Você está na página 1de 96

DISCURSO D E

METAFÍSICA E
OUTROS TEXTOS
G. W. Leibniz

Apresentação
TESSA MOURA LACERDA

Martins Fontes
SãoPauío 2004
índice

ÍUulo^los mimai' DISCOURS DE MÉTAPHYSIQUh:.


IA MONADOLOGiE. PRÍNCIPES DELA NAWRF. ET DE LA GRACE
EO.\/)hS Si/R LA RAISON.
Copwiyjn © 2004. Li\raria Martins Fomes Editora Lida .
São Paulo, para a presente edii.au

Esta obra]in influída riu voh\ãc Clássicos por suxcMão dt Homem Siimiu^i>.
1

I edição
a

abri! de 2004

Apresentação yjj
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santas
Cronologia XXIII
Kevisõfs gráficas
Ma IH v de Uurro\
Aíessaitdio Miranda dc Sá
D i s c u r s o d e metafísica ]
Dinarte Zorzunidli du Silva Os princípios da filosofia o u A m o n a d o l o g i a 129
Produção gráfica
Geraldo Alves Princípios d a natureza e d a graça f u n d a d o s na razão.... 1S1
Pagífta<,ã« T"ottúhns
Studin .í Hf\rnvnhimenlí' Editorial

tíadtts luíeriiacinnais de Catalogação ta Publicação |C1P)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Leibniz. Gnilfned Wilhelm, 1646-1716.


Discm-o de metafísica c outros textos ,'G. W. Ijsibniz . apresen-
tação Tessa Moura Laierda , tradução Marilena Cliuui e Alexandre
da Cruz Bonilha. São Paulo : Martins fontes. 2004. - íColecãu
clássicos]

Título original: Discoiii ; de métaphysiijue. la monadologic, prín-


1

cipes dc la nature. et de l,i jiiàce fondés sur la raison.


Bibliografia.
ISBN 85-336-1978-2

I . Leibniz - MetaiÍMca 2, Leibniz, Gottfried Wilhelm. 1646-


17161. L;iL-*T<ÍEi,Tesia Moura. 11. Titulo. 1JI. Sície.

04-2362 _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 0)0-149.7
í n d i í T S para catálogo sistemático:
I . Leibnizianismo : Filosofia 149.7

Tildas os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltãa.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Braul
lei. (Ill 3241.3677 Fax (li) MOS.6867
e-mail: info@tnariinsforites.rvm.br http •i/www.martitisfontes.com.br
Apresentação

E m f e v e r e i r o d e 1686 L e i b n i z escreveu u m a carta a o


L a n d g r a v e Ernest de Hesse-Rbeinfeis e m q u e fez. p e l a p r i -
m e i r a vez, r e f e r ê n c i a ao t e x t o q u e , p o s t e r i o r m e n t e , ficaria
c o n h e c i d o c o m o Discurso de metafísica. S e g u n d o o filósofo,
"estando e m u m lugar n o q u a l , d u r a n t e alguns dias, n ã o tinha
nada a fazer', lez " u m p e q u e n o discurso de metafísica''. U m a
leitura p r e m a t u r a dessas palavras, aliada a o fato d e este
t e x t o n a o ter s i d o p u b l i c a d o e m v i d a p e l o filósofo, p o d e r i a
levar à falsa s u p o s i ç ã o d e q u e L e i b n i z n ã o atribuía m u i t a i m -
p o r t â n c i a a esse p e q u e n o d i s c u r s o - escrito t a l v e z p o r falta
d o q u e fazer. \ v e r d a d e , L e i b n i z , e n t à o b i b l i o t e c á r i o ern
H a n o v e r e c o n s e l h e i r o de justiça, se referia p r o v a v e l m e n t e
ao p o u c o t e m p o q u e l h e restava d e v i d o às tarefas e x i g i d a s
p o r suas f u n ç õ e s o f i c i a i s . A l é m disso, e m b o r a n ã o se possa
d i z e r se, ao escrever o d i s c u r s o , L e i b n i z t i n h a a i n t e n ç ã o d e
atingir u m grande público, o filósofo submeteu o texto ( o u
p e l o m e n o s o s u m á r i o d e l e ) ao c r i v o d e A r n a u l d , e n t ã o u m
J e ó l o g o c o n h e c i d o e representante ilustre d o pensamento
na F r a n ç a - aliás, a referida carta é justamente u m p e d i d o ao
L a n d g r a v e p a r a q u e sirva d e i n t e r m e d i á r i o e n t r e o a u t o r e
A r n a u l d . A d e m a i s , nos anos i m e d i a t a m e n t e anteriores à reda-
ç ã o d o Discurso de metafísica, L e i b n i z p u b l i c o u seu Nova
metboduspro maximis et minimis ( o u t u b r o de 1684), u m ar-
t i g o d e d i c a d o à e x p o s i ç ã o d o c á l c u l o i n f i n i t e s i m a l , e as Me-

vu
G. W. Leibniz _. Discurso de metafísica e outros textos.

ditationes de cognitione, ventateei ideis ( n o v e m b r o d e 1684), e n c o n t r a v a m , até e n t ã o , dispersos e m diferentes textos. Cer-
e m q u e se p o s i c i o n a v a n o d e b a t e , q u e o p u n h a A r n a u l d c tamente, seria u m e q u í v o c o q u e r e r d e f i n i r o Discurso de me-
M a l e b r a n c h e , s o b r e a n a t u r e z a das ideias. N o m e s m o a n o tafísica c o m o a p r i m e i r a e x p o s i ç ã o , c m s e n t i d o c r o n o l ó g i c o ,
e m q u e i n i c i o u a t r o c a de cartas c o m A r n a u l d , L e i b n i z p u - t i o sistema l e i b n i z i a n o . Aliás, a n o ç ã o de sistema e m u m a
blicou ainda u m texto que deu o r i g e m a uma polémica c o m o b r a q u e , c o m o a f i r m a M . F i c h a n t , está e m p e r p é t u o m o v i -
os cartesianos, Brevis demonstratio erroris memorabilis Car- m e n t o interior, u m d e v i r q u e n à o se c o m p l e t a e m n e n h u m a
tesii. A s s i m , o p e r í o d o d a r e d a ç à o d o Discurso de metafísica f ó r m u l a a c a b a d a - tal c o m o m o s t r a m as v a r i a n t e s g e n é t i c a s
f o i t a m b é m u m m o m e n t o e m q u e L e i b n i z , e n t ã o c o m cerca dos textos de L e i b n i z p u b l i c a d o s na e d i ç ã o d a A c a d e m i a de
de 40 anos, q u e r i a d a r a c o n h e c e r suas ideias, q u e r i a c o n s - B e r l i m e de Gõttingen - é u m a n o ç ã o problemática, p o r mais
1

t r u i r u m l u g a r para si m e s m o n o s debates q u e o c u p a v a m q u e haja u m c o n s e n s o e n t r e m u i t o s d o s estudiosos e m c o n -


os p e n s a d o r e s da é p o c a . O q u e talvez j u s t i f i q u e o t o m par- siderar t e x t o s da v e l h i c e d o f i l ó s o f o , tais c o m o a Monado-
t i c u l a r m e n t e p o l é m i c o d o Discurso e as inúmeras referências logia c os Princípios da natureza e da graça, como exposi-
n ã o apenas a Descartes, mas t a m b é m a Espinosa, M a l e - ç õ e s sistemáticas. Para c o m e n t a d o r e s d a f i l o s o f i a d e L e i b n i z
b r a n c h e e à t r a d i ç ã o e s c o l á s t i c a . O Discurso de metafísica é c o m o B. Russell, L. C o u t u r a l , E. Cassirer, J. R a r u z i , Y. Bela-
p a r t e dessa t o m a d a de p o s i ç ã o . v a l , e n t r e o u t r o s , esse f i l ó s o f o é u m f i l ó s o f o de sistema, e,
Mas q u a l é a i m p o r t â n c i a deste t e x t o - u m dos mais c é - e m b o r a n à o tenha e x p o s t o esse sistema e m u m a o b r a úni-
lebres d o a u t o r e a c l a m a d o p o r tantos c o m e n t a d o r e s c o m o ca, seria p o s s í v e l reconstituí-lo a p a r t i r dos vários textos e
a p r i m e i r a f o r m u l a ç ã o d o sistema f i l o s ó f i c o d e L e i b n i z - n o d e temas centrais (a l ó g i c a , a n o ç ã o de s u b s t â n c i a ele.) es-
i n t e r i o r da vasta o b r a leibniziana? Q u a n d o r e d i g i u o Dis- c o l h i d o s c o m o o r i g e m p a r a essa r e c o n s t r u ç ã o . Essa m u l t i -
curso de metafísica, p r o v a v e l m e n t e e n t r e o fim de 1685 e o p l i c i d a d e de origens a partir das quais se p e n s a o sistema
início d e 1686, L e i b n i z já se a v e n t u r a r a nos t e r r e n o s d a j u - l e i b n i z i a n o n à o é, s e g u n d o M . Serres , u m p r o b l e m a se f o r e m
2

r i s p r u d ê n c i a , física, m e t a f í s i c a , l ó g i c a , m a t e m á t i c a , t e o l o g i a ; pensadas c o m o p e r s p e c t i v a s c o m p l e m e n t a r e s e n ã o e x c l u -
já e s b o ç a r a p r o j e t o s p o l í t i c o s e r e l i g i o s o s ; m a n t i n h a u m a dentes - o interesse dessa i n t e r p r e t a ç ã o está e m v e r q u e o
correspondência c o m diferentes personalidades da é p o c a ; sistema l e i b n i z i a n o c o m p o r t a r i a d i f e r e n t e s i n t e r p r e t a ç õ e s
p u b l i c a r a r e s u l t a d o s parciais d e suas pesquisas ( m u i t o s r e - o u p o n t o s d e vista tal c o m o é o m u n d o p a r a o p r ó p r i o L e i b -
t o m a d o s n o c o r p o d o Discurso)... O q u e faz d o Discurso de niz. C o m e n t a d o r e s mais recentes, c o m o L. B o u q u i a u x ' , n o
metafísica u m t e x t o singular entre t o d o s os outros? D e certa e n t a n t o , s ã o descrentes e m r e l a ç ã o à p o s s i b i l i d a d e de rc-
f o r m a é o p r ó p r i o L e i b n i z q u e m , n o § 32 d o Discurso, res-
p o n d e a essa q u e s t ã o : o Discurso trabalha "o grande p r i n - 1. A edição da Academia (iniciada cm 1900 pelas academias da Prússia e
c í p i o d a p e r f e i ç ã o das o p e r a ç õ e s d e D e u s e o d a n o ç ã o d a da França, cuja colaboração foi interrompida pela guerra em 1914; publicou os
s u b s t â n c i a q u e e n c e r r a t o d o s os seus a c o n t e c i m e n t o s c o m primeiros volumes, sob a direção alemã, em 1923). mesmo com as dificuldades
t o d a s as suas c i r c u n s t â n c i a s " . E m o u t r a s palavras, ao a b o r - impostas pela história alemã até a reunificação, já conta hoje com mais de 40 vo-
lumes. Cf. Fiehanr, M. in Magazine Littéraire, n 416, janeiro de 2003, p- 25.
d a r a a ç ã o d o C r i a d o r e a n o ç ã o de s u b s t â n c i a i n d i v i d u a l ,
fi

2. Cf. Serres, M. Le Système de Leibniz et ses modeles matbâmatiques, Pa-


este t e x t o d e f i n e p r i n c í p i o s gerais d a m e t a f í s i c a l e i b n i z i a n a ,
ris: PUF, 1982 [19681.
a p r e s e n t a n d o , p e l a p r i m e i r a v e z e m c o n j u n t o , temas essen- 3. Cf. Bouquiaux, L. "Préface", in Leibniz, Dtscours deMêiaphysique suivi
ciais q u e inspirarão as g r a n d e s obras p o s t e r i o r e s e q u e se de Monadologie. Paris: Gallimard, 1995.

VIU TX
<i. \K. Leibniz
Discurso de metafísica e outros textos.

c o n s t r u i r u m sistema l e i b n i z i a n o e p e n s a r os vários textos u m l a m b e m a d m i r a d o r de L e i b n i z l i g a d o ao d u q u e de O r -


de L e i b n i z c o m o c a p í t u l o s de u m a m e s m a o b r a - de l a l o , leans, R é m o n d . q u e q u e r i a e n c a m i n h a r o t e x t o ao poeta Fra-
seria d e s c o n s i d e r a r as idas e v i n d a s d o p r ó p r i o f i l ó s o f o e a gtiier p a r a q u e este o transformasse n u m p o e m a . M a i s d o
m a n e i r a q u e t e m , e m d i f e r e n t e s m o m e n t o s d e sua o b r a . de q u e u m p o s i c i o n a m e n t o nos debates de sua é p o c a , m e s m o
encarar os m e s m o s p r o b l e m a s o u de d e f r o n t a r - s e c o m p r o - c o m referências a Descartes e a Bayle, p o r e x e m p l o , estes t e x -
b l e m a s n o v o s a cada n o v a c i r c u n s t â n c i a . tos m o s t r a m u m L e i b n i z p r e o c u p a d o e m e x p o r temas essen-
O Discurso de metafísica seria, p a r a os partidários da ciais de sua f i l o s o f i a (e de u m a m a n e i r a a b s o l u t a m e n t e pes-
ideia d e sistema, u m t e x t o p r i v i l e g i a d o , já q u e a n u n c i a r i a , soal) e n ã o e m p o l e m i z a r c o m seus c o n t e m p o r â n e o s .
pela p r i m e i r a vez, u m c o n j u n t o d e temas q u e se fecharia d e - Essa m a n e i r a a b s o l u t a m e n t e pessoal d e e x p o r temas
f i n i t i v a m e n t e c o m o sistema c o m a Monadologia e os Princí- essenciais d e sua f i l o s o f i a representaria u m a r u p t u r a e m r e -
pios da natureza e da graça, a m b o s d e 1714. l i c l a r o , p o r - l a ç ã o à estrutura q u e caracterizava a e x p o s i ç ã o d o Discurso
t a n t o , q u e . nessa p e r s p e c t i v a , os temas desses d o i s ú l t i m o s de metafísica. Este apresenta u m r i t m o b i n á r i o d e d e s c e n -
textos n ã o seriam p r o p r i a m e n t e n o v i d a d e , n à o seria o fato sào, de D e u s às criaturas, e a s c e n s ã o , d o m u n d o a Deus, ex-
de r e s u m i r e m as p r i n c i p a i s teses leibnizianas q u e os t o r n a r i a primindo u m a espécie de fluxo e refluxo ontológicos, o
e x p r e s s ã o d e u m sistema filosófico, seria antes a f o r m a d e q u e , c o m o mostra Le Roy\, p o r u m l a d o , o p l a n o d e
apresentar m o t i v o s filosóficos q u e a p a r e c e r a m e m c o n j u n - a p r e s e n t a ç ã o d o 1'ratado da natureza e da graça de M a l e -
t o trinta anos antes n o Discurso de metafísica que significa- b r a n c h e c, p o r o u t r o , a o r d e m de e x p o s i ç ã o das Sumas m e -
ria u m a visão sistemática. A Monadologia e os Princípios da dievais e de Sistemas n e o p l a l ô n i c o s . L e i b n i z apresenta seu
natureza e da graça estariam e s t r u t u r a d o s à m a n e i r a de u m p e n s a m e n t o n o Discurso s e g u i n d o este m é t o d o c l á s s i c o :
sistema. O q u e significa isso? parte d a i d e i a de D e u s para o e s t u d o das criaturas, d e f i n i n -
Q u a s e três d é c a d a s s e p a r a m a r e d a ç ã o d o Discurso de d o o m u n d o físico, e, e m seguida, e x a m i n a as substâncias i n -
metafísica e a da Monadologia. e dos Princípios da nature- d i v i d u a i s para mostrar, p o r f i m , a u n i ã o d o s espíritos c o m
za e da graça. Mas estes t e x t o s n ã o e s t ã o separados a p e n a s D e u s na C i d a d e de D e u s .
p e l o t e m p o ; a l é m de p e q u e n a s d i f e r e n ç a s e n u m e r á v e i s , a
O t e x t o divide-se, assim, e m c i n c o grandes m o m e n t o s ar-
estrutura deles é e s s e n c i a l m e n t e d i f e r e n t e . A p r i m e i r a d i f e -
g u m e n t a t i v o s : n u m p r i m e i r o m o m e n t o (§§ 1-7), s e m se d e -
rença notável é o a b a n d o n o , n o s textos de 1714, d o t o m i r o
ter nas p r o v a s d a e x i s t ê n c i a d e D e u s , L e i b n i z a b o r d a a s u -
n i c o e p o l é m i c o q u e d e f i n i a o Discurso de metafísica, Expli-
p r e m a p e r f e i ç ã o d i v i n a c o r n o f u n d a m e n t o da e x c e l ê n c i a d e
ca-se: os Princípios da natureza e da graça, f o r a m escritos
sua o b r a (._ 1). A c o n s e q u ê n c i a dessa p e r f e i ç ã o é q u e , c o n t r a
para o príncipe Eugênio de Sabóia, a d m i r a d o r de Leibniz q u e ,
aqueles q u e r e c u s a m a b o n d a d e intrínseca das coisas c r i a -
e n t ã o , já gozava de certa n o t o r i e d a d e . Por m u i t o t e m p o acre-
xjas (§ 2) o u q u e a c r e d i t a m q u e Deus p o d e r i a ter f e i t o m e -
d i t o u - s e q u e o t e x t o d e s t i n a d o ao p r í n c i p e seria a Monado-
l h o r (§ 3), o m u n d o é intrinsecamente b o m e, p o r isso, o a m o r
logia - talvez v e n h a daí a c e l e b r i d a d e , sugere A. Robinot e m
sua e d i ç ã o ' . Sabe-se hoje q u e a Monadologia f o i escrita para
manusents de í lauorre. 1 ienne et Paris et presentes d'après cies ieftres inéiiites.
Paris: PUF, 195 i .
•i. Cf Rubinet. A Príncipes de la natitre et de la grâce fondês eu raison. 5. Cf. Le Rey. "Inlrodut tion, wxw. el eommenr.iire", in leibniz, LMscours
Príncipes de ia pbilosopbie ou Monadologie, pubiiâes intégralement d'après íes de Métapbysique et Correspon dance arec Arnauld, Paris: Vrin, 1966.

X XI
G. W. Leibniz Discurso de melafisicu e outros textos ._

d o h o m e m p o r seu C r i a d o r n ã o d e v e ser p a s s i v o o u q u i e - d e m fazer pela via d o e n t e n d i m e n t o (§§ 23-29) - o f i l ó s o f o


tista, o h o m e m d e v e c o n t r i b u i r p a r a o b e m geral (§ 4 ) . A p e r - e x a m i n a a natureza (§§ 23-25) e a o r i g e m (§§ 26-29) das ideias
f e i ç ã o d i v i n a e x p l i c a a i n d a o ato d c c r i a ç ã o q u e gera u m a - e p e l a v i a da v o n t a d e (§§ 30-31) - L e i b n i z d i s t i n g u e i n c l i -
r i q u e z a d e efeitos através de m e i o s s i m p l e s (§ 5), d o n d e o n a ç ã o e v o n t a d e , a espontaneidade livre q u e tende para o
m u n d o ser o b r a de u m a ú n i c a v o n t a d e g e r a l e eficaz q u e b e m (§ 30) e a p r e s e n t a sua d o u t r i n a da graça (§ 31). L e i b n i z
se e x p r i m e na o r d e m criada (§§ 6-7). N o s e g u n d o m o m e n t o e n c e r r a a a s c e n s ã o d o Discurso, na q u i n t a p a r t e a r g u m e n t a -
d o t e x t o (§§ 8-16), L e i b n i z passa a falar das s u b s t â n c i a s i n - tiva d o texto (§§ 32-37), m o s t r a n d o c o m o se dá a união dos es-
d i v i d u a i s criadas, d e f i n i n d o sua n a t u r e z a , e m a n a l o g i a c o m píritos c o m seu C r i a d o r na C i d a d e de D e u s .
o sujeito l ó g i c o , c o m o s u j e i t o m e t a f í s i c o q u e c o n t é m d e s d e Na Monadologia e n o s Princípios da natureza e da gra-
s e m p r e t o d o s os seus a t r i b u t o s ; a s u b s t â n c i a é u m m u n d o ça, a o r d e m binária q u e caracterizava o Discurso da l u g a r a
c o m p l e t o (§§ 8-9). Eis p o r q u e se p o d e r e t o m a r a n o ç ã o es- u m a c o n s t r u ç ã o p r o g r e s s i v a q u e parte d o s i m p l e s , a m ô n a -
c o l á s t i c a d e f o r n i a s u b s t a n c i a l , e m b o r a s e m aplicá-la na ex- d a , e x a m i n a n d o a h i e r a r q u i a d o s seres, para o c o m p l e x o , e
p l i c a ç ã o p a r t i c u l a r d o s f e n ó m e n o s , para e x p l i c a r a n a t u r e - t e r m i n a n d o pela c o n s i d e r a ç ã o de D e u s , c o m o ser a b s o l u t a -
za d a s u b s t â n c i a e os c o r p o s (§§ 10-12). Essa t e o r i a da subs- mente p e r f e i t o , e da u n i ã o e n t r e o C r i a d o r e os espíritos na
t â n c i a i n d i v i d u a l esclarece a q u e s t ã o da l i b e r d a d e h u m a n a : C i d a d e de D e u s , q u e representa a h a r m o n i a e n t r e o m u n d o
a inerência d o p r e d i c a d o ao sujeito n à o se dá p o r u m a c o n e - físico e m o r a l o u o e q u i l í b r i o h a r m ó n i c o de u m m u n d o h i e -
x ã o n e c e s s á r i a , mas c o n t i n g e n t e (§ 13). Por f i m (§§ 14-15), r a r q u i z a d o . A a r g u m e n t a ç ã o desses textos p o d e ser d i v i d i d a
L e i b n i z e x p l i c a a r e l a ç ã o e n t r e essas s u b s t â n c i a s i n d i v i d u a i s e m três grandes momentos: n o p r i m e i r o deles {Monadologia,
cujas naturezas e n v o l v e m t o d o s os seus a c o n t e c i m e n t o s : se §§ 1-36; Princípios, §§ 1-6), L e i b n i z apresenta as m ô n a d a s o u
cada u m a é u m m u n d o à p a r t e , u m a p e r s p e c t i v a s i n g u l a r d o s u b s t â n c i a s s i m p l e s , c o n s i d e r a n d o , p r i m e i r o , sua n a t u r e z a
m e s m o c o n j u n t o de f e n ó m e n o s , elas n ã o a g e m u m a s s o b r e ile u m p o n t o de vista e x t e r n o (a m ô n a d a é simples, s e m ex-
as outras, seus f e n ó m e n o s se e n t r e e o r r e s p o n d e m e todas ex- t e n s ã o , s e m f i g u r a , indivisível, n ã o p o d e c o m e ç a r n e m p e r e -
p r i m e m a totalidade d o m u n d o criado, i n c l u i n d o o concurso cer n a t u r a l m e n t e , n à o p o d e ser m o d i f i c a d a p o r o u t r a subs-
extraordinário de Deus c o m p r e e n d i d o na o r d e m universal t â n c i a ) (Monadologia, §§ 1-7; Princípios, §§ 1-2) e d e u m
(_ l ó ) . N u m terceiro m o m e n t o a r g u m e n t a t i v o (§§ 17-22), L e i b - ponto d e vista i n t e r n o (a m ô n a d a é dotada de p e r c e p ç ã o , q u e
n i z passa ao e s t u d o d o u n i v e r s o físico m o s t r a n d o , p r i m e i r o , e x p r i m e a m u l t i p l i c i d a d e d o m u n d o na u n i d a d e da subs-
c o m o a n o ç ã o dc força, e n ã o a de q u a n t i d a d e de m o v i m e n - tância, e apetição, a tendência de passar d c u m a p e r c e p ç ã o a
t o c o m o s u p u n h a Descartes, e x p r i m e a n a t u r e z a d o s f e n ó - outras mais distintas) (Monadologia, §§ 8-17; Princípios, § 2);
m e n o s físicos (§§ 17-18); c, s e g u n d o , c o m o a n o ç ã o de f i n a e c o n s i d e r a n d o , s e g u n d o , os graus d e p e r f e i ç ã o das m ô n a -
l i d a d e , q u e r e c o n d u z a física a seu f u n d a m e n t o m e t a f í s i c o , t l a s (Monadologia, §§ 18-36; Princípios, §§ 3-6). N o s seres
f o r n e c e a e x p l i c a ç ã o d o u n i v e r s o físico (§§ 19-22). T e n d o compostos h á u m a m ô n a d a c e n t r a l , q u e é seu p r i n c í p i o d e
c o m p l e t a d o o m o m e n t o d e d e s c e n s à o d o Discurso de me- u n i d a d e , cercada p o r u m a i n f i n i d a d e d e o u t r a s m ô n a d a s
tafísica c o m o e x a m e d o u n i v e r s o físico, L e i b n i z v o l t a , na q u e c o n s t i t u e m seu c o r p o o r g â n i c o (Princípios, § 3). A m ô -
q u a r t a p a r t e d o t e x t o (§§ 23-31), a tratar das s u b s t â n c i a s i m a - nada n u a o u e n t e l é q u i a p o s s u i u m a p e r c e p ç ã o e u m a a p e -
teriais a f i m d e pensar o r e t o r n o a D e u s q u e os espíritos p o - t i ç ã o e m s e n t i d o g e r a l (Monadologia, §§ 18-24). A m ô n a d a

XII XITT
(j. W. feibniz Discurso cie metafísica e outros textos.

d o t a d a de m e m ó r i a , o u a l m a , c o m o n o caso d o s a n i m a i s , é t r o u x , u m a e x p l i c a ç ã o progressiva, o u seja, o m u n d o é c o n -


capaz d e c o n s e c u ç õ e s e m p í r i c a s q u e i m i t a m a r a z ã o {Mona- c e b i d o a p a r t i r d e sua causa, D e u s ; é a a ç â o d e ser essencial-
dologia, §§ 25-28; Princípios, §§ 4-5). E, f i n a l m e n t e , a m ô n a d a mente perfeito que explica a harmonia que define o m u n d o
d o t a d a d e razão, q u e c o n h e c e as verdades necessárias e eter- c r i a d o . C o m o a f i r m a L e i b n i z nos Princípios (§ 7), ao passar,
nas e e capaz de r e f l e x ã o , isto é, a p e r c e p ç á o o u c o n s c i ê n c i a , p o r u m m o v i m e n t o regressivo q u e v a i das coisas a sua causa,
é chamada d e espírito (Monadologia, §§ 29-30; Princípios, § y). das criaturas a D e u s , n à o é mais p o s s í v e l falar ' c o m o s i m -
A p a r t i r d a a p r e s e n t a ç ã o d o s p r i n c í p i o s q u e f u n d a m o ra- ples físicos: (...) d e v e m o s e l e v a r m o - n o s à metafísica nos
c i o c í n i o dos espíritos, o princípio da c o n t r a d i ç ã o e o da razão v a l e n d o d o grande princípio pouco empregado habitual-
s u f i c i e n t e (Monadologia, _§ 31-36), L e i b n i z passa ao s e g u n - m e n t e , q u e sustenta q u e nada se faz sem razão suficiente,
d o g r a n d e m o m e n t o da a r g u m e n t a ç ã o cujo tema é D e u s (Mo- isto é, q u e n a d a o c o r r e s e m q u e seja possível (...) d a r u m a
nadologia, §§ 37-48; Princípios, §§ 7-9). Trata, e n t à o , d a exis- r a z ã o q u e baste p a r a d e t e r m i n a r p o r q u e é assim e n à o de
tência d e D e u s (Monadologia, §§ 37-42; Pfincípios, §§ 7-8) e o u t r o m o d o " . T e r m i n o l o g i a s à parte — seja o c a m i n h o ascen-
de sua n a t u r e z a (Monadologia, §§ 43-48; Princípios, § 9). d e n t e das m ô n a d a s a D e u s . c o m a c o n s i d e r a ç ã o da hierar-
Por f i m , n o t e r c e i r o g r a n d e m o m e n t o d e sua a r g u m e n t a ç ã o q u i a d o seres, u m m o v i m e n t o progressivo d o s i m p l e s para o
(Monadologia, _§ 4 9 - 9 0 ; Princípios, §_ 10-18), L e i b n i z d e - c o m p l e x o , seja esse c a m i n h o u m m o v i m e n t o regressivo das
d u z da p e r f e i ç ã o d i v i n a a p e r f e i ç ã o d o m u n d o {Princípios. criaturas a sua causa —, o lato é q u e , nesse m o v i m e n t o de ex-
§§ 10-13), a p r e s e n t a n d o a h a r m o n i a u n i v e r s a l (Monadolo- p r e s s ã o d e sua f i l o s o f i a , L e i b n i z apresenta a q u e s t ã o f u n d a -
gia, §§ 49-60; Princípios, § 13) e a h i e r a r q u i a dos seres cria- m e n t a l d e sua m e t a f í s i c a : p o r q u e o ser e n à o o nada?
d o s (Monadologia, §§ 61-90. q u e r e t o m a m os §§ 3 e 6 d o s
Princípios), p a r a m o s t r a r c o m o a natureza c o n d u z à graça e
os espíritos, os mais elevados dos seres, e n t r a m e m socieda-
d e c o m o C r i a d o r na C i d a d e de D e u s . O princípio de razão suficiente q u e e x p r i m e o axioma
Para B o u t r o u x , é p o s s í v e l d i z e r q u e o p e r c u r s o a r g u -
1
"nada é s e m r a z ã o " e dá i n t e l i g i b i l i d a d e à p e r g u n t a p e l o
m e n t a t i v o d a Monadologia 6 inicialmente ascendente o u re- Ser ( n a d a é s e m r a z ã o ) p a r e c e d e f i n i r mais q u e a passagem,
gressivo, i n d o das criaturas para D e u s , e d e p o i s d e s c e n d e n - nos Princípios da natureza e da graça, de u m r e g i s t r o físi-
te o u p r o g r e s s i v o , d e D e u s às criaturas. O r a , nesse s e n t i d o , c o para u m r e g i s t r o m e t a f í s i c o ; esse p r i n c í p i o n ã o caracte-
a p a r e n t e m e n t e , L e i b n i z n à o teria a b a n d o n a d o u m r i t m o b i - riza apenas o p e r c u r s o a r g u m e n t a t i v o d a f i l o s o f i a de L e i b n i z
nário d e apresentação, teria apenas i n v e r t i d o a o r d e m de a p r e - nesse t e x t o , mas a p r ó p r i a c o n c e p ç ã o d o q u e seja a f i l o s o -
s e n t a ç ã o d o Discurso de metafísica. Apenas aparentemente, fia para L e i b n i z .
porque a explicação d o m u n d o n o m o m e n t o descendente da D a d o o princípio de razão suficiente, "a p r i m e i r a p e r g u n -
Monadologia - e os Princípios da natureza e da graça re- ta q u e t e m o s o d i r e i t o de f o r m u l a r será: porque há algo e não
p r o d u z e m a mesma o r d e m - é também, c o m o aponta B o u - atites o nadar (Princípios da natureza e da graça, § 7 ) . Por
q u e o m u n d o existe? P o d e m o s e x p l i c a r as coisas d o m u n d o
(\. Boutroux, E. '•Éckurus.semenis'", in Leibniz, La Monaíhlo^w, Paris; a partir d c seus estados anteriores, u m m o v i m e n t o p o r u m
Libraine Delugrave, 192s. m o v i m e n t o anterior, u m h o m e m p o r o u t r o anterior, através

XIV xv
G. W. Leibniz - Discurso de metafísica e outros íexlos

d e u m trânsito d e u m e n t e c o n t i n g e n t e a o u t r o e n t e c o n t i n - A m e l h o r m a n e i r a de c o n h e c e r é pelas causas e r a z õ e s .


gente e assim sucessivamente. Cada v e z q u e p r o c u r a m o s dar A causa é u r n p r i n c í p i o d e e x p l i c a ç ã o d a o r d e m d o mutável
a r a z à o de a l g o existente n o m u n d o , p o r q u e n à o e n c o n t r a - ( o u u m a r a z ã o real); a r a z ã o , d a o r d e m d o imutável, já q u e
m o s na p r ó p r i a coisa essa r a z ã o , s o m o s l e v a d o s a u m a exis- é causa n ã o a p e n a s dos nossos j u l g a m e n t o s , mas da p r ó -
t ê n c i a a n t e r i o r n o t e m p o q u e necessita a i n d a u m a a n á l i s e p r i a v e r d a d e . Desse m o d o , a causa nas coisas c o r r e s p o n d e
s e m e l h a n t e . Mas, p o r mais q u e a v a n c e m o s na pesquisa das à r a z ã o ( o u causa f i n a l ) nas v e r d a d e s . D a r a r a z ã o d e a l g u -
causas segundas, n ã o e n c o n t r a m o s , nesse p r o g r e s s o i n f i n i - m a coisa s i g n i f i c a i n t r o d u z i r f i n a l i d a d e e, l o g o . i n t e l i g ê n c i a ,
t o , a r a z ã o da e x i s t ê n c i a de u m m u n d o s i m p l e s m e n t e , n e m p o r isso, o v e r d a d e i r o c o n h e c i m e n t o de Deus, causa p r i m e i -
deste m u n d o . A r a z ã o da e x i s t ê n c i a d o m u n d o q u e v e m o s ra e r a z ã o última de t u d o , é a sabedoria mais elevada. A f i l o -
e e x p e r i m e n t a m o s d e v e estar fora dessa série de eventos c o n - sofia consiste precisamente n o p e n s a m e n t o da razão s u f i c i e n -
t i n g e n t e s q u e o c o m p õ e m , n ã o c o m o última causa d a s é r i e te d o m u n d o q u e é D e u s : " e m Filosofia trata-se de d a r razão,
c o n d i c i o n a l , mas c o m o causa transcendente, necessária e u n i - f a z e n d o c o n h e c e r d e q u e m a n e i r a as coisas s ã o e x e c u t a d a s
versal (Monadologia, §§ 36-38), C o n s i d e r a n d o q u e a razão d e
pela sabedoria d i v i n a " (Système now.vau de la nature, § 13).
u m existente s ó p o d e p r o v i r d e u m o u t r o existente, d e v e - s e
N à o sc trata de desprezar u m a e x p l i c a ç ã o física d o m u n -
a d m i t i r a e x i s t ê n c i a de u m sei n e c e s s á r i o e e t e r n o : D e u s .
d o . A ciência c o n s t i t u i u m a o r d e m d i f e r e n t e d a o r d e m filosó-
Para L e i b n i z , há u m a a n a l o g i a entre o e n t e n d i m e n t o d i -
fica e é c o m p l e m e n t a r a ela, n ã o contraditória. A e x t r a v a -
vino, que ilumina, e o entendimento humano, iluminado
g â n c i a seria e m b a r a l h a r esses d o i s p l a n o s d i s t i n t o s ( o q u e
pelas m e s m a s leis da razào, e essa a n a l o g i a garante o m o v i -
n à o se c o n f u n d e c o m a p r e o c u p a ç ã o d e u m L e i b n i z c o n c i -
m e n t o metafísico de s u p e r a ç ã o da experiência. A reflexão
l i a d o r na busca d c a c o r d o e n t r e a l i n g u a g e m metafísica e a
metafísica n ã o p r o l o n g a a e x p e r i ê n c i a , ela i m p l i c a u m a pas-
l i n g u a g e m prática). M e s m o nas q u e s t õ e s e m q u e se p e r c e b e m
sagem ao l i m i t e e p r o c u r a a t i n g i r o f u n d a m e n t o m e s m o de
p r o b l e m a s cuja s o l u ç ã o e x i g i r i a u m l o n g o debate q u e c o l o -
q u a l q u e r e m p i r i s m o . E m b o r a a e x p e r i ê n c i a seja f u n d a m e n t a l
casse e m p a u t a p r i n c í p i o s gerais, é possível p r o c e d e r a u m a
n ã o a p e n a s p a r a a c o n s t i t u i ç ã o d a c i ê n c i a , mas, p r i n c i p a l -
e x p l i c a ç ã o p a r t i c u l a r q u e seja válida; de o u t r a f o r m a , se des-
m e n t e , para p r o v o c a r o d e s e n v o l v i m e n t o d c nossas r i q u e -
zas implícitas (cf. Discurso de metafísica, § 27), d e v e ser e n - c o n h e c e r i a as e x i g ê n c i a s d a a n á l i s e científica. A l i n g u a g e m
t e n d i d a c o m o u m p r o c e d i m e n t o provisório. G r a ç a s a ela so- metafísica p o s s u i o privilégio d o rigor, mas a natureza d e v e
m o s capazes d e e n t e n d e r como as coisas d o m u n d o e s t ã o p o d e r se e x p l i c a r sem q u e se considere a existência de D e u s ;
dispostas, mas n à o por que s ã o postas. A p e r g u n t a q u e c o n - assim, L e i b n i z p r e s e r v a t o d o s os d i r e i t o s d o m é t o d o e x p e -
d u z a pesquisa filosófica n ã o c o n s e g u e e n c o n t r a r eco n o d o - rimental c de u m a l i n g u a g e m mais próxima d o senso c o m u m ,
m í n i o e x p e r i m e n t a l : 'por quê?". O p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o de m o d o q u e se c o n c e d a a u t o n o m i a à c i ê n c i a . Essa e x p l i -
p r o c u r a e x p l i c a ç õ e s a priori; s ã o as causas reais d o s efeitos " c a ç â o , n o e n t a n t o , p e r m a n e c e s u b o r d i n a d a , e m seu f u n d a -
q u e a c i ê n c i a estuda e as r a z õ e s d o s fatos q u e c o n s t i t u e m m e n t o ( n ã o n o detalhe), a a f i r m a ç õ e s metafísicas q u e a u l t r a -
seu o b j e t o p o r e x c e l ê n c i a . L e i b n i z r e t o m a a d e f i n i ç ã o aris- passam: "os princípios das c i ê n c i a s p a r t i c u l a r e s " (já r e c o n h e -
totélica d a f i l o s o f i a - a c i ê n c i a d o s p r i n c í p i o s p r i m e i r o s das cia Aristóteles) " d e p e n d e m de u m a c i ê n c i a s u p e r i o r q u e l h e s
coisas - , f a z e n d o da b u s c a d c o r i g e n s e d e causas i n s e n s í - dá razão; e esta ciência s u p e r i o r deve ter o ser, e, c o n s e q u e n -
veis sua ideia mestra. t e m e n t e , D e u s , o r i g e m d o ser, p o r o b j e t o " (Essais de Tbéo-

XVT XVI1
G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos—

dicée, I I , § 184). Pois, c o m o d i z i a Platão, " u m a coisa é a cau- dos possíveis. A s s i m , e m b o r a u m c o n h e c i m e n t o p e r f e i t o das
sa v e r d a d e i r a . . . e o u t r a , o q u e n ã o passa d e c o n d i ç õ e s p a r a coisas q u e n o s c e r c a m esteja a c i m a das nossas p o s s i b i l i d a -
a causa p o d e r ser causa..." (Discurso de metafísica, § 20). E des, as nossas f a c u l d a d e s s ã o s u f i c i e n t e s p a r a nos levar ao
d e s a r r a z o a d o a d m i t i r u m a i n t e l i g ê n c i a o r d e n a d o r a das c o i - c o n h e c i m e n t o d o C r i a d o r , e, p o r c o n s e g u i n t e , a u m a v i s ã o
sas e. e m s e g u i d a , r e c o r r e r u n i c a m e n t e às p r o p r i e d a d e s d a mais clara das coisas n o s a p r o x i m a n d o d o o l h a r p e n e t r a n t e
matéria para e x p l i c a r os f e n ó m e n o s . A n a x á g o r a s c t o d o s q u e de D e u s . Para L e i b n i z , é na metafísica q u e essa p r o x i m i d a d e
s e g u i r a m u m a f o r m a d i f e r e n t e de e n t e n d e r as coisas, d e i x a - a Deus, o u , e m outras palavras, a e s p i r i t u a l i d a d e d o h o m e m ,
r a m d e p e r c e b e r q u e , n o e s t u d o c o n c r e t o dos f e n ó m e n o s , é se manifesta d e m o d o mais v i g o r o s o , f a z e n d o c o m q u e a d i -
p r e c i s o d i s t i n g u i r a causa f i n a l e as c o n d i ç õ e s s e m as q u a i s f e r e n ç a d e n a t u r e z a entre C r i a d o r e c r i a t u r a se d e s v a n e ç a e
essa causa n ã o p o d e ser eficaz. A e x p l i c a ç ã o metafísica f u n - a p a r e ç a c o m o s i m p l e s d i f e r e n ç a de g r a u .
da e justifica a e x p l i c a ç ã o física d o m u n d o , mas se d i f e r e n -
cia p r o f u n d a m e n t e dela. A tarefa d o filósofo, q u e n ã o q u e i r a * » *
falar c o m o s i m p l e s físico, consiste e m d e f i n i r , e m t o d o s os
d o m í n i o s , a a ç ã o d e u m a causa final a q u e se s u b o r d i n a m
O r a , se c o n s i d e r a r m o s q u e a p e r g u n t a q u e c o n d u z a
as causas eficientes s e c u n d á r i a s , m o s t r a n d o a insuficiência
i n v e s t i g a ç ã o d e L e i b n i z e d e t e r m i n a i n c l u s i v e sua p e r s p e c -
da c o n s i d e r a ç ã o da causalidade física. Eis p o r q u e a p r i m e i r a
tiva a r e s p e i t o da f i l o s o f i a é a p e r g u n t a pela r a z ã o d o ser,
pergunta q u e t e m o d i r e i t o de f o r m u l a r é " p o r q u e bã algo e
e n t ã o é i n e g á v e l q u e há u m a u n i d a d e e s p e c u l a t i v a na o b r a
n ã o antes o nada?" (Princípios da natureza e da graça, § 7).
l e i b n i z i a n a . Resta saber se essa u n i d a d e e s p e c u l a t i v a é o r i -
A r e f l e x ã o filosófica e x i g e , e m última instância, q u e a l c a n -
g e m de u m sistema e se os textos d o filósofo p o d e m , e n t ã o ,
c e m o s , e m t o d a sua o r i g i n a l i d a d e , o aro o r i g i n a l q u e faz sur-
ser vistos c o m o capítulos de u m a mesma o b r a o u versões d e
gir a o r d e m d o m u n d o a p a r t i r d o nada. O desejo d o m e t a -
u m sistema a c a b a d o .
físico é r e m o n t a r aos p r i m e i r o s possíveis a t r i b u t o s d e D e u s ,
Se há sistema, e n t ã o o Discurso de metafísica poderia
e, e m b o r a Leibniz. n u m a atitude dc reserva diante de sua p r ó -
ser o t e x t o i n a u g u r a l d e u m a n o v a fase n o p e n s a m e n t o d e
pria definição de b e m filosofar, admita a i m p o s s i b i l i d a d e des-
L e i b n i z , e n c e r r a n d o o m o m e n t o de f o r m a ç ã o e d a n d o iní-
sa tarefa i n f i n i t a p a r a u m a criatura s u b m e t i d a às c o n d i ç õ e s
c i o às tentativas de f o r m u l a ç ã o d o sistema l e i b n i z i a n o q u e .
d e t e m p o e e s p a ç o , n ã o c o n c o r d a q u e o h o m e m n ã o possa
a partir de então, permaneceria sempre o mesmo, buscan-
o b t e r u m c o n h e c i m e n t o de D e u s e e x p l i c a r r a c i o n a l m e n t e
d o a f o r m a mais acabada de e x p r e s s ã o , f o r m a essa q u e o f i -
certos m i s t é r i o s .
l ó s o f o c o n s t m i r i a na Monadologia e nos Princípios da natu-
Não p o d e m o s c o m p r e e n d e r Deus, n ã o e n t e n d e m o s t u d o reza e da graça.
o q u e sua n o ç ã o e n c e r r a , mas s o m o s capazes d e e x p l i c á - l o . ~^ T o d a v i a , a p e r g u n t a p e l o ser é u m a q u e s t ã o bastante
N ã o p o d e m o s sondar a p r o f u n d i d a d e d e D e u s a respeito d o s a m p l a p a r a e n g l o b a r n ã o a p e n a s os três t e x t o s a q u i a p r e -
fatos p a r t i c u l a r e s , mas estamos e m c o n d i ç ã o d e precisar o sentados, mas m u i t o s o u t r o s q u e p o d e r i a m , t o d o s , ser vistos
p r i n c í p i o u n i v e r s a l de sua a t i v i d a d e . N ã o p o d e m o s e n x e r - c o m o perspectivas parciais dessa mesma busca pela razão d o
gar a c o n e x ã o u n i v e r s a l d o s e v e n t o s ; n o s basta, e n t r e t a n t o , ser. A l é m disso, as d i f e r e n ç a s entre os três textos n ã o d e v e m
u m a d e m o n s t r a ç ã o a priori de q u e este é o m e l h o r dos m u n - ser i g n o r a d a s : se elas p o d e m , e m p a r t e , ser explicadas pelas

XVIII XIX
G. W. Leibniz — Discurso de metafísica e outros textos .

datas d e r e d a ç ã o , a distância t e m p o r a l n â o é jamais u m a ra- Nào se p o d e d i z e r q u e apenas a f o r m a de a p r e s e n t a ç ã o des-


z ã o s u f i c i e n t e delas". Vale notar, p o r e x e m p l o , q u e as refe- ses temas essenciais t e n h a m u d a d o - m e s m o q u e se veja
r ê n c i a s às Escrituras e aos Santos Padres, presentes e m t o d o nessa m u d a n ç a d e e x p r e s s ã o a c o n s t i t u i ç ã o de u m sistema.
o Discurso de metafísica, s ã o escassas n o s o u t r o s d o i s t e x - Nào se p o d e a f i r m a r sem ressalvas q u e a n o ç ã o c o m p l e t a de
tos, t a l v e z p o r q u e a p e r s p e c t i v a p r e d o m i n a n t e n a q u e l e seja substância seja e q u i v a l e n t e ã m ô n a d a simples. Se o Discurso
a p e r s p e c t i v a t e o l ó g i c a ; daí a r a z ã o d o Discurso se c o n c e n - de metafísica, a Monadologia e os Princípios da natureza
trar, a o falar das s u b s t â n c i a s criadas, nas almas racionais e e da graça s ã o t e x t o s d e s í n t e s e das g r a n d e s teses metafísi-
e m sua relação c o m Deus, e n q u a n t o a Monadologia e os Prin- cas de L e i b n i z - e nesse s e n t i d o t e x t o s p r i v i l e g i a d o s para
cípios a p r e s e n t a m t o d a a h i e r a r q u i a dos seres, das m ô n a d a s q u e m q u e r se i n t r o d u z i r n o p e n s a m e n t o deste a u t o r - , é p r e -
nuas o u e n t e l é q u i a s aos espíritos, t r a z e n d o c o n t r i b u i ç õ e s da ciso t o m a r o c u i d a d o de ler as d i f e r e n ç a s q u e eles g u a r d a m
b i o l o g i a d a é p o c a q u e n â o a p a r e c e m n o t e x t o d e 1686. e n t r e si c o m o d i f e r e n ç a s , para n â o enrijecer u m p e n s a m e n -
Para c o n c l u i r , p o d e m o s dizer q u e os três textos a q u i r e u - to vivo.
n i d o s s ã o f u n d a m e n t a i s p a r a a c o m p r e e n s ã o da f i l o s o f i a d e
L e i b n i z , s ã o t e x t o s de s í n t e s e e e s t ã o i n s e r i d o s e m u m a u n i - TESSA M O U R A L A C E R D A
dade de pensamento c o m o textos que p r o c u r a m responder
a q u e s t ã o essencial da metafísica l e i b n i z i a n a . Mas t o m á - l o s
c o m o textos d e sistema p o d e levar a d e s c o n s i d e r a r as d i f e -
r e n ç a s q u e eles g u a r d a m entre si e as p a r t i c u l a r i d a d e s d o
p e n s a m e n t o de Leibniz e m cada u m daqueles m o m e n t o s : c o r -
re-se o risco de interpretar o Discurso de metafísica como u m
m e r o e s b o ç o da Monadologia, o u os Princípios da nature-
za e da graça c o m o a c o n c l u s ã o lógica d o Discurso. O con-
t e x t o e m q u e os textos d e 1714 f o r a m r e d i g i d o s é f u n d a m e n -
t a l m e n t e o u t r o e m r e l a ç ã o ao a m b i e n t e e r n q u e L e i b n i z v i v i a
e m 1686. T a l v e z p o s s a m o s d i z e r q u e , s i m , os temas essen-
ciais d a m e t a f í s i c a l e i b n i z i a n a e s t a v a m p o s t o s d e s d e o Dis-
curso de metafísica — o u , antes, as o p ç õ e s filosóficas essen-
ciais já e s t a v a m feitas e m 1686. Mas c o m o temas essenciais
q u e seriam e s t u d a d o s , p e n s a d o s , d e p u r a d o s p o r trinta a n o s .

7. Seria interessante estudar também as diferenças que a Monadologia e


us Pmicípiosãa natureza e da graça guardam entre si (o que nào fizemos aqui.
já que nos interessava salientar as diferenças desses textos em relação ao Dis-
curso de metafísica): embuia as grandes linhas argumentativas desses textos se-
jam muito próximas, há pequenas diferenças no interior dessa ordem geral, t o m o
raive/ tenha aparecido na descrição das partes componentes desses textos

XX XXI
Cronologia

1646. N a s c i m e n t o d e L e i b n i z e m L e i p z i g , A l e m a n h a , e m 1-
de julho.
1648. T r a t a d o s de Vestia lia. q u e f a v o r e c i a m a França, p o n d o
f i m à Guerra dos Trinta Anos.
1652-1661. L e i b n i z estuda na Nicolaí-Schule e lê livros varia-
dos d a b i b l i o t e c a d e i x a d a p o r seu p a i ( q u e havia s i d o
j u r i s c o n s u l t o e p r o f e s s o r de m o r a l na U n i v e r s i d a d e de
L e i p z i g ) , m o r t o este a n o .
1661. Ingressa na U n i v e r s i d a d e d e L e i p z i g o n d e r e c e b e
e n s i n a m e n t o s a r i s t o t é l i c o - t o m i s t a s ; s e g u e o c u r s o de
J a k o b T h o m a s i u s , h i s t o r i a d o r da Filosofia e p a i de
Christian Thomasius.
1663. A p r e s e n t a tese de c o n c l u s ã o de c u r s o , Disputado me-
tapbysica cie principio Uuiividui, que é publicada. No
v e r ã o segue o curso d e Erhard Weigel, m a t e m á t i c o , j u -
rista e metalísico, na U n i v e r s i d a d e de leria. N o o u t o n o
r e t o r n a a L e i p z i g e se d e d i c a à j u r i s p r u d ê n c i a .
1664. M o r r e a m ã e d e L e i b n i z . Estudos jurídicos c o m seu t i o .
r o jurista J o h a n n Strauch. Torna-se mestre e m F i l o s o f i a
c o m o t e x t o Specimen quaestionumphilosophicamm
ex jure collectarum.
1665. Disputatio jurídica de condi tionibus.
1666. P u b l i c a ç ã o d o t e x t o De arte combinatória. Recebe o
título d e D o u t o r e m D i r e i t o e m A l t d o r f (nas cercanias

x x i ri
6'. lt\ Discurso de metafísica e outros textos.

de X u r e m b e r g ) c o m a teso De casibuspetplexis in jure extraía raízes), s u b m a r i n o s , b o m b a s de ar q u e p e r m i -


e, ao m e s m o t e m p o , o c o n v i d a m p a r a ser p r o f e s s o r t i r i a m n a v e g a r c o n t r a o v e n t o etc.
nessa u n i v e r s i d a d e (mas ele n à o aceita.). Filia-se a u m a 1671. P u b l i c a ç ã o de Hypothesis pbysica nova, composta da
sociedade secreta de interessados c m a l q u i m i a , da q u a l Theona motus ahstracti (dedicada à Academia Fran-
será s e c r e t á r i o p o r d o i s a n o s . cesa de C i ê n c i a s ) e d a Theoria motus concreti (dedica-
1667. R e e n c o n t r a o B a r ã o J. C. v o n B o i n e b u r g , p r o t e s t a n t e d a a R o y a i Society de L o n d r e s ) .
c o n v e r t i d o ao c a t o l i c i s m o , e x - m i n i s t r o c h e f e d o E l e i - 1672. E m m a r ç o o E l e i t o r d e M a i n z e n v i a L e i b n i z a Paris e m
t o r de M a i n z , J. P. v o n S c b ò n b o r n . L e i b n i z d e d i c a a m i s s ã o diplomática. Leibniz se e n c o n t r a c o m A r n a u l d e
B o i n e b u r g seu t e x t o Nova Metbodus disceclae docen-
M a l e b r a n c h e ; é i n i c i a d o nas m a t e m á t i c a s p o r H u y g e n s ;
daeque jurisprudentiae. Por i n t e r m é d i o d e B o i n e b u r g
c t e m a o c a s i ã o d e c o n s u l t a r os m a n u s c r i t o s m a t e m á -
c o n s e g u e a n o m e a ç ã o c o m o assistente legal d o c o n -
ticos de Pascal. Ern m a i o Luís X I V declara gueixa a H o -
s e l h e i r o legal d o Eleitor.
landa. E m d e z e m b r o o Barào de B o i n e b u r g m o r r e .
1668. Publicação, p o r i n t e r m é d i o d o B a r ã o de B o i n e b u r g , d a
1673- Entre j a n e i r o e m a r ç o v a i a L o n d r e s , o n d e e n c o n t r a
Confessio naiurae contra atbeisías. P r e s s i o n a d o pela
O l d e n b u r g e B o y l e , e é e l e i t o m e m b r o d a Royai So-
aliança e n t r e a H o l a n d a , a I n g l a t e r r a e a S u é c i a , Luís
ciety. E m f e v e r e i r o m o r r e o P r í n c i p e Eleitor de M a i n z ,
X I V assina a p a z d e A i x - d e - C h a p e l l e . L e i b n i z escreve
J. P h i l i p p . Escreve Confessio Philosopbi, que entrega
Consilium Aegyptiacum, u m p r o j e t o de c o n q u i s t a d o
a A r n a u l d . Apresenta sua m á q u i n a de calcular à A c a d e -
E g i l o para a Franca ( p a r a tirar Luís X I V da E u r o p a e d i -
m i a de C i ê n c i a s .
m i n u i r a p r e s s ã o francesa na f r o n t e i r a sudoeste d o
império a l e m ã o ) , m u i t o p a r e c i d o c o m o q u e N a p o l e ã o 1675-1676. Encontra Malebranche, Cordemoy, Foucher,
e x e c u t o u u m s é c u l o e m e i o depois. Projeto de Pemons- T s c h i r n a u s , V a n d e n E n d e , Clerselier ( q u e l h e c o n f i a
trationes Calbolicae, para a r e u n i ã o das Igrejas católi- m a n u s c r i t o s de Descartes), G a l l o i s ( d i r e t o r d o Journal
ca e p r o t e s t a n t e . Escreve Specimen demonstrai km um des Savants), Christian Huygens, entre outros. Traba-
politicamm pro eligendo rege Polonorum. lha n o cálculo infinitesimal.
1668-1()()9. Projeto para u m a revista, Semestria Litteraria, equi- 1676. A c e i t a o p o s t o d e B i b l i o t e c á r i o e C o n s e l h e i r o na Corte
valente ao Journal des Savants. Escreve Réflexions sur de Hanôver, oferecido pelo D u q u e Johann Friedrich
letablissement en Allemagne dime Académie ou So- v o n B r u n s w i c k - L u n c b u r g ( c a t ó l i c o ) , e d e i x a , e n t ã o , Pa-
cié té des sei ene es-, e Defensio Thnitatis per nova re- ris, p a s s a n d o p o r L o n d r e s ( o n d e e n c o n t r a C o l l i n s e
perta lógica. N e w t o n ) , p o r Haia ( o n d e conhece Espinosa) e p o r
1670. L e i b n i z é p r o m o v i d o ao cargo de assessor da C o r t e Amsterdà ( c o n h e c e o microscopista L e e u w e n h o e k ) . Es-
d c A p e l a ç õ e s d o e l e i t o r a d o de M a i n z . Escreve Secuti- c r e v e Quod Ens perfectissimum existit; traduz para o
tãs publica interna et externa ( u m p r o j e t o d e aliança l a t i m o Fédon e o Teeteto de P l a t ã o ; escreve Pacidius
dos estados d o I m p é r i o ) , Disse/fatio de stilo philoso- Philaletbi. Em d e z e m b r o chega a Hanôver.
pbico Nizolii, Von der Allmacbt. Escreve d u a s cartas a 1677. L e i b n i z escreve Caesarini Furstenerii Tractatus-, e En-
H o b b e s . I n v e n t a a m á q u i n a de calcular aritmética ( q u e tretien de Pbilarète et Eugène. M o r t e d e Espinosa.

xxiv XXV
Discurso de metafísico e outros textos.
G. U'. Leibniz

d e A u g s b u r g o , q u e incluía a Áustria, a Suécia e a m a i o -


1678. L e i b n i z é n o m e a d o C o n s e l h e i r o Áulieo (Jlofraí) em
ria d o s p r i n c i p a d o s a l e m ã e s .
Hanôver. Mantém c o r r e s p o n d ê n c i a c o m Bossuet et Spi-
1687. L e i b n i z viaja para a Itália passando p o r cidades a l e m ã s
n o l a . sobre a r e u n i ã o das Igrejas. Escreve Quidsil idi'C4
e p e l a Áustria e m b u s c a d e d o c u m e n t o s s o b r e a h i s -
e n o l a s s o b r e a Ética /de Espinosa.
tória da Casa d e B r u n s w i c k e sua l i g a ç ã o c o m a Casa
1679. Paz d e N i m è g u e . L e i b n i z escreve Dialogue entre un
Italiana d o Leste. E m F r a n k f u r t e n c o n t r a J o b Ludolf,
hahile politique et un ecelésiastique d'une pieté recon-
o r i e n t a l i s t a e C o n s e l h e i r o d o I m p e r a d o r . Escreve Re-
nue-, e t r a b a l h o s s o b r e a aritmética binária {De pro-
plique ã VAbbé Catelan (sobre a c o n s e r v a ç ã o d o m o v i -
gressioone dyadicá). M o r t e de H o b b e s .
m e n t o ) e Lettre sur un Príncipe general ( e m q u e ex-
1680. Morte do D u q u e Johann F r i e d r i c h ; seu i r m ã o Ernst p l i c a as leis da n a t u r e z a ) .
A u g u s t o s u b s t i t u i . Até 1684 viaja bastante a H a r z , e n -
1Ó88. Chega a V i e n a e m m a i o ( o n d e ficará até f e v e r e i r o d e
c a r r e g a d o d e fazer i n v e n ç õ e s práticas q u e a u x i l i e m a
1689). Retoma o c o m u t o c o m S p í n o l a , agora b i s p o d e
e x p l o r a ç ã o das m i n a s . Neustadt.
1682. Escreve Cnicum Optcae, Catoptricae et Dioptricae 1Ó89. E m o u t u b r o e n c o n t r a os m a t e m á t i c o s N a z a r i e A u z o u t ,
Principiam. C o n t r i b u i para a f u n d a ç ã o da p u b l i c a ç ã o e Padre G r i m a l d i . R e d a ç à o d e Pboranus e da Dyua-
Acta Hruditorui)} de Leipzig. mica de polentia. Recusa a d i r e ç ã o da b i b l i o t e c a d o
1683. Europa e m guerra; Viena é libertada dos turcos e m Vaticano.
12 d e s e t e m b r o . 1689-1690. Viaja a N á p o l e s , F l o r e n ç a , B o l o n h a , M o d e n a , Fer-
168-4. T r é g u a d e R a t i s b o n n e e m 15 d e agosto. L e i b n i z escre- rara; m a n t é m c o n t a t o c o m p e n s a d o r e s . Entre f e v e r e i -
ve Cotisultation touebaut la gtierre ou Vaccomode- r o e m a r ç o fica e m Veneza. Escreve De línea isoebrona
ment tivec la France, e Mars Chrislianissimus. Publica e De causa graviiatis et defensio sententiae suae con-
Nova metbodus pro maximis et mini mis ( e m q u e e x - tra Cartesiam>s.
p õ e o c á l c u l o i n f i n i t e s i m a l ) e Meditationes de cogni- 1690. R e t o r n a a H a n ô v e r d e p o i s d e u m a n o e m e i o d e v i a -
lione, veritate et ideís. gens ( e m q u e , e n t r e outras coisas, e s t u d o u g e o l o g i a , o
1685. R e v o g a ç ã o d o E d i t o d e Nantes. Leibniz escreve Remar- p e n s a m e n t o chinês, d e m o n s t r o u a priori a conservação
ques sur un livre intitule Nouveaux intêrets des Prin- d e força v i v a e t c ) .
ces de VF.nrope. E n o m e a d o h i s t o r i ó g r a f o d a Casa d e 1691. É n o m e a d o B i b l i o t e c á r i o d e W o l f e n b u t t e l p e l o D u q u e
Brunswick. A n t o n Ulrich. Leibniz retoma a correspondência c o m
1686. P u b l i c a ç ã o d e Brevis demonstratio erroris memorabi- B o s s u e t s o b r e a r e u n i ã o das Igrejas. Escreve Consul-
lis CartesiKno qual o p õ e sua t e o r i a física à d e Descar- tatio sur les Affaires générales ã lafin de la campag-
tes), T e r m i n a d e r e d i g i r o Discurso de metafísica e en- ne de 1691. De legihus naturae et vera aestimatione

via o s u m á r i o para A r n a u l d . Escreve a i n d a Syslema virium motricium coyitra Cartesianos e Protogaea. Ini-
cia c o r r e s p o n d ê n c i a c o m jesuítas d a C h i n a .
tbeologic\tm\ Generales Inquisitiones de anatysi no-
tionum et vetitatum. O s p a í s e s protestantes r e v i d a m a 1692. L e i b n i z c o n t r i b u i para t o r n a r Ernst A u g u s t e l e i t o r d e

r e v o g a ç ã o d o E d i t o d e Nantes c o m a f o r m a ç ã o d a Liga H a n ô v e r (desde d e 1685 p r o c u r o u conseguir u m " n o n o

xxvi r
XXVI
C. W. Leibinz Discam; de metafísica e outros textos

e l e i t o r a d o " q u e ficasse nas m ã o s d o s p r o t e s t a n t e s ) . e a história da A l e m a n h a . R o m p e d e f i n i t i v a m e n t e c o m


Inicia a amizade c o m a eleitora Sophie, irmã d a p r i n c e - Bossuet.
sa Elisabeth. fJdito de tolerância de fCang-hi, i m p e r a d o r 1702. G u e r r a c o n t r a a França e a Espanha (aliança d o I m p é -
da C h i n a , e m f a v o r d a religiosa cristã. L e i b n i z r e d i g e r i o R o m a n o - G e r m â n i c o , d a I n g l a t e r r a c da H o l a n d a ) .
Animadversiones in partem generalem principiam L e i b n i z escreve Considérations sur la doctríne dun
cartesianorum. esprit universel unique.
1693. R e d a ç à o d e Codex júris gentium diplomáticas Ccujo 1703. Início da r e d a ç ã o d o s Nouveau x Essa is sur iEntende-
p r e f á c i o é u m a a n á l i s e das n o ç õ e s d e justiça e de d i - ment Humain ( p u b l i c a d o a p e n a s e m 1765) e m q u e
r e i t o ) ; de Régie générale de la composition des mou- critica o Essay concerning buman understanding de
vements. Locke.
1694. R e d a ç ã o de De primae pbilosopbiae emendatione et 1704. M o r t e d c L o c k e .
notione substanciae. L e i b n i z r o m p e c o m Bossuet. 1705. L e i b n i z escreve Discours de la conformité de la foi
1695. Escreve Système nouveau de la nature et de la com- avec la raison. q u e será a i n t r o d u ç ã o da Teodicéia. Pu-
munication des substances. cuja p u b l i c a ç ã o n o Jour- b l i c a Considérations sur les príncipes de vie et sur les
nal des Savantsc seguida de vários Esclarecimentos. naturesplasliques. E x a m e d a n a t u r e z a dos caracteres
1696. Escreve Projet de Veducation d'uri Prince. chineses. Morte de S o p h i e Charlotte, rainha da Prússia.
1697. P u b l i c a ç ã o d e De renim originatione radicali. Escre-
1706. I n í c i o d a c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o jesuíta Des Bosses.
ve Tentamen Anagogicum.
1709. Escreve Causa Dei asserta per justitian ejus.
1698. P u b l i c a ç ã o d o De ipsa natura sive vi insita actioni-
1710. P u b l i c a ç ã o dos Essais de Theodicí>e sem o n o m e d o
husque creaturanim. M o r t e de Ernst A u g u s t , q u e é
autor.
s u c e d i d o p o r seu i r m ã o G e o r g L u d w i g . Retomada das
1711. E n c o n t r o c o m o Czar P e d r o , o G r a n d e , q u e o n o m e i a
d i s c u s s õ e s irênicas e n t r e as Igrejas protestantes e d a
Conselheiro Privado ( L e i b n i z deveria codificar e m o d e r -
c o r r e s p o n d ê n c i a c o m Bossuet. Inicia c o r r e s p o n d ê n c i a
nizar a l e g i s l a ç ã o ) . I n i c i a p r o j e t o de u m a A c a d e m i a d e
c o m D e Volder. I n i c i a a m i z a d e c o m a e l e i t o r a S o p h i e
C i ê n c i a s e m S ã o Petersburgo.
C h a r l o t t e , irmã de G e o r g L u d w i g . L e i b n i z c i r c u l a e m
Berlim e e m Hanôver. 1712-1714. L e i b n i z fica e m V i e n a , o n d e o i m p e r a d o r o n o -
m e i a seu C o n s e l h e i r o Particular.
1698-1699- Querelas sobre a i n v e n ç ã o d o cálculo infinitesimal.
1714. C o n h e c e o p r í n c i p e E u g ê n i o de S a b ó i a , para q u e m
1699. É n o m e a d o m e m b r o d a A c a d e m i a de Ciências dc Paris.
1700. F u n d a ç ã o da Sociedade de Ciências de B e r l i m de acor- f - d e d i c a os Princípios da, natureza e da graça. Escreve
d o c o m u m p r o j e t o d e L e i b n i z . L e i b n i z f u n d a o Mo- a Monadologia. M o r t e de A n t o n Ulrich e da eleitora
nailicher Auszug ( d i r i g i d o p o r seu s e c r e t á r i o E c k a r t ) . Sophie. E m 12 de agosto, G e o r g L u d w i g torna-se G e o r -
P u b l i c a ç ã o da t r a d u ç ã o francesa d e Coste d o Ensaio ge I na I n g l a t e r r a c se recusa a realizar o p e d i d o de
de Locke. Leibniz, que queria seguir c o m ele para a Inglater-
1701. L e i b n i z i n i c i a a p u b l i c a ç ã o dos d o c u m e n t o s q u e h a - ra. L e i b n i z se instala, e n t ã o , n o v a m e n t e e m H a n ô v e r .
via r e c o l h i d o s o b r e a história d a Casa d e B r u n s w i c k 1715. C o r r e s p o n d ê n c i a c o m C l a r k e .

XXY1II XXIX
. - G. W. Leibniz . .

1716. Lettre à M. de Remon d sur la théologie naturelle des


Cbinois. L e i b n i z e n v e l h e c e n o i s o l a m e n t o e é vítima
d e u m a crise d e g o t a . F,m 14 d e n o v e m b r o m o r r e e m
Hanôver e é enterrado miseravelmente.
DISCURSO D E METAFÍSICA

Tradução
MMÍ1LENA CHAU1

Revisão e noras
TUSSA MOURA LACERDA

XXX
/. Da perfeição divina e de que
Deus faz tudo da maneira mais
desejável (souhaitablej \

A n o ç ã o m a i s aceita e mais s i g n i f i c a t i v a q u e p o s s u í m o s
de D e u s e x p r i m e - s e m u i t o b e m nestes t e r m o s : D e u s é u m
ser a b s o l u t a m e n t e p e r f e i t o . N ã o se t e m c o n s i d e r a d o , p o -
2

rém, d e v i d a m e n t e , suas c o n s e q u ê n c i a s e, p a r a a p r o f u n d á -
las m a i s , c o n v é m n o t a r q u e h á na n a t u r e z a várias p e r f e i -
ç õ e s m u i t o d i f e r e n t e s , p o s s u i n d o - a s D e u s todas r e u n i d a s e
que cada u m a l h e p e r t e n c e n o g r a u s u p r e m o . É p r e c i s o
t a m b é m c o n h e c e r o q u e é a p e r f e i ç ã o . Eis u m a m a r c a b e m
segura d e l a , a saber: f o r m a s o u naturezas insuscetíveis d o
último g r a u n ã o s ã o p e r f e i ç õ e s , c o m o , p o r e x e m p l o , a n a -
tureza d o n ú m e r o o u d a f i g u r a ; p o i s o n ú m e r o m a i o r d e t o -
dos ( o u m e l h o r , o n ú m e r o dos n ú m e r o s ) , b e m c o m o a m a i o r
de t o d a s as figuras, i m p l i c a m c o n t r a d i ç ã o ; mas a m á x i m a
ciência e a onipotência não encerram qualquer impossibili-
dade. Por c o n s e g u i n t e , o p o d e r e a c i ê n c i a s ã o p e r f e i ç õ e s , 3

e e n q u a n t o p e r t e n c e m a D e u s n à o t ê m l i m i t e s . D o n d e se
segue q u e D e u s , p o s s u i n d o s u p r e m a e i n f i n i t a s a b e d o r i a ,
age da m a n e i r a m a i s p e r f e i t a , n ã o s ó e m s e n t i d o m e t a f í s i c o ,
mas t a m b é m m o r a l m e n t e f a l a n d o , p o d e n d o , r e l a t i v a m e n t e
a n ó s , dizer-se q u e , q u a n t o mais e s t i v e r m o s esclarecidos e
i n f o r m a d o s s o b r e as o b r a s d e D e u s , t a n t o mais d i s p o s t o s
estaremos a a c h á - l a s e x c e l e n t e s e i n t e i r a m e n t e satisfatórias
e m t u d o o q u e p o s s a m o s desejar (souhaíter).

3
Discurso dc metafísica e outros textos

//. Contra os que sustentam que não apenas restasse d e t e r m i n a d o p o d e r d e s p ó t i c o , se a v o n t a d e


substituísse a r a z ã o e se, c o n f o r m e a d e f i n i ç ã o dos t i r a n o s ,
há bondade nas obras de Deus, ou o q u e agrada ao m a i s f o n e fosse p o r isso m e s m o justo?
então que as regras da bondade e A d e m a i s , p a r e c e q u e t o d a v o n t a d e s u p õ e a l g u m a r a z ã o de
da beleza são arbitrárias. q u e r e r , r a z ã o esta n a t u r a l m e n t e a n t e r i o r à v o n t a d e . Eis p o r
q u e m e p a r e c e i n t e i r a m e n t e estranha a e x p r e s s ã o d e a l g u n s
o u t r o s f i l ó s o f o s q u e c o n s i d e r a m s i m p l e s efeitos d a v o n t a -
7

d e de D e u s as v e r d a d e s eternas d a m e t a f í s i c a e d a g e o m e -
tria e, p o r c o n s e g u i n t e , t a m b é m as regras da b o n d a d e , da jus-
tiça c d a p e r f e i ç ã o . A m i m , p e l o c o n t r á r i o , m e parece tào-
s o m e n t e c o n s e q u ê n c i a s d e seu e n t e n d i m e n t o , o q u a l segu-
A s s i m , a f a s t o - m e m u i t o da o p i n i ã o d o s q u e s u s t e n t a m r a m e n t e e m n a d a d e p e n d e d a sua v o n t a d e , assim c o m o a
q u e n ã o há q u a i s q u e r regras d e b o n d a d e e d e p e r f e i ç ã o na sua e s s ê n c i a t a m b é m dela n ã o d e p e n d e .
natureza das coisas o u nas ideias q u e D e u s t e m delas, e q u e
as obras d i v i n a s s ã o boas a p e n a s pela r a z à o f o r m a l q u e
D e u s as fez. Se assim fosse, D e u s , q u e b e m sabe ser o seu
a u l o r , n ã o precisaria c o n t e m p l a d a s d e p o i s e achadas boas,
c o m o t e s t e m u n h a a Sagrada Escritura , q u e p a r e c e ter r e -
1

c o r r i d o a esta a n t r o p o l o g i a apenas p a r a n o s m o s t r a r q u e se
c o n h e c e sua e x c e l ê n c i a o l h a n d o - a s nelas mesmas, m e s m o
q u a n d o n ã o se f a ç a r e f l e x ã o a l g u m a s o b r e essa p u r a d e n o -
m i n a ç ã o e x t r í n s e c a q u e as refere à sua causa. Isto é t a n t o
mais v e r d a d e i r o q u a n t o é p e l a c o n s i d e r a ç ã o das o b r a s q u e
se p o d e d e s c o b r i r o o p e r á r i o . P o r t a n t o , é p r e c i s o q u e estas
obras t r a g a m e m si o ca rate r de D e u s . C o n f e s s o q u e a o p i -
n i ã o contrária m e p a r e c e e x t r e m a m e n t e p e r i g o s a e b a s t a n -
te s e m e l h a n t e à d o s últimos i n o v a d o r e s , cuja o p i n i ã o é a
5

b e l e z a d o u n i v e r s o e a b o n d a d e atribuída p o r n ó s às o b r a s
de D e u s n ã o passarem d e q u i m e r a s dos h o m e n s q u e c o n c e -
b e m D e t i s à sua m a n e i r a . T a m b é m m e p a r e c e q u e a f i r m a n -
d o q u e as coisas s ã o boas t ã o - s ó p o r v o n t a d e d i v i n a e n ã o
p o r regra d e b o n d a d e d e s t r ó b s e , s e m pensar, t o d o o a m o r
d e D e u s e t o d a a sua glória''. Pois, p a r a q u e l o u v á - l o p e l o
q u e fez, se seria i g u a l m e n t e louvável se fizesse p r e c i s a m e n -
te o contrário? O n d e , p o i s , sua justiça e s a b e d o r i a , se a f i n a l

4 5
Discurso de metafísica e outros textos

///. Contra os que crêem que existir t ã o p e r f e i t o q u e n à o possa h a v e r a l g o mais p e r f e i t o ,


o q u e é u m e r r o " . A c r e d i t a m , t a m b é m , salvaguardar assim
Deus poderia fazer melhor.
a l i b e r d a d e d e D e u s , c o m o se n ã o c o n s t i t u í s s e a s u p r e m a
l i b e r d a d e a g i r c o m p e r f e i ç ã o s e g u n d o a razão soberana.
Pois a c r e d i t a r q u e D e u s age e m a l g o s e m h a v e r n e n h u m a
razão da sua v o n t a d e , a l é m d e parecer d e t o d o i m p o s s í v e l ,
é o p i n i ã o p o u c o c o n f o r m e a sua glória. S u p o n h a m o s , p o r
e x e m p l o , q u e Deus escolha entre A c B c t o m e A s e m r a z à o
a l g u m a d e o p r e f e r i r a B; d i g o ser esta a ç ã o d e D e u s p e l o
m e n o s i n d i g n a d e l o u v o r , p o r q u e t o d o l o u v o r d e v e basear-
se e m a l g u m a r a z ã o n ã o existente a q u i ex bipotbesi. Susten-
De forma alguma poderei também aprovar a opinião to, p e l o c o n t r á r i o , n ã o fazer D e u s coisa a l g u m a p e l a q u a l
de a l g u n s m o d e r n o s " q u e o u s a d a m e n t e s u s t e n t a m q u e a q u i - n ã o m e r e ç a ser g l o r i f i c a d o ,
l o q u e D e u s faz n ã o p o s s u i t o d a p e r f e i ç ã o p o s s í v e l e q u e
D e u s p o d e r i a ter a g i d o m u i t o m e l h o r . Pois p a r e c e - m e q u e
as c o n s e q u ê n c i a s dessa o p i n i ã o s ã o i n t e i r a m e n t e contrárias
à glória d e D e u s : Uti minus malum habet rationem bani,
ita minus bonurn habet rationem malef. É agir i m p e r f e i t a -
m e n t e agir c o m m e n o s p e r f e i ç ã o d o q u e se teria p o d i d o . É
desdizer a obra d e u m arquitelo mostrar q u e p o d e r i a fazê-
la m e l h o r . Ataca-se, a i n d a , a Sagrada Escritura, q u e n o s g a -
rante a b o n d a d e das obras d e Deus, P o r q u e , se isto fosse s u -
f i c i e n t e , d e s c e n d o as i m p e r f e i ç õ e s ao i n f i n i t o , d e q u a l q u e r
m o d o q u e D e u s tivesse f e i t o sua o b r a , esta teria s i d o s e m -
pre b o a , c o m p a r a d a às m e n o s perfeitas. P o r é m , u m a coisa
n â o é l o u v á v e l q u a n d o o é apenas dessa m a n e i r a . C r e i o ,
t a m b é m , h a v e r u m a i n f i n i d a d e d e passagens d a Sagrada
Escritura e d o s Santos Padres f a v o r á v e i s a m i n h a o p i n i ã o ,
mas n â o m u i t a s à desses m o d e r n o s , q u e , n o m e u e n t e n -
1 0

der, é d e s c o n h e c i d a d c t o d a a a n t i g u i d a d e e baseada ape-


nas n o d i m i n u t o c o n h e c i m e n t o q u e t e m o s d a h a r m o n i a ge-
ral d o u n i v e r s o e das r a z õ e s ocultas na c o n d u t a d e D e u s , f a -
z e n d o - n o s t e i n e r a r i a m e n t e j u l g a r q u e muitíssimas coisas p o -
d e r i a m ser m e l h o r a d a s . A d e m a i s , esses m o d e r n o s i n s i s t e m
e m a l g u m a s sutilezas p o u c o sólidas, p o i s i m a g i n a m n a d a

6
Discurso de metafísica e outros textos.

IV. O amor de Deus exige completa p r ó x i m o e, p o r assim dizer, ao alcance. P o r q u e , m e s m o


q u a n d o o a c o n t e c i m e n t o p o r v e n t u r a mostrasse n ã o q u e r e r
satisfação e aquiescência no tocante D e u s , p r e s e n t e m e n t e , q u e a nossa b o a v o n t a d e t e n h a o seu
ao que ele faz, sem que por isso seja ©feito, d a q u i n ã o se c o n c l u i n ã o h a v e r D e u s q u e r i d o q u e
preciso ser quietista. nos f i z é s s e m o s o q u e f i z e m o s . Pelo contrário, c o m o é o m e -
lhor d e t o d o s o s s e n h o r e s , n a d a mais e x i g e a l e m da reta i n -
t e n ç ã o e a ele p e r t e n c e c o n h e c e r a h o r a e o l u g a r p r ó p r i o s
para fazer t r i u n f a r os b o n s d e s í g n i o s .

O c o n h e c i m e n t o g e r a l desta g r a n d e v e r d a d e , q u e D e u s
age s e m p r e d a m a n e i r a mais p e r f e i t a e m a i s d e s e j á v e l p o s -
sível, n o m e u e n t e n d e r é o f u n d a m e n t o d o a m o r q u e d e v e -
m o s a D e u s s o b r e t o d a s as coisas, p o i s a q u e l e q u e ama
busca a sua s a t i s f a ç ã o na f e l i c i d a d e o u p e r f e i ç ã o d o o b j e t o
a m a d o e das suas a ç ò e s . Idem velle et idem nolle vera ami-
citia est . Penso ser difícil bem-amar a D e u s q u a n d o n ã o se
u

está d i s p o s t o a q u e r e r o q u e ele q u e r , m e s m o q u a n d o fos-


se possível m o d i f i c á - l o . C o m e f e i t o , os q u e n â o e s t ã o satis-
feitos c o m o q u e ele faz m e p a r e c e m s e m e l h a n t e s à q u e l e s
súditos d e s c o n t e n t e s cuja i n t e n ç ã o n ã o d i f e r e m u i t o d a d o s
r e b e l d e s \, p o r t a n t o , q u e , s e g u n d o estes princí-
1

p i o s , para agir e m c o n f o r m i d a d e c o m o a m o r d e D e t i s n ã o
basta ter p a c i ê n c i a à força, mas é p r e c i s o estar v e r d a d e i r a -
m e n t e satisfeito c o m t u d o q u a n t o nos s u c e d e u , s e g u n d o
sua v o n t a d e . E n t e n d o esta a q u i e s c ê n c i a r e l a t i v a m e n t e ao
passado, p o r q u e , q u a n t o a o f u t u r o , n ã o é p r e c i s o ser q u i e -
tista, n e m esperar, r i d i c u l a m e n t e , d e b r a ç o s c r u z a d o s , o
q u e D e u s fará, s e g u n d o a q u e l e s o f i s m a d e n o m i n a d o p e l o s
a n t i g o s lógon ãergort\ razão preguiçosa, mas é m i s t e r
agir s e g u n d o a v o n t a d e p r e s u n t i v a ^ d e D e u s , t a n t o q u a n t o
1

p o d e m o s julgá-la. e s f o r ç a n d o - n o s c o m t o d o o n o s s o p o d e r
p o r c o n t r i b u i r para o b e m geral e particularmente para o
a p r i m o r a m e n t o e p e r f e i ç ã o d o q u e nos toca o u n o s está

8 9
Discurso cie metafísica e outros textos.

seja a f e l i c i d a d e d o s e s p í r i t o s e d e q u e D e u s o e x e r c i t e na
V. Em que consistem as regras de medida e m q u e a h a r m o n i a geral o p e r m i t a . Sobre este p o n -
perfeição da conduta divina e como to d i r e m o s a l g o m a i s , c m b r e v e . N o q u e se refere à s i m p l i -
cidade das vias d e D e u s , esta se realiza p r o p r i a m e n t e e m
a simplicidade das vias equilibra-se
r e l a ç ã o aos m e i o s , c o m o , p e l o c o n t r á r i o , a v a r i e d a d e , r i q u e -
com a riqueza de efeitos. za o u a b u n d â n c i a se r e a l i z a m r e l a t i v a m e n t e aos f i n s o u e l e i -
tos *. E a m b a s as coisas d e v e m e q u i l i h r a r - s e , c o m o os gas-
1

tos d e s t i n a d o s a u m a c o n s t r u ç ã o c o m o t a m a n h o e a Me-
za, nela r e q u e r i d o s . V e r d a d e é n a d a custar a D e u s , b e m m e -
nos a i n d a d o q u e a u m f i l ó s o f o q u e l e v a n t a h i p ó t e s e s para
a f á b r i c a d o seu m u n d o i m a g i n á r i o , pois p a r a D e u s é s u f i -
ciente d e c r e t a r para fazer s u r g i r u m m u n d o r e a l . E m m a t é -
É .suficiente, p o r t a n t o , ter e m D e u s esta c o n f i a n ç a : ele
ria de s a b e d o r i a , p o r é m , os d e c r e t o s o u h i p ó t e s e s r e p r e s e n -
t u d o faz p a r a o m e l h o r e nada p o d e r á p r e j u d i c a r a q u e m o
tam os gastos, à m e d i d a q u e s à o m a i s i n d e p e n d e n t e s u n s
ama. C o n h e c e r , p o r é m , e m p a r t i c u l a r , as r a z õ e s q u e p u d e -
dos o u t r o s , p o r q u e m a n d a a r a z ã o evitar a m u l t i p l i c i d a d e
ram m o v ê - l o a e s c o l h e r esta o r d e m d o u n i v e r s o , p e r m i t i r
nas h i p ó t e s e s o u p r i n c í p i o s , q u a s e c o m o e m a s t r o n o m i a ,
os p e c a d o s e d i s p e n s a r as suas g r a ç a s salutares d e u m a d e -
onde o sistema mais s i m p l e s é s e m p r e p r e f e r i d o .
t e r m i n a d a m a n e i r a , eis o q u e ultrapassa as f o r ç a s d e u m es-
pírito f i n i t o , m o r m e n t e se ele n à o t i v e r a l c a n ç a d o , a i n d a , o
g o z o d a v i s ã o d e D e u s . E n t r e t a n t o , p o d e m - s e fazer a l g u -
mas c o n s i d e r a ç õ e s gerais a respeito d a c o n d u t a da Providên-
cia n o g o v e r n o das coisas. Pode-se d i z e r q u e a q u e l e q u e
age p e r f e i t a m e n t e é s e m e l h a n t e a u m e x c e l e n t e g e ô m e t r a ,
q u e sabe e n c o n t r a r as m e l h o r e s c o n s t r u ç õ e s d e u m p r o b l e -
ma; a u m b o m a r q u i t e t o , q u e arranja o l u g a r e o alicerce,
destinados ao e d i f í c i o , da m a n e i r a mais vantajosa, n a d a d e i -
x a n d o d e s t o a n t e o u d e s t i t u í d o d e t o d a a b e l e z a de q u e é
suscetível; a u m b o m p a i d e família, q u e e m p r e g a o s seus
b e n s d e f o r m a a n a d a ter i n c u l t o n e m estéril; a u m m a q u i -
nista h a b i l i d o s o , q u e a t i n g e seu f i m p e l o c a m i n h o m e n o s
e m b a r a ç o s o q u e se p o d i a escolher; a u m s á b i o autor, q u e
encerra o m á x i m o d e r e a l i d a d e n o m í n i m o p o s s í v e l d e v o -
l u m e s . O r a , os mais p e r f e i t o s d e t o d o s os seres e os q u e
16

o c u p a m m e n o s v o l u m e , isto é , os q u e m e n o s se e s t o r v a m ,
^ào os e s p í r i t o s ' , cujas p e r f e i ç õ e s s à o as v i r t u d e s . Eis p o r
1

q u e n ã o se d e v e d u v i d a r d e q u e o p r i n c i p a l f i m d e D e u s

10
Discurso de metafísica e outros textos.

m u n d o , este teria s i d o s e m p r e r e g u l a r e d e n t r o d e certa o r -


VI. Deus nada faz fora da ordem e nem d e m geral. D e u s escolheu, p o r é m , o mais p e r f e i t o , quer dizer,
mesmo é possível forjar acontecimentos uo m e s m o t e m p o o mais s i m p l e s e m h i p ó t e s e s e o m a i s r i c o
que não sejam regulares. e m f e n ó m e n o s , tal c o m o seria o caso de unia l i n h a georoéíri-
C(i d e c o n s t r u ç ã o fácil e d e p r o p r i e d a d e s e efeitos espantosos
e de g r a n d e e x t e n s ã o . R e c o r r o a estas c o m p a r a ç õ e s para es-
b o ç a r a l g u m a i m p e r f e i t a s e m e l h a n ç a c o m a sabedoria d i v i -
na e d i z e r a l g o a f i m d e p o d e r , p e l o m e n o s , e l e v a r o n o s s o
espírito a c o n c e b e r d e a l g u m m o d o o q u e n ã o se saberia b e m
e x p r i m i r . Mas d e m a n e i r a a l g u m a p r e t e n d o e x p l i c a r assim o
g r a n d e mistério d e q u e d e p e n d e t o d o o u n i v e r s o .

As v o n t a d e s o u a ç õ e s d e D e u s riividenvse, c o m u m e n -
te, e m ordinárias e e x t r a o r d i n á r i a s . Mas é b o m c o n s i d e r a r -
se q u e D e u s nada tàz fora d a o r d e m . A s s i m , a q u i l o q u e é
t i d o p o r e x t r a o r d i n á r i o , o é apenas r e l a t i v a m e n t e a a l g u m a
o r d e m p a r t i c u l a r estabelecida e n t r e as criaturas, p o i s q u a n -
t o à o r d e m u n i v e r s a l t u d o está e m c o n f o r m i d a d e c o m ela '. 1

É t ã o v e r d a d e i r o isto q u e , n ã o s ó nada a c o n t e c e n o m u n d o
q u e seja a b s o l u t a m e n t e irregular, mas n e m s e q u e r tal se p o -
d e r i a forjar S u p o n h a m o s , p o r e x e m p l o , q u e a l g u é m lance
ao acaso m u i t o s p o n t o s s o b r e o p a p e l , c o m o os q u e exer-
c e m a arte ridícula d a g e o m a n c i a . D i g o q u e é possível e n -
c o n t r a r u m a l i n h a g e o m é t r i c a cuja n o ç ã o seja c o n s t a n t e e
u n i f o r m e s e g u n d o u m a certa regra, d e m a n e i r a a passar
esta l i n h a p o r t o d o s estes p o n t o s e na m e s m a o r d e m e m q u e
a m ã o os marcara, b se a l g u é m traçar, d c u m a s ó vez, u m a
l i n h a o r a rela. ora circular, o r a d e q u a l q u e r o u t r a n a t u r e z a ,
é p o s s í v e l e n c o n t r a r a n o ç ã o , regra o u e q u a ç ã o c o m u m a
t o d o s os p o n t o s desta l i n h a , m e r c ê da q u a l essas m e s m a s
m u d a n ç a s d e v e m acontecer. N ã o existe, p o r e x e m p l o , r o s t o
a l g u m cujo c o n t o r n o nào faça parte de uma linha g e o m é -
t r i c a e n ã o possa desenhar-se d e u m s ó t r a ç o p o r c e r t o m o -
v i m e n t o r e g u l a d o . Mas, q u a n d o u m a regra é m u i t o c o m p l e -
xa, tem-se p o r irregular o q u e lhe está c o n f o r m e . Assim,
p o d e - s e d i z e r q u e , de q u a l q u e r m a n e i r a q u e D e u s criasse o

13
12
Discurso de metafísica e outros textos.

existir, f i n a l m e n t e , m u i t o m ai s p e r f e i ç ã o e m t o d a a série d o
VIL Que os milagres são conformes que se t o d o o m a l n ã o tivesse s u c e d i d o , d e v e - s e d i z e r q u e
â ordem geral, embora contrários âs Deus a p e r m i t e , e n ã o q u e ele a quer, e m b o r a c o n c o r r a p a r a
máximas subalternas, e do que Deus ela p o r causa das leis n a t u r a i s q u e e s t a b e l e c e u e p o r q u e
quer ou permite por vontade geral sabe tirar daí u m b e m m a i o r .

ou particular

O r a , v i s t o nada se p o d e r fazer fora da o r d e m , p o d e - s e


d i z e r q u e os m i l a g r e s " t a m b é m e s t ã o na o r d e m c o m o as
2

o p e r a ç õ e s n a t u r a i s , assim d e n o m i n a d a s p o r q u e e s t ã o e m
c o n f o r m i d a d e c o m certas m á x i m a s s u b a l t e r n a s , a q u e cha-
m a m o s n a t u r e z a das coisas; p o i s se p o d e d i z e r q u e esta na-
tureza é a p e n a s u m c o s t u m e d e D e u s , d o q u a l p o d e d i s -
pensar-se, p o r causa d e u m a r a z ã o m a i s f o r t e d o q u e a q u e
o m o v e u a scrvir-se destas m á x i m a s . Q u a n t o às v o n t a d e s
gerais o u p a r t i c u l a r e s , c o n f o r m e as e n c a r e m o s , p o d e - s e d i -
21

zer q u e D e u s t u d o faz s e g u n d o a sua v o n t a d e m a i s geral,


c o n f o r m e à m ais p e r f e i t a o r d e m q u e e s c o l h e u ; mas p o d e -
se t a m b é m d i z e r q u e t e m v o n t a d e s p a r t i c u l a r e s , e x c e ç õ e s
dessas m á x i m a s s u b a l t e r n a s s o br e dita s , p o r q u e a ma i s ge-
ral das leis de D e u s , r e g u l a d o r a d e t o d a a série d o u n i v e r -
so, n â o t e m e x c e ç à o . Pode-se d i z e r a i n d a , t a m b é m , q u e
D e u s q u e r t u d o o q u e é o b j e t o d e sua v o n t a d e p a r t i c u l a r ;
mas q u a n t o aos objetos d e sua v o n t a d e g e r a l , tais c o m o as
a ç õ e s das o u t r a s criaturas, p a r t i c u l a r m e n t e das r a c i o n a i s ,
c o m as q u a i s D e u s q u e r c o n c o r r e r , é p r e c i s o d i s t i n g u i r : se
22

a a ç a o é b o a e m si, p o d e - s e d i z e r q u e D e u s a q u e r e o r d e -
na a l g u m a s vezes, m e s m o q u e n ã o a c o n t e ç a ; p o r é m , se é
m á e m si e s ó p o r a c i d e n t e se t o r n a b o a , p o r q u e a série das
coisas e e s p e c i a l m e n t e o castigo e a r e p a r a ç ã o c o r r i g e m sua
m a l i g n i d a d e e r e c o m p e n s a m seu m a l c o m j u r o s , d e sorte a

14 15
Discurso de metafísica e outros textos

VIÍL Explica-se em que consiste pMru c o m p r e e n d e r e fazer d e d u z i r d e s i t o d o s os p r e d i c a -

a noção de uma substância individual dor do sujeito a q u e se a t r i b u i esta noção '"; ao passo q u e o
2

iCidente é u m ser c u j a n o ç ã o n ã o c o n t é m t u d o q u a n t o se
afim de se distinguirem as ações pode atribuir ao sujeito a q u e se a t r i b u i esta n o ç ã o . A s s i m ,
de Deus e as das criaturas. •bstraindo d o sujeito, a q u a l i d a d e d e r e i p e r t e n c e n t e a A l e -
Kundre M a g n o n ã o é s u f i c i e n t e m e n t e d e t e r m i n a d a para u m
Indivíduo, n e m c o n t é m as outras q u a l i d a d e s d o m e s m o su-
jeito, n e m t u d o q u a n t o c o m p r e e n d e a n o ç à o deste p r í n c i p e ,
Uo passo q u e Deus, v e n d o a n o ç à o i n d i v i d u a l o u a ecceidade
de A l e x a n d r e , nela vê ao m e s m o t e m p o o f u n d a m e n t o e a ra-
zão de todos os p r e d i c a d o s q u e v e r d a d e i r a m e n t e dele se p o -
É m u i t o difícil d i s t i n g u i r as a ç ò e s d e D e u s das a ç õ e s dem afirmar, c o m o . p o r e x e m p l o , q u e v e n c e r á D a r i o e P o r o ,
das criaturas, p o i s há q u e m creia q u e D e u s faz t u d o . en- e até m e s m o c o n h e c e nela a priori (e n ã o p o r e x p e r i ê n c i a )
quanto o u t r o s i m a g i n a m eme c o n s e r v a a p e n a s a f o r ç a q u e Me morreu d e m o r t e n a t u r a l o u e n v e n e n a d o , o q u e n ó s s ó
d e u às c r i a t u r a s . A s e q u ê n c i a m o s t r a r á c o m o se p o d e m d i -
21
podemos saber pela história. I g u a l m e n t e , q u a n d o se c o n s i -
zer a m b a s as coisas. O r a , v i s t o as a ç õ e s e p a i x õ e s p e r t e n c e - dera c o n v e n i e n t e m e n t e a c o n e x ã o das coisas, p o d e - s e afir-
r e m p r o p r i a m e n t e às s u b s t â n c i a s i n d i v i d u a i s (actiones sunt mar q u e há d e s d e t o d a a e t e r n i d a d e na a l m a de A l e x a n d r e
suppositoru m), t o r n a - s e n e c e s s á r i o e x p l i c a r o q u e é tal vestígios d e t u d o q u a n t o l h e s u c e d e u , marcas d e t u d o o q u e
s u b s t â n c i a . É c o r r e t o , q u a n d o se a t r i b u i g r a n d e n ú m e r o d e lhe s u c e d e r á e, a i n d a , rastos de t u d o q u a n t o se passa n o
p r e d i c a d o s a u m m e s m o s u j e i t o e este n à o é a t r i b u í d o a ne- universo, e m b o r a s ó a D e u s caiba r e c o n h e c ê - l o s t o d o s .
n h u m outro, chamá-lo substância i n d i v i d u a l , isto, porém,
n à o é s u f i c i e n t e , e tal e x p l i c a ç ã o é apenas n o m i n a l - ' . É p r e -
ciso considerar, p o r t a n t o , o q u e é ser a t r i b u í d o v e r d a d e i r a -
m e n t e a u m c e r t o sujeito. O r a , consta q u e t o d a p r e d i c a ç ã o
v e r d a d e i r a t e m algum f u n d a m e n t o na n a t u r e z a das coisas,
c q u a n d o u m a p r o p o s i ç ã o n à o é idêntica, isto é, q u a n d o o
p r e d i c a d o n à o está c o m p r e e n d i d o e x p r e s s a m e n t e n o sujei-
to, é p r e c i s o q u e esteja c o m p r e e n d i d o n e l e v i r t u a l m e n t e . A
isto c h a m a m o s f i l ó s o f o s in-esse, d i z e n d o estar o p r e d i c a d o
n o sujeito. É p r e c i s o , p o i s , o t e r m o d o s u j e i t o c o n t e r s e m -
p r e o d o p r e d i c a d o , d e tal f o r m a q u e q u e m e n t e n d e r p e r -
f e i t a m e n t e a n o ç ã o d o sujeito j u l g u e t a m b é m q u e o p r e d i -
cado lhe pertence. Isto posto, p o d e m o s dizer que a nature-
za de u m a s u b s t â n c i a i n d i v i d u a l o u de u m ser c o m p l e t o
consiste e m ter u m a n o ç à o t ã o p e r f e i t a q u e seja s u f i c i e n t e

16
Discurso de metafísica e outros textos.

u n i v e r s o , passado, p r e s e n t e o u f u t u r o , o q u e t e m certa se-


IX. Cada substância singular exprime melhança c o m uma percepção o u conhecimento infinito; e
todo o universo à sua maneira; e em c o m o todas as outras s u b s t â n c i a s p o r sua vez e x p r i m e m esta
sua noção estão compreendidos todos e a ela se a c o m o d a m , p o d e - s e d i z e r q u e ela estende seu p o -
os seus acontecimentos com todas d e r a t o d a s as o u t r a s , à i m i t a ç ã o da o n i p o t e n c i a d o C r i a d o r .

as circunstâncias e toda a série


das coisas exteriores.

Seguem-se d a q u i vários p a r a d o x o s c o n s i d e r á v e i s , e n -
tre o u t r o s , p o r e x e m p l o , n à o ser v e r d a d e d u a s s u b s t â n c i a s
a s s e m e l h a r e m - s e c o m p l e t a m e n t e e d i f e r i r e m apenas solo
numero-, e o q u e Santo T o m á s a f i r m a neste p o n t o d o s a n -
jos o u i n t e l i g ê n c i a s (quod ibi omne indwiduum sit specie
infimaf' é v e r d a d e d e todas as s u b s t â n c i a s , d e s d e q u e se
t o m e a d i f e r e n ç a e s p e c í f i c a c o m o a t o m a m os g e ó m e t r a s
r e l a t i v a m e n t e às suas f i g u r a s ; item, q u e u m a s u b s t â n c i a s ó
poderá c o m e ç a r p o r criação, e só por aniquilamento pere-
cer; n â o se d i v i d i r u m a s u b s t â n c i a e m d u a s , n e m de d u a s
se f o r m a r u m a , e assim, n a t u r a l m e n t e , o n ú m e r o d e subs-
tâncias n ã o a u m e n t a n e m d i m i n u i , e m b o r a f r e q u e n t e m e n t e
elas se t r a n s f o r m e m . A d e m a i s , t o d a s u b s t â n c i a é c o m o u m
m u n d o c o m p l e t o e c o m o u m espelho de Deus, o u melhor,
d c t o d o o u n i v e r s o , e x p r e s s o p o r cada u m a à sua m a n e i -
27

ra, q u a s e c o m o u m a mesma c i d a d e é r e p r e s e n t a d a d i v e r s a -
m e n t e c o n f o r m e as d i f e r e n t e s s i t u a ç õ e s d a q u e l e q u e a o l h a .
A s s i m , de c e r t o m o d o , o u n i v e r s o é m u l t i p l i c a d o tantas ve-
zes q u a n t a s s u b s t â n c i a s h o u v e r , c a glória de D e u s i g u a l -
m e n t e m u l t i p l i c a d a p o r todas essas r e p r e s e n t a ç õ e s d e sua
o b r a c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e s . Pode-se até d i z e r q u e t o d a
s u b s t â n c i a traz d e certa m a n e i r a o c a r á t e r d a s a b e d o r i a i n -
finita e d a o n i p o t e n c i a d e D e u s e t m i t a - o q u a n t o p o d e . Pois
exprime, embora confusamente, tudo o que acontece n o

18
Discurso de metafísica e outros te.xtos

lhas de D e u s . N o e n t a n t o , assim c o m o u m g e ô m e t r a n ã o t e m
X Que há algo sólido na opinião das necessidade d e e m b a r a ç a r o e s p í r i t o n o f a m o s o l a b i r i n t o da
formas substanciais, mas que estas c o m p o s i ç ã o d o contínuo, e n e n h u m filósofo moral, c ainda
formas não alteram em nada os m e n o s u m j u r i s c o n s u l t o o u p o l í t i c o , precisa e n t r a r a f u n d o
fenómenos e não devem de modo nas g r a n d e s d i f i c u l d a d e s existentes na c o n c i l i a ç ã o d o l i v r c -
arbítrio c o m a p r o v i d ê n c i a d e D e u s , v i s t o p o d e r o g c ô m e -
algum ser empregadas para a Ira t e r m i n a r t o d a s as suas d e m o n s t r a ç õ e s e o político t o d a s
explicação dos efeitos particulares. as suas d e l i b e r a ç õ e s s e m n e n h u m deles e n t r a r nestas d i s -
c u s s õ e s , q u e , c o n t u d o , s à o n e c e s s á r i a s e i m p o r t a n t e s na f i -
losofia e t e o l o g i a ; d o m e s m o m o d o p o d e u m físico e x p l i c a r
as e x p e r i ê n c i a s s e r v i n d o - s e q u e r das e x p e r i ê n c i a s m a i s
Parece q u e t a n t o os a n t i g o s c o m o m u i t a s pessoas há- simples já realizadas, q u e r das d e m o n s t r a ç õ e s g e o m é t r i c a s
beis e a c o s t u m a d a s a m e d i t a ç õ e s p r o f u n d a s , q u e há s é c u - e mecânicas, sem necessidade d o recurso a considerações
los e n s i n a r a m t e o l o g i a e f i l o s o f i a , a l g u m a s s e n d o r e c o m e n - gerais, q u e p e r t e n c e m a u m a o u t r a esfera; e se recorre, p a r a
d á v e i s pela sua s a n t i d a d e , t i v e r a m a l g u m c o n h e c i m e n t o d o esse fim. a o c o n c u r s o d e D e u s , o u e n t ã o de a l g u m a a l m a ,
q u e a c a b a m o s de dizer. Eis p o r q u e i n t r o d u z i r a m e m a n t i - arqueou o u t r a coisa desta natureza, é tào extravagante c o m o
v e r a m as f o r m a s substanciais-* tào d e s a c r e d i t a d a s a t u a l - q u e m n u m a i m p o r t a n t e d e l i b e r a ç ã o prática quisesse e n t r a r
m e n i e . Porém, n ã o se afastam tanto da v e r d a d e n e m s ã o t ã o e m g r a n d e s r a c i o c í n i o s s o b r e a natureza d o d e s t i n o e da
ridículos c o m o i m a g i n a o c o m u m de nossos n o v o s f i l ó s o - nossa l i b e r d a d e . C o m e f e i t o , os h o m e n s c o m e t e m c o m fre-
fos. C o n c o r d o q u e a c o n s i d e r a ç ã o destas f o r m a s n o p o r m e - q u ê n c i a esta falta, i n c o n s i d e r a d a m e n t e , q u a n d o e m b a r a ç a m
n o r da física é inútil e q u e n ã o se d e v e e m p r e g á - l a s na ex- o espírito na c o n s i d e r a ç ã o d a f a t a l i d a d e , e m e s m o , p o r v e -
p l i c a ç ã o d o s f e n ó m e n o s e m p a r t i c u l a r . Eis o n d e f a l h a r a m zes, afastam-se p o r este m o t i v o d e a l g u m a b o a r e s o l u ç ã o
os nossos e s c o l á s t i c o s e, a e x e m p l o seu, os m é d i c o s d o pas- o u de a l g u m c u i d a d o n e c e s s á r i o ' " .
sado, p e n s a n d o d a r a r a z ã o das p r o p r i e d a d e s d o s c o r p o s
r e c o r r e n d o às f o r m a s e q u a l i d a d e s , e m vez d e e x a m i n a r e m
o m o d o d e o p e r a ç ã o , c o m o q u e m se c o n t e n t a s s e e m d i z e r
q u e u m r e l ó g i o t e m a q u a l i d a d e h o r o d í t i c a , p r o v e n i e n t e de
sua f o r m a , s e m c o n s i d e r a r e m q u e consiste t u d o i s t o . O iy

q u e , c o m e f e i t o , p o d e bastar ao c o m p r a d o r , d e s d e o m o -
m e n t o e m q u e a b a n d o n e esse c u i d a d o a o u t r e m . Mas esta
falha e m a u uso das f o r m a s n ã o d e v e m nos l e v a r a rejeitar
u m a coisa c u j o c o n h e c i m e n t o é tào n e c e s s á r i o c m metafísi-
ca q u e . s e m ele, c r e i o q u e n ã o se p o d e r i a c o n h e c e r b e m os
p r i m e i r o s p r i n c í p i o s , n e m elevar s u f i c i e n t e m e n t e o e s p í r i t o
ao c o n h e c i m e n t o das naturezas i n c o r p ó r e a s e das m a r a v i -

20
XI. Que não são completamente de XII Que as noções que consistem na
desprezar as meditações dos teólogos extensão contêm algo de imaginário
efilósofos chamados escolásticos. e não poderiam constituir a
substância dos corpos.

Sei a f i r m a r u m g r a n d e p a r a d o x o ao p r e t e n d e r r e a b i l i t a r P o r é m , para r e t o m a r o f i o das nossas c o n s i d e r a ç õ e s ,


d e c e r t o m o d o a a n t i g a f i l o s o f i a , e r e c o r d a r postlitninio" as creio que q u e m meditar sobre a natureza da substância,
quase b a n i d a s f o r m a s substanciais. P o r é m , t a l v e z n ã o m e a c i m a e x p l i c a d a , verificará n ã o c o n s i s t i r a p e n a s na e x t e n -
condenem levianamente quando souberem que meditei são, isto é , na g r a n d e z a , f i g u r a e m o v i m e n t o , t o d a a n a t u r e -
demoradamente sobre a filosofia m o d e r n a ; d e d i q u e i m u i t o za d o c o r p o , mas ser p r e c i s o n e c e s s a r i a m e n t e r e c o n h e c e r
t e m p o às e x p e r i ê n c i a s d a física e d e m o n s t r a ç õ e s d a g e o m e - nela a l g o r e l a c i o n a d o c o m as almas e q u e v u l g a r m e n t e se
tria, e bastante t e m p o estive p e r s u a d i d o d a v a c u i d a d e destes d e n o m i n a f o r m a substancial, m u i t o e m b o r a esta n ã o m o d i -
entes, r e t o m a d o s afinal q u a s e à f o r ç a e b e r n c o n t r a m i n h a f i q u e e m nada os f e n ó m e n o s , t a n t o c o m o a a l m a d o s i r r a -
v o n t a d e , d e p o i s d e e u p r ó p r i o ter p r o c e d i d o a i n v e s t i g a ç õ e s c i o n a i s , se a p o s s u e m - . Pode-se a t é m e s m o d e m o n s t r a r
1

q u e m e l e v a r a m a r e c o n h e c e r n ã o f a z e r e m os nossos m o d e r - q u e a n o ç à o da g r a n d e z a , d a f i g u r a e d o m o v i m e n t o n ã o
nos justiça d e v i d a a Santo T o m á s e a o u t r o s grandes h o m e n s p o s s u i a d i s t i n ç ã o q u e se i m a g i n a e q u e c o n t é m a l g o i m a -
d a q u e l e t e m p o , e h a v e r nas o p i n i õ e s d o s f i l ó s o f o s e t e ó l o - ginário e r e l a t i v o às nossas p e r c e p ç õ e s , c o m o o s ã o a i n d a
gos e s c o l á s t i c o s b e m m a i o r s o l i d e z d o q u e se i m a g i n a , des- ( e m b o r a bastante m a i s ) a cor, o c a l o r e outras q u a l i d a d e s
d e q u e delas nos u t i l i z e m o s c o m p r o p r i e d a d e e n o l u g a r d e - semelhantes, cuja e x i s t ê n c i a v e r d a d e i r a na n a t u r e z a das c o i -
v i d o - , E s t o u m e s m o p e r s u a d i d o de q u e u m espírito e x a t o e
2 sas f o r a d c n ó s se p o d e p ô r c m d ú v i d a . Por isso tais e s p é -
m e d i t a t i v o encontraria nelas u m tesouro de imensas verdades cies d e q u a l i d a d e s n ã o p o d e m c o n s t i t u i r q u a l q u e r s u b s t â n -
m u i t o importantes e absolutamente demonstrativas, desde cia. E se n â o há n e n h u m o u t r o p r i n c í p i o d e i d e n t i d a d e n o
q u e se desse a o t r a b a l h o d e esclarecer e assimilar os p e n - c o r p o , a l é m d o q u e a c a b a m o s de dizer, n u n c a u m c o r p o
s a m e n t o s deles à m a n e i r a d o g e ó m e t r a s a n a l í t i c o s . subsistirá m a i s d o q u e u m m o m e n t o . N o e n t a n t o * , as almas
e as f o r m a s substanciais d o s o u t r o s c o r p o s s ã o b e m d i f e -
rentes das almas i n t e l i g e n t e s , ú n i c a s q u e c o n h e c e m as suas
a ç õ e s e, n ã o s ó n u n c a p e r e c e m n a t u r a l m e n t e , mas t a m b é m
conservam sempre o fundamento d o conhecimento d o que
s à o . Eis o q u e as t o r n a ú n i c a s s u s c e t í v e i s de castigo c d e re-

23
6'. W. Leibniz

c o m p e n s a e cidadãs d a r e p ú b l i c a d o u n i v e r s o , de q u e D e u s
XIII. Como a noção individual de cada
é m o n a r c a . T a m b é m se d e d u z d a q u i o d e v e r d e todas as res-
tantes criaturas as s e r v i r e m . A este p r o p ó s i t o v o l t a r e m o s a pessoa encerra de uma vez por todas
falar mais a m p l a m e n t e . quanto lhe acontecerá, nela se vêem as
provas a priori da verdade de cada
acontecimento ou a razão de ter
ocorrido um de preferência a outro.
Estas verdades, porém, embora
asseguradas, não deixam de ser
contingentes, pois fundamentam-se no
livre-arbítrio de Deus ou das criaturas,
cuja escolha tem sempre suas razões,
inclinando sem necessitar.

E n t r e t a n t o , antes d e p r o s s e g u i r m o s é p r e c i s o r e s o l v e r
uma grande dificuldade, que p o d e surgir dos fundamentos
a c i m a apresentados"''. Dissemos q u e a n o ç ã o de u m a subs-
tância i n d i v i d u a l c o n t é m , cie u m a vez p o r todas, t u d o q u a n -
t o l h e p o d e acontecer, e q u e , c o n s i d e r a n d o esta n o ç ã o , nela
se p o d e v e r t u d o o q u e é v e r d a d e i r a m e n t e p o s s í v e l e n u n -
ciar d e l a , c o m o na n a t u r e z a d o c í r c u l o p o d e m o s v e r t o d a s
as p r o p r i e d a d e s q u e se p o d e m d e d u z i r dela. Parece, p o r é m ,
c o m i s t o , destruir-se a d i f e r e n ç a entre as verdades c o n t i n -
gentes e n e c e s s á r i a s , n â o h a v e r l u g a r para a l i b e r d a d e h u -
m a n a e r e i n a r s o b r e t o d a s as nossas a ç õ e s , b e m c o m o so-
bre t o d o s os restantes a c o n t e c i m e n t o s d o m u n d o , u m a fa-
t a l i d a d e a b s o l u t a . Contestarei isto a f i r m a n d o ser p r e c i s o
distinguir o q u e é certo e o que é necessário. I o d a a gente
c o n c o r d a e s t a r e m assegurados os f u t u r o s c o n t i n g e n t e s , v i s -
t o D e u s os p r e v e r , mas n ã o se r e c o n h e c e p o r isto q u e eles
sejam n e c e s s á r i o s ' . Mas ( d i r - s e - á ) se q u a l q u e r c o n c l u s ã o se
1 1

p o d e d e d u z i r i n f a l i v e l m e n t e d e u m a d e f i n i ç ã o o u n o ç à o , eia

24 25
G. W Leibniz Discurso de metafísica e outros textos

será n e c e s s á r i a . O r a , s u s t e n t a m o s estar já v i r t u a l m e n t e c o m - rio, n ã o faria coisa e m si m e s m a i m p o s s í v e l , e m b o r a seja


p r e e n d i d o e m sua n a t u r e z a o u n o ç ã o , c o m o as p r o p r i e d a - i m p o s s í v e l (ex hypothesi) q u e tal a c o n t e ç a . P o r q u e se a l -
des na d e f i n i ç ã o d o c í r c u l o , t u d o o q u e d e v e a c o n t e c e r a g u m h o m e m fosse c a p a z d e l e v a r a c a b o t o d a a d e m o n s t r a -
q u a l q u e r pessoa. A s s i m , a d i f i c u l d a d e a i n d a subsiste. Para ç ã o , e m v i r t u d e d a q u a l p r o v a r i a esta c o n e x ã o d o s u j e i t o ,
resolvê-la solidamente, d i g o que há duas e s p é c i e s d e cone- César, e d o p r e d i c a d o , a sua e m p r e s a b e m - s u c e d i d a , m o s -
x ã o o u c o n s e c u ç ã o : é a b s o l u t a m e n t e n e c e s s á r i a aquela c u j o traria, e f e t i v a m e n t e , ter a d i t a d u r a f u t u r a de C é s a r seu f u n -
contrário i m p l i q u e c o n t r a d i ç ã o (esta d e d u ç ã o d á - s e nas v e r - d a m e n t o e m sua n o ç ã o o u n a t u r e z a , e p o r ela m o s t r a r - s c - i a
d a d e s eternas, c o m o as da g e o m e t r i a ) ; a o u t r a é s ó neces- a r a z à o p e l a q u a l p r e f e r i u atravessar o R u b i c à o a deter-se
sária ex hypothesi, e, p o r assim dizer, p o r a c i d e n t e , mas é nele, e p o r q u e g a n h o u e m vez d e p e r d e r a b a t a l h a d e Far-
c o n t i n g e n t e e m si m e s m a , q u a n d o o c o n t r á r i o n ã o i m p l i - sália, e ser razoável" c, p o r c o n s e q u ê n c i a , s e g u r o tal a c o n -
19

q u e c o n t r a d i ç ã o . R esta c o n e x ã o f u n d a - s e n ã o s o b r e as tecer; m a s n ã o q u e é n e c e s s á r i o e m si, n e m q u e seu c o n t r á -


ideias a b s o l u t a m e n t e puras e s o b r e o s i m p l e s e n t e n d i m e n - rio i m p l i c a c o n t r a d i ç ã o . Q u a s e c o m o é r a z o á v e l e s e g u r o
t o d e D e u s , mas s o b r e os seus d e c r e t o s livres e s o b r e a s é - que D e u s fará s e m p r e o m e l h o r , e m b o r a o q u e é m e n o s
rie d o u n i v e r s o ^ . E x e m p l i f i q u e m o s - " . V i s t o q u e J ú l i o C é s a r p e r f e i t o n ã o i m p l i q u e c o n t r a d i ç ã o . Ver-se-ia n ã o ser t ã o ab-
haverá d e t o r n a r - s e d i t a d o r p e r p é t u o e s e n h o r da R e p ú b l i - soluta c o m o a dos n ú m e r o s o u da geometria a demonstra-
ca e suprimirá a l i b e r d a d e d o s r o m a n o s , esta a ç à o está ç ã o deste p r e d i c a d o de César, mas q u e s u p õ e a série de
c o m p r e e n d i d a e m sua n o ç ã o , p o r q u a n t o supomos ser da na- coisas l i v r e m e n t e e s c o l h i d a s p o r D e u s , e q u e está f u n d a d a
tureza da n o ç à o p e r f e i t a de u m sujeito c o m p r e e n d e r t u d o s o b r e o p r i m e i r o d e c r e t o l i v r e d i v i n o , q u e estabelece fazer
acerca d e l e , a f i m de o p r e d i c a d o aí estar c o n t i d o , ut possit s e m p r e o mais p e r f e i t o , e s o b r e o d e c r e t o f e i t o p o r D e u s
inesse suhjecto. P o d e r i a dizer-se n ã o ser d e v i d o a esta n o - ( d e p o i s d o p r i m e i r o ) a p r o p ó s i t o da n a t u r e z a h u m a n a , o u
ç ã o o u i d e i a q u e C é s a r praticará tal a ç à o , p o i s ela s ó l h e seja: q u e o h o m e m fará s e m p r e , e m b o r a l i v r e m e n t e , o q u e
c o n v é m p o r q u e D e u s sabe t u d o . Tnsistir-se-á, p o r é m , na lhe p a r e c e m e l h o r . O r a , t o d a v e r d a d e f u n d a d a nesses t i p o s
c o r r e s p o n d ê n c i a d e sua nattireza o u f o r m a a esta n o ç à o e, de d e c r e t o é c o n t i n g e n t e , apesar de certa; p o r q u e esses d e -
desde q u e D e u s lhe i m p ô s essa p e r s o n a g e m , é - l h e d o r a - cretos n â o m u d a m a p o s s i b i l i d a d e das coisas e, c o m o já
vante n e c e s s á r i o satisfazê-la. A q u i p o d e r i a r e s p o n d e r r e c o r - disse, a i n d a q u e D e u s s e g u r a m e n t e escolhesse s e m p r e o
r e n d o aos f u t u r o s c o n t i n g e n t e s , p o i s estes n ã o p o s s u e m m e l h o r , t a l n ã o i m p e d e o q u e é m e n o s p e r f e i t o d e ser e
ainda n a d a de r e a l , a n ã o ser n o e n t e n d i m e n t o e v o n t a d e c o n t i n u a r possível e m si, e m b o r a n ã o a c o n t e ç a , p o r q u e n ã o
de Deus, e, v i s t o q u e D e u s l h e d e u de a n t e m ã o esta f o r m a , 6 sua i m p o s s i b i l i d a d e , m a s s i m sua i m p e r f e i ç ã o , q u e o faz
é p r e c i s o q u e c o r r e s p o n d a m a ela d e t o d a m a n e i r a . Mas rejeitar. O r a , n a d a , c u j o o p o s t o é possível, é n e c e s s á r i o . F i -
p r e f i r o r e s o l v e r d i f i c u l d a d e s a escapar delas p e l o e x e m p l o " ^ c a r - s e - á , p o r t a n t o , a p t o a r e s o l v e r aqueles t i p o s de d i f i c u l -
de outras d i f i c u l d a d e s semelhantes, e o q u e v o u d i z e r s e r v i - dade, p o r m a i o r e s q u e p a r e ç a m (e e f e t i v a m e n t e n ã o s à o
rá p a r a esclarecer t a n t o u m a q u a n t o o u t r a . É a g o r a , p o r t a n - m e n o s p r e m e n t e s , na o p i n i ã o d o s q u e t r a t a r a m a l g u m a v e z
to, q u e é p r e c i s o aplicar a d i s t i n ç ã o das c o n e x õ e s . D i g o q u e esta m a t é r i a ) , d e s d e q u e se c o n s i d e r e c o n v e n i e n t e m e n t e
é seguro mas n à o necessário o que sucede e m c o n f o r m i d a - que t o d a s as p r o p o s i ç õ e s c o n t i n g e n t e s t ê m r a z õ e s para ser
de a estas a n t e c i p a ç õ e s e q u e , se a l g u é m fizesse o c o n t r á - antes assim d o q u e d e o u t r a m a n e i r a , o u e n t ã o ( o q u e é o

20 27
Cr. W Lcihniz

m e s m o ) p o s s u e m p r o v a s a priori da sua v e r d a d e , t o r n a n -
do-as certas e r e v e l a n d o q u e a c o n e x ã o d o s u j e i t o e d o p r e -
XIV Deus produz diversas substâncias
d i c a d o destas p r o p o s i ç õ e s t e m seu f u n d a m e n t o na natureza conforme as diferentes perspectivas
de u m e d e o u t r o . Nào p o s s u e m , p o r é m , d e m o n s t r a ç õ e s d e que tem do universo e, por sua
necessidade, v i s t o tais r a z õ e s se f u n d a r e m a p e n a s n o princí- intervenção, a natureza própria de
p i o d a c o n t i n g ê n c i a o u da e x i s t ê n c i a das coisas, q u e r dizer,
s o b r e o q u e é o u p a r e c e ser o m e l h o r , entre diversas coisas
cada substância implica que o que
i g u a l m e n t e p o s s í v e i s . Por seu l a d o , as verdades n e c e s s á r i a s acontece a uma corresponda ao que
se f u n d a m n o p r i n c í p i o de c o n t r a d i ç ã o e na p o s s i b i l i d a d e acontece a todas as outras, sem
o u i m p o s s i b i l i d a d e das p r ó p r i a s e s s ê n c i a s , s e m ter e m c o n -
ta a l i v r e v o n t a d e d e D e u s o u das criaturas.
que ajam imediatamente umas
sobre as outras.

C o n h e c i d o , d e c e r t o m o d o , e m q u e consiste a n a t u r e -
za das s u b s t â n c i a s , t e m o s de e x p l i c a r a d e p e n d ê n c i a q u e
t ê m umas das outras e as suas a ç õ e s e p a i x õ e s . O r a , e m p r i -
m e i r o lugar, é b e m m a n i f e s t o q u e as s u b s t â n c i a s criadas
d e p e n d e m de D e u s , q u e as c o n s e r v a e até c o n t i n u a m e n t e
as p r o d u z p o r u m a e s p é c i e d e e m a n a ç ã o " , c o m o p r o d u z i -
1

m o s os nossos p e n s a m e n t o s . Pois D e u s , v i r a n d o , p o r assim


dizer, d e t o d o s os l a d o s e m a n e i r a s o sistema g e r a l d o s fe-
n ó m e n o s q u e considera b o m p r o d u z i r para manifestar a
sua glória, e o b s e r v a n d o t o d o s os aspectos d o m u n d o d e
todas as f o r m a s p o s s í v e i s ( p o r q u e n à o existe n e n h u m a r e -
l a ç ã o q u e escape à sua o n i s c i ê n c i a ) . faz c o m q u e o resulta-
d o de cada v i s ã o d o u n i v e r s o , e n q u a n t o c o n t e m p l a d o d e
u m c e r t o lugar, seja u m a s u b s t â n c i a e x p r e s s a n d o o u n i v e r -
so c o n f o r m e a essa p e r s p e c t i v a , d e s d e q u e D e u s ache c o n -
v e n i e n t e realizar o seu p e n s a m e n t o e p r o d u z i r esta subs-
t â n c i a . E c o m o a v i s ã o d e D e u s é s e m p r e v e r d a d e i r a , as
41

nossas p e r c e p ç õ e s i g u a l m e n t e o s ã o , m a s nossos j u í z o s ,
q u e s ã o apenas nossos, n o s e n g a n a m . Ora, já dissemos mais
acima, e segue-se d o q u e a c a b a m o s de dizer, q u e cada subs-
tância é c o m o u m m u n d o à parte, i n d e p e n d e n t e de q u a l -
q u e r o u t r a coisa, e x c e t u a n d o D e u s . A s s i m , t o d o s os nossos

28 29
Qiscurso de metafísica P outros textos.
G. W. Leibniz

mc todo o u n i v e r s o . C o m e f e i t o , n a d a p o d e a c o n t e c e r - n o s
fenómenos, q u e r dizer, t u d o q u a n t o a l g u m a v e z p o d e a c o n - i l é m de p e n s a m e n t o s e p e r c e p ç õ e s , e t o d o s os nossos f u t u -
t e c c r - n o s , s ã o apenas c o n s e q u ê n c i a s de n o s s o ser. E c o m o ros p e n s a m e n t o s e p e r c e p ç õ e s n à o p a s s a m d e c o n s e q u ê n -
esses fenómenos c o n s e r v a m u m a certa o r d e m c o n f o r m e à cias, e m b o r a c o n t i n g e n t e s , d o s nossos p e n s a m e n t o s e p e r -
nossa n a t u r e z a o u , p o r assim dizer, ao m u n d o existente e r n c e p ç õ e s a n t e r i o r e s , d e t a l m o d o q u e , se e u fosse c a p a z d e
n ó s , o q u e n o s p e r m i t e , p a r a r e g u l a r nossa c o n d u t a , a p o s - c o n s i d e r a r d i s t i n t a m e n t e u i d o q u a n t o nesta h o r a m e a c o n -
sibilidade de efetuar o b s e r v a ç õ e s úteis, justificadas p e l o tece o u a p a r e c e , nessa p e r c e p ç ã o p o d e r i a v e r t u d o q u a n t o
a c o n t e c i m e n t o d c f e n ó m e n o s f u t u r o s e assim p o d e r m o s , me a c o n t e c e r á e a p a r e c e r á s e m p r e , o q u e n ã o f a l h a r i a c
m u i t a s vezes, s e m e n g a n o j u l g a r o f u t u r o p e l o passado, isto aconteceria d a m e s m a m a n e i r a , e m b o r a t u d o q u a n t o exis-
seria s u f i c i e n t e para se a f i r m a r q u e esses f e n ó m e n o s s à o tisse f o r a d e m i m fosse destruído, d e s d e q u e restassem D e u s
v e r d a d e i r o s , s e m nos a f l i g i r m o s a i n v e s t i g a r se e x i s t e m f o r a c eu . V i s t o , p o r é m , a t r i b u i r m o s a outras coisas, c o m o às c a u -
44

de n ó s e se o u t r o s os a p e r c e b e m t a m b é m . N o e n t a n t o , é das agentes s o b r e n ó s , a q u i l o d e q u e n o s apereel>emos d e


b e m v e r d a d e q u e as p e r c e p ç õ e s o u e x p r e s s õ e s d e todas as u m a certa m a n e i r a , é preciso c o n s i d e r a r o f u n d a m e n t o d e s t e
s u b s t â n c i a s se e n t r e c o r r e s p o n d e m d e tal s o r t e q u e q u a l - juízo e o q u e h á d e v e r d a d e i r o n e l e \
q u e r u m , s e g u i n d o a t e n t a m e n t e certas r a z õ e s o u leis q u e
o b s e r v o u , se e n c o n t r a c o m o u t r o q u e fez o m e s m o , c o m o
q u a n d o varias pessoas, t e n d o c o m b i n a d o e n c o n i r a r - s e r e u -
nidas e m a l g u m lugar e e m u m dia p r e f i x a d o , p o d e m efeti-
v a m e n t e t a z ê - l o , se o desejarem. O r a , se b e m q u e t o d o s ex-
p r i m a m os m e s m o s f e n ó m e n o s , n e m p o r isso as suas ex-
p r e s s õ e s se i d e n t i f i c a m ; é s u f i c i e n t e q u e sejam p r o p o r c i o -
nais'-. D o m e s m o m o d o vários e s p e c t a d o r e s c r ê e m ver a
m e s m a coisa e e f e t i v a m e n t e se e n t e n d e m e n t r e si, e m b o r a
cada u m veja e fale na m e d i d a da sua p e r s p e c t i v a . S o m e n -
te D e u s , d e q u e m t o d o s os indivíduos e m a n a m c o n t i n u a -
m e n t e , e q u e v ê o universo n ã o s ó c o m o eles v ê e m , mas
t a m b é m de m o d o i n t e i r a m e n t e d i v e r s o d e t o d o s eles, p o d e
ser causa desta c o r r e s p o n d ê n c i a d o s seus f e n ó m e n o s e t o r -
nar g e r a l para t o d o s o q u e é p a r t i c u l a r a cada u m . D e o u t r a
forma nào haveria possibilidade de ligação. De certo m o d o
e n o b o m s e n t i d o , e m b o r a afastado d o u s u a l , p o d e r - s c - á
d i z e r q u e n u n c a urna s u b s t â n c i a p a r t i c u l a r atua s o b r e u m a
o u t r a substância particular, e t a m p o u c o padece'", se os e v e n -
tos de cada u m a s ã o c o n s i d e r a d o s apenas c o m o c o n s e q u ê n -
cia d e sua s i m p l e s ideia o u n o ç à o c o m p l e t a ; p o i s esta i d e i a
c o n t é m já t o d o s os p r e d i c a d o s o u a c o n t e c i m e n t o s e e x p r i -

31
30
Discurso de metafísica e outros textos.

d e u m a substância q u e t e m p e r f e i ç ã o i m p l i c a a l g u m prazer e
XV. A ação de uma substância finita t o d a p a i x ã o , a l g u m a dor, e vice-versa. Pode muito bem acon-
sobre outra consiste apenas no tecer, n o e n t a n t o , u m a v a n t a g e m presente ser desfeita e m se-
acréscimo do grau de sua expressão, g u i d a p o r u m m a l m u i t o m a i o r . D o n d e se c o n c l u i a p o s s i -
b i l i d a d e de p e c a r a g i n d o o u e x e r c e n d o sua p o t ê n c i a e e n -
junto â diminuição do da outra, na
c o n t r a n d o p r a z e r nela'".
medida em que Deus as obriga a se
acomodarem entre si.

A f i m d c c o n c i l i a r a l i n g u a g e m m e t a f í s i c a c o m a práti-
ca, mas s e m e n t r a r e m l o n g a d i s c u s s ã o , basta n o t a r p o r o r a
q u e nos a t r i b u í m o s d e p r e f e r e n c i a e c o m r a z ã o os f e n ó m e -
n o s q u e e x p r i m i m o s mais p e r f e i t a m e n t e , e a t r i b u í m o s às
outras s u b s t â n c i a s o q u e cada u m a e x p r i m e m e l h o r . A s s i m ,
uma substância de extensão infinita, e n q u a n t o e x p r i m e
t u d o , torna-se l i m i t a d a pela m a n e i r a d a sua e x p r e s s ã o mais
o u m e n o s p e r f e i t a . E assim, p o r t a n t o , q u e se p o d e c o n c e -
b e r q u e as s u b s t â n c i a s se e s t o r v e m m u t u a m e n t e o u se l i m i -
t e m e, p o r c o n s e g u i n t e , neste s e n t i d o p o d e - s e a f i r m a r q u e
elas a g e m umas s o b r e as outras, s e n d o p o r assim d i z e r o b r i -
gadas a a c o m o d a r - s e e n t r e si, p o i s p o d e s u c e d e r q u e u m a
m u d a n ç a a u m e n t e a e x p r e s s ã o de u m a , d i m i n u i n d o a d e o u -
tra"''. O r a , a v i r t u d e de u m a s u b s t â n c i a p a r t i c u l a r é e x p r i m i r
b e m a glória d e D e u s , e é p o r isso q u e ela é m e n o s l i m i t a -
da. E cada coisa, q u a n d o e x e r c e sua v i r t u d e o u p o t ê n c i a ,
q u e r dizer, q u a n d o age, m u d a para m e l h o r e se estende e n -
q u a n t o age. A s s i m , p o i s , q u a n d o se d á u m a m u d a n ç a afe
t a n d o várias s u b s t â n c i a s ( c o m o e f e t i v a m e n t e q u a l q u e r m u -
d a n ç a toca a t o d a s ) , c r e i o p o d e r dizer-se q u e , d e v i d o a isso,
a q u e l a s u b s t â n c i a q u e passa i m e d i a t a m e n t e a u m mais a l t o
g r a u de p e r f e i ç ã o o u a u m a e x p r e s s ã o m a i s p e r f e i t a e x e r c e
sua p o t ê n c i a e age, e a q u e passa a u m m e n o r g r a u r e v e l a
sua f r a q u e z a e padece' . 1 T a m b é m sustento que toda a ç à o

33
Discurso de metafísica e outros textos

falar ma i s c l a r a m e n t e , d i g o q u e os m i l a g r e s e c o n c u r s o s ex-
XVI. O concurso extraordinário de traordinários d e D e u s p o s s u e m de c a r a c t e r í s t i c o o n à o p o
Deus está compreendido no que a nossa d e r e m ser p r e v i s t o s p e l o r a c i o c í n i o d e a l g u m e s p í r i t o c r i a -
essência exprime, pois esta expressão d o , p o r m a i s e s c l a r e c i d o q u e seja. p o r q u e a distinta c o m -
p r e e n s ã o d a o r d e m g e r a l ultrapassa a t o d o s , a o p a s s o q u e
se estende a tudo, mas ultrapassa as
t u d o o q u e c h a m a m o s d e n a t u r a l d e p e n d e das m á x i m a s
forças da nossa natureza ou da nossa m e n o s gerais, q u e as cr i at u r as p o d e m c o m p r e e n d e r . Para
expressão distinta, que é finita e segue as p a l a v ra s s e r e m t à o i r r e p r e e n s í v e i s c o m o o s e n t i d o , seria
certas máximas subalternas. b o m u n i r certas m a n e i r a s d e falar a certos p e n s a m e n t o s , e
p o d e r i a d e u o m í n a r - s e nossa e s s ê n c i a o u ideia o q u e c o m -
p r e e n d e t u d o q u a n t o e x p r i m i m o s , e, c o m o e x p r i m e a nos-
s a u n i à o c o m o p r ó p r i o D e u s , n ã o t e m l i m i t e s e n ada a u l -
P r e s e n t e m e n t e , s ó resta e x p l i c a r a p o s s i b i l i d a d e d e
trapassa. P o r é m , o q u e e m n ó s é l i m i t a d o p o d e r á c h a m a r -
D e u s e x e r c e r a l g u m a s vezes i n f l u e n c i a s o b r e os h o m e n s o u
se a nossa n a t u r e z a o u p o t ê n c i a , e, a esse r e s p e i t o , t u d o o
sobre as o u t r a s s u b s t â n c i a s p o r u m c o n c u r s o e x t r a o r d i n á r i o
q u e ultrapassa as n a t u r e z a s d e t o d a s as s u b s t â n c i a s criadas
e m i r a c u l o s o , p o i s , s e g u n d o p a r e c e , n a d a p o d e suceder-
é sobrenatural.
lhes de e x t r a o r d i n á r i o o u d e s o b r e n a t u r a l , já q u e t o d o s os
seus a c o n t e c i m e n t o s s ã o a p e n a s c o n s e q u ê n c i a s da sua n a -
tureza. Mas é p r e c i s o r e c o r d a r o q u e d i s s e m o s antes relati-
v a m e n t e aos m i l a g r e s d o u n i v e r s o , s e m p r e c o n f o r m e s à l e i
u n i v e r s a l d a o r d e m g e r a l , e m b o r a acima das m á x i m a s s u -
balternas. E. desde q u e t o d a pessoa o u s u b s t â n c i a é c o m o
u m p e q u e n o m u n d o e x p r i m i n d o o g r a n d e , p o d e - s e dizer,
i g u a l m e n t e , q u e essa a ç ã o e x t r a o r d i n á r i a d e D e u s s o b r e
essa s u b s t â n c i a n à o d e i x a de ser m i r a c u l o s a , m u i t o e m b o r a
c o m p r e e n d i d a na o r d e m g e r a l d o u n i v e r s o , e n q u a n t o ex-
pressado p e l a e s s ê n c i a o u n o ç ã o i n d i v i d u a l dessa substân-
cia*'. Por isto, se c o m p r e e n d e m o s na nossa n a t u r e z a t u d o
q u e ela expressa, na da é nela s o b r e n a t u r a l , p o i s se estende
a t u d o , já q u e u m e f e i t o e x p r i m e s e m p r e a sua causa" , e 1

Deus é a ve r da de ir a causa da substância. P o r é m , c o u r o o q u e


a nossa na tur e z a e x p r e s s a c o m m a i o r p e r f e i ç ã o l h e p e r t e n -
ce de m a n e i r a p a r t i c u l a r ( p o i s n i s t o consiste a sua p o t e n c i a ,
e esta é l i m i t a d a , c o m o a c a b o de e x p l i c a r ) , há m u i t a s coisas
u l t r a p a s s a n d o as f o r ç a s d a nossa n a t u r e z a e a i n d a a d e t o -
das as naturezas l i m i t a d a s . Por c o n s e g u i n t e , n o i n t u i t o d e

35
34
Discurso de metafísica e outros textos.

XVIL Exemplo de uma máxima entanto, para mostrar a d i f e r e n ç a , s u p o n h o que u m c o r p o ,


subalterna ou lei da natureza. Contra c a i n d o de u m a certa a l t u r a , a d q u i r e a f o r ç a de s u b i r até ela
d e novo '', se o leva assim a sua d i r e ç ã o , a m e n o s q u e se e n -
os cartesianos e vários outros, 5

contrem alguns obstáculos. Por e x e m p l o , u m pêndulo s u b i -


demonstra-se que Deus conserva ria p e r f e i t a m e n t e à altura de o n d e d e s c e u se a resistência d o
sempre a mesma força, mas nâo a ar e a l g u n s o u t r o s o b s t á c u l o s p e q u e n o s n ã o lhe t i v e s s e m d i -
mesma quantidade de movimento. minuído u m p o u c o a força adquirida. Suponho, também,
ser n e c e s s á r i a tanta f o r ç a p a r a e l e v a r u m c o r p o A , d e u m a
libra, ã a l t u r a C D d e q u a t r o t o e s a s , q u a n t a p a r a e l e v a r u m
corpo B , d e q u a t r o l i b r a s , ã a l t u r a EF d e u m a toesa. T u d o
isto é a d m i t i d o p e l o s nossos f i l ó s o f o s m o d e r n o s . É, p o i s ,
J á várias vezes m e n c i o n e i as m á x i m a s s u b a l t e r n a s o u m a n i f e s t o q u e , t e n d o o c o r p o A c a í d o da a l t u r a C D , a d q u i -
leis d a n a t u r e z a e p a r e c e c o n v e n i e n t e d a r u m e x e m p l o d e - r i u t a n t a força, p r e c i s a m e n t e , c o m o o c o r p o B c a í d o da a l -
lu.O . V u l g a r m e n t e os nossos filósofos m o d e r n o s se s e r v e m
1
tura EF; p o i s , t e n d o c h e g a d o a F o c o r p o ( B ) e t e n d o ali f o r -
desta famosa regra da c o n s e r v a ç ã o p o r D e u s d a m e s m a ç a p a r a s u b i r n o v a m e n t e ate E ( p e l a p r i m e i r a s u p o s i ç ã o ) ,
q u a n t i d a d e d e m o v i m e n t o n o m u n d o ' - . C o m e f e i t o ela p a - tem p o r c o n s e g u i n t e a força d e l e v a r u m c o r p o d e q u a t r o
rece b e m p l a u s í v e l , e n o p a s s a d o e u a t i n h a p o r i n d u b i -
v
libras, isto é , o seu p r ó p r i o c o r p o , à altura EF d e u m a toesa,
tável. P o r é m , r e c o n h e c i d e p o i s o n d e estava o e r r o . K q u e e da m e s m a f o r m a , t e n d o c h e g a d o a D o c o r p o ( A ) e t e n -
Descartes, assim c o m o o u t r o s h á b e i s m a t e m á t i c o s , a c r e d i t a - do a l i f o r ç a p a r a v o l t a r a s u b i r a C, t e m a f o r ç a d e e l e v a r u m
r a m q u e a q u a n t i d a d e de m o v i m e n t o , q u e r dizer, a v e l o c i - corpo de u m a l i b r a , isto é, o s e u p r ó p r i o c o r p o , à a l t u r a C D
dade multiplicada pela grandeza d o móvel, c o n v é m inteira- de q u a t r o toesas. L o g o ( p e l a s e g u n d a s u p o s i ç ã o ) , a f o r ç a
m e n t e â f o r ç a m o t r i z , o u , p a r a falar g e o m e t r i c a m e n t e , q u e destes d o i s c o r p o s é i g u a l . V e j a m o s a g o r a se a q u a n t i d a d e
as forças e s t ã o na r a z ã o c o m p o s t a das v e l o c i d a d e s e d o s d e m o v i m e n t o é t a m b é m a m e s m a d e a m b o s o s l a d o s . Mas
corpos^ . O r a , é m u i t o razoável a m e s m a f o r ç a conservar-se
1
a q u i , p r e c i s a m e n t e , ficar-se-á s u r p r e s o p o r e n c o n t r a r g r a n -
s e m p r e n o u n i v e r s o \e se observa c o m n i t i d e z , díssima d i f e r e n ç a , p o i s já f o i d e m o n s t r a d o p o r G a l i l e u ' ser
7

q u a n d o se presta a t e n ç ã o n o s f e n ó m e n o s , a i n e x i s t ê n c i a d o a v e l o c i d a d e a d q u i r i d a pela q u e d a C D o d o b r o d a v e l o c i -
m o v i m e n t o m e c â n i c o perpétuo, p o r q u e , então, a força de d a d e o b t i d a p e l a q u e d a EF, e m b o r a a a l t u r a seja q u á d r u p l a .
u m a m á q u i n a , q u e s e m p r e d i m i n u i u m p o u c o d e v i d o à fric- M u l t i p l i c a n d o , p o i s , o c o r p o A , q u e é c o m o 1 , p e l a sua v e -
ç ã o e l o g o t e r m i n a , se r e n o v a r i a e p o r c o n s e q u ê n c i a a u m e n - l o c i d a d e , q u e é c o m o 2, o p r o d u t o o u a q u a n t i d a d e d e m o -
taria de p e r si s e m q u a l q u e r n o v o i m p u l s o e x t e r n o . Nota-se v i m e n t o será c o m o 2; e, p o r o u t r o l a d o , m u l t i p l i c a n d o o
t a m b é m n à o haver d i m i n u i ç ã o na f o r ç a d e u m c o r p o , a n â o c o r p o B . q u e é c o m o 4, pela sua v e l o c i d a d e , q u e é c o m o 1 ,
ser na m e d i d a e m q u e ele a t r a n s m i t e a c o r p o s c o n t í g u o s o u será c o m o 4 o p r o d u t o o u a q u a n t i d a d e d e m o v i m e n t o .
às suas p r ó p r i a s partes, se p o s s u e m m o v i m e n t o i n d e p e n - Logo, a quantidade dc m o v i m e n t o d o c o r p o ( A ) n o p o n t o
d e n t e . A c r e d i t a r a m , assim, q u e p o d i a t a m b é m dizer-se da D é a metade da quantidade d e m o v i m e n t o d o c o r p o (B) n o
q u a n t i d a d e d e m o v i m e n t o o q u e p o d e ser d i t o d a f o r ç a . X o p o n t o F e, n o e n t a n t o , s ã o i g u a i s as suas f o r ç a s . Há, p o r t a n -

36 37
—- G. W. Leibniz

to, grande diferença entre a quantidade de m o v i m e n t o e a


força, c o r n o se q u e r i a d e m o n s t r a r . P o r a q u i se v ê c o m o a XVIII. A distinção da força e da
f o r ç a d e v e ser a v a l i a d a p e l a q u a n t i d a d e d o e f e i t o q u e p o d e quantidade de movimento é importante,
p r o d u z i r , p o r e x e m p l o , pela altura a q u e se p o d e l e v a n t a r
58
entre outras razões, para julgar a
u m c o r p o p e s a d o de c e r t o t a m a n h o e e s p é c i e , o q u e é m u i -
t o d i f e r e n t e d a v e l o c i d a d e q u e se l h e p o d e i m p r i m i r . E p a r a
necessidade do recurso a considerações
l h e d a r o d o b r o d a v e l o c i d a d e é n e c e s s á r i o mais d o d o b r o metafísicas independentes da extensão,
d a f o r ç a . Nada m a i s s i m p l e s d o q u e esta p r o v a , c se D e s - afim de explicar os fenómenos
cartes e r r o u neste p o n t o f o i p o r d e m a s i a d a c o n f i a n ç a e m dos corpos.
seus p e n s a m e n t o s , m e s m o q u a n d o n à o e s t a v a m s u f i c i e n t e -
m e n t e a m a d u r e c i d o s . Espanla-me, p o r é m , seus sectários n ã o
se h a v e r e m d e p o i s a p e r c e b i d o deste e r r o , e r e c e i o q u e eles
Esta c o n s i d e r a ç ã o d a f o r ç a d i s t i n g u i d a d a q u a n t i d a d e
c o m e c e m p o u c o a p o u c o a imitar alguns peripatéticos de
d e m o v i m e n t o é de g r a n d e i m p o r t â n c i a , n ã o s ó na física e
q u e e s c a r n e c e m , e, c o m o estes, se a c o s t u m e m a c o n s u l t a r
na m e c â n i c a , para e n c o n t r a r as v e r d a d e i r a s leis da natureza
os l i v r o s d o mestre de p r e f e r ê n c i a à r a z à o e à n a t u r e z a .
e regras d o m o v i m e n t o e até para c o r r i g i r vários erros de
prática q u e se i n t r o m e t e r a m nos escritos d e a l g u n s h á b e i s
m a t e m á t i c o s , c o m o a i n d a e m metafísica, para m e l h o r c o m -
p r e e n s ã o d o s princípios, p o i s o m o v i m e n t o , se n à o se lhe
considera o que c o m p r e e n d e precisamente e formalmente,
o u seja, u m a m u d a n ç a de lugar, n ã o é coisa i n t e i r a m e n t e
real, e, q u a n d o vários c o r p o s m u d a m de s i t u a ç ã o entre si,
é i m p o s s í v e l d e t e r m i n a r , pela s i m p l e s c o n s i d e r a ç ã o destas
m u d a n ç a s , a q u a l d e n t r e eles se d e v e a t r i b u i r o m o v i m e n t o
o u o r e p o u s o , c o m o m e seria p o s s í v e l m o s t r a r g e o m e t r i c a -
m e n t e se m e quisesse d e t e r agora neste assunto. E, p o r é m ,
a l g o mais real a f o r ç a o u causa p r ó x i m a destas m u d a n ç a s e
existe b a s t a n t e f u n d a m e n t o p a r a atribuí-la a u m c o r p o d e
p r e f e r ê n c i a a o u t r o . A s s i m , s ó p o r este m e i o se p o d e co-
6 9

n h e c e r a q u a l o m o v i m e n t o p e r t e n c e de p r e f e r ê n c i a . O r a ,
esta f o r ç a é a l g o d i f e r e n t e d a g r a n d e z a , d a f i g u r a e d o m o -
v i m e n t o , e p o r aí p o d e - s e j u l g a r n ã o consistir apenas na ex-
t e n s ã o e suas m o d i f i c a ç õ e s t u d o o q u e se c o n c e b e n o c o r -
p o , c o m o se p e r s u a d e m os nossos m o d e r n o s . Assim, f o m o s
o b r i g a d o s a restaurar a l g u n s entes o u f o r m a s p o r eles b a n i -
d o s . E p a r e c e cada v e z mais ( e m b o r a p o s s a m explicar~se

38
39
— - G. W. Leibniz

m a t e m á t i c a o u m e c a n i c a m e n t e t o d o s os f e n ó m e n o s p a r t i -
culares d a n a t u r e z a p o r q u e m o s e n t e n d a ) q u e , p e l o m e - XIX. Utilidade das causas
n o s , os p r i n c í p i o s gerais d a n a t u r e z a c o r p ó r e a e da própria finais na física.
mecânica sào m u i t o mais metafísicos d o q u e geométricos e
p e r t e n c e m , s o b r e t u d o , a a l g u m a s f o r m a s o u naturezas i n d i -
visíveis, c o m o causas das a p a r ê n c i a s , m a i s d o q u e à massa
c o r p ó r e a o u extensa ". Esta r e f l e x ã o é c a p a z d e r e c o n c i l i a r
6

a filosofia mecânica dos m o d e r n o s c o m a circunspecção de


a l g u m a s pessoas i n t e l i g e n t e s e b e m i n t e n c i o n a d a s , q u e c o m
a l g u m f u n d a m e n t o se s e n t e m receosas p e l o a f a s t a m e n t o
e x a g e r a d o d o s entes i m a t e r i a i s e m p r e j u í z o d a p i e d a d e " .
1

C o m o n ã o g o s t o d e julgar n i n g u é m c o m m á i n t e n ç ã o ,
n à o a c u s o os nossos n o v o s f i l ó s o f o s q u e p r e t e n d e m b a n i r
da física as causas f i n a i s . Sou, t o d a v i a , o b r i g a d o a r e c o n h e -
cer q u e m e p a r e c e m perigosas as c o n s e q u ê n c i a s desta o p i -
nião, p r i n c i p a l m e n t e q u a n d o as associo à q u e l a r e b i t a d a n o
início deste discurso, e q u e parece p r e t e n d e r s u p r i m i - l a s c m
a b s o l u t o , c o m o se D e u s n à o se p r o p u s e s s e f i m n e m b e m
a l g u m ao agir, o u c o m o se o b e m n à o fosse o o b j e t o da sua
v o n t a d e " ' . P e l o contrário, t e n h o para m i m q u e nelas é q u e
d e v e p r o c u r a r - s e o p r i n c í p i o de t o d a s as e x i s t ê n c i a s e leis
da n a t u r e z a , p o r q u e D e u s se p r o p õ e s e m p r e o m e l h o r e o
mais p e r f e i t o . Posso b e m a d m i t i r ^ q u e estamos sujeitos a
nos e x c e d e r m o s q u a n d o p r e t e n d e m o s d e t e r m i n a r os fins
o u r e s o l u ç õ e s d e D e u s , mas tal a p e n a s a c o n t e c e q u a n d o
p r e t e n d e m o s limitá-los a a l g u m d e s í g n i o p a r t i c u l a r , a c r e d i -
t a n d o q u e ele s ó t e v e e m vista u m a ú n i c a coisa, ao passo
q u e D e u s t e m e m vista t u d o , ao m e s m o t e m p o . A s s i m a c o n -
tece q u a n d o c r e m o s n ã o ter D e u s f e i t o o m u n d o s e n ã o p a r a
"** n ó s . G r a n d e a b u s o é este, e m b o r a seja m u i t o v e r d a d e i r o tê-
l o f e i t o i n t e i r a m e n t e para n ó s . e n a d a h a v e r n o u n i v e r s o
q u e n ã o n o s d i g a r e s p e i t o c n ã o se a c o m o d e , a i n d a , às c o n -
siderações q u e t e m Deus a nosso propósito, s e g u n d o os p r i n -
cípios postos mais acima' '. A s s i m , q u a n d o v e m o s a l g u m b o m
1

e f e i t o o u p e r f e i ç ã o p r o v e n i e n t e o u d e c o r r e n t e das o b r a s d e

40
41
Decurso de metafísica e outros textos
C W Leibmz

u m a ff a, í*src*a h
h aa v
v ii aa m
m es
escap
p a d o c o m v e l o c^i d a d e bastante p a r_a
d a p r a

D e u s , p o d e m o s a f i r m a r c o m s e g u r a n ç a q u e D e u s desse
m o d o se p r o p ô s a f a z ê - l o , p o i s D e u s n a d a faz p o r acaso,
n e m se a s s e m e l h a a n ó s , a q u e m p o r vezes escapa fazer o
b e m . É p o r isso q u e , m u i t o l o n g e d e se p o d e r errar neste
assunto, c o m o s u c e d e aos políticos e x a g e r a d o s q u e i m a g i -
n a m e x c e s s i v o r e f i n a m e n t o nos d e s í g n i o s d o s p r í n c i p e s , o u
aos c o m e n t a d o r e s q u e p r o c u r a m d e m a s i a d a e r u d i ç ã o n o
seu a u t o r , n u n c a se p o d e r i a a t r i b u i r d e m a s i a d a s r e f l e x õ e s a
esta s a b e d o r i a i n f i n i t a e n ã o há matéria a l g u m a o n d e m e -
nos se possa t e m e r o erro, e n q u a n t o apenas se a f i r m e e
d e s d e q u e a q u i se f u j a das p r o p o s i ç õ e s negativas, q u e l i m i -
t a m os d e s í g n i o s d c D e u s . T o d o s o s q u e v ê e m a a d m i r á v e l
estrutura d o s a n i m a i s s ã o o b r i g a d o s a r e c o n h e c e r a sabe-
d o r i a d o a u t o r das coisas"'. A c o n s e l h o aos q u e têm a l g u m
sentimento de piedade e mesmo de verdadeira filosofia a
afastarem-se das frases de a l g u n s espíritos d e m a s i a d a m e n -
te p r e t e n s i o s o s , q u e d i z e m q u e v e m o s p o r q u e t e m o s o l h o s ,
e n ã o d i z e m q u e os o l h o s f o r a m feitos para ver. É difícil
poder-sc r e c o n h e c e r u m a u t o r inteligente da natureza, q u a n -
d o se está s e r i a m e n t e b a s e a d o nestas o p i n i õ e s q u e t u d o
a t r i b u e m à n e c e s s i d a d e da matéria o u a vim c e r t o acaso (se
b e m q u e a m b a s d e v a m p a r e c e r ridículas aos q u e c o m -
p r e e n d e m o a c i m a e x p l i c a d o » , v i s t o q u e o e f e i t o d e v e cor-
r e s p o n d e r à sua c a u s a * , e até se c o n h e c e m e l h o r p e l o co-
n h e c i m e n t o d a causa, e é d e s a r r a z o a d o i n t r o d u z i r u m a i n -
t e l i g ê n c i a s o b e r a n a o r d e n a d o r a das coisas, p a r a l o g o e m
s e g u i d a , e m v e z d e r e c o r r e r à sua s a b e d o r i a , servir-se ex-
c l u s i v a m e n t e das p r o p r i e d a d e s da matéria p a r a e x p l i c a r os
f e n ó m e n o s . T a l c o m o se u m h i s t o r i a d o r , q u e r e n d o e x p l i c a r
u m a c o n q u i s t a realizada p o r vim g r a n d e p r í n c i p e a o t o m a r
q u a l q u e r p r a ç a de i m p o r t â n c i a , e m vez de nos mostrar c o m o
a p r e v i d ê n c i a d o c o n q u i s t a d o r lhe fez e s c o l h e r o t e m p o e
m e i o s c o n v e n i e n t e s , e c o m o seu p o d e r r e m o v e u t o d o s os
o b s t á c u l o s , quisesse d i z e r q u e assim a c o n t e c e r a p o r q u e os
corpúsculos da pólvora, tendo-se libertado e m contato c o m

43
42
Discurso de metafísica e outros textos—

como, p o r e x e m p l o , se a Terra era antes r e d o n d a d o q u e p l a -


XX. Notável passagem de Sócrates, na c p o r q u e f o r a m e l h o r ser assim d o q u e d e o u t r o m o d o .
no Fédon de Platão, contra os filósofos Além d i s s o , esperava q u e , d i z e n d o - m e se a Terra se e n c o n -
demasiado materiais. tra o u n ã o n o c e n t r o d o u n i v e r s o , m e e x p l i c a r i a a c o n v e -
n i ê n c i a d e assim acontecer. E o m e s m o m e d i r i a d o Sol. d a
Lua, das estrelas e dos seus m o v i m e n t o s . . . E p o r f i m , d e p o i s
de ter m o s t r a d o o c o n v e n i e n t e a cada coisa e m p a r t i c u l a r ,
me m o s t r a r i a o m e l h o r e m g e r a l .
''Cheio desta e s p e r a n ç a , t o m e i e p e r c o r r i c o m s o f r e g u i -
d ã o os l i v r o s d e A n a x á g o r a s . A c h e i - m e , p o r é m , b e m l o n g e
d o q u e esperava, p o i s e s p a n t o u - m e observar q u e n à o se
I s t o f a z - m e l e m b r a r u m a bela p a s s a g e m d e S ó c r a t e s , u t i l i z a v a desta i n t e l i g ê n c i a g o v e r n a d o r a a q u e d e r a p r i m a -
n o Fédon"' d e Platão, m a r a v i l h o s a m e n t e d e a c o r d o c o m os zia. N ã o m a i s falava d o a p r i m o r a m e n t o n e m da p e r f e i ç ã o
m e u s s e n t i m e n t o s a este r e s p e i t o e q u e p a r e c e feita d e p r o - das coisas e i n t r o d u z i a certas m a t é r i a s e t é r e a s p o u c o v e r o s -
p ó s i t o c o n t r a os nossos filósofos d e m a s i a d o materiais. T a m - símeis.
b é m essa r e l a ç ã o l e v o u - m e a t r a d u z i - l a , c o n q u a n t o seja u m " P r o c e d i a neste p o n t o c o m o q u e m , h a v e n d o d i t o q u e
p o u c o l o n g a . T a l v e z esta a m o s t r a possa d a r a z o a a l g u é m Sócrates faz as coisas c o m i n t e l i g ê n c i a , logo e m seguida
d e partilhar conosco muitos outros pensamentos belos e viesse e x p l i c a r , e m p a r t i c u l a r , as causas das suas a ç õ e s , d i -
s ó l i d o s , e x i s t e n t e s n o s escritos deste a u t o r f a m o s o . z e n d o estar a q u i s e n t a d o p o r ter u m c o r p o c o m p o s t o d e
ossos, c a r n e e n e r v o s , s e r e m s ó l i d o s os ossos, mas c o m i n -
tervalos o u a r t i c u l a ç õ e s , p o d e r e m os n e r v o s e n c o l h e r - s e e
" U m dia o u v i \z c i e , " a l g u é m l e r u m l i v r o d e A n a x á -
distender-se, e p o r isso o c o r p o ser flexível e, f i n a l m e n t e ,
goras e m q u e h a v i a estas palavras: um ser inteligente era
ser essa a r a z ã o d e e u estar s e n t a d o . O u se, t e n t a n d o d a r a
causa de todas as coisas, e as tinha disposto e aprimorado.
razão d o p r e s e n t e d i s c u r s o , recorresse a o ar, aos ó r g ã o s d a
I s t o m a r a v i l h o u - m e e m e x t r e m o , p o r q u e e u a c r e d i t a v a ser
voz e d o o u v i d o , e coisas parecidas, e s q u e c e n d o , e n t r e t a n -
t u d o da f o r m a mais p e r f e i t a p o s s í v e l , se o m u n d o fosse
to, as causas v e r d a d e i r a s , a saber, q u e os atenienses a c r e d i -
efeito de u m a inteligência. Por isso acreditava q u e q u e m p r e -
taram ser m e l h o r a m i n h a c o n d e n a ç ã o à m i n h a a b s o l v i ç ã o
tendesse e x p l i c a r a r a z ã o d a f o r m a ç ã o , p e r e c i m e n t o o u s u b -
e a m i m m e pareceu m e l h o r permanecer aqui sentado d o
s i s t ê n c i a d a s coisas d e v e r i a p r o c u r a r c o n h e c e r o q u e c o n v i - q u e f u g i r . Pois, p o r q u e m s o u , s e m esta r a z ã o e s t a r i a m há
ria à p e r f e i ç ã o d e cada coisa. A s s i m , o h o m e m t à o - s o m c n l e m u i t o estes ossos e n e r v o s nas terras dos B e ó c i o s e M e g á -
teria d e c o n s i d e r a r e m si o u e m q u a l q u e r o u t r a coisa o m e - ~*rios. se m e n ã o tivesse p a r e c i d o mais justo e h o n e s t o su-
l h o r e o mais perfeito, pois q u e m conhecesse o mais p e r f e i t o p o r t a r o castigo q u e a pátria m e q u e r i m p o r d o q u e v i v e r
p o r ele j u l g a r i a f a c i l m e n t e d o i m p e r f e i t o , v i s t o e x i s t i r ape- v a g a b u n d o e e x i l a d o . Por isso n ã o é r a z o á v e l c h a m a r c a u -
nas u m a c i ê n c i a , t a n t o para u m c o m o p a r a o u t r o . sas a estes ossos, n e r v o s e seus m o v i m e n t o s .
' ' C o n s i d e r a n d o t u d o isto, r e g o z i j a v a - m e d c ter e n c o n - " E m v e r d a d e t e r i a r a z à o q u e m dissesse eu n ã o p o d e r
t r a d o u m m e s t r e q u e p o d e r i a e n s i n a r as r a z õ e s das coisas, fazer isto t u d o s e m ossos e s e m n e r v o s , mas u m a coisa é a

45
44
G. W. Leibniz

causa v e r d a d e i r a . . . e o u t r a , o q u e n â o passa d e c o n d i ç õ e s
p a r a a causa p o d e r ser causa... XXL Se as regras mecânicas
"Os q u e d i z e m , p o r e x e m p l o , q u e s o m e n t e o m o v i - dependessem unicamente da
m e n t o d c r o t a ç ã o d o s c o r p o s sustenta a Terra a l i o n d e cia
se e n c o n t r a e s q u e c e m ter a p o t e n c i a d i v i n a d i s p o s t o t u d o
geometria sem a metafísica, os
d a m a i s b e l a m a n e i r a e n à o c o m p r e e n d e m ser o b e m e o fenómenos seriam outros.
belo que unem, f o r m a m e mantêm o mundo..."

Até a q u i S ó c r a t e s , p o r q u e o q u e se s e g u e e m P í a t à o
acerca das i d e i a s o u das f o r m a s n à o é m e n o s e x c e l e n t e ,
mas u m p o u c o m a i s difícil.

O r a , v i s t o q u e s e m p r e se r e c o n h e c e u a s a b e d o r i a de
D e u s n o p o r m e n o r da e s t r u t u r a m e c â n i c a de a l g u n s c o r p o s
p a r t i c u l a r e s , d e v e n e c e s s a r i a m e n t e ter-se t a m b é m r e v e l a d o
na e c o n o m i a g e r a l d o m u n d o e na c o n s t i t u i ç ã o das leis da
natureza. T a n t o é v e r d a d e , q u e nas leis d o m o v i m e n t o e m
geral se n o t a m os d e s í g n i o s dessa sabedoria. Pois, se n o cor-
p o n a d a h o u v e s s e a l é m de massa extensa, e n o m o v i m e n -
to, s e n ã o m u d a n ç a d e lugar, e se t u d o devesse e p u d e s s e
d e d u z i r - s e e x c l u s i v a m e n t e destas d e f i n i ç õ e s p o r necessida-
de g e o m é t r i c a , e u c o n c l u i r i a , c o m o já d e m o n s t r e i algures™,
q u e o c o r p o m e n o r daria ao m a i o r , q u e e n c o n t r a s s e e q u e
estivesse e m r e p o u s o , a m e s m a v e l o c i d a d e q u e t e m , s e m
q u a l q u e r p e r d a d a sua p r ó p r i a . T e r i a m d e a d m i t i r - s e , a i n d a ,
m u i t a s outras regras c o m o estas, a b s o l u t a m e n t e contrárias
à f o r m a ç ã o de u m sistema. P o r é m , o d e c r e t o da s a b e d o r i a
d i v i n a d e c o n s e r v a r s e m p r e a m e s m a força e a m e s m a d i r e -
ç ã o n o t o t a l p r o v e u a isto. A c h o m e s m o q u e vários efeitos
da natureza p o d e m d e m o n s t r a r - s e d e d u p l a f o r m a , a saber;
? p e l a c o n s i d e r a ç ã o d a causa e f i c i e n t e , e a i n d a , i n d e p e n d e n -
t e m e n t e desta, p e l a c o n s i d e r a ç ã o d a causa f i n a l , r e c o r r e n -
do, p o r e x e m p l o , ao decreto de Deus p r o d u z i r sempre o
e f e i t o pelas vias m a i s s i m p l e s e d e t e r m i n a d a s , c o m o m o s -
t r e i e m o u t r o lugar, q u a n d o e x p u s a r a z à o das regras d a ca-
tóptrica e d a dióptrica" . Acerca deste assunto v o l t a r e i e m
9

b r e v e a falar.

46
47
. Discurso de metafísica e outros textos .

XXII. Conciliação das duas vias, m e n t e i n v e n t a d o s . E D e u s é u m a r t e s ã o bastante h á b i l para


pelas causas finais e pelas causas p r o d u z i r u m a m á q u i n a m i l vezes mais e n g e n h o s a d o q u e a
do n o s s o c o r p o , n â o u t i l i z a n d o s e n ã o a l g u n s f l u i d o s bas-
eficientes, afim de satisfazer tanto tante s i m p l e s e x p r e s s a m e n t e f o r m a d o s de m a n e i r a a s ó ne-
os que explicam a natureza cessitarem das leis o r d i n á r i a s d a n a t u r e z a p a r a os m i s t u r a r
mecanicamente como os que c o m o r e q u e r a p r o d u ç ã o d e u m e f e i t o t ã o admirável. É t a m -
recorrem ãs naturezas incorpóreas. b é m v e r d a d e , n o e n t a n t o , q u e isto n ã o aconteceria, se n ã o
fosse D e u s o a u t o r da n a t u r e z a . N o e n t a n t o , creio q u e a v i a
das causas eficientes, s e n d o , c o m e f e i t o , a mais p r o f u n d a e
d e certa m a n e i r a m a i s i m e d i a t a e a priori, é e m c o n t r a p a r -
tida bastante difícil, q u a n d o se d e s c e até o p o r m e n o r , e
C o n v é m fazer esta o b s e r v a ç ã o a f i m d e c o n c i l i a r os creio q u e os nossos f i l ó s o f o s , f r e q u e n t e m e n t e , a i n d a e s t ã o
q u e e s p e r a m e x p l i c a r m e c a n i c a m e n t e a f o r m a ç ã o da p r i - m u i t o l o n g e disso. A v i a das causas f i n a i s é , p o r é m , mais fá-
m e i r a t e x t u r a d e u m a n i m a l e t o d a a m á q u i n a das suas p a r - cil, e n â o d e i x a de servir f r e q u e n t e m e n t e para a d e s c o b e r -
tes c o m os q u e e n c o n t r a m a r a z ã o desta m e s m a e s t r u t u r a ta d e v e r d a d e s i m p o r t a n t e s e úteis, q u e t e r i a m de ser d e -
pelas causas finais. A m b a s as e x p l i c a ç õ e s s ã o boas, a m b a s m o r a d a m e n t e p r o c u r a d a s p o r a q u e l e o u t r o c a m i n h o mais
p o d e m ser úteis, n ã o s ó p a r a se a d m i r a r a h a b i l i d a d e d o físico, d o q u a l a a n a t o m i a p o d e d a r e x e m p l o s c o n s i d e r á -
g r a n d e o p e r á r i o , m a s a i n d a p a r a d e s c o b r i r a l g o útil na físi- veis. A s s i m , c r e i o q u e Snellius"", o p r i m e i r o i n v e n t o r das r e -
ca e na m e d i c i n a . E o s a u t o r e s q u e s e g u e m estas vias d i f e - gras da r e f r a ç à o , d e m o r a r i a m u i t o m a i s a e n c o n t r á - l a s se
rentes n à o d e v e r i a m hostilizar-se. Reparo, n o e n t a n t o , os p r i m e i r a m e n t e quisesse c o n h e c e r a f o r m a ç ã o d a l u z , mas
q u e se a f a d i g a m e m e x p l i c a r a beleza d a d i v i n a estrutura s e g u i u a p a r e n t e m e n t e o m é t o d o u s a d o p e l o s antigos p a r a
das s u b s t â n c i a s o r g a n i z a d a s c a ç o a r e m d o s q u e i m a g i n a m a c a t ó p t r i c a , q u e v a i e f e t i v a m e n t e pelas causas finais. Pois,
p o d e r u m m o v i m e n t o a p a r e n t e m e n t e f o r t u i t o de certos f l u i - p r o c u r a n d o o c a m i n h o mais s i m p l e s p a r a c o n d u z i r u m r a i o
dos p r o v o c a r t ã o bela v a r i e d a d e d e m e m b r o s , e a c o i m a m d e l u z d e u m p o n t o d a d o p a r a u m o u t r o d a d o pela refle-
estes últimos d e p r o f a n o s e t e m e r á r i o s . K estes, p o r sua v e z . x ã o de u m p l a n o d e t e r m i n a d o ( s u p o n d o ser este o d e s í g -
c o g n o m i n a m os p r i m e i r o s d e i n g é n u o s e s u p e r s t i c i o s o s , se- n i o da n a t u r e z a ) , a c h a r a m a i g u a l d a d e d o s â n g u l o s d e i n c i -
m e l h a n t e s à q u e l e s a n t i g o s q u e c o n s i d e r a v a m í m p i o s os fí- d ê n c i a e de r e f l e x ã o , c o m o p o d e ver-se n u m p e q u e n o tra-
sicos, q u a n d o d e f e n d i a m n ã o ser J ú p i t e r q u e m t r o v o a , m a s t a d o d e H e l i o d o r o d e Larissa e e m o u t r o s vários. Eoi q u e
71

s i m a l g u m a m a t é r i a e x i s t e n t e nas n u v e n s . O m e l h o r seria ^•Snellius, c o m o c r e i o , e d e p o i s F e r m a f ( e m b o r a t u d o i g n o -


2

r e u n i r a m b a s as e x p l i c a ç õ e s , p o i s , se é p e r m i t i d o r e c o r r e r a r a n d o d o p r i m e i r o ) a p l i c a r a m m a i s e n g e n h o s a m e n t e à re-
u m a c o m p a r a ç ã o grosseira, r e c o n h e ç o e e x a l t o a h a b i l i d a - fraçào. Pois, desde q u e os raios o b s e r v e m n o s mesmos m e i o s
d e d e u m o p e r á r i o , n ã o s ó m o s t r a n d o os f i n s a q u e v i s o u a m e s m a p r o p o r ç ã o d o s senos, q u e é t a m b é m a das resis-
a o fazer as p e ç a s d a sua m á q u i n a , mas a i n d a e x p l i c a n d o os t ê n c i a s d o s m e i o s , v ê - s e q u e é a via m a i s simples o u p e l o
i n s t r u m e n t o s de, q u e se s e r v i u para fazer cada p e ç a , p r i n c i - m e n o s a m a i s d e t e r m i n a d a p a r a passar de u m p o n t o d a d o
p a l m e n t e se esses i n s t r u m e n t o s s à o s i m p l e s e e n g e n h o s a - n u m m e i o a u m p o n t o d a d o e m o u t r o . E falta m u i t o p a r a

48 49
Í

da descoberta
desconfair
u i ^ z c i p e i a \ das causas e f í c entes seia t à ^

& V e 5 S e « d
~aa^ia
o
^

^ u n a coisa
XXIII. Afim de voltar às substâncias
imateriais, explica-se como Deus age
sobre o entendimento dos espíritos e se
se tem sempre a ideia do que se pensa.

C o n s i d e r e i o p o r t u n o insistir u m p o u c o nestas c o n s i d e -
r a ç õ e s das causas finais, das naturezas i n c o r p ó r e a s e de u m a
causa i n t e l i g e n t e c o m r e l a ç ã o aos c o r p o s , a f i m d e m o s t r a r
a sua u t i l i d a d e , m e s m o na física e nas m a t e m á t i c a s , e c o n -
seguir, p o r u m l a d o , e x p u r g a r a f i l o s o f i a m e c â n i c a da p r o -
f a n i d a d e q u e se l h e i m p u t a , e, p o r o u t r o , e l e v a r o e s p í r i t o
d o s nossos f i l ó s o f o s d e c o n s i d e r a ç õ e s s i m p l e s m e n t e m a t e -
riais a m a i s n o b r e s m e d i t a ç õ e s . Será agora c o n v e n i e n t e v o l -
tar d o s c o r p o s às naturezas i m a t e r i a i s e p a r t i c u l a r m e n t e aos
espíritos, e d i z e r a l g o d a m a n e i r a usada p o r D e u s para escla-
r e c ê - l o s e a g i r s o b r e eles, n o q u e t a m b é m há i n d u b i t a v e l -
m e n t e certas leis da n a t u r e z a , d e q u e p o d e r e i n o u t r o l u g a r
falar c o m m a i o r d e s e n v o l v i m e n t o . Por ora, bastará a b o r d a r
a l g u m a coisa acerca das ideias, e se v e m o s todas as coisas
e m D e u s e c o m o D e u s é nossa luz ^. O r a , será o p o r t u n o n o -
7

tar q u e o m a u u s o das ideias o c a s i o n a n u m e r o s o s erros,


75

p o i s , q u a n d o se r a c i o c i n a s o b r e a l g u m a coisa, i m a g i n a - s e
ter u m a ideia desta coisa, e é o f u n d a m e n t o s o b r e o q u a l
alguns filósofos antigos e m o d e r n o s edificaram determina-
da d e m o n s t r a ç ã o de D e u s bastante i m p e r f e i t a . É n e c e s s á -
r i o , d i z e m , ter e u u m a ideia d e D e u s o u d e u m ser p e r f e i -
t o , p o i s n e l e p e n s o , e n ã o se p o d e r i a pensar s e m ideia. O r a ,
a ideia deste ser c o n t é m t o d a s as p e r f e i ç õ e s e a e x i s t ê n c i a
é u m a delas. Por c o n s e g u i n t e , D e u s existe. P o r é m , c o m o

50
51
G. W. Leibniz _

pensamos frequentemente e m quimeras impossíveis - p o r


e x e m p l o : n o último grau da velocidade, n o m a i o r de todos
XXIV. O que é conhecimento claro ou
o s n ú m e r o s , n o e n c o n t r o d a c o n c ó i d e c o m a sua base o u obscuro; distinto ou confuso; adequado
regra - , este r a c i o c í n i o n à o é suficiente ' . É, p o i s , neste sen-
7 1
e intuitivo ou supositivo; definição
tido q u e se p o d e d i z e r h a v e r ideias v e r d a d e i r a s e falsas,
nominal, real, causal, essencial
c o n f o r m e a coisa seja possível o u n â o . E s ó e n t à o p o d e r á
77

a l g u é m gabar-se d e t e r u m a i d e i a d a coisa, d e s d e q u e este-


ja s e g u r o d e sua p o s s i b i l i d a d e . P o r t a n t o , o s o b r e d i t o a r g u -
m e n t o p r o v a , p e l o m e n o s , q u e D e u s existe n e c e s s a r i a m e n -
te, se f o r possível. O q u e é, c o m e f e i t o , u m e x c e l e n t e p r i v i -
l é g i o da n a t u r e z a d i v i n a , o d e n â o r e q u e r e r s e n à o a sua
possibilidade o u e s s ê n c i a p a r a e x i s t i r a t u a l m e n t e , E é, p r e -
É p r e c i s o d i z e r a l g o acerca d a v a r i e d a d e d o s c o n h e c i -
c i s a m e n t e , o q u e se d e n o m i n a £ns a se.
m e n t o s , a f i m d e m e l h o r c o m p r e e n d e r a n a t u r e z a das
ideias * . Q u a n d o p o s s o r e c o n h e c e r u m a coisa entre o u t r a s ,
7 1

s e m p o d e r d i z e r e m q u e c o n s i s t e m suas d i f e r e n ç a s o u p r o -
p r i e d a d e s , o c o n h e c i m e n t o é confuso. Assim conhecemos
a l g u m a s vezes claramente, s e m d e m o d o a l g u m d u v i d a r , se
u m p o e m a o u q u a d r o e s t à o b e m o u m a l l e i t o s , p o r q u e hã
u m não sei quê q u e nos satisfaz o u n o s choca ". S e n d o - m e , 7

p o r é m , possível e x p l i c a r as marcas q u e t e n h o , o c o n h e c i -
m e n t o c h a m a - s e distinto. Tal é o c o n h e c i m e n t o d o contras-
teador q u e d i s t i n g u e o v e r d a d e i r o d o falso o u r o , p o r intermé-
d i o d e certas p r o v a s o u marcas d e f i n i d o r a s d o o u r o . P o r é m ,
o c o n h e c i m e n t o d i s t i n t o t e m graus, p o r q u e o r d i n a r i a m e n t e
as n o ç õ e s q u e e n t r a m na d e f i n i ç ã o , elas m e s m a s p r e c i s a -
riam d e definição e sào conhecidas apenas confusamente"".
Mas q u a n d o t u d o o q u e e n t r a n u m a d e f i n i ç ã o o u c o n h e c i -
m e n t o d i s t i n t o é d i s t i n t a m e n t e c o n h e c i d o até as n o ç õ e s p r i -
m i t i v a s , d e n o m i n o este c o n h e c i m e n t o adequado. Quando
**ò m e u espírito c o m p r e e n d e ao m e s m o t e m p o e d i s t i n t a m e n -
te t o d o s os elementos p r i m i t i v o s de u m a n o ç à o , t e m dela u m
c o n h e c i m e n t o intuitivo, s e m p r e m u i raro, p o i s a m a i o r p a r t e
dos c o n h e c i m e n t o s h u m a n o s s à o s o m e n t e c o n f u s o s , o u e n -
t à o supositivos*\m a i n d a d i s t i n g u i r as d e f i n i ç õ e s n o -
m i n a i s e reais. C h a m o definição nominal, q u a n d o se p o d e

52
53
— C. W. Leibniz

d u v i d a r d a possibilidade da n o ç ã o d e f i n i d a , c o m o , p o r e x e m - XXV. Em que caso nosso conhecimento


p l o , se d i g o q u e u m p a r a f u s o s e m f i m é u m a l i n h a s ó l i d a
se une à contemplação da ideia.
cujas partes s ã o c o n g r u e n t e s o u p o d e m i n c i d i r u m a s o b r e a
outra. Todavia, q u e m desconhecer u m parafuso sem f i m
p o d e d u v i d a r da p o s s i b i l i d a d e d e tal l i n h a , e m b o r a e f e t i v a -
m e n t e essa seja u m a p r o p r i e d a d e r e c í p r o c a " d o p a r a f u s o
2

s e m f i m , p o i s as outras l i n h a s , cujas partes s ã o c o n g r u e n t e s


( a p e n a s a c i r c u n f e r ê n c i a d o c í r c u l o e a l i n h a reta), s ã o p l a -
nas, q u e r dizer, p o d e m traçar-se in plano. Isto mostra p o d e r
t o d a p r o p r i e d a d e r e c í p r o c a servir p a r a u m a d e f i n i ç ã o n o m i -
n a l , mas, q u a n d o a p r o p r i e d a d e revela a p o s s i b i l i d a d e da
coisa, d á o r i g e m à definição real E e n q u a n t o se t e m a p e - O r a , é m a n i f e s t o n à o p o s s u i r m o s q u a l q u e r ideia d e
nas u m a d e f i n i ç ã o n o m i n a l n ã o se p o d e r á estar s e g u r o das u m a n o ç à o q u a n d o esta é impossível"*. E. q u a n d o o c o n h e -
c o n s e q u ê n c i a s dela o b t i d a s , p o r q u e , se escondesse a l g u m a c i m e n t o é s o m e n t e supositivo, ao l e r m o s a ideia n ã o a c o n -
c o n t r a d i ç ã o o u i m p o s s i b i l i d a d e , dela se p o d e r i a m tirar c o n - t e m p l a m o s , p o i s tal n o ç à o se c o n h e c e a p e n a s d a m e s m a
c l u s õ e s opostas. Eis p o r q u e as v e r d a d e s e m nada d e p e n - m a n e i r a q u e as n o ç õ e s o c u l t a m e n t e i m p o s s í v e i s , e, se ela é
d e m dos n o m e s , n e m s à o arbitrárias, c o m o j u l g a r a m a l g u n s possível, n ã o é p o r esta m a n e i r a de c o n h e c e r q u e p o d e ser
f i l ó s o f o s m o d e r n o s * . F i n a l m e n t e , a i n d a existe m u i t a d i f e - a p r e e n d i d a . Por e x e m p l o , q u a n d o p e n s o e m m i l o u n u m
r e n ç a entre as e s p é c i e s das d e f i n i ç õ e s reais, p o i s . q u a n d o a quiliógono, procedo frequentemente sem contemplar a ideia
p o s s i b i l i d a d e é p r o v a d a apenas p o r e x p e r i ê n c i a , c o m o na dele, c o m o q u a n d o d i g o q u e m i l é d e z vezes c e m , n à o m e
d e f i n i ç ã o d o m e r c ú r i o , d o q u a l se c o n h e c e a p o s s i b i l i d a d e p r e o c u p a n d o e m p e n s a r o q u e é 10 e 100, p o r q u e suponho
p o r se saber q u e u m tal c o r p o , f l u i d o , e x t r e m a m e n t e pesa- s a b ê - l o e n à o creio precisar n o m o m e n t o parar para conce-
d o e, n o e n t a n t o , assaz volátil, é e n c o n t r a d o e f e t i v a m e n t e , b ê - l o . A s s i m , p o d e r á m u i t o b e m acontecer, c o m o a c o n t e c e
a d e f i n i ç ã o é s o m e n t e real e n a d a m a i s . Q u a n d o , p o r é m , a c o m e f e i t o m u i t a s vezes, e n g a n a r - m e acerca de u m a n o ç à o
p r o v a da p o s s i b i l i d a d e se faz a priori, a definição é ainda q u e s u p o n h o o u c r e i o c o m p r e e n d e r , se b e m q u e . na v e r d a -
real e causal, c o m o q u a n d o c o n t é m a g é n e s e p o s s í v e l d a de, ela seja i m p o s s í v e l o u , p e l o m e n o s , i n c o m p a t í v e l c o m
coisa. E, se esgota a a n á l i s e , l e v a n d o - a até as n o ç õ e s p r i - a q u e l a s às q u a i s a j u n t o . E, q u e r eu m e e n g a n e o u n à o ,
m i t i v a s , s e m p r e s s u p o s t o s c a r e c i d o s d e p r o v a a priori da esta m a n e i r a s u p o s i t i v a d e c o n c e b e r p e r m a n e c e a m e s m a * .
sua p o s s i b i l i d a d e , a d e f i n i ç ã o é p e r f e i t a o u essencial. J j ó q u a n d o o n o s s o c o n h e c i m e n t o é claro nas n o ç õ e s c o n -
fusas, o u intuitivo nas d i s t i n t a s , é q u e n e l e v e m o s a i d e i a
Inteira'"'.

54 55
Discurso de metafísica e outros textos.

XXVI. Temos todas as ideias em nós. s i n a d o cuja ideia n ã o t e n h a m o s já n o espírito, pois essa ideia
Acerca da reminiscência de Platão. é c o m o a matéria d e q u e se f o r m a esse pensamento"". Eis o
q u e P l a t ã o c o n s i d e r o u e x c e l e n t e m e n t e , ao i n t r o d u z i r a sua
teoria da reminiscência, que t e m muita solidez, q u a n d o de-
v i d a m e n t e c o m p r e e n d i d a e e x p u r g a d a d o e r r o da p r e e x i s -
t ê n c i a , e q u a n d o n ã o se i m a g i n e q u e a a l m a já d e v i a ter sa-
b i d o e pensado outrora c o m distinção o que apreende e
pensa agora. Platão c o n f i r m o u ainda a sua o p i n i ã o p o r m e i o
de u m a bela e x p e r i ê n c i a , a p r e s e n t a n d o u m r a p a z i n h o q u e
i n s e n s i v e l m e n t e l e v o u até as mais difíceis v e r d a d e s cia g e o -
m e t r i a relativas aos i n c o m e n s u r á v e i s , s e m nada l h e ter e n -
Para c o n c e b e r b e m o q u e é u m a i d e i a é p r e c i s o afasta r sinado e apenas fazendo perguntas p o r o r d e m e a propósi-
u m equívoco, pois muitos a t o m a m pela forma o u diferen- t o . O q u e m o s t r a q u e a nossa a l m a sabe v i r t u a l m e n t e t o d a s
ç a d e nossos p e n s a m e n t o s , e deste m o d o s ó t e m o s a ideia estas coisas e apenas r e q u e r animadversivnvs para c o n h e -
n o espírito e n q u a n t o a p e n s a m o s , e t e m o s outras ideias da cer as v e r d a d e s , e p o r c o n s e q u ê n c i a p o s s u i , p e l o m e n o s ,
m e s m a coisa, e m b o r a semelhantes à p r i m e i r a , cada v e z q u e as ideias d e q u e d e p e n d e m estas v e r d a d e s . Pode até d i z e r -
a p e n s a m o s . Parece, p o r é m , ser t o m a d a p o r o u t r o s c o m o se q u e já possui estas v e r d a d e s , q u a n d o t o m a d a s c o m o as
u m objeto i m e d i a t o d o pensamento o u c o m o alguma for- r e l a ç õ e s e n t r e as ideias ".
m a p e r m a n e n t e , q u e persiste m e s m o q u a n d o a n ã o c o n -
t e m p l a m o s . C o m e f e i t o , a nossa a l m a t e m s e m p r e nela a
q u a l i d a d e de se representar q u a l q u e r n a t u r e z a o u f o r m a ,
seja q u a l for, q u a n d o surge a o c a s i ã o d e p e n s a r nela" . E 7

desde que expresse qualquer natureza, f o r m a o u essência,


a c r e d i t o ser esta q u a l i d a d e da nossa a l m a p r o p r i a m e n t e a
i d e i a da coisa, existente e m n ó s e s e m p r e e m n ó s , q u e r nela
p e n s e m o s o u n ã o . P o r q u e a nossa a l m a e x p r i m e D e u s , o
u n i v e r s o e t o d a s as e s s ê n c i a s , assim c o m o t o d a s as e x i s t ê n -
cias"". Isto c o n c o r d a c o m os m e u s p r i n c í p i o s , p o r q u e n a t u -
r a l m e n t e n a d a p e n e t r a n o n o s s o espírito v i n d o d o e x t e r i o r ,
e é m a u h a b i t o p e n s a r m o s c o m o se a nossa a l m a recebes-
se a l g u m a s e s p é c i e s mensageiras e tivesse p o r t a s e janelas.
T e m o s todas estas f o r m a s n o espírito, e as t e m o s desde s e m -
p r e , p o r q u e o espírito e x p r i m e s e m p r e t o d o s os seus p e n -
s a m e n t o s f u t u r o s , e já p e n s a c o n f u s a m e n t e e m t u d o o q u e
u m d i a p e n s a r á c o m d i s t i n ç ã o . E nada nos p o d e r i a ser e n -

56
Discurso tii' metafísica e outros textos

cumpria, n o entanto, escolher termos próprios a u m e o u t r o


XXVIL De que modo pode comparar-se sentido. A s s i m , p o d e m d e n o m i n a r - s e ideias essas e x p r e s s õ e s
a nossa alma a tabuinhas vazias, c o n c e b i d a s o u n ã o , q u e e s t ã o na nossa a l m a , mas aquelas
e como as nossas noções provêm q u e se c o n c e b e m o u f o r m a m p o d e m d e n o m i n a r - s e noções,
conceptus. Seja, p o r é m , c o m o for, é s e m p r e falso d i z e r p r o -
dos sentidos. v i r e m d o s s e n t i d o s c h a m a d o s e x t e r n o s t o d a s as nossas n o -
ç õ e s , p o i s as q u e t e n h o d e m i m e d o s m e u s pensamen-
tos, e p o r c o n s e g u i n t e as d o sei, d a s u b s t â n c i a , d a a ç à o , d a
identidade e de muitas outras, p r o v ê m de u m a experiência
interna . 01

Aristóteles p r e f e r i u c o m p a r a r a nossa a l m a a p e q u e n a s
t á b u a s a i n d a vazias, o n d e há l u g a r para escrever, e susten-
t o u nada e x i s t i r n o n o s s o e n t e n d i m e n t o q u e n à o v e n h a p o r
m e i o dos s e n t i d o s . T e m esta a f i r m a ç ã o a v a n t a g e m d e ser
mais c o n f o r m e às n o ç õ e s p o p u l a r e s , c o m o é d e uso de
Aristóteles, ao passo q u e P l a t ã o v a i mais f u n d o . E n t r e t a n -
, ; l

t o , estas e s p é c i e s d e d o x o l o g i a s o u p r a t i c o l o g i a s p o d e m
passar ao uso o r d i n á r i o , tal c o m o v e m o s q u e os q u e se-
g u e m C o p é r n i c o n ã o d e i x a m d e d i z e r q u e o sol se l e v a n t a
e se p õ e . M u i t a s vezes m e parece até p o s s í v e l d a r - l h e s u m
s e n t i d o , s e g u n d o o q u a l nada t ê m d e falso, e, assim c o m o
já i n d i q u e i de q u e m o d o se p o d e v e r d a d e i r a m e n t e d i z e r
a g i r e m umas sobre as outras as s u b s t â n c i a s particulares, nes-
ta m e s m a a c e p ç ã o p o d e t a m b é m dizer-se q u e r e c e b e m o s
d e f o r a c o n h e c i m e n t o s através dos s e n t i d o s , p o r a l g u m a s
coisas externas c o n t e r e m o u e x p r i m i r e m mais p a r t i c u l a r m e n -
te as r a z õ e s q u e d e t e r m i n a m a nossa a l m a a certos p e n s a -
mentos"-. T o d a v i a , q u a n d o se trata da e x a t i d à o das v e r d a -
des metafísicas, i m p o r t a r e c o n h e c e r a e x t e n s ã o e i n d e p e n -
d ê n c i a d a nossa a l m a , q u e a l c a n ç a i n f i n i t a m e n t e m a i s l o n -
ge d o q u e s u p õ e o vulgo * , se b e m q u e n o u s o o r d i n á r i o d a
1 3

v i d a s ó l h e seja a t r i b u í d o a q u i l o d e q u e se a p e r c e b e c o m
m a i o r e v i d ê n c i a e n o s p e r t e n c e de m a n e i r a p a r t i c u l a r , p o r -
q u e de nada serve i r mais l o n g e . A f i m de e v i t a r e q u í v o c o s

59
58
Discurso de Metafísica e outros textos

a l u z da alma e, s e g u n d o seu m o d o de dizer, mdleclu


XXVIIL Deus é o único objeto imediato unimae raHonalis». Os averroístas a d u l t e r a r a m - l h e o, e n l -
das nossas percepções existente fora d o m a s ovares, e n t r e os q u a i s p e n s o e n m n t r a r - s e G u i l h e r -
de nós, e só ele é a nossa luz. m e de S a n t o - A m o r e d i v e r s o s t e ó l o g o s rmshcos interpreU-
ram-na d e m a n e i r a d i g n a d e D e u s e capa/ de elevar a a l m a
até o c o n h e c i m e n t o d o seu b e m .

O r a , n o s e n t i d o r i g o r o s o da v e r d a d e metafísica, n ã o há
causa a l g u m a extern;] a g i n d o e m n ó s , a n à o ser D e u s , e so-
m e n t e ele se c o m u n i c a i m e d i a t a m e n t e a n ó s , e m v i r t u d e da
nossa c o n t í n u a d e p e n d ê n c i a \e se c o n c l u i q u e n ã o
r

há n e n h u m o u t r o o b j e t o e x t e r n o a f e t a n d o nossa a l m a e
e x c i t a n d o i m e d i a t a m e n t e a nossa p e r c e p ç ã o . T e m o s assim
e m nossa a l m a as ideias d e todas as coisas a p e n a s d e v i d o à
c o n t í n u a a ç ã o de Deus s o b r e n ó s , q u e r dizer, pela r a z ã o d e
t o d o efeito e x p r i m i r sua causa, e p o r isso a e s s ê n c i a d a n o s -
sa alma 6 u m a certa e x p r e s s ã o , i m i t a ç ã o o u i m a g e m d a es-
s ê n c i a , p e n s a m e n t o e v o n t a d e d i v i n a e de i o d a s as ideias aí
c o m p r e e n d i d a s . P o d e , p o r c o n s e g u i n t e , dizer-se q u e D e u s
é n o s s o ú n i c o o b j e t o i m e d i a t o fora d e n ó s e é p o r seu i n -
t e r m é d i o q u e v e m o s todas as coisas. P o r e x e m p l o , q u a n d o
v e m o s o sol e os astros, foi Deus q u e m nos d e u e conserva as
ideias e, p e l o seu c o n c u r s o ordinário, nos d e t e r m i n a a pensar
nelas e f e t i v a m e n t e , a o m e s m o t e m p o q u e os nossos s e n t i d o s
e s t ã o d i s p o s t o s de u m a certa m a n e i r a s e g u n d o as leis p o r
ele estabelecidas. D e u s é o sol e a l u z das almas, lúmen illu-
minans omnem hominem venientem in bunc mundum"\
esta c o n v i c ç ã o n à o data de hoje" . D e p o i s da Sagrada Escritu-
7

ra e dos Santos Padres ( q u e sempre estiveram mais p o r Platão


d o q u e p o r Aristóteles), r e c o r d o - m e d e l e r n o t a d o o u t r o r a
q u e , n o t e m p o dos escolásticos, m u i t o s a c r e d i t a r a m ser D e u s

61
60
XXIX. No entanto, pensamos XXX. Como Deus inclina nossa
imediatamente pelas nossas próprias alma sem a necessitar. Ninguém tem o
ideias e não pelas de Deus. direito de queixar-se, e não se deve
perguntar por que Judas peca, mas sim
por que Judas, o pecador, é admitido ã
existência, de preferência a algumas
pessoas possíveis. Da imperfeição
original antes do pecado e dos
graus da graça.
N o e n t a n t o , n ã o s o u d a o p i n i ã o d e a l g u n s h á b e i s filó-
sofos"', q u e p a r e c e m sustentar q u e as nossas próprias ideias
e s t ã o e m D e u s c n â o e m n ó s . E m m i n h a o p i n i ã o , isto se N o q u e concerne à a ç ã o de Deus sobre a vontade h u -
d e v e ao f a t o d e n â o t e r e m c o n s i d e r a d o a i n d a d e v i d a m e n t e m a n a h á n u m e r o s a s c o n s i d e r a ç õ e s , bastante difíceis, q u e
n e m o q u e acerca das s u b s t â n c i a s a c a b a m o s d e c o n s i d e r a r seria l o n g o s e g u i r a q u i 101 . T o d a v i a eis, p o r a l t o , o q u e se
a q u i , n e m t o d a a e x t e n s ã o e i n d e p e n d ê n c i a d a nossa a l m a , p o d e dizer. D e u s , c o n c o r r e n d o o r d i n a r i a m e n t e p a r a as n o s -
q u e a faz c o n t e r t u d o q u a n t o l h e a c o n t e c e e e x p r i m i r D e u s
sas a ç õ e s , a p e n a s segue as leis q u e estabeleceu, isto é,
e, c o m ele. t o d o s os seres p o s s í v e i s e atuais, c o m o u m e f e i -
c o n s e r v a e p r o d u z c o n t i n u a m e n t e o n o s s o ser d c f o r m a
t o e x p r i m e a sua causa. A l é m disso, é i n c o n c e b í v e l q u e e u
que nossos p e n s a m e n t o s n o s c h e g a m e s p o n t â n e a o u l i v r e -
p e n s e c o m as ideias d e o u t r e m . F. f o r ç o s o t a m b é m q u e a
m e n t e , s e g u n d o a o r d e m implícita na n o ç ã o d a nossa subs-
a l m a seja e f e t i v a m e n t e afetada d e u m a certa m a n e i r a q u a n -
tância i n d i v i d u a l , na q u a l se p o d i a m p r e v e r desde t o d a a
d o pensa e m a l g u m a coisa, e nela t e n h a d c h a v e r d e a n t e -
e t e r n i d a d e . A d e m a i s , e m v i r t u d e d o d e c r e t o p o r ele estabe-
m ã o n ã o s ó a p o t ê n c i a passiva d e p o d e r ser assim afetada.
a q u a l se e n c o n t r a já c o m p l e t a m e n t e d e t e r m i n a d a , m a s a i n - l e c i d o d a v o n t a d e t e n d e r s e m p r e p a r a o b e m a p a r e n t e , ex-
d a u m a p o t ê n c i a ativa, e m v i r t u d e da q u a l t e n h a m h a v i d o p r i m i n d o o u i m i t a n d o a v o n t a d e de D e u s s o b certos aspec-
s e m p r e n a sua n a t u r e z a marcas d a p r o d u ç ã o f u t u r a deste tos p a r t i c u l a r e s , r e l a t i v a m e n t e aos quais esse b e m a p a r e n t e
p e n s a m e n t o e d i s p o s i ç õ e s para p r o d u z i - l o e m t e m p o o p o r - t e m s e m p r e a l g o de v e r d a d e i r o , d e t e r m i n a a nossa p a r a a
t u n o " " . T u d o isto j á i m p l i c a a i d e i a c o m p r e e n d i d a neste
1 e s c o l h a d o q u e p a r e c e m e l h o r , s e m c o n t u d o a necessitar.
pensamento. J í o r q u e , f a l a n d o d e m o d o a b s o l u t o , a v o n t a d e está na i n d i -
f e r e n ç a , d e s d e q u e se o p o n h a à necessidade, e t e m o p o -
der de proceder diversamente ou ainda de suspender de
t o d o a sua a ç ã o , p o i s a m b o s os p a r t i d o s s ã o e c o n t i n u a m
p o s s í v e i s . D e p e n d e , p o r t a n t o , da a l m a precaver-se c o n t r a
102

as surpresas das a p a r ê n c i a s p o r u m a f i r m e v o n t a d e de r e -
lletir, e d c n u n c a agir n e m j u l g a r e m certas o c a s i õ e s , s e n ã o

62 63
. . - /Xvt urso cie metafísica e outrvs textos^. - ._

d e p o i s d e l e r d e l i b e r a d o b e m m a d u r a m e n t e . É, n o e n t a n t o , a d m i r á v e l e c o n o m i a desta escolha. É bastante s a b ê - l o , s e m


v e r d a d e i r o e m e s m o certo, desde toda a eternidade, q u e o compreender. É aqui o m o m e n t o de reconhecer altittidi-
n e n h u m a a l m a se h á d e s e r v i r deste p o d e r e m d e t e r m i n a d a nem divitian<rn \ p r o f u n d i d a d e e o a b i s m o d a s a b e d o r i a
iU

c i r c u n s t â n c i a . Mas q u e m é c u l p a d o disso? E p o d e acaso e l a d i v i n a , s e m buscar u m e s m i u ç a m e n t o q u e e n v o l v e c o n s i -


q u e i x a r - s e s e n à o d e si mesma? P o i s t o d a s essas q u e i x a s d e - d e r a ç õ e s infinitas. Entretanto, vê-se c l a r a m e n t e n ã o ser Deus
p o i s d o a c o n t e c i m e n t o s à o t à o injustas q u a n t o o t e r i a m s i d o a causa d o m a l , p o i s n à o s ó o p e c a d o o r i g i n a l se a p o d e r o u
a n t e s d e l e . O r a , essa a l m a , u m p o u c o antes d e pecar, d e d a a i m a d e p o i s da p e r d a d a i n o c ê n c i a d o s h o m e n s , mas
b o a v o n t a d e sc q u e i x a r i a d e D e u s c o m o d e t e r m i n a n d o - a a i n d a a n t e r i o r m e n t e havia u m a l i m i t a ç ã o o u i m p e r f e i ç ã o
a o pecado? Nestas m a t é r i a s s e n d o imprevisíveis as d e t e r m i - c o n a t u r a l a t o d a s as criaturas, t o r n a n d o - a s p e c á v e i s o u sus-
n a ç õ e s d e D e u s , c o m o p o d e ela saber estar d e t e r m i n a d a a o eefívei.s d e p e c a r . D e s a p a r e c e , a s s i m , a d i f i c u l d a d e , t a n t o
llp

p e c a d o , s e n à o d e p o i s d e e f e t i v a m e n t e pecar? A p e n a s se d o p o n t o d e vista d o s supralapsários" * c o m o d o s o u t r o s .


1

trata d e n ã o q u e r e r , e D e u s n â o p o d e r i a p r o p o r c o n d i ç ã o Eis, n o m e u e n t e n d e r , a o q u e se eleve r e d u z i r a o p i n i ã o d e


m a i s fácil e justa. A s s i m , t o d o s os juízes, s e m c u i d a r e m d e Santo A g o s t i n h o e d e o u t r o s autores, s e g u n d o a q u a l a r a i z
saber as r a z õ e s q u e d i s p u s e r a m u m h o m e m a t e r u m a v o n - d o m a l e s t á n o nada " , q u e r d i z e r , n a p r i v a ç ã o o u l i m i t a ç ã o
11 1

t a d e m ã , s ó se p r e o c u p a m e m c o n s i d e r a r q u a n t o é m á essa das criaturas, q u e D e u s r e m e d e i a , g r a c i o s a m e n t e , p e l o g r a u


v o n t a d e . M a s estará t a l v e z d e s d e t o d a a e t e r n i d a d e assegu- d e p e r f e i ç ã o q u e l h e apraz d a r a elas. Essa graça d e D e u s .
r a d o q u e pecarei? R e s p o n d e i v ó s m e s m o s ; t a l v e z n â o , e, seja ordinária o u e x t r a o r d i n á r i a , t e m seus graus e m e d i d a s ,
sem sonhar c o m o que n à o podereis conhecer e nenhuma é s e m p r e e f i c a z e m si m e s m a para p r o d u z i r u m c e r t o e f e i -
l u z v o s p o d e dar, a g i s e g u n d o o v o s s o dever, q u e c o n h e - to p r o p o r c i o n a d o , e ademais é sempre suficiente não só
ceis"". Mas, dirá u m o u t r o , d o n d e se s e g u e q u e este h o - p a r a nos p r e s e r v a r d o p e c a d o , mas a l é p a r a p r o d u z i r a sal-
m e m c o m e t e r á s e g u r a m e n t e este pecado? A resposta é fá- v a ç ã o , s u p o n d o nela a c o o p e r a ç ã o d o h o m e m na m e d i d a
c i l : d e o u t r a m a n e i r a n à o seria este h o m e m . P o i s D e u s v ê ,
1 h
e m q u e c o m p e t e . N o e n t a n t o , n e m s e m p r e ela é s u f i c i e n t e
d e s d e s e m p r e , q u e existirá u m c e r t o Judas, cuja n o ç ã o o u p a r a se s o b r e p o r às i n c l i n a ç õ e s d o h o m e m , p o i s de o u t r a
i d e i a q u e d e l e t e m c o n t é m esta l i v r e a ç ã o f u t u r a . Resta, f o r m a n ã o requereria mais nada, e isto está reservado s o m e n -
p o r t a n t o , t ã o - s ó a q u e s t ã o d e saber p o r q u e existe a t u a l - te à g r a ç a a b s o l u t a m e n t e eficaz, s e m p r e v i t o r i o s a , q u e r p o r
m e n t e u m t a l Judas, o t r a i d o r , q u e s ó é p o s s í v e l na i d e i a d e si, q u e r d e v i d o à c o n g r u ê n c i a das circunstâncias . 1111

D e u s . M a s p a r a esta q u e s t ã o n à o há neste m u n d o resposta


a esperar, a m e n o s q u e e m g e r a l d e v a dizer-se q u e , v i s t o
D e u s ter a c h a d o b o m q u e ele existisse, n ã o o b s r a n t e o p e -
c a d o p r e v i s t o , é f o r ç o s o este m a l r e c o m p e n s a r - s e c o m j u -
r o s n o u n i v e r s o , d e l e t i r a n d o D e u s u m b e m m a i o r c, e m
s u m a , essa s é r i e d e coisas, e m q u e se c o m p r e e n d e a e x i s -
t ê n c i a desse p e c a d o r , mostrar-se a mais p e r f e i t a e n t r e t o d a s
as o u t r a s m a n e i r a s possíveis '". Mas, e n q u a n t o s o m o s v i a j a n -
1

tes deste m u n d o , é i m p o s s í v e l e x p l i c a r s e m p r e , e m t u d o , a

64 6S
Discurso de metafísica e outros textos

XXXI. Dos motivos da eleição, da fé c o n c e b e r a g r a ç a à q u e l e s cujas d i s p o s i ç õ e s naturais f o s s e m


prevista, da ciência média, do decreto as m e l h o r e s o u , p e l o m e n o s , as m e n o s i m p e r f e i t a s o u m e -
absoluto e de que tudo se reduz ã nos m á s . Mas, q u a n d o assim fosse, p o d e r - s e - i a d i z e r q u e es-
tas d i s p o s i ç õ e s n a t u r a i s , e n q u a n t o boas, s ã o a i n d a o e f e i t o
razão que fez Deus chamar â
de u m a g r a ç a , e m b o r a ordinária, t e n d o D e u s b e n e f i c i a d o
existência tal pessoa possível, cuja Uns m a i s d o q u e o u t r o s , e, s a b e n d o D e u s m u i t o b e m q u e
noção contém uma certa série de estas v a n t a g e n s naturais dadas p o r ele s e r v i r ã o d c m o t i v o ã
graças e de ações livres, o que de uma graça o u a s s i s t ê n c i a e x t r a o r d i n á r i a , n ã o é, a f i n a l , v e r d a d e i -
ro s e g u n d o esta d o u t r i n a t u d o r e d u z i r - s e i n t e i r a m e n t e à sua
vez por todas acaba com as misericórdia? P o r t a n t o , v i s t o i g n o r a r m o s q u a n t o o u c o m o
dificuldades. Deus c o n s i d e r a as d i s p o s i ç õ e s n a t u r a i s na d i s p e n s a da g r a -
ça, c r e i o m a i s e x a t o e s e g u r o dizer, s e g u n d o os nossos p r i n -
cípios e c o m o já n o t e i , ser f o r ç o s o h a v e r entre os entes p o s -
E n f i m , s ã o as g r a ç a s d e D e u s g r a ç a s absolutamente síveis a pessoa de P e d r o o u d e J o ã o , cuja n o ç ã o o u ideia
p u r a s s o b r e as q u a i s as c r i a t u r a s n a d a t ê m a p r e t e n d e r . T\ c o n t é m t o d a esta série de g r a ç a s ordinárias e e x t r a o r d i n á -
e n t a n t o , c o m o p a r a e x p l i c a r a e s c o l h a f e i t a p o r D e u s ao rias e t o d o o resto destes a c o n t e c i m e n t o s c o m suas c i r c u n s -
d i s p e n s a r estas g r a ç a s n à o é s u f i c i e n t e r e c o r r e r à p r e v i s ã o tâncias e q u e , e n t r e u m a i n f i n i d a d e de outras pessoas i g u a l -
a b s o l u t a o u c o n d i c i o n a l " das a ç õ e s f u t u r a s d o s h o m e n s , é
1
mente possíveis, agradou a Deus escolhê-la para existir
t a m b é m f o r ç o s o n ã o se i m a g i n a r d e c r e t o s a b s o l u t o s , q u e a t u a l m e n t e . D i t o isto, p a r e c e nada mais h a v e r a p e r g u n t a r e
nào possuam algum motivo razoável" . N o que concerne à 2
d e s v a n e c e r e m - s e t o d a s as d i f i c u l d a d e s , p o i s , r e l a t i v a m e n t e
a esta ú n i c a e g r a n d e q u e s t ã o de saber p o r q u e a g r a d o u a
f é o u à s b o a s obras p r e v i s t a s , é c e r t í s s i m o D e u s s ó ter e l e i -
Deus e s c o l h ê - l a e n t r e tantas outras pessoas possíveis, é p r e -
t o a q u e l e s e m q u e p r e v i a a f é e a c a r i d a d e , anos se fide do-
ciso ser m u i t o p o u c o r a z o á v e l p a r a se n ã o c o n t e n t a r c o m
natunim praesc?vit '\s r e c o m e ç a d e n o v o a m e s m a
v

as r a z õ e s gerais q u e d e m o s , c u j o p o r m e n o r nos ultrapassa.


q u e s t ã o d e se saber p o r q u e D e u s d a r á a u n s , d e p r e f e r ê n -
Assim, e m vez d e r e c o r r e r a u m d e c r e t o a b s o l u t o q u e , n ã o
cia a o u t r o s , a g r a ç a d a fé o u das b o a s o b r a s . E, q u a n t o a
l e n d o razão, é inazoável, o u a razões que nunca conse-
esta c i ê n c i a d e D e u s , a p r e v i s ã o n â o d a f é e das b o a s
1

g u e m r e s o l v e r a d i f i c u l d a d e e c a r e c e m de outras r a z õ e s , o
a ç õ e s , m a s d e sua matéria e p r e d i s p o s i ç ã o , o u d a q u i l o c o m
m e l h o r será dizer, d e a c o r d o c o m S ã o P a u l o , q u e p a r a isso
q u e o h o m e m p a r a elas c o n t r i b u i r i a p o r sua p a r t e (já q u e é
há certas e g r a n d e s r a z õ e s d e s a b e d o r i a o u d e c o n g r u ê n c i a ,
certo haver diversidade d o lado dos homens exatamente
- d e s c o n h e c i d a s dos m o r t a i s mas f u n d a d a s na o r d e m g e r a l ,
o n d e a h á d o l a d o da g r a ç a , e q u e , c o m e f e i t o , é f o r ç o s o o
c u j o f i m é a m a i o r p e r f e i ç ã o d o u n i v e r s o , e observadas p o r
h o m e m p a r a isso a g i r t a m b é m d e p o i s , e m b o r a precise ser
D e u s " \i v ê m d a r os m o t i v o s da glória de D e u s e d a m a -
incitado ao b e m e c o n v e r t i d o ) , para m u i t o s parece p o d e r
n i f e s t a ç ã o da sua justiça, assim c o m o d a sua m i s e r i c ó r d i a , e
dizer-se q u e D e u s t e n d o visto o q u e o h o m e m faria .sem a e m g e r a l das suas p e r f e i ç õ e s e, f i n a l m e n t e , essa imensa p r o -
graça o u assistência extraordinária o u . p e l o menos, o q u e f u n d i d a d e d e r i q u e z a s de q u e o p r ó p r i o S ã o P a u l o t i n h a a
fará p o r sua p a r t e , a b s t r a i n d o a g r a ç a , p o d e r i a resolver-se a a l m a extasiada.

66
67
Discurso dc metafísica e oídros textos

XXXII. Utilidade destes princípios p a r t i c u l a r e s , n o s e n t i d o p o r m i m e x p l i c a d o a c i m a , p o r ser


em matéria de piedade e religião. d e s n e c e s s á r i o m e n c i o n a r c o n s t a n t e m e n t e a causa u n i v e r s a l
n o s casos p a r t i c u l a r e s " . V ê - s e t a m b é m q u e t o d a s u b s t â n c i a
7

t e m p e r f e i t a e s p o n t a n e i d a d e ( t o r n a d a l i b e r d a d e nas subs-
t â n c i a s i n t e l i g e n t e s ) , t u d o o q u e lhe s u c e d e é c o n s e q u ê n c i a
d a sua ideia o u d o seu ser, e n a d a , a n ã o ser D e u s , a d e t e r -
m i n a . E p o r isso u m a pessoa d e e l e v a d o espírito e d e res-
peitadíssima santidade costumava dizer q u e a alma deve
f r e q u e n t e m e n t e p e n s a r c o m o se m a i s n a d a , a n ã o ser ela
e D e u s , h o u v e s s e n o m u n d o '\, n a d a t o r n a mais c o m -
1

p r e e n s í v e l a i m o r t a l i d a d e " d o q u e essa i n d e p e n d ê n c i a e
9

A d e m a i s , p a r e c e q u e os p e n s a m e n t o s p o r n ó s o r a ex-
essa e x t e n s ã o d a a l m a , q u e a d e f e n d e c o m p l e t a m e n t e de
p l i c a d o s e, e m particular, o g r a n d e p r i n c í p i o d a p e r f e i ç ã o
t o d a s as coisas e x t e r i o r e s , p o i s ela s o z i n h a c o n s t i t u i t o d o o
das o p e r a ç õ e s d e D e u s e o da n o ç ã o d a s u b s t â n c i a q u e e n -
seu m u n d o e c o m D e u s se basta, e é t ã o i m p o s s í v e l p e r e -
cerra t o d o s os seus a c o n t e c i m e n t o s c o m t o d a s as suas cir-
cer s e m a n i q u i l a m e n t o , q u ã o i m p o s s í v e l o m u n d o ( d e q u e
c u n s t â n c i a s , b e m l o n g e de p r e j u d i c a r , s e r v e m para c o n f i r -
é e x p r e s s ã o v i v a e p e r e n e ) destruir-se a si m e s m o . T a m b é m
m a r a religião, para dissipar e n o r m e s d i f i c u l d a d e s , i n f l a m a r
n ã o é p o s s í v e l q u e f a ç a m a l g o s o b r e nossa a l m a as m u d a n -
as almas de u m a m o r d i v i n o e elevar os espíritos a o c o n h e -
ç a s dessa massa extensa c h a m a d a n o s s o c o r p o , n e m a d i s -
c i m e n t o das s u b s t â n c i a s i n c o r p ó r e a s , b e m mais d o q u e as
s i p a ç ã o deste destrua o q u e é indivisível.
h i p ó t e s e s vistas até a q u i * Pois, c l a r i s s i m a m e n t e se v ê d e -
1

p e n d e r e m de D e u s t o d a s as outras s u b s t â n c i a s , c o m o os
p e n s a m e n t o s e m a n a m d a nossa; ser D e u s t u d o e m t o d o s e
i n t i m a m e n t e u n i d o a todas as criaturas, e m b o r a na m e d i d a
das suas p e r f e i ç õ e s ; ser ele a d e t e r m i n á - l a s e x t e r n a m e n t e
p e l a sua i n f l u ê n c i a , e, se a g i r é d e t e r m i n a r i m e d i a t a m e n -
te, p o d e neste s e n t i d o dizer-se, e m l i n g u a g e m metafísica, q u e
s ó D e u s o p e r a s o b r e m i m , e s ó ele p o d e f a z e r - m e b e m o u
m a l , e m n a d a c o n t r i b u i n d o as outras s u b s t â n c i a s , a n ã o ser
na r a z ã o destas d e t e r m i n a ç õ e s , p o r q u e D e u s , c o n s i d e r a n -
do-as a t o d a s , r e p a r t e suas b o n d a d e s e o b r i g a - a s a a c o m o -
d a r e m - s e e n t r e si. I g u a l m e n t e , s ó D e u s estabelece a l i g a ç ã o
c a c o m u n i c a ç ã o das s u b s t â n c i a s e p o r seu i n t e r m é d i o os
f e n ó m e n o s d e u m a s se e n c o n t r a m e h a r m o n i z a m c o m os
de outras, h a v e n d o , p o r c o n s e q u ê n c i a , r e a l i d a d e nas n o s -
sas p e r c e p ç õ e s . Mas na prática a t r i b u i - s e a a ç ã o às r a z õ e s

68
69
Discurso de metafísica e outros textos.

p e r c e p ç õ e s d o s nossos s e n t i d o s , m e s m o q u a n d o sejam cla-


XXXIIL Explicação da união da alma ras, d e v e m c o n t e r n e c e s s a r i a m e n t e a l g u m s e n t i m e n t o c o n -
e do corpo, tida por inexplicável ou f u s o , p o i s , s i m p a t i z a n d o t o d o s os c o r p o s d o u n i v e r s o , o
miraculosa, e da origem das n o s s o r e c e b e a i m p r e s s ã o d e t o d o s o s o u t r o s e. e m b o r a os
nossos s e n t i d o s se r e f i r a m a t u d o , é i m p o s s í v e l nossa a l m a
percepções confusas.
a t u d o p o d e r a t e n d e r e m p a r t i c u l a r . Por isso s à o os nossos
sentimentos confusos o resultado de u m a variedade c o m p l e
tamente infinita de p e r c e p ç õ e s . E é quase c o m o o murmú-
r i o c o n f u s o o u v i d o p o r q u e m se a p r o x i m a da beira d o m a r
e p r o v e n i e n t e d a r e u n i ã o das r e p e r c u s s õ e s d e vagas i n u m e -
ráveis ^. O r a , se d e d i v e r s a s p e r c e p ç õ e s ( q u e n ã o c o n c o r -
1

d a m p a r a f a z e r e m u m a ) n e n h u m a h á q u e e x c e d a as o u t r a s ,
Compreende-sc também o i n o p i n a d o esclarecimento
e se p r o v o c a m m a i s o u m e n o s i m p r e s s õ e s i g u a l m e n t e for-
deste g r a n d e mistério d a u n i ã o da a l m a e d o c o r p o - , isto 1 0

tes o u i g u a l m e n t e capazes d e d e t e r m i n a r a a t e n ç ã o d a a l m a ,
é. c o m o a c o n t e c e q u e as p a i x õ e s e as a ç õ e s de u m deles se
esta s ó p o d e a p e r c e b e r - s e delas c o n f u s a m e n t e .
a c o m p a n h e m das a ç õ e s e p a i x õ e s d o o u t r o , o u m e l h o r , dos
f e n ó m e n o s c o n v e n i e n t e s d o o u t r o , p o r q u a n t o n à o ha m e i o
de se c o n c e b e r q u e u m tenha i n f l u ê n c i a s o b r e o o u t r o ,
n e m é razoável r e c o r r e r s i m p l e s m e n t e à o p e r a ç ã o e x t r a o r -
dinária d a causa u n i v e r s a l e m coisa ordinária e p a r t i c u l a r .
Eis. n o e n t a n t o , a v e r d a d e i r a r a z ã o : d i s s e m o s q u e t u d o
121

q u a n t o a c o n t e c e à a l m a e a cada s u b s t â n c i a é c o n s e q u ê n -
cia d c sua n o ç à o , l o g o a própria ideia o u e s s ê n c i a da a l m a
i m p l i c a t a m b é m q u e t o d a s as suas a p a r ê n c i a s o u p e r c e p -
ç õ e s d e v a m nascer-lhe (sponte) da sua p r ó p r i a n a t u r e z a e
p r e c i s a m e n t e d e sorte a r e s p o n d e r e m p o r si m e s m a s ao q u e
se passa e m t o d o o u n i v e r s o , mais p a r t i c u l a r e mais p e r f e i -
t a m e n t e , p o r é m , ao q u e se passa n o c o r p o q u e l h e está afe-
t o , p o i s é, d e a l g u m m o d o e p o r c e r t o t e m p o , s e g u n d o a
r e l a ç ã o d o s o u t r o s c o r p o s c o m o seu, q u e a alma e x p r i m e
o estado d o u n i v e r s o . Isto mostra, a i n d a , c o m o o n o s s o cor-
p o nos p e r t e n c e s e m estar c o n t u d o p r e s o à nossa e s s ê n -
c i a . E as pessoas q u e s a b e m m e d i t a r , p o r p o d e r e m v e r
122

e m q u e consiste a c o n e x ã o da a l m a e d o c o r p o , q u e p a r e -
ce i n e x p l i c á v e l p o r q u a l q u e r o u t r a v i a , c r e i o q u e julgarão
v a n t a j o s a m e n t e os nossos p r i n c í p i o s . V ê - s e t a m b é m q u e as

71
70
Discurso dc metafísica e outros textos—

de c a s t i g o o u d e r e c o m p e n s a . T a m b é m a i m o r t a l i d a d e e x i -
XXXIV. Da diferença entre espíritos e g i d a n a m o r a l e na r e l i g i ã o n à o consiste e x c l u s i v a m e n t e
demais substâncias, almas ou formas nesta s u b s i s t ê n c i a p e r p é t u a , q u e c o n v é m a t o d a s as subs-
t â n c i a s , p o i s nada t e r i a d e d e s e j á v e l s e m a r e c o r d a ç ã o d o
substanciais, e de que a imortalidade passado -*. S u p o n h a m o s q u e a l g u m particular d e v a t o r n a r -
1

requerida implica recordação. se r e i d a C h i n a d e u m m o m e n t o p a r a o o u t r o , m a s c o m a


c o n d i ç ã o d e e s q u e c e r o q u e f o i , c o m o se acabasse d e nas-
cer i n t e i r a m e n t e d e n o v o . N a prática, o u q u a n t o aos e f e i t o s
d e q u e é possível aperceber-.se, isto n à o seria o m e s m o q u e
se d e v e s s e ser a n i q u i l a d o e q u e e m seu l u g a r fosse c r i a d o
n o m e s m o m o m e n t o u m r e i d a Chind'.- Este p a r t i c u l a r n ã o
1

t e m q u a l q u e r r a z à o para desejar isto.


S u p o n d o - q u e os c o r p o s c o n s t i t u i n d o unum per
1 1 se \
u

c o r n o o h o m e m , s à o s u b s t â n c i a s , e t ê m f o r m a s substanciais,
e q u e os i r r a c i o n a i s t ê m a l m a s , é - s e o b r i g a d o a r e c o n h e c e r
q u e essas almas e essas f o r m a s substanciais n ã o p o d e r i a m
p e r e c e r i n t e i r a m e n t e , assim c o m o os á t o m o s , o u e l e m e n t o s
últimos da matéria, na o p i n i ã o de o u t r o s filósofos, p o i s
s u b s t â n c i a a l g u m a p e r e c e , e m b o r a possa t r a n s f o r m a r - s e
n o u t r a q u a l q u e r . E x p r i m e m t a m b é m t o d o o u n i v e r s o , se
b e m q u e mais i m p e r f e i t a m e n t e d o q u e os e s p í r i t o s . Mas a
p r i n c i p a l d i f e r e n ç a é q u e d e s c o n h e c e m o q u e s ã o o u fa-
z e m , e, p o r c o n s e q u ê n c i a , s ã o incapazes d e r e f l e x ã o e n ã o
p o d e r i a m d e s c o b r i r verdades necessárias e universais -". T a m - 1

b é m p o r falta d c r e f l e x ã o s o b r e si m e s m a s n à o t ê m q u a l i -
d a d e m o r a l , d o n d e se segue q u e , atravessando m i l t r a n s f o r -
m a ç õ e s ( p o u c o mais o u m e n o s c o m o v e m o s u m a lagarta
transformar-se e m borboleta), relativamente à moral e à
prática é c o m o se se dissesse q u e p e r e c e m , e o m e s m o se
p o d e d i z e r f i s i c a m e n t e , c o m o d i z e m o s q u e os c o r p o s p e r e -
c e m p o r sua c o r r u p ç ã o . Mas a a l m a i n t e l i g e n t e , c o n h e c e d o -
ra d o q u e é, e p o d e n d o d i z e r este eu (moi), que diz muito,
n ã o s ó p e r m a n e c e c m e t a f i s i c a m e n t e subsiste b e m mais
q u e as o u t r a s , c o m o ainda p e r m a n e c e m o r a l m e n t e a mes-
m a e c o n s t i t u i a m e s m a p e r s o n a g e m ' . Pois é a r e c o r d a ç ã o
1 17

o u o c o n h e c i m e n t o deste eu (moi) q u e a t o r n a suscetível

73
72
_ Discurso de metafísica e outros textos

XXXV. Excelência dos espíritos e que tre as s u b s t â n c i a s i n t e l i g e n t e s c as q u e n ã o o s ã o é t à o g r a n -


Deus os considera de preferência de c o m o a q u e h á e n t r e o e s p e l h o e a q u e l e q u e vê '\ H

c o m o o p r ó p r i o D e u s é o m a i o r e m a i s s á b i o d o s espíritos,
às outras criaturas. Os espíritos fácil é j u l g a r q u e l h e d e v e m estar i n f i n i t a m e n t e mais p r ó x i -
exprimem Deus melhor do que o m o s os seres c o m os q u a i s p o d e , p o r assim d i z e r , e n t r a r e m
mundo, mas as outras substâncias c o n v e r s a ç ã o e m e s m o e m s o c i e d a d e , c o i n u n i c a n d o - l h e s os
exprimem melhor o mundo do que Deus. seus s e n t i m e n t o s e v o n t a d e s d e m a n e i r a p a r t i c u l a r e d e t a l
sorte q u e p o s s a m c o n h e c e r e a m a r o seu b e n f e i t o r , d o q u e
as restantes coisas q u e a p e n a s p o d e m t o m a r - s e p o r i n s t r u -
m e n t o s d o s e s p í r i t o s ; a s s i m c o m o v e m o s todas as pessoas
sábias d a r e m infinitamente mais importância a u m h o m e m
P o r é m , p a r a fazer j u l g a r p o r r a z õ e s naturais q u e D e u s q u e a q u a l q u e r o u t r a coisa, p o r m a i s p r e c i o s a q u e seja, c
c o n s e r v a r á s e m p r e , n à o s ó a nossa s u b s t â n c i a , m a s t a m - p a r e c e ser a m a i o r s a t i s f a ç ã o q u e p o d e t e r u m a a l m a , aliás
b é m a nossa pessoa, isto é , a l e m b r a n ç a e o conhecimento c o n t e n t e , ver-se a m a d a pelas o u t r a s , e m b o r a p e l o q u e se
d o que somos (embora o conhecimento distinto algumas refere a D e u s , haja esta d i f e r e n ç a : a sua glória e o n o s s o
vezes se i n t e r r o m p a n o s o n o e nos d e s m a i o s ) , é p r e c i s o c u l t o nada p o d e m acrescentar à sua s a t i s f a ç ã o , p o i s , s e n d o
aliar-se a m o r a l à m e t a f í s i c a . Isto significa q u e n à o é s u f i - o c o n h e c i m e n t o das criaturas t ã o - s ó u m a c o n s e q u ê n c i a d a
c i e n t e a c o n s i d e r a ç ã o d e D e u s c o m o princípio e causa d e sua s o b e r a n a e p e r f e i t a f e l i c i d a d e , está b e m l o n g e d e c o n -
t o d a s as s u b s t â n c i a s e d e t o d o s o s seres, m a s t a m b é m é ne- t r i b u i r para ela o u d e ser e m p a r t e a sua causa. N o e n t a n t o ,
c e s s á r i o a i n d a c o n s i d e r á - l o c o m o c h e f e d e t o d a s as pessoas o q u e é b o m c razoável n o s espíritos f i n i t o s acha-se e m i -
o u s u b s t â n c i a s i n t e l i g e n t e s , e c o m o m o n a r c a a b s o l u t o da n e n t e m e n t e n e l e , e, c o m o l o u v a r í a m o s u m r e i q u e antes
mais perfeita c i d a d e o u r e p ú b l i c a ' , t a l c o m o a d o u n i v e r s o
19 preferisse c o n s e r v a r a v i d a d e u m h o m e m d o q u e a d o
c o m p o s t o d o c o n j u n t o d e t o d o s os espíritos, s e n d o o p r ó - mais p r e c i o s o e r a r o d o s seus a n i m a i s ' , n ã o d e v e m o s n u n -
1,1

p r i o D e u s t a n t o o mais a c a b a d o d e l o d o s os espíritos, q u a n - ca d u v i d a r d e q u e n à o seja d a m e s m a o p i n i ã o o m a i s escla-


t o é o m a i o r d e t o d o s os seres. Pois, s e m dúvida, s à o os es- r e c i d o c justo d o s m o n a r c a s " .2

píritos os mais p e r f e i t o s e q u e m e l h o r e x p r i m e m a d i v i n d a -
d e . E, c o n s i s t i n d o t o d a a n a t u r e z a f i m , virtude e f u n ç ã o das
substâncias apenas c m e x p r i m i r Deus e o universo, c o m o
f o i j á d e v i d a m e n t e e x p l i c a d o , n ã o c a b e d u v i d a r d e q u e as
substâncias que o e x p r i m e m c o m o conhecimento daquilo
q u e f a z e m e q u e s à o capazes d e c o n h e c e r g r a n d e s v e r d a -
des acerca d e D e u s e d o u n i v e r s o , o e x p r i m a m i n c o m p a r a -
v e l m e n t e m e l h o r d o q u e essas n a t u r e z a s , q u e s à o o u b r u t a s
e incapazes d e c o n h e c e r v e r d a d e s , o u c o m p l e t a m e n t e des-
tituídas d e s e n t i m e n t o e d e c o n h e c i m e n t o . A d i f e r e n ç a c n -

75
Discurso dc metafísica e outros textos

n o b r e d o s espíritos, q u e os a p r o x i m a d a d i v i n d a d e Uxnto
XXXVI. Deus é o monarca da mais q u a n t o p o d e m s i m p l e s c r i a t u r a s , faz c o m q u e D e u s tire d e -
perfeita república composta de todos les i n f i n i t a m e n t e mais gloria q u e d o resto d o s seres, o u m e -
os espíritos, e a felicidade desta cidade lhor, q u e os o u t r o s seres a p e n a s d ê e m aos e s p í r i t o s a m a t é -
de Deus é o seu principal desígnio» ria para g l o r i f i c á - l o " . Eis p o r q u e esta q u a l i d a d e m o r a l d e
9

D e u s , q u e o t o r n a o s e n h o r o u m o n a r c a d o s espíritos, l h e
diz r e s p e i t o p o r assim d i z e r p e s s o a l m e n t e d e m a n e i r a m u i -
to s i n g u l a r . E nisio q u e se h u m a n i z a , q u e se presta a a n t r o -
p o l o g i a s , e entra e m s o c i e d a d e c o n o s e o , c o m o u m p r í n c i p e
c o m seus súditos, e, s e n d o - l h e t ã o q u e r i d a esta c o n s i d e r a -
ç ã o , t o r n a - s c a sua l e i s u p r e m a o f e l i z e f l o r e s c e n t e estado
C o m e f e i t o , os espíritos s à o as s u b s t â n c i a s mais susce- d o seu i m p é r i o , q u e consiste na m a i o r f e l i c i d a d e p o s s í v e l
tívcis d e a p e r f e i ç o a m e n t o e suas p e r f e i ç õ e s caracterizam-se aos h a b i t a n t e s . P o r q u e a f e l i c i d a d e está para as pessoas
p o r se e s t o r v a r e m r e c i p r o c a m e n t e o m í n i m o ' , o u s o b r e t u -
1
c o m o a p e r f e i ç ã o p a r a os seres. E, se o p r i m e i r o p r i n c í p i o
d o p o r se a j u d a r e m m u t u a m e n t e , p o i s s ó os m a i s v i r t u o s o s da e x i s t ê n c i a cio m u n d o físico é o d e c r e t o d e l h e d a r a m á -
p o d e r ã o ser os mais p e r f e i t o s amigos"*. D o n d e c l a r a m e n t e x i m a perfeição possível, o p r i m e i r o desígnio d o m u n d o
se c o n c l u i q u e Deus, p r o c u r a n d o s e m p r e a m á x i m a p e r f e i - moral, o u da cidade de Deus, a mais n o b r e parte d o u n i -
ç ã o e m g e r a l , lerá o m a i o r d e s v e l o c o m os espíritos, e lhes verso, d e v e ser e s p a l h a r q u a n t a f e l i c i d a d e f o r p o s s í v e l " " .
dará, n à o s ó e m g e r a l , mas ate a cada u m e m p a r t i c u l a r , o N à o se d e v e d u v i d a r , p o r t a n t o , d e D e u s ter o r d e n a d o t u d o
máximo dc perfeição p e r m i t i d o pela h a r m o n i a universal. d e m o l d e a n ã o s ó os espíritos p o d e r e m v i v e r p e r e n e m e n -
Pode-se até d i z e r eme D e u s , e n q u a n t o espírito, é a o r i g e m te, o q u e é infalível, m a s a i n d a c o n s e r v a r e m s e m p r e a sua
das existências-, d e o u t r o m o d o , se carecesse d e v o n t a d e p a r a q u a l i d a d e m o r a l , a f i m d e q u e a sua c i d a d e n ã o perca pes-
e s c o l h e r o m e l h o r , n â o h a v e r i a r a z à o a l g u m a para u m pos- soa a l g u m a , c o m o o m u n d o n à o p e r d e q u a l q u e r s u b s t â n -
sível e x i s t i r de p r e f e r ê n c i a a o u t r o s . A s s i m , a q u a l i d a d e d e cia. E p o r c o n s e g u i n t e s a b e r ã o s e m p r e o q u e s ã o ; de o u t r o
Deus, d e ser ele p r ó p r i o espírito, supera todas as outras c o n - m o d o nào seriam suscelíveís n e m de recompensa, n e m de
s i d e r a ç õ e s q u e p o d e l e r quanto às criaturas -*. A p e n a s o s
1
castigo, o q u e é t o d a v i a d a e s s ê n c i a d e u m a r e p ú b l i c a , m o r -
e s p í r i t o s s ã o f e i t o s à sua imagem"", e q u a s e da sua raça o u m e n t e d a m a i s p e r f e i t a , o n d e coisa a l g u m a p o d e r i a ter s i d o
c o m o f i l h o s da casa -*, p o i s s ó eles p o d e m s e r v i r l i v r e m e n -
1
negligenciada. Finalmente, sendo Deus ao mesmo t e m p o o
te e a g i r c o m c o n h e c i m e n t o à i m i t a ç ã o cia n a t u r e z a divina-, m a i s j u s t o e c l e m e n t e d o s m o n a r c a s e nada mais p e d i n d o
u m ú n i c o e s p í r i t o vale u m m u n d o i n t e i r o , p o i s n à o s ó o ex- --além d a b o a v o n t a d e , d e s d e q u e sincera e séria, os seus s ú -
p r i m e , m a s t a m b é m o c o n h e c e e aí se g o v e r n a à m a n e i r a d i t o s n à o p o d e r i a m desejar m e l h o r c o n d i ç ã o , e, para os t o r -
de Deus, de tal forma que, embora toda substância e x p r i - n a r p e r f e i t a m e n t e felizes, s o m e n t e q u e r ser a m a d o .
m a o universo, p a r e c e n o e n t a n t o q u e as o u t r a s s u b s t â n c i a s
e x p r i m e m m e l h o r o m u n d o q u e D e u s , mas os espíritos ex-
p r i m e m m e l h o r D e u s d o q u e o m u n d o . E esta n a t u r e z a t ã o
EAscurso de m ^ ^ e outros textos.

XXXVII. Jesus Cristo descobriu para


os homens os mistérios e as leis
admiráveis do reino dos céus e a prepara a q u e m o a m a " .

grandeza da suprema felicidade que


Deus reserva a quem o ama.

O s filósofos a m i g o s c o n h e c e r a m m u i t o p o u c o estas v e r -
dades. S ó Jesus as e x p r i m i u d i v i n a m e n t e b e m e de m a n e i r a
t à o clara e familiar, q u e o s m a i s grosseiros espíritos as c o m -
p r e e n d e r a m " . Por isso. o seu E v a n g e l h o m u d o u i n t e i r a m e n -
1 1

te a lace das coisas h u m a n a s , deu-nos a c o n h e c e r o r e i n o


d o s c é u s o u esta r e p ú b l i c a p e r f e i t a d o s espíritos, merece-
d o r a d o título de c i d a d e d e D e u s , cujas íeis a d m i r á v e i s des-
c o b r i u p a r a n ó s . S ó ele m o s t r o u q u a n t o D e u s nos a m a 1 4 2 e
c o m q u e c u i d a d o t r a t o u de t u d o o q u e nos (oca; q u e , c u i -
d a n d o dos passarinhos, n ã o n e g l i g e n c i a r á as criaturas ra-
c i o n a i s , p a r a ele i n f i n i t a m e n t e mais q u e r i d a s ' ; q u e e s t ã o
M

c o n t a d o s t o d o s os c a b e l o s d a nossa c a b e ç a ' " ; q u e c é u e


terra p e r e c e r ã o antes q u e se m u d e a p a l a v r a d e D e u s ' e o 1 1

q u e p e r t e n c e à e c o n o m i a d a nossa salvação-, q u e D e u s t e m
m a i o r c u i d a d o c o m a m a i s ínfima das a l m a s i n t e l i g e n t e s d o
q u e c o m toda a m á q u i n a d o m u n d o ; q u e n à o d e v e m o s r e -
cear q u e m possa d e s t r u i r os c o r p o s , mas n à o p o d e p r e j u d i -
car as almas'"", p o r q u e s ó D e u s as p o d e fazer felizes o u des-
g r a ç a d a s , e q u e as d o s justos e s t à o e m sua m ã o , d e f e n d i d a s
d e t o d a s as r e v o l u ç õ e s d o u n i v e r s o , nada p o d e n d o a g i r so-
b r e elas, s e n ã o D e u s ; q u e n e n h u m a das nossas a ç õ e s é es-
q u e c i d a e t u d o é l e v a d o e m c o n t a , a t é as palavras o c i o s a s
o u u m a c o l h e r a d a de á g u a b e m e m p r e g a d a ' - ; e n f i m , q u e
1

78

i
. - . Discurso de metafísica e viittx/s fôtffw . -

Notas percurso argumentativo reproduziria o d o Tratado de Malebran-


che (cf. Robinet, Malebranche et Leibniz, Paris: Vrin, 1955).
2. Leibniz inicia o Discurso se referindo ã "noçào mais acei-
ta" que possuímos de Deus, sem se preocupar e m provar a exis-
tência divina. Posteriormente, no § 23, evocará a clássica prova
ontológica de Santo Anselmo, retomada por Descartes, para mos-
trar a necessidade de análise de todas as noções, inclusive da
ideia de Deus. a fim de evitar as noções contraditórias como n de
número dos números o u a de maior de todas as figuras. Aqui
Leibniz não procede a essa análise, recorre ã tradição para definir
Deus como " u m ser absolutamente perfeito '. Ora, dessa maneira
7

o filósofo nào atentaria contra o rigor metafísico? Certamente, es-


1. Até a edição de Henn Lestienne (1007), as edições dc» Dis-
crevendo para Arnauld e o Landgrave, Leibniz nào via necessida-
curso seguiam o texto chi cópia corrigida p o r Leibniz e publicada
de de explicitar a prova da existência de Deus; além disso, se pen-
pela primeira vez em 1846 por Grotefend, Lestienne segue a cópia
sarmos que se trata de uma defini cão apoiada na teologia natural
completa comparando-a c o m o manuscrito. A presente tradução
(e nâo na revelação), podemos entender o porquê da ausência
foi feira a partir da edição revista por Lestiennc (Paris: Vrin, 1952).
da prova: Leibniz acreditava que a existência de Deus é uma ver-
O manuscrito e a cópia corrigida por Leibniz não apresentam
dade que pode ser demonstrada racional e universalmente e, por-
este tímlo, mas cie foi adotado desde a primeira edição reprodu-
tanto, é uma ideia inata em eme todos os homens podem pensar
zindo a expressão usada peio filosofo pura se referir ao texto em
(embora nem sempre o façam).
unia carta ao Landgrave Ernst de Hesse-Uheinfelds, de 1/11 de fe-
vereiro de 1086: "Recentemente testando em um lugar no qual, Além de ser a mais aceita, essa noção cie Deus é a "mais sig-
durante alguns dias, nâo tinha nada a fazer) fiz u n i pequeno dis- nificativa ': embora, logo em seguida, Leibniz dê da perfeição, ape-
1

curso de metafísica, sobre o qual ficaria bastante feliz, de saber a nas uma marca negativa (não é perfeição o que não é suscetível
opinião d o senhor Arnauld" (ed. f.e Roy. Paris-. Vrin. 1966, p. 79). d o último grau), o filósofo define Deus por sua absoluta perfeição
Os títulos dos artigos, p o r sua \cz, correspondem ao sumário en- e, portanto, positivamente.
viado a A r n a u l d em fevereiro de ]68ó e presentes no manuscrito. Essa definição é próxima daquela que Malebranche dera e m
Sabemos, então, de acordo com essas informações, que o seu Tratado da natureza e da graça í D i s c , I , 11-3) e aparece tam-
Discursa foi escrito no Jim de 1685 ou janeiro de 1686. Bvirgelin bém na Monadologia (§§ 40-41) e nos Princípios da natureza e
(Coymrfoittíire du Discours de Métaphysíque de Leibniz, Paris: da graça (§ 9).
PUF. 1959) nota que, durante os anos de 168=3-85, Leibniz esclaie- 3- Kntre as perfeições de Deus, Leibniz menciona apenas a
ce sua filosofia em vános textos que publica nos Acta Eniditorum ciência e a potência ( c o m o , aliás, Malebranche n o Tratado da
de Leipzig (i\ova metbodus, em o u t u b r o de 1684, Meditatione de ~^ natureza e da graça, D i s c , L 12). Posteriormente, e de m o d o
co^n Ufane, em novembro, entre outros): 1685 é. por sua vez, u m mais sistemático, distinguirá, na Teodiçéia (§ 7), três perfeições:
ano dedicado à leitura de Malebranche (sobretudo o Trai té de la a sabedoria do entendimento, relacionada à verdade, a potên-
.Vuture et de la Grace) e das controvérsias entre Arnauld e Ma/e- cia, que se dirige ao ser, e a bondade da vontade, dirigida ao
b r a n d i e Essa leitura seria, segundo uma hipótese de Kobinet, bem,- e. na Cansa Dei (%% 3-28). Leibniz distingue entre a gran-
f u m i a m e n n l para a composição do Discurso de metafísica, cujo deza, composta pela onipotencia e pela onisciência, e a bonda-
de da vontade.

80
81
G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos

4. Leibniz apresenta duas razões contra a opinião de que as sentidos a glória pressupõe a harmonia e o equilíbrio entre os atri-
coisas criadas nào sào intrinsecamente boas. A primeira razào butos divinos; Deus é louvável porque, sabiamente, articula seu
consiste c m mostrar que essa opinião 6 contrária ã Sagrada Escri- entendimento, que pensa os mundos possíveis, sua bondade, que
tura (Génesis, I , 10-3D- Trata-se. como ele diz, de uma "'antropo- escolhe dentre os mundos possíveis o melhor, c sua potência, que
logia"; n ã o se deve, pois, concluir, a partir dessa alusão, que o põe o melhor dos mundos na existência. Assim, o m u n d o nào é
conhecimento d i v i n o é experimental (Leibniz sempre se preocu- o efeito necessário de Deus, é escolhido por sua bondade; mas,
p o u e m preservar o conhecimento de Deus de qualquer espécie por outro lado, a vontade nào age independente das razões con-
de empirismo, o conhecimento d i v i n o é sempre u m conhecimen- cebidas pelo entendimento. Eis por que, para Leibniz, a opinião
to a priori, daí que a ciência divina da visão, que se refere às coi- de Descartes, que concebe a vontade absolutamente indepen-
sas criadas, nâo seja diferente da ciência da simples inteligência dente de regras da razão, é tào perigosa quanto a de Espinosa,
do m u n d o considerado c o m o possível s e n à o p e l o fato de c o n - para q u e m a vontade não tem lugar. Eis p o r que, também, dedica-
ter o conhecimento reílexivo d o decreto de criação. Cf. Causa rá uma obra inteira, a Teodicéia, à refutação das falsas razões dos
Dei, § 16). homens que concebem o Criador como u m déspota (privilegian-
Poder-se-ia perguntar sobre a legitimidade de apoiar a f i l o - do a grandeza divina em detrimento de sua bondade) ou daque-
sofia na revelação: o "Discurso" que abre a Teodicéia è inteira- les que o concebem através de antropomorfismos (tendendo a
mente dedicado à questão da conformidade entre a fé o u a reve- balança para o lado da bondade da vontade sem consideração da
lação e a razão (a revelação prolonga a razão, de modo que nào grandeza).
há nenhuma verdade que seja contra a razão, embora possa ha- Vale notar ainda que, nào tendo introduzido a bondade da
ver verdades acima ou além da razão). Mas. além disso, se Leibniz vontade entre as perfeições divinas no artigo 1, Leibniz precisa
escreveu o Discurso de metafísica pensando em um leitor como o apresentá-la aqui para refutar Espinosa e Descartes.
teólogo Arnauld, a referência à Sagrada Escritura era um argumen- 7. Leibniz havia escrito antes "a expressão do senhor Descar-
to forte para justificar sua opinião e, como já dissemos, não era o tes": trata-se da teoria da livre criação das verdades eternas (cf.
único. O segundo argumento apresentado por Leibniz mostra que
Descartes, Cartas a Mcrsenne, 15 dc abril, 6 de maio e 27 de maio
a negação da bondade intrínseca d o m u n d o é contrária à razão:
de 1630; Respostas às quintas objeçòes-. Respostas às sextas obje-
as obras trazem a marca do operário.
çòes; Carta a P. Mesland, 2 dc maio de 164 í; Carta a Arnauld, 20
5. Leibniz havia inicialmente escrito "bastante semelhante à de julho de 1648. Sobre a crítica de Leibniz: Monadologia, % 46).
[opinião] dos espinosistas"; alude, portanto, à tese espinosana se- Para Leibniz, Deus cria as existências, nào as essências, embora
g u n d o a qual não há criação, mas a natureza é o efeito necessá- estas últimas tenham sua realidade no entendimento d i v i n o . As-
rio d o poder e da essência de Deus; logo, a beleza e a bondade sim, as verdades eternas nào dizem respeito à vontade divina e
não estão no m u n d o , mas na maneira c o m o os homens, que for- nào p o d e m ser alteradas arbitrariamente. É por isso que, ao agir,
jam Deus à sua imagem, vêem esse inundo. Cf, Espinosa, Ética, L Deus segue as regras de seu entendimento, "toda vontade supõe
proposições 32-33 e Apêndice. ' alguma razào de querer, razào esta naturalmente anterior à vonta-
6. Leibniz introduz a q u i duas n o ç õ e s novas para fundamen- de": Leibniz destaca, assim, a impossibilidade de uma vontade
tar a crítica que fez a Espinosa e a que fará, logo e m seguida, a pura que poderia transformar-se em seu contrário.
Descartes-, o amor de Deus (que explicará no artigo 5) e a glória. Ora, mas isso nào significaria limitar a grandeza divina ou a
Na Teodicéia (§ 109) Leibniz apresenta dois sentidos para a glória sua liberdade? Contra essas acusações, Leibniz insiste, por u m
divina: a satisfação no conhecimento das próprias perfeições e o lado, na dependência recíproca dos atributos de Deus (Teodicéia,
conhecimento que os outros têm dessas perfeições. Em ambos os %% 7-8. 116 e 177); e, por outro, na ideia de que o m u n d o é criado

82 83
Discurso de metafísica e outros textos—
_ G. VC. Leibniz

12. ''Querer o mesmo e não querer o mesmo, eis a verdadei-


através de u m ato único de vontade e não por infinitas vontades
ra amizade." Essa frase, trazida de Cícero, De Amicitia, f o i acres-
independentes {Correspondência entre leibniz e Arnauld. carta
de 13 de maio de 1686). cida posteriormente à redação primitiva.
13- O texto Confessiopbilosophi (1Ó73) estabelece u m para-
O m u n d o criado de acordo com a sabedoria divina é o me-
lelo entre a república universal dos espíritos e as repúblicas h u -
lhor dos mundos e intrinsecamente b o m , nào pela razão formal de
ter sido criado por Deus. mas porque sua natureza corresponde a manas. A imagem política, que caracteriza Deus como o monarca
uma ordem universal de perfeição que Deus realiza em sua açào. de uma república universal cujo f i m é a felicidade dos espíritos, é
8. Leibniz havia escrito "escolásticos modernos'' e se referia utilizada em muitos textos dc Leibniz para introduzir o aspecto
àqueles que, como Afonso, rei da Gistilha ícf. Teodicéia, % 193), moral da criação (cf. nota 133). CL Discurso dc metafísica, % 36,
viam o mal como um fato incontestável no m u n d o e, por isso. Monadologia, 84-90, Princípios da natureza e da graça, § 15.
acreditavam que o m u n d o em si mesmo nào era tào perfeito quan- 14. Cícero, De fato, IX, 17, X I ! . 27a X I I I . 30. A crítica ao "so-
to poderia ser. Leibniz aludia, certamente, a Malebranche (Trata- fisma da razào preguiçosa" aparece também na Teodicéia, ''Prefá-
do da natureza e da graça, D i s c , I , % cio" e §§ 55-S8.
9. "Assim como uni mal menor tem uma proporção de bem, 15. Não podemos conhecer os desígnios particulares de Deus,
assim também u m h e m menor tem uma proporção de mal." Leib- mas, em nosso limite de criaturas finitas, podemos presumir o
niz repete os argumentos apresentados no § 2. que Deus quer e agir imitando o Criador: buscando o melhor (no
10. Leibniz havia escrito: "novos escolásticos ' (o fim da frase
1
caso dos homens será o aparentemente melhor, já que remos
foi acrescido à redação primitiva). uma perspectiva limitada d o t o d o ) .
11. O erro consiste cm: (1) considerar cada coisa isoladamen- ló. Todas essas imagens (cinco exemplos tirados de obras
te e nào o m u n d o como um todo, isto é, "a harmonia geral d o humanas) visam esclarecer, a partii da noção de ser absolutamen-
universo", e afirmar, a partir de nossa limitada experiência, que te perfeito dada no § 1, o princípio geral da conduta divina, j sa-
este não é o melhor dos mundos. Cf Teodicéia. %% 9 e 193-240. ber: a busca da obra mais rica pelos meios mais simples. Ern De
(2) Nào conceber um grau supremo cie perfeição, confundindo o rerum onginatione radicaii, Leibniz denomina esse princípio de
maximam com o optimum (que convém à perfeição), o que con- conduta divina "matemática divina ou mecanismo metafísico", d o
tradiria a definição de perfeição dada no § 1 (enquanto as imper- qual se segue a perfeição metafísica do m u n d o criado, o u o má-
feições descem ao infinito, a perfeição possui um grau supremo). x i m o de realidade possível, perfeição esta que deve estar conju-
Cf. Teodicéia, § 8. (3) Imaginar que se Deus cria somente o me- gada c o m sua perfeição moral (derivada da bondade da escolha
lhor, então nào pode ser livre. O princípio de razào é universal, divina), ou a máxima felicidade possível para os espíritos.
se aplica também à açào de Deus, assim criar u m m u n d o que nào Leibniz descreve de maneira mais geral o princípio que leva
é o melhor seria agir sem razão, uma tal liberdade nào pode ser à escolha d o melhor na 'Teodicéia. §§ 8-9: na Monadologia, §§ 53-
uma liberdade verdadeira. Assim, embora Deus nào seja necessi- 55; nos Princípios da natureza e da graça, §§ 9-12.
tado (nào é contraditória a criação de u m outro m u n d o ) , é deter- ^ 17. Todas as criaturas possuem um elemento cie passividade,
minado a criar o melhor (seria u m absurdo moral a criação de u m fonte de sua limitação, que se exprime pelo volume, e um ele-
m u n d o menos perfeito), o f i m e a razão de sua vontade é o me- mento de n ti vida de. Nos espíritos, a atividade é preponderante,
lhor. Todos os possíveis tem direito de existir na medida de suas p o r isso sào as criaturas mais perfeitas. A atividade se exprime
perfeições (Monadologia, § 54), mas nem todos são possíveis em nas percepções claras: mas como as percepções claras de umas
conjunto, eis por que Deus precisa escolher, e escolhe, segundo substâncias correspondem às percepções confusas de outras, to-
razões, o melhor. das se i m p e d e m mutuamente o u se estorvam. O impedimento

84
Cr- W. Leibniz _ Discurso de metafísica e outros textos.

mútuo é correlato à entreexpressào das substâncias, a essência de balternas da natureza, c o m unia universalidade mais abrangente
cada uma é uma expressão d o todo. mas sua natureza é limitada, que as primeiras, porém ainda compreensíveis por nosso enten-
nenhuma substância pode ter uma percepção clara da totalidade dimento finito. Essas leis fundamentam a nossa ciência assegu-
d o universo. rando-lhe certeza moral: podemos prever os fenómenos futuros a
18. Essa formulação levou muitos comentadores a pensarem partir dos fenómenos passados (seja por causa de uma hipótese
a simplicidade das vias e a riqueza dos efeitos c o m o u m par e m que lenha o b t i d o êxito até o presente, seja p o r uma relação habi-
tensão na fábrica d o melhor dos mundos possíveis. Na Teodicéia tual observada entre certos fenómenos) e, assim, regular a nossa
fica claro, porém, que há uma interação, e nâo uma oposição, en- conduta. Finalmente, ternos as leis universalíssimas que com-
tre a ordem o u a simplicidade das leis da natureza e a variedade põem a ordem metafísica de lodos os fenómenos: são. as leis es-
tios efeitos. Em outras palavras, uma enorme-variedade de fenó- senciais da série de coisas que constituí o m u n d o - nelas estão
menos não implica u m m u n d o cujas leis, que compõem a ordem, compreendidos inclusive os milagres e as ações livres - que asse-
sejam complexas e menos perfeitas que leis mais simples. U m guram, por meio de uma infinidade de relações causais, a ocor-
m u n d o mais perfeitamente variado não é necessariamente um rência de cada fato singular. Cf. "Verdades necesarias y contin-
m u n d o imperfeitamente ordenado. gentes", in Escritos Filosóficos. Ed. Olaso. Buenos Aires: Char-
O princípio de simplicidade das vias e da riqueza de efeitos cas, 1982 ( p p . 328-38); Edição original.- Couturat, L. Opuscules
nos remete a Malebranche (ef. tratado da natureza e da graça, ei fragmenis inédits de Leilmiz, Paris. 1903; Hildesheim. Olms.
D i s c , I , 17-19), mas, para Leibniz, as vias também fazem parte d o
1961 ( p p . 16-24).
desígnio divino, assim, os meios são fins: as regras que Deus se-
20. Desde 1680, com a publicação d o Tratado da natureza e
gue para a criação d o mundo, e que geram as leis desse mundo,
da graça de Malebranche, o tema d o milagre era objeto de uma
são desejadas nâo apenas pelo que fazem, mas também pelo que
polémica entre Malebranche e Arnauld. Para o primeiro ( c f Tra-
são {Teodicéia, § 208).
tado da natureza..., D i s c , T, 18), as leis da natureza são constan-
19. Existir é ser ordenado. Todos os acontecimentos d o m u n -
tes e imutáveis, valem para qualquer tempo o u lugar; Arnauld
do estão no interior da o r d e m universal criada peta ação de u m
opunha a ele, então, a possibilidade dos milagres. Leibniz acen-
Deus que não poderia agir sem seguir regras. Assim, o extraordiná-
tua a posição de Malebranche, afirmando que todos os aconteci-
rio é aquilo que ultrapassa a compreensão humana. Pode-se d i -
zer- que há uma diferença de grau, mas jamais uma diferença de mentos d o i n u n d o são conformes à o r d e m universal, mas preten-
natureza, entre o que chamamos de ordinário e o que denomina- de ultrapassar as colocações de Malebranche por considerar seu
mos extraordinário. sistema das causas ocasionais u m milagre perpétuo (Cf. adiante
Discurso de metafísica, §§ l ó e 29).
Leibniz estabelece uma espécie de hierarquia entre as leis d o
Para Leibniz, o milagre não é explicado nem por sua rarida-
mundo a que correspondem ordens de perfeição: n u m primeiro
de n e m c o m o expressão de nossa ignorância ou incapacidade de
plano, temos leis que guardam alguma universalidade, mas que
conhecer as leis universalíssimas d o mundo. O que diferencia u m
compõem a ordem mais grosseira d o sensível. Os animais estão
-milagre e u m evento natural é o fato daquele não encontrar sua
restritos a essas leis e nós mesmos, em três quartas partes de nos-
razão suficiente nas leis da natureza, é u m evento que ultrapassa
sas ações, nos reduzimos a elas quando julgamos as coisas se-
as forças de qualquer criatura, sua razão suficiente é Deus.
guindo o princípio da memória que se fundamenta c m impres-
21. A distinção entre vontades gerais e particulares é resolvi-
sões deixadas por fatos, de acordo com a intensidade ou frequên-
da, pelo filósofo, como as distinções apresentadas anteriormente:
cia das percepções anteriores, e nâo em u m conhecimento das
nào há uma oposição absoluta e as vontades divinas são sempre
causas dos fenómenos. Acima dessas, temos as chamadas leis su-
conformes à ordem. Na Teodicéia, Leibniz desenvolverá esse te-

86 87
- _ — . Cl. vt'-; Leibniz — _ Discurso tle metafísica e outros textos

ma da vontade divina utilizando-se de outra terminologia. A von- festação da causalidade divina (La Recherche de ia vetité, livro
tade divina sofre uma dupla distinção: divide-se em vontade an- V I , pane T, cap. 111); e a Descartes, que afirma que Deus assegu-
tecedente e consequente e e m vontade permissiva e produtiva. É
ra a mesma quantidade de m o v i m e n t o (força, na leitura leibni-
produtiva c o m respeito aos próprios atos c permissiva e m relação
ziana) no m u n d o , mas que cabe às criaturas modificar a direção
aos atos alheios (pode ser lícito não impedir o que é ilícito pro-
desse movimento imprimindo-Ihe uma determinação particular
duzir, se o objeto da permissão for o ato e não o produto da açào
(Príncipes. I I . §§ 36-44.). Para Leibniz, ambas as teses p o d e m ser
em questão). A laculdade da vontade é antecedente quando é pré-
via o u inclinanle e, nesse caso, é incompleta o u relativa, visto admitidas, mas, para mostrar isso e distinguir as ações de Deus e
que se dirige a algum bem em si de modo pailicular ou de acor- as das criaturas, 6 preciso, antes, explicar o que é uma substân-
d o c o m o grau de bondade d o objeto. É consequente quando é cia individual.
plena e absoluta, quando contempla a totalidade (e nâo u m bem A teoria leibniziana da substância individual é constituída a
particular) e contém a determinação final, sendo, por isso, decre- partir de reflexões trazidas da lógica (a partir da análise de no-
tória; isto é, porque resulta de todas as vontades inclinantes, sem- ções e proposições, a substância é pensada como o sujeito de
pre produz vçu efeito pleno. Podemos dizer que "Deus quer an- uma série de predicados), da matemática (a ideia de Lima soma fi-
tecedentemente v bem e consequentemente o melhor" ( Teodicéia, nita de infinitos termos que se encadeiam segundo uma lei deter-
5 23), já que a vontade antecedente é uma vontade isolada de um minada leva a pensar a substância como dotada de infinitos pre-
l i e m . que seria eficaz per se se não houvesse uma razào mais f o i - dicados), da física (a partir d o estudo do movimento e da maté-
te que a impedisse, e a vontade consequente é o resultado do con- ria, a substância é pensada como a unidade real de ser e de açào)
flito de iodas as vontades antecedentes c é o equilíbrio tio concur- e, finalmente, da teologia (a substância individual c uma alma e,
so tle todas elas, cie m o d o que as vontades antecedentes têm al- no caso dos seres racionais, espirite), que participa de u m reino
guma eficácia. Mas. no limite. Deus nào tem nenhuma vontade moral cujo monarca c Deus). Essas perspectivas da teoria da
particular primitiva. Ele não faz nada sem razào, "ele nào tem ne- substância individual sào interdependentes umas cias outras.
nhuma vontade em relação a acontecimentos individuais que não No Discursei de metafísica o filósold privilegia o aspecto ló-
seja uma consequência de uma verdade ou de uma vontade ge- gico da teoria da substância individual, mas antes de fornecer a
ral" ( T e o d i c é i a . % 206). Assim, de acordo com seu primeiro decre- definição propriamente lógica da substância, ao apresentar a ques-
to - escolher o melhor m u n d o possível para a glória divina —, a tão a partir do desacordo entre Malebranche e Descartes, afirma
\ontade produz, e m u m único decreto (consequentemente, por- que as ações e paixões pertencem propriamente às substâncias
tanto), após reflexão, o conjunto ofitimam d o universo. O . Cau- individuais. O problema que pretende enfrentar com essa afirma-
sa Dei, §5 18-28. ç ã o diz respeito ao estatuto ontológico das criaturas; com efeito,
22. Esta frase, como o restante do artigo, acrescentada poste- a definição moderna de substância como u m ser que existe em si
riormente, traz. dois problemas de redação: "as ações das outras e por si é concebido corre o risco de levar à afirmação de que
criaturas" (certamente um erro); e ''com as quais Deus quer con- Deus é a única substância. E para evitar o espinosismo que Leib-
correr"- Deus concorre para as ações das criaturas racionais, no -nfz inicia o artigo dizendo que as ações e paixões pertencem pro-
sentido ordinário através da conservação delas, em sentido ex- priamente às substâncias individuais. Nào p o r acaso, textos pos-
traordinário através da distribuição de graças; mas Deus não po- teriores como os Princípios da natureza e da graça, em que Leib-
deria conconer para as ações más, apenas permiti-las, a causa niz abandona o ritmo binário que caracteriza o Discurso de meta
das más ações é a liberdade da criatura, nâo Deus.
física (de Deus às substâncias individuais e do m u n d o a união
23. Alusão a Malebranche, para quem somente Deus é causa dos homens com Deus), se iniciam com a afirmação de que a
eficiente e as criaturas constituem apenas ocasiões para a mani- substância é u m ser capaz de ação.

88
89
Cr. W Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

Este artigo d o Discurso dc metafísica apresenta, portanto, as posto substancial, é uma natureza c o m u m aos indivíduos de uma
duas marcas fundamentais da definição de substância que leva- mesma espécie ( é a matéria que distingue os indivíduos de mes-
riam, posteriormente, o filósofo ao conceito de mônada: pensada, ma forma). Para Leibniz, diferentemente, a forma substancial é
na linha da ousia aristotélica, c o m o suporte de acóes, a substân- em si mesma individual Com a noçào de forma substancial, Leib-
cia é u m ser capaz de ação. c o m o sujeito de predicados, é a uni- niz pode pensar a substância não apenas como unidade í§ 8), mas
dade de uma multiplicidade (cf. Monadologia, § 14-. " O estado também como unidade de ação.
passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na uni- Ao retomar as fornias substanciais "tào desacreditadas", Leib-
dade ou na substância simples não é outra coisa senão aquilo niz sublinha seu respeito pela tradição ("pessoas hábeis', "reco-
que se chama de Percepção"; % 15: "a Ação d o princípio interno mendáveis pela sua santidade") e, ao mesmo tempo, marca a d i -
que faz a mudança o u a passagem de uma percepção a outra
ferença entre sua própria filosofia e a tradição ("não se afastam
pode ser chamada Apetiçâd').
tanto da verdade"). Sobre o tema das formas substanciais: Correspon-
24. A definição dc substância como sujeito último de predi- dência entre leibniz e Arnauld, cartas de 4/1-1 de julho de 1686,
cados (Aristóteles, Categorias, V) é correta, mas, porque não for- 28 de novembro/8 de dezembro de 1686, 30 de abril de 1687, 9 de
nece a razão de possibilidade da noçào, é apenas nominal (cf. Dis- outubro de 1687; De primae phihsophiae emendatione, Sistema
curso de metafísica, § 241. Vale notar que, como ao tratar de Deus novo da natureza, §§ 2-11, entre outros.
(§ 1), Leibniz parte aqui da "noçào mais aceita" de substância i n -
29- Leibniz se filia aqui aos partidários d o mecanicismo, a
dividual.
Galileu e Descartes. Leibniz nâo pode recusar a inteligibilidade
25. Tendo passado à realidade efetiva ("toda predicação ver- da física cartesiana, mas. ao mesmo tempo, considera que o fun-
dadeira tem algum fundamento na natureza das coisas"). Leibniz damento cios fenómenos físicos deve ser remetido às formas, à
pode estabelecer uma relação entre as leis lógicas e a estrutura do unidade substancial ativa. Assim, nào dá autonomia à ciência (seu
real e passar de uma definição nominal para uma definição real. fundamento é metafísico), mas critica o abuso de escolásticos e
A inclusão do predicado no sujeito, que define a verdade, nào é
"médicos d o passado", tais como Avicena, Paracelso, Van H e l -
uma simples atribuição: a natureza das coisas é essa identidade, o
mont (a q u e m se refere quando lala mais abaixo de arque), entre
sujeito é a razào de seus predicados.
outros, que atribuíam Lima forma substancial distinta a cada fun-
26. "... que nesse caso todo indivíduo é urna espécie ínfima'' ção corporal, querendo explicar através delas os fenómenos em
{Suma Teológica, I , 50 art. 4). Esta frase sobre São Tomás foi
;
particular.
acrescentada posteriormente à redação primitiva. ( N . da R.)
30. Os dois exemplos utilizados p o r Leibniz se referem aos
Trata-se d o principio dos indiscerníveis para o qual a dife- dois labirintos da razão humana: o labirinto da composição d o
rença numérica c inútil. A diferença deve ser intrínseca se se quer
contínuo, no plano matemático, c o labirinto da liberdade e da ne-
alcançar o singular ( N . da '1'.). Cf. Carta a Arnauld, 4/14 de j u l h o
cessidade, no plano moral. O primeiro (a dificuldade de se conce-
de 1686; Monadologia, 8-9; Princípios da natureza e da graça,
5 2. ( N . da K.» ber a divisibilidade ao infinito de uma grandeza finita), diz Lcib-
~*hiz, interessa apenas aos filósofos; o segundo ta dificuldade de
27. Sobre a teoria da expressão-. Carla a Arnauld, 9 dc outu- conciliar a liberdade humana c o m a presciência e a providência
bro de 1687; e Quid sit idea.
divinas), a todo o género humano, mas ambos se referem ao pro-
28. A c o n c e p ç ã o leibniziana de substância, tal como foi defi- blema d o infinito e sào resolvidos através da ideia de infinito atual.
nida nos artigos 8 e 9, reintroduz a n o ç à o escolástica de f o r m a De qualquer m o d o , os exemplos são evocados para mostrar que
substanciai. Segundo a tradição aristotélico-tomista, os seres sào mesmo as questões cujo fundamento se encontra na metafísica
compostos de matéria e forma-, a forma, princípio ativo d o com- p o d e m ser resolvidas na prática o u através da experiência sem o

90 91
._ G. W. Leibniz . „ - Discurso de metafísica e outros textos _

recurso a esse fundamento. Daí a necessidade de dissociar os pla- 35- É precisamente o enunciado deste artigo 13 que gera a
nos da prática e da ciência (que lidam com fenómenos.) do plano polémica entre Arnauld e Leibniz: "[•••] encontro nestes pensa-
metafísico (embora este dê a razào daqueles). mentos tantas coisas que me assustam e que, se não estou enga-
31. Termo jurídico que indica o direito cie u m cidadão bani- nado, quase lodos os homens acharão tào chocantes L..|. Darei
do de voltar a seu país. como exemplo apenas o que é d i t o no artigo 13 [•••)" (Carta de
32. A reabilitação das formas substanciais, vimos, não se dá Arnauld ao Landgrave, 13 de março de 1686).
sem o reconhecimento cie que elas sào conceitos metafísicos que 36. Retomando a definição de substância do § 8, Leibniz enun-
não devem ser empregados na explicação dos fenómenos parti- cia o problema, a que Arnauld se referiu na Correspondência,
culares. Além disso. Leibniz modifica a doutrina tradicional: a for-
aparentemente gerado por sua teoria da substância. Resumidamen-
ma substancial é uma essência individual e nào algo c o m u m aos
te, trata-se da exclusão das ideias de liberdade e contingência em
indivíduos de uma mesma espécie: e é uma força ativa e nào uma
favor d o fatalismo, A primeira, e insuficiente, resposta oferecida
potência.
por Leibniz está na distinção entre o certo e o necessário, ou en-
33. Para mostrar a necessidade cie se manterem as formas tre a presciência divina e a determinação dos acontecimentos. A
substanciais, Leibniz faz uma crítica à noção cartesiana de exten- previsão dos futuros contingentes nào os torna necessários: Deus
são, insuficiente para explicar a natureza cio corpo. Certamente a
prevê, desde toda a eternidade, as existências possíveis como con-
extensão faz parte da natureza do corpo, mas, em primeiro lugar,
tingentes.
nào pode constituir a essência d o corpo: Leibniz nào desenvohe
Sobre o tema dos futuros contingentes e a reconstrução feita
aqui, mas considera que a extensão nào explica a inércia, nem o
movimento dos corpos, e nào pode constituir a unidade que de- por Leibniz d o problema clássico e sua resposta a ele: Teodicéia,
fine a realidade dos seres. Em segundo lugar, a extensão não pode %% 34-53.
ser considerada uma substância, já que nào é uma noçào distinta 37. Leibniz recoloca o problema, já que a solução oferecida
que possa ser conhecida através de seus elementos e, graças ao anteriormente era apenas provisória: a previsão divina nào torna
quê, se poderia atribuir uma independência a ela; daí Leibniz des- necessários os futuros contingentes, mas a causa dessa presciên-
prezar a diferença que Descartes estabelecia entre qualidades lais cia é a noçào completa de cada substância individual C) fato de o
como cor, calor ele. e a extensão. Todas essas qualidades sào, para sujeito conter lodos os seus predicados parece indicar uma deter-
Leibniz, qualidades sensíveis c. portanto, relacionadas ao mo- minação absolutamente necessária. A resposta está na distinção
mentâneo que caracteriza a percepção; ao passo que a substância entre uma conexão necessária e uma conexão necessária ex hipo-
é da ordem d o inteligível e deve garantir a unidade e a identida- thesi: se qualquer sujeito contém todos os seus predicados, isto é,
de através d o tempo. Eis por que, para explicar a natureza dos cor- se toda proposição verdadeira é analítica, essa relação entre o su-
pos, é preciso reconhecer "algo relacionado com as almas e que jeito e o predicado é necessária quando uma afirmação contrária
vulgarmente se denomina forma substancial". Cf. Sistema noro da implica contradição, mas será contingente se outros predicados
natureza, % 3- forem igualmente possíveis. Assim, definido o círculo, é necessá-
Ftarque seus raios sejam todos iguais, é impossível que assim nâo
34. Todo o fim do artigo foi acrescentado posteriormente. So-
bre a tema da hierarquia do seres: Discurso de metafísica, §§ 34-36; seja sem destruir a noçào mesma de círculo. Eis por que essa é
Correspondência entre Leibniz e Arnauld, cartas de 30 de abril de uma verdade eterna (ou uma verdade de razào). Mas nào é neces-
1687, de 9 de outubro de 1687, de 23 de março de 1Ó90; Sistema sário que um fato contingente tenha lugar no mundo, a determi-
novo da natureza, §§ 5 e 8: Monadologia, §§ 18-30 e §§ 82-85; nação dos futuros contingentes é condicional e e n v o h e a hipóte-
Princípios da natureza e da graça, % Í-S e §§ 14-15. se de uma série de causas que precisam existir para que o fato se
efetive.

92 93
- G. W. Leibniz _ Discurso de metafísica e outros textos.

A origem das c o n e x õ e s necessárias é o entendimento divino ção é contínua, isto é, Deus cria e conserva as criaturas no ser,
(que concebe essências o u "ideias absolutamente puras"), a ori- essa dependência é manifesta. Daí Leibniz falar e m "emanação",
gem das c o n e x õ e s contingentes é a vontade de Deus (que p õ e embora o termo tradicionalmente se oponha à criação (na Mona-
existências livremente inspiradas pelo princípio d o melhor). Uma dologia o filósofo fala em "fulgurações contínuas'"), O termo ema-
proposição necessária pode ser conhecida pela análise de uma nação, e m sentido leibniziano, visa indicar que a diferença entre
possibilidade lógica, enquanto uma proposição contingente é i n - criação e conservação é apenas extrínseca (cf. Teodicéia, % 385) e,
demonstrãvel, pois exigiria uma análise infinita, já que pressupõe assim, marcar a continuidade da açào de Deus.
a totalidade do inundo criado, e o conhecimento dos mundos 41. O ato original da criação pode ser apresentado em forma
possíveis não realizados pressupõe, em última instância, u m co- matemática. As figuras geométricas são engendradas em número
nhecimento pleno de Deus e d o ato de criação. infinito p o r deslocamentos insensíveis que seguem uma l e i de
38. Leibniz ilustra, através deste exemplo histórico, a argu- continuidade. Assim, a secção de u m cone por u m plano que se
mentação que oferecera anteriormente: o filósofo enuncia primei- desloque continuamente e de m o d o insensível, por exemplo, gera
ramente o problema (a noção de substância individual e a afirma- uma infinidade de círculos, elipses c parábolas. D o mesmo modo,
ção de liberdade parecem incompatíveis), dá uma resposta insu- Deus, observando o sistema geral dos fenómenos que decide
ficiente (recorrendo aos futuros contingentes e mostrando que a criar a partir de todos os infinitos pontos de vista possíveis atra-
presciência divina não torna a ação de César necessária), recolo- vés de transições insensíveis, faz corresponder, a cada uma des-
ca o problema ("prefiro resolver as dificuldades a escapar de- sas perspectivas, uma substância individual. Cada substância é,
las...' ;, e responde aplicando ao caso de César a distinção das co-
1
pois, uma visão divina sobre a totalidade d o universo; eis, a um
nexões. Mostra, assim, como a vida de César corresponde a uma só tempo, a semelhança da criatura (perspectiva divina) com
conexão contingente ou necessária ex hypothesi que depende de Deus, e, logo, o valor absoluto da percepção, e sua limitação {uma
um ato de vontade divina, inspirado pela consideração do melhor entre as infinitas perspectivas).
(e não por necessidade lógica), e da vontade de César que, como 42. Pelo princípio dos indiscerníveis nâo p o d e haver identi-
todos os homens, age de acordo c o m o que lhe parece melhor. dade de percepções: cada u m vê (e age) à sua maneira, embora
39. Uma proposição contingente não pode ser demonstrada todos vejam o mesmo mundo. A diversidade de pontos de vista
através da análise, demonstrá-la seria mostrar a razão suficiente nâo impede, todavia, a comunicação (em linguagem prática), já
de ter ocorrido u m fato e m lugar de outro. Por isso, Leibniz pre- que todas as substâncias e x p r i m e m todas as outras (em linguagem
tere usar "mostrar a razão" Cvoir la raison") quando se refere às metafísica). A entrecorresponclcncia dos fenómenos o u a entreex-
verdades de fato. "Razoável"' aqui se opõe, portanto, a necessário. pressão é. pois, a outra face d o impedimento mútuo entre as subs-
Embora escreva "a demonstração deste predicado cie César", para tâncias (cf. Discurso. § 5, nora 17): há u n i acomodamento entre to-
estabelecer a diferença entre as verdades da geometria (em que a das as substâncias, o u uma harmonia universal, donde a extensão
relação entre sujeito e predicado é absolutamente necessária) e
de cada substância (que percebe o infinito') e sua limitação (só co-
as verdades contingentes, e, assim, matizar a comparação que f i -
n h e c e a totalidade cio m u n d o confusamente), cf. Princípios da na-
zera no início d o artigo entre uma noção individual e a natureza
tureza e da graça, § 13: "cada alma conhece o infinito, conhece
do círculo, Leibniz recorre à "demonstração de necessidade" para
tudo, mas confusamente", Sobre a teoria leibniziana da expressão:
se referir às verdades de razão e "prova a priori" para falar das
Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687; e Quidsit idea.
verdades de fato.
43. E m .sentido estrito, ovi e m linguagem metafísica, não há
40. A criação p o r si só não implicaria a dependência cons- paixão entendida c o m o ação de uma substância sofrida por o u -
tante das criaturas e m relação a Deus, mas, uma vez que a cria- tra. O vocabulário que o p õ e paixão e a ç ã o corresponde ao nível

94 95
Discurso de metafísica e outros textos
— C. W. Leibniz

ral e o sobrenatural (mesmo que essa distinção seja apenas uma


fenomenal o u à linguagem prática, porque no plano substancial
diferença de grau). Por isso distinguirá, no f i m d o artigo, a essên-
a paixão deve ser entendida c o m o u m grau menor de distinção
cia o u ideia e a natureza ou potência da substância individual.
da percepção, o u como uma percepção confusa. Açào e paixão são
limites de uma variação nos graus de percepção (assim como 50. A relação causa-efeito é entendida aqui no interior da re-
são limites a distinção e a confusão das percepções, cf. Discurso, lação de expressão. Fisicamente deve-se dizer que há unia equi-
§§ 24-25). valência entre a causa plena e o efeito inteiro. Assim, porque a
substância exprime Deus como o efeito exprime a causa, exprime
44. Cf. Discurso de metafísica, § 32.
também os milagres ou atos livres divinos que estão acima das
45. O manuscrito continha uma longa passagem em que
leis subalternas que o homem é capaz de compreender. O mila-
Leibniz procurava conciliar a linguagem metafísica c o m a lingua-
gre não pode ser relacionado à substância individual como causa,
gem prática a respeito das paixões. O trecho foi suprimido certa-
embora esteja compreendido na expressão individual de cada
mente porque o tema reaparece no artigo seguinte.
substância, porque a potência da substância individual, que se ex-
46. Cf. nota 42. As substâncias se limitam reciprocamente, prime como força, é limitada: na ordem das máximas subalternas
porque cada uma é um ponto de vista particular que pressupõe o milagre é u m efeito que ultrapassa as Iorças de qualquer subs-
todos os outras para se definir; assim, pode-se clizer que uma per- tância criada e, dessa maneira, derroga o princípio físico de equi-
cepção clara para urna substância será mais o u menos obscura valência entre causa e efeito.
para todas as outras e vice-versa. Entre as percepções cias subs-
51. O exemplo de máxima subalterna escolhido por Leibniz
tâncias há uma diferença de expressão. Em linguagem prática,
não é u m exemplo qualquer, mas aquele que o opõe ao cartesia-
uma açào, o u percepção clara de uma substância, corresponde a
nismo. Este § 17 reproduz, em certa medida, um texto publicado
uma paixão de outra, de m o d o que t u d o é harmónico no m u n d o .
47. Cf. nota 43. por Leibniz no Acta eroditomm em 1686: Brevis Demonstratio er-
roris memorahitis Cartesri. Traduzido, ainda em 1686, para o fran-
4H. O prazer, que e m si mesmo é signo de perfeição, pode
cês, pelo abade Catelan e publicado eni Nouvelles de la Republi-
se revelar, no correr d o tempo e de acordo com a ordem geral
ques des Lettres, o texto foi objeto de uma pequena polemica en-
que governa o m u n d o , como u m mal. Cf. Teodicéia, § 33.
volvendo também Malebranche. Leibniz reproduz sua argumenta-
49 Leibniz retoma a discussão sobre o milagre, apresentada
ção em uma carta a Arnauld de 14 de julho de 1686.
n o § 7, mas agora de u m p o n t o de vista restrito: o da teoria da
Entre os estudos críticos sobre a noção de força em Leibniz;
substância individual. Trata-se, pois, de entender a relação entre
Guéroult, Dynamique et Métaphysique leibniztennes, Paris: Les
o milagre e a lei dc desenvolvimento que caracteriza uma subs-
tância individual e nào entre o milagre e as leis gerais do univer- Belles Lettres, 1934; e Relaval, Leibniz critique de Descartes (cap. 7),
so. Mas, como a substância individual exprime a ordem universal, Paris: Gallimard, 1960.
a solução nào difere daquela do § 7: como toda intervenção so- 52. Alusão a Descartes e â teoria que desenvolve na segun-
brenatural de Deus está em conformidade c o m a ordem geral d o da parte dos Princípios', essa "famosa regra" é o fundamento d o
universo, essa ação extraordinária está compreendida na substân- mecanicismo cartesiano, é a primeira lei da natureza (cf. Princí-
cia individual. Ora, então o risco é reduzir o sobrenatural ao na- pios, I I , 36-37).
tural. Embora o universo leibniziano seja criado segundo uma ra- 53- Embora Leibniz considerasse, desde os seus trabalhos so-
cionalidade abrangente e nada aconteça fora da ordem universal, bre o assunto, como Tfyeoria motus concreti e Tbeoria motus abs-
o que indica uma inteligibilidade plena do m u n d o (ainda que tracti. ambos de 1671. que a extensão não podia dar conta da i n -
para o h o m e m essa inteligibilidade não se dê de fato. ela é pen- dividualidade de cada corpo e de certas qualidades dos corpos,
sada de direito), Leibniz nào abre mão da distinção entre o natu- como a impenetrabilidade, e por isso não podia ser a essência d o

96
G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

corpo n e m substância, ele aceitava no conjunto os princípios ge- sa — f o i formulado por Descartes c m u m pequeno tratado de me-
rais do mecanicismo de Descartes e Gassendi. O princípio de cânica que enviou como apêndice de uma carta a Constantin Huy-
conservação d o m o v i m e n t o era, então, plausível para o filosofo, gens, em 5 de outubro de 1637: Explication des enginspar Vaide
porque podia ser e x p r i m i d o matematicamente, de acordo c o m a
desquels on peut avec une petite force lever un fardeaufort pesant.
nova ciência.
57. Segundo o princípio de Galileu {Discorsi e demonsirazio-
54. Cf. Descartes, Princípios, I I , 43. A razão composta é o ni matematiche, de I638), a velocidade é igual à raiz. quadrada
produto da massa pela velocidade ( m v ) . da altura, portanto, para o corpo A, cuja altura é 4, a velocidade
55. Leibniz considera que Descartes identifica falsamente é 2; para o corpo B, cuja altura é 1, a velocidade é 1
força e quantidade dc movimento e, assim, o p õ e sua tese sobre a 58. Leibniz conclui não apenas afirmando a distinção entre
conservação da força ã tese cartesiana. A força é de uma nature- força e quantidade de movimento, mas atribuindo à força uma ex-
za diferente da quantidade de movimento, ela é uma noçào me-
pressão matemática (cf. nota 55).
tafísica, Leibniz não pode abdicar, porém, da aquisição da ciência
A partir dessa demonstração Leibniz mostra, também, que,
moderna, o mecanicismo garante a expressai) matemática dos fe-
além das propriedades mecânicas, os corpos têm uma realidade
nómenos. A força viva, aquela que supõe o movimento, p o d e ser
exprimida matematicamente c o m o o p r o d u t o da massa d o corpo metafísica, a força. Diferentemente da extensão, que exprime ape-
pelo quadrado da velocidade ( m v ) , de acordo c o m o efeito que
2
nas u m estado presente, a força pode durar. Eis os fundamentos
ela pode produzir, tal c o m o fica claro no f i m deste artigo. para a formulação futura do conceito de mônada: o m u n d o é
constituído por unidades de força.
Leibniz oferece aqui duas razões que justificam o pnncípio
59- Leibniz define agora a natureza da noçào de força, intro-
de conservação da força, e não da quantidade de movimento, no
duzida no § 17, cuja importância abrange a física (estabelecendo a
mundo. L m primeiro lugar, "é razoável", ou seja, nào é matemati-
verdadeira lei dos fenómenos, que não p o d e ser o movimento), a
camente necessário, mas é conforme à necessidade moral da or-
mecânica (esclarecendo as verdadeiras leis do m o v i m e n t o , sobre-
dem do melhor. Em segundo lugar, "quando se presta atenção
tudo a lei d o choque, contra Descartes e Malebranche) e a meta-
nos fenómenos" se constata pelos fatos e a posteriori o erro de
Descartes, porque a experiência mostra que nâo há movimento física (o fundamento d o mecanicismo e das leis d o m o v i m e n t o é
perpétuo, tal c o m o supunha o pnncípio cartesiano, enquanto, de a doutrina da substância e nào a extensão). Para caracterizar a for-
sua parte, a força é conservada quando u m corpo a transmite a ça, Leibniz afirma primeiramente que, enquanto o movimento,
outros corpos contíguos ou a suas partes móveis. Assim, Leibniz considerado formalmente como mudança de lugar (cf. Descartes,
entende que a força, e nào o movimento, sc conserva e, p o r isso. Princípios, I I , 25-30), é apenas relativo, isto é, nâo pode ser atri-
corresponde a algo de real. buído a u m c o r p o de preferência a outro, a força possui u m cará-
ter absoluto, porque é o fundamento d o movimento. O m o v i m e n -
56, Para demonstrar sua tese, Leibniz utiliza dois axiomas c o
to é u m a relação variável de distância e, portanto, extrínseca ao
mumente admitidos. O primeiro - u m corpo, caindo de uma certa
corpo que se move, Mas, enquanto mudança dc- lugar, o movi-
altura, adquire, a força para subir novamente, se nào houver impe-
mento indica uma mudança interna e, portanto, u m princípio i n -
dimentos externos - íói explicitamente formulado por Christian
terno de espontaneidade, de m o d o que u m corpo que se m o v e
Huygens e m u m texto, Régies du mouvenient dans la rencontre
nào apenas muda de lugar mas tem vima tendência a se mover.
des corps, publicado no Journal des savants, em 18 de março de
(Cf. tb. Objeçào de Morus a Descartes: Cartas de Morus a Descar-
1669, e no Horologium oscillatorium, de 1673. O segundo - é ne-
tes, 5 de março de 1649- 23 de j u l h o de 1Ó49.)
cessária tanta força para elevar um corpo dc 1 libra à altura de 4
60. Leibniz indica, e m segundo lugar, que a natureza da for-
toesas, quanta para elevar u m corpo de 4 libras à altura de 1 toe-
ça nào pode ser definida pela extensão e suas modificações e que

98 99
cV. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

a força corresponde, pois, a u m princípio de ordem metafísica. Se particulares: Deus se propôs u m único f i m , o melhor dos mundos
o movimento é em seu fundamento mudança e não simples des- possíveis, e não age cie acordo c o m vontades isoladas, assim,
locamento, isto é, se a força é a 'causa próxima" d o movimento, deve-se explicai pela finalidade a o r d e m geral do m u n d o e não
então 6 preciso pensar uma causa capaz de produzir o efeito mo- os fenómenos particulares.
vimento; a noção de força se aproxima du noçào de forma subs- 64, Deus cria o i n u n d o para sua glória e não para nós. por
tanciai, mas não deve ser pensada como simples potência, e sim isso cria u m m u n d o harmónico, isto é, uma variedade de seres
como enteléquia, que envolve a espontaneidade de uma tendên- unidos em uma ordem ( u m m u n d o composto apenas por espíri-
cia, de soite que a ação tem lugar se nada impedir (cf. Monado- tos seria u m m u n d o pobre). Todavia, em certo sentido, podemos
logia, ^ 10 e 18). nos considerar como fins da criação, já que o universo inteiro diz
61. Assim, Leibniz pretende conciliar a explicação mecânica respeito a nós na medida e m que o exprimimos; isso decorre do
d o m u n d o , isto é, a ciência dos modernos, com a metafísica dos § 14, que afirma a entreexpressào das substâncias, da teoria leib-
antigos-, há dois planos harmónicos ou duas ordens, ou seja, to- niziana da substância, que a faz u m centro de perspectiva do uni-
dos os fenómenos da natureza p o d e m sei explicados matematica- verso inteiro, e, principalmente, d o fato de os espíritos exprimi-
mente ou geometricamente pela ciência, mas seu fundamento é rem melhor Deus que as demais criaturas (cf. §§ IS e 36).
metafísico, o que satisfaz as "pessoas inteligentes e bem intencio- OS. A segunda razào que Leibniz oferece para justificar sua
nadas", tais c o m o Arnauld. para as quais a explicação puramente tese é uma razão a posteriori, "a admirável estrutura dos animais"
mecânica d o m u n d o podei ia significar explicar tudo pela matéria exemplifica a finalidade da sabedoria divina, porque ilustra a har-
sem consideração da piedade. monia, a conformidade das partes e do todo etc. Por isso. Leibniz
62. Após recorrer à noçào de força como fundamento dos fe- se opõe, em seguida, aos partidários de um puro mecanicismo,
nómenos, Leibniz trata da finalidade como principie» de explica-
1
como Hobbes e Gassencli, O absurdo cie uma concepção estrita-
ç ã o deles. Introduz a necessidade d o recurso às causas finais na mente mecanicista se mostra, para Leibniz, nas suas consequên-
explicação d o m u n d o por oposição aos partidários d o mecanicis- cias (a pura necessidade da matéria ou o simples acaso), que sào
mo, cujas perigosas consequências se remetem a uma concepção inconciliáveis com a afirmação metafísica da existência de Deus.
da criação que, ao negar a finalidade, vê uma necessidade abso- 66. O princípio físico da equivalência entre a causa plena e
luta o u uma vontade arbitrária na origem d o m u n d o e, portanto, o efeito inteiro deve ser, pois, entendido universalmente. Os dois
como mostrara no § 2 d o Discurso, nega a bondade e a glória de exemplos, o d o olho e o da conquista de uma praça, visam mos-
Deus. Leibniz alude, pois. a Descartes (para q u e m Deus nào se- trar o absurdo de uma explicação estritamente mecânica. A ciên-
gue nenhuma regra de bondade na criação d o m u n d o ) c a Espi- cia deve interpretar os fenómenos mecanicamente, mas não pode
nosa (para q u e m nào há criação, já que o m u n d o é o efeito ne- deixar de se referir à metafísica como seu fundamento c, portan-
cessário da causalidade divina). Cf. notas 4, 5 e 6. to, à inteligência ordenadora divina. Conhecer a causa o u dar a
63- Depois de justificar sua tese por uma razão a priori de razào de algum fenómeno, para Leibniz, é introduzir finalidade e
ordem teológica (Deus age sempre conforme o melhor e o mais intÉjligência.
perfeito, então o m u n d o deve manifestar e m sua ordem a finali- 67. Leibniz cita esta passagem d o Fédon (97b-99c) ern vários
dade da açào divina), Leibniz responde a uma possível objeção, a escritos; Resumo do Fédon, de 1676; Carta sobre a utilidade de
saber, é impossível determinar os fins de Deus e portanto recor- um principio geral na explicação das leis da natureza, de 1687;
rer a eles na explicação dos fenómenos. A objeção perde seu Resposta ãs reflexões de Régis, 1697; Hã duas seitas de naturalis-
sentido sc nào se pretende explicar u m fenómeno particular pelo tas, A passagem aqui citada é tirada deste último texto. Leibniz faz
recurso à finalidade, nem se imagina que Deus se propôs fins uma tradução livre e c o m lacunas.

100 101
—(7. W. Leibniz Discurso dc metafísica e outros textos.

68. Para reafirmar a importância da consideração das causas refraçào. Leibniz considera que Snellius aplicava ao estudo da re-
finais em física. Leibniz desenvolve dois exemplos, u m sobre as leis fraçào (dióptrica) o que os antigos usaram n o estudo da reflexão
do movimento e outro sobre fenómenos ópticos, que se apoiam (catóptrica), a saber, o princípio da simplicidade, segundo o qual
em textos já publicados. No primeiro exemplo, que se remete ao a luz procura o caminho mais simples, o que. na catóptrica, leva à
texto Tbeoria motus abstracti, de 1671, e à polemica dos anos de igualdade dos ângulos de incidência e reflexão, e, na dióptrica,
1686 e 1687 em torno d o texto Brevis demonstrado erroris memo- à constância da relação entre os senos cios ângulos de incidência
rabilis Cartesii, Leibniz critica a definição das leis d o movimento e refraçào (se a luz muda de meio e encontra uma resistência maior
c o m base exclusivamente nas noções geométricas de extensão e o u menor, a lei dos senos é a mais determinada o u a mais sim-
deslocamento, tal como faz Descartes (Princípios, 11, §§ 23-53). ples porque a proporção dos senos é a proporção da resistência
Para Leibniz. o mecanicismo cartesiano leva a supor que, n o cho- dos meios). Para Leibniz, a descoberta de Snellius confirma a im-
que, u m corpo pode comunicar velocidade a outro sem perder a portância da consideração das causas finais. -
sua própria; além disso, leva à suposição de que n e m sempre há 7 1 . Heliodoro de Larissa era u m matemático grego que, apro-
u m sistema equilibrado na natureza, de maneira que o princípio ximadamente entre os séculos I I I e TV a.C. compôs u m tratado
da equivalência entre a causa plena e o efeito inteiro nào seria de óptica, depois (em 1657) editado em Paris (Opticorum Libri il).
sempre respeitado. Assim se mostra imprescindível, para explicar 72. Fermat conhecia, através de Mersenne. a Dióptrica de
essas regras fundamentais da mecânica que sào as leis d o choque Descartes antes de sua publicação em 1637. e escreveu uma críti-
e a formação de u m sistema equilibrado, o recurso a u m princí- ca da demonstração cartesiana a Mersenne, que comunicou a Des-
p i o de ordem metafísica, a saber, "o decreto da sabedoria divina cartes, tendo se iniciado, a partir de então, uma troca de cartas.
de conservar sempre a mesma força c mesma direção no total". A Sobre o método de hermal: Leibniz, 'fentamen Anagogicum.
força é a capacidade de passar à açào e produzir um efeito futu- 73. CS. Descartes. Dióptrica. Discurso, IL Leibniz questionou
ro, a direção é a determinação d o movimento (cf. Carta a Ar- a demonstração de Descartes pela primeira vez e m 1679, e m
nauld, 30 de abril de 1687). A conservação da força (cf. Discurso. uma carta a Malebranche (Die philosophischen Schrifften, he-
§ 17) e da direção mostram que Deus se preocupa c o m a totalida- rausgegeben v o n V. Gerhardt, Berlim, 1875-1890; Olms, 1978 -
de das coisas e que estas correspondem, portanto, a u m f i m .
volume IV, 302).
69. "Ensaio de Dinâmica sobre as leis d o m o v i m e n t o " . Cor- 74. Alusão a Malebranche. cf. Discurso dc metafísica, §§ 26,
respondência com Clarke. Para compreensão maior, consultem-se
28 e 29-
os Escritos matemáticos, nas obras completas, edição Carl Ger-
75. Depois de retomar brevemente os temas tratados nos 17-
harde ( N da T. i Leibniz considera que, também na catóptrica e
na dióptrica, as leis da óptica p o d e m ser deduzidas de u m princí- 22, justificando seu percurso argumentativo. Leibniz volta "dos
p i o metafísico, a saber, "o decreto de Deus produzir sempre o corpos às naturezas imateriais e particularmente aos espíritos" e
efeito pelas vias mais simples e determinadas", d o que falará no acentua, primeiramente (§ 23), a necessidade de examinar a natu-
artigo seguinte. rcz.a das ideias a f i m de distinguir o b o m e o mau uso que se faz
delas; psrr^- isso, é preciso distinguir os raciocínios sobre alguma
70. Leibniz justifica a preferência pela via das causas finais
coisa e a ideia dessa coisa o u , em outros termos, é preciso distin-
:

("mais f á c i l ) c o m o exemplo das leis de óptica, já citado no arti-


guir o discurso e o pensamento, a palavra e a ideia (cf. "Medita-
go anterior: a lei da refraçào descoberta por Snelíius.
ções sobre o conhecimento, a verdade e as ideias", in Escritos Fi-
Snellius (1501-1626") era professor de matemática na Univer-
losóficos. Ed. Olaso. Buenos Aires: Charcas, 1982 ( p p . 271-8); Edi-
sidade de Leyden e deixou u m manuscrito, encontrado após sua
ç ã o original: Die philosophischen Scbriften, Gerhardt, Redin:
morte, que continha o enunciado e a demonstração das leis da
1875-90; Hildesheím: 1960-1 - I V ( p p . 422-6). Pode-se falar so-

102 103
C W. Leibmz Discurso de metafísica e outros textos

brc coisas impossíveis, pode-se imaginar que temos ideias claras matemáticas admitidas pelo vulgo e aparentemente claras que en-
quando falamos dc contradições, é preciso, pois, analisar sem- cerram uma contradição. Os exemplos matemáticos sào conside-
pre a suposta ideia a f i m de não deduzir falsidades a partir de ilu- rados aqui no interior d o exemplo da ideia de Deus para mostrar
sões. Antes cie definir propriamente o que é a ideia (o qtie só fará a necessidade da análise no reconhecimento de ideias falsas, en-
explicitamente no § 26.), Leibniz mostra a necessidade cie nào se quanto essa última, a ideia de Deus mostra a necessidade do es-
fiar em u m a evidência aparente e de se verificar a possibilidade tabelecimento rigoroso, pela via da análise, de uma ideia verda-
cia coisa que a pretensa ideia exprime. E essa possibilidade é co- deira, e a importância, mesmo em metafísica, da análise lógica.
nhecida pelo recurso formal à análise (et Caria a Arnauld, 4/14
77. A icléia, como objeto do pensamento, nào é falsa o u ver-
de julho de 1686). Assim, contra u m critério "subjetivo" de verda-
dadeira em si. Cf. Noros ensaios, Leibniz: "é verdade que atribuí a
de - que fundamenta a inteligibilidade em uma impressão subje-
verdade também às ideias afirmando que as ideias sào verdadei-
tiva produzida pela ideia — Leibniz recorre à estrutura objetiva da
ras o u falsas: mas, nesse caso, o penso de fato das proposições
icléia para buscar a inteligibilidade perfeita, a realidade da ideia
que afirmam a possibilidade d o objeto da ideia. E nesse mesmo
será, desse modo, sua coerência lógica O que Leibniz critica aqui
sentido pode-se dizer ainda que vim ser é verdadeiro, isto é, a pro-
(nas entrelinhas) é o critério cartesiano de clareza e distinção (em-
posição que afirma sua existência atuaf o u pelo menos possível é
bora ele mesmo o tome como ponto de partida para classificar as
verdadeira" CNoeos ensaios, V. iv, § 11). Propriamente falando, en-
ideias, mas veremos em que sentido no § 24): segundo o filósofo,
tão, a verdade ou falsidade está numa proposição, n u m juízo so-
'as coisas que sào obscuras e confusas parecem claras e distintas
bre a possibilidade d o objeto da ideia.
para q u e m julga sem profundidade. Daí ser u m axioma inútil, a
78. O tema deste artigo, que resume a exposição feita dois
menos que se acrescentem critérios do claro c d o distinto que
anos antes nas Meditações sobre o conhecimento, a verdade e. as
propi unos" {.Meditações sobre o conhecimento..., p . 276),
ideias e retomada, e m 1704, nos Novos ensaios (TI, x x i x - x x x i ) , de-
76. Leibniz nào se atém ao conteúdo da prova, mas a sua corre naturalmente do tema da análise apontado no § 23- já que a
forma lógica-, a prova da existência de Deus é u m exemplo da d i - classificação das ideias que Leibniz apresenta no § 24 parece cor-
ficuldade de se reconhecer uma ideia verdadeira e u m exemplo responder aos diferentes graus de uma análise que pretende en-
de evidência não fundada em uma análise. Trata-se. pois, de uma contrar os elementos primeiros d o pensamento. O lema da análi-
demonstração incompleta, é preciso antes demonstrar a possibili- se lógica se o p õ e riiretamente aos critérios de verdade de Descar-
dade d o ser perfeito ou de Deus. Se Leibniz estivesse interessado tes. Descartes (Regras, I-XII; Discurso do método, TT) relaciona o
no conteúdo da prova ontológica, afirmaria que todas as perfei- conhecimento à evidência imediata das ideias claras e distintas
ções sào qualidades simples, logo compatíveis entre si. logo a icléia quando estão presentes ao entendimento. A clareza, p o r oposi-
de um ser com todas as perfeições e, entre elas, a existência, é ç ã o à obscuridade, resultaria da presença imediata da ideia; a dis-
possível, logo esse ser existe. Mas aqui, como no § 1, em que par- tinção, por oposição à confusão, seria uma clareza que permitiria
tiu dessa mesma definição de Deus (mas como u m postulado, separar uma ideia das outras. Mas trata-se sempre, para Leibniz,
nào c o m o uma prova), Leibniz nâo considera a prova nela mes- de um"^itério baseado na impressão subjetiva produzida pela
ma: está interessado e m mostrar que a argumentação de Santo ideia, Além disso, Leibniz concebe uma variedade de conheci-
Anselmo (Proslogion. 11 I V ) e Descartes (Discurso do método, mentos que nào se deixam resumir pelo critério de clareza e dis-
IV; Meditações, V; Princípios, I , 14; é válida, mas é insuficiente, por- tinção. A ele interessa considerar a estrutura objetiva da ideia nela
que frequentemente pensamos c m quimeras, como o último grau mesma com certa independência e m relação ao pensamento que
cíe velocidade, o maior de todos os números etc. Eis o segundo a concebe ou a que se apresenta a ideia (embora, como veremos,
exemplo de dificuldade de reconhecimento de uma ideia: 'ideias" a classificação dos tipos de ideia inevitavelmente mantenha rela-

104 105
-G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

ç ã o c o m o entendimento humano, mas n ã o se tratará, então, de mentos que a compõem, é apenas u m limite. A ideia distinta c
uma impressão produzida pela ideia, mas da possibilidade de adequada é aquela em que, conhecendo todas as suas marcas ou
proceder ou não a uma análise lógica dos elementos que com- elementos constitutivos, podemos definir por meio desses elemen-
põem cada ideia). O critério de verdade deverá ser, então, uma tos, mas, se as ideias simples sào simples apenas aparentemente,
demonstração sólida que a forma lógica garante: toda ideia pode seria preciso analisar cada u m desses elementos c conhecê-los
ser decomposta e m elementos mais simples, e estes, em outros também distintamente e assim ao infinito.
mais simples, até se chegar a elementos indecomponíveis. D c fato. p o r q u e nossos pensamentos nascem "da relação de
79. Nas Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as todas as coisas entre si de acordo com a duração e a extensão"
ideias e nos Novos ensaios ( I I , xxix-xxxi), Leibniz afirma que o co- (Teodicéia, % 124), isto é, nascem da entre-expressão de todas as
nhecimento de uma ideia é dito claro, por oposição ao obscuro, coisas, tudo que pensamos envolve o universo inteiro e, se pen-
quando permite o reconhecimento da coisa que exprime c sua samos distintamente uma ideia, nâo podemos pensar distinta-
diferenciação em relação a coisas parecidas. O conhecimento cla- mente a totalidade d o universo que essa mesma ideia envolve
ro é confuso quando, embora possamos reconhecer o que a ideia (ou de algum m o d o traz consigo). Nosso p o n t o de vista para per-
exprime, não conhecemos u m número suficiente de elementos ceber a totalidade d o m u n d o é nosso corpo: 'na minha filosofia
constitutivos, n e m podemos enumerar separadamente essas no- não há criatura racional sem algum corpo orgânico e não há es-
tas que distinguem uma coisa das demais. Só podemos designar pírito criado que seja inteiramente separado da matéria" (Teodi-
uma ideia clara e confusa por exemplos, assim não é possível fun- céia, § 124); e o n d e houver c o r p o e sentidos há confusão. Pode-
damentar nenhum conhecimento racional sobre a clareza - ã ex- mos dizer que nossos pensamentos nascem em nós uns dos o u -
periência, à imaginação e aos sentidos bastam essa mesma expe- tros, mas pela relação que nosso corpo mantém com os outros
riência, essa mesma imaginação e esses sentidos para que esteja- corpos; assim, as ideias que pensamos, pensamos de acordo
mos certos de que experimentamos, imaginamos e sentimos, aqui c o m a duração e a extensão, a série de nossos pensamentos cor-
a clareza basta para nos persuadir; mas, quando se trata da razão, responde á série de nossas sensações. Assim, temos ideias distin-
é preciso proceder à análise da ideia a f i m de nos convencermos tas, mas n ã o podemos ter n e n h u m pensamento distinto que nào
sobre a possibilidade d o que ela exprime. tenha por ''companheira" a confusão. Dessa mesma perspectiva,
80 O conhecimento distinto possui graus: é inadequado pensarmos c m uma ideia realmente adequada seria, no mínimo,
quando não conhecemos cada u m dos elementos que compõem improvável (cf. Belaval, Études leibniziennes, Paris: Gallimard,
a ideia distintamente, assim como no caso d o ouro, em que o 1976, p p . 114-20).
contrasteador conhece confusamente algumas propriedades. En- 81. O conhecimento simbólico o u supositivo é aquele em que
tre o distinto e o confuso não há u m abismo, mas uma gradação os elementos constitutivos da ideia nâo p o d e m ser apreendidos
que depende da análise da ideia; há, e m última instância, ideias de uma só vez pelo pensamento e são, por isso, substituídos por
mais o u menos confusas. Leibniz afirma nos Novos ensaios ( I I I . símbolos que, supomos, resumem u m conjunto dc noções nos
iv, l ó ) que: "las ideias simples] são simples apenas e m aparência, desobrigando de explicá-las - a esse tipo de pensamento Leibniz
são acompanhadas de circunstâncias que têm ligação com elas, dará o nome de pensamentos cegos ( c l Meditações sobre o co-
ainda que essa ligação não seja entendida por nós, e essas circuns- nhecimento, a verdade e as ideias).
tâncias oferecem alguma coisa explicável e suscetível de análise". 82. Pode-se permutar o sujeito "parafuso sem f i m " e o predi-
Ora, então uma icléia verdadeiramente distinta, que Leibniz desig- cado "uma linha sólida cujas partes são congruentes', já que as o u -
na, se apropriando d o termo espinosano, c o m o ideia adequada, tras linhas cujas partes são congruentes, a linha reta e a circunfe-
em que seria possível conhecer distintamente cada u m dos ele- rência d o círculo, nào são sólidas, mas traçadas in plano.

106 107
G. \\". Leilmiz Discurso dc metafísica e outros textos^—

8 3 A definição nominal não dá a possibilidade da coisa. É saios. I I , xxix, 10í no pensamento, por isso esse conhecimento
por isso que, contra Ilobbes, Leibniz afirma que as verdades não cego se aproxima d o conhecimento de noções impossíveis.
dependem dos nomes. Para Hobbes, a verdade está nas palavras Além do exemplo do número 1.000, Leibniz retoma o exem-
e nào nas coisas (De corpore, I I I , 7), e as primeiras verdades nas- p l o d o quiliógono que aparecia na Sexta Meditação (§ 2 ) . Ali Des-
cem da vontade daqueles que primeiro impòem nomes às coisas cartes diferenciava a pura inteleceào. pela qual concebemos facil-
e daqueles que aceitam esses nomes estabelecidos por outros (De mente, como no caso de u m triângulo, o quiliógono como uma
corpore. I l l , 8 ) ; a ciência consiste, portanto, nas palavras e o sen- figura de m i l lados, e a imaginação, pela qual representamos con-
tido das palavras é fixado por definições nominais e é, em última fusamente alguma figura que nào é um quiliógono. Para Leibniz
instância, arbitrário. Ora, dirá Leibniz, se as palavras sào arbitrá- (Novos ensaios. I I , xxix, 13), esse exemplo indica a confusão en-
rias, as noções que elas conotam nào p o d e m ser. tre imagem e ideia. Temos uma ideia confusa tanto da figura
Podemos dizer que Leibniz adota com ressalvas uma doutri- como de seu número ( m i l lados) até que possamos distinguir
na convencionalisia da linguagem. Mas o filósofo evita reduzir a esse número contando o u enumerando, feito isso, temos a ideia
verdade mesma a u m fato sub/clivo e contingente- "o arbitrário se de um quiliógono e podemos, pois, conhecer sua natureza c suas
encontia somente nas palavras, jamais nas ideias. Porque estas propriedades, embora nào possamos formar uma imagem deste
exprimem possibilidades'' (Novos ensaios, I I I , iv, § 17). Embora o polígono. Lis por que a contemplação da ideia nâo se identifica
"nome" sirva para apontar uma coisa e conservar a memória e o c o m a contemplação de uma imagem - mesmo que fosse uma
conhecimento atual dessa coisa, a ideia dessa coisa nào é uma imagem clara c o m o a de um triângulo, ainda assim teríamos cio
''essência nominal", as essências não dependem da escolha dos triângulo apenas uma ideia confusa se não distinguíssemos os
nomes. elementos da noção.
84. Leibniz adianta aqui uma distinção que fará apenas no § 86. No caso do conhecimento confuso, embora possamos re-
27 entre as ideias c as noções: as expressões que estào e m nossa conhecer o que a ideia exprime, nào conhecemos suficientemen-
alma. quer concebamos ou nào, sào ideias; aquelas que forma- te os elementos constitutivos da ideia e nào podemos enumerar
mos ou concebemos sào noções ou conceitos. Podemos imaginar separadamente essas notas que distinguem uma coisa cias demais,
que estamos formando uma noçào, quando na verdade estamos nào podemos, enfim, analisar a icléia. É p o r isso que recorremos
usando palavras vãs o u talando de quimeras. Trata-se das "ideias a exemplos para designá-la. P, por isso também que não construí-
falsas" d o § 23, que sugerem uma crítica da linguagem. mos u m conhecimento racional unicamente com base nessa cla-
85. Leibniz analisa o conhecimento supositivo o u simbólico, reza, porque não podemos nos assegurar da possibilidade do que
no qual nào contemplamos a ideia porque a substituímos por sím- a ideia exprime. Trata-se, pois, de u m conhecimento ligado à
bolos e, sem remeter a definição ao definido, supomos que a noção experiência, à imaginação e aos sentidos, que nào exigem provas
que cada signo resume e possível. Ora, como nosso pensamento para que estejamos certos de que experimentamos, imaginamos
sc fundamenta na memória {Novos ensaios, IV, i , 8), sobretudo em O L I sentimos.
raciocínios longos, e utilizamos ideias que supõem a fidelidade
N o caso d o conhecimento intuitivo, "meu espírito compreen-
de nossa lembrança (Novos ensaios, IV, i , v ) , nào podemos nos
de ao mesmo tempo e distintamente todos os elementos primiti-
impedir de recorrer a esses pensamentos cegos, e estamos sempre
vos de uma noção" (Discurso, § 2 4 ) . Ora, se compreendo simul-
sujeitos ao erro, mesmo em relação a noções familiares como o
taneamente todos os elementos da ideia, nào preciso analisá-la. E
número 1.000, porque usamos o símbolo e o definimos como 10 ve-
é apenas isso que aproxima o conhecimento claro e confuso e o
zes 100 sem pensar o que é 10 e o que é 100. sem contemplar o
conhecimento intuitivo: em ambos nào procedemos a uma análi-
conteúdo cia noção. Pode, pois. haver algo de "vazio" (Socos en-
se para definir a ideia, se [a porque nâo podemos (conhecimento

108 109
. . - . <j W. Leibniz ________ . _ Discurso de metafísica e outros textos.

confuso), seja porque nào precisamos (conhecimento intuitivo): cia o u uma existência. Deus e o m u n d o , q u a n d o a oczsiào para
"o conhecimento é intuitivo quando o espírito percebe a conve- isso se apresenta. Não seria possível tornar presente esse objeto
niência de duas ideias imediatamente por elas mesmas sem i n - da alma se ela nâo fosse expressiva. Leibniz afirma que "Uma coi-
tervenção de qualquer outra. Nesse caso o espírito não precisa sa exprime uma outra f . . j quando há uma relação constante e re-
se ocupar e m provar o u examinar a verdade [...]" (Novos ensaios,
grada entre o que se pode dizer de unia coisa e o que se pode dizer
IV, i i , 1).
de outra" (Carta a Arnauld, 9 de outubro dc 1687). A expressão,
87. Leibniz considera inicialmente duas concepções sobre as prossegue Leibniz nessa cana, é u m género d o qual a percepção
ideias: muitos consideram que as ideias são a forma o u diferença natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são es-
de nossos pensamentos: nesse caso, uma ideia é u m modo do pécies. Todas as criaturas expressam o todo, mas na alma racio-
pensamento o u d o espírito, d o qual recebe o u toma de emprésti- nal essa expressão é acompanhada de consciência, e, nesse caso,
m o sua realidade formal (Descartes, Meditações, I I I , 17, p. 112). é pensamento. Assim, a expressão na alma racional é sua faculda-
Ora, para Leibniz, afirmar isso seria também dizer que uma ideia de de se representar qualquer coisa, ou qualidade de pensar e m
é u m pensamento atual, e nada mais.
tudo: em Deus (quando tem ideias distintas, Novos ensaios, I I , i , 1),
Outros consideram que a ideia é u m objeto imediato do pen- no universo (através das ideias confusas, Novos ensaios, IL i , 1), nas
samento o u uma forma permanente - neste caso, Descartes diria essências o u formas (isto é, no possível, submetido apenas ao prin-
que a ideia possui realidade objetiva ("a entidade ou o ser da coi-
cípio de não contradição), nas existências ou naturezas (uma l i -
sa representada pela ideia, na medida em que tal entidade está
mitação da essência, cf. Discurso de metafísica, § 16).
na ideia" Objeç<>es e respostas. "Razões dispostas de uma lorma
geométrica", Def. I I I ) . A distinção apresentada p o r Leibniz aqui é, 89. A alma é um pequeno m u n d o (Novos ensaios, I I , í, 1),
pois, u m aprofundamento de uma distinção estabelecida por nada nos é estranho, mesmo que nào tenhamos consciência atual
Descartes. dessa totalidade. Assim, recordando sua doutrina da substância
individual já apresentada, e contra a doutrina escolástica das es-
Leibniz se filia a esta última interpretação: a ideia é u m obje-
pécies, Leibniz afirma que "é mau hábito pensarmos como se a
to imediato do pensamento. Afirmar a icléia como objeto, como
nossa alma recebesse algumas espécies mensageiras e tivesse
realidade inata ao espírito, é afirmar a permanência e a realidade
portas e janelas" através das quais essas intermediárias entre os
da ideia independente de nosso pensamento aluai. E a prova des-
sa objetividade é que "a nossa alma tem sempre nela a qualidade objetos e a alma pudessem passar dos objetos às almas para tor-
de representar qualquer natureza o u forma, seja qual for, quando nar os objetos inteligíveis. A alma é seu próprio objeto imediato,
surge a ocasião de pensar nela": nossa alma tem a qualidade de interno; temos todas as ideias no espírito e desde sempre, porque
tornar presente à consciência as ideias que existem virtualmente cada substância está prenhe de seu futuro (Monadologia, § 22) e
em nosso pensamento, e a experiência sensível é apenas a ocasião pensa confusamente naquilo que, no futuro, através da apercep-
para que as ideias ressurjam e m nossa consciência. Mas se a ex- çào o u consciência, poderá pensar racionalmente e c o m distinção.
periência é uma ocasião, é porque as ideias existem " e m nós e As ideias que temos n o espírito são, pois, diz Leibniz, "a matéria
sempre em nós, quer nela pensemos o u nào" ǧ 26). de que se forjria esse pensamento" - o uso curioso que Leibniz
88. A ídéia é tanto u m objeto de pensamento que correspon- faz aqui d o termo "matéria" fica mais claro se pensarmos a maté-
de à coisa de alguma maneira, como uma faculdade o u qualida- ria c o m o o que ainda não é apercebido o u pensado com cons-
de da alma de exprimir essa coisa, assim Leibniz parece conciliar ciência pelo espírito, matéria seria entào essa confusão a que, no
uma certa passividade da alma de perceber u m objeto de pensa- futuro, o pensamento dará uma forma e tornará distinto; o u , para
mento, c o m uma faculdade ativa da alma de exprimir uma essên- mais uma vez adiantar a distinção d o § 27, a icléia é dita matéria

110 111
- G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

poique ainda nào foi formulada pelo pensamento, ainda nào é lica de falar: a experiência vital basta - e é útil, "de nada serve ir
uma. noçào ou conceito, mas existe no espírito. mais longe" — quando a decifração intelectual cio m u n d o não al-
90. O que Platão "considerou excelentemente" pela teoria da cançou a distinção.
reminiscência (e p r o v o u , no Mênon, _0d-86c, c o m o exemplo do 93. Já sabemos (pelos §§ 8-9 c 13-16") que nossa alma expri-
"rapazinho" conduzido às mais difíceis verdades cia geometria me Deus e o mundo, que depende apenas de Deus para existir, e
através de perguntas feitas c o m o r d e m e propósito) foi o caráter que "cada alma conhece o infinito, conhece tudo, mas confusamen-
virtual das ideias inatas e das verdades que delas dependem, de te" (Princípios da natureza e da graça, § 13). porque cada percepção
m o d o que a alma só precisa de animadversiones pm-A conhecer as distinta compreende uma infinidade cie percepções confusas que
ideias e as verdades, tini outras palavras, as ideias existem virtual- envolvem todo o universo", a alma possui muitas percepções sem
mente no espírito e esperam a ocasião de se atualizar: mas para tra- apercepçào, que Leibniz denomina "pequenas percepções", claras
z i d a s à consciência, justamente porque a alma nào é passiva, é no conjunto, mas confusas em suas partes ou elementos (Novos
preciso u m esforço, uma aplicação da alma ao objeto considera- ensaios, ''prefácio"), percepções que não são distintas, porque
do, é preciso atenção e u m pensamento reflexivo. não poderíamos pensar distintamente no todo do universo que é
91. Aristóteles é apresentado no § 27 em oposição a Platão, nossa alma.
que vai aos fundamentos das coisas, como u m filósofo que esco- É por isso que Leibniz nào pode aceitar a comparação de nos-
lheu o ponto de vista da prática ou d o discurso conforme à práti- sa alma a pequenas tábuas ainda vazias, senão em sentido práti-
ca (praticologia) ou conforme a opinião (doxologia). co, e corrige o dito de Aristóteles (De anima, 111, iv, 430 , 432-)
a

92. Como os pensamentos nascem em nós uns dos outros afirmando que não há nada no intelecto que nào tenha estado
pela relação de todas as coisas entre si de acordo com a duração antes, o u que nào provenha dos sentidos, "a não ser o próprio i n -
e a extensão, a ocasião pode ser pensada, e m linguagem prática, telecto" (cf. Noivos ensaios, TI, i . § 2).
como a experiência. Assim, a experiência seria um tipo de ajuda 94. A distinção no vocabulário e a tentativa de conciliação
(certamente nào a única) à atualizaçao das ideias que estão vir- entre a linguagem prática e a melaiísica levam a considerar o ina-
tualmente em nossa alma. K verdade que "se pode ii longe sem tismo e a abrangência de nossa alma, quando se fala das ideias, e,
nenhuma ajuda", que "se pode fabricar as ciências e m u m gabi- quando se fala de noções, a nossa finitude diante da apreensão de
nete e mesmo de olhos fechados sem apreender pela vista, nem certas ideias inatas (que atualizamos o u pensamos distintamente)
pelo toque as verdades de que se precisa fiara tanto" (Novos en- c da fabricação ou produção de conceitos práticos que servem em
saios, I , i . § 5). Isso só prova, todavia, que "há graus na dificulda- nossa vida diária o u e m três quartas partes de nossas ações.
de de nos apercebermos d o que está em nós": "o espírito pode ti- "Seja como for", diz Leibniz. por mais que possamos dizer,
rar os [conhecimentos inatos] de seti próprio fundo, embora fre- em linguagem prática, que todas as nossas ideias provêm da ex-
quentemente isso nào seja uma coisa fácil" (Novos ensaios, I , i , periência, essa afirmação será falsa, se identificarmos experiência
§ 5 ) . Por isso, Leibniz confessa que "a experiência é necessária c o m sentidos, pois há ideias que provêm da experiência interna
Í...1 paru que a alma seja determinada a tais ou tais pensamentos, que o eu, p o r meio da reflexão, tem de si mesmo, lissas são ver-
e p_\r_i q u e ela preste atenção às ideias" (Novos ensaios, l i , i , § 2). dades primitivas, de fato, isto é, conhecimentos intuitivos como
É somente nesse sentido, porque a experiência pode funcionar aquele que se tem das noções primeiras e indefiníveis, mas, dife-
corno a ocasião para as ideias, que Leibniz. conciliador por exce- rentemente dessas, são verdades contingentes, não necessárias
lência, admite pensar com Aristóteles e o vulgo que nossas no- (cf. Noi'os ensaios. IV, ií, § 1). Trata-se de u m sentimento imediato
ções provêm dos sentidos. Há, pois, uma influência ideal, nào como é o cogito cartesiano, que não necessita de uma prova o u
real, das coisas sobre nós. É isso que justifica a maneira aristoté- de uma análise demonstrativa para ser aceita (é por isso que as

112 11?
_ G. W, Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

ideias claras e confusas sào acompanhadas da contemplação da n o " por fórmulas como "pelo seu concurso ordinário, (Deus] nos
ideia). Mas trata-se também d o primeiro princípio geral, ao dizer determina a pensar [nas ideias] efetivamente no momento em que
que Lima coisa é o que ela é (ou que sou uma coisa que pensa), nossos sentidos estào dispostos de uma certa maneira segundo as
digo ao mesmo tempo que A é A (cf. Novos ensaios, IV, i i , § 1). leis por Ele estabelecidas". Pela harmonia preestabelecida, Leib-
Trata-se, pois, d o princípio de identidade: ao pensar no eu, con- niz evita a influência direta de uma substância sobre outra e o m i -
siderando o que esta e m nós, "pensamos no Ser, na Substância, lagre perpétuo de u m Deus ex maebina que restitui o m u n d o à
no simples e no composto, no imaterial e, até mesmo, e m Deus" existência em cada momento de u m tempo descontínuo. O m u n -
(Monadologia, § 30; cf. tb. NE, I I , i , § 2), em outras palavras, ultra- do é como u m relógio, regulado desde o começo: nâo precisa da
passamos a imediatez do cogito cartesiano. ação de Deus intervindo a todo tempo, cada estado nasce d o es-
95. Somente depois de esclarecer a natureza das ideias (§§ 23- tado passado e gera de si o estado futuro. Nâo há influência de
27) e especificar, no interior dessa questão, a origem das ideias uma substância sobre outra, n e m d o corpo sobre a alma ou vice-
(§§ 26-27), Leibniz retoma a questão proposta no início do § 23, a versa, mas tudo concorda pelas leis ordinárias d o m u n d o estabe-
saber, como Deus age sobre o entendimento dos espírito (§ 23)- O lecidas por Deus (cf. Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687).
§ 28 decorre diretamenle das considerações dos §§ 2ó e 27: uma vez É assim que a série de nossas ideias se harmoniza c o m as
que todas as ideias sào inatas ao espírito, embora pareçam provir disposições de nossos sentidos e estes com o estado do m u n d o a
da experiência, ainda que possamos dizer e m linguagem prática cada momento: o que a alma percebe sào suas mudanças inter-
que os objetos exteriores agem sobre a alma, é preciso reconhe- nas, o u ideias, cuja causa é Deus. Daí Leibniz afirmar que Deus é
cer a verdade metafísica d o inatismo e da independência da alma a luz que ilumina todo h o m e m , confirmando sua tese pela refe-
(cf. § 8) c, assim, reconhecer que, se a alma é seu único objeto ime- rência à Escritura, e se remetendo, como a Sagrada Escritura e os
diato interno, é porque depende apenas de Deus para existir, daí Santos Padres, a Platão, trata-se de uma interiorização da luz d o
Deus ser seu único objeto imediato externo. Sol platónico e, nesse sentido, a luz que Deus concede aos espí-
96. "O Verbo era luz verdadeira / que ilumina todo homem; /' ritos para esclarecer seu entendimento permite uma atualizaçào
ele vinha ao m u n d o " ; o u "A luz verdadeira, que ilumina todo ho- de ideias virtuais. Então, Deus está fora de nós, mas a ação que
mem, vinha ao m u n d o " ; o u "Ele ( o Verbo) era a luz verdadeira exerce sobre o entendimento é interna, porque permite que a alma
que ilumina todo homem vindo a este m u n d o " . (Jo, I , 9)- conheça e torne presente as ideias que existem nela; a alma h u -
97. Leibniz precisa, por u m lado, da transcendência divina e mana conhece a si mesma graças à a ç à o dc Deus sobre ela.
precisa, portanto, afirmar que Deus está fora de nós, sob o risco 98. Aristóteles (De Anima., I l l , 5, 430 , 15) distingue o intelec-
a

de cair na causa imanente espinosana. Por outro, precisa subli- to paciente, receptivo, e o intelecto agente, que exerce a ação de
nhar, diante da abrangência o u extensão que atribuiu às substân- dar forma ao intelecto paciente para esclarecê-lo. Averrois consi-
cias individuais, nossa dependência e m relação a Deus, já que so- dera os dois rigorosamente distintos e o intelecto agente, c o m u m
mos seres possíveis c nào seríamos postos na existência, nem a todos os homens, seria uma parte destacada d o intelecto divino.
continuaríamos existindo, se nâo fosse por u m ato de escolha da Na Teodicéia ("Discurso da c o n f o r m i d a d e entre a fé e a razào",
vontade livre de u m Deus sábio e b o m . A solução parece ser a fór- §§ 7-8), Leibniz critica a mortalidade da alma ou d o intelecto pa-
mula "objeto imediato externo", que, veremos no % 29, traz o ris- ciente próprio a cada homem, aliada à imortalidade d o intelecto
co cio ocasiona li smo e leva Leibniz a formular a tese da harmonia
agente que seria uma certa inteligência sublunar da qual partici-
preestabelecida.
paríamos e, pela participação, teríamos u m entendimento ativo.
É para evitar desde já, no § 28, o risco de cair n o ocasionalis- Opinião que, para Leibniz, se aproxima perigosamente da afirma-
ino de Malebranche que Leibniz explica ' objcto imediato exter-
: ç ã o de uma alma universal d o m u n d o , que subsistiria enquanto

114 115
G. W. Leibniz . Discurso de metafísica e outros textos.

a.s almas particulares nasceriam e pereceriam. À interpretação le- 102. Depois de tratar da relação entre Deus e os espíritos do
Ê5um_. de Aristóteles, segundo Leibniz, seria a de Guilherme de ponto de vista d o entendimento dos espíritos (§§ 23-29). Leibniz
S a n t o Amor, segundo a qual os dois intelectos nào seriam absolu- passa a tratar essa questão d o p o n t o de vista da vontade das cria-
tamerte separados e o intelecto agente, próprio a cada indivíduo. turas inteligentes. Para tanto, caracteriza a vontade humana, pri-
_crresponderia a uma luz recebida de Deus que iluminaria os da-
meiro, a partir de sua espontaneidade, recordando o que já disse-
dos sensíveis para torná-los inteligíveis; mas as ideias teriam ori-
ra acerca da substância individual (cf. § 8) e da criação contínua
gem externa ao nosso pensamento, com o que, sabemos, Leibniz
o u concurso ordinário de Deus (cf. § 14). Deus concorre fisica-
nào poderia concordar.
mente para as ações das criaturas racionais na medida em que as
99- Alusão a Malebranche e à teoria da visão em Deus (cf. La produz e conserva continuamente, mas tudo o que acontece a
Kecberche de la vérité, livro I I I , parte II, cap. I - V l l e Esclarecimen-
cada indivíduo está contido em sua noçào. Em segundei lugar,
t o X; Corwersations chrétiennes, Entretiens 1-I1L Méditattons ebré-
Leibniz caracteriza a vontade das criaturas através da tendência
túmnes, I-1V).
espontânea para o bem aparente. Deus age sobre os espíritos
190. Para se contrapor a Malebranche, Leibniz afirma que também através de u m concurso moral, por meio d o decreto ge-
pensamos pelas nossas próprias ideias e nào pelas de Deus: ve-
ral que faz com que a vontade tenda para o aparentemente me-
mos a.s coisas por Deus, mas em nós. Essa oposição em relação a
lhor. As criaturas nào podem conhecer o absolutamente melhor,
Malebranche é feita em dois momentos-, n u m primeiro, Leibniz
mas, através dessa tendência, exprimem o u imitam a vontade d i -
retoma sua explicação da natureza da substância individual, ''toda
vina (cf. § 3). E, finalmente, a vontade é definida a partir da liber-
a extensão e a independência de nossa alma, que a faz conter
dade ou indiferença, se oposta à necessidade absoluta (já que,
tudo o que lhe acontece e exprimir Deus e, com ele, todos os se-
pelo princípio de razão, nào pode haver uma indiferença de equi-
res possíveis e atuais, como um efeito exprime a sua causa". Pensar
líbrio). Deus determina nossa vontade pela tendência ao b e m .
pelas ideias de outrem, diz Leibniz, é inconcebível, é não consi-
mas as escolhas nâo sào necessárias. Assim, embora determina-
derar a verdadeira natureza da substância individual e, em últi-
das por essa tendência e, portanto, pela nossa condição presente,
ma instância, negar a existência de substâncias individuais ao ne-
gar às almas a açào de pensar, é tornar a alma puramente passi- isto é, pela compreensão limitada d o melhor, somos responsáveis
va. Lis por que, n u m segundo momento, Leibniz afirma que a por nossas ações.
substância tem não apenas a potência passiva de ser afetada de 103. Leibniz introduz a questão da predestinação; agimos se-
uma certa maneira - lembremos da definição da icléia c o m o obje- g u n d o nossa vontade livre e temos o poder de agir diversamente
to de pensamento (§ 26) - , mas tem também uma potência ativa o u suspender a açào, mas é "verdadeiro e mesmo certo, desde
cif suscitar em si mesma essas afecções, de tornar presente uma toda a eternidade, que nenhuma alma se há cie servir deste poder
icléia inata virtual, de esforçar-se e dedicar atenção a si mesma e m determinada circunstância". L m outras palavras, se todos os
para pensar distintamente urna ideia - trata-se da faculdade o u pecados estão determinados, como os homens podem ser res-
qualidade da alma de expressar uma essência, forma o u natureza ponsáveis p o r suas ações? Trata-se do labirinto da liberdade e da
(§ 26». A natureza da alma é tal que ela possui marcas ou sinais necessidade, Leibniz nào identifica necessidade e determinação,
dc seus pensamentos futuros, que se tornarão distintos, ou serão assim, embora as açóes sejam determinadas, elas sào contingen-
pensados com consciência, no momento devido de acordo com a tes (cf. § 13). A queixa d o pecador é injusta p o i q u e Deus nào é
harmonia preestabelecida, causa de suas açóes, embora concorra ordinariamente para elas;
101. Com efeito, essas questões são tào complexas que Leib- a causa é a criatura e sua vontade. De um ponto de vista prático,
niz dedicará a elas grande parte dos Ensaios de Teodicéia (cf., por antes de escolher, a ação e seu contrário são possíveis, logo, de-
exemplo, §§ 34-55). pois da açào, sabemos apenas que Deus a previu, e essa previsão

116 117
O'. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

n ã o torna a açào necessária, nem atribui a Deus a responsabilida- tado de pura possibilidade, pois, diz Leibniz, o que não possui
d e por ela. limites e m seu poder, em sua sabedoria e em toda perfeição que
104. Leibniz reintroduz a questão tratada no § 13; aqui, p o - pode ter, não é uma criatura, mas Deus. O fundamento d o m a l é,
rem, nào mais como u m problema, mas como u m fato: a causa por isso, necessário: o mal consiste formalmente na privação.
d a previsão divina é a noção completa da sustância individual, o Todavia, a limitação natural de toda criatura é a causa ideal, não
h o m e m contém todas as suas determinações futuras, que são pre- eficiente d o mal; assim, mesmo que sua possibilidade seja neces-
vistas como determinações de uma vontade livre, sária, a atualização d o mal permanece contingente - em última
105- Leibniz imagina uma objeção relacionada ao mal. Se a instância, porque o ato m a u faz parte de u m universo contingen-
noção individual de cada pessoa envolve todas as suas ações e, te - e os males só passam da potência ao ato e m função da har-
portanto, também os pecados, e Deus escolhe, Judas p o r exem- monia das coisas o u de sua conveniência com a melhor série de
plo, sabendo de seu pecado, então não seria Deus o responsável coisas.
pelo pecado? Como conciliar a sabedoria divina e o mal que per- 108. Os supralapsários são aqueles que. com Calvino e Z w i n -
cebemos no mundo? Ern nossa condição de criaturas finitas não
gle, afirmam q u e Deus escolheu os eleitos que serão salvos antes
podemos compreender como cada pecado contribui para o me-
mesmo da previsão do pecado, e se opõem, assim, àqueles que.
lhor dos m u n d o s possíveis, nào compreendemos as razões parti-
como Lutero, afirmam que essa escolha só se dá depois da queda
culares das escolhas divinas, somente os princípios ou regras ge-
de Adão. Cí". Teodicéia, §§ 77-84.
rais de sua açào. Assim, devemos invocar o melhor e dizer que,
109. Cf. Santo Agostinho, Confissões, 111, VII (12); VII, X V I (22).
embora Deus queira sempre o bem, ele permite o mal como con-
dição d o m e l h o r (cf. § 7). Eis o f u n d a m e n t o d o o t i m i s m o leib- 110. Leibniz utiliza o vocabulário tradicional para afirmar
niziano. que Deus é princípio da graça e, através dela, remedeia a limita-
ç ã o natural das criaturas. Ordinária o u extraordinária, a graça nâo
106. Sào Paulo, Epístola aos Romanos, 11, 33 (cf. Teodicéia, é arbitrária, está no interior da ordem: mesmo a graça extraordi-
§ 134L
nária, o milagre, que está acima da ordem física ou das leis subal-
107. Posteriormente, na Teodicéia (§§ 20-33 e 1534 e no texto ternas da natureza, é conforme a o r d e m universal. O vocabulário
Causa Dei (§§ 29-39 e 69-73), Leibniz oferecerá uma sistematiza- teológico distingue entre a graça suficiente, que, sob a condição
ção acerca do mal, a f i m de mostrar como a causa cio mal são as de que a vontade humana coopere, é suficiente para produzir a
criaturas e não Deus. Leibniz adota duas proposições tradicionais salvação; e a graça eficaz que, produzindo seu efeito, leva à sal-
que ele amarra ao seu próprio sistema: Deus permite o mal com- vação. Cf. Teodicéia, §§ 99-106 e 134. Cf. também Malebranche,
preendido no melhor plano, mas não é sua causa, a fonte do mal Tratado da natureza e da graça, D i s c , I I I , §§ 20-21.
é uma imperfeição original da criatura o u uma privação. O mal 111. A onisciência divina se divide e m três ciências (.embora,
pode ser tomado metafisicamente, fisicamente e moralmente. O rigorosamente, só existam duas), de acordo com o objeto de que
mal moral, restrito às criaturas racionais, é o pecado o u o mal da trata. A ciência da pura inteligência o u dos seres possíveis, que
culpa, isto é, as ações viciosas dos seres dotados de razão. Dessas p o d e m ser considerados separadamente o u em relação com a i n -
ações resulta o mal físico o u mal da pena, o u seja, os sofrimentos finidade de mundos completos possíveis. A ciência da visào o u
desses seres racionais. Ambos, m a l moral e mal físico, são males das coisas efetivamente existentes, que difere da primeira apenas
possíveis, mas derivam de u m mal necessário, o mal metafísico: pela consciência reflexiva de Deus acerca d o decreto que c o n d u -
todas as criaturas sào essencialmente limitadas. Em outras pala- ziu o r n u n d o à existência. É ela o fundamento da presciência d i -
vras, a fonte ou a causa ideal d o mal são as verdades eternas, as vina, uma vez que engloba a visão d o passado, d o presente e do
criaturas são marcadas p o r essa imperfeição o u limitação já no es- futuro. E, finalmente, a ciência dita média.

118 119
G W. leibniz . , Discurso de meUifhica e outros textos , .

112. Leibniz introduz a problemática da graça pela posição tudo que o livre-arbítrio faria em cada circunstância possível. Ora.
que detende a gratuidade d o d o m da graça. Mas, assim como não dirá Leibniz, assim como respondia à doutrina de inspiração pe-
se pode explicar o d o m da graça pela previsão das açòes dos ho- I agi a na afirmando que a fé é uma graça, neste caso também essas
mens (ou seja por seu merino), também nào se deve pensar essa disposições naturais sào graças. Assim, nào se pode conceber a
gratuidade como ausência de razões, embora aos homens nào razào da distribuição das graças a partir da ciência média.
seja possível compreender essas razoes particulares, como mos- 115. A solução leibniziana para a questão da graça está em
trará no f i m do artigo. sua doutrina da substância individual e da criação d o melhor dos
113. Tradução: "aos que previu dar o d o m da lê". Trata-se de mundos: todas as graças, ordinárias e extraordinárias, estão conti-
unia doutrina de inspiração pclagiana, segundo a qual Deus dá a das na noção de cada indivíduo, assim como tudo o mais que
graça te a salvação) àqueles dos quais previu a fé e caridade. Para acontece a essa pessoa, b a razào para a existência desta pessoa
Pelagio (contemporâneo a Santo Agostinho), a vontade humana é é a criação cio melhor plano possível no qual esta pessoa está en-
capaz cie agir bem sem a graça, merecendo, assim, a graça. Ora. volvida, Assim, Leibniz considera que a graça e gratuita e que
para Leibniz. a fé e a boa vontade sào espécies de graças, assim, não se pode dar nenhuma razão particular para justificá-la. nem o
nào pode ser essa a justificação da distribuição das graças. mérito pessoal, nem as disposições naturais, O que jamais pode
1 14. Trata-se da ciência média dos molinistas. Segundo Moli- signiJicar que a graça seja u m decreto absoluto, isto é. um ato iso-
na (1536-1(100), Deus conhece três lipos de acontecimento: os lado dc todas as outras vontades divinas e sem razões. Nào conhe-
possíveis e impossíveis, objeto de uma ciência cia simples inteli- cemos as razões (Sào Paulo, Hpistola aos Romanos. X I , 33), mas
gência; os aluais, objeto de uma ciência da visão; e os condicio- elas existem.
nais, objelo tia ciência média. Lssa última e m o l v c , então, os acon- 116. Leibniz considera que u m domínio de conhecimento
tecimentos que se atualizariam caso as condições para isso se cfe- deve enviar àquele que lhe é superior e mais abrangente: dessa
lívasscni. Logo. no juízo cie Leibniz, ela está contida na ciência da forma, assim como a física deve enviar à metafísica, como seu
simples inteligência, de outra forma negaríamos a possibilidade fundamento, a metafísica nos remete à piedade. Mostrando como
de um saber a priori dos fatos condicionais na exata medida em suas considerações metafísicas, sobretudo aquelas sobre a perfei-
que desconsideraríamos a existência de uma razão a priori puni a ção das operações cie Deus (cf. Discurso. §§ 1-7) e sobre a subs-
ocorrência d o lalo. límbora pense na igualdade das ciências cia tância individual (cf. §§ 8-9 e 13-16), confirmam a religião, Leibniz
simples visão e média, Leibniz sugere uma forma de entender a está, ao mesmo tempo, fazendo um elogio ã sua própria filosofia
onisciéncia divina de m o d o que se mantenha a tripartição originá- e uma crítica a outras filosolias que também tinham pretensões
ria da c o n c e p ç ã o escolástica: a ciência média estudaria a.s verda- no terreno da piedade e da religião.
117. Leibniz introduz neste artigo o tema da união c o m Deus
des possíveis (como a ciência da inteligência, cujo objeto, mais res-
a que se dedicará no final d o texto. Para tanto, analisando as con-
trito d o que anteriormente, seriam as verdades possíveis e neces-
sequências d o princípio da perfeição das ações de Deus, afirma,
sárias, isto é, \erclades eternas que são válidas em todos os m u n -
primeiramente, a dependência de toda criatura em relação a Deus,
dos possíveis) e. ao mesmo tempo, contingentes (como a ciência
considerando como cada substância individualmente depende cie
da visão, que versaria sobre as verdades contingentes e atuais), o u
Deus na origem de sua existência, e m sua existência atual e e m
seja, as verdades que distinguem cada m u n d o possível o u as cir-
seu desenvolvimento; e como todas dependem de Deus nas rela-
cunstâncias variáveis da existência (cf. Causa Dei. §§ 13-17).
ções que mantêm c o m todas a.s outras substâncias individuais (só
Molina considerava que Deus dá a graça a todos aqueles Deus estabelece a comunicação entre as criaturas). Lssa depen-
que a merecem não por sua fe, mas por suas predisposições na- dência implica a união com Deus, por isso Leibniz. evoca São Pau-
r ura is, anteriores à lê, porque Deus conhece, pela ciência média, lo (Coríntios I , 15. 28) para dizer ser Deus tudo c m todos.

120 121
G. W. Leibniz.. Discurso de metafísica e outros textos.

118. Trata-se de Santa Teresa d'Ávila (seu Libro de ta vida foi das causas ocasionais a afirmação de u m milagre perpétuo, já que
traduzido paia o francês em 1670 por Arnauld d'Andilly, do qual supõe a intervenção direta de Deus, e, assim, contrária ao princí-
Leibniz cita provavelmente o capítulo X1IT. Cf. também Leibniz, pio da simplicidade das vias (cf. Carta a Arnauld, 30 de abril de
Sistema novo da natureza, § 14). 1687).
Leibniz evoca Santa Teresa a f i m de, considerando as conse- 121. A verdadeira razào, a que Leibniz chega a partir de sua
quências de sua doutrina da substância individual, acentuar a i n - concepção de substância individual que é espontânea e espelho
dependência das criaturas em relação às coisas exteriores e, ao de tudo o que se passa no universo, é a harmonia preestabeleci-
mesmo tempo, a total dependência de cada criatura em relação a da. A espontaneidade própria da substância evita o recurso ao
Deus. Fssa dependência, que é o fundamento da uniào com Deus, milagre perpétuo de Malebranche. É verdade que é Deus quem
é vista agora sob o aspecto da espontaneidade de cada substân- estabelece a comunicação o u o acordo entre as substâncias, mas
cia, também determinada pelo Criador. isso se dá segundo leis ordinárias, pois Deus criou o m u n d o de
119- A última consequência dos princípios metafísicos reto- maneira a que houvesse essa correspondência independente-
mados por Leibniz no início d o artigo é a imortalidade da alma. mente de sua intervenção. A relação entre a alma e o corpo é u m
Com efeito, afirmada a íntima união de cada substância c o m Deus caso particular da relação entre as substâncias, considerando o
e a independência em relação ao mundo, uma substância só p o d e corpo como agregado de substâncias simples, como algo subs-
perecer por uma decisão de Deus de a aniquilar. A alma é em si tancial, embora nâo substância.
mesma imperecível, daí a dissolução d o corpo nào a destruir A Ora, cada alma tem um ponto de vista próprio a partir d o
imortalidade se relaciona à simplicidade da substância (cf. Dis- qual exprime a totalidade do universo. O corpo é este ponto cie
curso, § 9), o que, mais tarde, levará Leibniz a afirmar que, quando vista, é o centro de perspectiva da alma, cujas ações, por sua vez,
o corpo se dissipa, a alma não permanece no caos de matéria con- correspondem ao que se passa no corpo, que se reflete nos o u -
fusa, mas permanece ligada a u m corpo orgânico imperceptível tros corpos. Embora obedeçam a diferentes "legislações", a alma
(cf. Sistema novo da natureza, § 7). às causas finais e ao princípio do melhor, e o corpo às leis da
120. Ksse mistério seria "inexplicável" para Descartes e " m i - causalidade e do movimento, há uma harmonia entre eles c se
raculoso" para Malebranche. Com efeito, de acordo com o primei- completam como princípio de atividade (a alma) e princípio de
ro (cf. Discurso do método, V: Meditações, V I ; Canas a Elisabeth, passividade (o corpo) (cf., por exemplo, Cartas a Arnauld, 4/14
21 de maio de 1613 e 28 de junho de 1643; As paixões da alma, dc julho de 1686, 30 de abril e 9 de outubro de 1687; Sistema
L §§ 30-50), ha ação real da alma sobre o corpo e vice-versa, mas. novo da natureza, §§ 12-18).
segundo os princípios d o próprio Descartes, a relação de causa e 122. Nosso corpo nos pertence na medida em que determi-
efeito deve se dar entre homogéneos, o que torna a influência da na nosso p o n t o de vista sobre o universo, no tempo e no espaço,
substância pensante sobre a substância extensa e vice-versa inin- e a relação que ele mantém c o m os demais determina nossa ma-
teligível. A critica de Leibniz a Descartes não se limita, todavia, aos neira de perceber "de algum m o d o e por certo tempo". Mas o cor-
problemas que o próprio Descartes mesmo havia percebido. Para po enquanto matéria segunda, agregado de substâncias simples,
Leibniz. a substância individual nâo tem portas nem janelas, nào pode se dissipar. Toda alma deve, porém, estar sempre ligada a
há açào direta de uma substância sobre outra, mas, além disso, a uma matéria primeira que sobrevive à destruição d o corpo orga-
extensão não é uma substância e nào tem atividade. nizado (cf. Teodicéia, § 124; Carta a Arnauld, 9 de outubro de
Malebranche (cf, por exemplo, Méditaiions chrétiennes, V, V I , 1687; Sistema novo da natureza, § 7).
TX. XII), por sua vez, afirmava que nâo há ação real dc u m ser so- 123. A explicação da percepção sensível se relaciona direta-
bre outro e só Deus é causa eficiente. Leibniz considera a teoria mente à questão da comunicação entre a alma e o corpo. A alma

122 123
Discurso de metafísica e outros textos.

126. A principal diferença entre os átomos materiais e as mô-


exprime a totalidade do mundo, mas mais particularmente seu
corpo, que é seu ponto de vista. A percepção corresponde, no nadas espirituais reside no fato de que estas últimas são dotadas
corpo, a certos movimentos, que se exprimem na alma pela har- de reflexão, isto é, de consciência. ÍN. do T.)
monia preestabelecida, e como todos os corpos ""simpatizam", "é 127. Desde de 1677 Leibniz define a noçào de pessoa a par-
impossível nossa alma atender a tudo em particular". Assim, a per- tir de sua qualidade moral (cf. Nova metbodus discendae docen-
cepção resulta de pequenas percepções como uma percepção daeque jurisprudentiae).
dominante. Mas há casos em que não há uma percepção d o m i - 128. Leibniz nào se atém aqui, como fará em textos posterio-
nante e a alma só pode aperceber-se cias pequenas percepções res, como a Monadologia (§§ 18-36), a descrever minuciosamente
confusamente (cf. Cartas a Arnauld, 30 de abril e 9 de outubro a hierarquia dos seres. Preocupa-se apenas em distinguir os espí-
de 1687). ritos entre as demais substâncias depois de apontar o que há de
c o m u m entre as formas substanciais, almas e espíritos, a saber:
124. Na redação primitiva d o texto, Leibniz iniciava este arti-
(1) são imperecíveis (pois dependem apenas de Deus e são sim-
go pela seguinte frase: "Unia coisa que não tento determinar é se
ples de maneira que nâo há dissolução, cf. Discurso, §§ 9 e 32), eis
os corpos sào substâncias, falando no rigor metafísico, ou se sao
por que são comparados aos átomos de Demócrito, Gassencli e
apenas fenómenos verdadeiros como o arco-írís, nem. por conse
Corclemoy, embora a.s substâncias leibnizianas não sejam mate-
qúência, se há subslâncias, aluías ou formas substanciais que nào
riais, e (2) caracterizam-se por exprimir a totalidade do universo
sào inteligentes. Mas supondo que os corpos..." A questão da
(cada uma corresponde a um ponto de vista do universo inteiro,
substancialiclade d o corpo é, de fato. um problema para Leibniz.
cf. Discurso, % 9, 14-15, 26 e 33). Os espíritos, ou almas racionais,
Ian textos e cartas posteriores ao Discurso, Leibniz passará a afir-
distinguem-se pela capacidade de rellexão, o que, no plano d o
mar que o corpo orgânico, ou matéria segunda, 6 um agregado
conhecimento, significa que podem conhecer as verdades neces-
de substâncias simples que recebe sua unidade da alma ou forma
sárias, c, no plano moral, os faz pessoas, porque possuem identi-
dominante, e é essa alma que o torna unum per se ( u m por si) e
dade e uma certa noçào cio bem e buscam livremente realizâ-lo.
nào um simples amontoado de substâncias. Mas c o m o conceber
É também pela reflexão que a imortalidade dos espíritos envolve
a dominação de uma alma sobre todas as outras, se a substância
a recordação de si mesmo.
se define por sua atividade espontânea e autónoma? Na Corres-
pondência com Des Bosses, na qual Leibniz discute essas ques- 129. A cidade de Deus, objeto d o próximo artigo, é u m m u n -
tões, a dominação é interpretada como graus de perfeição e Leib- do moral no interior d o m u n d o natural. O m u n d o nào é apenas
niz considera que o agregado de substâncias que faz. o corpo nâo uma máquina sumamente admirável, mas é dotado de perfeição
é uma substância em si mesmo, mas um fenómeno. Na Corres- moral. Essa a razào moral para que a imortalidade dos espíritos
poudência com Arnauld, afirmará que é um abuso dc linguagem seja diferente da simples permanência das outras substâncias.
chamar o corpo, independente da alma, substância. Cf. Carias a 130. A união dos espíritos com Deus se justifica, do lado dos
Arnauld. 28 de novembro/6 de dezembro de 1686. 23 de março espíritos, pela diferença de natureza que guardam em relação às
de 1690. No entanto, em textos posteriores, como os Princípios outras substâncias; os espíritos e x p r i m e m o Criador diretamente e
da natureza e da graça, de 1714. Leibniz continua denominando nâo através da expressão d o universo, têm consciência do que sáo
'"substância" os corpos (cf. §§ 1, 3 e 4). e fazem e compreendem alguma coisa dos desígnios de Deus gra-
ças ao conhecimento cie verdades universais.
125. Os corpos que sào untem per se se opõem aos que sào
131. Todavia, se Deus se importa mais com u m h o m e m do
unum per accidens, como um rebanho de carneiros, porque pos-
que com u m leào, nào se pode assegurar que prefira urn h o m e m
suem u m princípio de unidade, a alma. Cf. Carta a Arnauld, 28
a roda a espécie cie leões. Cf. Teodicéia, § 118.
de novembro/6 de dezembro de 1686.

124
— G. W. Leibniz . _ Discurso de metafísica e outros textos .

132. Em relação a Deus, a união do Criador c o m os espíritos nhor. O universo, além da perfeição metafísica, é dotado de per-
se justifica porque "'o próprio Deus é o maior e mais sábio dos es- feição moral, O aspecto lógico (quantitativo; da criação d o m u n -
píritos", porque p o d e comunicar aos outros espíritos "seus senti- d o p o r u m Deus que produz o máximo de efeitos c o m um míni-
mentos e vontades de maneira particular", e porque, como a sa- m o de gastos conduz ao aspecto moral (qualitativo) da fundação
bedoria prefere sempre o mais perfeito, assim Deus prefere as de uma cidade governada p o r u m Senhor cujo principal desígnio
mais perfeitas dentre as criaturas, assim como nós elevemos nos é a felicidade dos cidadãos, mostrando a inseparabilidade e a har-
voltar a ele, Mas diferente de nós, cuja sociedade c o m Deus signi- monia dessas duas perspectivas.
fica o amor que Deus tem em relação a nós e, portanto, "a maior 134. Cf. Discurso de metafísica, % 5-
satisfação que pode ter uma alma", nosso amor em relação a Deus 135. A formação da cidade de Deus se explica, e m primeiro
não acrescenta nada à sua satisfação. lugar, pela perfeição intrínseca dos espíritos e pela possibilidade
133- Importantes textos de Leibniz como o Discurso de meta- que eles têm de aperfeiçoar-se através d o conhecimento. Em ter-
física 11686), a Mo>iadologia e os Princípios da natureza e da mos morais, isso significa que eles p o d e m ser "amigos", o u seja,
graça (ambos de 1714), em que o autor sintetiza as grandes teses podem querer lodos a mesma coisa, a saber, o bem universal ou
de sua filosofia, apresentam em seus últimos parágrafos e, então, a justiça, que conhecem graças à razào. Sobre este assunto, Grua,
c o m o acabamento essencial de sua metafísica, uma imagem p o l i - La justice hiunaine selon Leibniz, Paris: PUE, 1956; e jurispniden-
tica. Mesmo diante da transformação na forma de tratamento e na ce universelle et fbéodicce selon Leibniz, Paris: PUF, 1953.
abordagem dos temas ocorrida nos quase trinta anos que sepa- 136. A preferência de Deus pelos espíritos se fundamenta no
ram a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça d o fato de ele mesmo ser u m espírito, e, como espirito, dotado de von-
Discurso, a parte final dos textos e coroação das teses é sempre tade, que escolhe livremente o melhor.
um convite aos homens para se elevarem a Deus através de uma 137. Génesis, 1, 27.
apologia da república universal dos espíritos. Deus é o monarca 138. Atos, 17, 28.
da mais perfeita república composta por todos os espíritos (Dis- 139 O segundo aspecto que explica a existência da cidade de
curso, § 36). Os espíritos o u criaturas racionais entram em socie- Deus, ou desta união que Deus mantém com a.s criaturas racio-
dade c o m Deus e constituem o mais perfeito estado, a cidade de nais, é o fatcj de poder tirar delas mais glória d o que dos outros
Deus, sob o mais perfeito dos monarcas (Monadologia, § 85). Em seres, já q u e os espíritos agem ''com conhecimento à imitação cia
virtude da razão e d o conhecimento das verdades eternas, todos natureza divina". Ora, o fim da criação é a glória, o u a manifestação
os espíritos são membros da cidade de Deus, isto é, d o mais per- por Deus e a comunicação de suas perfeições, por isso a criatura
feito estado, formado e governado pelo maior e melhor dos mo- que tem a possibilidade de conhecer alguma coisa das perfeições
narcas (Princípios da natureza e da graça, § 15), divinas e, então, agir livremente como u m colaborador exprime a
A imagem e a ideia da instauração de u m íeino moral da gra- glória de Deus muito melhor que as demais criaturas.
ça no seio do m u n d o natural, que funda urna sociedade dos ho- 140. Depois de descrever a cidade de Deus a partir de analo-
mens com Deus, percorrem as três décadas de desenvolvimento gias com o m u n d o humano, c o m o uma sociedade entre um prín-
da singularidade d o pensamento leibniziano sem sofrer alteração cipe e seus súditos, porque Deus "se. humaniza", "se presta a an-
e sem perder a força. E através dessa metáfora política que Leib- tropologias'. Leibniz define a lei desta sociedade: a felicidade. A
niz concilia dois aspectos fundamentais de sua metafísica e de condição dessa felk idade será a imortalidade dos espíritos, c o m o
sua teologia: Deus nào é apenas o artífice da máquina cio m u n d o , afirma e m seguida.
é o príncipe supremo cios cidadãos de sua república. Ele não é 141. A conclusão do Discurso é cristã. As importantes verda-
apenas arquiteto e geõmetra, é também legislador, mona i r a e se- des que os filósofos antigos conheceram p o u c o (mas p o d e m ter

126
._ G, W. leibniz

conhecido uma parte delas, porque as verdades reveladas estão


cie acordo com a razão, embora possam estar acima dela) são as
verdades acerca cio reino dos céus e d o amor que Deus tem pelo
homem, verdades reveladas por Cristo.
142. J o ã o , 17, 23 (cf. Discurso de metafísica, % 4). PRINCÍPIOS D A FILOSOFIA
143. Lucas, 12, 6-7.
144. Mateus, 10, 30; Lucas, 12, 7.
OU A MONADOLOGIA
145. Mateus, 24, 35.
146. Lucas, 12, 4 (cf. Discurso de metafísica, § 28).
147. Mateus, 12, 36 e 10, 42.
148. Mateus, 13, 43.
149. Romanos. 8, 28; Coríntios 1, 2, 9 (cf. Discurso de meta-
física, § 36). Mas, porque a inquietude é essencial à felicidade das
criaturas (cf. Novos ensaios, 11, x x i , 32), "nossa felicidade nunca Trat.liACiH)
MLXANDRHDACRIiZliONlUIA
consistirá, e nâo eleve consistir, em u m gozo pleno no qual nada
mais haveria a desejar e eme tornaria estúpido nosso espírito, mas
líevisfio
sim em um progresso perpétuo em direção a novos prazeres e
MÁRCIA VAI.KRIA MARTINKZ DE AGI
novas perfeições'' (Princípios da natureza e da graça, § 18).

128
1. A Mônada d e q u e a q u i f a l a r e m o s n à o é o u t r a coisa
s e n à o urna s u b s t â n c i a s i m p l e s , q u e entra n o s c o m p o s t o s ;
simples q u e r d i z e r s e m partes. Teodicéia, § 10.
2. E t e m de h a v e r s u b s t â n c i a s s i m p l e s , u m a vez q u e
e x i s t e m c o m p o s t o s , p o i s o c o m p o s t o n a d a mais é d o q u e
u m a r e u n i ã o o u aggregatum dos simples.
3. O r a , o n d e n à o há partes n ã o há e x t e n s ã o , n e m f i g u -
ra, n e m d i v i s i b i l i d a d e p o s s í v e l . E estas M ô n a d a s s à o os v e r -
d a d e i r o s Á t o m o s d a Natureza e, e m s u m a , os E l e m e n t o s das
coisas.
á, T a m p o u c o há d i s s o l u ç ã o a temer, e n ã o há m a n e i r a
c o n c e b í v e l pela q u a l u m a s u b s t â n c i a s i m p l e s possa p e r e c e r
n a t u r a l m e n t e . Teodicéia, § 89-
5. Pela m e s m a r a z à o , n â o h á m a n e i r a c o n c e b í v e l pela
q u a l u m a s u b s t â n c i a s i m p l e s possa c o m e ç a r n a t u r a l m e n t e ,
p o s t o q u e n à o p o d e r i a ser f o r m a d a p o r c o m p o s i ç ã o .
6. A s s i m , p o d e - s e d i z e r q u e as M ô n a d a s s ó p o d e r i a m
c o m e ç a r o u t e r m i n a r de u m a s ó vez, o u seja, s ó p o d e r i a m co-
m e ç a r p o r c r i a ç ã o e t e r m i n a r p o r a n i q u i l a ç ã o , ao passo q u e
o q u e c c o m p o s t o c o m e ç a c t e r m i n a p o r partes.
7. T a m p o u c o há m e i o d e e x p l i c a r c o m o u m a M ô n a d a
p o d e r i a ser alterada o u t r a n s f o r m a d a e m seu i n t e r i o r p o r a l -
g u m a o u t r a c r i a t u r a , p o i s n e l a n a d a se p o d e r i a i n t r o d u z i r ,
n e m se p o d e r i a c o n c e b e r nela n e n h u m m o v i m e n t o i n t e r n o

131
C W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

q u e p u d e s s e ser e x c i t a d o , d i r i g i d o , a u m e n t a d o o u d i m i n u í - 13. Esse d e t a l h e d e v e e n v o l v e r u m a m u l t i p l i c i d a d e n a


d o e m seu interior, c o m o é possível n o s c o m p o s t o s , e m q u e u n i d a d e o u n o simples, pois, c o m o t o d a m u d a n ç a n a t u r a l se
há m u d a n ç a s e n t r e as p a n e s . As M ô n a d a s n â o t ê m janelas faz g r a d u a l m e n t e , algo m u d a e algo p e r m a n e c e . E, p o r c o n s e -
pelas q u a i s a l g o possa e n t r a r o u sair. Os acidentes n à o p o - g u i n t e , é n e c e s s á r i o q u e na s u b s t â n c i a s i m p l e s haja u m a
d e r i a m separar-se n e m se p ô r a v a g u e a r f o r a das s u b s t â n - p l u r a l i d a d e d e a f e c ç õ e s e d e r e l a ç õ e s , a i n d a q u e nela n ã o
cias, c o m o f a z i a m o u t r o r a as e s p é c i e s s e n s í v e i s dos e s c o l á s - haja partes.
ticos. A s s i m , n e m s u b s t â n c i a n e m a c i d e n t e p o d e m , d e f o r a , 14. O estado passageiro q u e e n v o l v e e r e p r e s e n t a u m a
entrar e m u m a Mônada. m u l t i p l i c i d a d e na u n i d a d e o u na s u b s t â n c i a s i m p l e s n ã o é
8. E n t r e t a n t o , é p r e c i s o q u e as M ô n a d a s t e n h a m a l g u - o u t r a coisa s e n ã o a q u i l o q u e se c h a m a d e Percepção, que
m a s q u a l i d a d e s , caso c o n t r á r i o n e m s e q u e r s e r i a m Seres. E, d e v e ser b e m d i s t i n g u i d a d a a p e r c e p ç à o o u d a c o n s c i ê n c i a ,
se as s u b s t â n c i a s s i m p l e s n à o d i f e r i s s e m p o r suas q u a l i d a - c o m o se v e r á a d i a n t e . E n i s t o os cartesianos e q u i v o c a r a m -
des, n ã o h a v e r i a m e i o de p e r c e b e r q u a l q u e r m u d a n ç a nas se m u i t o , ao d e s c o n s i d e r a r e m as p e r c e p ç õ e s d e q u e n â o n o s
coisas, já q u e o q u e está n o c o m p o s t o s ó p o d e p r o v i r d o s a p e r c e b e m o s . Foi isso t a m b é m q u e os fez acreditar q u e s ó
i n g r e d i e n t e s s i m p l e s ; e f o s s e m as M ô n a d a s s e m q u a l i d a d e s , os e s p í r i t o s e r a m M ô n a d a s e q u e n à o h a v i a A l m a s d o s a n i -
s e r i a m i n d i s c e r n í v e i s u m a s das o u t r a s , p o s t o q u e t a m b é m mais n e m outras enteléquias; e c o n f u n d i r a m , c o m o v u l g o ,
n ã o d i f e r e m e m q u a n t i d a d e . E, p o r c o n s e g u i n t e , o p l e n o u m longo atordoamento c o m morte no sentido rigoroso, o
sendo suposto, cada lugar só continuaria a receber no m o - q u e os fez a i n d a cair n o p r e c o n c e i t o e s c o l á s t i c o das almas
v i m e n t o o E q u i v a l e n t e d o q u e t i v e r a , e u m estado d e coisas i n t e i r a m e n t e separadas, h a v e n d o m e s m o r e f o r ç a d o n o s es-
seria indiscernível d o o u t r o . píritos m a l f o r m a d o s a o p i n i ã o d a m o r t a l i d a d e das almas.

9. É p r e c i s o m e s m o q u e cada M ô n a d a seja d i f e r e n t e d e 15. A A ç ã o d o p r i n c í p i o i n t e r n o q u e faz a m u d a n ç a o u


cada u m a das outras. Pois n u n c a h á na n a t u r e z a d o i s Seres a p a s s a g e m d e u m a p e r c e p ç ã o a o u t r a p o d e ser c h a m a d a
q u e sejam p e r f e i t a m e n t e iguais u m a o o u t r o e n o s quais Apetição; é verdade que o apetite n e m sempre p o d e alcan-
n ã o seja p o s s í v e l e n c o n t r a r u m a d i f e r e n ç a i n t e r n a o u f u n - ç a r i n t e i r a m e n t e t o d a a p e r c e p ç ã o a q u e t e n d e , m a s sem-
d a d a e m u m a d e n o m i n a ç ã o intrínseca. pre o b t é m algo dela e chega a p e r c e p ç õ e s novas.
10. D o u t a m b é m p o r aceito q u e t o d o ser c r i a d o está su- 16. N ó s m e s m o s e x p e r i m e n t a m o s u m a m u l t i p l i c i d a d e
jeito à mudança, e p o r conseguinte a Mônada criada t a m b é m , na s u b s t â n c i a s i m p l e s q u a n d o d e s c o b r i m o s q u e o m e n o r
e m e s m o q u e esta m u d a n ç a seja c o n t í n u a e m cada u m a . p e n s a m e n t o de q u e n o s a p e r c e b e m o s e n v o l v e u m a v a r i e -
1 1 . D o q u e a c a b a m o s de d i z e r segue-se q u e as m u d a n - d a d e n o o b j e t o . A s s i m , t o d o s os q u e r e c o n h e c e m q u e a A l -
ç a s naturais das M ô n a d a s p r o v ê m de u m princípio interno, m a é u m a s u b s t â n c i a s i m p l e s d e v e m r e c o n h e c e r esta m u l t i -
já q u e u m a causa e x t e r n a n ã o p o d e r i a i n f l u i r e m seu i n t e - p l i c i d a d e na M ô n a d a ; e o s e n h o r B a y l e n ã o d e v i a e n c o n t r a r
rior. Teodicéia, §§ 396 e 400. d i f i c u l d a d e nisso, c o m o fez n o a r t i g o " R o r a r i u s " d e seu D i -
12. Mas t a m b é m é p r e c i s o q u e , a l é m d o p r i n c í p i o d a cionário.
m u d a n ç a , haja um pormenor do que muda, q t i e f a ç a , p o r 17. Por o u t r o l a d o , v e m o - n o s o b r i g a d o s a confessar q u e
a s s i m d i z e r , a e s p e c i f i c a ç ã o e v a r i e d a d e das s u b s t â n c i a s a percepção e o q u e d e p e n d e d e l a é inexplicável por razões
simples. mecânicas, isto é, p o r f i g u r a s e p o r m o v i m e n t o s . E. s u p o n -

132 133
. CL W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos—

d o q u e haja u m a M á q u i n a cuja e s t r u t u r a faça pensar, sentir, m e n t e p e l a s r a z õ e s já m e n c i o n a d a s ; p o i s ela n â o p o d e r i a


ter p e r c e p ç ã o , p o d e - s e c o n c e b ê - l a a m p l i a d a c c o n s e r v a n d o p e r e c e r n e m t a m p o u c o subsistir s e m a l g u m a a f e c ç ã o , q u e
as m e s m a s p r o p o r ç õ e s , de m a n e i r a q u e se possa e n t r a r o u t r a coisa n à o é s e n ã o sua p e r c e p ç ã o . Mas, q u a n d o há
nela c o m o e m u m m o i n h o , f e i t o isso, ao visitá-la p o r d e n - u m a g r a n d e m u l t i p l i c i d a d e de p e q u e n a s p e r c e p ç õ e s , e m q u e
t r o s ó e n c o n t r a r e m o s p e ç a s q u e se p õ e m r e c i p r o c a m e n t e n a d a é d i s t i n t o , f i c a m o s a t u r d i d o s , c o m o q u a n d o se gíra
e m m o v i m e n t o c nunca algo que explique unia percepção. c o n t i n u a m e n t e e m u m m e s m o s e n t i d o várias vezes s e g u i -
P o r t a n t o , t e m d e se b u s c á - l a na s u b s t â n c i a s i m p l e s e n à o das e s o b r e v ê m u m a v e r t i g e m q t i e p o d e fazer-nos d e s m a i a r
n o c o m p o s t o o u n a m á q u i n a . F, é s ó isso q u e p o d e m o s e n - e q u e n à o nos p e r m i t e d i s t i n g u i r n a d a . E a m o r t e p o d e p r o -
c o n t r a r na s u b s t â n c i a s i m p l e s , o u seja, as p e r c e p ç õ e s e d u z i r este estado nos a n i m a i s p o r u m t e m p o .
suas m u d a n ç a s . E é t a m b é m apenas nisso q u e p o d e m c o n - 22. E, assim c o m o t o d o estado p r e s e n t e de u m a subs-
sistir todas as ações intentas das s u b s t â n c i a s s i m p l e s . Pre- tância simples é n a t u r a l m e n t e u m a c o n s e q u ê n c i a de seu es-
fácio Teodicéia. t a d o p r e c e d e n t e , o p r e s e n t e t a m b é m está p r e n h e d o f u t u -
18. P o d e r - s e - i a m c h a m a r Enteléquias todas as s u b s t â n - ro. Teodicéia, § 3b0.
cias s i m p l e s o u M ô n a d a s criadas, p o i s c o n t ê m u m a certa 23. Assim, q u a n d o , v o l t a n d o d o a t u r d i m e n t o , apercebe-
p e r f e i ç ã o ( ê x o u o i TÒ évteXéç) e u m a s u f i c i ê n c i a (òuTocpiceia) mo-nos de nossas p e r c e p ç õ e s , é p r e c i s o q u e as t e n h a m o s
q u e as t o r n a f o n t e s d e suas a ç õ e s internas e, p o r assim d i - t i d o i m e d i a t a m e n t e antes, e m b o r a s e m a p e r c e b e r m o - n o s
zer, A u t ó m a t o s i n c o r p ó r e o s . delas, p o i s u m a p e r c e p ç ã o s ó p o d e p r o v i r n a t u r a l m e n t e de
19. Se q u i s e r m o s c h a m a r de A l m a t u d o o q u e t e m per- outra p e r c e p ç ã o , c o m o u m m o v i m e n t o só p o d e p r o v i r na-
cepções e apetites n o s e n t i d o g e r a l q u e a c a b o de e x p l i c a r , t u r a l m e n t e d e u m m o v i m e n t o . Teodicéia, 401-403.
t o d a s as s u b s t â n c i a s s i m p l e s o u M ô n a d a s criadas p o d e r i a m 24. C o m isso, v ê - s e q u e se e m nossas p e r c e p ç õ e s n à o t i -
ser chamadas de Almas; mas, c o m o o s e n t i m e n t o é algo mais v é s s e m o s nada de d i s t i n t o e p o r assim dizer, de e l e v a d o e
;

q u e u m a s i m p l e s p e r c e p ç ã o , a d m i t o q u e o n o m e geral d e de u m g o s t o mais a p r i m o r a d o , s ó c o n h e c e r í a m o s o a t o r d o a -
M ô n a d a s e de E n t e l é q u i a s baste p a r a as s u b s t â n c i a s s i m - m e n t o . É este o estado das M ô n a d a s s i m p l e s m e n t e nuas.
p l e s q u e s ó t e n h a m p e r c e p ç ã o ; e q u e se c h a m e de almas 25. T a m b é m v e m o s q u e a natureza d e u p e r c e p ç õ e s a p r i -
s ó aquelas cuja p e r c e p ç ã o é mais distinta e a c o m p a n h a d a m o r a d a s aos a n i m a i s , p e l o c u i d a d o q u e teve e m f o r n e c e r -
de memória. lhes ó r g ã o s q u e r e ú n a m vários raios de l u z o u várias o n d u -
20. Pois e x p e r i m e n t a m o s e m n ó s m e s m o s u m Estado l a ç õ e s d o ar, p a r a q u e p e l a sua u n i ã o t i v e s s e m mais eficá-
n o qual n ã o nos lembramos de nada, n e m temos n e n h u m a cia. A l g o semelhante o c o r r e c o m o o d o r . c o m o g o s t o e c o m
p e r c e p ç ã o distinta, c o m o q u a n d o sofremos u m desmaio o u o tato e t a l v e z c o m m u i t o s o u t r o s s e n t i d o s q u e n o s s ã o des-
s o m o s v e n c i d o s p o r u m p r o f u n d o s o n o s e m s o n h o s . Neste c o n h e c i d o s . E l o g o e x p l i c a r e i c o m o o q u e se passa na A l -
estado, a a l m a n ã o d i f e r e s e n s i v e l m e n t e de u m a s i m p l e s ma r e p r e s e n t a o q u e o c o r r e n o s ó r g ã o s .
M ô n a d a ; mas. c o m o este estado n ã o é d u r a d o u r o e a a l m a 26. A m e m ó r i a f o r n e c e às almas u m a e s p é c i e de conse-
subtrai-se d e l e , ela é a l g o mais. cução q u e i m i t a a r a z ã o , mas q u e d e v e ser d i s t i n g u i d a d e l a .
2 1 . N â o se segue daí q u e a s u b s t â n c i a s i m p l e s n â o te- É o que observamos nos animais que, tendo a p e r c e p ç ã o de
n h a n e n h u m a p e r c e p ç ã o . Isto n ã o p o d e o c o r r e r p r e c i s a - algo q u e os i n c o m o d a e de q u e já t i v e r a m antes u m a p e r c e p -

134 135
O. W Leibniz Discurso de metafísica e outros textos

ç â o semelhante, associam-no, p e l a r e p r e s e n t a ç ã o d e sua m e - q u e é falso o q u e ele i m p l i c a , e verdadeiro o que é oposto


mória, àquilo q u e estava l i g a d o a esta p e r c e p ç ã o precedente, o u c o n t r a d i t ó r i o a o f a l s o . Teodicéia, %% 44 e 169-
e s ã o l e v a d o s a s e n t i m e n t o s s e m e l h a n t e s aos q u e e n t ã o h a - 32. F. o d e razão suficiente, e m virtude d o qual consi-
v i a m e x p e r i m e n t a d o . Por e x e m p l o , q u a n d o se mostra u m p a u d e r a m o s q u e n e n h u m fato p o d e ser v e r d a d e i r o o u e x i s t e n -
aos c ã e s , eles se l e m b r a m da d o r q u e lhes c a u s o u , e g a n e m te, n e n h u m e n u n c i a d o v e r d a d e i r o , s e m q u e haja u m a r a z ã o
c f o g e m . Prelimin. 65.
s u f i c i e n t e para q u e seja assim e n à o d e o u t r o m o d o , a i n d a
27. E a i m a g i n a ç ã o f o r t e q u e os i n c o m o d a e agita p r o - q u e c o m m u i t a f r e q u ê n c i a estas r a z õ e s n â o p o s s a m ser c o -
v é m o u d a m a g n i t u d e o u da multiplicidade das p e r c e p ç õ e s n h e c i d a s p o r n ó s . Teodicéia, §§ 44 e 169.
a n t e r i o r e s . Pois, f r e q u e n t e m e n t e , u m a i m p r e s s ã o f o r t e p r o - 33. Há d o i s t i p o s de verdades, as d e raciocínio e as de
v o c a d e u m a s ó v e z o e f e i t o d e u m hábito prolongado ou fato. A s v e r d a d e s d e r a z ã o s à o n e c e s s á r i a s e seu o p o s t o é
d e m u i t a s p e r c e p ç õ e s fracas reiteradas. impossível; e as d e fato s ã o c o n t i n g e n t e s e seu o p o s t o é p o s -
28. O s h o m e n s a g e m c o n t o os a n i m a i s q u a n d o as c o n - sível. Q u a n d o u m a v e r d a d e é n e c e s s á r i a p o d e - s e e n c o n t r a r
s e c u ç õ e s de suas p e r c e p ç õ e s s ó se e f e t u a m p e l o p r i n c í p i o sua r a z ã o p e l a a n á l i s e , r e s o l v e n d o - a e m ideias e e m v e r d a -
d a m e m ó r i a , à s e m e l h a n ç a dos m é d i c o s e m p í r i c o s , q u e pos- des mais simples até se chegar às primitivas. Teodicéia, §§ 170,
s u e m s i m p l e s m e n t e a prática s e m a t e o r i a ; e s o m o s m e r a - 174. 189, 280-282, 367; R e s u m o , 3 O b j e ç ã o . a

m e n t e e m p í r i c o s e m três q u a r t o s de nossas a ç õ e s . Por e x e m - 34. E assim q u e os m a t e m á t i c o s r e d u z e m , pela a n á l i s e ,


p l o , q u a n d o se e s p e r a q u e a m a n h a raie o d i a , p r o c e d e - s e o s teoremas d e e s p e c u l a ç ã o e os cânones d e prática a defi-
c o m o u m e m p i r i s t a , p o r q u e s e m p r e f o i assim até h o j e . S ó o nições, axiomas e postulados.
a s t r ó n o m o j u l g a , nesse caso. s e g u n d o a r a z ã o . 35. E há e n f i m i d e i a s s i m p l e s cuja d e f i n i ç ã o n â o p o d e -
29. Mas o c o n h e c i m e n t o das v e r d a d e s n e c e s s á r i a s e r í a m o s dar; há t a m b é m A x i o m a s e Postulados o u , e m s u m a ,
eternas é o q u e n o s d i s t i n g u e d o s s i m p l e s a n i m a i s e n o s faz princípios primitivos, q u e n à o p o d e r i a m ser p r o v a d o s e
p o s s u i d o r e s da razào e das c i ê n c i a s , e l e v a n d o - n o s ao c o - t a m p o u c o t ê m n e c e s s i d a d e d e s ê - l o ; s ã o os enunciados
n h e c i m e n t o d e n ó s m e s m o s e d e D e u s . E o q u e se c h a m a idênticos c u j o o p o s t o c o n t é m u m a c o n t r a d i ç ã o expressa.
de Alma Racional o u espírito. 36. Mas a razão suficiente deve enconlrar-se t ambé m
30. T a m b é m p e l o c o n h e c i m e n t o das v e r d a d e s n e c e s s á - nas verdades contingentes o u de fato, o u seja, na série das
rias e p o r suas a b s t r a ç õ e s . e l e v a n d o - n o s aos atos reflexivos, coisas e s p a l h a d a s p e l o u n i v e r s o das criaturas; o n d e a reso-
q u e nos f a z e m p e n s a r n o q u e se c h a m a Eu e c o n s i d e r a r lução e m razões particulares poderia chegar a u m detalha-
q u e isto o u a q u i l o está e m n ó s ; e é a s s i m q u e , a o p e n s a r m e n t o s e m l i m i t e d e v i d o à v a r i e d a d e i m e n s a das coisas d a
e m n ó s , p e n s a m o s n o ser, n a s u b s t â n c i a , n o s i m p l e s o u n o n a t u r e z a e à d i v i s ã o d o s c o r p o s a t é o i n f i n i t o . Há u m a i n f i -
composto, n o imaterial e n o próprio Deus, q u a n d o conce- n i d a d e d e f i g u r a s e d e m o v i m e n t o s presentes e passados
bemos que o que e m nós é limitado, nele é sem limites. E q u e e n t r a m na catisa e f i c i e n t e desse m e u a t o p r e s e n t e d e
estes atos r e f l e x i v o s f o r n e c e m os o b j e t o s p r i n c i p a i s d e n o s - escrever, e h á u m a i n f i n i d a d e d e p e q u e n a s i n c l i n a ç õ e s e
sos r a c i o c í n i o s . Prefácio Teodicéia. d i s p o s i ç õ e s de m i n h a a l m a , presentes e passadas, q u e e n -
3 T Nossos r a c i o c í n i o s e s t ã o f u n d a d o s e m dois grandes t r a m na sua causa f i n a l . Teodicéia, §§ 36, 37. 44, 45, 49, 52,
princípios, o d a contradição, e m virtude d o qual julgamos 121. 122. 337, 340-344.

136
Discurso de metafísica e outros textos.
G. W. leibniz .

37. E c o m o t o d o este detalhe n ã o encerra s e n ã o o u t r o s h a v e r i a n a d a de real nas p o s s i b i l i d a d e s , e n ã o somente


c o n t i n g e n t e s a n t e r i o r e s o u m a i s d e t a l h a d o s , cada u m d o s n a d a de existente, c o m o t a m p o u c o nada d e p o s s í v e l . Teo-
quais a i n d a n e c e s s i t a n d o d e u m a a n á l i s e s e m e l h a n t e q u e dicéia, § 20.
p u d e s s e e x p l i c a d o , n à o se l o g r o u a v a n ç a r mais c o m isso: a 44. Pois, se h á u m a r e a l i d a d e nas e s s ê n c i a s o u p o s s i b i -
r a z ã o s u f i c i e n t e o u última t e m de estar f o r a d a s e q u ê n c i a l i d a d e s , o u e n t ã o nas v e r d a d e s eternas, é i m p e r a t i v o q u e
esta r e a l i d a d e esteja f u n d a d a e m a l g o e x i s t e n t e e A t u a l ; e
o u séries deste d e t a l h e das c o n t i n g ê n c i a s , p o r i n f i n i t o q u e
p o r c o n s e g u i n t e na E x i s t ê n c i a d o Ser n e c e s s á r i o , n o q u a l a
este possa ser.
E s s ê n c i a encerra a E x i s t ê n c i a o u n o q u a l é s u f i c i e n t e ser
38. A s s i m s e n d o , a r a z ã o última das coisas d e v e estal-
p o s s í v e l p a r a ser atual. Teodicéia, §§ 184-189, 335.
e m u m a substância necessária, na q u a l o detalhe das m u d a n -
45. A s s i m , s ó D e u s ( o u o Ser n e c e s s á r i o ) t e m o privilé-
ç a s s ó esteja e m i n e n t e m e n t e , c o m o e m sua f o n t e : é o q u e
g i o de ter de existir necessariamente, se é possível. E, c o m o
c h a m a m o s Deus. Teodicéia, § 7.
n a d a p o d e i m p e d i r a p o s s i b i l i d a d e d o q u e n à o encerra ne-
39. O r a , s e n d o esta s u b s t â n c i a u m a r a z à o s u f i c i e n t e de n h u m l i m i t e , n e n h u m a n e g a ç ã o e, p o r c o n s e g u i n t e , n e n h u -
t o d o este d e t a l h e , o q u a l t a m b é m está i n t e r l i g a d o e m t o d a m a c o n t r a d i ç ã o , isto é suficiente p a r a se c o n h e c e r a e x i s t ê n -
parte, nào há mais que um Deus e este Deus é suficiente. cia d e D e u s a priori. T a m b é m a p r o v a m o s pela r e a l i d a d e das
40. Pode-se j u l g a r t a m b é m q u e esta S u b s t â n c i a Supre- verdades eternas. Mas a c a b a m o s d c prová-la t a m b é m a pos-
m a q u e é única, u n i v e r s a l e n e c e s s á r i a , n à o t e n d o n a d a f o r a teriori, p o s t o q u e e x i s t e m seres c o n t i n g e n t e s q u e s ó p o d e m
dela q u e l h e seja i n d e p e n d e n t e , e s e n d o u m a c o n s e q u ê n - ter sua razão última o u suficiente n o ser n e c e s s á r i o , q u e pos-
cia s i m p l e s d o ser p o s s í v e l , d e v a ser i n c a p a z de l i m i t e s e sui e m si m e s m o a r a z ã o de sua existência.
c o n t e r tanta r e a l i d a d e q u a n t o seja p o s s í v e l . 46. N o e n t a n t o , n ã o se d e v e pensar, c o m a l g u n s , q u e
4 1 . D o n d e se segue q u e D e u s é a b s o l u t a m e n t e p e r f e i t o , as v e r d a d e s eternas, s e n d o d e p e n d e n t e s d e D e u s , sejam ar-
p o i s a perfeição nâo é s e n ã o a grandeza da realidade posi- bitrárias e d e p e n d a m d e sua v o n t a d e , c o m o p a r e c e c o n c e -
tiva c o n s i d e r a d a p r e c i s a m e n t e , p o n d o à p a r t e as r e s t r i ç õ e s b e r Descartes e d e p o i s o s e n h o r Poiret. Isto s ó é v e r d a d e i -
o u os l i m i t e s das coisas q u e os t ê m . E o n d e n à o há limites, r o n o caso das v e r d a d e s c o n t i n g e n t e s c u j o p r i n c í p i o é a
o u seja, e m D e u s , a p e r f e i ç ã o é a b s o l u t a m e n t e i n f i n i t a . Teo- conveniência o u a e l e i ç ã o d o melhor, a o passo q u e as Ver-
dicéia, § 22; Prefácio Teodicéia. d a d e s N e c e s s á r i a s d e p e n d e m u n i c a m e n t e de seu e n t e n d i -
42. Scgue-se t a m b é m q u e as p e r f e i ç õ e s das criaturas m e n t o e s ã o seu o b j e t o i n t e r n o . Teodicéia, 180-184, 185,
p r o c e d e m d a i n f l u ê n c i a d e D e u s ; mas suas i m p e r f e i ç õ e s , 335, 3 5 1 , 380.
d e sua p r ó p r i a n a t u r e z a , i n c a p a z d e ser i l i m i t a d a . Por isto 47. A s s i m , s ó D e u s é a u n i d a d e p r i m i t i v a o u a s u b s t â n -
d i s t i n g u e m - s e d e D e u s . Teodicéia, §§ 20. 2 7 - 3 1 , 153, 167, cia s i m p l e s originária, da q u a l t o d a s as M ô n a d a s criadas o u
377 ss. d e r i v a t i v a s s à o p r o d u ç õ e s ; e n a s c e m , p o r assim dizer, p o r
43. T a m b é m é v e r d a d e q u e e m D e u s reside n à o s ó a F u l g u r a ç õ e s c o n t í n u a s da D i v i n d a d e , d e m o m e n t o a m o -
f o n t e das existências, mas t a m b é m a das e s s ê n c i a s , e n q u a n - m e n t o , l i m i t a d a s p e l a r e c e p t i v i d a d e d a criatura, p a r a a q u a l
to reais, o u d o q u e há d e r e a l na p o s s i b i l i d a d e . P o r q u e o é essencial ser l i m i t a d a . Teodicéia, %% 3 8 2 - 3 9 1 , 398, 395.
E n t e n d i m e n t o de D e u s é a r e g i ã o das v e r d a d e s eternas, o u 48. E m D e u s está a potência, q u e é a f o n t e de t u d o , d e -
das ideias d e q u e estas v e r d a d e s d e p e n d e m e s e m ele n â o p o i s o conhecimento, q u e c o n t é m o d e t a l h e das ideias, e p o r

138 139
G. W. Leibniz
Discurso de metafísica e outros textos.

f i m a vontade, q u e o p e r a as m u d a n ç a s o u p r o d u ç õ e s se-
53. O r a , c o m o há u m a i n f i n i d a d e de universos possíveis
g u n d o o p r i n c í p i o d o m e l h o r . E isto c o r r e s p o n d e ao q u e
nas ideias d e D e u s e a p e n a s u m deles p o d e existir, t e m de
nas M ô n a d a s criadas c o n s t i t u i o Sujeito o u Base, a F a c u l d a -
h a v e r u m a r a z ã o s u f i c i e n t e d a e s c o l h a de D e u s , q u e o d e -
d e P e r c e p t i v a e a F a c u l d a d e A p e t i t i v a . Mas e m D e u s estes
t e r m i n e a p r e f e r i r u m a o u t r o . Teodicéia, §§ 8, 10, 44. 173,
atributos sào absolutamente infinitos o u perfeitos; e n q u a n -
196 ss., 225, 414-416.
t o nas M ô n a d a s criadas o u nas Enteléquias (ou perfectiha-
54. E esta r a z ã o s ó p o d e e n c o n t r a r - s e na conveniência,
hies, c o m o t r a d u z i u esta p a l a v r a E r m o l a o B á r b a r o ) n ã o pas-
o u n o s graus d e p e r f e i ç ã o q u e estes m u n d o s c o n t ê m , cada
s a m d e i m i t a ç õ e s , p r o p o r c i o n a i s à p e r f e i ç ã o delas. Teodi-
possível t e n d o o direito de pretender à Existência segundo
céia, 7, 149. 150, 87.
a m e d i d a da p e r f e i ç ã o q u e e n v o l v a . Teodicéia. §§ 74, 167,
49- D i z - s e q u e a c r i a t u r a age e x t e r i o r m e n t e na m e d i d a
350, 2 0 1 , 130, 352, 345 ss., 354.
e m q u e t e m perfeição; epadece a a ç ã o de outra na m e d i d a e m
55. E esta é a causa d a e x i s t ê n c i a d o m e l h o r , q u e a sa-
q u e é i m p e r f e i t a . A s s i m , a t r i b u i - s e açãoà M ô n a d a na m e d i -
b e d o r i a r e v e l o u a D e u s , q u e sua b o n d a d e o l e v o u a esco-
da e m q u e esta t e m p e r c e p ç õ e s distintas c paixão na. m e d i d a
l h e r e sua p o t ê n c i a o l e v o u a p r o d u z i r . Teodicéia, §§ 8, 78,
e m q u e as t e m confusas. Teodicéia, §§ 32, 66, 386.
80, 84, 119, 204, 206, 208; R e s u m o , D O b j e ç ã o , 8 O b j e ç ã o . a

50. E u m a criatura e mais p e r f e i t a q u e o u t r a q u a n d o se


56. O r a , esta ligação o u a c o m o d a ç ã o d e todas as c o i -
e n c o n t r a nela o q u e serve p a r a d a r a r a z ã o a priori d o q u e
sas criadas a cada u m a e de cada u m a a t o d a s as o u t r a s faz
se passa na o u t r a , e p o r isso se d i z q u e age s o b r e a o u t r a .
c o m q u e cada s u b s t â n c i a s i m p l e s t e n h a r e l a ç õ e s q u e ex-
5 1 . Mas nas s u b s t â n c i a s s i m p l e s s ó h á u m a i n f l u ê n c i a
p r e s s e m t o d a s as o u t r a s , e q u e seja, p o r c o n s e g u i n t e , u m
idealôc: u m a M ô n a d a s o b r e o u t r a , a q u a l n ã o p o d e efetuar-
e s p e l h o v i v o p e r p é t u o d o u n i v e r s o . 'Teodicéia, §§ 130, 360.
se s e n ã o pela i n t e r v e n ç ã o de D e u s , e n q u a n t o nas ideias d e
57. E assim c o m o u m a m e s m a c i d a d e c o n t e m p l a d a d e
Deus uma Mônada requer c o m razão que Deus, t e n d o regu-
d i v e r s o s lados p a r e c e t o t a l m e n t e o u t r a , e s e n d o c o m o q u e
l a d o as outras d e s d e o c o m e ç o das coisas, t a m b é m a c o n s i -
m u l t i p l i c a d a perspectivamente, o mesmo ocorre quando,
d e r e . Pois, c o m o u m a M ô n a d a c r i a d a n ã o p o d e r i a i n f l u i r f i -
d e v i d o à multiplicidade infinita de substâncias simples, pa-
s i c a m e n t e n o i n t e r i o r d e o u t r a , s ó p o r este m e i o u m a p o d e
rece h a v e r o u t r o s tantos u n i v e r s o s d i f e r e n t e s q u e , e n t r e t a n -
d e p e n d e r de o u t r a . Teodicéia, §§ 9. 54, 65, 66, 2 0 1 ; R e s u m o ,
t o , n a d a mais s à o d o q u e as p e r s p e c t i v a s d e u m só, s e g u n -
3 Objeção.
À

d o os d i f e r e n t e s pontos de vista d e cada M ô n a d a . Teodicéia.


52. E p o r isto as a ç õ e s e p a i x õ e s e n t r e as criaturas s à o
§ 147.
m ú t u a s . Pois D e u s , ao c o m p a r a r duas s u b s t â n c i a s s i m p l e s ,
58. F este é o m e i o de o b t e r t o d a a v a r i e d a d e p o s s í v e l ,
e n c o n t r a e m cada u m a delas r a z õ e s q u e o o b r i g a m a a c o -
m a s c o m a m a i o r o r d e m p o s s í v e l , o u seja, é o m e i o d e o b -
m o d á - l a à o u t r a ; e, p o r c o n s e g u i n t e , o q u e é a t i v o e m cer-
t e r tanta p e r f e i ç ã o q u a n t o p o s s í v e l . Teodicéia, §§ 120; 124,
tos aspectos é passivo d e o u t r o p o n t o d e vista: ativo e n -
241 ss., 214, 243, 275.
q u a n t o o q u e se c o n h e c e d i s t i n t a m e n t e n e l e serve p a r a ex-
59. T a m b é m esta h i p ó t e s e ( q u e o u s o a f i r m a r d e m o n s -
p l i c a r o q u e a c o n t e c e e m o u t r o , e passivo e n q u a n t o a r a z ã o
trada.) é a ú n i c a q u e destaca, c o m o é d e v i d o , a g r a n d e z a de
d o q u e l h e a c o n t e c e e n c o n t r a - s e n o q u e se c o n h e c e d i s t i n -
D e u s ; o s e n h o r B a y l e o r e c o n h e c e u q u a n d o lhe fez o b j e -
t a m e n t e c m o u t r o . Teodicéia, § 66.
ç õ e s e m seu D i c i o n á r i o ( a r t i g o "Rorarius"), o n d e f i c o u mes-

140
141
G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

m o t e n t a d o a crer q u e e u c o n c e d i a d e m a s i a d o a D e u s , c <; tes. Mas u m a A l m a p o d e ler e m si m e s m a só o q u e nela está


m a i s d o q u e p o s s í v e l . Mas n ã o p ô d e alegar r a z à o a l g u m a I d i s t i n t a m e n t e r e p r e s e n t a d o , ela n ã o p o d e r i a d e s e n v o l v e r
da i m p o s s i b i l i d a d e desta h a r m o n i a u n i v e r s a l , q u e faz c o m % de u m a s ó v e z t o d o s seus r e c a n t o s í n t i m o s , p o i s eles se es-
q u e cada s u b s t â n c i a expresse e x a t a m c n t e t o d a s as d e m a i s t e n d e m até o i n f i n i t o .
m e d i a n t e as r e l a ç õ e s q u e m a n t é m c o m elas. 62. A s s i m , a i n d a q u e cada M ô n a d a criada r e p r e s e n t e
ÓO. V ê e m - s e ademais, p e t o q u e a c a b o d e dizer, as ra- t o d o o u n i v e r s o , ela r e p r e s e n t a c o m m a i o r d i s t i n ç ã o o c o r -
z õ e s a priori das coisas n à o p o d e r e m ser de o u t r o m o d o ; p o q u e l h e é p a r t i c u l a r m e n t e afetado e cuja e n t e l é q u i a c o n s -
p o r q u e D e u s , a o r e g u l a r o t o d o , c o n s i d e r o u cada p a r t e e t i t u i ; e c o m o esse c o r p o expressa t o d o o u n i v e r s o pela c o n e -
p a r t i c u l a r m e n t e cada M ô n a d a ; cuja n a t u r e z a s e n d o r e p r e - x ã o de t o d a a matéria n o p l e n o , a A l m a r e p r e s e n t a t a m b é m
sentativa n ã o p o d e r i a ser l i m i t a d a , p o r coisa a l g u m a , a re- t o d o o u n i v e r s o ao representar este c o r p o q u e l h e p e r t e n c e
p r e s e n t a r s ó u m a p a r t e das coisas, a i n d a q u e seja v e r d a d e de m a n e i r a p a r t i c u l a r . Teodicéia, § 400.
q u e essa r e p r e s e n t a ç ã o seja apenas c o n f u s a q u a n t o a o d e - 63- O c o r p o p e r t e n c e n t e a u m a M ô n a d a , q u e é sua E n -
talhe de t o d o o u n i v e r s o , e distinta apenas e m u m a p e q u e n a t e l é q u i a o u A l m a . c o n s t i t u i c o m a E n t e l é q u i a o q u e se p o d e
parte das coisas, isto é, naquelas q u e s ã o o u as mais p r ó x i - c h a m a r u m vivente, e c o m a A l m a o q u e se p o d e c h a m a r
mas o u as m a i o r e s c o m r e l a ç ã o a cada u m a das m ô n a d a s ; u m animal. O r a , esse c o r p o d e u m v i v e n t e o u d c u m a n i -
m a l é s e m p r e o r g â n i c o , p o i s cada M ô n a d a s e n d o a seu
de o u t r o m o d o c a d a M ô n a d a seria u m a D i v i n d a d e . N ã o é
m o d o u m espelho do universo, e estando o universo regu-
n o o b j e t o , mas na m o d i f i c a ç ã o d o c o n h e c i m e n t o d o o b j e t o ,
l a d o c o n f o r m e u m a o r d e m p e r f e i t a , é p r e c i s o q u e haja t a m -
q u e as M ô n a d a s s à o l i m i t a d a s . T o d a s elas t e n d e m c o n f u s a -
b é m u m a o r d e m n o r e p r e s e n t a n t e , o u seja, nas p e r c e p ç õ e s
m e n t e ao i n f i n i t o , a o t o d o ; mas s ã o l i m i t a d a s e d i s t i n g u e m -
da a l m a e p o r c o n s e g u i n t e n o c o r p o , s e g u n d o a q u a l o u n i -
se p e l o s graus das p e r c e p ç õ e s distintas.
v e r s o está r e p r e s e n t a d o nela. 'Teodicéia, % 403.
61. E n i s t o os c o m p o s t o s s i m b o l i z a m os s i m p l e s . Pois 64. A s s i m , cada c o r p o o r g â n i c o d e u m v i v e n t e é u m a
c o m o t u d o é p l e n o , e t o d a a matéria, p o r c o n s e g u i n t e , l i g a - E s p é c i e d e M á q u i n a D i v i n a o u de A u t ó m a t o N a t u r a l , q u e
da, e c o m o n o p l e n o t o d o m o v i m e n t o p r o d u z a l g u m e f e i - supera i n f i n i t a m e n t e t o d o s os A u t ó m a t o s artificiais. P o r q u e
t o s o b r e os c o r p o s distantes, s e g u n d o a distância, d e m a - u m a M á q u i n a , c o n s t r u í d a s e g u n d o a arte h u m a n a , n â o é
n e i r a q u e cada c o r p o é a f e t a d o n ã o s ó p o r a q u e l e s q u e o M á q u i n a e m cada u m a d e suas partes. P o r e x e m p l o , o d e n -
t o c a m , ressentindo-se de a l g u m m o d o d e t u d o o q u e lhes te d e u m a r o d a d e l a t ã o t e m partes o u f r a g m e n t o s q u e n ã o
o c o r r e , c o m o t a m b é m p o r m e i o deste s ressente-se a i n d a s ã o mais p a r a n ó s a l g o artificial e n ã o t ê m mais n a d a q u e
d o s q u e t o c a m os p r i m e i r o s c o m os q u a i s está i m e d i a t a - i d e n t i f i q u e a M á q u i n a p a r a o u s o d a q u a l está d e s t i n a d a a
m e n t e e m c o n t a t o . D o n d e se s e g u e q u e esta c o m u n i c a ç ã o r o d a . M a s as M á q u i n a s d a N a t u r e z a , i s t o é, os c o r p o s v i v o s ,
atinge q u a l q u e r distância. E p o r conseguinte t o d o c o r p o s ã o M á q u i n a s i n c l u s i v e e m suas m e n o r e s partes até o i n f i -
ressente-se d e t u d o o q u e se faz n o u n i v e r s o , d e tal m o d o n i t o . E isto q u e c o n s t i t u i a d i f e r e n ç a e n t r e a N a t u r e z a e a
q u e a q u e l e q u e t u d o visse p o d e r i a l e r e m cada u m o q u e Arte, isto é. e n t r e a arte D i v i n a e a Nossa. Teodicéia, §§ 134,
se faz e m t o d a p a r t e , c m e s m o o q u e o c o r r e u e o q u e o c o r - 146, 194, 403.
rerá, o b s e r v a n d o n o p r e s e n t e o q u e está d i s t a n t e t a n t o n o s 65. E o A u t o r d a N a t u r e z a p ô d e praticar este artifício
t e m p o s c o m o n o s lugares; 5-UJITCVOIO; Tidvxa, d i z i a H i p ó c r a - d i v i n o e i n f i n i t a m e n t e m a r a v i l h o s o , p o r q u e cada p o r ç ã o d a

142 143
_ G. W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos.

m a t é r i a n á o s ó é divisível ao i n f i n i t o , c o m o r e c o n h e c e r a m 72. A s s i m a a l m a s ó m u d a de c o r p o p o u c o a p o u c o e
os antigos, c o m o ainda está s u b d i v i d i d a a t u a l m e n t e s e m f i m , gradativamente, de maneira que nunca é despojada instan-
cada p a i t e e m partes, das q u a i s cada u m a t e m a l g u m m o v i - t a n e a m e n t e de t o d o s os seus ó r g ã o s ; e f r e q u e n t e m e n t e há
m e n t o p r ó p r i o ; de o u t r o m o d o seria i m p o s s í v e l q u e cada m e t a m o r f o s e nos a n i m a i s , mas n u n c a M e t e m p s i c o s e , n e m
p o r ç ã o da matéria p u d e s s e expressar t o d o o u n i v e r s o . Dis- t r a n s m i g r a ç ã o das A l m a s ; t a m p o u c o há Almas completa-
curso preliminar, § 70: Teodicéia, § 195. m e n t e separadas, n e m génios sem c o r p o . S ó D e u s está
66. Pode-se assim observar q u e h á u m M u n d o d e c r i a - c o m p l e t a m e n t e s e p a r a d o . Teodicéia, §§ 90, 124.
turas, d e v i v e n t e s , de A n i m a i s , d e E n t e l é q u i a s , de A l m a s , 73. É isso q u e faz c o m q u e n ã o haja n u n c a n e m c o m -
na m e n o r p a r t e d a matéria. pleta g e r a ç ã o , n e m m o r t e p e r f e i t a , n o s e n t i d o estrito, a sa-
67. Cada p o r ç ã o da matéria p o d e ser c o n c e b i d a c o m o ber, a q u e consiste na s e p a r a ç ã o da a l m a . E o q u e c h a m a -
u m j a r d i m c h e i o d e plantas e c o m o u m lago c h e i o de peixes. m o s gerações s à o d e s e n v o l v i m e n t o s e c r e s c i m e n t o s , assim
Mas cada r a m o da p l a n t a , cada m e m b r o d o A n i m a l , cada g o - c o m o o q u e c h a m a m o s mortes s à o e n v o l v i m e n t o s e d t m i -
la d e seus h u m o r e s , é t a m b é m u m j a r d i m o u u m l a g o . nuições.

68. E, e m b o r a a terra e o ar i n t e r p o s t o s e n t r e as plantas 74. Os f i l ó s o f o s já f i c a r a m m u i t o e m b a r a ç a d o s a res-


d o j a r d i m , o u a á g u a interposta entre os peixes d o lago, n à o p e i t o d a o r i g e m das F o r m a s , E n t e l é q u i a s o u A l m a s ; mas
sejam p l a n t a , n e m p e i x e , eles os c o n t ê m a i n d a , mas m u i t o h o j e , q u a n d o nos a p e r c e b e m o s , p o r i n v e s t i g a ç õ e s exatas,
f r e q u e n t e m e n t e c o m u m a sutileza q u e para n ó s é i m p e r - feitas e m p l a n t a s , i n s e t o s e a n i m a i s , q u e os c o r p o s o r g â n i -
ceptível. cos da n a t u r e z a n u n c a s â o p r o d u z i d o s a p a r t i r d e u m caos
69. Assim, n à o há nada i n c u l t o , estéril, o u m o r t o n o u n i - o u de u m a p u t r e f a ç ã o , m a s s e m p r e a p a r t i r d e s e m e n t e s
verso, n ã o há caos. n à o há c o n f u s ã o s e n à o na aparência; se- nas q u a i s s e m dúvida h a v i a a l g u m a preformação, conside-
ria c o m o se v í s s e m o s , de u m a certa distância, n u m lago, u m r a m o s q u e antes da c o n c e p ç ã o n à o s ó já existia, e m seu
m o v i m e n t o c o n f u s o e u m t u m u l t o dos p e i x e s d o l a g o , s e m i n t e r i o r , o c o r p o o r g â n i c o , c o m o t a m b é m u m a A l m a neste
q u e d i s c e r n í s s e m o s os p r ó p r i o s peixes. Prefácio Teodicéia. c o r p o e, e m u m a p a l a v r a , o a n i m a l m e s m o ; e q u e m e d i a n -
70. A s s i m , v e m o s q u e cada c o r p o v i v o t e m u m a Ente- te a c o n c e p ç ã o este a n i m a l s ó f o i d i s p o s t o p a r a u m a g r a n -
léquia d o m i n a n t e q u e n o A n i m a l é a A l m a ; mas os m e m - d e t r a n s f o r m a ç ã o para t o r n a r - s e u m a n i m a l d e o u t r a e s p é -
b r o s deste c o r p o v i v o e s t ã o p l e n o s d e o u t r o s v i v e n t e s , p l a n - cie. V ê - s e m e s m o a l g o p a r e c i d o f o r a d a g e r a ç ã o q u a n d o
tas, a n i m a i s , cada u m d o s quais t e m a i n d a sua E n t e l é q u i a os vermes se u a n s f o r m a m e m moscas e as lagartas, e m b o r b o -
o u sua A l m a d o m i n a n t e . letas. Teodicéia, 86, 89; Prefácio Teodicéia, 90, 187-188,
7 1 . Mas n à o se d e v e pensar, c o m o a l g u n s q u e h a v i a m 403, 397.
c o m p r e e n d i d o m a l m e u p e n s a m e n t o , q u e cada A l m a t e m 75. O s animais, dos quais alguns sào elevados ao grau
u m a massa o u p o r ç ã o d e matéria p r ó p r i a o u q u e está afe- d o s m a i o r e s a n i m a i s p o r m e i o da c o n c e p ç ã o , p o d e m ser
t a d a a ela para s e m p r e , e q u e p o s s u i , c o n s e q u e n t e m e n t e , c h a m a d o s espermáticos; mas os q u e p e r m a n e c e m e m sua
o u t r o s v i v e n t e s inferiores, destinados a servi-la para s e m p r e . e s p é c i e , isto é, a m a i o r i a , n a s c e m , m u l t i p l i c a m - s e e s ã o des-
Pois t o d o s os c o r p o s e s t ã o e m u m f l u x o p e r p é t u o , c o m o os truídos c o m o os a n i m a i s g r a n d e s , c n ã o h á s e n ã o u m p e -
rios, e as partes neles e n t r a m e s a e m c o n t i n u a m e n t e . q u e n o n ú m e r o d e Eleitos q u e passa a u m t e a t r o m a i o r .

144 145
Discurso de metafísica e outros textos —

76. Mas isto s ó é m e i a v e r d a d e ; j u l g u e i , e n t ã o , q u e se a j a m c o m o se n ã o h o u v e s s e c o r p o s ; e q u e a m b o s a j a m c o -


o animal nunca começa naturalmente tampouco termina m o se u m influísse n o o u t r o .
n a t u r a l m e n t e ; e q u e n à o s ó n ã o haverá g e r a ç ã o , c o m o t a m - 82. Q u a n t o aos espíritos o u A l m a s r a c i o n a i s , a i n d a q u e
p o u c o d e s t r u i ç ã o c o m p l e t a , n e m m o r t e n o s e n t i d o estrito. e u c o n s i d e r e h a v e r n o f u n d o a m e s m a coisa e m t o d o s os
E estes r a c i o c í n i o s f e i t o s a posteriori e t i r a d o s das e x p e r i ê n - v i v e n t e s e a n i m a i s , c o m o a c a b a m o s d e d i z e r (a saber, q u e
cias c o n c o r d a m p e r f e i t a m e n t e c o m m e u s p r i n c í p i o s d e d u - o A n i m a l e a A l m a s ó c o m e ç a m c o m o m u n d o e, c o m o o
z i d o s a priori, c o m o a c i m a . Teodicéia, § 90. m u n d o , n ã o acabam), há todavia u m a particularidade nos
77. A s s i m , p o d e - s e d i z e r q u e n ã o s ó a A l m a ( e s p e l h o a n i m a i s r a c i o n a i s , a saber, q u e seus p e q u e n o s A n i m a i s Es-
d e u m u n i v e r s o indestrutível) é indestrutível, c o m o t a m - p e r m á t i c o s . e n q u a n t o n â o s â o s e n ã o isso, s o m e n t e t ê m A l -
b é m o p r ó p r i o a n i m a l , a i n d a q u e sua M á q u i n a f r e q u e n t e - mas ordinárias o u sensitivas; mas, assim q u e os eleitos, p o r
mente pereça e m parte e a b a n d o n e o u t o m e despojos or- assim dizer, a l c a n ç a m p o r c o n c e p ç ã o a t u a l a n a t u r e z a h u -
gânicos. m a n a , suas almas sensitivas s ã o elevadas ao g r a u d a r a z ã o
e â p r e r r o g a t i v a d o s Espíritos. Teodicéia, §§ 9 b 397.
78. Estes p r i n c í p i o s m e p e r m i t i r a m e x p l i c a r n a t u r a l -
m e n t e a u n i ã o o u , m e l h o r , a c o n f o r m i d a d e da a l m a e d o 83. E n t r e o u t r a s d i f e r e n ç a s entre as A l m a s ordinárias e
c o r p o o r g â n i c o . A a l m a segue suas próprias leis, e os c o r p o s os Espíritos, a l g u m a s das q u a i s já assinalei, h á a i n d a esta:
t a m b é m as suas, c eles se e n c o n t r a m e m v i r t u d e da harmo- as almas e m geral s â o e s p e l h o s v i v o s o u i m a g e n s d o u n i -
v e r s o das criaturas, e n q u a n t o os e s p í r i t o s s ã o a i n d a i m a -
nia preestabelecida entre t o d a s as s u b s t â n c i a s , p o i s t o d a s
g e n s da própria d i v i n d a d e , o u d o p r ó p r i o a u t o r d a n a t u r e -
elas s ã o r e p r e s e n t a ç õ e s de u m m e s m o u n i v e r s o . Prefácio
za, capazes d e c o n h e c e r o sistema d o u n i v e r s o e de i m i t a r
Teodicéia, §§ 340, 352, 353, 358.
a l g o dele m e d i a n t e amostras a r q u i t e t ô n i c a s , p o i s cada e s p í -
79- As a l m a s a g e m s e g u n d o as leis das causas finais
r i t o é c o m o u m a p e q u e n a d i v i n d a d e e m seu â m b i t o . Teodi-
p o r a p e t i ç õ e s , f i n s e m e i o s . O s c o r p o s a g e m s e g u n d o as
céia, § 147.
leis das causas eficientes o u dos m o v i m e n t o s . E os d o i s r e i -
84. É o q u e faz c o m q u e os e s p í r i t o s sejam capazes d e
nos, das causas eficientes e o das causas finais, s â o h a r m ó -
ingressar e m u m a E s p é c i e d e S o c i e d a d e c o m D e u s , e p o r
n i c o s entre si.
isto D e u s é p a r a eles n à o s ó o q u e u m i n v e n t o r é para sua
80. Descartes r e c o n h e c e u q u e as almas n ã o p o d e m d a r M á q u i n a ( o q u e D e u s é r e l a t i v a m e n t e às outras c r i a t u r a s ) ,
f o r ç a aos c o r p o s p o r q u e s e m p r e h á na matéria a m e s m a c o m o t a m b é m o q u e u m p r í n c i p e c para seus súditos e i n -
q u a n t i d a d e de f o r ç a . E n t r e t a n t o , a c r e d i t o u q u e a alma p o - c l u s i v e u m p a i p a r a seus f i l h o s .
d i a m u d a r a d i r e ç ã o d o s c o r p o s . M a s isto f o i a s s i m p o r q u e 85. D o n d e é fácil c o n c l u i r q u e a r e u n i ã o d e t o d o s os
e m seu t e m p o d e s c o n h e c i a - s e a l e i da n a t u r e z a q u e estabe- Espíritos d e v e c o n s t i t u i r a C i d a d e de D e u s , isto é, o e s t a d o
lece t a m b é m a c o n s e r v a ç ã o d a m e s m a d i r e ç ã o t o t a l n a m a - mais p e r f e i t o p o s s í v e l s o b o mais p e r f e i t o d o s m o n a r c a s .
téria. Se a c o n h e c e s s e , teria c a í d o n o m e u sistema d a har- Teodicéia, § 146; R e s u m o , 2 O b j e ç ã o .
a

m o n i a p r e e s t a b e l e c i d a . Prefácio Teodicéia, §§ 22, 59, 60, 61, 86. Esta c i d a d e d e D e u s , esta M o n a r q u i a v e r d a d e i r a -


63, 66, 345, 346 ss., 354, 355. mente universal, é u m M u n d o Moral n o M u n d o Natural e o
8 1 . Este Sistema faz c o m q u e os c o r p o s a j a m c o m o se q u e há de mais e l e v a d o e d i v i n o nas o b r a s d e D e u s . N i s t o
n â o h o u v e s s e A l m a s ( o q u e é i m p o s s í v e l ) ; e q u e as A l m a s c o n s i s t e v e r d a d e i r a m e n t e a glória d e D e u s , p o s t o q u e n ã o

146
Discurso de metafísica e outros textos
(V. W. Leibniz

ta p r a z e r c o m a f e l i c i d a d e d a q u i l o q u e se a m a . E isto q u e
t e r i a n e n h u m a .se sua g r a n d e z a e sua b o n d a d e n à o f o s s e m
faz t r a b a l h a r as pessoas sabias e virtuosas e m t u d o o q u e
c o n h e c i d a s e a d m i r a d a s p e l o s espíritos. E t a m b é m r e l a t i v a -
p a r e c e c o n f o r m e à v o n t a d e d i v i n a p r e s u n t i v a o u antece-
m e n t e a esta c i d a d e d i v i n a q u e Ele t e m p r o p r i a m e n t e B o n -
d e n t e ; e o q u e as faz se c o n t e n t a r e m , e n t r e t a n t o , c o m o q u e
d a d e , e n q u a n t o sua s a b e d o r i a e sua p o t e n c i a m a n i f e s t a m -
D e u s faz c o m q u e o c o r r a e f e t i v a m e n t e p e l a sua v o n t a d e
se c m t u d o .
secreta, c o n s e q u e n t e e d e c i s i v a , r e c o n h e c e n d o q u e , se p u -
87. A s s i m c o m o acima e s t a b e l e c e m o s u m a H a r m o n i a
déssemos entender suficientemente a o r d e m d o universo,
p e r f e i t a e n t r e d o i s R e i n o s N a t u r a i s , o das causas e f i c i e n t e s ,
d e s c o b r i r í a m o s q u e supera todas as a s p i r a ç õ e s dos mais sá-
o u t r o das f i n a i s , t a m b é m d e v e m o s destacar o u t r a h a r m o -
b i o s , e q u e é impossível f a z ê - l o m e l h o r d o q u e 6; n ã o s ó
nia entre o r e i n o Físico d a Natureza e o r e i n o M o r a l da G r a -
r e l a t i v a m e n t e ao t o d o e m g e r a l , mas t a m b é m r e l a t i v a m e n t e
ç a , isto é , e n t r e D e u s c o n s i d e r a d o c o m o A r q u i t e t o d a Má-
a n ó s m e s m o s e m p a r t i c u l a r , se estamos l i g a d o s , c o m o é
q u i n a d o u n i v e r s o , e D e u s c o n s i d e r a d o c o m o M o n a r c a da
d e v i d o , a o A u t o r d o t o d o , n à o s ó c o m o a r q u i t e t o e causa
c i d a d e d i v i n a d o s Espíritos. Teodicéia, §§ 62, 7 1 , 118, 112,
e f i c i e n t e cie nosso ser, mas t a m b é m c o m o n o s s o S e n h o r e
130, 247, 248. causa f i n a l , q u e d e v e c o n s t i t u i r t o d o o f i m cie nossa v o n t a -
88. Esta h a r m o n i a faz c o m q u e as coisas c o n d u z a m à d e e o ú n i c o q u e p o d e l a z e r nossa f e l i c i d a d e . Teodicéia.
g r a ç a p e l a s p r ó p r i a s vias da n a t u r e z a , e q t i e este g l o b o , p o r § 134 f i n . ; Prefácio Teodicéia, 278.
e x e m p l o , d e v a ser d e s t r u í d o e r e p a r a d o pelas vias n a t u r a i s
nos m o m e n t o s r e q u e r i d o s p e l o g o v e r n o dos Espíritos; para
castigo d e u n s e r e c o m p e n s a d e o u t r o s . Teodicéia, 18 ss.,
110, 244, 245 e 340.
89- T a m b é m se p o d e d i z e r q u e D e u s c o m o a r q u i t e t o
satisfaz e m t u d o a D e u s c o m o legislador: e q u e , assim, os
p e c a d o s d e v e m i m p l i c a r seu p r ó p r i o castigo s e g u n d o a o r -
d e m da natureza e e m v i r t u d e d a própria estrutura m e c â n i -
ca das coisas; e q u e d o m e s m o m o d o as belas a ç ó e s o b t e -
r ã o sua r e c o m p e n s a p o r vias m e c â n i c a s e m r e l a ç ã o aos cor-
p o s , a i n d a q u e isto n à o possa n e m d e v a o c o r r e r s e m p r e
imediatamente,
90. E n f i m , s o b este g o v e r n o p e r f e i t o n â o h a v e r á b o a
A ç à o s e m r e c o m p e n s a , n e m m á s e m castigo: e t u d o d e v e
resultar n o b e m cios b o n s , isto é, d o s q u e n ã o e s t ã o des-
c o n t e n t e s nesse g r a n d e Estado, q u e c o n f i a m na p r o v i d ê n -
cia d e p o i s d e t e r e m c u m p r i d o seu dever, c q u e a m a m e
i m i t a m , c o m o é d e v i d o , o A u t o r de t o d o o b e m , c o m p r a -
z e n d o - s e na c o n s i d e r a ç ã o d e suas p e r f e i ç õ e s s e g u n d o a
n a t u r e z a d o v e r d a d e i r o amor puro, eme faz c o m q u e se s i n -

149
148
PRINCÍPIOS DA NATUREZA E D A
GRAÇA FUNDADOS NA RAZÃO

Tradução
ALEXANDRE DA CRUZ BONILHA

Revisão
MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR
1. A substância é u m Ser capaz d e A ç ã o . Ela é simples
o u c o m p o s t a . A substância simples é aquela q u e n à o t e m
partes. A composta é a r e u n i ã o das s u b s t â n c i a s simples o u
Mônadas. Monas 6 u m a p a l a v r a grega q u e significa u n i d a -
d e o u o q u e 6 u n o . Os c o m p o s t o s o u os c o r p o s são M u l t i p l i -
cidades, e as Substâncias simples, as Vidas, as Almas, os Espí-
ritos s à o unidades. E preciso q u e e m t o d a parte haja substân-
cias simples p o r q u e sem as simples n à o haveria compostas.
Por conseguinte, toda a natureza está p l e n a de vida.
2. As M ô n a d a s , n ã o t e n d o panes, n â o p o d e m ser f o r m a -
das n e m destruídas. Não p o d e m c o m e ç a r n e m t e n n i n a r n a t u -
ralmente e d u r a m , p o r conseguinte, tanto quanto o universo,
q u e será m u d a d o m a s n ã o será destruído. Nào p o d e m ter f i -
guras, caso c o n t r á r i o t e r i a m partes; e, p o r c o n s e g u i n t e , u m a
M ô n a d a e m si m e s m a , e e m u m m o m e n t o d a d o , n ã o p o d e -
ria d i s t i n g u i r - s e de o u t r a a n à o ser pelas q u a l i d a d e s e a ç õ e s
internas, q u e n ã o p o d e m ser o u t r a coisa s e n ã o suas percep-
ções (isto 6, as r e p r e s e n t a ç õ e s d o c o m p o s t o o u d o q u e é ex-
t e r n o , n o s i m p l e s ) e suas apetições (isto é, suas passagens
o u tendências de u m a p e r c e p ç ã o a o u t r a ) , q u e s â o os p r i n -
c í p i o s da m u d a n ç a . Pois a s i m p l i c i d a d e d a s u b s t â n c i a n ã o
i m p e d e a m u l t i p l i c i d a d e das m o d i f i c a ç õ e s , q u e d e v e m o c o r -
rer s i m u l t a n e a m e n t e nesta m e s m a s u b s t â n c i a s i m p l e s , e d e -
v e m consistir na v a r i e d a d e das r e l a ç õ e s c o m as coisas q u e

153
G. W. Leibniz _ Discurso de metafísica e outros textos.

e s t à o f o r a . É c o m o u m centro o u p o n t o n o qual, p o r mais 4. Cada M ô n a d a , c o m s e u c o r p o p a r t i c u l a r , c o n s t i t u i


s i m p l e s q u e seja, e x i s t e m u m a i n f i n i d a d e de â n g u l o s f o r m a - u m a s u b s t â n c i a v i v a . Desse m o d o n ã o s ó h á v i d a e m t o d a
d o s p e l a s l i n h a s q u e p a r a ele c o n v e r g e m . parte, incorporada nos m e m b r o s o u órgãos, c o m o também
3. N a n a t u r e z a t u d o é p l e n o . Há s u b s t â n c i a s s i m p l e s h á u m a i n f i n i d a d e d c graus e n t r e as M ô n a d a s , e u m a s d o -
e m t o d a p a r t e , e f e t i v a m e n t e separadas u m a s das o u t r a s p o r m i n a m mais o u m e n o s as o u t r a s . Mas, q u a n d o a M ô n a d a
ações próprias, que mudam continuamente suas relações; e t e m ó r g ã o s t ã o ajustados q u e g r a ç a s a eles g a n h a m r e l e v o e
cada substância simples o u Mônada distinta, q u e constitui d i s t i n ç ã o as i m p r e s s õ e s q u e eles r e c e b e m e, p o r c o n s e g u i n -
o c e n t r o de u m a s u b s t â n c i a c o m p o s t a ( c o m o , p o r e x e m p l o , te, t a m b é m as p e r c e p ç õ e s q u e os r e p r e s e n t a m ( c o m o , p o r
d e u m a n i m a l ) e o p r i n c í p i o d e sua unicidade, está r o d e a - e x e m p l o , q u a n d o , m e d i a n t e a c o n f i g u r a ç ã o d o s h u m o r e s dos
da p o r u m a massa c o m p o s t a d e u m a i n f i n i d a d e d e outras o l h o s , os raios d a l u z se c o n c e n t r a m e a t u a m c o m m a i o r
M ô n a d a s , q u e c o n s t i t u e m o corpo próprio desta M ô n a d a f o r ç a ) , e n t ã o se p o d e c h e g a r até o sentimento, q u e r dizer,
c e n t r a l , a q u a l representa, s e g u n d o as a f e c ç õ e s desse cor- até u m a p e r c e p ç ã o a c o m p a n h a d a d e memória, isto é , u m a
p o , c o m o e m u m a e s p é c i e d e centro, as coisas q u e e s t ã o p e r c e p ç ã o c u j o eco p e r d u r a d u r a n t e m u i t o t e m p o , f a z e n d o -
f o r a dela. E este corpo é orgânico quando forma uma espé- se o u v i r na o c a s i ã o a p r o p r i a d a ; tal v i v e n t e é c h a m a d o ani-
mal e sua M ô n a d a é c h a m a d a alma. E q u a n d o esta A l m a
cie d e A u t ó m a t o o u M a q u i n a d a N a t u r e z a , q u e é m á q u i n a
se eleva até a Razão, ela é a l g o mais s u b l i m e e p o d e ser i n -
n ã o apenas n o t o d o , c o m o t a m b é m nas mais ínfimas par-
cluída entre os espíritos, o q u e l o g o se e x p l i c a r á .
tes, q u e p o d e m ser observadas. E c o m o t u d o está l i g a d o d e -
v i d o à p l e n i t u d e d o m u n d o , e cada c o r p o atua e m m a i o r E v e r d a d e q u e os A n i m a i s se e n c o n t r a m às vezes n o
o u m e n o r m e d i d a s o b r e cada u m dos d e m a i s , s e g t i n d o a e s t a d o d e s i m p l e s v i v e n t e s e suas A l m a s n o e s t a d o d e s i m -
distância, s e n d o p o r sua vez a f e t a d o p o r r e a ç â o , segue-se ples M ô n a d a s , a saber, q u a n d o suas p e r c e p ç õ e s n à o s à o su-
q u e cada M ô n a d a é u m E s p e l h o v i v o , o u d o t a d o de a ç à o f i c i e n t e m e n t e distintas p a r a q u e p o s s a m recordar-se delas,
i n t e r n a , r e p r e s e n t a t i v o d o u n i v e r s o , s e g u n d o seu p o n t o d e c o m o o c o r r e e m u m p r o f u n d o s o n o sem s o n h o s o u e m u m
vista, e t à o r e g u l a d o c o m o o p r ó p r i o u n i v e r s o . N a M ô n a d a , d e s m a i o . Mas as p e r c e p ç õ e s q u e se t o r n a r a m i n t e i r a m e n t e
as p e r c e p ç õ e s n a s c e m umas de outras s e g u n d o as leis dos confusas d e v e m voltar a descnvolvcr-se nos animais pelas
A p e t i t e s o u das causas finais do bem e do mal, q u e consis- razões q u e d i r e i mais adiante n o § 12. A s s i m , é b o m d i s t i n g u i r
entre a percepção, q u e é o estado i n t e r i o r da M ô n a d a r e p r e -
t e m nas p e r c e p ç õ e s n o t á v e i s , r e g u l a d a s o u desreguladas,
s e n t a n d o as coisas externas, e a apercepção, q u e é a cons-
assim c o m o as m u d a n ç a s d o s c o r p o s e os f e n ó m e n o s ex-
ciência o u c o n h e c i m e n t o r e f l e x i v o desse estado i n t e r i o r , a
t e r n o s n a s c e m u n s d e o u t r o s s e g u n d o as leis das causas
q u a l n ã o é d a d a a t o d a s as a l m a s e n e m s e m p r e a m e s m a
eficientes, isto c, d o s m o v i m e n t o s . A s s i m , h á u m a harmo-
a l m a . F o i p o r n à o ter f e i t o esta d i s t i n ç ã o q u e o s cartesianos
nia p e r f e i t a entre as p e r c e p ç õ e s d a M ô n a d a e os m o v i m e n -
e r r a r a m , ao d e s c o n s i d e r a r as p e r c e p ç õ e s de q u e n â o nos
tos d o s c o r p o s , p r e e s t a b e l e c i d a d e a n t e m ã o e n t r e o sistema
a p e r c e b e m o s , assim c o m o o v u l g o desconsidera os c o r p o s
das causas eficientes e o das causas f i n a i s , e n i s t o consiste
i n s e n s í v e i s . F o i isto t a m b é m q u e l e v o u estes m e s m o s carte-
o a c o r d o e a u n i ã o física d a a l m a e d o c o r p o , s e m q u e u m
sianos a acreditar q u e s ó os espíritos s ã o M ô n a d a s , q u e n à o
deles possa m u d a r as leis d o o u t r o .
existem almas dos animais e menos ainda outros princípios

15-1 155
._ Discurso de metafísica e outros textos.
G. W. Leibniz

n h e c e m o s . isto é, as p l a n t a s e os a n i m a i s , n à o p r o v ê m e m
de vida. E, assim c o m o c h o c a r a m d e m a s i a d o a o p i n i ã o c o -
a b s o l u t o de u m a p u t r e f a ç ã o o u d e u m Caos, c o m o a c r e d i -
m u m d o s h o m e n s r e c u s a n d o s e n t i m e n t o aos a n i m a i s , c o n -
t a v a m os antigos, mas de s e m e n t e s preformadas e, p o r c o n -
forrnaram-se d e m a s i a d a m e n t e , p e l o contrário, aos p r e c o n c e i -
s e g u i n t e , da T r a n s f o r m a ç ã o d o s v i v e n t e s p r e e x i s t e n t e s . Nas
tos d o v u l g o , a o c o n f u n d i r e m u m longo aturdimento. que
sementes dos animais grandes há p e q u e n o s animais que,
p r o v é m de u m a g r a n d e c o n f u s ã o das p e r c e p ç õ e s , c o m mor-
mediante a concepção, adotam u m novo revestimento d o
te propriamente dita, na q u a l cessaria q u a l q u e r p e r c e p ç ã o .
q u a l se a p r o p r i a m , q u e lhes p e r m i t e se a l i m e n t a r e crescer
Isto reforçou a o p i n i ã o m a l f u n d a d a da destruição d c algumas
p a r a passar a u m teatro m a i o r e realizar a p r o p a g a ç ã o d o
almas e o p e r n i c i o s o s e n t i m e n t o d c alguns espíritos f o r t e m e n -
a n i m a l g r a n d e . É v e r d a d e q u e as A l m a s d o s A n i m a i s Esper-
te p r e s u n ç o s o s q u e c o m b a t e r a m a i m o r t a l i d a d e da nossa.
máticos h u m a n o s n à o são racionais e só chegam a sê-lo
5. Existe u m a l i g a ç ã o nas p e r c e p ç õ e s d o s a n i m a i s q u e
q u a n d o a c o n c e p ç ã o destina estes a n i m a i s à natureza h u m a -
t e m certa s e m e l h a n ç a c o m a R a z ã o ; mas está f u n d a d a ape-
na. E, assim c o m o e m geral os a n i m a i s n à o n a s c e m i n t e i r a -
nas na m e m ó r i a dos fatos ou efeitos e d e m o d o a l g u m n o
m e n t e na c o n c e p ç ã o o u geração, tampouco perecem com-
c o n h e c i m e n t o das causas. Assim, u m c ã o foge d o bastão c o m
p l e t a m e n t e nisso q u e c h a m a m o s morte; p o r q u e é r a z o á v e l
o q u a l lhe b a t e r a m p o r q u e a m e m ó r i a l h e r e p r e s e n t a a d o r
que o que não c o m e ç a naturalmente tampouco termine
q u e esse b a s t ã o lhe c a u s o u . E os h o m e n s , e n q u a n t o e m p í -
n a t u r a l m e n t e na o r d e m d a n a t u r e z a . A s s i m , ao a b a n d o n a r
ricos, isto é, nas três quartas partes de suas a ç õ e s , s ó a t u a m
sua m á s c a r a o u seus d e s p o j o s , v o l t a m s i m p l e s m e n t e a u m
c o m o a n i m a i s . Por e x e m p l o , espera-se q u e a m a n h ã raie o
t e a t r o mais sutil o n d e , c o n t u d o , p o d e m ser t à o s e n s í v e i s e
dia p o r q u e s e m p r e se e x p e r i m e n t o u assim: s ó u m a s t r ó n o -
estar t ã o b e m r e g u l a d o s c o m o n o m a i o r . E o q u e se acaba
m o p r e v ê tal f e n ó m e n o s e g u n d o a razão; e m e s m o esta
d e d i z e r dos g r a n d e s a n i m a i s t e m l u g a r t a m b é m na g e r a ç ã o
p r e v i s ã o falhara, f i n a l m e n t e , q u a n d o a causa d o d i a , q u e
e na m o r t e d o s a n i m a i s e s p e r m á t i c o s ; isto é, estes s ã o d e -
n ã o é eterna, cessar. Mas o raciocínio verdadeiro depende
senvolvimentos de outros animais espermáticos menores,
das v e r d a d e s n e c e s s á r i a s o u eternas, c o m o s à o a d a Lógica,
c o m p a r a d o s c o m os quais p o d e m ser c o n s i d e r a d o s g r a n -
a d o s N ú m e r o s e a da G e o m e t r i a , q u e t o r n a m indubitável a
des, p o i s na natureza t u d o v a i ao i n f i n i t o . A s s i m , p o i s , n à o
c o n e x ã o entre as ideias e infalíveis stias c o n s e q u ê n c i a s . O s
s ó as A l m a s c o m o t a m b é m os a n i m a i s s â o i n g ê n i t o s e i m -
a n i m a i s , nos q u a i s n ã o se n o t a m essas c o n s e q u ê n c i a s , s ã o
perecíveis; são apenas d e s e n v o l v i d o s , e n v o l v i d o s , reves-
c h a m a d o s bestas; mas os q u e c o n h e c e m essas v e r d a d e s ne-
t i d o s , d e s p o j a d o s , t r a n s f o r m a d o s ; as A l m a s n u n c a a b a n d o -
c e s s á r i a s s à o , e m s e n t i d o p r ó p r i o , os q u e s ã o c h a m a d o s
n a m totalmente seu c o r p o e n à o passam de u m c o r p o a o u t r o
animais racionais e cujas almas sc c o n h e c e p e l o n o m e de
i n t e i r a m e n t e n o v o . N ã o h á metempsicose, mas s i m meta-
espíritos. Essas almas s â o capazes de realizar Álos r e f l e x i -
morfose. O s a n i m a i s m u d a m , t o m a m e a b a n d o n a m s ó p a r -
v o s e de c o n s i d e r a r o q u e c h a m a m o s eu, S u b s t â n c i a , A l m a ,
tes. Isto o c o r r e p o u c o a p o u c o e s e g u n d o p e q u e n a s p o r -
Espírito, c m u m a p a l a v r a , as coisas e as v e r d a d e s i m a t e -
ç õ e s insensíveis, mas c o n t i n u a m e n t e , n a Nutrição; e de u m a
riais; e é isso q u e n o s t o r n a capazes de c i ê n c i a s o u c o n h e -
s ó v e z , de m a n e i r a s e n s í v e l , a i n d a q u e r a r a m e n t e , na c o n -
cimentos demonstrativos.
c e p ç ã o o u na m o r t e , q u a n d o a d q u i r e m o u p e r d e m m u i t o
6. As i n v e s t i g a ç õ e s d o s m o d e r n o s n o s e n s i n a r a m , c a d e u m a vez.
r a z ã o o c o n f i r m a , q u e aqueles seres v i v o s cujos ó r g ã o s co-

156
G W. Leibniz Discurso de metafísica e outros textos

?. Até a q u i só falamos c o m o s i m p l e s físicos; agora de- da de m a n e i r a g e r a l , n â o é o u t r a coisa q u e b o n d a d e c o n -


v e m o s elevar-nos à metafísica, v a l e n d o - n o s d o grande prin- f o r m e à s a b e d o r i a , é p r e c i s o q u e haja t a m b é m u m a justiça
cípio, p o u c o e m p r e g a d o u s u a l m e n t e , q u e a f i r m a q u e nada s o b e r a n a c m D e u s . A R a z à o , q u e fez c o m q u e as coisas exis-
se faz sem razão suficiente, isto é , q u e nada o c o r r e s e m q u e tissem p o r Ele, faz c o m q u e c o n t i n u e m d e p e n d e n d o d e l e
seja possível à q u e l e q u e c o n h e ç a s u f i c i e n t e m e n t e as coisas t a m b é m e n q u a n t o e x i s t e m e o p e r a m ; e elas r e c e b e m c o n t i -
d a r u n i a r a z ã o q u e baste p a r a d e t e r m i n a r p o r q u e é assim n u a m e n t e d e l e a q u i l o q u e faz c o m q u e p o s s u a m a l g u m a
e n â o de o u t r o m o d o . Posto este p r i n c í p i o , a p r i m e i r a per- p e r f e i ç ã o ; mas o q u e lhes resta d e i m p e r f e i ç ã o p r o v é m da
g u n t a q u e t e m o s d i r e i t o de f o r m u l a r será: por que existe al- l i m i t a ç ã o essencial e o r i g i n a l da c r i a t u r a .
guma coisa e não o nada? Pois o n a d a é mais s i m p l e s e 10. D a p e r f e i ç ã o s u p r e m a de D e u s segue-se q u e , ao p r o -
m a i s fácil d o q u e a l g u m a coisa. A d e m a i s , s u p o n d o - s e q u e d u z i r o u n i v e r s o , Ele e l e g e u o m e l h o r P l a n o p o s s í v e l , n o
d e v a m e x i s t i r coisas, é p r e c i s o q u e se possa d a r a r a z ã o d e q u a l existisse a m a i o r v a r i e d a d e p o s s í v e l associada à m a i o r
por que devem existir assim e n â o de o u t r o m o d o . o r d e m p o s s í v e l ; o t e r r e n o , o lugar, o t e m p o mais b e m dis-
8. O r a , n à o se p o d e r i a e n c o n t r a r esta r a z ã o s u f i c i e n t e postos, o m á x i m o e f e i t o p r o d u z i d o pelas vias mais s i m p l e s ;
d a e x i s t ê n c i a d o u n i v e r s o na s é r i e das coisas c o n t i n g e n t e s , e o m á x i m o de p o t ê n c i a , o m á x i m o de c o n h e c i m e n t o , o
isto é, na série d o s c o r p o s e d e suas r e p r e s e n t a ç õ e s nas A l - m á x i m o d e f e l i c i d a d e e de b o n d a d e q u e o u n i v e r s o p u d e s -
mas: p o r q u e a Matéria s e n d o e m si m e s m a i n d i f e r e n t e ao se a d m i t i r nas criaturas. Pois c o m o t o d o s os P o s s í v e i s p r e -
m o v i m e n t o e ao r e p o u s o , e a t a l o u q u a l m o v i m e n t o , n â o t e n d e m à e x i s t ê n c i a n o e n t e n d i m e n t o d e D e u s na p r o p o r -
p o d e r í a m o s e n c o n t r a r nela a r a z ã o d o m o v i m e n t o c m e n o s ç ã o de suas p e r f e i ç õ e s , o r e s u l t a d o d e todas essas p r e t e n -
a i n d a d e u m m o v i m e n t o d e t e r m i n a d o . F. a i n d a q u e o m o v i - s õ e s d e v e ser o M u n d o A t u a l o mais p e r f e i t o p o s s í v e l . E
m e n t o p r e s e n t e , q u e está na matéria, p r o v e n h a d o p r e c e - s e m isto n ã o seria possível dar a r a z ã o de p o r q u e as coisas
d e n t e , e este d e o u t r o p r e c e d e n t e , c o m isso n ã o c o n s e g u i - o c o r r e r a m antes assim d o q u e d e o u t r o m o d o .
ríamos avançar, ainda q u e r e t r o c e d ê s s e m o s i n d e f i n i d a m e n t e , 11. A S u p r e m a Sabedoria d e D e u s o fez e l e g e r s o b r e t u -
pois sempre permanece a mesma questão. Assim, é preciso d o as leis do movimento m e l h o r ajustadas c q u e m e l h o r
q u e a razão suficiente, q u e n â o necessita de o u t r a r a z ã o , c o n v ê m às r a z õ e s a b s t r a í a s o u Metafísicas. Nelas c o n s e r v a -
esteja f o r a desta s é r i e d e coisas c o n t i n g e n t e s e se e n c o n - se a m e s m a q u a n t i d a d e d a força t o t a l e absoluta o u d a a ç à o ;
tre e m u m a s u b s t â n c i a q u e seja sua causa, e q u e seja u m a mesma quantidade da força respectiva o u da reaçâo; a
Ser n e c e s s á r i o , q u e t e n h a e m si a R a z ã o d e sua e x i s t ê n c i a , mesma q u a n t i d a d e , p o r f i m , da força diretiva. Ademais, a
pois d e o u t r o m o d o n ã o t e r í a m o s ainda u m a r a z ã o s u f i c i e n - açào é sempre igual à r e a ç ã o e o efeito integral sempre
te na q u a l p u d é s s e m o s parar. E esta última r a z ã o das coisas e q u i v a l e à sua causa p l e n a . É s u r p r e e n d e n t e q u e , s o m e n t e
se c h a m a Deus. m e d i a n t e a c o n s i d e r a ç ã o das causas eficientes o u da m a t é -
9- Esta s u b s t â n c i a s i m p l e s p r i m i t i v a d e v e e n c e r r a r e m i - ria, n à o p o s s a m o s e x p l i c a r as leis d o m o v i m e n t o d e s c o b e r -
n e n t e m e n t e as p e r f e i ç õ e s c o n t i d a s nas s u b s t â n c i a s d e r i v a t i - tas e m n o s s o t e m p o , p a r t e das quais f o r a m descobertas p o r
vas, q u e s ã o seus efeitos. A s s i m , terá a p o t ê n c i a , o c o n h e c i - m i m m e s m o . Pois p e r c e b i q u e era n e c e s s á r i o r e c o r r e r às
m e n t o e a v o n t a d e p e r f e i t o s , isto é, terá o n i p o t e n c i a , o n i s - causas finais, e q u e estas leis n à o d e p e n d e m d o princípio
c í c n e i a e b o n d a d e soberanas. E c o m o a justiça, considera- da necessidade, c o m o a.s verdades L ó g i c a s , Aritméticas e

158 159
Discurso de metafísica e outros textos.

G e o m é t r i c a s , mas s i m d o princípio da conveniência, isto é, n ó s . O m e s m o o c o r r e c o m cada M ô n a d a . S ó D e u s t e m u m


da eleição realizada pela Sabedoria, E esta é u m a das p r o v a s c o n h e c i m e n t o d i s t i n t o d c t u d o , p o i s Ele é a f o n t e d e t u d o .
m a i s eficazes e mais s e n s í v e i s da e x i s t ê n c i a d e D e u s para D e l e se disse m u i t o a t i n a d a m e n t e q u e é c o m o c e n t r o e m
que p o d e m a p r o f u n d a r estas q u e s t õ e s . t o d a p a r t e , mas q u e sua c i r c u n f e r ê n c i a n à o está e m parte
12. Segue-se ainda da P e r f e i ç ã o d o A u t o r S u p r e m o q u e a l g u m a , p o i s t u d o l h e é i m e d i a t a m e n t e presente, s e m ne-
n à o só a o r d e m d o u n i v e r s o i n t e i r o é a mais p e r f e i t a p o s s í - n h u m d i s t a n c i a m e n t o deste c e n t r o .
v e l , c o m o t a m b é m q u e cada e s p e l h o v i v o q u e representa o 14. Q u a n t o à A l m a r a c i o n a l o u espírito., há n e l a a l g o
u n i v e r s o s e g u n d o seu p o n t o cie vista, isto é, cada Mônada, mais q u e nas M ô n a d a s o u m e s m o nas s i m p l e s A l m a s . N ã o
cacla c e n t r o substancial, d e v e ter suas p e r c e p ç õ e s e seus é s ó u m e s p e l h o d o u n i v e r s o das criaturas c o m o t a m b é m
apetites r e g u l a d o s cio m o d o mais c o m p a t í v e l p o s s í v e l c o m u m a i m a g e m d a d i v i n d a d e . O espírito n â o apenas t e m u m a
t o d o o resto. D o n d e se s e g u e a i n d a q u e as almas, q u e r d i - p e r c e p ç ã o das obras d e D e u s , c o m o a i n d a é capaz de p r o -
zer, as M ô n a d a s mais d o m i n a n t e s , o u a i n d a mais, os pró- d u z i r a l g o q u e se lhes assemelhe, a i n d a q u e e m p e q u e n a
p r i o s a n i m a i s , n ã o p o d e m d e i x a r d e d e s p e r t a r d o estado d e escala. Pois, para a l é m das m a r a v i l h a s d o s s o n h o s , e m q u e
d o r m ê n c i a a q u e a m o r t e o u a l g u m o u t r o a c i d e n t e possa inventamos sem esforço (mas também independente de
submetê-los. nossa v o n t a d e ) coisas cuja d e s c o b e r t a e x i g i r i a de n ó s . e m
estado de vigília, u m a l o n g a r e f l e x ã o , nossa A l m a é A r q u i -
13. Pois nas coisas t u d o esta r e g u l a d o de u m a vez para
t e t õ n i c a t a m b é m nas a ç õ e s voluntárias; e d e s c o b r i n d o as
s e m p r e c o m tanta o r d e m e c o r r e s p o n d ê n c i a q u a n t o p o s s í -
c i ê n c i a s s e g u n d o as q u a i s D e u s r e g u l o u as coisas (pondere,
v e l , já q u e a S u p r e m a Sabedoria e B o n d a d e n ã o p o d e m
mensura, numero e t c ) , ela i m i t a e m seu â m b i t o e e m seu
atuar s e n ã o c o m p e r f e i t a h a r m o n i a : o p r e s e n t e está p r e n h e
p e q u e n o m u n d o , n o q u a l l h e é p e r m i t i d o exercer-se, o q u e
d o h i t u r o ; o f u t u r o p o d e r i a ser l i d o n o passado, o longín-
D e u s faz n o g r a n d e .
q u o está e x p r e s s o n o p r ó x i m o . P o d e r í a m o s r e c o n h e c e r a
15. Por isso, t o d o s os Espíritos, seja d o s h o m e n s , seja
beleza d o u n i v e r s o e m cada a l m a se p u d é s s e m o s d e s d o -
dos g é n i o s , ao e n t r a r e m e m u m a e s p é c i e de Sociedade c o m
brar t o d a s as suas d o b r a s , q u e s ó se d e s e n v o l v e m sensivel-
Deus e m v i r t u d e da R a z ã o e das verdades eternas, s à o m e m -
m e n t e n o t e m p o . Mas, c o m o cada p e r c e p ç ã o d i s t i n t a da
b r o s d a C i d a d e de D e u s , q u e r dizer, cio Estado mais p e r f e i -
alma c o m p r e e n d e u m a i n f i n i d a d e de p e r c e p ç õ e s confusas
to, f o r m a d o e g o v e r n a d o p e l o m a i o r e o m e l h o r dos M o -
que e n v o l v e m t o d o o universo, e c o m o a própria alma só
narcas, n o q u a l n ã o há c r i m e s e m castigo, n e m boas a ç õ e s
c o n h e c e as coisas q u e p o d e p e r c e b e r na m e d i d a e m q u e
s e m r e c o m p e n s a p r o p o r c i o n a l e, f i n a l m e n t e , tanta v i r t u d e
p o s s u i p e r c e p ç õ e s distintas e acuradas destas coisas, t e n d o
e f e l i c i d a d e q u a n t o possível, E isto n à o m e d i a n t e u m a per-
p e t f e i ç â o na m e s m a m e d i d a e m q u e p o s s u i p e r c e p ç õ e s dis-
t u r b a ç ã o da natureza, c o m o se o q u e D e u s p r e p a r a p a r a as
tintas. Cada alma c o n h e c e o i n f i n i t o , c o n h e c e t u d o . mas c o n -
almas p e r t u r b a s s e as leis dos c o r p o s , mas pela o r d e m mes-
f u s a m e n t e ; c o m o q u a n d o p a s s e a n d o nas m a r g e n s d o m a r e
m a das coisas naturais, e m v i r t u d e da h a r m o n i a p r e e s t a b e -
o u v i n d o o g r a n d e b a r u l h o q u e p r o d u z , o u ç o os b a r u l h o s
lecida d e s d e s e m p r e , entre os Reinos d a Natureza e da G r a -
p a r t i c u l a r e s de cada o n d a d e q u e se c o m p õ e o b a r u l h o t o -
ça, entre D e u s c o m o A r q u i t e t o e Detis c o m o M o n a r c a , d e
tal, m a s s e m d i s c e r n i - l o s . Mas p e r c e p ç õ e s c o n f u s a s s ã o o m a n e i r a q u e a própria n a t u r e z a c o n d u z à g r a ç a , e a g r a ç a
r e s u l t a d o das i m p r e s s õ e s q u e t o d o o u n i v e r s o p r o d u z e m a p e r f e i ç o a a natureza valendo-se dela.

J60 161
Discurso de metafísica e outros textos
G. W. Leibniz

so A u t o r e Senhor, a q u a l p r o d u z u m a v e r d a d e i r a t r a n q u i l i -
16. A s s i m , a i n d a q u e a R a z à o n à o nos possa e n s i n a r o
d a d e de e s p i r i t o ; n ã o c o m o os e s t ó i c o s , q u e se t o r n a m p a -
d e t a l h e d o vasto f u t u r o , r e s e r v a d o à r e v e l a ç ã o , esta m e s m a
cientes pela força, mas p o r u m c o n t e n t a m e n t o p r e s e n t e
ra2ào nos assegura q u e as coisas c s t à o feitas d e m a n e i r a tal
q u e n o s assegura t a m b é m u m a f e l i c i d a d e f u t u r a . E, a l é m d o
q u e e x c e d e nossos desejos. P o s t o q u e D e u s é t a m b é m a
p r a z e r presente, nada p o d e r i a ser m a i s útil p a r a o f u t u r o .
mais perfeita e a mais feliz, e p o r t a n t o a mais a m á v e l das
Pois o a m o r de D e u s p r e e n c h e t a m b é m nossas e s p e r a n ç a s
substancias, c p o s t o q u e o amor puro e verdadeiro consiste
e n o s c o n d u z ao c a m i n h o d a s u p r e m a f e l i c i d a d e , já q u e , e m
n o estado q u e n o s faz sentir p r a z e r c o m as p e r f e i ç õ e s e
v i r t u d e da o r d e m p e r f e i t a estabelecida n o u n i v e r s o , t u d o
c o m a f e l i c i d a d e d a q u i l o q u e a m a m o s , esse A m o r n o s d e v e
está f e i t o d o m e l h o r m o d o p o s s í v e l , t a n t o p a r a o b e m geral
p r o p o r c i o n a r o m a i o r p r a z e r d e q u e sejamos capazes q u a n -
c o m o t a m b é m para o m a i o r b e m p a r t i c u l a r d a q u e l e s q u e es-
d o Deus for seu o b j e t o
tão persuadidos e contentes c o m o d i v i n o g o v e r n o , c o m o
17. E é fácil a m á - l o c o m o se d e v e . se o c o n h e c e r m o s
n ã o p o d e r i a d e i x a r d e ser e n t r e a q u e l e s q u e s a b e m a m a r a
c o m o a c a b o d e dizer. Pois. a i n d a q u e D e u s n à o seja s e n s í -
fonte de t o d o o b e m . É verdade que a suprema felicidade
v e l aos nossos s e n t i d o s e x t e r n o s , n ã o d e i x a d e ser m u i t o
( q u a l q u e r q u e seja a visão beatífica o u c o n h e c i m e n t o de Deus
a m á v e l e de p r o p o r c i o n a r u m p r a z e r m u i t o g r a n d e . V e m o s
q u e a a c o m p a n h e ) jamais p o d e r i a ser p l e n a , p o r q u e s e n d o
q u a n t o p r a z e r as h o n r a s p r o p o r c i o n a m aos h o m e n s , e m b o -
D e u s i n f i n i t o , n à o p o d e r i a ser c o n h e c i d o i n t e i r a m e n t e . A s -
ra n ã o consistam de q u a l i d a d e s d o s sentidos exteriores. Már-
s i m , nossa f e l i c i d a d e n u n c a consistirá, c n ã o d e v e consistir,
tires e fanáticos ( e m b o r a a a f e c ç ã o desses ú l t i m o s seja des-
n u m g o z o p l e n o n o q u a l nada mais h a v e r i a a desejar e q u e
r e g r a d a ) , m o s t r a m o p o d e r d o p r a z e r d o espírito. A l é m d i s -
tornaria estúpido nosso espírito, mas s i m n u m progresso p e r -
so, os p r ó p r i o s prazeres dos s e n t i d o s se r e d u z e m a p r a z e -
p é t u o para n o v o s prazeres e n o v a s p e r f e i ç õ e s .
res i n t e l e c t u a i s c o n f u s a m e n t e c o n h e c i d o s .
A Música n o s encanta, a i n d a q u e sua beleza s ó consis-
ta nas r e l a ç õ e s dos n ú m e r o s e c á l c u l o de q u e n ã o nos aper-
c e b e m o s , e q u e a alma n ã o d e i x a d e realizar, das batidas
o u v i b r a ç õ e s dos c o r p o s s o n o r o s q u e se p r o d u z e m s e g u n -
d o i n t e r v a l o s regulares. O s prazeres q u e a visão e n c o n t r a
nas p r o p o r ç õ e s s à o da m e s m a n a t u r e z a ; e os causados p e -
los d e m a i s sentidos v ê m a ser a l g o s e m e l h a n t e , a i n d a q u e
n ã o p o s s a m o s e x p l i c á - l o c o m tanta d i s t i n ç ã o .
18. Pode-se m e s m o d i z e r q u e desclc agora o A m o r de
D e u s nos faz e x p e r i m e n t a r a n t e c i p a d a m e n t e o g o s t o d a fe-
l i c i d a d e f u t u r a e, ainda q u e seja desinteressado, c o n s t i t u i
p o r si m e s m o n o s s o b e m m a i o r e n o s s o m a i o r interesse,
ainrla q u e n ã o o b u s c á s s e m o s e s ó c o n s i d e r á s s e m o s o pra-
zer q u e nos p r o p o r c i o n a , e n ã o a u t i l i d a d e q u e p r o d u z . Pois
i n f u n d e c m n ó s u m a p e r f e i t a c o n f i a n ç a na b o n d a d e de n o s -

162 163

Você também pode gostar