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FILHO MAGALHÃES BARREIRA GLAUCO

4a EDIÇÃO

HERMENÊUTICA E
UNIDADE AXIOLÓGICA
DA CONSTITUIÇÃO

Del Rey
EDITORA
GLAUCO BARREIRA
MAGALHÃES FILHO

Mestre em Direito Público na


Universidade Federal do Ceará – UFC;

Doutor em Sociologia na UFC;

Livre Docente em Filosofia do Direito


na UVA;

Professor de Hermenêutica Jurídica


nos cursos de graduação e
pós-graduação da UFC;

Professor de Direito Civil da UNIFOR;

Professor de Teoria do Direito


e Hermenêutica Filosófica e
Constitucional da Escola Superior
da Magistratura do Estado do
Ceará - ES EC;

Professor da Escola Superior do


Ministério Público - ESMP;

Coordenador do Centro de Estudos


de Direito Constitucional (CEDIC)
da UFC;

Autor de livros em várias áreas do


conhecimento, destacando-se na área
jurídica: Teoria dos Valores Jurídicos,
A Essência do Direito (2a ed.) e
Hermenêutica Jurídica Clássica (3a ed).
HERMENÊUTICA E UNIDADE
AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO
GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO
Mestre em Direito Público (UFC).
Doutor em Sociologia (UFC).
Livre Docente em Filosofia do Direito (UVA).
Professor de Hermenêutica Jurídica (UFC) e
Professor da UNIFOR.

HERMENÊUTICA E UNIDADE
AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO
4a edição

DelRey
EDITORA

Belo Horizonte
2011
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ARRYAGARRADERA DEDATOS PROGRAMS

SOUTMUTTAA.
Copyright © 2011 Editora Del Rey Ltda.
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a permissão, por escrito, da Editora.
Impresso no Brasil Printed in Brazil
EDITORA DEL REY LTDA.
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Magalhães Filho, Glauco Barreira


M188 Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição /
Glauco Barreira Magalhães Filho. - 4 ed.
- Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

224p

ISBN 978-85-384-0199-5

1. Hermenêutica constitucional. 2. Unidade axiológica


da Constituição. I. Título.
CDD: 340.326
CDU: 340.1

Bibliotecária responsável: Maria Aparecida Costa Duarte


CRB/6-1047

)
|
A meu pai, Glauco Barreira Magalhães,
mestre e exemplo no Direito,
no estudo da língua portuguesa e na
prudência peculiar aos que são justos.
Ao professor José de Albuquerque Rocha
(in memoriam), que ergueu a sua pena,
em luta incansável, por uma reforma ética
no Poder Judiciário.

V
“Por homem honrado entendo aqui aquele que, em to
das as ocasiões e em todos os seus atos, sem exceção,
dá testemunho de um comportamento integro, leal e
justo e que, por conseguinte, age sempre de boa-fé,
sem falsidade ou segundas intenções e interesses, in
diferente à lisonja e ao medo”

(Jakob von Moser, jurista do século XVIII)

vii
Agradeço
Ao professor Arnaldo Vasconcelos,
meu orientador e amigo, com quem tenho
aprendido desde o curso de bacharelado.
À professora Maria Magnólia Lima Guerra
(in memoriam), pelo grande estímulo
e apoio recebido durante as minhas
primeiras pesquisas em Direito.
ix
SUMÁRIO

PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO ........... XV

APRESENTAÇÃO .... .xxiii

PARTE I: PRELIMINARES

HERMENÊUTICO-METODOLÓGICOS

1. HERMENEUTICA FILOSÓFICA 3

1.1 Introdução 3

1.2 Schleiermacher.... 6

1.3 Dilthey..... 7

1.4 Heidegger. 10

1.5 Gadamer. 11

1.6 Contribuições da Hermenêutica Filosófica para o


Direito ..... 13

2. A EVOLUÇÃO DA HERMENÊUTICA JURÍDICA


EM DIREÇÃO A NOVA HERMENÊUTICA
17
CONSTITUCIONAL...
17
2.1 Introdução ..........

x1
2.2 Savigny e a Escola Histórica........ 19

2.3 Jurisprudência dos Conceitos.. 20

2.4 O pensamento de Ihering .... 21

2.5 A Teoria Pura do Direito (Kelsen).......... 22

2.6 Escola Tópica (Viehweg). 24

2.7 Jurisprudência das Valorações 26

3. A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E O


PROBLEMA METODOLOGICO 29

3.1 Introdução ..... 29

3.2 O Problema Metodológico ........ 33

3.3 Características do Método... 37

3.4 Princípios de Interpretação Especificamente


Constitucional 42

PARTE II: UNIDADE AXIOLÓGICA


DA CONSTITUIÇÃO

1. A UNIDADE ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO E A


UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO 51

2. A UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO ...... 59

3. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 73

3.1 Introdução 73

3.2 O Direito Público e o Direito Privado no Estado


Democrático de Direito ........ 74

3.3 A caracterização do Estado Democrático de Direito... 76


3.4 A importância do Direito Econômico no Estado
Democrático de Direito........ .85


4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.......... 93
4.1 Introdução 93

4.2 A Dignidade da Pessoa Humana e suas Bases Filosóficas... 96


4.3 A Dignidade da Pessoa Humana e a Idéia de Direito.... 109

5. DO DIREITO NATURAL AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS 117

6. O DIREITO DE PROPRIEDADE E A NATUREZA


JURÍDICA DA PROPRIEDADE 165

6.1 Introdução ....... 165

6.2 Situações Subjetivas...... 165

6.3 Direito e Função..... 166

6.4 A Propriedade.... 168

6.5 A Função Social da Propriedade. 173

7. OS FUNDAMENTOS DA UNIDADE AXIOLÓGICA


DA CONSTITUIÇÃO 177

7.1 Introdução. 177

7.2 O Fundamento Material da Unidade da Constituição ... 177


7.3 O Fundamento Formal da Unidade da Constituição..... 179

CONCLUSÃO 187

BIBLIOGRAFIA.......... 191

x111
PREFÁCIO À 1º EDIÇÃO

A CONSTITUIÇÃO SOB O SIGNO DA ANTROPO


LOGIA FISIOLÓGICA

Tenho para mim, como crença consolidada, que a expres


sividade das palavras de abertura de um texto é responsá
vel, em grande medida, pelo interesse que poderá despertar
no leitor. Por isso, diante das possibilidades quem me vêm à
mente, hesito sempre antes de lançar a primeira frase numa
folha em branco. Acredito que em seu devido momento,
aquele da conclusão da atividade conjunta do consciente e
do inconsciente, ela surgirá inteirinha em sua melhor forma.
No caso presente, em que atendo à convocação de meu
ex-aluno e atual colega de magistério, Glauco Barreira Ma
galhães Filho, parar escrever o prefácio deste seu excelente
ensaio de Hermenêutica e Direito Constitucional, vinha-me
invariavelmente à memória uma frase de D. Quixote a res
peito da autêntica nobreza, que não é outra senão a nobreza
do saber. Fui conferi-la em seu inteiro teor, como está posta
no Cap. XVI, do 2° volume, da obra prima de Cervantes. Eis
como D. Quixote fala a um seu interlocutor de ocasião, o
fidalgo D. Diogo de Miranda:
XV
“E não penseis, senhor, que chamo aqui vulgo somen
te à gente plebéia e humilde, que todo aquele que não
sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve ser
contado entre o vulgo.”

Lição de grandeza, que entendo perfeitamente transplantá


vel do nível das pessoas para o âmbito das coisas, tomando-se
por tais as disciplinas jurídicas. Domina a força da analogia.
Ter-se-ia, então, a paráfrase: todos aqueles que sabem muitos
direitos, quase todos os direitos, e todos eles muito bem, pou
co sabem contudo, se bem não sabem Direito Constitucional.
Porque o Direito Constitucional de um país é tão importante
e decisivo para o seu povo que deveria ser ensinado obrigato
riamente desde o jardim da infância, quando são transmitidas
aos pequeninos cidadãos aquelas singelas matrizes de cunho
ético-jurídico, que indelevelmente os acompanharão por toda
a vida. Nem que para isso fosse preciso transformar em ver
sos os artigos fundamentais da Constituição, assim como o fi
zeram alguns povos da Antiguidade com suas leis básicas, as
quais eram cantadas nas escolas para que mantivesse sempre
altivo e diligente o sentimento de cidadania.
Quão forte e respeitável não seria uma nação que visse
despontar para a maioridade política jovens formados nos
princípios humanistas e democráticos do Direito Constitucio
nal, todos irreversivelmente dominados pela ideologia da li
berdade e da igualdade entre as pessoas, ao mesmo tempo que
induvidosamente certos todos de que não existiria felicidade
se não compartilhada! Como seria comovente ouvir, trans
formados em cantos infantis, a declamação dos dispositivos
constitucionais que definem a República brasileira como Es
tado Democrático de Direito, fundado na soberania, na cida
dania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, e no pluralismo político. Assim
seria o primeiro canto, ou o canto do art. 1º da Constituição.

xvi
Esse seria um dos métodos pedagógicos mais aptos, sem
duvida, à formação dos sentimentos político e jurídico dos
cidadãos, tão necessários à proteção e ao aperfeiçoamento
da sociedade e do Estado democrático. Sem o despertar des
se duplo processo de conscientização, não possui nenhum
país nem Direito e nem justiça confiáveis, por mais e muitas
e belas leis que nele existam. Transformar leis em Direito
não é tarefa prioritária do Poder Judiciário, mas da socie
dade. Não existe absolutamente nada que possa substituir o
acatamento espontâneo do Direito, a natural realização de
sua plena eficácia. Só assim poder-se-ia garantir que o Di
reito aí existente seria sempre justo e legítimo.
Como se viu, a atenta leitura dos originais do livro de
Glauco Filho trouxe-me à lembrança a significativa passa
gem de D. Quixote sobre a natureza dos valores intelectuais
e. as duas coisas juntas, as reflexões que acabo de fixar nos
parágrafos anteriores. Se valer tirar disso algum significado,
não pode deixar de ser senão este: um texto começa a mos
trar suas virtudes a partir do momento em que é capaz de
fertilizar o pensamento do leitor.

II

A escolha do tema do livro de estréia de Glauco Filho


- Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição - já
merecia, só por esse motivo, ser saudada com todo entusias
mo. Com certeza, não é um texto que se leia com indiferen
ça, mercê de sua firmeza na retomada de temas metafísicos
e de sua coragem em reutilizar categorias da especulação
teológica. Isso reveste tanto maior significado, quando se
tem em conta que o pensamento positivista, nada obstante
o reducionismo desnaturalizante que definitivamente o in
ferioriza, ainda consegue impressionar de modo satisfatório

xvii
boa parte dos jovens saídos de nossas universidades. Ocorre
que, justamente do fato negativo de operar a redução da rea
lidade a uma só de suas dimensões o mundo quotidiano
dos fenômenos -, o positivismo consegue transmitir a boa
impressão de segurança e certeza na atividade humana, va
lores tão apreciados na quadra juvenil.
Com esses títulos em distinção, insere-se a obra de Glau
co Filho na vigorosa corrente dos jovens constitucionalistas
brasileiros que, a partir do texto da Carta Magna de 1988,
têm buscado a formação de uma teoria constitucional no ní
vel dos melhores existentes nos países de tradição democrá
tica, sem deixar de ter sempre em consideração a realidade
sociocultural brasileira. Vê-se manifestar, outra vez, a ten
dência já identificada no prefacio que escrevi, em 1995, para
o valioso livro de Marcio Diniz, Controle de Constituciona
lidade e Teoria da Recepção, publicado nesse mesmo ano
por Malheiros Editores.

III

Consoante se antevê pelo próprio titulo, constitui-se o


ensaio de duas longas partes, intituladas, a primeira, Preli
minares Hermenêutico-Metodológicos, e a segunda, Unida
de Axiológica da Constituição. No desenvolvimento de am
bas sobressaem, como constantes doutrinárias necessárias
e firmemente amadurecidas, as notações ideológicas da de
mocracia e do humanismo. Esta a face do trabalho em que o
antigo professor vê com indisfarçável satisfação o desenho,
nitidamente traçado do seu projeto de tridimensionalidade
axiológica do Direito. A outra, de cunho teológico, expressa
a formação religiosa do autor, corajosamente assumida nes
ta nossa época de desprezo e de subalternização dos valores
espirituais. Tudo com o objetivo maior de demonstrar que a
xvu
unidade da Constituição, ao contrário do que predicou com
invulgar sucesso de audiência o purismo formalista de Hans
Kelsen, só pode ser conscientemente postulada com base em
premissas axiológicas de índole transcendente. A menos que
se esteja disposto a pagar alto pelo menosprezo da função
teleológica do Direito, cuja superior importância levou Ru
dolf Ihering a dedicar-lhe os dois volumes de conclusão de
sua grandiosa obra jurídica.

IV

Na definição de qual seja a formula de humanismo que


elegeu, Glauco Filho revela sua própria concepção de mundo
e vida, toda ela firmemente embasada em princípios da Dou
trina Cristã. E essa postura constitui, desde sempre, o traço
decisivo que o aparta do pensamento constitucional moderno,
marcadamente de cunho não confessional e laico. A fim de
que possamos apreciá-la em sua exata dimensão, coloco aqui
a formula em suas mesmas palavras, que são estas:
“... o humanismo que aqui se defende é o teocêntrico,
ainda que isso possa parecer um paradoxo. Com os re
formadores do século XVI, entendemos que só é possí
vel o conhecimento do homem através do conhecimento
de Deus, daí por que não separarmos de forma absoluta
a antropologia filosófica da teologia.” (Texto extraído
da Apresentação do Autor).

A coragem a que antes me referi é esta: a de enfrentar a


polêmica e revelha questão do lugar e da função de Deus no
sistema do conhecimento humano, especialmente em seus
níveis filosóficos e cientifico. Diante dela, Glauco Filho não
hesita: “Só é possível o conhecimento do homem através do
conhecimento de Deus.” Como para os santos teólogos da
Antiguidade e da Idade Média, Agostino e Tomás de Aquino
Xix
tomados por paradigmas, Deus é, a um só tempo, medida
e instrumento do processo de conhecer, luz que ilumina e
revela o desconhecido, trazendo-o à superfície e tornando-o
transparente para entendimento do homem.
A teoria, contudo, não é de expressão original cristã, mas
pagã, tendo sido formulada no contexto da filosófica laica,
quando a teologia ainda nem se constituíra. Na Atenas do
século IV a. C., Platão a formulou em termos incisivos. Em
resposta direta a Protágoras, que proclamara ser o homem a
medida de todas as coisas, Platão, em As Leis, contesta-lhe:
“A medida de todas as coisas é Deus”. Nada de substancial
do que viria a ser a fórmula agostiniano-platônica muda na
visão dos reformadores protestantes, especialmente Lutero e
Calvino, que constituem a fonte imediata de Glauco Filho. In
compatibilidade, mesmo, existiu na teoria política do teocen
trismo, que pretendeu fundar o poder absoluto dos reis, como
proclamou Bousset,um dos seus mais genuínos representan
tes, nas próprias “palavras tiradas das sagradas escrituras.”
A dialeticidade do tema - e da própria obra divina, con
soante advertiu Agostinho - comporta a observação de que
não constituiria nenhuma heresia levantar a tese oposta, a
saber, de que “só é possível o conhecimento de Deus atra
vés do conhecimento do homem”. Em boa verdade, só por
intermédio do finito, que é o homem, poder-se-ia atingir o
infinito, que é Deus. Nada tão radical, por exemplo, como as
posições gnosiológicas de Mestre Eckhart, Tomás de Aqui
no e Nicolau de Cusa, segundo as quais de Deus só podemos
ter um conhecimento negativo, sendo-nos vedado saber tudo
a respeito do que ele é.
Observe-se, por oportuno, que essas idéias não são proprie
dade exclusiva da Teologia, nem se mantêm confinadas em seu
especial e soberano território. Por incrível que possa parecer,
pertencem, com igual legitimidade, ao âmbito da ciência mo
XX
derna, que nos deu, na pessoa do matemático Alfred N. Whi
tehead, “o grande sistematizador da doutrina sobre Deus no
século XX”. Quem assim o garante é o pensador católico PE.
Josef Bochenski. Com efeito, desde o Deus verax de Descartes,
a ciência nada de melhor encontrou em seu particular domínio
que pudesse funcionar como garantidor da possibilidade e da
certeza do conhecimento. Neste setor especial da fundamenta
ção de suas descobertas é que todos os filósofos da imanência
têm cometido seus pecados capitais.
Para nosso Autor, esse movimento especulativo adquire
sentido a partir da identidade, que considera não absoluta,
entre antropologia filosófica e a teologia. Tal assertiva é ape
nas corolário de sua já anunciada premissa de que só o co
nhecimento de Deus é capaz de possibilitar o conhecimento
do homem. Uma vez mais, sua posição enquadra-se na pers
pectiva da modernidade, caracterizada pelo ideário formado
em torno da revolução copernicana de Ludwing Feuerbach,
consistente na transformação da teologia em antropologia
filosófica. A matriz que inspirou essa concepção é a mesma
que alimenta o pluralismo teológico de nossos dias, caracte
rizado por vertentes de índole libertária e democrática.
É com base nessa premissa gnosiológica, que natural
mente assume também a condição de modelo jurídico, que
Glauco Filho expõe toda sua compreensão de Direito Cons
titucional. Como se verá pela leitura do texto, a pertinência
do modelo parece garantir o sucesso do empreendimento.
Fortaleza, 15 de setembro de 2000
Arnaldo Vasconcelos

xxi
+
APRESENTAÇÃO

“A mais imperiosa aspiração da razão humana con


siste em poder fazer derivar tudo dum princípio único”
(Kant)

O trabalho que ora se apresenta trata da unidade axiológi


ca da Constituição. O tema torna-se tanto mais importante
na medida em que consideramos o fato de referir à norma
fundamental do ordenamento jurídico, definidora da ideo
logia político-jurídica dominante, assim como dos valores
básicos e do telos do sistema normativo.
Durante muito tempo, a ciência do Direito ocupou-se,
sobretudo, do Direito Civil, dando pouca atenção ao Direito
Constitucional. Hoje, porém, a Constituição torna-se o centro
de atenções dos juristas, porquanto se reconheceu a normativi
dade e aplicabilidade imediata de seus preceitos, assim como
a sua crescente importância na integração de uma sociedade
cada vez mais pluralista.
O sistema jurídico tem sido dividido em sistema exter
no ou sistema de conceitos e sistema interno ou, como nós
chamaríamos atualmente, sistema de valores. A unidade do
sistema externo pode mascarar as contradições e incompa
1
Apud HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. 5° ed., Coimbra: Armé
nio Amado, Editor, Sucessor, 1980, p. 338

xxiii
tibilidades existentes no sistema interno, daí porque a real
unidade do ordenamento jurídico é a unidade interior, uma
unidade axiológica e teleológica.
A Constituição, através das fórmulas ideológicas, dos
valores básicos e dos direitos fundamentais, é o ponto de
erupção do sistema interno. Sua proximidade da sociedade
faz com que os seus preceitos apareçam como lavas no mo
mento de maior calor. Essas lavas vão esfriando e solidifi
cando na medida em que descem da cratera do vulcão, da
Constituição, para os vales que são os demais ramos do Di
reito Positivo. A discussão de temas constitucionais é mais
viva e mais compreensível para a sociedade, a qual poderá
manifestar-se, de modo a contribuir, ainda que indireta
mente, para a orientação dos outros ramos do Direito Posi
tivo, isto é, participando do dimensionamento dos valores
que vão coordenar a elaboração de preceitos jurídicos.
A unidade da Constituição é uma exigência racional e
pragmática. É exigência racional, porque a razão decompõe
(análise) para, em seguida, compor (síntese) através da in
teligência. É exigência pragmática, porque a Constituição se
ria inaplicável se não encontrasse sua harmonização prática.
A nossa perspectiva da unidade da Constituição é hu
manista, ou seja, está ligada à dignidade da pessoa humana.
Procuramos temperar o pragmatismo da nova hermenêutica
constitucional com os limites deontológicos impostos pelo
valor da pessoa humana. A nossa visão do homem, portanto,
não poderia deixar de ter uma influência considerável na
maneira de entendê-la ou interpretá-la. Não há ciência sem
pressupostos, nem ideologicamente neutra. Assim como os
matemáticos partem de axiomas, os demais cientistas par
tem de paradigmas, os hermenêutas dizem que não é pos
sível a interpretação sem uma prévia compreensão. Cremos
que o que mais influencia o cientista do Direito é a sua com
xxiv
preensão da natureza humana, pois toda definição genérica
de Direito faz referência ao homem ou a sua liberdade. A
natureza humana é a fonte última do Direito.

Aqui expomos uma visão cristã da natureza humana,


sem que o calendário nos intimide, pois a atualidade ou an
tiguidade de um pensamento não são critérios para que se
possa definir o que seja certo ou errado, verdadeiro ou falso,
válido ou inválido, razoável ou não razoável. Assim, o hu
manismo que aqui se defende é teocêntrico?, ainda que isso

pareça um paradoxo. Com os reformadores do século XVI,


entendemos que só é possível o conhecimento do homem
através do conhecimento de Deus, daí porque não separa
mos de forma absoluta a filosofia da teologia'.
Este trabalho está dividido em duas partes. A Parte I, in
titulada Preliminares Hermenêutico-Metodológicos, começa
com um breve resumo dos pensamentos desenvolvidos no
campo da hermenêutica filosófica, seguido das suas con
tribuições para a hermenêutica constitucional.
O Capítulo 2 da Parte I trata das principais escolas de
hermenêutica jurídica, estabelecendo uma linha histórica, as

2
O filósofo Jacques Maritain afirma que "é preciso que a criatura seja
verdadeiramente respeitada em seu relacionamento com Deus, porque
dependente inteiramente dele: humanismo, mas humanismo teocêntrico,
humanismo integral, humanismo da encarnação ”(MARITAIN, Jacques.
Por um humanismo Cristão. São Paulo : Paulus, 1999, p. 87)
3
O ilustre professor Arnaldo Vasconcelos, com muita lucidez intelectual,
ao tratar do Direito Natural, expressou-se : "...deve-se concluir-se que
o pensamento teológico a autêntica ciência do Medievo e na Renas
cença – tem tanto legitimidade teórica para a formular suas versões do
Direito Natural, como qualquer outro de cunho filosófico ou cientifico.
Mesmo porque, tentar negar a dimensão espiritual do homem, na qual
se insere sua religiosidade, parece coisa tão absurda como procurar
fazê-lo relativamente a qualquer dos outros elementos integrantes de
sua natureza" (VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, humanismo e de
mocracia. Malheiros : São Paulo, 1999, p. 36)

XXV
mudanças de paradigmas e de foco das atenções do Direito
Privado para o Direito Constitucional.

O Capítulo 3 enfrenta o problema de um método apro


priado para a interpretação da Constituição, definindo as
suas características e princípios, estando entre os últimos, o
princípio da unidade da Constituição.
A Parte II, intitulada Unidade Axiológica da Constituição,
nos dois primeiros capítulos, demonstra a diferença entre aque
la unidade do político com o jurídico, possibilitada pela Consti
tuição, e a unidade interna dos preceitos constitucionais.
No Capítulo 3, vislumbra-se, na fórmula do Estado De
mocrático de Direito, o critério político-ideológico para a
unidade estrutural e axiológica da Constituição, enquanto
no sétimo capítulo enfatizaremos a dignidade da pessoa hu
mana como valor básico do Estado Democrático de Direito
e como referencial ético da unidade entre direitos fundamen
tais. Também faremos a distinção entre dignidade humana e
dignidade da pessoa humana, tendo a primeira como pres
suposição para a segunda.
No Capítulo 5, acompanha-se a passagem histórica da
noção de Direito Natural para a de direitos fundamentais da
pessoa humana, descobrindo-se os momentos de conquis
ta do reconhecimento de direitos através das suas diversas
gerações, bem como o aparecimento da noção de garantias
institucionais. No Capítulo 6, há uma defesa da continuida
de do direito de propriedade entre os direitos fundamentais,
apesar dos novos contornos impostos ao instituto da pro
priedade pelo Estado Social.
Finalmente, estabelecemos os dois fundamentos da unidade
axiológica da Constituição: A dignidade da pessoa humana e o
princípio da proporcionalidade, o determinante e o operante. A
seguir, virá a conclusão, sintetizando os pontos mais relevantes.
xxvi
PARTE I: PRELIMINARES

HERMENÊUTICO-METODOLÓGICOS
1 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

1.1 INTRODUÇÃO

A hermenêutica surgiu, primeiramente, na teologia, ten


do seus desenvolvimentos mais aprimorados na teologia
cristã, de onde migrou para a filosofia e para o Direito.
O termo "hermenêutica”, de origem grega, é possivel
mente oriundo de “Hermes”, o deus que, na mitologia grega,
foi considerado o inventor da linguagem e da escrita, o que
já mostra as ligações iniciais entre hermenêutica e teologia,
no caso, teologia (ou mitologia) pagã. Hermes seria, então,
deus mensageiro ou mensageiro dos deuses, ou seja, aquele
que transmitiria aos mortais as mensagens oriundas dos ha
bitantes do Olimpo. Essa figura mitológica transmitiria uma
mensagem proveniente de um plano superior e transcenden
te para um plano inferior, tornando-a compreensível. Assim,
compreender é esclarecer o que é obscuro, daí porque a tra
dução de um texto também é uma forma de compreendê-lo.
A palavra "interpretação" é de origem latina e quer dizer
“entre entranhas”. Isso se deve à prática religiosa dos feiti
ceiros e advinhos, os quais introduziam suas mãos entre as
entranhas de um animal morto a fim de conhecer o destino
das pessoas e obter respostas para o problema humanos. Esse
procedimento estava em sintonia com a concepção cosmoló
gica e determinista que se tinha do mundo. Assim, a crença
4 GLAUCO Barreira MAGALHÃES Filho

no destino “tornava” os acontecimentos futuros inevitáveis,


e a visão unificada do mundo, inclusive da natureza e da
história, “ligava” os fenômenos naturais e aos fenômenos
humanos. Hoje em dia, nós ainda usamos a palavra “expor”
para designar a apresentação esclarecedora de um texto, no
entanto, “expor” ou “pôr fora”, para os antigos, correspondia
ao ato de retirar as entranhas de um animal sacrificado.

Os sacerdotes supremos do paganismo e os feiticeiros


do passado falavam em linguagem extremamente obscura,
o que tornava necessária a interpretação de seus pronun
ciamentos levada a cabo pelos sacerdotes menores ou au
xiliares. Quando o conselho não era a resposta certa para
o problema, atribuia-se o fracasso à interpretação e não a
manifestação do sumo sacerdote ou feiticeiro, e, desta for
ma, se mantinha a sacralidade e a crença na infalibilidade do
representante maior daquela hierarquia mítica.
Inicialmente, as interpretações religiosas eram casuís
ticas e desprovidas de critérios técnicos, o que levava a in
distinção entre hermenêutica (teoria científica) e interpre
tação (ato cognitivo), mas isso começou a mudar com o
aparecimento de livros sagrados. Entre os judeus, existiam
os doutores da lei que eram estudiosos e intérpretes do Anti
go Testamento. Os cristãos, todavia, viram no Senhor Jesus
Cristo e nos apóstolos os verdadeiros intérpretes do Antigo
Testamento, daí porque o Novo Testamento tanto é uma re
velação que precisa ser interpretada como uma interpretação
do Antigo Testamento.
Entre os cristãos, inicialmente, existiam duas grandes
escolas de hermenêutica bíblica: a Escola de Alexandria e a
Escola de Antioquia. A primeira, tinha Clemente e Orígenes
como seus grandes corifeus. Estes procuravam conciliar a
mensagem cristã com a filosofia grega e, para a consumação
de tal objetivo, alegorizavam os relatos históricos contidos
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 5

na Escritura. Enquanto isso, os seguidores da Escola de An


tioquia, prestigiando a compreensão mais óbvia dos textos,
favoreciam uma interpretação mais literal. Os seguidores da
Escola de Antioquia acreditavam que na Bíblia existiam ale
gorias, no entanto, distinguiam a interpretação das Escritu
ras alegóricas da interpretação alegórica da Escritura.
No século IV, destacou-se Santo Agostinho como intérprete
da Escritura, principalmente, através de sua obra intitulada Da
doutrina cristã. Agostinho prestigiava o elemento histórico e a
coerência interna da Escritura, adotando tanto a interpretação
alegórica como a interpretação literal, dependendo o uso de
uma ou de outra das exigências estruturais do texto.
Durante a Idade Média, Tomás de Aquino procurou in
terpretar a Bíblia de acordo com o método e o pensamento
de Aristóteles, enquanto a Igreja Católica Romana lembrava
que a interpretação da Bíblia deveria adequar-se à tradição
oral guardada pelos bispos e às decisões "infalíveis” dos
concílios e do papado.
No século XVI, surge a Reforma Protestante. Os protes
tantes diziam que a Bíblia era a única regra de fé e de prática
do cristão, sendo também infalível, inerrante (verbalmente
inspirada) e auto-suficiente. Assim, a Bíblia não deveria ser
interpretada através de fontes que lhe fossem exteriores, mas
ela seria “intérprete de si mesma”, pois se deveria “comparar
as coisas espirituais com as espirituais”l. Isso não significaria
desprezo pelo contexto histórico em que a Bíblia foi produ
zida, mas apenas presumiria que os dados históricos necessá
rios à compreensão da Escritura estariam nela mencionados,
pois se o Santo Livro fora produzido por propósito e ação
divina, seria de esperar-se que Aquele que tudo faz com per
feição e completude não deixaria de nele inserir o que fosse

1
Primeira Epístola do Apóstolo S. Paulo aos Coríntios 2: 13
6 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES Filho

necessário à elucidação do seu sentido. Os protestantes tam


bém reconheciam que cada autor sacro escreveu segundo o
seu estilo literário, mas a assistência e iluminação do Espírito
Santo não permitiu que eles escolhessem palavras impróprias
para traduzir o sentido da revelação.
No século XIX, surge através de Schleiermacher o que
os protestantes ortodoxos chamaram de “apostasia” e na his
tória ficou conhecido como “protestantismo liberal”. Aqui
se teve a porta pela qual a hermenêutica ingressou nas espe
culações filosoficas e nas ciências culturais.

1.2 SCHLEIERMACHER

Schleiermacher propôs a utilização de um método históri


co-crítico para interpretação da Escritura. Para o teólogo libe
ral, a Bíblia era um documento histórico-literário como outros
existentes, uma interpretação em palavras humanas, cultural
mente condicionadas, do sentimento universal de dependência
absoluta da divindade.
Schleiermacher distinguia, no processo de apreensão de
sentido de um texto, a interpretação gramatical da interpretação
técnica. A primeira, referia-se a uma compreensão do texto em
sua literalidade, em seus signos lingüísticos. Determinaria os
limites dentro dos quais se procederia a interpretação técnica,
a qual visaria à descoberta da genialidade do autor. Enquanto a
interpretação gramatical revelaria o que era próprio do texto, a
técnica demonstraria o que era próprio do autor.
A interpretação técnica se dividiria em compreensão di
vinatória e compreensão comparativa. A compreensão divi
natória teria natureza advinhatória e consistiria no sentido
atribuído pelo intérprete ao texto depois de ter entrado em
uma empatia viva ou parentesco espiritual com o autor ou,
ainda, depois de o intérprete ter-se colocado no lugar do au
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 7

tor. Percebemos aqui um intenso psicologismo no método


proposto. Isso repercutiu posteriormente no Direito através
da ênfase exagerada dada à vontade do legislador como re
ferencial necessário à interpretação correta da lei (subjeti
vismo), ensino praticamente já superado pelo objetivismo de
caráter evolutivo e sociológico, o qual procura o sentido da
norma jurídica na vontade nela objetivada e que acompanha
a dinamicidade dos fatos sociais.
A compreensão comparativa, segunda espécie de inter
pretação técnica, diferentemente da interpretação divinatória,
que dependeria de uma sensibilidade subjetiva do intérprete,
buscaria atingir o sentido intencional do autor no texto atra
vés de elementos objetivos. O intérprete procuraria comparar
diversos escritos do autor, bem como diversos elementos gra
maticais (teríamos uma retorno à interpretação gramatical?) e
históricos. Desta forma, a compreensão divinatória seria uma
pré-compreensão para a compreensão comparativa.
Na medida em que Schleiermacher considerou a Bíblia
como um simples texto de natureza histórico-literária, ele esta
beleceu um método que serviria para a interpretação não ape
nas da Escritura, mas também para a elucidação do sentido de
todos os textos que possuíssem essa natureza. Deste modo, ele
introduziu o método hermenêutico na História e na Filologia,
possibilitando o reconhecimento da cientificidade desses dois
ramos do saber humano, o que veio a ser finalmente firmado
com a divisão das ciências proposta por Dilthey.

1.3 DILTHEY

Dilthey foi biógrafo de Schleiermacher e aquele que levou


a hermenêutica para o campo das especulações filosóficas mais
profundas, introduzindo-a na epistemologia e tornando-a reco
nhecida como teoria científica da interpretação.
Glauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Durante muito tempo não se reconheceu da história a


cientificidade em face da afirmação aristotélica de que só
existia ciência do geral e nunca do particular (fatos históri
cos). Os requisitos que qualificavam o saber científico eram
basicamente três: objeto determinado, método adequado ao
objeto e um mínimo de rigor terminológico. O progresso das
ciências naturais, principalmente da física, que desde de Ga
lileu começara a ser estudada em termos quantificativos, fez
com que a lógica e a matemática, antes reconhecidas como
ciências, passassem a ser consideradas como meros instru
mentos metodológicos das ciências da natureza. Dava-se pri
mordial importância às ciências empíricas.
Neste contexto em que se priorizava as ciências da natu
reza, Dilthey inaugurará uma nova categoria de ciência. Ba
seado na distinção kantiana entre o mundo do ser e o mundo
do dever ser, Dilthey classificou as ciências em ciências da
natureza e ciências do espírito. O raciocínio de Dilthey o le
vou a inferir uma conclusão das premissas estabelecidas por
Schleiermacher. Se a história e a Filologia que já tinham um
objeto determinado, passaram a ter um método a ele adequa
do, no caso, o método hermenêutico, nada as impediria de
serem consideradas ciências, pois estavam satisfeitos, então,
os requisitos do saber científico.
Dilthey pretendeu libertar-se do psicologismo que in
fluenciava o pensamento de seu antecessor, no entanto, não
conseguiu êxito total. Segundo ele, um texto deveria ser es
tudado pelo contexto, sendo o autor instrumento do espírito
de sua época. No entanto, a unidade da vida (conhecida por
um mergulho nas forças sentimentais de uma época) seria
conhecida pelas objetivações do espírito nas diversas pro
duções culturais. Assim, a parte (objetivações do espírito)
seria compreendida pelo todo (unidade da vida) e o todo
pela parte em uma circularidade hermenêutica. É com base
1

HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 9

em especulações semelhantes que se defende a interpretação


sistemática na ciência jurídica, por meio da qual se enten
dem as normas pelo ordenamento jurídico (princípios ge
rais) e o ordenamento jurídico pelas normas.
Buscando uma objetivação maior da hermenêutica e
uma libertação de certo psicologismo ainda presente na con
cepção de Dilthey, Rickert preferiu chamar as ciências do
espírito de ciências culturais.
Para Dilthey, o ato cognitivo próprio das ciências naturais
é a explicação, enquanto o ato intelectivo das ciências do es
pírito é a compreensão. A relação existente entre compreensão
e interpretação seria a de gênero e espécie. Assim, enquanto
a compreensão se referiria a qualquer objeto cultural, a inter
pretação seria definida como a compreensão de textos.
Explicar seria relacionar causa e efeito no plano da ne
cessidade, aparecendo o cientista como mero observador,
enquanto compreender seria apreender o modo do espírito
projetar-se em um objeto, ou, ainda, usando categorias de
Husserl, seria apreender o sentido imposto pelo homem a um
substrato. Logo, poderíamos concluir que existe um mundo
dado (natureza) e um mundo construído (cultura) eviden
ciando que somos criaturas limitadas pelo mundo dado, ao
mesmo tempo que, trazendo semelhanças com o Criador,
podemos construir outro mundo, o mundo da cultura.
A Hermenêutica proposta por Schleiermacher e Dilthey
é metodológica, ou seja, estabelece uma teoria normativa
da interpretação, disciplinando o processo interpretativo em
busca da apreensão do sentido correto de uma obra cultural.
A hermenêutica seria, então, objeto de consideração episte
mológica. Sob essa ótica, foi que surgiu a hermenêutica ju
rídica clássica, possibilitando desenvolvimentos metodoló
gicos na interpretação das normas jurídicas, principalmente
nas de Direito Privado, mediante técnicas próprias.
10 Glauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Contrapondo-se à perspectiva acima descrita, levanta


ram-se Heidegger e Gadamer, os quais substituíram a her
menêutica metodológica pela hermenêutica existencial, ten
do o segundo polemizado com Emílio Betti, o qual seguia a
tradição de Schleiermacher e Dilthey e tinha a hermenêutica
jurídica como paradigmática.

1.4 HEIDEGGER

Heidegger trouxe uma nova concepção de hermenêutica.


Para esse filósofo, a hermenêutica não estabeleceria um mé
todo ou uma teoria normativa da compreensão, pois as produ
ções culturais não tinham um sentido objetivo válido e igual
para todos, mas, antes, seriam instrumentos para manifestação
do SER. Cada intérprete, segundo o seu mundo existencial,
percebia uma abertura diferente do SER. O SER seria indefiní
vel e subjacente a tudo, encontrando sua revelação dinâmica
na existência humana, na qual o seu projeto, sempre em for
mulação e execução, se realizava. Assim, a cultura seria uma
manifestação do SER NO MUNDO através da mediação da
existência humana, de modo que compreendê-la era mais do
que a nossa auto-compreensão individual, pois era compre
ensão, ainda que parcial, do próprio SER em seu movimento
histórico. Como a compreensão é uma atividade na qual tam
bém se manifesta novamente o SER, poderíamos dizer que
por ela o SER se auto-compreende assim como se auto-revela.
Desta forma, Heidegger reduzia tudo ao SER, extinguindo a
dualidade sujeito-objeto, daí porque o pensador não categori
zava seu pensamento como subjetivista ou objetivista.
Segundo Heidegger, a hermenêutica seria filosófica e
não científica, ontológica e não epistemológica, existencial
e não metodológica. Procuraria a essência da compreensão
(auto-revelação do SER) e não a normatização de proces
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 11

so compreensivo. O estudo da compreensão confundiria-se


com o estudo da existência, na medida em que a essa permi
tiria o desvelamento do SER.

Heidegger deu desenvolvimento filosófico à idéia de cir


culo hermenêutico, a qual estabelece que partimos de uma
pré-compreensão para chegar a uma compreensão mais
aprimorada (interpretação), pois se partissemos do “vazio"
não chegaríamos a nada, pois não haveria de onde se extrair
desdobramentos. A pré-compreensão é atemática, enquanto
a interpretação é tematizada . Segundo Emerich Coreth, te
ríamos inicialmente um conhecimento intelectivo (sintético)
do todo e, em seguida, um conhecimento racional (analítico)
através da divisão em partes, procedendo-se à nova forma
ção do todo, ensejando a repetição do processo em direção
ao infinito, pois, conforme se infere das lições do professor
Raimundo Bezerra Falcão em seu livro “Hermenêutica”, a
cultura é projeção da liberdade humana, a qual, sendo potên
cia de infinitas possibilidades, justifica para suas manifesta
ções a inesgotabilidade de sentido.
Heidegger ensinava que a pré-compreensão é condiciona
da por nosso horizonte. O horizonte seria a dimensão externa
ou o limite de nosso mundo antropológico ou existencial, dis
tinto do mundo cosmológico ou da natureza. O horizonte se
ria a totalidade de conexões com o objeto a ser compreendido,
totalidade pré-apreendida e pré-compreendida.

1.5 GADAMER

Na linha de pensamento inaugurada por Heidegger, pros


seguiu Gadamer, defendendo uma hermenêutica existencial, a
qual seria o próprio objeto da filosofia. Para Gadamer, através
do método, não chegava o intérprete a verdade, pois o método
já definiria, arbitrariamente, o ponto que se queria alcançar.
12 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Gadamer via a compreensão como o resultado de um diá


logo entre o intérprete e o texto. O referido autor cria que o
texto respondia às perguntas feitas pelo intérprete, ao mesmo
tempo que nele suscitava as perguntas, em um verdadeiro cír
culo hermenêutico de caráter dialogal. Gadamer ensinou que
a compreensão do texto estava condicionada por PRÉ-CON
CEITOS e PRÉ-JUÍZOS. De forma proposital, ele utilizava
essas duas expressões cujo sentido atual é pejorativo.
No início da Idade Moderna, os filósofos racionalistas,
em repúdio à Idade Média, acreditavam que a verdade das
coisas só poderia ser apreendida mediante o sepultamento
de todas as tradições, pois só através disso o homem poderia
pensar de forma totalmente racional, isento de superstições,
temores e paixões. Foi a partir de então que as expressões
pré-conceito e pré-juizo passaram a ter conotação pejorativa.
Pré-conceito passou a significar discriminação e pré-juízo,
dano. As mencionadas palavras, todavia, indicam apenas a
existência de conceitos e juízos pressupostos em nossas in
terpretações, o que não poderia deixar de ocorrer, tendo em
vista a historicidade do homem. Gadamer reconhece o valor
da tradição decorrente da herança histórica e não da autori
dade, daí porque o filósofo fala em fusão de horizontes
A fusão de horizontes seria a fusão do horizonte do intér
prete com o do texto, já que, diferentemente de Schleierma
cher, Gadamer não dava importância à perspectiva psicoló
gica do autor. O horizonte do texto seria a riqueza de sentido
incorporada por sucessivas interpretações que lhe foram da
das no curso da história. Depois de sucessivas fusões de ho
rizontes, tanto o horizonte do intérprete como o do texto ad
quiririam ampliação maior, de maneira tal que um reencontro
do intérprete com o texto daria margem a novas perguntas e,
consequentemente, novas respostas. A fusão de horizontes
poderia também ser vista como a fusão dos horizontes dos
interprétes em complementaridade dialógica.
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 13

Para Gadamer, o circulo hermenêutico teria a forma de uma


espiral, porquanto o sentido seria inesgotável e a compreensão
sempre sujeita a ampliação e aprofundamento. Além disso, ele
identificava interpretação e aplicação, pois compreender o tex
to seria fazer a sua aplicação ao nosso contexto existencial.
Lembramos que Gadamer travou intenso debate com Betti,
o qual não se filiava à hermenêutica existencial de Heidegger,
mas sim, à metodológica, sendo herdeiro da tradição de Sch
leiermacher e Dilthey. Betti acreditava que, pelo fato de toda
obra escrita servir-se de formas representativas socialmente
objetivadas, era possível um sentido historicamente válido.
No caso das normas jurídicas uma atualização aplicativa que
não violasse o propósito do texto poderia ser admitida.
Paul Ricoeur, defensor de uma hermenêutica fenomeno
lógica, procurou conciliar as várias correntes. Para o refe
rido hemeneuta, o processo interpretativo comporta tanto a
explicação como a compreensão como atos cognitivos.
Através de um momento inicial de distanciamento do texto,
o intérprete procura explicar o texto, atingindo mediante redu
ção fenomenológica, o eidos (idéia) ou estrutura do texto. Aqui
teríamos o sentido objetivo do texto, aquele que se mantém
em todas as variações, o qual permite o diálogo e a comuni
cação acerca do texto.
Mediante a aproximação, teríamos uma compreensão do
texto ou a sua apropriação existencial. Aqui teríamos a ines
gotabilidade do sentido.

1.6 CONTRIBUIÇÕES DA HERMENÊUTICA


FILOSÓFICA PARA O DIREITO

A hermenêutica jurídica clássica, desenvolvida, inicial


mente, por Savigny e voltada para o Direito Privado, foi in
fluenciada por Schleiermacher e Dilthey. Assim, tínhamos
14 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

uma hermenêutica metodológica expressa em diversas téc


nicas de interpretação. Além da interpretação gramatical
e da interpretação lógica, exigências da linguagem e da
razão, foram mencionadas a interpretação sistemática e a
histórica (em sentido próprio e em sentido filológico). A
interpretação sistemática inspirava-se na concepção de cir
cularidade hermenêutica presente em Dilthey, o qual via
as produções do espírito na unidade da vida e conhecia a
unidade da vida nas produções do espírito, compreendendo
o todo pela parte e a parte pelo todo. A interpretação histó
rica encontrava apoio no método histórico-crítico de Sch
leiermacher. Lembramos aqui que, posteriormente, Ihering
explicitou a interpretação teleológica, e as escolas socioló
gicas se reportaram à interpretação sociológica, sendo que
tanto um como as outras levaram em conta a evolução de
sentido da norma na sociedade.

A Nova Hermenêutica Constitucional, por sua vez, tem


sido grandemente influenciada pela hermenêutica alinhada
ao pensamento de Heidegger e Gadamer.
As regras infraconstitucionais se reportam a fatos espe
cíficos e entre elas não se admite antinomia, aplicando-se
uma lógica da exclusão, daí porque se diz que temos um
sistema mais fechado, apesar de as múltiplas interpretações
possíveis favorecerem a uma certa abertura. A Constituição,
todavia, sob o ponto de vista axiológico, constitui-se, pri
mordialmente, em um sistema aberto de princípios, os quais
não têm previsão de fato de incidência e são aplicados em
ponderação ou sopesamento, seguindo-se então a lógica
dialética. Apesar de se aplicarem aos princípios as técnicas
clássicas de interpretação, tendo em vista o seu aspecto lin
güístico, que limita possíveis arbitrariedades do intérprete,
elas se mostram insuficientes para determinar uma solução
decisiva no caso concreto.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 15

Os princípios constitucionais enunciam valores que de


vem receber atribuição de peso correspondente à intensi
dade com que são vivenciados pela sociedade esclarecida
e não manipulada. Desta forma, a interpretação terá uma
forte conotação existencial. Como, todavia, os valores que
interessam ao Direito são valores intersubjetivos, há a pres
suposição de que o juiz, membro da sociedade, terá uma
pré-compreensão dos valores semelhante àquela que terá o
restante da sociedade. Percebemos, então, que a Constitui
ção é o ponto de encontro entre o Direito e a Sociedade,
entre o juiz e o cidadão, sendo mediante o Estatuto Supremo
que o sistema jurídico se abre para o social.
A Hermenêutica Constitucional aproxima a interpreta
ção da aplicação. Alguns, como Müller, seguindo Gadamer,
identificam interpretação e aplicação do Direito, enquanto
outros, como Karl Larenz, afirmam haver entre as duas ati
vidades apenas uma interação dialética, ou seja, elas se dis
tinguem, mas se exigem mutuamente. O que é certo é que
um valor constitucional, visto no plano abstrato, seria abso
luto, mas na realidade concreta, a colisão entre eles relati
viza-os, sendo um limitado em face do outro, de modo que
a interpretação final de um principio terá lugar no momento
de sua aplicação.
Uma outra forma de explicar a situação dos princípios
é dizer que podemos interpretá-los no plano abstrato, mas,
somente no caso concreto, identificamos o seu âmbito de
aplicação.

BIBLIOGRAFIA

CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêuti


ca. Trad. Carlos Lopes de Matos. São Paulo: E.P.U., 1973
16 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

DREHER, Luís H. O método teológico de Friedrich Schleier


macher. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1995
PACHECO AMARAL, Maria Nazaré de Camargo. O perío
do clássico da hermenêutica filosófica na Alemanha. São
Paulo: Edusp, 1994
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad. Maria Luísa Ri
beiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1989
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo:
Malheiros Editores, 1997
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. 4" ed. Trad.
Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Trad. Artur Mo
rão. Lisboa: Edições 70, 1987
A EVOLUÇÃO DA HERMENEUTICA
2 JURÍDICA EM DIREÇÃO A NOVA
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

2.1 INTRODUÇÃO

A filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII contri


buiu grandemente para a formação dos ideais que marcaram
a Revolução Francesa, tendo predominado em toda a Idade
Moderna. Considerava-se a Idade Média como sendo a Ida
de das Trevas, na qual se relevou a força da autoridade e a
superstição, em detrimento da razão. Em face disso, fez-se
a proposta da construção de um novo mundo, um mundo de
luzes, assentado sobre bases racionais e, portanto, autôno
mas, de modo que o homem não se submetesse a nenhum
poder heterônomo. A Revolução da burguesia na França
pretendia realizar essa aspiração.
Depois de consolidadas as conquistas revolucionárias na
França, deu-se a feitura de um Código Civil sob a influên
cia de Napoleão Bonaparte. A crença de que o Código era
a projeção escrita e completa do sistema de regras jurídicas
racionais do Direito Natural fez com que se atribuísse ao
Código as características antes imputadas ao Direito Natural
Racional. Assim, a lei codificada era considerada completa
e seu sentido correto seria o literal. Nascia a Teoria da Ple
nitude da Lei e o chamado fetchismo legal , limitando-se a
interpretação das normas ao plano gramatical. Foi por esta
época que a expressão legal passou a designar uma valora
ção positiva, presente em qualquer coisa.
18 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Entendia-se que a Separação dos Poderes deveria ser ab


soluta, de tal modo que o juiz era visto como mero aplicador
da lei, não podendo, por isso, interpretá-la senão gramatical
mente, para não substituir a vontade do legislador pela sua e,
consequentemente, para não intrometer-se na esfera de com
petência do outro Poder. Deste modo, não havia controle da
constitucionalidade das leis pelo Poder Jurisdicional, como
passou a ocorrer nos EUA, e a sentença do juiz ainda estava
sujeita a invalidação através do exame da Corte de Cassação,
composta por membros do Parlamento, a qual fiscalizava as
decisões dos juizes a fim de que não houvesse intromissão
do Poder Judiciário na esfera do Poder Legislativo.
No caso de o texto da norma ser obscuro, o juiz poderia
utilizar-se de uma interpretação lógica em sentido estrito,
na qual fixaria o sentido e alcance da lei pela perquirição da
vontade do legislador.
A Escola de Exegese era quem fazia todas as afirmações
acima mencionadas. O sistema interpretativo por ela pro
posto era designado de sistema dogmático. Não podemos
dizer que essa Escola tenha introduzido a Hermenêutica no
Direito, pois limitava exageradamente as possibilidades do
intérprete, já que a apreciação do sentido gramatical é uma
pressuposição indeclinável da compreensão de qualquer
texto escrito.
O processo de industrialização veio a invalidar as premis
sas da Escola de Exegese, porquanto alterou sensivelmente
as relações sócio-econômicas, contribuindo para evidenciar
o descompasso entre o Código e a nova realidade. Isso moti
vou o surgimento da Escola Histórico-Evolutiva (Saleilles),
que favorecia uma interpretação atualizadora, bem como da
Escola da Livre Investigação Científica do Direito (Gény) e
das diversas Escolas Sociológicas, como a de León Duguit.
Gény era favorável à integração das lacunas da lei através
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 19

da analogia ou do costume e, não sendo possível por estas


vias, através da Livre Investigação Científica do Direito, en
quanto Duguit enfatizava a solidariedade social (orgânica),
decorrente da divisão do trabalho, como elemento direcio
nador da interpretação, a fim de que o resultado contribuísse
para a integração social.

2.2 SAVIGNY E A ESCOLA HISTÓRICA

A Escola Histórica na Alemanha teve Gustavo Hugo


como seu precursor e Savigny como seu grande corifeu.
A obra que celebrizou Savigny na Alemanha intitulava-se
Da vocação do nosso século para a Legislação e Jurispru
dência. Neste trabalho, Savigny contestava as afirmações de
Thibaut, o qual, seguindo os princípios da Escola de Exegese,
acreditava que a Codificação do Direito contribuiria para a
unificação da Alemanha.
Savigny se opunha a idéia de um Direito Natural Univer
sal, sendo favorável a um Direito para cada nação, prove
niente do espírito do povo. O costume era prestigiado como
manifestação imediata do espírito do povo, tendo em vista
sua evolução espontânea. Para Savigny, a codificação pe
trificaria o Direito, e qualquer legislação existente só seria
válida se estivesse de acordo com o Costume.
Para a Escola Histórica, o jurista seria o representante do
espírito do povo, pois o intuiria nas instituições, descobrindo,
assim, o direito e enunciando-o de forma erudita.
Savigny admitia as interpretações gramatical, lógica,
sistemática e histórica. Sua pretensão era introduzir o méto
do hermenêutico na dogmática jurídica, de forma a elevar o
Direito à categoria de ciência, no caso, ciência do espírito. A
História seria o paradigma da Ciência do Direito.
20 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

O método da Escola Histórica, segundo Savigny, era filo


sófico (sistêmico) e histórico em sentido próprio e em sentido
filológico.

2.3 JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS

Puchta, discípulo de Savigny, conduziu a Escola Histórica a


uma visão tão formalista do Direito quanto a da Escola de Exe
gese (França) e a da Jurisprudência Analítica de John Austin
(Inglaterra), dando origem a Jurisprudência dos Conceitos.
Para Puchta, o cientista do Direito deveria extrair, por
abstração, conceitos gerais de normas jurídicas gerais. Em
seguida, deveria extrair conceitos específicos dos conceitos
gerais mediante um processo dedutivo ou lógico formal de
genealogia de conceitos. Assim, estaria formada uma pirâ
mide de conceitos, mediante a qual o aplicador do Direito
poderia ter o entendimento da norma jurídica no momento
de sua aplicação, bem como teria o instrumental para proce
der a integração de lacunas da lei.
O positivismo formal da Jurisprudência dos Conceitos le
vou à substituição da Filosofia do Direito por uma Teoria Ge
ral do Direito Positivo, sendo que a primeira disciplina renas
ceu, como tal, no pós-guerra através de Stammler. O papel da
Teoria Geral do Direito seria o de estabelecer conceitos oriun
dos do Direito Positivo, organizando-os sistematicamente.
A Jurisprudência dos Conceitos, todavia, se viu em con
tradição quando afirmou que o conceito mais geral da pirâ
mide seria o próprio conceito de Direito. Ora, o conceito de
Direito não pode ser oriundo do Direito Positivo, pois nós já
sabemos que o Direito Positivo é Direito pelo fato de enqua
drar-se no correspondente conceito. Todo cientista conhece
aprioristicamente o conceito do objeto de sua ciência, pois,
se assim não fosse, não teria como dirigir-se a ele.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 21

Portanto, a Jurisprudência dos Conceitos teve que admitir a

necessidade da ontologia, ou seja, da parte da filosofia que es


tuda o ser e a essência dos entes, como pressuposto científico.
Costuma-se também criticar Puchta pelo fato de ele não
ter extraído os conceitos específicos dos conceitos gerais, mas
meramente de haver classificado os conceitos dogmaticamente
aceitos de forma a aparentar a inferência de um pelo outro.

2.4 O PENSAMENTO DE IHERING

Ihering é filho da Escola Histórica através da Jurisprudên


cia dos Conceitos. Seu pensamento passou por três fases.
Na primeira fase, Ihering equiparou o Direito às ciências
naturais, tomando a Biologia como paradigma, e contrapôs-se,
desta forma, a Savigny, o qual classificou o Direito entre
as ciências culturais. Ihering também disse que os Institu
tos Jurídicos seriam corpos jurídicos extraídos de normas
jurídicas, enquanto Savigny tinha dito que o jurista extraía
normas jurídicas das instituições. O método aqui proposto
foi o método histórico-natural.

Na segunda fase, chamada de pragmático-utilitária, Ihering


critica o seu próprio pensamento inicial, a Escola Histórica e
a Jurisprudência dos Conceitos. Para Ihering, a sociedade é o
palco de uma luta de interesses e as normas jurídicas protegem
aqueles interesses que conseguiram se impor socialmente. Os
direitos subjetivos são interesses juridicamente protegidos,
os quais continuam sendo amparados pela ordem jurídica, na
medida em que os membros da sociedade lutam por eles, não
apenas em razão do interesse econômico, mas também em
razão da autoconservação moral da personalidade e, princi
palmente, devido à consciência do dever social. O Direito é
resultado de luta e não da evolução espontânea do costume.
O instrumento pelo qual alguém faz valer o seu direito é a
22 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

ação judicial, razão pela qual Ihering entende o Direito como


realização prática, sendo a coação (uso da força estatal para
garantir uma decisão) o seu elemento essencial. É nessa fase
que Ihering escreve A luta pelo Direito.
Na última fase, quando Ihering publica O fim do Direito,
ele desenvolve a interpretação teleológica, a partir da ênfase
da sociedade, a qual aparece como tônica da interpretação, as
sim como a adequação entre meios e fins, como sua técnica.
O pensamento de Ihering influenciou Philipp Heck, o fun
dador da Jurisprudência dos Interesses. Esse último dizia que
o juiz deveria ater-se não à literalidade da lei, mas ao juízo
de ponderação de interesses nela pressuposto, de modo que a
sentença seria vista como um instrumento de harmonização
de interesses, uma diagonal em um paralelogramo de forças.

2.5 A TEORIA PURA DO DIREITO (KELSEN)

Kelsen classificou o Direito entre as ciências formais,


como a matemática. A Teoria Kelseniana do Direito tinha a
intenção de excluir da ciência jurídica as apreciações filo
sóficas referentes a valores e as sociológicas referentes aos
fatos. Desta forma, o Direito se distinguiria inteiramente das
outras ciências, adquirindo autonomia máxima. O preço se
ria a neutralidade.
Em oposição aos normativismos concretos que levam
em conta a tridimensionalidade do Direito (fato, valor e nor
ma), o mestre de Viena propôs um normativismo abstrato,
considerando a norma jurídica esvaziada de seu conteúdo,
ou seja, apenas na sua estrutura lógica. De acordo com Cossio,
a Teoria Pura do Direito não passava de lógica jurídica.
Kelsen, seguindo Merkel, afirmava que o ordenamento
jurídico tinha estrutura piramidal. As normas superiores fun
damentavam as inferiores sob o aspecto dinâmico-formal,
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 23

sendo que as normas eram mais gerais e abstratas quando se


aproximavam do topo, e mais específicas e concretas quan
do se aproximavam da base da Pirâmide. A norma mais ge
ral e abstrata já não teria nenhum conteúdo e seria a norma
hipotética fundamental. Ela teria existência lógico-jurídica e
não positivo-jurídica, sendo, na verdade, um suposto gnoseo
lógico ou uma pressuposição necessária para possibilitar o
conhecimento científico do ordenamento jurídico.
Em razão de Kelsen não considerar o Direito como ciên
cia do espírito, ele não propôs nenhum método hermenêutico.
Ora, se o método de interpretação proposto pelo jusnaturalista
era aquele que conformava a norma com o Direito Natural,
o da Escola Histórica era o que harmonizava a norma com o
espírito do povo e o das Escolas Sociológicas era aquele que
fixava o sentido da norma pelos anseios sociais, então, era de
se esperar que Kelsen não estabelecesse nenhum método de
interpretação, porquanto não levava em conta nenhum crité
rio extrajurídico para iluminar a interpretação.
Kelsen via a sentença como ato volitivo ou ato de decisão
e não como ato intelectivo ou ato de conhecimento. O juiz
não conheceria o sentido correto da norma jurídica através
de um método, mas escolheria, em um ato de vontade, uma
interpretação dentre as várias cabíveis na moldura normati
va ou na literalidade da norma. Essa escolha seria feita pelo
julgador em consonância com os seus valores pessoais.
Do mesmo modo que a concepção purista do Direito de
Kelsen, a substituição de um método racional de interpreta
ção pela intuição na Escola do Direito Livre, e o decisionis
mo de Schmitt constituíram instrumentos teóricos nas mãos
do nazismo.

Em reação ao cientificismo exagerado que atingiu o cume


no Direito através da Teoria Pura, tivemos, principalmente
no período pós-guerra, um ressurgimento do jusnaturalismo
24 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

com a concepção de Direito Natural de conteúdo variável


(Stammler) e a de Direito Natural de conteúdo progressivo
(Renard), assim como com o jusnaturalismo principiológico
de Del Vecchio. Na filosofia, presenciou-se um despertar da
axiologia através do pensamento de Scheller e Hartmann.

2.6 ESCOLA TÓPICA (VIEHWEG)

A Escola Tópica surgiu, em nosso século, como uma rea


ção à concepção de sistema fechado prevalecente no positi
vismo jurídico.
A "tópica" é uma forma lógico-retórica de argumentação
que objetiva a validação de soluções para problemas. Aristó
teles afirmou que, no processo judicial, a “tópica” era o cami
nho pelo qual o juiz formava a convicção de sua decisão. O
filósofo grego dividia o conhecimento em ciência e prudência.
Enquanto a ciência se ocuparia da natureza ou, como hoje fala
mos, do mundo do ser, a prudência se voltaria para as questões
éticas ou de conduta (mundo do dever ser). No que respeita à
ciência, o sábio se valeria de raciocínios fechados através de
silogismos, partindo de premissas pressupostas como verda
deiras. A prudência procuraria definir as condutas devidas em
situações específicas mediante o confronto de argumentações.
Cada argumentação se assentaria sobre um topos (ponto de
partida retórico). A argumentação mais persuasiva determina
ria a decisão acerca da conduta, fundamentando-a.
Segundo Viehweg, fundador da Escola Tópica, o estilo
tópico de raciocinar ganhou concretude através da jurispru
dência romana. A justiça pretoriana baseada na equidade se
valia da tópica. Percebemos ainda a tópica em Cícero, Vico
e nos pós-glosadores.
A Tópica se opõe ao Método Sistêmico. Enquanto o últi
mo é fechado e dedutivo, a tópica é favorável à abertura e à
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 25

dialética. No método sistêmico, o ponto de partida é o siste


ma, sendo um problema levado em conta na medida em que
o sistema o vislumbra como tal. Na Tópica, o problema é o
ponto de partida, ou seja, ele tem que ser solucionado e, no
caso, pela proposta respaldada por melhor fundamentação.
A Tópica é uma técnica de enfocar problemas para so
lucioná-los. O julgador deverá examinar um problema em
toda a sua complexidade e, em seguida, eleger critérios
para solucioná-lo, ou seja, padrões de avaliação baseados
em fragmentos de justiça material. Nesta hora, o intérprete
judicial, pelo confronto de argumentações, dentro e fora do
processo, terá a oportunidade de ser convencido por uma
delas, a mais persuasiva, que o levará a uma decisão com
maior grau de legitimidade.
Viehweg via a Tópica como uma técnica e não como um
método. A ciência do Direito teria um método insuficiente
para solucionar todos os problemas, no caso, o método sis
têmico. Quando a falha ou omissão do sistema se revelava,
como no caso de antinomias ou lacunas, havia o recurso à
Tópica, sendo que o intérprete procurava dar a entender que
tinha encontrado a solução segundo o sistema. Os seguido
res mais radicais da Tópica afirmavam que o sistema era
um simples topos, ou seja, dele adviria uma dentre as várias
propostas de solução do problema.
Em face da abertura do sistema jurídico, principalmen
te da Constituição, já tem sido possível a conciliação da Tó
pica com o Sistema, de maneira tal que já é possível falar em
método tópico ou, na linguagem de Hartmann, em método
aporético.
Convém lembrar que pela Tópica, à semelhança de Kel
sen, entende-se a sentença como ato volitivo, o que não deixa,
porém, a decisão judicial entregue as valorações pessoais do
intérprete, antes, vincula-a às valorações sociais, porquanto
26 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

o juiz deve atentar para a argumentação que melhor o persua


de enquanto membro da sociedade. A sentença amparada
por melhor fundamentação é aquela que se mostra apta para
alcançar maior grau de legitimidade.

2.7 JURISPRUDÊNCIA DAS VALORAÇÕES

A Jurisprudência das Valorações não é propriamente


uma Escola, antes, representa uma tendência de diversas es
colas, ou ainda, da ciência do Direito. É fruto de um desen
volvimento da Jurisprudência dos Interesses.
Segundo a Jurisprudência das Valorações, o Direito deve
ser estudado como realidade tridimensional composta de fato,
valor e norma, sendo o valor o elemento de maior relevância,
pois o fato é o suporte dos valores e a norma é um juízo de
valor, valor explícito no principio e implícito na regra.
O pensamento teleológico de Ihering influenciou a Ju
risprudência dos valorações de dois modos. Em primeiro
lugar, pelo fato de os valores serem vistos como interesses
que prevaleceram e se universalizaram em uma dada socieda
de. Em segundo lugar, porque o valor é um fim (desejado) e,
consequentemente, comanda a interpretação teleológica. Ob
servamos, todavia, que preferimos o entendimento cristão de
caráter agostiniano, segundo o qual o valor não é o desejado,
mas sim, o desejável, ou seja, o que é digno de ser desejado,
pois se o valor fosse simplesmente algo que se almeja estaria
no mundo do ser e não no mundo do dever ser. Assim, existe
o mundo da existência, no qual as coisas podem ser desejadas,
e o mundo dos valores (ou do desejável), das coisas que não
são, mais valem. Embora os valores se realizem nos entes que
existem, não podem ser confundidos com eles. Somente em
Deus identificam-se o existir e o valer. Apesar de nossa posi
ção, entretanto, reconhecemos que, no Direito Positivo, em
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 27

face do elemento intersubjetivo que determina a eficácia de


suas normas, só podemos considerar os valores que a sociedade
percebe, a partir de sua sensibilidade espiritual.
A Jurisprudência das Valorações volta-se, principalmente,
para a interpretação constitucional, pois os princípios do Es
tatuto Supremo são valores enunciados de forma racional,
ou, ainda, prescrições de valor, as quais irão ter irradiação
por todo o ordenamento jurídico, orientando-o e vivifican
do-o, funcionando como verdadeira arkhé ou substância bá
sica da ordem jurídica. A Jurisprudência das Valorações só
leva em consideração os valores consagrados em princípios
e positivados, em geral, na Constituição. Como esses prin
cípios colidem uns com os outros no caso concreto, se faz
necessária uma ponderação axiológica para se encontrar a
solução para um dado problema. Tendo em vista que a refe
rida ponderação pode ser feita de modo a prestigiar um ou
outro princípio, teremos aqui a operação da tópica mediante
o confronto de argumentações a procura da solução ótima.
Assim, os princípios têm natureza tópico-sistemática, pois
estão no sistema, mas são apenas referenciais para solução
de problemas. A estrutura aberta do sistema constitucional
torna-o propício para adoção do método tópico.
Percebemos que a Jurisprudência das Valorações permite
que reunamos contribuições de diversas Escolas precedentes.
No plano hermenêutico, convém salientar que houve uma
aproximação entre interpretação e aplicação do Direito, pois
um princípio completa o seu sentido no caso concreto, oca
sião de sua aplicação. A aplicação do Direito já não é mais
vista como subsunção de fatos (premissa menor) à norma
(premissa maior) como no modelo silogístico, mas sim, como
coordenação dos fatos à norma. Não partimos mais da norma
como premissa maior, mas do fato, e a coordenação entre fato
e norma se faz pela mediação de um valor num processo de ir
e vir dialético do fato à norma e da norma ao fato.
28 Glauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

No plano epistemológico, percebe-se que há uma negação


do mito da neutralidade da ciência. A ideologia é pressuposto
da ciência, no entanto, a ideologia deve ser estabelecida in
tersubjetivamente ou intercomunicativamente (Habermas) e
não coercitivamente. Deste modo, presume-se a democracia
como uma super-ideologia..
É na Jurisprudência das Valorações que a Nova Hermenêuti
ca Constitucional vai encontrar o seu paradigma metodológico.

BIBLIOGRAFIA

PAUPÉRIO, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Es


tado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Biblioteca
Jurídica Freitas Bastos, 1980
DA COSTA, Dilvanir José. Curso de Hermenêutica Jurídica.
Belo Horizonte: Del Rey, 1997
DE ANDRADE. José Cristiano. O problema dos métodos
da interpretação jurídica. São Paulo: RT, 1992
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2a ed. Trad.
José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência
do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1994
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. 2a ed.
São Paulo: Atlas, 1980
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Trad. João
Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado – Editor, Su
cessor, 1979
ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teo
ria Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 1994
WARRAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: A
epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sér
gio Antônio Fabris Editor, 1995
A NOVA HERMENEUTICA
3 CONSTITUCIONAL E O
PROBLEMA METODOLÓGICO

3.1 INTRODUÇÃO

Ao consolidarem-se as conquistas da Revolução France


sa, sob a inspiração da filosofia racionalista, deu-se a elabora
ção do Código Civil como forma de positivação do “Direito
Racional”, levando os teóricos a abandonarem as especula
ções jusnaturalistas para, a partir daí, enaltecerem as virtu
des da lei, incluindo a sua completude. Assim, pode-se dizer
que as teses jusnaturalistas foram abandonadas para que não
dessem ocasião a uma contra-revolução, enquanto o Direito
foi reduzido a lei cujo sentido literal deveria predominar, em
face da separação dos três poderes. A teoria de Montesquieu,
interpretada de forma mais radical do que na formulação de
seu autor, levava à afirmação de que a compreensão da lei
baseada em amplos critérios extra normativos, implicariam
numa intrusão do poder judiciário no poder legislativo, pois o
juiz estaria substituindo a vontade do legislador pela sua.
Sob a influência desse pensamento, nasceu, na França, a
Escola de Exegese, enfatizando a teoria da plenitude da lei
e um método lógico-formal de aplicação do Direito. A apli
cação do Direito era vista como mera subsunção de fatos à
norma, perfazendo um silogismo judicial, no qual a norma
era a premissa maior, o fato, a premissa menor e a senten
ça, a conclusão. Posteriormente, surgiu a Jurisprudência dos
Conceitos (Puchta) e o Pandectismo (Windscheid) na Ale
30 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

manha, bem como a Escola Analítica Inglesa (Austin), to


das adotando métodos lógico-formais e, assim, se revelando
semelhantes à Escola de Exegese.
Debaixo das orientações teóricas mencionadas, deu-se o
fortalecimento do liberalismo nascente, bem como da noção
de Estado de Direito, entendido como aquele no qual há o
governo de leis.
No século XX, ocorreu não somente a passagem do Es
tado Liberal para o Estado Social no plano econômico, mas
também, sob o aspecto jurídico, houve a passagem do Velho
Estado de Direito para o Novo Estado de Direito.
O Velho Estado de Direito ou Estado Legalista foi carac
terizado pelo culto à lei, dando origem ao princípio da legali
dade, assentado numa ideologia segundo a qual os preceitos
legais sempre protegeriam as liberdades e os direitos funda
mentais da pessoa humana (fetchismo legal). Desta forma, a
existência da lei confundia-se com a proteção ao direito. A
liberdade, então, era vista apenas sob o aspecto negativo, ou
seja, como liberdade de fazer o que a lei não proibia (campo
da licitude), enquanto a igualdade era considerada tão so
mente de modo formal, se realizando na predicação da gene
ralidade e da abstratividade como características da lei.
O Novo Estado de Direito ou Estado Democrático de
Direito ou, ainda, Estado Constitucionalista, se distingue
pelo culto à Constituição, com ênfase no princípio da cons
titucionalidade e no reconhecimento da normatividade dos
princípios que consagram direitos fundamentais, sendo es
tes preceitos supremos vistos não como meros conselhos ao
legislador ou simples declarações políticas de direitos, mas,
antes, como normas vinculantes.
A desmitificação da lei – até então entendida como de
tentora de virtude intrínseca - deu-se após o aparecimento
de ditaduras amparadas pela legalidade. Neste momento,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 31

percebeu-se a necessidade de proteção aos direitos, até


mesmo frente às leis. Assim, a lei pode, às vezes, corrom
per; a constituição, todavia, se apresenta como garantia do
poder autorizado ou legítimo exercitado em proveito da
pessoa humana.
Nessa nova perspectiva jurídica, a igualdade não é vista
sob o ângulo meramente formal, mas também é considerada
sob o aspecto material, ou seja, como direito à prestação
positiva do Estado, que deve tratar desigualmente os desi
guais, em busca de um maior nivelamento econômico e so
cial, procurando proporcionar aos homens uma existência
digna, pressuposto do exercício pleno da liberdade.
Com o reconhecimento da supremacia normativa da
Constituição no Estado Moderno, os direitos fundamentais
são considerados como limite não apenas da atividade ad
ministrativa, mas também, da legiferante. Não há, portanto,
nenhuma dúvida mais sobre a juridicidade e aptidão de efi
cácia dos princípios estabelecidos no Estatuto Básico da So
ciedade, e esse reposicionamento dos direitos fundamentais
tornou necessário o surgimento de uma nova hermenêutica,
porquanto as normas que os definem, possuem estrutura di
ferente daquelas que têm as normas infraconstitucionais.
Alguns estudiosos têm perguntado se os novos desenvol
vimentos metodológicos na ciência do Direito aconteceram
devido à nova apreciação da Constituição ou se a presen
te compreensão dos princípios constitucionais decorrem da
evolução da hermenêutica. Em primeiro lugar, convém lem
brar que o renascimento do jusnaturalismo e o recente surgi
mento da filosofia axiológica oriunda das obras de Scheller e
Hartmann, enfatizando a objetividade dos valores, contribuí
ram muito para uma nova visão da posição e importância da
Constituição na ordem jurídica, porquanto ela se manifesta
como sintetizadora das opções valorativas básicas da socie
32 Glauco Barreira MAGALHÃES FILHO

dade, o que chamou a atenção dos juristas para a necessidade


de uma nova metodologia jurídica, voltada para valores. Por
outro lado, a noção da hermenêutica filosófica, de caráter
existencial (Heidegger, Gadamer), acerca de pré-compreen
são contribuiu para o fortalecimento da idéia de supremacia
constitucional, em razão de, na Constituição, termos uma
pré-compreensão do ordenamento jurídico, pois os valores
nela enunciados de forma abstrata têm raízes materiais no
desenrolar da vida social. A Constituição é o encontro do rio
do Direito com o mar da sociedade, é a integração dialética
do ser e dever ser, segundo lição de Hermann Heller. Des
ta forma, a pré-compreensão da ordem jurídica per oculos
constitucionais decorre da nossa condição de ser histórico,
situado no tempo e no espaço, conforme lembra-nos Esser.
Aproveitamos para observar que acreditamos que a nossa
visão idealista e atemporal dos valores no plano filosófico
não impede a visão histórica dos mesmos no plano jurídi
co. O Direito reflete os valores ideais de justiça na propor
ção da sua realização concreta e histórica, pois é posto pela
sociedade como um todo, tornando-se legítimo através do
consenso . Até mesmo pensadores cristãos disseram que o
Direito Positivo era determinado pelo grau de espiritualida
de a que, concretamente, um povo havia chegado. A percep
ção relativa dos valores, todavia, nunca poderá se confundir
com a consagração de um desvalor.
É de salutar importância, ainda, fazer alusão ao refloresci
mento da Tópica através de Viehweg, visto que essa técnica
de pensar problemas foi remodelada de modo a ser utilizada
na interpretação especificamente constitucional, converten
do-se em método, pois conciliou-se com a idéia de sistema
aberto, mostrando-se
em virtude da estruturaadequada
aberta daaoConstituição.
fim que lhe foi proposto,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 33

3.2 O PROBLEMA METODOLÓGICO

“O Principio, ao mesmo tempo que explica as Regras,


as supera”

SEELEY, Ecce Homo, cap. 16'

“O princípio é a parte mais importante de qualquer coisa”


(Digesto, I, 2, 1)

Wilhelm Dilthey, influenciado pelos estudos hermenêu


ticos de Schleiermacher de quem foi biógrafo, percebeu a
distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito,
classificação já presente, de forma embrionária, nos escritos
de Kant. Segundo Dilthey, os fenômenos estudados pelas
ciências da natureza precisavam ser explicados numa rela
ção de causa e efeito, formando leis gerais, enquanto nas
ciências do espírito, reconhecidas como hermenêuticas, se
procurava compreender o objeto cultural, o que implicava
numa apreensão imediata dele em sua peculiaridade, a fim
de discernir o seu sentido (humano). Dilthey, porém, con
forme Cossio, não apresentou uma orientação metodológica
satisfatória para as ciências do espírito.
Savigny foi quem introduziu posteriormente a herme
nêutica no Direito, vivificando a dogmática jurídica com o
elemento crítico e elevando o Direito à categoria de ciência
do espírito
A metodologia proposta por Savigny veio consolidar os
chamados canônes tradicionais de hermenêutica jurídica:
a) a interpretação gramatical; b) a interpretação lógica; c) a

Apud LEWIS, C.S., Milagres: Um estudo preliminar. São Paulo: Edito


ra Mundo Cristão, 1984, p. 89
2
Apud BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucio
nal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 39
34 Glauco Barreira MAGALHÃES Filho

interpretação sistemática e d) a interpretação histórica, sub


dividida esta última em histórica em sentido próprio e his
tórica em sentido filológico. Em momento posterior, Ihering
acrescentou a interpretação teleológica.
Ora, os canônes tradicionais de hermenêutica foram con
cebidos para a interpretação de normas com estrutura de regras
e, principalmente, para as normas de Direito Privado. Como,
no entanto, o Direito tem recebido uma elevada ênfase social
e a atenção dos juristas tem recaído, de um modo especial, so
bre a Constituição, cujas normas são estruturadas sob a forma
de princípios, tornou-se necessário uma nova metodologia.
As normas jurídicas podem ter estrutura de regras ou de
princípios. Em geral, as normas infraconstitucionais tem es
trutura de regras, e as normas constitucionais tem estrutura
de principios. Os princípios distinguem-se das regras por te
rem maior graude abstração, um caráter de fundamentalida
de no sistema e uma maior proximidade da idéia de Direito e
da exigência de justiça (Canotilho). Estruturalmente, a regra
consiste na previsão de um fato específico, bem como das
suas respectivas conseqüências jurídicas, enquanto o prin
cípio enuncia de forma genérica um valor a ser realizado na
medida do jurídico e faticamente possível (Alexy). Podería
mos resumir, dizendo que a regra é normalmente geral quan
to às pessoas às quais se dirige e é definidora de um fato,
enquanto o princípio é geral em relação às pessoas e não
define fatos. O princípio seria para o ordenamento jurídico o
que a substância básica era para a natureza no pensamento
dos filósofos fisicistas da Grécia antiga, ou seja, uma idéia
centralizadora e caracterizadora do sistema jurídico como
um todo, de modo tal que a violação de um principio seria
uma violação do ordenamento jurídico em sua inteireza.
No que diz respeito à aplicação, havendo conflito entre
as regras, uma norma é aplicada com a exclusão da outra,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 35

caso não seja possível uma interpretação que dê a ambas um


sentido compatível. Consiste a aplicação da regra na sub
missão do fato concreto à norma que o regula, de modo a se
concluir a existência de uma relação jurídica.
No caso dos princípios, não se pode aplicar um, recusando
o outro, mas antes, um princípio deve restringir e comple
mentar o outro, segundo exigências de justiça presentes na
situação de fato, procedendo-se a um sopesamento entre eles.
Desta forma, o sistema de princípios é aberto e caracterizado
pela coexistência dos valores por eles enunciados, bem como
pela dependência da realidade concreta e social para o estabe
lecimento da devida ponderação axiológica, o que acarreta, ao
mesmo tempo, a complexidade e o desenvolvimento do siste
ma. Assim, os princípios são responsáveis pela legitimidade
do ordenamento jurídico, tendo em vista o fato de enraizarem
o Direito na Sociedade. Convém salientar que os princípios
encontram possibilidades de concretização através dos instru
mentos processuais e procedimentos adequados.
Os cânones tradicionais de hermenêutica, tidos por sufi
cientes para a interpretação de normas com estrutura de regras,
mostram-se incompletos para a fixação do sentido e alcance das
normas com estrutura de princípios, apesar de serem também
necessários, porquanto os princípios possuem dimensão lingüís
tica. A lacuna, todavia, decorrerá do alto grau de abstração do
princípio, o que exigirá do intérprete o uso de uma metodologia
de concretização ao lado das técnicas de interpretação. Desta
forma, há a necessidade de um método referenciado a valores.
Metodologia é lógica aplicada a um setor do conhecimen
to científico. Quando se entendia que a aplicação do Direito
consistia numa atividade, de caráter silogistico, fundamenta
da na lógica formal, sendo a norma jurídica a premissa maior,
o fato, a premissa menor e a sentença, a conclusão, ficava o
valor, o terceiro elemento do Direito, sem apreciação específi
36 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO

ca. A interpretação da norma era entendida como tarefa prévia


a sua aplicação, que permitia descobrir o seu significado, de
modo a estabelecer a premissa maior do silogismo. No entan
to, a lógica aplicada pela ciência jurídica deve ser teleológica
e axiológica, apresentando-se formalmente como uma lógica
retórica que busca o argumento válido e eficaz, pois o raciocí
nio jurídico envolve o elemento decisório (valoração do fato),
ao contrário do raciocínio matemático. Logo, aplicação do
Direito não consiste em mera subsunção do fato à norma, mas
antes, de coordenação valorativa do fato à norma.
A nova hermenêutica constitucional acredita numa con
substanciação da interpretação e da aplicação do Direito.
Contrariamente ao ensino da “subsunção”, Friedrich Muller
afirma que a feitura da norma termina na concretização,
quando com a participação criativa do intérprete, surge a
norma de decisão, sendo que, anteriormente, só havia o texto
da norma. Para a Teoria Estruturante do Direito, de Muller,
o juiz extrai do texto da norma o programa normativo, que
estabelece o limite de possibilidades interpretativas suporta
vel pela literalidade do texto. Em seguida o julgador deter
mina o âmbito da norma, ou seja, o segmento da realidade
material a que ela se destina. Neste instante, começará um ir
e vir dialético do âmbito da norma ao programa normativo,
uma circularidade hermenêutica, até que se encontre a inter
pretação-aplicação-concretização materialmente adequada.
Entendendo-se a Jurisprudência (Ciência do Direito) como
um pensamento orientado a valores (Karl Larenz) e voltado
para um determinado ordenamento jurídico como objeto, con
vém lembrar que a metodologia da hermenêutica constitucio
nal, atinente aos direitos fundamentais, tem como requisitos de
validade, os condicionamentos ideológicos do ambiente e do
compromisso democrático. Aliás, comprovada historicamente
a impossibilidade de uma ciência jurídica neutra, a ideologia
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 37

mais compatível com a pesquisa científica é a democrática, e,


no caso do Direito, é aquela que concebe a democracia como
resultado do exercício pleno do Estado de Direito, com os seus
corolários da liberdade e da emancipação social, imperativos
éticos de que não se pode apartar a ciência jurídica.

3.3 CARACTERÍSTICAS DO MÉTODO

Pelo que já foi exposto, será possível identificar as carac


terísticas do método da nova hermenêutica constitucional,
voltada para os direitos fundamentais. Vejamos, então, uma
após outra:
1) Aberto: Em razão de a Constituição conter preceitos
generalíssimos, dotados de alto grau de abstratividade, enun
ciados em linguagem vaga, ela mantém-se aberta ao tempo e
sob o compromisso de mudança democrática de sentido.
Um princípio não é aplicado a uma dada situação de
fato, isoladamente, mas sim, em conjunto com outros atra
vés de um sopesamento, sendo que o predominio de um ou
mais dentre eles decorrerá das exigências do caso concreto,
o qual determinará a harmonização prática. Assim, o senti
do de uma norma principiológica se completará na situação
fática, oportunidade em que irão aflorar as valorações da co
munidade. Haverá, to, un ir e vir dialético entre o sen
tido lingüístico e a realidade concreta, atualizando a norma
em face das novas exigências da sociedade.
A chamada Teoria Autopoiética do Direito, apesar de
admitir a influência indireta da sociedade (meio envolven
te) sobre o Direito através de mecanismos de interferência
intersistêmica, compreende o ordenamento jurídico como
um sistema dotado de fechamento auto-referencial. Por esta
ótica, o Direito, segundo regras próprias, selecionaria o que
lhe viria da sociedade, readaptando tudo de acordo com a
38 Glauco Barreira MAGALHÃES FILHO

sua codificação e procedimentalização própria, de modo que


se pudesse atribuir ao sistema jurídico tanto a produção de
seus elementos constitutivos, como a sua autoreprodução e
dinamicidade interna.
Pode-se perceber que a Teoria Autopoiética se sustenta so
bre a falácia lógica (Aristóteles) ou retórica (Perelman) conhe
cida como petição de principio. A petição de princípio consiste
no argumento circular no qual o ponto de partida fundamenta a
conclusão que, por sua vez, fundamenta o ponto de partida.
Embora reconheçamos um certa autonomia do Direito',
a sua classificação como subsistema social o põe em ligação
íntima com a sociedade, daí porque preferimos ver o sistema
jurídico não como um sistema fechado, circular e autopoiético,
mas, antes, como um sistema aberto ao meio social através
de mecanismos de inputs e outputs. A abertura do sistema
jurídico à sociedade está garantida na Constituição através
da necessidade de concretização de seus princípios cuja ge
neralidade assume o mais alto grau4. Na ordem normativa
infraconstitucional, a abertura sistêmica está prescrita pelo
artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que esta
belece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins

3
Arnaldo Vasconcelos afirma que o Direito é um ser-acidente que existe em
um ser-substância (fato). Assim, o fato, antes de ser jurídico, é humano,
social, econômico e moral. Observa, no entanto, o mestre cearense que “...o
fato de ter o Direito a natureza de ser-acidente não lhe acarreta, em abso
luto, nenhuma inferioridade. Muito ao contrário, por sua transcendência,
confere-lhe inequívoca superioridade”(VASCONCELOS, Arnaldo. Direi
to, humanismo e democracia. São Paulo : Malheiros, 1998, p. 21)
4
Marcelo Neves, ao explicar a autopoiese do Direito, admite que, no
fenômeno da constitucionalização simbólica, o meio social inviabili
za a concretização do programa normativo. “...Pode-se afirmar que a
realidade constitucional, enquanto meio ambiente do Direito Constitu
cional, tem relevância 'seletiva', ou melhor, destrutiva, em relação a
esse sistema. "(NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São
Paulo Editora Acadêmica, 1994, p. 85).

:
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 39

sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.


A doutrina e a jurisprudência, pautadas no referido preceito,
têm contribuído muito para sintonizar o Direito com a socie
dade. Para constatar isso, basta examinar a teoria do abuso
do direito que entende como passível de sanção o exercício
abusivo de um direito, ou seja, o exercício socialmente de
sinteressante de um direito.

Adotando as velhas categorias gregas, diríamos que a socie


dade fornece a matéria sobre a qual o Direito imprimirá forma,
ou, ainda, seguindo a Escola da Livre Investigação Científica
do Direito, poderíamos afirmar que da sociedade vem o ele
mento dado através do qual o Direito produzirá o construído,
sendo a construção jurídica imposta aos fatos sociais limitada
pela natureza das coisas. Assim, a sociedade não é meio envol
vente, externo ao Direito, mas o conteúdo do Direito que tanto o
limita como é por ele modificado. Assim, há uma interferência
recíproca e direta entre Direito e Sociedade, e a Constituição é
o portal pelo qual esses dois mundos se comunicam".
2) Dialógico: Como o problema jurídico constitucional
pode ser resolvido de diversas maneiras, a escolha do meio
mais adequado, necessário e vantajoso para a obtenção do
fim buscado deverá ser alcançado através do confronto de
argumentações. Após a apreciação do problema em toda a
sua complexidade, o intérprete elegerá topos constitucionais
(princípios), ou seja, critérios materiais de argumentação que
5
A teoria autopoiética precisa se valer de um jogo artificioso de palavras
para se manter no plano constitucional. Marcelo Neves explica a relação
entre o Direito e a Sociedade do seguinte modo: "A autonomia opera
cional de ambos sistemas é condição e resultado da existência dessa
'acoplagem estrutural. Porém, por meio dela, cresce imensamente
a possibilidade de influência reciproca e condensam-se as chances de
aprendizado”(capacidade cognitiva) para os sistemas participantes. Assim
sendo, a Constituição serve à interpretação e interferência de dois sistemas
autoreferenciais, o que implica, simultaneamente, relações reciprocas de
dependência e independência...”.(NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 63).
40 GLAUCO Barreira MAGALHÃES FILHO

se legitimam através da endoxa (termo aristotélico que se re


fere a opinião de todos, da maioria ou dos mais sábios – 0
senso comum), e decidirá em conformidade com a argumen
tação que julgar persuasiva em função da sua compreensão
prévia do problema e da Constituição, fruto de sua inserção
no momento histórico, e do consenso dos juristas e dos juizes,
ou ainda, da comunidade inteira. Esse procedimento dialógi
co-argumentativo só é possível pelo fato de a Constituição ser
um sistema aberto, trazendo roteiro para as decisões, mas não
um sistema cerrado de soluções. Isso proporciona uma maior
liberdade criadora do intérprete o qual não apenas extrai o
sentido da norma, mas o perfaz no caso concreto.
A nova hermenêutica constitucional não apenas enumera
uma série de significados possíveis para a norma(Kelsen),
deixando a escolha ao sabor da valoração subjetiva do apli
cador do Direito, mas fornece um caminho para a funda
mentação e legitimidade da decisão.
2) Pragmático: Entre dois julgamentos plausíveis, a escolha
será feita, levando-se em conta o resultado eficaz ou socialmente
satisfatório da decisão. O juiz deve, portanto, representar men
talmente os efeitos de sua decisão, a fim de que possa encami
nhar-se para a solução ótima. A interpretação também deve ser
materialmente adequada, ou seja, deve ajustar-se ao segmento da
realidade social que se inclui no âmbito da norma.
Sobre o pragmatismo, lembramos o que Epicuro disse na
sua Carta a Meneceu :
“convém, portanto, aquilatar todas estas coisas, con
soante a medida e critério dos benefícios e dos prejuí
zos: pois, conforme os momentos e as circunstâncias,
o bem nos pode causar mal e, ao revés, o mal pode
produzir um bem”.
6
Apud ULLMANN, Reinhold Aloysio. Epicuro: filósofo da alegria. 2a
ed., Coleção - Filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 63
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 41

Assim, o julgador deve aferir a legitimidade de sua deci


são diante de um hipotético auditório universal (Perelmann)
ou diante de uma comunidade ideal do diálogo (Habermas).
Convém, todavia, lembrar que, apesar de o método ser
basicamente teleológico ou pragmático, há um limite ético
ou deontológico, no caso, a dignidade da pessoa humana.
Assim, não se pode, sob o pretexto de alcançar a solução
mais eficaz, atingir a dignidade da pessoa humana e, logo,
o núcleo existencial ou a exigência mínima de qualquer di
reito fundamental. Deverá, então, ocorrer uma interferência
dialética entre meios e fins.

A visão autopoiética do Direito aponta comunicações e


não seres humanos individuais como elementos que consti
tuem o Direito. Desta forma, os agentes humanos são pres
supostos pelo Direito, mas não aparecem na sua definição.
Dentro da visão humanista aqui exposta, não poderíamos
compartilhar com a teoria autopoiética. O Direito está aber
to à sociedade e fundamenta-se na natureza humana.
O conceito de pessoa, por exemplo, não se reduz a um
mero centro de imputação de determinadas condições jurí
dicas ou a uma simples comunicação. Embora exista a fi
gura da pessoa jurídica, lembramos que ela foi construída
pelo Direito através de analogia com a pessoa natural. Além
disso, observamos que são as pessoas físicas que proporcio
nam condições de ação às pessoas jurídicas, cuja existência
não se dá sem a presença de pessoas naturais. É igualmente
oportuno fazer-se alusão à técnica de desconsideração da
pessoa jurídica, utilizada a fim de que os componentes de
um ente coletivo não sejam excluídos da sanção devida por
atos ilícitos praticados sob o manto da pessoa jurídica.
A pessoa natural é sujeito de direitos por razões onto
lógicas. Nem mesmo a escravidão retirou do homem essa
condição, embora o exercício dos direitos tenha sido por
42 Glauco Barreira MAGALHÃES Filho

ela, abusivamente, restringido. Basta lembrar que, apesar


de o escravo estar submetido à toda sorte de proibições ou
limitações de conduta, sempre lhe restava oportunidade de
ação na esfera da licitude, de modo que aí se lhe abria uma
fresta à manifestação de sua liberdade e, consequentemente,
ao exercício de algum direito. Além disso, somente a pessoa
humana é detentora da dignidade reconhecida pela Consti
tuição no seu art. 1°.
O que se pode perceber é que, desde o início do presente
século, ao lado dos substanciais desenvolvimentos no campo
científico e tecnológico, houve um desinteresse por assuntos
metafísicos. Assim, a técnica, que deveria ser simples meio
para se atingir fins humanitários, tornou-se modeladora de toda
a sociedade, que passou a se caracterizar pela busca desen
freada do aumento da produtividade de bens, principalmente,
daqueles que são supérfluos. Nessa sociedade tecnocrática, de
forma quase imperceptível, tem havido um processo de “des
personalização” do homem. Por não ser notória essa violência
à pessoa humana como foram outras no passado e, também,

por falta de idealismo filosófico, a reação intelectual, princi


palmente dos jusfilósofos, tem sido diminuta.
3) Normativo: Apesar de o enunciado de um principio
constitucional precisar de concretização, ele limita as possi
bilidades de sua própria realização material, restringindo a
arbitrariedade na variação de sentido e exigindo a racionali
dade na fundamentação da decisão.

3.4 PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO


ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL

A expressão método significa “caminho”, o que nos leva


à conclusão de que o método é um meio e não um fim. Um
método pode ser discursivo, não discursivo ou dialético. Um
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 43

método discursivo é caracterizado pela mediatez, ou seja,


por seguir fases, compondo um processo. Entre os métodos
discursivos estão o dedutivo e o indutivo, sendo que o pri
meiro se distingue por tirar conclusões do geral para o parti
cular mediante inferência e o segundo, por fazer afirmações
através de um salto do particular para o geral. Um método
não discursivo é identificado pela imediatez, consistindo em
uma intuição. A intuição, por sua vez, pode ser racional ou
ideatória, emocional ou valorativa e volitiva ou existencial.
A primeira descobre os axiomas matemáticos, a segunda, os
valores, e a terceira estabelece decisões. Já o método dialé
tico abrange elementos dedutivos, indutivos e intuitivos. O
método jurídico é dialético.
O método de uma ciência hermenêutica é o operador que
unifica e normatiza o processo interpretativo. Um método
discursivo utiliza-se, normalmente, de diversas técnicas, as
quais determinam as fases do processo uno de compreensão.
Como o método da nova hermenêutica constitucional é dia
lético, trazendo amplos espaços para momentos intuitivos,
prefere-se falar em principios de interpretação constitucional
em vez de técnicas de interpretação constitucional.
Vejamos quais são os princípios de interpretação especi
ficamente constitucional:

1) princípio da unidade da Constituição – se a Consti


tuição é a norma fundamental que dá unidade e coerência à
ordem jurídica, ela própria precisa ter unidade e coerência in
terna, ou seja superação de contradições, não através de uma
lógica de exclusão de uma parte a favor de outra, mas através
de uma lógica dialética de síntese, através de uma solução
de compromisso. A interpretação constitucional deve garantir
uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo.
2) princípio do efeito integrador - a Constituição é uma
integração dinâmico - espiritual dos diversos valores aspi
44 GLAUCO Barreira MAGALHÃES FILHO

rados pelos diferentes segmentos da sociedade através de


uma fórmula político-ideológica de caráter democrático. A
interpretação constitucional, portanto, deverá ser aquela que
mais contribuir para a integração social.
3) princípio da máxima efetividade - em face do aspecto
pragmático do método, deve-se preferir a interpretação da
norma que lhe confira maior eficácia (realização prática e
acatamento social).
4) princípio da força normativa da Constituição - a in
terpretação da Constituição deve atualizá-la com a vivência
dos valores por parte da comunidade, de modo que os pre
ceitos constitucionais obriguem as consciências e tenham a
sua normatividade reconhecida.

5) princípio da repartição funcional - se a Constituição


organiza estruturalmente o Estado, regulando e distribuindo
funções, o intérprete deve ater-se rigorosamente às prescri
ções voltadas para esse sentido.
6) princípio da interpretação conforme à Constituição
– de acordo com esse princípio a Constituição deve ser in
terpretada segundo os seus valores básicos, e a norma infra
constitucional deve ser compreendida a partir da Constitui
ção. Assim, se uma norma infraconstitucional admite várias
interpretações, se dará preferência àquela que reconheça a
constitucionalidade da norma.
As normas definidoras de direitos fundamentais trazem
a enunciação de valores e não reportam aos fatos sobre os
quais incidem, sendo estes previstos nas normas infraconsti
tucionais ou identificados no caso concreto. Embora tragam
a previsão de um fato, as normas infraconstitucionais (re
gras) não enunciam um valor, embora o pressuponham. No
caso, deve-se preferir a interpretaç que vai ao encontro de
um valor constitucionalmente almejado.
HERMENEUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 45

Em atingindo a norma infraconstitucional os fins cons


titucionais em situações típicas, apenas em uma situação
atípica, a norma será afastada para que se possa fazer valer
diretamente o preceito constitucional.
A interpretação conforme à Constituição está limitada
pela literalidade do texto normativo, ou seja, não se pode,
sob o pretexto de economia normativa, dar a uma norma
um sentido que contrarie suas potencialidades lingüísticas, a
fim de que ela possa ser conciliada com a Constituição e ter
a sua validade preservada. Também não será válida a regra
infraconstitucional que, apesar de não agredir diretamente
um preceito da Constituição, tire a sua funcionalidade, pois
ai terá ocorrido violação ao princípio da proporcionalidade
e ao da razoabilidade.
7) princípio da harmonização prática ou da concordância
prática – aqui nós temos um princípio intelectivo que é uma
projeção na hermenêutica do princípio positivo-normativo da
proporcionalidade. Enquanto o último prescreve, o primeiro
descreve o que deve ser feito. Assim, quando houver colisão
de direitos fundamentais num caso concreto, se fará a harmo
nização prática entre eles, através de uma ponderação axioló
gica, mediante a qual se fará uma hierarquização dos valores
na situação fática, para encontrar-se a solução ótima.
Esses são os principais princípios de interpretação espe
cificamente constitucional. Nós nos ocuparemos daqui por
diante com o princípio da unidade da Constituição, o qual
julgamos ser o de maior relevância.

BIBLIOGRAFIA

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ed., São Paulo: Malheiros, 1993
46 GLAUCO Barreira MAGALHÃES Filho

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Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito
na Sociedade Pós-Moderna. Porto Alegre: Livraria do Ad
vogado, 1997
PARTE II: UNIDADE AXIOLÓGICA
DA CONSTITUIÇÃO
cre reibédoo
A UNIDADE ATRAVÉS DA
1 CONSTITUIÇÃO E A UNIDADE
DA CONSTITUIÇÃO

A teoria constitucional nos informa sobre a unidade da


politicidade e juridicidade através da Constituição, bem
como da unidade normativa e axiológica do Estatuto Funda
mental. Procuraremos, neste capítulo, de forma abreviada,
nos reportar a todas essas concepções, abrindo caminho para
uma apreciação específica da unidade axiológica da Consti
tuição nos outros capítulos.
Hans Kelsen, jurista austríaco e expoente do positivismo
jurídico, seguindo a orientação de Kant, que fazia rigorosa
distinção entre juízo de valor e juízo de fato, contrapôs poli
tica a ciência, o mundo do ser ao mundo do dever ser.
No entender do formulador da Teoria Pura do Direito, o
ordenamento jurídico é um sistema hierárquico de normas,
onde uma norma é validada pela outra, que lhe é superior.
Assim, um dever ser nunca poderia ser validado por uma re
alidade do mundo do ser, razão pela qual Kelsen descartou
a natureza humana, os anseios sociais e o espírito do povo
como fundamento da norma jurídica. Para o jurista austríaco,
a Constituição, que é a norma jurídica que valida as demais
no plano positivo, era validada pela Norma Hipotética Funda
mental, sendo esta última um pressuposto gnoseológico admi
tido pelo cientista do Direito. A norma hipotética fundamental
não seria uma Constituição em sentido jurídico-positivo, mas
seria uma Constituição em sentido lógico-jurídico, a qual ins
52 GLAUCO Barreira MAGALHÃES FILHO

tauraria o fato fundamental da criação jurídica. Kelsen ex


cluía a idéia de poder constituinte como um poder anterior ao
Estado e ao Direito Positivo. O mundo jurídico do dever ser
fechava-se para o mundo do ser ao encontrar seu fundamento
último e unidade na Norma Hipotética Fundamental, que, por
sua vez, seria apenas um juízo hipotético lógico à espera de
conteúdo (descrição do fato e juízo de valor) para manifes
tação positiva. A referida Norma Fundamental estabeleceria
dogmaticamente a aceitação da Constituição Positiva desde
que esta tivesse efetividade mínima.
Podemos concluir que, para Kelsen, a Constituição tinha
natureza normativa.

Carl Schmitt, jurista alemão e teórico da Constituição,


influenciado por concepções hobbesianas, condenou o plu
ralismo político-social e apregoou o decisionismo. Este
pensador atribuiu uma natureza política à Constituição, en
tendendo-a como uma decisão fundamental da comunidade
política , não subordinada a norma alguma, sobre o modo e
a forma da unidade de um povo. Schmitt abraça um visão
existencial da Constituição em franca oposição à concep
ção formal. A Constituição como decisão fundamental do
constituinte teria uma essência distinta da lei constitucional
(conjunto de prescrições contidas no texto do Estatuto Fun
damental), pois não se acharia contida em nenhuma norma.
Assim, a Constituição seria uma realidade existencial per
tencente ao mundo do ser.

Hermann Heller, a partir de uma perspectiva dialético


integral, critica tanto o formalismo kelseniano como o deci
sionismo jurídico. O referido autor entende que não é pos
sível esvaziar a Constituição de sua dimensão política. Por
outro lado, afirma que a decisão política sem normatividade
não pode ser validada ou adquirir existencialidade.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 53

A teoria de Heller concebe a Constituição como união do


mundo do ser com o mundo do dever ser, da realidade com
a normatividade, da decisão com a norma, do político com o
jurídico.
Em um outro contexto de controvérsias, Konrad Hesse,
um constitucionalista alemão, entende a Constituição real
(realidade axiológica) integrada à Constituição textual, em
oposição ao pensamento de Lassale, o qual distingue e sepa
ra as duas, dando primazia à Constituição real, que, no seu
pensamento, são os fatores reais do poder.
Hesse mostra que a aproximação do texto normativo com
a realidade axiológica que lhe dá eficácia garante a “força
normativa” da Constituição. Segundo esse jurista,
"a força que constitui a essência e a eficácia da Constitui
ção reside na natureza das coisas, impulsionando-a, con
duzindo-a e transformando-se, assim, em força ativa”!.

Assim,
“a interpretação adequada é aquela que consegue con
cretizar, de forma excelente, o sentido da proposição
normativa dentro das condições reais dominantes numa
determinada situação”2

Podemos perceber que ATRAVÉS DA Constituição há a


união do ser com o dever ser, do político e do jurídico. Na
Constituição de um Estado Social, apesar de não se dá uma
identificação do Estado com a Sociedade como nos regimes
totalitários, há uma conciliação entre ambos através de uma
interação dialética, pois enquanto a Sociedade tem garantias
contra o abuso de poder , o Estado interfere na Sociedade,
legitimamente, para corrigir as suas estruturas injustas, o

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar


2
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 20
HESSE, K.., op. cit., p. 23

1
54 Glauco Barreira MAGALHÃES FILHO

que não ocorria no Velho Estado Liberal, onde imperava a


separação entre o Estado e a Sociedade. Há quem fale hoje
em um liberalismo social, o qual seria o resultado de uma
nova interação dialética, no caso, aquela que agora está se
dando entre o Estado Social em decadência e uma nova ten
dência liberal triunfalista.

Poderíamos também lembrar que, no plano hermenêu


tico, a Constituição concilia o método tópico ou aporético
com o método sistemático, tendo em vista a natureza tópico
sistemática dos princípios constitucionais.
Trataremos agora da UNIDADE INTERNA DA CONS
TITUIÇÃO que ocorre tanto no plano normativo como no
plano axiológico.
No princípio do constitucionalismo, a Constituição, na
sua dimensão principiológica, era vista como uma diretiva
a ser seguida pelo legislador, sendo reconhecida apenas a
normatividade dos preceitos referentes à organização do
Estado, incluindo divisão de poderes e a distribuição de
competências. Só a lei era aceita como norma geradora de
relações jurídicas. Em países da Europa, como na França,
não se admitia o controle de constitucionalidade das leis
pelo poder judiciário, alegando-se a necessidade de sepa
ração dos poderes. Isso resultava num fortalecimento da lei
e em um enfraquecimento da Constituição. Posteriormente,
em muitos países da Europa, passou-se a admitir o controle
da constitucionalidade das leis, enquanto os Estados Uni
dos da América se antecipou ao continente europeu nessa
prática. O resultado foi a aceitação da normatividade dos
principios constitucionais, no caso, daqueles princípios que
consagravam os direitos individuais. Os direitos individuais
ou liberdades públicas, tendo natureza negativa, representa
vam limites à atuação do Estado na Sociedade e, mais parti
cularmente, nas relações privadas. A partir da Constituição
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 55

de 1917 do México e da Constituição de Weimar na Alema-


nha (1919), começou a aparecer a enunciação de direitos
sociais que representavam poderes ao lado das liberdades,
impondo-se ao Estado a obrigação de prestações positivas.
Dizia-se que esses princípios tinham natureza programática
porque careciam da mediação da Legislação para obterem
eficácia jurídica e social. Alguns juristas, então, começaram
a distinguir os princípios jurídicos ou normativos, no caso,
os que consagravam os direitos individuais, dos princípios
políticos ou programáticos, proclamadores de direitos so-
ciais. Desta forma, a Constituição teria uma parte política e
uma parte normativa no catálogo de direitos fundamentais.
Atualmente, não se pode mais distinguir duas partes na
Constituição, ou seja, a política e a normativa. Por não es-
posar essa diferenciação é que dispôs o art. 5º, LXXVII, pa-
rágrafo 1º, da Constituição brasileira atualmente em vigor:
“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamen-
tais têm aplicação imediata”.
As normas definidoras de direitos sociais revelam sua efi-
cácia, limitando a atividade legislativa, bem como estatuindo
para a Justiça e a Administração o modo de a Constituição ser
compreendida e aplicada. Através do mandado de injunção,
o particular, cujo direito social estivesse ameaçado, poderia
recorrer ao Judiciário para regulamentar a proteção ao direito,
no caso concreto, quando o legislador houvesse sido omisso
na elaboração da regulamentação. Poderíamos ainda lembrar
a ação de inconstitucionalidade por omissão como forma de
assegurar em tese a viabilização das normas “programáticas”
quando se tenha mantido inerte o Poder Legislativo.
Assim, nas chamadas “normas constitucionais progra-
máticas”, não temos meros conselhos ao legislador ou sim-
ples consagração de objetivos políticos, mas a interferência
do jurídico sobre o político, enquanto, em outras normas
56 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

constitucionais, temos apenas um reflexo da realidade mate-


rial, ou seja, o político determinando o jurídico.
Podemos concluir, assim, que há na Constituição uma
unidade normativa.
Passaremos agora a tratar da unidade axiológica da
Constituição.
Smend, jurista alemão que se dedicou à interpretação
da Constituição de Weimar, propôs a adoção de um método
científico-espiritual através do qual o Estatuto Fundamental
seria visto como uma integração dos valores ou componen-
tes espirituais que refletem um sistema de cultura. Assim, O
sentido da Constituição só poderia ser alcançado quando ela
fosse contemplada como uma totalidade, ou seja, dentro de
uma concepção sistêmica e espiritualista.
Em face da natureza axiológica e integrativa da Consti-
tuição, o método utilizado para sua compreensão será mais
político que jurídico. Como a Constituição é uma realidade
dinâmica, sendo não apenas integração, mas também, um
processo integrativo, a sua interpretação será flexível e com-
plementar, distinguindo-se da interpretação mais limitada
aplicada à norma infraconstitucional.
A interpretação da Constituição está imbricada à sua
aplicação e construção. Inocêncio Mártires Coelho diz que
“as situações da vida são constitutivas do significado das
regras de Direito, posto que é somente no momento de sua
aplicação aos casos concretos ocorrentes que se revelam
o sentido e o alcance dos enunciados normativos”, disso
decorrendo o fenômeno da mutação constitucional.

A Constituição como realidade significativa ou objeto


cultural deve submeter-se ao método empírico-dialético de

* COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Ale-


gre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 5
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO a

compreensão estabelecido por Carlos Cossio para as ciên-


cias do espírito. Cossio, seguindo a teoria dos objetos de
Husserl, classifica o Direito como objeto cultural egológi-
co. Todo objeto cultural tem um substrato a que o homem
acresce sentido, sendo que o objeto cultural egológico tem
por substrato a conduta humana. No caso do Direito, o sen-
tido da conduta será procurado na norma que a qualifica.
Assim, a ciência jurídica é uma ciência normativa não porque
estabeleça normas, como pensavam os jusracionalistas, nem
porque tenha normas por objeto, como pensava Kelsen, mas
porque procura o sentido da conduta em interferência in-
tersubjetiva mediante normas jurídicas. Segundo o jurista
argentino, o intérprete deve partir da realidade fática e ir
em busca do sentido jurídico da conduta presente na nor-
ma. À compreensão do direito deverá resultar de um 1r e vir
dialético do fato à norma e da norma ao fato, a fm de que
o dever ser normativo reflita o dever ser existencial, sendo
a compreensão da norma atualizada pelo confronto com o
fato e o fato qualificado pela norma. A posição defendida
por Cossio revela um tridimensionalismo implícito, ficando
o valor considerado no ir e vir dialético do fato à norma e
da norma ao fato. A decisão judicial será, então, uma coor-
denação axiológica do fato à norma, de modo a promover a
evolução do Direito e a sua atualização com a vivência dos
valores pela sociedade.
Finalmente, observamos que, mediante a cultura, o ho-
mem constrói sobre a natureza, fazendo surgir valores-meios,
mas é da natureza que provém o valor-fim. A cultura cria aci-
dentes que só têm sustentação na natureza, que é substân-
cia, e, por isso, a ela deve adequar-se. A natureza humana,
com as suas características de racionalidade e sociabilidade,
é a fonte última do Direito, daí porque se pode dizer que
a dignidade da pessoa humana é a causa final dos direitos
fundamentais, servindo de critério para a sua unidade. Desta
58 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

forma, a unidade axiológica da Constituição é uma unidade


filosófica na variedade sociológica.

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2 A UNIDADE AXIOLÓGICA DA
CONSTITUIÇÃO

Segundo Smend, intérprete da Constituição de Weimar, o


estatuto jurídico básico de uma nação deveria integrar todos
os valores (manifestações do espírito) representativos das
aspirações dos diversos segmentos sociais. A Constituição
seria, então, o instrumento harmonizador de uma sociedade
pluralista em razão de sua unidade de sentido.
Como, na democracia, o respeito é devido a todas as catego-
rias sociais, não pode um valor predominar sobre outro, a ponto
de custar-lhe o sacrifício total. A colisão entre princípios consti-
tucionais (enunciados de valoração explicita) não redunda, pois,
em supressão de um em proveito de outro, mas em harmoniza-
ção ou concordância prática (Konrad Hesse). Para dirimir a co-
lisão axiológica, que aparece no caso concreto, faz-se necessária
a ponderação ou sopesamento dos valores. No plano abstrato, os
princípios, apesar de estarem em “tensão”, não estão se atritando,
razão pela qual não há que se falar em conflito entre eles.
Smend, através da afirmação da natureza integrativa da Cons-
tituição, trouxe à luz o princípio que proclama a sua unidade,
tido, conforme já foi dito, como uma exigência da democracia
e um pressuposto do princípio hermenêutico da concordância
prática, estando também atrelado ao princípio do efeito inte-
grador segundo o qual se deve preferir, em relação a norma
constitucional, a interpretação que mais favoreça a integração
da sociedade.
60 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Outro notável intérprete da Constituição de Weimar, Carl


Schmitt, não reconhecia a natureza integrativa da Constitui-
ção, antes, a concebia como fruto de decisões: as decisões
fundamentais do constituinte.
Parece-nos, no entanto, que as concepções dos dois mes-
tres alemães não precisam, necessariamente, se distanciar. A
Constituição brasileira , por exemplo, traz um título inicial
chamado DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS, seguido
do título II, cognominado DOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS. No título I, então, nós temos as opções
valorativas básicas ou decisões fundamentais, enquanto
que, no título II e em outros do Estatuto Máximo, temos
os valores representativos das aspirações dos segmentos
sociais, os quais são integrados na medida em que recebem
uma interpretação harmonizadora, de cunho finalístico, di-
recionada aos valores básicos ou decisões fundamentais.
Como os direitos fundamentais são remetidos pela inter-
pretação das suas normas definidoras aos valores básicos,
poderíamos considerar aqueles como desdobramentos ou
emanações destes oriundas.
A conciliação entre integração e decisão fica mais evi-
dente na sentença judicial fundamentada na Constituição,
porquanto, não podendo o juiz suprimir um princípio em
face de outro, terá, então, de realizar uma ponderação axio-
lógica entre eles, atribuindo a um princípio maior peso ou
relevância que a outro, através de uma decisão que irá hie-
rarquizá-los. Essa atribuição de peso diferente aos princí-
pios no caso concreto é variável de acordo com a situação
fática, daí porque se pode continuar a falar em nivelamento
dos princípios no plano textual ou abstrato.
A relevância de cada princípio para a decisão é determi-
nada a partir da sensibilidade do julgador face aos anseios
sociais, evidenciando-se, portanto, uma contribuição do so-
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 61

ciologismo jurídico para a hermenêutica constitucional. No


entanto, a exigência de racionalidade na decisão judicial
também deve estar presente, pois é preciso que a decisão
seja fundamentada, a fim de que a sua legitimidade seja afe-
rida e submetida a controle.
Conforme o magistério do ilustre publicista CELSO ANTÔ-
NIO BANDEIRA DE MELO!, o juiz não tem um poder-dever, mas
um dever-poder (função pública), visto que ele só dispõe de
poder na medida necessária ao cumprimento de seu dever, o
qual é direcionado a um fim. Enquanto que a atividade legis-
lativa e executiva são legitimadas, principalmente, em razão
de seus agentes terem ascendido à posição de representantes
do povo mediante o exercício do sufrágio pelos seus concida-
dãos; a atividade judiciária, que não é exercida por represen-
tantes eleitos, tem que legitimar-se através da fundamentação
das decisões prolatadas, razão pela qual as sentenças devem
ser públicas, sendo o segredo de Estado legitimado apenas
nos casos excepcionais previstos em lei. A regra geral é a que
está na fórmula transcendental do direito público : “todas as
ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não
é conciliável com a publicidade são injustas”. Assim, a publi-
cidade das decisões garante o controle democrático, marcado
pelo exercício dos vários direitos de liberdade que possibili-
tam a formação da opinião pública.
Retomando a questão hermenêutica, cumpre lembrar que
dentre os valores fundamentais que vão conferir unidade à
Constituição, destaca-se a dignidade da pessoa humana. Este
valor é permanente, sendo o mais básico de todos e para to-
dos, pois não resulta de uma simples decisão, mas é uma exi-
gência da natureza humana. Como demonstrou o kantismo, O
homem é fim e não meio. Esta asserção tem respaldo mesmo

1 Discricionariedade e controle jurisdicional. 2º ed., São Paulo: Malheiros,


1996,
p. 54
62 Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

na natureza das coisas, porquanto, se o homem cria o direito


para colocá-lo a serviço das finalidades de sua existência ,
não poderia este servir para a degradação de sua personali-
dade. Aqui, detecta-se a presença de um toque jusnaturalista
que percute na hermenêutica constitucional
Para que seja possível ao intérprete conferir unidade de
sentido à Constituição, necessária se faz a adoção de um mé-
todo teleológico-sistemático. O aplicador da Constituição
deve compreender os valores mais específicos em cotejo com
os valores mais gerais, tornando-se estes últimos fins a serem
alcançados pelos primeiros. Assim, os valores fundantes, con-
sagrados no pórtico do Estatuto Supremo, servindo de “telos”
a sua interpretação, conferirão unidade e coerência à Consti-
tuição, suprindo as exigências racionais de sistematização. Na
prelação de PAULO BONAVIDES,
“a idéia de sistema inculca imediatamente outras, tais
como as de unidade, totalidade e complexidade. Ora, a
Constituição é basicamente unidade, unidade que repou-
sa sobre princípios : os princípios constitucionais. Esses
não só exprimem determinados valores essenciais — valo-
res políticos ou ideológicos — senão que informam e per-
passam toda a ordem constitucional, imprimindo assim
ao sistema sua feição particular, identificável, inconfun-
dível, sem a qual a Constituição seria um corpo sem vida,
de reconhecimento duvidoso, se não impossível”.

O professor JOSÉ DE ALBUQUERQUE ROCHA, em


ESTUDOS SOBRE O PODER JUDICIÁRIO, ensina-nos
que, na acepção aqui colocada,
“a interpretação teleológica funciona como um mecanis-
mo de controle da conformidade do critério que serviu
de fundamento à interpretação com o sistema jurídico,

2 Curso de Direito Constitucional, 4º ed., São Paulo ; Malheiros Editores,


1993, p. 110
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConNsTITUIÇÃO 63

circunstância que a transformaria em um método inter-


pretativo intra-sistemático, não muito diferente da inter-
pretação, assim chamada, sistemática, de caráter estrita-
mente jurídico, uma vez que parte dos fins assinalados
pelo próprio ordenamento com indiferença dos resul-
tados meta-jurídicos”. Lembra-nos, porém, o professor
cearense, que “como os fins propostos pelo ordenamen-
to jurídico se destinam a operar na realidade social, po-
lítica e econômica, a decisão deve ser valorada não só
quanto à sua coerência com o sistema(controle interno
ou intra-sistemático), mas também, em relação às suas
consegiiências sociais, políticas e econômicas práticas,
isto é, extranormativas, para verificar seu impacto sobre
a realidade, à luz dos objetivos que o sistema propõe
como resultado a ser alcançado pela decisão (controle
externo ou extra-sistemático)””.

A hermenêutica tradicional, elaborada para a interpretação


das normas infraconstitucionais já se referia à interpretação te-
leológica e à interpretação sistemática, mas separando-as em
momentos distintos, apesar de reconhecer a unidade do proces-
so interpretativo. A interpretação teleológica visaria à confor-
mação do sentido da norma a sua “ratio” ou motivações fina-
lísticas de sua feitura, enquanto a interpretação sistemática, em
momento distinto, objetivaria adequar uma norma às demais.
Na nova hermenêutica constitucional, procura-se confe-
rir unidade à Constituição, mediante uma interpretação que
busca a realização dos fins prescritos no seu próprio texto,
tendo como resultado espontâneo, a sistematização.
A interpretação teleológico-sistemática da nova herme-
nêutica constitucional aplica-se não só à Carta Magna, mas
também às normas infraconstitucionais, a fim de que elas se
ajustem aos princípios supremos, daí se falar em interpreta-

* Estudos sobre o poder judiciário, São Paulo : Malheiros Editores, 1999,


p. 118
64 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

ção à luz da Constituição, o que não importa na exclusão da


interpretação teleológica presente nos cânones tradicionais
de hermenêutica. Apesar de a norma ser conduzida ao seu fim
último ou fim-final, estabelecido no Texto Fundamental, o seu
sentido também será procurado na sua finalidade imediata
(fim-meio). Ressalte-se também que o fato de a interpreta-
ção à luz da Constituição satisfazer às exigências globais
de sistematização, não torna dispensável a necessidade de
adequar o sentido de uma regra ao das demais, realizando-se
a interpretação sistemática clássica.
No plano constitucional, podemos dizer que os princípios
constitucionais especiais são interpretados pelos gerais, e estes,
pelos princípios estruturantes (princípios político-constitu-
cionais), entre os quais se destaca o do Estado de Direito e
o Democrático, definidores da fórmula política da República
Federativa do Brasil — expressa no art. 1º da nossa Constitui-
ção — da qual fluem os objetivos contemplados no art. 3º.
Os princípios estruturantes são o princípio do Estado de
Direito, o princípio democrático, o princípio federativo e o
princípio republicano, sendo a República Federativa do Brasil
classificada como ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREI-
TO, cujo valor primordial é o da DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. Aqui, nós temos um “pré-juízo”(Gadamer) para
compreender toda a ordem constitucional e jurídica.
Estado Democrático de Direito é aquele que procura rea-
lizar o interesse social e atender às finalidades da existência
humana, ou seja, procura concretizar benefícios sociais com
o menor custo para a pessoa humana.
A noção de Estado de Direito prende-se à limitação do
Estado pela lei, em face da segurança. Quando a Constitui-
ção define as competências legislativas e a organização dos
entes públicos, rege-se pelo princípio do Estado de Direito.
O princípio democrático, por sua vez, não se reduz, confor-
me veremos, ao estabelecimento do sufrágio universal.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 65

Para Aristóteles, a monarquia se fundava na honra, a aris-


tocracia, na virtude; e a “politia” (democracia), na igualdade.
Ora, aquilo que iguala os homens é a dignidade que lhes é
própria, em razão de serem dotados de personalidade. O ho-
mem como indivíduo é parte integrante da sociedade, por isso,
o interesse público deve prevalecer, em certa medida, sobre
o interesse privado. No entanto, o homem, como “pessoa”,
transcende a sociedade, por ligar-se à finalidade superior. Des-
te modo, a democracia que se fundamenta na dignidade da
pessoa humana, o valor supremo que atrai o conteúdo de todos
os direitos fundamentais, só pode ser concebida como criadora
de um ambiente propício à realização desses direitos humanos
fundamentais, e não apenas como um regime político.
A Democracia está assentada sobre a afirmação de que os
homens nascem iguais. Apesar de, como pessoas, sermos dife-
rentes, o elemento humano comum, sendo de maior relevância
que os demais, inspira as reivindicações de igualação no plano
econômico e social. Esse elemento essencial do ser humano é,
segundo o pensador cristão inglês Martyn Lloyd-Jones,
“maior do que o corpo, maior do que a tradição, do que
a história e tudo o mais. Porquanto existe no homem
um outro elemento que transcende a todas essas coisas.
Esse elemento chama-se alma”*.

Com uma visão mais histórica, Bobbio nos diz que


“na realidade, os homens não nascem livres e iguais.
Que os homens nasçam livres e iguais é uma exigên-
cia da razão, não uma constatação de fato ou um dado
histórico. É uma hipótese que permite inverter radical-
mente a concepção tradicional, segundo a qual o poder
político — o poder sobre os homens chamado de impe-
rium — procede de cima para baixo e não vice-versa. De
irmãs
* Sincero, mas errado. São José dos Campos: Editora Fiel, 1995, p. 19
66 Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

acordo com o próprio Locke, essa hipótese devia servir


para “entender bem o poder político e derivá-lo de sua
origem”. E tratava-se, claramente, de uma origem não
histórica e sim ideal”.

No plano existencial, C.S. Lewis, que foi catedrático de


Literatura Medieval e Renascentista em Cambridge, reco-
nhecendo as desigualdades entre os seres humanos, defen-
deu a Democracia a partir do ensino cristão da corrupção da
natureza humana após a queda , dizendo:
“Creio na igualdade política. Mas é possível ser demo-
crata por dois motivos opostos. Você pode pensar que
todos os homens são tão bons que merecem participar
do governo, e tão sábios, que a comunidade necessita
de seus conselhos. Em minha opinião, essa é a falsa e
romântica doutrina da democracia. Por outro lado, você
pode acreditar que os homens caídos são tão perversos,
que nenhum deles pode receber poder desmedido sobre
seus companheiros (...) Mas , uma vez que tomamos co-
nhecimento do pecado, descobrimos, como diz Lorde
Acton, que “todo poder corrompe, e o poder absoluto
corrompe absolutamente”. O único remédio é substituir
os poderes por uma ficção legal de igualdade (...) Para
mim, a igualdade equivale às roupas. E o resultado da
queda e o seu remédio. Qualquer tentativa de reverter o
caminho que nos conduziu ao igualitarismo e reinstalar
as velhas autoridades no plano político é, para mim, tão
absurda quanto tirar a roupa.”

O referido autor concilia essas afirmações com a doutrina


cristã da igualdade pessoal de todos perante Deus , dizendo:
“Pode ser que Ele (Deus) ame a todos igualmente — com
certeza, Ele amou a todos até a morte — e eu não sei

5
A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 118
6
Peso de glória, 2º ed., São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida
Nova, 1993, pp. 43 e 44
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 67

direito o significado da expressão. Se existe igualdade,


está no seu amor, não em nós”.

David Elton Trueblood, de modo semelhante ao de C. S.


Lewis, afirma que
“porque todos os homens são pecadores é que a nenhum
pode ser confiado poder ilimitado. Dessa maneira, a ca-
pacidade que o homem tem de exercer a justiça torna a
democracia possível, mas a inclinação humana de prati-
car a injustiça faz a democracia necessária”*.

Aristóteles classificava as formas puras de governo em rei-


no (governo de um só), aristocracia (governo dos melhores)
e politia (governo das massas), sendo a última, equivalente
ao que nós chamamos de democracia. Para o estagirita, essas
formam puras de governo são corrompidas quando o gover-
nante ou os governantes já não exercem suas funções visando
ao bem comum, mas sim, visando ao interesse pessoal. Entre
as formas impuras teríamos a tirania, a oligarquia e a demago-
gia. Aristóteles considerava a politia como a menos excelente
das formas puras, no entanto, dizia que a forma pior de gover-
no seria a degeneração da forma melhor dentre as puras (tira-
nia). À corrupção das formas que não a do reino, considerada
a melhor, seria, portanto, de menor gravidade. Uma vez que
nenhuma das formas de governo se mantém indene ou isenta
de impureza, a corrupção na politia seria a menos danosa. As-
sim, poderíamos dizer que, em face de não existir pureza em

” Ibid., mesma página.


$g
Apud WAILLER DA SILVA, Paulo. Ética Cristã. Rio de Janeiro: JUERP,
1989, p. 89. Stanley Jones, que foi várias vezes indicado para o prêmio
Nobel da Paz, afirmou: “. alguém definiu a democracia como aquela
loucura que vê nas pessoas algo que não é real, isto é, que elas podem
governar a si mesmas. No entanto, sem esta crença o homem não pode-
ria criar o tipo de humanidade a partir da qual a democracia pode ser
alcançada. A fé cria as coisas em que acredita...” (JONES, Stanley. 4
resposta dívina. Imprensa Metodista : São Paulo, 1995, p. 34)
68 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

nada de que o homem, ser imperfeito, participa, é de concluir-


se que a Democracia é a melhor “forma de governo”, embora,
hodiernamente, seja vista como um regime político ou, ainda,
como um ambiente axiológico. Adotando esse raciocínio, não
aceitamos a afirmação de Rousseau, segundo a qual, uma ver-
dadeira Democracia só haveria em um “governo de deuses”,
pois, para nós, os “deuses” não precisariam de Democracia,
mas dela não deveriam prescindir os seres humanos cuja fali-
bilidade decorre de sua própria natureza.
Segundo Hauriou e Renard, o Estado é uma instituição. Uma
instituição caracteriza-se por ser um corpo social que objetiva
a realização de um fim, que, no caso, é o bem comum. O bem
comum pode ser definido como o conjunto de condições exis-
tenciais para uma vida humana digna, daí porque Aristóteles
dizia que a razão pela qual os indivíduos se reúnem em cidades,
formando comunidades políticas, não é apenas a de viver em
comum, mas de viver bem, atingindo o que o doutor angélico
definiu como o bem dos governantes e dos governados. Assim,
o Estado é meio e não fim, tem por vocação servir a pessoa
humana, que, por sua vez, é sempre fim e nunca meio, como
demonstra a filosofia kantiana.
No Estado Democrático de Direito, a liberdade não é apenas
negativa, ou seja, liberdade para fazer o que a lei não proíbe,
mas liberdade positiva, que consiste na remoção dos impe-
dimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam em-
baraçar a plena realização da personalidade humana. Para
isso, o Estado tem que estar obrigado ao cumprimento de
prestações positivas, e tem que consagrar os direitos sociais
ao lado dos direitos individuais, sendo os primeiros, de certa
forma, garantia da realização dos últimos. Aqui a liberdade
do arbítrio de inspiração kantiana dá lugar à liberdade ética
de conformidade com o pensamento hegeliano. Seguindo
essa orientação, a Declaração Universal dos Direitos do Ho-
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 69

mem, adotada em 10 de dezembro de 1948, pela Organiza-


ção das Nações Unidas, em Assembléia Geral, consagra em
seu art. XXII, que
“todo homem, como membro da sociedade, tem direito
à segurança social e à realização, pelo esforço nacional,
pela cooperação internacional e de acordo com a organi-
zação e recursos de cada Estado, dos direitos econômi-
cos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e
ao livre desenvolvimento da sua personalidade”.

Jonh Stott, escritor inglês, revela-nos a dupla dimensão da


liberdade humana:
“E, no entanto, um equívoco muito sério definir liberda-
de em termos inteiramente negativos, embora o dicionário
cometa este engano. Segundo o dicionário, liberdade é “su-
pressão ou ausência de toda a opressão considerada anor-
mal, ilegítima, imoral”, enquanto que livre é aquele *que
pode dispor de sua pessoa; que não está sujeito a algum
senhor (por oposição a servil, escravo). Que não está priva-
do de sua liberdade física; que não está prisioneiro; solto”.
Mas tudo que é negativo tem o seu lado positivo. O ver-
dadeiro grito de liberdade clama não somente por resgate
de alguma tirania, mas também por liberdade para viver
uma vida plena e significativa. Quando um país é liberta-
do de um regime colonialista, torna-se livre para descobrir
e desenvolver sua própria identidade nacional. Quando a
imprensa é libertada do controle e da censura do governo,
torna-se livre para publicar a verdade. E uma minoria ra-
cial, quando é libertada da discriminação, fica livre para
desfrutar de respeito e dignidade própria. Afinal de contas,
quando um país não é livre, o que lhe é negado é o direito
de ser nação; quando não há liberdade de imprensa, o que
se lhe nega é a verdade; e quando uma minoria não é livre,
o que lhe é negado é o respeito próprio”.

9
Ouça o Espírito, ouça o mundo, São Paulo: ABU EditoraTeo, 1997, p. 57
10 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

O desenvolvimento histórico já não é do Estado despó-


tico ao Estado liberal, mas do Estado liberal à sociedade li-
beralizada, na qual o problema da liberdade não se refere
unicamente à organização do Estado, mas acima de tudo à
organização da produção e da sociedade. O que se quer não
é apenas a liberdade em face do Estado ou na sociedade po-
lítica, mas a liberdade em uma sociedade global.
Ao princípio do Estado de Direito se vincula o da se-
gurança através da legalidade, enquanto o princípio demo-
crático concerne à própria lei através da exigência de le-
gitimidade. No Estado Liberal, a separação entre Estado e
Sociedade limitava o primeiro ao campo da legalidade, mas,
ao lado disso, distanciava a lei de suas bases de legitimação.
No Estado Social de feições democráticas, há uma aproxi-
mação entre Estado e Sociedade, aumentando-se o âmbito
de regulação das relações humanas através da lei, mas com
maior prestígio para a legitimidade.
Nos capítulos seguintes trataremos de forma mais par-
ticularizada da noção político-jurídica de Estado Democrá-
tico de Direito e da concepção filosófica de dignidade da
pessoa humana.

BIBLIOGRAFIA

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BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade. 6º ed. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997
3 ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO

3.1 INTRODUÇÃO

Estado Democrático de Direito é aquele que se estrutu-


ra através de uma democracia representativa, participativa e
pluralista, bem como o que garante a realização prática dos
direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais, através
de instrumentos apropriados conferidos aos cidadãos, sem-
pre tendo em vista a dignidade humana.
As bases do Estado Democrático de Direito são a sobe-
rania do povo, expressa na manifestação da vontade popu-
lar, e a dignidade humana, consagrada na enunciação dos
direitos fundamentais. Em razão deste segundo pilar, evi-
dencia-se uma ampliação do conceito de democracia, a qual
terá que realizar-se, não apenas no plano político, mas tam-
bém nas dimensões econômica, social e cultural. Na esfera
econômica, o trabalhador, parte mais fraca nas relações la-
borais, deve ser protegido juridicamente para que não seja
explorado por aquele que dispõe de vantagem econômica,
isto é, pelo empregador. Na perspectiva social, exige-se jus-
tiça social, sendo esta não apenas a justiça distributiva que
estabelece que cada um deve receber de acordo com os seus
méritos ou capacidades, mas também aquela que proclama
que deve ser dado a cada um segundo a sua necessidade, ou
seja, as necessidades humanas primordiais devem ser aten-
74 GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES Filho

didas. Finalmente, no plano cultural, exige-se que a todos


seja assegurada a educação.
Assim, a estrutura democrática da sociedade consiste no
clima sócio-econômico favorável à vivência concreta dos
direitos fundamentais. Conforme Bobbio,
“a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos
se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos al
guns direitos fundamentais”,

3.2 O DIREITO PÚBLICO E O DIREITO PRIVADO


NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No Estado Democrático de Direito, há uma aproximação


entre o Direito Público e o Direito Privado, em face do in
teresse comum e maior da sociedade. No âmbito do Direito
Público, fica resguardado o respeito aos direitos individuais,
enquanto, no direito privado, o fenômeno da publicização se
opera, dando surgimento, inclusive, ao Direito Social como
terceiro ramo do Direito. Acima destes dois ramos do Direito,
coordenando-os numa síntese dialética, está o Direito Político
(Direito Constitucional).
Ao contrário do que previu Hegel, o Estado não se impôs
como totalidade ética sobre a fragmentação da sociedade ci
vil. O fenômeno da publicização do privado é acompanhado
por um processo de privatização do público, assinalando a
relativização da dicotomia PÚBLICO/PRIVADO. Bobbio
entende que
“os dois processos, de publicização do privado e de priva
tização do público, não são de fato incompatíveis, e real
mente compenetram-se um no outro. O primeiro reflete o
processo de subordinação dos interesses do privado aos
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1992, p. 01

1
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 75

interesses da coletividade representada pelo Estado que


invade e engloba progressivamente a sociedade civil, o
segundo representa a revanche dos interesses privados
através da formação dos grandes grupos que se servem
dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objeti-
vos. O Estado pode ser corretamente representado como
o lugar onde se desenvolvem e compõem, para novamen-
te decompor-se e recompor-se, estes conflitos, através do
instrumento jurídico de um acordo continuamente reno-
vado, representação moderna da tradicional figura do
contrato social”,

Sob um outro aspecto, J. CARLOS VIEIRA DE ANDRADE


registra a interpenetração recíproca entre o público e o privado:
“O Estado-Administração vai aparecer na vida social
metamorfoseado em diversas figuras jurídicas e, por ve-
zes, na veste de sujeito privado, ao mesmo tempo que
entidades privadas exercem tarefas de interesse coletivo
ou determinam em termos fundamentais os comporta-
mentos de indivíduos em certas áreas sociais — esba-
te-se a distinção entre entidades públicas e privadas e,
em consequência, a diferença entre o direito público e o
direito privado como critério de relevância dos direitos
fundamentais”.

Um bom exemplo de privatização da esfera pública é a


arbitragem, ou seja, a circunstância na qual o exercício do
poder jurisdicional do Estado é realizado por um particular
através de convenção das partes interessadas, quando a re-
lação jurídica suscetível de apreciação tratar de direitos dis-
poníveis. Segundo o professor JOSÉ DE ALBUQUERQUE
ROCHA, a arbitragem é “uma forma de resposta à crise

2? BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1997, p. 27
3 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 274
76 GLauco BarREIRA MAGALHÃES FILHO

do Judiciário ”*, para cuja solução o liberalismo atuou com


força motriz.
Os direitos fundamentais, no Estado Democrático de Di-
reito, ganharam uma dimensão objetiva, não sendo mais vis-
tos como meros direitos subjetivos oponíveis contra o Estado.
Agora, eles são também vistos como valores constitucionais
normatizados que aos poderes públicos cabe não só respeitar,
mas igualmente fazer com que eles sejam respeitados como in-
teresses públicos fundamentais. Desta forma, ultrapassa-se O
antagonismo entre o indivíduo e o Estado. Os direitos funda-
mentais, como normas de valor, devem valer para toda a or-
dem jurídica, inclusive para o direito privado, razão pela qual
se fala na eficácia externa ou efeitos em relação a terceiros dos
direitos fundamentais, ou seja, os referidos direitos podem ser
também arguídos contra terceiros que não seja o Estado.

3.3 A CARACTERIZAÇÃO DO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Na antiguidade clássica, predominava o princípio da auto-


ridade, revelado na organização política, regida por uma aris-
tocracia. O cidadão só era reconhecido como livre na “polis”, a
liberdade era uma prerrogativa do cidadão e não da humani-
dade. Semelhantemente, na idade média, considerava-se se-
guro aquele que estava sob a proteção de senhor feudal, sob
condição de encargos, prestação de serviços e vassalagem.
Nestes dois períodos, a dedução era o método adotado no
processo de conhecimento. Ora, o método dedutivo caracte-
riza-se por partir de uma premissa ESTABELECIDA (geral),
da qual terá que brotar NECESSARIAMENTE a conclusão
(particular). Assim, na Grécia, só tinha liberdade quem estava

4 ROCHA, José de Albuquerque. 4 lei de arbitragem (uma avaliação cri-


tica). São Paulo: Malheiros, 1998, p. 20
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsrrruIÇÃO
77

oa:
na “pólis” (premissa), enquanto, na idade média, só recebia
proteção quem se encontrava no feudo
Durante a fase liberal do velho Estado de Direito, predo-
minou o individualismo, sendo afirmada a liberdade humana
perante o Estado. A organização política seria fruto do con-
senso e, logo, da manifestação da vontade dos indivíduos. As-
sim, o ente estatal deveria recuar diante da esfera de liberdade
de cada um, assegurando apenas a ordem e a segurança, ou
simplesmente, a não intervenção da liberdade de um na liber-
dade do outro. Nesta época, adotava-se a indução como mé-
todo científico, consistindo esse meio de cognição na obser-
vação dos casos PARTICULARES para se concluir uma lei,
mediante um salto do particular para o geral. A validade de
uma explicação estava no grau de satisfação alcançado pela
sua correspondência aos casos. No plano político, afirmava-
se que o Estado(geral) era fruto da manifestação de vontade
dos indivíduos e que sua legitimidade decorria do fato de ele
estar a serviço da liberdade dos particulares.
À luz da distinção, hoje feita, entre ciências naturais e ciên-
cias culturais, o ato intelectivo próprio das ciências culturais
resulta de um processo dialético, que consiste na busca de
uma síntese proveniente da confrontações das diversas com-
preensões possíveis de um objeto, o qual possui um substra-
to (suporte) e um sentido(projeção do espírito humano). O
sujeito cognoscente é, por sua vez, visto não mais como um
ente autônomo que vê o objeto de um ângulo que lhe permite
desfrutar de neutralidade, mas sim, como alguém que deter-
mina o objeto, enquanto é por este determinado. No caso, o
objeto cultural seria contemplado não apenas como produto
de um autor individual, mas como uma realidade histórica em
movimento, € o intérprete, por sua vez, como membro de uma
determinada sociedade, o consideraria em seu próprio contex-
to condicionante de valores. O padrão de verdade estaria não
78 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

mais na objetividade, mas na intersubjetividade (consenso).


No plano político, o reflexo seria o surgimento do Estado De-
mocrático de Direito, procurando conciliar o individual com
o social. No caso, o Estado admite a liberdade de cada um
para realizar o seu projeto existencial, procurando garantir a
convivência dos arbítrios, mas também intervindo de modo
a remover os impedimentos à expressão plena e concreta da
personalidade humana, criando o ambiente propício para a
materialização dos direitos individuais para todos, através da
satisfação dos direitos sociais.
O Estado Democrático de Direito é teleológico, na medida
em que tem um padrão de valor, mediante o qual toda atividade
estatal há de aferir-se. No caso, a finalidade a ser alcançada é o
conteúdo democrático do Direito, realizando-se o bem comum.
Como, todavia, a sociedade é dinâmica e os valores político-
Jurídicos se adaptam ao tempo, diz-se que esse fim estatal é o
elemento permanente no variável e o necessário no contigente.
Na Democracia, o povo é titular e objeto do poder legíti-
mo. O povo “ativo” seria a parte da populacão de um Estado
que, através de seus representantes eleitos, se responsabiliza
pela formação textual das normas jurídicas. O povo em sen-
tido amplo (povo destinatário) diz respeito a todos aqueles
aos quais as normas se dirigem, sendo estas integradas a um
ordenamento jurídico em cujo topo se encontra uma Cons-
tituição assegura aos cidadãos os mesmos direitos funda-
mentais, civis ou políticos. Assim, os direitos fundamentais
são direitos democráticos, acauteladores da participação de
todos nos processos políticos, sociais e jurídicos.
O povo — destinatário não seria, de fato, “passivo”, pois,
conforme FRIEDRICH MULLER, participaria da concre-

* MULLER, Friedrich. 4 Questão Central da Democracia: Quem é 0


Povo?. Livro de teses — Tema | — As Transformações da Sociedade e do
Estado, XVI Conferência Nacional dos Advogados, passim.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 79

tização das normas jurídicas. Por serem os princípios consa-


gradores de direitos fundamentais dotados de um grau ele-
vado de generalidade e abstratividade, a regulação de cada
um é determinada no caso concreto pelo julgador, de acordo
com a vivência comunitária dos valores que eles represen-
tam. Além disso, é de se lembrar que a efetivação dos direi-
tos básicos depende, muitas vezes, da participação da comu-
nidade através de meios institucionais(Ação Popular, Ação
Civil, Mandado de Injunção) ou, simplesmente, através do
processo social de determinação do sentido dos preceitos ju-
rídicos. No Estado Democrático de Direito há uma comunt-
dade de pessoas livres e iguais em que todos têm o direito de
discutir e decidir sobre aquilo que merece o reconhecimento
geral. Assim, ao contrário do Estado Liberal (absenteísta) e
do Estado Social (intervencionista), o Estado Democrático
de Direito torna-se um instrumento que garante a existência
de uma sociedade pluralista e participativa.
A concepção aqui exposta de Democracia não somente re-
leva o seu aspecto substancial (efetivação dos direitos funda-
mentais) ao lado da dimensão formal (governo representativo),
como também aponta para uma predominância do poder judi-
ciário sobre o poder legislativo. No Velho Estado de Direito,
a democracia relacionava-se apenas com a formação textual
das normas jurídicas pela via representativa. Agora, vê-se que
os direitos fundamentais não podem ter a sua determinação
de sentido na atividade legiferante, visto que esta terá de atuar
em consonância com os mesmos; antes, é a própria sociedade,
como intérprete existencial dos valores, que deverá estabelecer
os termos da regulação, sendo o juiz, como seu representante,
chamado a decidir, nos casos de controvérsia, as situações fáti-
cas mediante a razão e a intuição. Através da intuição, captará
a vivência axiológica comunitária, enquanto, mediante a razão,
compreenderá a estrutura do texto normativo, descobrindo a
80 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

solução que concilie as duas faculdades cognitivas (intuição e


razão), sem excluir o dever de fundamentar a sua decisão, aten-
to sempre às exigências permanentes de justiça e de respeito à
dignidade da pessoa humana.
Em um Estado Democrático de Direito, o juiz tem o que
aqui intitulamos de “responsabilidade ético-funcional”. Sob
o ponto de vista ético, o magistrado é regido pelo princí-
pio da equidade que prescreve a realização da justiça no
caso concreto, enquanto pelo aspecto funcional, o julgador
vincula-se à ordem jurídica normativa. Assim, o juiz deve
fundamentar e motivar as suas decisões. A fundamentação
liga-se à indicação do fato precedente que serve de base para
a decisão, e das normas aplicáveis ao caso. A motivação en-
volve a exposição das razões pelas quais se definiu o fato de
um determinado modo e mediante as quais foram escolhidas
determinadas normas jurídicas para serem aplicadas, bem
como inclui a interpretação dada às normas. A motivação
deve ser racional e compreensível, a fim de que possa servir
como garantia do controle democrático difuso.
De acordo com lições do professor WILLIS SANTIA-
GO GUERRA FILHOS, a expressão “Estado Democrático
de Direito” refere-se não apenas a uma fórmula política,
mas também a um vetor de orientação (pré-compreensão)
para a interpretação das normas constitucionais e um pro-
grama de ação, sendo a Constituição, nestes termos, defini-
da como um processo. Similarmente, JOSE AFONSO DA
SILVA afirma que “a democracia não é apenas “governo”,
mas muito mais do que isso: ela é forma de governo, forma
de vida e sobretudo PROCESSO”. ARNALDO VASCON-
CELOS lembra que

9 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Elementos de uma Teoria Geral da Poli-


tica. Fortaleza: Idéias e Debate, Instituto Teotônio Vilela, 1998, pp. 135 ss.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10"
ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 26
HerMENBUTICA E UNIDADE ÁXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO
81

“a autorização para o exercício do poder requer constan-


te e permanente vigilância do corpo de cidadãos sobre
seus representantes, submetendo-os ao “plébiscite de
tous les jours”, de que nos fala Ernest Renan referindo-
se à democracia como PROCESSO”.

Poderíamos, então, dizer que a realização do Estado De-


mocrático de Direito é a enteléquia da República Federativa
do Brasil, assim como a justiça é a enteléguia do Direito. A
expressão enteléquia era usada por Aristóteles no sentido
de perfeição decorrente do processo de atualização de uma
potência ou pleno desenvolvimento de um ente em direção
ao fim que lhe é inerente.
É bom lembrar que nunca, na nossa história, tivemos uma
Constituição como a atual, que ousasse tanto em matéria de
instrumentalização da intervenção dos cidadãos no Estado
a partir da atuação do Poder Judiciário — mediante a ampla
viabilidade da convocação desse Poder para a correção dos
desvios de legalidade (como no caso da relevância das ações
coletivas em geral e dos outros mecanismos processuais cons-
titucionais) e da inconstitucionalidade dos atos.
Numa democracia participativa, o exercício do direito
de ação é uma das mais eficazes formas de participação das
pessoas na vida do Poder. O direito de ação torna-se um di-
reito cívico, sendo a cidadania compreendida como parti-
cipação popular nas decisões emanadas do Poder Político,
ou ainda, como capacidade de influir nas esferas do Poder.
Abre-se, assim, a possibilidade do exercício constitucional
da cidadania através de instrumentos processuais.
A ação popular, sendo o principal mecanismo de controle
vinculado à cidadania, não pode ter uma pessoa jurídica no

e Democracia. São
* VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo
Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 26
82 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

pólo ativo. De forma acertada, portanto, estabelece a Sú-


mula 365 do Supremo Tribunal Federal quando afirma que
“pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação
popular”. Nos termos do artigo 5º, LXXIII a Constituição
preceitua que
“qualquer cidadão é parte legitima para propor ação po-
pular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público
ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histó-
rico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

Assim, os representantes dos Poderes da República, elei-


tos pelo povo, que poderão, na maior parte das vezes, causar
atos lesivos ao patrimônio público e aos bens protegidos no
artigo supracitado, terão sua atividade submetida ao controle
daqueles em nome de quem exercem o munus público.
A afirmação de que a República Federativa do Brasil se
constitui em Estado Democrático de Direito, exposta no ar-
tigo 1º de nossa Constituição, traduz a “decisão fundamental
do constituinte”(Carl Schmitt), ou seja, sua opção política
básica, seu dever ser político norteador do ordenamento le-
gal. Teríamos aqui uma super-ideologia ou ideologia global.
Assim, qualquer partido político pode ter a sua ideologia
própria, desde que assuma o compromisso de realizar o pro-
“grama estabelecido no primeiro artigo de nosso Estatuto
Fundamental, bem como seguir as suas diretrizes as quais,
apesar de comportarem interpretações divergentes, devem
ser definidas dentro dos limites hermenêutico-valorativos
que preservem o seu espírito.
No primeiro artigo da Constituição federal, estão consa-
grados os fundamentos do Estado Democrático de Direito:
1) a soberania; 2) a cidadania; 3) a dignidade da pessoa hu-
mana; 4) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
HERMENÊUTICA E UNIDADE À XIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 83

e 5) o pluralismo político. A soberania e o pluralismo jurí-


dico são condições objetivas de um Estado Democrático de
Direito, enquanto os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa são suas garantias institucionais, e a dignidade da
pessoa humana, a base material cuja projeção político-jurí-
dica faz surgir a cidadania.
Alguns autores colocam em discussão a precisão da ex-
pressão “Estado Democrático de Direito”, em razão de se
adotar em Portugal a expressão “Estado de Direito Democrá-
tico”. Parece-nos, todavia, que ambas as terminologias estão
corretas, cada uma dando ênfase a um aspecto diverso. No
Brasil, se preferiu a caracterização democrática do Estado, e,
assim, são realçadas as condições objetivas e as garantias ins-
titucionais, enquanto em Portugal se atribuiu a qualificação
democrática ao Direito, fazendo a ênfase maior recair sobre a
dignidade da pessoa humana como fonte de Direitos Funda-
mentais (direitos de liberdade e direitos de igualdade).
Até certo tempo, a soberania era considerada da essência
do poder político, o qual, por sua vez, era reconhecido como
um dos elementos estruturais e constitutivos do Estado, no
caso, o elemento formal, distinto dos elementos materiais
consistentes no povo (elemento humano) e no território (ele-
mento espacial). O conceito de soberania foi relativizado na
Idade Média, invocando-se a supremacia da Igreja, ou seja,
a superioridade do eterno sobre o temporal. Com o enfra-
quecimento do poder papal e o surgimento do absolutismo, a
noção de soberania ganha toda força, recebendo ênfase, sob
o aspecto externo, no pensamento de Bodin e, sob o aspecto
interno, no pensamento de Hobbes. E quando os jusnatu-
ralistas passam então a relativizar o conceito de soberania
interna, afirmando a existência de um elemento teleológico”

2 O prof, Paulo Bonavides trata exaustivamente do elemento finalístico


do Estado segundo o jusnaturalismo na sua obra intitulada Teoria do Es-
84 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

do Estado, ao lado dos elementos estruturais. Assim, o Esta-


do era soberano para atingir um fim, no caso o bem comum,
que tinha como pressuposto a dignidade humana. Kelsen,
em nosso século, sujeitou a idéia de soberania a uma certa
relativização, dizendo que o ordenamento jurídico nacional
encontrava fundamento de validade no ordenamento jurídico
internacional ao qual estava engrenado através do princípio
da efetividade, princípio que exigia que as ordens jurídicas
nacionais gozassem de um mínimo de eficácia para serem
reconhecidas. Finalmente, Jellinek percebeu que a soberania
externa era apenas uma qualificação do poder político e não
um dado de sua essência.
Ressaltamos que já não paira dúvidas quanto à inerência
da soberania interna ao poder político, entendida esta última
como sendo o poder de efetivar a ordem jurídica no âmbito
interno. Em decorrência, todavia, do fenômeno da globali-
zação, e com o aumento da interdependência entre Estados
e a mundialização da informação, alguns têm falado no fim
do Estado-Nação, com a consequente extinção da soberania.
A República Federativa do Brasil, no entanto, afirma a sua
soberania, reconhecendo-a como um dos fundamentos do
Estado Democrático de Direito. Longe de se pretender, com
isso, O insulamento ou negar o caráter relativo que hoje se
atribui ao conceito de soberania, o que se quer é, de confor-
midade com lição de MIGUEL REALE, estabelecer o “di-
reito que cada Nação tem de preservar sua própria identi-
dade cultural e salvaguardar seus próprios interesses”.

tado, onde também afirma que “a idéia do direito por principal escopo
do Estado é, segundo Gierke, um dos fundamentos do jusnaturalismo.
E como o Estado deriva do individuo, qual deliberada criação de sua
vontade, não poderão buscar-se-lhe fins à margem da esfera individual”
(Teoria do Estado. 3º ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 30)
0 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideo-
logias. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 3
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 85

A dignidade da pessoa humana é o valor fonte, a base


material para definir os direitos fundamentais. A cidadania é
a projeção político-jurídica da condição de ser pessoa.
A consagração da livre iniciativa como fundamento do Esta-
do Democrático de Direito revela a preferência pelo liberalismo
político e econômico, sendo vedada a estatização da economia.
Assim, a faculdade de o Estado “regular a economia” mediante
fiscalização e incentivos não deve ser confundida com o propó-
sito de regê-la. Por outro lado, a norma constitucional objetiva dá
a sociedade civil uma configuração resultante dos valores sociais
do trabalho. Alguns identificam aqui o princípio do Estado Social
que iria interagir dialeticamente com o princípio do Estado de
Direito. Outros autores, todavia, já sob a influência do neo-libe-
ralismo, proclamam que “os valores sociais do trabalho” dizem
respeito apenas a um “tempero” social para o liberalismo. Desta
forma, a igualdade seria um valor subordinado à liberdade, e com
o que se projetaria um liberalismo social ou social — liberalismo,
em vez de socialismo, social democracia ou socialismo-liberal.
MIGUEL REALE diz que o liberalismo social “caracteriza-se
exatamente por um constante e contínuo balanceamento de va-
lores postos por diversas conjunturas, figurando a livre iniciati-
va em um polo e, no outro, os interesses do consumidor".
Na realidade, a Constituição de 1988 consagra um modelo
relativamente aberto de ordem econômica, que permite, pela
interpretação dinâmica, a adequação à certas mudanças da rea-
lidade social, instrumentalizando-as para alcançar os seus fins.

3.4 A IMPORTÂNCIA DO DIREITO ECONÔMICO


NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Lembramos que o socialismo e o liberalismo são concep-


ções doutrinárias antagônicas no plano econômico e político
3
Op. Cit., pp. 45 e 46
86 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

e, por isso mesmo, preconizadoras de diversas maneiras de


organização societária e de Estado.
Sob o socialismo, temos o planejamento, a execução e O
controle da economia centralizados pelo poder político, sendo
o Estado detentor, em sua forma mais ideologicamente es-
truturada, de todos os meios de produção. Não haveria pro-
priamente um intervencionismo, porquanto a economia seria
alheia à maioria das regras de mercado. Só se pode “inter vir”
(“vir entre”) se houver dois polos. No Socialismo prevalece o
monopolitismo dirigista estatal.
No liberalismo, o Estado intervém o menos possível, de-
sempenha apenas funções que lhe são “típicas” , como a de
distribuição da justiça e do exercício do poder de polícia,
proporcionando a segurança e provendo os meios ou recur-
sos indispensáveis à atividade fim, através da arrecadação
tributária que terá de ser feita nos estritos limites da lei, com
esconjuração de qualquer prática de confisco.
No plano jurídico, o liberalismo advoga a generalidade
e a abstratividade como características da norma jurídica, a
fim de “garantir” a igualdade (formal) e a não intervenção
do Estado na livre iniciativa e nas negociações privadas, bem
como define o direito de propriedade como um direito quase
absoluto, porque decorrente da natureza humana.
Sob a concepção liberal, construímos um ente estatal com
um papel mais de natureza reguladora, razão pela qual não
terá o controle que se estende aos elos da cadeia produtiva
a partir do próprio domínio dos meios de produção. E que o
liberalismo se coloca intransigentemente em defesa da pri-
vacidade e das liberdades individuais e se opõe a qualquer
aumento do poder do Estado, sobretudo na esfera econômica.
É, sem dúvida, sob a influência de tais idéias que se advoga
a privatização das empresas estatais, inclusive, no Brasil, em
uma nova ordem mundial aberta e globalizada.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 87

Nas complexas organizações sociais modernas, no entan-


to, não acode a mais ninguém que se possa adotar um “laisser
faire” absoluto, sem freios, pois seria ele ensejador de uma
selvageria ou de uma barbárie, com prevalecência da vontade
dos mais fortes a mercê da qual se quedaria a sorte dos mais
fracos. Não teríamos então como impedir, exemplificativa-
mente, o trabalho infantil que representa uma agressão insu-
portável ao ser humano, inaceitável em qualquer circunstância,
cujas consequências são as mais funestas.
Modernamente, com os grandes conglomerados econô-
micos e financeiros propiciadores de grande concentração
da riqueza, torna-se cada vez mais premente a necessidade
de um direito econômico sob a égide do qual se controle a
concorrência, para que a atividade humana se faça de uma
maneira civilizada, em que as oportunidades, a iniciativa de
criar e compartilhar da atividade produtiva não seja mono-
pólio de uns poucos privilegiados.
O liberalismo apregoou a liberdade de iniciativa e de
competição. Não atentou, no entanto, para a preservação das
condições de competição. Falava-se em igualdade e liberdade,
mas não se colocava nas mãos do Estado os instrumentos
para a efetivação prática desses valores, esquecendo-se que
para competir, é preciso poder competir.
Para conciliar dois modos extremos de pensar e estruturar
a sociedade em face do Estado é que ganha notável desenvol-
vimento em todos os países do mundo o Direito Econômico,
com sensível ênfase para o Direito Concorrencial. Legislações
surgem para proteger a competitividade e evitar o açambar-
camento monopolizador de um setor em detrimento de outros
cuja presença no mercado seri inviabilizada por práticas con-
denáveis de atores empresariais cuja ambição, muitas vezes,
não conhece limites.
88 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Daí a edição de leis antitrustes coibidoras de certas fusões


ou formações de cartéis que possam ser levadas a efeito pelos
agentes econômicos, capazes de tolher o próprio crescimento
ou desenvolvimento econômico de um país. Coarctando-os,
sem dúvida, intervém o Estado na economia, fazendo-o, no
entanto, onde somente a sua ação se faz necessária, preser-
vando sempre a liberdade de iniciativa, desde que exercida
dentro dos limites em que sejam observados parâmetros em
que possa funcionar uma saudável economia de mercado.
A postura intervencionista (para regular e não para reger)
veio para salvar o mercado. Não buscou extingui-lo, mas se
apresentou como uma saída para a capitalismo, embora te-
nha limitado as suas manifestações.
O relativo intervencionismo objetiva corrigir o liberalismo
e prevenir revoluções socialistas.
Em consonância com a política de defesa da concorrência,
surgiram os orgãos encarregados de fazer cumprir a legisla-
ção voltada para esse fim e floresceram em inúmeros Estados.
São verdadeiros tribunais econômicos, como o FEDERAL
TRADE COMISSION nos Estados Unidos, o qual tem como
similar no Brasil o Conselho Administrativo de Defesa Eco-
nômica — CADE.
A importância de tais organismos cresce exponencial-
mente com o processo de globalização que, sem dúvida, é o
marco mais inconteste das grandes transformações por que
passa o mundo na última década do século XX.
A eles cabem zelar, em um primeiro momento, para que
fusões de empresas ou acordos entre elas não venham preju-
dicar a livre concorrência.
Podemos, por outro lado, na Lei no. 8078, de 11/09/90,
que foi editada em defesa do consumidor, vislumbrar nor-
mas de Direito Econômico que podem, perfeitamente, inse-
rir-se nesse papel de conciliação entre os princípios em que
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsrtiTUIÇÃO 89

se alicerça o liberalismo e aqueles que buscam a realização


do interesse social. Assim, teríamos ao lado da dialética ca-
pital x trabalho, a dialética produtor x consumidor.
Uma outra forma de o Estado intervir na economia é
através da tributação extrafiscal, que não visa obter recursos
para o erário, como no caso da tributação fiscal, mas, sim,
ordenar a economia e as relações sociais, demonstrando que
o intervencionismo é gerado por uma decisão política de
efeitos econômicos e sociais.
Segundo o ilustre professor Raimundo Bezerra Falcão'?,
no seu livro TRIBUTAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL, entre
outros aspectos sobre os quais existem possibilidades de atu-
ação mudancista da tributação, podemos apontar: a) redistri-
buição de riquezas, a nível individual, setorial e regional;
b) incentivo à produção e à produtividade; c) controle de
preços; d) equilíbio do balanços de pagamentos; e) estímulo
à educação e à pesquisa científica; f) ordenação das tendén-
cias populacionais, dos fluxos migratórios e da densidade
demográfica regional; e g) planejamento familiar
Na Alemanha, a luta contra o individualismo das ordens
jurídicas liberais promovida por Otto Von Gierke levou a ad-
missão de um terceiro ramo do Direito, ao lado do Direito
Público e do Direito Privado: o Direito Social. O advento
do Direito Social com ênfase na proteção do trabalhador
decorreu de uma concepção de democracia de base econô-
mica que colocou o pensamento social de igualação em lu-
gar do pensamento liberal de igualdade formal (Radbruch).
Assim, o Direito Público se dava para o Estado, o Dreito
Privado para o indivíduo e o Direito Social se dá para a
sociedade(Tobenãs).

2 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Rio de Ja-


neiro: Forense, 1981, passim.
90 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

O individualismo liberal, inspirado na idéia de um Direi-


to Natural transcendente e racional que consagrava a liber-
dade e a igualdade formal, estava sendo ultrapassado pelo
pensamento hegeliano, que ora se encontra sob invectiva do
neoliberalismo.
A nossa Constituição também estabeleceu a função so-
cial da propriedade objetivando conferir à propriedade uma
destinação menos egoística, não permitindo a sua explora-
ção em prejuízo do bem comum.
Por essa disposição constitucional são impostas tempe-
ranças ou restrições ao uso abusivo da propriedade, não po-
dendo mais esta ser vista como aquele “jus utendi, fruendi
et ABUTENDI”, como queriam os romanos. A propriedade
estática cede diante da propriedade dinâmica.

BIBLIOGRAFIA

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Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992
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Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança So-
cial. Rio de Janeiro: Forense, 1981
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 4º
ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1996
Á | A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

“A ciência é uma grande coisa quando você pode al-


cança-la, uma das mais grandiosas palavras no mundo.
Mas o que esses homens, nove entre dez, querem di-
zer, quando a usam hoje em dia?...Querem dizer che-
gar ao lado de fora de um homem e estudá-lo como se
fosse um inseto gigante: sob aquilo que chamam de
uma luz árida e imparcial, e que eu chamaria de uma
luz morta e desumanizada. Eles querem dizer tomar
uma grande distância dele como se ele fosse um mons-
tro pré-histórico...Quando o cientista fala de um “tipo”,
nunca quer dizer ele mesmo, mas sempre um vizinho;
provavelmente seu vizinho mais pobre. Não nego que
a luz árida pode às vezes fazer bem; embora, num cer-
to sentido, é o verdadeiro reverso da ciência. É tratar
um amigo como estranho, e fingir que algo familiar é,
realmente, remoto e misterioso...”
(G. K. CHESTERTON, O homem invisível. Imago: RJ,
97, pp. 18,19)

4.1 INTRODUÇÃO

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em


DIGNIDADE e direitos. São dotados de razão €
consciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade”(Art. 1º da Declaração
Universal de Direitos Humanos).
94 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

O art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos


enunciado acima estabelece a exigência de que todos sejam
tratados segundo uma regra isonômica decorrente do reco-
nhecimento da igualdade entre os homens, naquelas quali-
dades que lhes constituem a essência ou natureza, ou seja,
naquilo que os distingue dos demais seres, sendo esse elemento
individualizador o que responde pela dignidade humana, pres-
suposto da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal do Brasil, no seu artigo 1º, consa-
gra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos
do Estado Democrático de Direito, incluindo a cidadania no
catálogo de valores básicos. A cidadania, na verdade, é uma
dimensão do “ser pessoa”!, é uma projeção político-jurídica
da condição de “ser pessoa”.
A “Dignidade da Pessoa Humana” é a fonte ética dos
direitos fundamentais, não sendo estes senão emanações do
valor básico mencionado. Por este motivo, fala-se hoje em
dimensões e não mais em gerações de direitos fundamen-
tais, sendo a relação deles com a dignidade da pessoa huma-
na equiparada àquela que há entre existência e o Ser. Dentro
desta perspectiva revela-se descabida a teoria de Jellinek,
segundo a qual os direitos fundamentais são direitos públi-
cos subjetivos resultantes da auto-limitação da soberania.
Na realidade, os direitos fundamentais, bem como toda a
ordem jurídica tem como assento material o valor da pessoa
humana, do que se deduz que os chamados direitos públicos
subjetivos não são conferidos pelo Estado, mas apenas, re-
conhecidos por ele.
A pessoa humana é um valor intocável, porquanto o ho-
mem, sujeito auto-consciente, capaz de pensar a si mesmo

" HERKENHOFF, João Batista, CURSO DE DIREITOS HUMANOS.


Volume 1. Editora Acadêmica. São Paulo, 1994, p. 95
HerMENBUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConstiTUIÇÃO 95

como objeto, tem uma subjetividade que transcende a obje-


tividade, e, logo não pode nunca ser visto como meio, mas
sempre como fim, de conformidade com o pensamento kan-
tiano. Os objetos podem ser relacionados, mas só o sujeito
é dotado da faculdade de relacioná-los. No entanto, convém
lembrar que há uma interação dialética entre sujeito e objeto
no processo de cognição, resultante da interferência recípro-
ca, assim como não se pode deixar de admitir que a intersub-
jetividade condiciona a subjetividade individual.
Martin Buber, filósofo judeu do século XX, também
mantinha como absoluto moral que as pessoas devem ser
tratadas como fins e não apenas como meios. Devemos man-
ter com os outros relações de pessoa-a-pessoa, e não uma
relação de pessoa-com-coisa. Buber deu a isso o nome de
Eu-Você versus Eu-Coisa, afirmando que a norma Eu- Você é
universal para o comportamento humano, e que não deveria
haver exceções com relação a ela. Assim, as coisas deveriam
ser usadas enquanto as pessoas deveriam ser amadas.
Não precisariamos ser filósofo ou teólogo para compreen-
der que o imperativo categórico de Kant e o Eu-Você de Buber
assemelham-se ao princípio popularmente conhecido como a
Regra de Ouro, a qual foi estabelecida por Jesus Cristo nos se-
guintes termos: “Como quereis que os homens vos façam, as-
sim fazei-o vós também a eles “( Evangelho de S. Lucas 6: 31).
Como os direitos fundamentais são reflexos imediatos ou
desdobramentos históricos da dignidade da pessoa humana,
quando eles entram em colisão no caso concreto, nenhum
deles pode sofrer supressão, mas antes deve haver uma har-
monização prática ou uma solução de compromisso. Assim,
um princípio constitucional pode restringir-se em face do
outro, mas não ao ponto de ser atingido no seu núcleo exis-
tencial, A proteção do ser de todas as pessoas exige a relati-
vização do ter,
96 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

4.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUAS


BASES FILOSÓFICAS

Na Grécia antiga, os primeiros filósofos tinham uma pers-


pectiva cosmológica das coisas, pois procuravam descobrir a
substância ou as substâncias básicas do mundo. Os sofistas,
com pretensões de demolição das crenças vigentes, apregoa-
ram que o homem era a “medida de todas as coisas”, passando
a ser responsáveis pela erupção da crítica às crenças vigentes
na pólis, pelo relativismo na ética e pelo ceticismo na epis-
temologia. De forma mais moderada, Socrátes desenvolveu
a sua visão antropológica, ao enfatizar o autoconhecimento,
a racionalidade humana e a ética dela decorrente. Entre os
estóicos, o homem foi visto como cidadão de uma macrópolis
(cidade universal). No entanto, é na orientação judaico-cristã
que a idéia de dignidade humana vai ter o seu desenvolvimen-
to e a sua formulação mais explícita.
Para os judeus e cristãos, Deus é o sumo bem que pode ser
agora contemplado pela fé, e no porvir, pela visão beatífica.
O Bem é absoluto e transcendental. O valor é a apreciação
de algo (coisa, vontade ou comportamento) em referência
ao Bem (Deus). Segundo Santo Agostinho, “tudo o que se
observa de admirável na natureza das coisas no universo, e
que julgamos dignos de admiração, intensa ou fraca, deve
ser referido com incomparável e inefável louvor ao Cria-
dor”. O homem, por ter sido criado à imagem e semelhança
de Deus, é valorado positivamente como pessoa finita, en-
quanto Deus é pessoa infinita.
Na visão judaico-cristã, o homem foi criado à imagem e se-
melhança de Deus, após os animais, tornando-se a coroa da cria-
ção divina. Para Santo Agostinho, os dias da criação representam
fases ascendentes de complexidade da intervenção criadora do

2 Olivre arbitrio. São Paulo: Paulus, 1995, p. 134


HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 97

Todo-Poderoso. Assim, o homem , criado no último dia, seria o


ser que, na terra, revelaria com maior nitidez o poder e a glória de
Deus. O homem estaria situado em um plano intermediário entre
os animais irracionais e a Divindade, sendo que Aristóteles o de-
finiu por baixo, ao dizer que ele era uma animal racional ou ani-
mal político, enquanto a Bíblia o definiu por cima, isto é, como
imagem de Deus. Taciano, o Sírio, um dos Padres Apologistas,
disse no seu DISCURSO CONTRA OS GREGOS o seguinte:
“O homem não é, como dogmatizam os que têm voz de
gralhas, animal racional, capaz de inteligência e ciência,
pois, segundo eles, pode-se demonstrar que também os
irracionais são capazes de inteligência e ciência. Con-
tudo, só o homem é imagem e semelhança de Deus, e
chamo homem não ao que realiza ações semelhantes
aos animais, mas àquele que, indo além da humanidade,
chega até o próprio Deus”.
“No animal”, escreveu Emil Brunner,
“não vemos o menor indício de tendência de buscar a ver-
dade por amor à verdade, de moldar a beleza por amor à
beleza, de promover à justiça, de reverenciar o Santo por
amor da sua santidade...O animal nada conhece “acima” de
sua esfera imediata de existência, nada pelo qual medir ou
testar sua existência...A diferença entre animais e seres hu-
manos abrange toda uma dimensão de existência””.
Não é de admirar que Shakespeare tenha feito Hamlet
irromper em seu elogio: “Que obra de arte é o homem!
Quão nobre em raciocínio! Quão infinito em suas fa-
culdades! Quão semelhante aos anjos na ação! No en-
tendimento, quão semelhante a Deus! Oh, a beleza do
mundo! O protótipo dos animais! >,

Padres Apologistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 81


Apud STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU
editora, 1997, p. 42
Apud STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU
editora, 1997, p. 42
Grauco BARREIRA MAGALHÃES FiLHO
98

Para o cristianismo, o homem distingue-se dos animais


por possuir uma alma imortal, racional e livre, dotada da ca-
pacidade de fazer opções morais e do poder de criatividade
artística. Essa alma distingue-se do corpo, apesar de intera-
gir com ele, daí porque muitas emoções diferentes provocam
as mesmas reações físicas, evidenciando que há em nós um
homem interior tão rico que as sensações físicas se mostram
como uma linguagem pobre para lhe dar expressão. Sobre
isso, escreveu C. S. Lewis:
“E aqui, creio eu, encontramos o que estamos procuran-
do. Entendo que a nossa vida emocional esteja “acima!
das nossas sensações — claro que não sendo moralmente
superior, mas, sim, mais rica, mais variada, mais sutil.
E quase todos conhecemos esse plano superior. E creio
que, se alguém observar cuidadosamente a relação entre
as suas emoções e as suas sensações, descobrirá que: 1)
os nervos reagem, em certo sentido, de modo adequado
e preciso às emoções; 2) as possibilidades de variação
dos sentidos são muito menores que as das emoções,
seus recursos, muito mais limitados e 3) os sentidos
compensam essa deficiência servindo-se da mesma sen-
sação para manifestar mais de uma emoção — até, como
vimos, para manifestar emoções opostas.”

Os defensores do culto da auto-expressão na atualidade


têm dito que a ética cristã afronta a dignidade da pessoa hu-
mana, na medida em que reprime “eu” humano, através dos
seus preceitos morais. Os cristãos, todavia, não são contra à
expressividade, mas, antes, querem estabelecer um conceito
correto de homem, ou seja, devemos ser definidos a partir
de cima como “imagem e semelhança de Deus” e não, por
baixo, pelo nível da animalidade. Assim, os instintos devem

* LEWIS, C.S. Peso de Glória, São Paulo: Sociedade Religiosa Edições


Vida Nova, 1993, p. 29
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 99

ser coordenados por nossa racionalidade e consciência, de


modo que prevaleça o que há de mais nobre em nós. Con-
vém lembrar que o culto da “auto-expressão” foi uma das
causas do nazismo na Alemanha, bem como tem sido gera-
dor do aumento da delinquência juvenil nos nossos dias.
Martyn Lloyd-Jones critica a falsa auto-expressão, di-
zendo que
“de acordo com esse moderno conceito, a faculdade in-
telectual deve ser colocada de lado, e os homens devem
se comportar e viver exatamente como animais. Quanto
mais retornem eles ao nível dos animais, mais verdadei-
ramente estarão se expressando. Essa era a opinião, por
exemplo, do falecido D.H. Lawrence, o qual ensinava que
uma das piores calamidades que tem afligido a raça hu-
mana é o uso da mente e da razão. Existem algumas ins-
tâncias, para sermos exatos, em que a exclusão de coisas
inconvenientes a essa teoria tem sido levada ao extremo,
ao ponto de quase conduzir à conclusão de que o “eu”
pode ser identificado apenas à expressão do instinto se-
xual e à satisfação do instinto da fome”. O pensador ga-
lês conclui: “Portanto, é um insulto feito ao homem, algo
que pretende reduzi-lo ao nível de feras, ignorando tudo
quanto é mais nobre, melhor e mais elevado na natureza
humana. Áuto-expressão! Sem dúvida! Mas, o que é o
homem? Uma mera coletánea de impulsos e instintos?
Não! É uma alma imortal, dotada do poder de ordenar
esses impulsos e instintos, colocando-os ao seu serviço
e uso, ao invés de ser escravo deles. Não apenas mãos,
pés e olhos, mas 'tu”, ou seja, o próprio “eu”, uma per-
sonalidade cheia, completa. Temos nós percebido essa
liberdade, no que concerne a nós mesmos?”

A concepção judaico-cristã afirma ainda a queda do ho-


mem, o que resultou em afastamento de Deus e corrupção
9
LLOYD-JONES, Martyn. Sincero, mas errado. São José dos Campos:
Editora Fiel, 1995, pp, 21,22
100 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

moral. Isso, todavia, não implica em prejuízo para a idéia


de dignidade humana, pois, conforme Santo Agostinho, só
se sujeita à corrupção o que é bom.
“E porque se conclui que em todas as coisas não se reprova
a não ser o vício e este não vem a ser constituído vício, senão
por sua oposição à natureza do ser onde se encontra. E não
se pode reprovar com justeza o vício de coisa alguma, a
não ser que se louve a natureza dessa mesma coisa”.

Assim, se Deus é o Ser e o Bem, tudo que existe, na


medida em que nEle existe é bom. O pecado consiste no
desvirtuamento do que é, fazendo as coisas tenderem para
o nada (não ser). Desta forma, a liberdade humana em si é
boa, pois reflete uma característica divina, sendo que do seu
uso negativo resulta o seu próprio desfazimento, por impli-
car em escravidão. A racionalidade humana também é boa,
pois reflete de modo finito a divindade, sendo maléfica a sua
utilização para que cada um engane a si mesmo ou ao outro,
ou ainda, quando usada para que a criatura negue o Criador.
Para concluir, poderíamos dizer que, nessa perspectiva, O
pecado atua no homem porque há algo bom nele que pode
ser corrompido, no caso, a imagem divina.
Durante a idade Média, a concepção tomista do “direito de
resistência” fundou-se no reconhecimento da dignidade hu-
mana. Apesar de não perceber claramente o indivíduo como
sujeito de direitos, por ter reduzido o jurídico à ordenação
normativa, Tomás de Aquino entendeu que a ordem jurídica
deveria respeitar à dignidade humana, sendo o não atendi-
mento de tal exigência motivo para o surgimento do “direito
de resistência” a favor dos beneficiários da ordenação.

* A corrupção da natureza humana é extensiva, ou seja, atinge tudo o que,


no homem, há de bom, mas não é intensiva, isto é, não consome todo o
bem que nele reside.
9 Olivre arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995, p. 194.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 101

Os racionalistas do século XVII e XVIII reconheceram


a dignidade humana no plano abstrato, na medida em que o
homem era dotado de uma razão unificada. Aliás, foi na Ida-
de Moderna que se enfatizou o auto descobrimento do ho-
mem no ato de pensar e de conhecer o mundo (cogito, ergo
sum; omne est verum, quod clare et distincte percipio) Pos-
teriormente, os existencialistas, em reação ao racionalismo,
reconheceram o valor da pessoa humana na individualidade
concreta de cada um. Assim, enquanto para os primeiros a
ênfase recaía no fator de unidade (razão), para os últimos,
ela repousa na multiplicidade e diferença (existência).
O Cristianismo apresenta uma resposta para essa árdua
controvérsia, ensinando tanto o valor do homem abstrato
como do homem concreto. Jamais poderíamos deixar de re-
conhecer o homem no plano da abstração, pois, segundo o
famoso filósofo do ateísmo, Ludwig Feuerbach!?, só existe
consciência quando, para um ser, é objeto o seu gênero, a
sua essência. O animal tem o sentimento de si mesmo, mas
não como gênero, faltando-lhe, portanto, a consciência. A
nossa percepção da quididade humana evidencia que temos
uma faculdade para a ciência.
A realidade humana concreta oscila entre dois pólos:
natureza e história. Apesar de o homem ser caracterizado
em parte pelas suas circunstâncias, conforme asserção de
Ortega y Gasset, sua última realidade é supra-situacional. A
história é a tomada de consciência que o homem tem de si
mesmo, não a determinante do valor da pessoa humana, mas
a auto-revelação processual das potencialidades aprioristi-
camente contidas na natureza do homem. Somente em ideo-
logias tendentes ao totalitarismo, como, no caso da teoria

o FEUERBACH, Ludwig. 4 Essência do Cristianismo. 2º ed., Campinas:


Papirus, 1997, p. 43
uco
GLauco BARR
R EIRA MAGR
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I AÃES FILHO
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102e cases B
GLa AR

como valor resultante


marxista, se concebe a pessoa humana
o valor originário.
de um fato social ou histórico, e não com
ero
Como já foi observado, o cristianismo dignifica o gên
ra do homem
humano a partir de uma referência unificado
a divina,
a Deus, no caso, através da imagem e semelhanç
licação
gravada na raça humana. No entanto, conforme a exp
lico
de C.S. Lewis em obra já mencionada, no ensino apostó
há uma exaltação da singularidade de cada cristão. Paulo
ensina, nas suas cartas, que a igreja é um corpo, sendo os
cristãos seus orgãos. O pregador dos gentios anuncia não
apenas uma interdependência entre os discípulos, mas tam-
bém demonstra que nossa posição ou função não é intercam-
biável. Ser membro de um corpo não é como ser membro
de um clube ou de um exército, pois o sócio ou soldado é
mais um na lista, sendo perfeitamente substituível, enquanto
o membro de um corpo, em princípio, não pode ser substituí-
do por outro como ele. Assim como o sal desperta o sabor
latente dos alimentos, fazendo-os mais diferentes quanto ao
gosto, e como a luz projetada sobre os corpos torna mais
evidentes as suas distinções, assim, também Cristo desperta
a pessoalidade de seus seguidores ao habitar espiritualmente
neles e entre eles. Do mesmo modo que no único Deus há
três pessoas distintas, a unidade do gênero humano é perfei-
tamente compatível com o valor singular de cada pessoa.
No contexto cristão, a dignidade do homem abstrato foi
tema relevante para o período patrístico e escolástico, enquan-
to a dignidade do homem concreto foi clarificada nas obras
de Kierkegaard, considerado o precursor do existencialismo.
Para Kierkegaard, o homem perdido é o homem alienado de si
mesmo e de Deus. Uma das formas de alienação seria a visão
abstrata de
de si próprio meramente através de uma concepção
o à
homem. A conversão consistiria em um retorno do indivídu
um mer
si próprio (consciência do eu existencial), mediante
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 103

gulhar, através da sua própria transparência , no poder que lhe


deu existência. Esse “mergulho” em Deus não anularia o nosso
“eu”, mas faria com que retornássemos ao fundamento de nossa
existência, a fim de encontrar o poder para nos realizarmos, ou
seja, perdemos o nosso “eu” para encontrá-lo de novo, confor-
me as palavras de Jesus (“quem perder a vida por amor de mim,
ganha-la-á”). Para Kierkegaard, somente através da fé é que
o homem transcende o geral (esfera ética) para estar pessoal-
mente perante o absoluto como indivíduo (esfera religiosa).
“A fé é, ao contrário, este paradoxo: o interior é superior
ao exterior, ou, para retomar uma fórmula antecedente,
o número ímpar é superior ao número par. (...) O herói
trágico renuncia a si próprio para dar expressão ao ge-
ral; o cavaleiro da fé renuncia ao geral para transformar-se
em Indivíduo”!

O existencialismo de Sartre dispensa a idéia de Deus e


da imortalidade da alma para consagrar a dignidade da pes-
soa humana. Segundo este autor, o homem faz o seu pró-
prio projeto existencial, pois não foi criado por alguém para
um propósito, e logo não é responsável perante um Criador.
Assim, cada um seria livre não apenas para se comportar
ou não conforme a moral vigente, mas também para cons-
truir seus próprios padrões éticos. Essa condição humana de
liberdade, que permite a construção da própria existência,
seria o fator que daria dignidade à pessoa humana.
Uma das críticas do cristianismo ao existencialismo
ateu tem a ver com a imortalidade da alma, a qual é nega-
da pelo segundo. Os pensadores cristãos dizem que já que
um homem vive apenas cerca de setenta anos, e um Estado
ou nação podem durar mil anos, então, o Estado ou nação

1
KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor, Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.],
p. 84 ss
104 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

seriam mais importantes que o indivíduo, caso não a hou-


vesse imortalidade da alma. Estaria, então, justificado o to-
talitarismo. No entanto, se o indivíduo for imortal , também
será incomparavelmente mais importante, pois a vida de um
Estado, comparada com a sua, corresponderá a apenas um
momento. Norberto Bobbio, apesar de não ser um pensador
comprometido com o credo cristão, afirma o seguinte:
“E preciso desconfiar de quem defende uma concepção
antiindividualista da sociedade. Através do antiindivi-
dualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas
reacionárias. Burke dizia: “Os indivíduos desaparecem
como sombras; só a comunidade é fixa e estável”. De
Maistre dizia: “Submeter o governo à discussão indivi-
dual significa destruí-lo”. Lammenais dizia: “O indivi-
dualismo, destruindo a idéia de obediência e de dever,
destrói o poder e a lei.” Não seria muito difícil encontrar
citações análogas na esquerda antidemocrática. Ao con-
trário, não existe nenhuma Constituição democrática,
a começar pela Constituição republicana da Itália, que
não pressuponha a existência de indivíduos singulares
que têm direitos enquanto tais. E como seria possível
dizer que eles são “invioláveis” se não houvesse o pres-
suposto de que, axiologicamente, o indivíduo é superior
à sociedade de que faz parte?”

Em face das razões acima expostas, fica evidente que,


dentro de uma concepção correta de dignidade humana,
a pena de morte é inadmissível. É verdade que Tomás de
Aquino defendeu a pena de morte, mas seguiu essa posição
baseado na filosofia política organicista de Aristóteles e não
sob a orientação dos princípios cristãos. Para o doutor an-
gélico, o todo perfeito (sociedade política) era mais impor-
tante que a parte imperfeita (indivíduo), daí a justificação

2 BOBBIO, Norberto. 4 ERA DOS DIREITOS. Rio de Janeiro: Editora


Campus, 1992, p. 102
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 105

da pena de morte para a preservação do bem comum. No


entanto, precisamos lembrar que o fundador do cristianismo
foi uma “vítima” da pena de morte e que os historiadores
reconhecem que os cristãos da igreja primitiva recusavam
ingressar no exército romano por razões de consciência.
Convém também mencionar que, durante o século XVI, os
anabatistas pacifistas ou reformadores radicais diziam que
a igreja precisava não de uma Reforma para melhoramento
como queriam Lutero e Calvino, mas sim, de uma Reforma
para restauração, o que incluíria a não aceitação da pena de
morte. H. H. Muirhead diz que os anabatistas “opunham-se
à pena de morte, mostrando que o homem não tem direito,
sob qualquer circunstância, de matar o seu próximo”?
Esta posição estava em plena harmonia com os escritos dos
pais da igreja, principalmente com os de Tertuliano que, na
sua Apologia , cap. XXXVII, disse que os cristãos deveriam
preferir o sofrimento a ter que matar alguém. O mesmo mes-
tre cristão, no seu Tratado de Idolatria, caps. XVII e XXI,
condena toda espécie de cargos públicos, como interditos
aos cristãos, porque não era possível exercê-los sem que, às
vezes, se fosse obrigado a pronunciar a pena de morte con-
tra os criminosos. C. Beccaria, em sua Resposta às “notas
e observações" de um frade dominicano sobre o livro “Dos
Delitos e Das Penas”, lembra que os seus pretensos erros
consistentes nos argumentos contrários à pena de morte
“assemelham-se...âqueles em que incidiram tantos cris-
tãos zelosos da primitiva Igreja; assemelham-se âqueles
em que incorreram os frades da época de Teodósio-o-
Grande, no fim do IV século. Nos seus Anais da Itália,
diz Muratori que, no ano 389, “Teodósio fez uma lei
pela qual ordenava aos frades que permanecessem nos
conventos, porque levavam a caridade pelo próximo ao

13
MUIRHEAD, H. H. O Cristianismo através dos séculos. Vol. II, 3º ed,,
Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1951, p. 240
106 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

ponto de arrancar os criminosos das mãos da justiça,


não querendo que se mandasse matar ninguém”!*

Cesare Beccaria, na sua célebre obra Dos Delitos e Das


Penas, aponta basicamente três razões para a não admissão
da pena de morte. Em primeiro lugar, o filósofo humanitário
lembra que a pena de morte é contrária ao espírito do pacto
social que institui o Estado e o Direito Positivo dizendo que:
“A soberania e as leis não são mais do que a soma das
pequenas porções de liberdade que cada um cedeu à so-
ciedade. Representam a vontade geral, resultado da união
das vontades particulares. Mas quem já pensou em dar a
outros homens o direito de tirar-lhes a vida? Será o caso
de supor que, no sacrifício que faz de uma pequena parte
de sua liberdade, tenha cada indivíduo querido arriscar à
própria existência, o mais precioso de todos os bens?
Se assim fosse, como conciliar esse princípio com a má-
xima que proíbe o suicídio? Ou o homem tem o direito
de se matar, ou não pode ceder esse direito a outrem
nem à sociedade inteira.”!º

Em segundo lugar, Beccaria revela a ilogicidade da pena


de morte com as seguintes palavras:
“Não é absurdo que as leis, que são a expressão da
vontade geral, que detestam e punem o homicídio, or-
denem um morticínio público, para desviar os cida-
dãos do assassínio?”!9

Por último, o Marquês de Beccaria protesta contra a pena


capital invocando o direito natural:
“Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte? Está
traçado em caracteres indeléveis nesses movimentos de

4 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Apêndice. Rio de Janeiro:


Ediouro, [s. d.), p. 14]
5 Op. Cit, p. 65
o Op. Cit, p. 70
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 107

indignação e de desprezo que nos inspira a simples visão


do carrasco, que não é, contudo, senão o executor inocen-
te da vontade pública, um cidadão honesto que contribui
para o bem geral e que defende a segurança do estado no
interior, como o soldado a defende no exterior.
Qual é, pois, a origem dessa contradição? E por que esse
sentimento de horror resiste a todos os esforços da razão?
E que, numa parte recôndita da nossa alma, na qual os
princípios naturais ainda não foram alterados, descobri-
mos um sentimento que nos grita que um homem não tem
nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem, e
que só a necessidade, que estende por toda parte o seu
cetro de ferro, pode dispor da nossa existência.” (p. 71)

Voltando à apreciação crítica do existencialismo ateu, lem-


bramos que Sartre afirmava que o homem projeta a si mesmo
sem nunca realizar-se, estando sempre “fora de si”, e, logo, alie-
nado. O cristianismo afirma que só podemos ser nós mesmos
se encontrarmos o nosso centro em Deus, pois, então, teremos
condições de estabelecer um projeto segundo a nossa indivi-
dualidade que é realizável processualmente, já que em Deus
teremos o potencial de ser.
A. W. Tozer (1897-1963), místico e erudito cristão, faz
o seguinte comentário:
“Pareceu-me sempre uma completa incoerência o exis-
tencialismo negar a existência de Deus e depois empre-
gar a linguagem do teísmo para persuadir os homens a
viverem direito. O escritor francês, Jean Paul Sartre, por
exemplo, declara francamente que representa o existen-
cialismo ateu. “Se Deus não existe”, diz ele, “não encon-
tramos valores ou ordens a que atender e que dêem legi-
timidade à nossa conduta. Assim, no brilhante reino dos
valores, não temos escusa por trás de nós, nem justifica-
ção adiante”. Todavia, no parágrafo seguinte ele afirma
francamente: “o homem é responsável por sua paixão”
e, mais adiante, “o covarde é responsável por sua covar-
108 GLAauco BarREIRA MAGALHÃES FILHO

dia”. E considerações dessa natureza, diz ele, enchem o


existencialista de “angústia, solidão e desespero”.
“Parece-me que tal raciocínio deve assumir a verdade
de tudo que procura negar. Se não houvesse Deus, não
poderia haver palavras como “responsável”. Nenhum
criminoso precisa temer um juiz que não exista; nem
teria necessidade de preocupar-se com a quebra de uma
lei que não foi promulgada. Saber que a lei e o juiz de
fato existem é que lança medo ao coração do infrator
da lei. Existe alguém a quem ele terá de prestar contas;
doutro modo, o conceito de responsabilidade não pode-
ria ter sentido algum.”"”

O pensamento de Sartre , com a sua ênfase extremada na


subjetividade, individualidade e relativismo, mostra-se inca-
paz de resolver os conflitos de valores, bem como não fornece
um ambiente propício para os relacionamentos interpessoais.
Enquanto para Sartre, o homem é um “ser para si”, auto-
construtivo e existencial, porquanto faz as coisas existirem
através da liberdade de percebê-las, para Levi - Strauss, o
homem é só natureza, sendo o universo um conjunto coeren-
te de mensagens, ou seja, de comunicação. Dentro da ótica
cristã, todavia, se defende o homem-natureza, de definição
tomista, mais próximo do senso comum e situado entre o
homem-nada de Sartre e o homem-coisa de Strauss. A vi-
são tomista reconhece a liberdade do homem dentro, porém,
dos limites impostos pela sua condição. O mérito, todavia,
das ações será julgado pela contribuição que elas possam
proporcionar ao aperfeiçoamento da natureza. Tomás de
Aquino fala-nos do homem que, por natureza, está ao mes-
mo tempo fechado e aberto, ou seja, está fechado sobre sua
personalidade perfeitamente independente e aberto a todo

7 TOZER,A. W. Esse cristão incrível. São Paulo: Editora Mundo Cristão,


1989,
p. 77

«4
Vl.

HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 109

o universo. O homem que, por ser uma constante potencia-


lidade, pode conhecer as estruturas das coisas: é a ciência.
Pode livremente tomar forma, ou seja “informar-se”. Pode
dar estrutura às coisas: é a arte e a cultura.
A conclusão, que poderemos tirar até aqui, é a de que a
noção ocidental de “dignidade da pessoa humana” se origi-
nou do pensamento cristão, e somente através de suas por-
tentosas colunas é que a referida idéia poderá coerentemente
se sustentar.

4.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A


IDÉIA DE DIREITO

A nossa Constituição Federal não se refere à dignida-


de humana , mas sim, à dignidade da PESSOA humana, do
que se conclui que ela consagra o valor do homem concreto,
apesar de, para nós, neste, está subtendido o valor do ho-
mem abstrato. Márcio Sotelo Felipe proclama:
“A noção de dignidade humana é um universal. Inse-
ri-la em um texto constitucional significa representá-la
empiricamente, agregando-se, nas normas infraconsti-
tucionais e nas próprias normas constitucionais, dados
da experiência social — daí a disponibilidade de conteú-
dos...Por isso, quando a Constituição diz “dignidade”
está positivando (como que tornando empírico o uni-
versal) uma idéia da razão...”!8.

À liberdade, todavia, que é o cerne dos direitos funda-


mentais, deve ser entendida não apenas em termos formais,
ou seja, como liberdade de fazer aquilo que a lei não proibe,
mas antes, será compreendida como remoção dos obstáculos

Jg
FELIPE, Márcio Sotelo. Razão jurídica e dignidade humana. São Pau-
lo: Max Limonad, 1996, p. 67
GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO
10

que impedem a auto realização da personalidade humana,


daí a consagração dos direitos sociais, os quais objetivam
proporcionar as bases materiais para que os direitos indivi-
duais tenham efetividade para todos e não apenas para uma
elite ou minoria. Desta forma, temos, no plano axiológico, a
passagem do homem-indivíduo para o homem pessoa.
Sob a ótica da igualdade, poderíamos dizer que o fator
que dignifica os homens, torna-os intrinsecamente iguais, O
que nos leva a lutar contra as discriminações (desigualdades
específicas). Assim o repúdio das desigualdades em ato im-
pede que a afirmação da igualdade em potência possa ser um
ilusório jogo de palavras.
A “dignidade da pessoa humana”, como fenômeno (“apa-
rição”), mostra-se a cada segmento social conforme suas as-
pirações, razão pela qual os direitos sociais se distribuem de
forma setorizada. Cada categoria social têm uma visão que
contempla um ângulo do referido valor, e uma Constituição
pluralista não podia deixar de consagrar todos eles. No en-
tanto, o “eidos”(idéia) é um só.
Convém aqui lembrar que a própria supremacia da Cons-
tituição, no plano normativo, liga-se à dignidade da pessoa
humana.
No Velho Estado Liberal, havia a predominância da lei,
sendo esta excluída do controle de constitucionalidade em
muitos países da Europa, enquanto a declaração de direi-
tos no Estatuto Fundamental reduzia-se a documento de
teor político. A normatividade da lei decorria da previsão
de uma sanção para o seu descumprimento, o que motivou
o surgimento da teoria da coatividade que ligava direta ou
indiretamente à coação a essência do Direito. Os princípios
constitucionais, por não terem sanção explicitamente pre-
vista, ficavam excluídos do conjunto de normas jurídicas.
Ora, a teoria da coatividade coloca o significado do jurídico
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 111

na força material, presumindo que a eficácia da ordem ju-


rídica decorreria do medo instilado pela ameaça. A eficiên-
cia do Direito, todavia, decorre da inclinação e respeito de
uma comunidade aos valores reconhecidos. E se o conceito
de Direito está impregnado de valor, estando dele excluí-
da a coação, a normatividade e juridicidade dos princípios
constitucionais atrelados ao respeito à dignidade da pessoa
humana ganham preeminência, estando o motivo de sua rea-
lização prática dentro do homem, isto é, na aderência de sua
consciência aos valores consagrados, e não, fora do homem,
isto é, na coação ou ameaça.
Foi nos Estados Unidos que o Princípio da Supremacia
Normativa da Constituição e o controle de constituciona-
lidade das leis primeiramente tomaram forma. Na estrutu-
ração política e social desse país, houve uma combinação
do contratualismo democrático com a concepção cristã da
natureza humana caída, o que evidencia, mais uma vez, que
a posição cristã sobre o estado da natureza humana não pre-
judica o aperfeiçoamento democrático. A teologia do pacto
dos puritanos americanos (Pais Peregrinos) refletia-se no
surgimento de igrejas congregacionais, que eram associa-
cões voluntárias de cristãos unidos por um acordo de fé, e a
estrutura dessas igrejas se projetava na estrutura da socieda-
de através da formação de grupos que lutavam por seus di-
reitos, principalmente, junto ao Poder Judiciário. Conforme
Tocqueville, o sucesso da democracia americana devia-se ao
vínculo moral decorrente da fé, bem como às livres associa-
ções, as quais impediam a concentração de poder e o indivi-
dualismo, sendo o último a pior doença da democracia.
Os puritanos também ressaltavam, conforme já foi men-
cionado, que o homem era mau, não porque a natureza hu-
mana fosse má em si mesma, pois “tudo que foi criado por
Deus é bom”, mas antes, em virtude de um princípio de cor-
112 GLauco BaRrREIRA MAGALHÃES FILHO

rupção estar agindo sobre ela. Ensinavam, segundo as lições


de Calvino, que a maldade humana deveria ser enfatizada
sob o ângulo teológico, isto é, como um estado de perdição
e indisposição para com Deus, o que faz com que o ponto
de partida da nossa conversão religiosa esteja no chamado
de Deus, mas isso não implicaria necessariamente em total
perversão na vida civil. Afinal, o próprio Jesus disse que o
homem sabe dar boas dádivas, ainda que, nem por isso, dei-
xe de ser mau (Evangelho de São Lucas 11: 13). Na verdade,
segundo os padrões humanos relativos poderíamos falar em
alguma bondade do ser humano, mas segundo os padrões
absolutos do Ser Supremo toda obra humana está maculada,
pois todos os males vêm de dentro e contaminam o homem
(Evangelho de São Marcos 7 : 23). De todo modo, a descon-
fiança da natureza humana foi a causa de um controle maior
de um poder sobre o outro nos Estados Unidos, principal-
mente, do Judiciário sobre o Legislativo.
Observamos que a visão pessimista da natureza humana,
presente no espírito puritano, não impediu os norte-america-
nos de reconhecer que essa mesma natureza projeta certos va-
lores de conformidade com a sua origem divina, no entanto, a
corrupção leva o homem a, quando for o caso, querer frui-los
em si mesmos, e não em Deus, sendo que tal atitude, pode
ser geradora de atos socialmente positivos, mas tem motiva-
ção religiosa reprovável. De outro modo, pode-se dizer que,
como os olhos humanos enxergam muitas coisas sob a luz do
sol, mas não conseguem fixar-se na contemplação do próprio
sol, assim também, nós podemos avistar valores sob à luz que
vem de Deus , mas a nossa natureza enferma impede-nos de,
sem a graça divina, contemplarmos a fonte da luz.
Finalmente, desejamos ressaltar a importância de dois va-
Jores diretamente atrelados à dignidade da pessoa humana, ou
seja, queremos fazer referência à liberdade e à igualdade. De
HerMENÊuUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 113

acordo com o pensamento de BOBBIO, essas duas aspirações


humanas pertencem à determinação do conceito de pessoa.
Liberdade indica um estado, enquanto igualdade, uma rela-
ção. Para que o homem seja pessoa deve ser livre, quando vis-
to em sua individualidade, e, enquanto ser social, deve estar
com os demais indivíduos numa relação de igualdade.
Liberdade e igualdade são também os valores fundamen-
tais da democracia. Ilustramos isso, fazendo referência ao
sufrágio universal, imprescindível ao Estado Democrático de
Direito. O sufrágio universal torna os indivíduos iguais com
relação aos direitos políticos, ao mesmo tempo que estabele-
ce a liberdade de participar no poder político, ou seja, como
autonomia. Vemos aqui o forte vínculo que há entre o Estado
Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana.
Encerramos este capítulo, citando uma passagem cele-
brada de uma carta de TOCQUEVILLE:
“Atribuem-me paixões e tenho somente opiniões; ou melhor,
tenho uma paixão apenas, o amor da liberdade, e da dignida-
de humana. A meus olhos, todas as formas governamentais
são exclusivamente meios, mais ou menos perfeitos, de sa-
tisfazer a esta santa e legítima paixão do homem”.!º

No próximo capítulo, faremos uma abordagem sobre


os direitos fundamentais para relacioná-los com a noção da
dignidade da pessoa humana em oportunidade posterior do
presente trabalho.

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5 DO DIREITO NATURAL AOS
DIREITOS FUNDA MENTAIS

“Não faz sentido falar em direitos humanos numa socie-


dade materialista”

(E. L. Woodward)!

No chamado período pré-socrático da antiguidade clás-


sica, esboçava-se uma perspectiva cosmológica da realida-
de. Assim, os primeiros filósofos não se ocupavam com o
desvelamento da natureza humana, mas, sim, com a apreen-
são da essência ou substância básica do universo, também
cognominada de arkhé (princípio). Para Tales de Mileto, a
água era o princípio do qual tudo procedia, enquanto para
Heráclito, era o fogo que tinha tal atributo. No pensamen-
to de Anaxímenes, o ar era o princípio. Nas cogitações de
Anaximandro, tudo partia do indeterminado (Apeiron). Em-
pédocles definiu quatro elementos para a natureza, no caso,
o fogo, a terra, a água e o ar, sendo esta divisão, inspirativa
para Hipocrátes, posteriormente, tipificar os quatros tem-
peramentos humanos (colérico, melancólico, fleumático e
sanguíneo). A Escola Atomística de Demócrito interpretava
tudo como atómos e movimento, enquanto a Escola Eleata
de Parmênides e Zenão defendia como única realidade, o ser

" ApudRIZZO, Jorge. Deus não existe. Rio de Janeiro: Jorge Rizzo, 1998,
p. 11
118 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

uno e absoluto, no que foi contestada por Heráclito, que via


o mundo em movimento permanente.
Devido à essa visão totalizadora da realidade, nos tem-
pos mais antigos da Grécia não se distinguia O mundo an-
tropológico do mundo cosmológico, razão pela qual as re-
lações sociais eram consideradas no contexto das relações
naturais. O Direito local era , normalmente, consuetudiná-
rio, € como não se sabia ao certo a sua origem, dizia-se que
ele era oriundo dos deuses ou da própria ordem do cosmos.
Quando surgiram as primeiras leis, estas eram legitimadas
pela sua conformidade com o costume, que era visto como
verdadeiro direito natural. Aliás, Aristóteles disse, tempos
depois, que o hábito ou costume cria uma segunda nature-
za. Alguns acreditavam que o seu direito local era aceito
universalmente por outras comunidades, mas a grande parte
conhecia as diversidades de ordens normativas. Esse conhe-
cimento, todavia, não prejudicava a idéia geral, pois, dizia-
se que os deuses ou a própria ordem natural adaptava suas
leis à situação peculiar de cada povo. Assim como o relevo
e as formações paisagísticas variavam de lugar para lugar,
semelhante diferenciação ocorria com o Direito. Sustentan-
do raciocínios dessa ordem, Heráclito, aristocrata e conser-
vador sob o ponto de vista político, disse que todas as leis
humanas são emanações da lei divina
Foram os poetas dramáticos como Eurípedes e, princi-
palmente, Sófocles, no Antígona, os que primeiro coloca-
ram em questão o desacordo entre o Direito Positivo e o Di-
reito Natural oriundo dos deuses. No entanto, os sofistas, no
campo propriamente filosófico, foram os que estabeleceram,
com nitidez, o pensamento de contraposição da natureza ou
realidade (Physis) às convenções normativas (Nomos), bem
como foram os que iniciaram a gradual passagem de uma
visão cosmolópgica para uma visão antropológica, dando ên-
fase à questão ética,
RE fr. C PET SE Eros

HeErmEnÊuUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 119

Para boa parte dos sofistas, nomos era um freio artificial


imposto à natureza por acordo humano, enquanto physis era
a ordem natural e necessária. Entre eles, todavia, havia dis-
cordâncias sobre o que estava em harmonia com a physis,
bem como sobre o valor do nomos.
Protágoras entendia que as leis da polis não passavam de
convenções. No entanto, embora não fizessem parte original
e essencial da natureza humana, as leis, na medida em que se
revelavam como cânones do bom comportamento, se faziam
necessárias à preservação da sociedade. Outros sofistas, como
Licofron, compartilhavam com Protágoras a crença na natu-
reza contratual da lei, mas a maioria deles via as convenções
normativas em contraposição à natureza. Cálicles, por exem-
plo, de acordo com Platão, dentro de uma perspectiva biológi-
ca, via a desigualdade como natural entre os homens, e, nesse
caso, a lei seria um instrumento dos fracos para igualarem-se
aos fortes de forma artificiosa. Raciocinando de forma dife-
rente, Trasímaco dizia que o justo legal era que se mostrava
mais vantajoso para o mais forte, sendo a lei um instrumento
de dominação dos mais fortes sobre os mais fracos. Dentro de
uma visão mais humanista, Antifon proclamou a igualdade
natural entre os homens, protestando contra as distinções le-
gais baseadas no nascimento (nobre e inferior) e na raça (bár-
baros e gregos). De forma semelhante, Alcidamas protestou
contra a escravidão, afirmando que Deus fez todos os homens
livres, e a natureza não fez nenhum escravo.
Sócrates, considerado o fundador da Ética, foi quem
trouxe o pensamento grego, de forma definida, de uma pers-
pectiva cosmológica para uma perspectiva antropológica.
Não se pôs a filosofar sobre a natureza, mas antes, colocou
O homem como o centro de suas atenções, razão pela qual
tomou o autoconhecimento humano como seu ponto de par-
tida, consagrando a frase “conhece-te a ti mesmo”. Contra-
120 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

pondo-se ao relativismo de Protágoras, proclamou o “logos”


como essência universal do homem.
Para Sócrates, virtude é ciência, pois só pratica o mal
quem ignora o bem. Assim, existiria um mundo cognoscível
de valores, no caso, os valores do bem, do belo e do justo.
Sócrates questionou o fundamento ou racionalidade das nor-
mas jurídicas da polis, mas não a sua validade, assumindo,
ao mesmo tempo, atitude crítica e conservadora. Quando o
grande filósofo foi condenado à morte, considerou o julga-
mento injusto sob o ponto de vista racional, no entanto, se
submeteu serenamente à sentença, afirmando que havia re-
cebido muitos benefícios da polis, e que agora não seria cor-
reto e conveniente recusar obediência a suas leis, até mesmo
porque cria numa vida após a morte que proporcionaria ple-
na realização aos que andaram segundo a razão.
Em Sócrates, percebemos um avanço na orientação da
filosofia para o homem, bem como alguns passos para o
reconhecimento moderno da liberdade de consciência e do
valor do indivíduo, tendo em vista que o referido pensador
afirmava que, em questões éticas, deveríamos consultar não
aos costumes e hábitos da polis, mas antes, à voz interior
da razão, assim como afirmou, também, a imortalidade da
alma, e portanto, o valor transcendental do homem, que se
tornaria mais evidente no filósofo, pois este alcançaria ime-
diatamente após a morte física a dignidade plena.
Platão, discípulo de Sócrates, e Aristóteles, que foi, ini-
cialmente, um discípulo de Platão, tiveram uma posição
muito conservadora, em contraposição ao pensamento de-
molidor dos sofistas. Ambos defendiam uma teoria orga-
nicista do Estado que quase fazia desaparecer o indivíduo.
Platão comparou a polis a um homem gigantesco na Répu-
blica, enquanto Aristóteles proclamou a anterioridade da
polis em relação ao indivíduo na Política, sendo que essa
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 121

última afirmação deve ser entendida, obviamente, no pla-


no lógico e metafísico, e não no plano temporal. Foi com
base em pensamentos como estes que, desde um célebre
texto de Benjamim Constant, se passou a falar em liberdade
dos antigos em oposição à liberdade dos modernos, sendo
a primeira uma liberdade no Estado que confunde-se com
a cidadania, e a segunda, uma liberdade oponível contra o
Estado, consistente naquela esfera da vida privada onde o
Estado não pode intervir. Na visão antiga, não há distinção
entre Sociedade e Estado, e o indivíduo é livre na medida
em que é cidadão, enquanto que, na ótica moderna, faz-se a
distinção entre Sociedade e Estado, e o indivíduo é livre na
medida em que é participante da humanidade. Lembramos
que, no Estado Social, há uma distinção entre Sociedade e
Estado, mas também, há uma interação dialética entre am-
bos, de modo que o Estado intervém na sociedade para re-
mover obstáculos ao exercício igualitário das liberdades.
Apesar do que já foi dito sobre as produções teóricas
de Platão e Aristóteles, examinaremos, ainda, alguns traços
específicos do pensamento de cada um na medida em que
representa alguma evolução em direção ao reconhecimento
dos direitos humanos.
Platão defendia o governo dos melhores (Aristocracia),
no entanto, entendia que todos deveriam ter a oportunidade
de provar a sua capacidade, e, nisto defendia a igualdade e,
para isso, a liberdade. Na sua obra intitulada A HISTÓRIA
DA FILOSOFIA, WILL DURANT diz o seguinte sobre o
aspecto democrático da Aristocracia defendida por Platão:
Democracia significa perfeita igualdade de oportuni-
dade, em especial na educação; não o rodízio de todos
os homens comuns nos cargos públicos. Todo homem
terá uma oportunidade igual de se tornar apto para as
complexas tarefas da administração; mas só aqueles que
tiverem saído de todos os testes com a insígnia da capa-
GLauco BARREIRA MAGALHÃES FiLHO
122

cidade poderão ser eleitos para governar. As autoridades


públicas serão escolhidas não por votos, nem por paneli-
nhas secretas manobrando os invisíveis cordões da apa-
rência democrática, mas pela sua capacidade demons-
trada na democracia fundamental de uma raça igual (...)
Porque o povo, em vez de eleger cegamente o menor
de dois males a ele apresentados como candidatos por
facções indicadoras, aqui será, ele próprio, o candidato;
e cada indivíduo terá uma oportunidade igual de uma
eleição educacional para o cargo público.”

Na mesma obra, Durant mostra-nos a igualdade entre


homens e mulheres na visão platônica:
Porque não haverá barreira sexual de qualquer espécie
nessa comunidade; muito menos na educação — a me-
nina terá as mesmas oportunidades intelectuais que o
menino, a mesma chance de alçar-se às mais elevadas
posições no Estado”.

Lamentavelmente, Platão privilegiava a sociedade poli-


tica e os seus interesses, de modo a diluir o indivíduo no
ente estatal. Isso decorria de sua teoria do mundo das idéias.
Para Platão, havia o mundo das essências ou das formas, que
seria verdadeiro e real, e o mundo das aparências, que seria
ilusório, tendo realidade apenas na medida em que partici-
pava do mundo das essências ou das idéias. O mundo real
seria o mundo dos universais, captados pela razão, enquanto
o mundo das aparências seria o mundo dos particulares, cap-
tados pelos sentidos. Assim, a predominância do universal
sobre o particular no plano metafísico acarretaria a predomi-
nância da polis sobre o cidadão no plano político.

2 DURANT, Will. A HISTÓRIA DA FILOSOFIA, Tradução de Luiz Car-


Paulo: Edi-
Jos do Nascimento Silva. Coleção OS PENSADORES. São
tora Nova Cultural, 1996, p.55
* DURANT, Will, op. cit.,p.58
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 123

A filosofia platônica, voltada para as “idéias”, detinha-se


na sociedade política perfeita, o que justifica o conservado-
rismo resultante, em oposição à posição dos sofistas que,
por estudarem a pólis imperfeita e concreta, submetiam-na a
uma crítica demolidora.
Aristóteles, que, a princípio, foi discípulo de Platão,
também defendeu uma concepção organicista da sociedade
política. A teoria política de Aristóteles, todavia, era mar-
cadamente eudemonista , ou seja, para o estagirita , a polis
existia para que cada cidadão pudesse não apenas viver, mas
acima de tudo, viver bem.
Aristóteles desenvolveu um entendimento teleológico
ou finalista do mundo. Para ele, tudo se move em direção a
um fim. Este pensamento aristotélico prestigiava, de certo
modo, a criatura humana, pois o homem se dirige a seus fins
característicos com consciência e liberdade, e nunca de ma-
neira determinista como os demais seres. Além disso, con-
trariamente a Platão, Aristóteles não negou a propriedade
privada, mas antes, ele a estabeleceu como imprescindível
ao aperfeiçoamento da personalidade, desde que dentro de
limites razoáveis, pois deveria haver um meio termo entre a
riqueza e a miséria.
No plano metafísico, o fundador do Liceu não distinguia
dois mundos, mas entendia que as essências estão nas coisas
e não em uma outra dimensão, o que o levava à conclusão
de que os universais são idéias captadas por abstração dos
particulares. Assim, o mundo existente fora de nós seria o
mundo de objetos individuais e específicos. Essa visão me-
tafísica implicava, no plano político, numa valorização do
indivíduo, maior do que aquela que era conferida no pensa-
mento platônico. Sobre isso, WILL DURANT comenta que
“embora conservador, Aristóteles valoriza a qualidade, a pri-
vacidade e a liberdade individuais acima da eficiência e do
124 Guauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

poder sociais. Não se sentia inclinado a chamar todos os seus


contemporâneos de irmãos ou irmãs, nem tampouco os mais
velhos de pai ou mãe; se todos são seus irmãos, nenhum de-
les o é; e “como é melhor ser o primo verdadeiro de alguém
do que um filho à moda de Platão!” Em um Estado que tem
mulheres e crianças em comum, “o amor será diluído(...)
Das duas qualidades que são as principais inspiradoras de
consideração e afeição — a de que uma coisa lhe pertence
e de que essa coisa desperta em você o verdadeiro amor —,
nenhuma pode existir em um Estado” como o de Platão”.
Apesar de Aristóteles ter deixado mais espaço ao indivíduo
na expressão de sua personalidade do que Platão, mostrou-se
defasado em relação ao fundador da Academia, quando defen-
deu a inferioridade da mulher em relação ao homem. Para o
estaginta, o homem possuía mais suturas no cérebro do que
a mulher e tinha mais dentes do que ela”. Entre os exemplos
favoritos de Aristóteles de matéria e forma está a mulher e o ho-
mem; o macho é o princípio ativo, conferidor de forma; a fêmea
é barro passivo, esperando ser formada. As filhas são resultados
do fracasso da forma em dominar a matéria. O grande filósofo
grego, todavia, distinguia a mulher do escravo, razão pela qual,
MACHADO PAUPÉRIO faz o seguinte comentário:
“Apesar de Aristóteles, ao contrário de Platão, entender
que o homem é por natureza superior à mulher, como
o pai ao filho, seu poder sobre eles é diferente do que,
como senhor, pode exercer sobre os escravos. Estamos
aqui diante de relações de um ser livre com outros seres
livres, assemelhando-se o poder marital ao democrático
e o paternal ao monárquico.”

DURANT, Will, op. cit., p. 95


was

DURANT, Will, op. cit., p. 84.


DURANT, Will, op. cit., p. 86
2000

PAUPÉRIO, A. Machado, A FILOSOFIA DO DIREITO E DO ESTA-


DO E SUAS MAIORES CORRENTES. Rio de Janeiro: Biblioteca Frot-
tas Bastos, 1980, p. 28
HERMENÊUTICA E UNIDADE ÁAXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 125

Lamentavelmente, Aristóteles defendeu a existência de


escravos por natureza entre os seres humanos. Para ele, o
escravo era uma ferramenta dotada de vida, estando para
o seu senhor na mesma posição em que o corpo está para
a mente. Assim, existiriam pessoas que, desde a hora do
nascimento, estariam destinadas à sujeição, enquanto ou-
tras estariam destinadas ao comando. Alguns intérpretes do
pensamento aristotélico procuram suavizar as afirmações do
estagirita , dizendo que seu ensino era uma manifestação de
humanidade para a época, tendo em vista que alguns povos
costumavam destruir completamente os membros de uma
nação conquistada, quando poderiam escravizá-los, respei-
tando-lhes o direito à vida.
Aristóteles não seguiu Platão na defesa da imortalidade
pessoal da alma, e, nesse ponto, diminuiu a importância da
personalidade humana. Para a teoria aristotélica, a alma é o
princípio vital de qualquer organismo, ou seja, a soma das
forças do corpo, e, logo, não pode existir sem ele. A alma,
como forma do corpo, só poderia ser separada da dimensão
material do homem através do pensamento. Assim, a memó-
ria (razão passiva) morreria com o corpo, enquanto o puro
pensamento (razão ativa) seria incorruptível. O que sobre-
vive não é a personalidade, mas a mente abstrata e impes-
soal. Aqui, o estagirita torna-se mais platônico que Platão,
pois valoriza mais o universal (razão ativa) que o individual
(personalidade), procurando conferir imortalidade à alma
através de sua destruição.
Já ressaltamos que Aristóteles, na sua metafísica, defen-
dia o “imanentismo”, ao afirmar que as idéias estão nas col-
sas (universalia in re), integrando matéria e forma. No plano
jurídico, o referido filósofo também defendia uma espécie
de “imanentismo”. O Direito Natural não seria, portanto, um
“direito ideal”, mas antes, um Direito imanente aos homens
126 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

e às coisas. Apesar de apreendido pela razão, o Direito Na-


tural seria um Direito realista ou Direito nas coisas.
Sobre a distinção entre o Direito Natural e o Direito Positi-
vo, Aristóteles disse, no início do capítulo 7 do Livro 5 da Etica
a Nicómaco, o que se segue:
“Da justiça política, uma parte é natural, a outra é legal.
A natural tem em qualquer lugar a mesma eficácia, e
não depende das nossas opiniões; a legal é, em sua ori-
gem, indiferente que se faça assim ou de outro modo;
mas, uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente”.

Desta forma, o Direito Natural não regula todas as ações


possíveis. Existe uma esfera de ações indiferentes, cuja re-
gulamentação cabe a lei positiva. A matéria do Direito Natu-
ral corresponde aos comportamentos que são bons ou maus
em si mesmos, enquanto que o Direito Positivo trata de con-
dutas que, a princípio, são indiferentes, mas não depois de
estabelecida a regulamentação. Aqui como também durante
a Idade Média, o Direito Natural aparece não como um con-
junto de direitos subjetivos inatos, mas como uma ordem de
normas ou de princípios suprapositivos.
No período de decadência da polis, surgiram basicamente
três pensamentos filosóficos: o estoicismo, o epicurismo, ce-
ticismo e o ecletismo. Nos interessará, aqui, o estoicismo e O
epicurismo. O primeiro, trouxe a proposta de uma “cosmópolis”,
cidade de extensão universal, enquanto o segundo, apresen-
tou a alternativa da “micrópolis”, buscando a felicidade no
interior do indivíduo.
Diferentemente de Platão e Aristóteles, para quem a ra-
zão é princípio externo à natureza, os estóicos identificaram
a Natureza e a Razão, do mesmo modo que o sensível e o 1n-

* ARISTÓTELES, ÉTICA A NICÔMACO, 2 ed. Brasília: Editora Uni-


versidade de Brasília, 1992, p.102

ea ad
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 127

teligível. Para que cada ser humano realize a sua função no


mundo, é óbvio que, em consequência, deve se conformar
à Natureza ou “Logos” Universal. Assim, cada um de nós
seria cidadão de uma cidade mundial, na qual nasceríamos
iguais. Esta visão parece guardar alguma semelhança com
a pretensão atual de universalização do reconhecimento e
proteção dos direitos humanos, assim como a decadência da
polis poderia ser colocada em comparação com o enfraque-
cimento da noção de Soberania do Estado-Nação no plano
internacional. Bobbio diz que
“a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súdi-
tos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos
alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma
paz que não tenha a guerra como alternativa, somente
quando existirem cidadãos não apenas deste ou daquele
Estado, mas do mundo””.

E bom recordar aqui a célebre frase de Pierre Bayle,


protestante huguenote do século XVIII e autor da primeira
enciclopédia iluminista: “Eu sou um cidadão do mundo, não
estou ao serviço do imperador, nem do rei da França, mas ao
serviço da verdade”).
Uma diferença importante entre o estoicismo e o mo-
vimento atual de internacionalização dos direitos humanos,
liga-se ao fato de que o estoicismo via a cidadania universal
numa dimensão metafísica, enquanto a extensão do reconhe-
cimento dos direitos humanos deve-se a uma luta histórica,
sendo o problema presente mais político do que filosófico.
Numa perspectiva dialética do “universal concreto”, Bobbio

*- BOBBIO, Norberto. A ERA DOS DIREITOS. Rio de Janeiro: Editora


Campus, 1992, p. 01
“Apud HOF, Ulrich Im. 4 Europa no século das luzes. Lisboa: Editora
Presença, 1995, p. 94
128 Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

apresenta-nos o processo de internacionalização dos direitos


humanos do seguinte modo:
“os direitos do homem nascem como direitos naturais uni-
versais, desenvolvem-se como direitos positivos particula-
res, para finalmente encontrarem sua plena realização como
direitos positivos universais. A Declaração Universal con-
tém em germe a síntese de um movimento dialético, que
começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais,
transfigura-se na particularidade concreta dos direitos po-
sitivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas
também ela concreta, dos direitos positivos universais””.

Não podemos igualmente esquecer que a perspectiva dos


estóicos era cosmológica, enquanto a atual é antropológica.
Além disso, convém lembrar que os estóicos tinham uma
visão deficiente da liberdade humana, pois eles davam muita
ênfase a necessidade presente no curso de acontecimentos,
nos quais a virtude humana se mostraria pela aceitação re-
signada dos mesmos, já que eram inevitáveis.
Sobre as contribuições do estoicismo para o jusnaturalis-
mo, diz Márcio Sotelo Felipe:
“É com os estóicos que “physis” associa-se a um “no-
mos” de justiça, de fundamento universal, possibilitando
a fusão entre os conceitos de Direito e Natureza: Direito
Natural. Os sofistas, afirma Ernst Bloch, haviam contra-
posto “physis “e “nomos”, enquanto os estóicos contra-
puseram physis” e “thesis'(norma), “abrindo assim o
caminho para a mais surpreendente ampliação do con-
ceito de 'nomos” . A natureza é antropocêntrica, mas de
caráter divino, e a lei natural é lei divina. Nota Bloch que
“na base deste Direito natural atuavam(...) associações
com uma idade de ouro, com sua lenda ainda conservada
na época: como reminiscência mitológica da comunida-
de primitiva, da idade sem propriedade privada, insti-

1! BOBBIO, Norberto, op. cit., p.30


HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 129

tuições nem guerra”. Nesse Direito natural, a igualdade


entre os homens punha a condição de senhor e escravo
contra a natureza. Os indivíduos compunham uma co-
munidade internacional, “um reino racional do amor”. A
natureza humana é racional e capaz de, interiormente,
superar as paixões escravizantes e, exteriormente, su-
perar o egoísmo e os interesses particularizados. O Di-
reito é igual para todos porque o gênero humano é uno.
Finaliza Bloch: “Em teoria, o estoicismo ensinava a li-
berdade inata de todos, a igualdade de todos por razão
de sua natureza humana, ao que devia ser acrescentada
uma liga fraterna cósmica, com uma declaração quase
à Schiller. 'Surge assim o homem como dignidade(...)
Aqui, pois, e desde aqui, aparece, pela vez primeira, o
pathos da dignidade humana em sua forma especifica-
mente naturalista”. Enorme gratidão merece, por isso, O
estoicismo, o berço desse pensamento.”!?

O estoicismo, muito tempo após o seu surgimento, teve


grande difusão no império romano, pois a idéia de uma
“cosmópolis”(cidade universal) atendia aos interesses de
universalização do império em expansão. Os romanos fala-
vam, inclusive, no “direito das gentes” que seria uma espé-
cie de direito universal ao lado do direito romano. A filosofia
estóica também foi útil à expansão missionária do cristianis-
mo, porquanto Cristo tinha ordenado a seus discípulos que
anunciassem o evangelho em todo o mundo, tendo em vista
o valor universal e eterno de sua morte expiatória.
Entre os pensadores romanos influenciados pelo estoi-
cismo, temos Cícero, que era seguidor do ecletismo, Sêneca,
Epicteto e Marco Aurélio.
Cicero, orador romano, defendeu a combinação das três
formas de governo (a monarquia, a aristocracia e o gover-

2 FELIPE, Márcio Sotelo. RAZÃO JURÍDICA E DIGNIDADE HUMA-


NA. São Paulo: Max Limonad. 1996, pp. 41,42
130 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

no popular), realçando a virtude de cada uma, residindo na


ênfase dada à liberdade o mérito da democracia. Cícero pro-
testa contra os tiranos de forma veemente, dizendo: “Quem
dará o título de homem a um monstro que não reconhece
comunidade de direitos para com os outros homens, nem
laços que o unam à humanidade? "*.
Acerca do Direito Natural, Cícero afirmou:
“A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os
corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve
o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus manda-
tos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmen-
te aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei
não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem
anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento
pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para
ela outro imperador nem intérprete; não é uma lei em
Roma e outra em Atenas, — uma antes e outra depois,
mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e
em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e
mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publica-
dor, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-
se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e
sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha
conseguido evitar todos os outros suplícios”!.

Sêneca manifestou-se radicalmente contra a escravi-


dão, deixando-nos a sublime frase segundo a qual “homo
res sacra homini”(“O homem é algo sagrado para o ho-
mem” — Carta 95). Na sua Carta 47 aconselhou a Luci-
lio, com veemência, a que admitisse os escravos à mesa.
REINHOLDO ALYSIO ULLMANN disse o que se segue
sobre Sêneca:

3 CÍCERO, DA REPÚBLICA, Livro II, XXVI. Rio de Janeiro: Ediouro,


[s. d.), p. 77
4 CÍCERO. Op. Cit. Livro HI, XVII, p. 100.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 131

“No concernente aos escravos, o filósofo mantém uma


linha de pensamento unitário e uniforme, em toda a ex-
tensão de sua vasta produção filosófico-literária. Nada
inovou a tal respeito, mas retomou idéias do Pórtico an-
tigo, que sustentava a igualdade de todos os homens.
Segundo Sêneca, o homem só pode ser escravizado
fisicamente, não, porém , no espírito, por ser este de
todo em todo livre. Divergindo de correntes filosóficas
gregas, o pensador de Roma afirmava ser a escravidão
um instituição humana e não condição imposta pela na-
tureza, precisamente por todos, pelo espírito, “de i1ure”
serem livres.”!.

ULLMANN, discorrendo sobre as contribuições do es-


toicismo para o império romano, diz que
“devedora do estoicismo julgava-se a jurisprudência ro-
mana, no que tange à origem natural do direito, baseado
no 'nómos physikós”... Deve lembrar-se, por igual, que
a retórica romana buscou os seus fundamentos na dia-
lética estóica”!º.

O epicurismo, por sua vez, era a filosofia que ensinava


a busca da felicidade, em meio a decadência da pólis grega,
através de um voltar-se do homem para dentro de si mes-
mo. Cada um de nós deveria ser o refúgio para si próprio. A
felicidade seria encontrada na busca de prazeres seleciona-
dos, principalmente a ataraxia (imperturbabilidade). Desta
forma, Epicuro valorizava significativamente a individuali-
dade humana e a felicidade pessoal. “O essencial para a
nossa felicidade é a nossa condição íntima, da qual somos
donos “(Usener, Frag. 109)”. ULLMANN diz que

15
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O ESTOICISMO ROMANO. Cole-
ção FILOSOFIA — 45, Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p.28
16
ULLMANN, Reinholdo Aloysio, op. cit., p.lI4
Apud. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. EPICURO, O FILÓSOFO DA ALE-
GRIA, Coleção FILOSOFIA - 35, Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 62
Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO
132

“o epicurismo é uma filosofia da busca de si mesmo, na


interioridade, na experiência mais íntima do ser, como
princípio do filosofar. Em vez de se preocuparem com o
mundo transcendente (em oposição a imanente), os epicu-
reus localizaram a esfera de seus interesses na vida interior.
A mesma preocupação tiveram, séculos depois, Orígenes
(185-253/54), Plotino (205-270) e Aurélio Agostinho (354-
430). Este chegou a escrever: “Noli foras ire; in te ipsum
intra; in interiore hominis habitat veritas”(De vera rel. 39,
72). Escusado é dizer que, para a águia de Hipona, o voltar
a si (in se ipsum intrare) implica a experiência mística do
encontro com o Deus verdadeiro e único”!.

Epicuro, seguindo Demócrito, tinha uma concepção ato-


mista da natureza, sendo que ele atribuía aos atómos o poder
de desviar-se da linha reta em que, normalmente, caíam do
espaço. Foi baseado nesse desvio que Epicuro combateu o de-
terminismo e apregoou a liberdade. Lucrécio, apaixonado dis-
cípulo de Epicuro que difundiu o seu pensamento em Roma,
chamou, em latim, o desvio casual dos atómos de clinamen. O
referido epicurista escreveu no De renum natura que
“Se os átomos nunca sofrem um desvio, para romper os
laços do destino, para romper a eterna cadeia de causas
e efeitos, como se explica que as coisas vivas, no mundo
inteiro, são livres? De onde vem esta liberdade arranca-
da das garras do destino, a qual nos dá o poder de ir para
onde nos conduzem as inspirações do prazer?”".

Percebemos que enquanto a ênfase do estoicismo estava na


igualdade, a do epicurismo estava na liberdade e na individuali-
dade. Ambos os valores (Liberdade e igualdade) são imprescin-
díveis para a compreensão atual dos direitos fundamentais.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio, EPICURO, O FILÓSOFO DA ALE-


18

GRIA. Coleção FILOSOFIA -35. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 45


Apud ULLMANN, Reinholdo Aloysio. EPICURO, FILÓSOFO DA ALE-
GRIA. Coleção FILOSOFIA — 35. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p 56
HERMENÊUTICA E UNIDADE ÁXIOLÓGICA DA ConsriTuiÇÃO 133

No século I de nossa era, surgiu o cristianismo com as


suas inúmeras contribuições para a humanidade. A doutrina
da encarnação, que ensinava que o Deus eterno assumiu a
natureza humana para nos salvar, bem como a da expiação,
que ressaltava o aspecto substitutivo da morte de Jesus em
relação a nós, revelavam como o Ser Supremo atribuiu valor
aos homens. O ensino cristão da responsabilidade individual
do homem perante Deus, assim como a crença em uma exis-
tência consciente de cada um de nós no além, demonstra-
vam o valor da personalidade humana. Stanley Jones, mis-
sionário na Índia na primeira metade deste século e escritor
mundialmente conhecido, disse que
“o evangelho gira em torno de uma pessoa e cria perso-
nalidades. Como diz H. Wheeler Robinson: Em flagran-
te contraste com a originalidade budista de solucionar o
mistério da vida pela eliminação da personalidade, afir-
mando ser ela uma ilusão, o cristão, de qualquer tipo,
encontra uma intensificação e afirmação de sua perso-
nalidade como consequência de sua fé”.

O Cristianismo não apenas reconheceu o valor do homem


como tal, mas também se opôs aos preconceitos contra a crian-
ça e a mulher. Nesses dias, em que se fala muito sobre os direi-
tos da criança, convém lembrar as palavras de Stanley Jones:
“Como raças tinhamos pouco interesse em certas classes
de pessoas até que descobrimos que Jesus está interessa-
do nelas. Tomemos, por exemplo, a criança. Quando uma
criança nascia, no Império Romano, era apresentada ao pai
para que ele decidisse se ela devia viver ou morrer. Ele
experimentava seus braços e pernas para ver se eram nor-
mais; se não fossem ou se ele não gostasse da aparência da
criança, ele quebrava-lhe a espinha, atirando-a no montu-

”? JONES, Stanley. O CRISTO DE TODOS OS CAMINHOS. 5º ed., São


Paulo: Imprensa Metodista, 1993, p.84
134 Grauco BARREIRA MAGALHÃES F ILHO

ro. Não tinha valor nenhum, era apenas um infante. Vi num


templo hindu a figura de Siva fincando seu tridente numa
criança prostada. “Um filho me nasceu, um embaraço tem
sido colocado diante de mim”, dizia Buda. Em contraste
com esta expressão ouvimos as ternas palavras de Jesus:
“Deixai os meninos que venham a mim, e não os impeçais,
porque dos tais é o Reino de Deus”. Hoje estamos procu-
rando seguir seu interesse pela criança. Não é demais dizer
que tudo que se faz pela criança na vida moderna pode
ser atribuído ao seu bondoso coração. Mesmo nos meios
não cristãos esta é a verdade confessa. “Estou contente de
ver-nos cuidando destas crianças ilegitimas”, disse eu a um
superintendente de uma casa de enjeitados. “Sim”, disse-
me ele, “aprendemos a cuidar delas aos pés de alguém que
disse: “Deixai vir a mim os pequeninos”?!

Sobre o combate de Jesus ao preconceito contra a mulher,


basta lembrar de alguns fatos para que isso fique evidente. Em
uma ocasião, os discípulos de Cristo ficaram admirados de
vê-lo, contra o costume da época, conversando com uma mu-
lher, que também era samaritana e prostituta. Noutra oportu-
nidade vemos Jesus livrando uma adúltera do apedrejamento,
lembrando aos acusadores que eles também tinham pecado, e
que, portanto, aquela mulher não deveria ser julgada com mais
dureza pelo simples fato de ser mulher”. Apesar de a mulher
não ser considerada testemunha idônea, o Cristo ressuscita-
do apareceu primeiramente as mulheres, ordenando-lhes que
testemunhassem o fato”. Contrariamente a prática da época,
na genealogia de Jesus descrita por Mateus aparecem nomes
de mulheres”. As mulheres estavam presentes no cenáculo

2» JONES, Stanley. Ob. Cit., pp. 84 e 85


2 Eyangelho de S. João, cap. 4, vers. 27
2? Evangelho de S. João, cap. 8.
” Evangelho de S. Mateus, cap. 28, versículos 9 e 10
5 Evangelho de S. Mateus, cap. 1: 1-17
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 135

quando a igreja surgiu de forma visível”. O batismo cristão


é administrado tanto a homens como a mulheres”. O após-
tolo Pedro ensina que os maridos devem tratar “as mulheres
com dignidade, porque sois, juntamente, herdeiros da mes-
ma graça da vida”, enquanto o apóstolo Paulo proclama a
igualdade entre homens e mulheres, bem como o seu protesto
contra a escravidão e a discriminação racial, com as seguintes
palavras: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem
escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos
vós sois um em Cristo Jesus”.
Em oportunidade anterior, citamos o parecer de Tertulia-
no, um dos grandes mestres da igreja antiga, contra a pena
de morte. Voltaire, no seu TRATADO SOBRE A TOLE-
RÂNCIA, faz referência a testemunhos dos Pais da Igreja a
favor da liberdade de consciência e de crença, os quais nós
passamos a citar:
“É um sacrilégio tirar, em matéria de religião, a liberda-
de aos homens, impedir que escolham uma divindade:
nenhum homem, nenhum deus, gostaria de um serviço
forçado(Tertuliano, APOLOGETICA, cap. XXIV)”; “Se
usassem de violência para a defesa da fé, os bispos se
oporiam a ela (Santo Hilário, liv. 1)”; “E uma execrável
heresia querer atrair pela força, à base de pancadas e en-
carceramento, os que não puderam ser convencidos pela
razão (Santo Atanásio, liv. 1)”; “Nada é mais contrário à
religião do que a coerção (São Justino, mártir, liv. vp,

E lamentável que, na Cristandade Medieval, a prática,


muitas vezes, tenha sido outra.

* Atos dos Apóstolos, cap. 1, versículo 14


27
Atos dos Apóstolos, cap. 8, versículo 12
28
Primeira Epístola de S. Pedro, cap. 3, versículo 7
29
Epístola de S. Paulo aos Gálatas, cap. 3, versículo 28
30
VOLTAIRE. TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA (A propósito da
morte de Jean Calas), São Paulo : Martins Fontes, 1993, p. 95
O
136 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FiLH

O Cristianismo primitivo cria na existência do Direito


Natural. Jesus falou sobre o casamento monogâmico, refe-
rindo-se à ordem da criação?!. O apóstolo Paulo mencionou
a lei escrita no coração e conhecida pelos testemunhos da
consciência e pela luz da razão”.
No período Patrístico, Santo Agostinho destacou-se na
defesa do Direito Natural. Apesar de o Doutor de Hipona
ter sido influenciado por Cícero, não se contentou em copiá-lo.
Agostinho entende que a lei temporal tira a sua força da par-
ticipação na lei eterna, mas adapta-se às realidades variáveis,
podendo mudar sob certos aspectos. Pois a lei temporal não
procura senão um bem relativo e permite, por vezes, o que a
lei eterna condena. A posição agostiniana foi clarificada na
célebre obra De libero arbítrio.
Na idade Média, com o surgimento do escolasticismo a
partir de Anselmo da Cantuária, o jusnaturalismo encontra
através da filosofia tomista o seu maior prestígio e desen-
volvimento. Para Tomás de Aquino, existe a lei divina, a lei
eterna, a lei natural e a lei humana. A lei divina está contida
na Escritura, sendo conhecida, portanto, mediante revela-
ção. A lei eterna confunde-se com a própria natureza divina,
tendo como fonte a Razão de Deus. A lei natural é decorren-
te da participação da razão humana na lei eterna, enquanto a
lei humana diz respeito ao Direito Positivo.
Segundo o doutor angélico, a lei natural tem um núcleo
imutável e uma periferia variável. Os primeiros princípios,
imediatamente percebidos pela razão humana através de sua
participação na lei eterna, são de natureza inteiramente racio-
nal e, portanto, invariáveis no tempo e no espaço. Destes prin-
cípios básicos decorrem conclusões que acomodam as suas
exigências de justiça à certas circunstâncias históricas e so-

3 Evangelho de S. Mateus, cap. 19, versículo 8


ulo 15
2 Epístola de S. Paulo aos romanos, cap. 2, versíc
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTiTUIÇÃO 137

ciais (temporais e mutáveis). Da conclusão de um princípio,


podem ser tiradas novas conclusões, de modo que essas se-
riam tanto mais variáveis quanto maior fosse o distanciamen-
to dos princípios ou a aproximação da realidade concreta. As
conclusões são resultantes da síntese das exigências racionais
de justiça com as peculiaridades da experiência histórica.
À lei humana, na perspectiva tomista, consistiria nas con-
clusões oriundas dos princípios e nas determinações, sendo
estas últimas condicionadas, primordialmente, pela realidade
histórico-cultural, sendo a pena o exemplo clássico.
Podemos concluir que, de acordo com Tomás de Aquino,
o Direito Natural é basicamente principiológico e parcialmente va-
riável nas suas conclusões, enquanto o Direito Positivo deve
sanar as lacunas do Direito Natural, recebendo dele, ao mes-
mo tempo, a sua vitalidade, da mesma maneira que o sistema
nervoso em todo o organismo é regido pelo cérebro.
No que diz respeito aos direitos humanos, o tomismo
deixou muito a desejar. O doutor angélico, influenciado pelo
pensamento aristotélico, foi favorável à pena de morte, bem
como a prevalência do ente corporativo sobre o indivíduo.
A sua noção de bem comum, todavia, estava diretamente
ligada a dignidade humana.
Atualmente, tem havido um renascimento do pensamen-
to jusnaturalista de bases tomistas, principalmente, através
de Georges Renard, defensor da existência de um Direito
Natural de Conteúdo Progressivo.
No século XIV, Marsílio de Pádua assumiu posições teó-
ricas de tendências democráticas e afirmou a necessidade de
separação entre a igreja e o Estado, prestigiando o último
no campo político e temporal. Além disso, Marsílio de Pá-
dua protestou contra a intolerância da Igreja, mostrando a
importância da liberdade de consciência, que é o ponto de
partida dos direitos individuais. Eis as suas palavras:
GLauco BARREIRA MAGALHÃES FiLHO
138

“A respeito...tanto Ambrósio quanto Crisóstomo têm uma


opinião concorde, e afirmam isso claramente. Ambrósio
efetivamente declara: “Não tencionamos dominar vossa fé,
significa que a mesma não deve sofrer coação ou domina-
ção, pois se trata de uma escolha da vontade, não de uma
imposição(...) Crisóstomo afirma: “E mais vantajoso para a
Igreja que os convertidos o sejam através da aquiescência
e não por meio da coação. Que homem admirável aquele,
indubitavelmente o Apóstolo que, ciente disso, falava aos
Coríntios: não tencionamos dominar vossa fé!””*º.

Como resultado da Renascença nos séculos XV e, princi-


palmente, XVI, surgiu um movimento humanista, cujo maior
representante foi Erasmo de Rotterdam. Este movimento ca-
racterizava-se, no plano literário, por uma valorização das
obras clássicas da antiguidade greco-romana, e também, dos
mestres da Igreja antiga. Apesar da sua ênfase teológica, o
humanismo renascentista foi considerado o precursor de uma
sociedade antropocêntrica, em oposição à sociedade teocên-
trica da Idade Média. Os humanistas se ocuparam de falar da
natureza humana, criticando a ideologia opressora presente na
Igreja Romana e na cultura medieval. Um exemplo disso foi o
Elogio à loucura de Erasmo. Prestigiando a liberdade e apre-
goando um afastamento da Igreja de certas esferas da vida hu-
mana, Erasmo ensinou que entre os atos religiosos (morais) é
os contrários à religião (imorais) estavam os atos indiferentes,
cuja neutralidade valorativa permitiria uma escolha baseada
em critérios utilitários, sendo exemplo de coisas indiferentes,
as vestimentas sacerdotais com todos os seus detalhes, bem
como certos objetos usados no culto.
A Reforma protestante, inquestionavelmente, recebeu
um impulso proveniente da Renascença. Basta lembrar que

icos do Pensa-
3 MARSÍLIO DE PÁDUA. DEFENSOR MENOR. Cláss
mento Político. Petrópolis: Editora Vozes, 1991, p. 93,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 139

o reformador Ulrich Zuínglio era um humanista, tendo de-


fendido que entre os filósofos pagãos, alguns haviam sido
predestinados à salvação e, portanto, de algum modo chega-
ram ao conhecimento de Deus por meio de Cristo, sem a ins-
trumentalidade da Escritura. Tais afirmações receberam os
protestos de Lutero, que se opôs ao racionalismo de Erasmo,
ao qual se atribuía a feitura da seguinte oração: “S. Sócrates,
ore por mim”*. João Calvino, inicialmente ligado ao hu-
manismo, aderiu à Reforma, aproximando-se das posições
luteranas e distanciando-se do pensamento de Erasmo, este
último considerado, por Lutero, como traidor da Reforma.
De um modo geral, o que distanciava os protestantes dos
humanistas era a concepção pessimista acerca da natureza
humana apartada da graça de Deus e a afirmação de que a
salvação era unicamente pela fé, sendo ambos os ensinos
considerados a base da Reforma. Por outro lado, o que os
aproximava era a crítica à atuação dominadora da Igreja Ro-
mana, e uma ênfase, apesar de as perspectivas serem dife-
rentes, na competência individual.
Entre as doutrinas religiosa da Reforma, duas se desta-
cavam: a justificação pela fé e o sacerdócio universal de to-
dos os crentes. De acordo com a primeira, o homem é salvo
perante Deus pela sua fé pessoal em Jesus Cristo, e não pe-
los sacramentos administrados pela igreja, nem por missas
a seu favor. Fica aqui evidente o valor do indivíduo perante
Deus. Também se afirmava o sacerdócio universal de todos
os cristãos, O que significava que não haveria na igreja uma
diferença entre o clero e o laicato. Todos tinham acesso di-
reto a Deus em seu Filho, sem a intercessão dos santos ou
sacramentos da igreja , assim como todos poderiam praticar
o livre exame das Escrituras, pois o seu sentido correto seria

“ GEORGE, Timothy. TEOLOGIA DOS REFORMADORES. São Paulo:


Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1994, p.125
140 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

disponível a todos os cristãos. Constatamos assim, O reco-


nhecimento da competência do indivíduo.
Como consequência da Reforma, escritos teológicos e
Bíblias traduzidas para as línguas nacionais começaram a
ser imprimidas, gerando desconforto para a Igreja Romana,
que manifestou-se com reações de intolerância que con-
tavam com o apoio da espada estatal. Em razão disso, os
protestantes passaram a lutar pela liberdade de imprensa e,
principalmente, pela liberdade de consciência.
A ala radical da Reforma, a qual pertenciam os anaba-
tistas e batistas, mostrou-se mais coerente na luta pela liber-
dade de consciência, pois defendia a total separação entre a
igreja e o Estado, bem como o batismo adulto e voluntário.
Esse ramo da Reforma, também levou às ultimas conse-
quências o reconhecimento da competência do indivíduo,
porquanto apregoou um governo eclesiástico dmocrático e
congregacional. E.Y. Mullins defende que os batistas con-
seguiram unir e concentrar em si as três grandes tendências
modernas: o princípio intelectual da Renascença ligado à
capacidade para o exercício da liberdade mental; o princípio
anglo-saxão do individualismo, e o princípio reformado da
justificação pela fé. São suas as seguintes palavras:
“Os batistas, contudo, têm transformado e modificado
todas estas tendências, dando-lhes estruturas mais no-
bres e tornando-as mais frutíferas. Na insistência so-
bre a competência religiosa do homem, têm livrado a
liberdade intelectual de todas as espécies de repressão
humana, e ao mesmo tempo, têm-lhe servido de sal-
vação, guiando-a para o verdadeiro alvo do homem, a
Inteligência que está por detrás do universo visível. A
intelectualidade humana iluminada pela intelectualida-
de divina, eis o ponto de vista batista.
Defendendo o individualismo, têm livrado o princípio
anglo-saxônico de uma tendência desumana e egoista,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 141

definindo-o como um impulso moral e religioso sob a di-


reta tutela do guia moral da humanidade — Jesus Cristo.
Têm, outrossim, levado o princípio da Reforma, da jus-
tificação pela fé, para além dos sonhos de Lutero e dos
outros reformadores. Têm apoiado tudo o que está im-
plícito no princípio da justificação. A grande luta pela
liberdade religiosa e pela separação entre a Igreja e o
Estado, que os batistas iniciaram, tem sido desabrochar
coerente de um ideal maior do que o que Lutero aca-
riciou, o qual tem ajuntado, de forma a constituir uma
perfeita unidade, todos os tesouros morais e espirituais
da própria Reforma”?

W. €. Taylor, explicando o que significava “ser batista”,


disse:
“Não admiramos a mera tolerância. Insistimos na li-
berdade de crença, a separação da Igreja e do Es-
tado, a voluntariedade em religião, na família, no
Estado(...)Morreremos para que outros tenham a liber-
dade de anunciar seus princípios religiosos, embora dis-
cordemos dos mesmos princípios”?

Da pena de Rui Barbosa, saiu esse texto:


“O protestantismo nasceu da liberdade da consciência
individual, cuja consequência política é a liberdade reli-
giosa; do protestantismo é filha a instrução popular, que
constitui a grande característica, o principal instrumento
e a necessidade da civilização moderna; ao protestantis-
mo está associada(...) uma exuberância de prosperidade
industrial, luxuriante e vigorosa como a vegetação dos

5 MULLINS, E.Y., Os axiomas da religião. 3º ed., Rio de Janeiro: Casa


Publicadora Batista, 1960, p.63-64. John Locke afirmou: “Os batistas
foram os primeiros proponentes de uma liberdade absoluta, justa e ver-
DA
dadeira liberdade, liberdade igual e imparcial.” (Apud WAILLER
SILVA, Paulo. Ética cristã. Rio de Janeiro : JUERP, 1989, p. 91)
% TAYLOR, W.C., Que significa ser batista (S.1., s.e, 1939), p. 18
142 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

trópicos, em contraste com os países onde os processos


de governos católicos, aplicados em seu rigor, cansaram
as almas e esgotaram a energia moral do povo”?

No século XVII, quando Cromwell e o Parlamento con-


seguiram depor e sentenciar à morte Carlos I, inaugurou-se,
na Inglaterra a “Commonwealth” ou a “República” que teve
duração no período de interregno.
Cromwell, puritano que recebeu do Parlamento inglês o
título de “ Lorde Protetor”, foi considerado por Lloyd-Jo-
nes como “o homem mais honesto do século 17, homem que
lutava por ser fiel à sua consciência mais do que todos os
outros” e “o pai e o pioneiro da tolerância e da liberdade
religiosa na Inglaterra "**. Bosher, discorrendo sobre o pen-
samento do “Protetor”, disse que, para o ilustre puritano, “a
autoridade do Estado devia ser exercida, não para regula-
mentar a doutrina e prática religiosa, mas para impedir tal
regulamentação "*º. Cromwell promulgou a 16 de dezembro
de 1633, na Inglaterra, o “Instrument of Gvernment”, con-
tendo 42 artigos. Esse documento é considerado a primeira
Constituição escrita que apareceu no mundo, em bases mo-
dernas, sendo, portanto, de caráter nacional e limitativo, e
servindo, depois, de padrão ao constitucionalismo america-
no de descendência inglesa. Sobre a influência do puritanis-
mo inglês na América, escreveu Alexis de Tocqueville:
“O puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa;
confundia-se ainda, em vários aspectos, com as teorias
democráticas e republicanas mais absolutas. Por causa
dessa tendência, tinha ganho os seus mais perigosos

7 BARBOSA, Rui., Secularização dos camitérios. Em: Obras Completas.


Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1950, v.7, t.1, p.163
* LLOYD-JONES, D.M., Os puritanos, suas origens e seus sucessores,
São Paulo: PES, 1993, p,75
”? Apud LLOYD-JONES, D.M,, op. cit, p.75
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 143

adversários. Perseguidos pelo governo da mãe pátria,


ofendidos no rigor de seus princípios pela marcha co-
tidiana da sociedade em cujo seio viviam, os puritanos
procuravam uma terra tão bárbara e tão abandonada
pelo mundo que nela pudessem ainda viver a sua ma-
neira e rezar a Deus em liberdade”.

De acordo com Tocqueville, religião e liberdade presidi-


ram em harmonia à fundação da Nova Inglaterra pelos pu-
ritanos, sendo companheiras de lutas e triunfos. Enquanto a
liberdade permitia o afrouxamento do vínculo político, a fé
estreitava o vínculo moral, principalmente pela adoção da
doutrina da imortalidade da alma.
Devido ao desprestígio do governo puritano de Cromwell
na Inglaterra, decorrente da orientação moral de bases calvi-
nistas genebrinas, e também como resultado do sentimento
inglês de que era impossível o governo sem uma espécie
de chefe, de preferência um rei, a monarquia foi restaurada
mediante Carlos II.
Em 1685, faleceu Carlos II, deixando como sucessor
o seu irmão Jaime II, o qual se declarava abertamente ca-
tólico, a despeito dos sentimentos que imperavam sobre a
maioria do povo inglês. Para os ingleses, o catolicismo ro-
mano estava associado com a tirania, como aquela que im-
perou no governo de Maria, “a sanguinária”, ou ainda, no
governo de Luís XIX, rei da França. Assim, em novembro
de 1688, Guilherme de Orange, genro de Jaime II, “apaixo-
nadamente holandês e protestante”, chamado pela maioria
do povo inglês e pela própria Igreja oficial, desembarcou,
nas costas da Inglaterra, trazendo seiscentos barcos e quinze
mil soldados. Pela liberdade, pela religião protestante, pelo
parlamento: foram as palavras inscritas nos estandartes do

º TOCQUEVILLE, Alexis de. 4 democracia na América. 3º ed. Belo Ho-


rizonte: Itatiaia, 1987, p.33
144 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Príncipe de Orange. Acontecia, na Inglaterra, a “revolução


gloriosa” e a deposição de Jaime II. A referida “revolução”
caracterizou-se pela ausência de violência, resultando em
uma solução de compromisso da burguesia com a nobreza,
visando a substituir a monarquia absolutista por uma mo-
narquia parlamentar. Em 1689, houve a aprovação de uma
Declaração de Direitos, mediante a qual o novo monarca,
Guilherme III, jurou estabelecer a liberdade de imprensa; o
direito exclusivo do parlamento de estabelecer impostos; a
liberdade individual e propriedade privada; a manutenção e
recrutamento de membros para o exército apenas através da
aprovação do parlamento. O protestantismo e o liberalismo
whigs prevaleciam, enquanto o absolutista Bossuet escrevia
a um padre, em dezembro de 1688: “Só faço chorar sobre
a Inglaterra”*!. Em fevereiro de 1689, John Locke, filósofo
político contrário ao absolutismo, o qual se encontrava re-
fugiado no exterior, retorna a Inglaterra com os manuscritos
das duas obras que o farão célebre, a obra filosófica intitula-
da Ensaio sobre o Entendimento Humano, e a obra política
intitulada Ensaio sobre o Governo Civil.
Percebemos que, na Inglaterra, através de “revoluções”
reformistas, deu-se o reconhecimento paulatino do que, de-
pois, veio a ser chamado de direitos fundamentais. A Magna
Carta de 1215, um contrato feudal escrito e imposto por bis-
pos e barões ao rei João Sem Terra, estabelecia obrigações
para o rei que implicavam no reconhecimento de liberdades
e privilégios de certos estamentos sociais. Eram assegura-
das regalias à Nobreza, prerrogativas da Igreja, liberdades
municipais e direitos corporativos. O referido documento
jurídico-político destacou-se por ter consagrado o habeas
corpus para o homem livre, tendo o mencionado remédio

4 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Ma-


quiável a nossos dias. 7º ed., Rio de Janeiro :; Agir, 1995, p. 105
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 145

ganhado o sentido de universalidade, passando a ser visto


como direito de todos os homens no século XVII. Os outros
documentos importantes foram Petition of Right (assindada
por Carlos I em 1688), Habeas Corpus Act ( assinado por
Carlos Il em 1679) e o Bill of Rights (Subscrito por Guilher-
me d"Orange em 1689).
Os direitos ingleses, transplantados para os territórios
coloniais como direitos dos homens, resultaram na Revolu-
ção Americana e nas Declarações de Direitos de 1776 dos
Estados de Virgínia, Pensilvânia e Maryland, bem como na
Constituição Federal de 1787, uma síntese do racionalismo
da época com o tradicional pragmatismo anglo-saxônico.
Quem muito influenciou nessas mudanças que se opera-
ram na Inglaterra e nos Estados Unidos, como um verdadeiro
corifeu do liberalismo político, foi Locke. Para este filósofo,
no estado de natureza, o homem tinha liberdade e igualdade,
principalmente para dispor de bens que integravam o seu
domínio direta ou indiretamente, através da agregação do
trabalho pessoal. No entanto, a degeneração do estado de
natureza, resultou no surgimento da inimizade e destruição.
Para sair desse estado de instabilidade, os homens, mediante
um pacto, constituíram a sociedade política. Assim, o Estado
surge para garantir direitos como aqueles que se referem à
vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. Estes direitos
são oponíveis perante o Estado, e a sua violação por parte do
Ente Público dá ensejo a erupção do direito de resistência, o
que, para Hobbes, um contratualista autoritário, só era pos-
sível na hipótese de defesa da própria vida.
Dois eventos de grande significação para o reconheci-
mento dos direitos do homem foram a Revolução Francesa
de 1789 e a declaração de direitos que dela resultou, fatos
esses que decorreram da influência de vários pensadores. Os
iluministas e racionalistas apregoavam a necessidade de se-
146 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

pultar a ordem medieval, fundada na superstição e no medo,


e a exigência de construção de um novo mundo, de um sé-
culo de luzes, de uma idade da razão, marcada pela ousadia
e confiança nas potencialidades humanas. Diderot propagou se-
mentes filosóficas revolucionárias através de sua Enciclopédia de
35 volumes, entre os anos de 1751 e de 1780. Rousseau, um dos
que contribuiu para a Enciclopédia de Diderot, influenciou
significativamente a Revolução Francesa com a sua teoria
contratualista. Rousseau não dava tanta ênfase à razão como
outros pensadores da época, o que gerou protestos de Voltaire,
visto que ele ensinava a bondade natural dos instintos huma-
nos. Assim, o homem seria corrompido pela sociabilidade
decorrente do aparecimento da propriedade privada, a qual
suscitaria desigualdades que seriam justificadas por raciona-
lizações egoísticas. Para Rousseau, a solução corretiva para
tal situação seria um pacto social, não sob Deus, mas sob os
homens, no qual cada um renunciaria a sua liberdade natural
para receber a liberdade civil da “ vontade geral”. O pacto
social levaria também a uma redistribuição da propriedade
privada, segundo critérios de igualdade. A “vontade geral”
seria o querer racional isento de paixões pessoais, daí a sua
generalidade, e nesse sentido seria o que cada um deveria
querer, e logo, obedecer-lhe seria obedecer a si próprio, o
que garantiria a autonomia do pacto social. Também contri-
buiu ideologicamente para a Revolução Francesa a doutrina
da separação de poderes, a qual esteve embrionariamente
presente no pensamento de Aristóteles, foi explicitada por
Locke, e ganhou divulgação maior na formulação de Mon-
tesquieu. Esse último, viu a separação dos poderes como um
remédio para o abuso de poder e uma garantia de liberdade
para os cidadãos.
O pensamento revolucionário aproveitou a idéia de povo
soberano de Rousseau e a doutrina da separação de poderes
de Montesquieu, o que não deixa de encerrar uma contradi-
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 147

ção, pois Rousseau, vendo o Poder Soberano diretamente


nas mãos do povo, não objetivava enfraquecê-lo, enquanto
Montesquieu, contemplando o Poder nas mãos de governan-
tes específicos, se preocupou em dividi-lo, a fim de evitar
abusos, através do sistema de pesos e contrapesos. A “junta”
que possibilitou a união das duas teorias foi a adoção do
governo representativo, conforme a formulação de Sieyês.
Vale lembrar que foi desprezado o pensamento de Rousseau
concernente à redistribuição da propriedade privada.
O lema da Revolução Francesa era “liberdade, igualdade e
fraternidade”, mas, de um modo geral, só houve preocupação
de efetivar tais valores para a classe burguesa. Apenas na se-
gunda etapa da Revolução Francesa, sob a ação de Robespierre
o qual encontrou inspiração no pensamento de Rousseau, pro-
clamaram-se direitos sociais do homem como aqueles relati-
vos ao trabalho e a meios de existência, direito de proteção
contra indigência, direito à instrução (Constituição de 1793).
Todavia, a realização desses direitos cabia à sociedade e não
ao Estado, mantendo-se, assim, a idéia, então predominante,
de que o Estado devia abster-se diante de tais problemas.
Na Inglaterra, Coleridge e Wordsworth, no início, apoia-
ram a Revolução Francesa através de seus escritos, mas foram
contra o “Reinado do terror”. Willam Wilberforce, líder da
causa abolicionista, observou, horrorizado, os violentos acon-
tecimentos na França. John Wesley, o líder do avivamento re-
ligioso metodista, o qual, segundo Halévy, salvou a Inglaterra
de uma revolução como a que ocorreu na França, viu a Revo-
lução de 1789 como uma introdução do tempo do fim.
De acordo com Edmund Burke, a Revolução de 1688,
na Inglaterra, assemelha-se apenas na aparência com a
Revolução de 1789 na França, pois, na verdade, havia um
contraste na essência e no princípio. Burke entendia que os
direitos do homem, contemplados na forma abstrata e abso-
148 Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

luta, conforme a concepção vigente na França por ocasião


da Revolução são irrealizáveis: Quem tem direito a tudo, de
tudo carece. Assim, os direitos humanos na visão francesa
seriam, na verdade, como uma mina sob o solo, objetivando
tão somente a explosão da antiguidade, dos usos e dos atos
do Parlamento. Burke atribui importância aos direitos em
sua realização histórica, o que implica em consideração para
com o governo e as instituições que surgiram para o atendi-
mento das necessidades humanas. O referido autor, seguin-
do o modo empírico inglês, propõe um método da natureza
que procura a conservação do que existe, combinado com
uma adaptação ao que vem a existir.
Segundo Stahl,
“a liberdade da Inglaterra e da América está permeada
do hálito dos puritanos, a liberdade da França está per-
meada do hálito dos enciclopedistas e dos Jacobinos”*2.
Will Durant afirma que
“o malogro da Reforma na captura da França não dei-
xara para os franceses uma estação de muda entre in-
falibilidade e infidelidade; e enquanto o intelecto da
Alemanha e da Inglaterra seguiu à vontade pelas linhas
da evolução religiosa, a mente da França saltou da fé
ardente que havia massacrado os huguenotes para a fria
hostilidade com que La Mettrie, Helvetius, Holbach e
Diderot se lançaram contra a religião de seus pais”*.

Kant, apesar de ser um pensador Alemão, saudou a Re-


volução francesa com alegria. Este filósofo muito contri-
buiu para o reconhecimento da autonomia ética do indivíduo
— ponto de partida dos direitos de liberdade. Enquanto Des-
cartes atribuiu autoconsciência ao sujeito cognoscente no

2 Apud LLOYD-JONES, D.M. Os puritanos, suas origens e seus sucessores,


São Paulo: PES, 1993, p. 339
º DURANT, Will, op. cit. ,p. 225.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 149

processo de conhecimento, Kant fez desse sujeito, e não do


objeto, o ponto de partida do ato cognitivo. Para o pai da
filosofia crítica, nós nunca conhecemos a “coisa em si”, mas
sim O fenômeno(“aparição”), ou seja, a coisa como ela se
nos mostra, no caso, segundo as nossas formas de percepção
e categorias apriorísticas de pensamento. Essa Revolução
Copernicana na epistemologia, conferidora de posição pri-
vilegiada ao sujeito cognoscente, refletiu na filosofia moral
de Kant através da elevação da pessoa humana a valor ab-
soluto. Segundo o mestre alemão, a pessoa humana deve ser
sempre tratada como um fim, nunca como um meio.
No plano jurídico, Kant prestigiou a liberdade, um pos-
tulado da razão prática e característica da condição de ser
pessoa. O Direito Natural (Racional) de Kant tinha uma de-
finição formal, sendo visto como o modo de o arbítrio de um
conviver com o arbítrio do outro segundo uma lei universal
de liberdade. Assim Kant destacava a liberdade como ponto
de partida, e a igualdade como critério de limitação.
Kant defendia o contrato social como hipótese racional
que justificava a existência do Estado e da liberdade na so-
ciedade civil. Também defendeu a necessidade de semelhan-
te pacto, no plano internacional, entre os Estados Soberanos,
a fim de se atingir a paz mundial. Tal pensamento revela-se
atual na medida em que, não somente temos declarações e
tratados garantidores de direitos humanos no plano inter-
nacional, mas também, vivemos em um momento histórico
em que se procuram meios de efetivação de tais direitos em
esfera mundial, ainda que isso acarrete uma relativização do
conceito de soberania.
E oportuno lembrar que, nos séculos XVII e XVIII, sur-
giu, como reação ao racionalismo, o movimento religioso co-
nhecido como pietista dentro dos círculos protestantes, dando
ênfase à espiritualidade afetiva e à devoção a Deus. O referi-
150 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

do movimento contribuiu significativamente para a libertação


dos escravos e reconhecimento da mulher. Vejamos as afir-
mações de Ulrich Im Hof sobre o assunto: “A este propósito
convém não esquecer que os metodistas ingleses foram os
primeiros a empenhar-se na luta anti-esclavagista”* e
“De resto, o pietismo desenvolveu uma apreciação mui-
to própria da mulher, apoiando-se na interpretação do
Novo Testamento. A mulher de qualquer classe social
podia ter um papel preponderante nos conventículos: a
2245
figura masculina do pastorjá não era determinante”.

O mesmo autor, discorrendo sobre as semelhanças entre


o iluminismo e o pietismo, disse que
“quer se tratasse da pietista “Ecclesiola in ecclesia” (igre-
jola dentro da igreja), quer da igreja oficial já imbuída
dos ideais iluministas, ambas se encontravam descon-
tentes com a ortodoxia e procuravam novos caminhos.
Comum às duas tendências era o postulado da liberdade
individual e da responsabilidade ética”**.

John Wesley”, grande líder do movimento metodista e,


portanto, do pietismo inglês, escreveu sua última carta no
dia 24 de fevereiro de 1791, apenas seis dias antes da sua
morte, endereçada a William Wilberforce, líder no Parla-

“2 HOF, Ulrich Im. 4 Europa no século das luzes. Lisboa : Editora Presença,
1995,
p. 209
45 HOF, Ulrich Im, op. cit., p. 226
“s HOF, Ulrich Im, op. cit., p. 16]
“Segundo os historiadores, John Wesley modificou o curso da história
inglesa. Como disse Rattenbury: “Há na verdade, pouca dúvida, de que
o cidadão inglês do século dezoito, de maior importância para o mun-
do não era um político nem poeta, nem soldado ou marinheiro, mas o
pequeno itinerante a cavalo — o Grande Cavaleiro, como eu o chamaria
— que ainda está cavalgando para novas conquistas”. RATTEMBURY,
J. Ernest. Wesley: legacy to the World. London: The Epworth Press,
1928, p.53.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO 151

mento, exortando-o
a continuar a sua luta contra o mal da
escravidão. Eis o conteúdo da carta:
“Prezado senhor: A não ser que o poder divino tenha levan-
tado você para ser um “ Athanasius contra mundum” (Ata-
násio contra o mundo), não vejo como você pode cumprir
sua gloriosa tarefa em combater aquela execrável vilania
que é o escândalo da religião, da Inglaterra e da natureza
humana. A não ser que Deus tenha levantado você para
esse propósito, será exausto pela oposição de homens e de-
mônios. Mas se Deus estiver com você, quem será contra
você? São todos eles mais fortes que Deus? Não canse em
fazer o bem! Vá em frente, em o nome de Deus e na força
do seu poder, até que mesmo a escravidão americana (a
mais vil que já viu o sol) desapareça ante ele...”**.

Sob a influência desses vários movimentos e de pensa-


dores já mencionados, em particular, através da impetuosi-
dade das ondas iluministas e do jusnaturalismo racionalista,
surgiu o constitucionalismo na modernidade, resultando,
inicialmente, no aparecimento das Constituições Americana

88 Apud REILY, Duncan A. Momentos decisivos do metodismo. São Paulo:


Imprensa Metodista, 1991, p. 59. Salientamos também a importância de
outros movimentos ao lado do metodismo na luta por outras conquistas
sociais, principalmente no século XIX, através das seguintes palavras do
historiador Justo L. Gonzalez: “...Os metodistas, batistas e congregacio-
nais deram mostras de grande vitalidade, não apenas em seu crescimen-
to numérico, mas também nas muitas sociedades que fundaram para
ajudar os necessitados, remediar os males sociais e levar o evangelho
para o resto do mundo. Para alcançar as massas pobres e analfabetas,
esses grupos organizaram escolas dominicais(...)Todos esses grupos,
juntamente com os anglicanos da ala evangélica, preocuparam-se com
os males sociais de sua época. Foi com o apoio dos metodistas, quacres
e outros, que se organizaram sindicatos de trabalhadores, defendeu-se
a reforma dos cárceres, e se criaram leis contra os abusos de que as
crianças eram objeto, particularmente no trabalho”. À era dos novos
horizontes (Uma história ilustrada do Cristianismo, Vol . 9, São Paulo:
Edições Vida Nova, 1987, p.72.
152 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

(1787) e Francesa (1791). Na França, o pensamento políti-


co, admitindo a idéia de Rousseau concernente ao “pacto
social” como fundamento da sociedade organizada, mas, em
discordância com o contratualista democrátrico, ao acatar a
representatividade (democracia indireta), teve que estabe-
lecer a distinção entre pactum unionis, resultante do acordo
realizado entre os homens visando à satisfação de seus inte-
resses privados comuns, e o pactum subjectionis, mediante
o qual os homens, ao se unirem, delegam poderes de repre-
sentação desses interesses a indivíduos escolhidos segundo
processos eletivos. De acordo com as Constituições, as leis
seriam o instrumento de expressão, tanto do pactum unionis
como do pactum subjectionis.
As Constituições Liberais consagravam o princípio da se-
paração dos poderes, os direitos individuais e a preeminência
da lei, a qual era reconhecida como a protetora das liberdades.
Os direitos individuais que, inicialmente, apareceram em de-
clarações de conotação política, foram, depois, consagrados
nas Constituições, a fim de que cada Estado Soberano fosse
instigado a criar mecanismos legais para assegurá-los.
A exaltação das virtudes da lei (“fetichismo legal”) re-
dundou na não admissibilidade do controle de constitucio-
nalidade da lei pelo Judiciário na Europa, em particular, na
França. Via-se tal possibilidade de vigilância do Judiciário
como uma ameaça ao princípio da separação dos poderes,
ignorando-se a necessidade da interpenetração dos poderes,
a fim de garantir a harmonia entre eles. E de lembrar que,
posteriormente, na Europa, muitos países criaram os Tribu-
nais Constitucionais para exercer controle político-jurídico
das leis no que se refere à legitimidade constitucional. Nos
Estados Unidos da América, o pensamento foi um pouco di-
ferente, pois o Judiciário foi visto nessa nação como o guar-
dião da Constituição.

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HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA ConsTITUIÇÃO
153

O advento de ditaduras e regimes totalitários apoi


ados
na legalidade fez com que as nações percebessem que
era
preciso proteger a dignidade humana, mesmo frente à lei.
| Inicialmente, os direitos individuais fundamentais foram
Vistos, na Constituição, como meros conselhos ao legislador,
sendo a sua enunciação considerada de natureza política e não
Jurídica. Com o reconhecimento posterior da normatividade
dos princípios consagradores de direitos individuais, a Cons-
tituição, em sua dimensão material ou axiológica, passou a
ser vista como um meio de argumentação contra a ingerên-
cia descabida do poder público na vida privada. Isso ficou
evidente, principalmente, com a passagem do Velho Estado
de Direito ou Estado Legalista do liberalismo para o Esta-
do Democrático de Direito ou Novo Estado de Direito, sendo
que este último é marcado não apenas pelo fortalecimento da
eficácia da Constituição, mas também pelo alargamento do
catálogo de direitos fundamentais o qual passou a incluir os
direitos sociais e os chamados “direitos de solidariedade”.
Em 1837, através de Peregrino Rossi”, aflorou a temá-
tica do Direito Social que ganhou relevo com os protestos
da Igreja Católica a favor da humanização do capitalismo e
com as controvérsias resultantes da publicação do Manifesto
Comunista de Marx e Engels em 1947. A teoria do Direito
Social apregoava uma Democracia de base econômica e uma
política intervencionista, dando ênfase à igualdade material,
transcendendo a já antes estabelecida igualdade formal ou
igualdade perante a lei (isonomia). Assim, o Direito deve-
ria proteger os economicamente mais fracos diante dos mais
fortes, de modo a promover a igualação, o que redundaria
em normas mais específicas, ou seja, normas de menor grau

9 VASCONCELOS Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 3º ed., São Paulo:


Malheiros, 1993, p. 219
154 Gtauco BarREIRA MAGALHÃES FILHO

de abstratividade e generalidade. Ao lado do Direito Públi-


co, que estabelece uma relação de “subordinação”, e ao lado
do Direito Privado, que consiste num sistema de coordena-
ção, estaria o Direito Social, instituidor de um sistema de
integração da totalidade ativa da sociedade.
No âmbito Constitucional, apareceu a consagração de
direitos sociais, inicialmente, na Constituição do México de
1917, assim como na Lei Fundamental Soviética de 1918 que
funcionalizou os direitos fundamentais, e na Constituição de
Weimar de 1919 que teve maior repercussão universal.
Enquanto os direitos individuais conseguiram se impor
através de sua ligação direta com a natureza humana, e, por-
tanto, em razão de sua atemporalidade, os direitos sociais
foram reconhecidos, notadamente, como direitos historica-
mente conquistados pelos grupos sociais, principalmente,
pela classe trabalhadora. A realização dos direitos sociais
possibilita o surgimento das condições necessárias ao exer-
cício não elitizado dos direitos individuais, e, ainda, a aco-
modação dos últimos ao contexto histórico. Assim, enquanto
os direitos individuais são direitos de um homem apriorísti-
co, os direitos sociais são os de um homem aposteriorístico,
ou seja, do homem situado. Segundo Bobbio”, os direitos
individuais (negativos) são liberdades e os direitos sociais
(positivos) são poderes:
“às primeiras, correspondem os direitos de liberdade,
ou um não-agir do Estado; aos segundos, os direitos so-
ciais, ou uma ação positiva do Estado. Embora as exigên-
cias de direitos possam estar dispostas cronologicamente
em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre
— com relação aos poderes constituídos — apenas duas: ou
impedir os malefícios de tais poderes ou obter benefícios.

9 BOBBIO, Norberto. 4 era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus,


1992, p.6
A OUT JU |
cívicos, e poderes de reivindicação nos dir
eitos sociais.
Através dos direitos individuais, foi ressal
tada a dimen-
são subjetiva dos direitos fundamentais que atin
ge até mes-
mo os direitos sociais na medida em que estes enc
ontram
suporte na dignidade da pessoa humana. Assim, a estr
utura
subjetiva dos direitos fundamentais, complexa na medida
em que envolve um feixe de faculdades, sempre encontra a
sua referência unitária numa posição jurídica primordial do
indivíduo, que constitui igualmente o núcleo caracterizador
do preceito constitucional respectivo. Os direitos fundamen-
tais, por sua vez, também possuem uma dimensão objetiva
que foi explicitada com o aparecimento dos direitos sociais,
normalmente ligados a garantias institucionais. Desta forma,
um direito fundamental não é apenas uma posição subjeti-
va, mas também um valor atrelado à democracia formal ou
substancial. Dentro desta perspectiva, a dignidade da pessoa
humana seria contemplada como valor básico. Enquanto, no
caso concreto, um direito fundamental, visto como posição
subjetiva, poderia sofrer restrições decorrentes do choque
com outros direitos ou com o interesse social, desde que não
fosse atingido o seu núcleo de existência, o valor nele sub-
tendido ficaria sempre intocável no que respeita à proteção
pelo ordenamento jurídico.
Com a consagração constitucional dos direitos sociais,
ficou em evidência a existência das garantias institucionais,
normalmente ligadas a direitos sociais, mas também, a di-

$3
VIEIRA DE ANDRADE., José Carlos. Os direitos fundamentais na
Constituição portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 1987
156 GLauco BaRrREIRA MAGALHÃES FILHO

reitos individuais. As garantias institucionais nascem de


preceitos que não consagram posições jurídicas subjetivas,
mas, antes, estabelecem princípios de organização e de ação
social econômica ou política, visando a garantir o gozo de
direitos. Assim, as garantias institucionais regulamentam
um determinado setor da realidade em torno de um direito
fundamental. A ligação direta com a proteção da dignidade
da pessoa humana diferencia as garantias institucionais das
condições gerais objetivas : jurídicas, econômicas e políti-
cas de efetivação dos direitos fundamentais. São exemplos
de garantias institucionais: a contratação coletiva, destina-
da à proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores;
a imprensa livre, asseguradora da liberdade de expressão e
opinião nos meios de comunicação social; a ação popular,
como mecanismo de acesso à justiça; e a autonomia univer-
sitária, garantia da liberdade de pesquisa e de ensino.
As garantias institucionais diferenciam-se das garantias
dos institutos. As primeiras, são garantias de Direito Públi-
co, enquanto as últimas são garantias de Direito Privado.
Garantias para a família, o casamento e o direito sucessório
seriam exemplos de garantias de institutos.
As garantias institucionais, juntamente com as garan-
tias fundamentais formam as garantias constitucionais. As
garantias fundamentais são aquelas diretamente ligadas
aos direitos de primeira geração, são garantias de direitos.
Através delas, a fruição dos bens representados nos direi-
tos individuais é assegurada. As garantias institucionais são
garantias de realidades sociais objetivas. Poderíamos ainda
falar nas garantias da Constituição, ao lado das garantias
fundamentais e das garantias institucionais, consistentes
naquelas que asseguram a manutenção do regime e do siste-
ma de instituições como a rigidez constitucional, a interven-
ção federal , estado de defesa e estado de sítio. Enquanto se
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 157

admite que as garantias fundamentais sejam incluídas entre


os direitos fundamentais, recusa-se a inclusão das garantias
da Constituição, e há controvérsias sobre a inclusão das ga-
rantias institucionais.
Convém lembrar que a proclamação inicial dos direitos
sociais nas Constituições não foi acompanhada da enuncia-
ção dos meios de sua efetivação, razão pela qual foi nova-
mente questionada a normatividade dos preceitos defini-
dores de direitos fundamentais. Surgiu a noção de norma
programática, cujo conteúdo seria político e não jurídico. As
Constituições atuais através de uma série de instrumentos
processuais constitucionais (Ação Popular, Ação Civil Pú-
blica, Mandado de Injunção, Ação de Inconstitucionalidade
por Omissão etc) procuram estabelecer os meios para que
os indivíduos possam fazer valer os fins consagrados nas
normas constitucionais.
O reconhecimento dos direitos individuais deu-se sob a
influência do pensamento de Locke e Kant, assim como os di-
reitos políticos prevaleceram através das idéias de Rousseau
e Sieyês. Os direitos sociais e as garantias institucionais, en-
fim, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais encontrou
abrigo na filosofia política de Hegel.
Enquanto para Locke, o Estado é limitado pela socieda-
de e pelo Direito Natural, para Hegel, o Estado é um orde-
nador racional da sociedade injusta. Hegel ligou a ética com
a história e a política, pois, para o autor alemão, o agir ético
do homem precisa concretizar-se dentro de uma sociedade
política específica, num momento histórico variável, dentro
do qual a liberdade tem uma existência concreta, organizan-
do-se num Estado. Hegel identificou o racional e o real, o
Direito Natural e o Direito Positivo, fazendo o Absoluto rea-
lizar-se evolutivamente na História.
158 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

Hegel defendeu o avanço penetrador do Estado na So-


ciedade. Para ele, o arbítrio que tem o seu domínio na Socie-
dade Civil e na esfera da moralidade, não se confunde com a
liberdade, cuja idéia se realiza no Estado, no qual ela é ver-
dadeira. Assim, a liberdade seria objetivada na comunidade
mediante a lei, a liberdade real era a concreta, e a liberdade
concreta seria a liberdade na totalidade.
E salutar lembrar que houve uma decadência do jusnatu-
ralismo no século XIX que perdurou até a metade do século
XX através do surgimento do historicismo (Alemanha), utili-
tarismo (Inglaterra) e sociologismo, mas o golpe mais drásti-
co foi dado pela Teoria Pura do Direito, de Kelsen. O mestre
austríaco, dentro de uma perspectiva lógico-formal, concebeu
uma ciência neutra do Direito, admitindo qualquer conteúdo
para a norma jurídica. A Teoria Pura do Direito, com a sua
desconsideração pela dimensão axiológica do Direito, e a Teo-
ria Decisionista de Carl Schmitt, com sua ênfase política na
preponderância das decisões de um grupo preeminente, criou
o clima favorável para a ascensão do nazismo.
Durante a 2º Guerra Mundial, sob a influência do na-
zismo, foram perpetradas muitas atrocidades com manifesto
desprezo pela dignidade inerente a todos os seres humanos.
Dialeticamente, no pós-guerra, surgiu um período fértil para
o renascimento de estudos filosóficos, vindo novamente a
ser realçado o aspecto axiológico do Direito.
Através de Stammler, houve o ressurgimento do jusna-
turalismo, iniciando sua nova fase. Aparecia, então, a teoria
do Direito Natural de conteúdo variável, que reconhecia a
existência de elementos históricos doadores do conteúdo do
justo e do injusto. Também em Del Vecchio, encontramos a
tentativa de conciliação do Direito Natural com elementos
materiais condicionadores, ao mesmo tempo que enfatizava
a pureza formal do ideal do justo permanente e imutável.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 159

Também poderíamos mencionar a Teoria do Direito Natural


de conteúdo progressivo, proposta pelo neotomista Georges
Renard, o qual defendia a perenidade das regras primárias
de Direito Natural, e sustentava a variabilidade das regras
secundárias. Ao lado do ressurgimento do jusnaturalismo e
da filosofia do Direito, vinha ganhando relevância cada vez
maior, a Filosofia dos Valores, a qual exerceu muita influén-
cia sobre a nova conceituação objetiva dos Direitos Funda-
mentais, os quais passaram a ser vistos como valores repre-
sentativos do pluralismo social e democrático, e não apenas
como direitos subjetivos.
A preocupação com o aspecto axiológico do direito
redundou na proliferação dos Direitos Fundamentais nas
Constituições, transcendendo a enumeração dos direitos de
primeira geração (ou dimensão) para catalogar os direitos de
segunda e terceira gerações, sempre em busca de um ideal
mais acrisolado de respeito à liberdade e dignidade humana.
VIEIRA DE ANDRADE afirma que
“a generalidade das constituições européias do pós-
guerra, dá uma proteção sólida às liberdades e dedica-lhes
um grande número de preceitos (descendo, por vezes, ao
pormenor regulamentar), embora com as componentes
liberal e democrática concorra agora uma outra, a social.
Veremos, porém, que os direitos sociais em vez de limita-
rem, prolongam os direitos e liberdades tradicionais.”

Os direitos de terceira geração são direitos difusos, per-


tencentes à generalidade humana, considerada em sua exis-
tencialidade concreta. Os direitos de terceira geração são cin-
co: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao
meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio
comum da humanidade e o direito à comunicação. Ao Estado

2 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Op. cit., p.30


160 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

podem corresponder tanto obrigações de agir como de não


agir no que diz respeito aos direitos de terceira geração.
Percebemos que a revelação histórica dos direitos fun-
damentais seguiu o lema da Revolução Francesa: “Liberda-
de, Igualdade e Fraternidade”. Primeiramente, apareceram
os direitos de liberdade (primeira geração), depois vieram
os direitos de igualdade (segunda geração) e, finalmente, os
direitos de fraternidade (terceira geração). Alguns autores,
todavia, preferem chamar os direitos de terceira geração de
direitos de solidariedade.
À atenção atual dos juristas, portanto, volta-se para os
valores reconhecidos pela comunidade jurídica e positiva-
dos nas constituições através dos chamados princípios, pe-
los quais se passa a reger todo o ordenamento jurídico. Esse
novo comportamento frente à dimensão axiológica do Direi-
to representa a síntese resultante da dialética entre jusnatu-
ralismo e positivismo.
Diante da consagração dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana como valores constitucionais
positivos, alguém poderia indagar se ainda era de alguma
utilidade falarmos em Direito Natural. Respondemos que a
idéia histórica do jusnaturalismo se mostra relevante para
duas atividades importantes. A primeira delas é a ativida-
de hermenêutica. Falando sobre a perspectiva jusnaturalista
dos direitos fundamentais, VIEIRA DE ANDRADE diz:
“Esta perspectiva não tem apenas interesse histórico,
modernizou-se, mas não desapareceu, e é a ela que por
vezes se recorre ainda hoje, sempre que há deficiências
ou dificuldades na aplicação das normas positivas re-
ferentes aos direitos fundamentais. Isto porque naque-
le núcleo irrestringível de direitos, diretamente decor-
rentes da dignidade humana, revela-se uma dimensão
fundamentante dos direitos individuais, a qual, sob a
veste de direito natural, que foi o figurino histórico ou
HERMENÊUTICA E UNIDADE ÁXIOLÓGICA DA Consr
iTuUIÇÃo 161

sob outra veste jurídica equivalente — a de “consciênc


ia
axiológico-jurídica” ou a de “princípios jurídicos funda-
mentais”, anteriores e superiores ao próprio legislador
constituinte — legitima, dá caráter e contribui para ilu-
minar o conteúdo de sentido dos preceitos constitucio-
nais (ou de direito internacional).

A noção de Direito Natural também reaparece para cor-


rigir insuficiências do Direito Positivo. A Constituição, por
exemplo, prevê a possibilidade de uma lei ser declarada in-
constitucional pela via jurisdicional, mas paira controvérsia
sobre os efeitos dessa decisão no que diz respeito a sua for-
ça de retroatividade. Parece-nos, todavia, que no referido
caso não é conveniente estabelecer rigidamente se os efeitos
serão “ex tunc” ou “ex nunc”, sendo o procedimento mais
Justo aquele que fornece solução para cada caso concreto,
valendo-se dos princípios gerais de Direito, e aqui surge o
apelo ao Direito Natural.
Vamos, agora, resumir a evolução histórica que desem-
bocou nos atuais direitos fundamentais. Na antiguidade
clássica, a liberdade era vista como um atributo do cidadão
e não como uma qualidade do indivíduo. Havia liberdade na
sociedade política, mas não em face dela. Durante a Idade
Média, tivemos os “direitos” estamentais, ou seja, privilé-
gios, como os do clero, da nobreza e das corporações de
ofício. O advento do Absolutismo no fim da Idade Média e
início da Idade Moderna contribuiu para igualar todos os ho-
mens perante o soberano, desaparecendo as ordens e as clas-
ses. A Reforma Protestante, com a sua ênfase na liberdade
de consciência, e a ascensão da burguesia, cuja luta principal
era pela afirmação da liberdade individual no campo econô-
mico, muito contribuiu para a valorização do indivíduo. A

3 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Op. cit., p. 15


162 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

despersonalização ou institucionalização do poder fez surgir


o Estado Moderno, influenciado pela tradição inglesa de li-
mitação de poder e pela concepção jusracionalista defendida
pelas revoluções americana e francesa. Em seguida, surge o
constitucionalismo, inspirado na doutrina contratualista, e a
consagração dos direitos de primeira geração. Finalmente,
no século XX, graças às lutas proletárias, aparecem os direi-
tos de segunda geração, e, sob a influência do Direito Inter-
nacional, são proclamados os direitos de terceira geração.
No próximo capítulo, dedicaremos a nossa atenção ao
direito de propriedade, porque alguns autores têm sugeri-
do que teria havido nele uma funcionalização tal que não
poderíamos falar mais em um direito individual. A nossa
preocupação é a de afastar a idéia da inexistência do direito
de propriedade, o qual se integra juntamente com demais
direitos numa unidade, cuja base é a dignidade da pessoa
humana.

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de Maquiável a nossos dias. 7º ed., Trad. Lydia Cristina. Rio
de Janeiro: Agir, 1995
O DIREITO DE PROPRIEDADE
6 | EA NATUREZA JURÍDICA DA
PROPRIEDADE

6.1 INTRODUÇÃO
O Sistema jurídico é formado por diversos institutos jurídi-
cos organizados harmoniosamente, com a coerência que con-
siste na adequação das partes com o todo e das partes entre si.
Os institutos jurídicos, elementos formadores da ordem
jurídica, resultam do agrupamento organizado e coordenado
de um complexo de normas de Direito Positivo.
Determinar a natureza de um instituto jurídico é encontrar o
seu lugar próprio no sistema, do que resulta a melhor compreen-
são das regras que o definem. O instituto jurídico é caracterizado
por dois elementos: o teleológico e o estrutural. O primeiro diz
respeito ao fim que a ordem jurídica pretende alcançar através do
instituto. O segundo refere-se ao modo de formulação, articula-
ção e aplicação dos preceitos a ele concernentes.
Este capítulo inclui o tema da natureza jurídica da proprie-
dade, bem como o da continuidade do direito de propriedade,
em torno do qual se intensifica a controvérsia em nossos dias,
principalmente, com o reconhecimento da função social da
propriedade.

6.2 SITUAÇÕES SUBJETIVAS


Segundo MIGUEL REALE, as situações jurídicas con-
sistem “na possibilidade que têm as pessoas fisicas e ju-
166 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

rídicas de ser, de pretender, ou de agir com referência ao


sistema de regras jurídicas em um determinado pais”.
Às situações jurídicas subjetivas podem ser:
(1) Direito subjetivo: possibilidade de exigir um com-
portamento devido numa relação jurídica;
(2) Interesse legítimo: pretensão que se liga à possibili-
dade de ter nascido um direito subjetivo;
(3) Faculdade: forma de explicitação do direito subjetivo;
(4) Ônus: exigência necessária à validade de um ato;
(5) Função: poderes que um sujeito recebe para agir em
benefício de outrem nos limites da lei.
SANTI ROMANO inclui entre as situações subjetivas o
poder, a responsabilidade e o dever.
Obviamente, a propriedade como situação subjetiva não
pode ser um ônus ou um simples interesse legítimo. Não é
categorizada como uma simples faculdade, porque a proprie-
dade, como situação subjetiva, comporta várias faculdades
como a de usar, a de gozar e a de dispor.
A propriedade como situação subjetiva há de ser classifi-
cada como direito subjetivo ou como função.

6.3 DIREITO E FUNÇÃO

Tradicionalmente, a noção de direito subjetivo é contra-


posta à de Direito objetivo, entendido o último como conjunto
de normas jurídicas positivadas. A bilateralidade do Direito,
no entanto, liga por correlação a noção de dever jurídico à no-
ção de direito subjetivo. O direito subjetivo é a possibilidade
de exigir a prestação devida pelo sujeito obrigado.

REALE. Miguel. LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO, 21º ed,


São Paulo: Editora Saraiva, 1994

4 4 OT comi
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 167

Os direitos subjetivos foram classificados por ROGUIN


em absolutos e relativos. Os primeiros são aqueles que têm
por titulares do dever correspondente toda a comunidade
Jurídica, ou seja, são oponíveis “erga omnes”, enquanto os
segundos são aqueles que têm um sujeito passivo determi-
nado, são oponíveis “erga singulum”.
De acordo com AFTALION, OLANO e VILANOVA,
entre os direitos absolutos, temos os direitos de personalida-
de ou de liberdade, os reais e os intelectuais, e como relati-
vos, os creditícios ou obrigacionais.
Assim, os direitos subjetivos absolutos, no campo do di-
reito privado, são classificados em direitos de personalidade,
direitos reais e direitos intelectuais. Exemplificando os di-
reitos de personalidade, temos o direito ao nome, à honra e
à liberdade. Entre os direitos intelectuais, temos os direitos
autorais, as marcas de fábrica, as patentes de invenção. A
posse, o condomínio, a servidão e a propriedade são exem-
plos de direitos reais.
Os direitos subjetivos absolutos se revestem de aspecto
público, uma vez que o Estado se inclui na totalidade dos
participantes da comunidade jurídica, na qualidade de su-
jeito obrigado, podendo aparecer igualmente como sujeito
de direitos.
A função designa uma situação jurídica em que existe,
previamente determinada em uma norma, uma finalidade
que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas
em benefício ou no interesse de outrem. Para execução de
tal fim, a ordem jurídica outorga os poderes indispensáveis.
Como ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
não se tem, na função, um poder-dever, mas um dever-poder,
ou seja, tendo em vista a realização de uma finalidade que
se expressa no interesse de outrem, nasce um dever para um
sujeito, o qual recebe poderes outorgados pela ordem jurídi-
ca para cumpri-lo.
1 1 00

GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO


168

A idéia de função aparece apenas eventualmente no Di-


reito Privado, sendo, todavia, dominante no Direito Público.
No Direito Privado, a função se manifesta na tutela, na cura-
tela e no pátrio poder.
LÉON DUGUIT(1859-1928) negou a existência do di-
reito subjetivo, afirmando que este implicaria na superiori-
dade de uma vontade sobre outra, quando, na verdade, to-
das as vontades seriam iguais. Pretendia o renomado jurista
demolir a teoria da autonomia da vontade. Na sua visão, O
ordenamento jurídico se baseia na necessidade de manter a
estrutura social, tendo cada indivíduo que cumprir a sua fun-
ção. Não existiriam direitos individuais, mas deveres para
com a comunidade. Sob esta ótica, a propriedade subtende-
ria uma função, a função social do possuidor da riqueza.
Uma crítica que pode ser feita a DUGUTT é que ele ata-
cou o direito subjetivo como sendo essencialmente vontade,
o que não corresponde ao conceito de direito subjetivo, tal
como hoje é adotado amplamente pela doutrina.

6.4 A PROPRIEDADE

A filosofia racionalista que se popularizou no século


XVII e XVIII advogava a existência de direitos individuais
naturais oponíveis contra todos, principalmente contra o
Estado. Esse jusnaturalismo laico, de bases individualistas
serviu como ideologia jurídica do liberalismo e, consequen-
temente, da classe burguesa que ascendia ao poder.
Para a concepção racionalista-liberal, além dos direitos
cuja existência estaria pressuposto no fato concreto de aqui-
sição, haveria aqueles cuja fonte exclusiva era a natureza
humana. Os últimos possuiriam caráter absoluto e inaliená-
vel. Os direitos de personalidade e o de propriedade se en-
quadrariam nessa categoria.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 169

Observamos que o jusnaturalista Pufendorf tinha um


pensamento variante sobre o direito de propriedade, o qual
não implicava em consequências práticas diferentes daque-
las admitidas pelos demais racionalistas. Para Pufendorf, a
propriedade individual decorria de uma nova forma de direi-
to natural, que chamou de direito natural convencional. Em
resumo, a propriedade individual nascia depois de conven-
ções que até um certo ponto do desenvolvimento da huma-
nidade eram necessárias e, por isso, naturais.
O individualismo liberal conferiu máxima extensão ao
direito de propriedade, não atribuindo dever correlato ao ti-
tular, pois este poderia dispor absoluta e incondicionalmente
dos bens de que era proprietário, podendo até destruí-los por
mero capricho, atitude moralmente reprovável, mas juridi-
camente lícita, desde que não ofendesse direitos alheios acaso
incidentes sobre a coisa destruída.
Com o surgimento da concepção social do Direito e do
fenômeno da publicização do Direito Privado, sob a inspi-
ração do movimento socialista e dos clamores da Igreja por
uma humanização do capitalismo, apareceu a noção de fun-
ção social da propriedade.
Lembramos que bem antes do momento histórico acima
mencionado, os Reformadores Protestantes do século XVI
já haviam escrito sobre a função social da propriedade sob
o aspecto ético. Lutero mesmo defendendo a propriedade
privada, disse: “Se nossos bens não estão disponíveis à co-
munidade, são bens roubados "”.
Calvino, em seus Comentários ao Novo Testamento, afir-
mou o seguinte:

2
Apud FOSTER, Richard J. CELEBRAÇÃO DA DISCIPLINA, 6º ed.
Trad. Luiz Aparecido Caruso. Editora Vida, Florida, 1983, p. ll
GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO
170

“E como quando alguém, possuído de grande cobiça, ou


de incredulidade, escondia uma porção do maná, imedia-
tamente esta provisão dele feita se putrefazia, assim, não
duvidemos do que as riquezas ajuntadas com dano ou pre-
juízo de nossos irmãos sejam malditas e bem logo hajam
de perecer, até mesmo com a ruína do dono, para que não
pensemos que seja esse um meio de crescer se, tendo em
mira nosso proveito por longos anos, a nossos irmãos ne-
guemos o concurso e a assistência que lhes devemos”.

Nos Comentários ao livro de Isaías, o Reformador de Ge-


nebra disse:
“Quanto ao tamanho e espaço das casas, impõe-se-nos
dizer o mesmo que anteriormente dissemos acerca dos
campos. Notória é a ambição daqueles que desejam
habitar em palácios magníficos ou espaçosas mansões.
Não é coisa censurável se aquele que tem família grande
tenha também uma residência ampla. Quando, porém,
inflados de ambição, sem razão querem os homens au-
mentar suas casas, somente para que tenham mais espa-
ço, e que um homem ocupa sozinho toda uma residência
que poderia abrigar a muitos, vã ambição é e coisa que,
a bom direito, se pode censurar. É como se só uns de-
vessem ter suas residências e os outros nada devessem
ter senão a cobertura do céu ou, então, devessem buscar
alguma outra moradia””.

A posição da Reforma estava em plena harmonia com o


ensino dos mestres da Igreja Antiga. Clemente, por exem-
plo, considerou a propriedade algo digno de ser possuído,
porque a propriedade tem a propriedade de realizar algo.
O filósofo cristão de Alexandria proclamou que “toda a ri-
queza que alguém possui para si como propriedade e não a

3 Apud BIÉLER, André. O PENSAMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DE


CALVINO, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1990, pp. 442 e 443
4 Apud BIÉLER, André. Op. cit., p. 448
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 171

coloca à disposição para o bem estar geral dos necessitados


é injusta por natureza””
Locke, apesar de ser considerado o pai do liberalismo po-
lítico, no século imediatamente seguinte ao da Reforma, disse
que “a medida da propriedade natural foi bem estabelecida
pela extensão do trabalho e pela conveniência da vida”. A
juridicidade da função social da propriedade, todavia, só foi
estabelecida com o advento do Estado Social no século XX.
No Brasil, apesar de o Código Civil definir o direito de
propriedade, dando os seus contornos elementares, é a Cons-
tituição que estabelece a função social da propriedade. Na
nossa história, a Constituição de 1946 foi a primeira a falar
em interesse social como justificativa para a desapropriação.
A propriedade está num processo de evolução em dire-
ção a sua popularização. A propriedade dinâmica substituiu
a propriedade estática, já havendo quem fale em um direito
de quase propriedade.
Alguns autores, em face da nova feição jurídica da pro-
priedade, afirmaram que a situação jurídica a ela vinculada
deveria ser classificada como função, porquanto o titular es-
taria adstrito ao cumprimento de deveres que seriam exerci-
dos em benefício de outros.
É interessante observar que, apesar da nossa Constitui-
ção mencionar a função social da propriedade, ela ainda
continua a colocar a propriedade como objeto de direito in-
dividual. Assim, o artigo 5º estabelece o seguinte:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-
quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-

* Apud DREHER, Martin N., A IGREJA NO IMPÉRIO ROMANO. Cole-


ção História da Igreja. Vol. 1. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1993, p. 84
6
LOCKE, John. SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL.
Clássicos do Pensamento Político. Vozes, 1994, p. 102.
172 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

trangeiros residentes no País a inviolabilidade do DI-


REITO à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à PROPRIEDADE...”(Caput).

Deste modo, enquanto o Código Civil define o direito de


propriedade, especificando as faculdades nele inclusas, a Cons-
tituição assegura tanto o direito à propriedade (art. 5º, caput)
como o direito de propriedade (art. 5º, XXII).
No artigo 5º, XXIII, a Constituição diz que “a proprie-
dade atenderá a sua função social. Aí se está a tratar da
propriedade em sua dimensão objetiva, como valor básico
do ordenamento político-jurídico ou, expressando em lin-
guagem estritamente jurídica, da propriedade como instituto
Jurídico. Assim, a propriedade passou a ser instrumento de
cooperação social, o que obviamente limita o exercício do
direito subjetivo que a ela se vincula.
Podemos afirmar que há uma tendência na natureza hu-
mana para a apropriação, mas sem negar que o conteúdo
Jurídico da propriedade se sujeita ao processo histórico, bem
como que a pretensa absolutização do direito a ela vinculado
nunca houve, pois já que o homem vive em sociedade, não
cabe aos indivíduos dispor de forma absoluta de seus bens.
Segundo GEORGES RIPERT, o direito do indivíduo não
pode ser absoluto, visto que o absolutismo é sinônimo de
soberania. Não sendo o homem soberano na sociedade, o
seu direito é, por consequência, simplesmente relativo.
A socialização objetiva estender a propriedade a maior
número possível, promovendo a sua humanização, mas man-
tendo irredutível o direito subjetivo. No Estado Democráti-
co de Direito, não se faz relação de exclusão entre o social
e o individual, sendo a função social consistente no que está
preceituado em um conjunto de normas que visa à colocação
da propriedade em seu telos mais amplo e humano.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 173

Conforme a doutrina civilista tradicional, o direito de


propriedade é absoluto, exclusivo e perpétuo. Absoluto, por
causa da ampla faculdade do proprietário de dispor do bem;
exclusivo, por que diz respeito unicamente a ele; e perpétuo,
porque passível de sucessão. No entanto, as restrições limi-
tam o caráter absoluto; as servidões, o caráter exclusivo; e
a desapropriação, o caráter perpétuo. Convém lembrar que,
além das limitações em função do objeto, existem limitações
em função do sujeito, como as ligadas à nacionalidade e à
política migratória. A Constituição, portanto, não foi inova-
dora quando limitou a propriedade, embora tenha lhe dado
um novo perfil, atribuindo-lhe função social no capítulo que
trata da ordem econômica.
Como nos diz Habermas :
“| Certamente o direito privado passa por uma reinter-
pretação, quando da mudança de paradigma do direito
formal burguês para o do direito materializado do Esta-
do Social. No entanto, essa reinterpretação não pode ser
confundida com uma revisão dos princípios e conceitos
fundamentais, os quais apenas são interpretados de ma-
neira diferente quando os paradigmas mudam”.”

6.5 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A propriedade, sem deixar de ser um direito, deve ser


exercida em sentido social (CAIO MÁRIO). A função so-
cial e o interesse público participam da configuração do
instituto da propriedade, limitando o exercício do direito
a ela atrelado. Quando, todavia, falamos em limitações da
propriedade não queremos salientar apenas restrições nega-

7
HABERMAS, Jurgen. DIREITO E DEMOCRACIA: entre facticidade
e validade, 1, Biblioteca Tempo Universitário 101, tempo brasileiro. Rio
de Janeiro, 1997, p. 120.
174 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO O

tivas, mas também a ilegitimidade da propriedade cujo uso


não seja em benefício da sociedade. Aliás, podemos dizer
que as obrigações de não fazer impostas ao proprietário são
ligadas ao poder de polícia, enquanto as obrigações de fazer
são decorrentes da função social da propriedade.
Lembramos que só há sentido em se falar na função so-
cial da propriedade dos bens de produção, pois os bens de
consumo se esgotam na fruição.
Em face do fato de ninguém poder ser ARBITRARIA-
MENTE privado de sua propriedade, é fácil chegar-se à ilação
de que as limitações impostas ao direito de propriedade não
visam a enfraquecê-lo, mas, ao invés, reforçá-lo por atribuir-lhe
um valor social mais amplo.

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7 | OS FUNDAMENTOS DA UNIDADE
AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO

7.1 INTRODUÇÃO

“O direito é uma proporção real e pessoal de homem


para homem, que quando é mantida por estes, mantém a
291
sociedade, e quando se corrompe, corrompe-a”.

A definição de Direito, transcrita acima, de Dante Alighieri


dá-nos um roteiro para que descubramos os dois fundamen-
tos do Direito e da unidade axiológica da Constituição, ou
seja, o fundamento material e o fundamento formal. De-
monstraremos aqui que o fundamento material da unidade
da Constituição é a dignidade da pessoa humana (“homem
para homem ”), enquanto o fundamento formal é o princípio
da proporcionalidade (“proporção real e pessoal"”, sendo a
unidade da Constituição uma unidade de compromisso (pro-
porcionalidade) que gira em torno de uma idéia (dignidade
da pessoa humana).

7.2 O FUNDAMENTO MATERIAL DA UNIDADE DA


CONSTITUIÇÃO

O Direito “é a proporção...de homem para homem”,


sendo que o ser humano aqui não é apenas um membro

“ALIGHIERI, Dante. DA MONARQUIA, Ediouro, Livro II, V.


178 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

do gênero animal, mas um ser racional e livre, dotado de


dignidade. Essa é a razão pela qual o ordenamento jurídico
não pode simplesmente regular a convivência, mas também
deve estabelecer uma proporção mediante a qual todos pos-
sam ser tratados igualmente como homens.
— O direito foi criado para o homem, que é fim e não meio.
O princípio.da dignidade da pessoa humana, embora esteja
consagrado na-Constituição, é um valor suprapositivo, pois
é pressuposto do conceito de Direito e a fonte de todos os di-
reitos, particularmente, dos direitos fundamentais. Por força
desse princípio é que um direito fundamental não pode ex-
cluir o outro quando há, entre eles, colisão no caso concreto,
pois a dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial de
todas os direitos fundamentais, o que significa que o sacrifi-
cio total de algum deles importaria numa violação do valor
da pessoa humana.
A Constituição Axiológica, vista em sua dinamicidade,
é um processo dialético que tem a dignidade da pessoa hu-
mana como princípio regulador. Desse modo, o princípio
democrático é regulador da organização política, o princípio
do Estado Social, regulador da ordem econômica e social, e
a dignidade da pessoa humana é reguladora do conjunto de
direitos fundamentais.
A dignidade da pessoa humana é um valor intuído emo-
cionalmente, tornando-se, porém, explícito, na razão abs-
trata, mediante os direitos individuais e, na razão histórica,
através dos direitos sociais. Podemos, ainda, afirmar que os
direitos fundamentais são ligados a essência e a existência
humana, pois, além de decorrerem do fato de sermos ho-
mens, a realização deles contribui para levar a nossa huma-
nidade à plena realização.
De acordo com o pensamento metafísico do neo-plato-
nismo, cujo mais afamado arauto foi Plotino, inicialmente,
HERMENÊUTICA E UNIDADE ÁXIOLÓGICA DA Consr
tirTuiçÃo 179

existia o Uno idêntico a si mesmo. Em seguida, o Uno


des-
dobrou-se, por emanação, no múltiplo, encontrando este
a
sua unidade quando retorna ao Uno, formando então uma
unidade na diversidade. Assim, toda emanação tem um trí-
plice aspecto: a) participa do princípio superior e, enquanto
participa, permanece nele — moné (permanência); b) difere
do princípio e, enquanto difere, sai dele — “próodos ” (ema-
nação); c) e com o desejo de adquirir uma perfeição maior
retorna ao seu princípio — “epistrofé” (retorno).
À pessoa humana é o valor básico da Constituição, o Uno
do qual provém os direitos fundamentais, não por emanação
metafísica, mas por desdobramento histórico, ou seja, pela
conquista direta do homem. Só podemos compreender os di-
reitos fundamentais mediante o retorno à idéia de dignidade
da pessoa humana, pela regressão à origem. Havendo coli-
são de direitos fundamentais em um caso concreto, deve-se
referi-los à noção de dignidade da pessoa humana, pois nela
todos os princípios encontrarão a sua harmonização práti-
ca, descobrindo-se uma solução que considera a existência
de todos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que se
procede a uma hierarquização entre eles, em consonância
com a compreensão social do que é mais relevante para se
alcançar o fim coletivo e a dignificação da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana (Uno) serve de pré-com-
preensão para os direitos fundamentais (emanações) e a com-
preensão dos últimos, no caso concreto, através do retorno à
idéia original, configurará um círculo hermenêutico.

7.3 O FUNDAMENTO FORMAL DA UNIDADE DA


CONSTITUIÇÃO

A Constituição é a norma básica do ordenamento jurídi-


co, aquela que lhe confere unidade e coerência, pois todas as
180 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

demais normas do sistema são por ela validadas. O Estatuto


Fundamental, por sua vez, precisa de unidade e coerência
interna, já que não pode conferir às outras normas aquilo
que nela não é ínsito. Esse é o argumento lógico no qual se
assenta a unidade da Constituição.
Os direitos fundamentais são dimensões da dignidade da
pessoa humana, a qual é, por isso mesmo, o suporte de todos
eles. O que significa que, se um direito fundamental for atin-
gido no seu núcleo, o suporte em que se apoia restará enfra-
quecido, o que gerará, depois de um certo tempo, prejuízo
para todos os demais direitos, porquanto todos têm o mesmo
ponto ético de apoio, no caso, o valor da pessoa humana.
Assim, nenhum direito fundamental pode ser realizado de
forma tão ampla que tenha como custo o sacrifício irreme-
diável de outro. Esse é o argumento axiológico da unidade
da Constituição.
Queremos, todavia, ressaltar que a argumentação em defe-
sa da necessidade da unidade da Constituição não é suficiente
para concretizá-la. E necessária a sua procedimentalização.
Conclui-se que o princípio da proporcionalidade, que é a
norma regulamentadora da realização prática e unitária da
Constituição, é o seu fundamento.
O princípio da proporcionalidade é o princípio dos prin-
cípios, já que, somente através dele, os outros encontram
a sua condição de aplicabilidade e eficácia. O princípio da
proporcionalidade é aquele que constitui a unidade e a coe-
rência da Constituição mediante a exigência de ponderação
axiológica em cada caso concreto. O referido princípio, por
ter uma natureza híbrida, reune características de princípio
e de regra. As características de princípio são o alto grau
de generalidade e de abstratividade e a fundamentalidade.
Uma das qualidades de regra é a previsão de uma hipótese
que serve de operador normativo, no caso, a da colisão entre
4

HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 181

direitos fundamentais, a qual impõe ao juiz a obrigação de


hierarquizar os princípios na situação fática. O suposto nor-
mativo, todavia, não é um fato, mas uma colisão de valores.
Apesar de a situação prevista ocorrer em um fato, nós não
podemos chamá-la de fática, pois, se assim o fizéssemos,
confundiríamos dois elementos (fato e valor) do Direito,
ofuscando-lhe a visão tridimensional e a percepção da dialé-
tica da implicação-polaridade, existente entre fato e valor, a
partir da qual surge a norma como momento integrativo.
O princípio da proporcionalidade tem positivação im-
plícita na Constituição, pois é subprincípio do princípio do
Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de
Direito é aquele no qual o ente estatal persegue seus fins, li-
mitado não apenas pela lei (princípio do Estado de Direito),
mas também, pela dignidade de cada pessoa humana con-
creta (princípio democrático sob a perspectiva substancial).
Além disso, o princípio da proporcionalidade é uma exigên-
cia para aplicação dos direitos fundamentais e, assim, uma
condição de normatividade dos preceitos que os definem.
Poderíamos ainda afirmar que esse princípio basilar para a
ordenação jurídica está subtendido em todo o Direito Positi-
vo, porquanto traduz, como bem expressou Dante, a própria
idéia de Direito. Daí a propriedade da simbologia do Direito
representada pela balança.
Na ética aristotélica, a proporcionalidade aparecia na
noção de justa medida, assim como no Direito se manifes-
tava através da justiça distributiva. Em Platão, revelava-se
na correspondência de cada de classe a sua função na pólis,
sendo a justiça vista como harmonia de funções. Na justiça
romana, tinha a sua oportunidade no juízo de equidade do
pretor. No jusnaturalismo tomista, a proporcionalidade se-
ria considerada para atender as especificidades de situações
atípicas, cuja solução impunha a flexibilização do Direito
Grauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO
182

Natural. O utilitarismo a tinha por critério para a descoberta


de normas que garantissem a felicidade de um maior núme-
ro possível, enquanto Ihering se referia à proporcionalidade
entre meios e fins como técnica característica do método te-
leológico de interpretação. A jurisprudência dos interesses
entendia a sentença como uma diagonal em um paralelogra-
mo de forças. Por fim, a Jurisprudência das Valorações faz
menção à ponderação axiológica.
O princípio da proporcionalidade rege o agente adimi-
nistrativo na prática do ato discricionário, determina a pro-
porção entre o delito e a pena e entre os meios de agressão
e os meios de defesa no Direito Penal, proíbe cláusulas leo-
ninas nos contratos de Direito Privado e o abuso do Direito,
estabelece a harmonia entre os três poderes em consonância
com o constitucionalismo clássico.
Na ordem infraconstitucional, as regras qualificam ju-
ridicamente as condutas, conceituando-as como lícitas ou
ilícitas. Em razão dessas prévias definições, ao ordenamento
infraconstitucional se aplica a lógica formal, uma lógica de
exclusão. Assim, o conflito entre regras faz surgir uma anti-
nomia que precisa ser remediada, sob pena de sacrificar-se
a coerência do ordenamento jurídico. O conflito entre as re-
gras gera uma contradição, a qual não admite meio termo,
pois uma conduta não pode ser qualificada como lícita por
uma norma e ilícita (não lícita) por outra, ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto.
De acordo com Aristóteles, os princípios da lógica formal
são três: o princípio da identidade, o princípio da não contra-
dição e o princípio do terceiro excluído. Leibniz acrescentou
aos três o princípio da razão suficiente, mas nós só apreciare-
mos os três princípios da lógica clássica.
O princípio da identidade diz que um ente tem que ser
igual a si próprio. O princípio da não contradição diz que, ao
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 183

mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, o que é não pode ser


o que não é. Enquanto que o princípio do terceiro excluído
afirma que entre pontos contraditórios não há meio termo.
Salientamos aqui que existe diferença entre contradição e
contrariedade. Entre pontos contraditórios não há ponto in-
termediário (v.g.: o bonito e o não bonito), enquanto entre os
contrários há (v. g.: o bonito e o feio).
O princípio da identidade e o princípio da não contra-
dição aplicados ao Direito trazem a exigência de solução
para as antinomias ou conflito entre regras, pois uma mesma
conduta não pode ser lícita e ilícita, enquanto o princípio
do terceiro excluído exige o preenchimento de possíveis la-
cunas do ordenamento jurídico, pois a conduta tem que ser
lícita ou ilícita.
As antinomias serão solucionadas pelos critérios hierár-
quico (a norma superior prevalece sobre a inferior), cronoló-
gico (a norma posterior revoga a anterior) e da especialidade
(a norma especial naquilo que dispõe prevalece sobre a ge-
ral). Havendo conflito entre critérios, o cronológico sempre
será o mais fraco. O critério hierárquico normalmente pre-
valecerá contra o critério da especialidade, salvo quando a
norma inferior especial atender aos fins últimos da superior
geral. Quando houver insuficiência de critérios, o julgador se
valerá, conforme o caso, de umas dessas três opções: inter-
pretação modificativo-corretiva (conciliatória), interpretação
ab-rogante (exclusão de uma das normas) ou interpretação
mutuamente ab-rogante (exclusão das duas normas).
Na Constituição, os princípios enunciam valores e direi-
tos, mas não qualificam juridicamente as condutas. Essa es-
trutura aberta revela-nos que a colisão entre princípios não
gera contradição e, logo, antinomia. Na verdade, há entre
eles contrariedade, o que permite uma solução dialética. As-
sim, aos princípios constitucionais se aplica uma lógica de
GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO
184

síntese. É da hierarquização dos princípios no caso concreto


e da ponderação axiológica que se estabelecerá a qualifica-
ção jurídica da conduta. Deste modo, o princípio da propor-
cionalidade vincula-se a lógica dialética.
Heráclito, filósofo da natureza, da antiguidade clássica, é
considerado o pai da dialética. Em suas cogitações despro-
vidas do rigor da ciência moderna, ele vislumbrou a história
como cíclica, integrando-a à natureza, a qual consistia num
conflito desejável e harmônico de forças. A harmonia do con-
flito no mundo em fluxo se dava através do logos imutável e
eterno. À expressão grega logos pode ser traduzida tanto por
razão como para proporção. Segundo Heráclito, o Jogos era
a razão universal inerente à natureza. Para ele, o homem não
era racional por si mesmo, mas participava do /ogos mediante
o contato com o meio ambiente através da respiração.
Apesar de não concordarmos com a filosofia da nature-
za de Heráclito, podemos adotar seu pensamento, em parte,
no mundo histórico da cultura. O intérprete da Constituição
participa da razão histórica através de seu envolvimento com
uma dada sociedade, tendo assim uma pré-compreensão dos
valores. Somente por esse motivo é que ele pode sopesar os
princípios, estabelecendo a proporção legítima entre eles, de
modo a manter-se o equilíbrio da sociedade.
O princípio da proporcionalidade, também chamado de
princípio da proibição do excesso, relaciona dois elementos
— meios € fins — na situação de fato. Os meios são os modos
possíveis de sopesar princípios e valores, objetivando-se en-
contrar uma solução para o caso concreto. Os fins são aque-
les que são próprios a um Estado Democrático de Direito. A
relação entre meios e fins não será puramente pragmática,
mas haverá uma dialeticidade entre meios e fins, porquanto
a dignidade da pessoa humana que se encontra no fim esta-
belecerá um limite deontológico ao meio.
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 185

Finalmente, lembramos que o princípio da proporcionali-


dade se subdivide em três subprincípios: o princípio da ade-
quação, o princípio da exigibilidade e o princípio da propor-
cionalidade em sentido estrito. O princípio da adequação ou da
conformidade prescreve que o meio deve ser apto para alcançar
o fim, ou seja, o fim validará o meio. O princípio da exigibilida-
de ou da necessidade estabelece que o meio escolhido deve ser
o mais suave, aquele que importar em menor sacrifício para os
princípios que não prevaleceram na decisão judicial. O princií-
pio da proporcionalidade em sentido estrito aponta-nos o meio
que soma mais vantagens, que leva em conta, a um só tempo, o
maior número de interesses em jogo.

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CONCLUSÃO

A sistematização da Constituição, que implica na sua uni-


dade, é um requisito de cientificidade do Direito Constitucio-
nal. A ciência distingue-se do saber vulgar ou casual por ser
um conhecimento parcialmente unificado e, logo, sistêmico.
A metodologia de uma ciência permite a racionalização de
seus dados, sendo que a da ciência jurídica permite a funda-
mentação racional das decisões judiciais, o que impede a arbi-
trariedade dos juízes e garante o controle de legitimidade.
A unidade da Constituição é necessária para que se pos-
sa, a partir de seu conteúdo, constituir o ordenamento juri-
dico e para que ela tenha condições de aplicabilidade. No
entanto, a unidade da Constituição defendida neste traba-
lho não é, conforme se pôde perceber, uma unidade do tipo
lógico-formal, própria de um sistema axiomático-dedutivo,
antes, é uma unidade axiológica ou, ainda, teleológica.
A adequação dos valores no Estatuto Supremo advém de
uma idéia reguladora e fundamental, a idéia de Direito. Se
toda obra cultural é a realização de uma idéia em busca de
um fim, o Direito Positivo procura realizar uma idéia filosó-
fica de Direito, almejando o atingimento da justiça, na qual
será alcançada a sua enteléquia.
A idéia de Direito aqui defendida é a de Dante Alighien,
que envolve três elementos: o homem enquanto ser possui-
188 GLauco BARREIRA MAGALHÃES FILHO

dor de dignidade, a proporcionalidade e a conservação da


sociedade.
A dignidade da pessoa humana é o fundamento material
da unidade da Constituição. É a fonte ética dos direitos fun-
damentais, cujos núcleos de existência estão com ela com-
prometidos. Assim, o valor pessoal do homem impõe um
limite deontólogico a interpretação constitucional.
Os direitos fundamentais decorrentes do valor atrelado
a pessoa humana têm uma dimensão tanto objetiva como
subjetiva. Podem ser liberdades ou poderes, direitos à abs-
tenção do Estado ou à uma prestação positiva de sua parte.
Os direitos fundamentais revelaram-se em três ou quatro
dimensões, sendo os de primeira dimensão decorrentes do
valor da pessoa humana através de razão abstrata e os de-
mais, decorrentes do mesmo valor, pela razão histórica. As
garantias institucionais, distintas das garantias dos institu-
tos, visam garantir a efetivação dos direitos fundamentais
através de princípios de organização da sociedade.
A dignidade da pessoa humana liga-se diretamente ao
Estado Democrático de Direito, o qual caracteriza-se por re-
conhecer a soberania popular e criar o ambiente propício a
efetivação dos direitos fundamentais.
O fundamento formal da unidade da Constituição é o
princípio da proporcionalidade, o qual garante uma solu
ção
dialética para a colisão entre os direitos fundamentais
no
caso concreto, assim como impede a arbitrariedade,
exigin-
do uma aproximação entre os meios escolhidos e os fins
de
um Estado Democrático de Direito, garantindo, como quer
ia
Dante, a conservação da sociedade.
Por fim, lembramos o papel da hermenêutica em tudo
isso. Para exemplificar, basta dizer que a conciliação da tó-
pica com o sistema favoreceu a uma abertura metodológica,
HERMENÊUTICA E UNIDADE AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO 189

principalmente no Direito Constitucional, e a hermenêutica


existencial contribuiu para a interpretação dos valores me-
diante a noção de vivência e pré-compreensão. É a herme-
nêutica constitucional que permite a objetivação (racionali-
zação) e adequação (compatibilização) dos valores, através
do princípio da unidade da Constituição e do princípio da
harmonização prática.
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Impresso em setembro de 2011


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PELA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
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