicidade religiosa sempre se apresenta como hiperbólica,


exagerada, mesmo quando se apresenta de forma contida. Estas
experiências hiperbólicas aparecem nas vivências da graça, da conversão e
da regeneração. As autobiografias de convertidos estão repletas deste
elemento não-racional das bem-a-venturanças emocionais. Otto elenca
diversos testemunhos de

48

convertidos reunidas por William James. Eis o testemunho de Jacó da


Boémia: "Eu não posso escrever ou dizer o que aconteceu com o espírito.
Não se pode comparar a nada, a não ser à vida que nasce em meio à morte,
a ressurreição dos mortos"[36].

Estas experiências que no cristianismo se denominam de experiências da


graça e de regeneração, aparecem de forma paralela em outras religiões.
Nesta experiência coloca-se o Nirvana de Buda. Otto relata uma conversa
que teve com um monge budista:

"Quando ele chegou ao último ponto, a questão de saber o que é Nirvana,


depois de algumas hesitações, ele murmurou uma só frase: beatitude
inexprimível. Nesta resposta sussurrada, com tom solene, a expressão e a
atitude exprimiam, mais do que as palavras, o que ele queria dizer. Era
uma confissão de fé no 'mysterium fascinans"[37].

Na grande maioria das testemunhas do elemento fascinante se dá de forma


negativa. A via negativa mostra um divino não apenas como fundamento e
o superlativo de tudo que é concebível; Deus é, em si mesmo, uma essência
diferente, à parte. O elemento do fascinans é eminentemente não-racional.

Antes de descrevermos o último dos elementos do numinoso, queremos


tecer alguns comentários sobre críticas feitas a Otto no que tange ao
elemento fascinante.

Já referimos a crítica de Miguel Frederico Sciacca de que Otto restringe a


sua concepção de Deus ao elemento do terror. Mesmo quando aparecem os
elementos ao fascinans e do sanctum, o numen é sempre o Deus do terror,
da ira. A religião de Otto é expressão da crise de nossa época, caracterizada
pelo senso fatalístico da vida.

49
"A vida deixa de ter valor; os fins mergulham no pego do irracional e do
inatingível; só resta ao homem deixar-se revolver do absurdo, que se toma
em 'fascinans'. O 'fascinans' do 'numen' de Oito é a atração que sobre nós
exerce um Deus inimigo, prepotente e tirano, ação essa que se cifra em nos
comunicar a consciência do nada que somos"[38].
Concordamos com Sciacca que na concepção ottoniana de Deus predomina
o elemento do terror. Mas a crítica não se justifica quando submete o
elemento fascinante do numen ao elemento do tremendo. Sciacca faz uma
interpretação errônea da descrição que Otto faz destes elementos. Em sua
síntese, Sciacca afirma: "O terrífico, o suprapotente, o maravilhoso atraem
e fascinam a alma até a ebriedade: é o momento dionisíaco, irracional, ..."
[39]. No texto de Otto temos: "Ao lado do elemento perturbador aparece
algo que seduz e cresce em intensidade até produzir delírio; é o elemento
dionisíaco da ação do 'numen'"[40]. Otto utiliza a expres​são ao lado, que
deixa bem claro que está falando de dois elementos distintos: o elemento
fascinante atrai e o tremendo repulsa. Quer dizer, por um lado um
elemento que ativa e fascina e, por outro, um elemento repulsivo, o
tremendo. É o duplo caráter do numinoso. E Otto tala numa estranha
harmonia de contrastes. Para Sciacca, o elemento do tremendo também
fascina e atrai, o que não corresponde à exposição de Otto. Desta forma
chega a uma crítica injusta, reduzindo o numen de Otto ao terror, restando
ao homem revolver-se no absurdo, que se transforma em fascínio. Este
fascínio fatalístico faz a religião de Otto ser uma religião desumana e de
escravos. Essa crítica de Sciacca não passa de um reducionismo, de uma
parcialidade. Falta-lhe uma compre​ensão mais exata da distinção dos
elementos do numen e especial-

50

mente da faculdade de divinização, da qual falamos no item anterior.

51

[1] Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Pequeno dicionário da língua


portuguesa, 11. ed.. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1968.
[2] Rudolf OTTO, O sagrado, p. 61 -62.
[3] Id., ibid., p. 50-51.
[7] Rudolf OTTO, op. cit., p. 11.
[10] John MACQUARRIE, op. cit., p. 284.
[11] Rudolf OTTO, op. cit., p. 13.
[13] John MACQUARRIE, op. cit., p. 287.
[14] Rudolf OTTO, op. cit., p. 5.
[19] Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 222.
[20] John MACQUARRIE,op.cit.,p. 285.
[21] Rudolf OTTO, op. cit., p. 84.
[23] Id., ibid., p. 24. " Id., ibid., p. 26.
[29] Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 225.
[30] José TODOLI O. P., Filosofia de Ia religión. p. 113.
[31] Rudolf OTTO, op. cit., p. 141.
[32] Id., ibid., p. 140.
[35] Id., ibid., p. 39-40.
[38] Miguel Frederico SCIACCA, op. cit., p. 224-225.
[39] Id., ibid., p. 220.
[40] Rudolf OTTO, op. cit., p. 35.

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