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O retorno

à escuridão
Pedro Chaves

2006
Derrubar ídolos – isso sim já faz parte de meu ofício.

(Friedrich W. Nietzsche)

(...) À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(Álvaro de Campos)

(...) eu só tinha enchido o saco deles com


minha periculosidade.
Toda noite era a
mesma coisa e de dia era ainda
pior.

(Charles Bukowski)
Era má a forma como o tempo não passava. É que o homem é carrasco de si mesmo,
nunca estará em paz, o homem. Quando o tempo tiver de passar ele não o fará. Enfim. É que a
própria psicologia, tudo que há a ser ponderado acerca do intelecto e seus detalhes ocultos, do
inconsciente, fauna, selva escura, das suas causas secretas, todo o mistério no evento do
pensamento, do seu desejo, de seus porquês e para quês, tudo isso se funde num dado
instante num sussurro discretíssimo de discordância, de contrariar, que teima em afligir com o
seguinte, espera um pouco, para onde vai?, que caminho vai tomando? O homem é sua
própria contradição, alguma coisa o tornou um desastrado masoquista, seja na percepção ou
nos vícios, ele nunca está profundamente convencido de si, do que faz, o inteligente é sempre
controverso, a intransigência é uma estupidez que talvez se poupe de maiores cansaços,
quando sempre há um outro aspecto a cogitar, nunca há um controle que deixe o homem
linear, que deixe o homem em paz, algum resultado de seus tantos passos, nem que apenas
um, um fantasma ou um por quê, isso sempre irá atormentá-lo ou engatilhar a tormenta, algum
horizonte será sempre receio e incerteza. Ainda assim há aqueles que admiram a
complexidade, a humanidade, a afirmam feito virtude única. É que quem nunca foi coisa
diferente não pode fazer justiça e reparar adequadamente no que seria e no que de fato é, para
então poder concluir qualquer coisa com lucidez, iluminação não fantasmagórica, então, já que
não se pode desgostar de ser gente, decerto que também não adorar, suporta-se sem
propriamente ter motivos e isso é geralmente o bastante. Era o bastante para ele.
Soa o relógio. É um estalo discreto em meio a cabeça gargarejando e berrando. O som
fraco prevalece, suas proporções não são as presumidas, tanto mais um absurdo que diferença
não faz. É porque nesse instante o mundo bruto treme e o espírito enfraquece, a constituição
da vontade, pensemos no seu sentido mais amplo, íntimo e tudo mais, na verdade trata-se
exatamente deste tudo mais desejando escapar, escoar às fendas do tremor vulcânico que
racha o solo onde ficam os pés serenos e o demole, põe tudo que está de pé abaixo, tudo que
um dia esteve enraizado agora está de ponta-cabeça, todas as árvores e todos edifícios e
todos monumentos, toda tradição e toda certeza, é tanta coisa que o punha em dúvida e em
xeque, tanta coisa que enfim tornou-se tudo o que ele conhecia. Idéias com montes de choque
para fim nenhum. Muitas voltas para não chegar a fim nenhum. Se o universo fosse um pouco
mais vago, um tantinho mais abstrato, se o desejo tivesse alguma força ou sentido sem ação,
se o sofrimento fosse transformador e não vazio, se não fosse um evento inútil, fechado e
morto. Convenha, ande, se a física não fosse tão dura, se a natureza não fosse tirana e a
regência das coisas não fosse tão ordenada, se essa noção entre passado, presente e futuro
não fosse tão agra, podre, tudo é essa grande desilusão que não tolera a alternativa de se fugir
dela, porque ele é viciado nisso e a verdade venceu e ela é total e é uma coisa fria. Para
investigá-la inventou-se a razão, para suportá-la veio a fantasia, os sentidos são um meio-
termo em eterna fase de experimentação. Deixa para lá, à parte suas idéias, vômito preso na
glote, sua cancela a impedir um estouro, não havia fantasia ou razão nem nada que pudesse
aplacar a idéia de que era angustiante a maneira como o tempo não passava.
Clica o relógio do pulso, ficou de despertar às duas da manhã por algum motivo, não se
lembra qual. Escuta o barulho chato de ferrugem antecedido por um estalo que movimentava
suas pequenas engrenagens internas, seus átomos se fissurando, algo assim, coisas que
anunciam o apito de relógio digital que vai descambar numa série de sonzinhos de agoniar.
Convenha, é isto uma falta de respeito à mística produzida por sua atenção, sua
compenetração, sua obsessão e tudo mais. Não pode permitir um estupro de sua devoção
como esse. Também é como se o silêncio fosse a coisa mais apropriada para aliviar a sua
queda, como se lhe fosse diminuir a velocidade, tirar o chão da frente como fim e, senão o faz
parar de cair, sugere do silêncio mesmo a serenata, serenata de tranqüilidade ao que carecia
de fundo sonoro, dando ritmo e um pouco de beleza para um fracasso mudo e invencível.
Dedinhos pálidos se encaminharam ao pulso antes que o aparelho orquestre, consegue
desligá-lo, ao longe uma tosse que não era a sua eclodiu, de tão longe veio tão baixa e morta.
Não, e esse não foi tido nas confusões que acontecem não no silêncio, mas no barulho, a
gente não se torna exaltada, animosa ou qualquer coisa assim quando passa por revoluções
como esta, ao menos não todo o tempo. As revoluções são diferentes do que imaginou. Ao
contrário do que pensam, não há aquele espírito de ebulição que normalmente se atribui às
massas fervorosas, instigadas por uns líderes e coisa assim, aquela história de que a gente
perde a individualidade imersa num grupo foi erro da tolice de alguém. Diz-se até que se chega
a abrir mão da individualidade no instante em que se está identificado com a multidão, que
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passa a agir de maneiras que sozinho nunca pensaria em agir, que se escravizaria por um
todo, que afundaria, que aceita. É tudo mentira, esse tipo de coisa não serve para que se
perca, bem ao contrário, que nos descobrimos, com toda nossa potência de destruição e de
vida quando o caos está às soltas, o eu está onde mais odiamos vê-lo, no caos do apocalipse
de um mundo acabando e também no caos da solidão.
Por um segundo este eu está contra a parede de um beco, está encurralado, uma sombra
que está aqui e em toda parte o enreda, um demônio apático e pesado e escuro que o cerca e
limitava suas escolhas. A responsabilidade. A responsabilidade típica da consciência.
Exatamente ela, a consciência, ainda não foi descoberto pior organismo, pior não por não ser
eficaz, mas somos de uma raça que não aprendeu a possuí-la, ela é muito nova, coisa assim,
ainda nos é fraca demais e cheia de doenças, é o sintoma inexpurgável da agonia. A
consciência moldada pela moral. A moralidade típica de interesses distantes, distantes mesmo,
dele não. A moralidade que é instinto de ser rebanho. Ela é o único diabo que há. O diabo. É a
própria árvore de onde partem todos os demônios.
Percebeu soar o guincho. Era o carro. Quando está molhado o chão, coisa assim,
geralmente quando o carro freia um pouco emite um gemido do qual ele não gosta, gemido que
às vezes nos serve para prender a realidade, útil quando se está distante demais, parecido
com sonâmbulo. Nos serve a refletir coisas próximas da seguinte, ainda há coisas no mundo
sem natureza específica, como um gemido qualquer, guincho de carro, pense nos sons, som
de chuva, pense nos cheiros, cheiro de bosta, de asfalto sujo, de giz, e gosto, pense no gosto
de alergia, do gosto ruim na boca quando se está gripado, e vozes, grito de bicho, e enfim a
mecânica das coisas, que não nos julga, não só a nós como a nada, da mesma forma está à
parte do que pensamos ou da parcialidade de nossas ações e de todas as coisas de gente,
sendo transcendental e escapando de nós. É bastante reconfortante. É confortante saber que
coisas como nós não são absolutas. Tudo silencioso. Aqui dentro do carro, tudo absurdamente
escuro. A tosse de há pouco foi a maneira que alguém menos introspectivo achou de chamar
atenção, com a certeza de quebrar o silêncio, que silêncio mais parece uma paz injusta que
não corresponde à que se tem, foi a maneira de vampirizar um pouco os outros, mas deixa lá.
Já duas da manhã. Quem diria. O espírito da novidade. É esse o retorno à escuridão. Ver o fim,
o início, tudo de vez, ver o que sai dali. É verdade, nem tudo que se fantasia é apenas
imaginação, nem todo sonho é procedido de preguiça, paz e despedida. Estava praticando o
retorno à escuridão da maneira mais prática, não há quem possa contestá-lo, não contestar
uns aos outros é das vantagens da loucura, ou talvez a loucura faça mesmo o inverso, na
loucura tudo se contesta e nada se afirma, e ele executa a tudo isso da forma ideal, como ele
mesmo percebeu que devia ser, como se disse que seria, é o que fazia, tal é o seu orgasmo
espiritual. Mas também é isso que o faz sentir-se alcançando a um ponto sem retorno, retornou
ao nada primordial e descobriu não haver saída, é aquele assunto do nada, bastante esquisito,
já que do nada outrora partiu e agora não mais o reconhece.
É aquele instante de vácuo, de silêncio antes da explosão, antes de tudo ir para os ares e
não haver como sustentar os tetos ruidosos, a firmeza das certezas confortáveis não mais
existe, está corroída, por outro lado, são muitas as coisas novas nascendo, e na manhã
seguinte a gente sempre enxerga novas perspectivas, um horizonte, o homem nunca se rende
totalmente à desilusão, nem toda desgraça do mundo é capaz de fazê-lo, talvez só aos
suicidas, que extinguem as próprias forças, se não foram elas que os extinguiram.
De fora do carro, tudo parece vir de uma grande insônia, o sonho de um alguém misterioso
que não está ali, mas está posicionando, sem que saibamos, a todos nós. Luzes periódicas
borram na janela e parecem vir de outro continente. A cidade distante dorme. Alex não. Hoje
ele não dormirá. Com certeza que não. Vê lá, Alex, o que você causou. É, ou não, ainda não
pense tanto sobre isso. Também não pense muito mais que isso. Mas veja o que causou a si
mesmo, o que se causa ao ousar, e você se julga quando for conveniente, mas isso talvez só
se dê daí a um tanto depois, deixa agora tudo com o clímax do despreparo e dos sustos, o suor
da adrenalina que escorre no pescoço e arrepia, trinca os dentes, arreganha as pupilas, tudo
mais. As veias de sua testa dilatam, os olhos são estrelas mortas, atrairiam elas próprias,
buraco-negro, talvez a todo o resto e com sorte o mundo finalmente acabaria. Esperou
fortemente que isso acontecesse, isso não aconteceu. Repara que uma coisa pedia a
expressão, o caso da testa pulsante, a outra só o escondia, novamente coisas opostas
coexistindo em guerra que nem agora ele pode ignorar, ele é o infinito em guerra que nunca
acabará.
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Tudo está caindo e ele está no centro, onde nada se movimenta e estão as testemunhas.
Era angustiante a maneira como o tempo não passava. E ele ali, feito sombra sem
conteúdo o bastante para existir, a mascarar-se da sua discrição, protegido na aparente
absolvição da aparente superação de si, salvo por uma transcendência que ele julga ter
conquistado e que sabe ser fantasia, uma vez que a densa conjuntura do medo não o deixa
erguer-se acima nem de suas fraquezas elementares. Ocorre que ele aventurou-se num
mundo indigesto, de perguntas que trazem respostas perigosas, em expedição contra uma
fauna indomada, a tudo isso ele foi empurrado quando percebeu a urgência de provar que é o
arauto de um destino grandioso, desde que percebeu lhe cair meio bem a roupagem desse
destino encarnado, então vestindo todo espalhafatoso esse destino, esse futuro que quer para
si, para os outros e para a humanidade toda. Ele mentiria se dissesse que tentou inteiramente
negar. Não negou mas é dessas coisas que se acatam com um sorrisinho torto na boca e com
a aceitação mau caráter dos prazeres vindos daí. Ou ele simplesmente tem essa impressão
enganadora a seu respeito.
É óbvio que ele se engana a maior parte do tempo. Busca a verdade com energia, mas
todos se enganam, e sabe-se lá por que a gente gosta de afrontar o óbvio e talvez por
insegurança fazer exatamente o contrário do que está vendo, do que sabe que deve ser feito, o
contrário do óbvio, talvez porque se queira muito a verdade e dê medo quando se a tem, fica-
se sem saber o que fazer quando se a tem, ela é constrangedora na sua falta de glória, assim
nos lançamos exatamente para o contrário, para a mentira, no caso a sua fantasia sobre um
peso que possui, um pouco de glória sobre um peso que não tem. Por que o mantinha, por que
mantinha esse status escabroso, o peso, por que não desistia de tudo, rejeitava a autoria do
seu mal e a responsabilidade que lhe é filha, vai saber, talvez seja um pequeno sacrifício em
prol de um algo maior, talvez o bel orgulho de quem se apega à sua criação, e se for isso
justificado como laço maternal, se visto como a mãe que se aconchega ao filho, já não seria
mais assim algo tão vulgar e capricho puramente da vaidade, talvez ainda fossem ambas as
coisas e mais três mil e seiscentas outras desconhecidas, ou meramente aconteça que ele não
saiba como destruir tudo o que criou, ou já não tem a força para tanto, feito o suicida, que não
podia destruir tudo a seu redor, até o instante da iluminação que lhe disse bastar que acabasse
consigo mesmo. Alex não tem e não quer essa iluminação e é absolutamente deus vaidoso
pela obra.
Olha para o lado, não precisa muito esforço, e sente como se o gêiser fracote viesse a
esgueirar-se da fenda interina e a se esbaforir embora, com algum esforço até se derrama e
fagocita algo de realidade, a compõe com certa velocidade de raciocínio, que ela é um quebra-
cabeça estilhaçado a todos instante, dos recomendados para velhos, pela idade que se pede já
morreram. Parece que há um lençol mormaço em suas retinas, uma crosta que dá vontade de
arranhar, e limpa, limpa, ou é que subitamente ficou míope. Faz algum tempo que sua visão lhe
deixa na mão. Pode ser que seja, e quem souber o diga, mais um truque misterioso do cérebro,
dizendo não, não olha para fora, fica aqui dentro, é mais seguro, é menos cansativo e perigoso.
Sem a cautela ele não é nada, é predador convencido demais, que vacilou na arrogância e caiu
sozinho na primeira armadilha. Uma lamparina na sua íris se acende em contrapartida. Ele não
obedeceu, como quem se debate na cama e se apega ao sono versus alguma hora marcada e
um senso de responsabilidade mais forte que o compele a acordar. E é ainda com gosto de
sonolência que repara, à frente, a figura de um personagem desfigurado por olheiras, gravura
do cansaço e do susto que lhe havia na cara. O último aspecto, do susto, parece agarrado no
rosto feito tarântula de estimação durante eras, feito um transe de autista, a parada cardíaca de
um espírito que começa a temer qualquer movimento, que tudo parece ser violento e
destrutivo, porque enfim deu-se conta de que o pensamento tem garras, por alguma causa a
ação dele o machucou e melhor seria a completa gelidez. Esse sujeito de barbicha ruiva e
cabelos castanhos está mumificado. Alex se compadeceu, não é muito diferente dele. A
compaixão é coisa sempre oportuna. Certo, generalizar é perigoso, sempre, do sempre nada
se sabe, como também não se sabe do nunca, o exemplo de que algo nunca pode acontecer
tornou-se ultrapassado, anulou-se o sempre e o nunca, então tudo tornou-se permitido.
Os brilhos das janelas distantes piscam a clarear, coisa tímida e sem vida, o vidro nublado
do veículo, depois um escuro de falta de poste liquidava tudo, todo o resto ia-se embora. Sentiu
frio. Não há interior neste mundo que aja feito um útero materno, na verdade nada mais seria
como útero, depois de hoje não há jamais abraço ou colo que pudesse ser o bastante
acolhedor ou eficaz, viver é uma baita agressão. Viver é causar dor, desapontar o pai, é
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abraçar o bebê e sentir seus ossos quebrarem como cartilagem fina, seu rosto ficar roxinho.
Não há experiência prévia para entender ou suportar nada disso. Sentiu-se sufocar, mas ainda
sai vivo porque sua estória pretende ser contada. O mundo ordenava por sua vontade,
ordenava por um futuro, por sua semeadura, pelo instinto que Alex tem, o tem também o
mundo. A mão ríspida adiantou-se ao canto da porta. Tateou por pouco tempo. Pensa se não
seria ridículo saltar do carro, imagina que seria hilário, coisa da qual só se ri depois. Tem feito
coisas mais ridículas de lá para cá. E também por toda a vida, que o ridículo seria atraente por
ser uma forma de se desnortear, a si e aos outros, não importa por quê, é o seu entorpecente
predileto, a sua droga infantil que pede nas abstinências mais escandalosas. Dar um berro de
susto, tirar a consciência da gente de suas poltronas na sala da tv e jogá-la num lugar novo e
estranho. Mas se matar agora não apraz, soa um pouco óbvio, razões são sempre importantes,
mas do sempre não se sabe, o espírito do sempre é expansivo como a morte, coisa que não é
da sua alçada, pequeno, centralizado, passional, irracional e reduzido, é melhor que não
generalize, razão quase nunca é importante. O que segura com a mão é a manivela da janela,
a girou, ela obedece e relinchou.
Quando abriu o vidro a testa franze, como um chiuaua na ventania, mas a umidade o
incomoda, e olha lá, desejou senti-la em outras circunstâncias, suítes de luxo, rede de
descanso, coisa assim, é que os supérfluos às vezes são cruciais para sua carência, isso não
traduz superficialidade de ser, muito pelo contrário, tudo o que pensa é puro e portanto uma
manifestação pura do incógnito ser que nele habita, e sem mais, assim ele desejou-se todo
pomposo, em algum terraço do andar mais alto da cidade a mirar o mundo inteiro sob seus
pés, magnânimo, imperial, tendo alguma bela mulher ao lado, o abraçando, o convidando a
afazeres mais interessantes, sim, aconchegue-se, Alex, esqueça de tudo, de tudo, liberte-se de
tudo, aconchegue-se no meu seio onde é tudo muito mais simples, aproveite o que você não
pode negar. A liberdade, a coisa toda mudaria, respiraria com outra satisfação, não como se
sentisse algo poluído preencher a boca, não inalaria as mesmas coisas, não como se o
enojasse estar, meramente estar aí.
E olhou onde estava. Em algum lugar de seu destino. Corria e ia se livrar daquele nojo,
daquela sensação azeda de que o tempo não passava, porque se continuar assim ele estará
congelado na eternidade e uma eternidade é tempo demais para pagar qualquer pecado. Ali vê
a extensão da ponte sobre a qual está, a qual percorre, e a baía como um gigante além das
encostas de concreto, grandíssima, apagada como noite sem estrelas e silenciosa, colorida
apenas lá nos horizontes pelas luzes das partes estranhas da cidade que esqueceu-se de
dormir, seria bonita se não parecesse tão exausta. Cansou-se profundamente, isto é, ele, não a
baía, não a cidade. Riu sozinho. Queria estar clicando e repetindo o som inútil de uma televisão
ligando e desligando, imbecil, para nada. Deseja ter a mão lida por uma cartomante das
praças, que no final mais parece que as pessoas são sempre subalternas a forças muito
maiores, do destino, do meio e tudo mais, e nada pode ser eventualmente decidido por essas
pessoas, estão condenadas a uns erros e episódios dignos de tiras de humor negro e apenas,
apenas isso, então é bem melhor que elas se conformem, que não matem suas forças para
adiar o inevitável, que assim a decepção vem muito maior e para os mesmos efeitos. Desejou
ter namorado umas meninas por mais tempo, aquelas garotas de seus tempos perdidos que
sempre lhe foram muito simpáticas, dessas compreensivas e fascinadas, esse tipo de coisa.
Elas lhe serviram para ouvi-lo e tranqüilizar os ânimos, seja sexualmente ou lhe permitindo as
divagações mais boçais, não precisa mesmo fazer sentido, apenas para que risse, para que se
aconchegasse, um pouco de egocentrismo não faz mal, desabafo de alguém muito intenso e
que morre de medo da mediocridade e como que para fugir dela está buscando uma
companhia qualquer, no fim ele entende que apenas nos usamos, o fim reserva a solidão.
Desejou muitas besteiras. Desejou ter casado e ter se aproveitado mais de tantas, também tê-
las conhecido melhor, quem sabe não teria uma boa surpresa, se encontraria em alguma e a
mediocridade estaria banida, desejou ter sido mais carinhoso com os de sua vida que
mereciam. O afeto é parte importante que está decompondo-se nele. Dormido mais quando se
forçou a não fazê-lo, trabalhado mais e ter sido menos egoísta, ter sido um pouco mais comum,
mais aceitável, acessível, saído um tanto mais e não se fechado numa ostra doentia, relaxado
o bastante mas com menos da preguiça. Esses últimos aspectos soam um pouco correcionais,
mas é besteira pensar que tinha isto algo de moral, tudo parece um pouco vertiginoso mas não
é. Mas chega de intervir, que julgamentos são cansativos, notar é bem mais agradável. Agora
está em dívida, que para compensar o aparente altruísmo, ele se diz, podia também ter
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ludibriado mais gente só por vaidade, maltratado uns canalhões que sacaneiam as mais
sensíveis, humilhado uns metidos do dia-a-dia. Mas parece que nunca e nem um pouco se
escapa do altruísmo, então desejou não ter nascido, que é para dar-se de vez ao bem, já que
tudo isso não passa de palhaçada, todos os seus desejos e os seus porquês. Riu mais ainda.
Desejou Júlia. Ela estar ali segurando a sua mão, ou sorrindo mostrando os dentes seria
mesmo bom. Não precisaria demorar muito, encostar nela já viria a calhar. Seria melhor que
tudo antes pretendido. Não só lívido, ele sorriria feliz. Poderia essas coisas, ou não, custo-
benefício, isso. As coisas que eu quero, pensa, eu geralmente assalto, porque não pode ser de
jeito diferente, nunca me seriam dadas. Estava certo que em algum momento isso deverá não
mais importar.
Quis matar a todos que ali consigo estavam, o assassinato seria o crime mais satisfatório
se não houvesse testemunha e nem memória, com a memória ele até pode lidar, mas se
dispensa dessas idéias, que em seguida os amou. Só é preciso que imagine o quanto também
o querem morto, o quanto o querem inexistente, desejo que muito provavelmente está a
palpitar, e que o desejo os alimenta, e se não o matassem é porque há causas realmente
íntimas para não fazê-lo, causas reais, veja bem, é realmente mais relevante considerar as
causas para não se fazer aquilo, já que fazê-lo deve ser tão fácil, não é coisa da qual depois se
peça perdão. Causas realmente íntimas. Coisas da vida. Ele não tem nenhuma causa muito
íntima que saiba pôr em palavras, será missão dos que o acompanham deduzir. Foi aí que seu
orgulho se esbaldou. Sendo morto ou não teria razão sobre as coisas, ao menos umas delas
que em vida pensou, essa coisa é conhecida como retorno à escuridão. A gente adora ter
razão, é uma grande forma de poder, se o homem vai ser morto que seja com a bênção divina
de ter a razão.
Mas um egrégora o envolvia, o possuía e o prendia à vida, por ser natural a um egrégora
ocorre que excede sua mera inconsciência e torna-se uma assombração coletiva, espírito que
gosta de se inflar, a crescer feito, como já dito, o da morte, só que este aqui é menos conciso e
mais açougueiro. É o fantasma da crueldade. Até mesmo o mais frio dos homens se intimida,
ao menos uma ou duas senão três vezes na vida, com a possibilidade de virar um zumbi desse
espectro, de forma que ela o faça revisar as suas próprias dores e desilusões e o ponha a
imaginar se não estou sendo um demônio. É claro que esse fenômeno se atribui ao trabalho
quase indomável do monstro perigoso da consciência. Não que haja, aqui e agora, crueldade,
e se houvesse muito dificilmente saberia identificá-la, apenas suspeitaria como suspeita de
sintomas que logo se ignoram, nunca saberia quando cruzou o limiar entre o que não era e o
que agora é, não era mesmo para haver limites. Então que viesse a crueldade. Com esse
desafio chamou um monte de outras coisas. Torna o olhar para dentro do carro. Fitou ali a
diagonal, o banco do carona.
André o viu como olhos que se atraem, é que a comunicação animal é tremendamente
fascinante, a tensão não só estica as pessoas como as une, então não é preciso muito mais
que um estopim, nesse caso um relance, um gesto, um piscar de olhos do outro para remetê-lo
a uma série de expressões. André levou a mão à boca, a entreabria, quase tossia. Acaba
arfando, o que deve despertar todos da sonolência.
– Melhor pararmos logo – André falou.
Sua voz ecoa como gemido de um bezerro para morrer. Alex tenta descrever como sentia-
se, e eis, profundamente respeitoso, um termo que diferente desse é falar das coisas
inutilmente, profundamente respeitoso, mas com a raiva de sempre que ele precisa sentir para
incendiar e purificar os excessos que o corroem. Viu que no silêncio André moveu seu dedo,
não só isso, como chegou a erguer o braço, que coragem, apontou, sinalizando ao motorista,
num gesto tão pouco sutil, movimentando tantos músculos e juntas, que coragem, que grande
titã, e aponta através do painel e da janela do volante, onde seria o ponto ao qual ordena que
pare, o destino, ou o que quer que fosse, algo que teria ali, no asfalto vazio, nessa parada da
ponte. E despreza André de outras formas, mas isso porque o conhecia. É natural. E se lhe
comparece uma maior vontade seria a de simplesmente abraçá-lo e dizer, te conheço, você é
um dos poucos que me conhece, sei que em algumas coisas me odeia, e em outras te odeio
ainda mais, muitas vezes disputamos no ódio maior, mas veja, nossa afinidade ainda vence, e
por isso sinto orgulho de estar contigo com as canelas afundadas na bosta, amigos e
cúmplices. Simplesmente, e em voz baixa, o ama. E André apenas aponta o aparente vazio,
não tem a gana de responder-lhe, talvez nem a imaginação. Seu pomo-de-adão balança, é

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coisa de alguém que engole em seco, são muitas coisas que levam uma pessoa a engolir seco,
e hesitar até mesmo os heróis o fazem, pena aqui não termos nenhum.
E logo ao lado Stern pigarreia, surto que ele há de disfarçar encolhendo-se, tipo como
quem sinaliza que tosse pelo fato de estar frio, e não porque está nervoso, porque queria meter
as unhas goela abaixo a ponto de indigestão. Passa sonoramente a mão sobre o cavanhaque.
E Alex segue sentindo a inércia do carro alterar-se, frente, trás, frente, a velocidade do fluxo de
eventos alterava-se com ela, que se o tempo passa é querendo não fazê-lo. Mas aí se volta ao
jovem pálido e magro que dirige, e não podia enxergar muito, assim, estando imediatamente
atrás dele, mas se compadecia por saber que seu silêncio não era habitual, sente dó, meio que
ri e pára. As mãos do cara, cheias de veias, realizam movimentos repetidos ao girar e regirar o
volante. Aí Alex pensou que o garoto pode não suportar, já tomou porrada demais e não se
sabe o que esperar de alguém que nas últimas horas tornou-se um completo estranho. E se
resolve atirar o carro da ponte, de repente acelerar a ponto de quebrar o parapeito e fazer
todos voarem?, seria uma queda e tanto, com tempo de se entreter com o sangue vulcânico
fazendo algo desconhecido aqui dentro antes da colisão que o matará, refletirá quieto e
chocado enquanto se afoga, preso, mal lutando entre outros que tentariam em vão escapar, no
frio e na falta de uma cova, vivendo a certeza, que as esperanças contrariam, que a morte
então chegou. É possível. E o cara só gira o volante. Estava parando, as luzes dos postes não
borram mais nada. O som de rodas vai silenciando e o carro parou.
E o estalo de porta que se abriu ecoa. André hesita, vê-se isso porque não a abre toda.
Leva o tempo suficiente para o motorista dar-se conta de que precisa puxar o freio de mão,
coisa assim. Tudo em ordem, tudo ok, um pouco ironicamente em ordem, mas isso acaba de
lhe passar na cabeça e a porta se abre, e o rosto de André, e acontece assim bem rápido,
primeiro se debruça para olhar essa mão da pista, ao que Alex procede em confirmar que está
tudo vazio, abandonado, solitário, calado na noite, mas quem averigua não gostaria de ser
atropelado, sim, ou visto, que talvez seja bem mais preocupante. É o motorista em seguida
quem abre a porta, os dedos procuram os fundos dos bolsos.
– Liga o pisca alerta – enuncia a rouquidão de uma das vozes no banco de trás. Este cara
enorme, formalmente barbudo, formal que é para não assustar, é gentil até em horas feito
essa.
Alex raspa os dedos pela garganta. O frio faz com que respirar doa. Aí alguém vê e pára,
responde com não mais que um gemido e nem parece frase. E agora foram suas mãos, ali,
ainda na maçaneta da janela, que se dirigem para o trinque da porta num deslize, a abre e num
salto de pernas saiu, deixa o vento tragá-lo, o casaco balançar, o vento poluído acanhar os
pulmões, a baía implorar em segredo por um salto libertário de um qualquer, ele ainda se diz
que vai atender, mas não executa. A noite solitária é longa, porque corpos próximos trazem
calor, aqui há muito pouco e há alguma relação entre calor e tempo. O deserto que é a baía,
mal se a enxerga, um poço sem fundo onde o concreto se finca. O motorista tira do bolso um
gorrinho cinza, trata de desenrolar sobre a cabeça, sacode os joelhos ainda em frente à porta
aberta, deve cogitar umas idiotices quaisquer sobre a estadia da gente aqui. Esfregou as mãos
muitas vezes, é homem que não tem com o que se distrair, ou foge do que tem, por aí vai etc.
O som mais agressivo de todos soou, a porta do outro lado se fechando, ao passo que a
traseira posterior se abria. Lá finalizava André, ajeita a gola desse casaco dos pesados,
enquanto já se punha a dar a volta pelo capô do carro, e a porta de trás termina de expelir um
gigante gentil.
André toca o capô, desliza seus dedos enquanto anda, a sensação boa a qual remete o ato
de tatear qualquer coisa suave o deve estar mantendo acordado. Alex não gosta de suavidade,
então cogita tatear a pele do cadáver. De novo não. André o olha, dessas vezes em que não se
quer dizer nada.
– E aí? – vozes inoportunas sempre soando. Mas e aí?, perguntou, quem há de arcar,
quem faz a escolhas?, o tenho-dito? Stern pergunta, estava ali, a porta aberta logo atrás,
poderia entrar e se esconder, chorar feito criança com a companhia de todos seus traumas,
basta-lhe um pretexto, daria um pulo até o banco do motorista, fecharia a porta e dispararia
com o carro, ia embora, seria encontrado morto depois, suicídio, ou talvez permanecesse vivo
e nunca mais fosse visto, mendigaria por opção, esqueceria o que houve. A vida seguiria.
– E aí, nada – sussurra Alex, sarcasticamente espertinho, ele é mesmo assim. Quando
quer esboçar ar de superioridade faz como nem olhasse ninguém. É coisa de momento. E por
ser assim ergueu um pouco do rosto, cordialmente, e olhava apertando os lábios ao rapaz ali
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no carro, como se dissesse, certo, estou sendo grosseiro, foi um pequeno deslize, amanha não
será mais assim, compreenda e me desculpe. Não faz diferença. A vida ainda seguia.
Do outro lado do carro, o cara enorme espreita e com a cabeça acima do teto ele mira as
coisas com feição como a de um calminho segurança. O garoto que dirigia vai um pouco mais
próximo ao parapeito, como que aos poucos ganhando coragem, e tosse sonoramente.
– Não é perigoso ficar parado aqui?, por causa dos carros, mesmo. Olha, que a gente tá
demorando. Eles vêm correndo, é normal que passem desse jeito, coisa assim, não dá nem
tempo pra ver, ou avisar, vai. Liga o pisca alerta, que nem Martin falou. É melhor – que acaba
de falar?, esse monte de coisas cuspidas, não se sabe se o ouviram, silêncio, e não é de se
espantar. Essas coisas ficam no ar. Ainda disse umas outras. Algo como, essa hora ainda tem
movimento, nunca se sabe, nunca se sabe, ou, o mais absurdo, não é melhor irmos para algum
outro lugar?, é, é, eu não sei, algo me diz que não devemos ficar, intuição da ruindade ou faro,
qualquer coisa do gênero. E olhar que não volve a ninguém.
Alex sorria. O mundo é grande. Suas idéias, vai lá, mais ou menos, e ele é totalmente
pequeno. Nenhum homem é assim tão egocêntrico, que o que faz é a fim das idéias virem à
tona, elas se perpetuarão pelo mundo, pela eternidade, ou seja, em prol dos outros e para os
outros, para o futuro, e não para ele mesmo. Mas que mentira deslavada e tão idiota
enganação. O orgulho é um monstro. A gente morre, mas os restos mortais do orgulho ficam
em cima da tumba, arranhando a lápide como se tivessem sido eles enterrados, o orgulho
gemendo tristonho ao coveiro próximo que o ouça, eternamente cobrando as pendências de
seu prazer com mais ou menos intensidade, um sussurro de cansaço ou um guincho de besta.
O orgulho é a roupagem que aos poucos vestimos, a expectativa de poder orgulhar-se um dia
é ainda maior, então depois você poderá se orgulhar, então deixa isso para o depois. Havia
mais coisas emergenciais além dele mesmo. Muito mais inconvenientemente emergenciais que
a baía e aquela barca distantíssima, solitária, errando toda feia no vazio, tal qual ele fazia, tal
qual seu orgulho fará um dia.
– Pega logo o corpo – disse uma outra voz.
É isso um tiro nas têmporas de qualquer um que tenta prolongar uma serenidade já doente.
O sujeito gordinho, com todo aquele ar formal, enclausurado e amargo, estranhamente
simpático, aquele rapaz calvo disse essas palavras e já vai se dirigindo ao porta-malas. Alex
desejou que a ponte o engolisse numa dentada. Quem sabe se ela se reparte num rombo
veloz, um daqueles que os barcos usam para passar por sob, mas olha lá, que não notaram o
rapaz e sem querer o deixam cair das alturas, acidentes sempre acontecem. Coisas da vida.
– Aquilo ali é um carro vindo? – soluçou o rapazote que dirigia.
– É um farolete passando lá pelo cruzamento – grunhe André.
– Não sei, é que tá constante. Se aproximar demais é porque tá vindo em linha reta.
– Cala a boca, Bublitz. É lá embaixo, no cruzamento – só então Stern fechava a porta dos
fundos, e a voz mais esperta parece ainda babar.
– A luz reflete no chão úmido – André.
– O que não impede que um carro venha lá da outra mão – diz alguém.
– É – estremeceu-se o motorista, Bublitz, e estalava os dedos. Talvez não saiba por que
concorda, talvez o que foi dito seja uma discordância total, mas se ainda assim carrega um
tom, e tão somente um tom de concessão, ele também acataria, talvez, isso é mesmo muito
confuso.
– Alguém fica olhando – a voz de André prende muito mais. – Se vier algum carro de
qualquer mão, faz o seguinte, liga o pisca alerta quando estiver chegando perto, porque aí não
vai dar tempo do sujeito querer parar, ninguém teria essa boa vontade súbita, ao mesmo tempo
a gente aqui não vai parecer muito estranho para todos os efeitos.
– Pode levantar o capô também – falou Bublitz, num timbre que é quase uma criança
simpática procurando agradar aos pais com um ataque de esperteza.
– Isso ilustra tudo.
– Vamos nos concentrar? – disse o calvo.
– Não tem ninguém vindo, esquece – Alex diz.
– Pronto, se é assim eu fico olhando – diz Martin, que é o grandalhão.
– Merda – sussurra novamente o calvo. Sabe aquele sussurro notavelmente audível,
porém ainda pessoal?, então. – As chaves do porta-malas.
– Abre por dentro do carro – sinaliza Stern e ergue o braço. O outro sacode-se para evitar
o frio. Não olha para onde se dirige.
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– Não dá. Tá quebrado – falou André.
– As chaves – o calvo.
– Bublitz – Stern se vira a apontar, eis uma acusação, mas é ele quem tateia os bolsos.
– Não tá comigo não – ajeita o gorro sobre a testa.
– É, as chaves são mesmo diferentes, ela as separou. É carro velho – André.
– Ela guardava no porta-luva – Martin vira-se bruscamente e vai averiguar.
– Essa droga tranca automaticamente mesmo ou só tá emperrada? – grunhiu o calvo.
Brande a cabeça para as estradas da ponte, agora que o antigo responsável pela vigia se
ocupa de coisas mais importantes.
– Tenta abrir aí pra ver, rapaz! – o tal do Bublitz chacoalha com as mãos.
– Aparentemente, se eu não consegui abrir, é porque tem alguma coisa funcionando
errado, não é?
Alex caminha a um lado, então voltava, então ruma ao outro. E pensa deus, que náusea,
deus, que noite. Essa foi daquelas. Mas que tantas vozes para molestar-me o sono, a possível
imaginação boa, o suspiro nostálgico de quem não tem mais com o que se preocupar, exceto o
passado, um leite derramado que não interessa. Poderia mesmo é estar numa sauna, na
hidromassagem, aqueles pensamentos que outrora se perderam começam a retornar
modestos, ele desmaiando de leveza e por fim morrendo. É. Ou poderia estar em casa com
Carla. Só de imaginar as coisas que perguntaria, sobre o que aconteceu e tudo mais, o por que
desse rosto cansado, ela perceberia, tem a vocação de reparar na desgraça que ele pratica,
que cara é essa?, ela pergunta, a única que infelizmente eu tenho, responderia. Aquela voz
estridente agindo como se lhe fosse dona, esposa ou qualquer patente parecida, ou sequer
detivesse algum direito, e aquelas mãos na cintura de asa-de-açucareiro, não tão esdrúxula,
mas pior que todos bispos da inquisição, o movimento do olhar que ela deve achar muito
imperativo, mal sabe o quanto o cansa, que ela acha ter algum poder, bem, resume-se que
tudo isso já lhe seria cáustico demais, está num ponto onde sente até a tranqüilidade ser
insuportável, quer implorar por clemência. Pedir um minuto de luto em sua homenagem.
Comemorará previamente o fim de algo vital em si. Envolver gente demais em suas idéias, ou
em sua vida, que fosse, ou contagiá-las com sua vida, às vezes é algo do que tem vontade de
se arrepender. E o desânimo o arrepende por uns instantes. Palmas para si mesmo, muito
brilhante. Pode ser pretensioso de sua parte. Algo como, ora, foi minha inteligência que
ocasionou em tudo isso, foram meus feitos, minhas idéias, minhas iniciativas, nada seria como
foi sem mim, sem este meu talento desagradável. Se eu iludi os outros a culpa ainda é minha,
mesmo que eles tenham escolhido as facilidades que a ilusão oferta, mesmo que nada tenha
sido forçado, não pus uma arma na cabeça de ninguém, mesmo que tenham desejado a tudo
isso, tudo. E não tinha ido tão longe, esse é apenas o começo. Suas mãos tocaram o porta-
malas. Caminhou, se pôs lá atrás, pressionou, puxou o mais forte que quis uma, duas, três,
mas só consegue fazer ranger o aço.
– Não abre mesmo. Trancado – certificou.
– Aqui nada – falou a única voz dentro do carro, a metade do corpo para fora e a que resta
para dentro.
Aí vem André.
– Claro que não tá aí dentro. Vamos por partes. Eu peguei a chave do carro, que estava no
bolso da jaqueta dela, e dei pra Bublitz. Falei pra ele dirigir, ele foi para o volante. Habib tentou
abrir o porta-malas, Alex e Martin carregavam ela, aí viram que não abria...
– Stern só foi achar a chave na carteira dela, eu o vi – o calvo sobrepôs.
– Achei que estava no porta-luva – Martin murmurou.
– Achou, hum?
– Foi, na carteira – André gesticula. – Aí abriu. O corpo foi lá pra dentro... – os olhos se
fecham.
– A chave era pequena – Stern.
– Caiu junto, não é? – Bublitz afaga os braços.
– Caiu junto.
– A gente – e aí veio Martin – não deveria estar resolvendo isso aqui.
– Não devia? – ri –, é, não é?, é claro que não, mas é por você que estamos aqui – sabe
um engasgue que vai crescendo, até explodir numa clareza surpreendente?, é o que há com
André, o inchaço crescente na cara, o desabafo de quem tem razão. Martin fechou o rosto.

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Então muitos olhares se cruzam, esteve aí o seu minuto de silêncio. Buscavam culpados,
em segredo todos escondem o ardil. Um ao outro geravam inimigos sem querer, que é
inocentemente que se destroem, é assim que agem os acuados, e é aí que Alex temeu
profundamente e entendeu. É questão de tempo até que o relógio o acuse, não pode se
defender, não espera que lhe apontem a sentença que é o implícito ululante, desses óbvios
que gritam tanto que chega a nos agredir, contra o qual não se pode, abre-se a boca e se
esquece do que falar. Pode acontecer de todos se unirem sem que nada seja dito, em um
instante se fez silêncio, no outro estarão indo em sua direção, não é preciso que combinem, o
matarão espancado, um ou outro gemido, ou puramente o pegariam pelas pernas e braços e
iam jogá-lo da ponte, ou, vai, quem sabe não o colocam num porta-malas e o soltam sabe deus
onde. Vai que um ainda não vem com uma arma?, são loucos, não pode esperar por nada que
não possa acontecer, é. Mas aí as tensões que o preocupavam acalentaram-lhe a alma, berço
que não foi projetado para ser, mas acaba lhe servindo, como a rua ao pedinte. Percebe que
nada que dissesse ou pensasse ou do que ocorresse o protegeria, mas entendeu não precisar
de proteção. Ainda há a mesma coragem que o inspirou, e até o fim, no círculo eterno que não
chega a lugar algum que é ele mesmo, vai inspirar.
– Cadê a coisa com a qual a mataram?
Fez-se silêncio.
– Alex? – André murmurou, é uma repressão indagada.
– Não tinha perguntado antes, todo mundo esqueceu de perguntar. Foi um porrete, um
cassetete, um o quê, sei lá? – continuou, e olha que espanto.
Descruza os braços, agora olha Martin, o cara gentil. Ele não parece saber onde enfiar o
rosto, como uma avestruz. Acaba lhe restando tomar com a verdade na cara, provar à força o
gosto do remédio amargo, que é placebo que não cura nada, vai ver teme que algum deus que
possa estar atento os ouça e então nunca se esqueça. Deve haver alguma lei divina ditada
mais ou menos assim, antes pecado soterrado que gritado aos quatro cantos. As reações
devem ter sido diversas, é coisa que nunca se saberá, se um dia realmente chegaram a existir,
foram essas todas quietas, mãos levadas à boca, tosse suprimida, gosto na língua que não se
move, paladar do qual não se quis saber.
– Uma soqueira – rosna Martin.
É irrelevante, ou só podre demais, lembrar da cena que viu, o rosto, tentar se lembrar dele
e de algo que o remeta a uma soqueira, é, lembrou-se da forma como viu André a tatear o
capô gelado do carro, e é provável que André, afinal, o inveje, é claro, isto porque Alex fizera
questão de tocar o cadáver que agora está ali, em seu cochilo eterno dentro do porta-malas, e
se o fez foi para averiguar a frieza do que era de fato o que ele tateava, um punhado de pele
que não esconde mais circulação ou graça alguma, ossos que perderam a consistência, para
não haver percepção mais próxima da realidade do que a dele, que tinha tripas, fôlego, que
tem a visão, para ver no que resultava sua vontade, o resultado daquilo que escolheu, de seu
grande projeto, um corpo vazio do que um dia foi alguém. Beijou a realidade até o fim, insistiu
em não desgrudar a boca e se deparou com o gosto mais azedo. Pode-se pensar que é isso
apatia, mas não é, também não é força, por não ser nem um e nem outro é que talvez ele seja
incompreensível para o universo das possibilidades de um assassinato, o assassino é tão
vasto e incompreendido quanto quem nunca matou e quanto qualquer um.
– Usa pra abrir – então diz.
– Hum? – uma das vozes aí arfou e perdeu-se com o vento.
Enquanto isso está beirando a idéias do limite da crueldade. Se houver realmente um, ele
destrinchará com uma pressa esfomeada que não mede mais conseqüências, porque não quer
ou não consegue.
– Quebrar o porta-malas? Espera. Mas depois a gente não abandona o carro? – falou
Habib, mais atrás. André espiava.
– Deixa quebrado que não importa. Se é pra associar alguma coisa com assassinato, eles
associam indícios mais certeiros, pra começar o sumiço dela no emprego, ou a família dela dar
por falta...
– Ela morava sozinha – alguém fala.
– Que seja, ainda tem o emprego, o vizinho que era amante dela, o cara do aluguel que vai
estranhar a sua ausência, eu não sei. Não é por um carro qualquer ser achado num lugar, sei
lá onde, estacionado com o porta-malas arrebentado. Se alguém tiver visto a gente a ponto de
nos tomar como suspeitos, já terão feito isso.
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– Tem as digitais, fios de cabelo. Resto de sangue. Fibras – Habib.
– Devem ter muitas outras, e não servem de nada sem uma referência direta que leve a
nós, é assim que funciona, se você não sabe.
A brisa soprou e encolheu-se, surtiu um efeito intimidador, deu um timbre funesto à noite, à
essa a união do importante com o descartável, do que ele não quer mais reparar mas é
interessante que o faça. Alex desejou fumar. Cigarro seria realmente bom. O aspecto tão
familiar de seu cinzeiro, quase herança sentimental, nada mais lhe teria serventia.
– O que me impede de subir no parapeito e gritar, e pular se eu quiser? – Bublitz aponta. É.
Alex o olhou. Esquecera os cigarros. É óbvio que os outros também o fizeram. Não esquecer
os cigarros, talvez nem pensem nisso.
– Quê?
– Isso não é mais uma brincadeira – rosnou Stern, trincava a mandíbula.
– Mais uma brincadeira. É assim que você diz, você chama o que aconteceu de
brincadeira? – André.
– Eu não disse isso. Os resultados do que aconteceram são uma coisa, o que aconteceu
por termos ido longe demais, isso sim. Isso foi tudo o que aconteceu. Não pelo resto. Não, na
verdade, foi por um de nós ter ido longe demais, e só isso.
– Não o culpe, não – Bublitz ergueu a voz, aí se moveu de um lado para o outro. – Que
antes a gente fez um pacto, o pacto de arcar com todos os riscos do que fizéssemos, é,
mesmo assim entramos na droga de coisa de não haver restrição pra nada e tudo mais, é.
– Ainda assim havia pressuposto um respeito, o mínimo de respeito...
– Que pressuposto, rapaz? – ri com cólera, mostrando a gengiva –, o que não havia era
coragem de sua parte de fazer alguma merda drástica, que seja, algo assim. O que Martin fez
– e aponta freneticamente – foi colocar em prática o que a gente sabia que ele podia, e ele teve
bolas pra fazê-lo, sei lá por que quis, por quê?, por quê?, se você quiser saber você pergunta,
mas foi assim. Eu minto?
– Vontade dele, não?, vamos falar então das nossas vontades?, e ela?, você perguntou,
ela quis morrer?
– Não! Não!, mas você entendeu o que eu disse. O sentido de tudo isso, dessa brincadeira,
não era a liberdade?, hum?, tentar de verdade vê-la, ser livre?, na hora da morte, lutando,
assim também você não está livre?
– Rapaz, certo. Apenas se ouça um pouco, é tudo o que eu peço. Você já começou a
considerar normal tudo que aconteceu?, espera, que já tá todo mundo perdendo o bom senso?
Bublitz recua vários passos, o mormaço é expulso da boca de Stern, é que bafeja, ou rugia,
treme as patas, e aponta e as bate. Os demais são essas sombras confusas, coadjuvantes
inseridos por um erro do acaso, moviam-se em espasmos, os momentaneamente mais tímidos
hão de preferir a inércia, mas a bomba não os espera e continuou a explodir.
– Quando a gente falou de bom senso?
– O bom senso tá implícito em quase tudo que se vá fazer. Principalmente agora. Estamos
nos livrando de um corpo – ri de agonia.
– Implícito, certo. Aí você o invoca quando é conveniente, e de repente o bom senso está a
seu favor.
– Pára com a bobagem – Sten berra –, nem que fosse hora pra conversa de boteco, com
essa ânsia egoísta que acaba prejudicando todo mundo, até você, você espera ser levado a
sério?, hein?, acha que vão te ouvir?, apenas se ouça – e aponta –, acha que estão te
ouvindo?
– Não culpe a ninguém, não, e nem fala de mim, que a culpa também é sua – o inferno é
mesmo os outros, ou suas verdades, é aquilo a soar como vidros estilhaçando, e os cacos
entrarão nos olhos, nos ouvidos, em tudo mais. Provavelmente este Stern desejou vomitar,
devia sentir o estômago febril, o rosto alterou-se como se lhe viesse uma punhalada profunda,
um veneno que tomou e até hoje não sabia, ou um soco nos testículos, agora é nítido o
desespero no seu rosto, semblante que diz algo como, arrisquei-me ao me envolver em coisas
perigosas, mas não estava pronto para isso, não pronto para isso da forma que você diz, da
forma que eu me entreguei, eu não sabia que podia ser assim. Talvez no fundo você esteja
certo, mas não que isto seja certo, não que seja justo você estar e eu não.
Alex assiste a fúria dos outros e a como ela cresce, absorve o desespero que se segue.
Um berro, muito próximo era a um gemido rápido ecoou, cruzou rápido, grave, chiado, pronto,
já acabou. Stern partiu para atingi-lo, queria ser simples, e ele foi. Corria e apenas após alguns
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socos vai se tranqüilizar e talvez suportar a acusação. Com o princípio de seus passos todos já
se agitaram.
– Ei, ei! – André grita a suspender os braços.
Alex se espreguiça de susto, debruça a testa, pensa que lá vem e é com uma surpresa
agradável que vai ver tudo acontecer. Os baderneiros de rua ensaiam seus passos tropeçados,
Martin rosna alguma coisa que não será ouvida. Num caminhar trôpego e mal-calculado Bublitz
cambaleia para trás, ao mesmo tempo que olha se o parapeito não está próximo demais das
suas costas, é que podia lhe ser arriscado, e o outro vem aí avançando. Foi inevitavelmente
atingido no rosto quando Stern chega perto demais, não pôde evitar o soco, rápido mas incerto,
estalado e pouco grave, mas bem na mandíbula. Bublitz recuou arqueando todo o corpo e
desequilibrou-se. Quem acaba por fazer mesmo diferença é André, que chegou logo depois
para segurar o que bateu, está com todos os jeitos de querer evitar coisas piores, que aconteça
mais uma morte, mesmo, e primeiro o apanha num braço, o outro teimando em se esquivar, aí
dançavam todos loucos, indo para frente, para trás, ora seguro, ora livre e furioso desejoso de
mais briga, ora o acertado recuando mais e mais e gritando, ai, que fui atingido, e tromba
contra o asfalto, gemendo porque parece estar mesmo prestes a morrer, e o outro ali
ameaçando, terrível, até que foi questão de tempo para que viesse Martin, gigantesco,
colossal, realmente imobilizar o furioso, ao que só foi preciso cerca de dois passos e uma
chave de braço que todo o corpo rendeu-se.
Bublitz caiu dramaticamente demais para ser verdade, faz estardalhaço, infla as
bochechas, cospe para os céus e esvoaça os braços, deu-se de costas com a mureta divisória
de ponte, sabe-se lá se as pessoas não atuam ao menos um pouco o tempo inteiro,
acostumaram-se, ou está isso entranhado na gente de tal maneira que sempre nos perturbou
os modos e nossa idéia de sermos verdadeiros, então, próximo ao parapeito ele ainda
tropeçará, escorregava nos seus braços e voltava ao chão, talvez seja efeito da bebida,
provavelmente, e não somente de encenação, o que acaba por não mais importar. Alex sorri.
Stern esteve reagindo, não tinha por que se satisfazer com tão pouco, mas em breve vai se dar
conta que fazê-lo contra Martin é idiotice. – Enlouqueceu? – grita o atingido, leva a mão sobre
o queixo, sua coragem intimidada. Mesmo com o algoz subjugado, a valentia do cara e
principalmente a ira que mostra já são suficientes para derrubá-lo.
– Não é pra tratar como brincadeira, garoto?, tô me divertindo pra cacete. Martin, me solta
– demora alguns segundos até que ouvisse o pedido, só quando Stern realmente esfriou como
quem avisa, veja, farei por merecer, ao menos farei alguma força para me conter. – A gente
não tá nos becos do teatro, muito menos naquele hotel, desgraça. Mas que inferno de idéia a
sua. Que escroto, você. E aí, e eu?, também não posso fazer isso?
– Poder, pode, pra que eu não sei. E pra que quer saber dos outros lugares?, já passou, já
passou, e espera um pouco, você tá definindo novos limites?, olha que eu os quebro, hein, olha
que eu os quebro...
– Fica quieto você também, que não se ajuda – reclama Martin, que ainda faz do corpo a
muralha preventiva.
– Tem sangue na minha boca.
– Definindo limites?, pra quê? – fica indo de um lado ao outro. – É um trabalho imbecil, não
sou eu que os defino. Eu não defino nada. Eu não preciso dizer nada quanto a isso, não vou
ser estúpido e continuar com essa conversa inútil, que começou por uma causa inútil, de você
fazendo as coisas nessa sua infantilidade, seu imbecil, como dizendo que eu quero e pronto –
continua indo de um lado ao outro. – E logo agora... logo agora... e que fique claro que não
passa disso, imbecilidade. Por quê? – não pára de andar, céus –, porque eu não quero me
foder. Certo? Porque não é justo que todos aqui se fodam, ainda mais quando realmente
fizemos um pacto, e como se não fosse o bastante o que já temos de nos ferrar por isso, você
quer ferrar ainda mais, pegar o que tiver de ruim e prolongar, prolongar até que ninguém mais
agüente, e não é hora pra ninguém perder a cabeça. É isso que você quer que aconteça.
– Não vamos fazer qualquer loucura aqui. Hoje fomos longe demais. Depois de tudo,
chega... – era preocupação o que se via no olhar de André, palavra mais eficaz que o
descreveria, profundíssimamente esse receio.
Aí o garoto xinga enquanto esfrega o próprio rosto, palavrões contra ele mesmo ou rezas
para espantar seus pesadelos, encostos, mas só o astral podre lhe atendeu, então buscou
sonhos, mas só a verdade lhe atendeu, deve ser mesmo demais para agüentar com lucidez,
com sobriedade, ele esfrega o rosto porque insiste em acordar quando já se é essa toda a
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sanidade que pode dispor. Então deve sentir que ela está faltando, sintoma de um forte
desarranjo, sintoma da loucura que não mais tarda, – Fala alguma coisa pra ele – disse Habib,
e olha para quem?
– Falar o quê?, ele não tá certo? – Alex cruzou os braços.
Que longa e desastrosa noite. É. Habib coçou a testa, entreabre os lábios, reage de todas
as maneiras simples que uma pessoa reage quando não consegue concordar com coisa mais
simples do que a dita, não consegue concordar e mal reagir. É que às vezes o argumento, já
profundamente desgastado, causa um mal-estar que é realmente de causar azias, de pesar
nos ombros, nesses caras igualmente já corroídos como que por uma erosão milenar, que não
mais suportam tanta burocracia ideológica, tanto vai-e-vem da gente, e por finalmente hão de
ceder, deitar no asfalto e dizer, é mais simples do que tudo isso, simplesmente estou cansado,
desisto.
Mas olha. Acontece que Bublitz subiu mesmo no parapeito. Não avisou, nem deu aos
outros o luxo de contemplarem algum sinal preliminar, assim os salva de qualquer espetáculo
mais cansativo. Assim como ocorre com as coisas simples, gênero onde infelizmente se
cataloga essa estripulia, nenhuma escalada de suspense sugeriu que fosse fazer o que fez.
Distraíram-se um pouco, ao menos a maioria, e quando se foi ver, o rapazote já está virado,
apoiou-se com as patas e subia no parapeito a um pulo, e pronto, talvez caia pelo efeito do
álcool, pelo vento, que não é fraco, transtornando seu casaco, aí se espatifaria na baía, é pelo
que devem estar torcendo, ou talvez tudo que se pode concluir é que ele não mais se importa,
e é a desimportância de todas as coisas que quer exibir.
Estufou o peito com fúria extravagante. E em seguida urrou. Algo como um cântico de
guerra, ou uma frase que começou com idéia de ser frase mas perdeu o fio da meada, a se
alongar num sânscrito medonho sem sentido, se alongando, inchando, se alongando, até,
depois de muitas vogais desperdiçadas e de tempo suficiente para provocar uma onda de
pavor, fazer algum sentido, é que gritava para a baía, para algum ser imaginário que nela
habita, que de lá pudesse ouvi-lo, ou ao mundo, às luzes no horizonte, o conjunto miúdo dos
prédios e às pessoas escondidas nas suas tocas. É. Seu grito não tem um porquê mas tem um
destino, como a vida, o grito de Bublitz é a minha vida, diz-se Alex, porque naquele instante ele
não deve satisfação alguma, e resolveu pagar o custo de quem nunca mais quer ter o que
dever.
Fez um desespero iminente os arrastar e afogar como numa onda, e Alex põe a mão na
boca, coisa assim, quando na verdade ria, ao que também morde o riso para que não saia,
engole-o, uma péssima relação com o próprio estômago, ao que não sabe se devia desatar e
urrar ele também, se vir a calhar ele sai correndo e salta, não sabe se agüenta só testemunhar.
Ou ele se entrega e dá à vida um sentido, ou se inibe e evita o pior. Stern é outro que não deve
estar acreditando, o óbvio deve ir aos poucos digerindo o seu ceticismo, só lhe restará o estado
embasbacado de choque. Pasmou, boquiaberto, no senso quotidiano do ridículo, da coisa
pequena, agonia de giz arranhando o quadro negro, pequena dor de dente, som de gotejar na
pia, muito repetido. Alex está imaginando se mais alguém desejaria partir com ele. Uma bela
cena de todos juntos ao abismo.
– Bublitz, desce – ordenou o cara calvo, Habib.
– Deus do céu – Stern fez que ia fechar os olhos, mas só recua.
– Ele vai cair. Alguém tira ele dali – André geme.
– Bublitz, você realmente foi longe demais. Pense nos outros. Stern está certo, ao menos
quanto a isso. Estamos fodidos, você vai chamar atenção. Assim você vai piorar tudo – Habib.
Os olhos de Bublitz reluzem rápidos e com brilho seco de realismo, escuros e tristes no
fundo da sua embriaguez. Talvez ele esteja pensando, por que se submeter a esse
paternalismo e choramingar?, não parece digno, antes lançar-se contra tudo e todos, talvez
possa provar que está certo, ao fim valeria o risco. Alex leu isso em seus lábios, e se
impressiona, não só por isso, por tudo, desde o brilho triste até o grito, e entre as últimas
coisas que vêm impressionando a ele, que há umas horas antes ele não teria condições de
impressionar-se com nada, essa, o conjunto de coisas da ponte, é das mais decisivas. –
Deixem ele! – gritou, então. Não era uma ordem de verdade, mas finalmente o riso.
– Isso, Alex! – acena o garoto, e faz uma dancinha, coreografia de doente.
– Quer pular?
– O quê?
– Alex – André urra raivoso, aí tremia com os braços.
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– Estamos num espaço fechado, não estamos?, é como deve ser, é uma ponte, só
estamos nós, não tem mais ninguém. E há muito tempo isso não nos importa mais. Podemos
ser livres aqui também, podemos ser livres onde quer que seja, podemos retornar à escuridão
aqui.
– Pular mesmo, Alex? – é Bublitz agora que questiona, enquanto ri, desacreditando.
Repetiu como quem não escutou, ou insiste com a boa vontade de entender o ridículo.
– Se você quiser, você pula.
Foi além.
– O suicídio é o crime perfeito, Bublitz, que é crime ao mesmo tempo que é sentença e
fuga. E de que importa, não é?, talvez você nem morra com o impacto da queda e com o frio
bizarro que deve fazer ali na água. Vai ver só dói. Mas não importa. Então, se é sua vontade,
caso queira isto, é sua e pronto, ninguém pode tomá-la – dava de ombros. Ele não parava. Ele
nunca parou, não podia, ele os levou embora e até aí. E Bublitz pensou. E isso se fez evidente
porque seu sorriso minguou, Alex não brinca. Era sério, falava sério, a ocasião o obriga a isso,
a ser esfinge de todos enigmas e deixar os outros ao canibalismo.
– Posso pular.
– Pode.
– Desce daí, garoto. Você não tá provando nada pra ninguém, nem pra você, então pára
com isso – falou Habib.
Talvez Bublitz tenha ouvido as palavras de Habib, cheias de lucidez que não precisa ser
analisada por filosofia alguma, não carece de ser esmiuçada ou discutida, é coisa que se
aplique à compreensão mais simples e aos assuntos do suficiente. É por isso que talvez
comece a descer. É que suas pernas vão se esticando para baixo, quem sabe ele já não sorri,
aliviado porque fez, mas passou, está liberado, mas não tanto quanto desejaria, porque veio o
fantasma de Alex a assombrá-lo uma vez mais, e ele muge em tom de assombração, – Vai
descer daí por que ele mandou? – foi o suficiente para que hesitasse.
– Alex está manipulando você, não o ouça, por hoje é só. Acabou. Esquece essa droga,
certo?, desculpe pelo soco, sim?, vamos terminar com isso, sim? – veio Stern, então.
– Eu sei que ele está me manipulando, mas isso não lhe tira a razão...
– Estou manipulando, sim – e ria. – Vai pular?
– Não!, mas porque não quero, é óbvio.
– Mas eu quero ir aí empurrá-lo – todos se movem como num ai, mais desgraça, e aqui se
empurra também a vida, aqui se vai mais um grande pedaço vital, com tudo saindo do seu
controle, um atropelando o outro, todos se batendo num grande desastre de trânsito.
Pára, pára, para tudo há um limite, imploravam, ninguém agüenta mais, não se pode
alongar nada tanto assim, já é um grande exagero, ninguém agüenta mais, ninguém pode lidar
mais com idéias como essas, rituais para satã, em todos há presença da culpa, tudo será
principalmente pior quando vierem a tocar nessa palavra, mas foram mesmo os olhos de
Bublitz que se esbugalharam, foram eles que reagiram numa colisão intensa, foi claro e
engraçado que num instante ele congelou. Ali ele temeu. Deve estar pensando rápido. Há
seriedade na sua loucura, Alex, o mocinho não tardará a percebê-la, e ele não vai arriscar-se.
Precipita-se para descer do parapeito, que feito a subida não exige anúncio algum, termina de
saltar ao asfalto.
– Eu pularia.
– Desceu porque quis, está certo – e riu.
Agora é André que parece não saber mais se não ria. Stern continha o pulsar da jugular,
põe a mão no pescoço feito fosse explosivo, aquele Martin olha, o cenário deve conspirar para
que ele melhor se aceite, quão mais monstruosos os monstros em torno de nós menos
monstruoso o monstro de nós, ainda que Alex tema este caminho, esta compreensão, porque é
desse cara a culpa e ela deve permanecer selada, mas entende que assim não irá ficar por
muito, foi ele que a matou, é bom que vá se acostumando, nem que aos poucos, antes que
comece a duvidar. Os ânimos esfriam e não há sons se não pelos do acaso. A noite na ponte
era amarela, ora branca, segue escura lá depois dos postes. Então volvamos ao carro, quanto
ao carro, esse ainda atua como convergência de todos os destinos, centro oficial da gravidade,
mas parece tão assimétrico, por exemplo, é somente um ponto parado, na verdade mal
estacionado, feiamente estacionado, e ele acha ter desenvolvido uma mania por arrumação,
que tem a vontade de pegá-lo e mudá-lo de lugar, ainda que não se pegue um carro, se o
dirija, sente uma preguiça que o impede de qualquer uma das coisas.
13
Não é preciso ser muito perspicaz para notar André pensando em coisas ruins, as coisas
ruins gostam de fazer-se mais evidentes, seja dentro de mim, ele se diz, ou fora ou onde
esteja, o que o leva a pensar que o problema não seja a ruindade das coisas, mas a sua
predominante tendência a exibição. Pensemos no espécime André, é um belo exemplo da
preocupação contida, reprimia-se, lá estava, talvez pela primeira vez notando a baía e suas
ondinhas quase invisíveis, com uma mão no queixo e a boca semi-aberta com jeito de horror
acordando. E a Alex resta desenhar seus padrões, ao exemplo do de que ao se olhar assim ao
vazio é porque o horror já assumiu suas proporções mais bizarras, ele não provém mais de um
objeto ou situação, sensação ou ocorrido arrepiante, mas permeia a qualquer coisa que nos
cerque, claustrofóbico, o horror já lhe cercou, íntimo. Isso não nos deixa quase nenhuma saída,
aí ele lamentou-se por compaixão.
Ergue o queixo depois de fincá-lo no peito, assiste uma nuvem de fumaça alongar-se por
uns muitos horizontes e passar grandiosa por cima da sua cabeça, um corvo gigante, é o que
parece. Pode pensar que é um retumbante rastro de poluição ou um necrófago imaginário que
o está caçando há anos, finalmente o encontrou, veio sabe-se lá de onde para comer a sua
alma ou levá-lo para essa terra da qual não se retorna. Sacudiu-se mais um pouco e encolheu-
se de medo nas roupas. Habib recostou-se sobre a beirada do porta-malas e se deitou.
– Para que viemos?, ao que parece só estamos alongando a tudo isso, tudo o que antes
dissemos, vocês fazem tudo ao contrário, enlouquecem nas únicas horas que não deviam. Na
verdade enlouqueceram em todas as horas. Pela primeira vez vamos parar e pensar um pouco
no que aconteceu. Agora estamos presos, temos de pensar.
– Certo, mesmo. O que estamos esperando?, vamos acabar logo com isso?, vamos pegar
logo o corpo?, o tempo está passando – Stern prosseguiu.
O homem nunca estará em paz mesmo que esteja selado sozinho em sua ânfora craniana,
essa é a sua conclusão, que o homem nasceu, existe e não está em paz.
Viu aqueles desgraçados se movendo, um para a esquerda, outro para a direita, assim,
entendendo-se do jeito que for, os olhos de André são os mais distantes, apesar de sua cabeça
ter esse foco específico do porta-malas. Habib capengou para trás, ajeita o colarinho, procura
espirrar, sabe-se lá o que realmente procura, não quer imaginar, nada pode escondê-lo da
maldita tensão, estamos todos na tensão, não é ela que está em nós, é mesmo uma abstração
natural que escapou da gente, e ela e a maldita racionalidade podem coexistir, é que se unem
para um meio-termo grotesco, e os sapatos da gente ressoaram no concreto, vão dando com
as solas no asfalto.
Não demoraria para que acabasse, estão se preparando.
Percebe que apesar de Martin se encaminhar para os fundos do carro, lhe mirava com os
olhos, pede uma orientação, não, se angustia por uma instrução que não pode receber, e logo
de quem, a pedir por uma figura paterna, um mestre, sabe-se lá por quê. Alex o diria com os
olhos, e o faria paulatinamente se pudesse, preste atenção, vou explicar, mas no momento não
tinha ânimo, nem discernimento, nem razões para tal, veja, não guio a mim mesmo, mal sei me
orientar, cá estou cheio de dúvidas, desejando loucamente coisas somente minhas e
desprezando todas as suas, aproveitando o meu assunto, solitariamente, já é tão difícil pensar
por mim mesmo e você ainda me pede satisfações, orientações, vai te danar, por piedade,
dane-se por caridade a mim. O pior de tudo é que sabe do sujeito poder compreender a tudo
isso sem maiores devaneios ou sem ter de ouvir um berro. Na verdade deve ter sabido tudo
desde sempre e isso o torna ainda mais fraco, o seu receio está em todos nós. Viu quando a
brisa desgrenhou os cabelos e tratou de expulsá-los do rosto. Viu Martin colocar as mãos
dentro das vestes, dentro das imundícies do casaco e seus hormônios malcheirosos do suor.
– E se alguém ouve? – Stern soluçou. Estendeu as mãos por cima do teto do carro.
– É tarde – o aval veio de André –, não tem como ser diferente. Olhar se algum movimento
se aproxima é o melhor que fazemos. Martin?, hum?
Habib repousa as mãos asperamente no canto do porta-malas. Soluçava pelo movimento
da garganta. Viu quando ele apertou as mãos no metal, como se consentisse, vai lá, faz o que
tem de ser feito, já que todos fomos cúmplices até aqui, havemos de continuar sendo, então
acaba logo com isso, que por bem ou por mal estamos todos um do lado do outro, até
quando?, vai saber. Ouve um som seco a ecoar, um vai vindo de uma voz que logo se perde,
provavelmente de Bublitz, mas pode ser que não, que ele pelo porte havia deflagrado todas
suas energias e aderido a uma sonolência vagabunda.

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Martin trouxe do interior do casaco a coisa fosca que reveste os seus dedos, é coisa que
peca em existir mas não dá a mínima ao que pensam, é a indiferença do mundo berrando
contra a parcialidade de ser humano. A soqueira não parece um utensílio mais complexo que
um abridor de latas, ou um macaco que se use para trocar o pneu. Não só a frieza de um
cadáver fez ele pensar como a vida é frágil, é que não há nada mais corriqueiro e frágil no
mundo que a vida. Olhasse nos olhos lânguidos de um boi prestes a receber a derradeira
tacada na cabeça, já é como se ele soubesse, uns dizem que sabe mesmo, do destino que o
aguarda, previamente está lá, se lamentando, apelando para a compaixão, solidariedade, se é
que animais pedem por coisa assim, e se passa o mesmo com um cãozinho que está para
morrer, sofrendo a intuição de que o tempo se extingue e de que está condenado a deteriorar,
apodrecer nessa vida de poucas vivências, sem nada, senão memória curta, curta vida de
cãozinho. Há de ser sacrificado pelo dono querido, ao qual por razões não só da alimentação
foi incondicionalmente leal, ou talvez ele pare de respirar enquanto dorme, mais simples. Ou
visse olhos de gente, de alguém ao lhe porem uma arma na cabeça e dizer que você vai
morrer. Talvez por isso seja a sobrevivência o instinto mais inquestionável, a coisa mais crua e
mais nojenta, o impulso mais rasteiro, capaz de realizar tantas coisas além de qualquer outro,
de revelar o caráter das pessoas, de tornar supérfluos outros conceitos, até mesmo como o
amor, ou de fazer que o amor finalmente se veja quando souber que se está a perdê-lo, e se
não torna tudo supérfluo diante dele, ao menos desenvolve exceções, isto é, as exceções onde
se abandonariam as coisas mais lindas simplesmente pela vida, que não é bonita mas é o que
verdadeiramente se quer, e há também as exceções mais raras, onde se abandona a vida
pelas coisas que se pensam serem lindas. Tudo seria capaz de tomá-la, tomar a vida, um
açoite mais forte do vento talvez baste, um tombo mais intenso ou um escorregão, que dizem
que meninas pequenas podem até perder a virgindade por causa de um tombo, por um tombo
se foi a pureza, aparentemente até uma gargalhada é capaz de asfixiá-lo, tudo se converteria
em potencial assassino, desde a ponta cruel de um lápis enfiada num pescoço, passando pela
habitual faca que se usa para cortar pão ou legumes, até uma liga de metal que se prende nos
dedos a fim de defender-se de bandidos. O sangue empapado numa coisa equivale ao ditado
que não há volta para a pedra atirada.
Martin franze a testa, está mordendo a própria boca, está angustiado, está se esforçando,
ergueu uma só vez a mão. Bateu sem rodeios sobre a fechadura do porta-malas. Um estrondo
forte explodiu, e notavelmente vê-se o metal dos arredores deformar-se. Batida das fortes. Alex
sacode a cabeça. Imagina a mesma pancada num alvo diferente. Talvez um rosto. A cabeça às
vezes associa as coisas de um jeito bem óbvio, às vezes não nos quer ser um mistério, mas
teima em ser pessimista, do jeito que já se conhece, ou mais educadamente se dizendo, nos
conformes daquela velha desculpa mal dada, não sou pessimista, ela se desculpa, sou realista.
Poderia jurar que todos os outros refletem o mesmo, com uma diferença ou outra, de
posicionamento, enojamento ou julgamento à parte, pensariam a mesma linha. Stern retirou as
mãos do carro, Habib aperta com mais força o pára-choque. Bufou de força, o Martin, e por
mais uma vez ergue o punho, e aí bate de novo, dessa vez num intervalo mais curto para bater
pela terceira vez, e viam as rodas pulando, chacoalhando. Mas que merda, sussurram mais um
comentário que não devia sair.
Alguém tem um cigarro?, deseja perguntar, quase sorri com a graça infame, secreta e já
ultrapassada, seu passatempo pessoal, mas se contém em continuar a apertar os bolsos. A
fumaça ardente saindo do espaço da boca só lhe poderia relaxar se fosse a do crematório.
Volta-se ao evento, ainda é tão sonoro, tão indiscreto, tão mal planejado que parece ser essa
gente se pondo a tremer a ponte toda, porque querem se denunciar, que aponte-se um
holofote, ao menos ele sorriria, e um ranger de metal diferenciado e um som de ferrugem
estalou anunciando a quebra de sabe-se lá o quê, anúncio terminado quando Martin deu
passadas para trás, com uma mão ele já se punha a acariciar a que batia, e averiguava com os
olhos se a estrutura do porta-malas realmente tremia. Stern curvou-se para o lado, olhava.
André fez o mesmo, já se aproximava.
– Abriu? – Bublitz falou, afinal.
As mãos de Habib levantam-se, a elas acompanha a porta rachada do porta-malas. E não
só isso, como uma expressão típica de quem foi surpreendido por algum odor desagradável, ou
a visão de um bolor, o que quer que fosse, suficiente para que trincasse os dentes e revirasse
o rosto. O corpo talvez nem feda de verdade, mas é impressionante. André acena
positivamente umas poucas vezes e parece que é para se consolar. Apontou, e de repente ele
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estava frio, bastante mesmo, nada como antes, para Alex, e o enrugado de seus lábios
ressecados já se punham a tremer.
– Ajudem aqui, não é?, vamos todos carregar, pra ser mais rápido. Não, não, Bublitz, fica
olhando...
Alex estende-se nessa caminhada estabanada, que ao menos se distrairia. A sombra das
entranhas do porta-malas, discreta, sem qualquer enfeite, de feiosa simplicidade, foi
anunciando o leito desse algo disforme à medida que sua visão vem desbravando o que antes
não era para se ver. Encolhido como uma mala, retorcido como um saco de batatas despojado
da feira, lá está o cadáver de garota. Imagina se tivesse desaparecido, se encontrasse o
compartimento por final vazio e a máxima polêmica de agora residisse sobre, que aconteceu,
como ela sumiu, como fomos encontrar isso vazio?, em que quebra-molas ficou?, algum de
nós foi mais esperto do que deu a entender?, o quê?, ou ela poderia levantar-se a gritar
surpresa, o truque de hoje foi dos bons. E poderiam descansar. Vê que Habib a olha, e que é
essa a fonte da frieza de André, é natural, e Martin a evitava.
Talvez seja um pouco cretino achar um cadáver bonito, mas a palidez até que nela cai
bem, ele pensa, a condenar-se, mas não pode evitar, que acaba devendo ser bom ver beleza
em qualquer coisa, e ele quer acreditar que seja esse o seu caso. É quase a impassibilidade
eterna de uma estátua, apenas não tão rija, certamente com alguns defeitos que o tempo
agravará quando ela for roída rente aos ossos e jazer retorcida, mas isso já está, a saia
hasteada até a metade das cochas, uma perna sobre a outra já que foi dobrada de qualquer
modo, algumas veias bem gritantes, embrulhada sem carinhos ou cuidados, tudo isso é parte
que escapa do saco de lixo. Resta essa parte coberta do pescoço e rosto, que é pelo respeito
de não encará-la nos olhos, ela não gostaria de lembrar-se como está e ser tomada como
coitada, ele respeita os mortos, a vida apodrece e a gente para evitar ver seus podres usa de
uma sorte de máscaras que encontra pelo caminho, ao se tratar disso a gente é sábia em
aproveitar cada oportunidade, o homem adora adiar o podre sem realmente eliminá-lo, é uma
dessas sabedorias que os séculos generosamente ensinaram.
– Martin?, vai ficar parado? – Habib –, a merda aqui dentro é sua, faça alguma coisa.
Ajudá-lo é uma coisa, carregarmos sua morta é outra.
– Caia na real. Só o fato de virmos até aqui significa que a morta também é nossa – Stern
já se aproximava.
– Porra, Stern – mas aí o próprio Martin intercedeu. – Vem me acusando, às vezes se
lamentando, mas até onde eu lembre não pedi que você viesse até aqui, correto?, não me
importa teu nervosismo agora, ok?, se continuar ignorando as coisas que eu falei, ao menos
assuma que é um idiota, ou um covarde, pois se me lembro bem eu disse que não queria que
se envolvam nisso, eu disse, é melhor que as coisas tomem um caminho mais reto, simples,
quem estava superando o medo era eu, não era?, quem ia se foder sozinho?
– Todos nós, cada um sozinho à sua maneira, esqueceu do contexto? – retruca e aponta
todo canto.
– Contexto?, que se dane, isso muda. Antes você não era cúmplice de assassinato, agora
é. Antes eu ia pagar, era meu problema, meu corpo, agora vocês escolheram dividir isso
comigo, agora é nosso, ou nem todos escolheram, mas ainda assim todos vieram, eu me
pergunto por quê. E quanto a você?, veio aqui por medo, por orgulho, por quê?, podia ir
embora.
– Um pacto é só uma palavra – a voz de Habib era frígida e horrível. Ás vezes o homem
não acredita nas suas próprias palavras, mas lhes retira o valor de sua opinião egoísta em prol
da percepção geral, deve de ser esse um caso, e espera alguns segundos para continuar. –
Pode muito bem escolher denunciá-lo, inventar uma história, dizer que foi coagido. Pode
também nos ajudar a carregar o corpo.
– Por causa de uma palavra eu vim até aqui, não me importa o que ela seja ou deixe de
ser, se pode ser quebrada ou não. É injusto, é uma droga que venha falar assim comigo, cheio
de sarcasmos, mas então?, não posso ficar com medo? Presumo que todo mundo aqui esteja
ótimo, estão todos seguros e tudo mais, não? – Stern.
Silenciaram.
– O que me pedem é que eu não expresse mais nada pra não afetar vocês, perdão.
– Acho que vem vindo carro...
Está perto das duas e trinta da manhã, constata após emendar a vista nos números no
relógio. Será preciso que André tome essa trôpega iniciativa, só não andará mais curvado e a
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sentir mais pesos que você, porque é intolerável que alguém sinta tanto quanto você, então,
ponha-se aí uma grande ênfase ao trôpego, porque ele vem a tropeçar, mas acontece que ele
se desloca e que consiga tanto é uma braveza hercúlea, transpira o medo do contato com a
morte, que ela pode ser contagiante, mas ainda assim tateia, que coragem, os cantos do
cadáver plastificado, tudo então sem mais palavras, no mais a expressão vagabunda de não
estou sentindo nojo, mas minha cara me desmente. Só quando a mão encontrou seu alvo, pelo
que vê daí parece ser um braço, que parece finalmente dar-se conta de que nisso não há
grande incômodo ou absurdo, a simplicidade que o seduz amansa-o nos traços, que a morte
não é a sombra monstruosa que imaginou, mas só algo que transformava, por exemplo, a
pessoas que vemos todos os dias em nada mais que objeto de se manusear, usar ou deslocar,
no fim tudo acaba-se na lixeira, desde os restos do jantar até essa garota.
Como móveis, cortinas, ou colchões, é o passado que costuma definir o peso e a
importância que têm as coisas, talvez por isso dê-se toda uma atenção distinta a cadáveres de
gente, em específico a esse aqui, que deve ter uma história e tanto, um passado lamentável
transfigurado em leveza, esquecimento, desimportância e liberdade. Ter de haver essa
transfiguração parece muito cruel.
Suspirou, que à parte dos pesadelos de cada um, seus labirintos e suas solidões, ninguém
lhe seria tão diferente, todos próximos nas suas exclusividades. Essa era a única coisa
maravilhosa que havia de certo essa noite, pensou, cada homem é uma estrela, pena que
mingua fácil. Mas aí o corajoso Alex seguiu para fazer o trabalho sujo. Já segurou com
maldade racional o corpo que mais uma vez vai tomar, já o estudou e já se decepcionou, e o
que importa é que de novo o pegou, tateando pelas pernas, enquanto cobria as partes
despidas pelo plástico, – Ajudem todos aqui, sim, majestades?, podemos ligar pra uma
funerária, se preferem.
Um tenta segurar por aqui e o outro quase deixa que escorregue, só buscam baricentros
para melhor apalpá-la, carícia das bizarras. Martin mostrou-se mais forte do que já parecia
quando envolve as costas frias da morta, tomou-as firmemente, ergueu um troféu que não
desejou mas ganhou, daí sobe num pódio que não quis ao tirá-la do porta-malas, parabéns,
agora vamos despojá-la.
Afinal carregavam o corpo. Como lua-de-mel será essa a consumação do ato, um conjunto
serial de gozo, esse será o penúltimo ou antepenúltimo de uma totalidade que lhe reduzirá
todas as forças, não pretende depois deitar no asfalto e perguntar se foi bom, um seio de
garota morta escapa pelo canto da roupa alargada, veias roxas ressaltavam suas pernas,
subiam até o umbigo à mostra, é uma mulher gostosa. E a gente a carregava quase que num
abraço uns aos outros, assim seguindo cambaleando pelo concreto. Alex arfou quando pensa
que as mãos escorregariam, e vem a idéia de render-se e deixar que ela caia, desisto, diria,
abanaria as mãos aos céus, se tornaria mais imóvel que o cadáver e entenderia se o
quisessem enterrar, mas segura o braço esquerdo!, já tô segurando o suficiente, vira as pernas
pro lado do parapeito, calma, não apressa que é pior, mais dois passos pra frente, só dois, é,
você acaba de dar três e quase que ela cai das minhas mãos, maravilha, faz alguma coisa de
útil, desdobra esse saco, cobre ela melhor, anda. E o parapeito se aproxima. Estava certo
quem disse que era esse um espaço fechado, se olhar mais para longe, que é coisa com que
agora se permite distrair, verá a tudo embaçar-se, nada mais seria senão a cortina de teatro
onde ensaiam e praticam seus crimes, estão nesse palco solitário. A essa altura, distantíssima,
o único sinal de vida alienígena será outra barca a errar sozinha, um pequeno vaga-lume em
um canto da baía.
André alardeou passos para frente, a segura pelos braços, tateia com cautela e vai recobri-
la das partes impróprias como se restasse algo a respeitar, ou com nojo típico de criança que
se enoja da comida que tem no prato, e grunhiu. Alex chegou a pensar que fosse ânsia de
vômito, mas não será para tanto. A puseram sobre o parapeito, inicialmente debruçada pelas
pernas, assim adquirem mais equilíbrio e não ficam tropeçando, e eis um instante cordial de
um para o outro, é, que é como se olhassem e mais do que nunca fossem cúmplices, batizados
na mesma água e fartos uns dos outros, banhados na mesma maldição. Os seis se alinharão
frente ao parapeito e vão se debruçar como se a gravidade de um fim os chamasse, esse será
o papel da baía, o papel de ponto final, túnel escuro da inexistência, vau onde se despeja o que
não mais se quer lembrar e não se pode esquecer, a privada, a escuridão faz com que a água
apenas insinue sua existência incerta de querer ser, é como sou, pensa, incerto de querer mas

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previamente condenado. As mãos se retiram da morta como se algo ainda as prendesse, vem
o parto violento que é a liberdade, e liberdade é despojar-se de tudo.
E Martin empurrou o corpo, que responde tão docilmente que deve ser cair o que queria.
Mas a entidade do plástico uivava enquanto vai sacolejando, sei muito bem o que você fez,
meu rapaz, seu grande desgraçado. Enterra-me!, mas ao menos que toda a concepção do
mundo mude, que o ruim deixe de ser o mau e que as suas falsas justificativas tenham
respaldo absoluto no espírito da vida, no sangue que nos é tecido da veste com letras de
chamas no éter da verdade, na alma da gente, na inconsciência de todos nós, na nossa
tolerância, eu hei de acompanhá-lo na memória com a forma da culpa ou o que te seja pior,
talvez a consciência não precise do trabalho culpá-lo, quando isso já será o fetiche de todo
mundo. Ao menos que a culpa deixe de sê-la, e talvez nem assim, veja, nem assim, eu ainda
aqui estarei na minha decomposição. E os seis se debruçaram com receio de olhar.
A morta aos poucos vai engolida pelo escuro. Às vezes um pedaço da perna foge do saco
plástico, adornado ainda mais pelo escuro da baía, e por fim deixa a visão de todos nós. Alex
arrepiou-se de cima a baixo, e remetendo-se à história da lua-de-mel deve ser esse o orgasmo
final. Mentira, que o corpo ainda aparece uma vez mais, tão mais próximo das águas, e quando
assim forçou os olhos pôde vê-lo chocar-se contra o mar, não ouve som algum e as águas
pouco se abriram. Era o fim da sua aparição. Não havia fugido antes do porta-malas, mas
agora tinham se livrado. Não houve dificuldade maior que carregá-la, sente que pode fumar,
espreguiçar-se e dizer, uma boa noite, e com um boa noite, ou bom descanso, ou boa
eternidade, todos juntos olharam para baixo e por um tempo hão de fazer o luto da finada, que
assim como mereceu funeral, merece a tristeza dos últimos que saberão quem ela foi e como
deixou de dar tchau.
A ponte uniu muito mais que o concreto às águas frias, define muito mais que o segmento
de reta que percorre o corpo na sua queda, Alex olha para o lado, não muito, que não tem
coragem, apenas finge retorcer-se um pouquinho, e viu que ao menos por essa noite estarão
esses caras mais unidos que nunca. Naquele instante foram só aqueles seis, nada mais. É
besteira pensar que estariam unidos para a vida toda, mas ao menos por essa noite. O saco
afundou e sente ter esquecido algo muito importante dentro dele, perdeu-se um pouco e ainda
se pergunta, que será que era?, e talvez nunca entenda o que se esvaziou.
De longe, apreciou a cidade.
Bublitz ajeita uma vez mais o gorro sobre a cabeça, a iniciativa de realmente separar-se do
parapeito veio mesmo dele, talvez lhe seja mais fácil. Tic, que soa o relógio. É um barulho fraco
em meio a pensamentos fortes, ainda assim fez-se gritar. Que horas?, pergunta André,
condicionamento de um cão.
– Vinte para as três – Alex afasta a manga, olha o pulso e responde, odeia esse relógio, a
primeira coisa que fará quando voltar para casa será quebrá-lo ou lançá-lo pela janela.
– Que fizemos? – proclamou Martin cheio de tons proféticos.
– O preciso... – respondeu-lhe André, sem mais rodeios, em vez de dizer-lhe tudo o que
poderia. – Não há mais muito pra pensar, ao menos não quanto a isso.
– Não é porque é preciso que algo acontece – responde docemente.
– Vamos embora? – bocejou Bublitz.
– Já vamos – Alex.
– Como faremos de agora em diante? – Martin.
– Se está preocupado com o pacto...
– Há dúvidas quanto a isso?, por mim, ele se mantém, apesar de que só saberemos o que
realmente será quando o tempo disso chegar – André.
– Quer dizer se continuaremos ou não – Bublitz.
– É.
– Isso é o mais importante? – comentou Stern.
– O pacto traduz cumplicidade sobre o que já foi feito e não volta mais, mas não define um
futuro, isso é tudo – enredou-se Habib.
– Podemos continuar ou não. Ou alguns de nós podem desistir, outros não. Não sei.
– Isso definirá algo do que aconteceu hoje? – insistiu Martin.
– Está com medo? – retrucou Stern, e não foi uma ameaça.
– Estou. Mas a essa altura, não vejo mais por que estar inseguro.
– É, você faz bem.
– É de acordo que o que aconteceu hoje está encerrado? – Habib.
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– Mesmo entre nós?
– Deixar as coisas por dizer pode ser perigoso, pelo visto. É bom mesmo perguntar –
André.
– De acordo – Bublitz.
– Certo – Stern.
– Parem de adotar um pressuposto criminoso, isso sim. Pra mim é isso que está sendo
inferido. Era para sermos duros, mas vocês agem feito mártires. Danem-se – prosseguiu Alex,
e ria a fingir que tudo não passa de sarcasmo.
– Não estamos adotando nada imaginário, inventando nada. Cometemos um crime, é
crime porque dizem, não importa o que achamos a respeito disso – André.
– Eu acho que é uma grande merda – Bublitz.
– É verdade, não tem por que complicar isso – emendou-se Stern.
– Somos o erro, os errados, e acho que isso está bem claro – Habib. – Os julgamentos –
afunda-se nos bolsos – não partem de nós, o mundo vai pesar-nos conforme ele acha que
deve fazer, não como se dependesse de nós, não é como se pudéssemos enganar todos ou
como sonhássemos pro mundo o que quiséssemos.
– Não há o mundo aqui. Somente nós. Parece-me então que estivemos sonhando até
agora – Alex.
– Seria bom se as coisas fossem de uma leveza assim – Stern.
– Está de acordo que o que aconteceu hoje está encerrado, Alex? – André.
– Depende do que isso significa – sorri todo azedo.
– Significa que arcamos com nossas responsabilidades até aqui, o assunto está encerrado,
mas o porvir ainda não está resolvido. Todos de acordo?, pra você há algo definido?
– Isso – Bublitz.
Então deu a entender que pensava. E rende-se a acenar negativamente.
– Não, não há nada definido. Do futuro ninguém sabe, certo.
– De acordo, então. Está esfriando – Bublitz, e aquecia os braços.
– Vamos para o carro. Alex? – Habib.
– Finalmente, já se foi o que tinha de ser, acabou – Stern.
– Esse é o espírito da esperança – suspirou Martin.
– Sim, desculpe-me por qualquer coisa, certo? – Stern.
– Como eu disse, já acabou – Martin.
– Que não seja apenas o começo dessa história.
Criam-se esses movimentos lentos que se formam ao fim de enterro, quando todos já se
despedem do mausoléu que há pouco cultuavam, e não havendo mais lágrima a ser
derramada, nem criatividade às preces do padre, recolhem-se, assim a convencer-se de que o
defunto recente é só mais um do seu gênero, mais tarde talvez tomem um drinque, comam
canapés numa festa onde se fala baixinho pelos cantos. Ao menos a eles estão reservados
dias que virão.
Como em noite assombrosa, se recolheram ante os túmulos, e diante da burocracia
confusa das lápides jamais saberiam dos assuntos enterrados, jamais saberiam ao certo o que
as lápides cobrem, tampouco todos os corpos que aquela baía esconde ou ainda virá a
enterrar, então tudo certo, tudo ok. Enterrar fraquezas é mesmo um hábito recorrente. Para
Alex as fraquezas são mais que isso. Ele costuma complicá-las, costuma corrompê-las e as faz
parecer o que ele quer, cães ferozes injustiçados. E ouve enquanto isso os hálitos da gente
indo-e-vindo. Esses estavam próximos, não os amigos, os hálitos, ouve de alguns, não sabe
dizer quais, o tilintar cardíaco e deseja, sem definir como, que algum desses corações parasse,
é sadista nos momentos mais lúcidos, quer testar a taquicardia dos outros, está se testando o
tempo todo, que quando se cansa exige o mesmo espetáculo nos outros.
Aí foi como se voasse um toco de cigarro, feito aqueles que se atiram displicentemente
com a ponta do dedo. A gravidade, que é monstro metafísico, desumano mas natural, feito
tantas das coisas desumanas, se encarregaria de protagonizar a cena, assim lhe apagaria com
o atrito da barreira de ar, o tornaria consumido e descartável, uma boa sensação de se ter no
final da vida, seguro de que até o perigo de alguém lhe catar no chão inexiste, e então se
preocuparia com o banho eterno, o fundo de um poço está para chegar e igualá-lo na
desumanidade. Alex, mais uma vez as vozes intrusas vêm te assaltar. Era André quem te
esperava, a beira do carro. Paciente como uma mãe.

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Despediu-se da baía, não vá, ela responde, e desde então eles têm esse negócio da queda
pendente.
Ali no banco de trás voltam a se apertar uns com os outros, e arfou como quem enfim
dizendo, é, enfim seguro, enfim não mais precisando me sacudir, e já que a questão é
movimento, que puta cansaço, e então relaxou. Dessa vez relaxou de verdade. Quando o carro
partiu é notável que Bublitz receia em acelerar demais, que mal saiu das primeiras marchas.
Sua intenção talvez fosse evitar um ronco mais bruto de motor, receio que porventura ocasiona
nessa forte sensação de inércia, que quase não saem do lugar.
A escuridão vai sendo deixada para trás.
São três da manhã, esse detalhe se insere por um relógio se erguendo a brilhar de branco
no canto do asfalto na travessa com a rua, lembrou-se que o ódio pelo relógio de pulso tem de
aumentar e expiar sua fúria geral, assim ainda estão sobre a ponte, poste-por-poste deixada
para trás feito não houvesse nada mais a se deixar, amnésia que se desanuvia sem saber o
que fazia, deixando a tudo que puder, e somente depois o carro ultrapassará essas fronteiras e
ingressaria nessas avenidas da cidade.
O caminho não é tão desconhecido mas sentiu-se intimidado, que até o comum vem
oferecendo o inesperado, e as ruas vão aumentando cada vez mais, os edifícios despontam
como se antes não lá estivessem e querem fazer-se ameaçadores, todos escuros e como
vultos monstruosos, com uma ou outra luz acesa, de forma a parecer serem os olhos de uma
aranha enigmática, uma fera mitológica que o fiará, prenderá, e então virá a mordida das
parcas. Era uma ruazinha secundária qualquer, dessas que depois de muito andando, e depois
de muito andando, e depois de muito andando se chega a alguma avenida útil, mas assim ela
segue cercada por edifícios de todos os lados e por passagens que se perdem umas das
outras. As entranhas mal projetadas de qualquer bairro inútil. Estavam todos esses caras longe
de ser mais que transeuntes, e a simplicidade é esta noite é morada do horror, venha a nós o
vosso reino, rogou, e ele veio, e se preocupa de alguém os ver a comer essa hóstia, mas quem
os veria?, há um ou outro mendigo a cada esquina, os quais já se enredam em seus trapos
pelas marquises de comércios fechados, dormem amontoados unidos por força próxima da
simpatia. Aí o carro, como uma partícula das invisíveis vagabundeando por aí, de janelas
escuras e todas fechadas, faz essa sua curva, uma ou outra curva em duas ou três esquinas,
dando a continuidade de perder-se. O aspecto de Bublitz é o de quase falecer ao volante, mas
sem mais os conduz tão comumente que é melhor que não o note. Quem parece mesmo estar
dirigindo é André, quando se curva e parece definir as novas curvas, ora analisando as ruas à
frente, ora debruçando-se e a instruir Bublitz baseado no que ele acha melhor, ele quem faz as
escolhas, sussurra tanto que mais parece uma cantiga de ninar, todos os outros estavam à
parte e iam se embalando. – Vamos deixar na próxima esquina, se não tiver movimento –
André levantou a voz.
– Talvez seja melhor entrarmos ainda mais, não? – Bublitz.
– Aí somos nós quem nos perdemos, que nem conheço essas ruas – Stern.
– Saímos por aí e damos em qualquer lugar – André.
– Não, melhor que sigamos separados – disse Martin.
– Separados por quê?, qual o problema de sermos vistos juntos? – Bublitz.
– Não dar chances ao azar.
– Isso é o que mais temos feito.
– Mas ainda assim não vejo azar em irmos juntos – Bublitz.
– O azar gosta que dêem chances a ele.
– Vamos separados e pronto – disse André.
– Vocês falam demais – Habib.
Ouve o estalido de porta, a luz no teto de tão escura deve estar mesmo defeituosa, depois
tudo certo com o estalido de trancas do freio de mão. Posso dormir aqui dentro, diz-se, e
imagina ser acordado com o rosto pálido de algum guardinha curioso batendo-lhe na janela,
sou um cadáver, é o que diria, o cadáver que esqueceram de pôr no seu porta-malas, também
esqueceram de me despejar. Cola uma multa aí na frente, se quiser, mas me deixe descansar,
se não o próximo é você.
– Tudo bem? – perguntou Stern.
– Bem, bem – cantarolou. – Tem cigarros?
– Uns cinco – o homem sempre tende a guiar-se por números arredondados, perfeitos,
talvez isso reflita algum complexo ou insegurança interessante de ser estudado, isto é, por que
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não oito ou nove ao invés de dez?, pode ser esse um indício pequeno de obsessão não
catalogada, certo. – Pode ficar, eu nem quero.
Enquanto o rapaz ajeita-se para melhor enfiar a mão no fundo do bolso, André já se foi e
termina de fechar a sua porta, Bublitz já saíra, Martin rasteja no banco e Alex abriu a sua. Não
esqueçam de fechar as janelas, alguém diz, que ninguém deixaria o carro estacionado sem as
janelas fechadas e sem trancá-lo, e aqui se fará uma pausa para dizer que a imagem do maço
amassado de cigarros era divino, auto-suficiente, e outra pausa será feita para dizer que nunca
o homem em toda história se contentou com tão pouco, por um ou dois breves segundos
nenhum nirvana pareceu tão acessível ou tão precioso. Envolveu-lhe com os dedinhos, sim,
sim, o som do papel do maço amassado é especial entre todos, o lixo nojento que ele produz,
tudo isso, há coisas que se precisa da abstinência para conhecer, pensa, não confiaria minha
vida a alguém sem vícios, espero mesmo é nunca precisar confiá-la a ninguém, e sai do carro.
A rua escura é uma qualquer escolhida ao acaso e preenchida por velhices decrépitas
demais para atrair atenções ou denunciar alguém, ótimo, do outro lado da rua se acercam os
comércios sucateados, podem ser quitandas, padarias ou lojas de eletrônicos, todas fechadas
e caladas, da natureza de bom cúmplice. Manuseou a carteira, o cigarro até a boca, o isqueiro
até o cigarro, o protegeu maternalmente do vento mau, acendeu a sua cabeça e entrou em
estado letárgico. André o vigia com o canto de olhos sacais.
– Vou me livrar das chaves – disse Bublitz.
– Acho que tem um pouco de sangue aqui atrás – Habib.
– Bom – começa André –, se esse foi um encontro nosso ou qualquer coisa parecida com
uma reunião, se já chegamos em nosso destino é normal que vamos embora...
– O que é isso, uma falsidade pra se convencer de outra mentira? – Habib.
– É claro que é pra não levantar suspeitas.
– Não há ninguém por perto – Martin.
– Por subestimar as possibilidades é que estamos aqui – André.
– Ou de repente é por não dar a mínima – Alex.
– A vida é irônica – Habib.
– Vocês que não sabem usá-la – André.
– Não é mais comum que ela nos use? – disse Alex.
– Temos aí outra ironia – falou André, e se abraçou.
– Bublitz, aonde vai? – em tom cético Martin ergueu um pouco mais a voz.
A conversa encerrou-se quando são coagidos a voltar-se a Bublitz, o viam cruzando a
penumbra dos postes. E com essa iluminação realmente tísica, pensou Alex, é de se esperar
que o homem se sinta inspirado para o crime, é quase simbólico, como um cenário intencional,
ora, no escuro ninguém o olha nem pode apontar, foi ele, foi ele, somente resta a própria
consciência, a qual se pode pôr para dormir a socos ou com cantigas de ninar. E se ela teima
em acordar, geralmente um ganho de assalto já lhe compensou o eventual peso. É que a
consciência só atua a longo prazo, e a longo prazo se encontram caminhos para anestesiá-la.
Bublitz percebe ser requisitado, o suficiente para que olhasse de volta e desse de leve com o
ombro num sinal de que não era propriamente de descaso, sinal este que na verdade não se
fez muito claro, e só depois enfim mostrava o porquê de estar ali. Vou me livrar das chaves,
repetiu, na verdade confirmava, como se dissesse, ora, é óbvio o que estou fazendo, por acaso
não me ouviram quando falei?, e em seguida deu apenas mais dois passos a se distanciar.
Olhou ao redor discretamente, agora como se lhes dizendo que poucos seriam mais
precavidos que ele, o garoto idiota que sobe num parapeito para gritar, que agora constata que
não há movimento suspeito ou testemunhas por ali. Realizadas as preliminares, soltou as
chaves e deixa que a gravidade as puxe para o bueiro perto da calçada, do qual as grades
permitiram, após o choque breve, a passagem para o fim. Foi-se, não era mais uma
preocupação. Perderia-se no esgoto para sempre. O cigarro causava agradáveis alívios na
espinha e tremedeiras na mão quando vê Bublitz olhá-los a todos com um sorriso sarcástico e
vanglorioso na cara. Espertinho esse rapaz, pródigo garoto, esse na sua frente. Os demais
meio que apenas se encolhiam. André foi o único que abriu um pouco mais os braços, ele
quase sorriu.
– Sendo assim, até a próxima. E uma boa noite para todos.

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Teus cabelos, queira o que quiser, pode ter porque são teus, diz a legenda em forte cor
amarela sob a propaganda na parede lateral do ponto de ônibus. O que acompanha o letreiro é
uma ampla gravura toda colorida que esboça a resplandecente imagem de uma mulher dessas
bem-sucedidas, enfiadas num blazer, já que é claro que o retrato de uma dona-de-casa só
serve para as propagandas de sabão em pó ou eletrodomésticos. Para cabelos não, a garota-
propaganda tem de esbanjar independência, sucesso completo na vida afetiva e
principalmente, acima de tudo, na profissional. Ser bem-sucedida é a coisa mais importante,
nada na vida é mais bem-sucedido do que a modelo de cabelos ruivos cor-de-fogo, porque a
transformação que assistimos na modelo deve ser mesmo o produto à venda, e Alex só vai
pensar nisso porque em um instante ele se confundiu se é esse a mulher, mas parece ser
mesmo um condicionador para cabelos. Acontece que a moça seria alguma executiva, ou algo
do gênero, algo que represente esses sonhos de consumo dos dias de hoje, executiva que
castra seus homens, é vista gigante, andarilha da cidade, do ponto de vista de alguém inferior,
é como se você estivesse menor, portanto é alguém muito importante, sabe-se que era sobre-
humana, uma estrela ou até a maior celebridade da tevê. A seguem, ao seu redor, obviamente
arrebatados pela ardência que sua presença exala, homens e outras mulheres sem o cabelo
ou a vontade e o poder ideal a invejando, tombam para os lados os desesperados e, os menos
assustados, apontavam-na com mesquinharia, senão isso apenas pasmavam os boquiabertos,
porque é tudo muito absurdo e lindo demais. Eu nunca serei nem o rapaz engravatado que
rasteja aos pés dela, ele pensou. Eu nunca tive essa vontade posta a venda num
condicionador. É esse o maior enigma a ainda prevalecer, lá está ele, a legenda, o slogan da
propaganda, isto é, o que diabos aquilo realmente quer dizer?, eu não sei, ele se diz. Queira o
que quiser significa algo como, teu desejo é e indiscriminadamente será capaz de acontecer,
apenas importa o que você quiser, já que são teus os cabelos, atualmente nosso majestoso
mercado está acima de quaisquer restrições ou censuras, como as do bem e do mal, as
anulamos completamente, transcender assim é o que todo indivíduo deve querer, assim como
tu podes estar acima do bem e do mal se nos abraçar, somos os donos de tudo, compartilhe
você também de um pedaço do tudo, seja você um pedaço do tudo, a começar pelo cabelo.
Estão usando a liberdade para vender condicionadores. Estão mentindo ao dizer que poder é
barato.
A sua perspicácia o ilumina sobre a falsidade de todas as coisas. Sobre como as pessoas
saciam-se com migalhas.
Já pensava a respeito disso faz alguns minutos, sentado nas trevas não tinha ouvido até
agora um som sequer, fora os seus, que emite quando volta e meia não pretende, gargarejar
ou esfregadela, e perde-se com as coisas inúteis. E continua preferindo passar ali alguns
instantes, não saberia até quando. Aproveita os últimos tragos do cigarro que ainda tem na
boca e, ciente de que deve entreter a sua atenção o faz, vamos lá, ora se imaginando mariposa
que não desgruda os olhos da iluminação que mal irradia dos postes, ora se imagina onde
daria alguma das ruazinhas que entravam pelas calçadas dos becos, há em especial aquela
entrada toda coberta de sombra, onde corujas arrepiam-se umas as outras no cantarolar e
espíritos da sujeira vêm assombrar com uhs e mostrando suas garrinhas, uma longa ladeira
para o desconhecido, um desses terrenos férteis para a imaginação. Não demora até se
cansar.
Os ônibus só começam a passar próximos da manhã, pensou, mas de que importa se tiver
de esperar?, tinha pouca pressa, para não dizer que não tem nenhuma, e não será o cansaço
tão grave o suficiente para impedir-lhe de, agora, estando com os seus botões, colocar as
coisas no lugar, fazer aquilo que só nós mesmos podemos fazer por nós mesmos.
Como a gente não sobrevive por muito tempo, mas nossa criação o faz?, é absurdo,
pensou, é uma trapaça que no meu caso tornou-se irônica, com tudo isso de retorno à
escuridão. E também por isso parece lógico pensar que deus morreu há muito tempo, mas são
os homens seguintes que ainda dele recordam, até que um dia as coisas se entreolhem e se
digam na linguagem desconhecida de coisas que elas são, e então, o homem fez a luz, e do
concreto ou de madeira nós viemos, às farpas havemos de retornar. Então um vento mais frio o
força a se encolher no casaco.
Sabe quando se tem a impressão de ouvir alguma coisa, porém se acaba a ignorá-la por
causa de uma qualquer situação ridícula, por exemplo algum pensamento que nos deixa muito
distantes, mas logo após se dá conta que algo importante foi dito ou aconteceu, só que fomos
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displicentes, e agora corremos para voltar atrás?, ele teve há dois segundos atrás a impressão
de ouvir um movimento, logo em seguida ouviu notoriamente a guimba que largou ao chão
sendo espremida por um pé que não é seu. Quando olhou, André já está sentado no outro
banco do lado, ele olha para frente, suas mãos estão afundadas no bolso, mais um pouco e até
o ombro se esconde, e a sua cara não lhe quer dizer coisa alguma, cara de quem o olha o
nada de onde veio.
– Você esteve silencioso – foi André que falou, após longos instantes.
Vamos lá, o que ele pode responder?, acabamos de jogar fora o corpo de uma mulher, o
que esperava, que eu risse e batesse palmas?, gostaria que eu plantasse cambalhotas. Só
falta você querer que eu faça a retrospectiva dos melhores momentos de hoje, faça-me o favor.
Não, não, não precisava se entregar aos sarcasmos mais extremos, é inútil, não satisfaz, a
resposta mais óbvia, que não é nada, mas ainda uma resposta, é o calar de bocas já caladas,
acompanhado de mais nada.
– Preferiu não voltar pra casa? – continua André.
– Você também está aqui – respondeu.
– É que acho que fomos longe. Por via das dúvidas, ainda é cedo, não é?
– Cedo pra amanhã ou pra ontem?
– Não sei, a questão não é bem a hora, mas a história de termos ido longe...
– Essa propaganda de cabelo é terrível – comenta.
– Não tinha reparado – e se calam por instantes. André precisa prosseguir.
– E o trabalho, como anda?
Alex respondeu nem que sim nem que não com a cabeça.
– E aquela Carla, está normal? – um pouco de riso despretensioso.
– Ela é normal, não? – Alex toma o maço.
– Me arranja um? – André apontou, pela primeira vez se vira um pouco. – Ainda tem?
– Stern arrumou-me há pouco – quando sacou o maço não se demorou até estender-lhe.
– Isqueiro?
Alex curvou-se para atendê-lo.
– Eu tinha largado faz uns meses – André fuma.
– Faz falta.
– Faz.
– Me seguiu, André? – Alex meiosorriu.
– Não, não – respondeu tremulando. – Bem, é que há coincidências que provocamos, mas
não são bem coincidências cruciais, você entende. Vi você sair, segui o mesmo caminho, era
provável que o visse, caso contrário só viraria numa outra rua dessas e nos
desencontraríamos, ao que depois nos falaríamos...
– Entendi. Quem sabe coincidentemente uma viatura não aparece.
– Acha que Martin vai ficar bem? – vira-se um pouco.
– Acho que a pergunta vale pra todos...
– Ele parecia... não sei, com umas apreensões a mais.
– A psicologia fica contigo, estou cansado – e expele fumaça.
– Por que você voltou? – essa pergunta o fez imobilizar-se, mas nunca ninguém notará. É
que a agressividade muitas vezes não reside na intenção, mas na recepção, ou coisa assim.
Olha para frente, e assim dá de ombros, sabe, quando se os ergue e se sorri, como aquele
sujeito que por um instante busca todas as respostas aceitáveis ao enigma para ele imposto, o
inevitável é que só se depare com o que seria óbvio a qualquer um, um não sei, um não
importa, ou coisa que não se põe em palavra mas se põe nesse sorriso calmo, e André não
teve a sua resposta mas vai retribuir.
– Eu não sei – continuou André, abanando levemente a cabeça –, Júlia anda fazendo
perguntas, ela podia deixar de curiosidade, certo? – e ri-se um pouco. – Além disso, algumas
das outras coisas me preocupam, não sei – e coça a cabeça –, parece que inventamos um
infinito de coisas pequenas que agora não encontram outro afazer a não ser dar trabalho.
– Curiosa. Por quê? – Alex ergueu um pouco o queixo.
– Ela não é boba, ela extrai o que ela quer, gosta de ter controle de tudo e é paciente.
Escute, esconder dela o que aconteceu hoje não será possível por muito tempo.
– Como ela anda?
– Bem, bem.
Ambos arfaram um pouco. Devem entrar num transe comum.
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– Então, parece que veio mesmo com o objetivo de conversarmos – Alex virou-se, sorria.
– O que te faz pensar que essa conversa precise ser sobre algo desagradável?
– Tudo torna isso um pouco óbvio. Além do quê, quando eu te perguntei se me seguiu,
respondeu que depois nos falaríamos como se houvesse um assunto pendente.
– E não há pelo menos alguns?
– Talvez – Alex fez menção de levantar-se, veja só, rapaz, que poucas coisas realmente o
causam esse princípio de inquietude, um simples movimento, logo após sentou-se, acenando
de contrariedade. – Talvez não seja uma boa hora.
– Não existem boas horas – André falou num tom mais intimidador que o habitual, sinal de
que está lá certo das suas coisas, seja lá do que pretendia, em seguida se recolhe. – Quer ir
andando?
– Tanto faz – e pôs-se a levantar de vez. André meiosorri franzindo as covas da bochecha.
Quando eles começaram a andar não fizeram mais, durante os primeiros instantes, não
minutos, ou segundos, ou medidas maiores ou menores de tempo, instantes em que o tempo
marcado é de um difícil entendimento, que antes ele não passava, agora torna-se difícil de
engolir, e os dois não fizeram mais que aproveitar um passeio noturno improvisado e à custa
de nada, o despropósito, ele pensa, é rejuvenescedor, é uma escolha cheia de percalços. A
idéia das coisas serem tão grandes, o mundo, coisa assim, às vezes o deixa um pouco
constrangido de si mesmo e lhe resta o despropósito, o despropósito como forma de humildade
e desespero. Ele previamente se desculpa por estar vivendo e segue adiante.
Cruzada uma esquina, passada uma rua menorzinha e, não satisfeitos, entrando em outra
mais, beiram a pequena subida de uma rua com uns paralelepípedos, lugar sujo e vagabundo
e nojento, mas eles não estão ligando, que pouco após é nela que estão se metendo, por que
voltara?, Alex?, por que no passado retornou e foi bater na porta dos seus problemas?, é,
sente vergonha das primeiras respostas que lhe vêm, devem ser esquecidas e talvez um dia
ele mostre o porquê. É melhor adotar discursos mais fáceis. Era vergonhoso, enterrará a isso,
mas não pode se enganar. Ao que, se der sorte, o que ele repugna com o tempo se lhe tornará
incerto a si mesmo. Adia-se para perder a consistência e duvidar-se. Desviou do emaranhado
de lixo que se debruça para fora do balde virado, não há nada mais oportuno que supor ser o
serviço recente de algum vira-latas, quando viu André desperdiçando no chão quase metade
do fumo que ainda o restava. Com ele foi sempre devagar e pouco, as coisas agora vêm
mudando, então resolve testá-lo.
– Não quis falar comigo na frente dos outros.
– Seria muito difícil – André grunhiu.
– É uma idéia de que devamos parar?
Surte efeito, que prodígio ele tem para a ruindade. Notou, mas fingiu não fazê-lo, que
André brecou por um segundo seus passos, expressão que já lhe havia comprometido, mas
prosseguiu arrastando-se pela sujeira com uns tropeços normais e tudo em seu rosto deve ser
como antes.
– Eu não sei. Foi um susto, é difícil falar do que ainda está assustando...
– Coisa essa com que nem todos podem saber ou querer lidar.
– Mas não podem fugir.
– Vamos, André, sabe que não é assim. Não é questão de fuga, o que foi feito já se foi,
mas agora eles vão se preocupar mesmo é com outras coisas.
– Por exemplo?
– O que vão fazer depois, como vão se prevenir, se não correm um risco maior, se não
estão se expondo. Aí vão sentir um medo que não é do costume, não suportarão e talvez
voltem...
– Voltem?, voltem para onde?
– Atrás. Ao normal.
– Eu mesmo disse não haver nada determinado a partir de hoje – o olhar de André tornou-
se vago, vaga também se torna a confiança que tenta esboçar.
– E agora se arrepende?
– Eu não sei.
– Talvez tivesse sido melhor se posicionar – Alex.
– Não estariam prontos para isso – André.
– Falo quanto a você.
– Eu também não estaria.
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– E nesse momento, agora, está? – Alex.
– Eu não sei – André.
– Não sabe, mas deve imaginar o que quer. E imagina também que escolha eles farão –
Alex.
– Entregar alguém.
Olha só, e essa resposta, essa resposta é claro que ele não esperava, era a última entre as
coisas que fariam um sentido, a última que desejaria que fizesse, a sua corrente de raciocínio
desmoronou feito cartas mal empilhadas. Não sabe se foi sarcasmo, não, não poderia ser um
tão cruel, claramente destrutivo, tão amargo, amargo de um jeito ruim. Logo André não o faria,
não, André ele conhece. De qualquer forma, mesmo na melhor das hipóteses, que inocência
mórbida e desgraçada, é tudo o que ele consegue pensar, isso do sarcasmo que ofende, que
enfia o cigarro que mal acabou de fumar na ferida, dizendo que é para cauterizar, e ele implora
a que pare, e o outro apenas ri.
É melhor que olhe com espanto e desagrado, é. Com seu rosto todo sombrio se expressa
sem precisar falar.
– Sabe o que eu quero dizer – anuiu André, um tanto corretor, é verdade.
– Não, eu não sei – replicou, surpreso.
Era claro que o próprio André passou a pensar. Olhou a frente. No final da rua, uma
escada de mão dupla ascendendo lhes dá passagem para o logradouro, com sorte não teria o
mau cheiro dessa e nem lhes seria sufocante.
– Desculpe, foi apenas um pensamento que tive – retificou. – Tive a impressão de que
Martin te culpava.
– Não era nem disso que eu falava. Isso é idiota.
– Eu também acho, mas ainda assim foi a impressão que tive.
– Realmente não vejo por quê.
– É que você os encorajou.
– Você também o fez, tantos outros também.
– Eu não fiz como você. Eu só concordei. Feito eles. Eu só gostei, só consenti.
– Mas que merda – despreza –, não estão me seguindo, e não é pra que sigam.
– Podem fazê-lo quase sem querer.
– Seria uma idiotice – rosnou. – É contra tudo, todo o retorno à escuridão.
– Eu sei disso. Eu sempre soube. Ocorre que alguns preferem não saber. É mais cômodo.
– Eles ouvem muito mais os seus conselhos, nunca realmente pararam pra me ouvir, eu
também nunca os falei. Os fale você.
– É melhor que percebam por conta própria, é muito mais certo.
– Mas incitar coragem ainda não parece algo ruim de se fazer – e riu de escarninho.
– É que pode ser confundido com indução. Mas eu realmente não sei, foi apenas uma
idéia, uma impressão. Eu posso ter falado besteira.
– Não, não, há um pouco de coerência. E se essa realmente for uma idéia que tenha um
fundo de verdade, é mesmo melhor que tudo se acabe, não acha?
– Não dramatize, olha, Alex, que se houver um fundo de verdade, ainda assim pode ser
contornado...
– Acontece que essa noite pode ter marcado para sempre um se que foi mais longe do que
sua mera natureza de se. Contorna isso?
– Com o tempo isso se tornará uma questão sem sentido até pra nós. Isso significa não
fazer diferença, esquecer – limpou-se do suor da testa.
– O tempo não vence umas coisas. Contorna?
– Não vence o quê, por exemplo?
– Não ressuscita os mortos, nunca corrigiu os vivos. A tendência é que se repitam as
mesmas merdas.
– Não me leve tão a sério agora, do resto vamos tratar depois. Por favor. É que eu ainda
não estou pensando com muita lucidez.
– Está preocupado.
– É claro.
– Veja, se todos quiserem que acabe, ou somente aqueles que quiserem se desligar, é
inevitável que aconteça.
– Eu sei – soou contrariado, mas ao mesmo tempo cúmplice.
– E por que não me deixa dar um fim? – saúda as portas da súplica.
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– Você está conseguindo – André o olhou no fundo dos olhos, mas não pensemos que por
isso havia uma grande certeza em suas vindouras palavras, pelo contrário, a buscava no
instante em que as dizia. – Nós estamos conseguindo. Por que acabaria?
– Por quê? – espantou-se, por hora se calou, retém o susto. – Eu também tenho minhas
dúvidas – é alguém nobre o suficiente para admitir uma ou outra falha, ninguém é perfeito, mas
de repente a própria perfeição se constitui em às vezes ceder e ser um tantinho humilde.
– Qualquer um as tem, mas pense.
– Tenho pensado, mas tenho em minha frente uma coisa que não se contorna.
– O retorno à escuridão é mesmo perigoso, todos sempre soubemos, se não sequer seria
preciso que selássemos um acordo entre nós, correto?, perceba, essa é a hora que realmente
estamos nos dando conta disso – essas palavras parecem soar estranhas ao próprio, uma
ironia que ele mesmo geriu, a qual ele se submete.
Como se, partindo de si mesmo, e silenciando-se logo após, muito do que mobilizou essas
palavras fosse posto à risca e pouco depois se anulasse antes do fim, no fim se acabou.
Pela primeira vez dá-se conta do quanto essa situação lhe rouba o fôlego, feito viveiro de
passarinhos agonizantes, o que agoniza é o que alimenta sua vida, tomando-lhe o hábito dos
devaneios longínquos, rouba-lhe os sonhos fugitivos e a imaginação de causas e
eventualidades absurdas, é porque não precisa ir longe demais quando se pode viver o
absurdo que tem consigo. A iluminação da rua superior, a medida que surge parida da
madrugada, fere-lhe um pouco as vistas, assim ele saiu das trevas, deixou o espírito para trás
como cobra a trocar escamas.
– Talvez acabar seja mesmo melhor – André prosseguiu.
Alex não respondeu.
– Foi engraçado. Há uma semana, hum, acho que foi mesmo há uma semana, Bublitz
perguntou quando cumpriríamos a idéia de nos abrirmos de vez, foi isso que entendi, mas ele
não usou esse termo, acho que falou em recrutar mais membros. Não sei, não é exatamente
isso que importa, na hora eu não me importei, agora eu penso que foi algo esperançoso, algo
bonito, ainda que não tenha motivos pra isso – André.
– Para mim não há nada certo – Alex balbucia com a voz baixa.
– Apenas supõe a coisa mais cômoda.
– É isso.
Vão tendo com uns últimos degraus, a cúmplice monotonia de umas cigarras os saúda.
– E é realmente tarde – murmura André.
– Júlia vai implicar. Ela fica preocupada.
– Ela fica.
Alex sorri, revira as orbes de distração, feito ataque epiléptico.
– Ela talvez esteja saindo de férias... – André. – Acho que vão dar a ela uma credencial pra
que faça uma viagem, algo que não sei bem o quê. Condecoração, acho. Prêmio –
interessante.
– Bem, interessante.
– Verdade, dá pra renovar os ares, se é que eles andam pesados.
– É sempre bom – fuma e silencia.
– Deve ser.
– Tudo bem, é melhor que a gente vá.
– Sim – pigarreou seco. – Um cigarro depois de tanto tempo e a minha saúde já se foi.
– Por isso tem que se tornar hábito.
– Ainda bem que eu não acredito em tudo que você diz.
– Eu também agradeço por isso.
– Escute, está vendo ali?, conheço aquela esquina. Mais uns dois quarteirões e deve haver
um posto de gasolina sempre aberto, aí é quase certo que haja um ponto de táxi que vá pra tua
direção.
– Certo, obrigado. E você?
– Eu vou tomando o meu rumo. Não esquece de mandar um oi ao teu pessoal.
– Faça o mesmo em sua casa.
– Até mais – André se foi.
– André – Alex o chama, livra-se num cuspe do que era o fim da guimba.
– Diga – disse e só então se virou.
– Por mim continua. Boa noite a você.
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– Por mim também. Até.
Em segredo, por muitos instantes o olha partir, dali acompanha seus movimentos enquanto
se foi subindo a rua, tenta segui-lo com os pensamentos e fazê-los entrar nos seus, não pode
sem olhá-lo na cara. Desistiu, está incapacitado, e agora o andarilho se perde ao adentrar
numa calçada, num instante estava lá, assim, corcunda e debruçado sobre os bolsos, por fim
desapareceu, que ou tropeçou a um buraco ou entrou pela própria algibeira. Resta a impressão
de que nunca mais o verá, essa teria sido a mais inocente das despedidas, que o fim que pode
ser a morte ou pode ou pode fazer jus ao sentido vago de fim chegaria para si, se não chegaria
é que já o fez, engraçado, porque resta a sensação de que se vai dar essa noite, restará a
dúvida se não é que já se deu. Afasta a manga do pulso, que o relógio esteve esquecido e
agora que está sozinho é menos constrangedor se importar. Parou quando marcava vinte para
as três, tinha quebrado.
Um pouco depois de fechar a porta do táxi ele posicionou-se sobre a janela mais próxima,
pensou também que certamente limparia as vidraças com o pano da própria roupa se isso não
soa desesperado demais por uma visão. O magricelo que usa um boné antiquado está a
rodear o carro, não prestou até agora muita atenção naquele que vai conduzi-lo, o que faz
mesmo é passar a vista de relance na fachada dos outros táxis lá ao lado de fora, gosta da cor
amarela como quem não se exige mais critérios, mas detém mesmo a atenção sobre as
entradas da loja de conveniência do posto, tentou imaginar se as prostituas que se insinuam
usando de todo o jeitinho que as putas sabem conhecem num sotaque que passou a ser
dialeto ou na rebolada, sendo que faziam isso para um pequeno grupo de sujeitos acomodados
em cadeiras por ali, o que o faz pensar que são os outros motoristas a aguardar a sua vez na
fila do táxi, bem, tenta imaginar se seriam as mesmas putas que viu passarem enquanto esteve
no ponto do ônibus. Isso não explica nada, na verdade não faz a menor diferença, e talvez sem
porquê isso explique a expressão do magricela, é mesmo, por sinal acaba de assumir seus
postos e bater a porta, é que ele se deslocou de junto dos seus camaradas e se comporta
como tivesse sido sorteado para se poupar da diversão e ganhar um fardo. Um gordo lhe
encara enquanto abastece o seu carro. Por um instante temeu, que achou que ele possa ter
visto algo suspeito, poucas outras coisas justificam um olhar de estranhamento desses, mais
ou menos como de quem diz, será que já não te vi de algum lugar?, não?, uma ova!, e no final
das contas relaxa, é apenas mais um lhe sendo azedo.
– Hein, pra onde? – é a segunda vez que perguntava, curvando ao banco de trás.
Ao menos seja um pouco cordial, desgraçado, que se não obteve a resposta desejada
quando pretendeu foi por algum motivo de força maior, sua incompetência ou a minha
distração. Alex ergue as sobrancelhas com cara tranqüila e pensa o apocalipse. Instrui o
magrelo com poucas palavras, ele se vingará grunhindo com outras poucas sobre a satisfação
de ter que te levar. Ali, sozinho, no banco traseiro, junto a um desconhecido que de nada o
importa, da mesma forma ser a recíproca válida, Alex sentiu-se livre, está ilimitado,
inalcançável. É fascinante o sistema de um táxi, pensa bem, com a simples entrada em um
numa qualquer esquina, pois é certo que em cada esquina há pelo menos dez se estapeando
pela clientela, e em seguida com uma coordenada simples, um comando, tendo-se um pouco
de dinheiro, se é conduzido às entranhas mais perdidas da cidade, eis o que parece ser uma
observação óbvia e sem curiosidade que cative, mas isso é coisa que diria alguém que se
precisa das coisas mais gritantes para se chocar e esqueceu-se que a vida não é feita delas,
Alex se explica, é que é tudo muito mais simples, não se precisa se esforçar muito hoje em dia,
o mundo se move por você, chegamos nesse tempo onde coisas se movem e os homens as
vigiam. Às vezes nem é preciso dinheiro, pense só, se o sujeito que tomar o táxi for corajoso,
tiver bolas o suficiente para chegar ao destino e dizer, não, não lhe pagarei, nessa corrida toda
lhe fiz de imbecil, e aí?, vai fazer o quê?, ainda que as pessoas hoje em dia andem loucas,
andam excitadas e um tantinho precavidas do absurdo, que se é esperado não é mais assim
tão absurdo, então nunca se sabe se um taxista, ou motorista dos comuns, até, não ande com
um revólver no porta-luva ou escondido debaixo do banco, esperando por qualquer briga que
venha, uma buzina aqui, e no acolá já se levantaria, miolos pelo asfalto. Vou fazer o quê?, vou
fazer o que não é preciso, você me tira a paciência e eu te tiro o que posso, e então te matou.
Sentiu um gosto ruim na garganta, a coçou sonoramente.
Só percebeu há pouco tempo estar em movimento, julga a ignição ser a mais
desconfortável das horas da viagem e passou despercebida. Seus olhos desenharam as
formas da penumbra, que se atenha apenas ao banco do táxi e ao magrelo, ele que de vez em
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quando o bisbilhota do retrovisor. Cuide de sua vida, rapaz, não é a ocasião que lhe dá direito
de vigiar os outros, pensou, mas não era louco de mostrar que o tinha visto, esses sujeitos são
espertos e nunca sabe como podem reagir, é mesmo ele quem detém a sua vida nas mãos.
Está certo, é improvável imaginar que o ameaçaria, mas é como destratar o cozinheiro que o
alimenta, a mão que amamenta o berço, que mais cedo ou mais tarde estará se fazendo uma
refeição com um cuspe embutido, leite catarrado ou umas outras sortes das traquinagens da
vingança. A coisa aqui dentro pode se tornar pequena demais para nós dois. Basta que se bata
só um tanto, que jogue lá o táxi sobre o meio-fio, da maneira que é treinado para que ele bata
com a cabeça, só depois de vê-lo sangrar é que anunciaria o assalto. A gentileza, ou melhor, a
bondade em suas formas gerais de representação aumenta a credibilidade de qualquer um em
qualquer situação, e daí é que vem aquele sábio entendimento sobre as vantagens de ser bom,
que se o mau soubesse delas, seria bom quase o tempo todo exatamente por ser malvado.
Alex aderiu apenas à gentileza do silêncio, sem mais. O taxista ligou o rádio porque quer fazer
sua parte por um mundo sem paz, é o que pensa, que já raptou um tanto da minha. Dá um
desses programas noturnos, do outro lado há essa voz grave que deve anteceder uma
entrevista, mas até agora não consegue identificar ao certo do quê, está usando adjetivos
demais para anunciar alguém, e também fala sussurrado, tudo é sussurrado e difícil de se
levar adiante, isso talvez por respeito ao sono do ouvinte. Abre tanto a boca para bocejar que
estala, força a garganta inchada, e dói.
Está agora passando um túnel iluminado mas não se lhe via o outro lado. Recolhido em
suas roupas, caindo por sua própria gravidade, Alex criou o seu casulo, nele não há sedução
que possa persuadi-lo a se entregar, sentiu-se seguro, o anonimato o fortalece e estimula sua
fantasia e o faz sentir-se o que não é, não é que se ponha na pele de outros, mas que se
esqueça de seu ser, nada o revelaria, está com o passado lavado, só há um presente estranho,
mas não passado para aquele sujeito de colarinho alto com olhar pensativo para fora do vidro,
e que o passado é inegável é uma mentira, Alex se diz que o vai esquecer, porque no meu
rascunho de mim não há espaço para nada disso. Atualmente a voz das rádios falava sobre
música, e algum artista da periferia que está há anos nesse ramo e enfrentou muitos
preconceitos para chegar aonde chegou respondia-lhe ou que sim ou que não, não muito mais
que isso, às vezes uma risada, às vezes algumas repetições que sempre se enquadram, às
vezes devem mesmo dormir do outro lado, conversa que se realiza à beira da cama e seria
pretensão querer que faça sentido, e é esse o único som do planeta, o resto tornou-se mudo e
os abismos separaram o cá e o lá. E ele é a única existência que importa, como sempre tem
sido. O escuro traz lá suas miragens.
A nós?, soou uma voz na cabeça. A nós, confirmam tantas outras, uma por uma e tudo vai
se decompondo.
Viu que o carro saíra do túnel, com a mudança da luz se foram também as sombras da
confraternização, e indiferente a tudo a cidade contagia todos os cantos, e ele é como câncer a
vagar sozinho numa avenida, pequeno e oprimido, tudo muito ameaçador.
– Te entregar – o rosto de André agora lhe sorri, está longe de apenas testá-lo ou de
cogitar, se é que o faria, mas não, ele estava muito além, estava confirmando com toda a
inocência que poderia ter, senão com toda a indiferença e ironia, aquilo que mostrava ser
óbvio, aquilo que jamais deveria ter sido pensado. No final ele sorria.
Entregar alguém?, você?, primeiro, como?, depois por quê, ele te pergunta, André?, que
crime cometeu? Bom, temos de considerar que, dentro da conjuntura atual da ordem que nos
rege, crime é um conceito sabiamente construído sobre termos vagos exatamente para que
muitos maus comportamentos, em uma certa ocasião, possam aparentemente apontar para
uma das tantas infrações catalogadas, nem que seja apenas, e apenas uma delas, dessas
quais tantas não existem sem outro propósito a não ser legitimar um cabresto na vida do
cidadão honesto, afirmando também as normas mais importantes e mais decisivas à formação
das pessoas, como não matarás e não se apossarás da casa do vizinho, sem as quais a
própria ordem se questionaria e ruiria sem sua identidade mais básica. Então ele passa a mão
sobre a testa, inventou um tique nervoso que viesse a calhar e ficou a remexer na franja,
pensar dá asma, a música do rádio fala sobre mulher gostosa e dinheiro.
Pensou, e se me acusam de pensar que eu posso me apossar da casa do vizinho, ou de
quem quer que seja?, que eu disse que a casa do vizinho não devia ser dele, mas minha, e
que o vizinho se curvou diante de meu comando, de minha força atroz?, porque eu pude e eu
quis, combinação proibida, e se me acusam de no pensamento ter matado alguém?, não
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vivemos numa época, se disse, que o pensamento possa nos comprometer simplesmente por
ser concebido, correr na cabeça e martelá-la, mas, ainda assim, ele, o pensamento, enquanto
coisa que se remói por dentro e lhe acompanha, define sua inclusão ou sua exclusão em um
canto qualquer, é o que o põe a pertencer a algum lugar de fato, é o que o enquadra, sem que
precise fingir, quando o pensamento vibra e o lado de fora lhe sorri, é mais ou menos um diga-
me o que tu pensas e te direi com quem andarás. Costumam rotular pensamentos de
saudáveis e outros de doentios, e muitas vezes julgar se a pessoa está dentro ou fora dos
conformes é o bastante para ferir a sua alma para o resto da vida. E se ele transforma as suas
intenções perigosas em crime?, são quase todas dentre as que lhe ocorrem. Nesse mundo
cheio de coisas diversas, o pensamento não é nada, se se curva às normas e se mantém
silencioso. Será apenas um câncer para quem o tem.
Já não mais reconhece as ruas em que está, tampouco que caminhos tomou para chegar
até ali. Essa noite ele será saqueado e morto. É mesmo, não podia ser diferente, não poderia
esperar diferente de um taxista magrelo que volta e meia não pára de espreitá-lo no retrovisor,
a essa altura já terá feito lá todas as análises de que precisa, se duvidar até a adivinhação de
quanto dinheiro a vítima carrega na carteira está mais próxima da verdade do que ele que já
conferiu imagina. É uma cara de pilantra taciturno que nos quer enganar, quer sim, mas
também, olhe onde foi tomar a condução, num posto vinte e quatro horas largado, cujo
movimento é de putas, de supostos taxistas e de um gorducho que quer briga. O táxi faz uma
curva e cruzou uma nova esquina, retornando a uma rua bem iluminada. Não se importou
muito, a idéia de ser roubado era mesmo ridícula. Imaginou agora se Martin não teria deixado o
grupo e ido direto até uma delegacia de polícia, algo como ter caminhado sozinho por algumas
ruas, por coincidência visto um prédio de luzes acesas, ter ficado curioso e descoberto ser
exatamente uma delegacia, aí ele teria sido acometido de uma idéia inocente, apenas uma
imaginação vaga que pode ocorrer por nada, mas que no segundo posterior se tornaria mais
forte do que ele imaginou. Ele se livraria da culpa. Até podia imaginá-lo numa sala de poucas
mobílias, esperando alguma coisa que nem ele saberia ao certo o quê durante alguns minutos,
sabe como é, faz parte do processo de interrogatório.
Uma porta normal se abrirá logo depois, e dela viria andando um sujeito normal, por
dedução óbvia seria esse o detetive, mas mesmo de aparência ordinária ele teria um quê de
poder e de mistério, uma compenetração acima de todas as coisas rasas, uma influência que
aprendeu a exercer com o olhar, ou talento que lhe garantiu o posto. O seguindo viriam
aqueles seus dois capangas fardados para que ao interrogado acompanhasse a noção de que
estava em minoria. O detetive o olharia com expressão corriqueira, tinha de ser
mecanicamente, assim o sujeito saberá que não é maior do que qualquer outra burocracia, e
que seus atos, mesmo que tenham sido os mais imbecis, estuprar uma velha ou enterrar viva a
mãe, representam nada mais que um processo ínfimo e conhecido entre as coisas mais cruéis
já ensinadas pelos dias, das quais ele não tem ouvido da prece a metade. Mas aquele homem
sabe como lidar com qualquer coisa. Daria-lhe uma boa noite, ele responderia com ar formal. O
detetive se sentaria na cadeira vaga, certamente para ele reservada, e traria um ar de cansado,
estaria lhe dizendo nas entrelinhas, veja o que faz um sujeito honesto pelo seu serviço, pela
honra do serviço honesto, se submete incansavelmente sem deixar amortecer o raciocínio,
sem deixar que o embriague o mal estar que não só você, mas certamente eu também estou
sentindo. Mas não ligo, sou forte, vi muitas coisas. Não seria propriamente um homem sem
defeitos, mas um homem virtuoso, o que já intimida. Em seguida lhe ofereceria um cigarro, e
com isso estaria lhe dizendo, possivelmente você se igualaria a mim, que estou lhe fazendo
alguma concessão, não só a mim mas a todo homem que cumpre suas funções, como eu, para
isso é só preciso que coopere, para que sua estadia nessa delegacia não vá se repetir, para
que eu te deixe voltar a viver.
Martin lhe diria que não, afinal não fuma. Agradeceria com cordialidade. O detetive daria
com a cabeça para os lados e tornaria a colocar no bolso do casaco a metade da carteira de
cigarros que já tinha começado a sacar. A parte da pergunta se importa que eu fume? viria
depois, quando as perguntas naquela mesa tivessem sido levadas a um nível de tensão que
beirem a coerção. Então, fala o detetive, disse que houve um assassinato. – Eu disse. – De
que forma se deu? – Sou cúmplice dele. – Isso é mau, melhor contar-me tudo o que sabe. –
Doutor, acho que não acreditaria. – Só precisa me ser convincente. – Talvez o próprio
assassino possa lhe ser o que o senhor deseja. – Então sabe quem foi. – É claro.

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Então o detetive se curvaria sobre a mesa, abaixaria um pouco dos óculos e, com um tom
que ninguém sensato ousa contrariar, falaria diga-me. Alex abriu os olhos, que cochilara por
alguns segundos. Já era coisa de se esperar, mas então condenou o desgraçado sono que lhe
havia questionado a sensação de liberdade, e se perguntou se não haveria um carro seguindo-
lhe o táxi, mesmo que as ruas estivessem vazias pode estar sendo espionado, podia estar
sendo perseguido há dias, senão, ainda mais absurdo, absurdo que passou a sê-lo para si
mesmo, o taxista lhe seria esse espião, que não, ele não esteve naquele ponto por acaso, viu
como ele foi eleito pelos outros, foi selecionado como mais apto para a missão, talvez todos
tivessem previsto sua chegada desde sempre, desde que souberam ser a chance de emboscá-
lo. Acha que a sua paranóia está ainda na fase inicial.
Após incontáveis ruas e umas certas curvas que não se vale à pena enumerá-las todas,
apenas viajando nessa generalidade porque Alex faz questão de mostrar como preenche os
seus hiatos, ele deu-se conta de que começa a reconhecer onde está, finalmente, logo deve
estar chegando em casa. Tem essa esperança transcendente de sentir-se mais à vontade, é
esse um prêmio que não conquistará e muito menos lhe será sorteado. Lembra-se onde está,
uma certa praça com chafariz de querubins, escura e de árvores sinistras, ele a conhece,
constantemente vê esse lugar porque já não está longe de onde deve chegar, o traz um clima
familiar, é um clima de constância e o clima familiar o faz lembrar-se de Carla. Essa lhe foi uma
praça especial, especial porque foi uma praça de exceções. Com algumas pessoas é raro ter
horas de exceções. Era uma memória carinhosa, Carla é uma amiga com quem não se podia
contar, também porque é muito constante e isso não o cativa, mas lhe seria sempre sincera, ou
quase sempre, que já é de se relevar. A sinceridade é uma coisa interessante.
– Dirigir a essa hora é melhor – falou o taxista –, é muito sossegado.
– Sim.
– O senhor sabe me orientar para onde vai a partir daqui?
– Certo.
Com algumas poucas instruções, lacônico mesmo, vai aqui, acolá, às vezes só bastava
mover o braço, lhe ordenou por uma travessa ou outra, por um segundo chegou a ter um
branco sobre o nome da rua onde mora, a confundiu com outra qualquer das tantas. Subiu-se
uma ladeirinha, as fachadas sejam comerciais ou residenciais eram mais antigas nessa área,
até o táxi ir diminuindo sua corrida entre vias razoavelmente pequenas e com uma quantidade
berrante de carros estacionados. Ali na frente, naquele muro com grades, orientou, e pouco
depois de algumas manobras estão parando. Alex abre um pouco da sua porta, mais uma vez
o estalido lhe é ouvido, alguns sons o traumatizam, em seguida enfiou a mão no fundo de seu
bolso selecionando uma nota inteira um pouco maior que a quantidade marcada em vermelha
no taxímetro, para ajudar-lhe com isso é claro que o magrela não deixa de acender a luz do
teto.
– Tô sem troco. Não tem o valor certo? – disse-lhe ao pegar o dinheiro.
– Conveniente – e Alex abanou com as mãos de uma forma qualquer. Já saía do carro.
Os faróis se distanciaram só quando estava na calçada. Pergunta-se como quem
desconversa um assunto, nesse caso desconversa consigo mesmo, se não chove essa noite, e
essa, agora, que trabalho irritante esse o de catar as chaves, se as coisas ficassem abertas
aos ladrões tudo seria mais simples, menos preocupante, mais ainda se todos fôssemos
ladrões. As chaves estão emboladas em notas fiscais.
Eis apenas um corredor que os condôminos mantêm com a lâmpada do teto queimada,
problemas da fiação, é que era um prédio antigo, dizem, mas ele pensa que a verdade é outra,
no caso que as pessoas daí não gostam é dos peraltas noturnos, dos corujas, não gostavam é
que moradores chegassem tarde da farra, já que durante o dia aquele corredor que só serve de
passagem e por armazenar as caixas de correio dos moradores estaria iluminado com a luz
jorrante do pátio, dane-se a lâmpada. Não vai olhar se tem cartas, primeiro por estar escuro,
depois porque isso é afazer de Carla.
O pátio ali a frente é a céu aberto porém murado ao redor, mais a frente havia a barreira
natural do edifício, este que tem seus quatro andares. Alex se perguntava se não havia sido
desperdiçado o espaço para cinco, enfim, e os arredores eram protegidos por divisas cobertas
por trepadeiras espinhosas, as quais foram ocasionadas pela vontade de algum antigo síndico
idiota, que deve ter desejado fazer daquele lugar um jardim. Além dos muros sabia-se haver
becos e entulhos. No centro do pátio paira essa maltratada fonte circular que quando está
cheia é de água suja e limo. Havia também um ou outro banquinho, e ali, é claro, havia dessas
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lamparinas que os iluminam o suficiente, postos com malícia a fim de evitar os malandros que
vêm durante a noite, para que, já pegos pela armadilha do corredor escuro e tropeçando por aí,
ainda não venham tentar o luxo de procurar alguma comodidade excessiva nos bancos, se é
que ficou clara a idéia, que trazem suas mocinhas ou seus namorados, ou pulam os muros
para ter-se gosto do proibido.
Alex adentra pelo segundo hall que o conduz para as escadas que o levariam para os
andares que eram em forma de sacadas que ainda assim o levariam para a porta da então sua
casa, terceiro andar, lances de escada, procurar chaves, facilidade caso fôssemos ladrões.
Chiclete. Em que bolso colocou, hein?, achou. É depois das tentativas que azedam o humor
que agora encontrava a fechadura, um, dois empurrões, no terceira acaba por produzir um
estalido forte demais ao girar a chave, e é certo que o barulho o força a parar por instantes,
sabe como é, vai que se acaba com um estardalhaço de vez. Merda, ele pensou, mordeu os
próprios lábios, mas sabe quando temos aquela impressão sorrateira de que nosso
pensamento por si só não é irônico o suficiente?, não, é claro que não, ele sentiu algo lhe
gelando na espinha, será um aviso. Não tardou mais que um instante para ouvir os latidos
assustados do cão do vizinho, besta de sono leve, amaldiçoou virando os olhos e viu tudo
ainda escuro.
O corredor para ambos os lados permanece insosso e o latido continuou. Merda, pensou
uma vez mais, e pensa também que deve evitar conjurar o que lhe pode ser um poder mental
que até hoje não conheceu, lhe virá provavelmente acionado com o verbo, e teve a certeza que
lhe faltava quando no corredor mais adiante, pode-se vê-lo bem da frente, desse escuro uma
claridade brotou, uma janela se acendeu. Acalme-se, não há problema que te vejam, por mais
que tenham sido supostas algumas tendências mais moralistas desses antigos porém
desconhecidos condôminos, não será açoitado no pátio por chegar de madrugada, e diante de
qualquer complicação posterior pode comentar com um pouco de riso e do sarcasmo comum
aos vizinhos prepotentes, veja que é quase dia.
Mas a verdade é que se enreda num profundo receio, qualquer descuido pode produzir
aquela exata circunstância desconhecida que ignorava e que o fará escorregar, que conterá
algum detalhe capaz de nos comprometer, como a polícia a rastrear dna de um fio de cabelo
que não se imaginava ter deixado na traseira de um carro, deus queira que isso não tenha
acontecido, mas a paranóia parece ser boa resposta para um mundo que está a vigiar seus
descuidos, para todos efeitos é melhor se precaver. A mão segurou firme a maçaneta, a outra
pressionou ainda mais a chave, a girou uma, duas, enfim, três, ela girou liberando o tranco da
porta, ele não tardou em abri-la e meter-se adentro do apartamento, presumiu que o latido do
cão não disporia das suas coordenadas completas anunciando o número da porta, se tivesse
sido rápido o suficiente ninguém teria vindo à janela para conhecer a razão do alarme. Uma
vez dentro já não se preocupa tanto, é que ver do lado de fora uma porta semi-aberta já é
quase impossível, pode pôr o pânico para dormir. Esqueça-se de todo o resto, é quase
despertar de um pesadelo estar em casa. Jogou-se com as costas na parede, ainda nas trevas
deixou-se suspirar, quando toca o interruptor acha mesmo que não é tão boa idéia. Passa o
corredor, cuidou de cada passo feito filhos a ninar, toca a maçaneta do quarto, a abriu, sabia
que essa porta costumava ranger, então o fez com a maior lentidão que o cuidado permitiu.
Pôs a cabeça, e só a cabeça, por dentro do escuro, piscou algumas vezes até que se
acostumasse à claridade, ou falta dela, do ambiente.
Ótimo, começa a ver a silhueta da cama, se debruçou para olhar seus preenchimentos,
mas inicialmente só identificou colchas e lençóis sobrepostos e desarrumadinhos do jeito que
ficam ao ter gente os usando, fazendo seu ninho na hora de dormir, e ouve o rosnar contínuo
do ar-condicionado, seus sopros lhe gelaram a pele mesmo por sob o agasalho. Só então pôde
ver que um braço se punha para fora das colchas, é um braço pálido, essa não, pensa ser a
vingança de cadáver, é até mesmo um bom título para filme trash ou livro, se pergunta se não
regressou do mar para assombrá-lo. Fechou um pouco da porta, imagina só, o cadáver logo na
cama, engraçado.
Acredita que o corpo tenha notado sua presença, ele dá suas remexidas, é que às vezes
não está preocupado ou prestando atenção em algo mais importante do que as próprias coisas
da distração, nesse caso as distrações dos próprios sonhos que está tendo, mas acaba sendo
sensível a alguma presença corpórea que se aproxima, sentidos extras de quem nota o espaço
se alterando sem aviso, a pele é sensível a mudanças e não gosta do que não lhe peça
licença, dormir é odiar sustos. E lá vai o rosto feminino arquear-se delicado sobre o travesseiro,
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e acordada ou não o abraçará sobre o rosto. A olhou por alguns segundos até tranqüilizar-se
de que dormia, é bonita quando dorme. A deixará no sono que sonham os inocentes, recosta a
porta levemente como veio.
Caminhou pela casa se desfazendo de suas vestes e atirando-as pelo caminho como se
desfazendo de todo o peso da humanidade, se não muito o peso sobre suas costas e o aperto
no estômago, caiu assim de costas no sofá, a verdade é que custou algum tempo até que seus
músculos relaxassem e algumas imagens que teimam em lhe aparecer saídas das sombras
fossem definitivamente embora, mas foi após essas que olhou para o teto e suspirou, as mãos
sobre o peito e os pés à vontade, e pensou, hoje você soube o que é poder, hoje você é um
homem livre.

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Girou mais uma vez a xícara de café, a forte impressão que tinha é a de que está insípido,
ou, como se é dito no popular, com o gosto de meia. É incrível o senso sinestésico dessa
gente, é tudo o que pôde pensar, a não ser que parta do princípio que o inventor do ditado
tenha provado a sua meia mais velha ou a de outro, não se pode saber que melindres da vida
teriam ocasionado coisa assim, e por uma coincidência dos fatos o sorteado inventor ainda
tenha vindo a engolir um café com gosto parecido. No momento tem outros dilemas mais
importantes além do que recém surgiu, dilema desses que não se restringem ao gosto do café,
talvez não se restrinja ao gosto de coisa alguma, vai ver é sobre o desgosto, que é a mesma
coisa dos avessos, mas o dilema o pergunta se ele deve ou não erguer o braço e gritar algo
como você!, garçonete desgraçada, que tipo de café estão servindo ainda no começo do dia?,
não, não questione, não importa que já passa da hora do almoço, esse tipo de discussão me
dá nojo e esses são restos da noite anterior, como se essa espelunca sequer abrisse durante a
madrugada, chama o dono que eu vou fingir que o conheço, vai, vai, não pense que isso vai
ficar bom para você, mocinha, vou te descontar todas as minhas dores, e chegue mais perto
daqui que eu sou míope, preciso ler o nome do crachá. Mas a garçonete é dessas simpáticas,
demais para que ele seja rude, um desânimo qualquer não o permite. Ao invés disso, estica o
braço sobre a acolchoada cabeceira do banco, o qual termina dando com a janela, que é de
um vidro largo e comprimido, através dele olha o estacionamento do lado de fora, e se perde
sem fins ou paralelos, o drama atual cai para que venha a trama de um antigo, para que caiam
e voltem outros muito parecidos, é tudo que o resta, círculo não dos mais felizes. Está um
pouco curvado sobre si mesmo, o tronco estava comprimido, lhe havia um tanto de corcunda
mal-encarado, não queria ele mesmo imaginar as olheiras, só realçariam a aparência geral,
quer ela menos ainda imaginar.
Pensa se as coisas não estão com uma aparência diferente da que está acostumado, se
não seria excesso de azia, do trauma, ou desacostumou-se mesmo com a ordem das coisas, o
lugar de porto-seguro que antes nelas havia não há mais, a segurança de se ter um futuro, seja
verdade ou miragem, mastigou-se, passamos a vida inteira tentando driblar o acaso, e é nele
que nos sentimos de fato. É apenas a tarde, seus olhos pensam terem despertencido a tudo,
mas tenha calma, que ainda não é hora. Falando em olhos. Os frisa bem para poder enxergar
o lado de fora, vê-lo dali é sobretudo aconchegante, aprazível, as distâncias são calmas e não
pesam, uma vez mais está seguro, tenta identificar no além o frio que não sentia, mas enfim,
percebe lá adiante, na rua, a passagem freqüente desses carros, assim como o caminho dos
casuais transeuntes abraçados em si mesmos pelas calçadas, aqui está a salvo de tudo que os
atinge. O inverno vem chegando um pouco mais frio que os de antes. Via um estacionamento
de número médio de vagas divisar onde ele estava com a rua, cheio de folhas secas, as folhas
secas e murchas como seu humor. O movimento hoje não é normal, feito todo mundo tivesse
esquecido de acordar. Mas tenha lá mais tato, que também não é normal que fique encarando
as coisas como se estivesse a esperar ou temer alguma coisa vinda delas, sabe-se lá o quê,
está parecendo um bruto, no mais um bobo, um trapalhão, como com o último sujeito que
entrou agora pouco, esse mesmo que atualmente está a fazer os seus pedidos ali adiante no
balcão, bem, assim que ele entrou você lançou-lhe um involuntário olhar de decepção, um
olhar rígido como se desgostasse profundamente de vê-lo, não o conhece, nunca o viu antes e
nem supõe se um dia há de topar-se com o mesmo cara numa rua qualquer, mas não
interessa, é como se dissesse, mas o que é isso?, saia, nem devia ter entrado, e isso pode
significar muitas coisas, que das causas que temos os outros só enxergam as migalhinhas. O
que não passaria de um gesto antipático, isto é, se o sujeito não o tivesse encarado de volta e
fosse consideravelmente maior que ele, desses grandes que não gostam de critérios nem de
ser causa de frustração, querem um bom pretexto para amassar narizes, ele sabe disso, o que
o faz por um instante quase gaguejar uma sonora desculpa que não saiu e quase enfiar o rosto
num prato, se um estivesse servido, cara no molho a bolonhesa, mas resta apenas fingir que
foi o acaso, desses quando nos sentimos vivos de fato e que também vêm para nos flagrar e
amassar narizes. Como aqui se presume, para a sorte e alívio de todos nós, o sujeito passa
longe do seu canto, vai entre as mesas cuidar dos próprios assuntos, ufa. Lá está também a
moça de meia-idade que talvez desfrute de seu horário de almoço, as roupas são típicas de
quem trabalha, também há uns sujeitos deslocados que se ilham cada qual com seu silêncio ao
longo do balcão, um ou outro dispõe de companhia para conversa, há mais gente separada
que junta em nossa era, há também o grupo dos senhores de idade, eles parecem se
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identificar com a velhice alheia, como se fosse isso algo em comum na gente a ponto de fazê-
los se sentarem juntos, olá, bom dia, nunca o vi, que tal um café?, e volta e meia uns grupos de
dois ou três jovens se reúnem para tomar um lanche rápido enquanto falam e assistiam à
televisão.
Pensado nessa gente mais nova, Alex se entretém com a simpática e bonitinha presença de
uma adolescente tão compenetrada, assistia alguma coisa na televisão enquanto toma um suco
de cor vermelha, é tão bonitinha, a garota, usava um casaco roxo que desenha seus peitinhos,
que graça, deve estar mesmo com frio, usa calças apertadas. Imagens assim o seduziam, mas a
verdade é que suporta poucos adolescentes, principalmente porque são cheios de ânimo e, além
disso, para ilustrar seu desgosto com mais lucidez seria necessário apenas imaginar o início de
uma conversa com a garota. Adolescentes ou vêm com vozes estridentes, ou rindo de tudo, ou
falando besteiras sobre tudo que não precisa ser dito, têm algum preconceito com o silêncio, ou
no máximo e pior caso se insinuam como se o mundo fosse sexual, por exemplo, como se todo
homem que lhe vier falar tenha o objetivo final da vida de comê-la, de repente é até essa uma
verdade, mas não é apenas por mentiras que acabam por cometer gafes, é delas que está a
tratar. Na verdade só pensa nessas últimas coisas por ter olhado pouco adiante e, seguindo o
olhar pelo balcão, veria a mocinha loira que mal pode terminar o seu chá ou suco ou o que não
interessa sem receber sorrisos de um rapaz engravatado, ele se debruça sobre o balcão e a
persegue, um sujeito já com sua idade cansada, os dentes amarelos de café. Enfim, um dia
aprenderás, meu caro amigo engravatado, que não se foge do tempo com mais perda dele.
Casais preferem as mesas do bar, que casais são mais discretos, ao menos os que ainda
precisam conquistar um ao outro ou já tanto se fizeram cansar que resta o luto de olharem um
para o rosto do outro, e mais alguns do lado de cá, próximos às janelas, como ele, e percebia
que estão quase sempre a dois os que assim se sentam, outros do lado de lá, próximos ao
balcão, é que há essa divisória que é como um pequeno corredor que guia quem vem da
entrada, sempre que o olha lembra-se de algo próximo a um corredor onde passariam os bois
indo ao matadouro. Havia alguns outros espalhados que não mereciam atenção, a situação geral
já foi ilustrada, ele pode fechar os olhos e imaginar onde está, desempenho mais farto que a
vocação de reparar. Volta os olhos para si mesmo, resolve relaxar, então pensa que num mundo
onde em tudo se discerne uma identidade, não se há de fato identidade alguma, o ser não é
coisa feita para se compreender, esse departamento é das aparências, e não relaxou.
Fez que ia olhar a televisão mas está longe demais, que só pode ver a imagem de uma
mulher que falava algumas coisas, deduziu ser o noticiário, mas não pôde ouvi-la e não é que
realmente queira. Viu um rapaz erguer-se no balcão, se precipitar através de alguma das
cadeiras, passar pelo corredor dos bois. Seguiria pela vidraça os movimentos do sujeito, se
alguém o perguntasse por que fazer isso ele daria de ombros, só por faltar algo mais
interessante. Parece que a vida é generosa consigo porque não o pára de distrair, antes o tédio
ao cansaço, que são coisas bem distintas, é quando olha para fora e se surpreende com o fino
chuvisco que agora cai, fraco e desesperançoso. Deu com a água escorrendo modestamente
pelo vidro e perguntou-se quando teria começado, se está assim tão alienado. Todas as coisas
vêm com atraso, também é assim o som da chuva. As silhuetas de mais pessoas entraram,
entende pelo tilintar do sino, mas preferiu deixá-las cada qual sem intrusões, não por respeito
mas porque se diz, ai, que preguiça. A verdade é que sente um cansaço milenar se apossando
de cada milímetro da sua alma. Reclina-se sobre o banco, espreguiça as vértebras, é aí que dá
com a garçonete de cabelos vermelhos a se aproximar, ela é treinada para assaltar a ocasião
perfeita. É marota, mas destila esse sarcasmo, diga-se entre os parênteses que ela tem este
desagradável hábito de sempre interrompê-lo, poderia pensar, como chega a fazer outras vezes,
e enfim agora, que é uma bisbilhoteira, e sua terapia atual será odiá-la. Alex faz questão de
sorrir-lhe, já é um grande avanço, e acena negativamente, nem venha, não se aproxime. Ela
sorri de volta como quem diz, fazer o quê?, balançou os cabelos meio presos e deu a volta pelas
mesas para um outro rumo, mas não se acostume, que eu voltarei para te arruinar.
A sineta apitou. Alguém vem da rua. Mas olha e deve haver alguma coisa errada. Sabe
quando alguma coisa é inconfundível, quando tem-se a forte impressão de que a própria
impressão que se sente sobre um algo a vir aí não é meramente casual?, então. Dessa forma
alguém surge a caminhar pelo corredor, a forte impressão a que se refere é essa forma de
caminhar ímpar que viu, e reconhece. O cabelo preto um pouco molhado de chuva também deve
ser inconfundível, mas sobretudo o caminhar, há traços definitivos em cada um. Certo, e ele
pensa em se esconder, mas saltar para debaixo da mesa fará com que prontamente seja visto,
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há de ser mais indiscreto do que se ficar quieto. Se ao menos tivesse aí uma revista para colocar
em frente ao rosto e ter o cuidado de não a estar fingindo que lê quando está de ponta-cabeça.
Bem, nada adiantará, ela sabe que você está aí porque tem essa astúcia das que não se
subestimam. Ela já vinha se aproximando, não demorará muito até que pare exatamente em
frente a você. Os olhos estão negros, não é que um dia tenham deixado de ser, é que agora há
esse cacoete de inquisição das sobrancelhas, mas não faz mal, tudo em paz, tudo certo, pode
lidar bem com isso, que não é um monstro que o apunhale com tanto descuido. E pensando em
seu próprio descuido, ele tem pensado também que ela vir até ele não chega a ser ruim. Ergue
os olhos e a saúda.
– Olá, Júlia.
– O que aconteceu?
Vamos com mais calma. Sabe que ela quer lhe puxar para baixo, arriar-lhe o preparo, as
calças, já esperava por algo muito parecido, ela move o canto das bochechas, espera por uma
resposta e dá a entender que a quer de imediato. Alex suspira e a xinga em segredo de
instrumento talentoso de persuasão, não é assim ofensa das maiores, mas você não é suficiente,
minha cara, para ele, que forçou-se a entender sobre cada sinal, desde o mais minucioso até o
que pode vir a ser teu grito beirando a histeria. Caso ela venha a se descabelar, o que não virá a
acontecer, é que ela está preocupada, mas não segura de poder se expor a tanto, se ele é
confiável para receber sua cara branca e deslavada se agoniando, e se deseja colher alguma
informação, ela precisa, antes de tudo, preparar o terreno para recebê-la, saber do que se trata
e, não menos importante, saber se há algo a se saber.
– Oi? – ele sorri e levanta os ombros, assim se fará de surpreso, esse oi diz que ele foi pego
desprevenido, não deixa de contar a verdade, é que alguns conseguem raciocinar rapidamente o
suficiente para fingirem que foram pegos desprevenidos mesmo tendo realmente sido pegos
desprevenidos, e então pode alguém perguntar, qual é a diferença entre ser espontâneo e fingir
o que de fato se é?, fingir que sente o que de fato sente é aí um paradoxo que se perdoa, mas é
bem claro que na verdade há lá uma grande diferença, que fingir que se usa uma máscara
aplaca o ânimo, o faz pensar que está no controle, quando não se está ao estar nu e só.
– Alex – ela erguia as sobrancelhas, diz com isso saber mais do que parece mostrar, está
tentando intimidá-lo, mas ele concluía que, por sua vinda até aqui, também pelo tom de bispo a
querer queimar bruxa, ela não pode saber nada, mas te fará escorregar.
– Olá, Júlia.
Júlia ainda olha desconfiada, mas sentou-se ao outro lado da mesa, escorregou pelo banco
acolchoado até se lhe pôr defronte, é como agora ele a encontra, e esses segundos severos a
se passar devem anteceder algo muito importante.
– Eu não te esperava aqui – ele continuou.
– E nem devia estar, tinha que trabalhar.
– Parece mesmo que há algo de errado, então o que foi? – um pouco de sorriso, está se
arriscando.
– Vai me dizer que não sabe de nada? – ela é dura.
– Bem, eu posso saber de muitas coisas, é melhor ser menos vaga, depende do nada a que
você se refere, de algum nada eu devo saber... – por alguns instantes sente o nervosismo lhe
enchendo, teve que engolir uma boa quantidade de café para o alívio, e pensou se não teria sido
percebido por ela, com alguma sorte não.
– Um nada que deixaria André estranho depois de ter estado com vocês.
– Talvez ele apenas tenha ficado um pouco atordoado com alguma coisa, você sabe, são os
encontros. Eles são assim. Bom, não é razão pra você se preocupar, vir aqui, tudo mais.
– Bem, talvez – depois disso ela olha para fora.
– Está bonita com o cabelo preso – Alex fala e gesticula desenhando um cabelo.
E ela voltou-lhe a cabeça de súbito, parece não ser aquele um comentário que esperava,
não parece sequer ser verdade, está longe de parecer uma opinião corriqueira, dessas que
falamos por acaso, está longe de parecer um elogio pelo acaso, então ele percebeu e
meiosorriu. A achava bonita também quando fica séria, estava sendo honesto. O rosto fino ficava
praticamente todo simétrico, alinhado, quase uma naja calma, havia uma forma especial na
boca, tem também as sardas que a tornariam sempre menos adulta do que quer parecer.
– Obrigada, Alex – depois debruçou os olhos pela mesa e insinua-se perdida. – Acho que fiz
drama onde não devia, mas bom, de qualquer modo supus que você estaria aqui. Eu não perdi a
viagem.
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– Estou lisonjeado por ser teu suspeito número um.
– É, é, quase isso – ela sorriu.
– Fico ainda mais feliz em saber que sou tão previsível.
– Eu prefiro interpretar como esperteza minha.
– Pode ser. Só não pense que irá sair ilesa – e ergueu a mão –, além de eu pedir um café
pra você, depois vai ter que pagar o meu, essa é sua chance de se redimir.
Ela parece ponderar por uns instantes, sorriu logo após. Ele olha para o lado e viu outra
garçonete aproximar-se, felizmente essa esteve mais próxima, se trata de uma gordinha morena,
vinha chegando depois de se esquivar de uns e passar espremida entre duas cadeiras, que ela
tem a bunda um pouco grande.
– Dois cafés, por favor. Achei que não se importaria se eu pedisse mais um pra mim.
– Chá pra mim, por favor. Erva-doce, se tiver.
– Ouviu a moça, um café e um chá. Erva-doce, se tiver.
A garçonete acata e não demora até registrar em sua prancheta o novo pedido, que deve
estar organizado da seguinte maneira, café para o moço, chá para sua acompanhante, então os
olhou para que percebessem que havia assimilado e que estava tudo nos conformes e deu o
fora rapidamente como veio, bem respeitosa a mocinha, ela se virou, foi.
– Então, como andam as coisas? – Alex apóia os punhos sobre a mesa e se debruça um
tantinho.
– Caminhando como devem, e com você?
– Espero que também andem como se deve.
– E o trabalho?
– Digamos que eu tenha me sentido um pouco mais útil que o habitual, mas, sabe como é,
trabalho pode não ser o melhor assunto pra você, que quer começar um assunto comigo.
Ela riu. – Não seja dramático, também não tente fazer charme, você se denuncia. Eu acho
mesmo que você possa estar fazendo aquilo que, ponha nesses termos, nasceu pra fazer.
– Não sei se existe um propósito desses. Mas está falando de meu emprego, não é? –
zomba.
– Óbvio que não – sorri. – Mas de todo o resto que você faz.
– É um reconhecimento, interessante, espero que um dia esse seja um conceito geral.
– Mas não se pode agradar a todos. Não sabia que era tão ambicioso. E as matérias?
– De praxe.
– O que significa?
– Sobre os novos meio-fios feitos de granito ou o chafariz luminoso com dança sincronizada
de águas, coisa assim. O que é isso, está interessada? – e ri de escárnio. – Acho que você tem
suas coisas mais interessantes pra se preocupar e fazer. Eu também.
– E como anda a parte misteriosa das coisas? – sorriu.
– Interessantes, eu lhe diria – e sorri e abana a cabeça quando fala essas coisas, bom, não
pode se deixar coagir com a gama dos pensamentos que podem resultar dessa definição das
coisas, interessante, ele diria, interessantes, veja só, ao menos não é lá uma mentira, ele nunca
mente por completo, que se fosse lhe seria muito mais custoso manter.
– Sim, interessantes deve ser um bom termo – ela responde franzindo a boca, não faça
assim.
– Você entende, experiências novas, coisas assim.
– Vou te dizer, posso? É exatamente isso que me preocupa.
– Preocupada comigo?, com o quê?
– Não exatamente com você, Alex – ela sorriu.
– Ah, sim. Claro que não.
– Realmente não aconteceu nada? – ela franziu o cenho.
A garçonete regressou, ele nem a tinha visto, o caminho que ela percorreu para estar ali era
um enigma do qual não se preocupará com a resolução. Alex mantêm a feição despreocupada,
essa quase detinha um sorriso, silenciado enquanto a moça atende com os pedidos feitos, café
para o moço, chá para a moça, deve ser erva-doce, que tinha. Elas percebem quando estão
sendo intrusivas, é, sempre percebem, por isso ela se apressou. A viu ir embora, olhou a mesa,
só alguns segundos após tornou a olhar Júlia.
– Algo estranho, não é? – sussurrou-lhe.
– Isso.

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Ele só abriu as mãos, dá um sorriso de que pena, minha cara, não há nada presente nessa
mesa mais misterioso do que eu e você, talvez a xícara de café em nossa frente seja lá digna de
espanto, então é bem melhor que aproveite o seu chá, veja, antes que esfrie, vamos lá, comece
a se entreter pelo aroma que está aí a subir e coçar suas narinas, não desperdice seu tempo
com nada que lhe seja menos prazeroso que seu chá. Na verdade só a está tentando desarmar,
invadi-la com por exemplo um sorriso, e aí dizê-la que não precisa se preocupar, torcer dela a
acidez e torcer que faça efeito.
– Alex – jeito de enigma.
– Oi – responde após um gole do café fresco. Estava insípido.
– Eu soube que estão pensando em acabar.
Certo, aí torna-se inevitável que franzisse todo o rosto, quem não o conhece pensaria haver
aí um grande sorriso, vai ver uma expressão similar se formasse caso ouvisse algo digno de
graça, um comentário irônico qualquer, uma piada ou uma dessas situações em que o humor
negro nos apraz, bem, esta não deixa de ser uma, as rugas na testa o denunciam, também os
olhos que se comportam como se querendo escapar de alguma coisa, mas se forçam a continuar
onde estão presos, lacre que se romper-se a tudo denuncia.
– Você não fica tão bonita com esse cabelo como eu pensei.
– Não foi André que me contou, antes que você pense em perguntar mas fique receoso de
fazê-lo, porque achou que só foi uma tentativa minha de jogar verde para colher qualquer coisa...
– Eu já devia estar pensando nisso, certo?
– Não sei, Alex, só achei que podia confiar em você – ela pela primeira vez levou a xícara à
boca, a toma com um gesto um pouco amargo, amargo de displicência.
– Eu não vi onde não lhe fui de confiança, Júlia – responde seriamente.
– Não me respondeu, não foi sincero.
– Não fui eu que te faltei com a sinceridade, você não perguntou sobre o assunto, não fez a
pergunta que queria. Agora eu sei que você quer saber sobre isso. Então, se não foi André que
te contou, quem foi?
– Agora está se pondo no meu lugar – esnobou.
– Mas se não quiser me contar, tudo bem, descubro depois.
– Não faz mal. Sei que isso passou de André pra alguém, alguém fez chegar a Gabriel,
talvez já tenham contado pra todos os outros, mas foi ele que me disse sobre isso e perguntou
se eu sabia de algo, eu disse que não, e tudo que eu pude fazer foi associar isso com a noite
passada.
– Gabriel, o rapaz das fotografias?
– Ele. Foi especialmente me ver hoje de manhã.
– Do que mais você sabe?
– Tudo que sei é o óbvio, que há algo ainda oculto a se saber – e sorriu satisfeita.
– E quer saber o que é, então – debruçou-se, quase ignorou a xícara de café, quase inundou
a blusa nela.
– Claro, Alex.
– Por que não pergunta na sua própria casa?
– Já teria feito se achasse que adiantaria – não se impressionou.
– A pergunta óbvia, então, por que acha que comigo adiantará?
– Porque eu confio em você.
Ele sabe o que isso significa, mas recolheu-se por alguns instantes, sentiu o sangue
começar a ferver, ebulir, sublimar, vai perder o controle, que o perdoem os mais fortes,
reconheça-se seu esforço até agora. Silenciou, a espreita, os olhos dela brilham de satisfação
curiosa, que ela extraiu seu sangue, farejou e está pronta para beber.
– Não sou eu que tenho que te contar qualquer coisa, tampouco tenho que esconder. Por
isso não me pergunte mais nada.
Júlia o encara por instantes porque foi atingida. Já ele não estremeceu. Ele não estremece,
Alex não, principalmente quando não está fingindo, é, o cara devia ter aprendido há muito tempo
sua lição.
– Tudo bem – ela deu-se por vencida, mas o orgulho não esteve satisfeito, ela logo dá com a
cabeça em pesar e sua voz virá com muito sarcasmo. – Eu intuí que tudo isso não ia dar certo,
alguma hora algo ia ter que acontecer.
– Por isso você nos deixou.
– Por isso eu os deixei.
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– Agradeceremos pelo teu exemplo, ele parece realmente sensato.
– Você está sendo tão egoísta. Não percebe que estou do seu lado?, você admite algo de
errado e não me diz, ignora que eu estou com vocês, sim, inevitavelmente isso também é minha
vida, mas vocês tratam como se não fosse, deixam pra lá. Interferir nela vocês podem, mas
quando eu peço um pouco de respeito, peço para ser lembrada – aponta o próprio peito –, que é
o mínimo que me devem, é isso pedir demais?
– Quando eu admiti algo errado?, quando eu interferi?
– Tudo o que vocês fazem, a cada segredo guardado – aponta paulatinamente, é bonita –, a
cada silêncio, com essa conspiração fechada, com essas intrigas de vocês, acha que isso não
trará conseqüências aos outros, aos próximos, é involuntário, até aos próximos dos próximos?
– Me sinto coagido a recear em tudo que fizer.
– Pare, Alex.
– Desculpe, mas está sendo injusta comigo – curvou o olhar para fora.
– Estou? E você, não está sendo comigo?
– André é quem tem que falar com você, simples.
– Simples, e acabou?, não se trata de eu e ele, você devia ser tão meu amigo quanto é dele,
e isso não te significa nada.
– Eu guardaria um segredo seu se me pedisse.
– Eu não pediria para guardar algo assim.
– Melhor não falar uma coisa dessas, um dia você pode precisar – lixou a mesa com os
dedos.
– Um segredo associado às vidas das pessoas importantes pra você, não, eu não pediria.
– Mas se você precisasse, eu o guardaria...
– Mesmo que isso pudesse ser grave o bastante pra comprometer alguém?
– Você não pode afirmar que esse é o caso.
– Diga-me se eu estiver enganada.
– Não, não está.
– Então, por favor, me conte – suplicou com o olhar.
– Não, não é que te comprometa, me deixe.
– Tudo de André acaba por me dizer respeito, então conte.
– Não – chega a rir do que ouve –, não.
– Alex – e fica a encarar por muitos instantes.
– Certo, Júlia, então vou te falar, é óbvio que mais cedo ou mais tarde você saberia.
É claro que começa a articular alguma coisa chocante porém esdrúxula, do tipo, André se
excedeu e espancou um travesti na rua, ou senão, André gostou da idéia de se travestir, esse é
o sujeito com quem você dorme, percebe por que não quis te contar?, não, não, dizer André
poderia ser um exagero com pernas muito curtas, ainda mais ao se tratar de uma história que se
possa discutir ainda nesta noite, na cama, vai saber o que ocorre?, se bem que gosta da idéia de
aperfeiçoar esse tema depois. Pode então dizer que descobriu suas próprias convicções
religiosas, que recebeu há um tempo uma iluminação e que era claro que o que estava fazendo
era pecado, era libertino, era intolerável e por isso um dia deus haveria de castigá-lo se não
parasse, enxergou o inferno numa visão e um clarim de anjo disse, eis um caminho construído
pela pilha de seus ossos, e ele queria ter chances de encontrar a salvação, todos querem.
Poderia dizer que colocou fogo numa igreja, coisa que não é muito imprevisível dele fazer, mas
que havia sido visto, que foi descoberto e estava sendo processado judicialmente, que por isso
precisavam dar um tempo nas coisas, ser mais discreto, ou de repente que incendiou um
mendigo, talvez, isso seria realmente horrível, é, ou podia dizer que matou uma pessoa num dos
ritos do grupo, pára, pára, está chegando perto demais da verdade, se bem que com esse tom
não parece ser algo muito importante, só parece ser duro por ser verdade, que a verdade é
sempre mais dura, se falasse da mesma coisa e fosse mentira já seria de se tolerar, e ele já está
começando a se empolgar, a perder a noção do apropriado, coisa que geralmente se repete,
coisa que não se deve, com isso não se pode vacilar, é, não com Júlia.
– Alex, diga-me – o olhava mais firme que antes.
– Melhor que beba um pouco mais do chá – gesticulou.
– Diga-me.
Ele não mais a mira porque não a suporta, aqui não temos novidade alguma. Do jeito que
considerou mais discreto, cercou o redor com o olhar, a chuva se intensifica fora da vidraça, e
dentro aquela tanta gente os ignora. Espiou por cima dos ombros, averiguou se as mesas
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próximas estavam ocupadas, por um sadismo que nem ele mesmo compreende deve querer
agravar a curiosidade. Funcionou, ela está com uma expressão de arrombar a alma.
– Não tente mentir pra mim – ela resmunga.
– Não vou.
– Não me ludibrie.
– Eu poderia conseguir?
– Provavelmente não, mas tentaria.
– Também não tenho razões pra fazê-lo, tenho?
– Conte-me.
– Um de nós não se deteve, matou uma pessoa.
– O quê?, quem?
– Acalme-se.
Agora é ela quem olhava pelos cantos, Alex também o faz, como parceiro deslocado que
resolve entrar na dança de tango, uma dança esquisita, o que importa não é exatamente o
prazer e a graça que vem dos giros ou dos sacolejos, mas tão somente manter-se, que esse já é
um desafio muito perigoso, as pernas se cruzando e evitando se pisar, isso é viver na beira de
uma queda, do tropeço fatal que nos fará cair e arruinará a tudo, e ele olha aos lados e a vida
continua da mesma maneira que sempre antes continuou, ninguém os distinguia, nunca o
fizeram, e ela deve convencer-se do que ouviu.
– Vocês o quê? – Júlia volta-se num sussurro alto, um chiado e um riso de ceticismo, tudo
junto.
– Vocês não, foi um, apenas um – levanta o dedo para fazer a ressalva.
– Quem?
– Martin.
– Martin está morto? – esbugalha os olhos, prestes a devorar a tudo.
– Não, nossa – abana –, Martin que matou.
– O quê?, impossível.
– Antes fosse.
– Alex – está boquiaberta. Ele pôde ver que a mão tremia, ela segue olhando para fora.
Ficam em silêncio, ela tenta tomar do chá, deve achar que a tranqüilizaria, a xícara mal vem que
é melhor improvisar, vai lá, pede uma massagem ou dá um longo bocejo.
– Eu sabia – ela continuou. – Não, isso não podia dar certo. Era claro que não.
– Dizer isso não muda as coisas.
– Com quem ele fez isso, com quem?, e como?
– Com Carina – pausa em respeito a um choque. – Como, bem, eu não sei direito.
– Como não sabe? – um sussurro quase gritado.
– Ele ficou louco, se excedeu com ela, ela falou alguma coisa e ele não se conteve, não sei,
se ele deu nela foi por causa de alguma coisa, e foi isso e acabou – fez um gesto de que não há
mais o que se discutir e jogou as costas sobre o estofado.
– Ele deu nela? É isso que você tem a dizer?, assim?
Dá de ombros em resposta, essas pessoas que sempre querem mais, não adianta fazer-lhes
as concessões, dá-se a mão e já lhe querem o braço com ombros de brinde, garradas na
saboneteira, é uma espécie de direito faminto que por você ser fraco já lhe querem montar nas
costas. A carícia, ele pensa, antecede o momento em que lhe põem uma cela.
– Alex, você tem idéia do que vocês fizeram?
Ele ergue a mão para novamente contestar a pluralidade do contexto, um, merda, eu não
disse que foi apenas um?, mas engasga, é que pensou ser inútil, e deve mesmo ser, tudo o que
pôde fazer foi deglutir a acusação, na verdade não deve chegar a ser uma, mas ele encara como
sendo, que, no fundo, lá no fundo não deixa de ser, é que as coisas são coisas diferentes no
aprofundamento dessas mesmas coisas, é mesmo um pouco estranho, mas ele está pensando
rapidamente e sabe que só não se pode emocionar, se o fizer estaria tudo acabado, que um
arrepio do coração, seja lá por que se dê, conivência ou concessão, distração, coisa assim, ou
quem sabe deterioração ou relapsa displicência, seria como se pôr de joelhos no chão e chorar,
desanuviar lágrimas tão engasgadas e com gosto de teias de aranha que ninguém nunca
saberia dizer há quanto tempo lá dentro dormiam.
– Carina! – levou a mão à boca novamente.
– É – ele coçava o rosto.
– Deus do céu.
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– Que a tenha.
– Você tem noção da gravidade do que aconteceu?
– Espero que você tenha.
– O que quer dizer com isso? – ela pareceu injuriar-se.
– Lhe sendo bastante sincero, não faço a mínima idéia do que fazer.
E por um instante ele viu o que pode até ser compaixão raiando no semblante, ela arqueou a
cabeça, entreabriu a boca, o fitou com jeito de sincera ainda que não conte nenhuma verdade,
diz-se estar assustada mas agora se dispõe a entendê-lo, lhe faz o favor de não martelar
sentenças, a pena é tal, tal, tal, tão avidamente. Ou é piedade pela morta que, por não ter uma
lápide, pode ser desviada para um qualquer, ou ele já merece o choro do seu próprio funeral,
mas que se siga em frente.
A verdade é que desde a chegada de Júlia muitas vezes a porta do bar se abriu e não
inesperadamente fechou, da mesma maneira supomos que se renovou a estadia das gentes,
umas de antes ainda estão lá, outras não, umas tantas são novas, de muito menos ele recorda-
se ao espiar, talvez venham escapar da chuva enquanto sentam no balcão a apreciar algum
quitute, ou um capuccino, por favor. Isso está implícito na inconsciência de Alex por dedução,
que por mais bobos que sejamos, o inconsciente ainda nos é muito observador, se é tão afoito
de perceber e engolir e ver que não se contenta em parar de ser, e por essa mesma ferramenta
da inteligência ele se apercebia de cada vez que a sineta tocava a indicar a entrada de grupos
ou saída de indivíduos ou vice-versa, o que lhe prova a sua imperfeição é que, como se viu, por
motivos de força maior ele ignorou todas as vezes ou a maior parte delas que isso ocorreu, tal
como provavelmente ignorou outra gama de acontecimentos menores e dispensáveis que seriam
desde a percepção dos espécimes que se apresentam lá no distante balcão, ou dar pelas
mudanças no noticiário da tevê, se é que ainda passam, e não os filmecos da tarde. É que acaba
por conseqüência trágica não percebendo algo que o importa, e que em breve, sem mais
suspenses, estará aí acontecendo para que ele e todos que vigiam a sua vida vejam.
– Certo, precisa me contar tudo o que aconteceu – Júlia parece mais moderada.
– Em que isso vai ajudar?, o que está feito se foi.
– Talvez em nada, mas eu preciso saber, se vocês precisarem de ajuda eu preciso saber o
que posso fazer, o que está ao meu alcance.
– E você estaria disposta?
No mesmo instante a outra voz soa, – Júlia – entoou, a familiaridade é única e incontestável,
aí tanto a moça do nome quanto ele tornam as caras à frente da mesa, diante da qual se ergue o
inconfundível.
– André – ela sussurrou, surpresa óbvia.
– Júlia, Alex – ele retificou os cumprimentos.
– Era você e os demais que eu estava esperando, André, não Júlia.
– Pelo visto ela se adiantou. Eu não viria mesmo para cá, se não ligasse para o trabalho dela
e tivesse descoberto que não estava, ainda assim acharia que estaria trabalhando, se não
ligasse para Alex e ninguém atendesse.
– E por que pensou que eu estaria exatamente aqui? – Júlia suspira.
– Ele não pensou, era apenas uma das possibilidades, de qualquer modo ele também
provavelmente me encontraria, há coincidências que nós provocamos – Alex responde.
– Algum motivo especial pra estar aqui, Júlia? – ele perguntou.
– Melhor você se sentar, André – Alex.
– E por quê?
– Porque eu sei do que aconteceu – Júlia respondeu e deve aí haver raiva.
André não parece mudar por uns longos instantes, olha como quem não se pronuncia sobre
nada, mas é como se olhasse o vazio, não faria grande diferença ele estar encarando um rosto
ou uma parede, finalmente pasmou e assoviou, porque o fôlego de baiacu inchado não agüentou
mais.
– Alex? – requereu o óbvio com tranqüilidade assustadora.
– Ela é simplesmente insuportável, eu não pude fazer nada, mas você pode, largue-a.
André curvou-se e senta-se, arrastou-se no banco até o lado de Júlia, não tão perto, que a
intimidade de agora não o permite, e intimidade é coisa de momento. Abaixa o rosto e pôs a mão
sobre a testa, óbvio que lhe falta qualquer alicerce, âncora, agora ele não sabe tanto o que fazer,
o cara cheio de certezas, ele talvez não saiba há muito tempo, mas é um titã, é hercúleo, e
silenciam todos por algumas eras. Em que me meti?, pergunta-se Alex, pergunta das mais
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simples que podem se instaurar, pensa inclusive se não é a hora derradeira para levantar-se e ir-
se embora, agora Júlia tinha André e principalmente o vice-versa, eles se bastariam num longo
discurso calado e discussão histérica sobre a vida daqui em diante, sobre limites, isso vale para
o antes, agora e ao depois, levariam o assunto para quando a mentira é conveniente entre duas
pessoas a tal ponto que chegarão ao ápice onde certamente muito chorariam entre si, lágrimas,
ombros, olhares severos e pesados, será que tudo está arruinado?, bem, Júlia falaria que numa
relação de confiança nunca se deve mentir um para o outro, e André diria que não mentiu, que
omissão não conta, que às vezes é para o bem, que se deus escreve certo em linhas tortas é
essa uma inspiração dos céus. Alex é o inútil coadjuvante, de quem se esquece e só acaba por
atrapalhar, e que acha que o rapaz curvado, André, já está na fase das lágrimas, fase que não
se dá por um só e exclusivo acontecimento, mas pela pressão que os outros impõem sobre o
que devemos achar desse evento, um montinho de sussurros que acabam por nos enlouquecer.
Júlia o afaga, é essa uma concessão, a concessão hostil de alguém que quer ter todas as
perguntas e as respostas à sua disposição, era quase materno o que agora fazia, portanto o
aconchegou, envolveu-o nos braços, mas dá a entender que logo vai tirá-lo de lá e de repente
estapear.
– Por que não me contou?, isso é que foi inadmissível – sussurrava a André.
– Não é óbvio por que não contei? – ele deve ter hesitado. – Alex, o que disse a ela?
– Basicamente, tudo.
– Aqui? E se alguém ouve?
– Se você for partir do pressuposto que estamos sendo vigiados...
– Foda-se, você também, não é? – André dá com as costas no banco.
– Alex não quis contar porque achou que era você quem devia falar isso pra mim – Júlia
interveio. – E estava mais do que certo, e também acertou ao me contar – é, tem que lhe
esfregar na cara que ele cedeu. – Como você pôde manter isso em segredo?, de mim?
– Não há um pouco de compreensão?, se eu não contei foi porque era tão recente que eu
precisava de mais tempo, pra saber como eu devia fazer, como contar, pra saber sequer o que
depois eu ia fazer, isso você não pode considerar?, isso você não consegue levar em conta?
– Ela soube por um de nós que cogitamos abandonar as coisas – gole de café.
– Por Gabriel, na verdade.
– Achei que tivesse vindo por preocupação comigo, ontem quase não conversamos, eu te
evitei, eu sei que eu estava estranho, não tinha como ser diferente – um pouco de
ressentimento.
– Óbvio que me preocupei contigo, o que me disseram só foi mais uma razão pra que eu me
preocupasse ainda mais e procurasse saber de algo, um algo que é claro que havia pra se
descobrir...
– Não, eu sei – André acatou. – Já soube até que estão avisando os outros que não estavam
conosco.
– Avisando de quê? – Alex faz cara feia.
– De que talvez terminemos.
– Eles vão querer saber o porquê.
– Resta outra solução se não uma hora contar? Você já se antecedeu. Se acabar tudo de
vez, acaba, é esperado, quem quiser sair, sai, cada um por si.
– Você mesmo tinha dito que não poderia esconder isso dela por muito tempo... – Alex.
– É isso, André?, pretendia esconder de mim? – Júlia o fitou.
– Eu não vou discutir isso – o olha feio –, a intenção era não envolver mais ninguém.
– Estar envolvida sem escolher ou saber é ainda pior – Júlia.
– Desculpe, André – Alex abaixa o rosto.
– Não, não – era André agora quem apoiava a testa nas mãos. – No final isso realmente
aconteceria, você acabou fazendo o inevitável, ao menos espero, é só que eu não esperava,
agora só me resta aceitar.
– Mas escutem, o que vocês farão? – Júlia falou.
– Acabar – Alex fala com a naturalidade de quem gira a xícara de café.
– Antes você parecia estar em dúvida, então pense, ontem à noite, o que você faria?
– Não havia nada definido – André respondeu, a olhava.
– Bem, o que eu faria... – Alex.
– É, o que faria? – Júlia.
– Ia pensar por algum tempo – Alex.
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– É o melhor a ser feito, e por acaso já começou? – Júlia.
– Na verdade eu nunca parei.
– Acho que também preciso de um café – André.
– Uma hora ia acontecer algo, não é, Júlia? – Alex.
– Por isso eu saí.
– Por isso você saiu – mais um gole.
– Sabia que os encontraria aqui – uma outra voz soou.
Mais uma vez não havia se dado conta de que alguém chegava, pelo visto ninguém também
o fizera, mas na frente deles jazia o moço da barbicha ruiva, ele mesmo, conhecido como Stern,
molhado e velho, mas ainda ele mesmo.
– Stern – André volveu os olhos e se deteve diante dele. Usava uma jaqueta sobre a blusa
social, Alex deduz ser o que usa no trabalho.
– Júlia? – Stern esconde a surpresa.
– Olá.
– Alguém quer um cigarro?, não são mais os teus – Alex falou para Stern e para todos.
– Eu não fumo – André.
Stern acenou que não e os olhou. – Essa é uma reunião informal?
– Um encontro de amigos, também não quero mais fumar – Alex.
Ele não hesitou em sentar, então se esgueirou pelo banco de Alex e se colocou ao seu lado.
Parece um pouco desconfortável quando ele percebe Júlia a acompanhá-lo com um sorriso
ligeiramente torto.
– Quer algo? – Alex.
– Já foi difícil comer pela manhã.
– Podemos pedir uma cerveja.
– Não, melhor não, obrigado.
– Stern – André veio falar.
– Oi.
– Vir aqui no Schneider tem alguma relação com ter avisado os outros sobre aquele
assunto?
Stern não reage, deve estar fingindo olhar André mas está mesmo é guardando-se de Júlia,
enquanto Alex se permite não se meter, finalmente um cenário para se entreter, que prefere ser
espectador que se envolver.
– Não se acanhe – Júlia meiosorriu.
A mocinha de cabelos vermelhos vem aí, sabe que não o deixará em paz por muito, as
franjas escorrem pelas bochechas e isso não o interessa nem um pouco, está com aspecto mais
jovial e isso igualmente não o interessa, Alex rosna suas mágoas mas não consegue mantê-la
distante. Querem pedir mais alguma coisa?, ela vem com essa, é mais esperta do que mostra,
mais do que usualmente insinua, certamente de algum lugar que Alex não percebia os estava
vigiando de maneira que percebeu que vinha chegando mais gente, o que lhe custaria afinal
espionar uma conversa ou deixar de fazê-lo?, sabe-se que em alguns momentos de seus
serviços, qualquer pessoa que lide com públicos irá relaxar um pouco e apenas observar os que
lhes cercam, deve ser por essa prática que o primeiro dos segredos nasceu, e o cochicho que
nos comprometeu.
– Você me traria um café preto, por favor? – André.
– Traria sim, senhor – como se estivesse realmente fazendo-lhe um favor, não é, mocinha? –
E para o senhor?
– Não – Stern, e a expulsa com aflição.
– Escute, Stern – a própria Júlia prosseguiu –, você estava ontem à noite, não é?
– O que é isso?, uma piada escrota? – Stern se preveniu.
– Ouça ela, o pior é que não – Alex aos poucos se detém.
– Escute, precisa saber que eu sei de tudo e que estou do lado de vocês – ela manteve a
tranqüilidade, na verdade Alex não sabia se o que acabara de ser dito já estaria em seus
pensamentos desde o início, na verdade lhe foi surpreendente.
– Não, isso devia ter ficado entre nós – Stern acenou negativamente, passou a mão pela
barbicha.
– É? E até quando poderiam levar isso adiante sozinhos? – Júlia ostenta o poder que não
tem.

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– Levar adiante o quê?, o que tínhamos a fazer é esquecer, agora temos de nos preocupar
que gente de fora não fique sabendo.
– Gente de fora? – ela parece ofender-se.
– O que tem em mente para quando precisarmos falar sobre o que você espalhou com os
demais de fora, Stern? – André estava de olhos fechados, pressionava a testa com o polegar.
A garçonete retornou, na verdade percebiam agora previamente a sua presença por Alex tê-
la olhado, e tê-lo feito como em sinal de que alguém vinha, um instante e se estabelece o pacto
do silêncio. Recolheu a xícara vazia sobre a mesa, por lógica deduz-se que seja a de café,
sendo que Júlia pouco tocara no chá, e recolhida a xícara borrada da mesma bandeja brota o
café preto, colocou-o sobre a mesa e partiu, a entidade do café o excita a acordar.
– Inventar alguma coisa, é óbvio, dizer que algum dos nossos falou demais e havia gente
demais sabendo, gente que sequer conhecíamos, acontece que nós todos concordamos que se
vazasse seria ruim. Ou simplesmente poderíamos falar que não era mais da vontade da maioria,
e pronto, nós mesmos sairíamos, as coisas seriam aniquiladas por insuficiência.
– Então o que tinha realmente em mente era terminar, não só pensar em fazê-lo – Alex.
– Não acha que ficariam curiosos? – André continuou.
– A questão não é a desconfiança, mas de que ela importa sem evidências.
– Está falando como um advogado, não é hora pra isso – Júlia falou.
– Eu sou um advogado, lamento – trincou os dentes.
– Nós dois somos, Stern – André se impõe –, isso não diz nada, o que eu sei é que a
inteligência das pessoas sobre as coisas simples se baseia no senso prático, no caso é a
curiosidade que pode incitar muitas perguntas, e então outras coisas que talvez não queiramos
descobrir.
– Eles não precisariam ficar sabendo, escute, não se trata apenas de nossa situação. Se
souberem o que aconteceu, isso vai prejudicá-los.
– Vocês não têm o direito de omitir isso aos teus – Júlia.
– Moça, entenda uma coisa, ao menos que você nos denuncie, agora você é cúmplice de
assassinato – era perigoso entrar em detalhes em voz alta. – Agora fale de novo sobre direito de
esconder isso dos nossos...
Ela se calou. Alex gosta de vê-la se calar.
– E ainda há outra coisa – continuou. – Por que você diz estar envolvida?, você se retirou
por livre e espontânea vontade, não foi?, não te contar nada seria zelar por sua paz. A paz que
você escolheu.
– Me retirei, mas agora estou voltando.
– Júlia? – André.
Tudo o que Alex pôde fazer é olhá-la, ela ainda jaz impassível, que às vezes as palavras
vêm rápidas demais para que ela mesma possa se entender, das intenções aos resultados etc.
– Por quê, eu não posso?, não vão me aceitar?
– Nós nem sabemos se vamos aceitar uns aos outros – André.
– Essa é a prova de que não sou uma covarde – falou olhando Stern. Ele se intimidou, se
não muito apenas se convenceu, colocou as costas para trás e permaneceu quieto.
– Eu realmente gostaria de uma cerveja – Alex meiosorriu.
– Sua cumplicidade não está sendo posta em jogo, Júlia – André.
– Prefiro lhes ser cúmplice injustamente que ser apática.
– Stern, com quem você chegou a falar? – Alex.
– Andriolli, León, Sylvia, os gêmeos, bem, avisei um dos gêmeos, Bonaparte, e – pensou por
um instante –, só esses.
– Só? – Alex sorriu. – Agora só me explique uma coisa que minha inteligência não foi capaz
de perceber, você simplesmente acordou e foi iluminado com a idéia de ligar e lhes falar, bom
dia, olha só, sabe aquela sociedade estranha em que você se metia?, então, não ligue para os
motivos, mas está acabando.
– É claro que não. Para começar eu nem dormi, mas então, eu fui lhes falar para marcar um
encontro.
– Aonde, aqui? – André intrometeu-se.
– Não, claro que não. No teatro. Eu disse que era muito importante, acabou ficando pra
daqui a dois dias, na quarta-feira de madrugada. Alguns reclamaram, mas eu ressaltei a coisa da
importância e disse que não podia falar mais por telefone, dei um tom de mistério, provavelmente

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ficaram preocupados, então disseram que dariam um jeito. Pra intimidar alguns eu tive que dizer
aquilo de estarmos pensando em acabar, foi um ponto crucial.
– Espera. Não avisou Gabriel?
– Gabriel – pensou alguns instantes –, não, ele não.
– Então há mais gente falando?
– Isso eu não sei. Mas pode ter se espalhado.
– Bom – André baixou um pouco o olhar –, não foi exatamente uma má idéia.
– Como você faz isso sem consultar ninguém antes, rapaz? – Alex faz que vai estapeá-lo.
– Se não quiserem eu cancelo. Achei que era o melhor a ser feito.
– Eu também concordo que seja uma boa idéia. E com os demais, com quem você não
falou? – Júlia.
– Eles eu posso contatar depois, não os achei por telefone, a maioria é claro que não tentei.
Você pretende ir? – Stern.
– Se você não tiver nenhuma objeção – Júlia.
– Claro que não tenho, Júlia, não me entenda mal, isso é realmente contigo.
– Quem diria, logo a senhora que por aquilo saiu, agora já não poderá mentir quando
falarmos que por isso também voltou – Alex se espreguiçava e ria.
– Não é exatamente que eu faça gosto.
– Nem precisa tentar me convencer, sou apenas um cara cutucando a onça com vara curta.
– Isso você podia deixar para que adivinhássemos.
– Vejam bem, ainda temos que ponderar o que falaremos para os outros – André os
convocou.
– Antes disso, me digam se aquilo não é coincidência demais – Alex apontou na direção das
mesas e do corredor.
E o que Alex já percebeu vai atrair a atenção dos demais, é um episódio de rostos se
curvando, todos se certificam de que era óbvio que quem vinha caminhando através do corredor
entre a porta e as mesas era o rapazinho loiro e magricela que se estabana em passos
tropeçados e ajeita sobre a cabeça o gorrinho cinza-escuro de encharcado. Bublitz olhou para o
balcão, para as mesas do outro lado, chega a se distrair um pouco com a televisão, ou os ignora
ou quer fingir que percebeu mas está de charme, então olha para as janelas e só depois de um
tempo é que vem a identificá-los, começou a dirigir-se.
– Você o chamou antes de vir, Stern? – André perguntou.
– Sim, naturalmente.
– Chamou os outros de ontem?
– Chamei.
– Para quê? – Alex perguntou ainda a olhar o garoto.
– Pra que conversássemos.
– Martin. Chegou a falar com ele?
– Disse que preferia descansar, não dormiu a noite toda. Eu não insisti.
Bublitz prostrou-se diante da mesa. Seus olhos parecem cansados, mas ainda sorri.
– Que chuva, hein? – murmurou, sacudindo-se e encolhendo os braços.
– Como vai? – Júlia o olhou.
– Tudo bem, Júlia, e com você?
– Caminhando, como se deve – sorri.
– Bublitz, caiu numa poça? – Stern.
– É ao que eu me submeto, é o quanto eu me sacrifico, se eu perder o meu emprego vou
passar a cobrar um salário a vocês – e senta-se exatamente ao lado de Stern, logo depois tira o
gorro da cabeça e o torce com a palma da mão.
– Foi trabalhar hoje? – André perguntou.
– Na verdade só pego no turno da tarde, mas tinha que acertar algumas coisas no prédio. E
aí?
– Não quer tomar nada, Bublitz? – Alex passou o braço por sobre Stern e o cumprimenta.
– Seria bom, mas será que eles servem um chocolate-quente aqui?, ou pão na chapa, tô
congelando.
– Uma cerveja não seria melhor?
– Agora não tem como, será que não tem chocolate-quente?, senão mesmo um café.
– Eu não estranharia se a garçonete estivesse chegando, terá a chance de perguntá-la.
– Certo. Mas e então? – o garoto olhou a todos, sua expressão é de um tacho espertinho.
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– Bom, acho que é curiosidade de todos saber o que você pensa que deve ser feito, Bublitz
– André falou.
Foi então que Bublitz olhou para Júlia, sua expressão é de insegurança que parece requerer
o aval de ninguém ao certo, um aval de ninguém que o possa dar, que desde o início o
rapazinho a deve ter percebido, isto é, a Júlia, como mera figura de ilustração, natureza morta
num cesto de coisas já decompostas, e talvez por um momento julgasse, Alex considera, que a
presença de todos ali poderia não significar mais que um desses encontros a fim de nada, que
esse parece ser o melhor de todos os fins, ainda que a leveza contrarie o nosso enredo e a
sabedoria do garoto não se arrisque a qualquer sorte de comentário comprometedor, e Alex
bocejou e mastigou o ar.
– Júlia sabe do que aconteceu e vai nos ajudar – André respondeu o seu olhar.
– Como ela pode?
– Isso ainda nós vamos ver. Mas aliados a mais não se desprezam, certo? – ela falou.
– Claro, está certo. É que eu estava pensando mesmo em umas coisas.
– O quê? – André quem perguntava.
Ele se curva diante da mesa, deu uma olhadela para o lado e só depois falou, – Sabe, eu
pensei durante toda noite e, bem, e se fôssemos à polícia?
– Como é? – Stern virou-se.
E por uns instantes Alex lamenta-se de haver tantas pessoas diferentes no mundo, às vezes
os outros são intoleráveis, então será piedoso e há de avisá-lo disso, por isso curvou lentamente
o pescoço, câmera-lenta das que antecedem a desgraça, que sua vontade é mesmo de pegar o
copo escaldante do café preto por ali e jogá-lo no rosto, não é que seja exatamente raiva, é
apenas como se dissesse, olha só, escapuliu das minhas mãos, exatamente como eu creio que
sua língua esteja escapulindo da boca.
– Bublitz? – André o fita com uma seriedade que quem não é alvo também se intimida.
– Eu pensei em várias formas de explicarmos as coisas de forma que não seríamos
culpados – falou balançando a cabeça, parecia estar ratificando algo óbvio.
– Culpados somos, independente das formas – Alex.
– Rapaz, que merda você tá falando? – Stern.
– Olha, nós mesmos somos as testemunhas, e se não souberem de nada, estou falando do
pacto e das coisas relacionadas, podemos inventar a história que for enquanto ainda é tempo, e
aí tiramos esse peso de todo mundo, não é?
– Seu policial, nosso amigo escorregou e caiu em cima dela, é uma pena, mas ela não
resistiu.
– Não, Alex, me escute – ele gesticula freneticamente. – Pra início de conversa nós não
temos uma causa para o que aconteceu, compreende?, isso é, cinco pessoas não iam acobertar
uma só pessoa sem uma boa razão, e a boa razão ninguém vai ficar sabendo, que é exatamente
o nosso trato, compreende?, agora veja só, se todos nós dissermos...
– Cala a boca!, cale essa boca! – Stern, com todas as sílabas.
– Não, escute, deixe-o falar – André acena com a mão.
– Obrigado, André – o garoto engole um pouco seco. – Se todos nós dissermos que ela se
excedeu no álcool, nas drogas, não sei, que tomou alguma coisa e ficou louca demais pelo resto
da noite, aí estamos já meio que desviando a culpa pra ela – dá um risinho de quem reconhece a
própria genialidade –, podemos falar que ela caiu de cara numa mesa, não, podemos falar
assim, que ela foi usar o banheiro e que demorou demais, ficamos preocupados, achamos que
ela estava passando mal, mas quando abrimos a porta era tarde, vimos ela esborrachada e
ficamos desesperados, estava sangrando demais, o azulejo todo vermelho, a gente gritando,
mais sangue ainda, a gente gritando mais ainda, gente vomitando, nossa, gente saindo, gente
chorando, aí tentamos ajudar, boca-a-boca, sei lá o quê, mas era realmente tarde, mas tentamos
ajudar, geralmente é o bastante, viu? Entenderam a idéia? Por que a gente mentiria pra
acobertar uma coisa dessas, hein?, olha, ela não era importante, não era rica, não tinha nada
que podíamos querer, ela não tinha nada, ela não era ninguém, entende?
– Podem achar que vocês a estupraram ou coisa parecida – Júlia.
– Qual o sentido disso, porra?
– Parece um plano interessante, salvo por um detalhe quase nulo – Alex apóia o queixo nas
duas mãos enquanto o olha.
– Pelo quê?
– Quando te perguntarem por que jogamos o corpo na baía, aí o que você diz?
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– Vocês a jogaram na baía? – Júlia.
– Acho que isso não vem mais ao caso – André.
– Estávamos desesperados! – erguia os braços, está tentando passar confiança.
É aí que Stern dá um tapa na cabeça dele, ela moveu-se bruscamente para frente, isso é, a
cabeça, e o rapaz só emitiu um gemido agudo enquanto suas pernas por debaixo se esbarram
na mesa e chegam a debruçá-la para cima e fazê-la voltar ao chão, é um só instante, um
instante sonoro, onde a xícara e as coisas habituais daqui de cima pularam como num rodeio.
Porra!, eis a manifestação do sábio entendimento da situação, e afastou-se com a mão na
cabeça. Certo, obrigado a todos pelo estardalhaço, que agora é claro que algumas das pessoas
mais próximas em volta estão a bisbilhotar, antes tabefes que distrações quotidianas e
conversas, problema é muito mais interessante que tédio, se é que é tédio que as possui, mas a
julgar pelo interesse eminente em vidas alheias, que vez ou outra mostram suas caras, ou deve
ser tédio ou apreço de vampiro, ou os dois, como Alex, que ri, assim viu André encolher-se e
Júlia ainda manter a mão na boca, mas deve mesmo ser ainda do susto de saber como o corpo
foi despojado, coisa bem atroz, de gente sórdida, e Alex ri uma vez mais.
– Fica quieto, fica quieto!, antes quieto que atrapalhando com essas merdas.
– Bublitz, não faz o menor sentido – André deu de ombros.
– Ao menos eu tô tentando ajudar – gaguejou, fitando Stern. – Você deu alguma idéia
melhor?
– Melhor nada a isto – e faz que vai bater de novo.
– Não – e se prepara para brigar.
– Certo. Vamos todos considerar a essência da sua proposta. Ainda assim é muito arriscada
– André.
– O momento é bom para uma bebida – Alex esfrega os dedinhos na mesa.
– Olha, por mim, vocês fazem o que quiserem então, tá certo?
– Calma – Júlia murmura –, vamos pensar numa solução que será a melhor para todos,
certo?, o importante é que vocês estejam unidos.
– Bem, veja só, ela sintetizou tudo, é uma mulher brilhante – Alex.
– E Martin?, onde está Martin? Devíamos estar dando apoio a ele, não é? – Bublitz.
– Ele preferiu não vir. Pra ele é mais terrível do que para todos nós, vamos respeitá-lo –
André.
– Verdade, nesse caso está certo, tem razão.
Passos se aproximaram, inicialmente é inteligente pensar que se tratará novamente de uma
das garçonetes, a dos cabelos vermelhos com a devoção inata ao sarcasmo e ao aborrecimento,
ou a meiga morena rechonchuda, enfim, era de se esperar que tivessem notado a presença de
Bublitz, também poucos dos que estavam próximos já não o haviam feito, mas também não é
uma estupidez imaginar que a última peça que os faltava finalmente estivesse chegando,
olhemos, e realmente o era, o notaram e logo se prostrou em frente da mesa, da mesma maneira
que todos os outros a partir de Júlia fizeram, que deve ser mesmo culpa dela, esse talento de
reações em cadeia e de nos pôr em angústias de se roer as unhas.
– Bem, oi – Habib estendeu a mão com um sorriso trêmulo para a garota, ela teve de
reclinar-se um pouco para cumprimentá-lo, assim que ela o faça, sorrirá.
Aos demais ele não se deu ao trabalho, apenas acenou com a cabeça e não muito
rapidamente se pôs sentado ao lado de André, ocupava finalmente a última vaga da mesa.
– Como é que tá a chuva lá fora?, o vidro embaçado engana, dá pra ver muita pouca coisa. –
André.
– Estiando.
– E aí, quer tomar alguma coisa? Uma cerveja? – Alex.
– Não, não.
– Antes que você não queira, ou queira comentar alguma coisa referente àquele assunto,
saiba que Júlia sabe de tudo – é engraçado Stern a falar pausadamente.
– Hum – é claro que isso não quer dizer nada.
– Eu particularmente fiquei assustado, mas já previa que André ia falar, então nem estranhei
quando a vi aqui – Bublitz.
– Na verdade fui eu quem disse – Alex.
– Isso que é amigo.
– Bublitz – André o reprimiu.
– Não tive culpa, ela é insuportável, resisti mas não pude fazer nada.
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– Alex se deixou seduzir, tenha cuidado com a sua noiva, André – Stern deu um risinho.
– Realmente muito engraçado – André. Em seguida ele olhou para Júlia e ela sorria.
– Habib? – e Alex o olhava, não será muito difícil perceber que sua feição estava estranha a
conservar o rosto baixo, sem rumos, morto, o queixo escondido.
– Tudo bem? – Júlia enruga o rosto e pergunta.
– Não sou tão bom com palavras – respondeu.
É natural que inicialmente ninguém entenda o que isso vem a significar, ele falou de
palavras, por acaso precisou de alguma?, nada mais completo do que sugerir-lhe uma cerveja
foi-lhe dirigido, até onde parece não precisar ser um mestre em oratória para manipular o
alfabeto ao nível de responder uma requisição do gênero, isto é, ao invés de murmurar-se um
hum, não precisa se compor uma ode ou coisa assim em torno disso, pois então. Assim, em
silêncio, se houve naquela mesa alguma pergunta, essa foi de cada um para os seus respectivos
cada uns, ainda assim alguns olhares ainda aguardam com suas cada umas expectativas, como
os de Stern e Bublitz, André já é um pouco mais diferente, que jaz sério como são as pessoas
adestradas que estão prontas para notícias graves que podem nos comunicar, feito entrasse
pela porta da sua casa e gritassem, matamos mais um, e ele continuaria a ajeitar o colarinho,
pessoas assim estão prontas para essas notícias porque são pessoas que estão dispostas a
resolvê-las, já Júlia detém mais do que pode-se entender como curiosidade de criança, mas de
infantilidade que não se torna clara, e, claro, como sempre em alguma coisa há Alex, aqui está
Alex, apesar de no momento ele mesmo saber não haver nada em seu olhar mais interessante
que um intuito de aprofundá-lo nos olhos-alvo, sabemos que ele buscava ler na íris do rapaz não
só o motor que o mobilizou a essa fala momentânea, mas o que provocou a postura enrustida e
toda a conjuntura que antecedeu a ela, porque não é ser de se contentar com pouco, mas aí ele
cansa e desiste.
Enquanto ainda o olham ele se mexeu, sim, não está apenas se esquivando das atenções, é
claro que elas devem ser desagradáveis, sobretudo é um sinal que a espera estava acabando, o
calvo colocou as mãos no bolso do casaco de lã que usa, bolso que por sua vez era o bolso
próximo ao peito, não é que vá arrancar o coração e sorrir, e dizer tomem, mas que dele com os
dedos tirará uma folhinha de papel, era pequena e simples demais para ser algo sugestivo.
Desenrolou algumas vezes, o amassado do papel crepitou, finalmente aberto toma-se fôlego.
– Tenho certeza que o que aconteceu ontem foi algo que no fundo já esperávamos. Estou
certo que fizemos uma escolha e somos responsáveis por ela, cada qual da sua maneira, mas
todas iguais na origem. E foi uma escolha por riscos, uma tentativa, a se descobrir o que viria. A
liberdade nos colocou em xeque, pois vimos o que ela é capaz de nos fazer – parou um instante,
reconsiderando. – Acontece que não esperar presenciar, ver uma coisa não significa que ela não
pudesse acontecer. O exemplo que Martin nos deu, e que Bublitz posteriormente também nos
deu, na ponte, é uma certeza de que realmente podemos começar a entender o que somos nós,
que podemos nos enxergar de uma maneira que, eu acho – parece improvisar a idéia –, nunca
antes pudemos. É um pouco ridículo, eu sei – isto ele parece ter improvisado. – Estamos num
caminho único, acredito que todos estejam com medo. Lembro-me também que faz parte do voto
se comprometer com o fato de ser corajoso. Não acho que coragem de verdade foi realmente
necessária antes de ontem. O risco de enfrentarmos os nossos temores pode ser grande. Ainda
assim, acho que seria hipocrisia se eu não estivesse dizendo isso. Se realmente acreditamos no
que foi nos dito desde o início, tenho motivos para encarar o que houve como um primeiro
grande problema de uma tentativa que nunca ninguém antes levou a cabo. Procuro apenas
extrair, do que nos abalou, algo melhor. Acredito que todos estejam fragilizados, mas acho certo
mostrar o que penso. No final tudo isso será, ou não, da vontade de cada um. Pelos riscos
apresentados, como pelo que acho que estivemos fazendo, a minha opinião é que devemos
continuar.
E aí o longo instante de silêncio que já havia se originado ganhou uma continuidade fatal,
mais do que nunca pretendia nunca mais acabar, não há nesse universo pensamento que se
possa formular com coerência, ela não há mais. Todos são estátuas, nunca ouve na história
ouvintes tão compenetrados e mortos. Ao término, Habib retrai novamente o rosto, a única
diferença é essa coisa que se confundiria com um suspiro, o alívio de que talvez nada mais lhe
baste além disso. A Alex particularmente não ocorria com clareza o que isso viria a representar,
era como se estalos em seu cérebro estivessem em andamento durante o discurso, uns
caleidoscópios pelos quais olhava, ou mostravam umas figuras tão absurdas, cadáver caindo,
cadáver dizendo até mais, cadáver agonizando e a gente em volta olhando e sorrindo e dizendo
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umas às outras, fez parte, vamos em frente, ou por fim vê-se o próprio rosto, grita-se de ah num
susto sem igual e tudo trinca. Mas uma nuvem abandonou os seus olhos, as coisas se
permitiram ser mais claras, as coisas se reduzem àquilo e perdem o mistério que o medo põe
onde não há, que as tramas se complicam de antemão pelo medo de enxergar, é o medo inicial
dessas nossas crianças a fazer birra e choramingar, não querem dormir no quarto escuro para
não reconhecer que lá não há nada demais. Pensou sobre o que estaria ele esperando para ele
mesmo ter madrugado a noite passada e escrever no caderninho essas linhas, essas perguntas.
E sabe qual tua resposta?, esperava que lhe tocassem na porta e quando fosse atender
estivesse ali, a sua espera, a presença metafísica, algo que simplesmente lhe irradiaria vigor, a
divindade que não existe, mas ignora-se isto e ela diz que habitaria em você, aquilo que poderia
ser a iluminação, o ânimo, a certeza, um punho de ferro e uma vontade de fogo que às vezes a
vida trata de nos tirar, de nos deteriorar, a razão é muito frágil, é um caminho no qual
constantemente é suicidada, e essa certeza da porta é um mito muito mais completo, religioso,
apaixonante, se atiraria aos seus braços, abraçando-o, tirando a roupa e dizendo-lhe, me tome.
Estava certo disso, mas não esperava, estava surpreendido e só não boquiaberto porque não
beira o ridículo e na verdade não reage às coisas com caras brutas. Só então se lembrou que
sempre foi isso, essa iluminação, essa revolução imparável que o tinha movido, que apenas
havia se esquecido. O cadáver tinha dado um baita susto. Olhou para o lado e viu que só então
André reuniu coragem suficiente para reclinar-se um pouco para trás, há pouco talvez não
sentisse o poder de respirar. Começou a fazê-lo num porte de análise, parecia decompor aos
seus sentidos o que ouvira, acabou pasmando de tal forma que foi forçado a virar o rosto, não
mais suportaria aquela estática, e Júlia está mesmo bastante séria. E ainda via os outros, Bublitz
faz muitos instantes que está com a testa toda enrugada, essa máscara lhe grudou no rosto,
coube tão bem que não mais quer sair, o outro era Stern que parece um zumbi que opta pela
palidez para se camuflar, diz que não está ali, quem quiser que deixe recado na secretária
eletrônica. Assim, Alex os está pesquisando com o canto das atenções. Incrível, pensa, que vá
ser assim que nos recobramos da morte.
– Nossa – alguém murmura sem muita entonação.
– Então – Alex falou –, nós, os responsáveis por isso, temos de escolher continuar ou não.
Continuaram todos em silêncio, nem a gravidade dessas palavras os havia tragado, não
havia sido eles a despertá-los. No fundo, ele mesmo pensou, Alex, você pode abrir as portas
necessárias para a descoberta dessas proezas em nossas almas, lembre-se que formulou uma
imagem onde havia deus ao lado de fora de sua casa. Sempre quando preciso as abriu com
pontapés. O faça, ordenou. Ele os olhou mais uma vez.
– Eu continuo – então disse, a iniciativa pessoal traduz mais que comandos impessoais.
Os sons do bar ainda soavam, somente eles, se dispersavam sem origem específica ou fim.
Parecido com eles. Os da mesa se olham sem fim uns aos outros.
– Continuo – Habib acatou, com a voz áspera.
– Eu continuo – disse Júlia.
– Continuo – André grunhe.
– Eu também continuo – Bublitz.
Stern inclinou-se ainda mais sobre a mesa, olhava Habib, inicialmente era uma apreciação
séria, indefinível. Acatou positivamente e demonstra respeito. – Continuo.
Alex sentiu-se como se acabando de subir uma escadaria de joelhos, ralou as rótulas como
penitente que sente não ter escolhido o martírio e, ao finalmente alcançar o topo percebesse que
não há razões para não ter subido de pé. De todo modo, se santificou. O mesmo caminho foi
percorrido, poderia sentir-se um tolo, mas o suor derramado não necessariamente teria sido em
vão, acontece que o seu imaginário, que insistia em teimar com a expectativa que em tudo havia
sangue ou que em cada esquina havia um beco propenso a um vulto saltar-lhe na garganta e
cortá-la, começava a ser desmerecido. Se por alguma causa mantinha seus olhos imersos numa
poça de sangue, já começa a pensar no risco de limpá-los, assim como no porquê de mantê-los
assim, que abrir a sua guarda é como oferecer o peito a leões, assim como na fábula do lobo e
das ovelinhas, um dia saberia de um rugido canino próximo e resmungaria que bobagem, é
imaginação. Não se sente propriamente receoso, só não aprendeu a se expor, porque assim é
bem mais seguro.
Ele é a pior das feras, como também a mais doce, e isso é o que realmente o mobiliza,
estava reunido e banqueteando com outras feras, as quais podem lamber-lhe as feridas ou
arrancar-lhe a mão, vale o risco, e isso é fantástico. Os olhos negros de Júlia o prendiam, ela
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parece pensativa, é melhor não mirá-la por muito tempo. Disseram que a garçonete logo viria,
Bublitz murmura, pois então nos esqueceram. É, felizmente nos esqueceram, conclui assim Alex,
é melhor que nada fora de nós mesmos intervenha, somos um universo a parte de todo o resto,
na verdade, melhor que nada fora de mim mesmo intervenha em alguma coisa, sou um universo
a parte de todo o resto, sequer sei o que faço aqui. E tem de deparar-se com as feições
envelhecidas de André, umas covas profundas, rosto que não parece capaz de sorrir ou esticar-
se, rígido e seco, talvez imerso num processo prévio de decomposição, o rosto arranhado pela
barba rala que cresceu feia, e o seu não estará diferente. Até há pouco tempo André carregava
as marcas de um sonambulismo profundo, só por agora sua face vinha a corar, o sangue fluindo
nos conformes lhe devolvia a cor de vida. Foi averiguar, olhando-se na vidraça, se consigo se
dará o mesmo, primeiro se assusta por imagem nenhuma responder-lhe e acha ter morrido, os
espíritos não refletem, mas é que de tão embaçada e transparente ela esqueceu-se de ser
espelho, tudo o que lhe pode mostrar é que a chuva não passou, apenas caía inaudível porque
pode ser uma ilusão muda ou som que se acaba ouvindo com atraso. A chuva sempre põe as
coisas no seu devido lugar, os ratos ao esgoto e tudo o mais, com ela vem o instinto de se
encolher, força as pessoas a se fecharem, se esconderem, e é comumente de jeito lúgubre
porque é o que somos quando nos percebemos ilhados. Mas Alex sente-se aconchegado, algo
em algum lugar o esperaria, além da cortina de água o seu futuro o aguarda, sensação
acalentadora, a esperança que não se sabe de onde vinha mas teima em vencer-lhe a sanidade,
e essa esperança é exatamente o que o tateava, beija suas vértebras, causa calafrios, não
prestou satisfações e não se definiu por que vinha, apenas se apossou.
A solidão se vence e que então se chame de comunhão o resultado desse encontro, e se
tomarmos estes caras que se vêem como sendo apenas a alegoria do todo que se conhece,
atribuiremos à comunhão, a união e, por que não, até mesmo ao amor, o grau de único resultado
certo e permanente no percurso de qualquer uma das coisas viventes, não exatamente o
objetivo, apenas um acontecimento inevitável que se pode ou não aprender a admirar, como
admitir que há males que vêm para bens, uma ironia que no fim resulta em grande período de
inércia comunal. A união pode ser um prêmio animador de se conquistar numa vida que por
muitas vezes põe mais a sós cada um consigo mesmo. Mas tudo isso é insustentável. Nada é
permanente. As coisas se movem e caem. E são cruéis e são belas sendo assim. Abaixo de tudo
isso tem de existir alguma coisa real e pura.
Alex realizou, ele era o leviatã bíblico, condenado à destruição, a escavar escombros, como
bombeiro, não, como monstro que quer derrubar tanto a lua quanto o dedo que uns sábios e
loucos mutuamente apontam. Era um universo hermético e infinito, mas por outra óptica admitiu
que ao mesmo tempo não é nada sozinho. Formou então a imagem, os homens não mais olham
para as estrelas, mas o mundo deles não reside num universo fechado e egoísta, e sim num
círculo de homens que olham para um centro e conseqüentemente enxergam uns aos outros,
em torno deste eles gravitariam, ao mesmo tempo em que são sóis únicos a cintilar, resgatado o
brilho próprio, que sabe-se lá quando se apagou ou minguou na escuridão.
Por baixo da mesa Júlia segura a mão de André delicadamente, o mantinha sob controle
sem que mais nada precise ser feito. Durante um longo tempo não houve assunto a ser tratado,
o próprio movimento ambiente se encarrega de mostrar-lhes que não eram mais diferentes ou
especiais, nada os distingue de todos os outros que lá estão, deus sabe quem são, pouco nos
importa, salvos pelo anonimato. O rapaz numa das mesas cantava a moça do balcão, ela sorria
mas não lhe dá mais trela, uma mulher encharcada entrava achando finalmente um abrigo
enquanto protege a criança de colo encolhida nos seus braços. Alex não mais sabe se espera a
chuva estiar ou é que não precise mais sair. Até quando dizem algo o fazem baixo. Ou respeitam
a morta da noite passada, que é como se estivesse menos morta hoje, ainda que não mais viva.
Não encontrariam mais outra solução para preencher o aliviante vazio senão almoçar, é
mesmo o que farão. Demorou um pouco até que a moça viesse atendê-los. Só se pronunciam
para enumerar futilidades, como André por exemplo perguntar a Stern como andava o seu
trabalho na universidade, e ele responder-lhe que andava normal, natural, como sempre fora e
muito provavelmente, ainda que não seja vidente e nem tenha apreço por coisas mediúnicas,
sempre virá a ser. Júlia comenta que talvez voltasse mais tarde do que devia ao trabalho, é que
agora está prolongando a hora do almoço que tem, mas um dia em especial não prejudica seu
conceito. Só mesmo Alex permaneceu silencioso desde a última vez que falou até agora, exceto
para fazer o seu próprio pedido. Simplesmente não deram por sua falta ou não viram qualquer
porquê de lhe dirigir a palavra. André e Júlia dividiram um prato de frango grelhado com vegetais,
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Alex pede panquecas de carne com queijo, preferia molho a bolonhesa à molho branco, Bublitz
um sanduíche com muitas coisas dentro, e Stern estrogonofe de carne. Habib não comeu pois se
sabe que já almoçou, contenta-se com um capuccino e um pedaço de sanduíche que Bublitz foi
gentil e cedeu. Por alguma razão todos, menos Habib, que já havia comido, e Júlia, pareciam ter
muita fome.
Com o aprofundamento da tarde, a sensação melancólica e trágica dos grandes cansaços
que os possuía foi crescendo ao passo que a chuva estia. Como se dá a mecânica do nosso
quotidiano, numa hora determinada do dia, auxiliado pelo fato de que a intensidade da chuva
diminuíra, o número de pessoas no bar tendeu a decair. Pouco a pouco a sineta tornava a tocar,
via-se um ou outro saindo etc, depois um ou outro grupo, depois outros, aí entravam mais uma
ou duas pessoas que é para disfarçar e não tornar as partidas muito chocantes, mas elas não
demorarão muito para escapulirem, e assim chegou uma hora em que foram praticamente
coagidos pelo óbvio, que o tempo é muito mau, a deixarem a mesa e colocarem na memória o
que em frente a ela havia acontecido, e na memória de todos, até que a terra os reivindique,
sempre estará. Não é preciso mais do que alguns olhares de adeus ou até mais, ou só alguns
meiosorrisos, que já está bom. Até a próxima que não sabem quando se dará, mas a intuição diz
que será na madrugada da próxima quarta-feira, no próximo encontro da sociedade.
Quando se dispersassem, uma vez saindo daquele bar, eles não seriam mais do que
aparentemente estranhos, não dispondo de nenhum laço em comum que os envolva, cada um
seguindo por ruas diferentes, talvez em bairros tão distintos que seria possível cochilar entre a
viagem de um a outro, cada um no rumo de sua própria vida, muito diferentes entre si. Era nisso
em que constituía o pacto, em nenhum vínculo nas fachadas, ao seu ver é nisso que se constitui
a realidade da união, que não se pareça, mas seja a própria humanidade por trás dessas
distâncias medonhas.
Despediram-se como quem acabam de sair de um cinema. Alex entende que o limite entre
suas vidas paralelas é estreito. Qualquer abalo pode comprometer para sempre a forma das
coisas estarem, o que pode mudar em qualquer dia desses. Já está mudando.
Ergueu discretamente a palma da mão, que é como se a palma fosse diferente do resto do
corpo e fosse mais sensível, e dessa forma averigua a freqüência dos pingos a chover, ainda
goteja e sentiu seus cabelos molharem. Olhou de relance para cima, o vento frio lambe o rosto e
as gotas cadentes vistas desse ângulo parecem pétalas se desfazendo, arregalando-se bem
estranho, uma cortina cinzenta e mortiça de nuvens cobre tudo de onde podia ver até todos os
horizontes, riscando com grafite irritado o alto dos edifícios. Olhou para trás, enxerga as janelas
do bar. Reluzia nas suas vidraças, numa linha comprida, apesar de seus olhos embaçarem pelo
mormaço, a coloração verde-forte das letras separadas formando o Schneider escrito. Ali na
calçada com a porta está vendo André, que no presente instante se despede de Habib, os outros
já teriam se dispersado, como Bublitz, que há pouco tinha desaparecido num grupo de pedestres
lá na frente, depois do estacionamento e depois das calçadas. Até onde conseguiu assimilar as
últimas reações, todos parecem um pouco mais repostos, é. Viu que André de longe o percebe,
o acenou apontando numa direção e franzindo o rosto como se lhe dizendo vamos andando?,
talvez possa te levar, uma carona, talvez, ao que o responderá com simplicidade que não, não,
vou tomando meu caminho. Ninguém insiste em se prolongar.
O viu ainda a caminhar pela calçada, se afundando nos bolsos como é típico desse André,
talvez pudesse prever cada um de seus movimentos, o jeito que vai fazer conchinha para tossir e
não lançar perdigotos em ninguém, que vai limpar a palma nas calças, o jeito de afundar o
queixo no pescoço quando for abrir as portas do carro. O viu ingressar pela fileira dos carros no
estacionamento, como está muito cheio de horário comercial acaba por perder o companheiro de
vista, hoje não os veria mais, até nunca, gostaria e não gostaria de dizer. E então é ele mesmo a
cavar as mãos nos bolsos e caminhar, só resta o seu passeio solitário pelas pistas onde podem
passar os carros a fim de estacionar, não veio nenhum e ele se dirige às calçadas, afundou o
piso nas poças d’água, o excesso da umidade crepita até aqui, no eco vindo de carros distantes
que esfregam o asfalto molhado. Fez uma curva na direção de uma das vagas, parou na frente
da janela do motorista de um dos carros. Tocou nela três vezes.
Júlia, ao notá-lo, tratou de girar a manivela do vidro, agora está aberto. Ela o fita com os
olhos erguidos, com o canto da boca segurou por um tempo, até finalmente expelir a fumaça do
cigarro que segura nos dedos.
– Se André vê, ele reclama – justificou.

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Alex nem quis imaginar o quanto. Permaneceu em pé, debruça-se um pouco para enxergá-
la.
– Há tempo não nos encontrávamos – ele comentou.
– É verdade – ela acata, sorrindo.
Silenciaram por alguns instantes. Ela fumava mas não deixava de olhá-lo. Ele parecia não
querer dizer nada.
– Não sentiu falta do teatro?
– Não muita – ela sorri.
– Sei.
E fazem mais silêncio.
– E estive pensando, nunca mais foi na XV? – continua.
– Não, sem tempo, não tenho esses luxos.
– Entendo. Pensei em algo por fora, nada a ver com a sociedade. Quem sabe?
Ela o olhou durante alguns instantes.
– É que talvez não seja uma ocasião propícia – simples e didática.
Alex desviou o olhar por alguns instantes, assim se manteve por um tempo, até finalmente
meiosorrir e olhá-la.
– Certo, entendi.
– Talvez em outra situação.
– Não, não, eu entendi, mesmo.
– Quer uma carona? Posso te deixar em casa.
– Termine seu cigarro, Júlia, eu não estou indo pra casa. Tchau, tchau.
Ela franze os cantos da boca. É bonito quando ela faz assim. – Certeza? – fala com jeito de
quem tem mais a dizer e não pode.
– O que diferencia a mim de você, Júlia? – falou em tom enigmático.
Ela o estudou por alguns instantes com uns olhos oblíquos.
– Não sei, Alex – e respondeu com naturalidade.
– Eu não tenho certeza de nada, mas ainda assim as faço – isso poder soar idiota, mas fez
parecer convincente, na verdade sabia o que dizia, tudo o que ela pode fazer em contrapartida
foi se calar.
– Até – ele falou, acenou com a mão, se coloca ereto e recua alguns passos.
– Até.
As fachadas de século retrasado emolduram o que deve ser a cara dos edifícios, se os espia
bem dão a parecer ter uma vontade cansada de contar muitas coisas, havia mais do que poeira
constantemente varrida em suas vísceras, há alguma coisa enrustida que as pessoas
aprenderam a ignorar, e as calçadas são um mar de panfletos e papelotes, de cartazes velhos,
rasgados e amarelos, e vão ocupando os espaços das paredes, propagandas de partido ou um
milhão de outras coisas, de perfumes caros até o filme que estreou no último final de semana, de
notas de crianças desaparecidas até de como é ruim nosso sistema de transporte. Alex identifica
mais a frente a faixa dos pedestres que têm de atravessar, o sinal dos carros está verde e a
nuvem de monóxido de carbono transborda para vir recebê-lo. Então detém sua caminhada por
algum tempo, não há pressa e não há nada que lhe pareça mais interessante do que parar em
frente ao cartaz do busto de um político com suas legendas publicitárias, mas não lerá a legenda
e tampouco os rasgados na imagem do sujeito, do qual nunca se ouviu falar e mesmo agora não
pretende. Por um lapso momentâneo foi sua imagem que viu delineada na parede. Os esgotos
estariam entupidos com sangue. Chegariam a ponto de borbulhar.
Já não é apenas ele mesmo, não apenas a alma atávica com o preenchimento negro que
imaginou a seu respeito, há esse carrossel de fogos rápidos girando em sua frente como
relâmpagos que estão errados em acontecer, cada partícula um disparo que se abre a cortar
uma cortina de fumaça, por trás de onde se pode viver uma multidão enfurecida se comprimindo
pelos limites das ruas, são todos sujos, uivavam feito loucos, os lobos que descobriram em si,
um cheiro de sangue ainda fresco a deixar todos insanos, sim, sim, a fumaça que subia das
esquinas incendiadas fede a carniça dos que já foram. Falando em sangue, ele jorrava negro e
escorria junto à chuva, serpenteava no chão dos mais tortuosos caminhos enquanto os
logradouros de corpos nus e machucados eram massacrados pelos pés dos que passavam, e
esses eram tantos, são incontáveis, não paravam, não se importavam com barreira que fosse,
gritavam, eram animais famintos, havia cânticos próprios de uma raça nova, primitiva e
desconhecida, é selvageria que não deixamos de gostar, não demorou que visse a imagem de
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guilhotinas e cabeças rolando, várias simultaneamente, as lâminas ensangüentadas, e então a
imagem de forcas, cadafalsos se abriam e lhe subia um ardor fulminante quando via um nobre
cair com a corda o asfixiando, todos enlouqueciam, era um furor odioso, apedrejavam o corpo
que se debatia, jatos de sangue espirravam, o corpo dava voltas pela corda, ouvia-se explosões,
estilhaços de vidro, concreto e lama voavam, o horizonte era rubro e negro, e essa nuvem
nojenta o cegou, e ele meiosorriu.
Sentiu algo lhe puxando acanhadamente o canto do casaco, olhou e deu algumas moedas
que carregava no bolso ao mendigo que o requisita. É um velho sujo dos que se embriagam
pelas sarjetas, lhe faltava a fileira dos dentes de baixo e quase todo o cabelo. Não pensou em
negar ao sujeito o pouco que pode ter. Obrigado, senhor, a voz saiu sufocada, deus abençoe o
senhor e a sua família. Alex não sabe se sorri ou se entende na gratidão nada mais que
covardia. São exatamente obsessões contidas nas palavras senhor e família que puseram este
cara na sarjeta que ele está. Além do mais, o coagindo a respeitar. Se fosse Alex, certamente
teria caído nas costas de um, o derrubado, sovado e levado tudo o que tivesse, não só algumas
moedas, muito menos depois de implorá-las, que, como não nasceu para rastejar, ainda que não
se deva haver predestinação feito essa, então entende que tem vocação de debater-se.
Um amontoado de gente se concentrava num ponto da calçada a esperar que o sinal se
abra. Alex se curvou e mergulha nos próprios bolsos, tateia por algo, o cigarro vai adoçar o
paladar. Um carro buzinou sonoramente, uma multidão de gente atravessa fora da faixa. Antes
que pegue um cigarro já está pensando em si mesmo.
Se quisesse sobreviver, teria de retornar à escuridão.

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Numa noite distante no tempo dormia envolto das suas peripécias, e sabe-se lá quais
teriam sido as da noite recém ida, provavelmente estaria desgrenhado e com o corpo doído de
surras e calçadas que não se lembraria no dia seguinte, mas e aí?, isso sim é hedonismo, esse
rapaz pensaria. Nunca havia bebido tanto quanto na última noite, saído da linha, nunca havia
estado tão perto do limite orgânico e social, do fim, certamente solitário e miserável, a única
perspectiva de toda essa era em que vivemos. Então, sonhava e viu-se diante de algo
inusitado.
Há um espaço estático, feito quadro impressionista, ali, onde nem as nuvens pretendem se
balançar sobre um céu aberto, mas tê-lo como pintura borrada é infame, o mundo se distorce
mas é verdade, esses são os traços que o definiam, assim lhe eram todos os traços que
conhecia. Alex via-se de pé num ponto qualquer, está solitário, mais do que nunca tudo que há
é o vazio, o ócio dá as cartas, jaz imerso em algo como um sono de pé. Pelos arredores se
estende a longa praça, dessas que vemos que de tão normais só podem querer nos mostrar
algo de muito errado, um jogo de sete erros gritante que está oculto, até se tornar escancarado
e fazer sentido. Até os comércios que tangenciam a água do mar circunscrita por um porto
estavam jogados às traças, não havia realidade senão o abandono, tampouco havia futuro ou
oportunidade senão a permanência eterna do que se via. A praça sugeria os seus antigos
habitantes pela sujeira que se arrasta sofrivelmente pelo chão, onde rastejam desde papéis de
balas desgarrados até jornais amarelados de datas que não são próximas de hoje. Sacos
plásticos grudavam no seu pé, mas muito delicadamente, era quase uma carícia ou um
cumprimento, olá, uma bola de feno poderia vir rolando, o vento lhe saúda no olá de ternura de
cachorrinho lânguido, e ele não se mexia de resposta. Acontece que se sente ameaçado pela
possibilidade de quebrar a tranqüilidade, tal como temia, talvez, olhar um daqueles jornais e
coincidentemente descobrir seu nome numa entrelinha nas páginas de óbito. Pensa nisso por
ter um dia sonhado sobre esse evento, e quando a morte já lhe trazia motivos para sorrir
acordou e descobriu que mortos não sonham. Não se decepcionaria, não dessa vez, não.
Compreende que esse sonho não lhe é novo, ergue-se o dejá vu da familiaridade. Já sonhou
isso. Por razões que não entendia, o sonho retornou nesta noite. Ergueu os olhos, acabou
encontrando pontos de fuga distorcidos entre os edifícios abandonados que se estendem
próximos e ao horizonte, o céu quer ondular. Nem as escadas-rolantes que davam acesso à
área inferior da praça, que se conhece por mergulhão, onde se tomam os ônibus, funcionavam,
e riu profundamente por nem as máquinas terem sobrevivido, o desastre de alguém que não
lutou. Disso tudo, o único infortúnio era que ele vivia. Sozinho, teria de aprender a se bastar,
mas talvez ninguém possa, após conhecer as relações, ou seja, simplesmente por já ter vivido,
ele estaria fadado a uma dependência eterna, uma dependência externa, viveria por seu vício
nos outros, carregaria essa dívida, o sonho de ser o que não foi. Suspira, e desejou nascer de
novo com a forma de um gameta vazio. Assim seria tudo diferente.
Eis o que procedera, em seguida, quando não mais havia correção, apenas aceitação de
estar nas ruínas das coisas que um dia foram algo mas agora não mais eram, nesse deserto,
ou paraíso que alguém se esqueceu de fazer feliz, que estava longe de lhe ser de suficiência
essencial. Sentiu uma inspiração da grandiosidade correr-lhe a espinha, percebia se dar conta
de muitas coisas numa cascata que descia por sua compreensão, então o peito se estufou.
Começava a se tornar óbvio, veja, era ele o senhor de tudo aquilo, deus ia contradizê-lo?, nem
deus havia, e ele podia se proclamar o que quisesse, até de deus, já que é ele o inventor dos
termos, tal qual o primeiro dos homens foi. Mas, a esse, deus ordenou que batizasse as coisas
diante de um estranho desfile de animais, já aqui ele esquece de batizar o próprio deus, ele
pode batizar a tudo mesmo que as ruínas já houvessem, e não é dele que viessem. Que
importa, se criaria ou destruiria como desejasse?, releria o conceito do vazio e da ausência,
lavaria sua mente, não dependeria mais de outros, era o gameta, o zero inicial para que fosse
o que bem entendesse, o universo partia de dentro, e não do seu vício. Reinventaria o homem,
seria ele o rascunho. E essa idéia tem de ter relação com o estrondo que logo ouviu.
Um reverberar que inicialmente nada mais é que um trepidar do chão de concreto. Agora
ele não sabia se provocara essa reação. Está acontecendo, está sendo criado, pensou se este
não seria o homem que residia em si e acordava. Não devia ser, então algo lhe escapava, algo
ainda residia fora de sua vontade. O coração apertou-se de enfartar, a razão esmilingüiu-se e
se acovardou. As curvas vazias da praça se mostravam da maneira que sempre foram. Se o
estrondo não viesse de seu coração, o medo de estar sozinho seria substituído pelo medo de
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estar ilhado num mundo vazio com alguma entidade desconhecida, a qual fugia de sua
vontade, controle e intenções. Algo que ele talvez tivesse conjurado, nascida assim de suas
vísceras, mas lhe sendo incompreensível, efeito em cadeia que ele criou, um novo estrondo
ecoou, logo após outro em seguida. Silenciou alguns poucos instantes, e logo veio o estrondo
mais uma vez, bem mais forte, um dum-tum-tum, e aquilo estava longe de ser o coração, vinha
num eco abafado além dos corredores das avenidas e prédios da cidade fantasma,
aumentando, aquela coisa certamente enorme se aproximava. Com a freqüência dos trovões,
percebia que se tratava de uma marcha gigantesca, ou o deus das tempestades em pessoa,
deduziu por lógica que centenas iriam surgir e se fazerem ouvir, seja o que fossem, seja o que
quisessem, só tinha uma certeza, iriam matá-lo. Mas, ai!, se não fosse isso?, não importa,
certamente seria algo gigantesco, capaz de tragar tudo, um edifício, a metrópole, quem dirá
seu pequeno corpo, sua alma, quem sabe. A descarga de adrenalina em sua psique foi tão
eletrizante que o receio o induziu a uma onda de pavor que o forçou a se ver livre daquele
cenário, foi como se uma lufada de trevas comesse sua visão, e num movimento de pálpebras
as coisas todas mudassem e fossem atiradas num rodamoinho, e o pobre Alex acordara.
Alguém poderia reprogramar a velocidade das coisas, ou, até mesmo melhor, bem que
elas poderiam tender a parar por si mesmas e esse sexo de vertigens com o escuro se
acalmasse. Moveu as mãos, tateou desnorteado a superfície onde deita, seus dedos
afundaram, talvez fosse água do mar, muito provável. Só depois de certo tempo deslizando os
dedos fez, inicialmente, a distinção entre sólido e líquido, e muito posteriormente descobriu que
as ondas nas quais está são lençóis e colchão. Ainda maior foi a luta de conseguir levantar as
pálpebras e evitar que as órbitas oculares se embrulhassem para dentro do crânio, lhe diriam,
não, não, durma de novo, que há hora para tudo, e essa não é tua. Heróico, conseguiu revirar
a cabeça de um lado ao outro e de cima para baixo até enxergar poucas luzes na madrugada,
vindo por janelas mal cobertas. Me tornei um vampiro, pensou. Bem, é o fim. Depois de tanta
preferência pela noite, depois de tanta insônia, era meio científico isso acontecer. A luz nem
era solar e já queimava suas córneas. Piscou muitas vezes, o sonho já não fazia mais
diferença, ocorria a infiltração da vida por seus poros, com toda sua crueza triste e má, isso sim
era importante.
Assustou-se quando se vira para o lado, depois de conseguir superar a preguiça, e uma
das costelas descobertas pelo lençol desarranjado dá de encontro com alguma outra coisa
estranha. Uma nova superfície, sorriu ao notar o braço macio de uma fêmea dorminhoca, longe
de ter seu sono abalado. Sorriu porque, naquele instante, não faz menor idéia de quem seja. O
rosto está coberto pelo travesseiro. Não se empenha muito. A deixou para lá, roncou
sonoramente e assistiu danças de vultos no teto, sua cabeça é esse quarto estéril de vultos no
escuro para os quais cães confusos uivariam. Alex não se encontrava. Sem saber por que
julgava boa essa situação, pensava que no futuro as coisas seriam melhores para ele se
houvesse a queda de todas as coisas. Acha que só nos escombros de tudo ele finalmente vai
se encontrar, talvez seja esse o significado do que viu. E quis vomitar. Um pouco lhe escapa
pela garganta, a glote treme, contraiu-se, mas acaba contendo o fluxo que vem. Tudo silenciou
em seguida.
Quando acorda de verdade tem aquela sensação de que nem sequer adormeceu. É isso,
as coisas se vão no piscar dos olhos, uma dor de shiatsu mal feito se estende na sua nuca, o
teto, que na sua confusão achou estar escurecido pela penumbra, agora cintilava brilhos de
sol, como um aquário, o sol entrando com maldade de queimar-lhe os olhos.
Cruzou os braços sobre a nuca. Pensa em caçar o maço de cigarros que via ali, aberto e
amassado, logo ao seu alcance se estender o corpo, esse diabo tentador que seduz a vencer a
preguiça logo no criado-mudo. Mas não há isqueiro por perto.
Perdeu um pouco a cabeça, bons tempos eram aqueles em que estava cercado de rostos
conhecidos e esperanças, mas ele nunca soube realmente quais eram esses bons tempos e
nem esperanças do quê, apenas refletia, como se fosse normal que tivesse um passado
imaginário sobre o qual se apoiar, de qualquer forma quem fala sobre essa história de bons
tempos são os românticos, e ele os detesta, talvez só não mais que os hipócritas, às vezes o
poupam do trabalho do ódio e se fundem num gênero só, mas então, que nesses bons tempos
ele vagava dia-após-dia da melhor maneira que achou poder idealizar para si mesmo, as
pessoas gostavam dele o suficiente, era acolhido por gente que igualmente podia contar com
ele, de que maneira?, essa resposta é simples, se tratava de boa gente. Não havia muito o que
fazer, a não ser bobagens do seu interesse, da mesma maneira que não tinha que correr muito
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atrás das coisas que hoje em dia é coagido a correr, coisas necessárias, por exemplo, à
sobrevivência nas cidades grandes, como ter de sair para fazer compras, não é que o faça
muito, não esconderá a predileção pela preguiça e pela facilidade, mas tem de manter algumas
responsabilidades, ao menos as mínimas, que ninguém é assim tão budista e livre, e para isso
usou-se de pequenos empregos ou um bico aqui e outro lá, empacotador, atendente, office
boy, algo que o fizesse fingir a si mesmo que fazia algo além de arrastar-se pela vida, self-
made man a deixar a vida parasita. Acontece que gosta dela. Nos serviços que arranja nunca
fica muito tempo. Prefere viver desempregado e pelo favor de algum conhecido. Olhou para
fora da janela e bocejou, se aninhando no colchão. Era um dia bonito.
O último problema habitacional que teve, há uns três meses e quebrados, foi resultado
infeliz de envolver-se com a irmã um tantinho mais jovem do amigo que o hospedava. Era um
bom rapaz, esse amigo, apenas conservador demais e demais sensível. O seu erro tinha sido
atiçar o temperamento das brincadeiras de Alex, o encorajou demais, é que Alex no começo é
simpático e faz com que pensem que podem suportá-lo, logo a Alex, exatamente o sujeito
conhecido por não saber se pôr nas rédeas, por não medir-se, por essa compulsão de não ter
limites, que não se pode oferecer a mão que já há de querer mais, e à mão posta no fogo é
esperado que se queime, ela queimou-se. É, sim, há erros de expectativa, logo vemos que não
podemos dar a mesma moral para todo tipo de gente, mas quanto a essa doença de Alex
pouco ainda pode ser dito. Pode-se perguntar o que o levou a ser assim, se chegará a diversas
respostas, por exemplo, foi a sua criação de merda, de libertinagens, sua mãe era assim, uma
fumante descabelada muito doida, seu pai era ao avesso, toda explicação existencial que soa
bastante convincente principalmente porque é simples, e as pessoas adoram respostas e
conclusões, não importam se elas merecem a coisa ou se a tornam ridícula, como dizer que
foram os tipos de pessoa com quem o rapaz conviveu e tem convivido nas ruas, que eram e
são das mais variadas estirpes, uma mistura perigosa de se fazer por aí, glicerina e ácido
nítrico. Alex prefere a história de que viu um cigano ser costurado vivo dentro do estômago de
um cavalo. Até onde lembra tinha se inspirado numa história romena. Ou dizer que em certa
ocasião fugia por bosques escuros e sombrios das terras desoladas em que viveu, continua
sendo uma história romena, e nessa noite sobreviveu às agruras do destino, não antes, é claro,
de ver todos seus irmãos estuprados e chacinados por um grupo de bandoleiros, ele nunca
teria se recobrado desse trauma, eram vermelhos e cruéis os olhos dos ciganos. Cansa da
história, parou de pensar. Aos finalmentes, a irmã desse rapaz não se encantou com a
criatividade ou sabe-se lá o quê – e ele usou realmente a história do cigano, mas ameniza ao
dizer que se deu com um conhecido – mas pela sagacidade, machismo, asquerosidade e
independência, que isso acaba sendo o que importa à gente, encantar-se com algo que
convença, não importa quão suja essa coisa seja, desde que tenha alma, porque tudo que nos
cerca é um tanto vazio. Alex pensou que seria uma desculpa convincente, ou ao menos um
pretexto para não se fazer de coitado e nem de culpado, que não apraz, dizer ao tal irmão que
o grande problema entre os dois era a questão conceitual. Ou seja, você acha que isso é lá
algo ruim, mas na minha mente não funciona assim, então, são valores distintos, não é porque
comi tua irmã e não a quero mais que a idéia foi ofender, e não é isso que me torna um
canalha, tente entender. Estica e distorce todas as coisas para se safar de algum julgamento
qualquer, isso porque dizia, ora, um instante, veja bem, eu dar um trato em tua irmã e fazê-la
chorar não significa, a mim, que eu seja um cretino, veja bem, do meu modo eu gosto dela,
apenas nos movemos por causas distintas, então temos que considerar essas diferenças
quando formos considerar cada pessoa, não é?, as pessoas são feitas de diferenças, aprender
a reconhecê-las é essencial, então não seja tão ávido comigo, antes de tudo considere minhas
intenções. Enquanto ele dizia essas coisas ele mesmo ia pensando, ninguém pode me julgar,
ninguém pode julgar um ao outro, eu sou inteiramente permitido, enquanto isso cretino pior que
eu não há, olha o que estou dizendo, é mais do que um insulto a tua inteligência, ninguém
poderia infringir drama algum aos outros, nenhum de nós é capaz de causar dor, tudo de tudo
é permitido já que cada um por si só pode convencer-se de que é inocente do que se faz.
Todos são inocentes dos próprios desejos, a não ser que sofra uma lavagem cerebral e
passe a se martirizar, é o que propõe, por acaso, umas religiões. Que besteira estou cá
pensando com meus botões, se diz, já sabia que essas palavras idiotas não claudicam a raiva
do amigo, ex-amigo, o responsável por tê-lo feito passar alguns dias com mochila nas costas
num albergue bem barato do centro da cidade, até encontrar um outro hospedeiro, vítima
qualquer, para que o aconchegue no seio familiar. Sua vida não é diferente da de qualquer
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outro, da mesma forma que muitos haviam nela entrado e alguns até hoje permaneciam,
muitos já tinham dado um bom beijo, um abraço e despedida.
Ouve o som de carros distantes, sopravam de algum lugar da rua, o espírito da cidade
grande o animava, os doloridos movimentos diurnos, parto e vida vêm com dor. A impressão
de estar muito acima deles e igualmente estar longe é pacífica, é como ver toda coisa sem ter
de opinar. As lembranças específicas dos tempos em que teve, nessa região metropolitana
distante de onde se fundamentou a sua vida, de perambular por albergues, lembrou-o dos
longos dias em que teve de conviver com a república na qual vivia, dessa ele trazia umas
tantas boas lembranças, essa mesma época, essa sim ele reconhecerá como sendo de maior
produção, não que alguma vez na vida sentisse que tivesse sido o bastante, mas fora útil. Ele
era útil. Não tanto, mas era. A juventude muda tudo, o ânimo define todas as coisas, e por isso
velhos deviam ser proibidos de pensar ou se manifestar de qualquer forma, pensou. Ele
mesmo seria esse velho.
Nota o braço desnudo que deita ao seu lado agora a envolvê-lo, o resto do corpo sonolento
de mulher ronrona nos princípios do que deve mesmo ser um bom dia, e nada adianta ser tão
bonitinha mas tão inconveniente, há momentos na vida de um homem que não se toma, há
meditações preciosas da mesma maneira que é o sono, a coisa mais íntima e independente
que se tem é o sonho, e por isso, por respeito, não se viu ele berrando para que ela acordasse
quando por acaso ele despertou e a amnésia a apagou das memórias, mas não, e agora é o
que ela vem a fazer, compensando com um carinho que não se faz, isso que é gratidão, esse
fingimento de inocências. As coisas não são tão péssimas, finalmente vai descobrir quem é.
Bem, o princípio de reconhecimento vem quando cabelos louros começam a escorrer de
debaixo dos travesseiros, ele gosta menos das louras e preferia mais as morenas, ainda assim
há umas ramificações da estética que contribuem para uma rigor a priori do que é do seu gosto
etc. Por exemplo, prefere mulheres mais baixas que as mulheres altas, mas se com uma
qualquer ocorresse de ser baixa demais, seria certamente mais feia que uma mulher muito
grande. As ruivas são meio-termo interessante mas não se deu bem com a maioria, que pena,
a irmã daquele sujeito era realmente uma graça. Pensar demais excita a enxaqueca, o perfume
muito doce que começa a sentir a brotar dessa agitação nos lençóis o faz enjoar-se. Tenta
imaginar que tipo de mulher dorme perfumada, esse vestígio nojento do cheiro que a noite
apaga, e chega a uma conclusão que um outro menos brilhante chegaria, dormiu com uma
puta. Ela se virou sorridente e realizada como quem finalmente sai de um sonho. Ele gosta de
ver mulheres quaisquer acordando, e não só as mulheres, mas não tem hábito de acordar com
algo além delas. Ela lhe parece bem mais espontânea e sincera, o caráter muito melhor do que
aquele que teria quando estivesse de pé. Apoiou-se no ombro dele carinhosamente, o que o
faz amolecer.
– Bom dia, amor – murmurou, tão lânguida, a jovem e tenra mocinha. Bonitinha.
Marta, Cláudia, Elisa, e agora?, Paula ou Luísa?, piscou os olhos para só então as
covinhas na bochecha e o rosto sonolento se fazerem inconfundíveis. Ana?, perguntou, a
garganta seca, a voz rouca, sentiu como é difícil dizer oi, você me acordou. A garota abre seus
olhos e é tomada por um choque tão grande, de quem berra por um desespero do qual só resta
a intenção, que a voz abandonou. Só a possibilidade de ouvir um grito já o dói, e ele
apunhalado se remói, e o semblante que vê não mais o chama do amor de agora há pouco.
– Alex? – ela resmunga.
– Oi.
– O que você tá fazendo na minha cama? – deu um pinote, a impaciente, bom dia,
escândalo.
– Acho que confundi com o sofá.
– Mas que merda – olha só, com esse temperamento ela estraga não só o dia dela, mas o
de todo mundo. Depois, falar que mulher é escandalosa é generalizar. Aquele grito estridente,
e a própria natureza de tudo ocasionar gritos, é certamente genético e feminino, um dia algum
cientista desvendará os mistérios por trás disso.
– Desculpe.
– Alguém andou se divertindo demais ontem à noite. Cadê Marcus? – ela continuou. Por
favor, Marcus, surja, ela não está te chamando?, surja e faça ela se calar.
– Se ele não está aqui com a gente, deve ter se divertido sozinho.
Ela nega, nega ou se lamenta.

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– Me dê um beijo de bom dia – agora é ele quem precisa se calar, por favor, alguém o cale,
e ele bocejou.
– Acorda!, e se levanta de preferência. Se o seu amigo dormiu no seu sofá mais uma vez,
é muito justo que seja você a acordá-lo – ela começou a se levantar, causa seu estardalhaço
pelos e sobre os lençóis. Resmungou e, em meio a risos que diziam que absurdo, que idiotice!,
e bufas um pouco mais graves, preocupava-se de encobrir a nudez do corpo, puxando a roupa
de cama.
O fato dela definir o sofá como sendo dele não caracteriza exatamente uma posse, não
lhe é uma razão para se orgulhar ou um dia ostentar como seu ou coisa assim. Na verdade,
está sendo profundamente coisificado, a sua natureza depende estritamente da natureza de
um sofá, é o seu lugar, sua casinha-de-cachorro, não se trata de um sofá qualquer, mas
especificamente o sofá ali na sala, ele pensou, o indício da gênesis de minha essência.
– Que foi?, não tem nada que eu não tenha visto – fala da nudez coberta, não do sofá.
– Viu porque é um escroto. Você vai ouvir umas boas que estão reservadas. Acorda,
porque se não for agora é depois. Você vai ouvir. Estorvo de merda – agora ela mais ria que
qualquer coisa.
– Não quero ver nada, mesmo. Por favor, apenas ache meu isqueiro.
Ana cruza o quarto caminhando a chacoalhar os joelhos, que garotinha esperta, que fala
sobre o estado da gente mas suas pernas a se trocarem também são lá visíveis, ao que se
vale aquele ditado do cego falar sobre o caolho, ou de já ser rei quem tem ao menos um olho,
ele não sabe bem. Agora ela ia ao banheiro, a porta se fechou com sonoridade porque parece
muito claro que ela não calcula o quanto deve empurrar para que se feche sem incomodar
ninguém, às vezes quer mesmo incomodar, incomodar é mostrar que existe, continuemos.
Bocejou tanto que doeu, e se espreguiçou. Enquanto se esticava, que coragem, aproveita
para alcançar o maço, escorregar os dedinhos através da imensidão longínqua do criado-
mudo, aí, logo depois tratou de esticar com um pouco mais de esforço até conseguir alcançar a
fresta de uma gaveta, puxa corajosamente, que coragem, revira, revira, revira, em algum lugar
estará, misturado com bijuterias e roupas íntimas, o isqueiro. Agora sou completo, pensou.
Uma longa preliminar até que meta o fumo na boca, para o prazer ser maior, e não vislumbrou
nada mais que isso, virou-se com a pança para cima e fumou.
Que será que há de triste com o homem que não vislumbra um destino?, o futuro é sempre
uma certeza, mesmo que ele seja a morte, já que depois não se há sequer homem para
divagar sobre essas coisas, sequer homem a ser suposto. Mas Alex é um desses caras
quaisquer que não procuram vislumbrar muitas coisas, mas de muito entender o presente
acabou criando o fetiche de criar tramas hipotéticas para o que lhe poderia acontecer, a olhar e
dizer que isso é assim, assim e pode ser ao contrário, e tenho dito, coisa da gente que tece o
futuro, mesmo que o futuro para acontecer não precise ser visto, e não é que ele se preocupe
em fazê-lo, apenas sabe que virá.
Foi interrompido com um novo estalar da porta do banheiro, presume-se que Ana não
queira passar lá o dia inteiro e tenha saído. Estar vestida é como um gesto de escárnio, e é
bem mais que impressão quando a vê sorrir com o canto dos lábios, assim, como quem
caminha, mas bem se sabe que se olha e provoca. Gostaria de identificar esses níveis da
insinuação da mulher, quem sabe se não estivesse cansado demais para esmiuçar o seu
comportamento e se a nicotina não fosse mais fascinante. À parte das malícias, era uma boa
camarada. Sem mais olhares direcionados, já que a sedução entre amigos, nesse jogo
ocasional de poder, requer limites para não beirar o esdrúxulo, retirou-se pela porta oficial do
quarto, dando a Alex pouca visibilidade do corredor mal iluminado ao lado de fora, pouco antes
da porta fechar-se e o silêncio retornar, a paz que eu não sei se quero ter, e que vem-e-volta.
Deixa que as cinzas caiam no tapete, a ardência o reconfortou, e ele deixa-se sonhar. Sentiu-
se como numa parábola que ele ouviu certa vez de uma dessas religiões orientais, essa dizia
mais ou menos assim, sobre seres – ou insetos, ele não lembrava, mas pensar em seres é
mais místico, que combina mais com o critério oriental – seres que enfim viviam no fundo de
um rio, e todos esses se apegavam a pequenas plantas para não se deixarem levar pela
correnteza. É mesmo uma metáfora das forçadas, isso é, fica pensando em quem ficaria
imaginando uma história onde bichos, seres ou seja lá o que forem viveriam dessa maneira,
que fim pretenderia para essa sandice, mas ele a está usando e isso deve fazê-lo um pouco
mais imbecil. Acontece que um desses seres resolveu se soltar e deixar-se levar pela
correnteza num espírito do tipo, eba!, hei de conquistar o mundo, hei de ser o pioneiro desses
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horizontes por se descobrir, arreganhar a tantas coisas ocultas, acessíveis somente por uma
coragem feito a minha, bravo etc etc. Alex era esse ser, sempre se identificou com ele. Está
certo que no fim, conta-se a parábola, o nosso já familiar bichinho é tragado e se despedaça
nas rochas do fundo, e a história já começa a se transformar numa analogia que remetia muito
à cristo, principalmente quando os demais seres começam a laurear o tal que se desapegou,
dizer que ele era o messias, o predestinado, que haveria de retornar para guiá-los, libertando-
os daquele apego e não sabe-se mais do quê. Procurava esquecer essa parte, já que
provavelmente essa era a ocidentalização das coisas, muito provavelmente uma das
adulterações, e mesmo que a história mesmo não sendo ocidental já fosse um tanto bobinha,
gosta da mentalidade do serzinho que se soltou e não se questionou o porquê para evitar
indelicadezas, gosta e tenho dito, e talvez a história faça mais sentido se ela terminasse
quando o ser se esborracha e ponto final. Quem sabe também um dia Alex fosse cristo, ou
outro título desses com tanta polpa, só não gosta mesmo muito da idéia da crucificação, e
começou a ouvir coisas através das paredes, não são os romanos chegando.
– Levanta. Já que não se incomoda de deixar outro homem dormir na cama com sua
mulher, ao menos tenha a consideração de não agir como um palerma no dia seguinte.
– Por quê?, tem problema?, você também acha que ele me apagou?
– Levanta.
– Calma, se ele conseguiu fazer alguma coisa contigo no estado de ontem, acho que ele
merece ficar com você de vez – e ria a voz sonolenta, antecedendo um longo instante de
compridos falatórios, que de uma queixa vai-se ouvi-la prolongando-se para muitas outras,
certo, substituamos o escárnio e nos rendamos à verdadeira irritação, aqui estamos nós, em
algum momento de confirmação do casamento tornado antiquado.
A verdade é que é um rapaz bastante compreensivo e paciente, outro já teria levantado-se
e gritaria, vocês têm visita, podem calar a boca?, ah, agora sinto-me outro, leve e libertado do
seu peso matinal. E, bem, quanto ao estorvo que é lá sua presença, – estorvo, não ignorou e
não retrucou quando Ana o chamou assim, prefere manter-se relaxado, deixar que as coisas
girem como o mundo preferir, ou talvez as coisas na verdade andem, enfim que façam o
movimento que preferirem. A realidade é uma questão de ênfase, ser um problema não é nada
porque os problemas têm o tamanho que dedicamos de atenção a eles, assim como toda a
preocupação, e ele não se dedica atenção alguma, pretendeu passar despercebido pela vida
como estando acontecendo sem querer.
Ergueu-se depois de pensar muito se realmente devia, e quando finalmente o fez foi junto a
uma cortina de fedor de suor seco que vinha de seu corpo. Deixou estalar alguns dos músculos
inferiores, enquanto ouve um espetáculo que nomeou ópera da cozinha. – Não importa o dia
que foi ontem, vamos falar do dia de hoje, a coisa importante é que tem compromissos
agendados, – Isso é uma irresponsabilidade, veja só, como você se poupa, como você foge
dos esforços, todos comemoram, mas eu, por exemplo, cheguei a ficar no seu estado?, – Não
importa que horas eu voltei ou como eu estava, – É, sim, no teu caso importa, sujo, deprimente
– falava Ana não tão alto, mas pelo timbre sobre-humano e pelo que nos ensinam essas
paredes, certamente a cacofonia chegará até os vizinhos. Para completar, ouvia a louça
manuseada agressivamente. Se alguma dessas broncas realmente afetasse profundamente o
quotidiano de alguém, não estaria ainda assim servindo a mesa, mas sim a quebrando, ou
jogando os copos nas paredes enquanto berra, senão na cabeça do marido ou na própria.
Assovia para lembrá-los que ele existe e girou a maçaneta da porta. Ótimo, pensou, notaram
minha presença e ainda resta um pouco de constrangimento no seio familiar, não importa quão
desestruturado que seja, não é que ele queira se inserir num, muito menos nesse, quer menos
ainda ouvir resmungos que não sejam seus. Saiu pelo corredor modesto, a impressão que
diariamente tem é de que a decoração está longe de ser acabada por questão de faltarem
recursos, coincidentemente é essa a verdade. A parede esquerda ficava coberta por uma lona
de plástico porque uma infiltração há alguns meses esteve descascando ela e algum
espertinho inventou que o plástico servia para isolar, a outra parece que também sofreu de
infiltração, mas o problema foi que ele teve surto de ajuda e se meteu a pintar, estragou tudo.
Sou mesmo um vampiro, pensa e, ao notar que a luminosidade na sala é ainda mais forte do
que se permite ao acordar, ah!, sou cinzas, estou derretendo, lá vou eu etc, não fala nada disso
mas ensaia os movimentos correspondentes. Pigarreou enquanto coça a perna, o que soa
como seu peculiar bom dia, e tragou mais um pouco de cigarro, vê a silhueta de Ana
estremecer-se pela cozinha, em contraste ao traste que se assenta no sofá, que por sinal é seu
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e ai de quem o queira, o traste que não é ele esfregando o rosto de uma maneira muito
parecida à que Alex há pouco fizera.
– Filho-da-puta, dormiu melhor do que merecia – disse o homem, a arrotar.
– Ana cuidou de mim, todo o mérito é dela.
– É claro. Por que me casei com ela?
– Porque você me ama, trouxa – gritou a voz da cozinha.
– Não, que isso é só às vezes.
– Espero que ela tenha feito mais do que eu me lembro – disse Alex.
– Cala boca, Alex. Se adianta e faz alguma coisa, vem me ajudar aqui – gritou a voz.
– Já vou – não vai.
E rastejou sentindo-se pesar, espirra por despertar o fôlego do carpete empoeirado, onde,
próximo ao sofá em que usualmente dormia enquanto hóspede do casal, deixa jogadas as
duas mochilas que traduzem todos seus pertences.
Uma delas ele carregou, acena com algo similar a um último bom dia ao companheiro
Marcus no sofá que tomou emprestado, o qual pede lá suas coisas fúteis para a esposa, uma
xícara de café, uma massagem, que fechasse as cortinas, e a mulher não fazia mais que
discursar sobre competência doméstica, enquanto competentemente cozinha. É que Alex se
ocupa muito pensando. O banheiro tem anjinhos de sabonete que a moça deve ganhar de
brinde no serviço, sei lá.
Lá ele está, enxaguando o rosto e tratando da higiene que se esquecerá pouco depois que
completou, escovei mesmo os dentes?, hein?, que faz tudo adormecendo, como por exemplo
escovar os dentes. É quando muitas coisas aconteceram, e muito possivelmente essas coisas
tiveram o seu diferencial emocional ocasionado por uma seqüência de pensamentos passados
que de tantos não o cabe resgatar, será crucial ao influenciá-lo a tomar umas decisões sobre
toda a estrutura de sua vida, se repense, ele se diz. O que não demorará a acontecer. Eis o
fato substancial que realmente acontece, a pasta de dente no recipiente atual não é suficiente
para que escove totalmente a boca e, erguendo a mochila para que se possa abrir o armário
para que se possa buscar uma nova, não notou certa abertura já presente na própria mala e
acabou ignorando que o zíper escorregasse entre seus dedos, deixando que muitas coisas
interinas escorreguem, até que parem de encontro ao chão. Inicialmente sentiu o pequeno
desconforto típico de alguém que deve arrumar uma bagunça desnecessária, e que sua busca
por algo fútil se tornará desgastante. Calma, não é o fim do mundo. Mas logo deixou de
preocupar-se quando uma nova demanda de coisas simples, por coincidência, caíram
praticamente em série da mochila, e a reunião dessas coisas em específico pareciam fazer um
sentido sinistro. Eram anotações desorganizadas que ele mesmo havia feito, surpresa, até
mesmo um ou outro trecho de qualquer coisa que via por aí mas não faz muita diferença,
propaganda nova ou coisa interessante que ouviu alguém comentar, que algumas coisas
precisam ser guardadas, e o caso de outras é que anotadas ficam melhor. E essas todas
parecem estar querendo pulular ao mundo, se fazerem ver. Deslizaram por pastas mal
grampeadas, coisas impressas ou escritas a mão. Dentre essas, a sua coisa, que não é muito
mais que isso, coisa, que historicamente mais se destacava, não só pelos enfeites como estar
quase encadernada, com um letreiro que define uma identidade mais talhada e que dizia, no
seguinte nessa sua capa principal, A dialética da liberdade.
É que um dia ele se disse, só tenho talento para ver as coisas, então pensou, pensou, e
chegou à conclusão que tudo que podia fazer era dizê-las, as escreveria e vai lá, com alguma
tolerância poderia lê-las de volta. E por não ter mais o que se fazer, ficou olhando a gente e fez
a dialética da liberdade, umas anotações quaisquer, tratou da liberdade especificamente
porque esse lhe foi um tema sempre controverso e instigante, apaixonante e dúbio, um valor
que mais parece estar acima de tudo, o que o leva a crer que também acompanhe desse alto o
nosso processo de fracasso, tudo isso o fez acreditar que a liberdade é, por uma série de
motivos óbvios, mas que irá tratar, o estado de espírito que mais impressiona e seduz o
indivíduo.
E cabe a ele o mérito de libertar-se de todas as mastigações que já o deram, – o que é a
liberdade?, e como e por que a gente tratou de desvirtuar o sentido mais basal do fazer o que
quer que seja do agrado, seja com a intenção de controlar seus povos, seja pela intenção de
fazer o sentido parecer glamuroso em usos nada charmosos, seja pelo intento de tornar a
convivência suportável, seja na intenção de alienar e seduzir nossa inteligência, como líderes
exímios fizeram e nações poderosas desse mundo fazem até hoje, porque praticamente
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associam o símbolo da liberdade com deus. No fim, Alex nos ensina que o discurso feito, a
usar-se da liberdade como protagonista, cabe-se exatamente para legitimar a existência do
controle, que ninguém assume ser contra a liberdade. Todo mundo crê-se libertador. Controle,
diz-se disso ser a liberdade pública, diz-se ser um estado moderado das coisas e das
interações, mas não existe liberdade que seja das coisas, não existe liberdade que não seja de
pessoa, que não seja individual e extremamente íntima, dizia Alex, já que liberdade é um ato
exclusivo, que só um homem pode exercer, já as coisas não são e nunca serão livres, e por ser
assunto de pessoa só se a entende por cada um por si só, não existem coisas livres, lugares
livres ou qualquer sorte de coisas assim, apenas pessoas presas ou não, conclui-se por fim
que não se possa ter liberdade num estado onde haja qualquer forma de repressão, ameaça
ou medo, o que deve ser o contrário do que todos esperam, porque a liberdade na verdade é o
que menos veneram, a liberdade é o caos aonde as pessoas acabam se amedrontando, o caos
que elas trocaram pela segurança de uma vida cheia de controle, mas é. É isso o que
escreveu, usou-se de muitas linhas para explicar o que agora faria em umas poucas.
Não sabe por que escolheu falar de um mundo que também o define através da opressão,
da coerção e das tradições, de se dizer o que lá é certo ou errado apoiado no gigante que
precisa ser destroçado urgentemente, então, ele sentiu-se intimidado a destroçar esse gigante
da moral, essa moral é a principal causa de burrice, toda disciplina é um fracasso porque não
há para ela um por quê? que o responda e ao mesmo tempo o satisfaça, em seguida, ele
assim pôde ditar que por isso a moral é feita para ser destruída, talvez seja essa a vingança
por ela existir sem ter pedido licença, certo, falava da moral, ainda teimam em alimentá-la por
pensá-la necessária ou coisa assim. E exatamente por sua dialética não prever nenhuma
correção para a raiz desse mal, o que acabava é por simplesmente identificar as causas dele,
enquanto a correção tornou-se flutuante, beirando a história imbecil na proposta do se
conscientizar. Alex entende que se conscientizar representa mais ou menos o seguinte, todos
pensando da mesma maneira, agindo da mesma forma, achando as mesmas coisas certas e
admitindo que isso seja sempre bom, vivendo na harmonia que devem viver aqueles que
simplesmente se iluminam, ainda que nunca os conhecerá porque não devem vir nunca a
existir, um desses admiráveis mundos novos, que se não é homogêneo é de heterogeneidade
prevista. Continuando, quando qualquer um fala que, ora, para mobilizar essas pessoas, para
acabar com esses problemas x e y que nós vivemos, que são as mazelas mais horríveis de
nossa vida, para mudarmos nossos hábitos e para salvarmos as baleias, para mudar o mundo
e para poupar as plantinhas, basta que toda essa gente se conscientize, ainda que eu não
saiba bem o que quero dizer, mas na verdade é isso aqui, que meu entendimento é supremo e
essa gente é toda estúpida, e veja só, até minha inteligência é superior a elas, portanto, por
que não me deixam guiá-las?, por que você não me deixa te guiar?, por que simplesmente não
aceitam a minha via, a estrada da consciência?, por que não aceitam a mim, que desejo
esclarecê-la?, que sou meio que buda? Há muito esse discurso deveria ter se tornado um
fiasco, uma pena que ainda vigore, ele se lamentava, mas não é que se importe muito.
A desagregação de seus antigos companheiros de moradia ocasionou na perda de
qualquer oportunidade de estadia, e quando ingenuamente achou que poderia levar em conta
os seus contatos no labirinto urbano, é claro que realmente achou que iriam estender-lhe as
mãos sem pedir-lhe o torso, viu que improvisar o próprio destino não é assim tão fácil, teria de
trabalhar, dar-se ao batente das pessoas comuns para conseguir se manter. Arrastou-se e não
durou muito tempo em lugar nenhum. Até que Marcus o acolheu, simplesmente acolheu o
amigo desempregado, sem ter onde viver ou cair morto. Tudo provisório. Encontrava-se nesse
estado de letargia e ausência de recomendações. De qualquer maneira, sua mente nunca se
excitara tanto enquanto estivera escrevendo mecanicamente para o jornal, coisa que abomina
fazer, não fazer coisas por reflexo, mas acomodar-se, que qualquer obrigação lhe é tão difícil
quanto um trabalho braçal, é por isso que volta e meia está a debater-se, feito bicho que sente
algo errado nas entranhas, precisa mudar, só não sabe para quê, constantemente não tem
conseguido, mas agora a sua mente se excita pelas memórias, que ele mais parece ser
fogueira condenada a nunca se apagar, que pode sozinha crepitar, e suas idéias são grandes,
berra, grandes!, grandes!, sempre foram! Você não é medíocre. Você não é um verme
subempregado. Agarre o mundo, decifre essa esfinge milenar em frente aos seus olhos, essa
esfinge ridícula do espírito de homem que a gente teima em achar difícil e achar beleza, Alex,
grite sobre a verdade para o mundo estúpido, seja esdrúxulo, cruel, chocante, autêntico, faça-

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se valer, que das trevas jorre a luz ainda que muito mais se aplique o vice-versa, rufe os
tambores da anunciação, toque os clarins da verdade.
– Alex, não monopoliza o banheiro, merda! – urra uma voz insensível.
Ele enxaguava os dentes e olhava sua figura embaçada no espelho. Ao contrário do que
pode ser pensado, o berro não o distrai de seus objetivos, que ele não sabe ao certo quais são,
mas cultiva com carinho uma semente. E é cuspindo na pia que arquitetou tramas sinistras,
estratagemas de guerra, depois enquanto tomava uma ducha quente, e lá cogitou sobre a
influência de pessoas na sociedade as quais poderia recorrer, até modos de manipulação aos
quais poderia recorrer, e esforços que poderia empregar, também uns que não poderia.
Muitos instantes depois a sua consciência já havia visitado cenários diversos, todos muitos
distintos entre si, assim como abrem-se os caminhos das diferentes escolhas, estradas com
bifurcações que na imaginação vai a percorrer. O peso da água sobre as costas é quase
delicioso, o fracasso do quase vem por ser sensação adormecida, que se perdeu por
acostumar-se, mas deixou-se massagear com os braços esticados e balançando as jubas, ao
mesmo tempo em que os foscos azulejos representam, de tanto olhá-los, ou espelhos ou
pontos de fuga. O vapor proveniente do calor era tanto que tornou invisível todo o boxe, o
cheiro era quase de uma sauna perfumada de eucalipto, tão oportuno que desacordaria e
sonharia ali mesmo, se não tivesse a obrigação emergencial de continuar pensando. Como um
cão molhado, saiu do banho e se refestelou nas poças criadas, secou-se com uma sacudidela
e abanou o bafo quente do banheiro. A água do banho é como a metáfora do rio, pensou, que
jamais é a mesma duas vezes, porque não sei o quê nela mudou e o homem mudou em não
sei quê, o importante de tudo isso é o que está criando, como se chamará?, por enquanto não
sei.
E, então, a hipocrisia a qual não pertence, mas participa.
Numa mesinha simples, Ana, numa beirada, a sentar-se toda esparramada, está a se servir
com as coisas básicas de café, o faz em silêncio enquanto na outra beirada Marcus a
acompanha, abotoando calmamente a blusa amassada, mas não se preocupa com as olheiras,
das quais possivelmente não quer tratar.
– Passa a manteiga, amor? – falou a mulher com metade de um pão na boca. Alex se
enojou. Não pela boca cheia, é que prefere os brados histéricos de uma briga estúpida e a sua
própria dor de cabeça que sentir-se inserido num comercial para donas-de-casa.
– Alex, viu a câmera do jornal por aí? – perguntou o rapaz assim que dá por sua presença.
– Não – puxou uma cadeira e se sentou.
– Procura nas valises debaixo da cama – Ana.
– Tudo por ali foi tirado do lugar.
– Bom, fora delas não está, que não sou eu que as reviro.
– E quando eu culpo a faxineira que você encontrou, sou eu o cara insatisfeito com tudo. A
câmera nem mesmo é minha e já tiraram do lugar.
Alex começa a pegar pãezinhos de queijo. Assim que saem do forno são uma delícia. Eles
são uma virtude de Ana.
– A moça tem direito de errar um pouco por não viver aqui, assim as coisas podem não sair
perfeitas, e não é questão de estar insatisfeito, ou não, mas de ser compreensivo. Já tratando
de sua organização...
– Aí não podemos ser compreensivos – emendou.
– Por favor, o iogurte é dessa semana? – perguntou Alex.
– Não podemos mesmo. Não só com a organização, mas a responsabilidade – ela esteve
esperando a deixa. – Seu trabalho está vinculado à sua imagem e simpatia, e você agora mal
consegue se concentrar, quem dirá conversar fluentemente, permanecer atento ou articular
uma idéia.
– Eu sou só um câmera, não preciso de conversa. Pelo amor de deus, apenas um câmera.
Estou ótimo, não exagere.
– Ótimo pra qualquer um que encarar hoje?, por acaso revisou ontem as informações
pessoais do sujeito, ajudou a criar perguntas para o repórter, sequer configurou a câmera, que
não é sua, que por acaso você trouxe e não sabe onde está?
– É só um desses artistas, há um igual a ele ali na esquina jogando malabares pra ganhar
gorjeta.
– Sensacional. É surpreendente ver a seriedade com que você encara o que faz. Só um
câmera, se você pensa assim, é mesmo, é o que sempre será, é o seu fardo, só isso.
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– Foi só um pouco de sarcasmo, só quis dizer que a preocupação não é pra tanto.
– Pasta de amendoim, talvez? – Alex prossegue, aponta paulatinamente com os dedos.
– Precisa de um bom desempenho, com isso não se arrisca, o rendimento é uma ajuda que
não se joga fora, pelo amor de deus, precisamos de mais, já nos basta Alex sem fazer nada –
Ana prosseguiu.
– O esforço dos outros geralmente não é considerado, não é, Alex?
– É. E quanto à pasta?
– Mas que esforço? – prossegue a mulher. – Se o seu referencial de esforço é você
mesmo, aí, querido, acho que temos todos que rever nossos conceitos.
– Bom, estou vendo alguns resultados, vamos falar de referências então, estou tendo como
referencial meus ganhos até hoje, são modestos, certo, mas estão crescendo, e por isso
acredito que farei uma boa sessão e tudo mais, meu deus, apenas clico um botão, edito aqui e
acolá. Se você pede mais do que isso o excesso de exigência é seu, entende?, deixa de ser
meu problema, passou a ser seu.
– Muito conveniente. Está ligado e concentrado, não é?
– Estou ótimo, já disse.
– Mas não prestou atenção quando pedi a manteiga – por isso ela estava ressentida.
– Ela está quase do seu lado, pegue você.
Alex começa a se servir com torradas e geléia de morango. Pensou sobre quão farta era
essa mesa. O luxo da classe média é fantástico. Fazemos de tudo pela impressão que vivemos
muito bem e com fartura. Para completar só faltariam algumas panquecas. A geléia de
morango teria um uso mais adequado.
– Tinha sido um pedido educado – ela esperneia.
– Alex, tem certeza que não viu minha câmera?, no armário, lá em cima?
– Tenho.
– Agora você vai fugir da discussão?
– Não, só acho que se tivesse sido realmente um pedido educado ele não ia abrir margens
a uma conversa tão polêmica de manhã cedo. Então não vejo por que alongar isso e deixar a
todos nós nervosos.
– Porra!, eu só pedi a manteiga.
– Com licença, vou pegar uma faca e degolar vocês – diz Alex limpando a boca e se
levantando.
– E eu só estava me queixando da faxineira. O que a dona Martinha da faxina tem a ver
com minhas responsabilidades eu não sei.
– É Matilda, o nome. Matilda.
É por isso que dizem que a mentira tem pernas curtas, ela não agüenta a si mesma, não
adianta se fingir equilíbrio sobre uma jaula de cascavéis, uma hora se cansa e se vê que não
adianta ficar ali, que não ia mesmo chegar a lugar nenhum. Faz realmente um dia bonito, um
daqueles em que o calor se impregna e chega a dar para ver a poluição que ele ebule
ondulando pelos céus, e o céu se inundava num azul gritante. Daqui a uns dias vem o
temporal. Bocejou e se espreguiçou mais uma vez, não languidamente, mas rugindo e
sacudindo as patas feito um urso. Piscou os olhos, lembrou que havia esquecido de fazer a
barba, coçou levemente o pescoço com um ar de satisfação, a satisfação vem não se sabe
porquê, mas é também de displicência, é feito um discurso de vitória por simplesmente estar
vivo, o que o fez por fim apoiar-se no parapeito da varanda e buscar por uma onda de
relaxamento e prazer e meditação que não demorou a tomar a seu corpo. Os prédios erguiam-
se altos, o dia estava ofuscante e já não é mais bonito, é chato, as paredes dos edifícios
parecem sempre cadáveres de alguma coisa, em seguida uma lufada das ilhas de calor feitas
da poluição cuspiu-lhe bem no rosto, e um cheiro nauseabundo de diesel de ônibus e fritura se
aglutinou. Respirou ainda mais fundo, sorrindo a pensar que é esse lugar, a urbe, que me
transforma, e se eu estou a mudá-la é para conceder mais desse aspecto cadavérico dos
prédios, o que eu quero mesmo é pô-lo em todas as coisas.
Distraiu-se com os pensamentos e o movimento dos carros lá em baixo na avenida, e dos
transeuntes correndo e parando, tal como o de janelas nos edifícios ao lado sendo abertas e
inquilinos desocupados, feito ele, desocupados, não, privilegiados, ausentes de coisa melhor a
se fazer, se encaminhem para suas janelas a dizer, enfim!, à nossa aurora linda, ao pão
amassado por mãos anônimas de cada dia.

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O tempo em si havia sido condicionado a não ter sua passagem percebida, percepção
típica ou dos tolos ou dos sábios, e dessa maneira não se pôde diferenciar um estúpido
absoluto de um absolutamente sábio, mas nada disso é polêmica, que também está longe de
ser ou um ou outro, que tem um estilo diferente e fora de mapeamentos de matutar as grandes
questões. Perdeu-se nos apitos, nas buzinas, nos brados mais altos, alguns sons monótonos
foram ouvidos aqui de dentro, mas esses são oníricos demais, ritmo de sonolência que se
perde, então pensa que talvez não haja coisa pior que a repetição, mesmo que seja dos
prazeres, repetir-se talvez seja a maior das maldições já que é apenas um só, e ser pouco e
ser mortal o compele a uma vida de inovações. O cansaço é uma besta mortal que não acaricia
nem açoita, mas traz essa infelicidade sem dor e de suspiros, que não corrói como azia mas
feito fadiga nos joelhos, até entender-se como um obeso deitado para sempre no sofá, a
maldição da repetição traz essa sua outra irmã mais velha, a maldição da inércia. Há quem se
afirme satisfeito por sua rotina, diz que só ela realmente legitima o que somos, é o hábito que
lapida o ser, o caráter, como diamante ou obra de arte minuciosamente lapidada, assim se
satisfazem com seus sucessos e infortúnios, que tudo faz parte desse mundo, da ordem que
deve existir e é assim que devemos ser, porque é certo se adequar, ele não quer mais pensar
sobre isso. Uma porta bateu. Um móvel foi arrastado. Lá embaixo uma longa buzina ecoa, um
taxista xingou um pedestre, o pedestre cambaleia desnorteado, tudo normal. Ouve a voz
distante de Marcus anunciar sua partida, fomentava enquanto isso coisa muito mais
importante, que a contradição habitual do sujeito é visível no momento em que ele deseja o
que automaticamente não quer ter, coisa que lhe soará confusa sem um contexto prévio, mas
pertence a um, ele apenas ainda não sabe. Alex debruça-se ainda mais, e é um desses
momentos em que há grande silêncio e solidão na sua sinistra vida, fora a escuta de gorjeio de
passarinhos, mas ele não gosta de aves, ele escuta o silêncio e faz-se um induzido na cabeça,
quis ser mais preciso nas coisas que tem a se dizer. Debruçou a cabeça e sentiu o sangue
concentrar-se nela como um balão de festa de criança a encher-se d’água, se ficar assim por
tempo demais desacordará, só dará por si em queda livre e perto do chão, lá vem a calçada, e
uns gritos desesperados e, e... beleza, o fim. Lembra-se, na queda livre que não caiu, do que já
havia expressado certa vez.
O sujeito não controla a natureza do seu desejo por ele ser gerido por uma maquinaria
inconsciente, pela escuridão do ventre de onde saiu sua alma, a qual eternamente e
incompreensivelmente o sugestionará. Dessa forma, sendo a gente conjunto de seus
pensamentos e desejos, é por conseguinte fruto de sua particular, porém desconhecida,
enigmática e pantanosa inconsciência. Por sua vez, o sujeito, em seu aspecto consciente,
almeja a liberdade incondicional, não há nada mais satisfatório ao indivíduo que a satisfação de
ser livre, a capacidade de se realizar de todas formas, como quiser, além de qualquer chão e
qualquer obstáculo, enquanto já começa a dar-se de cara com a incapacidade de ser livre de si
mesmo, para o que seria preciso entender-se inteiramente, se enxergar tão claramente como
olhar uma azul piscina litorânea, e não uma avalanche de lama, que é como acontece. Diante
dessa encruzilhada, costuma-se ignorar a contradição de ser prisioneiro de si mesmo, mas
querer ser livre, e trata-se de simplificá-la, depositando toda atenção sobre a simples liberdade
de ação, ou seja, de se pôr em prática o desejo, independendo da onde ele venha, ou porquê,
das suas causas ocultas e tudo o mais. O sujeito deseja expressar-se, na verdade a expressão
é necessária do próprio desejo, que é coisa que quer deixar-de-ser, um desejo existe porque
deseja em seguida ser saciado e apagar-se ou às vezes pedir por mais, ao que o homem
consciente teme os resultados de saciá-lo. É o homem consciente que se preocupa com as
conseqüências, é ele quem faz as medidas, é ele quem pensa sobre justiça e tudo mais. Teme
o desconhecido que o seja desfavorável, coisa que é análoga à morte, o eterno símbolo da
ausência de possibilidades. E por temer as conseqüências, as pessoas sacrificam a liberdade
para a entidade do medo, numa oferenda covarde e supersticiosa. As pessoas temem que
tirem a liberdade delas, e por se temer coisa assim já se a perde, porque ao se deixar de usá-la
na qualidade é como se deixar apodrecer a si mesmo enquanto pode-se fazer o infinito. O
corajoso questiona a morte e grita contra ela a sua vontade, entendendo que pode ser livre de
fato, que a liberdade plena é satisfação plena. O cara comum não se faz livre porque teme que
a liberdade que não tem lhe seja tirada.
E ora, a repressão é inata às aglomerações de gente, é assim que atuam as civilizações, é
como sempre atuaram, é comum que hajam suas ferramentas de controle, há uma força a
governar, a querer ser exclusiva no uso da violência, isso do pacto social entre as gentes e
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tudo mais. E que essas ferramentas se concentram na forma de uma inteligência restrita, mas
ainda assim capaz de subjugar a convicção de todas as outras, é visível, já que todo sistema
de controle é elitista, mesmo que vigore o que se entenda hoje em dia como democracia, isso
de nada importa, isso de nada anula a violência do elitismo e nem lhe é da intenção fazê-lo,
apenas dá à violência novos critérios de ser. Perguntou-se, baseado numa hipótese que o fez
franzir a sobrancelha – se desconcentrou tanto que só foi pegar o final da magnífica briga entre
um policial e quatro meninos-de-rua –, como seria se fosse diferente, se as correntes do
sempre-será-assim que nos prendem fossem quebradas pelo eco que a coragem semeou na
morte?, no fundo todos somos homens, isso é o principal e princípio de todas as coisas, tudo,
até as estruturas das mais complexas dessa nossa vida é mais nada que tão somente uma
aglomeração de homens e seus costumes, seus problemas, basta-se então que homem
conteste homem, que homem mude e o outro homem também mudará. O mais previsível, a
julgar essa loucura, é que haja muito desentendimento e muitos berros escandalosos. Algo
análogo ao não. Não, não, não se trata de uma nova ordem, talvez desordem, não, ou qualquer
outro modelo, coisa similar, apenas se perguntou como seria, como seria esse mundo, e como
ele viria a se comportar?, seria uma suposição tão absurda, uma mudança de rumos tão
inesperada, tão difícil misturar hipótese utópica com visualização, que chega a conclusão que o
resultado seria parecido à revolução do pensamento que obteria o homem ao conquistar a
imortalidade. Por exemplo, se o homem fosse imortal, tudo, desde sistemas econômicos até as
manifestações artísticas seriam completamente distintas. O poeta não mais escreveria sobre o
tempo já que esse conceito seria ultrapassado, o tempo não o traria angústia ou felicidade,
senão apatia, e a efemeridade nem existiria nos dicionários, o que expressaria?, sobre a morte
se escreveria menos ainda, a vida seria completamente outra, porque só se entende vida por
haver morte, talvez essas duas palavras não mais existissem e tudo que houvesse fosse estar,
ou ser, mas os conceitos que se podem supor não chegam perto do que de fato seria, o
entendimento, as palavras, os símbolos, o modo de ser e de ter sido, de se entender e se
comunicar, de ver as coisas, de acontecer as coisas, tudo, os medos, talvez todos os temores
que se conhecem se aniquilariam, todos derivam do medo da morte, tudo seria novo, a morte é
o desconhecido máximo ao qual nos acostumamos sempre a lembrar que estamos andando,
temos de aproveitar tudo muito rápido etc etc, porque vem aí a destruição de todas as chances
que poderíamos ter, alguns até crêem na coisa da reencarnação e tudo mais, mas de toda
maneira temos pressa porque não compensa o risco de de fato nos acabarmos, desejamos nos
realizar, temos medo da frustração, de não sermos suficientes para tão pouco tempo. Se ainda
houvesse deus, este seria no máximo o amigo imaginário coletivo, e não pai de alguém. Até
mesmo o conceito de dinheiro da forma que se encaminha ia ruir e se suicidar, já que
capitalistas, por exemplo, não são mais que perseguidores de imortalidade, o que se dá
através do acúmulo eterno do tempo dos homens que vendem este tempo por necessidade de
sobreviver e para eventualmente conseguirem uma grana para conquistarem o ócio comprando
o tempo de outro infeliz que sacrificou seu tempo para conseguir uma grana, então são, esses
que dominam uns aos outros, consumidores de qualidade de vida sugada do tempo dos outros,
sugada como das tetas de uma vaca producente, isso porque sabem que na verdade
quantitativamente o tempo a todos encerra, mas resta então o lado qualitativo, em prol desse
ganho é que se organizam geograficamente e socialmente, assim manipulam os demais e
buscam, irascíveis, através do luxo ou de uma família modelo, a qualidade de um imortal. Se o
homem fosse imortal de verdade, a psicologia ruiria e a história seria outra, e a cabeça
começou a zumbir. Pensar no homem livre é tão horrível quanto supor imortal. A diferença é
que o primeiro é possível.
O policial acaba de enxotar os quatro garotos com um cassetete gigantesco, e ali eles
seguiram se embolando, pareciam todos pontos no formigueiro de pedestres lá em baixo,
misturando-se e alternando-se numa lógica que não pode compreender, ou simplesmente não
há. Alex deduziu que o motivo para o estardalhaço era que os garotos estavam vandalizando a
saída de carros de um estacionamento ao pedir gorjetas aos motoristas de passagem. Torceu
para que o policial desse na cabeça de um deles, só para que todos os outros se revoltassem
de tal forma a derrubá-lo e espancá-lo sem pudores, na frente de todos, espetacular. Vingariam
cruelmente o colega, seria interessante. Queria ver sangue. É assim que nascem as relações
de poder, não do sangue, apesar de quase sempre, mas de uma grande violência análoga
àquela palavra não. Mas os meninos apenas corriam vencidos e acuados para uma rua mais
abaixo, uma entrada menor entre prédios antigos, e se limitavam a proferir palavrões com
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aquelas vozes esganiçadas de crianças, por isso não tem filhos. Um vendedor ambulante
desviando-se deles fora da faixa dos pedestres quase causou um acidente na pista, tanto que
soaram muitas buzinas longas e seguidas, bem feito, que por pouco foi que o sangue não veio.
Alex ouviu um estalido e se virou.
– Já estou indo. Se sair, não esqueça das chaves na cozinha – Ana, aquela moçoila com
os ânimos então refrescados, já se encontra arrumada e bonitinha. O vestido que usa não
traduz exatamente o comportamento profissional de uma desenhista, arquiteta ou alguma coisa
parecida, ele não pode estar imaginando a sensualidade que vê, imagina que ambiente de
trabalho a instigue, talvez ela tenha um amante, não é de se espantar.
As verdades são as impressões das cabeças dos espertos.
– Bom dia – e respondeu.
Demoram alguns segundos até que ele se emendasse. – Se ainda vir Marcus hoje, deseje
um bom trabalho a ele, certo?
– Por que você mesmo não o fez enquanto pôde?
– Estava ocupado, não tive chance.
Rastejou, enquanto empunha do bolso da bermuda mais um cigarro, até o canto do sofá.
Abriu a outra mochila, dela tirou seu único instrumento de trabalho, que na verdade recruta lá
dez mil possibilidades na forma de seu computador portátil. Acendeu o fumo e traga, aí pensou
se seria engraçada a cena de colocar dois cigarros simultaneamente na boca, a fim de rir de si
mesmo o fez. Assim é bom que fica um para cada pulmão. Foi para o quarto, tropeçou no
carpete, derrubou o computador na cama, sorte que caiu no macio, depois ele mesmo deitou
rolando, e com certa dificuldade se esticou para ligar as coisas em suas respectivas tomadas,
tremeu os dedinhos e se encolheu, feliz. Tinha sínteses em sua cabeça, e delas, por sua vez, o
mundo se ramificaria. Ia escrever o mundo. Seria tão simples, nada faltaria nessas linhas.
Nada, nenhuma causa que tivesse induzido qualquer fenômeno que já tivesse acontecido.
Antes disso, só precisa lembrar de algumas coisas.

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Por alguns momentos não houve qualquer saída para a solidão, tampouco sabe como ela o
tinha cercado. Alex se viu sozinho, das paredes se fechando tentou então fugir ao abrir os
olhos, lapso da coragem que lhe restou, mas para sempre tratou de abandoná-lo. E quando o
fez, todas as coisas ainda estavam incertas, tudo que sei, pensou e interrompeu-se, tudo que
sabe é que está só. Poderia ser o fim, de qualquer forma não seria este um fim exatamente
surpreendente, corrigiu-se, aqui não há surpresa, medo ou insegurança, apenas é. Pensou
também que talvez tenha uma grave obsessão pelo seu próprio fim.
Não soube determinar ao certo o que havia em sua frente, é que se via numa treva
interminável, era metafísica e a ela não se admitia um início e muito menos um final garantido,
talvez nem mesmo o próprio fim que supunha, que de certo modo ele quis ver chegar, porque
aqui não há chegadas ou espaço ou proporções, apenas nada, e encontrar-se com o nada faz
com que sufoque, sabia que aos poucos minguaria a construção frágil da sua personalidade,
anoitecendo em direção à sua essência, esse lugar, dizia-lhe a voz da intuição, é onde tudo se
encontra consigo e portanto se apaga por não mais haver busca, o fim da travessia do abismo,
ou só o começo do meu salto nele?, e a hora chegava, já não quero mais que chegue.
A primeira imagem que lhe pôde vir foi a de um inverno eterno, a paralisia sempre se
associa com a idéia de inverno, como um búfalo num zoológico deserto, num milharal
congelado, também porque apesar de tudo ser negro é também cristalino, e se sente frio não
saberia dizer, ainda assim gelava a espinha, e não era inverno, na verdade não era nada,
búfalo, lagarto, gente, estava tudo desolado e quieto e ele estava muito ocupado comungando
com tudo isso. Foi então que viu uma criatura na escuridão a vigiá-lo, ela não tinha rosto, mas
suas silhuetas claramente se insinuam. Estou sonhando, ok. As íris da coisa foram tomadas
por um prisma rubro, como se o sangue o estivesse iluminado, ou dentro queimasse alguma
vida, depois tornou-se tudo branco. Era tudo que podia enxergar. Por um instante receou.
Salve-me o que for, estou sozinho aqui com isso. A criatura arriscou um movimento do
pescoço, o inclinava, mas só se lhe via o par de olhos albinos.
De que devo chamar-lhe?, seu pensamento manifestou-se, a pergunta não saiu da ponta
da língua propriamente dita mas pode-se dizer que foi como se o fizesse, o fato é que podia
ouvir-se no espaço indefinível a voz que não era exatamente a sua, mas talvez fosse a voz que
pretendesse possuir, talvez o modo que ele a pensasse ser, mas não o fosse, aqui é. Só então
notou que ele mesmo agora arqueava o pescoço, não seria diferente do ser do escuro, que se
pôs a acompanhá-lo, espelhando-o, circense, o monstro arrepiante. O fez outras vezes, o testa
mais um tanto, é acompanhado sem exceção por cada movimento, o fantasma do seu reflexo
repete as mesmas mímicas, franziu o rosto sem saber o que esperar, até que foi repelido.
Tenha cuidado ao chamar-me, respondeu-lhe. Jamais poderia haver outro som. Por que veio?,
ecoou. Não houve resposta. Por que veio?, por que veio?, insistia mas recuava, a sombra o
seguia em quantos passos desse, o suficiente para que não pudesse nunca ir embora, o
suficiente para que não pudesse sequer pensar em fazê-lo. Estou preso, afirmou incerto, com
jeito de pergunta, ele próprio tentava se libertar, de quê é um mistério. Que tortura, ele não o
respondia, talvez nunca o fizesse, talvez esperasse por algo que nunca se saberá o quê. Quem
é você, algum diabo? Um pobre diabo, finalmente respondeu. Então este sou eu que fui posto
a me olhar, já imaginava algo parecido. Também não sou você, respondeu-lhe. – E quem é,
então? – perguntou.
– Já me viu uma certa vez
– Eu o vi quando era criança e sonhei, eu nunca me esqueci.
– Não estranha eu te ser a memória mais distante na vida?
– A memória mais distante é sempre um sonho.
– Desde então sabe que eu preciso de um nome. Já o encontrou? – houve um longo
instante de insegurança, não se inspira com nome algum.
– Muito cuidado ao chamar-me – advertiu em seguida, ao que Alex sente um peso
angustiante sobre a nuca, se é que a nuca existe, mas afinal o importante é mesmo o peso,
fosse ou não fosse onde acha que é, que tudo deve ser sua imaginação, mas as dores são o
que são e são a certeza da realidade, nunca ilusão.
Acontece que quando movimentou a cabeça para trás no intento de livrar-se do que o
oprimia, não conhece que pressão é essa que sempre teima em fazê-lo ficar debruçado e a
encarar o chão, percebeu que até então esteve olhando a esse chão, a que sempre esteve
olhando, já havia se acostumado, não sabe se é saudade ou se é alívio o que lhe vem. Sorriu o
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pouco que poderia ao ousar debruçar-se uma vez mais, no solo cristalizado de superfície negra
havia o seu próprio reflexo, o outro se fora. Concluiu que enquanto não lhe desse o nome que
lhe foi pedido, pensaria nele como o outro. Mas ele não era o mais importante agora.
Quando tornou a olhar para frente, as trevas o pirraçaram e originam a extensão de um
túnel, corredor que onde daria não se era visto, seria na verdade um poço tão profundo quanto
seria caso olhasse por demais tempo ao chão, chegou então a ter o rápido pensamento de
que, independente para onde direcionasse a atenção, estaria outrora sempre olhando para
baixo e sempre haveria um novo túnel que na verdade o aprisionaria num círculo, estava preso
para sempre, como no ouroboro, a serpente mágica que é o universo mordendo a própria
cauda, afinal estava claro, começou a desesperar. Se não fossem as portas ao longo do
corredor. Eram de um branco gritante, as bordas florescentes, enfileiravam-se paralelas por
todo o corredor, e elas se insinuam, paradas, por você.
Enfim, pensou, não estou realmente preso, graças a não sei o quê, convenhamos que esse
medo também tenha mesmo sido um tanto absurdo. Estava apenas só e isso não é novidade
alguma. O outro não extirpava essa impressão, apenas fazia com que por instantes se
esquecesse dela, à medida que o foco da atenção tem de ser direcionado ao temor que tem
dele e às perguntas que eventualmente fará. Mas agora havia as portas, era bem provável que
fossem infinitas, nesse caso as abrirá até que não mais possa. Se pôs a caminhar e a sua
imagem estranhamente trajada de negro o seguia, ele se perguntou afinal para onde devia
dirigir-se, hesitou se devia continuar olhando por sobre aquela figura pálida estendendo-se no
piso, por mais que receie não consegue tirar os olhos dela, era muito mais hostil do que ele
próprio se lembrava como sendo, de traços cadavéricos em cujas curvas parecia emoldurar-se
um rancor satânico que dormia e ele desconhecia, na verdade temia não vigiar por tempo
demais o espírito vingativo que parecia estar prestes a saltar do piso e puxar-lhe
definitivamente para o mundo dos reflexos, não ia deixar de olhá-lo e correr o risco da
surpresa. Alguém, em uma data distante que ele não lembra exatamente qual seria, nem em
que ocasião a coisa tinha se dado, contou-lhe que o espírito, ou o sujeito recém-acordado
durante a noite ou algo assim, não devia jamais se olhar num espelho ou de uma forma
qualquer dar com o seu próprio reflexo, caso contrário trocariam de lugar, o que ele era
passaria a ser imagem no mundo atrás do espelho. Essas coisas não o intimidavam, ao menos
achou que não, mas há de se convir algum motivo para que até hoje espelhos fossem algo que
lhe trazem uma fagulha de desagrado, coisa que lhe ocasiona a idéia de ser um vampiro,
crença que de tão entranhada tornou-se vital aos modos, noturno, dracúleo e mais
atormentado que um cristão.
Algumas portas já estão para trás, é que no caminho ele acabou achando desnecessária a
idéia de que todas têm de ser abertas, estava dividido entre a possibilidade de chegar a um fim
ou achar-lhe conteúdos, teorizar o que dentro das portas havia parecia perda de tempo se ele
mesmo poderia constatar, é isso que o pedem, já entendia. Colocou a mão numa maçaneta, a
girou.
Quando a empurrou um cheiro de fedores misturados de cidade lhe soprou bem na cara,
um vapor denso e nevoeiro se dispersaram por todos os lados e passando por sobre ele, sentiu
aquilo tão vividamente que foi forçado a recolher o rosto para tossir e proteger os olhos
irritados. Crescendo como numa sinfonia se propagavam os sons, não que houvesse som
verdadeiro, inicialmente essa era a única impressão que podia formular sobre eles, mas logo
tratou de volver o rosto por dentro da fumaceira e espaná-la com os braços, e quando
efetivamente conseguiu não serão seus olhos a trapacearem, reconheceu de pronto o brilho de
luzes noturnas, sim, era noite onde quer que fosse, o que quer que significasse, e apesar de o
barulho das noites normais já serem por si só tão calminhos, a abertura dessa porta parece
ocasionar na ruptura de uma estrutura frágil baseada em timidez e, quando no máximo,
murmúrios, e agora você estragou tudo, acordou o estrondo que não se sabe do que é. Mas
não, aquilo é realmente diferente, era algo real o que via, asfaltos de uma ponte abandonada,
até a ausência de toda e qualquer coisa, a rua vazia, a sujeira de um ou outro papel vagando
pelos cantinhos, prensados e empapados da chuva que desaba.
Há uma hipótese importante de ser levada em conta, a da psique humana não ser
estritamente uma engrenagem mecânica e, portanto, ser dotada de seus próprios poderes
oníricos, isto porque conscientemente não se os decodifica, e assim sendo é portadora
também de suas próprias razões, ou falta delas, ou propriedades exclusivas de ser. Talvez
esteja indo longe demais, descendo muito fundo, aventurando-se nos poderes da premonição,
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e vá com calma, que há preços a pagar, nada é entregue sem suor, não raro quando se pede
por sangue, mas ele não é estúpido, sabe definir quando as coisas passam de sua hora, e
dentro dessa porta a hora se estendeu quando começou a ver, no final oposto da rua, o
farolete de um automóvel se aproximando, bem, se essas lembranças ou coisas que ainda
estão para acontecer pudessem vê-lo, repará-lo que estão sendo vigiadas, é melhor que não
fique por mais tempo, poderia ser responsável por um estranho colapso temporal, um fim
bizarro e entrópico de todo o universo. Ou pode ser tragado e aprisionado para sempre numa
ficção que criou, não arriscará, recuou e fechou a porta.
Quando abriu uma outra porta viu algo muito parecido com um quarto, entre as formas de
silhueta de sua escura inconsciência reconhecia como espectador uma cena perdida entre as
quais vivenciou durante sua vida, não é mais que a cópula de ele mesmo e uma fêmea sobre
uma cama que não lembra qual, não lembra quem seja, apenas pode reconhecer sua
representação, sua imagem, pela mesma inteligência que reconhece o reflexo a segui-lo,
ouviu-se arfar, o suor na pele e som de dentes, a pulsação cardíaca mais parece a badalada
de um relógio à meia-noite, o repercute incitando o suspense de quem vira abóbora, e então
começou a ser tomado por um pânico absoluto, deu-se conta de algo terrível, não, não era ele,
não podia ser ele, não se reconhecia, no que ele havia sido transformado e, afinal, o que era
aquele próprio que pensava essas coisas?, não reconhece o reflexo, ou afinal só está
reconhecendo em si o que ele não é?, e que enfim se tomou conhecimento que ele não é si
mesmo?, que vem se transformando em algo que ele definitivamente não é?, fechou a porta
imediatamente, ver aquele que não era verdadeiro, simplesmente verdadeiro, ocupando o seu
espaço, nas suas coisas e principalmente a encenar as suas memórias era terrível, ao mesmo
tempo não pode dizer que lhe seria um completo estranho, se o fosse não lhe forneceria o
tamanho dessa agonia, era como um sósia perfeito que tentava imitá-lo em tudo, mas a falha
da perfeição o denuncia, ou a falha ou um escárnio de quem quer se mostrar sendo ele, ao
menos seguindo-o e representando-o, sem o ser, estava longe de ser ele, podia perceber na
vulgaridade das minuciosidades, mas e se fosse?, ai, começou a respirar ofegante, a garganta
começou a coçar, abriu a porta logo ao lado.
Viu uma rua dessas que conhecia, mas que não nos marca até o momento que resolvemos
sonhar com elas, e havia uma igreja em frente a uma praça verde, havia prédios antigos, as
calçadas com tantos pedestres, os comércios abertos, enfim, nada de especial, só o maçante
pão amassado pelo excomungado que vemos todos dias, os pontos de ônibus, não, não, viu
novamente aquele mesmo sujeito desconhecido com um olhar cadavérico que agora identifica
como o representante do seu papel em sua história furtadas, ele ia caminhando naturalmente
pela calçada, até o seu jeito de se curvar e bandear-se sobre o próprio corpo era
diferentemente vulgar, roubaram-lhe a alma. O observou, arrepiou-se totalmente quando o viu
virar-se para sinalizar ao ônibus que vinha fazendo a curva, o que acontece é que por alguns
instantes seus olhares se encontraram, não era um olhar comum. Seu sósia sabe que você
está ali. O ator que está se apossando da sua vida. Aquele que não é você mesmo. Você não é
o único espectador das coisas, saber que também podia ser visto nesse corredor de
inconsciência lhe incinerou num medo que talvez jamais tenha sentido antes. O medo de estar
se perdendo. Bateu a porta no mesmo instante e correu. Olhou para trás, desesperado, tinha
quase a certeza que algo na escuridão do lado oposto o seguiria. Diga um nome, pensou,
chame por um nome, é isso que ele quer, é só o que deve importar. Abriu outra porta e o
flagrou a roncar na sua cama, abriu outra porta e o viu gargalhando junto aos amigos numa
mesa de bar, porta por porta, sorrindo, andando, pensando, comendo, viajando, bebendo,
tremendo, arfando, olhando, gemendo, sofrendo, acenando, trepando, voltando, caindo,
ganhando, saindo, fumando, perdendo, comprando, batendo, morrendo era só o que lhe
restava, morrendo ainda faltava, mas pelo visto não há de demorar, temeu se em breve não se
encontraria dessa maneira, num caixão, e todos os sonhos se apagariam com o fim da vida e
descobriria que do seu próprio fim sequer foi o protagonista, que esteve se tornando uma
réplica distorcida, um cara que jamais reconhecerá.
Pensava se não seria tudo culpa do outro, e não só poderia mesmo ser a culpa do
enigmático outro, se aquele próprio não seria o rosto do outro que sempre que lhe vinha na
memória carregava um rosto de sombra, mas enquanto corria pensou que isso não poderia
acontecer, que não lhe apareceria assim, que não havia propósito, então o que está
acontecendo?, pára, pára, não agüentava mais, agora podia sentir as lembranças e presságios
batendo no lado de dentro das portas, insinuam que passado e futuro são irmãos gêmeos, seja
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qual fosse o preenchimento dessas portas, queriam rebentá-las como um parto ou um filme
demoníaco que a besta trinca as maçanetas querendo vir pegar o mocinho, queriam ser vistas,
queriam se fazer valer, só queriam escapar e espancar-lhe, afogar-lhe em viscosidades, dar
uma overdose, trancá-lo ali, logo a ele que nem sabia o que ele mesmo era, e por não saber só
sentia medo de tudo, e tudo o coagia ao mesmo tempo. Chame-o, talvez possa salvá-lo, talvez
não, não é prudente que se corra o risco numa situação como essa, é melhor se prevenir, mas
não sabe aonde dará cada passo teu, talvez o resultado, o fim, seja a mais pura loucura.
Lembrou-se de histórias de sujeitos que se perderam em seus próprios sonhos e que
jamais regressaram sãos, porque jamais souberam quem realmente eles eram, estavam
perdidos, indefinidos na própria subconsciência, na própria substância, e ele também estava,
não havia uma identidade, não havia nada. Espera. Tanto correu que o corredor findou-se.
Sim, era o fim, o viu. O estalido de sino ecoou e identificou a porta se abrindo de um elevador,
ainda teve de inclinar o corpo para caber enquanto entrava correndo, aí chegou com tudo
batendo-se na vidraça oposta. Por uns instantes, mesmo ainda destituído de qualquer
claridade racional, contemplou a visão panorâmica que dali poderia ter, ocorreu que tão abaixo
de si via a cidade de noite, por alguns instantes teve o alívio de não se sentir mais tão preso.
Sequer notou quando a porta pela qual entrou começou a se fechar, mas sentiu-se certamente
confortável quando terminou. Restituiu-se, sabe como é, colocou as coisas em ordem,
começando por evitar o reflexo, que ainda teimava em tê-lo acompanhado, que se formava ao
canto das vidraças do elevador.
Estava dedicado a desmistificar aquelas sensações, sabia não ser por uma fuga que as
coisas se tornariam claras. Pensava e, nesse meio tempo, com a serenidade que havia no
começo de tudo e da forma que ele julgava ideal ter se mantido, pôde perceber que começara
a efetivamente se movimentar pela visão que tinha da cidade, ela aos poucos diminuía à
medida que ele sobe os andares, a cidade acaba se perdendo entre suas sombras de
concreto, porque todas suas luzes estão apagadas. Pediu um nome, pensou, mas só
conseguiu pôr-me em dúvidas de meu próprio.
Colocou a mão na boca, pranteou em forma de sensações da maneira que só se faz
quando a nossa própria intimidade nos aparece à tona, é coisa que ocorre em sonhos vívidos
como esse. Existe mesmo uma intimidade profunda, uma caverna com ecos onde todas as
sensações são mais fortes e lúcidas sobre elas mesmas, porque um pouco mais abaixo é onde
elas se criaram, e nada, nem você, pode descer assim tão fundo, e as lágrimas que só caem
por ser sonho ainda assim nunca apagarão o que começava a ver. A princípio achou ser
somente brilho mais forte a destacar-se na vista panorâmica. Daí ergueu um pouco mais os
olhos. Em todo canto havia focos de incêndio, a cidade queimava, a maior de todas fogueiras
queimava, e o fogo haveria de consumir a tudo, nada mais restaria, e não seria sua pequena
consciência a se dar conta de quão majestosa seria a hecatombe, com labaredas de tocar o
céu. Daí em diante as coisas se tornaram sonolentas demais.
Estava com um novo dilema. Se abrisse os olhos, o que veria?, talvez desse de frente com
a tampa de seu caixão, estaria deitado, óbvia dedução, descobriria que é uma múmia, foi
enterrado há sabe-se lá quanto tempo e não lhe restaria muito a fazer, senão arranhar as
paredes de seu leito enquanto morre lentamente asfixiado, não seria escandaloso o bastante
para gritar por ajuda quando sabia que ninguém o ouviria, ou talvez acordasse e descobrisse
que a sua mente residia no corpo de uma pessoa totalmente diferente, um gordo careca,
talvez, um velho de oitenta anos, é que na verdade tentaram lhe apagar o passado, e de
alguma forma ele teria frustrado essa experiência, tentaram ver como reage o homem em
situações diferentes e em mentes diferentes para de repente reconhecer a própria partícula
que o torna homem, mas realmente deu errado, isso está claro, porque com força algo doía em
sua cabeça, sempre tem essa impressão, e é sempre a dor a acordá-lo e ancorá-lo. As
sensações não o enganam, algo horrível foi feito de seu corpo, algo inominável, nem as
vísceras serão as mesmas, e ouviu um estalido próximo, ao menos não lhe tinham arrancado
os tímpanos. Abriu um dos olhos, chegou a rolar um pouco na estreita cama, não o fez mais
por já estar na beirada, e deduziu sem lógicas mais profundas que foi algo mais que o acordou,
além dessa iluminação de abajur ali sobre a estante, talvez o outro esteja aqui a visitá-lo. Está
escuro, a primeira coisa que fez foi levar o braço à testa e proteger-se, definitivamente a luz
não é no mundo uma das coisas que mais gosta, considera seus olhos fracos demais, talvez
seja isso na verdade a causa da sua constante dor de cabeça e enjôos, não é uma náusea que
sente por toda a espécie humana, por todos nós, não é misantropia, é fotofobia, e por
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conseguir se diagnosticar considera já estar se recuperando, sempre que se nomeia o
desconhecido se tranqüiliza a respeito dele, também é nisso que consiste sua relação com o
outro. As imagens ainda estão oscilando, vertigem de gangorra, mas reluta, bravo como é o
nosso herói, forçou a vista e decifrou a imagem pálida e magrela que ocupa a cama do lado.
– Tive um sonho estranho – murmurou –, tinham coisas horríveis me perseguindo. Estou
com sede.
– Te acordei? – a figurinha ao seu lado estava de joelhos, reclinada sobre algumas peças
espalhadas na cama, não parecia ser algo mais complexo que um aparelho eletrônico aberto
com uns fios descapados, Alex não sabe a diferença entre porca e parafuso e suíno.
– Não pode esperar pra fazer isso pela manhã?
– É um trabalho...
– Não foi exatamente isso que eu quis saber – e se estirou de barriga para cima. Conclui
não ter dormido nada.
Alguns instantes de sons de coisinhas estalando se passaram.
– Jonas, você não teria um analgésico aí, teria?
– Não.
– Qualquer coisa pra dor?
– Não. Eu só queria mesmo – o sujeito pára alguns instantes e ajeitou os óculos grossos,
falou com ar cansado – poder terminar esse protótipo.
– Certo, desculpe.
Alex se virou para o lado oposto da cama, tem de ficar encolhido contra a parede, aí
apertou a testa contra o travesseiro. Uma orquestra de grilos aos poucos diminuía a cantoria
dentro do crânio, fechou os olhos e demorou menos do que esperava até que o sono viesse.
Mal acordou e já estava metido no quarto de Sabrina, a estudante de psiquiatria da casa.
Enquanto a esperava remexer em suas bagunças, olhava em volta sentado na cama, no
instante pensava sobre o tamanho do quarto ser um tanto desproporcional aos demais, na
verdade não é apenas essa a questão, mas o fato de ela não ter de dividir o quarto com
ninguém e dispor inclusive do que era o maior entre todos estimulava algumas intrigas que em
segredo matutava. Não que se esse tipo de comparação lhe fosse vital, pelo contrário, poderia
se aconchegar no chão se necessário, ainda bem que não seja, só que lhe era ainda um pouco
controverso o porquê de ela ter mais regalias e, como se isso não bastasse, gostasse de tornar
implícito os legítimos direitos que tinha em tudo o que dizia ou faz nessa casa. Isso pode
acabar, ela está vulnerável. Virada de costas, agachada, mexia em seu armário, não teria
muito como reagir se fosse subitamente agarrada por trás, tivesse a boca tampada por uma
mão rude e aí fosse sufocada até não mais resistir, poderia debater-se, sacudir as pernas e as
mãos, nunca será o bastante. Ia matá-la. Só bastar que envolva a garganta numa daquelas
suas roupas sem vida, as quais ela acha realçar sabe-se lá o quê no seu corpo esquálido, mas
bonitinho, seria mais que o bastante, não será mais do que um excitante minuto de adrenalina
até sentir-se aliviado e ela estar em paz e roxa. Ela está mais sensual que o comum assim,
curvada, e ainda por cima dentro daquela camisola branca, talvez matá-la não seja mesmo
uma idéia das brilhantes.
– O que estava sentindo?
Quando ela pergunta ele reparou que já estava na terceira gaveta a ser aberta. Ou não
estaria encontrando o que buscava ou acontece que gostava de ser olhada, as mulheres
sabem quando há um homem a espiá-las. Além do quê, essa pergunta que fez talvez fosse um
pouco ambígua demais, isto é, exatamente sobre quando ela se refere?, tanto podia ser de
agora há pouco, quando minuciosamente percebeu os pensamentos cruéis que partiam dos
seus olhos para ela, quanto podia ser da enfermidade por causa da qual ele a procurou, de
qualquer maneira sabia que ela é esperta o suficiente para não se expor. Ou talvez estivesse
fantasiando demais, o que lhe faz a cabeça doer.
– Começou a doer de novo – ele respondeu, levou as mãos às têmporas. – É essa forte
enxaqueca, não sei, está constante demais, há semanas. Acho que não tenho muito tempo de
vida.
– Não seja dramático. Andou bebendo? – realizava a rotina pré-diagnóstica ainda estando
de costas. Alex imaginou que essa devia ser a maneira mais ideal de ser atendido por um
médico, os padres antigamente também assim rezavam suas missas.
– Faz dias que não.

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De dentro da gaveta ela tira nesses instantes o estetoscópio, e aparentemente, por já vê-la
se virando e estando prestes a se prontificar, deduz que esse aparelho seja suficiente para
examinar e diagnosticar toda a complexidade do seu sistema neural, desde o desagrado ao se
tratar de luzes no rosto até umas crises de identidade que acha sofrer. Aquela garota de
cabelos curtos e negros não parece tão fascinante assim, nada mais que uma rapariga de
óculos de grau e rosto um tanto cansado. – Podia ter se vestido antes de vir – aponta por conta
de estar apenas com as cuecas.
– Desculpe, era uma emergência.
– Está forçando os olhos. Está com a vista cansada?
– Você é oftalmologista? – não resiste à idéia do comentário, acaba saindo quase por
impulso, deduz que por coisa assim é que médico e paciente não devem se aproximar.
E ela arfou como se dissesse, escuta, já estou fazendo algo que não me é propriamente do
agrado estar fazendo, viu?, você ainda vai agir como se me fosse obrigação?, hein?,
convenhamos, ponderemos, e apliquemos nosso tempo com coisas mais úteis a cada um de
nós.
– Quer ajuda ou não faz diferença?
– Desculpe. A vista cansada é porque não dormi bem.
– Se eu fizesse de outro jeito você não ia desistir, não é mesmo? – coloca a parte do
aparelho que se deve encaixar nas orelhas nas orelhas e a que devia se encaixar no peito do
paciente, no peito do paciente. – Erga o tórax, puxe o ar, isso, agora prenda por alguns
instantes, assim. Assim. Pode soltar agora, calma, lentamente, não tudo de vez.
– Acho que pode ser meningite.
– Pare, por favor – suspirou.
– Talvez encefalite.
– Fique quieto, agora respire normalmente.
Alex assovia e bufava de uma maneira estranha.
– É isso que você chama de respirar?
– Eu não entendo o termo clínico das coisas, é você a médica aqui.
– Abra bem a boca, se mantenha calado o máximo de tempo possível. Diga ah.
– Você vai olhar minha garganta?
– É a idéia.
– Não precisaria de uma daquelas lanterninhas?
– Alex, eu preciso sair daqui a no máximo meia hora e não estou sequer de banho tomado.
Os garotos com câncer no hospital – ela sempre menciona os garotos com câncer, que se
danem os garotos com câncer – precisam um pouco mais de mim do que você.
– Peça pra um substituto cuidar deles, aposto que eles não estão com essa enxaqueca.
– Talvez eu use a sua idéia quando eu sim estiver com sua enxaqueca. Vamos lá, abra a
boca.
– Tudo bem, mas, porra, não a subestime. A enxaqueca, não minha boca.
– Anda logo.
Ele obedece, força o maxilar até onde pode e não se importa com a vontade de salivar.
Sente-se um cavalo que tem seus dentes examinados, até dar-se conta de que não é
exatamente uma sensação ultrajante, é mesmo assim que as coisas ocorrem, que as coisas da
vida não são lá muito glamurosas, o mesmo processo com o qual se examina uns bichos se
punha agora a examinar a si cuja dor deve de ser muito mais transcendente à descrição de
mera enxaqueca, há nisso um fundo espiritual, o que talvez a boca de um cavalo não viesse
apresentar. Pensou no que diabos ela pensa enquanto esteja olhando a sua garganta, ele já
estaria rindo da feiúra que é a anatomia de uma boca, se não isso estaria vomitando ao ver
dentes com restinhos de comida e a amarelidão do passar dos tempos. Achou que estar nu
seria mais discreto do que ser olhado nas suas sujeiras, a verdade é que se sente um pouco
violado, não lhe é exatamente íntimo, mas é sufocante.
– Pelo que dá pra ver tá um pouco inflamado. Alguma bactéria na garganta pode causar
também febre e dor de cabeça – e liberou-lhe a boca.
– Acho que tomei pílulas anticoncepcionais de Letícia, achei que eram pastilhas especiais
pra hálito, pode ter sido isso.
– Meu deus, Alex. Ok. É óbvio que não.
– Ao menos eu não vou ovular.
– Abra bem os olhos e siga meu dedo.
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Ele o fez, sente um pouco de riso tentando escapar-lhe, mas ela ao contrário o olha tão
seriamente que o põe intimidado, talvez se risse ela o desse com o aparelho bem no olho, ou
talvez esconda um bisturi, sempre ande com ele para um eventual estresse, não sabia.
– Não posso dar certeza, mas não é difícil ver que suas lentes naturais estão um pouco
deslocadas, você força os olhos demais, pode ser miopia. É melhor ir a um oftalmologista.
– Não, disso eu sei. Você olhou até minha garganta, mas eu quero saber o porquê da
enxaqueca, e enxaquecas geralmente ficam na cabeça.
– A médica aqui sou eu.
– Daqui a pouco você vai querer futucar minha próstata e eu vou ter que acatar...
– Bom, é isso, estou indo – fez menção de levantar-se.
– Não, espere. Acho que posso ter uma pista. Sabe, ando tendo sonhos ruins... – franziu a
testa ao falar disso, gosta da idéia de dar peso ao quão horríveis eles são.
– Certo, Alex. Você não vai desistir. Me fale sobre seus sonhos.
– Outro dia sonhei que estava correndo por uma rua escura, não sabia ao certo do quê,
mas num certo instante vinha um cara lá de trás e me dava um tiro pelas costas, terminou que
eu não consegui fugir e morria.
– Interessante.
– Só não me venha dizer que isso é freudiano, dizer que sonho tem alguma coisa
freudiana. Não quero imaginar o que Freud diria de um sonho onde o cara leva um tiro por trás.
– Não, Alex, pesadelos são mais típicos do que você pensa, não que coisas freudianas não
sejam simples – não vê como ela possa se gabar de algo como isso –, até a alimentação pode
influenciar pra você ter sonhos ruins. Pode ser até hormonal, entende?, depois de um tempo
passa, não tem com o que se preocupar. O seu cérebro precisa de uma descarga de
adrenalina. Mas os seus sonhos representam também seus medos, ou de repente nem isso, só
uma cena de filme que você viu e esqueceu ou juntou com alguma memória ou coisa da sua
imaginação, pode ser qualquer coisa, percebe? – parecia um pouco displicente, imaginou se
aos seus futuros clientes ela daria essa mesma interpretação ou inventaria significados épicos
e incríveis para o tal do sonho.
– Não sei. Acho que estou estressado.
Ela não pôde deixar de reter uma pequena risada. Agora é Alex quem olha a sério,
aparentemente não a tinha entendido, até o ponto em que ela pareceu constranger-se e
minguou o sorriso.
– Tá falando sério? – perguntou num tom quase divertido.
– Há um certo escárnio na sua pergunta ou foi só impressão? – moveu bastante o rosto ao
falar a palavra escárnio, parecia esperar por algum resultado de comoção, o que, na verdade,
não deixou de funcionar.
– Não, ora, foi só que...
– Eu não posso estar estressado – emendou –, isso parece mesmo ser algo que nunca me
afligiria, não é?
– Não é isso, naturalmente que qualquer um pode, isso...
– Não importa, você foi preconceituosa e antiética.
– Alex, não exagere.
– Certo, desculpe.
– Acho que terminamos por aqui.
Após ter sido examinado, Alex partira com a forte impressão de ter sido mais um tanto
ludibriado, deu-se por vencido quando a doutora o receitou um desses remédios para dormir,
mas de tão forte, disse ela após ele insistir tanto na gravidade que tinham suas insônias e
dores, mas de tão forte que era, só poderia tomar um quarto do remédio, então isso seria o
bastante para assegurá-lo com toda certeza uma boa noite de descanso. Esse é dos bons,
pensou, se ela receitou um quarto tomarei no mínimo metade que é para não deixar dúvidas
que vai durar.
Andava então pelo corredor, passava agora pelo lado do quarto de Fabrício e Letícia, os
dois são irmãos, Alex tratou de mover a pata e bater contra a porta, mas quando ela
escancarou-se ao seu toque nenhum dos dois está lá, ninguém se apresenta, salvo os móveis
que produziam um corredor apertado, ninguém está lá para preencher seu dia. O quarto era
mais ou menos igual ao seu, assim que entrasse só havia um pequeno espaço para se
movimentar, esse único espaço o conduziria tanto às camas quanto ao armário, tinha de se
espremer como podia e muitas vezes dar com o joelho na beirada de um móvel quando
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passava mais apressado, sempre assim. Certa ocasião pensou se não seria mais espaçoso e
aconchegante dormir dentro do armário, mas deu-se com um problema maior, se tirasse todas
as coisas que estariam lá dentro talvez não houvesse mais espaço no quarto para suportá-las.
O desejo assassino direcionado à dona do quarto principal retornou por alguns instantes. De
longe, enquanto isso, começa a ouvir o som da televisão.
Letícia é aquela moça que geralmente se reconhece por se esforçar dentro das vias
honestas do nosso mundo, quer alcançar a paz e a satisfação e ao mesmo tempo ajudar as
pessoas, sabe como é, mudar o planeta que, como temos visto, anda com mais problemas que
soluções, então ela acha que ética e boa vontade vão tirar o mundo desse fosso encarniçado
de desonestidade e egoísmo. Crer nisso compensa, diria ela. Ela é realmente uma boa pessoa.
Mas seus sonhos são meio ocos. Às vezes também era um pouco boçal, não só por tentar se
vangloriar de experiências que não tinha, mas, por ingenuidade, às vezes estar convicta delas.
É uma ingênua fadada à depressão quando tiver quarenta anos e dois filhos, mas ao todo é
uma pessoa boa. Ela estuda comunicações mas conseguir estágio anda difícil, se queixava por
semanas dizendo que é com contatos que as coisas todas se resolvem, fator do quem-indica,
em tudo reina a vitória da força sobre o mérito, tal era o exemplo de um tal colega
aparentemente menos esforçado que conseguiu alguns ajeitares com um desses professores,
melhor que não a contem que ela é medíocre, também isso não é coisa que se diga, então
Alex coça levemente as nádegas enquanto continua sua passagem. Ela era bonita mas quase
nunca estava em casa, quando chegava estava sempre com cara de cansada, também não é
de se espantar, acha que ela se desiludia com as coisas muito rapidamente, como com o
namorado que a largou por questionar seu tempo, para da mesma maneira resgatar os ânimos
muito rapidamente, ele sabia que ela andou choramingando que o cara voltasse, isso tudo não
deve ser muito saudável, algum dia algum órgão seu vai parar, não antes dos quarenta e dos
dois filhos ranhentos. Ele gosta dela.
Fez a curva que tinha de fazer para que terminasse a sua caminhada no corredor e deu
com o abafamento da sala, há tantas coisas jogadas que não sabe o que pertence a quem,
talvez a todos, talvez a ninguém, apesar de alguns sujeitos neste lugar e no mundo fazerem
questão de que esse tipo de conceito seja eternamente relembrado, tire as mãos disso aí, que
é meu etc, então sente o cheiro de poeira do sofá velho e da poltrona rasgada, não havia um
dia sequer que não sentisse esse cheiro, era entranhado no apartamento tal qual o cheiro de
quiabo, de gordura que se entranha nessa cidade toda e não é por cisma que ele o fareja, tenta
abstrair mas não pára de sentir esse cheiro, nunca, nunca se acostuma. E havia também o
criado-mudo com um aspecto clássico, por ser supostamente frágil era uma tormenta ter que
limpá-lo, acabava que poucas vezes era espanado. Esse é batizado de inútil por ser o móvel
aparentemente mais caro da casa, ainda que ele ache que em qualquer esquina possa se
achar uma relíquia dessas, enfim, não só por ser o mais caro recebeu esse nome no batismo,
mas porque só suporta porcarias, como por exemplo prataria que não usam e não se sabe a
quem pertence, portas-retrato vazios, enfeites domésticos, coisinhas aromáticas, santos que
ninguém adora e coisa assim. Olhou para as janelas, estavam entreabertas e com as cortinas
fechadas, por isso o sol entrava timidamente. Pensou se devia ir para a varanda, tomar um ar,
dar bom dia às ruas, será seu novo dilema. Caminhou até o sofá, deu a volta nele e se sentou.
O sujeito gordo já está esparramado, a impressão que dá é de estar hipnotizado pela
televisão, desprezível, um retrato da nossa era, o sonho consumado da revolução industrial, e
não há nenhuma programação passando, na verdade quando Alex a olha vê apenas
fantasmas, não faz idéia porquê, então decidiu que era mais útil dedicar sua atenção à
mesinha que ficava entre o sofá e o aparelho de aficcionar o gordo. A viu toda suja, migalhas
de cereais e amendoins e restos de unha, uma baratinha furtiva correu descendo pelos pés de
madeira quando percebe sua aproximação, e olha que baratinhas não aparecem durante o dia
a não ser que haja realmente um grande aperitivo, já deve ter se fartado. Tateou uma das latas
de cerveja, inicialmente não pode distinguir qual já foi bebida e qual não, até achar uma que
afortunadamente ainda está cheia lá atrás de todas as outras, aí se recolheu com as costas no
sofá. A abriu e tomou um gole de desjejum. Estava quente.
Concentrou-se por alguns instantes nos fantasmas da tevê, com algum esforço consegue
distinguir uma mulher, sim, de fato é mulher, ainda que às vezes se estique toda e fique bem
engraçada, e é aparentemente loira e de nariz empinado a enfiar-se num blazer vermelho, ela
deve estar falando alguma coisa importante, mas enquanto abre e entreabre a boca o único
resultado é esta série de chiados agudos, uma legenda passava pelo rodapé da tela, assim
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como ocorrem em algumas notícias, é de se esperar que seja uma. Só então notou o sujeito
magro de cabelos castanhos despenteados largado na poltrona. Pega o controle!, gritou uma
voz que parecia estar distante, mas claramente vinha da varanda lá de fora, muda o canal!, diz
o grito.
– O que estão fazendo? – Alex toma um gole da cerveja, fez essa pergunta voltado ao
sujeito da poltrona.
– Tentando fazer um gato com o cabo do vizinho.
– Merda de tecnologia – resmunga.
Nesse instante um sujeito mirrado e encharcado de suor entrou na sala pelas janelas da
sacada.
– Igor tá lá em cima testando, dá pra mudar o canal da televisão, por favor? – e
desapareceu de onde veio.
Alex não força muito para ver em volta, na verdade sentia que suas órbitas não estão
funcionando lá muito bem, prefere encarar isso como resultado súbito da cerveja, já a linha de
raciocínio um pouco mais pessimista o faz considerar que a doutora teria tomado como
bobagem os indícios de uma doença devastadora, só a panacéia curaria, só aquilo que
curasse a todos os males curaria, matando-o para aliviar a dor, talvez o mal seja ele mesmo. A
mulherzinha da televisão insistia em falar, é por longas notícias como essa que são poucas as
pessoas que as assistem do início ao fim, quanta informação. O controle remoto estava a
muitos centímetros de sua frente, dividindo o seu espaço com todas as outras coisas da mesa,
está longe demais para que o agarre. Faz um dia bonito, reconhecia com facilidade, um dia
inspirador, sim, acontece que não tinha exatamente um ânimo mais profundo incrustado nesse
seu ser momentâneo, o dia não o inspira a nada, no mais o inspira uma bufa de enfado,
verdade é que se sentia derrubado, um caco, para baixo. Se houvesse sobrevivente que
pudesse depor sobre isso, diria ser esta a sensação de ter tomado a tal panacéia e descoberto
que só era placebo. Deve ser depressão. Imagina-se falando isso para a doutora, talvez uma
nova risadinha ela lhe desse o pretexto que o faltava para enterrar qualquer coisa pontiaguda
em seu crânio, depois alegará legítima defesa, que ela veio ameaçadoramente com o
estetoscópio e com o bisturi.
Veio-lhe uma cena específica na memória, na ocasião devia estar cruzando sua juventude,
na verdade os mais próximos diriam que ele seria um cara eternamente jovem, mas, é claro, no
pior dos sentidos, na acepção de quem se apega às infantilidades, a doutora, por exemplo,
diria algo diferente e seria aproximadamente assim, que ele sofria de algum desvio de
personalidade que o impossibilitava, por séries de razões, traumáticas ou não, de sair de um
estado determinado de sua vida e prosseguir, ou seja, não pode, como deve todo mundo,
amadurecer. Para ilustrar essa situação ela chegou a citar, ainda nessa ocasião em que
mencionou todas essas coisas, das crianças que num certo período da infância tendem a
encarar o pênis como uma arma letal, daí haveriam vários estágios entre esse infante e o
jovem questionador sem motivos etc, e Alex se identificou com a parte infantil, mas preferiu não
mencionar. Enfim, lhe veio uma cena específica na memória durante seu período de juventude,
mas a verdade é que ele se considera tendo saído dela há um tempo. Esqueceu-se da cena
que lhe veio à memória. Merda. Confundiu-se com o gosto da cerveja, a mulherzinha na tevê
agora era quase invisível. Como eram mesmo aqueles versos?, lembrou-se de tê-los lido em
algum lugar, é verdade, eram mais ou menos assim, tinha a memória boa para decorar o que
gostava, enfim, depois de longos versos explicativos dizia essas coisas, isto é o que ele lera,
Que mais resta de pouco repetitivo? Que sobrou a nós em noites sem respostas? É por isso
que o homem se renova. É por isso que as almas são maçantes. Dou graça, assim, portanto, à
velhice itinerante, que percorre as trincheiras da razão, e a alguns mortos em batalha não se
cansa de contar todas as falhas da idéia, do intelecto e do amor.
Desde quando leu essas palavras teve a certeza de que a velhice era mais apropriada que
tudo, não mais se iludiria com os solilóquios que as pessoas gerem para contestar a morte e
temer a sua aproximação, e decidiu de tal maneira tornar-se velho, que no instante em que
pensou voltar atrás já lhe era muito tarde, já estava definido.
A memória lhe voltara, a cena que veio em mente foi a seguinte, num período no qual ele
agora questionava se ainda seria assim tão jovem, na verdade está mesmo claro que já se
tratava de um cara com alma de velho, caminhava na rua por alguma razão qualquer, talvez
estivesse voltando para sua antiga casa, talvez só tivesse ido comprar pão. Após ter cruzado
uma esquina, viu que nessa rua um tumulto estava formado, pelo aglomerado de pessoas e
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pela direção em que olhavam não demorou muito para constatar que eram apenas abutres
espiando o drama de um possível suicida que estava a debruçar-se do alto de um dos prédios
por ali. De antemão e quase imediatamente foi rude ver coisa assim, ele mesmo reconhece
que sempre houve em si algo como um sarcasmo muito intenso e desmedido, usualmente
chamado de humor negro e ausência de tato, sim, mas ver aquelas pessoas espiando o
sujeito, e outros tantos espalhados a torcer por um espetáculo ainda mais macabro, em coro na
ordem de pula!, pula!, o deixou profundamente enojado da situação quotidiana da gente.
Pensou que se Jesus viesse realmente à terra realizar o seu julgamento final, nem aquela
sujeita que passou honradamente toda a vida como humilde dona-de-casa inocente escaparia,
nem o recém-nascido no berçário, este já teria lá o seu histórico de intenções más, se não até
mesmo de crimes consumados, não há muito o que se possa fazer, é que nós somos todos
ruins, o caroço lá no fundo é ruim, e a história não terminava por aí.
Ele não pôde deixar de caminhar pelas calçadas um pouco mais até perceber que os
homens-de-azul, aqueles tipicamente organizados guardas já estariam a tentar controlar a
situação dos curiosos em volta, pôde ver as faixas isolantes, enquanto isso os militantes do
corpo de bombeiros se organizavam ao redor do edifício e em breve estariam erguendo
aquelas lonas de proteção e tudo mais, mais parece um pula-pula, cama elástica, e eles
acenando com os braços uns aos outros para fazer tudo direito, nenhum detalhe poderia
escapar porque um erro de cálculo compromete tudo e a vida do rapaz no telhado deve ser
mesmo muito importante. Alex supôs que a essa altura já estivesse sendo encaminhado algum
terapeuta lá para cima, incumbido de convencer um suicida de que a vida tem lá seus
sentidos, de que ele não sabe de verdade o que quer, que uma loucura dessas é definitiva e
tudo o que precisa é de um momento de sobriedade para que pense melhor, ver que não é
bem assim, mas como de fato é, ele não sabe dizer. Por uns instantes até perguntou-se se
aquele sujeito só não estava ali quase se debruçando no parapeito porque teve a idéia de
tomar um ar puro num dia de céu azul feito este, ele estaria olhando para baixo e se
perguntando, que diabos fazem todos esses idiotas aí?, deve ter acontecido algo realmente
grave, hein?, no final, quando tudo fosse esclarecido, a própria polícia o daria um tiro ou o
levaria preso por estar tomando um ar puro, é claro, ele podia ter se debruçado menos, é que
aí passará de suicida para causador de desordem, cuidar da própria vida às vezes o torna
criminoso.
Pelo sim, pelo não, não foi ele mais um abutre a acompanhar o drama da vida alheia,
tratou de se concentrar nas suas próprias metas quotidianas, que se fosse comprar o jornal na
esquina, seria isto, se fosse ir a uma sorveteria por bel prazer ou por ter um encontro com uma
bela garotinha, assim seria. Com a idéia de evitar o alarmado, deu a volta pela rua logo na
primeira viela, e não se enganou, após passar um longo beco, do outro lado do prédio as
coisas estariam mais calmas, tudo ok, no máximo havia essas pessoas cochichando a respeito,
talvez só estejam tratando das próprias vidas, tudo bem. Há aqueles que se movimentavam
para o outro lado da rua, estes eram os piores, eram os que não estavam na desgraça nem por
acaso, mas souberam da coisa por meios tortuosos e fariam questão de ir e assistir,
emocionar-se e torcer. Se queixou com alguns resmungos, de todo modo as coisas estavam
mais tranqüilas, seguiu o seu caminho. Mas pensou pela última vez que, se o sujeito resolve
pular, ele seria poupado da cena, lhe bastaria. E foi seu engano. Acontece que hoje está muito
claro que o suicida teve a mesma lucidez. Deu um jeito de correr do terraço ao outro lado e
saltou. Inicialmente só viu aquele movimento estranho volitando pelo ar com o canto da visão,
ia ter como sendo o vôo de um pombo ou coisa simples, isso se não ouvisse os gritos. Quando
ergueu o olhar deu com o homem a cair, não tardou até que ele se encontrasse com o chão e
as pernas lhe subissem para o torso, fundindo-se pelo choque na calçada num bolo de carne.
Caiu de pé, foi como morreu. Nesse dia ele viu que a vida é feia.
A essa altura Victor, que se trata do rapaz que está na poltrona, esteve terminando de
pegar o controle da televisão, provavelmente alguém de fora gritou apressando que alguém
tivesse a boa vontade de fazê-lo, mas Alex certamente não ouviu, nem mesmo teria a boa
vontade. Ergueu-se, quase vomitou pelo fato de ainda estar ali.
Quando entrou na cozinha viu a garota dos cabelos marrons com trancinhas, era Letícia e,
se está logo ali na pia, deve estar cuidando das louças, além dela há o sujeito sentado à mesa,
ele se entretinha com uma dessas comidas rápidas, pão com alguma coisa. Ele tem no rosto
um grande e horroroso hematoma, a parte mais próxima ao supercílio é conservada com
esparadrapo. Esse levou uma sova das boas, pensou que pena que não cheguei a ver, aí ele
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seguiu até a geladeira e a abriu. As prateleiras estão ocupadas da desorganização dos
suprimentos, ele gosta de pensar que são o abastecimento de uma guerra, que geralmente é
uma confusão ordená-las de acordo às exigências de cada um, mas isso é o de menos, uma
vez que consome pouco e de forma tão variada que raramente dão por falta de um gole de leite
ou três fatias de presunto. Apanha uma fatia de queijo na prateleira de cima, apanhou uma
nova lata nas gavetas de baixo, a que bebia acabava de acabar e não foi preciso mais que um
movimento das mãos para jogá-la ao lixo. Bebe em fartos goles que terminam num asqueroso
e libertário ah. Quando está para se virar pensou que não devia ser à toa, afinal, que Letícia o
estivesse olhando e tentasse disfarçar, claro que não era, e haveria de sentir-se orgulhoso dos
seus, diga-se assim, dotes masculinos, a beleza ou o odor que seduz a quem cheira, cheiro de
homem é próprio para isso, se neste instante a fome não falasse mais alto e mais lhe
interessasse. Puxa ali na mesa uma cadeira e se senta.
Pensou se por um acaso seriam insensíveis o bastante para não darem por falta de suas
falas que não têm qualquer outro fim a não ser o de simples sair, pôr-se um nada vital de si
mesmo para fora, se não estariam sentindo falta das besteiras do café da manhã, se a doutora
realmente sente o desagrado que mostrou ao lhe ter de examinar os olhos. Ou talvez seja esse
um comportamento típico a todos e afinal a vaidade não seja capaz de admitir que pudesse se
dar também com ele. As pessoas entram e saem das vidas umas das outras, não há nada que
seja estável, salvo o si mesmo, este que há de acompanhá-lo desde o início da vida até o
término desta, é simples, por isso o passado dos transeuntes que lhe passam pode ser
descartado, o futuro também é uma sombra. Era triste que gente fosse descartável e ilhada,
então pensou que talvez não fosse apenas questão de vaidade, mas que se sentia comovido
porque isso se passava com todos, com tudo. Viu seu próprio olhar refletido no vidro da mesa.
Uma vez soube de uma jovem vizinha sua, não a conhecia mais do que de vista e sempre que
a via ela o olhava de uma maneira estranha, sempre parecia que ia fulminá-lo de fúria, parecia
sentir nojo ao vê-lo e gostar de mostrá-lo, passou a detestá-la, a desastrosamente amargurada
e então antipática, isso já fazia alguns tempos, um dia soube que ela havia morrido, tinha uma
doença que até hoje ele não sabe o que era, a primeira coisa que pensou quando recebeu a
notícia foi, ah, então era aquilo que significava a careta. Secretamente riu da dedução, chegou
a sonhar algumas vezes que aquela garota o vinha buscar com os pulsos sangrando, ainda
que essa coisa de pulso cortado seja só símbolo, ou talvez uma mensagem de que tudo seja
suicídio, e veio também a gemer coisas fantasmagóricas e sussurros carentes. Lembrou disso
porque seu próprio rosto o lembrou do da menina, inicialmente chegou a levar um susto
quando viu a própria imagem, não esperava por ela. Da mesma forma, inevitavelmente, o
associou ao terrível reflexo que o perseguia no sonho de hoje. E lhe passou por um momento
na cabeça que aquela expressão não fosse de raiva, mas sim de dor. Um dia vou morrer,
pensou, e riu-se da sua conclusão brilhante. Quando era criança ouvia falar da morte apenas
como apresentação distante, parente que existe mas do qual não quer saber, já que quando
criança ele não achava de fato nada, mas tinha em mente a impressão de que as pessoas
viveriam indefinidamente, que só morriam vítimas de alguma fatalidade, como por exemplo
bala perdida ou um acidente, do contrário ele não supunha a velhice, o definhar e tudo o mais,
não tinha porquê, criança não tem futuro, simplesmente não pensava sobre isso. E hoje ele
pensa que é uma pena que os garotinhos de ontem não levem a sério as coisas que
antigamente pensavam, elas perdem-se com facilidade, mas depois conclui que talvez assim
seja melhor, não suporta crianças, o que as torna crianças é a inocência que ele já perdeu e
que inveja, é uma inocência que o distancia e por não mais entender passa a irritá-lo, se
tivesse de conviver com uma versão infantil sua já a teria matado num acidente intencional.
Pensou se não devia confessar a Letícia que a amava, não seria algo exatamente difícil de
fazer, apesar de o sentido usual dessa palavra e a conjuntura geral de uma declaração não
realmente combinarem com a sua individual conjuntura. Sendo bastante franco consigo
mesmo, aquilo não combina com o que ele é, talvez sequer um eu te amo flua natural quando
saísse. Acontece que fazia mais de um mês que não se apaixonava por mulher alguma entre
todas as que olha, fossem conhecidas ou fossem na rua. Salvo pelo desejo que eventualmente
aflora, este aspecto ele julga ser inevitável não somente a ele, tampouco inerente ao macho,
mas a todo ser vivo, é que o sexo é na verdade a coisa-em-si da gente, a manifestação da
vontade de viver que crepita por dentro, inclusive Alex considera ser do instinto sexual que se
iniciam todas as principais formas de traição do homem consigo mesmo, com sua intimidade,
com sua postura diante deste poder, eis a raiz de uma longa estrutura de crimes com muitos
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galhos ramificados, coisa que talvez tenha começado no paraíso e resultado na censura do
tapa-sexo, enfim, tinha uma idéia mais ou menos formulada sobre isso. E então se cala. As
outras garotas casuais não despertam qualquer atração psíquica, aquela coisa que realça o
carnalismo das coisas, que dá ainda mais ênfase ao sentido da conquista, da posse, da
obtenção, das relações de poder, aquilo que origina o sentimento do eu quero a tua pessoa.
Por fim, aquilo que gera uma enigmática devoção. Isso deve ser o que consideram paixão, mas
pondere, ela não é tão bonita assim, o que talvez signifique que Alex esteja mesmo a bordo do
princípio de um fervor daqueles que dedicam-se a apreciar somente a aura, ou sabe-se lá o
quê, das pessoas.
Nunca imaginou que fosse sentir isso por gente, apenas pelas coisas, das quais logo se
cansava por não serem tão surpreendentes. Ela estava próxima, não seria tão difícil afinal.
Tomou mais um gole da cerveja, viu que não valia a pena, ela nem era tão bonita assim. O
queijo branco estava bom.
Fabrício, o rapaz loiro e esguio, sem camisa e todo suado entrou na cozinha, limpava a
testa que lhe escorria e ainda em silêncio roubou um beijo da bochecha da irmã, a qual
resmunga alguma coisa enquanto se encolhe pelo contato do cara todo melado, que logo após
serviu-se com um copo de água e se foi embora. Da última vez que tentaram fazer pirataria
estragaram o contato do vizinho de cima, isso porque antes chegaram à conclusão de que com
a presença de Jonas era mais provável que conseguissem, é que é Jonas o sujeito que mexe
com esse tipo de coisa, não?, estuda eletrônica, sendo assim o forçaram a esgueirar-se pela
sacada para remexer nos fios, acontece que o coitado sofre de medo de altura, atração do
abismo, o resultado eventual foi a queda direta em direção ao beco lá em baixo onde só parou
dentro da grande lixeira do edifício, claro que ganhou na ocasião uma costela quebrada e um
braço com o gesso em que hão de assinar coisas sacanas e piadinhas escrotas. Coube à
doutora resolver as pendências com o vizinho, quando ele veio bater na porta e reclamar. Para
ele estava claro que a senhora do outro prédio tinha visto alguns rapazes daquele apartamento
trepando durante a noite pelas janelas e tramando certamente o que seria alguma diabrura,
usa-se aqui os mesmos termos da senhora, que era viúva de militar e não importava qual fosse
a hora, sempre estaria na varanda da frente espreitando as coisas dos outros, eventualmente
resmungando suas próprias intimidades e, mais eventualmente ainda, semeando a discórdia
entre inquilinos da vizinhança. Enfim, na ocasião do vizinho, coube a ele convencer a doutora
que eles não fizeram nada, e coube a doutora convencer o vizinho da mentira da qual havia
sido convencida e, por ter se lembrado dessa ocasião, estava arquitetando uma maneira de
matar a velha, quando está na parte exata em que joga o secador na banheira de sua casa e a
vê se incinerar em convulsões doloridas, a doutora entrou apressada na cozinha, falava em
seu telefone. – O quê? Bem, depois do expediente. Sim, claro, trabalho normalmente hoje...
como?, onde?, na porta? – dava sorrisinhos enquanto se servia com o suco, pela cor talvez
fosse tangerina. – Não sei, talvez, é, pode ser. Pelas seis. Certo, às sete, ok. Então tá, a
gente... – e aí foi saindo com o copo e aos poucos não pôde mais ouvir o que dizia.
Alex pode ler nas entrelinhas que aquela risadinha diz bem mais que o suficiente, é, na
verdade não precisaria ser mais perspicaz do que isso para chegar a essa conclusão, a
doutora estava novamente falando com o seu amante secreto, ou príncipe encantado ou como
for de convir à mais oportuna definição da idealização promissora. Ela não falava muito, era
claro que se julgava superna demais para se abrir às pessoas comuns a sua volta, dentre as
quais certamente se destacaria exatamente quem?, essa pergunta é retórica, não precisa ser
respondida, enfim, tendia a ignorá-los principalmente quando tratava das coisas da vida que
não misturava com essa, no caso da doutora, essa vida diria respeito às tais crianças com
câncer, às tentativas de ascensão social, escrota ostentação material e outras coisas tantas
que Alex também não chegava a se importar. Aí ele colocou o queijo numa fatia de pão que
estava servido. A doutora ficava bonita mas sem graça vestida em seu jaleco. Imaginou se já
não teria saído.
Parecia que as coisas, como se fossem de uma maneira que deveriam realmente ser, não
sairiam de seus lugares, isto é, o mesmo gordo simpático e imundo parecia profundamente
sonolento hoje e não se movera de onde esteve, pode inclusive estar morto, seu cérebro
acabou, mas bem, o rapazote de cabelos castanhos estava reclinado na mesma poltrona, a
diferença é que o magrelo de óculos grossos, seu próprio companheiro de quarto, se encolhia
no canto do estofado. Esgueirou-se no meio como pôde e olhou a televisão, sentiu-se
extremamente confortável e sabia que não desejaria sair dali por longos instantes, salvo pelo
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momento que se deu conta de que se sentir assim com uma cerveja em mãos seria se sentir
ainda melhor, e aí se estendeu até a mesinha para tomar uma nova lata. Tornou a olhar o
aparelho, agora as imagens dançavam de uma maneira inteligível, eis o que se passava.
Surgiam as imagens de edifícios, colunas inteiras dos maiores deles vistos todos de cima,
mas num giro ou outra irreverência do ângulo da câmera podia-se também ver as ruas que
entre eles adentravam. Foi mais ou menos nesse instante que a cena foi cortada e substituída
por uma de muita, mas muita gente junta, parece ser uma passeata, há gente com seus
cartazes e panfletos volitando atrás e dos seus lados. Os prédios faziam sombra para a massa
em polvorosa como guarda-chuvas, aí aparece um ou outro sujeito mais a frente acenando em
brados e cânticos de guerra para a câmera, com certeza estão cantando algumas rimas, a
gente gosta de cantar essas rimas fáceis de gravar, elas têm um efeito instigante, mas daí não
ouve nada porque o mundo inteiro fez-se mudo, nessa hora alguém muito inteligente teve a
idéia de aumentar o som da televisão. Estava no mínimo. Aumentam o som e a imagem muda
para um rapaz engravatado que fala, mas de jeito nenhum que este sujeito se arrisca na fúria
das avenidas, está mesmo encoberto pelo enxame de pessoal também de gravata que entope
as esquinas de furgões e faixas de contenção.
– Os brados recentes e que teimam em não se calar, os quais acabamos de relembrar, são
mais que a indignação de estudantes da universidade central da cidade, é sobretudo um aviso
que deve ser ouvido por todos nós, à partir de que ponto a ação construtiva de um movimento
social poderá se converter numa série de atos respaldados pelo despreparo, imaturidade e
pelo espírito do vandalismo? É o que a população tem se perguntado. Os estudantes
rejeitaram ferrenhamente os projetos encaminhados pela reitoria...
Alex ronca um certo instante, as coisas mudam enquanto o rapazinho fala, aí Alex coça
sonoramente a garganta e o queixo, a barba por fazer já está crescida o bastante para que
incomode o tato. Há alguns dias mantém a preguiça de fazer qualquer coisa. Mal tomou banho
e mal trocou de roupa. Então vêem cenas de pedras a voar, não demora até que se veja portas
de prédios e lojinhas comerciais alvejadas, todas destruídas, um escândalo, fumaça e caco de
vidro, coisa das boas, e com os invasores fora de si agredindo suas fachadas, tudo muito
divertido, quebrando seus vidros com paus, saqueando pelo prazer de atirar coisas para fora,
um ou outro sujeito nos altos dos edifícios a roer as unhas de tensão enquanto espia o que vai
acontecendo nas ruas em que todo dia caminha etc. Alex tomou mais um gole da cerveja,
havia se perdido da fala do senhor jornalista, que no fundo de cada evento prosseguia.
– ... disseram ser inadmissível não apenas a proposta de privatização da instituição de
ensino e a extensão do prazo de envio de recursos para departamentos da universidade, que
se prolongaria durante realização do processo mas, como alertam os especialistas, se
resolveria ao final de tudo. Isso pôs muitos a questionar se o que realmente mobilizaria
tamanho número de estudantes é...
A televisão estava a mostrar longas fileiras organizadas do esquadrão de choque da
polícia, usavam todos a cor azul em seus capacetes e máscaras, os escudos e os porretes
eram negros. Após muito pouco tempo, essas fileiras já estão dispersas e não mais identifica
os manifestantes das trincheiras da polícia, há um confronto direto e um tumulto tamanho na
esfumaçada rua, parecem os romanos contra os bárbaros, parecem todos contra todos, uma
maravilha, às vezes lá no fundo voava uma bomba de gás que escapa da tela, às vezes um
policial ia afastando um sujeito com o escudo até que ele tombasse e o policial pudesse enfim
rendê-lo com o cassetete, até que a presa estivesse com as mãos para o ar a gritar por paz,
paz, eu me rendo, eu me rendo, não antes da última porrada, essa vai na cabeça, no ombro ou
no lombo, que isso, é claro, está a depender do humor de cada polícia, pela última tomada deu
para ver aquele trincando os dentes e salivando. Não é mesmo algo incomum de se ver.
– Como está Caio, falando nisso? – Jonas perguntou.
– Sem querer falar com ninguém – Andriolli, que é o gordo suado, respondeu.
– Algum policial deu nele – Alex deduziu.
– Também. Levou pedradas, chutes, parece que caiu no meio da confusão.
– Por isso que ele tá assim? – Alex.
– Considera. Deve ter sido chocante.
Alex não pode dizer já ter visto em sua vida muitas coisas que ilustraria como chocantes.
Sempre há algo pior que lhe poderia acontecer, ele sabe, não acredita na idéia de que as
noções falhariam totalmente quando algo de um grau não quotidiano lhe ocorresse, seria
quase pressuposto de admitir toda pessoa como descontrolada, senão isso, como vítima a
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pedir pela situação que a arrase, então considera impossível aos seus nervos que eles entrem,
por exemplo, em estado de choque. Não por ser forte mas por se achar lúcido. Não entendia
como a gente podia se tornar tão frágil num mundo tão bruto, há até quem diga que não é tão
bruto assim, que o que de fato ocorre é que o mundo da maneira que é hoje, não muito
diferente de como sempre tem sido, tem uma capacidade de produzir diferentes esferas de
percepção, submundos de desigualdade, submundos de entendimento, realidades distintas
para cada pessoa ou para comunidades inteiras de pessoas, sendo assim a brutalidade não
reinaria em todos, seria apenas a característica lúgubre de alguns desses desafortunados
azarados. Por outro lado o mundo nunca foi tão seguro. Também nunca foi um lugar tão
desonesto e cruel. A verdade é que, de forma sempre mais ou menos sutil, todos os homens
devoram uns aos outros e almejam devorar-se, a lei da força e a afirmação do poder é uma
constante que apenas muda os seus aspectos diante da sanidade.
Alex sabia que a ordem nunca estabeleceria o contrário disso, só eternamente legitimaria a
agressão, o sofrimento, o que na verdade é exatamente o contrário do contrário, sendo assim,
de forma mais explícita ou não, usando de métodos distintos ou não, refinados, envernizados,
maquinados ou não, o homem subjuga o homem, seja na ordem, e talvez na desordem, mas
talvez na última não. É só um talvez, parece absurdo, mas talvez não. A televisão mostrava
agora uma menina que tinha sangue no rosto e ainda assim falava à uma repórter. Ele arrotou,
largou a cerveja. Ergue-se do sofá quando começam a aparecer os closes dos camburões,
nessa hora ele chegou a ponderar se não valeria a pena ficar para ver a prisão de alguns
baderneiros, mas já está praticamente todo em pé e achou que seria mais forçoso deixar-se
cair uma vez mais. Deu a volta e saiu, teve a impressão de ouvir o ronco de alguém que
pegara no sono.
Afastou as cortinas da janela, a sacada o recepcionou com uma quantidade calorosa de luz
do dia, alguém a apague, reagiu, é melhor que se revisem uns hábitos da vida. Imagina por um
instante qualquer como andaria o processo do gato, a essa altura deviam estar se pendurando
no telhado, é, talvez. Apoiou-se com cuidado no ferro da sacada, estava velho e enferrujado,
qualquer toque um pouco mais forte e talvez pudesse romper-se, a queda sequer seria o
bastante para matá-lo, está só no terceiro andar. Com muito azar lhe aconteceria o mesmo que
aconteceu a Jonas da última vez que caiu. Pensando nisso, aliás, olhou para a sacada vizinha
e na diagonal acima, não mais que dois andares sobre o seu lá estava a viúva do militar, ela lá
fica numa cadeira de balanço, Alex a havia apelidado de Saudades. A viúva, não a cadeira de
balanço dela. A nostalgia triste que a velha carrega no rosto é moribunda para qualquer um
que a veja. Ela faz o favor de não encarar a ninguém. É como espelhar tudo aquilo que alguém
não quer para o seu futuro. A única coisa que Alex sabe sobre seu futuro é que um dia ia
morrer, pode ser agora, caso a divisa rompesse, mas isso não vai acontecer. Saudades
geralmente fica na varanda apenas a espiar a vida das sacadas alheias, o que já foi dito, mas o
que não foi dito é que também fica ali para admirar os beija-flores que ela atraía com aqueles
tubinhos com florzinhas pendurados que Alex não sabe se têm um nome próprio. A fitou assim
de longe e estava imaginando se tudo aquilo que vê nela faz jus ao que ela é, se era sequer
justo com ela, as aparências são um oásis refrescante e enganador, miragem, ainda que as
aparências insinuem bastante. Não que precise passar uma vida ao lado de alguém a fim de
conhecê-la, também porque o hábito prejudicaria. Ao menos teria de seguir a pessoa por mais
de dez minutos para entender o que ela é. De repente Saudades é uma velha agradável,
dessas de espírito dócil e hospitaleiro, até cozinharia biscoitinhos durante a tarde para servir
aos seus amigos de longas datas nos domingos, faria um café como ele jamais haveria de
provar em toda vida, e depois de tudo conversaria sobre como eram as coisas no seu tempo, o
quotidiano, a educação que os pais davam aos filhos, como as instituições funcionavam
melhor, como seu homem era bom. A estava olhando na sacada por muito tempo, até agora
ela esteve ajeitando o atrativo dos beija-flores, só que muito provavelmente considerou
estranho ou assustador quando cruzou os olhos com o de um rapaz só de cuecas a encará-la,
se não foi por isso Alex não sabe porque Saudades acelerou o passo para dentro de casa. Boa
senhora, pensou. Agora era ele a retirar-se da varanda, se foi.
Voltou-se ao quarto, enquanto fechava a porta ainda ouvia ao longe o alarido de pessoas
indo e vindo. Aproveitou com êxtase esses poucos momentos em que identificava os sons
ambientes como silêncio absoluto. É paradoxal, ele pensou, que deseje tantas vezes estar
sozinho, mas a solidão não seja realmente algo almejado e, pelo contrário, a todo tempo quer
gente consigo. Mas elas não servem, não servem, não servem. Sentou-se na cama, esticou-se
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até o próprio armário, o abriu e tirou, após destampar uma caixa de sapatos, um diário de
anotações imerso entre outros de seus utensílios banais. Enquanto o folheava rapidamente
identificava a própria caligrafia. Reconheceu o formato e organização das letras num dado
instante, parou então de revirar as folhas e o abriu. Deitou-se, olhava. Não havia autor, já havia
constatado que o sujeito era algum ilustre desconhecido, aquilo escrito passaria então a ser
sua própria manifestação, sua secreta ode a si mesmo chamava-se O imortal.

O imortal

Todos cantos da platéia cochicharam quando entrei.


Em seguida, preferiram a balbúrdia.
Mas, na espontaneidade de um cadáver do passado,
eu só vi em tantos rostos a razão pra me orgulhar.
Como sombra, eu entrei.
No furor de epiléticos gritavam!;
percebi, ao retornar aos bons patrícios,
que a vantagem de minha alma não mais era
o juízo. O inverso, sim, o tendo, e outrora
o perdendo, nada mais me impediria. Os conceitos
são motivos pra risadas. Assim como toda a filosofia.
Poderia me sentar em uma mesa, outro dia, e contigo já me
pôr a conversar; as histórias
nos poriam a sonhar. Dialética, humanismo, a matéria,
sensatez... Que mais resta de pouco repetitivo?
Que sobrou a nós em noites sem respostas? É por isso que o homem se renova.
É por isso que as almas são maçantes. É. Dou graça, assim, portanto,
à velhice itinerante, que percorre as trincheiras da razão,
e a alguns mortos em batalha não se cansa de contar todas as falhas
da idéia, do intelecto e do amor.
Outro dia, entre os homens a sorrir. Outro dia, sim. Quem sabe?
Quando a noite mal chegou, tu já vieste com punhais. O fazendo pelas
costas por acaso esqueceria? Veja o deus que vocês encaminharam,
Sou agora imortal.
– E com olhos de retalhos vi o óbvio, então, se ofuscar
nessa lucidez tão viva que apenas eu senti.
Na verdade, os mistérios sobre a carne me roeram,
e beijou-me o conhecimento frio sobre o 'não'.
Com o não, me libertei. Com o não senti
na pele a minha escolha – todo o mundo a me chamar
no cadafalso. Tantos deuses, ah! E acaso intervieram?
Nem assim. Mas na solidão das tumbas repassei em
muitas vezes tudo aquilo que quebrava os meus joelhos.
Tudo aquilo que me condenava ao chão.
Entre os mais feios necrófagos, lembrei...
E morri. E não sei – eu já mal sei o que restou.
Fui morrendo, e morrendo... só sobrou-me o meu fantasma – esse qual
agora eu sou;
quanto a alma que mataram, agradeço, já que nada mais me prende,
e mais nada hei de perder.
Sou agora imortal.
– Brutus, não podes mais me enganar,
Meio às dores mais horrendas molestei os meus princípios,
como nem os meus carrascos o fariam.
Eu deixei-os como deus ao próprio filho...
E pensei, enquanto o lodo me mimava,
uma forma apaixonada de, assim, me revoltar...
Vi que o homem é do lodo o fetiche. É.
E brindei o meu capricho com meu sangue, e minha boca,
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já sem dentes, de gengiva maltratada, se prostrava, tão faminta,
a calar... E a própria antipatia mal sequer a permitia!
Concluía-se, a tola, assassina do amor... mal sabia que era esse
quem o hábito retinha. Essa ânsia por matar.
– Esperavam, dessa forma, que eu tivesse um coração?
O inventaram para o corte ornamentar,
para o sangue nunca parecer em vão.
– Esperavam, após tudo, que o tivesse?
Todo o homem se retoma de balbúrdias. Mais um pouco e já vou rir.
Pouco a pouco, vou fingindo austeridade...
Já fingi, por um acaso, o rancor suficiente?!
Acontece que, em suma, não sou nada; a outros olhos,
sou aquilo que enterraram.
O placebo concentrado mais horrendo, mais estéril
que a contradição da gente poderia conjurar,
Sou, agora, imortal.
– Que pensavam, lá no fundo, quando dogmas gritavam?
Há idéias que não são absolutas.
Toda ordem é análoga ao fracasso,
Vê, agora sou o centro desta pauta, não as guerras,
a retórica ou as verbas. À entropia, bons ilustres,
todo centro é o fiasco. E pra sê-lo, precisei
o nada ser. Eu vos deixo com o fantasma do simplismo...
E com a confusão que é servir de espelho,
com o caos do mais profundo que é teu podre refletir.

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Perdia-se faz um tempo na profundidade doente e cavernosa dos olhos pretos que estão a
sua frente. Parecem de um cordeiro que sem querer escolheu para ser imolado, não, parece
haver o rastro antigo de dois astros, ou vulto de faróis pálidos, ou ameixas dos olhos de uma
deusa hindu, brilhavam num chamuscar que insinuava algo que não sabia dizer o quê,
profundidade cansada, um cordeiro molhado, fundo de poço, mas nos momentos seguintes o
brilho se perdeu e viria à coerência como não sendo nada além da puta com o rosto entupido
de maquiagem que se debruça sobre a janela do carro já faz algum tempo, a garoa escorria
pelos cabelos e ele não sabe dizer se são eles ou a garoa que é negra, mas na verdade tudo
lhe dava um aspecto bonito quando conciliado ao mundo de luzes tão atraentes e coloridas e
fascinantes que eclodia atrás dos cabelos, ou da negritude que é deles ou da chuva, nunca,
nunca saberemos.
É mesmo quase impossível não olhar as luzes, sua atenção era atraída como a da
mariposa babaca para toda a sorte de estabelecimentos noturnos que se enfileiram pela ampla
calçada, não sabe ao certo onde se focar, tudo isso o põe meio demente, pensou que só de
noite para que as coisas assumam um aspecto tão vívido assim, a noite é a hora do erro, do
terror, a noite é a hora dos desejos e é para eles que se enfeitou. Propositalmente aquele
mundo refratava e instigava sentimentos encoleirados, agora eles vinham à tona em cada grito
de beira de esquina a assustar os desprecavidos. Até os rostos tornam-se diferentes, e é com
formas como essa, como a dessa puta, pensou, que nós representamos esse teatro e
manifestamos o que não podemos usualmente descarregar, o sexo, a morfina contra o
aborrecimento nervoso, o intervalo da dor, ok, tem uma prostituta debruçada sobre a sua
janela, quase já ia se esquecendo da mocinha. Quando se pôs novamente a olhá-la não
parece fundo de poço atraente ou vulto pálido de estrela que caiu nos esgotos, é só
maquiagem borrada por chuva e dente a salivar e a mascar chiclete. E ele fingirá que não a
olha, talvez ela o esquecesse o quanto antes e fosse caçar o próximo. Está com vontade de
vomitar na roupa dela. Fica ansioso para ver as horas ou para sair dali. Quando tateou o
relógio de bolso, o toque do metal lhe arrepiou os dedos, então o tirou da jaqueta com um
pouco de dificuldade, a posição em que se senta o deixa um pouco apertado, aí estendeu a
parte frontal do aparelhinho e olhou o cinzento disforme marcar em algarismos romanos a hora
que não enxerga por não ver o bastante, e não quer forçar.
– Isso vale alguma coisa? – a puta.
– O bastante pra que trabalhe pra mim a vida toda.
– Não parece tão caro assim – sabe, como exigem os ossos do ofício, a rapariga se insinua
da forma que julga lá sensual. – Não que você não pareça ter dinheiro, mas isso aí, quem sabe
eu não possa comprar ali na esquina...
– A senhora me parece ser uma puta muito observadora.
Ela pareceu ponderar e tudo o que pôde fazer foi sorrir, não pareceu entender se aquilo é
elogio, na parte de sorrir ela não é tão ruim. Não foi preciso mais que curvar à outra
extremidade do banco para que visse Andriolli rir enquanto estendia as mãos janela afora e se
entretém com uma outra garota que de tão pálida parece uma boneca, a palidez é de
porcelana bonitinha mas o que a faz mesmo parecer com brinquedinho é o cabelo curto de cor
vermelho-berrante e com as franjinhas cortadas, gracinha de menina à venda. Alex teve a
esperança da que estava pendurada em sua sombra ir embora, ele sorri, e ela não se foi.
Por alguns instantes os sons mais distantes que erravam, vagavam, qualquer coisa assim,
pela calçada, parecem tornar-se mais audíveis do que naturalmente são, querem ser ouvidos
por um qualquer que deposite a atenção, é ele o epicentro disso tudo, sente os tímpanos em
batucada, código morse que demorará mas fará sentido, desde um sos à socorros
inteiríssimos, e os gritos diversos que ouvia, podiam na verdade ser gritos ou murmúrios, estão
todos longe mas se estica o braço para fora pode tocá-los, se concentrasse um pouco mais
talvez pudesse ouvir o bafo de quem caminha rápido daquele sujeito barbudo de gorro que
está ali tropeçando, a conversa entre as duas garotas que acabaram de passar, os
pensamentos do grupo de rapazes que vinham da outra direção, mais ainda poderia ouvir o
bater de porta do carro mais à frente, mesmo com os faróis de cor forte e vermelha e aquela
luz lhe ir direto nos olhos, podia ver a prostituta de meia calça rasgada e rosto feio entrando
pela porta do carona, ou ouvir o minúsculo ponteiro interno do relógio dentro do bolso
tiquetaqueando. A vida é rápida, a construção das coisas está sempre a partir desse princípio e
a assumir um dinamismo voraz, um futurismo irracionalizável, de poucas palavras, de breves
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comandos, gestos latentes, fast-food, engolirei tudo em cápsula, quanto mais tempo melhor,
quero gozo forte para um cansaço maior ainda, um prazer infinito que num instante tão restrito
mais deve me ser letal, vamos a essa morte onde os cadáveres conservam um semblante de
conforto, um sono de quem não viveu muito mas teimou em tentar ser imortal de tantas coisas
que se viveu. A essa altura o gigolô daquela ocasião está se distanciando até onde a vista se
perde, quando olhou para o átrio de onde saíra percebeu como aquelas raparigas de outrora
agem em subterfúgio, não encontrou uma delas sequer, já tinham todas se dispersado se sabe
lá por onde, as que via já são outras, ou as mesmas que trocaram de fantasias, só restou um
rosto parado e por sinal é um debruçado na sua janela, por todo esse tempo já está
impaciente. É que não se pode ter um momento de sossego, céus.
O estalido que dessa vez ouve nada tem de imaginação, mas vem uma puta entrando ao
banco da frente e senta-se no colo de quem lá está.
– Podemos pegar umas também – falou Andriolli. – Gostei dessa, não precisamos
demorar.
– Só andem logo com isso, não posso ficar muito tempo aqui, quando eu cheguei o guarda
da esquina já olhou estranho – Fabrício era o rapaz que dirigia.
– Eles não dão multas à noite – Igor falou.
– De quem foi a idéia de pararmos aqui? – Victor babou o gole mal tomado de cerveja.
Alex olhou novamente para o lado de fora, enrugou levemente a testa, e pode esboçar a
mesma expressão em diversas diferentes ocasiões, por exemplo, quando estiver testando
alguém, é mesmo esse o caso, algo como se erguendo num ar casual de uma afável porém
ostentadora serenidade, tanto quando estivesse sendo inquirido por qualquer questão que o
atormente, é quando na verdade quer roer as unhas ou dar com a cabeça numa parede, não a
bate em lugar algum, apenas topa com a puta.
– Qual seu nome? – perguntou à mulher.
– Polina.
– Se importa se eu te chamar de Drusilla?, era uma puta romana.
A garota deu de ombros como se respondesse que provavelmente esse não é um pedido
que a incomodaria, talvez seja mesmo agradável se comparado ao nível de requisições que
recebe todas as noites, por um acaso ele começa a imaginá-las, mija em mim, me estapeia, me
chama de mestre, vai, mija em mim!, céus, ela deve se dizer, se você faz realmente questão
disso, vá em frente, e ele sorri, pensando se ela não imaginaria que há algo obsceno demais
que as putas romanas faziam e que ela não conhecia, ele a ensinará.
– Certo, Drusilla, entre no carro – abriu a porta, Andriolli vibrou com o consentimento de
deixar a sua bonequinha de cabelos vermelhos também vir com a gente.
A putinha arrastou-se por seu colo, imediatamente lhe vem ao nariz o odor de perfume
barato, excesso de um agridoce já um pouco azedo porque se mistura com o cheiro abafado
de suor que sufoca a todos nós. Alex não gostava de prostitutas. Pensando bem, elas são úteis
ao que se propõe a fazer, mas aqui vale o ditado de que os fins não justificam os meios, certo,
da maneira que foi colocado mais parece que todos seus meios são uma grande merda, então
diga-se que apenas quase nunca justificam-se, tudo ok, tudo bem que, na prática, o ditado se
alterne mais pela conveniência do que por ser princípio universal, a questão de fornecer e
facilitar que os homens fantasiem suas coisas não parece ser uma prática muito saudável a um
adepto das coisas cruas, nuas e basais como ele é, se as putas não tivessem de agir com
tanta falsidade também seria melhor, até as compreendia, mas hipocrisias não são realmente
necessárias à ocasião alguma, não é educação ou ser ouvido o que ele quer, as hipocrisias
podem facilitar a vida em diversas ocasiões, mas necessárias não são, podem abrir portas,
mas não são necessárias, então, ele não quer paciência e sorriso e isso não torna nada mais
agradável, quer ejacular e estão complicando isso mais que o suficiente.
Por outro lado, aqui permitindo-se a contradição, pois não, bem-vinda, que inevitavelmente
sempre há, ele diz-se que as putas são muito mais cruas e podres do que pensou, geralmente
estão sempre cansadas. É que o choque vem geralmente depois. E então resta uma estranha
nua e mal paga. Quando Drusilla acaba de arrastar-se por cima dele, ela se acomoda apertada
entre ele e o imediatamente ao lado Victor, ela quase ocupa o colo de ambos, malícia forçada,
ela deve gostar de criar essa pequena intriga, todos talvez apenas agora percebam que
Andriolli ocupa quase todo o banco de trás, é bom que lhe sobra o colo para que a ninfeta de
porcelana se sente, bem-vinda.

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Aquela outra garota-de-programa fumando no outro lado da calçada parece arrasada.
Talvez não tenha se entendido com o último de hoje, ou foi o gigolô que inventou umas
requisições exorbitantes sobre o dinheiro que ela mais sua que recebe, ou talvez não saiba
declarar ao amor de sua vida que é na verdade uma puta, que nunca poderiam ficar juntos
ainda que umas por aí se entendam com uns clientes, é mesmo, esses até se divorciam das
esposas etc, e Alex não sabe se compadece, padece ou apenas repara. A partida é sempre a
pior hora das viagens, pensa já distraído pouco depois, as bundas tremem e a vibração vai
subindo-lhe pelos ossos, é muito parecido com um calafrio, sentia como se o tremor
momentâneo de todo o carro contagiasse todo o seu corpo e sua mente, então diz-se que com
um tremor nauseabundo e somente um tantinho irritante também deu-se ignição ao universo.
Drusilla pôs a boca em seu cangote, talvez até mesmo esteja tentada a um tipo de carinho,
ou talvez, pensa em seguida, esteja furtivamente levando a mão ao bolso do relógio e tentando
tomar-lhe sem que ele a perceba, mas ele é muito mais esperto, de toda forma é mesmo o
zíper das suas calças que a mão tateou.
– Qual sua idade? – acha que seja praxe das pessoas perguntarem isso.
– Dezenove – deve ter no mínimo uns vinte e seis.
– Garotas jovens não tem porquê meter tanta maquiagem.
– Por quê? – pensou por alguns instantes. – Não tô bonita?
– Se eu responder que sim você ainda vai me cobrar?
– Eu tiraria se não fosse mais precisar dela. Os caras gostam.
– Não quer uma cerveja, Drusilla?
– Também quero um bom nome pra minha, Alex – Andriolli urrou com uma montada no
colo.
– A chame de Livilla, Andriolli, era outra irmã de um certo Calígula, ele fodia todas elas.
Victor riu enquanto oferta uma garrafa aos dois, podia ver o conteúdo das demais
balançando pelo embalar do carro, é assim que funciona, soltas e espalhadas nos espaços de
entre os bancos. A entorna para dentro e se permite pensar um tantinho sobre o trabalho das
putas, começando a repensá-lo dessa maneira já não o detesta tanto, acontece que começa
até mesmo a pensar que se fosse esse um trabalho legitimado, que dispusesse de aceitação,
respeito ou coisa que se faça valer, e das outras vantagens que o trabalhador honesto dispõe,
isso seria um ganho a todos, desde às prostitutas que se submetem a lidar com o submundo
da criminalidade das ruas, que é financiado pela dificuldade e tolerado pelos que desaprovam a
imundície, desestimulando porém tolerando, o que quer que seja que ainda assim põe essas
garotas, e também os rapazes, mas a questão dos rapazes não o apraz, então, põe essas
garotas no limite das marginalidades urbanas, então, se elas estivessem livres desses
estigmas poderiam encontrar mais conforto material e dignidade, o respeito e reconhecimento
entre ela e fulano etc, então, isso é mais ou menos a síntese de tudo pelo que se luta. Que
impede de elas vagarem ao ar livre?, a banhar-se com a luz da lua?, já que na cheia todos vêm
procurá-las?, pensou, e as perguntas são retóricas, já que responde-as a seguir, é claro que a
moral. É esse um espírito que parece encorajar até mesmo as falcatruas do quotidiano, dando-
lhes respaldos, como os fiscais que cobram taxas simbólicas para que os clubes ilegais
funcionem à vista torta, que mesmo que sejam moralmente ilegais são mais do que inevitáveis,
o homem precisa ter um pouco com sua imoralidade, e enquanto isso não lhe gerar
comportamentos psicóticos e nem atente para uma mudança do seu espírito, tudo bem,
apenas carrega um quê de impróprio, mas sabe-se que ninguém liga de verdade, o importante
é que o sujeito não pense em si próprio como amoral. A moral tem umas coisas dessas. Há por
exemplo quem diga que valores familiares são indispensáveis para a manutenção da
civilização, para a criação de sua identidade, isso tudo soa um tanto interessante, só não
consegue convencer a ele do aparentemente simples porquê das putas serem indignas,
imundas e rasteiras, mesmo que não venha a tratar de questões conceituais como da
dignidade etc e tal, ele desejou saber o porquê de que um trabalho que não prejudica a
ninguém pudesse ser visto com cara fechada e gostinho de desprezo, no mais pena ao se falar
a respeito, então imagina outros tempos, a mãe contando aos vizinhos com orgulho da filha ser
uma puta das gostosas. Se fosse um trabalho fácil como bater carteiras na estação de metrô,
não que ele queira tirar o mérito dos batedores-mirim de carteira, não é isso, mas enfim, se
fosse um trabalho fácil como qualquer coisa que alguém pudesse optar com um pensamento
na mente como do tipo, ah, se eu seguir essa carreira vou ganhar dinheiro sem ter que me
submeter a esforços tacanhos, certo, vou me dar bem muito fácil. Aí, se as coisas fossem
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assim, até se veria algum problema no incentivo da carreira de puta, parece até que todas as
preguiçosas do mundo vão optar por ela, ao que ele se recorda de um outro problema, o de
referir-se às praticantes desse ofício como sendo as tais mulheres da vida fácil, como volta e
meia se vê a gente falando, parece mesmo extremamente injusto, como se apenas tivessem
de abrir as pernas e esperar, quando mais parece ser um trabalho que exige diversas formas
de sacrifício, a questão então é, por que as putas são mal vistas?, deve ser porque podem
roubar o homem da dona-de-casa honesta, porque o rapaz trabalhador pode estar cansado da
mesma falta de conversa toda noite, do mesmo tédio oferecido pelas promessas do amor e
pelo mesmismo da monogamia, porque elas incentivam a libertinagem prática, a satisfação
exclusivamente pessoal, porque a libido faz com que a gente se baste ao improvisar, porque a
luxúria deixa de ser informalmente permitida para ser cruamente praticada. Alex está cansando
e matando a moral, só não via exatamente por onde atacar, a estratégia ainda é inválida, não
enxerga um coração para que a acerte, ao que pensa se não seria mesmo o seu.
Quando começava a se identificar com a problemática da estratificação a qual são
submetidas as injustiçadas putas, por um movimento de olhar deparou-se com a cena
antipática da mulher de cabelos cacheados ajoelhada como podia na frente do banco de
carona e com o rosto afundado entre as pernas do sujeito. Vira-se a cara, pensa, assim você
arruína minha defesa. Gargareja com o álcool, e a segunda prostituta romana, e olha que o
carro todo já parece o senado de lá, deve ser a responsável pelo barulho de zíperes se
abrindo, enquanto Drusilla ronrona em seu pescoço e se arriscava a lhe passar a língua. Ele
não se importa.
– E aí?, para onde vamos? – era a voz do motorista, um certo Fabrício.
– Pra a Fornalha – esse é o nome de um lugar, um desses tantos que se há –, vamos para
lá – a voz do carona anestesiada.
– Por mim voltamos para onde estávamos, aquelas casas noturnas da esquina parecem
das boas – Andriolli.
– Se você quiser acordar sem as roupas e sem qualquer pertence – Alex fala. – Sem
querer ofender às garotas.
– Nós trabalhamos na rua – Drusilla avisa.
– É mesmo?, e como é?
– É o jeito.
– Vamos pra Sodoma então – esse era o nome de outro lugar, e isso disse o motorista.
– Vamos para a XV – falou Victor, não parece muito entusiasmado em apalpar as pernas
da moça.
– Sim, para a XV, é a melhor – acatou Alex. – Drusilla, por gentileza, tire a blusa.
Por alguns instantes se arrepende da ordem que deu, ela movimentar-se demais e com
certa dificuldade pelo aperto do banco traseiro fez com que se alastrasse ainda mais o perfume
barato, isso lhe foi razão para um olhar um pouco amargo, por isso talvez tenha ofendido a
garota, pôde ver nos olhos dela um quase nada de doçura que aos poucos se azeda até
fechar-se e definir a ela que não havia de se mostrar mais para ninguém, nem correr o risco
disso, tal como você, Alex, já fez. Pelo visto eles tinham mesmo muito em comum, a única
diferença é que ele não se vende, nunca houve oferta interessante, e nada disso disfarça o
cheiro do perfume, girou a manivela, abre o vidro, que o vento ajuda a respirar e o açoita a
protegê-lo dos gemidos que vêm da frente.
– Tem uma marca de boca no peito dela – Victor riu.
Alex dá um tapa em sua cabeça.
– Quê? – gritou o atingido.
– Deixe de vulgaridade, rapaz, seu merda. Observação escrota.
– Mal bebeu e já tá imbecil. É sempre isso.
– Você que é estúpido, e se ela tem um canivete e já tá planejando te enfiar na garganta,
hein?
– Eu não tenho um canivete.
– Drusilla, seja uma boa garota e só fale quando eu pedir – recomendou.
– Fale o que você quiser, mas que tem uma marca de boca no peito, tem.
– Esse é o tipo de coisa inútil de se observar, é cafajeste e escatológico, você por acaso
quer saber com quantos ela já trepou essa noite? – Alex continuou.
– Não sei, mas agora que você deu a idéia eu posso perguntar, você se importa?
– Não faz diferença pra mim. Drusilla, com quantos você já esteve essa noite?
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– Dois.
– Isso significa no mínimo uns seis, esse tipo de informação é dispensável, talvez isso
mude toda a situação, percebe?, os outros podem se sentir mal, agora você percebe?
– Vocês aí atrás não querem calar a boca?
– Deixem eles continuarem, tá engraçado – Andriolli.
– XV então – concluiu o motorista.
– Acontece que eu acho que posso observar esse tipo de coisa pelo fato de estar
consumindo uma mercadoria – o cara está tentando achar lógica para argumentar sobre os
peitos de uma puta –, no caso a mercadoria são os peitos dela, é isso.
– Ela é um ser humano.
Drusilla parece comover-se, não que o fato de coisa assim precisar ser comentada já não
seja desmerecedor o suficiente, algo como, deve ser realmente bizarra uma pessoa que
alguém precise lembrar que ainda é um ser humano, mas é só que talvez a comoção que aqui
se vê talvez não seja observada nas práticas quotidianas, o que tornou-o bonito, senão torna
Alex imbecil.
– Eu também sou, então não me estapeie, eu falo o que quiser.
– Um tapa não significa muita coisa, as pessoas recebem umas das outras como forma de
expressão, é simples e vou lhe mostrar – aí ele deu um tapa, não muito leve, portanto
assustador a todos, na cabeça da doce Drusilla, que se tremeu toda mas não emitiu um ai
sequer, de qualquer forma no instante seguinte um alvoroço terá se iniciado.
Quando foi perceber, com reflexos felinos e certamente de uma praticidade rápida e fruto
de muitos treinos prévios, feito ninja entendido nas artes das sarjetas, a prostituta do banco da
frente mostrava os dentes com fúria animalesca, metamorfoseou-se e até que dos restos de
antes restasse o resto de agora não demorou mais que um segundo, para que um gritinho da
de cabelos vermelhos guinchasse e que essa coisa-mulher babona da frente estivesse
empunhando, não era interessante saber, e melhor sequer imaginar de onde retirou um desses
furadores de gelo doidos de visitar a perna ou o cacete de alguém. Foi um inferno, o sujeito do
banco do carona assustou-se de tal modo que teve de encolher-se, vai que ela o apunhala
para descontar, vai que aproveita que está despido para encurralá-lo, o motorista só percebe
que não esteve guiando o carro corretamente quando soam muitas buzinas ao redor, só se
pode-se vê-lo girar o volante várias vezes para se corrigir, enquanto isso continha uma
expressão pálida e os olhos arregalados. – Toca nela pra você ver! Toca!, vai!, vai!, faz pra
você ver! – começou a berrar do nada e escandalosamente, céus, isso que ela grita e te aponta
a arma, céus, Alex saltou, isso sim, encolhendo as pernas no banco de trás antes que elas
pudessem ser atingidas, ouvia outros gritos de risos como as palavras repetidas do gordo que
ele bateu nela, ele bateu nela!, mas que drama, veja só no que um tapa pode ocasionar, e isso
tudo ocorre numa fração de instintos, instantes, e não demorou a que a puta da frente emitisse
toda classe de palavreados, chegava a salivar, se embolava em urros macabros, crise
epilética, cólica das fortes, taquicardia ou pedras nos rins, fúria descomunal das que não
podem ser só de um instante, aquilo deve estar concentrado desde o início da noite e só a
espreita de um pretexto para explodir.
Por que você fez isso?, por que você fez isso?, o rapaz todo encolhido no banco do carona
choraminga, tentava entre espasmos de alguma forma mirar para trás e perguntar-lhe alguma
coisa, quando não há resposta que se caiba nem pergunta a ser ouvida.
– Não foi nada! – berrou –, não foi por mal!, dá pra parar? – e os gritos aumentavam uns
sobre os outros.
– Faz pra você ver, eu enfio na sua cara, enfio no sua cara!, bem no olho!
– Segurem essa mulher, ela quer me matar! – gesticulava, só não subia mais pelo porta-
malas porque faltou espaço.
Temeu que alguém, que seria qualquer um, que os pensamentos medrosos não precisam
de objetos para brotarem, é essa uma síndrome do pânico à sua maneira, que alguém se
aproveite finalmente da posição desprivilegiada e não pestanejasse em abrir a sua porta, daria
com a rua, seria horrível e não duraria mais que uns instantes, perderia o equilíbrio de tal
maneira que penderia de costas ao lado de fora, em alta velocidade quebraria a espinha e
rolaria na dureza do asfalto por alguns milésimos de segundos, sentiria os ossos dizendo
adeus uns aos outros e cada qual seguindo na direção que mais os apeteceu, até o carro que o
fizesse de quebra-molas o apagasse para sempre, e pensaria, terminei como uma lombada,
traído e atropelado, eu não agüentei. Mas as ameaças imaginárias ainda são menos
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emergenciais que umas coisas visíveis, a ameaça da hora não é imaginária e é uma puta com
o furador na mão, e ela se mostra cada vez mais próxima de acertá-lo, está mesmo se
empenhando, que a desgraçada chega a se esgueirar entre os dois bancos, dá seus botes
errados.
– Diz pra ela, Drusilla, diz aí, eu não bati forte.
– Calma, calma! – a de cabelos vermelhos grita enquanto dá com as costas no banco do
motorista.
– Assim você me fazer bater! – gritou o motorista.
– Bate, é, desgraçado? – a prostituta voraz de súbito muda o alvo.
– O carro, merda! Bater o carro!
– Ele bateu nela, há-há-há!, Alex, você bateu nela? – gritava Andriolli, e tenta conter sua
fêmea que dava uns pinotes sensacionais, quase chega a uma cambalhota.
– Explica aí, Drusilla, explica aí – berrava. – Eu não fiz por mal, diz aí.
– É... – ela acatou com um semblante desacreditado.
– Viu?, não foi nada demais, pra que o escândalo?, mas que merda, viu? Guarda isso aí,
minha filha.
– Você deu um tapa na cabeça dela – a mulher rosnou.
– E aí? – começou a dar vários na cabeça de Victor –, foi assim, isso parece agressivo? O
que tem de mais?
– Pára com isso! Pára com isso!
– Pelo amor de deus, guarda essa coisa, apenas tire essa coisa daqui, tire essa merda de
perto de mim – o carona implorava.
– Isso, isso – Alex acenava com as mãos, é alguém muito paciente que aos poucos, e bem
aos poucos, aplaca um determinado animal feroz, e assim retorna ao banco, a mulher ia
guardando a arma mas não a desconfiança.
– Tenta mais alguma coisa aí, viu, seu merdinha?, seu otário.
– Aviso dado, entendi, vou me comportar – ergueu as mãos que tremiam. Já bolava planos
de dar na cabeça daquela desgraçada com a garrafa de cerveja que entornou-se.
– Não, tudo bem, tudo certo – a que mais se recolhe é a vítima, absurdo pensar que possa
se entender como vítima, e a afagou em seus braços.
Tudo isso se deu porque ele disse dela ser gente, imagina o que viria se dissesse que eu
também sou, toda tragédia dos que sofrem sozinhos parte dessa consciência, todo drama deve
vir dessa constatação, que as feras não sofrem por meramente se entenderem como feras,
mas os espíritos sofrem por se reconhecerem estando, mas não saberem mais que isso, saber
que não se sabe seria interessante se a volúpia não uivasse e lançasse os chamados do amor,
não precisa decifrar o que o incendeia o abdômen, sente-se por um breve instante como se o
carro todo se apagasse, e entrando por um túnel de silêncios só eles restariam.
A única coisa que então articula é a idéia de que o homem não mede, ou não devia medir
esforços quando o assunto é a própria satisfação. É um hedonismo dos excessos, e é esse um
método do qual volta e meia se questiona acerca do valor, o porquê disso é simples, teme o
que ele estará lá a satisfazer, se àquilo que essa vida adestrou, ou a sua reflexão das mais
profundas, afinal é um abismo sutil que separa o sujeito condicionado pelo mundo das
propagandas e das lavagens cerebrais do sujeito que se reconhece e aquilo que é sua
vontade, e ele não está certo se é capaz de discernir em que ponto essas coisas se separam,
compre isso, ter isto é bom, ter aquilo é melhor ainda, já ter isto que você tem é uma merda, já
ser isso que você é, vê lá, é pior ainda, se não tiver a isso será um segregado, poupe-nos da
visão horrenda e inútil que é o que você tem e a coisa desprezível que faz etc etc, e pensou
sobre a consciência estar embalsamada, que se faz até sexo como lhe ensinam que deve ser
feito, como aprendeu que deve ser feito, eis o seu caso, a começar pela boca no peito, a mão
deslizando pelas pernas, os arfares, os suspiros espontâneos ou não que vêm a seguir, e você,
Alex, não escapa da regra, não completamente, e ainda não chegou a cogitar muito a fundo se
há nas origens dessas regras um, um, como definir, um padrão fisiológico, como os que se
supõe haver em todos de uma determinada espécie, que é para que se possa definir traços em
comum, e podermos dizer que o humano é mesmo humano, e não qualquer outra coisa que
nos venha à cuca.
Talvez apenas perpetuemos uma eterna escravidão numa contínua súplica por mais
propagandas de interesses, porque nem você nem ninguém parece ser capaz de desejar por si
só. É como a mamãe ao ler para os filhos uns contos-de-fada na hora de dormir, dá-se a
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impressão de que a criança não tenha lá os seus próprios sonhos, e ela temerá o bicho-papão
porque o carinho de seus pais soprou sobre o monstro aos seus ouvidos.
Cheguei a um ponto, diz-se ele, em que perdeu-se a diferença entre o que sou e o que foi
feito de mim, tudo misturou-se e o essencial ficou para trás, isto é, a resposta que não terá
para a pergunta se posso ser diferente do que fizeram de mim. Então rezo à minha própria
imprevisibilidade, que ela me salve de mim. Em um mundo que nos diz como e o que se deve
desejar, a única saída de encontro a si mesmo é testar-se nos limites, a emoção dos excessos
é reveladora, o mundo das ordens incita o indivíduo a transgredi-lo, e a transgressão é o único
espaço onde se pode descobrir e encontrar-se uma identidade.
E a libido e alguns instintos não tão imprevisíveis conspiravam, isso não o impede de olhar
o rosto pálido e falso e aí a tomá-lo como exemplo. Não é a percepção dos nossos interesses
ou as indústrias, como preferirem chamar, que se mobilizam a partir do sexo, mas são essas
coisas que nos cuspirão o que deve ser sexo, que posições se podem e quais são
ultrapassadas, se podemos ter várias mulheres, até onde pode-se ir nos primeiros encontros,
se pode se dar para mais de um ao mesmo tempo etc. E assim ele repara na meia calça, quem
disse ser isso bonito?, não é que a estética brote feito esporo do nosso gosto a preferir essa
bota e não outra, essa bota de cano alto e fino, desgastada e úmida que com o tempo vai
realçar suas cochas, a saia vermelha que marca a bunda, coisa que de alguma forma mantém
a todos satisfeitos e aficionados, eis o jogo que ditava as seguintes regras, concentremo-nos
nesse ambiente que estamos perpetuando, aqui perpetuaremos, meus grandes amigos, em
nossa ficção teatral, aqui mesmo, em nossos inegáveis e inescapável lares, nada melhor que a
eterna criação que somos nós, feitos do barro e do sopro escarrado da boca da moral. Ao que
se deve ter optado por nem saber. Por fim percebe que pensar isso tudo significa estar
excessivamente sozinho consigo mesmo, está sozinho e é o mundo que era ousado e o
acompanha.
Gravitacional ele se ergueu, é esse um sentido figurado, não é que verdadeiramente se
levante, então, onde estava?, sinteticamente condensou todas as sombras, todas as luzes,
todos os vultos, associa tudo com o processo de expansão rápida do universo, o que se deu,
diz a física, em seus momentos iniciais de existência, o qual não pode ser estudado pelos
dados convencionais que decodificam a ordem das coisas, quando a verdade está mais perto é
da desordem dessas, então por ver esses fenômenos, sexo, vulto, buzina, rock n’ roll, ele acha
estar vendo sintomas da origem tudo, o começo de tudo também está ali. E disse para Drusilla
chupar.
Ela se curva para obedecer, quando já o estava tateando nas calças por alguns instantes
lhe regressa o temor de que ela tivesse se encantado com o relógio do bolso, mas considera
que deva ser esperta o suficiente para ter-se dado conta de que aquilo não vale mais do que
ganhará com uma chupada. Sente um pouco de asco, mas é parte de seu processo. Dirigiu os
olhos ao lado de fora, à silhueta cinza de um viaduto, tudo que a gente não constrói para ser
visto a gente faz assumir coloração insípida, falecida, ao menos parece mais cru, um pouco
mais sincero com todos nós, e esse viaduto o faz perder-se nas memórias. Viajou no tempo.
Já faziam horas que estava entretido com a fachada de um prédio antigo que, hoje em dia,
como até os pouco espertos podem constatar se secarem as calçadas à frente, serve como
sede para uma dessas tantas igrejas estranhas que existem. Assim diz o anúncio sobre o átrio,
não é que anuncie aqui está uma igreja estranha, mas igreja da salvação do não-sei-o-quê dos
últimos tempos apocalípticos, e as entradas lotadas de pessoas típicas, é ruim achar as
pessoas típicas. E ele está no alto, é quase feito deus. O torso reclinado toca as divisórias do
passadiço, lá está sentado no concreto como o vira-latas lá ao fim também está. Deixava os
pés livres e sem apoio, as pernas balançam pela vontade do vento, vem-e-vai, assim imagina
como seria cair da passarela. Chega a conclusão de que a gravidade é uma das forças mais
fascinantes, se bem que não há assim tantas forças que parecem interessantes, também não é
como se ficasse em casa parado e pensando se as forças têm alguma beleza, alguma coisa
estética, mas acha que gravidade soa bem, diferente de eletromagnetismo, empuxo ou força
elástica ou aceleração centrípeta. E se forçasse demais o peito, que o parapeito não deve ter
sido desenhado para sustentar peso assim, o apoio há de se romper e ele cairá sobre a vidraça
de algum carro, certamente cairia sobre um deles, estando passando tantos vários dentro de
um átimo, ou se menos provavelmente não caísse sobre um, acabaria no próprio asfalto,
servindo de lombada em seguida, mas, e principalmente, causando um grande acidente de
todas as maneiras. Não chegaria a ver a catástrofe de carros se batendo, fogo, estilhaços e
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pessoas atropeladas nas calçadas, prensadas contra os muros amassadas, gritos de ai, e os
abutres próximos correndo para ver de mais perto, enfim, mas nos instantes finais de sua vida
esse seria certamente um de seus pensamentos reconfortantes, um lapso de visão inacabada
sobre um futuro breve, apesar de ser o que pensa o sujeito no instante da morte geralmente
um mistério, é que faltam testemunhas, mas imagina que seja mais ou menos assim, é, a vida
realmente acaba.
E ele não se importa, mas se importa sim com cânticos da igreja, estavam orando,
exorcizando uns doentes. Chega a se imaginar lá dentro, podia ver como se estivesse nítido
em sua frente, o altar distante onde o pequeno vulto embaçado de um homem de voz forte
coagia e decifrava cada necessidade desses nossos visitantes, aqueles enfileirados como
obedientes cordeiros, assim desperta o amor daquele senhor calvo com o rosto raquítico, a
compaixão da garota mirrada ao seu lado, ele não tem dúvidas que é uma drogada, mas está
ali para descobrir maneiras de se livrar de sua autodestruição. Essa gente que escolhe uns
caminhos fáceis na vida, e não a bula de recomendações que nos passou o senhor. E ele se
contagia pela devoção, as próprias lágrimas contagiam, não só elas, o clamor, a euforia pelo
perdão, a euforia sem porquê, o êxtase da redenção, da auto-aceitação, a mão suada do
companheiro ao lado que o tomava pela sua para que juntos fossem apenas um, para que
pudessem se lavar. Mas sentiu nojo. E fumou, e descansou olhando os carros.
Um ou outro transeunte eventualmente passava da mesma forma que o ignorava, mas era
inconfundível alguém parado já fazia um tempo atrás de si, logo não demorou a presença de
Sabrina tornar-se inconfundível.
– O que está fazendo?
– Parado, pensando, esse tipo de coisa.
Não precisa curvar mais que um pouco da cabeça e precipitar mais que um pouco da
periferia dos olhos para imaginar as possíveis expressões que, caso virasse, encontraria, ali
estaria o queixo que teima em tentar se levantar quando está abatido pelo dia cansativo, a
região abaixo dos cílios carregando um toque da ressaca de quem não recebeu bem o fim da
tarde, se olhasse a fundo poderia ver os globos avermelhados cansados de serem forçados, a
palidez triste dos sacrifícios diários que muito raramente compensam, o pão nosso de cada dia,
não importa como é vendido ou por quem foi amassado, pode mesmo ser pelo diabo, que cada
vez produz broas mais gostosas. Calculou rapidamente e para nada o intervalo entre a
passagem de um carro e outro.
– Parece estar esperando alguém – ela afirma com tom de pergunta.
– E você, doutora, que faz vagando por aí?
– Eu venho andando todos os dias.
– Não é exatamente a idéia que eu tinha. Faz mais jus a você ser deixada na porta de casa
pelo táxi.
– É um bom sonho. Parece que podemos nos surpreender.
– Como o rapaz olhando a pista sentado num passadiço que é coincidentemente o seu
caminho, e ele não parece estar fazendo nada mais do que isso. Como ele é estranho...
– E eu já disse que parece estar esperando por algo.
– A senhora é bastante perspicaz – rodou o cigarro entre os dedos, ao longe eclodiu em
série umas tantas buzinas.
– Enfim, quem é você?
– Oi? A senhora também é bastante filosófica.
Ela por alguns instantes se calou. Só foi se dar conta de que esteve esperando que um
senhor que vinha lá da ponta passasse quando os passos se aproximavam, e segundos após
prosseguiam.
– Está sempre fazendo as coisas pelos cantos.
Ele permaneceu indócil, não responde. Ela prosseguiu, – De onde você veio, o que você
fazia, o que você faz agora, por quê?
– Esteve pensando em mim durante o dia?
– Por que pergunta isso? – algo lhe disse que ela sorria e balançava os ombros. A
facilidade de prevê-la é interessante.
– Não sei, suas perguntas me pareceram desabafos.
– E daí?
– Então eu ficarei aqui curioso imaginando as razões para essa angústia a meu respeito ter
surgido.
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– E quais seriam?
– Estou com preguiça de imaginar.
– Também não é razão para supor que seja uma angústia, como você disse.
– Não se justifique – cuspiu saliva e o cigarro ao vento, que tratou de carregar a rajada
para algum canto da rua.
– Quem é você, porra?
– Você andou pensando muito a meu respeito – grunhiu.
– Não posso fazê-lo responder, mas não precisa se esquivar.
– Agora sim estou falando com uma psiquiatra.
– Isso parece ser uma barreira entre nós.
– Você acha? – caçou no bolso o isqueiro, estava misturado com a carteira de fumo que
também usaria. Não pode deixar de aproveitar o movimento para esgueirar a silhueta pálida da
mulher de pé, nos últimos instantes o tom de voz parecia mais disperso, as hipóteses podiam
ser tantas, assim não era satisfatório.
– Tem razões pra não gostar de mim? – essa pergunta ele não resolveu decifrar a gênese,
como se lhe coubesse a escolha decidiu-se permitir os frutos dela.
– Algumas poucas. Sendo bem sincero, não pensei muito a respeito.
– Há coisas que não precisam de muita atenção para que saibamos.
– Isso é. De qualquer maneira não estou disposto...
– Disposto a quê?
– Se não se importa em responder, de onde tirou toda essa intimidade comigo?
– Não sei, acho que curiosidade.
– Curiosidade do cara sentado na ponte, ou do cara que você conhece?
– O conheço? – inquiriu.
– O suficiente, talvez. Talvez até mais do que ache, mas as impressões enganam, eu sou
bastante superficial. Mas e então?
– Bem – hesitou algum tempo – , curiosidade quanto aos dois, talvez.
– É, resposta típica, doutora.
– Não precisa me chamar assim.
– Devia ter dito que não importa ser típica. Quer um cigarro? – só foi realmente empunhar
o maço a essa altura, o estendeu para trás.
– Não. Eu cuido de cancerígenos.
– E como vai o namorado?
– Como?
– O meu bem, beijinhos, estou ansiosa, até a próxima.
– Bem – se alongou, pelo espírito ausente ponderava muitas coisas. – Ele vai bem.
– Que estranho, a minha pergunta foi bem recebida – Alex rastejou para trás, deu um
pouco com os braços.
– Eu disse que podíamos nos surpreender. Posso lhe pedir algo?
– Vá em frente.
– Apenas vamos conversar um pouco.
Estaria assimilando as recém-chegadas impressões, mas o som das buzinas sem intervalo,
eco longo como de um berrante, carros passando e os demais sons de gente o impediram de
ouvir que ela se aproximava, a essa altura estava descalça, viu quando debruçava suas pernas
pelo parapeito e se punha a sentar, revelou a meia-calça rasgada na altura das coxas, é quase
lei que elas tenham detalhes assim. Segurava os sapatos de salto com as mãos, que faz
qualquer vitorioso descer de seu podium?, chegou à conclusão de que ele devia ser mais
delicado. Assim se surpreendeu, mas não se deteve por aí.
– Então, está tudo bem? – pela primeira vez a olhava no rosto, os traços habituais
ofuscavam os olhos avermelhados.
Ela acatou com a cabeça regando um sorriso de pouca consistência. – Estive pensando de
onde você tira dinheiro pra pagar a pensão.
– Não tem muito mistério, eu tenho algum reunido – a voz saía como se arranhando um
azulejo, mas vem dócil.
– Também sobre onde morava, como morava, por que em um instante qualquer foi viver
conosco.
– Também não há muito mistério.

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– É um rapaz escuso, disfarçado, é que, não mostrar aos outros o que pode desejar
mostrar, talvez involuntariamente acabe confundindo a si mesmo, cria o hábito de se fechar e
realmente se acostuma a isso. Vai olhar a si mesmo todo retraído.
– Se não se importa, acho que terapia é algo muito egocêntrico.
– Você é um cara egocêntrico, Alex.
– Posso estar tentando melhorar.
Ela sorri ternamente. Não que não costume sorrir, deve ser exagero dizer que há pessoas
que sorriem pouco, acontece que há diversas formas disso vir a acontecer, só os menos rudes
perceberão todas elas, há sorrisos que de tão presos parecem dor-de-barriga e outros que
parecem ânsia de vômito, o que realmente ocorre é que este de agora se deu de maneira
especial, como se um grampo lhe censurasse as bochechas mas elas ainda assim se
atrevessem a esticar, não tanto quanto dor-de-barriga, em seguida ela falou.
– Fui despedida.
– Sério? – arqueou as sobrancelhas para perguntar, mas esse sério?, foi de praxe.
– Pois é. Tantas vezes a gente espera por reconhecimento e é isso que recebemos.
– Que houve?
– Dei com um troféu na cabeça do diretor do hospital.
– Deu com um troféu na cabeça do cara?
– Era de algum prêmio, não sei bem.
– Se eu perguntar a razão você vai me empurrar daqui?
– Eram dias de promoção – ele deduziu que talvez ela só precisasse iludir-se numa
conversa, pensar que era compreendida –, você sabe, aquela história de que para se obter o
que quer só é preciso saber o que se está disposto a fazer.
– Ele foi pra cima de você? – meiosorri.
– Com todas as mãos, mesmo depois do meu discurso sobre integridade.
– Talvez você não tenha sido convincente, você devia estar chocada e incerta de como
agir.
– Pra isso serviram os nãos e os empurrões.
– As pessoas sempre podem ceder, você entende.
– Por isso agarrei o troféu sobre a mesa e dei com ele na cabeça.
– Às vezes é preciso dar ênfase às coisas.
– Mas foi horrível, ainda assim me senti culpada. O sangue descendo pelo rosto do velho,
o pavor, eu também fiquei apavorada, aí que estava o pior, de um instante para o outro deixei
de ser a vítima e ele reconhecia isso, a culpada era eu. Já passou por algo assim?
– Não posso dizer que já, mas imagino a sensação – e pensa que deve ser boa.
– Eu estava pasma, impotente, vi minha racionalidade falir em minha frente, tudo
simplesmente estilhaçou e eu não pude fazer nada, me dava conta disso e não podia fazer
diferente, eu era culpada por causa dele e ninguém ia me ouvir.
– Não parece uma reação de se espantar.
– De que adianta estudar o comportamento das pessoas, querer curá-las, se você não se
pode colocar acima do seu próprio?, isto é, para que serve? É hipócrita.
– É que às vezes esperamos sermos superiores porque vemos e entendemos aos outros,
mas por alguma causa ignoramos que exatamente as mesmas coisas que há neles existem
também em nós, no fundo somos feitos da mesma massa, tentamos correr, mas nunca
fugimos.
– É, isso é inteligente.
– É apenas observação vulgar. Convivemos uns com os outros, é natural.
– Outra pretensão minha.
– É.
– Pode ser, mas assim eu soube que estava vivendo no meio impróprio, fazendo as coisas
certas com os objetivos errados. Isso já te aconteceu?
Ele moveu a cabeça como se respondesse que talvez, que pode até ser.
– Saí de lá ouvindo os piores insultos, isso quando o homem conseguiu se recobrar da
amarelidão e conseguiu falar. Eu sei que ele vai me acusar de alguma maneira, vai à polícia,
eu sei, se não isso apenas vai arranjar um pretexto pra que eu saia. Eu sei que isso vai
acontecer, os mais fortes definem o que é razão e o que não é, argumento é apenas enfeite...
– Antes tarde do que nunca.
– Por quê? – curvou o rosto e o olhou profundamente.
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– Bem, era só um trabalho – disse e tragou o cigarro, deu de ombros.
– Talvez, mas ainda assim era importante.
O comentário vai se desfazendo sozinho, por moleza, por impotência, como um coito
murcho acompanhado de buzinas e cheiro ruim, e Alex mantém esse luto de deixar as coisas
simplesmente se desintegrarem. Mas o ócio de Alex não é de respeito, muito menos tolerância,
era mais o desânimo frente ao óbvio, e acabar tratando dele o conduziria a um caminho de
enxaquecas que no fim o arrependeria. Ele só queria dissolver toda a complexidade e no fundo
disso descobrir a verdade.
Nada mais complexo que cigarros, essa era a linha de pensamento que, segundo ele,
ilustra a causa da frustração secular não só dele, mas de toda nossa história. Não é à toa,
pensou, é até mesmo bastante razoável, que o intelecto e sua complicação má deva ter
surgido com os sofistas, um punhado de malandros a se convencerem de que quem fala
melhor é quem tem a verdade, coisa assim. A partir de então se pôde ver numa experiência de
viagem no tempo, ok, estava ele então uma graça, trajado numa toga com as quais se ilustram
os sujeitos da antiguidade clássica, vede, não havia dúvidas para si mesmo, era mais que
perfeitamente o avatar do zoon politicón, e sentindo a espessa camada de fumaça do cigarro
tragado, parte se instaurando no céu de sua boca, parte absorvida numa osmose deliciosa que
lhe abranda os nervos, talvez se propagando de uma forma psicológica porém desconhecida
aos anseios monstruosos da subconsciência, mas sobretudo atribuindo a todos desejos
momentâneos uma única razão de ser, um único objeto de louvor, fenômeno esse tão raro que
é considerado característica patológica dos vícios, punha-se dessa maneira a pensar. Eis a
gororoba mal digerida que é a concepção das coisas, mal digerida pois se constitui de uma
mistura antropofágica entre a visão socrática e a enrolação da lógica, então verá o seu
intelecto enrolado nestas mantas, coroado de louros e a discursar numa praça de pólis, que é o
objeto, que a matéria?, bem, meus caros asnos, para que essa resposta seja efetivamente
respondida, adotemos um modelo de matéria para que, a partir de sua análise, possamos
generalizá-la e, enfim, possamos estar satisfeitos. Olhem todos, vejam, esse cigarro em minha
boca, nada afinal mais complexo que um cigarro, sim, sim, esse mesmo que trago, assim
estraçalhemos sua anatomia composta de mais de quatro mil setecentas e vinte substâncias
tóxicas, dentre as quais mais de sessenta cancerígenas, parece muito no que parece pouco,
tudo isso em retalhos de fumo picado enrolado em papel fino ou palha de milho, sim, sim, como
está no dicionário, nunca vi cigarro ser usado com palha de milho. Observemos então a
nicotina, causadora do efeito fisiológico vicioso e responsável pela diminuição da chegada do
sangue nos tecidos do corpo e no sistema nervoso central, sem contar o benzopireno, esse
que faz continuar o foguinho aqui na ponta, há também inclusive substâncias radioativas como
o polônio duzentos e dez e o carbono catorze, metais pesados que quando concentrados em
órgãos do corpo podem vir a causar dispnéia, enfisema, fibrose pulmonar, hipertensão, câncer
nos pulmões, próstata, rins e estômago, há chumbo, bem, continuemos, ainda há cádmio,
níquel, arsênio, cianeto hidrogenado, amônia, formol, alcatrão, monóxido de carbono, e todas
essas coisas parecem dizer coisas horríveis, por que eu fumo?, por que eu fumo?, dane-se o
tumor e os pulmões que pareceram passar por uma cirurgia com maçaricos, danem-se os
agrotóxicos e as nitrosaminas, o que é simples e causa boas sensações faz bem, se tiver algo
que substitua a isso já convém, e ponto final, assim como camarão tem colesterol e sexo é
veículo de doença. Esse é o dilema costumeiro do homem simples e do confuso, o dilema ao
se penetrar na matéria, sempre se perguntarão o que é bom, onde havia cádmio e carbono
catorze agora há horror e juízos, é certo que se diz do conhecimento trazer poder, mas o
cérebro humano ao digeri-lo não está funcionando muito bem, talvez por culpa do próprio fumo,
nunca iremos saber.
Alex olhava o amálgama de pessoas lá em baixo, aglomeram-se de todas as formas por
todas as ruas próximas, atravessando ou entrando nos prédios, correndo para não perder o
ônibus cheio ou anunciando o melhor doce, tenho esses só por uns centavos, bem mais barato
que na loja, compra aí, vai, vai, vai, correndo ou ajudando o senhor de muletas, e finalmente
não é pela primeira vez que se perguntava, valha-me deus, onde foi que me meti? E essa não
é a melhor das sensações. As abstrações formadas na mente nem sempre caem muito bem
quando vêm à ordem das palavras, mas ele define o que agora sente como o susto de
congelar os ossos. Pensou se havia propósito mais atual à vida da gente que não a anestesia,
analgésico ou spa.

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Sabrina lhe deitou no ombro, algumas mechas do cabelo lhe batiam pelo rosto, mas não
seria desagradável, que o perfume da moça agora continha um cheiro gostoso de intimidade,
um cheiro bom como voltar para casa, estranho. Alex então acredita ser uma vitória que não
vinha de um sentimento de conquista, mas uma entrega que por não ser esperada era melhor.
Em vista dos atuais acontecimentos é redundante dizer que não amava mais Letícia, a
companheira de pensionato, até mesmo a lembrança de seu rosto parece insossa e distorcida,
como o rosto daqueles conhecidos que não são exatamente próximos e que, quando sonha
com eles, sabe que suas imagens no sonho não honram sequer as formas verdadeiras, de
forma que a lembrança os esteja desmerecendo, porque ele já os desmerece, se não eles
desmerecem a si mesmos. E também não amava mais Raquel, a garota com aspecto de
drogada que trabalha na loja de cds, até que ela tinha uma conversa boa, ainda que acabe as
frases pela metade porque já não consegue raciocinar muito bem, até que eles se deram bem,
não amava Gina, esposa do dono do único sebo do bairro, esse é um nome hebraico, o que o
faz lembrar que as judias são fogosas, mas ainda prefere as protestantes.
Agora ele amava Sabrina, para tanto tinha motivos indiscutíveis, aquela coisa de o amor ter
razões que a razão ignora, mas é principalmente o cheiro do cabelo. Sentia como se ela
abraçasse a mesma situação em que ele se encontra, por aqueles momentos não esteve tão
sozinho e o sarcasmo diluído não mais precisaria lhe fazer companhia, esteve desarmado e
podia por enquanto estar.
– Conte-me o que você faz enquanto não sai do quarto por dias – ela sussurrou, a vista
desenhava sabe-se o quê nos horizontes nublados.
– Tem certeza que não está ficando um pouco indiscreta? – averiguou se ela sorrira,
constatou que sim. – Olha só, preste bem atenção, vou exemplificar. Olhe para a rua, para a
diagonal esquerda, a uns dez metros à frente do semáforo, o sujeito engravatado no carro
luxuoso parado em fila dupla olhando para a calçada, o que ele te mostra?
– Eu o vi, acho que está no máximo a cinco metros do semáforo, mas eu o vi.
– Isso não vem ao caso, vamos lá.
– Não sei, parece ter pressa – arriscou sussurrando.
– Verdade, isso está nítido, só pelo movimento das mãos na cintura, percebe?
– É característico.
– Dispensemos um pouco os motivos da pressa, elas podem ser muitas. Afinal ele é um
sujeito de terno, certamente não foi por pequenas responsabilidades que conquistou essa
postura e esse carro, então vamos supor que está atrasado para a última reunião de negócios
ou para um jantar urgente com o chefe, depende disso para fechar um de seus grandes
negócios, coisa assim.
– Ele está na frente de uma escola de balé, deve estar esperando a filha pequena.
– Estamos indo bem, mas sigamos com a idéia do jantar com o chefe. Ele ficou de buscar
a menininha e correr contra o trânsito e o atraso pra chegar em casa a tempo de apanhar a
esposa que ficou de se arrumar. Correto?
– Parece bom – sorriu.
– Mas vamos nos ater aos detalhes, finalmente. O que o faz colocar as mãos na cintura
dessa forma?, ele olhou o relógio com uma cara emburrada ou foi um cisco em mim?
– Está nervoso com o atraso e preocupado com a fila dos carros – respondeu.
– Sim, está – há algum tempo pensara a respeito de descobrir o seu cigarro. Fazê-lo com
pessoas era mais excitante. – E o que leva uma pessoa a comportar-se dessa forma?
– A obrigação de seus próprios compromissos, a pressão quotidiana.
– Sim, sim, ele não poderia se preocupar com os compromissos dos outros, não seria
espontâneo, não seria coerente num mundo sanguinário feito este. Mas vou te dizer o que eu
vejo, eu vejo o sujeito engravatado dizendo claramente que o tempo dos outros pode ser
destruído, o dele não, não vejo nada mais, no fundo, senão prepotência.
– Ninguém se preocupa com todos o tempo todo, isso não seria coerente. Se trata de
concorrência, cada um zelando pelo que lhe apetece, alguns vencem, outros não – a doutora
fala com ar acadêmico.
– Todos conspirando para a satisfação própria ou para a do círculo pequeno onde estão
inseridos, correto?
– É isso.

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– E entrando em conflito com a individualidade alheia ou o círculo alheio. Tudo bem, isso é
uma merda competitiva, mas isso é a relação de tensões, é coisa do choque, é um tipo de
conversa.
– Sim, é, perfeitamente, ok.
– Por trás do sujeito de gravata não há nada mais que um homem que entendeu que
precisa se preparar se quiser vencer ou dar a volta por cima em seu combate, digo, ele tem se
preparado para a luta entre a gente, para o canibalismo, ele compra as coisas sem agradecer e
atropela velhinhas pra entrar antes de todos no metrô. Por isso a pretensão, é inconsciente, ele
acha que seu preparo lhe rende algum poder superior capaz de burlar o poder dos que estão a
sua frente, dentro dos carros e tudo mais, até capaz de burlar o poder da professora de balé
que está prendendo por tempo demais sua filha. E quanto ao poder, não preciso falar muito, há
sintomas de quem o possui escancaradamente, como o patrão do chofer parado na esquina ali,
ali à direita, como a gravata do cara do terno, em proporções menores temos o sujeito que
tomou o táxi que vem passando abaixo de nós ao invés de apanhar o ônibus.
– Não sei se entendi o seu objetivo.
– Eu penso, e vejo que tudo se resume a isso, o homem que luta todo o tempo.
– Por quê?
– É o modo que ele se comunica. Poder para satisfação.
– Vemos isso ao longo da vida.
– Mas não nos importamos muito.
– Poder é mesmo coisa que existe para brindar as minorias...
– Mas há um sonho corrente que a todos nunca abandona, a idéia de que podemos ser
livres, e poder ser livre implica em podermos fazer o que quisermos, ter poder ou correr atrás
de qualquer coisa para tê-lo, por fim nos satisfazermos.
– Certo.
– Está me ouvindo?
– Estou. Mas se toda essa coisa fosse jogada ao léu, se se desse de qualquer forma, o que
você chama de luta seria levado a níveis atrozes, não acha?, que isso pra mim é um pouco
claro, e isso já me justifica tudo isso que você faz parecer ruim.
– Por isso existe o direito – acatou, tragando um pouco mais o cigarro –, a legalidade, o
meio moderado. E é por isso que a liberdade é um símbolo distante, e não de fato uma
verdade quotidiana.
– Bem, certo – e boceja.
– O direito regula com ameaças até mesmo o flanelinha que está morrendo de vontade de
dar uma pedrada no carro do engravatado simplesmente por supor que nunca terá um luxo
parecido e por estar cansado da arrogância de pessoas assim, mas ele sabe que vai se
prejudicar se o fizer. Assim como vão intervir caso o revoltado no fim da fila dos carros, deve
ser dele essa buzina que não pára, saia com uma arma, é que nada impede que ele carregue
uma, e desconte suas frustrações e sua raiva reprimida num qualquer parado no trânsito. As
pessoas se disciplinam por medo da punição, nada mais.
– Pará-lo não parece ser o melhor a ser feito?
– A ameaça que vem de cima mata a liberdade que fingimos ter.
– Não seria o melhor a ser feito?
– Outro exemplo, o doutor que queria transar contigo. Eu poderia até me alongar supondo
que o instinto sexual reprimido pela vida social é a mais importante causa para um certo
comportamento explosivo e asqueroso, associado ao fato da posição privilegiada lhe conferir
poder de fazer umas exigências. O direito diz que estupro é errado e será recriminado, aí
ameaça por via de propaganda que quem o fizer será punido. O estuprador é levado no
camburão, da mesma maneira que vai matar e ser estuprado nas prisões sem
necessariamente saber porquê. Na verdade, não há porquê. Tudo é convenção. Não há nada
por trás disso. Só a moral. Tudo é convenção. Então, na verdade, tudo é ilusório e tudo é
permitido.
– Não – ri, arfando –, não me venha com essa, Alex. Um sujeito assim é doentio, quer algo
que podia ter sem prejudicar ninguém. Precisa, sim, de tratamento. Não me diga que você o
apóia...
– O teu diretor hoje aprendeu a verdade, ao contrário do bandido. Viu que há um poder
corriqueiro, como você, capaz de contestá-lo e enfiar-lhe um troféu na cabeça. Da próxima vez

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ele vai pensar umas duas ou três vezes. Não foi o mundo que o puniu. Foi você, que só estava
se defendendo, que não estava a fim. Nada mais real que isso.
– Pensar sobre isso ele vai...
– O estupro foi um exemplo drástico, fui logo a fundo numa questão polêmica e moralista,
eu sou drástico, desculpe. Mas agora me explique por que eu, com sono e com fome depois de
revirar as lixeiras em busca de comida, não posso invadir a primeira casa que vir em minha
frente para dormir agasalhado.
– É injusto, mas é porque a casa é de outro, isso é uma invasão, parte de dogmas, é a
lógica básica da nossa sociedade...
– Que alguém só irá descobrir o porquê não só ao infringir e o inquilino furioso vier com
uma faca de cozinha cortá-lo. Eu vou me defender, não tenho nada a perder, sou um mendigo
das ruas. Vou matá-lo sufocado, ele é covarde demais pra mim, eu não.
– E vai da mesma forma acabar mal.
– Disse que não só bastava infringir. Isto é, por que não posso agasalhar-me numa cama
como tantos o fazem sem ser recriminado?, não tenho a minha própria casa, o que me difere
do sujeito que matei?, essa é a pergunta, isso eu quero saber, tenho também de me perguntar.
– A propriedade privada é uma convenção, tudo é uma convenção. É só isso que você
pretende demonstrar? – esnoba.
– O direito assegura paz burra – ele não liga –, ele não informa o por que faz, somente o
que faz, a liberdade verdadeira é conflito inteligente, sem normas a não ser ela própria, sem
limites, senão o poder.
Acatou, sorrindo, mas não parece mais interessada.
– Você pode me dizer que isso é somente o emprego da força bruta, eu não vou discordar.
Mas, das normas que não conhecemos, só saberemos seu recheio hipócrita ao questionarmos
os interesses atrás delas, o que é a mesma coisa que questionarmos o que mandam as
religiões e o que diz o guarda de trânsito quando nos orienta a alguma manobra.
– Talvez não seja simplesmente cômodo fazer isso – ela sorri, sincera e terna.
– Por isso as pessoas sonham com a satisfação plena mas temem tomá-la de assalto.
Acomodar-se é tão habitual quanto temer.

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Piscou por várias vezes quando Drusilla terminou, pouco antes tudo já havia se tornado
meio turvo, é que não há concentração, exceto a tântrica, que impeça as imagens da memória
de se dispersarem no momento em que se iniciam as explosões do espasmo, que não se
precisa detalhar mais, a julgar que cada um as conheça em maiores ou menores proporções, e
senão que imagine o gozo, que não define exatamente a melhor entre as sensações, mas uma
de suas graças está em desgrenhar um processo muito realizador e inteiramente exclusivo a
quem o executa, não que não haja gente de fora envolvida, mas que o degringolar do processo
seja o máximo do aproveitamento do nosso próprio universo sensorial, é seu início e seu fim,
como passar através do parto até morte com toda intensidade possível, a jornada da vida,
recriada e vivenciada pelo protagonista que ele é, passando por toda gama de relações
possivelmente encontradas, desde as explosões musculares do atrito, da luta, do bem-estar de
se galgar a posição mais privilegiada, se dominadora ou submissa não importa qual é, sentir-se
posse ou possuidor, rosnar feito cão que destrincha o bife, até a hora que desiste das forças e
entregar-se tornou-se tudo, cuspir-se para fora é tudo que pode, não se trata de mera cócega
que nos arrepia até a medula e depois o larga à fraqueza dos mortos, mas, no fim, tudo que
resta é abandonar-se, é permitir-se morrer, e por isso sorri, porque a vida se minimiza aqui e se
reconhece. Como olhar uma colônia de formigas.
Surpreendeu-se com sua medonha analogia, tudo porque foi uma chupada daquelas.
Podia ter me avisado que ia ser agora, a fêmea ainda rosna. Ele não a olha, mas ouve uns
sons estranhos, ela está regurgitando.
– Desculpe – olhou para baixo de relance, e não quer enxergar mais que isso.
Aqui ressuscito, ele pensou, da momentaneidade, e torno-me de novo tudo o que despejei.
Deve ser mais ou menos essa a sensação do idoso que certamente se arriscaria mais em estar
na posição que há pouco esteve, dividindo o espaço das pernas com uma competente, porém
falsa, puta romana, e pensa se ele mesmo não estaria sendo insensível demais em sequer
olhar para o rosto de Drusilla, é claro que acaba de se recompor, imagina que sensível seja
poupá-la do nojo que ele mesmo é, não vai olhá-la, não vai sorrir e nem esperar resposta para
seu silêncio, então pinotes se propagam por aqui, ele ignora e deixa para lá a gente que esteja
se divertindo.
Pensava em Sabrina e cogitava o que tinha esperado fazer com ela quando tivesse
chance, se meter com ela por uma viela das tantas que se encontram pelas ruas, erguê-la
pelas pernas e pressionar seu corpo, beijar-lhe a boca com fúria, tocá-la com jeito e com
vontade, mordê-la, abrir o jaleco na consumação do sonho de arrebentá-lo, hastear-lhe a saia,
observar na careta de seu rosto a denúncia do que ela realmente é sem as poses, sem o
sapato alto e a prepotência, nua de prazer tomando conta, preliminar sem licença, reduzida ao
que pode se tornar, e ela sucumbiu. Pôde sentir o arrepio nas próprias orelhas do hálito
feminino o tocando, e nos olhos que via uns saltinhos a tentar dar voltas sobre as órbitas, os
traços do rosto de criança que tem provado e tem gostado, e quero mais, ela o arranharia na
nuca e com fúria de mulher prenderia a sua cabeça, que é para dizer que pertence a ela, e ele
riria, ela seguraria seus cabelos, e quando trincasse os dentes de prazer e sorrisse de
embriaguez, aí diria certezas que a ele nunca se esconderam, a voz firme e sussurrada pediria
vem, meu doutor, antes de eu acertar tua cabeça, me doma, me come em cima da sua mesa,
de qualquer jeito eu gosto, vem, é isso que eu quero desde o início, vem, por mais que eu finja
é isso que quero, não, não, calma, começo a me arrepender, espera, não, eu disse não, espera
um pouco, por favor, pára, mas eu disse não, que eu quero mas preciso de um porquê, não era
um talvez, era um não, não entendeu?, pelo amor de deus, pára, não, não, ah!, os olhos
piscaram, imediatamente pensou por que teria de ser sempre ele a pensar o pior das coisas.
Eu sou o condenado a pensar essas coisas dos rostos gentis que me deitam no ombro. Eu
sou o condenado a enxergar sem ver, e intuir que é isso a verdade, e sou o condenado a
perceber que esses rostos me comprovam o pior, o que não sei se já havia ou fui eu que
semeei.
Algo tilinta e desrespeita seu sofrimento de mártir que foi sacrificado e continua a viver, a
noite está toda escura e a nublar todas as vielas, os esconderijos sombrios das coisas que ele
ainda não se preparou para crer ou ver, e a noite tímida e opaca vem brindar-lhe a
comemoração alguma e com bebida das ruins, brindou-lhe com o isqueiro empunhado por
Drusilla, ela vai fumar por se sentir no direito de escolha ou para esquecer do paladar que não
pediu para receber na boca.
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– É isso que eu chamo de investimento – urrou Andriolli, ele era uma poça de suor quando
sua garota já se esparrama de pernas abertas a sair de cima dele.
– Acabaram? – a voz de puta da frente mascava um chiclete. Elas fazem isso porque no
fundo o que querem é espantar clientes.
– Me beije, Alex – o rosto de Sabrina nas brumas da memória.
Também veio em mente a imagem da porta de um salão se abrindo. A música doce, logo
pode atribuí-la a um recital de dança, encenação teatral ou aula de balé, e veja só, aqueles
espelhos enfileirados circundando o salão rejuvenescido com o rosto esperançoso de
pequenas bailarinas, e lá entra o sujeito do terno, o rosto derramado em suor, tenta limpá-lo
com as mãos algumas vezes mas em nada adiantou, as mãos se encharcaram e não pára de
escorrer, olhou mais uma vez o relógio e mesmo que os números não fossem nada senão
números corroem a sanidade, gritou de uma forma que jamais faria, talvez vomite e não venha
a perceber, e sentiu uma satisfação esplêndida ao ouvir a música harmoniosa desafinando e
se calando e as meninas todas se tremendo. A professora vinha censurar, pelo jeito que anda
vem dar uns sermões muito graves ou ameaçar, já é ameaça que ande com expressão austera
assim, então o cara, ao vê-la, sacará o revólver e bum, um, dois, três, quatro, e após o primeiro
corpo espirrando sangue e caindo não podia mais parar, e por último seria sua filha a vítima,
ela é a culpada de tê-lo feito ir até aí. Você não quer?, lhe dizia a doutora quando deslizava as
mãos por seus ombros, o próprio cenário se esvaía feito poeira, apenas o rosto e a voz estarão
vivos ainda que passados e gravados feito brasa. Sabe que não sabia o que pensar sobre os
seus desejos, desde que rejeitou o metafisicismo e as teorias sobre sua gênesis e o modo
como vêm a correr-lhe nas veias, a persuadir-lhe as emoções e contestar os sentidos, pensou
que com o brilhantismo agnóstico de quem rejeita o esterilíssimo inalcançável, apenas se
renderia ao que ordena, como diria qualquer um, o seu próprio coração, a intuição gratinada
por essa argamassa que é ele mesmo, e isso que já não quero compreender sou eu, e não
tenho por que não aceitar, porque se sou eu, eis-me, e ponto de reticências, e cá vou eu,
devo?, perguntou-se sem saber exatamente porquê, a imagem da garota está reduzida e
entregue aos seus conformes, era claro que devia, aceitar esse poder é coisa simples, mas o
que isso o traria, e os seus medos sempre são seus maiores estímulos, quanto mais temer, por
exemplo, ir cada vez mais longe, mais testará os seus limites e mais precisará temer, é a sua
fogueira em chamas, sente-se vivo quando pelo medo poderia padecer, e se não trouxer o
medo para que eu o supere, diz-se, o faço não porque preciso me superar, o faço porque
quero, e mais nada.
Derrubou-a na cama, olhou nos seus olhos e isso dizia muitas coisas, ignorou as fantasias
pois sabia serem diferentes da prática, e agora carrega na memória o ranger dos músculos
contra a madeira fraca de cama, dos olhos fechados de transe e dos gemidos abafados volta e
meia escapando, enfim, lembrava-se da extrema insignificância que ele era e que representa,
na verdade, um acessório na revanche da doutora contra a vida, apenas uma revanche contra
si mesma, e ele ajudou-a a ser o que queria, e gostou desse papel.
– Poderia ter ficado sem tanta coisa no rosto – vai dizendo –, mas estava bonita – sorri
para Drusilla. – Vai para casa agora?
– Não, não ainda...
– Nesse caso, melhor retocar – enfiou a mão num dos bolsos, esticou as costas sobre o
banco. – Está cansada?
– Só um pouco.
Ele pega a carteira.
Ela olha e o comunica que não gostaria de sentir-se atraída por isso, lamenta muito. E ele
tirou sem pressa um maço com algumas notas e a dá, ela apanhou cruzando a mão com a sua,
e quando curvar ao menos um pouco a cabeça talvez perceba que o dinheiro somava a mais
que o acertado na época remota, quando as putas se debruçavam nos vidros e pareciam
dispostas. Pegou sem nada dizer, mas o olha fundo, que deve ser um obrigado que não se
cansa nas palavras, mas nada mais que isso, do contrário ela estaria a vender mais que o
corpo, coisa que nunca pretendeu.
E está certo que ela vai deparar-se mais vezes com clientes emocionalmente frustrados
que vêem na generosidade universal, por exemplo, uma forma de mostrar ao submundo os
seus valores suprimidos e ignorados por todos que importam, sede por mostrar que ainda lhes
havia algo bom, então a depreciar-se por piedade antes de tudo a si mesmos, mas o que Alex

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sente não é compaixão, é afinidade que logo trata de esquecer. Curva o rosto para fora e se
entretém com o mundo, que sempre o acompanha a passos lentos.
A noite é feita de sonâmbulos atrás de suas janelas à meia-luz, um monte de jantares
românticos com ninguém.
Quando se dá conta, o odor de perfume vagabundo retorna sem pedir licenças, pois não,
moldando-lhe no rosto uma expressão de terror quando a mulher comprimiu-se com as ancas
entre a cara dele e o banco, arrastou-se da maneira mais breve que conseguiu até abrir a
porta, ouve-se primeiro o estalo, depois ouve-se o vento fraco que entrou. As garotas saíram, a
rapariga violenta se debruçava como de início na janela do carona, os murmúrios que ela
emitia ele não entende, supõe tratarem dos arranjes finais de preço enquanto olha a
bonequinha a também sair. Uma boa noite, Polina, ele se permite flertar, ela acena com o rosto
um instante antes de surpreender-se toda ao ouvir o carro cantar pneus e arrancar quase
prendendo o pescoço da rapariga raivosa que ainda tentou acompanhar a corrida enquanto
bradava e gritava escandalosamente. Assim ela se foi tropeçando para trás, as pernas se
controlavam anunciando quase uma queda, Alex chega a curvar-se para longe da janela ao vê-
la passar, e ao dar de relance com o rosto pasmo de frustração e fúria não pode conter uma
risadinha irônica de plenitude, a qual não durará, e nem precisa. O carro se distancia e tudo é
deixado para trás, e ele não pretende virar-se tanto a ter um torcicolo, apenas para que baste
vê-la parar no meio da rua e gritar com a força das entranhas seqüências de palavrões
estridentes e cheios de fôlego, as outras duas camaradas tão mais atrás jaziam estarrecidas,
para que, com essa expressão, passassem a ser agora parte da memória.
– Aquela maluca não merece um tostão furado – o motorista falou.
– Juro que achei que ela ia enfiar aquilo em mim – o rapaz do banco do carona.
– Não era em você que ela queria enfiar.
– Também, o que Alex tinha de fazer com a puta?
– Prefiro não comentar a respeito – se pronuncia.
– Foda-se, Alex.
– Não brinca, mas ela não faz mais uma coisa dessas, por um instante achei que ela fosse
entrar pelo vidro aqui na carona e aí sim me estripar, você não viu a cara dela.
Nessa hora o motorista riu e tornou a falar.
– Você não sabia?
– Sabia do quê? – perguntam.
– A gente já tinha combinado de deixá-las antes daquilo acontecer – olhou para Alex e
sorriu. Ele não responde.
E então tem a trajetória das noites regadas por hiato em goles de cerveja e a sobriedade
pálida dos postes. Era misteriosa e atemporal a forma como o outro lhe vinha, é claro que só
chega a essa conclusão por ultimamente ter pensado algumas coisas a seu respeito, esteve
teorizando sobre sua psicologia quando num momento não teve coisa melhor de fazer, e nessa
ocasião esteve imaginando se o outro não lhe era uma necessidade infantil frustrada parecida
com a que se tem ao criar amigos imaginários, uma projeção do que se quer que vem a
parecer viva, talvez um temor da solidão e uma fuga dela, ou sentir-se capaz de criar algo num
universo de símbolos mais desconhecidos e impenetráveis do que sedentos da gente, mas
enfim, não se sabe, às vezes o outro mais parece uma visita permanente, que não importa
vassoura posta ao contrário atrás da porta e pigarros aos inconvenientes, ele nunca vai
embora. Então fracassou, que ao invés de um acompanhante à solidão, geriu um diabo, mas
deve ser injusto dizê-lo como um diabo, mais seria algo como, assim esteve pensando para
defini-lo, aquela presença que se sente nos estar observando por cima do ombro quando se
sabe que não há nada atrás, então viramos para aliviar o temor e ela já escapou, e torna-se
bem claro que nada lá havia, mas ainda assim pode ter se mudado para o escanteio, ou para
aquela sombra escura e tenebrosa lá do fim da escada na hora que já estão todos a dormir, é a
presença solitária e invisível que parece, escondida, aguardar para olhá-lo mais de perto,
sussurrar e anunciar o seu suspense, nada mais que isso. Chega a imaginar se realmente o
que precisa fazer é batizá-lo, a questão não parece ser o símbolo que vem do nome, na
verdade pode ser a de encontrar-lhe um rosto. Ele nunca vai me abandonar, pensou.
Não soube dizer há quanto tempo o som do carro esteve ligado, rodeava-o de tal forma
que, vindo de todas as direções, passou a se tratar de uma extensão ambiente, camaleão da
integridade de tudo, tudo dança conforme as coisas que ele vá pensar, e pensou. Olha pelo
vidro as calçadas da rua que agora percorria, as vê infladas dos notívagos, um submundo
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diferente apenas em detalhes de onde outrora esteve para arranjar diversão, o que parece
fazer muito tempo e pode até mesmo ter se passado dias entre esses dois cenários, essas
duas ocasiões, não faria diferença. Atentava, entediado, aos traços dos rostos que se passam,
aí imagina se eles não seriam de um rapaz sentimental, um bandido frustrado, um padre
cansado, um filho amoroso, todas as coisas ao mesmo tempo, uma mulher condolente, um
homem fervoroso, um olhar idealista, o garoto de olheiras e tantos mais, não havia importunos
nem o que o parasse, podia ir longe, e era o que fazia, pensou sobre a liberdade. Considera,
dentro da semente crua de nossa realidade quotidiana, essa liberdade como sendo insana e
impossível de ser posta em prática. Caso a gente fosse acostumada a expressá-la, teria a
autonomia de fazer o que fosse, independe da natureza desse algo e do seu fim, o que importa
é que sua vontade estaria pronta para ser posta em ação. Essas ações estariam famintas à
mercê de seus desejos, devaneios, lapsos, que quer que fosse, não havendo limite ou fronteira
além de a própria vontade. Seria isso, para o direito, para o nosso mundo que preza pela paz,
pelo bem-estar, pelo cara pacato, pela tranqüilidade, seria isso inadmissível, a liberdade é
imediatamente diferente desse estado, à medida que toda forma de ameaça de repressão,
quando proveniente de uma força governante ou que se dispõe da vantagem inegável da
legitimidade, retira imediatamente a liberdade do indivíduo e o estímulo natural que teria de
praticá-la, vomitando toda moral absolutista, que reprime, amedronta e se enraíza no espírito
para parasitá-lo, enroscando-se e instituindo o modelo, desde cedo, de como o indivíduo deve
vir a se portar, eis o seu preço de paz, instigando, desde a sôfrega gameta, um padrão. Dessa
forma, é instituída a relação entre direitos e deveres, e se acostuma o sujeito desde nascido
com a falta do poder, subordinado a um querer não necessariamente geral, um querer geral ao
qual o indivíduo não necessariamente se adequa, em troca se lhe dá uma parcela do que seria
a liberdade, hoje extorquida, e essa primeira assume o nome de direito. O direito seqüestra a
liberdade e muitas vezes o próprio direito é chamado de liberdade, para que sua força de
expressão seja canalizada e mantenha a gente satisfeita. A liberdade de repente passou a ser
subordinada a regras, e ele não sabe desde quando, mas soube desde sempre que não devia
ser. E o estado de direito pode se ausentar a qualquer instante que se sinta ameaçado,
apelando para medidas excepcionais, a brecha da regra, suas medidas de legítima exceção,
tudo para que possa preservar a si mesmo.
A dialética da liberdade, obra que traduz o gameta inicial de um grande pensamento
fundamentado nas observações básicas do nosso quotidiano e cujo autor despretensioso se
chama Alex, é sobretudo iconoclasta. A liberdade é boa simplesmente porque nos possibilita
satisfação, independe de sua forma, credo, manifestação ou forma de acontecer. A felicidade é
a única meta subjetiva que se pode afirmar com certeza que todo homem queira, a única
diferença é como isso pode vir a se produzir. A realização são formas distintas de felicidade
pessoal. O masoquista sentiria dor mas estaria satisfeito, doentiamente ou não, não nos cabe
ponderar essa questão, estaria satisfeito com a dor sentida, não importa quão controversa
possa ser a felicidade, o prazer, os preços a pagar, o drama e os percalços, o que importa é
que se trata de algo absolutamente bom, uma entidade que preenche nosso corpo e tudo
passa a fazer sentido, o mártir se sente feliz quando se sacrifica por sua causa maior, o egoísta
se sente feliz quando não divide e consegue mais, o altruísta se sente feliz com o sorriso
alheio, o espiritualista com a devoção, a mãe se sente feliz com o marido em casa e com o filho
promissor, os ambiciosos se sentem felizes com as novas conquistas, e por aí se seguem
inestimáveis sonhos que nos trazem satisfação e plenitude. Liberdade é poder intervir da
maneira que for para alcançar o que dê prazer, logo, não há forma de felicidade superior, há
apenas liberdade ou não.
O rapaz que se convenceu ser incapaz de ter prazer ou deu-se conta de que as dores
suprimiam todas as formas de prazer que poderia ter, esse já se suicidou, é injustificável que
continue vivo sem satisfação ou esperança, já perdeu-se a gana para suportar. A felicidade do
depressivo é vertiginosa quando os instrumentos que a produzem são instáveis e há um difícil
consenso entre seus desejos, há os depressivos que sentem-se felizes ao despertar nos outros
dó e, de fato, precisam de atenção. A liberdade é um confronto entre a vontade e a força de
homens diferentes, até que eles cheguem ao mais sublime estado de entendimento ou a mais
digna forma de autodestruição. O sujeito enfurecido que espancou a amante ao descobrir que
ela tinha outro só efetivamente compreenderá o risco e as vantagens de sua ação quando
provar o prazer por trás disso, e também provar do gosto dela ter lá seus irmãos e deles não
pretenderem deixar barato a surra, e o cara compreenderá, com uma lucidez prática que
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nenhuma outra experiência poderia lhe dar, quais os preços da paz entre a gente. Aqui há o
empirismo sobre o que importa. Aqui se fala sobre gente realmente livre. Toda imposição é
injustificável e burra, todo fruto espontâneo do que se plantou é autêntico, nem que a colheita
traga veneno.
A guerra entre os homens os força à colisão de interesses e a subjugação de alguns
desses, que uns têm umas vontades, outros já tem outras, o choque delas se trava no mundo
da violência, do deus ariano das guerras, mas também no mundo do entendimento, rumo à
compreensão do que hoje se diz necessidade de cooperação, de uma maneira que não haja
indivíduo alheio do que se esteja sendo construído e remodelado, porque ele é participante,
protagonista, há de existir uma interação direta entre pessoa e o ambiente que gere para si, o
próprio meio sugerirá fortemente as formações da gente, o próprio homem determinará o meio.
Aqui nasce um ser muito diferente. O que se vê nas civilizações atuais é uma teia
emaranhada de estruturas criadas pelo e para o homem, que há tempos desenvolveu o seu
ambiente requintado e dele perdeu o controle, e aí o meio se perpetua em forma de hábito,
vício e história, mas o seu criador não, o homem é mortal e as gerações seguintes estarão
perdidas nas fantasias dos antepassados, mumificadas e recitadas, no mais alguns poucos
estarão privilegiados quando manipulando os símbolos e as instituições que as movimentam.
Não deixam de estar todos vivendo num sonho. Eis o que não mais haveria no mundo livre,
não haveria determinismo secreto incrustando símbolos, moral e dever ser na mente alienada,
e sim gente que visualiza o próprio destino, eis o que jamais se perderia através da revisão
constante do que foi feito. Homens que constroem a si próprios e seguem redesenhando um
novo protótipo de homem, é o homem que contesta, o homem que pode saber, a criatura com
poder antes de tudo sobre si. Qualquer símbolo que se veja, qualquer ordem que se apresente,
há de se perguntar sobre este, de onde vem?, por que vem?, e para que vem? A relação do
homem livre é de dialética direta uns com os outros, de ter poder pleno de aplicar suas
vontades, assim como de estar a mercê direta dos resultados dessas, assim como estará à
mercê de um desejo agressivo do vizinho, para evitar isso é que a civilização há de se
desenhar em grupos que representem famílias, que porventura se estruturariam em graus de
cooperação maiores, havendo interações entre esses grupos formados, podendo também
serem chamados de clãs, e isso ele enxerga muito bem. Certa vez Alex perguntou-se, e em
que essa desordem causaria?, guerras familiares, facções adversas entrando em colisão?,
bem, conhecemos muito desses casos, não estaríamos vendo realmente nada de novo.
Mas há uma filosofia universal capaz de evitar o fracasso da burrice e mesmo assim
assegurar que a força de qualquer estado se anulasse, estado qualquer que naturalmente
poderia emergir das cinzas do tudo destruído através da força de um grupo que se
encarregaria de oprimir e criar uma nova forma governo, que extrairia a inteligência dos
autenticamente livres, estado este que, por sua vez, ao longo do tempo seria pressionado,
coisa assim, e teria seus descendentes autocratas derrubados por reformas ou revoluções, aí
vejamos, cá estaríamos com novas metas sociais, novos governos, da tirania passando pela
democracia, do autocrata passando por liberal etc etc, quando nada disso deve importar. Como
pode ser visto, pela opressão que brota do primário da existência da liberdade, no qual, se
fôssemos imergir num espírito antediluviano e partíssemos para os princípios das relações
hominídeas, veríamos tratar-se de fato de como nasce o homem, livre e sem dívidas com
ninguém, enfim, acontece que pela possível opressão advinda do começo desse caos humano,
nos enredaríamos num ciclo secular que culminaria sempre na queda de um império, num novo
caos e no surgimento de novas formas de opressão imperiais, mais ou menos sutis, mais ou
menos adaptadas, não importa.
Nada disso deve importar. Mas há uma forma de evitar que isso aconteça, essa coisa
chama-se retorno à escuridão, baseada nessa desordem autêntica é que a ordem deve cair. O
retorno à escuridão define a mentalidade que derrubaria todas as coisas e asseguraria que o
homem jamais fosse escravo de outros homens ou dos interesses que a letargia do hábito
conservaram. E esse comando simples, porém dificilmente assimilado em sua tacanha
simplicidade, diria questione.
Questione qualquer coisa que seja, até sua mais funda intimidade, seja uma intenção, seja
ordem, seja lei, seja a vontade alheia. A norma do pai, a boa vontade da mãe, o vizinho falando
alto, o porquê dos cachorros latirem, o porquê das aves voarem, o porquê de ser educado,
para que serve isso de educação, por que há gente dormindo na rua enquanto vamos ao
teatro, por que há tanta politicagem no mundo quando se percebe que as ações diplomáticas
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são hipócritas e homeopáticas, por que o céu é azul, por que não se pode sair nu na rua, por
que se deve crer em deus, que é bastante paternalista, dá-nos as coisas e temos que ficar
agradecendo sem nunca as termos pedido, por que se deve respeitar os mais velhos, por quê?
Sobretudo questione a si mesmo, interrogue-se a si mesmo, de que forma seus desejos foram
oprimidos, e para que o são?, por que desejas isso que tem em mente?, que pena se não
puder encontrar nenhuma resposta, ao menos está aí, a dúvida é realmente algo seu, e que
efeitos toda a fenomenologia de sua vontade germinam?, essa forma de conhecimento é
pragmática, não pretende explicar a tudo, mas está disposta a contrariar esse tudo que se diz e
não se explica.
O retorno à escuridão é, na verdade, a iluminação que se obtém da descoberta de si
mesmo, como quem descobriu o fogo ou surpreende-se pela primeira vez com o ronco do
trovão, por experiência e observação, então é a claridade sobre si mesmo, possível de
remontar os seus quebra-cabeças confusos. O retorno à escuridão criaria uma moral final, a
moral serpente, que muda de pele. Um instrumento de navegação provisório, que podemos
muito bem descartar e ficar enfim ao léu no mar sem fim. Talvez o fim das abstrações inúteis
entre a gente, porque tudo que há é a própria gente, então haveria essa moral final, ou talvez o
fim das morais, assim o retorno à escuridão apontaria as necessidades imediatas de cada um,
não a necessidade dos mercados, diria que é possível haver paz depois de colisões sem que
se abra mão da inteligência e do conhecimento, sem que seja preciso que a liberdade se
sacrifique desde o nascimento às bocas de uma entidade superior, não, essa paz não seria
mais desejada, pode haver sim paz do entendimento direto entre gente, paz por opção, paz do
diálogo entre gente e não do seu congelamento, do conhecimento iluminado e direto e não dos
mitos e ensinamentos distantes.
Um mundo onde, por fim, a liberdade não seria roubada desde sempre, mas teria-se
realmente a autêntica liberdade de poder abrir mão da liberdade por querer. Dessa maneira,
nenhuma ordem opressora poderia erguer-se diante de um furor coletivo de se questionar.
Assim que houvesse ameaça da escravidão, haveria também o contra-ataque que
perguntaria, por que as ordens?, com que direito, com que poder?, acabamos de destruir um
mundo e tu já vens com outro?, não, veja bem a resistência que há formada, não há prova nem
razão para que um subjugue o outro, as coisas não são assim, a ciência e a filosofia têm fontes
suficientes para indicar que as coisas não são como outrora as acostumamos a ser, e se
disseres que é, hoje ou nós perdemos nosso bem mais precioso, inquestionavelmente a
própria vida, que é o meio supremo de obtenção de todas as coisas existentes, ou então nos
entendemos, faça a sua escolha. Assim, em graus maiores, que podem representar o
cataclisma da guerra civil de clãs, ou menores, da relação tempestuosa entre membros do
bairro, a sociedade livre estaria a colidir-se. A liberdade é essa colisão. A relação dos livres se
reproduz entre eu posso versus tu podes. O risco é do mais forte vencer.
Morrer lutando ainda é ser livre, a morte não traduz mais a definição de pessoa.
Entretanto, também há formas de se criarem novas forças, algo como, se não se as tem
em algum aspecto, compensa-se em outros, a união familiar é um exemplo, o fracote recorre a
uma estrutura que o ampare. A esperteza também continua a nos ser o guia mais confiável.
Sendo assim, o grande perigo do estado de liberdade, ainda partindo do ponto de vista que a
vida seja a cada um o seu bem máximo, é o estado de guerra iminente. A lei ideal, essa que
seria, até mesmo dentro das democracias, a representação de um consenso comum, um senso
de bem geral em forma de normas, dentro do estado de liberdade nunca poderia haver um
consenso de alguma maneira imposto ou escrito, porque a liberdade não tolera nada que se
diga legítimo, também não tolera os espíritos vigilantes da legitimidade.
Acontece que o princípio fundamental do retorno à escuridão é a revisão constante de tudo
que seja eventualmente criado e desenvolvido, as perguntas não podem parar, da mesma
forma que as normas só estariam a serviço de um autêntico bem comum se fossem mutantes e
revisadas com o passar das gerações, se o indivíduo se colocasse contra o senso geral não
seria o aparato dessas normas a puni-lo ou a adequá-lo. Mas o outro, o semelhante, o vizinho,
o próximo. E estarem em choque é vital.
O rapaz agarra à força a mulher no ônibus mesmo constatando que ela tem lá o seu
namorado, recebe uma pancada, quebra o seu nariz, opôs a sua vontade à vontade do casal e
recebeu as conseqüências dessa relação humanista, note-se. Ele resolveu se vingar, durante a
noite vai descobrir o caminho e vai até a casa da garota, como ato simbólico depreda a janela
que julga ser a de seu quarto, mas se engana e além de romper o vidro acaba ferindo com os
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estilhaços o irmão menor da garota, que dormia. As luzes vizinhas se acendem, o rapaz se dá
conta de que algo deu errado, há gritos e toda uma algazarra, alguns sujeitos vêm à janela ver
o que ocorre, o percebem e ele não pode escapar da vista desse bairro, é perseguido pelo pai
da garota e por alguns de seus camaradas que ele acionou, é pego e recebe uma surra da qual
jamais se esquecerá e ouve um discurso furioso sobre respeito, talvez seja morto, que fosse,
não importa.
Dessa forma, conclui-se que só há ciclos de violência se houver a manifestação de uma
inicial, mas essa, por si só, é capaz de acontecer a qualquer momento, assim como pode ser
capaz de funcionar como estopim de uma batalha demorada e truculenta, a qual,
generalizando, pode ser tanto de violência física quanto de diálogo, discussão etc, antes uma
que a outra, mas as duas se podem igual. O irmão do rapaz brutalmente assassinado, ou o
camarada em que ele sempre confiou, aquele do mesmo bairro, ele pode, afinal, se dar conta
de que se aquilo aconteceu foi por alguma razão, pelo estopim que interferiu diretamente na
órbita da individualidade do outro, caso contrário poderá, quem sabe, organizar um poder
capaz de subjugar a família da moça, que num instante mudou de vítima para algoz, e assim
podem partir para incendiar a sua casa ou qualquer ação do gênero. Parece emergencial que
possam se enfrentar. A iminência da guerra anda rente à iminência do entendimento, assim,
sempre também haverá possibilidade de inteligência, sobretudo de igualdade, diante da
aparente desigualdade do caos, da força bruta, da matéria prima do homem.
Por que então, Alex se pergunta, ele mesmo tem o retorno à escuridão como utopia, como
hipótese que mais representa um grande e se do que coisa viável?, primeiro porque foi feito
para ser um absurdo, segundo porque aceitação geral é difícil, é algo que na história das
pessoas nunca antes se viu, e esse pensamento requer uma disposição surrealista, terceiro
porque também é difícil, para não dizer impossível, gerir uma coragem tão grande capaz de
infringir uma iniciativa dessas numa massa consideravelmente grande, que seja capaz de
perpetuá-la para a eternidade.
Mas, sim, é tolice pensar que a própria liberdade só nos virá se for uma escolha de nossa
parte, individual, um momento de cada um. Na verdade, basta que não haja mais entidade que
a aprisione, o estado que assegura sua enfermidade temporária, inevitavelmente ela estará
presente em nós assim como está a vida, é inata, apenas desacostumada de ser, e dessa
forma só nos abandona por completo no caso de a própria vida nos ser roubada. E arriscá-la,
não, ainda não estão dispostos a isso, isso está visível, a prova mais clara é a submissão de
tantos que são pisoteados e, ao contrário de se levantarem contra os pés, parecem preferir
fazer menos barulho, é que qualquer silvado pode aborrecer a bota.
Alex não sabia, geralmente como as pessoas não costumam saber esse tipo de coisa, mas
essa noite peculiarmente lhe faria conhecer um personagem importante para sua vida, e da
mesma forma que não saberia prever um fato que se confunde com os fatos quotidianos feito
esse, só o tempo igualmente define como e porquê as pessoas se tornam importantes, não
será diferente. Com ele se dará da mesma forma. Após muito tempo nas folhagens profundas
de sua selva mental, matando vespas sinistras e protegendo-se de árvores carnívoras para
desbravar o que há no lodo, e durante todo esse tempo com seu homem-consciente
adormecido e ao mesmo tempo em atividade, isso é, aquela porção alienígena de si mesmo,
que é capaz não só de assimilar as coisas do mundo e da realidade, como questionar e muitas
vezes refutar a si mesmo, então, esse homem-consciente minguou para dirigir seu próprio
enredo interno, ignorando com afinco detalhes como as ruas a passarem, as luzes, as
calçadas, as fachadas, os transeuntes, os cheiros, o céu mormaço, a neblina noturna etc.
Quando regressou ao seu universo sensorial não imaginava quanto tempo tivesse passado, é
possível que dessa maneira rumem também as almas penadas, sendo orientadas por outros
ou seguindo a convenção da correnteza, mas ainda assim predomina, ao menos em Alex, um
instinto de urgência que às vezes o diz quando é hora de acordar.
O som multidimensional rega mais uma vez uma de suas mais uma noites, tais quais as
luzes projetadas com base em distorções espaciais, assim era típico a bares de música,
desses que se vêem em grandes quantidades nas cidades grandes com espécies variadas de
apetrechos, freqüência, influência, movimentos e fatores do gênero. Se olha para os lados
abaixo podia ver o que lhe era por conhecimento prévio e por esguia dedução a pista das
danças, aglomeradas por cabeças mal-iluminadas borbulhando e por um ou outro rosto vez em
quando visível, isso dependia dos trejeitos das luzes, nesse instante uma rajada forte vinha
bem no olho, o fazendo apoiar-se no corrimão da escada. Dá pra parar de empurrar, fazendo o
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favor?, esbraveja com dificuldade a garota morena da frente e prontamente se vira de volta,
não vale a pena emitir qualquer pedido de desculpa ou um palavrão que fosse, também não
poderia empurrá-la, assim que puder tentará. Olhou em torno, um rapazote careca e uma loira
lhe apertavam os lados, não desperdiçou a chance de trombar discretamente com a perna o
primeiro, que esbarrando na segunda por sua vez trombou numa mulher alta e altamente
suada, da qual achou ser a voz emitindo alguns chiados de reclamação, e nada disso
importava, aproveitou a brecha espertamente criada para atravessar o espaço e subir de vez.
Sorte que não viu mais a garota morena, que não se tenta a empurrá-la.
Deduz ser néon o que ilumina aqueles tubos que ornamentam a periferia das mesas, ali o
número de gente a transitar parece diminuir bruscamente, é uma espécie de ironia, há um certo
tipo de atração das pessoas num lugar apertado por outro mais apertado ainda, mesmo que
não tenham exatamente planejado, que assim torna-se melhor, ainda mais apertado. Recebeu
um empurrão, cambaleou um pouco a frente, olhando dali podia ver a sacada, é que como
subiu a escada estava num andar superior, aquela varanda dava uma vista privilegiada da pista
abaixo, só não tinha exatamente o que olhar no momento, talvez as moças bem vestidas que
dividiam o espaço consigo, ou os rapazotes metidos em boas roupas ostentando seus dotes,
seja quais fossem, talvez devesse prestar atenção no som envolvente, ou saudar com os olhos
o rapaz de óculos azul que vinha chegando, talvez fosse melhor fazê-lo sorrindo. – Fala, meu
rapaz. – o diria.
– E aí, meu caro? – responde quando franzia a boca por trás da barba rala, seus ombros
se movimentaram e os braços se ergueram num abraço crescente.
O qual é atendido. Se envolvem na cordialidade dos homens, com direito aos tapas nas
costas e coisa assim. Alex olha para trás e para os lados, averiguou se não cometia a
indelicadeza de ter algum dos seus por perto e ignorá-lo, deduziu pelo tráfego de tantos
desconhecidos que em algum ponto se haviam dispersado, se tranqüilizou.
– Gordo e bem vestido, Barbariccia, conte-me seus segredos – Alex passou-lhe o braço
pelas costas no instante em que ele fez menção de andar.
– Não está disposto a pagar o preço.
– Quem eu tenho que matar? – sorri a desviar de última hora de uma morena de vestido.
– Com essa idéia em mente posso até te arranjar um bom trabalho, tem o espírito
adequado, olha lá, melhor não sugerir.
– Com essa idéia ou não trabalhar pra você seria humilhante – meiosorriu.
– Tem muita gente contente em se humilhar. E aí, que tem feito?
Estala o pescoço quando se aproxima da mesa, acha que pela pouca luz e pela miopia
estivesse a enxergar mal, mas é que as extremidades misturam-se com outras mesas de forma
a não estabelecer limite qualquer. – Perdendo meu tempo – respondeu.
– Nesse caso, nada melhor que perder o tempo entre gente boa. Não estou bem servido?,
e tu te acomodas. – e acenou demonstrando a mesa repleta de senhores, moças, rapazes e
meninas, pela conurbação de pessoas não soube identificar aos quais tantos ele se referia, não
considerou, acabaria não lhe fazendo muita diferença.
– Quer mesmo que eu responda sua pergunta?
– Alex, Alex, não seja azedo diante de meus estimados financiadores – o rapaz ajeitou os
óculos sobre o nariz.
– Mudaram o nome pra ladrões e biscates.
Ouviu e reparou o que seriam quase todos na mesa rirem, era esse o aval cortês que
precisava, não que fizesse diferença, afinal arqueou as pernas e debruçou as ancas sobre o
banco acolchoado, ganhou espaço da moça de olhos verdes com um vestido pudico em partes
e sensual noutras, moça essa que não tinha reparado estar no seu caminho até ter de ocupar-
lhe indelicadamente o lugar, fato esse que contornou ao olhá-la com simpatia do tamanho
proporcional de um pedido corriqueiro de desculpas, ao mesmo tempo esqueceu-a para
sempre.
– É, é, não se demore pra acomodar – o rapaz de nome Barbariccia contornava a fileira de
gente para seu reservado lugar. – É bom que te vejam, e com isso tenham em mente, meus
rapazes, alguém que pode vir até mim sem querer tratar de negócios – ouviram-se risadas
mais uma vez.
– Saudades de você.
– Saudades mesmo – e sorriu.

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– Se importa se eu pegar um? – apontava para a caixinha de charutos que devia ser da
moça ao seu lado. – Pois é, mas quanto a história dos negócios, eu ainda incentivo, não é?,
até prefiro dinheiro sujo.
– O que seria de você se dissesse que não?
– Você teria de me proteger, veja só, que situação.
– Fique à vontade – um sujeito de aparência formal e lá com seus cabelos grisalhos,
estava ao lado da moça de olhos verdes e tinha uma pose bem galante, foi ele que tomou a
resposta referente aos charutos. – Como disse que se chamava?
– Alex para os amigos – esticou uma mão para cumprimentar o sujeito e outra para adquirir
um charuto. – E você?, desculpe confundir o dono dos charutos, a propósito parecem ser bons,
desculpe-me a ignorância de não entender muito – falava ao mesmo tempo para a mulher e ao
rapaz.
– George é meu nome – o nome irrelevante –, e eu diria que são razoáveis, Alex.
– Eu acendo pra você – a moça falou quando pegou uma caixa de fósforos que até agora
ele não sabia de onde ela tirou.
– Agora sou eu que tenho a dizer, fique à vontade – ergueu o charuto com a boca, deixou
que a fêmea o cortasse a ponta e o envolvesse docemente com as mãozinhas pequenas,
curvou-se quase por sobre Alex, um perfume desses, ok, podia levar uma pessoa ao êxtase,
doce como uma fruta tropical, se não muito o faria esquecer dos odores de cidade de mais
cedo.
– Uísque? – ofereceu um homem.
– Barbariccia, quando é que a polícia vai se dar conta de suas atividades e te expulsar de
teu ponto? – Alex tragou o gosto esfumaçado do charuto com caretas de riso, já envolvia o
copo de uísque que rastejara pela mesa na sua direção de palma aberta.
– Quando por algum milagre eu não sustentá-los – respondeu do canto da mesa onde
estava, vozes se dispersaram em risadas.
– Aceite meus conselhos, popularize as suas festas, isso agradaria a todos nós, hein?
– Alex, deixa que das minhas coisas cuido eu, acho que os rapazes também pensam
assim.
– É audácia sentar-se junto aos lobos, senhor Alex, com uma oferenda que não vá
apetecê-los, com algo que não seja carne – disse o senhor George, num tom de demagogia e
pouco interessante ameaça.
– E o que o senhor faz, exatamente? – a moça ao lado cantarolou.
– Digamos, minha querida, que eu seja um desses liberais. E olha, isso foi mesmo pra ser
ambíguo – e esticou o braço por sobre os ombros dela.
– Ele não dirá o que realmente faz, menina – Barbariccia riu.
– Parece perigoso – ela sussurrou.
– Ou talvez não seja nada – falou uma voz.
– Lamento desapontar a todos.
– Devia lamentar desapontar a mim – a mulher.
– Desculpe, esse hábito deve ser um dos tantos mais fortes do que eu, e esse charuto não
é razoável, é mesmo bom.
– Agradeço a preferência – disse o homem.
– Como teve o desprazer de conhecer a Barbariccia, Alex? – pergunta um outro.
– Um amigo devia dinheiro já fazia um tempo pra ele, um grandalhão foi lá em casa,
ameaçou virar a estante, era só o que me faltava, imaginem vocês, um cara entrando nas suas
casas e ameaçando derrubar suas coisinhas, que nem são minhas, na verdade, derrubar por
todos os cantos, quinquilharias despedaçadas e gente gritando, eu não quero ouvir isso, eu só
quero ficar no meu canto. É mesmo, seria um horror. Aí convenci o capanga que não valia a
pena matá-lo ou surrá-lo, que isso seria muito mais trabalhoso e coisa assim.
– Acabou que foi Alex que me trouxe o dinheiro – Barbariccia.
– Parece um gesto nobre – murmurou outro.
– Eu só não queria bagunça.
– E o rapaz da história não escapou da surra merecida – Barbariccia.
– Não se pode intervir em tudo a toda hora – Alex.
– Mas se pode intervir um pouco, do jeito certo – a mulher consentiu.
– Espero ter sido esse um convite.
Recostou-se abandonando a tudo e se fez a felicidade.
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Pleno mesmo é o homem que nada quer, isso tem mesmo sua lógica budista, por exemplo,
olhava por acaso aquele rapaz de expressão austera e de nariz empinadamente formal, com
todas as rugas que moldam uma forma na testa que sugeria estar analisando alguma coisa que
eventualmente estivesse sendo conservada, e essa análise estaria se dando com elegância,
com glamour, com charme, até que alguém se dê conta de que não havia nada a ser analisado
senão a própria caricatura que o sujeito fazia de si mesmo ao trincar o gelo no copo de uísque
ou a sorrir por carência de simpatia. Cai na real, meu bom camarada, realmente tu não és nada
a não ser o que faz pensarem de ti, isso você é, mas seja lá o que esteja tentando parecer, até
então tem fracassado. Não pode ser que se espere tão pouco. Havia a poça de banhas esnobe
cujas papas escorrendo produzem ondas pululantes onde em outros tempos o pescoço deve
ter estado, e aí, se rendendo ao provável estigma de feiúra que já deve ter se acostumado e
deixando a todo o resto para o lado, olha com asquerosidade a sujeita vestida de vermelho,
pobrezinha, ele a olha como se quisesse dá-la um banho no sebo de entre seu papo. Ela vai
tentar ser cordial com um ou outro sorriso, ela gosta de manter a compostura, mas o asco que
se esconde não se mata, é, que deve estar no silêncio se dizendo, acorde, sua besta nojenta, e
me deixe em paz, e se o sujeito notá-la não terá razões de atendê-la, assim rirá. Tomou mais
um pouco do uísque, sorriu de si para si mesmo.
E olhou por sobre o próprio ombro até onde o pescoço o permite, a música já o torna parte
dela e não é só audição, mas olfato ou tato, tanto faz, era a sensação que tinha, enquanto
umas vozes que estariam próximas pareciam se distanciar cada vez mais, na verdade o que
talvez o homem ainda não descobriu, mas ainda assim pratica, é o desgosto que tem de sentir,
de sentir no sentido mais vago, ou talvez seja esse simplesmente impulso de se buscar o que
não tem, então, vivendo no mundo dos sentidos talvez busque um submundo onde esses
sentidos estejam conscientemente falindo, onde tudo seria ou levaria à falência. A falência por
si só é uma consciência inteiramente nova, arriscada e sedutora. À exemplo da garota de blusa
verde florescente rente à divisa da sacada, ela se apóia no metal enquanto negocia a sua
compra das drogas com o aquele magricela soturno, como ele sabia o que estavam fazendo?,
ora, aquele rapaz estava constantemente rondando por ali, e por mais que seja esse um
método preconceituoso de se informar, a fisionomia das pessoas muitas vezes não engana
quando se refere a uma dedução das mais simples, como por exemplo em dizer que aquela ali
gosta de cheirar muito pó. Dá-se com a pista mais vezes, se inebria dos movimentos
insinuantes das danças, a bebida subiu-lhe com uma sensação de alívio nas têmporas e sentiu
começar a fazer efeito. Os sofistas se entretinham com seus ganhos ou com a ostentação de
suas proezas, a miríade de movimentos se entrelaçava para resultados imprevisíveis e que não
nos cabe ver e sim nos entregar, assim ele está num ponto a roçar-se com uma moçoila que
dança, às vezes noutro com uma outra diferente, poderá estar em todos, seu talento é de
possuir.
– Agora eu peço licença – sorriu enrugando o rosto, a letargia do conforto minguou-lhe
bastante a vontade de levantar, a mesma que mostra estar tentando praticar.
– Toda – acatou uma das vozes estranhas e distantes.
– Mas já? – gritou Barbariccia, quando se ausentava momentaneamente de seus próprios
assuntos. – E vai aonde?
– Sabe como é, há uma vida inteira lá fora esperando – meiosorriu vagamente. – Mas
agradeço o charuto, era realmente bom, até acho que vou ficar economizando ele na minha
boca.
– Então vai se juntar a plebe? – a mulher espreguiçou-se pela bancada e resmungou com
a voz rouca, toda lânguida, não sabia quem ela estava tentando impressionar.
– Minha querida, eu pertenço à plebe.
Foi-se tropeçando pela escada, ainda tem de se esgueirar contra corpos apertados, talvez
os mais atentos lhe dessem espaço pensando se não cairia sobre eles, vai desviando de uma
menina e um rapaz que não acharam lugar melhor para estar quase fazendo o que pretendem
fazer, por consideração tenta não empurrá-los, colidiu-se a uns tantos, segurou-se e teve no
corrimão uma ajuda dispensável, fez umas curvas e se meteu na corrente que transitava no
fluxo a uma multidão maior. Encolheu-se ante os corpos mais altos, afastou-se de outros com
as palmas, e como se fosse inevitável dar-se com a continuidade do que tomaria por vaga-
lumes, sua visão volta-se a extensão de várias cores do bar, onde a luz branca destacada volta
e meia se eclipsava com os corpos arqueados, dá cá minha bebida, gritam, era quase
inevitável deixar-se levar.
105
Atingiu a beirada do balcão onde os rostos são mais claros, não se distrai muito.
Espremeu-se e discretamente atirou o resto do charuto ao chão, e nesses instantes tenta
identificar a natureza das bebidas enfileiradas ao painel além do balcão pela cor e pelo formato
reluzente de seus recipientes, a vista era míope quando tentava alcançar-lhes o nome. A
mulher ao lado bebia com aspecto de quem imerge em frustrações, a maquiagem borrada
denuncia que para ela a festa já está no fim. O sujeito próximo conversava curvando-se sobre
a mulher de cabelos curtos, ela se entretém mas não torna isto claro pela graça do mistério,
apesar de às vezes também lhe passar no rosto um semblante de tédio.
Assustou-se um pouco quando volveu o rosto a frente e vê o marmanjo sem camisa do
outro lado do balcão o fitando com expressão de espera, estava com a boca entreaberta como
se tivesse terminado de falar alguma coisa que o barulho, e não só esse, como o excesso de
desatenção, não o permitiram ouvir. Deduziu que se oferece à serventia, só se lamenta que
tenha sido ele a vir, e não uma daquelas moças gostosas com blusas coladas no corpo que
geralmente estão lá para atrair os clientes, tática, pensa, que eu torno desagradável para as
moças nas minhas noites de bebedeira. Cerveja!, cerveja!, uma garrafa, gritou, mas na hora
que a voz saía ela também o engasgou, pigarreia um pouco enquanto o rapaz aponta para o
ouvido a sinalizar que não ouvia, em retribuição Alex enrugava a testa e rosnava
silenciosamente com a garganta no sinal de que já ia. Aponta um exemplo do que quer, garrafa
ali no balcão, tudo certo.
Está embebedando-se e tenta imaginar os tais receptores de seu cérebro a serem inibidos
pelo álcool, pensa que antes de tudo deve faltar-lhe pudor de continuar em silêncio, parecerá
muito mais fácil berrar, principalmente com os estranhos, que tão de repente parecerão
simpáticos, depois não mais se sentirá triste, nenhum problema parecerá ser suficiente para
derrubá-lo, por fim se esquecerá, e deve ser essa melhor parte, de tudo que costuma importar.
Mas nada disso acontece e por isso se frustrou. Foi mais ou menos a essa altura que vê
Fabrício entre as fileiras do balcão, está entrelaçado a duas moças risonhas, o aspecto delas
não era de se desprezar, estava mesmo muito bem servido, o rapaz. Bem, a vida não é
favorável da mesma maneira a todos, pensou, nós, apostadores da existência, tudo que
podemos fazer é nos esforçarmos para compensar as deficiências que possamos apresentar
diante da questão da seletividade natural do nosso selvagem mundo, e ainda assim
reconhecermos, pesarosos, que muitas vezes o mais profundo esforço não será bastante para
nos equipararmos a alguns outros que detém lá suas maestrias e nos superam com uma
facilidade irritante pelo talento, o dele é ser bonito, mas na verdade você não dá a mínima,
tanto porque duas é sinal de confusão. Certo que as escolhas definem muitas coisas, o que
não o torna, Alex, muito mais que um animalzinho subordinado ao cárcere de sua biologia
tantas vezes cruel, essas coisas ele pensa como faria sobre uma conclusão ilustre, e o sorriso
daquela morena de cabelos encaracolados que está a esfregar os peitos no amigo era tão
cativante, ainda o sorriso e não os peitos, que é natural que deseje uma posição parecida, se
não mesmo aquela, não se incomodaria. Todo aquele discurso sobre a atitude da pessoa fazer
a grande diferença etc etc, o que fosse, tudo isso faz uma referência constante ao otimismo, e
esse espírito era atribuído à gente jovem, não para alguém que vira sozinho uma garrafa de
cerveja.
Essa é uma noite um pouco melancólica, pensou nela usando esses termos. Sentia como
se ela atuasse como um abismo de transição entre situações que ele não sabe ao certo definir,
mas esse período, que talvez não seja mais que a conhecida depressão, o envolve e o joga a
uma série de desilusões, que ou enxergará em tudo uma razão para desiludir-se, seja com o
caráter de uns, as suas esperanças e a humanidade, ou atrairá sem que saiba a tudo que for
fonte da desilusão.
O vulto tropeçou ao erguer-se do seu lado, teve de virar e abrir espaços para aquela que
identificou como sendo a garota de cabelos curtos, é, havia a perdido de vista por todo esse
tempo e agora ela estava de saída. O rapaz que a acompanhava, ou que está a tentar seduzi-
la, não parece ser o mesmo da última vez que olhou. Desconsidere, vai, você não está muito
certo. Ele teve de se resignar, deve ser isso que indicava aquela expressão, e aí não demorou
a que se retirasse, abriu alas para que um outro viesse e tomasse lugar, estranhos parecem
sempre iguais, assim que é bom, que quem não os conhece que os compre.
– Eles sempre repetem o mesmo processo – disse a voz ao lado com um tom de
dificuldade, ao virar-se para conferir constatou ser daquela senhora tristonha, e pela forma dela
olhar estava se referindo ao processo que a garota que acaba de sair esteve protagonizando.
106
Pensou sem rédeas as seguintes coisas, ora, minha senhora, para mim é mais que óbvio
que você carrega um lamento tétrico nessa observação pela razão nítida de que esse processo
de perseguição que a garota jovem e assediada há de correr todas as noites, se não corre em
ocasiões ainda mais corriqueiras, como ao comprar o ticket de metrô ou o jornal de hoje, não
se repete da mesma maneira com a senhora, se é que me permite o atrevimento de contá-la
uma verdade. Só nos faz falta o que não temos, é até redundante dizer isso, tal qual mencionar
aquela história de que só quando perdemos algo aprendemos a valorizar, bom, não falaria
nenhuma dessas coisas. Não quer se cansar. Conteve-se em curvar as bochechas para dizer
que a ouviu. E também não tem muito lá a acrescentar.
Ele voltou a atenção ao copo com algumas bebidas misturadas, não soube identificar o que
era aquilo, também não se dedica, e entende que a mulher muito provavelmente não tornará a
falar. Então ele mesmo é tomado de gentileza.
– Não sei, deve ser alguma coisa com a música – circulou um dedo pela orelha. – Ela
excita, dá um ânimo estranho, não sei.
– Como? – a mulher franziu o rosto.
Alex fez com o rosto para que deixasse para lá, é que está mesmo cansado para repetir,
que fazê-lo com umas coisas fúteis às vezes estraga qualquer conversa, é melhor deixar para
lá, e ela sorri, sugere o que ele não identificou com certeza, mas parece ser luxúria misturada a
um desses sorrisos que casualmente se originam em resposta a uma educação que quase nos
desperta alguma felicidade. Ponderou velozmente algumas razões quaisquer para que ela
esteja ali entregue à embriaguez como fazem os beberrões acabados, não que sua aparência
desse totalmente isso a entender, mas dá alguma coisa, bem, insinua as possíveis causas, que
podem ser por exemplo umas tristezas casuais, a filha de quatorze anos engravidou, houve um
falecimento na família, a perda de uma promoção no trabalho, mas nunca se pode resumir a
real essência de um desastre numa só coisa, ao que ela provavelmente haveria de responder
que é a vida inteira que anda uma merda.
– Está sozinha? – perguntou, inclinou-se para que ouvisse.
Havia algo de ceticismo no sorriso dela, – Pareço estar com alguém perto?
– Nunca se sabe, se o sujeito de agora há pouco perguntasse isso à moça que saiu, ele
teria ao menos sido delicado. É melhor prevenir, as coisas poderiam ter sido diferentes.
– Sou Dora – ela sorria fracamente.
– Olá, Dora, sou Alex – e toma mais um gole.
Passaram-se alguns instantes em silêncio, ele cogita se já teria adquirido intimidade
suficiente para sanar a curiosidade que agora crescia, de saber qual a merda da vida dela, e
acaba decidindo por preguiça aguardar mais um tantinho, daí para ele estar reparando no
vestido vermelho decadente que parece um pouco antigo demais, de fundo de armário ou
mercadão foi apenas um passo, um sujeito quase tromba em suas costas, ele esquiva.
– E você, Alex, com quem está?
– Uns conhecidos que devem estar espalhados por aí, não faço idéia. Você costuma vir
aqui pra beber sozinha?
– Algumas ocasiões especiais permitem – aí acendeu-se um pouco de escárnio.
– É grave?
Ela sinaliza como se não fizesse tanta diferença. – Há muitas coisas que nos fazem chegar
à mesma situação, agirmos da mesma forma, ainda assim são coisas distintas que as causam,
não é?, você pode chorar de felicidade ou tristeza, a gravidade de uma coisa pode vir não sei
do quê, não é?, a moça do bar tem sua própria estranheza de gravidades.
– Nossa, isso foi intenso. Então é grave.
– A vida é grave com o passar do tempo – ela se lamenta –, devia ser o contrário, mas não
é – e se lamenta mais ainda. – Ficamos mais cansados das coisas, elas é que exercem mais
poder sob nós, quando vemos não temos mais forças.
– Tenho de concordar.
– Mas você é jovem, Alex. A situação em comum é que estamos nesse balcão, mas o que
nos traz aqui são coisas diferentes.
– Acho que não, nós dois queremos conversar.
Ela insinuou o primeiro riso. – Não há conversa que possa fluir entre eu e você, há coisas
que não se pode partilhar.

107
– O que vai dizer?, que tem quase idade pra ser minha mãe? – e ela teve de prender a
gargalhada com os olhos de surpresa. – Não leve a mal, esse é um clichê que as pessoas
costumam usar.
– Bem – ela ergueu os ombros a concordar, que parece se divertir –, não deixa de ser uma
verdade. O que acha de sua mãe?
– Era uma boa pessoa mas não tínhamos muita coisa em comum. E também não chega a
ser verdade a estória da idade.
– Então ela já se foi. Talvez também não tenhamos muita coisa em comum.
– Hoje em dia estou mudado.
– É claro, não te conheço, quem sou pra contrariar?, você me lembra Frederico.
– É teu filho? – ela pareceu sentir-se um pouco ofendida com a idéia, mas pelo que
pareceu também considerou o lado esportivo, e aí respondeu.
– Não, era meu marido.
– Ah – achou estar se aproximando do sentido da cara triste –, morto?
– Não, me deixou.
– Isso pode ser um pouco pior. Fico aqui imaginando o porquê de eu lembrar ele, percebo
que isso possa não ser exatamente uma coisa boa...
– Foi só por uma silhueta distante, um lapso da memória, não se ofenda. Desculpe.
– Não, tudo bem. Vou fumar, se importa? – já puxava o cigarro.
– Não, é claro que não, fique à vontade – e aproveitou para beber mais do copo.
– Fale-me sobre Frederico, se não for ruim.
– E por que se importar com os resmungos de uma senhora?
– Não se deprecie – pausou por alguns instantes ao tragar o fumo. – É só curiosidade, se
não quiser falar, tudo bem, também não me é importante.
– Diga-me a verdade crua nesse caso – ela falou enquanto bebia mais da coisa.
– Que quer ouvir?, não me importo realmente, não te conheço, não poderia me importar,
porra. Mas a compaixão nasce muitas vezes da curiosidade.
– Então sente pena, e pede para que eu não me deprecie.
– Pena e compaixão são coisas muito diferentes, minha senhora.
– Minha senhora, agora você está sendo sincero, a tratar-me como a mãe que não sou.
– Não sei como tratar uma mãe, minha senhora, e não preciso tratá-la assim, nem tenho
vontade, não tome como se os outros tivessem.
– É esse o seu conselho para mim?
– Não foi a intenção dar um, mas eis meu conselho, não se trate como tal. E você, me tem
algum?
– Não sei, nem poderia. Acho que na verdade as pessoas aprendem por suas próprias
conclusões, não é que alguém as ensine. Então conselhos são inúteis.
– É aquela conversa de que se fosse bom não se dava, se vendia etc – tragou ainda mais.
– Você é um bom sujeito. Não acha que está perdendo seu tempo? – perguntou com tom
de súplica.
– Claro que não, e nem imagino por que estaria. Estou aqui por acaso, vou mesmo até
pedir outra bebida daqui a pouco.
– Pois é, aquele Frederico tirou de mim a coisa mais importante que uma mulher pode ter –
a essa altura Alex esteve pensando em bobagens, mas se conteve e escutou –, pensando bem
talvez isso seja agora a alegria, isso vale pra todos, mas bem, eu podia superar se ele não
tivesse levado embora minha filha.
– Que cretino.
– A levou pra longe, sabe?, há toda aquela história de poder haver uma vida melhor, e não
sei o quê. Mas como se pode ter uma vida melhor longe de quem mais ama a gente?, essa
pessoa não é ele.
– Vai ver ele acha que o amor não é tudo. Não sei, melhor eu não julgá-lo, dizer que foi por
mal pode ser precipitado pra mim.
– Você não tem filhos, certo?
– Correto – fumou mais firmemente.
– E pretende tê-los?
– Quem sabe, não é? – falou sem muita vida.

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– Vai saber se ama tanto sua criança quanto sua companheira. Tudo bem, a vida segue
adiante. Me envolvi com um outro rapaz, um sujeito responsável, digno e diferente. Ia ter outro
filho, mas o perdi.
– Talvez você devesse tentar não ver a um filho como uma extensão sua, mas como um
indivíduo próprio, não sei, de repente ajuda. Não que isso justifique o que aconteceu, mas acho
que o que você precisa é aliviar a dor, uma coisa dessas diminui o apego.
– É outro conselho que você me dá, garoto – e sorriu com vários sarcasmos –, talvez eu
resolva segui-lo caso consiga me convencer. Consegue imaginar um aborto?
– Posso não conseguir me empenhar muito, mas acho que consigo imaginar...
– Em si não é nada, mas em certas ocasiões percebemos como a vida é uma droga. Eu
não tinha mais de dezessete anos, nem lembro bem, quando fiz um aborto desses voluntários.
Na época foi normal, doeu, doeu muito, mas fora isso, tudo seguiu bem.
– É, eu me perguntava se devia doer, agora sem querer respondeu a minha pergunta,
muito obrigado – estalou os dedos pedindo mais uma cerveja.
– Eu tive minha filha, foi tudo ótimo. Só depois fui descobrir que havia miomas no útero e
que uma trompa estava comprometida, isso porque depois da primeira gravidez as outras são
sempre mais difíceis, sabe?, aí você concilia com a idade avançando, e com o aborto que
desde aquela idade comprometeu um ovário meu e eu não sabia. É irônico, não é?, uma coisa
que eu fiz há tento tempo, sem significância, e me dá isto. Como se eu fosse ficar prevendo o
resultado de cada coisa que eu faço. Aí veio a depressão, os remédios.
– Isso faz com que odeie mais ainda o tal do Frederico?
– Profundamente.
– A culpa não é dele que não possa esquecê-lo – bebe da nova cerveja.
– Isso de nada importa, o que fez continua sendo cruel – ela olhou o rosto de alguém no
fundo do copo.
– Talvez haja o que se fazer. Continuar lutando, coisa assim – incerto.
– É – acatou.
– A vida não é um mar de rosas – Alex falou.
– Quando muito é de esterco – a senhora confirmou.
– Que situação.
– Pois é.
– E ainda assim as pessoas têm esperanças.
– É, há a ingenuidade, a beleza, essas coisas. Deve ser porque temem perder essas
coisas simples, e qualquer outras que podem vir delas, que ainda se continua vivo.
– Não sei, não sei.
– Você me acha bonita?
– Oi?, não muito.
– Gosto da sua sinceridade. Escute, não quer me comer?
– Acho melhor não.
– Tudo bem – ela sorri –, não faz mal.
– Não sei, não sei – fica repetindo vagamente. – A bexiga tá fazendo efeito. Vou ao
banheiro, me dê dois minutos.
Ela acatou e este foi o aval para que se erguesse, Alex o fez, foi o suficiente para descobrir
os indícios de tontura crescente que quando esteve sentado não pôde perceber, e quase ia
esquecendo-se de pagar. Piscou um pouco os olhos, sentiu as pupilas dilatarem, foi com elas
trêmulas que viu de forma igualmente trêmula o rosto da mulher sorridente a acompanhá-lo os
movimentos, o mínimo que pode fazer foi sorrir de volta e não quer dizer nada com isso.
Arqueou o corpo e rumou sem muitas dificuldades além dos empecilhos transeuntes, assim foi-
se pelos caminhos da extensão do balcão que percorreria entre vultos dançantes, rapazes
engomados, sujeitos caindo pelos cantos, garotas esperançosas, e outras mais vaidades
nossas.
Estava com os pensamentos distantes, a brancura de uma parede estava a sua frente.
Horrivelmente foi o som de uma descarga que o interrompeu, a essa altura ouvia sem gerar
imagens outras vozes masculinas discutindo sobre pernas gostosas e um jeito de não se pagar
a comanda, nada a ser considerado enquanto dão andamento a seus afazeres dentro do
banheiro, que de certa forma atuava como uma concha, assim ele quis definir porque a
imagem de uma concha parece ser simpática a refugiados de dores de cabeça e outras fontes
de mal-estar, o som que atravessa as paredes é quase nulo. Abriu o zíper, mirou no mictório,
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imaginou se quando não estivesse mijando não fosse sair sangue, seria o presságio das
hemorragias que viriam agravando os seus dias, semanas e, se desse alguma sorte, anos
seguintes da sua vida, até que um dia mijasse de vez todo sangue que restou. Sintoma da
visita de tanta puta. E a indiferença o acaba assustando. Até as coisas mais macabras podem
parecer sóbrias quando vistas na forma de sonho distante, como idéia tão abstrata que não
comove, sendo apenas uma dessas gafes estranhas que a imaginação comete à toa e que
pode ser a mais tacanha possível, como imaginar-se por acaso estuprando os filhos ou
estando pondo vidro moído no almoço de dia das mães.
Olha de relance a fileira de homens que se estende em frente à parede, ocupou-se do seu
assunto. Algo lhe fez pensar naquela estória de que certos sujeitos nos banheiros masculinos
ao ocuparem seus respectivos mictórios têm aquele hábito de se curvar para dar uma
espiadela no assunto, se é que foi claro, no assunto dos outros. Pensou se não seria isso
mesmo que faz o rapaz ao lado. É. Achou que encará-lo em contrapartida seria pior, sabe-se lá
o que vai pensar, portanto apenas ergue a cabeça com uma expressão que mistura desdém e
desagrado, pigarreia, coisa assim, tudo para se mostrar que reparou e, ó, meu amigo, basta
com essa sacanagem. Surte efeito, o sujeito apressa um pouco mais a sua saída, quando pôde
virou rapidamente com a cabeça e foi a passos rápidos para o lavabo, se foi, agora estou
menos vulnerável. Alex em seguida arfou, prefere acompanhar com os olhos o safado, só se
tranqüiliza quando ele sai.
– Era o que me faltava – fala como uma confissão despejada, quem esteja perto que ouça.
Chega a imaginar se não foi a conversa de agora há pouco que o tinha fornecido essa
facilidade de expressão. Ou talvez venha da sua depressão.
Por alguma razão que só cabe à simpatia julgar, foi o rapaz que estava do outro lado que
se fez mostrar que ouviu, ouvi, sim, olha de relance para o lado e deixou escapar uma pouca
risada, depois se preocupa em conservar o rosto levantado como antes e continuar a sua
própria mijada. Alex vê o gelo que se coloca por ali borbulhar com um pouco d’água
esguichada quando termina, sacode, sacode, fecha o zíper e partiu, tendo de frear logo após
uns passos ao deparar-se com a pequena fila espalhada pelas pias, por ali tem de esperar
alguns instantes. Enquanto isso ia se entretendo com a familiaridade entre uns quaisquer e as
conversas que a gente deixa escapar. Pouco depois estava enxaguando as mãos e não
pretendia se demorar se não fosse pelas feições familiares que brotam do espelho, que o
encaravam e vão encará-lo sempre que se puser um espelho na frente, tão sonâmbulas e
cercadas por silhuetas pardas de outras tantas desconhecidas, e afinal encarar o próprio rosto
como não sendo nada além de familiar não deve ser sintoma de algo bom. Assim, aí ele já
estava pensando como talvez represente uma profunda insatisfação, um beco-sem-saída, essa
ânsia impotente de variar desse invólucro que o cobria, de separar-se da carne e dos pontos
de vista, o desejo insosso de reencarnar ou de virar-se ao avesso. Simpatizou com o olhar
tranqüilo.
Já tinha passado a porta e pelo corredor, a música já lhe batucava na coerência feito
criança a improvisar um caixote para tirar o som, foi com mais dificuldade que antes que seguiu
tateando e aos tropeços, retorna ao balcão por onde consegue alcançá-lo. Sem querer ou não,
acabou recebendo um esbarrão de alguém que vinha passando e não viu, involuntariamente se
bateu contra a bancada e tem de se debruçar com a pancada leve no estômago, olha de
relance para trás, procura quem tinha sido o responsável, certamente não teria se dado conta
do que fez e continuara o trajeto. Pediu desculpa a quem quase se curvara sobre , mas
aproveita a posição para usufruir a vista panorâmica, constata que Dora não mais estava lá.
Suspirou com um frio que cresce e ele não sabe o que significa, uma singularidade do temor,
sentimento taciturno de ausência e impressão de que as pessoas sempre se vão. Só não
poderá concluir mais de seus pressentimentos porque uma mão pesada lhe pousou no ombro
antes que se levante, é suficiente para que suponha se o sujeito em que se bateu não voltou
para tirar lá umas satisfações, ei, você é o cara que empurrei, por que não caiu?, mas deu-se
de cara com Andriolli, ele já abria e fechava a boca, sua voz apenas insinuava sentidos que
não compreendeu. Oi?, gritava franzindo a testa e apontando ao ouvido. Lá fora!, parece ser
isso que diz, Fabrício!, é o nome que diz, só identificado quando gritado lá pela segunda vez ou
terceira. Retorceu o pescoço com jeito de que não entende mas que espera qualquer coisa, e
não tardou para que puxasse a manga da camisa de Andriolli e o usasse para passar pela
multidão, vão rumo a um lugar sossegado, então olhou para os lados e identificou estar nas
periferias do salão. Perde-se um pouco, aproveita para dançar, olha tudo muito por alto, andar
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de cima, vultos etc etc, nada pode escapar de sua atenção, ferroadas que dá na realidade a fim
de extrair a qualquer coisa, nada pode escapar de... e é puxado, que se distraía.
– O que foi? – Alex, dessa vez mais alto que o necessário.
– Fabrício arranjou encrenca com uns caras.
– Que caras?
– Eu sei lá.
– Foi por causa das garotas.
– Sim, tem algo a ver com uma coisa dessas – ele virou-se e acatou.
– Enquanto os machos afirmam sua força e território, ou elas estão abandonadas ou
aproveitando a disputa. Talvez eu devesse me encarregar delas, hein?
– Talvez, uma outra hora, nós dois.
– Combinado, será nosso segredo.
E fez-se a confusão. É que nesse momento, deslocado do fluxo comum do tempo, algo
estranhamente especial ocorreu, é exatamente quando sente uma pontada estranha entre seus
olhos, não sabe bem se vem a ser um espasmo ou descarga de calor que fizesse trepidar as
junções invisíveis de seus ossos e o terremoto em pouco tempo se espalhasse por toda a
cabeça, e isso o fez sorrir. De alguma forma sentiu-se internamente irrigado, jorrava, o sangue
corria melhor, tal como o lacre entre seu toque e suas idéias era muito mais diáfano. Podia
esticar a mão e compor letras de canções, versos de poesia, perceber as coisas quase num
delírio transcendente. A verdade, junto de tantas outras loucuras, era uma mulher lívida se
contorcendo sensualmente na cama, estava ali a sua espera, ia tomá-la, tinha seu próprio
harém. Com essa miragem por um instante mínimo se esquecia de quem ele era, isto é, sua
história e seus rumos. O homem no presente é tudo que se tem, mas somente em seu
presente é imediatamente nada. Foi inebriante perceber como as memórias e as vontades
voltavam, umas sobre as outras, numa torrente infreável que parecia resgatar a sua vida de um
contato quase completo com a escuridão, um fogo que se ergue dentro da pressão odiosa de
um hematoma, dentro do desejo nos músculos a ponto de torcê-los e fazer um nó. Acerta,
acerta, grita um eco de gargalhada dentro de si. Lembrou-se, sem causa alguma para lembrar-
se, deixando levar-se unicamente por sua readmissão de si mesmo, de quando esteve no
parapeito do passadiço, Sabrina é uma certeza de que se pode amar, mas isso não é cura
alguma de solidão, e essas coisas, por mais que pareçam criar ponte entre a gente, não são
exatamente elas que o fazem, e sim o mais cru e suado esforço, a mais esmiuçada
compreensão, sendo todo o resto no máximo fontes para inspiração, mas que de toda forma
mostra-se ardil quando nos cega, tal qual a fé pode tornar os homens aparentemente melhores
mas torna suas cabeças um berço que nina temores e deficiência. Dessa maneira ele não
queria ver coisas que poderiam não existir. Meu caro, nada além da coincidência a tinha levado
até ali, nada além do acaso e vontade é a forja de escolhas futuras. Sabrina se apagou para
sempre. Em seguida, lembrou-se quando vinha caminhando pelo estacionamento. O silêncio
lhe dava conforto. Aquele vazio de poucas pessoas, o horizonte que, se olhasse com bastante
atenção, notaria ser a baía toda escura lá ao longe que estava camuflada, mas soprava um
vento gelado de não dizer nada, e não dizer nada às vezes é bom. E a briga.
Lembrou quando viu a frente as formas claras de Fabrício e Igor, seus reconhecíveis
comparsas cercados e coagidos pela imagem de seis estranhos, é mesmo, agora vai
lembrando-se que talvez tenha sido a sua imagem junta a daqueles tais Victor e Andriolli que
ocasionaram no estopim que fez Igor anteceder-se e pular com um soco no rosto de um dos
inimigos, e aí foi inevitável conter o estouro de vozes agora em sua cabeça. Vocês querem isso
mesmo, é?, dizia um som de origem desconhecida mas que ecoava. Sem briga, sem briga,
dizia outra, que foi cortada brutalmente pela imagem relâmpago de Fabrício chocando-se
contra a porta de um carro com um homem forte metendo a cabeça em seu peito e batendo
com os braços nas costas. O som seco e breve dos ossos se chocando, o atrito desordenado
das roupas, os automóveis naquele canto que recebiam trombadas, os passos que
sapateavam em danças brocas. Lembrou quando partiu em corrida, e a cabeça lhe doía
quando ia sacudindo, e julgou estar bem próximo de ter um ataque epilético, ainda assim
mordeu a própria boca e quase gargalhou. Lembrou da cotovelada que acertou a nuca de um
estranho, é, formigou todo seu braço no instante seguinte, a sensação de ver aquele cara se
curvando era mais do que perfeita. Imagina que está espancando o tal do Frederico.
Toma, seu filho-da-puta, por achar que pode sair por aí fazendo as coisas conforme
desejar e ignorando as reações dos outros, quer saber?, vai, rouba a filha dos outros, continue
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achando que pode, pois é, estou aqui para mostrar que não é bem assim, posso quebrar meus
ossos e sair completamente contundido, mas faço você sangrar, te mostro o caminho do
inferno, que eu já conheci. Lembrou de dar de costas num carro e contundir alguma vértebra,
certamente a cara que vem daí não é das melhores, o desconhecido da vez tenta imobilizá-lo
segurando os braços, em contrapartida movia o joelho fracamente como podia para acertá-lo,
mas só consegue afetá-lo quando conseguiu dar com a ponta do pé num dos joelhos,
imediatamente o tal se curvou. Mas uma sombra pulou de lá perto e partiu-lhe a mão no rosto,
tudo se anestesiou e sacudiu, em seguida recebeu mais pancadas que espalhavam fraquezas
no corpo todo. Acerta ele, acerta o veado!, gritava a voz que vinha sabe-se lá de onde e na
verdade não era exatamente sábia já que encorajava a todos, via o céu rodando com a
perspectiva de uma formiga, então girou a mão como um martelo até acertar a barriga de
alguém próximo, então escorregou apoiado pelo carro por alguns instantes até jogar-se contra
o corpo do rapaz mais a frente, chocando-se noutro carro, mesmo sem ser atingido
diretamente lhe doeu. Onde estou?, para onde vou?, alguém certa vez lhe disse que se
acostumasse a sempre fazer essas perguntas acordaria dos sonhos, porque as repetiria dentro
deles caso viesse a ter um pesadelo, se lembrava, e tentava, mas nunca funcionou. Foi quando
recebeu um pontapé nas costelas, que conseguiu segurar um quase-nada com os braços, em
seguida vem um soco na boca do estômago quando, ao se curvar, apagou por uns instantes.
Sentiu a pontada estranha nos olhos, e o sangue escorria para fazê-lo funcionar muito melhor.
Deglutiu o sangue de bom gosto, mas enojado pela quantidade que descia.
Tudo rodou mais ainda, para que estou fazendo?, se inquiriu novamente quando os
pensamentos riam, os pés lhe faltaram no chão. Sentiu a brisa percorrer-lhe o corpo como se
caísse, mas só eram suas costas que se inclinavam por alguns segundos, logo vem o choque
entre elas e o capô. Estava preso pela garganta enquanto estapeava e chutava para se
defender. Um jato de sangue com cor forte pintou belamente o cenário fosco que podia ver dali,
passando pelas costas do sanguinário que o prendia. Acompanhando o jato seguiu um rapaz
cambaleando que logo cairia pelas mãos do gordo fortíssimo. Nessa hora, enquanto chutava
as costelas de seu algoz, que por enquanto agüentava com esforço, e ele rosnava reclamando
do pouco ar entrar, com os olhos embrulhando notou silhuetas taciturnas chegando. Elas já
vinham lá de longe, mas gradativamente a proximidade não deixava se enganar, de fato
vinham se aproximando e tornando-se reais. Até a hora dos resmungos. – Ei, ei, que é isso?,
que é isso? Esse é meu carro!, cuidado com o carro!, vão amassar com a droga do carro!, olha
aí, oh, olha aí! – grita, grita e grita. Paciência, amigão, pensou, eu realmente gostaria de sair
daqui de cima mas aparentemente meus esforços já estão bastante empenhados nisso, e aí,
alguma sugestão?, qualquer idéia é bem vinda, não se acanhe, vamos lá.
Consegue apoiar as pernas no peito do grandalhão que o segura, empurra com todas as
forças que podia e não foi inútil, ele o largou jogado e cambaleando para trás, e acontece que
acabou por se chocar com os rapazes inocentes, mas é melhor não pensar assim, que de
culpado todo mundo tem um pouco, que vinham em busca do carro deles, e têm de esperar,
que as coisas esporadicamente assumem utilidades diferentes, e agora esse tal do carro é um
campo de batalha, coitados dos que só querem usar o estacionamento. O imbecil virou-se
violentamente, quase desferiu um golpe, aquilo certamente seria confundido com um. Os
sujeitos recém-chegados o foram empurrando para trás, tudo assim, bem desajeitado mesmo,
mas o importante é que o afastem, devem é estar com medo de eles mesmos receberem. Alex
não sabe se respira ou se ri, acabou pigarreando enquanto arranhava a própria garganta. O tal
Fabrício, que não mais é razão de nada, está estirado no chão, seu rosto era uma poça de
sangue fresco, desses que brilham ao luar e cheiram à distância, e se aquilo é um movimento,
é para agonizar. Aqueles que não tinham nada a ver só foram mesmo se misturar na luta
quando outro dos desconhecidos achou que aqueles três estivessem agredindo o companheiro
ao empurrá-lo, foi digno de pena ver como um deles foi acertado covardemente na cabeça por
uma coronhada. Sério, o rapaz chegou a cambalear trocando as pernas e piscando os olhos,
lutando com a sensação que lhe dizia ser melhor desmaiar, a cabeça está pesando, foi quando
o reconheceu. Era ele aquele mesmo camarada que riu gentilmente do comentário no
banheiro, e nunca, sabe-se muito claramente, foi do interesse dele nem dos amigos defender
alguns dos lados, provavelmente só se protegerem e eventualmente ao carro, a essa altura já
com seus amassados e de brinde uns arranhões, uma marca de corpo e na pior das
alternativas o vidro todo trincado, como se acertado por um taco, é o que imagina, não é para
fazer sentido. Os canalhas agora estão em desvantagem, tanto pela inclinação dos novos
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envolvidos que por azar foram agredidos pelo grupo de lá, tanto porque o gordo voraz quebrou
o nariz de um e conseqüentemente o nocauteia, fica para a próxima, amigo.
Estava um pouco tonto quando gritaram algumas coisas, umas ameaças quaisquer, uns
palavrões, suas bichas, maricas e não sei o quê, vocês não têm bolas, mas a circunstância
dizia ser melhor que os bandidos levassem consigo seus caídos. Alex escorregou pelo capô,
teve de auxiliar a testa com a mão para domar a vista, se deixasse ela contornaria todas as
formas, menos das coisas que devia. Teve um espasmo quando o vulto branco passou
rapidamente a sua frente, racionalizou rápido que era mais uma investida e cruzou o rosto nos
braços, mas era só aquele Victor que passava, menos machucado ele se jogava de joelhos
para atender o tal Fabrício, que teve o que devia.
– Minha cabeça – murmurou vagamente a voz como de quem não sabe ao certo o que
falar. O rapaz de mais cedo se apoiou no capô, constatou haver sangue nos dedos depois de
passá-los quase atrás da cabeça.
E não presta muita atenção em nada por muitos instantes, deduz que o álcool tenha
acabado por ajudar, sente-se estranho, mas isso não quer dizer que sinta muita coisa. Com a
atenção vaga esteve olhando-os os rostos, vendo por exemplo os que iam ao amparo do
companheiro ferido, um outro deles também foi atingido, mas este foi no canto dos lábios,
ninguém irá relevar uma coisa dessa. Falando em lábios, sentia os seus inchados, supunha
estarem todos cortados e escorrendo sangue, talvez não tanto como estaria do seu supercílio,
que devia ser tanto que escalda um de seus olhos de forma que parecia tê-lo mergulhado
numa bacia cheia de plasma, enxerga tudo vermelho. Sabia estar começando a tontear, mais
soube do que a sentiu, não é lá uma sensação decisiva, uma das quais havia de se recordar
pelo resto da vida, ainda assim era nova e isso bastava. A noite estava mesmo sendo boa.
Sentou-se no capô como quem cambaleia para trás e resolve se apoiar, então voltou sua
atenção para o estranho ao lado e lhe falou. – Você está bem?
– Um pouco tonto, mas só deve ter inchado – torceu o pescoço com rosto amargo.
– Eu não estou. Além de tonto acho que vou desmaiar a qualquer instante. Devo precisar
de uns pontos na testa – e frustrou-se ao sacar o maço de cigarros do bolso e encontrá-lo
vazio.
– Essa é uma coincidência um pouco ruim – falou o rapaz, como quem fala de
desimportâncias, e sorria, só pareceu reconhecê-lo agora.
– O que eles queriam? – perguntou um dos estranhos, ao qual fingiu não ter ouvido porque
está com muita preguiça.
O que considerou na verdade foi a disposição do rapaz, esse mesmo, até então incógnito,
tendo notado a sua decepção de há pouco, o estendendo a sua própria carteira cheia de
cigarros para que pegasse um. Mesmo com a face transtornada acreditou olhá-lo da forma
mais cordial de todas. Os dois sentaram-se apoiados naquele capô, juntos silenciaram e
observaram. Restava muito até que todos estivessem recompostos, o tempo que passasse não
faria mais diferença.
Hoje ele conhecia André.

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Pensava quantas são as pessoas que vêm de passagem por nossas vidas, das quais
tantas saem sem serem experimentadas. Não é que se possa realmente prová-las e nem elas
a si, e entre a angústia e o tempo não resta muito a se fazer, a não ser esquecê-las a todas e
torná-las iguais no esquecimento, então suspirar. Imaginava se poderia apontar, é, assim,
mesmo superficialmente, sem muita pretensão ou crédito, que não fosse nada mais que o
acaso de mover o dedo, uma daquelas pessoas quaisquer andando pela rua, uma que possa
lhe servir de herói mitológico a pisotear subjugando a cabeça de medusa, que seria a sua
própria, e preferindo não ser muito metafórico pensou nessa pessoa como lhe sendo
simplesmente aquela que um dia o desnudaria, que lhe faria realizado pela profunda parceria.
Em algum canto, alguma psicologia iluminada, ou de terapeuta charmosa ou mesmo de
circunstância atordoante haveria de decifrar-lhe, olhá-lo sem se empedrar, e descobriria que
isso estaria ocorrendo quando se desse conta de que coisas que outrora não sabia de si
mesmo poderiam vir à tona, o que antes era secreto há de tornar-se por fim revelado, alguém
que o ajudará a perceber as suas entranhas.
Riu na intimidade ao imaginar as possibilidades do que Ana pensará quando ler o bilhete
de hoje, estou trabalhando, volto mais tarde, ao que ainda não pretende voltar desse lugar em
que está, jogado de qualquer modo sobre o banco. É mesmo um bom lugar essa confeitaria,
parece não haver nada quando você vem andando por essas ruas, e quando se dá conta se
abre isso que a princípio não é mais que um buraco na parede que alguém tem de pagar para
possuir, e organizado com o empreendimento não importa de quem, agora é capaz de servir
esse bolo surpreendente, e uma nova garfada.
Um carrilhão de gritos invade a sua falta de devaneios, e a sua falta de devaneios pensa
sobre o conhecido sujeito num capô de carro, mas parece que lá longe tinha havido um
assalto, talvez alguém tenha morrido, alvejado de extermínio ou atropelado, não é de se
estranhar e isso não o importa nem um pouco, nada importa se não imaginar causa para gritos
e pessoas que vêm se dispersando e olhando para trás, tremendo e fugindo do que elas
mesmas não sabem. Ou vai ver estão derrubando por nada umas daquelas esculturas horríveis
com o busto de uns personagens muito importantes para a história e ele não faz idéia de quem
são. Ele não se importa com os bustos, e está feito criança a inquietar-se que brinca de se
debruçar nos limites de qualquer coisa, parapeito, abismo ou balcão, para se olhar o quê
também não se sabe, mas então vigiou o prédio antigo que está a espionar, à essa hora, que
está com preguiça de ver qual é, já a noite se mostra mesmo às desatenções, as janelas
iluminadas parecem de enseada sempre distante, que nunca se alcança e só ali está para se
ver. Então mais uma vez revisa os métodos que vai usar em sua abordagem, que é mesmo de
ousadia demais, provável que destinada a falha, não importa que não acredite nela, basta que
os outros digam que existe, e você não tem um plano b, um plano alfa, você sabe acontecer
uma só vez, e não pode demonstrar nenhuma hesitação dessa, o conteúdo do que vai dizer
pode ser imbecil se houver uma forma interessante, por ter um dilema que ainda não decidiu
qual é, é que está com a testa enrugada de como se pensando algo muito importante. Os
ponteiros que não vê podem continuar passando, e você vai adiá-los. Espera estar em casa
antes do temporal, e como ação gosta de desconectar-se de pensamentos, feito transar
pensando no seriado da tevê ou no relatório do chefe, apenas não pense em coisas
assexuadas, por favor, então ele vai deslizando os dedinhos pelo seu envelope de
encomendas.
Então esteve caminhando à medida que pigarreava, não o inverso, que é de desagrado do
cheiro de fritura ou nervosismo sobre tudo, e o ar carregado lhe arde nos olhos e por isso ou
pelo clima estava vendo a tudo mormaço, desde os paralelepípedos cinzentos e sem vida, ou
os bancos de mendicância de praça cercada de copas escuras das árvores em caminhos
antipáticos, até as propagandas das conquistas do nosso metrô, mas não é para o metrô que
vai e anonimamente se mete na descarga de gente. Consegue via seleção natural roubar
espaço nas fileiras à margem da calçada, que é para aguardar a vez de atravessar a rua. Aí
vem o bolo de gente a empurrá-lo para frente e parecem tentar matá-lo, os mais apressados
desembestam pela rua a esquivar-se dos carros que reclamam, buzina, buzina, por pouco nem
um pouco de sangue. E vai ser esperto e aproveitar o engarrafamento de gritos e monóxido de
carbono e motores roncando para passar por entre os carros e atravessar.
É agora, mas é dramático um agora considerando que precisaria de coragem a atravessar
a rua e passar a porta, foi aberta pelo cordial porteiro que demonstra estar com os
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pensamentos distantes e ainda assim o deseja uma boa noite, senhor, antes fosse cego para
não olhar a ninguém.
Há pouco deixou a porta que por si só se fechará, afastou com as mãos a cortina que
separa e protege o recinto onde ingressa do de antes, deu-se com a inconfundível meia-luz dos
restaurantes, as mesas dispostas a preservar a discrição familiar. Pronto, devia estar por ali,
tinha o nome, sabia do rosto, não precisa de mais endereços.
O rapaz magro e de cabelos curtos e penteados para trás já está sobre o palco acomodado
no piano. É inevitável vê-lo quando os feixes da ribalta são praticamente toda luz do lugar,
clube de jazz ou coisa assim. E então o acaso toma conta e dirige seu olhar. Sentiu-se bem
porque as pessoas sentem-se assim quando vêem as coisas pelas quais conspiraram
funcionando. Agora não restava mais muito a se fazer, se pôs a caminhar entre as mesas
quase vazias até estar de frente àquela, pensa de si mesmo uma sombra incômoda que
precisa acontecer. O que não era de se espantar, a julgar pela reação do senhor, o velho que
inicialmente virou-se excitado pela rudeza de dispensar a um garçom dos chatos, e acaba se
vendo atormentado por muito mais que isso. Ele estava se mexendo na cadeira, como ainda
desconfiando dos próprios olhos.
– O senhor precisa de alguma coisa? – perguntou nervosamente o tal senhor do
cavanhaque grisalho, ajeita os óculos sobre o nariz como para averiguar qualquer coisa, mas
não, meu senhor, você de fato não o conhece, nunca se viram antes, e mal sinal, que se deixe
tomar essa iniciativa que agora já lhe foi roubada.
– Poderia me sentar? – arriscou apontando uma qualquer cadeira vazia.
– É um jornalista? – pergunta áspera.
– Não, senhor, vim realmente por conta própria.
– Por conta própria – repetiu.
– Isso.
– Um fã?, o quê? – enervou-se ainda mais.
– Nada disso, senhor, mas ainda sei quem você é, Nicolas Condor, artista, colunista etc.
– Não é de admirar – destilava sua arrogância, amansou por um instante –, mas está
confirmado, sou mesmo eu, rapaz, foi um prazer. Agora eu gostaria de...
– Eu sei, mas se não fosse muito incômodo eu pediria para conversar um pouco.
Tê-lo interrompido pareceu que ia custar-lhe a alma. O velho se calou, podia vê-lo curvar
tanto as juntas das sobrancelhas que pareciam ir de encontro ao nariz, o fulminava com um
olhar agressivo e prepotente que poderia intimidar a quem não viesse preparado.
– Meu amigo, quem raios é você?
– Alex – e estendeu a mão, ao que o homem o cumprimentou forçosamente.
– E?
– Só Alex, nenhuma referência útil além dessa. Também não me conhece, é verdade,
melhor não se preocupar com isso. Não acho que não devam aparecer sujeitos violando de vez
em quando sua privacidade, mesmo que eu pudesse tê-lo apenas reconhecido porque tomava
um drinque ali no bar, olhei pra cá e, veja só, se não é aquele artista do qual os jornais
escrevem, que está na televisão, coisa desse tipo, o senhor sabe como é.
– Ao que parece não foi o caso.
– Não foi. Eu vim aqui especialmente pra pedir um favor.
– Um favor, senhor Alex? – perguntou com tom cético.
– Por favor, sem o senhor – abanou uma mão.
– E qual seria? – continuou.
– Eu espero antes de tudo que o senhor não estranhe.
– Você vai me perdoar, mas só a sua aparição aqui já me é um tantinho estranha – e
sacudiu os gelos dentro do copo da bebida.
O pianista insinuava estar no começo de suas melodias, não só pelas notas consistentes
que agora soam, como pelo fato que este senhor Condor, terminadas suas últimas palavras,
dividiu o olhar entre uma rápida vista ao palco e novamente frisando o adstringente olhar em
Alex, o apressava, e ele supunha se o senhor supunha que ele, tal qual os homens que contém
uma obstinação que nem sempre se vê nesses tais, não estaria disposto a deixá-lo tão
facilmente. Essa concessão não seria uma das quais faria. Teve de silenciar, não foi
exatamente uma necessidade, mas julga que será mais respeitoso, por uns instantes, que
fosse.
– Preciso de uma ajuda.
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– Se não é da imprensa como soube como poderia me encontrar? – o velho se ilumina.
– Um amigo meu é câmera de um telejornal desses, parece que só passa de manhã cedo,
desses que as senhoras de idade vêem. Parece que ele te entrevistou um outro dia, estou
certo? – curvou-se e sacou a carteira de cigarros enquanto fala, já estava puxando um.
– Sem cigarros, por favor – imediatamente o velho Condor interveio –, tenho estado sem
fumar e tenho o direito de não te cheirar.
– Claro, perfeitamente – e guardou de volta.
– Que dizia sobre um amigo? Poderia ser mais específico?
– Talvez o nome venha a ajudar.
– Tenho quase certeza que não.
– Devo arriscar? – dá com os ombros –, as minhas referências estão escassas.
– Anda, anda.
– Marcus, eis o nome.
– Não reconheço, deve ter comparecido a uma coletiva, o sanguessuga inofensivo. No
último mês houve umas duas.
– É, vai ver é mesmo isso. Foi ele quem soube que o senhor costuma freqüentar esse
lugar, isso chegou a mim.
– Por vias ilegítimas, devo mencionar – curvou a cabeça sobre a mesa com um quê de
ameaçador. – Ao contrário do que o senhor possa pensar, não forneço informações dos meus
hábitos, não fico espalhando da minha vida e de dados pessoais para veículo algum, não me
importa qual é ou se é tão desastroso quanto o caso do teu amigo.
– Por favor, não precisa mesmo me chamar de senhor.
– Às vezes o estou fazendo para deixar claro o incômodo.
– Foi o que eu quis dizer...
– Se importa de finalmente ir ao centro da questão?
– Será que enquanto falamos eu não poderia pedir uma bebida?
Em resposta ele bufou ao virar em direção ao palco.
– Faça como bem entender, presumo que não seja por ingenuidade que continue me
assaltando, mas seu jogo não me cansa tanto quanto gostaria.
– É o aval que eu precisava. Mas não se incomode, não irá demorar mais do que o
desagrado faz parecer – pensou se a demonstração racional de sua posição não viria a ser
ainda mais prejudicial a sua imagem, é algo como ser ainda mais perigoso o louco que sabe o
que faz. – Garçom, por favor, me traz o mesmo que o desse senhor, sim? – tratou de intercalar.
– E então?
– Apesar de o senhor não dever nada a mim, da mesma forma que momentaneamente não
devo ao senhor, preciso fazer ainda uma advertência anterior, sim, é tipo uma cláusula, ou o
que for. Eu vim aqui te fazer uma proposta, quanto a essa há duas coisas que posso garantir,
que vai nos beneficiar e que vai te polemizar – essa parte do discurso até que surtiu um bom
efeito, foi bom tê-lo feito, mesmo que a idéia tenha surgido repentinamente.
– Sim, prossiga.
– Para que o que eu vou propor surta efeito, preciso inevitavelmente de seu aparato, não
exatamente o seu, assim, mas de um artista da praça de caráter ideal. Por já te conhecer de
outras circunstâncias eu tive essa oportunidade de poder investigar exatamente a você.
– Investigar? – ele se curvou sobre a cadeira, no seu olhar não está explícito se havia se
ofendido ou coisa próxima, pode não haver mais que desconfiança. – E quanto a meu caráter
ideal – arfou num riso de escárnio –, qual a questão?
– É uma pessoa de quem se espera o inesperado.
– Por que tirou essa conclusão?
– Está sentado com os patrícios, mas é desses que os repugna ou finge repugnar, eles
gostam dessa imagem da ovelha desgarrada, parece estar deslocado.
– Que te faz pensar isso?
– Não sei se é bom, mas algumas pessoas não se acomodam em canto algum, elas nunca
conseguem se encontrar.
– E realmente veio aqui sem saber o que eu diria, correto?, sem saber uma resposta, a
julgar o meu caráter. Mas a resposta parece um pouco óbvia, não?
– Achei que ia reconhecer a minha ousadia.
– Ora – aí sim ele conteve uma risada –, o que você esperava, rapaz? O estereótipo de um
velho excêntrico, um babão interessado em figuras que lhe pareçam peculiares, testando a
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todos que passam por si como se precisasse encontrar um discípulo para saciar o seu ego,
que basta que me despertem o interesse para que esse imbecil se renda?
O garçom veio sem que visse e deixou o drinque sobre a mesa. Olhou levemente por cima
da própria testa e agradeceu com o gesto.
– Sim, é mais ou menos isso o que tenho pensado... – meiosorriu e mirou por instantes o
palco.
– Escute, só sou alguém que zela preciosamente pelos próprios momentos de paz e
solidão. Eu acho que mereço.
– Sim, sim – e tornou a dar mais um gole. Talvez o descaso o tenha enraivado um pouco
mais.
– Se já te ouvi por tanto tempo e nada disse do meu interesse, o que te faz pensar que vou
ouvi-lo ainda mais?, não contradiga a sua opinião sobre meu caráter imprevisível, meu amigo,
demonstrando a segurança de que eu continuarei, a não ser que só queira me dar motivos pra
que eu o tome como mais um bajulador barato.
– Não tenho certeza – melhor erguer a cabeça quando se tem as atenções renovadas –,
desculpe, foi apenas uma idéia que eu teci sobre uma reação possível, acho que nem merece
ser levada a sério. Senhor, não tenho razões para bajulá-lo.
– Sim, espero. E, antes que possa pensar, isso que estou fazendo não é ser prepotente,
mas a gente aprende a filtrar, escute bem e aprenda, evitar os lobos desse mundo.
– Foi bom ter avisado. Esse rapaz toca bem o piano.
– E quanto a você, senhor Alex? – o encarou, parecia estudá-lo.
– Não toco bem piano. Não, estou brincando, eu entendi, bem, ainda não disse se aceitou
ou não minha proposta.
– Mas você não a fez – exclamou com o jeito moderado.
– É verdade. Sei que isso vai parecer ainda um pouco mais estranho, mas preciso que a
aceite no escuro, o máximo de garantias que posso oferecer são as que já dei.
– Assim você extrapola com qualquer limite – ia falar mais.
– Estou falando sério – falou antes que pudesse terminar.
– E afinal, o que você quer?
– Criei algo que destrói tudo que é tido como bom, dou motivos para ninguém querer estar
em paz, e fiz um pouco mais que isso que não sei pôr nas palavras. Gostaria que isso fosse
ouvido.
– Que vem a ser?
– Por acaso veio na forma de um livro.
– É escritor, então é isso?
– Não sei, até hoje não fiz mais que escrever algumas idiotices, e não sei exatamente
porquê. A verdade é que nem tenho muita vocação para isso. Mas gostaria de que desse um
jeito de me colocar no jornal de artes em que trabalha, posso escrever sobre qualquer assunto
que me dêem.
– É isso que me veio pedir, um trabalho?
– Não, essa é a conseqüência agradável. O que eu pedi é que use sua imagem para
publicar o que eu fiz. Pra que o tome pra você, sem ser seu.
– E no que consiste?
– Motivos para que tudo possa vir a ser diferente.
– Não seja vago, se quer alcançar algum resultado aqui, comigo, o mínimo que te peço é a
precisão.
– Acho que eu traduzi a morte para anos de civilização, entre essas mortes está o declínio
das idéias que mais se adoram, paz, liberdade, tudo isso.
– Não me parece surpreendente, alguns filósofos já fizeram isso e essa tem sido a
preocupação de alguns outros da nossa atualidade.
– Esse é um manual prático de uma nova forma de se viver – parecia repetir a mesma
coisa com tranqüilidade e certeza como das quais se reflete muito para se concluir.
– Então agora te pergunto, por que disse que eu teria de aceitar nas escuras? – ergueu a
cabeça como se fazendo uma pergunta inteligentíssima.
– Ainda estou sendo vago para que o senhor possas ter uma pálida idéia do que é. Não
seria justo eu te mostrar havendo a possibilidade de me contrariar. Seria triste demais para
mim. Vai lá, entende, seria o meu fim, um risco dos que não se correm.

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– Agora você não está sendo ousado – riso –, mas iludindo-se, garoto. Injusto é o que você
me propõe, as coisas andam bem diferentes desse ritmo que seria conveniente a você.
– Sim, o senhor teria de se arriscar.
– Com quais garantias?, a sua palavra?
– As que eu já dei, o que você ganharia é óbvio, desde estímulo artístico – falou sem muita
certeza –, até as oportunidades de melhoria de vida, enriquecer, não sei, é isso pelo que as
pessoas prezam e para isso se usam de meios chulos ou não. Esse me parece bem autêntico.
– É?, eu estaria ganhando, hum? – o velho falou em tom de disciplina.
– Primeiro estaria me fazendo um favor, depois estaria promovendo seu trabalho. Corrija
se eu estou errado, o artista, nesse caso é você, deseja o reconhecimento.
– Do público que o interesse, ao menos.
– Sim, mas pra isso precisa dos meios de comunicação a seu favor, coisa assim.
– É, naturalmente, ainda que isso sempre tenha lá suas tantas controvérsias.
– Eu te ofereço essa oportunidade.
– Como tem certeza – se curva na mesa – de que conseguirá isso para nós?
– Não é difícil garantir, as coisas polêmicas conseguem fácil seu lugar entre as outras. Só é
preciso que tenha – e pensa uns instantes – essa base, um impulso, que o lance e possa
garantir que torne-se autônomo, e isso o tempo vai nos mostrar.
– É isso?, uma polêmica hipócrita? Que entrará em circulação e depois será ignorada,
como as tantas?
– Por mais que pareça não é completamente assim que acontece – Alex sorriu, que essas
palavras o despertaram a reação de algum pensamento tão profundo quanto antigo –, ela fica
na alma das pessoas, é engolida de forma a fazer parte da sua história, desce para o caroço.
– Não precisa ensinar-me sobre isso, garoto. Eu sei o que acontece com essas coisas,
tenho idade suficiente para ter visto o bastante delas, são enterradas pela inércia e
adormecidas. As palmas se apagam, no final das contas não resta mais nada. São enfeites do
ócio diário, logo se convertem em utopias ou subalternas, enfeites sem vida na menção de
qualquer um do futuro, e nós já teremos morrido, você já terá morrido.
– É que talvez a verdade seja dura demais.
– O que quis dizer com isso?
– Pense o seguinte, traduzi coisas sobre a verdade, o que quer que isso signifique, livre de
abstrações. Ao mesmo tempo em que sei estar falando a verdade, sei que aquilo não é
exatamente o melhor para nosso bem-estar, conseguiu perceber o ponto?
– Só a intenção, não o objeto. Ainda é muito vago.
– Imagine que eu dou métodos práticos para o homem ser melhor do que é, sendo que
isso significa dispor inteiramente de suas qualidades e da... iluminação sobre ele mesmo. Sim.
Eu quero descobrir se somos do jeito que somos hoje por falta de escolha inteligente ou porque
já estamos no caminho certo do que pode nos ser melhor.
– Desculpe, para você pode fazer sentido, para mim é falácia. É bem melhor que mo diga.
– Então aceita? – o piano soou numa nota grave.
– Aceito, certo, tem minha palavra – pareceu tremer um pouco no tom de voz quando
apertou o próprio copo, mas as palavras estiveram claras e límpidas. Aquilo soou lindamente.
Foi aí que quase que por reflexo Alex prensou sobre a mesa, firmemente com a palma da
mão, a pasta que esteve carregando consigo. Condor a olha com semblante de quem não
entende além do que se vêem os olhos.
– Pode abrir, está aí dentro – Alex tremeu um pouco as costas ao retorná-la sobre o
respaldo da cadeira, gesticulou com a mão. Tentou estar demonstrando um pouco de
segurança, ele mesmo considerou que não tinha sido tão bem sucedido.
Não foi preciso mais que uma passada de dedos do senhor, assim ele se adiantou para
que o envelope tenha sido rasgado em suas bordas e agora esteja arreganhado. O velho,
esboçando um ar grave onde não se lia mais profundidades, o tomou pelas mãos e o debruçou
verticalmente, deixou dessa forma que o seu preenchimento deslizasse para fora. Foi aí que
aquele pedaço conjunto de papel desceu, era claramente um livro encadernado como o
permitia a improvisação, era grosso não só pela textura, mas dispunha de suas muitas folhas, e
na capa toscamente preta e com as letras num branco forte, as únicas palavras que se liam
eram o título, O retorno à escuridão.
– É isso? – perguntou Condor.

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Como assim, se é isso?, é como se lhe escancarasse quase sem preliminares a alma,
falasse das coisas mais íntimas pelas quais com grande dificuldade é que o pensamento foi
capaz de descer, rastejou e mendigou por alguma inspiração, como se falasse das formulações
mais inteligentes que é capaz de ter, e minuciosamente articuladas para que não faltasse em
aspecto nenhum a pormenor coerência ou verdade que fosse, para que houvesse o mínimo de
pedantismo e o máximo da objetividade, e ele vem com pergunta simples como essa,
sintetizando todo o conteúdo daquelas páginas impressas, só deus sabe o trabalho que teve
até para imprimi-las, a julgar pela capa? O primeiro homicida de fato teve suas razões, não um
osso pré-histórico roubado, mas um desdém matador. Mas calma, ele se diz. De repente você
se enganou com as impressões, é isso, foi só um equívoco, você realizou mal, e isso é tudo.
Olha só, ele já está olhando com outro aspecto para o livro posto sobre a mesa, agora já há um
certo interesse, nem que seja só um pouquinho de curiosidade, ao menos é o que parece ter
sido despertado, não é só por gentileza que ele vai folheá-lo daqui a pouco. Tudo bem, as
coisas vão regressando aos poucos ao seu ritmo normal.
– Do que se trata? Objetivamente – perguntou ao folhear, talvez a partir da resposta ele
fosse procurar nas primeiras páginas algum excerto compatível.
– De como pode começar a haver gente livre. Por que tentariam uma coisa dessas, e das
possíveis conseqüências dessa iniciativa – se ele lhe perguntasse é isso? novamente, tinha a
certeza de que viraria a mesa por cima de sua cabeça. Era só um senhor de idade metido, o
máximo que faria era conservar o seu orgulho num pedido pouco escandaloso de socorro,
desacreditaria do que estava acontecendo um pouco antes de ser atingido no crânio pelo copo
de vidro, a vingança é sempre plena.
– Parece interessante. Em que consiste a controvérsia? – e foi isso que ele perguntou.
– Na dúvida se o homem quer pagar os preços da sua liberdade. E se ela é assim tão
maravilhosa.
– É um anarquismo? – ergueu as sobrancelhas.
– Não, é claro que não, na anarquia há muita ordem, e uma coisa dessas não pode existir.
– Falo do sentido vulgar, o pejorativo que as pessoas usam.
– Então é a melhor vulgaridade que você já viu – e riu com um tom de prepotência que foi
amargamente convincente. – Não, isso não se baseia na questão clássica, luta de direitos,
exploração e não sei o quê, não é nada disso, é mais humana do que antes, e é isto.
– É uma idade média caótica?, onde não se tinha nem se sabia para onde olhar?
– Talvez – e essa resposta pode ter soado agradável, que ele franze o cenho e anui.
– Vai dizer-me que preciso ler para compreender a idéia?
– Acho que sim.
– “O absoluto em nada há de nos valer, chegou a hora de acabá-lo, assim enxergaremos
muito mais” – abriu numa das páginas iniciais e leu com tom de pergunta, devia indagar se o
trecho não traduzia uma idéia em geral do que viria a encontrar a seguir.
– É, o primeiro passo desse método é amoralizar o sujeito. Aniquilar tudo que ele acredita.
– Método – ainda folheava.
– O retorno à escuridão é um método que propõe retornar ao estado bruto das coisas.
– Para serem livres? – tom de riso, olhou rapidamente quando desgrudou os olhos do livro.
– Não só, ser livre é o primeiro passo. Para o homem ser melhor, coisa com que sonham
essas idéias que ficam adormecidas na gente, é como você falou.
– É?, e como?
– Você lerá – aponta, tremendo –, não se desapontará, não.
– Bem, é uma tese interessante.
– Pois é – interessante?, é isso que ele vem dizer?, certo, era melhor não se apegar muito
aos termos.
– Quer que eu seja o meio para lançá-lo em seu nome – voltou a antiga pauta, agora
fechava o livro.
– Não, em meu nome não.
– Por que não?, ainda essa? O livro não pode ter um autor?
– Não é isso, é por questão que diz respeito unicamente a mim. Eu não posso vincular a
minha imagem a isso de forma a me prender, não sei, eu não acredito em laços autorais, não
sei, está pronto e ponto, e querendo ou não ele sempre me seria uma referência, uma
referência dessas que podem comprometer, não sei, é um presságio, não sei. Não sei o que
seria de mim, eu sou mais que isso, ele também é mais do que eu, se é que me entende,
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somos diferentes, mas também é igual, é quase como um alter-ego, acho que nem isso,
porque é mesmo bastante diferente, já não sei, eu fico confuso, além do quê, quero ter espaço
para as outras coisas, eu quero um emprego, quero ser normal, ou ao menos espaço para não
me arriscar, se é que me entende.
– De qualquer jeito seria muito mais publicidade a você, não é o que quer?, não foi o que
disse?, do artista?
– Não exatamente – e o olhou seriamente, como se tivesse algo a dizer mas não soubesse
pôr em palavras –, esse cara não sou eu.
– Agora começamos a nos entender – sorriu pela primeira vez.
– Então quero fazer o meu pedido secundário, a conseqüência imediata mas muito
necessária – ponderou se não estava sendo excessivamente abusivo, mas prosseguiu.
– O que é, agora? – para simpatia há limites.
– Preciso me mudar para outro lado da cidade, é a culpa de vivermos num lugar tão
grande, tenho meus próprios motivos para tal, mas o que posso dizer é que são questões
pessoais das quais não posso abrir mão.
– Como pretende que eu te consiga ainda isso, rapazinho?
– Com o jornal, não sei – dá de ombros –, um trabalho fixo é importante. Sabe como é,
aquela conversa de que eu quero mudar, ser uma pessoa mais responsável, estabilidades, vai
ver são os sintomas da meia-idade.
– Não posso te garantir isso – rosnou levemente, pobre da simpatia tímida que outrora veio
–, o acordo, olha lá, que já fui muito tolerante em aceitar, diz respeito apenas a arranjar uns
acessos a teu retorno à escuridão, o que devo dizer, não será muito difícil de fazer, tudo bem,
sem problemas, é tranqüilo, no máximo ele encalha e ponto final, para mim isso não faz lá
muita diferença, para o jornal muito menos, não seria o primeiro fiasco. Mas as conseqüências,
ainda mais quando és tu quem as diz, querer que eu as preveja já é um pouco demais – aí o
tom tornou-se duro –, isso porque não digo abusivo, e aí, não acha?
– Antes de tudo eu te pedi um favor.
– Já não o estou fazendo?
– Certo. Pode me dar em outra ocasião uma resposta definitiva, hum?, talvez?
– Depois que eu o ler, somente. Dê-me formas de contato, e eu lhe dou as minhas, o
número do telefone etc. É nosso combinado, e por enquanto é tudo.
– Muito obrigado. Acho que acabou estando mais disposto a fornecer seu tempo do que
parecia, na verdade tomei mais do que eu prometi.
– Acabou fugindo do nosso controle, notei que você também não previa – respondeu, e
voltou-se a apresentação. Tocava uma musica animada.
– Acho que a única coisa que me resta a fazer é me desculpar, agradecer e ir – e sorriu
com sinceridade flamejante. – Essa é a única cópia, foi caro para mim imprimi-la, confiei a
você, o senhor tem uma vida em mãos, por favor, peço cuidado.
– Não tem com que se preocupar. Trato é trato, seja absurdo, ridículo, o que for, e é
mesmo esse o caso, mas está certo. Eu gosto do ridículo. E é porque a assinatura hoje em dia
nada mais vale, se é que algum dia valeu, mas enfim, gosto de me arriscar com a palavra.
Bem, é isso. E já que incomodou, a pedra já atirada, o que tem achado do pianista?
– Não sei, não entendo muito de música.
– Se não tiver outro mecenas para abordar com a mesma conversa fiada, fique aqui e
assista.
– Pensei em comemorar em casa chamando algumas amigas, mas fico e assisto.
– Deixe as comemorações para depois, quando puderem ser mais intensas e serem por
muitas coisas ao mesmo tempo. Você tem mesmo muita coragem, rapaz. Me diga, de onde
você desenterrou essa cara-de-pau?
– É que eu sou muito deprimido e auto-destrutivo.
Além da ribalta o pianista mostra todo seu talento. A verdade é que quando se dedicava a
atenção para tal, os acordes pareciam soar mais intensos, a coisa parecia ter um sentido que
não era de enfeite. Por mais que mantivesse o rosto fixo na direção dos espasmos do homem,
nas suas costas debruçadas sobre as mãos, os dedos rápidos contra as teclas, a energia e o
dinamismo que deviam ser as causas das contorções enigmáticas de seu semblante, para
onde quer que ele olhasse O retorno à escuridão o ofuscava. As palavras atrás da capa
pareciam contidas de berrar. Sabe, esse era um desses acontecimentos que dividem épocas,
como um dia foi a invenção da escrita, a queda romana, as grandes navegações, as
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revoluções burguesas ou a queda do muro, e o pianista não sabe disso, nem ninguém, e o
pianista continuava uma melodia calma, as vozes da platéia comentavam seus assuntos em
burburinhos que o desrespeitam. Como oposições perfeitas à calmaria que lhe inspirava essa
nuvem elegante de fumo que subia saído de bocas certamente nobres, à eloqüência perfeita
que se formava do choque entre o som das cordas e as vozes distantes, fúteis, distraídas nelas
mesmas, só podia visualizar fortemente, quando cerrava as pálpebras e conquistava seu breve
instante de total privacidade, aquelas multidões subindo apinhada pelas escadarias estreitas do
metrô, aquela onda ininterrupta de gente se comprimindo, parecendo sentir frio, parecendo
conter ansiedades, dizendo tudo em tão pouco tempo.
Teve a impressão de que o rosto escuro e penetrante de um vulto fantasmagórico o fitava
enquanto confundia-se com a marcha da multidão. Reconheceu aquele olhar embaçado que
parecia comunicativo, parecia tentar dizer-lhe alguma coisa, mas se a vida toda dedicasse para
que tentasse compreendê-lo, a vida inteira seguiria desperdiçando. O outro sumiu mais uma
vez, não poderia dizer quando retornaria. Agora só via a gente seguindo em direção ao escuro,
àquela concepção mortiça que tinha de vida, a um futuro que o problema não era exatamente
não saber como seria, mas supor que não havia. Do piano soou um arpejo funéreo. Abriu os
olhos, as poucas luzes que com eles fechados via já eram todas ilusórias. Se foi assim a noite,
e a vida seguia das mesmas formas que sempre. E tudo está indo mudar.

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A tela do computador flamulava à frente com algumas poucas linhas cheias de erro. Não
conseguia ir além disso, as atenções estavam escassas, as poucas restantes desperdiçava
com nada. Independente do caminho que venha a ser tomado, caminho qualquer que em
diversas ocasiões futuras ainda caberá a ele mesmo conhecer, e independente das suas
oscilações temporais, nas quais teve certas circunstâncias valiosas vivenciadas e, como é
próprio da lembrança, ter tornado-as tangíveis a compor a verossimilhança de seu caráter e do
espírito dentro da força centrípeta de seu eu desconhecido, então, independente do caminho
que venha a adotar e dos caminhos que possam se abrir para ele, a única certeza que se pode
ter é que, em certo momento de sua história, ele se encontrará gravitando em torno do
acontecimento naquela rua que esteve após partir do Schneider, quando disse a si mesmo
que, se quisesse sobreviver, condição talvez um pouco exagerada, devia retornar à escuridão.
Como se sabe, esse processo do retorno, diante de sua procedência mais básica, pode ser
brevemente descrito como revolução e destrinche da memória, da imaginação e de toda arte
de forças ocultas que se carrega na psique, independentemente do tempo em que se situe, e
imediatamente tendo de perceber que todos os tempos da existência devem ser
compreendidos porque estão todos nesse tempo eterno, nesse presente momento que é feito
da visão dos vários demais. Por isso conclui que o presente é mais extenso do que parece.
Como dito em outra ocasião, sem o passado ele se torna algo vazio, sombrio e incerto. O
futuro ele sempre sente que não terá. Isso define quem ele é.
A intenção até agora era falar sobre a eficiência no uso de verbas públicas para
construções de monumentos, o título é arte empregando gente. A verdade é que... selecionou
todas as palavras que restam, hesitou um quase nada e as apagou. Era isso, estava acabado,
ele era um cara acabado, não conseguia mais, não podia articular nada que não fosse de
algum jeito referente a hoje mais cedo, no Schneider. Digitou a seqüência de letras sem
sentido, o barulho das teclas parece fascinante. Reclinou a tela do computador, deu uma
espiadela além dela. Teve certeza, ela tinha passado de novo como quem não quer nada, mas
ele sabia, o estava vigiando. Sempre estava arranjando um pretexto para espionar, certamente
a essa altura já teria visto que ele não progredia e já estaria associando coisa com coisa, em
pouco tempo viria perguntar e aí, tudo bem?, você me parece um pouco diferente hoje, e ele
diria aquele tudo bem bastante vacilante, em seguida por mais que tentasse desconversar não
conseguiria, e ela o espremeria com todas artimanhas que pudesse ter em mãos, não pararia
enquanto não conseguisse arrancar alguma coisa que lhe tirasse também a paz. Ai, pensa, as
mulheres de minha vida. O barulho da televisão baixinha a não ser assistida por ninguém já faz
algum tempo que o deixa afoito.
Carla já está de novo à mesa e lia alguma coisa, que seria?, estava com as pernas
cruzadas, quase!, dessa vez quase foi ele que se mostrou bisbilhotando. Tratou de olhar para o
monitor, estão lá os muitos as preenchendo umas duas linhas, ficou tempo demais com o dedo
preso na tecla. E a mulher, veja, ela ajeita os óculos, certamente não conseguia se concentrar,
era praxe desses gestos pequenos, veja só, puxando o brinco na orelha assim, remexendo os
dedos por entre os cabelos curtos, parecem uma meia-lua em sua cabeça, olha. Cuidado, ela
moveu a cadeira de novo. Pare. Concentre-se nos seus próprios afazeres, Alex, que ainda são
muitos, mas o que é isso, até que tem tempo, não se afobe mais do que precisa, reconsidere,
fale sobre alguma amenidade, algo que possa se desenvolver espirituosamente e com
facilidade, pense em algo melhor, procure bem, que talvez já te esteja na ponta da língua, vai
lá. E só lhe vinha na mente a imagem daquela lona vermelha, essa expressão que por
instantes ocupou toda sua imaginação, e ela flamulava como se viesse a despencar e fosse
envolver ao mundo todo, as cortinas daquele teatro são inconfundíveis, sempre abertas porque
é sempre dia da encenação de um episódio, tudo que for crônica de si mesmo. Ver vermelho
assim é como afundar-se uma vez mais em piscina de sangue. Levantaria-se, mas os olhos
ainda estariam impregnados por uma viscosidade entranhosa, com o tempo seria apenas com
esses óculos, o de vísceras e coisas apodrecendo, que poderia enxergar o resto do mundo.
Teve um espasmo nos dedos e começou a escrever. A sociedade se reunia mais uma vez,
como sempre permeava entre a gente o clima do mistério, o segredo não nos oprimia, ele
desperta algo de emocionante, eu podia ver no rosto de alguns a vontade afoita de sorrir. No
início éramos mesmo muito poucos, tudo que falávamos parecia se omitir logo quando saindo
da boca, mas com o tempo... cuidado, homem, aí vem Carla voltando.

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É, e vem trazendo um copo d’água na mão, mas ele sabe que isso é só pretexto para que
ela se pusesse a caminhar e aliviasse o nervosismo da curiosidade, até voltar e se pôr
novamente no posto da espionagem. Virou sonoramente a folha da revista, sentada ela
balançava as perninhas, agora parecia tão entretida com seus próprios assuntos que o faz
duvidar se volta e meia ela já chegou a perder um pouco de tempo com ele, mas isso tudo é
truque, a incerteza do engano é a impressão que ela quer instaurar, é mais bem treinada do
que parecia. Escreveu um pouco mais. Todas as vezes que hesitei, André agia como se o que
eu temesse fosse ridículo, mas ele mostra essas coisas com tanta naturalidade que me
convence, é tão simples que eu passo a duvidar de mim mesmo. Sempre tem um rapaz que
manda, não precisa ser oficialmente, mas sempre tem aquele sujeito que inspira mais
confiança, pelo visto ele é esse cara. Ainda bem, porque prefiro ser o cara chato... minha
nossa, agora parecia que ela vinha para o sofá, ela vem andando mesmo, teve de selecionar e
apagar tudo, sorte que consegue fazê-lo a tempo, antes que ela possa perguntar que raios
pensa estar fazendo com esse ar de seriedade e mistério que ela sabe muito bem ser inútil. Ela
rouba o conforto do espaço de suas pernas esticadas, porque pensa ter o direito de vir se
sentando, e você, mesmo que resmungue, a aceita, talvez porque goste dessa camisola que
ela está usando, fica bonitinha, agora está se curvando para alcançar a mesinha, dela pegou
algo. É, tem a enojada e infalível certeza do que era quando começou a aumentar o som da
televisão, aí imediatamente pensa em esbravejar, gritaria ei!, não está vendo que eu só quero
um pouco de concentração?, estou trabalhando, que cretinice é essa de me ignorar? Parece
mesmo que você quer chamar atenção, pode ser algum tipo de carência, eu não sei, mas não
sou seu terapeuta e nem padre para ouvir confissões, dê o fora, tudo o que eu quero é
desfrutar dos meus remorsos, idéias, desesperanças etc. Bem, esse discurso chamaria
atenção demais, é melhor que deixe-o para lá.
Além do quê, ganhou sua deixa, aí fingiu salvar no computador um documento, fingir
porque está vazio, e suspirando como de alívio gratificante, como ah, finalmente acabei esse
longuíssimo trabalho, fecha o computador de colo e também finge se permitir relaxar. Franziu
as bochechas quando a olhou, era como se dissesse, olha, você está aí, nem tinha te visto,
olá!, e ela retribui o sorriso que não quer dizer muita coisa. É quando ele foi iluminado pela
idéia de que se conduzisse com naturalidade a conversa, se tudo não ficaria bem.
– Chegou mais cedo em casa? – perguntou, esticou os pés para o chão.
– Às seis. Você passou o dia fora – e daí?, ele certamente era o primeiro a saber disso, e
de qualquer jeito não perguntou nada. Você, mocinha, não está sendo nada esperta.
E ele pensa rapidamente nas possibilidades do que dizer. É claro que simplesmente não
comentar soaria estranho, talvez não para ela, mas para si mesmo, o que já basta para que
não durma essa noite, travado pela certeza do deslize, então sente-se na obrigação de
defender-se sem antes ter sido atacado. Ia falar que foi pegar o dinheiro que ficou de receber,
mas melhor não, essas mentiras que envolvem coisas substanciais não só têm as pernas
curtas, são capengas de nascença. Pensou em falar que estava com aqueles seus amigos,
esse pessoal, assim não estaria mentindo, ainda que não sejam seus amigos, mas pode incitá-
la a curiosidade de saber o que o levou a vê-los durante o dia, ou simplesmente perguntaria
por quê?, mesmo sem supor nada, seria uma dessas perguntas inocentes, mas isso o faria ter
de ainda inventar ainda mais, até a hora de meter os pés pelas mãos. Aí, aproveitando a idéia
de ser o mais geral possível, falou rapidamente.
– Fui receber umas instruções no prédio do trabalho – levantou as sobrancelhas e falou
pausadamente, como tratam as pessoas das coisas quotidianas.
– Certo – até que ela reagiu bem, toda essa articulação para nada, nem precisava ser
convencida, nunca esteve realmente interessada. – Viu o que passou na televisão?
Antes que pudesse com toda sua lucidez dar-se conta do motivo, imediatamente já subia-
lhe na espinha um arrepio, aquela mesma sensação desagradável que parece dar a parecer
que toda consistência que nos resta vai amolecer e nos trair, vai fazer com que caiamos tortos
e desmilingüidos. Se ficou pálido nem achou modos de disfarçar, a única coisa que vinha na
cabeça era, que merda de destino, acharam o bendito cadáver da mulher, a essa hora já o
estarão exibindo nos noticiários. E essa Carla é astuta, sabe-se lá como, mas devia ter dado
um jeito, alguma maneira, depois de alguma investigação, é claro que ela viu e associou coisa
com coisa, sabe-se lá como e sabe-se lá o que se tem a associar, mas isso não importa,
pronto, nem precisaria temer mais pela imprevisibilidade de alguém dos de dentro, agora que

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estava fora já estaria tudo acabado. – O quê? – só pode murmurar com um tom baixo e sem
vida.
– Aquela história do programa de reabilitação das periferias que deu nos últimos dias.
Alguns moradores dizem que estão sendo expulsos porque a prefeitura vai derrubar suas
casas, coisa assim. Já estão escandalizando um pouco demais, não acha?
O susto foi embora tão rápido que agora só resta a sensação de como sou estúpido, mas
tudo bem, ainda restam as seqüelas nos olhos trêmulos, e se falar vai dar-se conta que tornou-
se gago. Balançou a cabeça como quem quer sinalizar alguma coisa mas não sinaliza coisa
alguma, acaba dando com os ombros.
– Não sei, não soube disso, mas acho que não é algo raro de se acontecer.
– Bem, a mídia aproveita o que dá audiência, e qualquer coisa bastante enfeitada,
adaptada, de um jeitinho ou de outro, dá audiência – ela continuou.
– Então se qualquer coisa é útil, qual o problema?
– Não sei, foi algo que apenas saiu.
– Entendi.
– Quer comer alguma coisa?
– Comi na rua, mas obrigado.
Ela silenciou, até então não o tinha sequer olhado. Por enquanto ao menos era melhor que
as coisas ficassem assim, por ficar. A apatia de Carla era a garantia de que estava em paz. O
único problema parece estar exatamente em reconhecer quando ela o estava desvendando e
quando julgava que nada tinha a descobrir. Aí lembrou o porquê e o como de tê-la conhecido, e
esses instantes nos quais refletia passaram de tal maneira que, por um tempo, a olhou como
se a admirasse, como se não houvesse o que esconder e nem com o que se preocupar. O
rosto fino para o qual ele não deve nada, os delineares branquinhos, os óculos redondos, a
atenção vidrada, mas comum, ao se ouvir um noticiário de todo dia, aí depois, como agora, ela
o olha de relance a perguntar o porquê de encará-la estranhamente.
– Não comece a ficar estranho, por favor – disse a sorrir.
– Tem um jeito de eu ficar estranho?
– É assim, olhando como se estivesse pensando, ou como se esperasse algo. Ficar
encarando as pessoas é constrangedor.
– Só se você for curiosa. Mas você pode me ignorar e deixar que cada um se entretenha a
seu modo.
– Vamos... não faça isso.
– Certo, vou me conter – e continuou olhando.
Ela riu, o olha feito estivesse insegura da recomendação de fazê-lo parar. Ele pensa que se
fossem em outros tempos era certo que ela já carregaria alguma resposta na ponta da língua.
Geralmente as moças intensas são assim, breves e demolidoras, é daí que seus estilos
ramificam. A mais ardilosa cita algum podre de seu passado e usa algum defeito arquivado
como argumento para invalidar seu comportamento incômodo, a mais direta xinga e distorce as
feições, vá encher o saco de outra, a recalcada olha com cara de fúria que parece prestes a
explodir mas não de perder o pódio. Em uma certa hora, tanto seu rosto não mais lhe atraía
como nada mais faz muita diferença. O que restou foi curvar-se para o lado, debruçou-se,
contentou-se com os sonhos que lhe surgem vida afora, e aí se deixou divagar. Revirou os
olhos para dentro. Esteve voltando ao passado.
Sonhava um sonho que há tempos não lhe vinha, era noite, o quarto todo estava escuro, e
em frente a janela das ruas, opondo-se a penumbra estava Júlia, nua. Já fazia algum tempo
que ela o olhava em silêncio, é assim que está a enxergá-lo além da carne e do osso. Não que
ela seja realmente capaz de incitar uma impressão tão pontiaguda feito esta, mas, como se
sabe, nos sonhos, as sensações ou adormecem completamente ou se ampliam a fazer inveja
na própria realidade, que passa a ser um sonho ainda mais distante em função da sonolência
que se tornou. E talvez por estar sentindo Júlia assim, etérea, esvoaçante, devesse considerar
que há aí um dos significados que tem a seu respeito mas é incapaz de perceber, até
momentos como esse. Achava que tinha se livrado dela, mas aí está ela para arruiná-lo e para
liquidar suas esperanças. Fazia valer aquele ditado que diz de uma pessoa ser lobo em pele de
cordeiro, de fato o era, apesar de na situação ser ela uma engenhosa víbora que não mostra a
peçonha, está envolvida por uma espécie de karma de fatalidade, tudo com ela acabará
fatalmente, mesmo que ele não saiba exatamente porquê, mesmo que nesse momento ela não
fizesse questão de se esconder ou revestir-se em dotes de mistério, ela tenta se mostrar, e
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quando ele não a entende só está clara a sua incompetência, e ele padece. Deixa-me em paz,
ordenou, mas a imagem permanece. O problema podia estar em si mesmo, que se não tinha
coragem suficiente para expulsá-la, como poderia?, para que tenha forças, para que esteja
convencido de uma coisa, é preciso de um porquê. E ela não arruinava sua vida, não o fazia
mal, não fazia nada que o inspire a repudiá-la, a verdade está muito longe disso, no máximo
ela fazia coisas perdoáveis e que a tolerância da convivência o força a fingir esquecer, é coisa
que faz parte, não cabe considerar.
Ainda assim arriscou-se de novo, deixa-me em paz, por favor, vai embora. Mas do que
você está se escondendo?, perguntou-se inesperadamente como idéia que não é propriamente
sua. Está se sentindo ameaçado?, não sei. Bem, não. Então, qual a grande angústia?, qual a
origem desse veneno?, dessa corrosão intestinal?, isso está se tornando repetitivo, é
extremamente maçante, eu quase não agüento mais. Mas acontece que foi por sua própria
vontade, pouco importa qual situação é a desta, se está indomável ou domesticada, que agora
essa imagem está aí aparecendo, mas não, por sua vontade veria ainda muitos outros rostos,
este em si não o traz nenhum significado especial, mas em breve verá todos esses rostos, meu
caro, muito em breve.
Acordou por ter a impressão de que alguém se aproxima ou em algo o ambiente se altera.
Ainda não dispondo da lucidez de captar, doeram-lhe as pálpebras por instinto, as abriu e a
devastadora luz veio queimar os olhos, virarei cinzas, não, choraminga, eis o fim. Ana estava
de pé em frente às cortinas, as abriu e deixa o dia raiar. A sensação da contração dos olhos
vem com dor passageira e forte, soco nas têmporas ou acupuntura errada no chakra da visão
que sempre andou cego, a agulhada o arranca um gemido. Bom dia, ela te cumprimentou.
Parece mesmo ser um lindo dia, a você que não passou a noite tentando colocar seu corpo
para dentro de um sofá, não ficou preocupada com a deformidade da coluna vertebral e se um
dia vai se descobrir corcunda. Pôs-se a se cobrir ainda mais, resmunga a intenção de dizer
todas essas coisas e agarrou a ponta do lençol e o trouxe para a cara.
– É tarde, já é hora de levantar – diz a mulher, e pode ouvir seus passos a trotar pela sala.
– Não tenho nada com isso. Pode deixar a sala escura.
Nem se lembrava exatamente em que ponto da noite tinha deixado que o sono chegasse.
Certamente foi em algum momento entediante do filme que assistia, para o qual na noite
passada resolvera mudar quando decidiu ser chato assistir a coletiva do senhor Condor, cuja
cópia da fita foi cedida gentilmente por Marcus, a quem ele seria eternamente grato. Achou que
pudesse conhecer melhor com quem estava lidando, se não isto, ao menos teria idéia do
comportamento público desse Condor. Mas acabou não lhe servindo de muita coisa, o diálogo
mantido entre os jornalistas da platéia e o velho quase não era um diálogo, e as perguntas
eram sempre feitas de maneira tão formal e respondidas com reciprocidade. Que monótono
não haver um escândalo maior, não perguntas sobre escândalos, mas algo como uma antiga
amante chegar no salão o acusando de ser pai do seu filho, enfim, qualquer coisa que fosse
rasteira, que arranque vaias e ohs, tudo o que estou precisando, diz-se, é um pouco do
inesperado. Mas talvez precise me acostumar com o morno, as pessoas vivem de morno, devo
descobrir por que gostam do morno, que se elas podem, eu também posso. Fechou os olhos
para proteger-se do sol e gravado na memória ainda via o rosto de Júlia sorrindo-lhe e dizendo
oi, isso o relembra do mal humor que deve de praxe sentir pelas manhãs.
Esgueirou a cara para fora dos cobertores, pela televisão desligada deduz que alguém
durante a noite o poupou do esforço de ouvir algumas reclamações pela manhã. Movimentou
com dificuldade a cabeça, viu que Ana já está de costas dentro da cozinha, os azulejos da
divisa desta com a sala refletiam as variedades matinais bem na sua roupa branca, arabescos
estilosos da vida moderna, parecia que os fiapos dos cabelos eram uns faróis, mas até que não
o ofuscava. Piscou os olhos para enxergá-la melhor.
– Não se importa de levantar mais cedo toda manhã pra aprontar todas essas coisas? –
perguntou, enquanto coçava a garganta com a língua.
– Como assim? – ela virou de relance para conferir.
– Marcus demora pra ir ao trabalho, sempre acorda mais tarde, toma o café e ainda fica um
tempo depois com os pés pra cima. Aí eu e ele ficamos à toa conversando bobagens até a
hora dele sair, é quando eu volto a dormir. De mim então nem se fala, eu reclamo até pra ir à
feira ou à farmácia quando um de vocês tá gripado. E no máximo você resmunga.
– O que te deu? – ela quase riu. Ao fundo de sua voz, o barulho de coisas na frigideira.
– Só curiosidade, mesmo.
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– Se você acha que sou explorada dessa maneira que tá dizendo, o mínimo que você
podia fazer é agir um pouco diferente, não acha?
– Não sei, ainda não pensei sobre isso. Mas se não te incomoda, por que eu mudaria?
– Nossa!, eu realmente agradeço a consideração.
– Não é nada disso, não entenda mal. Deixa pra lá – coça a cara.
– Acho que cada um deve fazer a sua parte, eu me esforço para fazer o que posso – ela
continuou.
– Onde está aquele espírito feminista que fala de mudar o quadro das mulheres dentro da
família e do mundo etc etc?
– Alex, que babaquice é essa?, desde quando você se interessa por mim?
– Não sei, às vezes a pessoa acorda com uma iluminação diferente da que sempre tem.
– Sei, e pra começar a pôr a sua nova iluminação em prática, pode se levantar e vir aqui
me ajudar.
– A dor nas costas tá me matando, você não tem idéia do que esse sofá pode me fazer.
Não tinha muita certeza, mas misturado com os distantes sons urbanos que amanheciam
teve a impressão de por trás das paredes finas identificar o barulho de água caindo, presumiu
que o camarada esteja lá no banho, a acústica das paredes sempre o confunde, a cacofonia do
dia o deixa enjoado, talvez só a suporte durante a noite pelo longo tempo que teve para se
acostumar, acontece que a essa altura o dia já se foi. E esses cantos de passarinhos, não
pode suportá-los pelo tempo que lhe resta de vida, alguns já devem estar debruçados no
parapeito da varanda, orquestras inteiras de um forçoso bom dia, bom dia, bom dia, de
repetição que por ser repetição o estremece e já o deixa a tremer só pela idéia de ouvir. Mal
ouve Ana, sua voz lhe chegou muito mais distante do que estava, então levantou o pescoço e o
coçou, a barba por fazer raspou-lhe os dedos, ia fazer sinal para que repetisse, mas ela deve
tê-lo notado antes, de forma que se adiantou.
– E o que tem feito?
– Ontem fui ao mercado, fiz algumas compras pra nós.
– Eu vi, fiquei impressionada – fala brevemente. – Que mais?
– Está esperando algo em especial? – apoiou a cabeça no braço do sofá. Deus, e essa dor
ao virar de lado, queria ter exagerado ao falar do sofá.
– Certo, vou perguntar. Qual o seu interesse naquele artista?
– Artístico – mas não conteve uma risadinha.
– É sério.
– Não precisa se preocupar, na hora certa saberemos.
– Saberemos? Como se você não soubesse ainda?
– É isso.
Rolou para manter a pança para cima, que a última pauta não vem sendo agradável.
Qualquer coisa que desperte pensamentos induz à necessidade de se estar só, e é que cada
vez mais isso vinha se tornando difícil, e aí, como parte de alguma ironia, ele se diz que ia
praticar o retorno à escuridão. É mais uma daquelas idéias que parecem surgir de um riso
corriqueiro mas a qual vê-se fazer sentido e tudo mais. Fechou os olhos, e como se fosse mais
produtivo recordar linearmente do panorama que já tinha realizado, se pôs a retornar até a
noite da briga e do capô. Visualizou, ou de repente uma coisa assim não se vislumbra, mas se
degusta, se saboeira a sensação que era ter gosto de sangue na traquéia, foi tão eficiente que
chegou a mudar a expressão, puxa, que noite, diz aí, você vai achando que uma saída no
estacionamento é uma coisa simples, e quando se deu conta está precisando de uns pontos na
cabeça. Pensa só se eles tivessem uma arma, que aí vir pegar o carro seria fatal, é prova de
que nunca sabemos o que nos espera na esquina seguinte, finalmente vemos o quão não
podemos controlar absolutamente nada, sempre somos insuficientes diante da surpresa ou da
morte, essa coisa que todos esperam, mas de conteúdo pior que as travessuras e traquinagens
no dia das bruxas, são coisas que esperamos mas ainda gritamos de susto, e tenta agora
lembrar do eco da voz de André. É um amigo marcante, de deixar cicatrizes, e há muito não o
via, tentou agora lembrar da forma que a brisa soprou com apatia de coisa, que o chão úmido
crepitava inconsciente de si... que mentira, pára. Por ter pensado em André inevitavelmente
pensou em Júlia, essa sua maldição das madrugadas mal dormidas. Restituiu-se, apertou mais
firmemente as pálpebras, é como se sentisse dor e se distraísse.
Bem, bem, retomava aquele processo de imersão e entendimento. O homem que deseja
se livrar das âncoras às quais foi acostumado a ter amarradas na canela precisa repensar,
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antes de tudo, quais os efeitos dessas idéias, doutrinas, o que forem, como vêm a funcionar
dentro de si, e pode isso parecer uma forma genérica de se pensar sobre uma coisa, uma
fórmula alegórica que por acaso ele descobriu, mas não, o pretexto para realizar esse processo
pode ser encontrado em qualquer situação diária e, no seu caso, o pretexto está nos seus
próprios episódios que vêm vivendo, como o sentimento de receio que teve ao ser esbravejado
pelo motorista quando cruzou desatento a rua, que abriu margens à indignação e a noção de
intolerância, que me levou a temer?, se pergunta, o que me levou a me sentir acuado por
aquele sujeito franzino, mas de expressão ameaçadora, simplesmente porque tinha uma voz
ríspida? Até que limite o instinto de sobrevivência é realmente um instinto natural, quando é
que passa a nos ser paranóia imposta?, o nosso medo se refina ao longo do tempo, e se
alguma coisa não nos coage é porque foi mal aproveitada. E pode vir a coagir. Aí, fez o retorno
para entender como se sentiu diante daquela briga que aconteceu faz tanto tempo, de modo a
tentar responder por que cada chute, cada cabeçada e o sangue descendo o supercílio o
faziam sentir-se tão vivo, e por que naquela hora, que podia ser uma outra qualquer, estava
convencido da sua disposição de matar um desconhecido simplesmente porque sim. É verdade
que o homem exclusivamente dócil é uma vítima dessa sua gentileza, esse é o homem
estimulado pelas propagandas que o iludem com aquela máxima do faça tua parte por todas as
coisas, enquanto é levado a subestimar que isso pode tirar a sua vida ou arruiná-la. A parte
que está fazendo só servirá ao uso de uma coletividade que não vai chorar a perda da pessoa
que era, mas da pessoa que servia e estimulava a crença, obediência e combatência. Que
melhor pode haver à pessoa senão sua própria lucidez e, como coisa antes de qualquer coisa,
a sua própria sobrevivência?, o gentil é como o bicho que se entrega nas garras do predador, o
gentil ou esse estado dos aficionados, que por suas próprias razões é interessante que haja
submissão geral, ou pode também ser gentil o sujeito que nada tem a perder, nem as
esperanças, está vivo por acaso e dessa forma deixou de ter tudo a temer.
Outro que olhasse para a cozinha veria a mulher manuseando a louça e pondo a mesa, a
mecânica familiar mais simples. Alex não, ele vê o potencial assassino oculto, a frustração
atrás das sobrancelhas firmes, a raiva que pode surgir das mãos delicadinhas, prestes a tomar
uma faca e espumar de descontrole. Porque, quando menos esperasse, ela passaria a lâmina
em sua garganta. Mas julgar as pessoas só pelos seus impulsos é subestimá-las, de fato, há
sempre mais a ser visto.
A forma como o mundo anda é covarde, o que se faz a muitas pessoas é covardia,
principalmente por essas formas de covardias terem de ser praticadas pelo apoio perpétuo de
mentiras. A sinceridade faz falta, com sinceridade até a violência torna-se mais bonita. Esses
conceitos em especial eram opiniões muito individuais a ele, não podia exatamente raciociná-
las com as demais. Então, mais uma vez crescendo na forma de um gameta irônico, resolveu
retornar à escuridão com a idéia sinceridade, afinal ele não vai querer contradizer-se ao tomá-
la como absoluta. Por que devemos prezar pela sinceridade?, perguntou-se, já que a ilusão
provou constantemente anestesiar os sentidos às coisas feias, amenizar o desespero em
situações de tragédia, já que é sabido que conhecimento muitas vezes pode não trazer
felicidade. Essa provocação a qual se induzia não era simples capricho, principalmente quando
todo o seu método está apoiado numa ânsia obcecada pelo esmiuçar da verdade. Então, que
devia achar da sinceridade?, um valor absoluto e inquestionável em qualquer situação?,
contaria sobre a esposa do melhor amigo que ela o trai, essa mesma moça que aparentemente
o ama, quando se vê que ele nunca esteve tão feliz?, justificaria a revelação com a crueldade
do direito de saber?, ou seria arrogante a ponto de ser ele a julgar a paz e proteger o
camarada?, às vezes não ser arrogante é fraqueza de burros que não tomam escolhas.
Contaria para o pai que descobriu que ele só tem mais dois meses de vida?, diria para a gente
que a justiça deslizou mais vezes do que acertou?, com que objetivo, para quê? Não
respondendo nem que sim, nem que não às perguntas anteriores, pensou se a única forma
crucial de sinceridade não era a verdade consigo mesmo, sem a qual aparentemente nos
tornamos todos verdadeiramente estúpidos. Talvez seja somente isso o que até então vem
sendo praticado. Então se diz que a sinceridade só caiba àqueles que escolheram ser fortes.
Parece justo que possamos escolher. Parece justo, e só posteriormente retornará à escuridão
quanto às interpretações da justiça, mas enfim, parece justo que todos possam questionar o
que seja dito, assim como parece justo que todos mereçam duvidar de tudo até que lhes
provem o contrário, ou então que fiquem loucos.

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Conseguiu tudo isso por se lembrar da noite do capô, sentiu-se feliz por ver em si mesmo
sua idéia a comprovar-se, se é cobaia de si mesmo ou do retorno à escuridão é algo que nunca
chegará a saber. Mas, como nos conta a expressão que diz sobre tudo ter seus diversos lados,
nem sempre apenas os proveitosos, dentro de sua demorada introspecção deixara de notar a
mesa agora pronta, tal como a chegada de Marcus, que engravatado já se acomoda entre os
pãezinhos e outras coisas cheirosas e quentinhas. Levantou-se e foi se sentar. Não se fez de
rogado, logo a torrada quente já ocupa o prato, da mesma forma caçou pelo queijo, está
servido. Tomaram todos o café da manhã com cumplicidade e a máxima serenidade quotidiana
que se possa imaginar. A cada nova garfada na omelete ou bocada nos pães, lhe subia com
sutileza aquele fogo, para depois converter-se numa fúria que era como se o apertasse as
vísceras, tudo por não mais suportar estar ali, queria fugir, não sabia por quanto poderia evitar,
e por dentro está gritando e revirando tudo que for simétrico, por fora está a retirar uma fatia de
queijo. O jeito como os casados olham um para o outro é desprezível, começa a parecer que
qualquer forma de hábito também é. Condenava a si mesmo quando começava a considerar
normal que aqueles dois passassem dias sem olhar para o rosto um do outro, quando até uma
briga resolveria as coisas, coisas que não sabe quais são, mas uma briga diria muito mais, um
choque era tudo o que precisavam, apenas precisavam se chocar um ao outro, mas às vezes é
nítido demais que não se suportavam, perderam o interesse até da briga, enquanto ainda há
muitas coisas que os prendem, talvez seja mesmo o amor cru, quem sabe?, e ele gosta de
coisas cruas.
Então, talvez numa das primeiras vezes em sua vida, se viu pensando em qualquer coisa
sobre o futuro. No início como um sonho simples, como esses de que todos fazem idéia, que
inicialmente se deseja estar bem e realizado, lidando com as coisas que gosta, mas aos
poucos o sonho toma mais vida e alimenta as esperanças, mesmo que essa não tenha um
destino, às vezes não precisa de rumo, mas apenas está lá, sonâmbula e tateando pelos
cantos, incerta a que cômodo desliza, e em seguida ele se verá traçando uns planos
consistentes, se perdendo em situações imaginárias e cometendo toda classe de desatenções
que cometem os que esquecem do presente para viver no depois. Divagou com a conversa
que o casal agora estava tendo, refletia acerca do tom de voz, do temperamento, aí se punha a
imaginar uma solidão que de repente nem devia existir entre eles, assim como tristezas que ele
presumia viver escondidas num outro sorriso. Talvez tudo isso só diga respeito a você, Alex.
Se pudesse a ele haver um futuro diferente, como antes estaria se colocando a pensar, e
se essa projeção no além de si mesmo ainda poderá existir um dia, ele nunca saberá, mas a
verdade é que esse instante, no qual agora se encontra, definiu um certo rumo de sua história
para sempre, entenda-se o agora como uma importante matriz. Levava o garfo misturado em
várias coisas à boca quando o telefone tocou, parou só um centésimo de instante para associar
o som com a respectiva coisa que o grita. Marcus fez que ia levantar para atender, mas Ana
tomou a dianteira e docilmente disse que ela mesma o faria, assim caminhou até a mesa do
canto da sala e tomou o fone do gancho. Alô?, se passaram alguns instantes de espera,
quando ele a olhou ela estava espreguiçando, ficava bonita fazendo isso com aquela blusa que
usava para dormir, ela tem peitos bonitos, ela levantava e podia insinuar sua saúde. Oi, sim,
tudo bem, continua, é esse mesmo o número, então levantou um bocadinho as sobrancelhas
como que acabando de ouvir algo que estranha, e aí foi que se virou na direção da mesa e
falou.
– Alex, querem falar com você.
Ainda não tinha sequer engolido a comida, foi rapidamente que virou a cabeça, tratou de
não mostrar euforia. Arrastou a cadeira e foi ao telefone, o qual lhe foi entregue pela mulher
com expressão de pergunta, uma coisa assim não pode ocorrer sem que preste satisfação.
– Oi – falou.
Aí veio a voz do outro lado da linha.
– Bom dia – a voz foi reconhecida.
– Senhor – murmurou, olhando para trás e vendo que os outros continuavam seu desjejum,
isto é, às vezes deviam dar lá sua olhada.
– Sou eu, pelo visto esteve a minha espera.
– Estive – por alguma dessas tantas causas que se tem, o excitava mais a idéia do perigo
que qualquer outra, havendo perigo só na imaginação ou não, tanto faz, mas ao falar de forma
lacônica parecia estar tratando de algo proibido, isso trata de inspirá-lo.

128
– A semana foi dura, tive que arranjar um tempo que não tinha para poder ler suas idéias –
bem, então o tinha lido, era começo o suficiente, está claro o bastante, mas era de se esperar.
– Sim, compreendo.
– E naturalmente estudei o que me propôs.
– O que achou?
– Digno, além disso não sou eu que posso julgar, melhor deixar que o tempo o faça.
– Então isso significa um sim.
– É, meu rapaz, colocarei o seu retorno à escuridão em circulação – sussurrou gravemente
a voz do outro lado.
– Agora é nosso o retorno à escuridão – anuiu com um sorriso invisível, mas gratificante. O
orgulho já calmo amainou, agora que era estável parecia já não ter por que existir.
– Que pensa que vai fazer comigo?
– Quê? Não entendi.
– Me julga um velho bandido, mas o que acontece, meu rapaz, é que isso não significa que
eu queira abrir os braços para aceitar o peso do mundo sobre mim.
– É claro, e não vejo por que teria de fazer uma coisa dessas.
A voz do outro lado riu. Sem um rosto era impossível decifrá-la. A respiração tremulou por
causa da velhice, e a voz continuou.
– Em que apuros você está se metendo, rapazinho?
– Não entendi.
– Ora, mas tudo que eu falo você diz não entender. Tente parecer menos estúpido. O que
eu estou dizendo é que você parece ter seus próprios problemas lá com as gravidades que só
você entende. Devo te elogiar, fiquei impressionado, e não é pelas coisas que você disse, mas
como disse e para quê. Isso tudo foi no mínimo interessante, mesmo você sendo um
desconhecido. Na verdade é precisamente por você ser um cara qualquer que isso é
interessante. Não vou julgar tê-lo descoberto por ter lido algumas de suas penitências – esse
termo soou com uma profundidade atávica –, é o que acredito, e acredito que você também
ache que isso seria subestimá-lo, o que me diz?
– Não sei exatamente o que pensar.
– Que é isso?, desespero?
– Não, senhor. E quanto aos outros termos?
– Preciso encontrar-lhe, quando pode? – a voz pareceu mudar seus rumos.
– Temos outras pendências?
– Ainda falta tratar das que você mesmo criou.
– Claro. Posso qualquer dia, qualquer hora, mas se marcar desde já eu agradeceria.
– Antes me mate uma curiosidade.
– Qual? Diga.
– Por quê?
– Por que o quê? – sacudiu a cabeça.
– Por que fez isso tudo – respondeu didaticamente –, o que realmente quer? Como sai
ganhando?
– Às vezes se faz as coisas simplesmente porque devem ser feitas.
– Tu és pensante, não um imbecil – exclamou.
– Bom, já é algum reconhecimento, fico feliz.
– Não me venha com essa, responda.
– Senhor.
– Fala.
– Há uma parábola oriental que conta sobre uma criatura que vivia acomodada nas folhas
de um rio, acho que todos já ouviram falar pelo menos uma vez nessa história. Aí a criatura
resolve soltar-se.
– É, conheço.
– Eu sou a criatura – disse e riu, como se satisfeito.
– Se me recordo bem, ela se espatifa nas rochas.
– Nesse caso sou uma outra criatura – pausou por um segundo. – Não sei, é um risco,
talvez eu esteja querendo descobri-lo e ainda não saiba.
– É, rapazinho, mas não está me convencendo.
– Não faz tanta diferença, eu acho. Onde posso encontrá-lo?
– No hotel, à mesma hora de antes, daqui a três dias.
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– Está ótimo. Mas escute, vou me adiantar, e quanto as outras coisas que pedi? – vigiou
atrás de si quando ouviu o som da água trincando nos pratos, com sorte teriam levado em
conta que não terminara a refeição e deixaram algo sobre a mesa.
– Iremos conversar sobre o jornal, da próxima vez que nos encontrarmos não seremos
apenas nós dois.
– Certo – murmurou –, e quanto à estadia?
– Está pedindo muito, rapaz, sabe disso, melhor que não abuse da sorte.
– Não estou lhe fazendo uma surpresa.
– Isso você já fez antes. Apenas está sendo exigente.
– É um risco – coça a cara.
– Nem tudo é sempre um teste.
– Eu não sei, senhor. Eu vou descobrir.
– E descobrirá o quê?
– Até que ponto se pode confiar na palavra.
Do outro lado da linha por instantes não se fez som algum.
– Estou com o que você fez, posso publicar como se fosse de outro, não quero mesmo que
seja meu, e me livrar de tudo isso, o encontro, o seu pedido, que eu te conheço e que
conversamos – sussurrou.
– Estaria disposto a isso, senhor Condor?
– Posso estar considerando agora.
– Vá em frente – respirou fortemente.
– Não se importa, senhor Alex?
– Não acho que queira fazer uma coisa dessas.
– E se ainda assim o fizer?
– Nesse caso terá conseguido um inimigo por ter roubado os créditos que eu não pedi.
A risada esganiçada soou do outro lado, ainda assim aquela coisa rosnada, velhaca, feriu
seu discernimento. O senhor Condor então falou.
– Faço o que for preciso, não sei o que quer com isso, mas adianto que vou conseguir o
que me pede, assumo todas responsabilidades pelo livro. Eu fico com os pesos. Eu abro os
braços e assumo tudo por você. E me responsabilizo pelo que você não assinou.
– Está me prometendo?
– Adianto que pode arrumar as malas.
Talvez esse som que tenha ouvido tenha sido mesmo o de um trovão, ele veio de longe,
seco e amordaçado, cachorro velho que tenta uivar para a lua que não há, ele deduz que por
instantes tivesse se deixado seduzir por um cochilo, estava mesmo precisando e ele veio
reivindicar-lhe a alma sem memorando prévio. Quando abriu os olhos percebe como a noite
está muito mais densa e opressiva da que se lembrava, por trás das venezianas umas danças
de sombras estranhas se formavam, em tudo em torno impregnava o silêncio que era cortado
pelo som apagado de chuva na janela. Esticou o pescoço por sobre o sofá, essa sim é uma
boa hora de estar em casa, coça o rosto e julga estar com os olhos vermelhos de cansaço. As
imagens da televisão ainda transmitem a todos nós num volume sussurrante a programação da
noite, um filme onde uma mulher olha a porta do quarto e parece assustada em supor o que
poderia haver lá dentro. Alex se pôs sentado no sofá e imaginou, com o rosto curvado sobre as
mãos, se talvez agora não tivesse muito mais lucidez para pensar, a verdade é que ainda há
muito a ser esclarecido de si para si sobre seus últimos episódios. Vou fazer um discurso, se
disse, vou levar a eles da sociedade tudo o que penso anotado num papelzinho e na hora nada
vai me faltar, verão o que é ânimo e entusiasmo, verão o que sou capaz de fazer, não sou o
rapaz chato, a verdade é que nunca fui, simplesmente não sei o que ser, e o que sou vem de
improviso.
Menos, bem menos, suspirou, deixou que o som da chuva o lavasse, e no escuro começou
a temer que qualquer fantasma aparecesse, podia ser qualquer um, do passado ou do futuro,
assombrá-lo é o problema. E Carla dormindo apoiada no braço. Deve ter apagado em alguma
hora do filme, só agora ele a notava, lá está ela com a cabeça recostada no topo de uma
almofada, parece tão suave que nem a posição desconfortável a importaria. Só aproveitava o
seu sono sem semblantes e sem dificuldades. Ela gosta de assistir filmes assim, só com a luz
da própria televisão. Talvez tenha adormecido antes da chuva chegar. Foi uma visão
pacificadora, algo como uma manjedoura que apesar de tosca poderia ser forte para suportar
uma tempestade que eventualmente viesse, não sabe exatamente, mas é o que lhe parece. É
130
hora de começar a ver realmente a que mudanças foi submetido, sabia que as coisas não
seriam nem um pouco lineares, mas ter chegado a um estado como esse era algo que não
havia suposto, e se era mesmo a criatura do rio, por que havia de estar agonizando?,
contradizer-se sempre é o pior de tudo, e sem poder supor o que será no instante a seguir.
Algumas coisas, na verdade essas são ainda recentes, saltavam-lhe memória afora. Por causa
de uma palavra..., soava aquela voz qualquer, que é a voz de todos nós quando se evoca um
pacto e por ele se justifica tudo, a questão paira sobre o significado do trato, assinatura com
sangue para o diabo, e é como se estivesse prostrado diante do que o pacto representará,
ajoelhado numa penitência que implora compreender, o que ele fez, o que causou, de que
modo, como pôde se dar?, impossível retornar à escuridão assim, feito paralisado por derrame,
boca torta, caído ao chão, o próprio cansaço dizia não ser boa hora, que não há como, que era
melhor que aguardasse outra possibilidade. Aí pensava que a vida eram muitas outras coisas
mais, como sair para passear com o cachorro, devia comprar um, como também fazer amizade
com o frentista do outro lado da rua para que o chamasse de irmão sempre que estivesse a
passar, mas a obsessão teima em ensandecer, como numa lupa monstruosa, o significado das
coisas que a despertam, obsessões nunca dormem em paz, as coisas dentro das quais suas
obsessões residem não poderiam permitir-lhe paz. Ali estava ele pensando no dia em que
entrou por aquela porta de casa, que cruzou o vestíbulo do lugar até então desconhecido e se
disse, estático, muito sem graça e triunfante, consegui. De quando, antes disso, recebeu as
chaves da mão do velho, de quando ele o disse vá em frente, e ainda essa, o que ia pensar
quando o visse agora? Pondere, entre tantas coisas essa é uma das quais menos importam. O
filme deve estar numa cena de suspense, bem baixinho uma música tensa toca.
Caminhou com cuidado para não fazer os pés se esfregarem no carpete e produzir
qualquer barulho mais intenso, dispondo de outros zelos dirigiu-se até uma daquelas janelas do
corredor. Quando afastou com os dedos o lance da veneziana, veio uma sensação malograda
que com força quase transbordou opressão adentro do seu casulo quietinho, era porque via
aquela rua para onde dava a janela, a tempestade castigava todas as coisas que estão ao
alcance de sua vista, desde a formar os córregos lamacentos que vão descendo rua abaixo,
até embrutecer as feições dos prédios não muito diferentes que via cercando a sua paisagem.
Se fosse espiá-los por tempo demais, como nesse caso em particular ele faz, poderia ver,
atravessando a escuridão de praxe, a fraca oscilação de aparelhos de tevê acesos que escapa
pelos vidros. Boceja, como se enfim afagado e o temporal não fosse apocalíptico, e se pôs por
alguns poucos instantes a tentar imaginar as identidades das pessoas que vivem atrás
daquelas paredes, que seriam velhas e escuras como todas dos apartamentos desse bairro
com sua decadência, seus rococós, seu tom clássico, para ele significa estar tudo
apodrecendo. Existem poucas coisas mais tranqüilas que olhar a noite enquanto todos
dormem, então está se permitindo relaxar. Voltou-se para dentro quando as formas já soavam
incoerentes demais, parece ser um dos efeitos das trevas, quando se as olha por muito tempo,
parecerem borrar mais e mais, quererem borrar a tudo como se estivessem vindo na sua
direção, querendo borrá-lo também, andar pelo corredor é mais consistente, é menos etéreo,
voltava para seu universo de evidências por se descobrir.
– Carla – sussurra demoradamente ao pé do ouvido da moça, toca seu ombro –, Carlinha.
Acorda. Vai pra cama. É melhor.
A garota ronrona após uns toques, se encolhe ainda mais e se apegou a sonolência.
– Depois – murmura sem abrir os olhos. – Só mais um pouco.
Ergueu-se de volta, atende seu pedido. Por algum tempo a ficou observando, ela se
encolhe ainda mais, talvez reconheça que o tempo esfria, gemia de aconchego. Pensou se não
deveria aproveitar a madrugada para terminar os trabalhos pendentes, querendo ou não as
coisas ainda estão sendo esperadas dele. Decidiu que não havia momento para dormir mais
ótimo que esse. Conseguiu as cobertas da moça, a revestiu, no que pareceu ser bem recebido
pelo instinto dela de agarrar-se aos lençóis, e depois pôs-se ele mesmo recostado do outro
lado do sofá, cobriu-se também, encolheu-se, assim dormiu.

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A pista de dança está quase vazia, não tinha mais que uns transeuntes. Percebe que,
quando assim, a música se torna lá menos substancial, parece embriagar muito menos, o que
nos prova que música também é coisa da visão, se duvidar de outros sentidos demais, então,
quanto menos sentidos persuade, mais fácil de se ignorar, eis o caso. Já faz algum tempo que
precipita o olhar lá para baixo, segue os movimentos de uma daquelas garotas que estão ali ao
bar, por algum tempo detém sua atenção sobre ela, enruga a testa e reflete que ele deve estar
dando a parecer que pensa coisas muito enigmáticas. Riu-se ao dar-se conta que não
conseguiria formular nada que fosse mais difícil que uma reação, ou seja, se alguém lhe
dissesse olá, ele responderia, se o tocassem se arrepiaria, o batam e se encolherá, um ou
outro ai etc. A garota lá fica cada vez mais à vontade, conclusão tomada por ela estar tirando a
jaqueta de couro preto e jogando-a nos próprios ombros, não é dessas que gostam de usar a
chapelaria, ela ainda permanece próxima ao balcão, deu uma volta em si mesma, que deve ser
para estudar toda essa gente, ou aqueles que a interessarem, mas tem recato, não parece
desesperada e espera o pedido que fez ao bar, que tudo pode ser feito entranhado de cuidado,
ela não parece dispensá-lo. Seria idiotice à sua atenção não se ater ao corpo delgado, à
cintura fina, aquelas curvas apertadas da camiseta branca, é uma manipulação evidente de
seus olhos, todos os recursos mesmo com discrição gritam por Alex, logo presumirá que não
só por ele, ali está ela se debruçando ao bar, volta e meia olhava para trás, pode estar à
espera de alguém ou somente caçava, é melhor tomar cuidado para ele mesmo não ser
reparado.
Despeja os restos do fumo no cinzeiro com o que julgava ser um solene ar de indiferença,
torna o olhar para suas proximidades, confuso como se o lacre de entre situações distintas
fosse indistinguível, baixaria assim as sobrancelhas austeras que assumem que seus olhos
espreitavam coisas que pesam, tornando a sorrir de um instante ao outro, coisa que talvez
consista em mais um indício que quase tudo do que faz é inocentemente teatral, ou,
considerando por outros termos, talvez o bicho se adapte aos vários meios que o cerquem em
sintonia com suas próprias vantagens, ele quer extrair vantagens de tudo mas se pega
encenando e fracassando. Mas o que lhe recepciona a cara de falso conforto é mais fumaça,
ainda empesteia o ar como um círculo de vários cheiros, aí fumou passivamente aquilo que
não se sabe quem despejou. Embebedou-se mais um pouco, virou o copo. Sorriu ainda mais,
dizia com isso calma lá, amigão, já está tonto.
– Nesse mundo estamos só, não se pode confiar mesmo em ninguém – disse Barbariccia.
– Por quê? – perguntou Alex.
– Foi um daqueles cretinos, senão um complô deles a fim de me derrubar. Imagine você os
problemas que isso não me rendeu com os caras grandes?, pense só.
Pensou que devia se referir àqueles que sempre andam com ele, que a hipocrisia lhes é
uma norma não vale a pena duvidar, mas até os bárbaros se organizam com suas éticas que
aos de fora parecem contraditórias, a desordem é esse outro lado que ficou por entender. Tudo
o que pôde fazer foi assentir quase nada, dizia algo como um é, não exatamente sei ao que
você se refere, não passei por isso, mas imagino, e é isso aí, é como são as coisas, que isso
dá para saber muito bem.
– Como andam as coisas? – Alex tornou.
– Um pouco de perda de crédito, inevitavelmente perda de contatos, uns canais
importantes em uns pontos importantes, é isso, a credibilidade vai junto, mas ainda estou vivo,
sigo sobrevivendo. O importante é estar vivo, isso é o que conta, o resto se manda buscar.
– É encorajador, parece que nada é certo, nada é fixo ou enraizado. Não sei, já não sinto
mais como se estar vivo fosse encorajador. Como vai a esposa? – repara no fato de nas vezes
que falava dela mostrava mais paixão que muitos dos românticos que vagam por aí, o que o
levava a pensar que o trato constante com a hostilidade fazia crescer uma necessidade ainda
maior de compensação, daí nascerá a forma mais pura de amor.
– Em casa com a pequenininha, a levando pra escola, esse tipo de coisa, vai bem.
– E ela, com quantos anos está?
– Vai fazer sete daqui a dois meses.
– Lembro de uma foto dela no seu colo – bufa rindo da coisa surpreendente.
– Pois é, o tempo passa, a vida vai-nos esquecendo no meio do caminho.
– Não diga isso, você até que vai bem, fez-se lembrar, algo assim – e não sabe se essa é
uma ironia.
132
– Mas há coisas que me fazem sentir o pior de tudo, exemplo, só me sinto mesmo ótimo
quando estou sozinho.
– Nesse caso desculpe atrapalhar.
– Não se preocupe, você não faz diferença, Alex – e conteve a gargalhada junto de tosses.
– Isso mudou tudo, agora me sinto muito mais lisonjeado, obrigado por contribuir.
– Não fale besteira – Barbariccia continuou rindo –, sabe como é, existem – e começa a
gesticular – vários tipos de valores, de, de – busca o que falar – atenção que você deposita
sobre alguém. Você sabe que por nunca ter me pedido nada pode contar comigo quando for
preciso. Mas eu tenho a impressão – tosse-tosse – que eu não tenho o seu estilo, que você
nunca precisaria, se é que existe mesmo uma coisa como essa, se não é frescura. É melhor
não desdenhar, que do amanhã não sabemos, é, sim.
Alex acena positivo envolto da neblina de fumaça, Barbariccia lhe serve o copo uma vez
mais, o uísque caía pesadamente ao fundo com o som do gargalo cantando.
– O que anda aprontando?
– Vou me apresentar pra um trabalho por esses dias – coçou o queixo.
– Parece importante. O que vai fazer?
Alex suspira rindo como se dissesse é, importante, sim, assim como o engraxate de
sapatos encara a importância de seu ofício porque sabe que os clientes precisam estar
apresentáveis, caso contrário poderia comprometer diretamente as estruturas da dinâmica de
nosso sistema, pense só, o moço chegaria desengonçado e com o sapato furado a uma
entrevista de emprego e jamais seria aceito por ser visível como ele é um pé rapado, o
engraxate sabe que é peça vital para manter uma farsa e encorajar a boa vontade do poder,
assim como o cliente chega ao doutor e o vê com respingos de lama no couro do calçado, é
quase como sentir um dentista ter mau hálito ou vê-lo com os caninos amarelos. É por essa
consciência crítica de que o engraxate não abandona seu posto, e dia pós dia segue
corajosamente fazendo frente às agruras do viver, mas o que torna seus conhecimentos
indispensáveis, constituindo talvez até mesmo a parte mais fundamental da pirâmide de nossas
produções.
– Vou escrever umas besteiras que os outros me pedirem – acenou positivamente.
– Ganha bem?
– Isso ainda vou ver, mas acho que já dá pra prever. Mas fiz uns trabalhos por aí e fiquei
de receber um bom adiantamento, então tudo bem.
– Escute, se estiver precisando de algo, qualquer ajuda etc, sabe mesmo o que fazer.
– Não, tudo bem, mas obrigado – tragou mais ainda o cigarro. – As pessoas trabalham,
não sei, a honestidade parece justa – engoliu num trago o que tinha no copo.
– Sei, os que fazem trabalhos como o meu é porque estão desesperados, não, quando eu
digo desesperado mais parece que é de morder os cotovelos, digo no sentido de não verem
mais alternativa alguma, mas de repente é mesmo porque são muito ambiciosos, ficam
desesperados de fome. Ou simplesmente temos talento pra isso. O problema é que a gente se
apega.
– Ainda assim muita gente precisa de você – volveu a cabeça para as direções da pista lá
em baixo.
– É isso que me dá valor?
– Se há outra forma de se encontrar um, eu não sei.
– Compreendo, compreendo.
– Se não for você, vão arranjar outro e colocar em teu lugar para fazer o serviço sujo.
Precisam disso, sempre tem alguém para fazer a coisa pesada, o que todo mundo despreza,
quem as faz são pessoas capazes de arcar com as conseqüências. Os garotos bons seguem o
que mandam os chefes.
– E você é um rapaz bom, Alex? – e sorriu.
– Não, sou o cara mau.
– É, tem lá o seu sentido, mas você não é o cara mau de verdade. Você não sabe o que é
maldade. Você talvez seja o cara esperto, mas eu não sei muito bem. Eu não sei que tipo de
cara é você. Mais um copo?
Acenou que tanto fazia com a mão, a vista cruzava rasante as formas lá de baixo, agora
havia mais confusão no salão, os mais corpos dando-se aos conformes de suas danças e tudo
mais. Focou a atenção em grupos de estranhos pululantes, como predador resenhou-lhes
habilidosamente as formas, mas foi mesmo ao bar que contornou diversas vezes, indo e vindo,
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estudando com velocidade e em silêncio a qualquer coisa, e novamente a encontrou, aquela
garota que viu chegar não tinha ido muito longe, se entretinha no balcão com uma daquelas
garrafas de cerveja, agora está sentada e tem à sua sombra um rapaz que vendo assim de
longe parece mesmo elegante. Talvez ela o conheça, é que ele estava sério, geralmente
estranhos sorriem uns aos outros quando querem se impressionar, nesse caso ele parecia
seguro do que fazia e talvez não se preocupe em ser diferente do que é no geral. Surtia algum
efeito, a moça sorria, um daqueles sorrisos distantes de quem avisa que não quer se envolver
ou dar atenção demais, mas simultaneamente anuncia que com jeito e certo esforço as coisas
podem vir a ser diferentes. Ela olhava para os cantos, assim, como quem não quer nada, como
quem não se decidiu, nem conheceu as opções que tem, como quem não pretende muita coisa
nova, e ele ia gradativamente aproximando-se, inclinando-se sobre ela, pronto, agora ela o
afastou um tantinho, disse que não era bem por aí, fez uma cara séria, mas é uma dessas
caras que podem ser contornadas. Aí ele sentou-se ao lado e falou alguma coisa do tipo, pára
com isso, vamos lá, deixa que eu te pago a próxima, quem sabe não sou tão desagradável
assim? Ela o olhava, fitando como quem pensa. Deve estar cogitando algo do gênero devo?, é
apropriado?, não sei, não sei. Mas a indecisão fez concessões e ela sorriu de forma que
acatava com seja lá o que tenha sido mesmo dito, o rapaz deve satisfazer-se, que sorriu de
volta, e Alex ficou contente em adivinhar o diálogo com tanta clareza, confirmado pelo fato do
cara agora erguer sua mão sinalizando que viesse o barman.
Foi remetido quase involuntariamente a uma de suas lembranças.
Primeiro ouviu o som dos tacos quando batem contra as bolas, experimentava tão
vividamente que não faltava muito para ouvi-las abocanhadas num gole das caçapas. O cheiro
que vinha ao seu nariz mudara. Era um desses pubs, não recordava ao certo que música era
aquela que estava tocando ao fundo, só tinha a certeza de ser uma melodia popular, dessas
calmas, dessas que estejam atualmente fazendo um sucesso quase mínimo, e ele é ignorante
para reconhecê-la. Olhou para o lado, se entreteve com a imagem de uns sujeitos no bilhar,
mas nunca foi esse um jogo que o tivesse fascinado, por sinal não se considera muito bom em
jogo algum, deve ser por falta de dedicação, da preguiça que tem simpatia com o hábito de
enjoar fácil, não só de jogos, mas de jogos também. De qualquer forma, ali na mesa o mundo
segue bem melhor, tinham organizado sobre ela um lance de garrafas vazias, o cinzeiro mais
parece um ferro-velho embrulhado. O rapaz imediatamente à frente, André, fumou o resto de
seu cigarro, pigarreou com excesso e atirou a guimba. Nessa ocasião a consciência o tinha
abandonado por algum pouco tempo. Reparava como as garotas sozinhas do bar olhavam
todas para aquele Fabrício, ele se exibia todo enquanto rodeava a mesa a girar o taco, ele
pode. Não aprendeu com a surra do outro dia, alguns nascem abençoados, era praticamente
uma perda de tempo sair com um rapaz desses, ou talvez fosse a imagem de Sabrina junto a si
na mesa que servisse para intimidar as solteiras quando fossem eventualmente olhá-lo, prefere
essa hipótese.
– Tinham policiais por todos os lados, alguém mandou que nos cercassem, não sei bem –
André contava. – Disseram que foi um dos nossos que atirou uma pedra, mas isso ninguém viu
e ninguém sabe, aí deram o aviso para avançar.
– Que coisa brutal – a garota tomou um gole de cerveja.
– Aí teve gente correndo pelas escadarias, fugindo para o trânsito parado, foi uma droga,
os carros tentavam escapar, mas batiam uns nos outros.
– Tá falando do quê? – Alex sentiu-se despertar, os olhou.
– Da revolta dos estudantes – respondeu com disposição.
Alex tomou mais um gole e sentiu a vista rodar, como as íris de um caça-níquel. Era melhor
ir parando por aí. Tomou mais um.
– O que eles fizeram?
– Você não soube de nada?
– Devia saber? – olhou para os outros como se pedisse confirmação.
É, talvez André tenha se constrangido, às vezes isso acontece a ele, ainda assim se
emenda com o sorriso. – Foi o seguinte, a reitoria encaminhou faz uns meses um projeto de
privatização da universidade, isso ocasionaria imediatamente em uns cortes de gastos, do tipo,
acabar com os dormitórios gratuitos, cortar alguns projetos de pesquisas importantes,
maximizar o lucro e diminuir as bolsas, você sabe, transformar o aluno num número sem
qualquer conteúdo.
– Parece bastante interessante – Alex arrota. – Desculpe.
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– Os grêmios estudantis estão engajados nessa luta faz um tempo, mas ao que tudo indica
começamos a perder – falou em tom de quem encara as coisas com formalidade, mas insinua
sentir azia.
– Isso é cruel – falou Sabrina, a maldita já está o bajulando.
– Acontece todos os dias – falou Alex.
– Caramba, Alex, não é assim – André contesta, a erguer os braços.
– É, não fala bobagem – a doutora agora.
– O que é isso, uma conspiração?
– Imagina só, a gente organiza uma manifestação pacífica e os motivos ocultos – isso ele
falou todo eloqüente – nos forçam a recuarmos, dá razões para a polícia nos cercar, e
aproveitando qualquer pretexto a tropa de choque é acionada. Eu soube de um cara que
quebrou as duas pernas com uma só porrada de cassetete, outro foi atingido por uma bomba
daquelas de cerâmica bem no rosto, ficou surdo por três dias – ia contando as coisas e
conforme fazia ia gesticulando animadamente, deve estar bêbado –, muita gente ainda foi se
refugiar dentro da própria universidade, lançaram gás lacrimogêneo nas portas, porque lá
dentro não podem entrar. Tudo para que a gente se dispersasse.
– Não sei como perdi isso.
– Não foi aí que Caio ficou daquele estado? – a doutora voltou-se a Alex.
– Caio?, quem é Caio?
– Alex, pare com isso, ande.
– Não posso ajudá-la, desculpe, realmente não me lembro.
– Caio é um colega que mora conosco, André. Parece que se meteu no meio da confusão
que você esteve, ele ficou uns cinco dias internado, passou por um processo traumático, agora
está com uma depressão chata, evita falar e no máximo resmunga pelos cantos...
– Que droga – ele murmurou tomando mais um gole –, e o pior é ver que as mesmas
pessoas que fazem isso é as que deviam nos amparar, aí eu me pergunto, elas nos protegem
por que é oportuno, correto?, quando não for, bem, é na merda que nos deixarão. Gente assim
que nem a gente, normais, que não tem a quem recorrer, é na merda que acabaremos – mais
um gole sonoro.
– Pior que é verdade.
– Você apanhou? – Alex.
– Tomei alguns chutes na costela e quebrei o braço, mas desacordei pelo calor e por causa
dos estilhaços de uma bomba de cerâmica. Disseram também que eu recebi uma porrada de
cassetete na nuca, mas não lembro, senti depois a dor, mas associei aos chutes – já tinham
detalhes demais, certamente alguma coisa nessa história ele estava inventado.
– Ao menos você foi preparado para a noite do estacionamento – e não conteve a risada.
– É – riu timidamente, ao que indicava que não levou a sério.
– O que não nos mata, fortalece.
– Alex gosta de se passar por sabido, gosta de parecer o cara – ela o deprecia.
– Pode falar das outras coisas nas quais eu sou o cara, também – riu ordinariamente,
notou que ela tenta disfarçar o desgosto, mas ainda assim acabou por fitá-lo fortemente. Se
ressentiu por ter dito isso, mas continua simulando a risada. É que não pode mostrar um
arrependimento assim.
– Bem no alvo – a intenção do humor de André deve ter sido de apaziguar.
– Foi o que ela disse quando eu lambi seu clitóris – e pôs os braços ao redor dela.
– Alex, dá pra parar? – resmungou –, André, o que você faz, que eu não lembro?
– Direito – trincando um sorriso.
– É mesmo, André?, e o que o levou a isso? – Alex.
– Parece oferecer bastante possibilidade – levantou as mãos como se dissesse, olha, não
sei exatamente que resposta dar a você, então me perdoe se eu estiver sendo um pouco clichê
demais, tenho vergonha de ser mais específico e explicar meus desejos além do óbvio, perdão.
– Possibilidade, hein?, diga rápido, não pense, você é um ambicioso ou um idealista?
– Acho que idealista – e sorriu.
– Está vendo, Sabrina?, está vendo? É disso que precisamos, o futuro será claramente
diferente. Preciso urgentemente de um cigarro, só deus sabe a vontade que me deu de fumar.
– Houve um pouco de sarcasmo, ou foi impressão? – André olhava vagamente.
– Não sei, preciso refletir sobre isso, é que às vezes eu falo as coisas assim e só depois
vou me dar conta do que elas significaram.
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– Pare com isso – resmungou de novo a mulher.
André riu de um jeito um pouco esnobe, mas parecia querer disfarçar. – E você, Alex, o
que faz?
– Ele não pode dizer, seu passado é um mistério, deve ser um criminoso – ela tem que se
meter.
André acaba de acender outro cigarro, Alex vê o próprio rosto iluminado numa fogueira
imensa que tem sua origem nos cantos de um clarão. Ouve o som da combustão, o ar prestes
a incinerar, tudo está prestes a explodir. Se tragasse, a mesa inteira ia virar frangalhos, ia ser
empurrado com os destroços na cara. Pode deslocar-se como se estando na tal da revolta, a
sentir fortemente aquele cheiro de suor esfregando-se na sua cara, caindo entre os gritos que
já não consegue identificar de que parte do espaço estão vindo e aqueles sons secos dos
vidros estilhaçando, ou também de quando explode alguma coisa, aquele ruído demorado que
ensurdece até que se tonteie por si só e então caia com o rosto no asfalto. Aí via a fileira de
policias com aqueles escudos e porretes, os últimos batiam nos primeiros como método
primário do exército que apavora o inimigo, uma fumaça negra os envolvia, aí vinham ordens
graves de parem!, parem já com a baderna, e junto vinham os sussurros de xingamentos e
ameaças não oficiais, tipo, seu vagabundo filho-da-puta, vou quebrar sua cabeça, malandrinho
de merda, coisa que completa a parte legítima e a torna um pouco mais divertida. Colocou-se
tanto nessa situação que uma hora era quase como se não respirasse, sentiu-se asfixiar,
estava tão abafado que o ar mal podia escorregar para dentro.
Os carros tiveram suas janelas arrancadas, o bando de bárbaros furiosos subia pelos
capôs e gritava, não se deixarão intimidar a custo algum, tudo isso ocorria dentro do cenário
onírico que não era sentido nem com muitos detalhes nem com muitas formas, apenas via e
entendia essas coisas como se a consciência estivesse falindo e rodopiasse antes dos
instantes da própria queda, via o crucial ocorrendo, isso continha o significado de tudo, e isso
era tudo. E o crucial era, no caso, as garrafas voando, o tufão de fumaça, as pedras se
batendo, algumas delas atingiam-lhe a cabeça. Vê-se caído, agachado e protegido num círculo
de homens que o chutavam, as botas espessas são aço a bater em cada osso, sempre
achavam um espaço para atingir-lhe, é inútil retorcer-se. Cerrou os olhos e expulsou as idéias.
Olhou então para André, os olhos parecem fumegar, é certo que alguns brilham mais que
outros. Ainda assim havia alguma coisa diferente, sabe como é, quando se sente que ainda há
algo indecifrável e não se expressa, que existe atrás da timidez deslocada e mesmo da fácil
comunicação, atrás da lábia ou das coisas que demonstra no sorriso ou na indignação, feito um
monstro de filme de horror que ainda não despertou. Pensou se não é isso mesmo algo
diferente, uma atração espiritual que fascinava mas o repelia, um certo tipo de poder, que se
diga assim, que desconhecia entre os gêneros que andam por aí. Olhou para o lado, para
Sabrina, ia constatar se o que vê não é resultado da bebida. Ela tinha lá a sua ardência, apesar
de que há umas semanas tinha mais do que tem hoje, tinha lá a sua profundidade, mas nada
que comunicasse, nada que fosse mais do que já conhecia ou importava. Ela não importava
muito. E em André não há tanta coisa de diferente do sujeito da fila do banco ou da mulher que
sentou ao seu lado hoje no metrô, mas parecia poder ser mais, em algum momento descobriria
todo seu potencial.
Mas ele haveria de sentir-se mal quando lhe vêm essas crises de superioridade. É quando
se acha ser um diabo espiando a humanidade, um gênio distante, lúcido e muito poderoso,
como se no fim lhe coubesse dar um veredicto sobre o que lhe está abaixo. A soberba
humildade que sentia aborrecia a si mesmo, um desses momentos em que se detesta e no
entanto não pode se ver livre disso. Ouve ainda a conversa prosseguir distante, não dependem
de si para nada, o mundo sobrevive sem a sua presença.
– Contaram sobre o episódio das garagens para mim – Sabrina.
– Mas acabou tudo bem, o mais engraçado é ter conhecido os caras assim. Não posso
dizer que a primeira impressão foi das melhores, mas as coisas se contornam...
– Sou psiquiatra, posso lhe dizer que os loucos são atraentes, mas nunca pelas
impressões que dão...
Alex arrota.
Sobre a noite do incidente, nas periferias daquele lugar cujo nome era XV, tendo a
pronúncia naturalmente como sendo quinze, nome que por sua vez se atribui ao fato do clube
ficar perto de uma praça batizada por algum evento histórico importante, Alex lembra-se agora
do que se deu com os companheiros que seguiam aquele André, dos quais um deles
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obviamente se trata do dono do carro que foi motivo de briga para uns e puramente campo-de-
batalha de outros, então, lembrou-se de um desses caras ter insistido para que fossem ao
hospital mais próximo, disse que estavam todos machucados e estavam perdendo sangue, que
não se pode deixar uma coisa dessas para lá. Só o que ele pensava era, merda, espero que
tumor não se pegue com porrada, posso ter um na cabeça, mas ainda acho que uma noite de
sono é tudo que me basta, que sempre me bastou. Por uns instantes cogitou se aquele rapaz
loiro estendido no chão, um dia o conheceu, não já era um cadáver, por algum tempo a idéia
não o mobilizou muito, como se fosse mesmo justo supor que as coisas tivessem se saído
dessa maneira, como fosse justo não lamentar caso fosse verdade. Mas ele se contorcia e
dava seus tremeliques, está num estado deplorável, mas há sinal de vida, é o bastante.
Contudo aquele seu outro amigo dentre os efêmeros, Igor, chora ao levantá-lo, desesperou-se,
tremia ainda mais que o espancado, aí ele seguia repetindo diversas vezes, por que fizeram
isso com ele?, assim não tem cabimento, perderam a linha, olha o que fizeram, olha só!, como
se não tivesse feito com prazer aos outros o mesmo que fizeram ao desgraçado, a emoção é
sempre interesseira, cega e bastante estúpida, então Alex boceja e tonteia.
Aí se lembrou de quando esteve naquela fila interminável de cadeiras, sentado, sentindo-
se uma pequena partícula, diminuído e anônimo, lembrou-se do cheiro de éter, mais parece a
ante-sala do necrotério, a julgar o que sinto, se dizia, deve mesmo ser, e lembra-se da
inconfundível monotonia da parede toda branca, o folhear de papéis em algum lugar próximo,
também aquele rolar das rodinhas das macas que guincham de longe, era uma tortura ouvi-las,
e a tosse de algum sujeito com tuberculose logo atrás de si, essa hipótese o estremeceu. Um
ou outro velho que passou mal durante a madrugada e teve de vir ao pronto-socorro, havia
também a mãe que mimava a criança cansada e que ainda teria de fazer uns outros exames
para descobrir que teve uma dor de barriga. A emergência de seu caso excede a todos esses.
Mas aqueles enfermeiros carrancudos que vieram, carrancudos provavelmente por trabalharem
toda a noite, então não teria como culpá-los pelo nervoso, eles disseram que não, que
emergência era relativa, que o sujeito que foi espancado era que tinha que ser levado logo ao
pronto-atendimento, ele tinha prioridade. Como não estava com muita dor e sentia cada vez
mais o sono se aproximar, concluiu com uma obviedade infalível que é o fim, já começo a
sentir os frios que dizem exalar da inexistência, vou ser mais um dos que morrem nas filas do
atendimento. Ao menos morrerei sendo uma vergonhosa verdade, é tudo que posso querer. A
criancinha olhava para sua roupa empapada de sangue, devia estar curiosa. Pensou em dizer
é, vai se acostumando, pequeno, esse tipo de coisa é que você ainda vai ver muito na sua
vida, na tv, na esquina, melhor não estranhar. Mas a palidez da criança o compadeceu. O
olhava de um jeito bem tristonho. Deve ser uma puta dor de barriga o que ela tem. O velho
barbudo tossiu na fileira de trás, sabia quem era a pessoa pois já o tinha olhado, podia sentir
as gotículas nojentas de seus perdigotos pousando em sua nuca. Pronto, era isso, estava
contaminado com uma infecção bizarra.
Virou-se para o sujeito ao lado, o sangue lhe escorria pelos ombros partindo da testa, a
contenção da bolsa de gelo que lhe deram não adianta muita coisa. Ele mantém a cabeça
baixa. Mas está ali, é sua última esperança.
– Ei, qual o seu nome mesmo?
– André.
– André, pelo amor de deus, não teria outro cigarro pra me arranjar?
Por alguns momentos ele sorriu de volta como se tomasse obviamente como piada, mas
talvez o rosto de Alex, com um de seus olhos quase fechando, no jeito de bolha inchada de
lama, não lhe fizesse parecer que brincava.
– Acho que não pode fumar aqui – explicou.
Se debruça sobre as cadeiras. Pensou se as enfermeiras ali no balcão da recepção
chegariam a flagrá-lo, era quase certo que sim.
– Não tem importância – sacudiu uma mão, depois silenciou, depois continuou. – Sou Alex,
e você? Ah – murmurou na mesma hora –, é André, desculpa, minha cabeça tá meio – não
terminou a frase, ela é auto-suficiente, atazanada, zonza, rodopiando, o que fosse, bastou que
ficasse apontando para as próprias têmporas.
– Não, tudo bem – disse que entendia.
– Diz aí, André – continuou –, o corte tá muito feio? – se debruça sobre ele a fim que
olhasse.
Ele balançou a cabeça comunicando que não sabe dizer.
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– Tudo bem – jogou as costas na cadeira. – Será que nos conseguem uns analgésicos?
– Não sei, acho que se pedirmos podem ficar com pena e nos dar.
– Sabe, até que não tá doendo, queria mesmo é um sonífero.
– Eu acho que a enfermeira não vai nos chamar tão cedo, isso sim – e sorriu.
– Olha aquelas ali, é por isso que as pessoas morrem na fila dos hospitais, elas ficam de
fuxico ao invés de trabalharem, olha.
– Certamente elas são as culpadas – riu conforme a dor permitia.
– Diz aí. Do que elas estão falando?
– Do médico bonitão? – tentou descobrir se a resposta era suficiente.
– Ótimo, ótimo – Alex riu, revirou a cabeça. – Olha só, tudo se resume a um belo partido, a
existência se resume a um belo partido.
– Certamente não somos nós.
– Não tem nem como cogitar uma coisa dessas. Não somos nós.
– Mas ainda penso, o que se vê num doutor desses, isto é, além da conta bancária? – está
tentando ser divertido.
– Vê se com o rapaz do necrotério é assim. Mas também dizem que a libido desses caras é
afetada pelo trabalho. Que fundo de poço.
– Acho que elas não vão vir nos atender mesmo.
– Finge um enfarto pra você ver. Deixa elas desesperadas num instante. Imagina só,
estragar a carreira delas assim, por nada. Expor suas desatenções escrotas. Que merda.
– Elas não iam tolerar uma sacanagem dessas – sorri. – Eu ia ser feito de lixo hospitalar.
Nunca mais iam saber de mim.
Alex riu. Esticou os braços pelas cadeiras, aos poucos já se sentia melhor. Tudo era
apenas um grande drama. Sempre esteve bem. Como o tempo passou e as moças do plantão
não vinham trazer notícias, deu alta a si mesmo quando levantou-se e falou que certo, no
máximo vão nos dar um placebo, é melhor que a gente dê uma volta no restaurante do
hospital, um café eu posso pagar.
A depender da ocasião em que as pessoas se conhecem, é possível que se crie um
vínculo profundo entre elas. Nesse caso houve mesmo um pacto de sangue. Acabaram criando
laços de afinidade naquela cafeteria, simpatia dessas que, a partir deste momento, poderia
ainda evoluir a respeito, amizade, fraternidade e esses refinados gêneros das relações, mas
assim, momentaneamente, como quaisquer outros desconhecidos, estavam se pondo a falar
trivialidades do dia-a-dia, desde os placares dos jogos de futebol, sobre o que André era mais
entendido que Alex, tratando também da deficiência na administração do tal do lixo hospitalar,
ao que André também parece mais bem entendido, até as pernas bem torneadas da
enfermeira que entrou para providenciar a sopinha de algum paciente, que foi do que Alex
mostrou-se mais animado a tratar. André lhe parece uma dessas pessoas que, às vezes, por
alguma pendência que teve na vida, sentem-se no dever ou se sentem bem em causar bem-
estar nos outros. Era uma boa pessoa. O que foi bem recebido, afinal estava longe de Alex a
idéia de querer confrontar as inseguranças e complexos que André possa ter, muito menos se
aprofundar em seus melindres existenciais e frustrações, mas em suma ele pareceu bastante
transparente, salvo por em certos momentos ser um tanto acuado demais. Às vezes se retinha,
mas, em determinados assuntos, e o padrão desses determinados assuntos ele ainda não teve
tempo de perceber, mas talvez um dia venha a percebê-los, ele desandava a falar. Talvez seja
um sintoma de ansiedade ou depressão. É um bom rapaz.
Contou do episódio atual com que esteve envolvido, a história da universidade,
reivindicações, resistência e sabe-se lá o que mais, e sobretudo como era ruim – ele não se
expressou dessa maneira, mas dava a entender pelos termos que usava e a forma cabisbaixa
de falá-los – ver os objetivos que tem serem retalhados pela violência, pela força instituída,
disse assim mesmo, pela violência e pela ignorância, que contra a força maior ninguém pode e
que, para quem tem poder, argumento é enfeite. Ele tem uma clareza de realidade bacana, o
único problema é que é um tanto sonhador, supunha medidas vagas demais para todas as
coisas, como por exemplo quando disse que para tudo se resolver quanto àquele problema
bastava principalmente a boa vontade do tal reitor da universidade, que ele culpava de má fé.
Quem não ouve cuidado, ouve coitado, e Alex não conhecia ninguém que não tivesse ido à
merda por ficar parado enquanto contava com a boa vontade dos outros. Mas o sujeito aqui na
mesa é jovem, isso é justificável, a vida aos poucos trata de nos dar novas caras, de brinde
vêm as cicatrizes. E não é só para esse rapaz, pensou, que a vida ainda há de mostrar suas
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faces com merda impregnada, mas inclusive para mim, já que não deve ser à toa quando
dizem que estamos sempre aprendendo, que há sempre algo novo a se adquirir, cicatriz de
merda. Deve ser isso o que adquirimos. Mas todas essas coisas talvez estivessem além do
bem e do mal, talvez não fossem assim tão ruins e meramente fossem o que fossem.
Às vezes Alex não prestava atenção no que André falava, então ele acabava tendo de se
repetir, é bom dar-se ao luxo do pretexto de estar sangrando. Às vezes resolvia se concentrar.
André chegou a falar um pouco dos policiais e como eles agem como bem entendem. Alex
tinha lá sua quase nada experiência com policiais mas não cabe relevá-la. Após esse gênero
de discussão, preferiram, num consenso silencioso, não conversar nada como trabalhos,
reitores influenciados por interesses obscuros e essa sorte de coisas. Adotaram um rumo de
conversa como o jeito que andava cheio o metrô nas horas de pico, veja só, era quase capaz
de passarem uns vinte minutos para conseguir chegar na bilheteria, ou como os ônibus
passavam atrasados nos lugares mais escondidos da cidade. Alex chegou a mencionar que
certas vezes pensava que as coisas são feitas assim para que as pessoas se atenham, como
eles dois, a se distraírem pensando somente sobre o problema pequeno das coisas, quando é
natural que haja muito mais no que reparar. Voltaram aos assuntos grandiosos. Aí André disse
que acreditava na intenção das pessoas. Que teve, como qualquer outro, diversas
oportunidades para se desiludir com elas, mas que continuar intacto era uma promessa que há
muito tempo fizera a si mesmo. Talvez seja um apego à ingenuidade, contra-argumentou Alex,
por uns instantes tinha esquecido o que pretendia falar pois o café veio quente demais na
boca, então André disse que não acreditava ser inocência partir do pressuposto que as coisas
podem ser melhores. Mas isso era metafísico, ele achou, era etéreo demais e, como se sabe,
idéias etéreas é algo que todos têm, mas que não servem quando precisamos pôr algo
efetivamente no papel, quando do que precisamos é de uma prática articulada e de projetos
para levar comida à boca da pessoas e mantê-las vivendo dia-pós-dia.
À base de sofismas, Alex conseguiu remeter André à questão de que ele teria de se voltar
a um tipo de conduta cética e pouco idealista muitas vezes enquanto lidasse com as
bifurcações do direito, tentou descobrir se ele não veria o idealismo liquidado, ao que ele se
mostrou dogmático e convicto que não. Um dia esse rapaz se frustra, pensou, mas é melhor
nem discutir. Que pessimismo, Alex, chega a ser mórbido que pense assim, disse para si
mesmo, e resolveu se embalar nas possibilidades do talvez e não mais questioná-las tão
duramente. Debateram um pouco sobre a questão das comidas hospitalares não terem gosto
algum, é que tudo que é prazeroso faz mal, diz Alex, e não demorou para que André
concordasse. Discutiram um pouco de religião do mesmo modo, por alto, esse é um ponto
importante, mesmo que não se seja praticante de algum culto ou coisa parecida, a própria
predisposição a uma convicção qualquer já pode revelar bastante da pessoa. Alex conta que é
agnóstico, preferiu dizer com curtas palavras que este representa um modo perfeito de vida, e
ciente de sua incapacidade de ser muito expressivo ou falar com precisão das coisas que
pensa, é que Alex se conhece o suficiente para saber que não tem nada de sucinto, para piorar
ocorre que tem muito de cansativo, não se alonga muito a falar dos seus motivos, que
basicamente consistem no culto a são Tomé, a estória de que tinha de ver para crer. Mas bem,
de toda forma é isso um tanto estranho, isto é, se uma coisa já foi vista, não é mais necessário
que se creia nela, ela simplesmente é constatada, pronto, então por si só a crença é um pouco
banal. Desconsiderando essas questões, pode-se dizer ser o único trecho proveitoso do
mandamento, seja qual mandamento fosse, quando aparecia esse fragmento. Você quis dizer
evangelho, corrige André, mas Alex diz que não, quis dizer mandamento no sentido de que
ordena, assim sendo tudo será uma seqüência deles, dez é apenas a raiz, a ponta do iceberg.
Já André tinha algum rancor pela figura de um deus, o que pode se dar por diversas causas,
negação da figura paterna e da opressão, mas evidentemente não deixa isso claro e quando
disse ser ateu o fez com delicadeza. Alex argumenta que o ateísmo pode ser um pouco
contraditório, porque acreditar que deus não existe é tão imbecil quanto acreditar que existe,
mas André é mais esperto e não está disposto a se deixar intimidar por protestos pré-
fabricados, e explica que seu caso não é de desacreditar, mas de possuir uma ausência de
crença, o que já muda tudo, ainda que possuir uma ausência seja um termo engraçado, enfim,
era clara, ainda assim, a inconformidade existencial que existe em alguns, como em André, a
insinuar que ou algo deu-se muito errado em sua vida, ou ele está ciente que independente do
que ela é podia ser muito melhor.

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Aproveitando o assunto, conversaram um pouco sobre deus. André parecia carregar
consigo, para mencionar sempre que preciso, aquele dilema da lógica que algum sabido criou,
então perguntou que, se deus sabe da maldade do mundo e não a cura, talvez não seja
onipotente como dizem, se ele é onipotente e não cura a maldade do mundo, então não é bom
como devia, se é que deus deve algo a alguém, talvez satisfações, então é inevitável que se
deparem com a questão, que raios afinal é deus?, parece que ele sempre vive num mar de
contradições, mas se não se contradisser ele deixará de sê-lo, e que não viessem com aquela
história de livre arbítrio dos homens e não sei mais o quê, isso parece mais pretexto para
justificar que coisa divina alguma ocorra, mas ainda continuar acreditando nela, então ser deus
deve ser mesmo um trabalho muito difícil, ou muito simples, contradizer-se a todo instante.
Então Alex olha para o vazio, pondera por instantes e conclui, talvez ocorra que deus não
pense.
A mesma enfermeira retornou, lá vem ela abrindo a porta de vidro, o mesmo rebolado.
Chegou a perguntar para o senhor de idade próximo ao balcão algo que parecia ser se a sopa
estava boa, ou talvez se precisa de alguma coisa, um pouquinho de sal, um adoçante, um
pouquinho de eutanásia. O velhinho a recebe bem simpaticamente, pena que ela não deva ter
simpatizado com a idéia de por um acaso ir e ver como estavam os marmanjos imundos de
sangue logo ali, veja. Alex forçou André a reparar nas pernas, são mesmo gostosas. Então ele
já ria, não parecia sentir mais o inchaço da cabeça, e após umas piadas comentou que deviam
sair mais vezes para conversar à toa e quem sabe tomar uma bebida. Era boa a idéia. Alex não
falou de si mesmo em qualquer instante porque não há muito o que dizer.
– Alex? – chamou Sabrina, tudo se desfaz num turbilhão instantâneo. Sabe-se lá o que
esteve sendo dito enquanto esteve ausente.
– Foi a última garrafa, prometo – ergueu as mãos como se rendesse, o sorriso torto no
rosto.
– Por um instante achei que tivesse apagado – foi o rapaz quem continuou a falar –, estava
contando de quando estávamos na tabacaria, de quando o colega achou que o maço que
estava saltando do seu bolso era roubado.
– Foi hoje mais cedo. Eu não pude me conter.
– É sério? – a doutora.
– Claro que não – arfou –, o velho fez confusão.
– Parece que seu amigo ganhou de novo na sinuca – falou André.
– Já faz um tempo que liguei pra Letícia, ela disse que estaria a caminho, estranho – falou
a moça.
– Se me dão licença, vou descumprir o que falei sobre aquela garrafa ser a última. Estou
um saco, mas prometo que vou me conter, só vou ali pegar mais uma.
Ele levanta-se, inicialmente testa o seu costume em estar de pé, então se dá conta que
pode andar. Inalou um pouco o cheiro típico dos bares, uma mistura de estofados, ácaros,
perfumes cansados, cigarro no cabelo e álcool, e aí vinha o estalido das bolas da sinuca que
trotava mais uma vez. Apoiou os cotovelos sobre o balcão, o responsável por ele atendia um
grupo de garotas, o qual ele olhou e flertou de algum jeito que arranca risada delas. Alex, você
é o cara mais só deste mundo. O barman veio se aproximando, foi que Alex não se fez de
rogado, – Pega mais duas iguais àquela pilha ali na minha mesa, sim? – pediu duas para da
próxima vez que tivesse vontade não tivesse que se levantar. Entregue a encomenda, apanha
uma em cada mão e vai se retirar, mas o simpático senhor do bar ainda interveio quando se
debruçou para chegar mais perto e foi lhe comentar alguma coisa. – Quer pagar mais umas
pras mocinhas que olhava? – e entorta o rosto na direção delas, estavam agora acomodadas
numa mesa do canto que lhes serviria bem para os assuntos inúteis de garota fútil, e então ele
responde.
– Deixe que elas paguem para mim – responde soberbo e foi dar meia volta para retornar.
Quando voltava a mesa na qual ele sempre esteve viu duas novas moças de pé em frente
a ela. Tardou alguns segundos até que o raciocínio começasse a funcionar, mas acabou por
reconhecer a primeira pelas tranças castanhas e pelo boné que usava, o jeito maroto era o de
Letícia. A que usa jaqueta preta ele não reconhece. Se a primeira impressão das coisas é a
que vale, então teria eternamente a primeira impressão de uma bunda, da qual realmente não
vale a pena pensar se valeu a pena. Mas pode lembrar das costas esguias e bem desenhadas.
Foi se aproximando, podia ver que André olhava ambas, não poderia discernir se com mais ou
menos atenção para uma delas, a essa altura começou a ouvir a voz dos companheiros, teve
140
de se aproximar. Chegou perto o suficiente para que ainda pegasse a palavra amiga recém-
despontada da voz de Letícia, sobre quem curva o pescoço e se apóia com o queixo no ombro,
disse oi com a intenção de causar um breve susto, ao que ela se virou para dar-se conta de
que é ele que estava lá.
– Olá, minha ilustre amiga – falou sorrindo, é, e foi quando seus olhos encontraram o da
outra mulher pela primeira vez. Deve ter sido uma boa impressão.
Ela sorria quando a olhou, parece feliz, em suma pensou se não teria sido uma gafe chegar
ignorando sua presença, mas desiste da idéia da desculpa e relaxou. Conteve-se em acenar
com a cabeça para a moça do rosto bonitinho, o olhar brilhante, parece que essa noite seria
sina sua reparar nisto de olhos brilharem, e aqueles cabelos negros penteados e escorrendo
de forma a completar as formas do rosto. Reparou em tudo tão rapidamente que se perdeu.
Era dessas belezas cotidianas, das que se vê por toda parte e nem por isso são menos
atraentes. Não poderia deduzir qualquer coisa mais complexa do que isso só por ter visto
olhos, rosto e o corpo típico das mulheres que se vêem todos os dias.
– Desculpa o atraso, os outros rapazes estavam saindo pra outro lugar – se adiantou
Letícia –, sabe, tive de arrumar a bagunça. Peguei a minha amiga no caminho.
Alex teve de comprimir-se entre a mesa e as garotas para retornar ao lugar onde esteve
sentado. Sorriu em forma de agradecimento por tão gentilmente abrirem passagem para ele.
– Foi bom eu ter trazido duas cervejas – e as pôs sobre a mesa.
– André, essa é Letícia, divide o apartamento conosco – lá veio Sabrina.
– Não vai nos apresentar sua amiga? – Alex.
– Sou Júlia.
Com o espírito regressando para aquela mesma mesa onde sempre esteve, sentado em
frente ao companheiro de longas datas, aquele mesmo Barbariccia com o qual durante essa
noite troca palavras desimportantes, com o qual conversa sobre a passagem dos seus dias,
dessa maneira estimulavam, entre si, o hábito interessante de comparecer uns na vida dos
outros. A expressão do seu próprio rosto mudara, mantinha um sorriso que acabava se
mostrando difícil de permanecer. Ainda chegou a ver a cena de Barbariccia virando-se para
conversar com uns de seus empregados que vinham numa ou outra ocasião para comunicar-
lhe coisas, ele não parecia tão favorável ao receber essas notícias, ou talvez seja apenas
melhor tratar tudo, o mundo todo com certa rigidez. A garota lá de baixo já está aos beijos com
o cara. O uísque dessa vez desceu queimando menos. Rangeu os dentes, decidiu que era o
último copo, que já se acostumou demais, ao que em silêncio o deslizou pela mesa e com o
olhar sinalizou que não. Viu a moça lá de baixo se pondo de pé, fez que ia colocar de volta o
casaco e o rapaz a auxiliou quando ela estica os braços. A vestiu e tocou suas costas
levemente, contato de corpos, coisa assim, como se apontasse a direção e a dissesse que
ande, ela o atendeu e caminhou, ou apenas se deixou levar, tanto faz. Alex despediu-se de
Barbariccia.
A moça inspira discrição, gestos reservados, jeito de caminhar que talvez sirva para que
percebamos que pode se esconder atrás disso uma personalidade forte, se não isso, apenas
que pensa de si mesma muito forte. Não é à toa que o rapaz que a acompanha possa ser
ofuscado quando ela fala, mesmo que provavelmente a voz dela venha baixinha, como um
mmm gostoso, um gemido no timbre certo, às vezes parece completamente desinteressada
com as coisas que estão a sua volta, mas às vezes ergue a cabeça e nos brinda com aquela
certeza de que somos tremendamente fascinante. Há também o meio termo, que é quando ela
resolve olhá-lo fixamente, mas ainda assim não se pode decifrar se o que há é compenetração,
ou uma dessas delicadezas a que as pessoas se dão por serem gentis, e na verdade ela não
dá a mínima. Tinha também o detalhe do sorriso mordendo os lábios, que é aquele que insinua
seu tesão delicado, e ainda quando é acompanhado de uma risada, ela geralmente se estende
longamente, sem histeria, é tipo uma incontinência da respiração que quer acelerar, um arfar
de quero mais.
Tinha em mente o trajeto que realizariam, ou seja, não demorariam a cruzar aquele
corredor da gente que costuma se acumular a conversar junto à segurança camuflada, à beira
da entrada. Apesar dos passos serem meio lentos e terem de desviar do tráfego, vão passando
por esses cantos ora escuros, ora faiscantes de diversas luzes, e não importando, é claro, as
nuances menores e obstáculos comuns aos caminhos percorridos, valendo-lhes apenas a
intenção, essa era exatamente a de se conduzirem para fora. Ele perguntaria se ela estava de
carro, mas sabe, ela responderia com um sorriso amigável que não era exatamente boa idéia,
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é, a descartava, mas quem sabe se ele não insistisse um pouco?, por isso ele perguntaria o
que tem demais. Ela diria que não, que não era boa idéia. Ele falaria cheio de segurança para
persuadi-la que talvez fosse melhor levá-la ao apartamento dele, e ela hesitaria mais uma vez.
Prefere que seja na sua casa?, perguntaria com a objetividade que não era para ser
exatamente indelicada, mas que serve para pressioná-la. Ela levantaria o rosto com uma
expressão súbita de susto dizendo que claro que não!, ora, que maluquice, e depois sorriria
abaixando o rosto, dizendo para que tirasse essa idéia da cabeça, que era o melhor que fazia,
porque ele tem que entender que uma coisa assim não é possível. Em breve ele retomaria a
conversa, isso de levá-la para sua casa, mas a repetição seria desagradável, tem de inovar na
estratégia.
Começaria a falar sobre como está o céu, melhor estaria se houvessem estrelas, mas
como geralmente não há, já que as nuvens cinzentas usualmente as escondem durante a
noite, e durante o dia não lhes é natural que se mostrem, restava ainda falar daquela lua com
aspecto cadavérico, sujo e doentio. A lua está bonita essa noite, mas o que ocorre é que tenho
algo muito mais belo para observar aqui na terra. Certo, às vezes é melhor não ter poesia
demais, os mais talentosos podem acabar contaminados de pieguice, e para pieguices esse
não é o instante mais propício, presume-se que o cara não tenha falado nada disso. Além do
quê, se o senso de ironia permitisse, o eventual elogio seria tomado às avessas, o caso é que
a lua da cidade é horrorosa como uma bruxa velha. Mas ele poderia falar somente do frio, citar
alguma coisa do tipo, é, quando as coisas estão vazias assim o vento me arrepia com muito
mais facilidade, nem que seja essa brisa fraquinha. Então ele teria se dado conta que, por
acaso e não por sua própria inteligência, teria tocado no assunto de que estão sozinhos,
seguindo por esta rua deserta, na qual podem ainda ouvir os sons da casa noturna vindos lá de
trás, não é algo ainda assim que chegará a tornar o passeio menos silencioso. A garota olharia
para trás, constataria com serenidade o fato de que não há mais ninguém por perto, olharia
para os lados e notaria que até a iluminação é pouca, que só há um poste a cada muitos
metros, e eles estão bem mais adiante, lá onde as calçadas já tangenciam a negridão das
águas da baía, e olhariam para frente de novo, não parece haver uma vivalma por esse longo
caminho, só o umbral, e até o som da danceteria vai-se distanciando, só resta a maresia do
mar, suas ondas assombradas e o deserto atlântico, restam também os passos ecoando, e a
essa altura a garota ia se mostrar um pouco trôpega, efeito de bebida. Ainda assim o rapaz
ofereceria mais um gole da garrafa que trazia, ela aceitaria mais pela animação que por
agrado. Tropeçaria mais um pouco, ele a seguraria, os dois ririam. Terminada a garrafa, o
rapaz a jogaria para longe com a sensação de estar com isso cometendo um gesto como o de
varrer o mundo, até descobrir-se aparentemente tão bêbado ou tolo quanto a mulher.
É claro que ele não deixaria escapar uma oportunidade assim, logo ele já estaria se
aproximando cada vez mais dela, isto é, no começo, viria tocando seu braço, auxiliaria seus
passos, caminharia mais devagar, juntaria mais os corpos, ele veria que ela parece um tantinho
ruborizada. A essa altura a luz mais forte de todas é de uma dessas cabines telefônicas, não
mais que um gabinete mal iluminado errando por aqui, e a claridade comunicaria ao rapaz que
seu tempo está se esgotando, precisa dar o bote antes que a realidade os chame de volta. Aí
voltaria com aquela história de irem para o carro, e usaria da tentação de que ela também
queria, dava para ver, e pressionaria mais ainda perguntando por quê?, e diria olhe para mim,
não esconda o rosto. Ela apenas sorria, encabulada ou estaria jogando, é claro que fingia
alguma coisa, dizia que não sabia, não estou certa. Ele perguntaria, você não quer nada,
afinal?, seria bastante deselegante, a deixaria sem palavras. Então ela diz que quer, mas
também não quer, ai, que dúvida, não me pressione, não sei, não sei. Andariam mais um
pouco no silêncio, o vento sopraria nos cabelos e ela se encolheria instantaneamente, ele
perguntaria se sentia frio, a moça responderia que não era importante, ainda assim ele a
abraçaria, e mesmo que ela não pretendesse ela amoleceria.
Ele aproximava o rosto do dela, aí já se deslocavam, as pernas já ensaiariam uma
coreografia bêbada, de prestes a cair por qualquer irregularidade do chão, mas era esperto, o
sujeito, e seria fácil perceber que a estaria desequilibrando de propósito, e já ia abraçando, a
cercando, ela há de rir um tanto antes de bater com as costas na parede, depois o rosto ficaria
mansinho, ou apagava seduzida pelo sono, com olhos que não se agüentam abertos, ou é que
não tinha mais ou nunca teve motivos para não se entregar. O rapaz ainda a arrastaria, e
segurava suas mãos e pressionava seu corpo até o umbral que será ainda mais denso nas
sombras da cabine, ela pensaria ter ouvido o vento rugir com mais intensidade, na verdade era
142
a boca dele no seu pescoço, o abocanhando. Devia estar bom, que se não não se rendia, é,
não ia se desmilingüir assim, com só um pouco de asco no rosto. Eles se beijariam ainda mais,
se ela tentasse se mover estaria barrada que é para não dar espaço à dúvida, até que as mãos
do rapaz começassem a pegá-la com mais fúria, a respiração se torna mais descontrolada, a
tentar invadir as roupas dela. Ela abriria os olhos e tentaria se mover, veria que não pode,
gemeria algo, sacudiria a cabeça e conseguiria balbuciar aquele pára inaudível. Ele a
suspendia com as pernas, os corpos chacoalhando, ele não a ouvia, e se ouvia não a queria
levar em conta. Assim mesmo. Ainda assim ela repetiria a ordem, ou pedido, ou choramingo,
que tudo isso pode-se confundir na mesma coisa, dessa vez suplicava com mais firmeza, toda
a que conseguiu reunir. Ele sem se dar muito trabalho perguntaria por quê?, ela diria que não
deviam, ao menos não hoje, não aqui, nesse lugar horrível, não agora, o sussurro morreria mal
saído da boca, e ainda sem maiores capacidades de argumento ela simplesmente repetiria
mais vezes que parasse, pára, pára, sério, por favor, não quero, assim não, pára. Tentaria
afastá-lo com as mãos, mas é mais forte e estava decidido, tudo mostra que é impossível,
debruçaria todo o peso que tinha sobre ela. Ele ainda tornaria a perguntar uma ou duas vezes
o porquê de ela estar reagindo, mas não ouvindo absolutamente nada que o fosse convincente,
nada feito. Ela já estava ali, ela foi porque quis, o que estaria esperando?, que ele fosse
inocentemente compreender e não fosse pedir nada em troca?, nem todos gostam de
joguinhos, minha querida, talvez os seus amantes de merda, mas eu não, o respeito é uma
palavra distante para esses dois.
Ela o bateu no ombro sem forças, o rosto deformou-se de semblante de impotência, era o
anúncio de choro que não chega a sair. Sabe deus e poucos outros aonde as mãos do
camarada já iam, no pescoço, nas pernas, nos peitos, na barriga. Alex saltou da escuridão e
pousou com força nas costas do cara. É, e diz-se que em certas ocasiões a força humana é
capaz de se multiplicar, a comprovar essa menção há o que se sabe sobre os loucos, dos
quais dizem que o desespero os torna mais fortes, ou até mesmo se vê isso em fortes
contrações de dor, que pode ser o seu caso, ainda que não como a mulher ao dar a luz e se
tornar incrivelmente vigorosa, ou, ainda tratando-se do exemplo da mulher, a força que é capaz
de ter a mãe ao ver um filho em perigo, capaz de levantar um carro se a criança estiver
debaixo dele, ou mesmo em vão saltar na frente do trem, que aí mais importou a coragem, o
que não vem a ser muito diferente, mas Alex separou a garota do homem, que veio a
cambalear para trás e a murmurar que merda significa isso?, mas esse não é um perdão que
baste, e nada bastará. Alex o puxou e com todas as forças que reuniu e o jogou na direção da
cabine, fez com que batesse o rosto contra a parede de vidro, a face se contraiu, mas o
homem ainda não pode raciocinar, e o louco que o segura veio mais uma vez e não há de se
contentar, não é o bastante. Ele não se contenta. Deu com a cabeça do cara no vidro por mais
uma vez, puxou-o para trás e o jogou com o impulso, então atravessou a vidraça. De algum
canto se ouve de susto o gemido abafado da mulher.
Mas olha, que de repente não foi tão boa idéia a sua, o sujeito mesmo empapado de
estilhaços ainda assim se esforça ao virar-se, está tentando atingi-lo. A sorte é que é golpe de
pessoa tonta. Pode dar um passo para trás sem muita dificuldade e vê-lo acertar o vazio, tudo
se deu muito rápido. Foi precisamente nessa hora que se decidiu, ia matá-lo. Avançou e
acertou-lhe um soco bem no rosto, o sujeito tonteou virando a cara e se desequilibrou, e
quando ele pudesse situar-se novamente só viria que o estranho pulou com as duas mãos em
sua direção. Não poderia conter o peso, ele o empurrou, e para assegurar que a presa cairia
jogou-se em cima dela, então caem ambos a fazer bagunça no vidro partido. Vá em frente,
Alex, só mais uns golpes, bata com a cabeça dele no chão. Aí foi uma desgraceira, em pouco
tempo estavam os dois caídos nos estilhaços da cabine telefônica, um tentando rolar por cima
do outro, mas Alex o acerta com o cotovelo e o golpe parece particularmente doer. Em troca ia
recebendo joelhadas nas costelas, mas não faz mal, a dor estava anestesiada pela vontade, e
sobretudo lhe satisfazia ver que o camarada já ia perdendo suas forças, quando por exemplo
se conteve em ficar protegendo o próprio rosto e se contorcendo onde as investidas davam
certo. Pára, pára, a voz ofegante implora, parece estar fungando sangue após o soco no nariz.
– Pára, filho-da-puta? – ria, rangia os dentes, estava possesso e feliz.
O segura pelas crinas e o dá com a cabeça de encontro ao chão, a amassá-la nos
estilhaços. É, certo, teve de repetir o processo mais umas vezes. Aparentemente já o está
pondo para dormir, não oferece mais muita resistência, os braços dele tentam agarrar o vazio e
reagir contra nada. Bem, até que a idéia de matá-lo não era algo que o fascinasse tanto assim,
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o sentimento de pena, que é um sentimento mais negativo, é maior. Só via aquele corpo
decadente, de rosto cortado, ainda a se virar e babar com dificuldade, se afogando no próprio
catarro, tentando respirar. Não oferece qualquer ameaça. Alex parou porque começou a
cansar. Esticou os braços, como se os espreguiçando. Levantou-se, aí ele mesmo cambaleava
de cansaço. Respirava copiosamente, mas se sentia extremamente glorioso. Não resistiu e
ainda soltou um pontapé nas costelas do imbecil. E olha só, que o desgraçado não desmaia, o
reflexo do chute se propaga no corpo todo, parece um epiléptico, chega a encolher as próprias
pernas. Sua satisfação foi vê-las sangrar quando as esfrega contra o vidro. Deixa ele aí.
Um som de náuseas ecoa no escuro de ali perto, é forçado a voltar a atenção. A garota
parece mesmo estar passando mal. Coitada, não viu se ela esteve o tempo todo
acompanhando a briga, mas agora se apóia no muro e, debruçada como está, associando isso
ao som visceral que acaba de ouvir, deduz que há pouco ela vomitou e não foi pouco. Isso aí,
se faz mal tem mesmo que colocar para fora. Ainda meio tonta ela se virou, deixou que as
costas batessem na parede, pronta para inalar, e inalou muito ar. Ela o encarou por muitos
instantes.
Deu um, dois, quase tropeçou, três passos para trás, tudo o que ela fazia não podia distrair
seus próprios olhos, nada podia vidrar mais sua atenção. É, Alex, seu olhar também não
desviou. A voz atrás de si vinha do gancho do orelhão quebrado, provavelmente comunicava
que o serviço está inoperante. Júlia deu as costas e saiu correndo.

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Esquecia qual vez era que folheava de novo a mesma revista e ainda vê páginas que
nunca viu antes. Põe a cabeça no lugar, Alex, se concentre, não finja que não sabe o que está
te ocorrendo. Certo, não se pode discutir, ele prefere fingir um pouco mais, então será isso. Na
revista, uma folha inteira é ocupada por um fundo preto e a pele cristalina e quase nua de uma
menina, é a propaganda de um diamante. Era mais ou menos assim, se tratava de uma dessas
jóias do tamanho de uma gota d’água a cobrir um pouquinho das pernas da moça, o brilho que
emitia ofuscava e impedia que se visse todo o resto, é bom porque a nudez sempre funciona,
imagina se o anúncio fosse de lingerie. Trata de virar a página antes que alguém visse, que ele
está olhando por tempo demais e pode ficar nítido no que quer reparar, em algum canto o
brilho do diamante há de falhar, na próxima folha encontrou a matéria sobre alguém muito
famoso, só ele em todo mundo não haveria de conhecer. Leu um pouco da reportagem, mas
não agüenta por muito tempo e fechou. O mundo não para de produzir porcarias.
Tenta refazer sem fins maiores que matar o tempo os caminhos que percorreu para chegar
nesta sala de esperas onde está, pensa que se tivesse de voltar sozinho é quase certo que ia
se perder. Vigésimo e alguma coisa era o andar, dividira o espaçoso elevador com uma gama
variada de sujeitos arrumados e carrancudos, desses que não se conhecem entre si e ficam a
resmungar porque estar naquele lugar deve ser um fardo insuportável, e então miram o brilho
dos números por torcer que lhes chegue logo o andar, quando ele mesmo saiu não quis
imaginar os que tinham ficado para os andares seguintes, quão mais alto, pior e mais velhos
são, que o andar daqui se mede por nervosismo. Aí foi à recepção, a mocinha pediu-lhe a
identidade, deu-a, ela prontamente se pôs a conferir as informações no computador, por tanto
tempo o fez que ou é muito estúpida ou pensa que ele é estelionatário. Enquanto isso, ele olha
a vidraça das paredes do saguão. Alto assim não a abrem, que deve ventar demais, pensa se
nos sugaria para fora feito pane em avião, a mocinha arrancada de sua mesa a empalidecer e
explodir. O brilho escaldante do dia esquenta as coisas lá fora, aqui dentro temos um delicioso
ar-condicionado, aqui dentro o dia só serve para iluminar a vista da cidade, arranha-céu e
torres cinzentas, peças feias de um quebra-cabeça inerte, e voltou-se à mulher, ela o tinha
chamado mas esteve distraído, senhor?, senhor?, ela o aguarda. Acena que agora a ouve, e
ela fingindo-se bem disposta aponta a direção que devia seguir.
Então atravessou um corredor com várias portas, no fim faria a curva, mas tinha também a
porta transparente que dava para um salão desses onde se tem gente trabalhando, ainda não
o via, mas ia cruzá-lo, a porta se abriu e o rapaz que esperava veio atendê-lo, porque não se
pode deixar a gente solta por aí, depois ia conduzi-lo por uma labiríntica infinidade das fileiras,
com a periferia dos olhos pode ver cubículos, salas de revelação, salas de xerox, salas de
áudio-visual, sala das reuniões, sala do cafezinho, sala dos esporros, deve ter sala de
palmatória, sala da conversa-furada, salas não-identificadas, salas fechadas, salas secretas,
corredores, e finalmente o lugar-nenhum onde chegou, feito andasse em círculos ou feito tudo
fosse igual, está nessa recepção de bancos acolchoados onde ninguém ousa respirar. A porta
pela qual o mundo todo espera se abre, dela saiu um homem engravatado que afrouxou o
colarinho e foi embora.
Pára, Alex, por mais que se diga da cabeça vazia ser oficina do diabo, às vezes se ignora
que foi o diabo que a fez assim, nesse caso não adianta prender-se a outra coisa qualquer ao
se pensar, nada funciona a não ser o foco da própria perturbação, há quanto tempo não via
Júlia?, pensou, é claro que era isso que não lhe saía da cabeça. A resposta à pergunta foi a
seguinte, é, hum, hum, faz realmente muito tempo, suficiente para se dar conta que os rostos
mudam, mas ainda carregam essa familiaridade fascinante para que sempre nos lembremos
que nunca deixamos muito de ser o que somos. Júlia. Imagina como ela andava, viva, sorri,
que só são mesmo vivas as coisas que se vê ou estão perto. Sabe, quando a conheceu ela
tinha lá suas ambições, ambição de se dar bem, porque é esforçada e conseguirá na vida a
posição que desejar, está disposta a fazer qualquer coisa para conseguir o que quer, isso é
algo que não se diz com todas as letras, mas se percebe quando ela deixa escapar, como num
sorriso ou quando se dá conta que falou demais. Então se constrange, de novo um sorriso e
um fale mais sobre você. Não é nada que se destaque do que se costuma ver por aí, é só que
não esperava vê-la, de repente foi só susto. É que quando as pessoas mudam parece ser
exatamente para o que nunca poderiam ser, não sabe dizer se é esse o caso, mas enfim, pois
é. É, Júlia. Estava contente por tê-la encontrado. Ainda assim é irônico que não deixe de ser
uma assombração a inocentemente persegui-lo, não importa as diferenças, as revisões ou as
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surpresas, a assombração parece que há de ser sempre a mesma, então ele sorri, e conclui
que a assombração sou eu mesmo, a implicar, é isso que você faz, implicar com os seus
próprios demônios e depois lamuriar-se com ai, como eles me angustiam, todos eles. Colocou
a mão sobre a testa e a curvou, se disse que está tudo bem, que agora não faz mais diferença.
A secretária é uma senhora de idade e com aspecto bastante respeitável, parece um poço
de lealdade e coerência, clamando por um caixão. Ela ficava indo e vindo dentro do espaço de
sua mesa-balcão, transportando um ar metódico às coisas que fazia, seja trazer um papel ou
olhar por alto um telefone que não a merece, ela tem de sujeitar-se a tocá-lo. Ajeitou ele
mesmo a sua própria gravata, inspirado pelo gesto do sujeito que passou um pouco antes,
aquilo devia definir um ar de importância à pessoa, algo do tipo, ai, as responsabilidades hoje
em dia têm me pesado muito, ando precisando relaxar, aí suspirava. Era quando afrouxava a
gravata e desabafava um tantinho, permitindo que as costas deslizassem pela cadeira, sou
alguém muito importante. Imaginou se não tinha causado inveja com seu gesto tão executivo,
executivo, riu internamente quando pensou nesse termo, enfim, se não tinha causado inveja
àquela moça bem vestida e de jeito formal, mas ela estava compenetrada nos papéis que lia,
que são as coisas importantíssimas que está suando por ter de entregar, ai, será que vão
gostar?, será que é bom o bastante?, ai, a vida feita de ais. Foi aí que o horário começou a
aborrecê-lo. Veja bem, ele considerou, que tanto aquele senhor que rabisca umas coisas na
agenda, como também o outro que lê uma das revistas disponíveis e a própria moça que lia
suas coisas, todos esses, ao que indicava sua memória com um pouco de incerteza, tinham
chegado antes. E ora, sou um cara dos ocupados, não tenho o dia inteiro para ficar a mercê da
ocasião dos outros, riu mais uma vez. Talvez só precisem mesmo pôr uma janela nessa sala,
que assim do jeito que é é um ambiente um pouco claustrofóbico, era como se fosse projetado
para coagir as pessoas a não pensar em outra coisa diferente do assunto que as levou ali.
Júlia.
Não é isso que o tinha levado ali, que loucura, loucura de roer as mãos e começar a
implorar que saia da cabeça, mas é que ela sempre o invade para confundir e atrapalhar, é
quase como quando se troca o nome de quem se quer chamar, um desses atos falhos que
comprometem a vida toda, a sua vida é um ato falho onde chamou por Júlia quando quis um
café, por favor. Júlia continua longe.
– Senhor Alex? – é o que pergunta a senhora. É uma dessas vozes em harmonia com o
ambiente, voz-de-enfeite.
Ele ergue de súbito o rosto, vê a secretária atrás do balcão a buscar quem na sala viria a
ser o tal senhor Alex. Ele fica em dúvida, mas respondeu.
– Sim.
– O diretor o aguarda – comunicou com indiferença.
Ergueu-se sem contestar, esse é o meio tempo em que a senhora já volta a seus serviços.
Imaginou o que leva uma pessoa a trabalhar com arquivos, exigência, cópias e mais cópias de
mil chatices, telefonemas de gente desagradável, tudo repetido por várias vezes e tudo durante
quanto o dia durasse, há muitas coisas que permanecem sem respostas, uma delas, e também
a mais insignificante, é a secretária do escritório do diretor. Ele vai até a porta, ao olhar de
relance por cima dos ombros viu que, com uma tranqüilidade búdica, aquelas outras pessoas
permanecem obcecadas quando deviam angustiar-se pelo tempo devorá-las. Levou a mão à
maçaneta da porta, já ia abri-la, mas ouviu, vindo de um sussurro discreto, aquelas palavras,
senhor, melhor ajeitar, quando olha para o lado a senhora simula um nó ao pescoço. Curvou-
se ligeiramente, tentou olhar para si mesmo, depois seguiu o que considera ser a orientação
dada e apertou a gravata. Sentiu sufocar um pouco, mas entende que é assim que devem ser
as coisas, e aí entrou pela porta.
Imediatamente se deparou uma vez mais com a claridade do dia, e a mobília que o cercava
de todos os lados parece irradiá-la por suas superfícies. É como previa, uma dessas salas bem
servidas, a estante com uns livros etc etc, os quadros na parede, o carpete, os sofás, as
janelas de venezianas entreabertas, mas nada disso teria importância se não fosse pelo senhor
de aspecto grisalho e altivo atrás de sua mesa, em torno dele todas as futilidades gravitam e é
por ele, não por você que acaba de chegar, que as futilidades são o que são. Tinha porte, o
senhor, não as futilidades, da gente que lida com coisas importantes, apesar de ao certo não
saber do que ele viria ser o diretor, se de edição, se financeiro, se administrativo, se
presidencial, enfim, diretor de cinema não deve ser, nem de teatro, mas de alguma coisa que
lhe vá resolver a vida, então está certo. Seguia as informações que Condor o passou, é isso e
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deve ser o suficiente, além do quê, de todo modo, chamá-lo de diretor, não, de senhor diretor,
já deve fazer com que o ego reconheça estar na posição que almejou, ao menos numa
favorecida em relação às demais que pelejam com o suor e adversidades de um mundo agro,
está realizada a vida e, assim, ignorando qualquer conhecimento ou ignorância mais profunda
sobre o caráter ou o espírito de qualquer um com quem conversasse, se manteria em paz. Ele
se ergueu, e aí veio com um sorriso de educação para cumprimentá-lo. Alex estendeu a mão e
ele a apertou com firmeza.
– Bom dia, senhor Alex.
– Bom dia, senhor diretor – moveu a cabeça com gentileza.
– Por favor – e estendeu a mão apontando as cadeiras – queira se acomodar.
– Obrigado – que gentileza, e se sentou. Seu corpo afundou gulosamente naquela
poltrona, tem de comprar uma igual para sua casa.
– Então – o diretor ia tomando o seu lugar da mesa –, bem, tenho ouvido falar a seu
respeito.
– Obrigado, senhor – mantinha a coluna reta, mas era um pouco doloroso.
– Talvez possa servi-lo com alguma coisa. Água, café, chá?
– Bem – fez que pensou por alguns instantes –, um café, sim.
O homem apertou imediatamente um botão do telefone, – Dona Carmen, por gentileza,
providencie dois cafés.
Alex olha o retrato da menina loirinha que quase sem sombra de dúvidas se trata da filha
do senhor. Ela está brincando com o cão muito peludo num quintal e ao fundo via-se a casa,
falar casa é medíocre, trata-se de um casarão, palacete que deve ser um desses que fica em
regiões emblemáticas da cidade, bairros que muito poucos são os que vão, menos ainda os
que vivem por lá, esse tipo de coisa. A mulher num outro retrato deve ser a esposa que só está
casada por dinheiro e comodidade. Ficaria reparando em outros souvenires que enfeitavam a
mesa, como por exemplo a bolinha de cristal comprada em outro continente que quando se a
gira fica fazendo flocos da neve flutuar, mas sente as pálpebras pesarem um pouquinho feito
tivesse sido ele a ser posto de cabeça para baixo, estou nevando, ele pensa a imaginar-se
como um souvenir, e não imagina que mesa gostaria de abrigá-lo, sente sono, que não é
exatamente sono, mas noite mal dormida. Seus pensamentos teimam em ficar oscilando sobre
questões diferentes, teve de domá-los como se torcesse uma toalha, precisa batê-la no chão e
por fim transpira de cansaço.
– Imagina de quem seja o quadro na parede atrás de minha cadeira? – parece estar
tentando ser simpático.
– Vejamos – murmurou sem muita consistência, mas ainda assim parece bonito, falar
assim lhe confere um ar de elegância. O quadro é dessas coisas modernas e manchadas que
poucos vêem coisas faláveis –, não, senhor, já vi parecido, mas não faço idéia.
– Foi um presente de seu amigo – o diretor sorri.
– Entendo.
– Devo dizer-lhe. O vi poucas vezes fazer o que tem feito por você, toda essa
recomendação. Isso me fez pensar. Qual o tipo de relação de vocês?, se conhecem há muito
tempo?
– Sim, senhor, amigos de longa data.
– Ele está assumindo tudo por você, correto? Vai representar o que você fez sem mesmo
assiná-lo. Tomou a responsabilidade sem ter a autoria. É impressionante.
– Obrigado, senhor.
– Mas devo confessar que me pegou um tanto desprevenido, meu jovem, e isso me deixa
um tanto quanto, vamos dizer assim, transtornado.
– De que forma, senhor?
Nesse instante a porta se abriu. Ele não deu mais que um olhar para ver de quem se trata,
desde antes deduziu ser o café, a dona Carmem, defunto que nas horas vagas é secretária,
vem trazê-lo, assim ela chega andando elegantemente, do jeito que ela deve sempre ser, a
imagina agarrando-se no senhor diretor ao fim do expediente, ai, senhor diretor, não tenho
idade para isso, ela dá essa risadinha, mas é sua decrepitude que me atrai, viu, cachorra?
Deixou meticulosamente os copinhos sobre a mesa, ao que imediatamente se pôs a sair, tão
rápido que não seria esse o tempo nem de uma fala para outra. É um pouco enrustida demais,
essa senhora. Vai ter câncer no estômago.

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– Obrigado – Alex disse enquanto ela largou os copos. Aproveitou enquanto ela não saía,
afinal deve ser essa uma conversa íntima, e toma um gole do copinho. Está quente demais que
fere o paladar, o gosto de cafeína está no ponto.
– Entenda-me. Ele disse que você está nos oferecendo um privilégio, essa foi a palavra
que o senhor Condor usou, e que em troca deseja receber um trabalho.
Alex gostou do termo, privilégio é uma boa concepção da coisa. Até hoje não tinha se
importado das maneiras como o velho ia cumprir com suas palavras, mas tendo em sua frente
um esboço do que está sendo feito já lhe parece ligeiramente satisfatório. Aí ele sacudiu
levemente a cabeça como se dissesse, é, é, as coisas podem ser encaradas assim mesmo,
privilégio, privilégio é uma boa concepção da coisa.
– Sim, sim – fez o gesto e disse essas palavras.
– Mas veja bem, temos um sistema seletivo, uma dinâmica encarregada estritamente do
recrutamento de novos empregados, por trás disso se move um aparato burocrático – esse
cara gosta mesmo de dificultar as coisas – que não envolve apenas a minha vontade, não
depende apenas do meu aval. É difícil para mim dar prioridade a uma pessoa, espero que não
entenda mal, não é nada pessoal, é claro. Mas há uma série de pessoas na nossa fila de
competências. Um emprego fixo não é coisa que se sorteie hoje em dia. Você entende.
Presumo que estaria cometendo uma certa gafe contra a ética, se não se incomoda de eu
tornar as coisas tão claras, e a ética é mesmo importante, até mesmo numa pequena forma de
injustiça.
– Não gostaria de causar problemas, senhor.
– Eu sei, senhor Alex, ao que tudo indica você é de fato um homem razoável.
– O senhor também, senhor diretor.
Por alguma razão o diretor pareceu desconcertar. Alex sabia o porquê. Provavelmente o
homem só teria tentado manter em vista o abismo que os separava, ou seja, algo do tipo, ele
pode julgar o seu caráter da maneira como o fez, porque nesse gesto tão cotidiano, mas cheio
de profundidades, diz o que ele era e deixava de ser, mesmo que nunca o tivesse visto antes
na vida, que aí revela, certamente, que o patamar no qual se senta é superior, os propósitos
são outros, as castas são diferentes, nascemos para fins distintos. Aí vem Alex naquela
aparência de inocência e arruína tudo. Agora o diretor sorria tremulando um pouco, de
vingança apenas olhava. Soprou um pouco do cafezinho, não queria ferir a língua uma vez
mais.
– Bem, o senhor talvez possa nos arranjar seu currículo, referências de outros empregos,
alguns números para contatos. Esse tipo de coisa pode fazer muita diferença, se fizer pesar
para seu lado será sempre um homem de sorte.
– Eu não tenho um currículo.
– Você não tem um currículo? – ecoou, mas agora a frase vêm com incredulidade.
– Nada que valha a pena saber, senhor. Tenho as referências que já foram dadas, estou
me apoiando nelas – e bebericou mais um gole.
– Você tem a amizade de alguém renomado, mas não apresenta quaisquer outras
referências profissionais, alguma forma de eu poder me instruir melhor sobre você?
– Não, senhor.
– Você não tem absolutamente nada a me apresentar?
– Tenho O retorno à escuridão.
– Ah, isto – o diretor ergueu um pouco o queixo, tenta formar essa expressão grave, o que
conseguiu. Em seguida, ajeitou os óculos sobre a base do nariz, agora está recuando até as
costas estarem amparadas no colchão da cadeira.
Com gestos pesados e suficientemente sem mais demoras ele abriu alguma das gavetas
que tinha nesses cantos de sua mesa, dela tirou algo e colocou prontamente sobre a
escrivaninha. Antes que viesse tocar a superfície já pode ser reconhecido, era o retorno à
escuridão, lá está a capa preta inconfundível. Reparado nisso, ainda havia algo estranho, o que
ele notou que, se olhasse bem, pode ver que apresenta diferenças pequenas como uma
encadernação consistente e até a qualidade superior do material de que é feito a capa, não
pôde conter um leve franzir das sobrancelhas.
– Não é o original – afirmou.
– Obviamente que não, foi uma cópia encaminhada a mim.
– Há outras?
– Presumo que não, mas, em breve... – e franze um pouco a boca.
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– É mesmo?, o senhor chegou a ler? – Alex esticou os braços sobre o estofado da
poltrona, achou que essa posição o deixasse mais intimador.
– Sim, superficialmente, algumas páginas. Sim.
– E está interessado?
– Achei um tanto agressivo, se me permite o comentário.
– Não posso negar.
– Te sendo bem sincero, não gostei nem um pouco.
– Hum.
– Mas o conteúdo é moderno – bufa. – Uma dessas... coisas da modernidade. É peculiar,
eu não chamaria de um livro de cabeceira – e sorri –, mas tenho de pensar no meu público.
– Essas são as coisas que não me dizem mais respeito. Mas, quanto ao emprego, para o
jornal poderei escrever sempre que mandarem.
– Compreendo. Mas creio eu que não possa usar meu poder dessa maneira.
– Me pergunto por quê.
– Eu já te expliquei, é inadmissível que eu passe por cima de outros.
– Os outros o oferecem o retorno à escuridão?
– Não é esse o caso.
– É justo que não julgue a mim, julgue a coisa à sua frente – e apontou, mas conteve a
vastidão de seus gestos, eles podem ser lidos de muitas formas quando intensos demais. – Eu
só quero essa recompensa. E então, de que referência além dessa precisa?
– Isto é algo que precisamos considerar com calma – balançou a cabeça, escapava da
questão.
– Não parece uma troca comum e rápida?
– É tudo que você quer? – perguntou, as sobrancelhas tocavam no nariz, o parecia
estudar, tenta inutilmente compreender de quem se tratava, antes perguntasse, e ouviria um
não sei.
– É tudo que quero do senhor – achou que isso tinha soado especialmente grave. – Mas se
não estiver interessado, não tenho nada a fazer, a não ser procurar outros pra abordar, eu não
sei.
– Não, estimo que não será necessário.
– Então?
O diretor arfou, mas teve de manter um ar de solenidade, – Acho que posso conseguir o
que você pede com um pouco de esforço, talvez. Mas tem de me assegurar algumas
condições.
– Que não afetem as anteriores, que sejam quaisquer, senhor.
– Devo recomendar-lhe que essa conversa não saia daqui. Os motivos, eu espero que
compreenda.
– Que conversa, senhor?
– Bom, está certo. Por via das dúvidas, pedirei que dentro de alguns dias o telefonem para
dar a confirmação. Presumo ter recebido com uns outros dados o seu número para contato
atual.
– O que o senhor recomenda para meu começo?, posso falar da violência, de desemprego,
da exclusão das gentes, não sei.
– Isso tudo você já fez, escolhamos algo mais brando. Fale dos parques, por exemplo, ou
dos teatros. Temos bons teatros na cidade.
– Excelentes teatros, senhor, permita-me a ênfase.
– Acho que estamos entendidos – e estendeu-lhe a mão, elas se apertaram. – Providencio
ao senhor um motorista para casa?
– É bom, já que nunca tivemos essa conversa e presumo ser mais oportuno que por via
das dúvidas eu saia pela garagem do edifício. À propósito, quando será nossa primeira
reunião?
– Vá com um pouco mais de calma. Pessoas espertas não são assim tão bem-vindas
quanto você pensa.
– Meu senhor, não quero o seu cargo, apenas um salário.
– É mais inteligente do que eu pensava – e tirou o fone do gancho. – Já providencio o
carro.
Posteriormente chega à conclusão de que por mais que caminhasse e repetisse o
processo por aqueles corredores nunca saberia dizer quando por fim há de se acostumar com
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esses caminhos, quando estará apto a percorrê-los novamente, e ele não pretende fazê-lo
nunca mais. Acabou sendo a conduzi-lo um certo homem franzino e de movimentos rápidos,
umas feições rudes e que deve ter a língua cortada para não ter de falar os segredos que sabe.
Certo que é um desses homens que fazem o serviço pesado da gente importante, limpam as
suas sujeiras, as caquinhas do nenê. Talvez já esteja a ser enviado para algum assassino, não
pode afirmar com certeza, mas há algo de medonho naquilo que circunda ou entrou em contato
com o retorno à escuridão, algo de pagão e mafioso, enquanto garagem só é um codinome
qualquer para lugar de despacho, não é algo que se deva ignorar, apesar de não parecer ser
essa uma situação em que permitiria que se façam tempestades em copos de água. Pelo sim,
pelo não, durante todo o tempo vigiou com uma curiosidade tranqüila os trejeitos do serviçal
que o guiava, que sempre vai na frente, de repente mudava a direção do percurso, mas
sempre que o fazia tornava para trás para constatar que ainda o segue. A essa altura,
imaginava se conseguiria desviar nem que temporariamente os seus lapsos para algo que não
fosse relacionado ao retorno à escuridão. Ou Júlia. São muito parecidos. É que atualmente se
passa o seguinte, uma vez tendo sido a coisa materializada como idéias sucessivas, impressas
e tudo mais, o que nele constava passava a ser tão real quanto o fato do próprio Alex existir,
isso senão ainda mais real, já que as coisas que não apresentam vida própria alongam sua
existência por mais tempo do que as formas de vida que as consomem.
Sendo assim, percebia a falha nas palavras que agora há pouco havia dito, referentes à
responsabilidade que tinha sobre o retorno à escuridão. A verdade é que, independente das
normas que asseguram que o criador tenha seus direitos sobre a obra, o retorno à escuridão,
desde sua primeira linha, quando o objetivo genérico do que começava a ser feito sequer era
previsto, aquelas letras já começavam a adquirir vida mais do que própria, isto é, talvez até
uma forma superior de existência, e esse era o sinal óbvio de que em pouco tempo o retorno à
escuridão se tornaria uma espécie de bicho independente. Muito perigoso. É uma dessas
agonias que às vezes vem e no caso o poria a pensar o seguinte, meu caro, sois mais que um
instrumento?, por mais brilhante que sejam as idéias geridas, transcritas, pensadas ou faladas,
o controle que se tem sobre isso é ínfimo, o resto tudo vem de algum berço cerebral profundo,
que por sua vez define o ser humano como sendo um incrível ser auto-suplente de pequena
parte consciente projetando-se para fora e supondo o que acontece à sua integridade escura,
no lado negro da lua.
Por isso, se pode entender o motivo para ele não buscar o apego ao título de autor
daquelas idéias, ao qual se diria que tem o direito, mas por quê?, é que seu trabalho até agora
consiste na tarefa de um compositor, engenheiro ou cientista, que é a tarefa daquele sujeito
que adquire a maestria do manuseio das peças que lhe são dadas, ainda não sabendo
propriamente que desconhecido e que função é que as formula, que criatividade tão profunda
será essa, assim ele articula, ele molda, alimenta, dá formas e cria, de onde vem não saberia,
é a criança pequena que não sabe da vida e supõe ter sido trazida pela cegonha. Ainda assim,
não foi com ausência de orgulho que ele concluiu diante de si mesmo que o retorno à
escuridão é a manifestação da humanidade latente, o elo perdido à nossa individualidade que,
por acaso ou por destino, se confunde erradamente com egoísmo. Trata-se, assim, de uma
necessidade gritante de ser posta para fora, só que muito sonolenta, que em algum período do
tempo acorda para dizer que veja só, talvez já seja boa idéia que sejamos ouvidas, e aí entra
Alex, que talvez seja esse sinal. O que indica a potencialidade de algo ser compreendido talvez
seja, antes de tudo, a predisposição de ver esse algo sem refutá-lo de preconceito, sem
escarninho pelo ridículo da novidade, sem qualquer indisposição enraizada que nos afasta do
choque que devia ser natural. Por outro lado, Alex tem medo. Um medo intuitivo de ser um
pária ou próprio anti-cristo.
O retorno à escuridão tem a pretensão de mudar as estruturas de como se pensar. Mas a
intenção, se descrita simplesmente por essa forma, cairia junto das coisas etéreas que na
prática não nos faz diferença e nada mudam. O retorno à escuridão quer definir que não haja
nada produzido pelo homem que se diga inevitável ou que não possa ser espontaneamente
reformulado. Por exemplo, não é absoluto que o assassinato seja ruim. O assassinato muitas
vezes atua como instrumento pacificador, enobrecedor ou de sobrevivência, o assassinato ou
coisa qualquer, como o ódio ou a corrupção, nada disso é absoluto, e uma idéia ser julgada
como idéia é burrice, que só se pode definir valor à coisa que aconteça, a idéia feita carne. O
mais ferrenho humanista com um revólver nas mãos até poderia claudicar em alvejar o tirano
sanguinário que oprimiu e pôs gente feito bezerro em câmaras de gás, ou um qualquer que
150
oprimiu as minorias, poderia alegar que é preciso uma justiça imparcial, assim apenas estaria
dando a arma que se precisa para ser ele o próximo cadáver dos segundos, um cadáver do
fracasso ou da honra, não importa. Ou este cara gostaria de dar para outro a responsabilidade.
Outra pessoa sujaria as mãos. A vida é feita de pessoas sujando as mãos o tempo todo.
Conclui-se simplesmente que toda a regra tem sua exceção, e até mesmo esta de toda regra
ter sua exceção deve ter lá a sua, e a exceção final de todas as coisas é a verdade, e
engraçado que só se a terá excedendo a tudo que se tem, não é por aceitá-la que se a
descobre, mas exatamente por não querer aceitá-la, por aceitar-se o por quê?
Um valor clássico das conveniências, por exemplo, é a conservação da própria vida, sendo
ela o único bem que portamos de fato, é o bem maior que trataremos de conservar, isso está
claro. Mas, ainda assim, não é isso algo que defina uma lei orgânica, como, por exemplo,
definir que temos pernas e não asas, pois esse valor – o da vida, não das asas, por tudo que é
mais sagrado – pode ser facilmente desmentido pelo suicídio. Dessa maneira, não havendo
regras reais e havendo esse consistente possibilismo, ainda que aqui entendamos um homem
não por uma consciência iluminada sobre seus atos, mas por um inconsciente que resolveu
reconhecer-se como tal e desde então insinua que vai acordar, bem, diante do possibilismo dos
atos, através deles o homem pode tornar-se diferente a todos os instantes. E nada do que se
conhece foi inevitável, e nada do que será assim é por sê-lo.
A única coisa da qual não se pode escapar é da existência de algumas coisas naturais que,
por não terem princípio humano, e assim não estando predispostas a apresentar controvérsias,
no máximo têm seus modos de serem ritualizadas. E uma coisa natural é, por exemplo, que
existe uma força que nos prende ao chão, e outra verdade é que todo homem precisa pôr em
dia suas necessidades fisiológicas, como se alimentar, repousar, cagar, desconsiderando por
ser inoportuno o caso de alguns monges e outros sujeitos que vez em quando aparecem para
nos dizer o contrário, que comem luz, coisa assim. Outra importante coisa natural, e aqui Alex
se aventura um pouco mais na esfera das coisas subjetivas, é algo que, apesar de
constantemente reparado e normalmente aceito, torna-se perigoso e corajoso dizê-lo como
verdade, e é aquilo de que a gente é só um pouco consciência, e que o si mesmo não é
somente o que se sabe de si, tal como não é constante. Reconhecer a isso pode ser uma
desculpa para se isentar de responsabilidade. O retorno à escuridão diz que alegar ignorância
não nos torna menos responsáveis. Até porque não há deus nenhum fora de nós para
transferirmos a responsabilidade das nossas falhas ou os prêmios dos nossos acertos. Ou a
alegria que esperamos ter um dia. A responsabilidade está toda no tremendo caos humano.
Já foi dito do homem ter de conhecer a si mesmo para conhecer aos deuses e ao
universo, talvez o homem que conheça a si mesmo simplesmente não queira mais lá saber de
deuses, ou então estará muito cansado para conhecer a algo mais. Um homem que
dispusesse de cem por centro de consciência de si próprio seria absurdamente livre de si
mesmo. Poderia fazer qualquer escolha que fosse galgada na inteligência de saber de onde
vem o estímulo que o induz a essa vontade, teria os medos iluminados, as implicâncias e os
anseios e os arroubos, o homem livre de si mesmo teria idéia de todos seus impulsos, ainda
que não vá lá responder questões celestiais como de onde eu vim?, e para quê?, saberia quem
ele é, e por que é, e o que vem se tornando a cada instante. Esse homem não nos interessa
porque não existe, e é disso que trata o retorno à escuridão.
Portanto, antes mesmo de tudo, o homem não pode ser livre de si mesmo, ainda que tenha
uma porção como consciente, essa que formula os pensamentos e diz-se eureca, ela é
inteligente e lúcida, por mais que alguns espécimes da nossa raça gostem de fazer parecer
que não. Essa forma consciente aprendeu a alienar-se estranhamente da integridade – a
porção que é capaz de reconhecer um estou triste já não é a mesma que está infeliz –, como
se se projetasse para fora e tentasse, num estudo de espelhos e rastreamento, compreender a
si mesma, se olhar quase como nos olharia alguém de fora, mas apenas quase, que não
enxergamos tanto assim.
Por isso, o retorno à escuridão aceita a consciência como a ponte inteligente entre o
espaço e o inconsciente humano. Em parte, a carga de impressões que nos vêm pode ser
assimilada pela linguagem que a consciência usa para interpretar as coisas, que chama-se de
razão e se usa de seus tantos métodos, mas em parte a carga de impressões nos desce rumo
a um universo interino, e a resultante secreta dessas tantas coisas se colidindo produzirá,
terrivelmente, o que somos, mesmo que não saibamos o que venha isso a ser.

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A cabeça é um cárcere explosivo. Divagando um pouco mais, é também por isso que surge
a comunicação. A comunicação, a troca, é universal. É a coisa mais natural de todas, de si
para si ou para além. Todo o resto já não é tão universal assim. A comunicação quer
agoniadamente expressar intenções, dar a entender idéias, a comunicação quer fazer a coisa
solitária ser, se tornar, mas é absurdamente falível, é apenas um meio, estão aí para
comprovar isto uns erros na concordância ou mesmo grandes mal-entendidos. Então, mesmo
que o homem esteja se relacionando com o mundo, está condenado à prisão de si mesmo. É
uma solidão medonha. Sua capacidade de compreensão das coisas não depende da clareza
da informação, mas da eficácia de sua própria inteligência. Cabe o ditado que para bom
entendedor basta meia palavra. Para que não se perca o tema, é esse um aspecto que
permeia a constituição espiritual das pessoas, que se vê nas suas relações. Elas têm isso em
comum, é algo que as une. O poder nasce das pessoas sendo entre si, o poder é a ponte entre
o indivíduo e a plenitude que ele deseja alcançar, esteja essa no céu ou a sete palmos do
chão.
O retorno à escuridão não se compromete a explicar a tudo, mas mostra esse tudo para
que quem tenha olhos veja.
Tudo que o homem até hoje tem se tornado é um produto caótico de vários fatores. A
necessidade, que nos que precisamos nos alimentar, nos protegermos do frio ou do calor etc,
conveniência, que se desdobra da necessidade mas se traduz em facilidades, comodidades e
praticidades que trazem prazer ou ajudam a trazê-lo, ação, que pode ser resultante de uma
escolha sábia ou idiotice, independente disso cospe de volta suas reações, o mundo, que por
exemplo geograficamente não depende de nós, assim ferrenhamente faz com que tenhamos,
até então, improvisado para nos organizarmos conforme seu humor, e o pensamento, que
conciliando a todos os fatores anteriores é capaz de criar coisas para melhor nos posicionar
dentro da realidade que deus ou big-bang nos deu. Tendo em vista gêneros tão abrangentes,
comprovamos uma vez mais que não existe organização que inevitavelmente precisou ser
aquela, que não poderia ser diferente. O que se deu foi a cooperação entre os fatores
mencionados, o que, por sua vez, conduziu a história.
Não precisávamos viver essa civilização. Não precisávamos ter esse estilo de vida. Esse
mundo não foi a melhor das escolhas. Foi apenas uma delas. A história nos revela os
interesses dos indivíduos e o que eles são capazes de tramar para a própria satisfação. Toda
guerra é por satisfação, toda revolução foi um protesto contra a sua falta. A liberdade põe a
todos em lutas de interesses, e eis o grande risco a todos nós, à toda existência. Mas, no fim,
aos sobreviventes da seleção natural ou da sorte, ou, ainda, se o homem for mais inteligente
do que se tem mostrado, aos sobreviventes do entendimento, o resultado entre nós é
igualdade. E finalmente o paraíso.
– Para onde, senhor? – o motorista era jovem, tinha um jeito razoavelmente malandro,
assim, mascando chiclete e sentado com desleixe no banco. Não é desses que combinam com
o uniforme, não é um desses que se tornam simbiontes com o cargo.
O carro também tinha lá o seu conforto. Quando olhou pelo vidro uma última vez, ainda
pôde ver que o sujeito magricela e de rosto cruel estava parado, vigiando, ali de mais adiante,
próximo a uma pilastra, até que constatasse que de fato já teria ido embora. Até mesmo dentro
do elevador não parou de esmiuçá-lo. Como se Alex fosse saltar antes do andar certo e fugir
sabe-se lá por quê, como se fosse correr o risco de se perder. Agora estavam em algum nível
dos subterrâneos, por fim só restaram poucas pessoas no elevador na hora de sua parada,
dentre as quais alguns sujeitos que ainda adentravam pelas passagens entre os carros na
busca dos seus.
– Para longe desse cara, faça o favor – respondeu voltando o rosto para dentro. O
motorista arrancou.
Agora, que já se punham em movimento, pode relaxar enquanto espera chegar em casa.
Lhe faltava pouco para entrar em seu torpor, o espaço de onde não se comunica, e aí, com um
pouco de dificuldade da memória, se martelou para arrancar do seu fundo o endereço de onde
mora. Tropeçando um pouco, hesitando em uma ou outra informação, não lembrava do maldito
número do prédio, aos poucos vai passando todos os dados. Pronto, agora em que ia pensar?,
em Júlia?, não, isso o chatearia.
– O senhor trabalha com a assessoria? – o motorista perguntou com ar formal.
– O quê? – e só então se deu conta do que o distraíra, não pôde conter o riso. – Não, não
– acenou. – Sou só desses de serviço pequeno.
152
– Certo – o rapaz também se sentiu à vontade para rir, sem exagero. – Sou Hugo. O
senhor então está trabalhando no jornal.
– Pelo amor de deus, devemos ter a mesma idade, não há o que nos separe, não sou
senhor, Hugo – aí percebeu se não seria cômodo, enfim, afrouxar a gravata, o que fez na
mesma hora. – Sou Alex. Sinto que consegui uma vitória hoje, é uma boa sensação. Quer falar
a respeito?
– Certo, está certo – viu que o olhou num instante pelo retrovisor, possivelmente o está a
considerar. É, era uma boa idéia, talvez a partir desse rapaz pudesse conhecer os segredos da
espionagem dos motoristas, vai saber. – É você quem manda, Alex.
Parou alguns instantes para pensar o porquê dessa gentileza ser tão agradável, é você
quem manda, franziu um pouco da testa e está começando a ficar com dor de cabeça.
– Não, acho que não vale a pena falar sobre isso. Foi uma conversa que nunca existiu.
Dirige há muito tempo, Hugo?
– Há uns três anos.
– Conhece bastante a cidade?
– Sempre parece que continuam fazendo ruas novas, tem sempre uma viela que não se
conhece, chefe. Eu diria que dá pro gasto.
– Quando eu precisar de você, é só chamar?
O motorista riu, – Só se algum patrão mandar. Não tô dirigindo nem pra mim.
– Entendi – e meiosorriu.
Coincidências ou não, na verdade devia mais ser do horário, as ruas que viu passar dali
estão todas abarrotadas de gente, não havia uma tranqüila sequer, em alguns cantos as ondas
de caos pareciam prestes a transbordar calçada afora e inundar as pistas, como tsunami
devorando um estaleiro. Com os vidros fechados, sente por sinestesia o odor acre da fumaça
que saía em abundância do escapamento do carro à frente, em resposta pigarreou. Não podia
escapar também da cacofonia dos motores ronronando, os automóveis ao redor pareciam
ferozes ao avançar e frear sacudindo, guinchos estridentes apitavam, um profeta envolto de
tanta gente em cima de um tablado na calçada anunciava o fim dos tempos, e esse sinal à
frente, que demora. Isso se é por causa do sinal que estão parados, pode ter sido um acidente,
não, não está havendo escândalo e as pessoas estão bem dispersas, não há mulher histérica
gritando ai meu deus, ai meu deus, nem abutres farejando cheiro de coisa ruim, então são
muitos os focos de suas desatenções. Ai, isso agora parece ser o som distante de hélice de
helicóptero, deve ser uma dessas reportagens que filmam rentes dos arranha-céus como anda
a extensão do tráfego, e agora as náuseas, aí curvou a testa sobre a mão.
Com as pálpebras bem cerradas vê como se o contorno branco de muitos sinos tilintassem
de um lado ao outro dentro do escuro, faziam tê-lo a idéia de que não precisava retornar a
lugar algum, que invariavelmente sempre estaria na escuridão, lá, onde disseram ter aceso as
falsas luzes, onde evitavam que se enxergasse o próprio escuro. Distinguia movimentos
lácteos nas trevas profundas, no espaço sideral de um vazio aterrador as estrelas dançavam,
alguns relâmpagos clareavam a sua verdadeira visão. Permitiu pelo acaso que essas
lamparinas da psique despertassem as criaturas que bem entendessem. E não adiantou em
nada mais do que na criação de figuras doentias, formas vultuosas e dementes desprovidas de
qualquer porquê inteligente às suas caras, como aquelas que deixamos que apareçam quando
passamos pelo estado de vigília, onde nada é consistente porque nada exatamente precisa
fazer sentido, é que não queremos mesmo que faça por já estarmos cansados de todos.
Alex é a marionete de suas contradições, e algo, do qual não há de se negar as sádicas
intenções, como um deus ou alguém que esteja escrevendo a sua história, impunha que ele
continuaria a ser o espectador eterno dessas memórias, da sua própria história, para a qual se
cabe a torcida por um final feliz, mas não se pode invadir o romance e mudar o seu roteiro.
– Por quê? – soou a pergunta como se lhe fosse conseqüência natural, pertence a uma
linda voz feminina.
– Os outros têm mesmo uma obsessão com porquês – ele respondeu.
– Não acha que eu tenha motivos para querer saber? – ela continuou.
– A dedução é sempre mais saborosa, fique com ela.
– Não me faça mistérios, é cruel de sua parte.
– Desculpe, não posso evitar, não é exatamente intencional e não é que seja crueldade, é
só que não posso dar uma resposta que seja suficiente.
– Então por quê?
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– Nem sempre temos uma explicação pro que fazemos.
– Isso é meio estúpido.
– Isso é admitir a verdade, nada mais.
– E é você que sabe da verdade?
– Alguém tem que saber, senão ela não existiria.
– Não divague, tudo que quero saber é um por quê. Fizemos algo de errado?
– Óbvio que não.
– É alguma chance que não se possa ter outras vezes na vida?
– Isso não posso dizer – e ponderou –, digo que talvez.
– O que está acontecendo? Você mudou?
– Há tempos não consigo mais acompanhar esse tipo de coisa...
– Me avise se estiver sendo inconveniente... – ela choramingou.
– Não, eu entendo.
– Talvez não haja mesmo respostas.
– Ela existe, só não faço a mínima idéia qual é.
– Não fale com esse tom.
– Que tom?
– De que há algo muito transcendental em algo que não passa de sua vontade.
– Pensei que a vontade fosse transcendental etc.
– E isso realmente interessa?
– Não, não interessa.
– Sabe, por outro lado é como se estivesse realizando um sonho meu.
– Por quê?
– Porque isto que você é, é isso o que eu queria ser.
– Como assim?
– Nunca se sabe quando você poderá abrir a porta e ir embora para sempre.
– Isso não é verdade.
– Considere, nem você sabe.
– Tudo que tenho são indícios do que fazer.
– Você é assim com todas as coisas.
– É que mesmo cômodas as pessoas querem algo.
– Eu só quero te entender.
– Por quê?, isso é inútil, eu nem consigo, e você não ganharia nada com isso. Eu não sou
nem um pouco interessante. Essa é a verdade mais escabrosa e mais verdadeira que existe.
– Não sei bem, é apenas uma sensação, ou o indício de uma.
– E como é essa sensação?
– Parece que algo se aperta, eu não sei com certeza.
– É que vai sentir minha falta.
– Talvez. É, creio que isso não seja um problema...
– O hábito tem dessas coisas, ele nos vicia mesmo quando sabemos estar convivendo com
algo que nos é amargo.
– Por favor.
– Que foi?
– Se esse é o porquê de você estar partindo, não tenho nem mais o que falar.
– Já te disse, o porquê eu não sei, eu estava falando de você.
– Quando sempre o que interessou foi o porquê de você estar indo embora.
– Sim.
– É essa a sua grande chance de alguma coisa?
– Eu não tenho certeza.
– É por isso que você realiza um sonho meu, você pode arriscar.
– Gostaria de ter arriscado mais vezes?, gostaria de estar se arriscando?
– Às vezes tudo o que eu queria era ter motivos para fazê-lo...
– Eu não tenho exatamente motivos, ou talvez os tenha, mas não procuro esquadrinhá-los.
– Acha que eu esteja buscando nos lugares errados?, que eu esteja esmiuçando demais?
– Eu não sei, não faço a menor idéia do que dizer quanto a isso, desculpe.
– Eu devia estar te desejando toda sorte de coisas boas, não colocando empecilhos.
– Não é empecilho, eu realmente entendo.
– Acho que no fim me acostumei com a sua amargura.
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– É importante pra mim ouvir isso, que bonito, agradeço sinceramente.
– E quando parte?
– Eu não vejo a hora.
A prosa da qual se recorda pode caber, como de essência camaleônica, a qualquer
contexto, a qualquer ocasião. Sendo assim, a primeira voz com um por quê?, que por acaso foi
a voz daquela tal Ana, a quem nunca mais verá, mas poderia muito bem ser a voz de Júlia,
sim, poderia mesmo ser a voz de Júlia, é possível que também seja de qualquer um diante de
um adeus. Alex pensa se essa seria mais uma daquelas verdades naturais ou só um mais um
fetiche desastroso que criou. Era como se ainda olhasse as paredes descascadas, como se
ainda pudesse estender a cabeça para o lado de fora e se deparar com a noite iluminada com
o aspecto de mistério que assume no horizonte da cidade num ângulo que não mais veria, que
mesmo feio, nublado, comum, anônimo, confuso, em alguns instantes o faria ter saudades, tem
saudades de tudo em seu passado, até das coisas horríveis. Era amaldiçoado com uma terrível
visão de passado, de forma a saber das coisas e da forma como elas foram, e mesmo como
haveriam de ser, com uma visão que no presente nunca teria. É levado a concluir que tinha
saudades era das ocorrências, simplesmente por saber que elas já foram, já tiveram seu tempo
de ser, e é muito fácil lamentar por seu fim.
O profundo desinteresse por qualquer coisa externa a seu próprio ego parece criar um
ambiente próprio, feito cobaia isolada in vitro, assim, quando ergue os olhos das mãos,
despertando da atemporal passagem de catalepsia, pareceu não haver no mundo mais sons
que os do próprio coração ou da distante vibração de carro. Reconhece a rua por onde estava
passando, houve tempos em que a sua familiaridade com ela era diária, hoje em dia não resta
mais que uma pálida impressão de que um dia foi algo que conheceu. A velha que atravessa a
rua nunca pareceu tão ranzinza e amedrontada, as crianças de rua que nos obrigam a fechar o
vidro antes que venham tentar roubar o relógio nunca foram tão furtivas, o helicóptero que filma
do céu os assuntos do trânsito nunca tão silencioso, o cego do sinal nunca pareceu tão seguro
com sua bengala e com os passos de tartaruga, não se importa que o carro venha na
contramão, o motorista não olha mais no retrovisor, ninguém o vigia nem nunca vigiou, sente
um grande conforto. Se alguém retorna ao passado, responde-se, é porque há ainda o que se
acertar e que não foi, é porque tem coisa em branco, e não se terá paz até que ela esteja
preenchida.
Assim, com uma dessas ressacas típicas dos desacostumados que se põem a levantar
cedo, nosso herói prosseguiu a alternar os momentos de lucidez com o falso escrutínio das
insônias e, mesmo desconcentrado, por coincidência ou sorte da memória deu-se conta de que
não era à toa que uns edifícios da vizinhança pareciam ser familiares. É por aqui, instrui o
motorista com murmúrios que não têm muita intenção de se propagar. Entenderá que deverão
cruzar as sombras dos prédios altos, ingressarão naquelas vielas das construções mais
antigas, e após algumas ladeiras e alguns pedestres nos passeios mais agitados, ele ainda não
se lembra se foi grato o suficiente ao rapaz. Bem, o suficiente deve ter sido, sequer lembraria
quais os termos que acabara de usar para despedir-se, ali, quando chegava à sua rua, se é
que é sua, se é que pode se dizer assim, a considerar todas ruas em que durante sua vida já
habitou, essa é sua porque é onde está atualmente, assim como tudo, tudo lhe pode pertencer,
mas sempre por um tempo ridículo.
Passou pelo portão, com o equilíbrio dos improvisos o forçou, atravessou o vestíbulo onde
a luz do sol mal entra, não olha as caixas de correio, não olha muita coisa. O zelador é o velho
que cuida, por exemplo, da manutenção da fonte do pátio, que é o que faz agora, a desentupir
coisas que não devem estar entupidas e limpar o que se sujará na próxima chuva, e pelo que
se viu também exerce o trabalho de jardineiro, é comum quando na janela da varanda ouvir-se
os sons das ervas-daninhas sendo cortadas, o picote das tesouras e um assovio de se passar
o tempo. A sonolência o faz esquecer-se de um bom dia, boa tarde, de repente um olá.
Quando se dá conta já está na sacada de seu átrio, diante da maldita fechadura emperrada,
precisa ainda acostumar-se com os mimos que a chave exige ao se girar. Uma vez, duas, a
distração pelo gorjeio estranho de algum passarinho nas muradas, os sons que ainda não
definem o que vêm a ser suas origens se abafando por atrás das paredes dos lares, e entrou.
Conseguiu meter-se adentro, finalmente, que sufoco, supôs se não é essa a sensação do
aconchego que as pessoas têm ao retornar para seus cantos, seus lares, para se ter o prazer
de ver as coisas como foram deixadas, ali dispostas de acordo com seu gosto, postas na mesa
ou na estante conforme realizou a sua mão e a de ninguém mais, as coisas prontas para o uso
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conforme ele bem entende. Deve ser essa uma das coisas que com o tempo se acostuma, que
em breve não haverá a mesma alegria apaixonada ao tratar ou pensar sobre isso, com o tempo
seus dias ali irão se tornar iguais, o igual parece nos tornar indiferentes, ou a falta de atenção o
forçará a ver sempre a mesma coisa como mesma coisa, se é que uma mesma coisa pode ser
diferente de si mesma, que complicação, não havia nada que lhe trouxesse conforto que não
viesse da indiferença. Não gosta disso.
Andou, reconheceu onde estava, reconheceu-se, fez mais uma porção de coisas
mecânicas e desinteressantes enquanto poderia jurar não as estar fazendo, desabotoou de
qualquer jeito o paletó, ia andando pela casa como se não soubesse lidar com tantas escolhas,
arrancou a gravata, quando perceber estará novamente na sala. O computador estava sobre a
mesa da mesma forma que esteve pela manhã. Sua privacidade é inviolável, da mesma forma
não mexeu na mobília que está como a encontrou, não porque não pudesse, mas porque não
apraz. Decora o habitat com seus toques próprios de familiaridade, como deixar o cinzeiro ao
alcance das suas mãos se as estendesse, supondo que venha a estar estirado pelo sofá, pois
ponderou e calculou tudo que fará e providenciou para que tudo lhe esteja preparado. E ligou a
televisão enquanto se despia. Pensou se esquentava o almoço agora, faz uns dias que ele
compra uns congelados num mercado não muito próximo. Não sabia exatamente por que o
tinha feito. Deitou-se. Ainda estranhava o dia alto entrando pelas janelas. Talvez seja melhor
erguer-se novamente e fechar as venezianas. Não, concluiu, vou me distrair.
O que pensaria acerca de seu novo hábito de vagar a esmo pelas ruas?, O que pensaria
acerca do hábito de vigiar a tudo?, feito fosse necessário o conhecimento sobre desde os
armazéns próximos até as ruelas que tenha cruzado?, como um desses misteriosos que
passeiam pela noite com as mãos metidas nos bolsos da sobreveste, a quem ninguém sabe de
onde veio ou o que vai fazer nos próximos minutos?, por que você segue olhando as coisas
como se esperasse alguma coisa delas, procurando algo que nem você mesmo há de saber o
quê, mas talvez ocorra que encontre?, estava precisando inalar, mas que fosse de um ponto de
vista estrangeiro, a normalidade das coisas. Nada melhor que fazê-lo à noite, é naturalmente
quando as circunstâncias se tornam propícias para tanto, a discrição se torna mais possível, as
distâncias e o subterfúgio, próprios a observar de perto que ou quem quer que seja, ao mesmo
tempo em que ele não passará de uma assombração, um vampiro a dobrar a esquina e a
escolher a vítima incauta.
Era ele maior algoz das encruzilhadas, um novo santo iorubá encarnado, nos becos ou
além da iluminação dos postes, era assim que se sentia e esse é o papel que encenava, era a
besta, o predador de tudo que se possa ver e tenha vida, sente necessário disseminar a sua
semente de discórdia que geriu em segredo, a produzir essa sua doença que só se transmite
pelo contágio com o sangue, ou com alguma sorte se encara demais alguém. Assim espreitava
o infeliz, que pode ser desde o sujeito saindo da loja de roupas onde trabalha, a moça
comprando um dos últimos exemplares do jornal do dia na banca. Ela passaria, assim, no meio
da multidão, e ele a acompanharia. Vigiaria mesmo um casal namorando no banco do parque.
Sentia alimentar-se das almas quando tomava, sem que se dessem conta, suas privacidades.
O que para ser eficiente poderia se dar de diversas maneiras.
Sentaria-se, por exemplo, num ponto de ônibus, encolheria o tronco como qualquer um que
quisesse escapar do frio da noite, abriria sonoramente as folhas do jornal, olhando-as, mas não
as lendo, pois estaria a ouvir a conversa das duas senhoras sentadas aqui atrás. Não
interessava de verdade a doença de fulano, do acidente tristíssimo com o primo da vizinha, o
divórcio dos pais da coitada, a traição do noivo da mocinha, mas é incansável, é magnífico
perceber a devoção e a contentação que as pessoas dedicam às coisas quaisquer e quais
seriam essas, perceber ao que davam importância, é que sempre se dá a opinião mesmo que
ela não esteja bem formada, isto é, precisa violar as pessoas enquanto elas estejam estando.
O sujeito da lojinha dizia da ineficiência das propagandas que alertavam sobre a obtenção das
doenças, um jovem o combatia com alguns índices que lera no jornal, um outro mais tímido
passava e se continha em dar uma risadinha, não era sua intenção demorar, provavelmente diz
aquele riso com soberba, é, eis que estão aí protestando e contestando, e na verdade não
falam absolutamente nada de coisa com coisa, estão todos equivocados, bem-intencionados
ou não, não sei o que os move ou o que querem, mas estão errados quando na verdade quem
tem autoridade sobre isso, bem, não é que seja eu, mas devo ser o mais próximo.
Para se descobrir o que uma pessoa é, precisaria que ela se escancarasse e se mostrasse
de uma maneira que nem ela mesma saberia como, que fizesse do instante o aproveitamento
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máximo de si mesma, como num escândalo, como virasse uma metralhadora disparando sem
parar. Mas pode entender a gente enquanto ela está, é isso que faz. Se um episódio é pré-
conceito saudável, como a garota no semáforo disposta a atender o rapaz elegante que veio
perguntar se sabia as horas, ou se é ferramenta de sobrevivência, como quando vê um sujeito
mal vestido vindo na direção contrária, e se afasta, que pode ser ladrão. Em tudo há algo
pedindo para ser reparado, se acontece é para ser enxergado. Nada que esteja oculto há de
permanecer irrevelável, disse aproximadamente cristo, e no princípio das coisas tudo era
intenção e ainda continua sendo etc, e por aí podemos descobrir muitas outras citações
relacionadas. Os silenciosos continuam sendo os que mais deixam transparecer o que lhes
vêm a importar.
Podia ser o pastor pregando cheio de fé na calçada, frente a sua igreja das que tanto se
vêem, ou dentro do ônibus aquela estudante com rosto doce e esperançoso escrevendo e
lendo no diário as suas confissões para o futuro, para quem pudesse ler. Não sabia que Alex a
violava, bisbilhotava em segredo as coisas em quais ela não deve depositar muito valor, mas
se importaria de deixar a qualquer um vê-las, não gostaria de esquecer o seu diário num
ônibus. E o que mais seria precioso a ela?, que mais te importa, minha querida?, diz para mim,
conta tudo sem querer, conta tudo o que eu possa ver. Ao que julgava estar fazendo mais que
inspecionando, julgava descobri-la da forma que um conhecido nunca o faria, porque esse
estaria cego por seus encantos, defeitos, estaria cego pelo que ela é, o que acaba sendo
apenas o que parece ser, em geral, estaria persuadido por seus jeitos, pela identificação ou
pela repulsão. O que ele está fazendo agora é encontrá-la, um pouco de imaginação, atenção
e relaxamento seriam o bastante. Há quem naturalmente julgue tais fetiches, talvez ele próprio
às vezes se pegue com essa idéia, como frutos de uma certa desocupação obsessiva, chegou
ele mesmo a defini-la como infantilidade, mas é infantilidade das boas, paciência. Realiza
solitariamente a pesquisa sobre a mesmice quotidiana, e pergunta-se ao fim de cada noite o
que é que torna essa mesmice exatamente essa?, não existe responsável direto por isso, não
há o grande bode expiatório que se espera, tudo continua ainda sendo responsabilidade de
quem alimenta sua continuidade, tudo ainda continua sendo o problema de cada um.
Estava com calor, mas a preguiça de abrir as janelas ou ir ao quarto era ainda maior, a sua
inércia e o sofá o amarravam. A televisão, emudecida, assim era seu jeito de assisti-la,
passava as imagens do noticiário local da tarde, já lhe veio logo na mente o pressuposto de
que não contém nada importante, que a tarde não é hora da audiência, ele não sabe por quê,
mas não é, que as coisas grandes são deixadas para a noite. Claro, as pessoas estão nos
seus trabalhos. A reportagem fala sobre uma feira de bichos. Devia ser isso, caso contrário o
pônei em questão teria fugido do zôo, mas não devia ser, ele estava enfeitado com uns laços,
trata-se de um pônei afeminado. Mas a chamada mudou e pôde ver, saindo de um prédio,
cercado de uns sujeitos e perseguido pelos flashes dos fotógrafos que rapidamente
convergiam, aquele seu conhecido Condor. Que devia estar esse velho fazendo por aí?, não se
importou muito, achou que era só uma dessas aparições que ocorre à gente relativamente
famosa para que não se esqueçam da sua cara. Pensou se não estaria ocupado com sua
própria publicidade, se bem que ele parecia rude ao dirigir uma ou outra palavra às câmeras,
palavras que podiam dizer que saíssem do caminho, que fossem se danar, ou que não dava
esse tipo de resposta, não quer imaginar qual tenha sido a pergunta, agora ele entrava no
carro e não podia mais ser visto.
As coisas estavam indo de vento em popa, eis aí seu ponto de vista acerca de suas
contemporâneas idas-e-vindas. Atualmente sente que esteve fluindo melhor que nunca o seu
rendimento criativo, não serão poucas as vezes em que se encontrará sentado numa cadeira
da mesa de sala, sob a luz fraca de abajur, debruçado rudemente na tela de seu computador a
transcrever as suas coisas. Se não isso, poderia encontrar-se com as pernas para o alto no
sofá, com o computador agora a apoiar-se na sua pança, enquanto ele deixava a sala
preparada para clarear vez ou outra com os lampejos da tevê.
Estava trabalhando numa teoria, já está razoavelmente desenvolvida, que abordava
algumas controvérsias do latrocínio e do assassinato em geral. Talvez não seja exatamente
original, Alex se perdoou caso não fosse, mas nada impede que seja ele a descobrir por si só a
idéia que paira no ar, a mesma que um outro alguém pode ter desbravado em suas próprias
ocasiões. Enfim, o que ele dizia era o seguinte, baseado nos índices de que o latrocínio ocorre
em maior escala motivado por trivialidades da sociedade, como o roubo de coisas que não nos
são necessárias à sobrevivência, mas se estimulam com propagandas. Aí citava o caso do
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rapaz que estava desaparecido e dias depois encontraram seus seqüestradores e assassinos
num shopping, compravam com os cartões de crédito da vítima alguns pares de tênis e blusas
com marca. Era uma dessas extensas críticas à civilização do consumo que não se leva a
muito canto, a não ser à própria indignação.
Resenhou a periferia da mesa com uma olhada rápida, constatou que ainda estavam lá,
impressas como achou que deviam, as ótimas matérias que julgava ter feito sobre o processo
de pavimentação dos bairros periféricos, a diminuição do pedágio nos estacionamentos
públicos e a reconhecida política de reflorestamento que vem sendo encaminhada pelo
governo. Se viesse a calhar, depois de um tempo enviaria aquilo da crítica sobre a sociedade
dos consumos, tudo isso torna bem claro e está implícito em suas memórias que aquele
telefonema prometido ocorreu, há quanto tempo exatamente não se lembra, a ele tem se
tornado indiferente a quantidade de dias ou semanas inteiras.
Não tinha sequer a certeza se a voz pertencia àquele diretor com quem falara. E, mesmo
se fosse, para todos os efeitos se falavam pela primeira vez. Foi um diálogo curto, nem por isso
insuficiente.
– Com quem falo?
– Quer falar com quem?
– Com o senhor Alex.
– É ele mesmo – era inegável como se acostumou ao título de senhor.
– Falamos do jornal das artes.
– Sim.
– A sua admissão foi analisada. Está tudo em ordem.
– Certo, sim, obrigado.
– Entraremos em contato para as novas instruções.
Os olhos piscaram, a vista está cansando, é melhor que pare por um tempo. Estava
adiantado, portanto não faz mal assim. Não é porque uns foram crucificados que você também
precise ser, também é que o que o motiva nesses últimos instantes não é alguma obrigação
crucial, senso de responsabilidade, coisa e tal, é sim uma espécie de prazer que vem do
orgulho, uma necessidade incontrolável de se mostrar, de falar as coisas que deduz, e essa
coisa da expressão pode ser mesmo universal, uma preocupação de todos, mesmo que nem
sempre se articulem e nem sempre sejam maciças, catalogadas num só volume como no caso
do retorno à escuridão. Assim, o que agora tinha eram vários volumes que complementavam,
em fragmentos de percepções distintas, o mesmo fundamento de idéia, a idéia que é ele
mesmo. É a mesma obsessão, a coisa do homem livre. As noitadas, vale ressaltar, veja muito
bem, que muito diferentes das de algum tempo, são feitas com outros fins. Eram poucas as
vezes em que voltava sem ter reparado em um detalhe interessante de mais um capítulo da
vida, de por exemplo reparar como o trânsito diário é um instrumento para a gente se exibir e
se testar, até perceber que isso se dá porque toda forma de heroísmo e as formas mais
intensas da emoção são as que gravitam em torno da morte, por isso, deduz, todo homem que
passe perto de entregar a própria vida é um herói, há muito a ser considerado sobre isso. Ele
pode peneirar ouro do que aparenta não ter nada que interesse.
Tudo isso começava com uma ou outra anotação, como dessas das quais se diz nota
mental e depois se percebem coisas ainda mais fascinantes para tratar a seu respeito, vai ver
tudo acaba num grito de eureca. Agora já tinha um conjunto de crônicas que poderia usar ou
não, que poderiam um dia vir a ser reconhecidas ou não, poderiam ou não fazer alguma
diferença, diferente das questões do reflorestamento, que é justo deixar isso para os
movimentos verdes ou vegetarianos. Aí digitou mais umas linhas, mas a distração vem
comprometendo muito do desenvolvimento. Era uma hora aconselhável para parar, o que fez
satisfatoriamente. Esticou o pescoço, deu espaço para que a fadiga pudesse retirar os seus
espólios, e aí vagou a atenção pelos arredores. Aqueles livros empilhados ainda estavam no
mesmo lugar onde deixara, não propriamente arrumados, mas de fácil identificação.
Instintivamente volveu-se em direção às prateleiras de onde os tirou. Havia uma alma
desocupada e faminta o suficiente para consumi-los, ao menos até que essa alma fosse
persuadida pela melancolia confortável da vagabundagem.
Esteve lendo simultaneamente alguns deles. Um de poesias de um sujeito que não
conhecia, mas quando lera lhe parecia um tanto vulgar, tolinho. Inicialmente pareceu estranho
até ser finalmente de seu agrado, tratava-se o rapaz de um beberrão agressivo, era quase
imaginar que um desses maltrapilhos que se vêem pelos bares da vida afora, aquele mesmo
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desdentado, envelhecido e viciado, do qual todos sabem não ser capaz de qualquer
entrosamento entre os próprios colegas de botequim por já lhe ser difícil formular alguma frase
inteira, imagina só que ele fosse à sua casa, sentasse de um jeito estrebuchado na cadeira e
se dissesse que agora ia escrever. E haveria ainda assim coerência, ou talvez não fosse
exatamente isso, mas algo que pudesse se aproveitar e que era bonito e verdadeiro.
Engraçado. O outro era uma reunião de crônicas um pouco góticas, havia uma ou outra parte
de versos, dentre as quais leu algo sobre um corvo. Um corvo!, espanta-se, e algo
metafisicamente se identificou consigo, como se olhasse para a penumbra da porta e
imaginasse que um bicho feito aquele também estivesse vigiando e apregoando coisas sobre
sua sina. A outra capa que estava visível era de um livro sobre a história contemporânea,
achou que seria de algum modo interessante que o lesse. Junto a este estava um chumaço de
papel com anotações enroladas, não as identificou numa primeira vista, então se estica e as
pega.
Enrugou um pouco o rosto, colocou as folhas do tablete ao melhor alcance da luminária.
Reconhece o esboço de seus garranchos, as coisas são mesmo diferentes feitas à mão nua,
quando já faz muito tempo que se perdeu esse hábito. Tentou identificar suas palavras na
prancheta, mas não soube dizer ao certo de quando e a qual ocasião específica elas
pertenciam, pensou, com um realce da sabedoria que sentia portar, que era melhor que das
próximas vezes colocasse-lhes as respectivas datas. Mas aí pôde ler, Hoje comecei por um
tipo magricela, a primeira vista se trata de um rapaz acuado. Estava na calçada com mais
gente, esperava o sinal abrir quando reparei. Ele andava com as costas bastante encurvadas,
olhava baixo, usava roupa pesada. Pensei ser um desses sujeitos que trocam a vida pelos
estudos e nunca conseguem se sarar da escolha. O rosto era feio não só por ser ossudo, mas
também é muito pálido, e veio, vinha andando, já se aproximava da faixa, quando um desses
mais apressados quase que trombou nele, mas o rapaz foi mais ágil, conseguiu desviar do
encontro e naturalmente seguiram seus caminhos. Ele tem consciência de sua estatura e de
sua fraqueza. Deve ser por isso que age desse jeito enrustido, é normal que tenha se
acostumado. Talvez ele estivesse pensando sobre isso, talvez esteja tão acostumado que ele
próprio não vai mais considerar um acontecimento assim. É trivial como respirar. Sendo assim
ou não, há motivos para ele repensar toda a sua vida a basear-se naquela calçada. Podemos
extrair daí os motivos para a timidez nos passos, ou da precaução agressiva que carrega.
Conclusão um, sempre sugerimos o que somos, e não é isso algo difícil de se perceber, mas
isso não é coisa que se fala, é coisa que se intua. Conclusão número dois, pensar sobre que
outros motivos nos levam a nos marginalizarmos.
Deu um meiosorriso, vira a outra página. A idéia de sintetizar as empreitadas vampirescas
num bloco de notas era prática, porventura não corria o risco de algo se perder nos
departamentos muitas vezes ineficientes da lembrança. Enquanto isso, como em resposta,
tentava recordar das feições do tal sujeito. A surpresa foi a de constatar que só podia imaginá-
lo à partir das coisas que acabara de ler, independia de quem as tivesse escrito ou se ele
tivesse anteriormente visto a cena, agora essa era uma forma transformada de ver a mesma
coisa. E ainda leu mais, Entrei numa dessas casas noturnas. Estava andando e por acaso a
encontrei. Era bem discreta, fica ali quando se sobe uma antiga rua bastante escura, e olha
que já passei muitas vezes pela avenida próxima, e comecei a reconhecer o que era quando vi
umas garotas características na porta, elas logo vieram provocar daquele jeito que as putas
fazem, chamando com o dedinho, mostrando as pernas, falando ops, e sorrindo. Elas são
legais. Resolvi deixar levar e entrei. Fiquei no bar algum tempo, olhei as dançarinas por mais
outro, é difícil reconhecer se os clientes, as pessoas por perto se tornam mais espontâneas ou
se se vêem compelidas a agir com mais artificialidade, eu não sei. É difícil saber se se
descobrem ou se adequam. A bebida dá apoio nessas ocasiões, faz com que se permitam,
isso é interessante, tanto é que vou bebendo, e penso se as pessoas vêm aqui em busca de
algo em específico ou para conhecer em parte mais por curiosidade que qualquer coisa o que
diabos deve acontecer nesse tipo de lugar, e isso é mesmo um pouco óbvio, mas como e por
que acontecem. Mas isso talvez esteja refletindo mais minha situação hoje que a deles,
porque, por exemplo, muitos ali da frente parecem ter lá suas experiências com isso, então
certamente o caso não é de curiosidade, mas vício, ou como queiram chamar o hábito que lhes
apetece. Acho que estou sendo chato, mal agüento ler o que escrevi. Senti que poderia estar
divagando demais, resolvi mudar. Fui e paguei por algum tempo nessas salas escuras que a
moça fica dançando do outro lado, achei que seria mais íntimo. Aqui estou rascunhando essa
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parte, ela não me vê, está lá dançando, nesse momento se esfregando no vidro. A moça não é
muito bonita, dá para o gasto do pessoal, tem olhos verdes e atualmente usa uma parte da
roupa de couro que vestia, enquanto eu escrevo ela vai tirando, e eu ainda acho que o
problema das putas é usar maquiagem demais. Há pouco me usei de tom de pirraça com ela,
mas na verdade o leitor, que sou eu, vai entender que isso fazia parte de um processo mais
importante de pesquisa e que as trapaças portanto se perdoam, então, perguntei se ela sentia
prazer com isso, mas ela respondeu dizendo que estava louca de tesão, creio que não seja
algo a se levar em conta. Perguntei se alguma vez já tinha se interessado por algum cliente, e
ela me responde com uma voz afetada que estava louca por mim. Eu não devo estar sendo
convincente, não devo estar sendo muito original, não sei. Que horas você sai?, eu perguntei,
ela deve ter mentido de novo dizendo que não tinha hora, que ia ficar a noite toda, e que era
uma pena, mas que ia me compensar fazendo uma surpresinha, e eu não sei se olho ela
tirando o que sobrou da roupa ou se escrevo. A conclusão que até agora eu tenho é que o
prazer virou mesmo um mercado, não só ele, a vida toda, que tudo tem um preço, até a moça
aí da frente, não só o corpo, mas a atenção e se duvidar um interesse de verdade. Eu devo
custar muito pouco. Ela não pára de dançar em torno dum metal e está lá a repetir os mesmos
movimentos, não pára nem mesmo quando me responde, geme o tempo todo. Parece essas
secretárias de filme pornô. Então, me pergunto se esteja aí um mercado que valha a pena, isso
de abrir mão do prazer individual pelos outros, se esse sacrifício compensa à garota. Presumo
ser uma necessidade que a leve ali, deve ser um lugar tão fácil de se entrar, apesar das
merdas que uma vez dentro eu acho que existem. Mas julgar suas necessidades é
prepotência, ou talvez seja algo que eu deva, mas me sinto identificado por ela me parecer
uma vítima, o que não devia fazer, não é muito inteligente se cegar assim, é também um pouco
de arrogância, eu me sinto um idiota. Perguntei se ela estava feliz, isso com um poder de
intimidação que na hora me veio muito forte, saiu dos bons, e ela só sorriu, atuando ou não ela
não sabe o que responder, depois dançou muito melhor.
A campainha do telefone tocou e no silêncio em que estava foi o mesmo que tirar de seu
transe a pontapés o monge que medita há anos, desses que deixam até a sombra marcada na
parede em frente da qual se prostrou, eis o desrespeito milenar, e tal representação justifica o
espasmo que teve, recua a cadeira da mesa num pulo rápido, solta o bloco de notas feito
tivesse em mãos a prova de uma culpa, e deixa-o cair aberto na parte que incitou uma
discussão existencial entre um padeiro e um baleiro no fim de seus expedientes, isso porque
perguntou a ambos se era possível ficarem satisfeitos com um ofício simples, se isso não é
conformismo. Mas enfim, talvez em outra ocasião ele volte à cadernetinha e lembre-se
aproximadamente o que cada um deles defendeu. Agora, o telefone. Deu a volta e
espreguiçou, ao mesmo tempo alcançou-o do lado, logo ali nas prateleiras.
– Alô? – atendeu.
O outro lado está mudo, ainda assim pode-se ouvir que há alguém atrás da linha, que
talvez estivesse desatento demais para saber que sua chamada já tenha sido efetuada. Ouvia
o sussurro dos sons do ambiente do lado de lá. Alô, chamou novamente, mas aí a ligação foi
cortada. Conferiu brevemente que de fato a ligação tinha caído ou sido desligada, ao ter
certeza esticou-se mais uma vez para colocá-lo no gancho. Obviamente não há com o que se
importar, dentre os tantos enganos que se cometem o tempo todo ao se telefonar, ou talvez
ainda supondo outras razões mais específicas, como a pessoa que ligara perceber estar
naquele momento mais ocupada do que pensava para que fosse se enrolar num diálogo, e
desligasse sem prestar satisfações para que esperasse um momento mais propício.
Logo ele estará ali, jogado, esticando as pernas para o alto daquela forma já tão
conhecida, procurando enquanto revira o corpo a posição mais cômoda para se engajar nas
coisas do mundo. A primeira página anuncia o jornal das artes, a matéria que vinha em
destaque era algo que lhe fugia do conhecimento. Pensou que merda, que a única coisa que
me interessa não consta, aí ele estava folheando as páginas, passando em diversas ocasiões
o olho por mais de uma vez na mesma folha, como se para assegurar que não estivesse de
fato perdendo nada, e encontrou o que buscava bem abaixo de uma matéria das de menor
importância. Lá estava escrito, com o título em letras não tão destacadas, mas que fazem jus
ao conteúdo da reportagem, nesse caso só vindo a se tratar de uma discreta propaganda. Leu
as seguintes palavras diversas vezes, Em noite de exposição, apresentando à cidade o tratado
que nos conduzirá ao estado de espírito crucial à reforma que tanto se fala, mas que de tão
pouco se diz. É com orgulho que, em breve, dos seios do jornal das artes há de brotar O
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retorno à escuridão. E então a isso seguia a informação de uma data e outros dados desses
fúteis, da bibliografia, selo da edição e coisas que se mencionam nas letras miúdas.
É isso, não tinha muito que fazer, é conveniente e previsível que visse a propaganda desse
tal retorno à escuridão numa nota de rodapé, além de impregnada de clichês como de que
tanto se fala, ou pior, de que tanto se fala, mas que de tão pouco se diz, é para de fato não
dizer nada, reservando essa parte qualquer para um nada qualquer, e ele acaba por inspirar-se
num desses outros clichês, que suspira e se diz, paciência. E reforma, eles disseram, que
merda de reforma, o quê. Atirou o jornal de qualquer jeito por sobre a mesa, com muito menos
respeito do que quando o trouxe.
A noite vinha se aprofundando e não trazia com ela qualquer barulho de fora, qualquer
distúrbio até as fronteiras das venezianas. Já estava enfiado no lavabo, passava a lâmina do
barbeador no rosto espumado, distraía-se por nada mais específico, através da porta
entreaberta do banheiro assiste os vultos fantasmagóricos de televisão. Ia terminando de
raspar a barba, tratou dos outros asseios, enxaguou o rosto, pôs-se a tomar uma ducha, saiu
desnudo pela casa com a toalha pendurada pelos ombros, o assoalho deve ficar seco por si só.
Depois eu limpo, pensou. Foi abrir o armário, afastou as fileiras com cuidado quase metódico,
reuniu um desses moletons, a calça, o sobretudo. Já arrumado estava na sala, parado por
alguns instantes em frente da mesa, punha de volta como quem não quer nada os papéis que
teimavam em escorregar para fora dela, olhava em volta indiferente do que via, como se
ganhasse algum tempo, como se precisasse estar seguro que sabe-se lá o quê estava em
ordem.
Apanhou o relógio, com a portinhola aberta ele marca foscamente algumas horas após o
pôr-do-sol. A essa altura as ruas já estarão mais preparadas para ele. Daqui a pouco é hora de
sair.

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Lembra-se de quando estava vagando pelas ruas e a troco de umas moedas afundadas na
mais íntima profundidade de um dos bolsos recebia de uma dessas tantas bancas de jornal o
exemplar dos mais recentes, abriu, leu o destacado anúncio da primeira página, falava sobre
uma noite da arte. É, depois eu vejo sobre isso, se disse, enquanto fechava o caderno e
inalava a brisa de muitos cheiros dos passeios noturnos. E veria mesmo. Agora está sentado
da maneira que aprendeu-se a sentar, metida a cabeça em destinos distantes, profundos por
preconceito com o raso, porém vagos, fingidos a tratar-se das tramas neurais do nosso mundo.
Olhava para fora, ali pelas vidraças do café, há muitas coisas nas quais reparar, tinha os carros
que fazem que vão estacionar, o mormaço impregnado no vidro, o poste que se curva bem
perto dali e torna a óptica um dos fenômenos mais peculiares da natureza, com aqueles
milhões de feixes sujos, mortos, debruçando-se como caíssem, frutas a passarem da
maturidade e apodrecerem, derramando-se sobre todas as coisas próximas, que, como se é
sabido, foram criadas para abafar a tristeza das coisas no seu natural, em seus por si só. Por
fatalidade, a desviá-lo do centro original das idéias, se é que há algum, o que agora vê é a
porta do carro a se fechar parado logo a frente. Estica um pouco da cabeça a bisbilhotar, a
discrição não o permite que fizesse mais.
Os rapazes com as câmeras fotográficas cercam de vez em quando, assim, vinham
espreitando calmamente e cheio das gentilezas as mesas dos sujeitos que importam. É desses
que todos conhecem, menos ele. Fez a promessa de que a partir de hoje leria aquelas páginas
das revistas, que parecem ser as mais chatas, que falam sobre pessoas etc, arrumam-se
pretextos para bajulá-las, nascem os ilustres porque todos parecem muito vitoriosos. Ali do
outro lado do salão um senhor gordo e já careca pelos intemperismos do tempo abraça a
sorridente esposa, que é para ceder ao jovenzinho uma boa imagem. Certo, descanse seus
olhos. Os fechou por instantes. E quanto a você, Júlia?, como é que vai?, e não pôde ocultar
por muito tempo sua infração, seu crime espiritual, e a consciência, por vias irônicas ou não,
esgueirando-se nele através de uma forma cômica de encarar a si mesma, que aí torna-se
muito mais tolerável, faz relembrá-lo de outros assuntos, e ele tem alguns, a pensar, por
exemplo, na simpática vendedora da loja de vídeos que há uns dois ou três dias foi o seu alvo
principal de noite de caça, quando chegar em casa poderia ler o capítulo destinado a ela no
seu bloco das anotações, por um acaso pode querer.
A seguiu desde o final do expediente, foi fácil acompanhar seus rastros por causa daquela
gente que sempre se aglomera nas calçadas comerciais. Estão sempre cheias, ele tem
aprendido que quanto mais gente melhor, que desenvolve a sua astúcia ao passo que se
camufla. A impressão que inicialmente teve é que a moça manca um pouco, talvez da fadiga
por andar com o salto-alto, depois constatou que seria realmente fácil de acompanhá-la, de
fato mancava um tantinho, e olha só, que essa noite foi brindado com um espécime um pouco
mais exótico, como um lagarto tropical ou tartaruga gigante, quem sabe não pode tirar daí a
substância de muitos comportamentos, hein?, será um exercício interessante, aprecie-a com
gosto, dever de casa além da conta, dos que se correm para se gabar a mãe sobre como o fez
direitinho.
Ela parou por algum tempo numa loja de conveniências, ele achou melhor que só entrasse
um pouco depois, que ninguém está acima de suspeitas e ele não pretende levantá-las,
mesmo sendo mestre das técnicas de dissimulação. Pensou que também fosse bom comprar
alguma coisinha. De algumas prateleiras a distância não a perdia de vista, ela manca sem
encantos pela área dos frios. Pela quantidade de guloseimas supérfluas que vai pondo na
sacola deve estar atendendo também os outros da sua família, a quem ela deve ser muito
apegada por causa de ser manca, não teria mais a quem recorrer quando na infância era
caçoada, se é que não ficou assim por acidente, então, deve estar comprando para o
namorado, o amante que a visita nos sábados, que ela é bonitinha, avô doente, tio, e uns
outros quaisquer, que ela não é tão jovem, também não é dessas pessoas de meia-idade, um
mundo exótico de possibilidades, como a inexplorada e indígena América.
Sacou uma moedinha das que sempre se tem nos bolsos, e estando em frente à máquina
dos cigarros é previsível o que tinha em mente. Alex não faz muita distinção entre as marcas,
por isso logo se vê descer uma carteira qualquer, provavelmente aquela que o apetecia um
pouco mais, tratou de apanhar, vai abrindo, fumou. Para poder acompanhar a sua presa à fila
do caixa ainda apanha uma revista qualquer. Pôs-se atrás dela, e à frente ainda havia uma
senhora de idade com algumas sacolas a serem registradas pelo camarada do balcão. A culpa
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de ter pensado em Júlia foi a voz da moça. Ele não tinha culpa dela ser doce, e a memória
realiza lá suas conexões, estranhas ou não, entre as coisas, não precisam também ser bem-
vindas, é bem certo que às vezes só precisa de um estopim para que aja uma avalanche
cerebral, e agiu. Enfim, a senhora do balcão virou-se um pouco distraída, assim quase deu
com os braços na moça. Pôde até sentir-lhe o cheiro da cabeça estando assim tão próxima,
cheiro de cabeça de mulher. Desculpe, senhora, disse de forma comum a moça à senhora, e
daí veio a voz, ao que a senhora sem pestanejar agarrou a alça das suas coisas e já trotava
embora, meio desconcertada, os velhos andam mais ou menos da mesma forma, ou devagar
ou parecendo constrangidos de viver. O mal já tinha sido feito, a garota falou e já estava a ser
atendida, e a testa dele enrugando-se como se dizendo, legal da tua parte ficar me lembrando
esse tipo de coisa, sem querer ou não, e agora?, presumo que há de ser você a saciar meu
desejo, você, que nem me conhece, que nunca antes me viu, que só tem comigo em comum o
fato de eu te seguir. Fuzilou a moça dali, de costas para ele, desprevenida, julgando-se a salvo
de todos os males do planeta, que deve ignorar toda a ruindade que numa hora assim possa
vir a lhe ocorrer, mas Alex está debruçado sobre suas costas.
Tinha vontade de fazer muitas coisas, uma delas é a maldade de passar-lhe uma rasteira e
zombar, mas não fará nada, e o raciocínio que vinha desenvolvendo até agora, um tal de
doçura que nasce feito flor das dificuldades da vida bruscamente se aniquilou, que a flor da
doçura murchou e ele foi iluminado com algo muito mais interessante. E se Júlia ainda mora no
mesmo lugar de antes?, depois do que houve, presume que por comodidade e paz ela não
deseje vê-lo, mas talvez, e somente talvez, quem sabe depois ela se anime, passada a
surpresa de encontrá-lo?, quem sabe ele não a acaba tranqüilizando?, todos sabem, Alex, que
o que quer é um motivo para vê-la, por mais que isso o angustie, por mais que algo lhe doa e
torne essa idéia desagradável.
Mas ele se lembra de onde ela morava, ao menos até a época em que eram amigos. É,
Júlia. Até hoje lhe é suficiente defini-la com poucas palavras, aqui vão elas, garota mimada que
nunca precisou de muito esforço para ganhar as coisas, as coisas que ela quer e faz gosto. Os
sonhos são comuns, como daqueles que desejam satisfazer a todos os próprios desejos
enquanto lutam pela paz no planeta, mas, ao notarem que essa luta é um pouco mais dura do
que se pensa, nesse caso se restringem apenas à parte do sucesso e da própria carreira, todo
o resto é deixado para mais adiante, num futuro que deus guarda, se ele mesmo já não o
esqueceu. Ela é do tipo que pode chorar quando vê um filme de qualidade e bastante
comovente, sem exageros, sem pieguices, faz-se de tímida, vai também bocejar em outras
películas e sair implicando, fazendo-se de enfadada, e é rígida e concisa a tratar-se das
eventuais obrigações que lhe surjam, que é para tornar-se confiável a todos que puder, que é
coisa da mulher independente que tem meios além de sorriso para cativar. É uma moça
moderada, é um pouco enjoada, capaz de se tornar sem graça e infantilmente desagradável
quando o ambiente não lhe está a altura, girando com o dedo, cara de ai, que chatice, o gelo
dentro do copo com uísque, sem se tocar do quanto isso pode ser angustiante para os outros,
porque os está pressionando tão escancaradamente que é falta de educação que reparem e,
ao que se lembre, ela não liga de verdade muito para os outros. Teve toda a vida para treinar
como ser articuladora, das causas disso não se sabe, se a vida foi assim ou assada, quais
foram seus exemplos, mas parece mesmo que aprendeu, ignoram-se as razões, meramente
quis ou permitiu-se, e é sem dúvidas no que melhor emprega sua inteligência. E ela sempre te
foi um problema.
Ele não a deseja porque ela possua algo demais, um apetrecho que nunca viu, uma beleza
incomum, uma marca exclusiva, algo que a faça ter se tornado necessária. Ele a deseja porque
a viu primeiro. Não é justo que André a tenha conseguido, mas muito menos justo seria que
tentasse tirá-la dele, e isso ele nunca fará, que não é um cretino, não é como se fosse com um
outro qualquer, que aí tudo bem, tudo jóia, de pouco importa, é uma das coisas da vida, que as
fêmeas não vêm com etiquetas ou encoleiradas, mas não com André. Não faria uma coisa
dessas, nem mesmo se Alex, de fato, pudesse conseguir algo. E isso é o que se pode ter como
possibilidade das mais remotas, tão remota quanto, por exemplo, a de Júlia, coincidentemente,
por alguma obra do acaso ou de força mais sinistra, estar nesse mesmo encontro, em algum
lugar próximo à tal cafeteria onde ele atualmente está.
Essa moça é, ou melhor, foi uma amiga querida, a quer bem, e ele está mesmo disposto a
protegê-la, não especifica de quê, ainda que não seja de tudo, que alegar tudo é um pouco
demais, mas é como faria a qualquer um de seus amigos, mas sem exageros, sem sacrifícios
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ou excessos, que ele não é mártir nem estúpido, não teve até hoje porquê de sê-lo e não é
como se ela já tenha mesmo precisado de proteção, e quando sim, na verdade sempre dispôs
de outras fontes para obtê-la. Mas quem sabe as coisas não mudaram, hein?, e seria hipocrisia
se não admitisse que foi por um pingo dessa esperança que ele desistiu da presa antiga, a
vendedora da loja de vídeos que, devendo ser felizmente a ela que não tem mais ninguém a
sua espreita, saiu caminhando ao seu manco destino, que torna-se desinteressante. E ele já
tem um novo horizonte clareando como sol em sua mente. Foi à rua que seria sua meta, para
que se aproximasse dela foi preciso penar por duas horas dentro do metrô, mas não fazia mal,
que nos metrôs geralmente se têm muita gente, banquete para quem aprende a sugá-las e
principalmente para quem não se cansa, seja pela solidão, que impõe poucas variedades do
que se fazer, ou por gosto, assim ele nunca estará plenamente desocupado com todo seu
tempo inútil, puro e em branco.
Em certo momento, quando o túnel abriu-se e pôde ver a cidade e enxergar os seus
prédios, lá, todos acesos nas suas discrições, lembrou-se de um sonho em que essa claridade
era toda de um fogo horrendo, o mundo estava em chamas. Quando isso ocorrer, pensou,
estarei exatamente feito aquele imperador romano, que enquanto a cidade explodia tocava
suas músicas no terraço do palácio e observava tudo ruir, devia rir e purificar-se de todos seus
pecados.
Estava na rua. Estava certo de ser aquela, só não estava certo sobre qual era o
apartamento, uma vez também estando certo do prédio. Olhando assim, só se via um bloco de
pedra que não inspira nada. Nunca subiu, mas por alguma razão que não convinha lembrar já
tinha estado naquela rua, faz idéia de qual seja o andar, algo entre o quinto e o oitavo, e assim
não foi difícil supor mais ou menos a altura, e ver que desses andares não havia janela
apagada. Bom, pensou, se é aqui mesmo que ela está, as pessoas são muito fáceis de serem
encontradas. Agora é só ir até a guarita da portaria, que perguntando pelo nome já se acha
quem se deseja, vai lá, de nada adiantará ficar parado em frente a essa banca de jornal, como
se estivesse algo aí que o interessasse, como se você estivesse disfarçando, desviando a
atenção de lá de cima. A verdade é que a covardia, também a própria coragem, geralmente se
manifestam somente no momento em que realmente se fará a diferença, a hora h, e ele, assim
como buscou convencer-se de ir, agora está procurando motivos para desistir. Se por um
acaso tiver de saber se ela ainda mora ou não com os pais, se tiver de saber se ainda mora
naquele apartamento onde você vê um ou outro vulto por trás das cortinas, não será nessa
noite. Talvez em alguma outra.
Algo pesado é posto em cima da mesa, soou abafado, e isso o assustou. Era um desses
sustos que em resposta se ergue a cara sem grandes escândalos. Era mesmo aquele senhor.
O rosto agressivo de Condor o olhava de um jeito estranho de se entender, era severo, porém
amistoso e profundo. Não sabia há quanto tempo estava ali, há algum não se importava mais
com as portas da cafeteria, há mais ainda não se importava com as fileiras de carro e a gente
desinteressante, não como a América rica e selvagem, mas como colonizadores desastrados.
Mas o que o gelou realmente, arrepiando-lhe até os ossos, foi ver que é O retorno à escuridão
que foi largado sobre a mesa. A capa negra mais atávica que nunca tem a imensidão de um
oceano escuro contido nas curvas de couro, era forte mas não parecia, e por não parecer
tornou-se ainda mais perigoso, e as letras do título estavam mais brilhantes que antes, era algo
de qualidade, não dessas coisas amadoras que se vêem rondando por aí. A tomou
imediatamente com a palma da mão, a arrastou, ciente da consistência das páginas, a querer
comprovar ainda mais, guiou até o seu colo.
– Essa é a primeira edição? – perguntou, só teve força para desviar um pouco o olhar.
– É um presente meu a você.
– Esse é pra mim – repetiu, abaixando o rosto. Deslizou os dedos pela capa, sentiu o
relevo e coisa assim. E a satisfação o visita por um tempo. Para isso sequer fazia diferença
que na capa só conste o berrante título e o autor fosse assim tão descartável, como estando
implícito que fosse escrito por todos ou por alguém que já se perdeu, ou que agora a ninguém
ou a todos pertença.
Abriu. Vê logo as orelhas, esse restinho da capa que serve de marcador de página, lá
estão algumas embromações de algum comentador, compadre de Condor, que pode ser
qualquer um e não o interessa. A primeira página repetiu o título em caracteres menores. Na
segunda, em letras pequenas estão as tais informações técnicas sobre a gráfica, a impressão
etc. Agora já está na terceira e lá jaz, em caracteres comuns, na parte que usualmente se usa
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às dedicatórias, o seguinte, deixai, ó vós que entrais, a toda esperança, e virando-se essa
página se via o início do conteúdo, impresso realmente parecia mais coerente, tinha uma
beleza única, nem pior e nem melhor do que já conhecia. Por ser diferente do usual o pertence
menos ainda, prefere nem mesmo ler, devido a causas como essa tudo o que pode sentir, mais
uma vez, é esse vazio que se preenche a si mesmo por não admitir nada existente além dele.
– Que é isso escrito?, deixai toda esperança?
– Foi uma liberdade que tomei – respondeu o velho, e tomava outra liberdade ao puxar
uma cadeira e se sentar. – Em um clássico, essas palavras estão gravadas na porta do inferno.
– Parece aterrorizante, eu gosto, não sei. Mas talvez não seja tão boa idéia associá-lo com
coisa assim, com inferno.
– Ninguém até hoje tinha falado novamente do inferno, você fez.
– Certo, você me convenceu – e repõe o livro fechado em cima da mesa.
– E espero não tê-lo feito esperar.
– Estou bem.
– Chegou faz muito? – ergueu o dedinho, sem nem olhar requisitou a presença de algum
garçom, e não seria de se espantar se com tão pouco viesse mesmo algum, se duvidar
correndo.
– Não se preocupe, estive me entretendo.
E alguém veio mesmo. E era um rapaz vestido feito um pingüim todo lustroso. Não
cumprimentou, não interrompeu nada, apenas olhou como se desse boa noite, é incrível como
é adestrado a se comunicar no silêncio, e se prostrou de forma que deu a entender que era
todo ouvidos.
– Me veja uma xícara, por gentileza – requereu Condor sem gentileza.
– Para mim, nada.
– Então, pelo que vi – veio mais uma vez Condor –, as mesmas figuras de sempre já estão
a postos.
– Eu não conheço ninguém.
– E por que deveria?, são os mesmos críticos, políticos, jornalistas, metidos, empresários.
São todos velhos.
– O senhor também é velho, mas eu entendi o que quis dizer.
– Isso não lhe tira a razão, assim como eles eu não reconheci a hora em que devia me
aposentar.
– Não diga isso, ainda te há vida.
– Não use clichês que você não domina.
– Desculpe, tem razão, que abandonemos a vida na hora certa, quando convir, não sei.
– Como vai a casa?
– Está ótima, tenho me esforçado para manter tudo em ordem, é isso, vai bem.
– Lhe vem sendo proveitosa? – o garçom chegou com a xícara de café, não leva dois
segundos até que o servisse e se fosse, foi quase num piscar de olhos.
– Nunca fiz as coisas tão bem – sorriu e ergueu um pouco os ombros.
– Assim eu espero. Não seriam pequenas as conseqüências caso você desaponte o meu
investimento em você.
– Você está me ameaçando.
– Não, é um desabafo – e sorriu cruelmente. – Fizemos uma troca de favores, mas agora o
que temos é um pacto que nos une além disso, um pacto de semearmos juntos um tanto além
do que você me deve.
– É?
– É. Estou adotando você. Assim, você me deve produção e respeito, e eu te devo
oportunidades. Você será meu segredo e eu recebo seus créditos.
– Verdade, tudo bem, eu agradeço o que fez até agora, acho que tudo vai caminhando
bem.
– Finalmente? – e bebeu do café.
– Não entendi.
– As coisas vão andando finalmente bem?, antes estavam longe disso?
– Não foi isso que eu quis dizer. Apenas vão andando bem – anuiu com a cabeça.
– Não é mesmo da minha conta – e terminou sonoramente um outro gole.
– Não faz mal – passou os dedinhos mais uma vez por sobre a capa.
– Está orgulhoso?
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Fez que sim.
– Ótimo.
– Acha que as críticas serão boas?
– Como eu posso ter certeza?
– Não é para ter, mas você conhece os tipos, ou ao menos parece fazer idéia de quem
são. Diga-me o que acha.
– Acho que o chamarão de sem causa – levantou as sobrancelhas.
– A mim não, não me conhecem.
– Estava falando do livro.
– Certo. E por quê?, não é isso que se mostra.
– Então, rapazinho, aprenda que eles não darão o nome que as coisas merecerem, dão o
nome deles e emprestam suas imagens para poder se repudiarem, porque muitos se sentirão
agredidos, mas não poderão falar. Isso seria vestir a carapuça.
– Entendi.
– E há também os que falarão sobre a originalidade e a inovação, sobre o brilhantismo e o
choque, mas que depois de algum tempo farão com que essas idéias façam parte daquele
imaginário coletivo que já falamos, este éter inútil que permeia nossas idéias, onde a inspiração
dorme e ronca, no máximo tendo uns espasmos de sonâmbulo...
– Esses não vão se sentir ofendidos?
– Vão se sentir menos, porque não vão se dar conta de que a agressão também é contra
eles. É melhor fingir que não viram.
– Verdade. Entendi.
– E há aqueles que não estão aqui hoje, e que talvez você nunca os conheça, mas que
levarão profundamente a sério tudo o que foi dito e criarão pequenos focos que teimarão em
fazer dessas idéias menos imaginárias e mais reais. Essas pessoas podem ser sujeitos sérios,
ou desesperados que precisam se ocupar de alguma coisa, ainda assim são todos tolos que
precisam de frangalhos, de retalhos, e o primeiro que os vier com um sabor diferente, tomarão
achando que é remédio, e eu espero ter me feito claro.
– Será?
– É assim que sempre ocorre – falou em tom profético.
– Seria curioso.
Nessa mesma hora chegou um sujeito jovem com a sua máquina fotográfica envolta no
pescoço.
– Senhor, eu poderia? – dirigiu-se exclusivamente para Condor.
– O senhor vai tirar a foto de qualquer maneira – falou com escarninho notável, aí virou o
corpo de forma a ser visto de frente. O rapaz posicionou a câmera. Era dessas modernas, não
precisa sair sequer o flash. O estalo é tudo.
– Obrigado, e boa noite – e se foi.
Condor bufou. – Eles sempre estão à caça de coisas que não publicam. É um acúmulo,
quanto mais inutilidades melhor. São todos iguais, esses frangos. Preste atenção, Alex, vá
aprendendo. Lá está o mesmo rapaz agora indo pedir a mesma coisa na mesa daqueles
rapazes ali, vê?
– Qual o problema?
– Ele sequer sabe o que quer.
– Bem, pra mim está nítido. Tirou a foto da jovem que está acompanhando o homem.
– Vão publicá-la em alguma trigésima página de revista para imbecis.
– E o senhor?, não tem esposa?, alguém pra acompanhá-lo?
– Viúvo duas vezes, divorciado da terceira.
– Parece ter visto bastante coisa.
– Não tenho a pretensão de afirmar. Mas a verdade é que vi, sim – e assumiu um ar
profundo.
– Pensei se eu não devia vir com uma acompanhante, mas acho que o fracasso seja mais
charmoso.
– Por isso aqui estamos, sós – o velho ergueu levemente os braços.
– Façamos um brinde. Minha xícara está vazia, mas não faz mal.
– Ao retorno à escuridão?
– Ao fracasso já está bom – e ergueu a xícara, ao que o velho, como uma risada sensível,
acatou.
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– É uma pena que os homens de nosso tempo não enxerguem as coisas como nós –
bebericou o senhor.
– É indiferente, não sei dizer ao certo.
– Contenta-se com bem pouco – limpou a barbicha grisalha com o lenço.
– Quem muito quer, só com muito se satisfaz.
– Aos poucos vou conhecendo suas filosofias de vida.
– Gostou?, tenho algumas outras – e espia o lado de fora como quem espera por algo.
– É, eu imagino.
– E o senhor? Quais as suas?
– Antes dois pássaros em minha gaiola do que um voando solto.
– Livre adaptação do provérbio, é isso?
– Licença poética.
Mas Alex talvez mentisse, e essa possibilidade veio para si na forma de uma intensidade
que, esperando apenas um pouco mais, há de se tornar verdade. Será mesmo que está
personificando o sujeito das poucas ambições?, talvez não seja bem assim, quando alguns
sábios já disseram da vontade ser infinita, ela nunca cessa de existir, é sempre persistente. O
problema é quando a vontade não é simples, eis o seu caso, em que tenta disciplinar a si
mesmo e convencer-se, num processo muitas vezes não dos espontâneos, do absurdo que ele
próprio representa, enquanto soterra esses absurdos, que presume também que muitos o
façam, por razões da praticidade. Mas sempre houve, meu caro, e isso não se pode negar,
pólvora dentro do entulho onde despejou suas loucuras.
Dizem os sábios que aonde há fumaça, já antes se ateou o fogo, que algo já explodiu e é
capaz que mais venha aí, Pompéia que nos diga. E não fuja dos sintomas disso, sendo um
desses a sua fúria sem motivo ou distinção, essa cólera às vezes o surpreende, é de uma bruta
explosão de que precisava, uma dose cavalar de qualquer coisa, de um atentado assassino,
um desses estouros que o ensurdeceria, mas antes que possa dar-se conta do chiado agudo
que entorpeceria seu cérebro, do gosto estranho vindo à boca e dos olhos a tentar fugir das
orbes, os estilhaços do vidro arrebentado já estariam voando, as mesas estariam sendo
varridas e um cheiro de carne queimada estaria subindo enquanto o ar chamuscante sopraria
um vendaval de cinzas secas sobre tudo. É um desses sonhos rápidos, com muitas sensações
e poucas imagens, e seria um desses dos quais se acorda gritando, com um calafrio que faz
trincar até os dentes e arrepio que vai corroendo os ossos, acordaria pulando e quase bateria
no teto. E então pensa, pobre de mim que só sonhei.
E então começara. O estalo de um isqueiro. Tilintou um prato, retumbou na audição feito
estrondo. O eco de uma riso grave, a brisa gelada que vem da rua, ainda que tudo aqui esteja
fechado. Arrepiou-se até a alma, nos olhos só havia trevas. Todos esses fenômenos assumiam
proporções tenebrosas, ao mesmo tempo que a sensação que tem é claramente a de estar
afundando a sua existência em cada coisa que sentia, a divergir-se e a se recompor, sem
porquê ou sem querer, em cada ponto infinito do espaço.
Fechou os olhos e se viu afundar rumo ao nada de águas densas. E deve ser essa a
maldição do infinito sobre nós, não nos centra em nenhum ponto, contesta o nosso senso de
espaço, torna o tempo banal, faz com que tenha de atolar-se na própria pequenez e é deixado
ao léu de um lugar que não enxerga e é tão grande quanto permite o temor. O portal dantesco
ao fim do átrio, que em plumas e danças sombrias se formou, dizia com letras de fogo, deixai,
ó vós que entrais...!, e aí se ouviam os gritos agônicos do inferno, um túnel cheio de algazarra
das lascivas, um rosto desesperado, outro vomitando as tripas, o sussurro de alguns seres ao
pé de seu ouvido, desses anjinhos e diabinhos que ficam cada um num lado da cabeça, as
verdades por detrás das teratologias, rostos monstruosos, demônios, demônios, demônios,
cacos de espelhos quebrados que caoticamente refletiam o que tinha de ser a mesma coisa,
tinha de ser ele, mas não era, não seria. Aí esteve tudo escuro, as voltas todas pararam.
Parecia agora que estava se esgueirando numa descida perigosa e gosmenta. Parecia, na
verdade estar sendo conduzido, lentamente arrastado por alguma coisa, um duende que vem
na noite escura, um monstro albino e cadavérico, de repente é o outro, mas nada havia, era ele
o tal corpo que ia rastejando sem querer rumo à uma mucosa que reveste segredos uterinos.
Meteu o cigarro na boca, não tardou até que a sensação flamígera percorresse-lhe o corpo.
Por acaso estava o livro aberto no colo, e não podia mesmo imaginar a possibilidade
insensível de olhar aquelas letras, e ele não as propriamente lia, apenas as olhava então a
perceber como eram terríveis, era uma besta viva que, sombria, encarava de volta os olhos
167
acovardados. Que foi que eu fiz?, se perguntou, e aí se passou um daqueles instantes em que
a insanidade, é que há ocasiões em que se abrem portas para que ela se manifeste com mais
força, sufoca a razão dos mais brutos. Algo fantasmagórico o fez amolecer, e a sensatez
obviamente interveio, dizendo que calma, que é só a emoção ficando forte, a surpresa o
persuadindo, mas respira fundo e retoma os passos da dança, mas a razão só é usada porque
não se descobriu outra forma de se pensar que agrade o desenvolvimento do senso comum,
dessa forma ele é forçado, mesmo sabendo dessas fragilidades, a supor essa razão como
forma legítima de expressar um choque entre a alma e a natureza das coisas que não estão
dentro dela. E tentando na razão ancorar-se, vai exclamar, enquanto olha aquelas folhas e elas
pareciam induzir-lhe a um mergulho no elo perdido com sua mônada, e começa a supor que lá
dentro não haja muito mais que lama, o que fiz?, o que fiz?, por que essa idéia?, por quê?,
não, isso é algo muito perigoso, é que não é sempre que a verdade se insinua tão crua para si
como fez agora, porque adotou um sentido que ele não previu, e da mesma forma que a
escuridão antes o engoliu e perguntou-lhe, acaso abandonaste a esperança e tudo o mais,
como recomendado?, agora o expulsou, porque ele hesitou em responder.
– Fantástico – balbuciou, tragando ainda mais do fumo. A tremedeira que agora lhe toma
as mãos é típica do cigarro, nada mais.
A cafeteria subitamente era a mesma que sempre foi, e o forte aroma o faz lacrimejar de
susto.
Era uma outra fotografia que Condor o estava mostrando e ele fingia perceber. Curvou o
rosto, expeliu pelas narinas um quanto da fumaça, viu que a imagem da figura é de uma
modelo linda que parecia ser uma estátua pelo jeito que ia maquiada por pó-de-arroz e outros
recursos, os quais não entende e não sente curiosidade. Os olhos são brilhantemente verdes,
tinham um quê de felinos, deve ser essa a intenção, e ao que no mesmo instante que pensou a
respeito, veio Condor a confirmar.
– É outra coleção que estão lançando, chama-se as danças de bastet, era a deusa egípcia
com a forma de gato – e pára a olhá-lo, depois continua. – Veja as outras fotos, aqui, e essa.
Vê o contraste entre clássico e moderno?, esse sujeito é bom, é um dos poucos garotos que
fotografam direito, veja essa outra foto, ele junta morbidez com sensualidade, e tem um tato
perfeito para as modelos que escolhe, é verdade, veja a menina, nem feia, nem bonita.
Diferente. Percebe?
– Percebo – entreabriu a boca e soprou a fumaça para cima.
– Daqui a pouco – olha o relógio – tenho uma coletiva para apresentar o nosso livro.
– Hum.
– Agora me dê a sua opinião de leigo, quais das três coleções que mostrei é mais
chamativa?
– Hum. Gostei da de estátuas. Essa dos olhos verdes – coincidentemente é a única que
viu.
– Certo. Por um instante achei que o público ia gostar mais da serpente chinesa. Tem mais
detalhes, é mais frondosa, as pessoas gostam das coisas grandiosas.
– É uma possibilidade, eu não sei.
O velho passou a palma sobre a mesa, tomava as fotos que espalhava, e murmurou algum
palavrão inaudível quando percebeu algumas das folhas molhadas pelas gotículas do suor das
mobílias, e talvez tenha querido queixar-se num grito, mas é quando, pelo acaso dos
quaisquer, o olhar cai sobre a direção da entrada, pareceu enxergar algo que lhe signifique
alguma coisa, pelo que parou e continuou voltado por alguns instantes. – Me viram. Vão vir até
aqui, e são pessoas com quem tenho de falar.
Deu-se conta da mensagem passada, sinalizou fazendo mostrar que entendia o recado,
piscou levemente os olhos, o gesto também contribui à formação do meiosorriso afável, e não
demorou para que estivesse se pondo de pé a caminho da saída, cada um com seus assuntos,
cada tipo com o que os apeteça, ainda que eu não saiba, ele pensa, quais são os meus, sei
quais não são. E foi-se caminhando pelo corredor, divagou um pouco entre os quadros, mas as
atenções pairam mesmo nas extensões da gente, rostos que se levantam e depois se abaixam,
eram olhos que se ofuscam e daí piscam, sombras que sendo vistas só com esses interesses
não apresentam nada que seja fascinante, roubada toda a grandeza que se diz haver na raça
humana, aqui são depressivamente nada, e é isso tudo que pode compor a gente existindo, aí
já está a subir umas escadinhas. Foi.

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O quadro à frente continuava a lhe ser uma porção de manchas, sabe-se lá que diabo
aquilo quer dizer, propósito é coisa que se invente, fiat, fiat, fiat, e se crie a coisa que se queira
batizar com o termo que prefere, todas as criações a desfilarem para Adão, e ele a dar o nome
para o que são, nos põe em dúvida sobre quem realmente inventou as coisas. Às vezes,
quando possibilita a ocasião, a gente comenta alguma coisa como, esse parece conter o
temperamento de uma paixão, ou então, vemos aqui o retrato de muitas faces da época em
que vivemos, ou esse parece ser um baile muito sinistro, lembra o rosto de uma mulher
solitária, é um novo jeito de se ver os velhos do parque, esse aqui já representa uma úlcera,
esse é uma parte da cidade que não se conhece etc, céus, e ainda havia toda uma exposição
nesta parede, para não ser insensível ele tem de permanecer fingindo-se vidrar. Ele ficou
mesmo feliz quando descobriu que estavam servindo vinho, é, antes isso do que nada, e foi
quando viu o maître a passar com a bandeja e suas várias taças que acendeu-se a esperança,
bebeu fingindo degustar, hei de comprar uma safra dessas lá para casa, ordenou-se.
Aí ouvia as vozes de uns que estavam atrás de si. Acho que podemos entender como a
lança que furou a cristo, só que dessa vez perfurando diretamente a nossa consciência,
entende?, certo, com bastante esforço e principalmente imaginação ele até pode ver uma
lança, mas ver cristo, meu amigo, seria coisa parecida a achar agulha no palheiro, e nem isso,
porque teoricamente a agulha no palheiro ainda existe. Chegou a conclusão de que os artistas
são treinados para ver coisas que não existem, mas isso o remeteu a um dilema, se o rapaz
vem e é habituado a ver coisa que não existe, sabe deus o que teria o próprio criador em
mente, criador, essa foi uma ironia, é o que têm em comum, ao traçar aquelas coisas, mais um
gole de vinho. É, talvez seja boa idéia enrolar, olhar para o outro lado, fingir que viu alguém
conhecido e deixar para depois, é uma estratégia sempre bem-vinda, principalmente quando
não prestam atenção em você. Tinha mais gente lá para o meio, não é de se espantar, essas
pessoas estão se acercando cada vez mais da escultura da serpente oriental, mais parecia um
dragão de escamas vermelhas, emitia umas luzes coloridas e tudo mais, ao redor ficam umas
gueixas dançando e seduzindo a platéia, já o bicho parece estar rugindo com uma fúria
eminente, assim mantém a boca toda aberta, e para abafar o grito mudo da fera já empalhada
criam-se focos de burburinhos e comentários que talvez suponham estarem vendo não a lança
de longinus, mas de são Jorge. E mais um gole. Ruborizou um pouco, deve ter sido o gosto
amargo das bebidas que fica concentrado ao fundo do copo, o que era o mesmo que constatar
que agora estava vazio, era uma pena. Assim que não tivesse ninguém por perto, e a conferir
isso ele já estava, ia deixá-lo discretamente num cantinho. E essa, agora?, parecia ser uma
exposição de fotografias, pareciam ser dessas realistas, que vêm jogadas do jeito mais simples
que for, sem muita estética, preto-no-branco e de contornos cinzentos, e a gente miserável, ou
as coisas cotidianas, como a cara de pontes e viadutos que vemos no dia-a-dia fosse arte,
esses artistas devem ser mesmo abençoados que fazem beleza em qualquer coisa, desde uma
rua mal pavimentada até o berreiro que o nenê abriu. Aí tem os ônibus e a desigualdade social,
a injustiça representada com montagens de retratos e a gente que anda falando de lado e
olhando o chão, com medo de navalhas, revólveres e da vida, que é muito perigosa. As luzes
da ribalta iluminam o retrato de um vagão de trem, parecia vir correndo, devia estar
descarrilado pelo excesso de sombras que foi usado para ilustrar sua passagem. Ainda veio a
mulher atrás dele, a falar.
– É impactante – ela sussurrou.
– É – ele acatou, aí jogou a cabeça para o lado ostentando toda sua displicência superior
–, é a consciência descarrilada. Perfurando a todos nós diretamente.
– Incrível.
– Sim.
Mas nada daquilo importa de verdade. Só importa o retorno à escuridão. Assim, nesse
instante houve algo que o atraía, algo que guiava invisivelmente a vontade de seus passos. Foi
de longe que deu com os olhos nos livros de capa negra. E de longe pôde ver a exposição, e
aqueles vultos agressivos e escuros enfileirados, os rastros invadindo as esferas onde não
deviam estar, que mais eram uma afronta, uma obscenidade que ninguém ainda percebeu. E
todas as fileiras com o livro agora o encaravam. Era isso que afinal valia à pena. E passa lá um
sujeito curioso, que só deve estar interessado em distrair-se, a averiguar do que se trata essa
coisa da capa preta, e sorrateiramente folheará, lia o índice que não muito o diria, abriria mais
a capa, rumaria mais a fundo, talvez atraído por um cheiro que não se saiba que sinta mas
persuade, uma moça também sentiu o tal perfume, que está lá indo olhar. E talvez se
169
perguntem que é isso?, de onde veio?, para quê?, umas perguntas na verdade tão comuns e
gerais, mas acontece que o livro da capa negra parece poder responder, e era claro onde tudo
gravitava. Só havia o livro de capa negra, todo resto eram os fantasmas a sua volta, era a sua
vaga imaginação, as possibilidades que exalavam dali como um hálito, ainda que não muito
certas de si mesmas. Em um só instante a escuridão se ergueu e desceu se quebrando sobre
tudo.

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É difícil de acreditar no que fez.
Alex, você é leite derramado ralo abaixo. Pára de se distrair, há coisas mais urgentes a se
tratar. Como por exemplo?, é de manhã, ele tem de se levantar, agora tem afazeres como
qualquer outra pessoa, tem de cuidar de criticar alguma notícia do dia, tem de inventar algo
sobre os parques para ninguém criticar, tem pelo menos de se mover, mas que é isso?, está
cedo, nunca acorda a essa hora, mas pode inventar uma rotina para se dizer que não tem mais
sono, então, ele nunca foi alguém de se importar com essas coisas, com todas as coisas que o
importam, certo, também nunca foi alguém de se importar com o futuro, e entretanto, como se
pode ver, aqui está ele tentando se convencer que tem que escrever coisas, que tem que
produzir, ser recompensado, tocar a vida adiante, e toda essa classe de coisas que se diz a
gente responsável, mas na verdade o que vem sendo é um homem ligeiramente acovardado. A
noite de ontem lhe está atravessada na garganta como osso de galinha.
O passado é uma gorda e estática assombração da qual só se pode fugir ou lamentar.
Cuspiu, a pia recebe pasta e saliva de redemoinho viscoso, ele suspendeu o rosto, Alex, é
claro, e não o redemoinho que já descia, e deparou-se com a imagem perdida em algum lugar
do outro distante lado, um misterioso, ainda que familiar estranho a olhá-lo nas profundezas, e
cobrava dele muitas coisas que tinham pendentes, mesmo que não saiba quais, o outro pode
dizer, pois o conhece como ninguém. Corajosamente decidiu que não seria ele a desviar a
cara. Não desviaria do espelho embaçado.
– Aqui estamos – disse-lhe o outro.
– Aqui eu estou – retificou Alex.
– Perfeitamente. E o que pensa que está fazendo?
– Enxaguando meu rosto, escovando meus dentes, me lavando.
– Não seja assim vulgar. Você quer me provocar. Não o faça...
– Por que não deveria?
– Não seria valentia atiçar-me, seria apenas imbecil. Não sou uma coisa qualquer a se
temer.
– Pretensão achar que o temo, ou que quero ser corajoso...
– Me admira que consiga mentir enquanto me olha bem no rosto.
– É algo em mim que ainda te invoca, tudo que tenho a fazer é entender a isto, só assim
me deixará em paz.
– O que tem a fazer é me achar um nome, já o disse.
– E por que não me diz também o que isso significa?
– Poucos pedidos já feitos foram mais simples do que esse, e você resiste, e é isso que me
pergunta.
– Esconde algo?, não responda a minha pergunta com outra.
– Escondo umas coisas, você esconde outras, ainda que não se possa esconder tudo de
todos, e às vezes aparece uma inteligência que nos sobressai, condenada a saber da gente.
– E essa no meu caso é você.
– Definitivamente, não é o melhor trabalho de todos.
– Que diabos você quer?, não pode ser apenas uma resposta. Um nome não diz tanta
coisa.
– Acho que eu gostaria de ser ouvido.
– É a consciência, por um acaso?, podia me dar um descanso.
– Não o sou.
– E o que é?
– É isso que perguntando.
– Vou embora, vou tratar da vida – se cansa e abana as mãos.
– Não é muito mais que isso que estamos fazendo.
– Vá embora, me deixe em paz.
– Me teme sem porquê.
– E ainda não desviei o olhar.
– Perfeitamente. Vai atender ao telefone?
– Está tocando, por um acaso?
– Não se faça de desentendido, ambos sabemos que é desgastante tentar ir contra o
óbvio, você não é um cão correndo atrás da cauda, isso é trabalho para os idiotas...
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– Eu o atenderia se tocasse, mas não vai – diz afoitamente.
– Como pode ter tanta certeza?
– Há coisas que são facilmente dedutíveis. Essa é uma delas.
– Falou tão cheio de si que acho que devo condecorar o seu instinto.
– Não precisa, deixemos para outra ocasião, dessa apenas nos esqueçamos.
– Porque eu digo que vai tocar.
– E quem é você para contestar um achismo com outro?
– Não sabia ser preciso de patente pra esse ofício.
– E se tocar, o que faço?
– Só posso dizer o que não deve fazer.
– E isso não me ajuda em absolutamente nada.
– Não supus que estivesse tão desesperado por ajuda.
– Vá a merda. Vá embora.
– Pode ir você, não sou eu que estou falando com o espelho.
O som do ralo da torneira emitiu um barulho nojento, foi o suficiente para fazê-lo erguer os
olhos de supetão e esfregar o espelho com a palma. Tudo o que vê é um rosto de bocarra
entreaberta enquanto dá-se conta de que a pia borbulhava ao terminar de sugar as últimas
imundícies. O outro mais uma vez foi mais esperto. O enervou e escapou antes que pudesse
reagir, não sabia ao certo como ou em quê, mas de algum jeito pegá-lo no flagrante, de
repente desnudá-lo e não mais precisar de um argumento que nunca teria para vencê-lo.
Chegou, inclusive, para instituir-lhe uma dúvida que antes não tinha, a que pensa que está
fazendo?, mas deixa os eventuais problemas trazidos pela assombração imaginária para mais
tarde, também porque não é coisa que tenha cabimento à gente sã ficar a ponderar.
– E, nesses instantes, me resta a orgulhosa certeza de que estamos construindo o nosso
mundo, aqui, produzindo a nossa cultura – exclamou uma voz dentro das lembranças, constitui
esse um trecho que não contém uma importância exata, mas abria as margens de muitas
outras coisas, é aqui que reside o problema.
Expulsou tudo isso da cabeça. Saiu do banheiro, foi tomando o corredor, disse a si mesmo
que tinha de abrir as janelas, essa negligência que o põe vivendo no escuro não faz bem à
saúde. Fez que ia entrar na cozinha quando dá com a esperança do farto desjejum, certamente
não será ele a fazer um, a não ser que fosse para a rua, achasse uma delicatéssen ou padaria
que servisse um café da manhã por quilo, e lá se encheria. Melhor não, a verdade é que sentiu
que até água desceria forçado garganta abaixo, ainda porque não tem ânimo de sair tão cedo.
Mais tarde esquento um congelado, um ovo eu também consigo fritar, com sorte não queimo
um bife, ele ia se dizendo.
Antes que pudesse se dar a qualquer trabalho que exija que pense mais que o costume,
vai cumprir a função já delegada de escancarar as janelas. Primeiro foi a da rua, não ficou
muito tempo para ver se já tinha lá uns movimentos ou não, mas quando foi a do hall, assim
que suspende as venezianas identifica a silhueta do seu José passando próximo a fonte,
certamente fará o mesmo que todos os dias, cuidaria dela e depois, quem sabe, se não
estivesse muito calor, que aí ele deve ficar com mais preguiça, o veria enroscando-se no muro
das sacadas e se pondo a cortar as trepadeiras. Seu José é o zelador que outras vezes já viu,
como vem a saber o seu nome é uma pergunta inútil, já que isto pode ter-se dado de qualquer
forma, que o senhor tenha vindo se apresentar ao novo morador, ou então porque estava
passando e quando checava a vazia caixa do correio a vizinha do lado vinha na outra direção,
e por um acaso da educação chegou a comentar bom dia, seu José, e não havendo ali outro
que pudesse ser José, não havia muito para concluir. Deixe o sujeito com seu serviço, é
verdade que você também tem os teus. É. Ele se disse que ia trabalhar.
– ... uma novela magnífica – a lembrança já veio selecionando assuntos –, e ainda O
retorno à escuridão, uma crítica aos nossos tempos com a angústia inovadora do jornal das
artes... – talvez não fosse a mesma voz que lhe voltasse à memória, mas não importa. Assim
foi anunciado, como se lesse o ingrediente de uma bula de remédio, uma coisa sem paixão, no
caso a vir depois de alguma coisa que é uma novela magnífica. Breve, insosso e sem sentido
como toda a pós-modernidade.
O computador apitou uma de suas coisas típicas.
Há algum tempo atrás houve um caso, numa lagoa que por acaso há num bairro
residencial, das pessoas terem visto um jacaré nadando ali, veja só, um jacaré, e ninguém
supunha como o bicho tinha chegado, de onde tinha saído, como o diabo tinha entrado, se veio
172
pelo esgoto, se foi algum descuido do zoológico etc. Acabou que dizem que o jacaré está lá até
hoje, que não viola o limite das pessoas, que ainda assim, é lógico, temem se aproximar
demais das águas, e é aí que sempre surge um ou outro para confirmar de que de fato o viu,
era monstruoso etc, certa vez o vi saltar do nada a pegar um cisne que fica nadando por lá,
não deve ser um jacaré, mas sim um aligátor dos grandões. Houve uma mulher cujo filho
pequeno desceu para brincar nas margens da lagoa, pôr as pedrinhas para ricochetearem nas
águas e essa sorte de jogos, acontece que a criança sumiu e até hoje não se admite o porquê,
mas todos desconfiam de seu tenebroso fim no intestino do bicho. Podia escrever sobre isso,
até arranjou um bom título, o medo veste couro. Não deixou de soltar uma risada, era
impossível contê-la, se bem que era também um pouco difícil supor por que o jornal das artes
iria gostar de um artigo que falava sobre jacarés ou medo, teve a idéia de falar sobre natureza
morta, que combina mais com o editorial, não é que realmente associe a fera do pântano com
isso, é porque tinha um livro com exatamente esse título, natureza morta, preenchendo entre
tantos a arcaica e empoeirada estante e mais interessante que a pós-modernidade.
Certificou-se de ter recebido alguma coisa no correio eletrônico. A praticidade atual dessas
coisas facilita sua comunicação com a editoria do jornal, cujas mensagens nunca vinham
humanamente assinadas, apenas como A redação. É, e lá se encontra uma nova mensagem,
quando ele clicou e ela se abriu, nela leu-se, pesquisar e tratar da história dos nossos
importantes monumentos, A redação, e era mais do que suficiente o que já tinha lido, dando-se
conta de que a idéia da natureza morta e principalmente a do jacaré já tinham sido descartadas
antes mesmo de serem conhecidas, e também não detinha muito interesse em questionar
esses porquês. Estava claro, agora ia falar sobre os monumentos da cidade, não era mesmo
algo que ele conheça muito bem, de repente com alguma boa vontade fosse algo que lhe viria
a inspirar curiosidade. É. Pensou se já haveriam pessoas a comprar o retorno à escuridão, se o
seu aspecto está apresentável nas bancas e nas livrarias, aos transeuntes apáticos que
passam, coisa assim, é o tipo da imaginação que o faz se perder.
Acontece que o telefone tocou. Sabe-se lá que horas eram da manhã quando aconteceu.
Não lhe veio um desses sustos que a gente se treme de repente, ou salta com o corpo para os
lados, suando frio e sentindo as costas arrepiarem, os pelinhos eriçando de uma maneira que
parece ter vindo o susto por irradiação da alma, apenas aconteceu, e foi um desses raciocínios
rapidíssimos que se tem e poucas vezes se usa com propriedade, o que acabou lhe dando a
impressão momentânea de ter se desprendido do tempo e olhado o aparelho antes que de fato
tocasse, prevendo-o com magia.
Mas ainda está seguro, isto é, não se tem por aí umas câmeras nas paredes ou telas a
seguir-lhe os passos, que ainda se pode dispor de um tantinho de privacidade enquanto não
interesse ou diga respeito a alguém, mas ocorre que o suspense torna-se pior, veja, já vem
tocando de novo. O intervalo que se deu entre uma campainha e a outra não foi que tivessem
desligado. Não pense bobagens. Você não está livre. Não atender e depois ficar imaginando
pode ser pior. Agora Alex põe a mão sobre o telefone, espera por alguns toques para ver se
não desistem, se é não é uma dessas ligações casuais ou inseguras. Espera mais um pouco
para envolvê-lo com os dedos e convencer-se de que não há nisso nada demais, que
naturalmente deve pegá-lo.
– Alô – tentou tirar força da voz.
– Alô – responde a voz do outro lado. Era ele.
– Com quem quer falar? – fingiu.
– Com Alex, por favor.
– Sim, sou eu.
– Aqui é André.
– Ah, sim. Como está?
– Vou bem, e você?
– Tudo bem, tudo certo, estava aqui fazendo algumas bobagens.
– Estou atrapalhando?
– Não, não, claro que não.
– Liguei assim que tive um tempo.
– Ah, sim.
– E aí?
– Oi.
– Podemos sair um dia desses.
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– Bem, sim, posso achar uma brecha aqui na agenda.
– É claro. Conheço um bar legal.
– Sim – meio que sobrepôs –, a gente combina.
– Certo – pausou por um instante –, então tá bom.
– Foi bom revê-lo, André – e acaba sendo sincero. – Fazia bastante tempo.
– É verdade, mas quem é vivo sempre aparece.
– Tem razão, quando menos esperamos.
– É. Escute, agora eu...
– Sim – o cortou –, também tenho que terminar alguns trabalhos. Deixei acumular um
tantinho.
– É isso mesmo. Então nos falamos quando der.
– Perfeitamente – engasga. – Dê um abraço em Júlia.
– Pode deixar. Até.
– Até.
Quando pousa o telefone no gancho ainda o encara como quem estranha, provou e ainda
está em dúvida se gostou ou não, supunha que fosse ouvir uma última palavra saída do
aparelho, qualquer coisa que se emende, um escute, não foi só isso que eu quis dizer, enfim,
qualquer coisa que torne a conversa menos sucinta e mais iluminada do que foi. Mas está
mesmo acabado, agora as distâncias voltaram. A julgar pelo que se conhece das interações,
até diria que esse é o tipo de evento que não merece futuro algum. Aquela velha coisa de
velhos amigos que voltam a se encontrar, mas percebem ambos terem mudado, e percebem
ambos que os laços que antes existiam já não existem mais, que não tiveram como
acompanhar as mudanças um do outro e tampouco se importaram de vê-las acontecer. Não
existem muitos amigos de verdade. E mesmo que mudança alguma tenha ocorrido já bastaria
o receio de uma das partes, aí se vê gente tendendo a ser cordial entre si, mas sempre com
um pé atrás tanto para se mostrar quanto para receber, que não mais se sabe com quem fala,
e começa a se perguntar se um dia soube. Assim sendo, não houve muito mais que
cordialidade no que acaba de acontecer, a conversa que foi alfa e ômega, o fim de si mesma
quando mal começou, vida mais curta que de uma mosca, não parece haver nada depois
disso, e então ele se tranqüiliza, a preocupação veio e foi como se desse a uma descarga. Só
não previu o quanto se angustiaria logo depois. Agora ele tem de se relembrar.
Não importa aquela voz que lá na frente vinha com seu discurso, também não importam os
usuais cumprimentos vindos dessa fonte ou dirigidos a ela, nem os comentários que às vezes
debulhavam a sua sonolência. Não poderia enxergar tudo que estivesse mais à frente, são
essas cabeças a se enfileirar no auditório escuro, inoportunas, são os próprios olhos que já não
funcionam bem com claridade, quem dirá no escuro, como se pudesse distinguir os detalhes
das projeções que iam passando no projetor, como se pudesse dizer que aquela mancha
embaçada que via, e isso já a forçar a vista, é uma ave de rapina, como no divã de um
terapeuta, ou que aquele borrão preto é um sapo a engolir uma mosca, não quer pensar no
que isso venha a representar, não há nada indispensável a ser visto e as palavras da
apresentação de agora chegam todas fragmentadas.
Foi quando seus olhos caíram sobre a silhueta específica de uma daquelas fileiras. Está
cansado de ver silhuetas, mas o esboço dessa tem algo que o atrai, um fascínio que vai se
transformando em nervosismo.
Ele ficou naquela situação de não conseguir mover o rosto. Tenta constatar se aquela
familiaridade não seria impressão, mas não há impressão forte assim que não tenha seu fundo
de verdade, isto é, não é uma coisa das quais se force a se enganar, algo está errado, está
claro, se talvez estivesse um pouco mais perto, um pouco mais claro. Piscou os olhos e decide
que ia se esforçar e confirmar se via o que achava que via. Aí pasmou, de fato percebeu ser
André. Por mais que mantenha o rosto fixo, um piscar já é suficiente para desorientar-se e para
que o perdesse, como gente que se perde na leitura e custa para retomar, assim é sua
condição míope, saindo do ponto em que o viu nas sombras embaçadas, e naturalmente não
descansou a consciência, que a partir daí já dava seus saltos e rodopios, até constatar que não
tinha sido miragem, e pronto. O achou mais uma vez, é, de fato estava lá, nesse momento
voltado, a sussurrar, é o que pôde supor a julgar o modo como se inclina e como protege a
boca com a mão, a alguém ao seu lado. O ciclo completou-se. O destino resolveu ser um
pouco mais irônico, e certamente foi ele que conduziu André a curvar-se só um pouco na sua
cadeira, após naturalmente tratar de seus assuntos seja lá com quem for – seja lá, até parece
174
–, que resolveu acomodar-se um pouco mais, ajeitar a gola do colarinho, esticar as pernas, não
interessa. Poderia ver a outra silhueta insinuar as suas formas. Alex virou o rosto para frente no
mesmo instante, perdendo-os. Ao lado de André, como dedução que qualquer um já fez, vem
Júlia. Estão fadados a se encontrarem não quando se querem, mas quando se têm.
Deve ter vindo à cabeça algumas questões como que diabo estão fazendo aqui?, qual a
relação entre uma coisa e outra?, isto é, com eles e aqui?, o inusitado às vezes vem como um
fantasma, dá-nos um susto e vai-se embora sem porquê, de qualquer forma é compreensível
pelo cansaço que não teve nem tempo para acostumar-se, que se renda, que simplesmente se
jogue na aceitação do que está aí, porque está e ponto final, as coisas não são justas, elas
apenas ocorrem e aceita o fato e considera que por mais que se pense sobre o que ocasionou
isso, o que diabos conspirou para que seja assim, absurdo, obtuso, sinistro?, e olha de relance
de novo, dessa vez enxerga ainda mais, que dúvida teria?, ok.
Foi aí que se disse, usando de um tom como de quem gargalha com jeito de confissão de
si para si mesmo, mas que merda, é exatamente como não devia ser. Mas por que se importa
tanto?, a resposta será dada com a rapidez e a impetuosidade de quem se ofendeu, ora, se
num dado instante de sua vida você some, assim, simplesmente desaparece sem prestar
satisfações, por motivos que não cabem ser ditos, por coisas íntimas e que é com todo direito
que são guardadas, bem, se você faz uma coisa dessas, é no mínimo cretino que chegue do
nada ao velho camarada e fale oi, você por aqui?, aí Alex se autoflagelou, castigava-se
enquanto se dizia seu idiota, você e esse vício de querer a todos os instantes fazer uma vida
diferente da que se cansou, esse vício de fugir, achar que tudo é descartável, achar que pode
simplesmente ignorar a todo o resto, o passado, quando se sabe que as coisas não podem
mudar de pedra em areia num pulo dos segundos, e mudanças completas não existem, para
isso seria preciso ter nascido outro, sempre te acompanha algo que antes e sempre esteve lá.
E aí lhe vieram outras imagens de sua vida, essas eram mais distantes, doía-lhe lembrar, ele
gosta de suspense, da adrenalina má, mas isso seria cravar demais as unhas na ferida, deixe
essa história para lá.
Teve a impressão de ouvir a senhora ao lado roncar, mas é apenas um bocejo
espalhafatoso que infelizmente não foi contido com a discrição que ela desejaria. Mas isso é
coisa que só ele mostraria que notou, como quando se voltou a ela com jeito de surpresa, que
é isso, minha senhora, criando um desses instantes de constrangimento, e a mulher fingirá não
ser com ela. Não sou apenas eu que não estou prestando atenção, concluiu, deixando de lado
um pouco de mea culpa. Não resistiu, mirou os dois mais uma vez. Como se combinasse, deu
com o rosto dela. Júlia. Estava fechado, o contorno da cara esticado pelo cabelo preso num
rabo-de-cavalo, o jeito sério, ainda jovem, olhando provocantemente a frente, porque provoca a
tudo que se olhe, assim, desatenta, sem prestar atenção e a ser mais interessante que isso
tudo. André está tocando o braço dela, veja, acariciando com o polegar, vamos, use a sua
perspicácia de anos, e se seus métodos de observação não te servirem numa hora que são
realmente precisos, comprovará que desde o encontro com a dançarina até seguir a vendedora
da locadora terá sido uma total perda de tempo, uma inutilidade das mais idiotas, um atestado
de que não é mais que um doente, não tão diferente do sujeito que seguiria essas pessoas a
fim de estripá-las numa rua escura e para cortá-las o dedo, ou de repente os cabelos, e
guardá-los na sua coleção. Agora se concentre.
Ela deve estar nervosa, desgostosa, qualquer coisa assim, e para isso os motivos podem
ser muitos, com o exemplo mais provável de chatear-se por estar ali. André deve estar
consolando ela ao reconfortá-la como se dissesse que calma, vai passar, o importante é que
ele está ali com ela e está mostrando que é isso que vale, um mimo que cai bem. Deve ser por
isso que ele tomou sua mão, será que tomou mesmo?, está escuro, não dá para ver direito.
Mas se o fez parece que ela a recuou um pouco, como se por instinto fosse acuada, até dar-se
conta de que não havia o que temer, não, estava fazendo manha, charme e coisa assim, mas
por fim cedeu, deu a mão que nunca retirou. Aí ecoou uma salva de palmas, agora é forçado a
volver as atenções e unir-se ao trepidar pouco caloroso das mãos.
É provável que o senhor tivesse discursado por tanto tempo que já tivesse se acostumado
com a voz, não é coisa que goste. Pelo jeito do discurso está nas considerações finais. Melhor
sair antes que se acendam as luzes, foi o que decidiu. Levantou-se, murmurou por licença, ao
que foi passando arrastado entre algumas pernas que lhe cedem espaço, até finalmente atingir
o corredor e por ele partir.

175
Júlia passou a mãozinha pelos cabelos com um gesto comedido, após fazê-lo juntou a mão
com a outra nas alturas do colo, meio insegura da própria delicadeza, ponderando o que fazer
ou não com os seus movimentos, que ai, eles podem ser muito perigosos. Está agora sozinha,
tinha regressado à exposição, a qual parece estar recebendo com um ar de enfado, alguém
que preste atenção nela perceberá, então não será de se espantar que esteja olhando a
coleção de quadros com um fascínio morto, que deve preferir achar um refúgio qualquer em
algum pensamento que esteja longe. Olha as coisas por alto com jeito de menina aborrecida
com o mundo todo, emburrada, que franze a cara e se senta no cantinho, mas o jeito com que
dissimula isso já é coisa de mulher. Aí concluía um gesto esnobe de superioridade, como por
exemplo quando olhou torto o rapaz que se encontra um tanto próximo, e ela aí ia o fitando dos
pés a cabeça como se o seu silêncio pronunciasse um sussurro breve de eu posso, pode tudo,
não importa o quê, não importa o alvo, não importam os fins. Assim como na timidez se pode
descobrir o orgulho como raiz, assim como se pode ver a falsa modéstia atrás das ternuras e
simplicidades, é óbvio que há muito mais naqueles poucos movimentos, naquela contenção,
naquele jeito de discrição isolada, com um distanciamento das coisas e o jeito de que olha para
qualquer um com uma careta instintiva de nojo. E André continua a falar com aqueles mesmos
sujeitos, um círculo de homens que fumava e mantinha um a imagem do outro, em um dado
instante ela olhou para trás como se desejando apressá-lo porque está cansada de ficar
aborrecida ali sozinha, mas não está claro se ele a percebeu. Esse tipo de coisa pode ressentir
uma pessoa, essa coisa de não ser vista ou ser ignorada, e foi com todo esse jeito de moça
ofendida que ela se virou uma vez mais e se fechou, ela não resmunga, deve ter previsto a
tudo isso, então apenas se enfada no seu canto particular, seu canto de eu posso.
Era mesmo capaz de agora André desaparecer em meio a alguma onda de diplomatas, e
só depois encontre com ela se desculpando, dizendo que não pôde evitar, que o puxaram para
uma champanhe e não pôde ser indelicado.
O jovem moderno e esbelto ao lado dela já se insinua entre uma e outra aproximação, já
deve tê-la estudado. Ele se dirigiria a ela no momento que considerasse ideal, apagou com
elegância a cigarrilha.
– Gostou? – deve estar se referindo ao quadro ao qual estava à frente fazia um tempo.
Ela o olhou, dava a entender que é a primeira vez que o repara, e para que desse a
resposta à pergunta não precisaria de mais que um sorriso cordial e um aceno que pode ser
entendido como um sim qualquer.
– Quando eu o fiz – falou o jovem a sorrir – tinha em mente as várias faces que as pessoas
podem ter. Aí veio o baile das máscaras. É como se chama. Uma só pessoa – gesticulou
abrindo e fechando a palma – é por si só um festival delas.
– Máscaras – ela repetiu.
– É. Sou o nome escrito no canto da tela – a encarou. – E você?
– Júlia – atendeu-lhe a mão à postos.
– E Júlia está expondo alguma coisa?
– Não. Sou só uma jornalista.
– Sim, veio escrever, muito bom – pareceu mesmo contente. – E tem algo em específico
que desperte mais seu interesse?, uma procura, todos procuram alguma coisa, e quanto a
Júlia?
– Não. Na verdade eu não vejo tanta diferença.
– Está acompanhada, Júlia?, posso mostrar-lhe o resto da coleção, de repente você
comente sobre ela, é que se nada te interessa, tudo te apetece – é quase um postulado. –
Nunca se sabe, não é, Julia?, nunca se sabe.
– Desculpe, não será possível.
– Por quê?, não gostou do que viu até agora?
– São só máscaras.
Ele foi desastrado, ela foi rude e agora era todos são compelidos a ficar em silêncio. É, e
por esses instantes ele talvez tenha esperado algum sinal da parte dela, por isso a estaria
olhando, esse tipo de olhar é de quem busca uma resposta, mas essa moça é firme demais,
olhava para frente como se desprezasse qualquer presença e como se, infelizmente, o
avisasse, sem cair da compostura, que a desculpe, mas não há motivos para não ignorá-lo.
– Dê-me licença, creio que estão me chamando – ele balbuciou.
– Claro.

176
Ela curvou um pouco do pescoço para acompanhá-lo já na partida, quem sabe
refestelando-se num gesto de vitória, quem sabe se lamentando por André estar perto demais,
que o arrogante ao menos era bonito. Toda experiência nas artes da psicologia e ainda é
complicado traçar mais que uns ecos de uma pessoa, a relação entre suas profundezas e cada
instante seu ainda continua sendo um terreno árido. O rapaz se foi e ela não o espia mais
partir. E ela não notou quem agora está a vigiá-la.
– Olá, Júlia.
Ela virou-se. Foi quando seus olhos se cruzaram de reencontro, e devem ter dito muitas
coisas de um ao outro, elas se perdem no meio do caminho para que ninguém saiba e reste a
ele o gosto de ausência. Ela já entreabriu os lábios, uns contornos finos, é melhor não reparar
tanto. Agora ele resenha o sorriso, não esperou que ele surgisse sem pedir licença, aí o pôs
para acontecer. Ela enrugou a testa em sinal de estranheza. O sorriso se desfez, sorte que não
se apaga com nitidez, não se afogou, só deve ser estranheza, se refletem um ao outro meio
sem saber. É verdade, vendo-a agora, assim, de perto, parece por fora ser a mesma do retrato
que tinha guardado na memória, com isso não pôde evitar uma transparência da sua ternura.
– Alex – escorreu-lhe suavemente da boca quase como pergunta.
– Nossa – ele sorriu.
Silêncio. Constrangimento que amplia as distâncias. Eles deviam ao menos se tocar.
– Eu mal acredito – ela disse.
– É mesmo. Que coisa.
– Nossa, Alex. Há quanto tempo, não é?
– É, muito mesmo – e acenava que sim.
– E o que te trouxe aqui? – ela tropeça no que fala, é tudo de improviso.
– Ah, sim – inibiu-se, veio o olhar perdido e a intenção vacilante, então o meiosorriso. –
Acho que vai parecer um pouco estranho, será nosso segredo – seria bom que risse, não
consegue –, estou aqui como autor.
– Autor?, você?, autor do quê?
– Juro – pausa para olhá-la. – É um livro que vão lançar pelo jornal das artes. Chama-se O
retorno à escuridão, não é tecnicamente meu, o vendi, mas é assim que se chama. Hum.
– Jura mesmo?, nossa, que incrível, não é? – fala com longos intervalos, que deve ser para
olhá-lo bem, as orbes escancaradas e brilhando, ela não pára de sorrir de hipnotismo. – Veja
só, que tipo de situação que vem a nos acontecer, não é?, quem diz que numa cidade desse
tamanho algo vá reunir as pessoas num acaso que não tem nada a ver conosco? – e fala
sorrindo feito o admirasse –, não é?, quem diria que pode ser numa situação como essa?
– Nada melhor que o acaso – fala por não ter o que falar.
– Estou pasma – e fica anuindo e franzindo as bochechas, ela o angustia –, que bom.
– É incrível, mesmo, sim... e você, a que veio?
– Nossa, eu vim acompanhando André – e erguia os braços, acenava. – E veja só, não sei
onde ele está. Ele diz que não, mas tem de bajular alguns clientes, e são todos simplesmente
impossíveis.
– Quer dizer que ele também está aqui?
– Está, sim. Nossa. Ele vai gostar de te ver.
– É.
Ela silenciou, mantém apenas o sorriso.
– E as coisas? – ele teve de perguntar.
– Vão bem – e fez que sim com a cabeça, e o olhou. – Me formei, estou trabalhando e tudo
mais...
– Onde?
– Na gazeta.
– Parabéns.
– É, obrigada – até pareceu inibida, rastejando os olhinhos pelo chão, sorrindo.
– Somos meio que colegas.
– É verdade – e deu uma risadinha soberba –, quem diria.
– Pois é.
– É.
– Não quer tomar alguma coisa no bar?

177
Agora ela faz que pensa. Cretina. Essa cara da inclinação das pessoas é sempre igual, um
azedo que não se quer mostrar para não azedar a vida dos outros, se bem que logo vem a
cara de contrariedade.
– Acho que não é bom – e ia falar mais.
– Por quê? – a interrompe.
– É melhor que eu não saia daqui. Para não desencontrar.
– André.
– Sim...
– O encontramos por aí. Um café, um café e voltamos rápido.
– Bem, é...
– Ele não saiu – tenta sorrir – e te deixou aqui?
Júlia dá delicadamente com os ombros.
– Ninguém vai se desesperar por você se ausentar alguns instantes. Vamos lá – e ele
continuou.
– Bem rapidinho, certo?, pôr a conversa em dia.
– Um piscar de olhos.
Imaginou se houve um tempo em que as pessoas não olhariam às outras com certa
desconfiança, certo, não precisa de tanto, basta uma época em que o sorriso que agora o
acompanha não parecesse estar atado, ele está se debatendo porque não podia deixar de
ansiar por um passado que anulava suas verdades, não sendo o passado mais que lembrança
insólita a querer confundir-se entre o que se deu e o que ele pensa ter sido e o que queria que
fosse. Mas nada pode ser tão carne-e-osso quanto o agora, jamais pode se recordar desse
agora da forma que está acontecendo, por não precisar recordar é mais que o bastante vê-la
olhando para os cantos, aquele jeito inconfundível de caminhar como se pudesse tropeçar no
próximo passo, jeito de ser doce e de olhar baixo ou ameaçar que vai acariciar os cabelos, mas
se interromper, jeito de sorrir porque o vê segui-la, sorri porque não deve entender mais o que
se possa fazer e portanto não é sorriso de demônio, mas dela, de Júlia, e ele a pensar que não
há sonho mais completo que a verdade, é por isso que sente um receio adstringente de
acordar e descobrir não ter sido nada, e olhava-a como quem olha uma coisa da qual nunca
pôde antes reparar na consistência dos detalhes, desde a simples intenção de lábios a se
mover, os cílios completando-se com o branco em torno das sardas, tudo, tudo, é coisa nova
que tinha a impressão de saber mas só no agora realmente se conhece, para depois esquecer-
se e precisar de mais.
Júlia é uma dessas coisas que dividem épocas, queda de muro, explosão de bombas que
devastam uns povos, nascimento de alguém que muda o rumo das coisas, fim do mundo.
É que é uma dessas pessoas que fazem repensar quem ele é, é coisa que transpira com
tanta simplicidade que o faz sentir-se um covarde. Reflete que não deve angustiar-se, mas a
angústia prevalece após uma luta muito injusta, que o vence pelo tamanho e ainda o apunhala
na costas. Ele é feito o caçador que pela vida toda matou lebres, até ver-se seduzido pelo
rostinho melancólico de uma, sem porquê, sem saber, e para nada, ela é aquela pessoa que
sempre parece esconder um segredo sobre ele, e ela o ameaça com ternura que o deixa até
incerto de revidar, comunica saber mais do que parece da gente, e não vem a dizer o que isso
significa, apenas diz, sei muito mais do que você pensa, sempre tenha isso em mente, e por
fim sorri. Nunca pode estar completamente seguro ao agir com algo que a diga respeito, eis
uma situação para ilustrar o berço onde os siameses amor e ódio ainda não assumiram suas
diferenças, é aí que ele volta ao início de onde nunca pôde sair, a mirar aquele mesmo sorriso
amarrado, agarrado a algo que não o permite sair, e esse ainda ecoa repetidamente ao córtex,
fazendo-o contestar se a Júlia que conhecia, a que ria, que gritava, que chora, na verdade essa
era tão somente a Júlia que a ele se mostrava, a mesma que ele pergunta se ainda existia, ela
ainda existe e isso é pior que qualquer pesadelo.
– Não me sinto muito bem por aqui – ele desabafou, saíram as palavras a brotar de lugar
nenhum, aí saíram meio avulsas –, não conheço ninguém, são todos diferentes demais. Foi
sorte ver um rosto conhecido.
– E que coincidência – ela acatou, erguendo o rosto para sorrir.
– É, logo você.
– Você desapareceu – e isso o gelou a espinha, que o tom de cobrança não deve ser
impressão.
– Aconteceram várias coisas ao mesmo tempo, muitas mudanças.
178
– Espero que esteja tudo bem agora.
– É, foi tudo resolvido.
– E de uma forma bem inesperada. É assombroso. Parece até... – e se interrompeu, ao
que o olhou.
– O quê?
– Não, nada. Foi apenas modo de falar, uma idéia mal concluída.
Parece até que a esteve seguindo, não é?, poderia perguntá-la agora sobre a questão da
casa, se ainda morava onde ele pensou que sim, aquele mesmo lugar, mas espera, que de
repente tudo o que ela quis dizer é que parece até um destino irônico, insistência metafísica
que nos une.
– Deixei uma carta pra você.
– Eu me lembro, Alex. Mas não dizia muita coisa.
– Eu disse que um dia ainda nos veríamos.
– É que depois de algum tempo não se sabe o que esperar.
– Talvez.
– E lembro que me pediu desculpas, também. Por quê?
– Por qualquer coisa – tossiu.
– Isso me parece um pouco depressivo – ela franziu o canto dos lábios, é bonito quando
faz assim.
– Talvez eu andasse triste – e riu, esnobava as próprias palavras –, mas não sei.
– Não sabe por que partiu?
– Não é isso, é que...
– Tudo bem – e ela levemente sorriu.
– Eu senti um pouco de saudades.
Ela não deve ter sabido o que responder, e quando pára estão próximos aos pés da
escadaria, que subia junto ao tanto daquela gente. Por um breve instante algumas pessoas
passam entre eles, de forma a roubá-la da sua visão. Quando finalmente a reencontrou, é claro
que também o procurava, constatar isso não parece restringir-se à ocasião e ao ato, é
especialmente estranho, dá umas sensações de agonia e fraqueza, e ali ela está, com a mão
no pedestal rente ao corrimão, tocando simplesmente pelo tato ser uma das coisas que nos
prendem ao mundo, que nos impede de perdermos a razão quando as falhas da realidade
ameaçam tirá-la, ela em sua frente é uma falha. E alguma coisa no seu rosto minguou, um
brilho, não é capaz de identificar com toda certeza, ele teve de olhar para o caminho do bar,
onde alguns já se embrenham a partir, e ele se pergunta silenciosamente se não deviam
percorrê-lo juntos, mas pensou que reforçar fosse cruel ou impróprio.
– Obrigada – ela disse, o que surtiu um efeito vago. Ele não insistiria perguntando obrigado
por quê.
– Parece que você está com pressa. Deve ser a hora.
– É meio tarde, mesmo – anuiu de qualquer jeito.
– Deixa o café para outro dia.
Ela sorriu, é bonito quando franze os lábios assim, já reparou nisso, e o que dizia com isso
é que era melhor assim, que não havia muito que a conveniência permitisse, e ela o comunica
ser ela que nos rege. Mesmo o descargo de consciência não impedirá que você se sinta um
lixo.
Era a hora perfeita para uma meia volta, um sorriso de despedida, um piscar de olhos que
denote um até logo, a verdade é que será um adeus, e tudo bem. Se não fosse um covarde,
quem sabe não se aproximava?, ir chegando, assim, de leve e sem inocência alguma, mas
com o aparato da educação lhe daria beijos nas bochechas, até que sensivelmente a veria
ruborizar, a veria conter as coisas de dentro, um pedido secreto a ela mesma que diria para
que ele ficasse. Mas ambos, ele pensou, eu e você sabemos que isso não é provável, minha
querida, e que um raio caia sobre minha cabeça da próxima vez que uma idéia feito essa me
ocorrer, se é que haverá um novamente, que com todas as forças eu, com toda hipocrisia,
evitarei. Ele deu um passo para trás e a imagem de Júlia converteu-se numa apoteose das que
deslumbram, capítulo final de uma ópera, fechou-se na saída à qual não falta nada, brilhava,
ainda que recolhida, estrela sem muita pretensão de brilho pela escadaria da sala, é uma cena
digna de eternamente se guardar na memória como o ato perfeito de despedida, estaria
satisfeito, daria a história por encerrada.

179
Era isso que seria, apoteótica, seria assim toda a sua saga. O epílogo de uma era, a
abertura de uma nova em branco a escrever-se, tudo diferente do que virá a ser. É, isso se não
fosse aquela sensação que lhe disse que devia erguer os olhos um pouco acima. Isso se não
tivesse visto aquele vulto, assim, parado, abafado pela sombra de Júlia, ainda que tivesse lá o
seu diminuído poder, ainda que estivesse mostrando claramente para onde olhava, e é para
você. Ganhasse de alguma maneira dois minutos no tempo, rival seu desde nascença, e tudo
seria diferente. É angustiante estar dentro de momentos assim, e é felizmente que algum
fenômeno da racionalidade iniba que os sãos tenham surtos autistas e divaguem,
enclausurados na própria imaginação de como é e como poderiam ser as coisas que são. O
que aconteceu, rápido e cru, é que viu prostrada, com olhar indecifrável, a sombra de André. E
aqui correram as possibilidades. Diziam que ele não deve ter chegado há muito tempo, mas de
que interessa isso, se agora é certo que já o viu?, a depender do que ele possa ter ouvido, isso
pode tornar-se mais difícil ou menos terrível, o que tem a fazer é disfarçar o riso, não pode virar
o rosto, agora já é claro que também o viu, e qualquer um pouco esperto poderia notar que
improvisar a saída seria uma fuga, mas fugir de quê?, se perguntaria, chega de temer o nada
ou uma intuição qualquer, essa coisa de ficar amedrontado com as coisas apenas o evita de
ser, o impede, o enfraquece, e por fim a chama da imagem de Júlia esvaeceu, não era mais
um perigo. Mas os olhos de André, sim, e foram eles que lhe despertaram na cabeça um clarão
bizarro, fulminante e comovente, uma imagem que retorna agora, a imagem de quando vira o
rosto suado desse mesmo André, as sobrancelhas se tocando, o contorno deformado de rosto
com expressão de grito, quando achou que Alex e Júlia eram amantes. E este momento, não o
da memória, mas o de agora, é um intervalo do qual não sabe o que esperar. Era como se lhe
batessem na testa, ainda precisava de um tempo até se recobrar. E presume que, quando o
fizer, não gostará do que pensará a seu próprio respeito, nem das idéias que terá.

180
Essa noite ele superou o preconceito e até agora assistia a missa, e é com sinceridade que
pode jurar que tentou se concentrar em ouvir os sermões do padre, jura mesmo, em um
instante tentou direcionar todas as suas forças para isso, e como é de se prever fracassou.
Não aqui querendo desmerecer a competência escolástica daquele desconhecido nas batinas,
pede perdão por sua displicência e põe a culpa nas coisas que enchem a sua cabeça, coisas
que ele não consegue pôr caladas. É assim sempre, pois tinha se viciado nas coisas infames
de forma que mesmo estando ocupado com outras não infames a mente o ficaria incitando às
trivialidades, martelando baboseiras, o empurrando à distração. Remói se por acaso Júlia ficou
impressionada, e não parece estar reinventando o passado quando reinventa em Júlia a
surpresa de te ver. E é capaz que essa surpresa tenha mesmo vindo com alguns detalhes de
insatisfação, é que a sua presença, Alex, aos que te conhecem de perto, não deve representar
algo realmente bom. Esse clima de martírio e auto-piedade deve combinar com a igreja.
Aí ficou imaginando como deveria ser no passado, quando os padres ainda rezavam as
missas em latim e virados de costas para o pessoal, que ninguém entendia nada mas eram
tomados por uma euforia devota, ou seja, ainda resta a euforia nos dias de hoje, mas pára, se
diz, não seja chato, hoje você prometeu que não entrou aí para implicar, mas sim para caçar os
tipos, entenda-os, de alguma forma tudo isso deve relaxar, os salmos, as orações, de alguma
forma devem fazer bem, já que é esse o argumento que mais se usa para haver gente ali, que
as pessoas encontram o seu melhor e coisa assim, deve haver alguma verdade nisso tudo, da
qual, mesmo sendo ele a exceção, poderia também participar. Está torcendo para chegar na
parte dos apocalipses, aquela coisa toda de anjos ceifadores e sabe-se lá o que mais. Era a
parte pela qual torcia quando era criança. Ainda o empolgava.
Chegava a hora de orar, um daqueles hinários que se reza baixinho, e estava pouco
preparado quando a senhora caquética ao lado agarrou-lhe a mão, e sentiu entre os seus
dedos aquele suor trêmulo escorrer, ventosas das pegajosas, deve ser por coisas assim que se
passa a desejar ferrenhamente estar ou ir para outros lugares, seja o céu, seja o purgatório,
tudo isso porque o inferno já é ali, não há quem o conteste, mas deixa estar, que do seu outro
lado ainda está o fervoroso rapaz obeso. Fechou os olhos, isso, relaxe, se esqueça das coisas,
assim como o padre vai dizendo, isso, ouça a sua voz, e aí repita a oração, assim como vão as
vozes da gente repetindo, isso mesmo. E eis que começa a dar com a imagem inicialmente
espectral e imaginária e sorrateira de Júlia, que vai languidamente se despindo, a convidá-lo à
tentação, não tem mesmo jeito, tem gente que nasceu para pecar, ainda que pense já ter
ouvido falar de um santo que tinha visões alucinantes de mulheres libidinosas à beira da cruz,
que quanto mais santa a alma, mais o diabo por ela se esfomeia, então veja só, que basta
conseguir fazer uns milagres por aí que não falta muito para que seja canonizado, isso se a
alma já não foi abocanhada pelas trevas, numa só dentada, desde que se entende por gente.
Sorriu, era o espírito santo que lhe entrava enquanto ouvia os pedidos baixinhos das pessoas,
sussurram enquanto rezam, e por um instante, assim, com os olhos fechados, pareceu ser ele
o confessor de cada uma delas. Deus deve de ter sorteado seu cargo para um de seus filhos,
por coincidência mórbida ou desatenção divina ele foi cair exatamente sobre Alex, que agora
ouve gente a se queixar das dores da perna, sobre a cegueira de um olho, pedindo segurança
aos filhos nessas ruas selvagens, que vigie os passos da filha mais moça, para que não se
desgrace por aí com um desses malandros, que o mundo se torne um lugar melhor de se viver,
ai, e essa dor nas costas, que o preço do arroz não continue aumentando, porque do jeito que
está é bem difícil etc.
Com todo respeito por estar num lugar sagrado, ele se tranqüilizou quando pensava, é, a
minha vida não é lá uma merda tão grande, e agora restava torcer para ouvir no meio das
orações sobre algum acidente terrível de algum ente querido, de qualquer um que esteja entre
a vida e a morte, que tenha perdido um braço, que toda vez que tosse lhe vem um tique
nervoso estranho, porque já não dispõe mais da coordenação motora, coisa assim. Pimenta
nos olhos dos outros não só é refresco, é desses sucos dos mais gostosos, com adoçante e
tudo que se tem direito. Mas há de se perdoar esse tipo de grotesca crueldade, já que
desconhecido para a gente é como pessoa que não existe de verdade, e parece realmente
saudável que esqueça um pouquinho que seja de seus sofrimentos, ao compará-los com o
sofrimento de gente que não existe. Todos estarão se sentindo bem, uns com preces e
esperanças, ele com a desgraça alheia. Isso se a terrível idéia que agora lhe vem não for a
verdade, a de que todos ali estão torcendo, famintos, para ouvir as tragédias dos outros, senão
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dos outros, a de cristo, e a verdade é que haja a seguinte imaginação em cada um, que merda
é a vida desse cara de meu lado?, e por aí vai.
Foi depois de ingressar na fila da eucaristia que teve a idéia mais interessante. Comeu a
hóstia. Foi para a fila da confissão. Chegada sua vez, se meteu lá dentro. O padre ao outro
lado o benzeu com um jeito que dizia, ai, que canseira, e mais um chato a vir aqui.
– Estou com alguns problemas, gostaria de conversar – achou que seria um bom começo.
A voz fúnebre do outro lado falou, – Aqui espero lhe ser de ajuda.
– Estou me sentindo um pouco impotente. Arrisquei em algo que sabia poder acontecer, e
agora possivelmente estou me lamentando que esse algo aconteceu. Agora, se eu quiser, não
sei se posso voltar atrás.
– É a velha estória da pedra uma vez atirada.
– Perfeitamente, e de tanto se repetir deve ser uma das coisas que são eternas. Por que
será que não aprendemos a lidar com ela?
– Possivelmente por vício. Por isso o arrependimento é virtuoso.
– Nos arrependermos não nos liberta, apenas reconhece que estivemos presos.
– Filho, naturalmente que o princípio da liberdade é reconhecer que se está preso.
– Sim, faz sentido. Engraçado.
– O quê?
– Não esperava ouvir isso de um padre.
– Algum problema?
– Não, é claro que não, mil desculpas. Melhor que eu continue. E se algo dentro de você
diz que não deve se arrepender?
– É natural ao vício teimar em se repetir.
– Talvez – pausou –, mas e se o que eu penso ser vício não o for? E se eu estiver fazendo
o certo, e estar incerto quanto a isso?
– Filho, todos sabem o que é melhor para si. Não é essa uma coisa difícil de se descobrir.
– Gostaria de concordar com você, meu senhor, mas só às vezes é que isso me acontece.
Bem, ao menos posso dizer que nessas vezes tenho realmente um motivo pra me sentir bem.
– A confusão não age por si só, não é uma natureza abstrata, ela sempre parte de alguma
outra coisa, ela sempre tem um porquê.
– Não é como o azar, que é um fenômeno abstrato desses, que é cego e não sabe de onde
parte, mas vem.
– Eu diria que o azar é caolho – disse o padre –, mas, enfim, a confusão se origina de um
mal inicial.
– De uma mulher, feito Eva.
– É uma forma de se encarar. É esse teu caso?
– Engraçado, pensando aqui, assim, quem criou essa história era dotado de uma estranha
razão quotidiana.
– A mulher não seria culpada se não houvesse a curiosidade do homem. Se meramente
assim fosse, Adão não teria a sua parte no castigo.
– Penso se Eva já não foi castigo de algum pecado que Adão cometeu e a história não nos
conta. Ao menos ele não devia saber dos riscos que corria, tinha sido avisado, mas as pessoas
gostam do desconhecido. Essa é uma estranha peculiaridade, se deus é o desconhecido, e
deus proíbe o fruto do conhecimento sobre o tal desconhecido, então não quero pensar em que
conclusões eu posso chegar, ao menos não aqui, que posso soar desrespeitoso.
– É uma dessas alegorias que se aceitam, filho, são estéticas, são assuntos da beleza.
– Entendo.
– Deseja ser perdoado?
– Eu não sei.
– A dúvida se cometeu algum crime às vezes pode corroer mais que a certeza de tê-lo
feito.
– Também não estou certo disso. Acho que aí me lamentaria ainda mais. Simplesmente.
– Mas se conformaria por saber que não há mais nada a ser feito, e o homem, sendo isso
bom ou mau, tem essa capacidade. Às vezes é pior ter uma escolha, ter o que fazer, saber que
o futuro depende de você.
– Isso é terrível. Estou começando a me sentir pior.
– Não é essa a minha intenção, é claro, filho. Mas, se veio confessar alguma coisa, tem,
antes de tudo, que enxergar o teu pecado.
182
– Que pecado?
– Não sei, tu quem tens de me dizer.
– Pequei contra tudo e contra todos, é quase como se acordasse já com esse objetivo.
– Antes de tudo acalma-te, não te martirizes.
– Deixei a minha vida de lado algumas vezes, fugi para recomeçar porque nada me
agradava, e agora algo me fez voltar, e ainda não sei bem dizer o quê. É a primeira vez que
isso me acontece.
– Não se escapa do passado, é como querer fugir da vida, ela sempre nos possui, é parte
de nós, somos nós mesmos.
– Desejo a mulher do próximo, ao mesmo tempo em que não a quero. Compreende isso?
– Perfeitamente, isto se chama consciência.
– Não acho que seja, parece ser outra coisa.
– Como o quê?
– Como apenas outro desejo, como se não houvesse algo acima desses desejos para
nivelá-los, para subjugá-los, como, no caso, nos serviria a consciência.
– Sem consciência nos tornamos selvagens, puramente instintivos. É a consciência que
nos distingue do bicho, que nos faz imagem e semelhança de deus.
– É que a razão os pára, mas não os extingue, compreende?
– Ainda há a própria vontade, que é a forma superior dos desejos.
– Sempre me disseram isto, nunca consegui ver diferença.
– A vontade é o que te leva a fazer uma coisa mesmo se desejar outra. Em horas como
essas vemos que a vontade anda de mãos dadas com a razão.
– Há toda aquela história antiga sobre fazer o que manda o coração.
– Se não fordes um homem de fé, se não for de tua preferência orar para que estes
desejos se apaguem, tente fulminá-los com as coisas quotidianas, da vida, que tudo é divino,
tudo serve, mas sem exageros, filho, que o caminho das facilidades conduz ao rio das
lágrimas, então busque esquecer esses desejos, desde que saiba que estará assim fazendo o
bem, o bem é o que importa, e começa contigo, filho.
– Não escapo das minhas vontades, ou desejos, já não sei, sinceramente não creio que
importe. Mas não escapo, não importa o que eu faça.
– Sê mais altruísta.
– Sou bastante.
– Não deixais que essa mulher o confunda.
– Antes fosse só ela, padre.
– E são outras?
– Bem, sim, mas não foi o que eu quis dizer. Há o rapaz da história, o meu camarada, há
tempos não nos víamos, aí faz uns dias que nos reencontramos. Agora tudo isso pode mudar.
Há uma sombra entre nós que não pode ser resolvida de qualquer jeito.
– A sombra é a mulher.
– Sim, a sombra é a mulher.
– Que fizeste?
– O que qualquer outro faria, padre.
– Dormiste com ela?
– Não. Quando isso pôde acontecer, parti, fui embora.
– Foste altruísta.
– Eu disse.
– Retornaste por ela, por eles?
– O fiz também, e veja só, e disse somente que também. Acho que é para mostrar a mim
mesmo que não mais fazem parte de minha vida, que são mais algo randômico nas coisas de
uma pessoa qualquer, e eu devo dizer que consegui, eles são agora detalhes, mas que me
incomodam. Imagine um rapaz casado que dorme com uma prostituta. Ela não modifica nem
destrói toda a vida dele, mas essa memória e o risco de encontrá-la tendo a esposa do lado
podem ser como um calo no sapato, uma paranóia que pode diminuir ou ser esquecida, mas às
vezes estará lá, feito um fantasma, acompanhando as mudanças do rapaz, fazendo-o
vangloriar-se ou indiferentar-se, ou não sei, até deixar para lá. É dessas coisas que sentimos
que podem nos marcar.
– Percebo. Teme o que eles podem lhe fazer.

183
– Antes fosse apenas isso, que é também, mas o que eu temo é o que eu mesmo possa
fazer.
– E achas que armazenaste essa frustração como uma pendência, que quer agora
descarregá-la.
– Não, não assim. Mas essa... essa coisa, essa frustração juntou-se a muitas outras tantas,
são muitas que se acumulam, de forma que eu possa fazer muito pior.
– Não percebo.
– Inocentemente destruiria a vida deles.
– Filho, não se faz algo assim inocentemente.
– Lembre-se do ditado que diz do inferno estar cheio de boas intenções.
– Particularmente não gosto tanto deste, filho.
– Bem – pensou um pouco –, também não é esse meu caso.
– Não são mesmo boas as intenções?
– É porque ainda preciso descobri-las.
– Queres o perdão por esses pensamentos sombrios?
– Vale o perdão se eu não me arrependo?
– É tudo que precisas fazer.
– Tudo que eu preciso é pensar, isso sim.
Saíra da igreja arrasado, mas serenamente satisfeito, como se a ânsia dos ânimos que
pirraçavam a tranqüilidade tivesse sido ferida, já é um avanço que possibilita que durma em
paz. A noite ao lado de fora seguia bastante confusa, cheia de buzinas e das tantas gentes,
das faixas de pedestres e do som de freio de ônibus, finalmente foi exatamente ali, logo na
calçada defronte, que porventura se esqueceu de onde esteve há pouco tempo e se atraiu
imediatamente pelas formas daquela prostituta de cabelos negros cacheados, de olhos
castanhos e com covinhas nas bochechas, parece estar meio que perdida, pobrezinha, talvez
tenha se distanciado demais do ponto onde trabalha, talvez tenham pregado nela algum truque
de mau gosto como alugá-la e não pagar, ou vai ver, quem sabe, esteja fazendo hora para
voltar para casa, se não isso é o aguarde do próximo cliente, que marcou de encontrá-la por
ali, vai ver também só está esperando que o sinal fique verde para atravessar a rua, apesar de
preferir se manter a distância da gente comum, da gente de bem que já está pronta para cruzar
a faixa e deve preferir passar longe das repugnâncias. Então é redundante dizer que teus
objetivos, Alex, já estão para mudar, e graças a deus em honra àquela igreja e ao tão bondoso
padre de agora há pouco, graças a deus e a si mesmo que você esquece rápido das coisas,
que já está preocupado é com outras, prova de que a vida felizmente é sempre maior e mais
atenuante do que se pensa dela, ao condená-la como algoz de todas as coisas, simplesmente
porque ela existe e nos excita a existir de brinde, porque ele é fraco demais para morrer. Foi o
padre que disse para entupir-se das coisas cotidianas, ele só não poderia, por causa da ética
do ofício, recomendar tão abertamente que fosse atravessar a rua e apanhasse a primeira puta
que visse, que ela também é divina, também é permitida.
Foi o que fez. O que por sua vez não merece maior atenção, dada a trivialidade quase
mecânica do empreendimento de chegar a uma meretriz, ter uma breve palavra com ela, que
consiste basicamente numa ou outra pergunta de essência secundária, tipo o nome e coisa
assim, e no acerto dos preços, e do que pode ser feito pagando-se determinada quantia, onde
pode pôr as coisas etc. Ele perguntaria se ela tem um quarto próprio, ela diria que sim, que por
isso estava ali perto, à paisana de clientes na rua, e ele diria que ela tem de ser eficiente,
porque tem de ser breve e ele está meio cansado, além disso tem mais o que fazer,
certamente ela diria que está ótimo, provavelmente pensando que na prática isso não fará lá
muita diferença, que em pouco tempo ele teria se esquecido da condição que impunha e
decerto que não pararia o serviço na metade para dizer que pare, preciso ir embora, tenho de
ficar vigiando umas pessoas por aí e anotá-las no meu caderninho. Aí iriam para um prédio
velho ali perto, subiriam algumas escadas, enfim, iriam para o tal do apartamento, ela pediria
desculpa pela desordem, que a amiga que divide o aluguel com ela não teve tempo de arrumar
a cozinha, certamente não é isso algo que faça mal, não fariam esse tipo de coisa na cozinha,
estão apenas de passagem. Entrariam num dos quartos, não haveria música de fundo, mais
conversa, ou nada, simplesmente cairiam desajeitados na cama, nem por isso haveria também
paixão, que se trata mais de um dever para consigo mesmo, um dever de se libertar um pouco
das tensões, mão na boca, peito na mão, perna, pé, mão, dedos, língua, baba, cintura, cabelo,
bunda, vai, não vai, vem, faz que vai, passa, continua, por aí se segue. Aliviaria suas
184
necessidades e iria embora, e foi o que fez, salvo por um detalhe, que temporalmente definindo
daria-se antes da respectiva queda de ambos sobre a cama e antes das coisas voluptuosas,
que depois dali em nada terá importância nem para um e provavelmente nem para a outra. Isso
deu-se quando disse, a propósito, meu nome é André. Porque é o nome que desliza suave na
língua de Júlia.
Esqueceu-se disso tão rápido quanto pode esquecer algo que se deu consigo no dia
anterior, assim como não se lembra o que comeu no café da manhã. Dia seguinte. Em meio à
preguiça matinal constata que pegar no sono não teria sido tão fácil quanto imaginou, que o
período de relaxamento de ontem não teria durado muito além do tempo que gastou a
percorrer as avenidas da cidade até retornar ao lar.
Então intui que todas as coisas recentes sejam um sinal inevitável de que esteja
aproximando-se da hora, ai, ai, começa a amordaçar as idéias e elas o vencem meio que como
se fizessem cócegas, está chegando a hora de deixar de adiar o inevitável, e deve ser o
inevitável algo que ele mesmo criou, sente-se manipulado por si mesmo, por sua cegueira e
sua inconseqüência, sou o meu próprio carrasco porque o destino me ordena e eu o cumpro
sem querer, mentira, mentira, é que faço tudo errado e nada mais, sou eu mesmo esse destino
manco a tropeçar.
O que tu precisas, Alex, ele ia se dizendo, é um escape para seus desejos, o horizonte de
sua realização. O sinal máximo de que há algo terrível se desenvolvendo dentro de você é que
sua inteligência está brilhante, funcionando com força demais, lembra das coisas e vê rostos,
sente o tato eriçar-se, a taquicardia, tem tudo isso gritando e precisa jorrar, o retorno à
escuridão não foi suficiente para aliviá-lo, na verdade o retorno à escuridão está incompleto, é
preciso ainda mais que isso, é preciso levá-lo até o fim, até o fim. Mas como?, com algo
constante, está óbvio, algo que ocupe, que o desanuvie, e não que passe e ponto final, mas
que já esteja lá, pronto, mas o quê?, torna-se a perguntar, insiste em não responder, rola de
um lado ao outro na cama.
Foi ler um jornal, beber um gole de café, que não é nada sem um cigarrinho, já se
predispôs a acendê-lo, e aí foi folheando as páginas, as vira, sem maiores insinuações ou
rodeios de sua atenção, que na verdade já tencionava se dirigir diretamente ao ponto da
questão, a pequena lista próxima do canto do rodapé do jornal que enumera os livros mais
vendidos da semana, e lá estava O retorno à escuridão, em sexto entre dez, certo, o mais
exigente tremularia o canto do rosto, como se isso não quisesse dizer muita coisa, como se
muito pouco significasse, e é verdade que de fato nada representa, porque só está mesmo aí
devido à publicidade momentânea que recebeu pelo lançamento, pelo evento e curiosidade
passageira, mas também é certo que é melhor do que simplesmente não constar e, mesmo
que caia do podium na semana seguinte, ou até que desapareça completamente, ao menos
nessa haverá gente que o leu, agora o pensamento de Alex não é mais anônimo, tampouco
lido somente por um ou dois gatos pingados que lhe sejam conhecidos, e ele dá um risinho
como ri quem aprontou. O retorno à escuridão parece mesmo ser uma daquelas coisas que
aparecem timidamente nas vendas, mas vendem, que não se fala muito por aí e nem é pauta
constante nos jornais, mas já se ouviu falar alguma coisa, ou toma mesmo o atalho para o
imaginário geral.
Aquilo não lhe fez tanta diferença quanto supostamente deveria ter feito. Tendo agora
acordado com os ânimos renovados, bocejou sonoramente, lhe vindo o conforto do espreguiço
junto à dor de cabeça. Tudo bem. Não vai mais adiar sua guerra, seu pecado, seu
arrependimento, tudo de vez. Não vai mais adiar nada.
Estava prestes a fazer uma escolha.

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Aquela cena apoteótica voltava à sua mente. Como a sombra que cresce e vem apagando
a todo o resto, assim ocorre à imagem de Júlia, o aspecto dos dentes alongados de sorriso,
que mingua por alguma relação com o que acontecia, no caso, o apagamento de sua imagem
em função do que surgirá. O fantasma de André. Mas que coisa estranha, agora se diria, e diria
uma coisa dessas por exemplo enquanto limpa a testa de um suor atrevido, tipo feito quem se
agita, sua, e sorri com aquele jeitinho irônico de puxa, que coisa, e eu bem no centro dela, ou,
melhor dizendo em termos informais, porque só se é formal com os outros, consigo mesmo é
tudo patético, mas que merda que não sei o que achar a respeito, e então estaria a lembrar-se
das frases cortadas, da quase gaguez para que não se depare com o silêncio constrangedor,
aí vinha, eu não acredito, mas como pode?, é mesmo, muitas das grandes coisas não estamos
esperando, é verdade, e quando vêm ficamos assim, sem saber o que achar, o que dizer, é,
não podemos mensurar a importância disso, mas é incrível. É, não se pode tirar tua razão,
também estou surpreso, é mesmo, e o que houve contigo durante todo esse tempo?, é que é
impressionante, sim, sim, eu entendo, não se justifique. O que houve é que a vida imprime sua
marcha mais rapidamente do que se supõe, geralmente percebemos isso um pouco tarde para
evitarmos desperdícios. Essa última coisa dita foi uma resposta profundíssima demais, não
algo que ocorra a um diálogo desse gênero, travado no despreparo, no desconcerto, nas
incertezas e em todo resto que é mole, então, por mais uma vez, não saberá o que é pensado
criativamente e o que é memória, mas tudo isso é absolutamente verdadeiro e não há aquele
que duvide.
André disse que é incrível, na verdade essa já é a terceira ou quarta vez que se repete, e
diz sobre como o mundo anda em círculos, não é de se espantar, já que o usual é que rode, há
isto de rotação e tudo mais, mas André fala de como as situações dão lá as suas voltas, como
a vida é cheia de truques, e é por coisas feito essas que as pessoas devem ser induzidas a
desconfiar se não existe mais do que coincidências, se não existe algo a conspirar para que as
peças, que são eles, se encaixem no momento mais oportuno, sempre no lugar mais correto,
onde parece que é necessário sabe-se lá para quê que elas assim estejam, vai ver é este o
plano cósmico entranhado em todas as coisas, vai ver é tudo um jogo de simetrias, sim, é,
deve ser. E pois é, estava ali a convite, é mesmo, bom, porque tem de fazer uma média com
uns clientes importantes, ricos interessados em arte, ah, sim, é porque agora trabalha numa
firma, as firmas têm dessas coisas de diplomacia, de sociabilidade etc. E Alex com o retorno à
escuridão, como as coisas mudam, que mesmo sendo o mesmo rosto que está logo a frente,
comum, conhecido, assim e assado, com alguns cortes diferentes de barbeador, com a rispidez
de olhos mais cansados, com a estatura e ar definido que a maturidade confere, então, mesmo
sendo todas essas coisas, parecem ser todas essas coisas preenchidas por um conteúdo
desconhecido, outrora houve outro a preenchê-las, e agora já se não sabe para onde foi. É
mesmo?, falou André surpreso, abriu bem os olhos, que coisa esplêndida, óbvio que vou
comprá-lo, retorno à... escuridão?, então ótimo, é claro, que é isso, não precisa dispor de
alguma forma de cortesia, que é isso, a sua intenção é compreensível, mas eu compro nem
que seja para incentivar, para dar uma ajuda, quem diria?, é o mínimo que se pode fazer, estou
muito contente. Como?, ia ao bar com Júlia?, ah, sim, tinha acabado de revê-la, ela também
não esperava, dá-se para ver pelo rosto ainda surpreso, mas que é isso, Júlia, não precisa
sorrir quase sem graça, e não core ainda mais por eu tê-lo dito, é brincadeira, pode relaxar.
Sabe o que é, sim, é isso, complicado agora tomar alguma coisa. Sim, de certa forma, a
serviço. Mas, se Júlia quiser, se ela fizer questão de acompanhá-lo, encorajo... ah, sim, você
mesmo disse sobre já ter ficado tarde, já estava de saída, então, nesse caso as coisas mudam
um pouco de figura. É uma pena. Está mesmo bem diferente, na verdade presumo que todos
estejamos uns para os outros, é muito engraçado, mas estou muito contente. Olha lá, a gente...
o quê, Júlia?, estão me chamando?, onde? É verdade, já são eles novamente, insinuam o olhar
como se não quisessem nada, como se ninguém fosse perceber as intenções, e essa agora,
mas que droga, é uma droga mas eu sou parte. Faz o seguinte, me passa teu número do
telefone?, está morando por perto?, é verdade, não é tão longe assim, não, não sei ao certo
onde fica, mas tenho parâmetros. Júlia, me acompanha?, tem certeza de que não quer ficar,
Alex?, sim, é, um pouco tarde, mas em ocasiões assim se perdoa o horário. Mesmo?,
compromisso, entendo. Toma o meu cartão, vê se liga. É mesmo, muito a ser conversado,
mesmo. Certo, não vou prender-lhe mais, sim, boa noite. Júlia, vamos?

186
E você fica a pensar, toda a minha cisma com André se apagou para ele de uma forma
invejável.
Atravessou o vestíbulo, aquela varandinha que antecede a entrada, mas se demorou um
pouco porque era meio óbvio que aquela garota com um ar arrogante e sensual, apoiada numa
parede, logo ali, com jeito de quem espera alguma coisa, o tinha olhado, encarando daquele
jeito esnobe de quem não quer dizer muita coisa, mas que acaba dizendo muitas. Ela
entreabriu a boca, cuspindo a fumaça do fumo. Ele a respondeu com o mesmo olhar, aí se
disse que era uma pessoa séria, que tinha mais o que fazer, que está farto das distrações
petulantes que são postas no seu caminho. Cruzou a porta, foi entrando.
É a primeira vez que vê este balcão, tal como as mesas, que logo numa primeira vista vê
estarem cheias. O hálito quente e de diversos aromas diferentes o preenchem numa carícia
sem graça, é mesmo bom, mas usual demais, aquele cheirinho suave, sensação que não dura
por muito tempo, até que seja distraído pela porta que acabou de se fechar atrás de si e com
ela tilintando o barulho dos sininhos. Ajeitou o colarinho, olhou ao redor, daquele jeito que as
pessoas meio desconcertadas fazem, um pouco de timidez, sabe como é, reconhecimento de
terreno, tal como ver a trupe dos adolescentes enfileirados no balcão, ou a dos senhores mais
bem sucedidos que procuram relaxar, fazendo todos suas partes pelos burburinhos, por
risadas que aumentam de nível, e por aí vai. Coincidentemente, mas não tão por coincidência
assim, quando meteu a mão nos bolsos apalpou imediatamente o maço de cigarros, e deve de
alguma forma ter sido essa influência extraterrestre que o fez ver o que viu, como se
precisasse do fumo se esvaindo entre seus dentes, a forçar a descida pela garganta e saindo
confortavelmente da boca para que a atenção se tornasse diferente, para que relaxe e assim
veja o que precisa ver, no caso isso vem a ser André. Uma garçonete passa nesse instante,
impediu a sua visão, por uns instantes irá agradecê-la em segredo, noutro já não fará mais
diferença, e assim que ela contornou o caminho entre as mesas, constatou que lá numa, do
canto, das discretas, se erguia o solitário André. Parece mesmo muito compenetrado, acabava
de virar uma folha de jornal, na outra mão a tulipa de cerveja, achou merecer mais um gole, de
fato ele o acaba de dar. Agora ele deve seguir até ele, é o que se espera, mas ele ainda hesita,
parado ali, com a tentadora impressão de que ele não o viu, e com o mais tentador ainda
receio que lhe diz que talvez seja muito melhor inventar uma desculpa pela manhã. O carro
bateu, diria, e ao mesmo tempo mentiria duas vezes, uma vez por não ter batido o carro, a
segunda por não ter um, mas a impressão que tem é que só se mente uma vez e essa vez já
basta para arruinar a alma. Seja menos cruel, é o mínimo que pode fazer e que o sujeito a
esperá-lo merece, mas ainda assim começa a inventar sobre um familiar que está doente, sabe
como é, aquela tia avó distante que, apesar de só ter visto uma ou duas vezes durante toda a
vida, é justo que compareça no seu leito de morte, pois é que a velhinha está mesmo em
estado terminal, dizem os boatos que até murmurou por seu nome, Alex, Alex. Mas ele já está
ali. Constata também que André não lia lá muito compenetrado o jornal, devia estar mesmo é
disfarçando, e deve ter sido por desatenção periódica que agora, como ele está fazendo, curva
um pouco o olhar, assim, levantando a cabeça discretamente como se esperasse encontrar
alguma coisa, e por fim a encontra, se dá principalmente conta dela num daqueles momentos
em que os olhares não podem se desencontrar, em que se dizem, pronto, está visto, agora já
era. Qualquer outra medida, a da tia avó, por exemplo, que não fosse a de ir até ele, já seria
falha antes mesmo de ser pensada. Agora não pode fazer nada, o que já não ia fazer.
E então ergueu a mão como se dissesse, oh, enfim, estava te procurando, está aí. E agora
estava em sua frente.
– E aí? – André sorria, ergueu-se para recebê-lo, estendeu-lhe a mão.
– Tudo indo, e contigo? – cumprimentou, o sorriso é quase de sobrevivência.
– Tudo bem. Está frio?
– Oi? – não percebe a lógica da pergunta.
– O casaco – apontou o que usava –, deve estar frio lá fora.
– Bem, sim, um pouco, é verdade.
– É que já deve ter acostumado.
– É verdade.
– Senta aí, fica a vontade.
Sentaram-se ambos, mas pelejou para relaxar. Tirou o casaco, acha que nas preliminares
da conversa esse ato ilustrará o sentido de alguma coisa, e é esse um nível de percepção que
devia ser estudado, que a simpatia se encontra nas coisas ínfimas, como por exemplo o gesto
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simples de, ao lhe perguntarem as horas, ele não apenas olhar no relógio e responder
cruamente o horário que marca, mas por exemplo dar com o dedo dois toques no vidrinho dos
ponteiros e em seguida responder que engraçado, achei que tinha parado de funcionar, mas as
horas são essas, tal e tal. E por aí vai, qualquer coisa serve como indício de que se está
disposto a criar pontes, geralmente não se sabe usar essas coisas, e o próprio Alex perde-se
entre suas tantas possibilidades, ainda que julgue estar sendo um mestre ao tratar-se de como
retira o casaco, podia ter-se encolhido, tremido e suspirado, brr, faz mesmo um friozinho lá
fora, mas enfim, casaco esse que está agora enrolado sobre o lado do banco, e nada disso
ajudou para que ele ficasse mais à vontade, mas quem sabe André não pergunta as horas e
lhe dá mais uma chance.
– Já tinha pedido uma cerveja – André falou.
– Sem problemas. Assim que a garçonete passar por perto...
– Pede uma pra você também.
– Isso – apóia os cotovelos sobre a mesa –, e aí?
– Legal que tenhamos conseguido vir.
– É verdade. É um lugar bastante aconchegante, esse bar. Gostei.
– É sim, venho sempre aqui, daí a sugestão.
– Sorte ter conseguido uma brecha nos serviços – Alex falou, mas isto é algo infame de se
dizer, não há por que sugerir que estar aqui é uma dificuldade, então podemos observar o
contraste entre a inteligência inútil por detrás das observações acerca de um casaco e a
idiotice estúpida de falar algo que prontamente se arrepende, e em seguida resta a tentativa de
conter o sorriso incerto, que expressar arrependimento também não é algo bom de se fazer.
Tomara que ele não perceba, que não tome de qualquer forma enfática, que não reaja.
– Olha ali, a garçonete – a sorte é que disse somente isso.
– Verdade. Ei, menina – certificou-se de que ela o olhava, de que o ouvira, e então apontou
para a tulipa já presente na mesa, sinaliza que quer o mesmo.
– Estava muito ocupado, então? – ele tinha notado.
– Que é isso, foi apenas maneira de dizer – tomara que esteja tudo bem.
– É – enfim, ele franziu o cenho com jeito de riso –, mas eu digo o mesmo de mim, e ainda
mais, é engraçado ver o quanto agora temos de economizar o tempo, não é?, antes não
estávamos nem aí. Mas tem lá a sua graça, que quando nosso tempo se torna escasso
aprendemos a aproveitá-lo melhor. Aprendemos ou nos vemos forçados, mas é útil.
Ele não sabe o que André quer dizer, então sorri.
– É mesmo. Deve ser isso que chamam de responsabilidade, maturidade – por fim, disse.
– Eu tenho as minhas dúvidas. Acho que isso devia se aplicar à vida toda, se você for ver,
também temos pouco tempo. Mas por exemplo, quando o sujeito ingressa no emprego. A
diferença é nítida entre o tempo que ele tinha antes, e o tempo perdido de agora, é só
perdendo que se aprende e tudo mais. No caso da vida toda é mais escroto. Como é?, a
pessoa morre e aí vai saber gastar melhor a coisa de antes?, infelizmente não dá.
– É verdade. Você me parece um pouco revoltado.
– Que é isso, o termo não é esse, não chega a tanto.
– Qual o termo, então?, a moça com a cerveja está demorando, estou ficando aflito.
– Acho que o termo é cansado, ou é mesmo maduro. Chega uma hora na vida da pessoa
que os pensamentos são outros, as preocupações mudam, ela parece mais disposta a
aprender com as coisas do passado, algo assim.
– Entendi. Quer um cigarro?
– Estou parando, sabe como é.
– Mas se importa que eu fume? – já metia as mãos no bolso.
– De forma alguma, não posso me esquivar de fumantes para sempre.
– Eu também pensava assim, aí comecei a me unir a eles – puxava o cigarro e o isqueiro.
– Comecei a ter pigarro, a garganta ficava arranhando o tempo todo, quando eu fumava e
quando não, e era horrível – insinua as garras na garganta. – Tive de fazer uma forcinha.
– Nossa, é mesmo? – que interessante, tragou o fumo.
– É outro indício de que as preocupações mudam. Quando você é mais jovem, tem em
mente de que basta a satisfação e que aí vale a pena morrer cedo, desde que você as tenha
aproveitado o bastante. Depois manter a saúde, se alimentar melhor e não sei o que mais
parece ser o mais importante, mesmo que se viva no limiar da infelicidade, é praticamente uma
subsistência, e o mais engraçado é que nos dedicamos a ela.
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– Que exagero. Está falando como se fôssemos velhos, quando dizer que passamos
demais dos trinta já seria dramático, e isso só devia ocorrer lá pelos quarenta – o cigarro
estava bom, ele acha que já desenvolveu câncer de pulmão.
– Mas é. As pessoas já começam a te chamar de senhor, você percebe até que está
ficando mais responsável do que gostaria, e então já está a um passo de se acostumar com
isso.
– É?, no que você tá trabalhando, mesmo?
– Numa firma de advocacia.
– É importante, sim.
– É, como dizem, devagar e sempre. Se você for considerar os milhões de
desempregados, estou ótimo.
– Não sei ao certo o que eu estava considerando. Aquilo saiu naturalmente.
– Podia estar considerando minha satisfação pessoal, por exemplo.
– Sim, é, e nesse caso, o que responderia?, mas e a garçonete que não volta, que coisa.
Aqui demora assim ou é só comigo?
– Eu diria que está bem. E a tua?
– Oi?
– Tua satisfação pessoal etc.
– Bem, interessante.
– É mesmo, até lançou um livro, quem diria – é, interessante. – Deve ser uma, uma –
procura as palavras e não encontra nada, só depois de beber, então vem o óbvio – satisfação.
– Bem, é bom, apenas não tanto assim. É tipo – gesticula e diz com isso que é como
qualquer coisa. – E para todos os efeitos não é meu, isso fica entre nós. Troquei os direitos
pelo emprego, é o que me basta, acho que assim me dei bem.
– Estranho – e mais um gole –, mas interessante, isto. Fiquei de comprá-lo, preciso
arranjar um tempo mínimo que seja para passar numa livraria, aquela noite tive de trabalhar
muito.
– Tudo bem, não precisa se preocupar – procura pela garçonete.
– Está morando por essa área há muito tempo? – André o distraiu.
– Já faz algum.
– Engraçado como nos encontramos, pensa só, eu recebi os convites lá em casa dizendo-
me que iriam alguns de nossos clientes, antes disso era algo muito longe de minhas intenções.
É essa vida... – interrompido.
– Cheia de truques, mesmo.
– É isso.
– E o que você faz exatamente? – mais um pouco de cigarro.
– Assessoro alguns casos, alguns menores já estão comigo, entende?, mas aos poucos,
me mostrando eficiente aqui, e ali, conseguindo a confiança dos sujeitos mais importantes, que
geralmente são os mais velhos, mas tem alguns lá que não sei o que estão fazendo no posto
em que estão, mas aí é assim que a carreira dos que não nasceram abastados segue, no suor,
entre trancos e barrancos.
– Interessante – é mesmo, que interessante.
– E você?
– Atualmente escrevi sobre a história dos monumentos da cidade. Eles recomendam um
tema, eu vou lá, cumpro, e tudo fica nos conformes.
– Interessante – é mesmo, que interessante.
– É mesmo, muito interessante.
– Vê só, sua cerveja vem aí.
– Isso sim é interessante. Já não era de se esperar.
Foi quando começou a detestar garçonetes, ainda que se sinta intimidado por todo arsenal
das técnicas que elas costumam se usar, desde os modos como sorriem, a educação
comedida, o jeito de cativar num curto espaço de tempo, têm de ser fulminantes porque tudo
dura pouco, o imobilizam, o deixam sem saber o que fazer, anda, anda, escolhe aí!, escolhe
isso aqui, e apontariam, e ele pediria tremendo o cardápio inteiro, e esse é o tempo suficiente
para que deixe o que veio trazer, mesmo que esteja ruim ou que tenha demorado, deixando
Alex com essa cara de bobo, anestesiado, sem ter do que reclamar porque ela foi rápida
demais. O chope espumava e o fazia tão graciosamente que foi impossível não olhá-lo.
– Agora sim – por fim refestelou-se.
189
– Melhorou? – riu.
– Muito – aí, talvez por efeito rejuvenescedor via paladar táctil de chope, resolveu arriscar-
se um pouco mais. – Você falou alguma coisa de sua casa, ainda mora no mesmo lugar? –
pergunta o que sabia que não.
– Não. Mudei faz uns anos. Estamos morando Júlia e eu.
Pronto, demorou para que tivesse tocado nela. Mas não é de se espantar, você excitou
esse fim, você previu sem querer, e agora fica com o cigarro parado entre os dedos feito
chocado só porque as coisas não soam como você queria.
– Não me diga que casaram – a voz sai como saem as vozes normais, contém-se
engasgues.
– Estamos noivos já faz algum tempo.
– Não me diga?, que coisa incrível.
– Pra você ver. Quem diria, não é mesmo? – André sorria.
– Ainda lembro de quando a conhecemos, aquele bar, aquela noite como qualquer outra.
– Jurei que você não lembraria. Estava muito bêbado.
– Só ali já se podia ver que eram feitos um pro outro – não mente quando diz isso.
– Obrigado, Alex .
– Não tem por que agradecer, acho que essa seja uma das poucas coisas incontestáveis
que existem na vida, então eu desejo muitas felicidades pra vocês. Tenho a certeza que se
estão juntos até hoje é porque não há mais nada que possa pará-los, isso é uma coisa muito
bonita.
– É engraçado – André murmurou.
– O quê?
– Você sempre se esforçou para que ficássemos juntos.
– É o que eu te disse, é uma das poucas coisas que se pode ter certeza, que se dá pra ver
e pronto, e logo saber. Era realmente o mínimo que eu podia fazer.
– Por isso eu agradeço, obrigado, eu sei que – e aponta a si e a ele – devo um tanto disso
a você, foi algo realmente bom, você foi um grande amigo. Não devíamos ter perdido contato.
– É, André, você sabe como são as coisas – o cigarro, rápido.
– Disso já estou cansado de saber, mas sei também como as coisas deveriam ser.
– Isso é bastante complicado – sussurrou num tom rouco –, o que achamos que deve
assim ser é inquestionavelmente o mais apropriado, ou o apropriado é o mais simples, e por
ser tão simples já está posto em prática?
– Eu sei – e ensaia o riso – que os amigos não deviam se separar, perder as coisas
importantes da vida um do outro. Você devia estar do meu lado, imagino que tivemos ambos
nossas causas. Eu também deveria ter me esforçado pra acompanhar suas mudanças.
– Agora você está noivo.
– Por exemplo, esse é um exemplo. As coisas óbvias nem sempre são as maiores.
– É verdade.
– Mas o que eu estou falando?, esse tipo de coisa acontece mesmo, não me leve a mal, eu
sei. Como diz o nosso velho ditado, estou dizendo assim, nosso, porque parece com aquilo que
a gente sempre falava, que a vida é cheia de truques, bendito seja aquele onisciente que
souber de todos, e que de preferência me conte deles.
– Já eu prefiro não saber, que é menos cansativo.
– Não sei, às vezes sinto que me falta cansar com algo melhor. Há várias formas de
cansaço.
– Não sei diferenciar, sinceramente.
– Há o cansaço de um dia de reuniões no trabalho, por exemplo, e o cansaço depois da
noite de sexo.
– Perfeito, foi um exemplo bastante ilustrativo, me animou a tomar outra cerveja.
– Já ia pedir outra pra mim, também. Mas então, às vezes sinto-me cansado de não ter
com o que me cansar.
– Agora eu já me pergunto se o seu segundo exemplo ilustrativo tem algo a ver com essa
frustração.
– Quê? – e riu –, não, não é nada disso, e não chega a ser uma frustração. É apenas um
marasmo.
– Eu sei. Sabe o que faço quando me sinto assim?
– O quê?
190
– Durmo até não agüentar mais, até que o corpo doa, até que os músculos comecem a
reclamar, que insistam em estar acordados. Até que alguma mudança ocorra. Deixo tudo pra
lá, tudo que tiver pra fazer, tudo quanto é obrigação. É bem melhor, sério, as coisas se
renovam de um jeito único, os ânimos rejuvenescem, o dia que amanhece é outro, é muito
diferente.
– É preciso muito desapego pra isso – André estalou a mão e sinalizou por outra cerveja.
– Ou uma noite daquelas. Tudo na vida é substituível, o que mais existe são armas para se
atingir o que se quer etc.
– Ainda assim, é preciso muito desapego pra isso.
– É verdade.
– Que eu não tenho, e isso se agrava mais quando tudo que você faz vai interferir na vida
dos outros, é mais ou menos assim com o casamento, com os filhos...
– Não vá me dizer que...
– Não, não, ainda não tivemos filhos, calma, estou apenas comentando.
A moça chegou com o novo chope, desgraçada, quando não é com ele vem com essa
rapidez. Foi mesmo a partir desse instante que começou a odiar garçonetes, tem um dejá vu.
Não deixou de se aproveitar, e dessa vez foi o mais rude possível, tanto no rosto quanto na
fala, também quero outro, de preferência rápido feito este, sabe-se lá se ela chegou a ouvi-lo
ou não, mas é treinada para ser rápida, escapuliu.
– Por isso que é bom poder conversar com alguém distante de tudo isso – André continuou
–, a parte desse mundo de eventos, das mesmas ruas, do escritório. Ainda mais sendo você,
que conheço.
Conhece?, isso é terrível de se ouvir, principalmente quando se acha estar a frente de um
desconhecido familiar, quando se está esforçando para voltar ao passado e tecer comparações
entre o que se foi e o que se está vendo, julgando se as diferenças são tão notáveis etc, e eis
um processo que exige lupas, atenções, microscópios etc, e ao contrário de você, Alex, ele
simplesmente te menospreza, te entende simples, bobo, trivial, que de te conhecer agora
indica que há de te conhecer até para sempre, o que significa que muito dificilmente deixará de
ser o que é. Ou então foi elogio, idéia mais remota mas que ainda pode ser, pode ter querido
dizer, quem sabe, que se sente bem com você.
– É mesmo – foi tudo que conseguiu dizer.
– Devíamos fazer isso mais vezes.
– É.
– Claro, se tuas noites não andarem muito ocupadas.
– Oi? – pensou uns instantes, a fumaça saía do nariz.
– Se não estiver muito ocupado, eu disse.
– Aproveitar o tempo etc.
– Isso mesmo.
Veio o outro chope.
– Sempre que quiser ligue, que providenciamos de fazer alguma coisa – Alex engoliu.
– Lembra-se de quando nos sentávamos em algum bar e ficávamos reparando nos outros?
– Reparar nos outros é sempre interessante.
– É, mas também é algo que tem de se aprender a disfarçar, com o tempo é o tipo de coisa
que vai se tornando intolerável.
– Me lembro perfeitamente. Era ótimo.
– Então vamos lá – e se curvou sobre as próprias costas.
– Certo. Primeiro você – o cigarro vai para o cinzeiro.
– A mulher de vestido vermelho a umas três mesas desta.
– Sabia que possivelmente seria ela – e arqueou as costas, espreguiçando-se.
– Por quê?
– Mulheres de vermelho sempre chamam atenção, somos como abelhas que se
impressionam pelas cores, isso porque não dá pra sentir o cheiro dela daqui. Tanto é que seria
inocência pensar que ela está vestida de vermelho por mera coincidência, e por aí vamos, mas
explicar tudo isso seria muito chato.
– Que seja, dá pra ser?, a mulher de vermelho.
– A que tá na mesa com o rapaz? – ergueu um pouco a cabeça, forçou-se a ver.
– É isso.

191
– Ela tá sorrindo. Tá louca para agarrá-lo, mas não consigo ver o rosto dele, não sei de sua
reação.
– Como ela sorri? – continua André.
– Mostrando os dentes, abaixando e levantando os olhos, mexendo um pouco as
sobrancelhas.
– E quais os movimentos do cara?
– Ela segura as mãos dele com mais intensidade do que ele segura as dela.
– É, ela quer agarrá-lo. E o cara tá com medo, não se fazem mais varões nesse mundo.
– Ela é um pouco mais velha, o problema pode não ser ele, ela sim que está desesperada,
viúva negra, coisa assim – e Alex toma mais um gole.
– Se perdoam os defeitos femininos.
– Tem certeza?
– Não, mas se ressaltam os masculinos – e riu-se.
– Essa foi uma análise simples, porque toda mulher no fundo destila alguma coisa sexual,
o que acontece é que nessa é evidente.
– Tinha uma mulher na entrada quando eu cheguei, ela me olhou de um jeito estranho. Se
ela estivesse aqui dentro poderíamos falar dela.
– Verdade, há pouco quando eu entrei ela estava lá, se duvidar é puta.
– Não, não, aqui é difícil, é um lugar de nível.
– De repente é por prazer.
– Isso já parece ser supor malícia demais nas coisas.
– Nem imagina o quanto – falou num tom de quem fala uma verdade muito mais profunda.
– Eu tenho um pouco de pena de quem, com nossa idade, gosta de putas...
– Como se você nunca as tivesse pego – Alex quase esbravejou.
– Há fases na vida da pessoa – respondeu indiferente, enquanto bebia –, a gente cresce.
– Sei – tomara que isso não tenha sido uma indireta.
– Sem mulheres em sua vida, Alex?
– Isso me soa como uma cobrança.
– Sério – perguntou novamente, rindo.
– Não.
– Elas ainda não te agüentam por muito tempo?
– A monogamia me aborrece.
– Sei. Falam muitas coisas contrárias, mas acontece que a monogamia é escolha para
muitos poucos.
– Eu não discordo, a libertinagem é muito mais fácil.
– É preciso de uma causa muito boa para se prender a uma só pessoa.
– O amor, no caso – Alex estalou o pescoço.
– Essa me parece ser uma causa boa pra qualquer coisa – responde num tom distante.
– É, mas não entendo muito dessas coisas.
– Todos entendem, apenas estão desacostumados.
– Posso dizer o que eu entendo de amor. Quando fui deixar a casa onde eu morava de
favor, a amiga que me hospedava junto a seu marido, e eles são novos, apesar de já estarem
casados, então, essa amiga perguntou por que eu ia embora, as minhas respostas não a
satisfaziam, ela sempre perguntava algo mais, cobrava uma explicação, foi quando ela tirou a
roupa e disse para que eu ficasse.
– Sério?
– Isso é o amor – conclui.
– O que você fez?
– O que qualquer outro faria.
– O quê?
– Comi ela e depois disse que foi uma loucura, que não devia ter acontecido.
André cospe uma risada, – Isso é terrível.
– É o meu jeito de amar.
– Seria horrível se o fosse. Ainda que emocionante.
– Você não pode opinar, você tem Júlia.
– Então, que seja, isso deve me fazer mais conhecedor que você.
– Isso só o torna mais cego, meu rapaz – falou gravemente. – Análise. O rapaz magrela,
óculos grande, sozinho no balcão.
192
– Prepotente intelectual, estudioso.
– Timidamente orgulhoso, ainda que ele mesmo não saiba.
– Frustrado, feio, mal bebe, não fuma, não pega nenhuma garota.
– Você ainda tá falando do rapaz ou é de si mesmo?
– Pare, Alex. Continue.
– Metido, hesitante, às vezes é espontâneo e aí ele é brilhante, deve rir de um jeito
engraçado, às vezes gagueja de nervoso. É o tipo de pessoa excelente de se conviver.
– Alguém em quem se pode confiar.
– Vamos chamá-lo pra beber e papear conosco.
– Temos de fazer isso mais vezes.
– É verdade, nós temos.

193
A semana passou com uma paz com qual não passava já fazia tempo. Quando olhava a
tela do computador à frente era uma loucura, lá estaria toda preenchida de letras e não poucas,
e não implicaria consigo mesmo a supor que essas coisas não tenham validade prática
nenhuma, que não são sequer trabalhos que lhe foram encomendados, mas não irá implicar
com o que deposita seu tempo, quando já se sabe que as coisas dão suas voltas, e o hoje
aparentemente estéril pode ser achado numa sarjeta e o acaso que o encontrou poderá se
dizer, é algo digno de se gostar, deixe-me coletar essas coisas aqui achadas porque a
posteridade vai saber aproveitá-las, que evidentemente sempre se resta uma preocupação
com o futuro. É claro que não é com esse futuro que Alex está preocupado, mas está fazendo
essas coisas para relaxar, tem tido sucesso. Os próximos trabalhos sugeridos pela redação já
estão prontos, separados, polidos, um ou outro até revisado que é para aprimorar a estética, e
isso agora o faz imaginar se o seu nome não é mencionado com certo orgulho moderado que
sugere eficácia quando saído da boca dos seus diretores, nas reuniões em que eles definem o
destino de todas as coisas, julgam se os estão servindo bem etc, se é que não perguntam ao
mencionar seu nome, hã, quem?, mas agora, enfim, está ele cuidando de seus próprios
assuntos.
Um cafezinho feito na hora, ainda não tão bom quanto pode consegui-lo, o cigarrinho
queimando lentamente nas bordas do cinzeiro. Em frente, as suas loucuras, e aqui cabe a ele
pensar que só é maluco quem pode, quem é felizardo o suficiente para não ter pendência
nenhuma com os assuntos da sanidade, é esse um luxo que ele pode se dar, que
merecidamente ou não conquistou. Assim, vai escrevendo algo mais subjetivo dessa vez, o
tema é sobre as mudanças, não das coisas grandes, mas como a velhice vem chegando e nos
transformando, que se dá a impressão de que ao longo do tempo só reconhece a si mesmo
porque está fadado a conviver consigo mesmo, se pudesse adormecer e deixar o tempo a
continuar fazendo as suas diferenças, seus intemperismos e tudo mais, quando acordasse não
se reconheceria, então ele se diz, profundamente mas meio incerto, que eu sou a constância
dos mim mesmos. E como estava com esse assunto martelando na cabeça, ainda que a
batucada não seja tão incômoda e atue mais como aquela idéia que se mistura com qualquer
outra que apareça e que não abandona seus postos, foi sobre ela que resolveu falar, e acaba
falando também da efemeridade, da maneira como todas as coisas passam, procurava alguma
coisa que não o fizesse, e como passam diferentemente as coisas que se cultivam e as coisas
que se negligenciam, é um pouco óbvio, mas ainda assim ele pensa a respeito, e pensa em
como tudo influencia para que se mude, que existe o medo, o amor, a tristeza, o receio, a
decepção, a mágoa, a felicidade, a esperança etc etc, ou seja, a conclusão a que era remetido
era simples, era fruto dessa lógica evidente, a de que o homem nunca está sóbrio, ele é
naturalmente entorpecido pelas e nas coisas que faz. Descobre que é um pouco reconfortante
descobrir a isso, o isenta de responsabilidade. Parou um pouco, descansou amassando as
bochechas com as mãos. Olhou para o lado, lá está o bloco de notas jogado. As letras estão já
velhas, se fosse lê-las encontraria algumas frases já cansadas de se reaverem, as mesmas
informações batidas. Ele sabia, sentiu a pendência a cobrar-lhe, mas a disposição que
precisava já não mais possuía, e sem ela não poderia fazer nada sem parecer artificial e
forçoso, e isso se conseguisse pôr-se a novamente sair, que rumar pela noite em busca de um
pescoço para chupar o sangue já exigiria uma concentração maior do que há pouco tempo.
Seria algo leviano de se fazer, estar diante dos segredos mais íntimos das pessoas, estar
roubando suas histórias, e permitir-se desperdiçá-las. Mas pode ser que não precise mais de
nada disso. A vida substitui uma coisa pela outra, aparentemente é o preenchimento que
precisava se entranhar após o esvaziamento de outra disposição, mas só algum tempo depois
se perceberá ter-se substituído a velha coisa por uma não necessariamente complementar,
mas diferentemente única de tudo que até agora se esperou, e essa coisa lhe será
eternamente nova.
Daqui a não muito tempo é de se esperar que ele esteja sentado em frente a André mais
uma vez, os mais perspicazes prontamente entenderão que aquelas palavras sobre fazerem
isso mais vezes não foram coisas soltas ao ar, simplesmente ditas por inspiração
momentânea, por educação ou simpatia que logo se esquece, ao que podem também ter sido,
mas nenhum dos dois pretendeu cometer perjúrio. Ali queima novamente a cabeça de cigarro,
é colocado da mesma forma sobre um cinzeiro, e esse cigarro a queimar não deve ser o
primeiro, é certo também não ser o último. Ali se ouvem os sons dos garfos se chocando, da
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gafe de uma ou outra risada mais alta do que se pretendeu, a tulipa do chope espumando que
acaba de ser posta sobre a mesa. E aí vem a aparência de André logo ali à frente, os cabelos
todos desgrenhados como se o fim do expediente o tivesse forçado a parar um caminhão com
as mãos, as olheiras que dão a entender que possuem muitos motivos para não estar
dormindo bem, já aberto o colarinho da blusa social que durante todo o dia o asfixiou, e só
então a careta discreta, depois de um gole da bebida, típica de quem recebeu uma cruz e
agora a joga ao lado.
– Às vezes tenho a impressão que nasci no lugar errado – desabafou.
– Deve ser aquela tal impressão de que não pertencemos a esse mundo – Alex bebeu.
– Isso eu não posso dizer, não conheço as coisas todas, e estou longe de ter a idéia que
sim. Mas eu fico imaginando se não tivesse nascido assim, do jeito que foi, nessas horas
nascer assim não é o que eu queria. Antes estivesse naqueles subúrbios da cidade,
convivendo com violência desde sempre, todo dia, sendo pisado constantemente. Não ia
demorar pra eu conseguir uma arma, nem que fosse uma pistola, mas eu ia fazer questão de
conseguir uma escopeta, uma metralhadora, que eu ia dedicar o meu conhecimento só pra
essas coisas, não ia perder tempo com a coisa inútil. E se eu não conseguisse nada ia ser na
faca, mesmo, mas ia ser uma crueldade dessas que se fica ouvindo falar e saem nos jornais
pra aterrorizar todo mundo. Eu ia ser um monstro, ia despejar minha fúria pra tudo quanto é
lado, ia morrer cedo e ainda assim me bastaria pra deixar uma marca horrível. Eu ia fazer da
vida uma merda. E ia ter motivos pra que todo mundo tivesse que me engolir.
– Mas se você quisesse ser diferente, acho que é essa a questão, você não poderia, como
não pode agora – a fumacinha do cigarro saindo-lhe da boca, que delícia.
– Não interessa, não tô nem aí. Essa é uma vontade que eu sempre tive, não digo que é
um sonho de criança porque seria exagero, mas digamos que seja um sonho de jovem que por
não poder se realizar tornou-se uma droga do adulto. Pensa comigo, algo que se sente tão
forte assim deve estar muito bem estabelecido em nós, tipo, um instinto inerente, deve ser uma
das coisas que não se pode extirpar da gente.
– Não sabia – tossiu – que existiam coisas assim.
– Temos indícios suficientes pra acreditar que existe alguma coisa que não conhecemos, é
essa partícula que diz o que nós somos, define sabe-se lá como a nossa unicidade.
– Estou certo que sim – deu uns toquinhos na guimba.
– Você é uma pessoa que se atém aos fenômenos das coisas, Alex, está ignorando suas
causas.
– Não é verdade, não é mesmo. Só não vejo por que falar nisso, mas penso muito.
– Então diga uma coisa a se pensar.
– Me incomodam a fome, a segregação social, o preço do maço de cigarros. Aliás, viu
como subiu desde o ano passado?, eu realmente não sei em que essas indústrias se baseiam,
não era para ser aquela coisa de lei da oferta e procura?, não é isso?, mas bem, com tanta
concorrência eles ainda assim aumentam seus preços, e o pior de tudo é ver que ninguém sai
pra protestar sobre isso. Todo o dia que eu ligo a televisão é a primeira coisa que eu espero. O
negócio é que as pessoas estão tão concentradas no vício do cigarro, que aí vem o pessoal e
monta em cima. A pessoa fica enlouquecida mesmo, não é capaz de pensar em mais nada,
paga o preço que for, venderia a própria família, e deve ser uma coisa dessas que eles querem
nos tirar, até não restar nada que não seja o osso, então buscarão pela alma, um belo dia te
ligarão e do outro lado da linha você ouvirá, eu compro.
– Eu estava falando sério.
– Vamos falar sério, então – e coçou a nuca.
– Não, esquece, deixa pra lá.
– Não, que é isso, vamos. Comece a falar aí, anda mal o teu trabalho?
– Demais, uma merda atrás da outra. Tinha que ver os tipos.
– Não, obrigado. Que tem eles?
– São uns vendidos, aquela coisa de caráter maleável, a moral relativa e os risinhos
safados, e nós temos que aceitar tudo que possa nos comprar, o que você disse da alma tem
lá seu fundo de verdade. Dizem que a competição fortalece as pessoas, ajuda elas a se
superarem, mas eu não sei, tenho minhas sérias dúvidas. Se você vira de costas, alguém faz
você de trampolim. E tem o próprio direito, lá com suas tantas controvérsias, e é impossível de
se falar a respeito numa firma e coisa assim, até as suas falhas são legítimas, e não só isso,
são fabricadas. É uma óptica de merda de mundo, estou cansado, sabe como é, de enxergar
195
as coisas assim, ver essas falhas, espaná-la na cara dos outros, depois as ponho para debaixo
do tapete.
– É a terceira vez que você fala merda essa noite.
– Oi?
– Nada, é muito bom até. É uma palavra boa, você abre a boca pra falar, usa um bocado
de músculos da cara, traz um sentido forte.
– Enfim.
– É, é mesmo uma merda.
– Não, até que é um bom trabalho, aqui fora as coisas vão muito piores. O mundo tem que
se tornar um lugar selvagem para que alguns possam dormir em paz, e todas essas coisas, a
brutalidade etc, vêm cair em cima de nossas cabeças. Mas até que estamos bem, comparados
com muita gente por aí. É uma droga isso, de sempre reclamar. Realmente nunca se está
satisfeito com o que se tem.
– Se você pode ter algo melhor, por que não?
– Porque os fins não justificam os meios.
– Essa sempre consegue ser uma frase forte. Já terminou sua cerveja?
– Vou dar mais um gole e pedimos outra.
– Você é um bom amigo.
Mas foi numa outra ocasião de encontros nesse Schneider que algo mais interessante
ocorreu.
– Então. Você dormiu com Júlia?
Dá-lhe uma porrada contra a nuca que é melhor. – Que é isso, André? – não pode se
disfarçar o susto numa hora dessas, é por esse princípio que entende-se a contorção das suas
bochechas.
– É uma pergunta simples.
Deve ser o máximo da falta de tato dizer uma coisa dessas, não foi como perguntar que
horas são, ou como está sendo o dia, como está se sentindo, esse tipo de coisa, ainda que
deva ser lá conveniente para quem pergunta que pense que é fácil assim, que para o outro
seja algo muito fácil de aceitar, obrigado e aqui está sua resposta, mas não é.
– Que merda de pergunta é essa? – tentou rir-se com escárnio, não pôde, pareceu um
doente a tossir, debruçou as costas para trás.
– Responde...
– Que absurdo, rapaz. É claro que não.
– Foi uma resposta firme, eu agradeço.
– Como assim, agradece e ponto final?
André ergueu levemente as mãozinhas como querendo dizer, e o que mais você
esperava?, uma vírgula?, não, pelo visto o que você quer é uma interrogação, mas de
interrogação basta essa, que apesar de breve foi fulminante, e as coisas fulminantes bastam
porque cansam mais rápido, corroem sua energia, vem em uma só e não pedem por brinde. O
melhor que tem a fazer é esquecer, mas não pode, é que a teimosia diz que é melhor não
arredar, ainda que tenha de tratar o assunto com delicadeza, independe de onde ele veio, mas
o orgulho insiste em sobreviver, ele enrijece, recusa a se afogar.
– De onde você tirou isso? – tentou fazer valer a voz, não consegue.
– Da minha cabeça, naturalmente.
– Que foi da sua cabeça eu sei, isso é óbvio – uma idéia terrível lhe veio, foi quando
pasmou, ergueu o dedinho apontando, o tom de quem pergunta algo secretíssimo. – Você não
foi perguntar uma coisa dessas pra ela, não é?
– Eu deveria?
– Não, pare – abanou as mãos, o mandava voltar ao início. – Fez uma pergunta, agora eu
o faço outra.
– Da mesma forma você custou a responder.
– Não tente me ludibriar, André, que isso é sacanagem.
– Certo. Não, eu não perguntei isso pra ela, mas porque sou covarde, só porque não tive
coragem suficiente, e não porque não devia. Você não é como ela. Ela trataria de fazer um
escândalo sobre isso, ficaria dando voltas e nunca responderia, na verdade faria parecer que
sou um cretino por ter feito uma pergunta. Como se a pessoa não pudesse sentir curiosidade.
– Mas que curiosidade, hein?, as pessoas podem se ofender com as suas dúvidas porque
elas têm suas razões de existir, desconfiança...
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– Não se ofenda – e tomava mais um gole.
– Fácil você falar.
– Vocês estavam sozinhos aquele dia.
– André, que é isso?, como se eu nunca tivesse ficado sozinho com ela. Ela era minha
amiga.
– Exatamente por não ser a primeira vez.
Ergueu os ombros, como se os desse contra o vento e reclamasse, mas e daí?
– Estavam quase com os rostos colados. Com as bocas juntas.
– Pare, André – sussurrou e se debruçou sobre a mesa –, agora você tá exagerando. Você
quer se torturar?, é isso que você quer? O que quer que eu te fale, o que mais quer que eu te
responda?
– Se dormiu com minha noiva. Ou namorada, no caso, que isso tem lá seu tempo.
– Mas isso eu já o disse, é claro que não. É claro que não.
– Não estou bravo com você, Alex.
– Como é?, e mesmo que estivesse, quem tem de estar fulo mesmo aqui sou eu, porra.
Que merda de assunto, viu?
– Por que se incomodou tanto?
– Espera – e com as mãos trêmulas apanhou o cigarro do cinzeiro –, agora as pessoas só
se alteram por uma coisa quando elas têm culpa?, é isso que você quer insinuar?, eu não
posso me sentir injustiçado?
– Pode ser compreensivo.
– Ser compreensivo com algo completamente sem sentido?
– Convenhamos que não é assim tão sem sentido.
– André – e então conseguiu reunir uma inesquecível força –, eu nunca, e me ouça bem,
nunca que eu trairia a confiança de um amigo. Eu acho que isso é escroto, eu não faria isso
por mim mesmo – e se aponta –, entendeu?, porque eu não saberia conviver comigo. Eu nunca
sequer ia querer ter algo com Júlia – estranhamente ele não mentiu, não importam as
controvérsias. – Ela era minha amiga. Você é meu amigo.
– Eu acredito em você – resmungou com jeito de quem se acaba.
Aliviou-se, que talvez tenha vencido a batalha de sua agonia. Talvez tudo o que fez tenha
sido se defender bem. Defender-se do que não fez, nem por isso sente-se inocente.
– Espero que tenha acreditado desde o início – rugiu.
– Apenas pensei.
– Pensou o quê?
– Às vezes ficamos pensando essas coisas da nossa vida, os absurdos que nos vêm não
fazem sempre tanta diferença, mas às vezes não nos abandonam até que estejamos
tremendamente cansados de ficar, instante após instante, revisando neles.
– Eu entendo. Entendo mesmo.
– Que seja – e dessa vez leva a tulipa à boca com um azedume sinistro a ser sussurrado,
parece que ia sacudir a espuma do copo.
– Espero que já esteja na fase de ter se cansado das tais idéias, nem que pra isso elas o
tenham levado à exaustão.
– Não se preocupe com isso.
– Não estou preocupado.
Atenta ao jeito perdido de André olhando através das vidraças, é desses deslocamentos
que se fazem quando algo o incomoda, é também dessas marcas que definem que aquele
alguém ainda conserva algo do alguém que espera que ele seja. E ao se estar passando por
esse período onde o assunto das mudanças nas pessoas recebe tamanha atenção, perceber
ou começar a imaginar que há mudanças que não nos muda totalmente, que algo de nós
sobrevive, essa é uma coisa óbvia que o surpreende com satisfação melancólica, então ele se
diz, sou e somos todos mais que a constância, ainda que eu retorne a não saber quem eu sou,
mas é mesmo mais urgente atentar ao semblante vago de meu camarada, que é como de uma
grande insatisfação a corroê-lo, a doença de um doente terminal que não tem mais qualquer
resistência imunológica, o moribundo que sabe que seu fim se aproxima, e feito um cão velho
olha rancorosamente para o mundo que só o deu migalhas. Alex às vezes se sensibiliza com
momentos como esses, e é essa uma situação tocante, não como a de heróis a morrerem por
suas donzelas, gente sendo crucificada no lugar de outros etc, mas meramente pelo que traduz
a ele, que é a imagem do amigo que sofre, mas parece que ele mesmo é a causa. Resolveu
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respeitar o silêncio, mas fez como se tudo estivesse normal, com direito ao seu fumo, a olhar
em torno, a reparar na gente com ares de quem faz isso casualmente, de que não há diferença
entre eles dois.
– Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos – foi aí que de repente
André soltou isso.
– Como é?
– Os vivos são...
– Não, a frase eu ouvi, quero saber o que é isso.
– Arranjei tua autobiografia, a estive lendo.
– Entendi – e se calou.
– Foi a citação de alguém que você transcreveu. Na verdade é de um cara bem babaca,
não sei se você sabe, um pensador que criou um pensamento de merda. Mas isso prova que
até um idiota pode pensar algo genial. É mesmo interessante, e se bateu bem de frente com
umas coisas que tenho pensado.
– Não é uma biografia, não tem necessariamente a ver comigo. Bater de frente no sentido
de colidir ou de ir contra?
– Ir de encontro, coincidir. E não tem a ver contigo?, estranho, que mais me pareceu um
tipo de desabafo.
– Isso porque você me conhece, é... ou de repente está familiarizado com as coisas que eu
disse, a partir disso pode ter essa impressão, mas não é que seja verdade. E quando foi que o
arranjou?
– Semana retrasada.
– Não tinha me dito.
– Só pude começar a ler essa semana, estive ocupado. Quem já folheou um pouco foi
Júlia.
Ele pensaria menos nela se fosse mencionada pelos outros menos vezes.
– Sim, sei. Júlia. Espero que aquela pergunta de agora há pouco não tenha nada a ver com
essa estória aí de você ter conseguido aquilo.
– Aquilo?, você fala como se fosse algo que não lhe fosse familiar, mas bem, você
mencionou algo muito certo, a verdade é que...
– Pronto, sempre tem que ter uma verdade.
– Foi apenas uma pista que achei ter tido.
– Acreditou ter lido alguma coisa que te fizesse pensar naquilo?, alguma coisa nas
entrelinhas?
– Eu deveria? É isso que eu deveria buscar?
– Não, André, não deve buscar nada, a não ser que saiba o que quer achar – e se perdeu
um pouco do seu sarcasmo segundos depois, ainda que faça sentido. – Estou adivinho o que
você está pensando.
– E ignora que eu já lhe disse para esquecer, que não tem mais importância.
Ele não respondeu, preferiu o modo dos animais e rugiu.
– E então – André desconversa com amenidades –, voltando à outra questão, por que você
falou como se fosse algo distante...
– Foi apenas jeito de falar – não deixou que ele completasse –, não foi algo que fiquei
premeditando. Não faço esse tipo de coisa, como você, o porquê é simples, é porque não tem
porquê.
– Você gosta de jogar com as palavras – anuiu André.
– Ao menos não fico analisando as tuas toda hora, isso o cansaria.
– Não estou te analisando, achei que estivéssemos conversando numa boa, papeando,
que estivéssemos os dois relaxados.
– Estávamos – grunhiu.
– E por que no passado?
– Até você vir com aquela conversa estranha.
– Isso de novo?, eu já pedi pra esquecer.
– Ora, pelo amor de deus, não finja que isso adianta alguma coisa.
– Calma, eu peço desculpas. Eu acredito em você.
Dessa vez as palavras surtem mais efeito, Alex ainda tem de fingir aquele aspecto do
rapaz que está amargurado e aos poucos vai se desarmando e mostrando-se disposto a
recobrar o espírito da concórdia. O atento há de se perguntar, por que ele teve de fingir, se
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tudo indica que amargurado, que é o que ele finge, é algo que, aparentemente, de fato está?, e
o atento na verdade não terá sido tão atento quanto pensou ter sido, porque, simplificando e
resumindo a termos esquecíveis, ele próprio reconheceria sabiamente que o que sente é
vulnerabilidade, não rancor ou amargura, é inteligente suficiente para reconhecer que um novo
pedido para que esqueça do assunto que lhe revira o estômago não apenas veio a calhar,
como a desculpa também deve ser aceita.
– É bastante interessante, o retorno à escuridão.
– Não sei, já não o vejo com os mesmos olhos, deve ser porque não mais sinto como
propriamente meu, pra todos os efeitos não me pertence mais, e pra outros efeitos eu também
não ligo.
– Deve ser porque não tem teu nome na capa – estalou os dedos, pediu outra cerveja. –
Nunca vi coisa igual.
– Não, é porque o estão usando como querem.
– E como deviam estar usando?
– Do jeito certo – riu de superioridade.
– Que é como?
– Do jeito que ele diz que tem que ser – descobre estar desmoronando.
– Eu fiquei pensando – sorte que ele não ligue para você –, dá pra tirar umas idéias muito
boas.
– Como assim?
– Bem, você diz que as pessoas podem...
– Oras, pare – Alex interveio, abaixando o rosto e sacudindo a mão.
– Que foi?
– Fico constrangido – e era verdade –, é que não gosto que me dêem tanta atenção assim.
– Acabou de dizer que não é biográfico.
– Certo, tenho de honrar as minhas palavras, se bem que poderia explicar a você a
diferença entre dizer aquilo e agir assim, as situações não se contradizem, mas é algo que não
compensa, eu demoraria tempo demais, então apenas vá em frente.
– Você diz que as pessoas podem, podem não, vou usar outro termo. Que as pessoas
teriam mais facilidade de serem livres numa sociedade pequena.
– E daí?, por que simpatizou com isso?
– Porque vai contra, esse ir contra já no sentido de foder, de destruir ao que eu dedico
minha vida.
– Não concorda?
– Concordo, é óbvio e não é algo que me faça diferença pessoal tão grande. Mas eu sou
escravo de uma cidade grande. Tenho responsabilidades e não posso jogar tudo para o alto.
Então, eu sempre fico chateado quando me lembram disso.
A garçonete chegou, equilibrando muitas sujeiras em cima da bandeja. Espera que ela
sirva André com o novo chope.
– Então, e aí?
– E aí que isso angustia.
– Comovente, mas e daí?, quais as tais idéias muito boas que se pode ter?
– Ficou curioso com o que eu disse?
– Não me canse, vamos lá, apenas me responda.
– Por exemplo, você não pode provar tudo aquilo que o livro diz, de forma que tudo será
uma coisa interessante, mas nada demais. Mas poderia tentar pôr em prática, também.
– Como é?
– Sociedade pequena, algumas pessoas reunidas que possam entrar em conflito, agir com
interdependência, questionar umas as outras da maneira que for, fazer com que o direito delas
surja de maneira prática.
– O livro não diz isso. Não tem nada a ver com direito.
– Tem um pouco, é o que eu penso. É o que me agonia um tantinho.
– Eu falo de coisa gratuita, do deus dentro de nós, não de direito.
– Eu acho que tem um pouco a ver.
– Ainda não se desiludiu com esse assunto?
– Com a carreira, sim, faz um tempo, mas você não precisa ficar julgando os motivos de eu
estar te dizendo isso, se é pra me iludir de novo ou coisa assim. Apenas diga o que achou.

199
– É um pouco insólito – terminou o cigarro, arrotou –, não há como você simular uma
sociedade pequena e ser fiel à que realmente temos, não tem como ser real.
– Tem.
– Como é?
– Não importa qual a origem dos desejos, das vontades, se é o mundo de fora, se são os
efeitos que o mundo de fora cospe nas coisas de dentro, esse tipo de coisa. Se a gente
considera isso, percebemos que não importa se partimos de uma sociedade grande pra uma
pequena, que a liberdade vai se basear no conflito da mesma maneira, talvez apenas mude as
suas proporções, mas nisso a gente dá um jeito, a gente inventa, porque somos caras com
muita carga psicológica. Mas não importam quantas pessoas sejam. Importa que exista aí
gente.
– Ainda assim – e ouviu tudo com atenção –, não há uma simulação completa, não há
como, como – e fica apontando a uma coisa qualquer – reproduzir.
– Isso pode ser vagaroso, por exemplo, quanto à interdependência, as pessoas se chocam
como no momento elas podem, e isso com o tempo irá se adequando espontaneamente, elas
irão – e sorri – se descobrindo.
– Não sei – falou com tom de que ainda tem o que pensar.
– Imagine, seria inovador, mas não uma dessas coisas imaginárias.
– Seria ao menos divertido.
– Exatamente – André debruçou-se sobre a mesa –, não lhe agrada a idéia de jogar as
coisas pro alto?
– Se bem me lembro, é a você que isso agrada.
– Pode até ser...
– É mais fácil do que você pensa, apenas chegue em casa e arremesse uma mesa pela
janela, saia pela rua, grite coisas, tire as calças no escritório, não sei, desista de tudo.
– Podemos, podemos – responde a rir –, mas escute, nada disso dá certo sem estrutura.
– Que merda de estrutura, o quê.
– Tem que ser algo nosso, secreto, inteligente.
– Poderíamos comprar caixas de cerveja – Alex riu. – Gastarmos nosso dinheiro todo aqui,
toda semana, e fingirmos que estamos fazendo algo importante. Se bem que não está longe do
que estamos fazendo.
– Tem que ser maior.
– Maior como?
– Não sei exatamente te explicar, apenas maior.
– Não dá certo – falou metendo as mãos no bolso. O maço.
– Por quê?
– É o tipo de coisa que se perde a motivação.
– As coisas estressantes é que precisam de motivação, os deprimidos comuns, feito a
gente, ainda são capazes de se sentirem felizes.
– Deprimido, doutor?, continua com o diagnóstico.
– Você é sério, antipático, rabugento.
– Obrigado, mas não sou eu que estou desiludido com tudo e nem se queixando da merda
da minha vida.
– Se for assim é ainda pior, isso te torna um conformista.
– É a idade que nos põe nos eixos, essa palavra, como é mesmo?
– Conformista...
– Isso só existe no vocabulário dos jovens. O conformismo não existe no meu presente. E
é fantástico ouvir isso de você, senhor idealista com a pior carreira da face da terra.
André riu. – Não fale besteira. Eu não sou conformista.
– Geralmente quem faz terapia não se acha conformista, só porque tem muita raiva dentro
de si, mas não é por reclamar e se queixar que está fazendo algo pra mudar. Isso só te torna
um bosta furioso.
– Não é o meu caso.
– Nunca é – e sorriu.
– Vá se foder, Alex. Quer saber?
– Não.
– Você é um merda, logo percebo que as coisas que você diz são melhores do que você é,
você é sua própria enganação.
200
– E é você quem diz que verdade sobre mim é a verdade, de fato.
– A verdade é simples, você é o que se mostra, até quando não pretendemos mostrar.
– É verdade, tenho de concordar, sempre insinuamos o que somos.
– Você é o conformado e não admite, e é o bosta furioso que me acusou de ser...
– Certo. Como seria?
– O quê?
– A tal sociedade.
– Por que acha que eu quero fazer uma coisa dessas?, foi apenas um exemplo.
– Vai à merda.
– Seria mais ou menos assim, nos reuniríamos e faríamos coisas interessantes.
– Realmente incrível.
– Seríamos livres.
– Continue.
– Conversaríamos, dançaríamos, sapatearíamos, gritaríamos, o que fosse, não sei – e deu
com os ombros.
– Parece imbecil.
– Íamos transgredir o que achamos imbecil. Entende? Pare de me fazer especificar algo
que não pode ser explicado sem se tornar idiota.
– Então não explique.
– Seríamos livres.
– E depois?
– Depois eu não sei.
– Livres, é mesmo muito vago... – reflete.
– Feito o retorno à escuridão.
– Não é verdade. Quando o fiz tinha um sentimento íntimo, desses muito bem definidos.
– Pensei que não era autobiográfico.
– Eu menti.
Já de madrugada, ao chegar em casa, não teve condições de pensar em mais nada,
apenas se meteu por dentro do quarto, ignorando lá na sala as revisões do trabalho que mais
cedo tinha se dito que ia encaminhar, que também de pouco importam, já que está tudo
adiantado. Pôs-se a ronronar pela cama sentindo estar indisposto a fazer todo o resto. Foi
quando a idéia de hoje mais cedo mais do que nunca ficou a remexer-se em sua cabeça, e por
que não?, ele se dizia, faz lá o seu próprio e estranho sentido, possivelmente é uma dessas
idéias que nos semeiam e que posteriormente nos identificamos tanto com elas que passamos
a adotar como nossas, vem de fora, mas surtem um efeito muito íntimo, de alguma forma ele
intui que também partiu dele. Calma, Alex, veja só, considere que André, o autor dessa idéia,
se inspirou na verdade em o retorno à escuridão, que – à parte das divagações sobre ter sido
ele que na verdade partiu do retorno à escuridão – partiu de você, independente de outros o
estarem usando da forma que você diz ser errada, ou de estarem pouco se importando com
alguma forma de se usar, que apenas se vende e ponto final, ponto final mais etc. A conclusão
é mesmo simples, é Alex o autor dessa idéia, ainda que não tenha sido o pensante dela.
Começou, então, a gerir analogias, é o bebê que a partir de um óvulo natural foi produzido
artificialmente em laboratório, mas se moderou, não é esse o tipo de devaneio a que se dê
muito crédito, quando na hora de dormir os pensamentos bons são aqueles que vêm etéreos,
sem muita coerência, que da coerência já se cansou.
E foi mais ou menos nessa hora, já naquele estado em que o sono era manta e o cobria
quase inteiramente, que essas fascinações sobre si que já o corroíam há um tempo, ainda que
não o cansassem, mandaram que ele abrisse os olhos, e ele obedeceu, ao que vê, como um
doente de castigo no canto da escuridão, aquele diabo sem rosto a olhá-lo, e já deve fazer
muito tempo que está aí.
– Não, não – resmungou, atolando o rosto no travesseiro –, deixe-me dormir em paz, eu
imploro – falou ao outro.
– Vim dar-lhe boa noite.
– Grande boa noite, se já estou sonhando, se já estou num pesadelo.
– É a sua boa vontade que tornaria as coisas mais aceitáveis. Até mesmo nossa relação.
– Não conheço gente que tenha boa vontade com pesadelos, o que eu preciso é de
remédios pra dormir, ou talvez deva ir a um médico, você me deve ser um tumor num dos

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lados do cérebro, um aneurisma, é isso que produz essa psicose, se duvidar eu até estou
morrendo, é por isso que você não me abandona.
– Apenas vim comentar que está tentado a aceitar a proposta que recebeu hoje, e lembrar-
lhe que está imaginando muitas coisas sobre ela, achando ser esse o grande caminho da sua
vida...
– Não precisa me dizer o que estou pensando, isso é no mínimo redundante.
– Não, isso é maiêutica, eu lhe estimulo a ir afundo, enfim pára na camada que eu quero.
– Para quê?, com que fim?
– Já que hoje você foi tão direto ao ponto, nesse caso é para provar que você está tentado,
ainda que esteja temendo. Mas, no fim, você não resiste ao que acha que é seu destino. E, se
você for realmente a fundo, eu intuo que somente assim você achará meu nome, é o que me
interessa.
– Temendo?, estou?, o quê?
– Que não esteja disposto a fazer o que sempre quis. Que então envelheça e se torne
medíocre.
– Sequer estou pensando essas coisas.
– Superficialmente está.
– Se pensam muitas coisas superficialmente, e são poucas as que realmente param na
cabeça, que nos damos conta que, de fato, conscientemente – e aponta a cuca – as estamos
pensando. Quebrar a cabeça com isso é ficar se amolando.
– Bem sabe que não é apenas a sua consciência que te faz efeito.
– Sei, mas sei que além disso nada posso fazer, não posso tentar dominar o que não tenho
alcance, e não perderia tempo tentando.
– Isso é verdade, está certo. Mas eu alcanço onde você não, caminho por vales que você
nem sonha existir, e o estou dizendo para tomar cuidado com eles.
– Não me venha com isso, primeiro atiça a minha coragem, implicando, dizendo que tenho
medo, agora me diz pra que eu tome cuidado, você quer é me pôr louco para apossar-se de
meu corpo, seqüestrar minha alma ou coisa parecida, e eu não serei ingênuo de cair na tua.
– Não seja absurdo, já se perguntou se não é simples minha intenção?, moderar-lhe?
– Por isso somos inimigos.
– Isso me diz você. Eu apenas te digo o que você não deve fazer.
– Ainda que hoje tenha falado apenas para que eu tome cuidado.
– É que hoje nem eu estou muito certo do que você não deva fazer, tudo o que falei é para
que preste atenção, e no fundo e na verdade não existe negação ou afirmação, não é?, por
exemplo, não há diferença em eu dizer que você não está em perigo e que você está em
segurança, compreende?, todos os caminhos levam a mim.
– O que é isso, pelo amor de deus? Eu irei prestar atenção. Agora só me deixe dormir.
– Boa noite.
– Boa noite, outro.

202
O Schneider estava cheio, sorte que André chegou antes para já guardar os lugares da
mesma mesa de canto, e há quanto tempo ele estaria lá a esperá-lo não saberia dizer e não se
importa em saber. De qualquer modo, lá estará ele acomodado com o jornal,
inconfundivelmente uma tulipa de chope quase vazia a repousar em sua frente, e era melhor
que fosse a primeira, caso contrário pode começar a presumir que o atraso passaria a ser um
inconveniente indelicado. Mas que nada, mesmo que tenha demorado ainda mais a tropeçar
nas pessoas enquanto vai se metendo por entre as mesas, ao alcançá-la foi só tirar a jaqueta,
jogá-la de qualquer maneira pelo colchãozinho do banco, sentar-se com um arfar que diz mais
ou menos, ah, que agradável poder me dar a esse luxo, ao invés de ter de andar por essas
ruas malcheirosas aí de fora, imagine você que há pouco tempo quase topou com a canela
numa dessas latas de lixo reviradas, que porcaria. André abaixou o jornal, lhe deu um oi ou
alguma saudação do gênero, mas Alex estará preocupado mesmo é em conseguir distinguir os
movimentos de alguma das garçonetes em meio ao tumulto que salpica das mesas.
Embruteceu o rosto quando ergue o braço desesperadamente mas não é visto, é claro que
fingiram não vê-lo.
– Ela fingiu que não me viu – grunhiu, e por via das dúvidas foi ele quem fingiu estar
esticando o braço e mexendo nos cabelos, isso porque supunha algum observador, desses da
classe dos engraçadinhos a espreitar, que sempre tem um comentário pertinente nas
proximidades.
André sorri como sorri alguém que não quer dizer ou expressar muitas coisas, com essa
mesma motivação foi que envolveu a tulipa e tomou mais um gole de chope, a então olhar o
sujeito em sua frente somente para distinguir se não há, por exemplo, um rombo em sua
cabeça, sangue descendo do nariz ou alguma coisa berrantemente diferente, isto para que não
seja indelicado, mais um hábito um pouco ardiloso que as pessoas mais perspicazes tratam de
aprender ao longo das vivências. Mas, não havendo mesmo nada de errado com Alex, ainda
que ele passe a mão assim, no rosto, que só é para relembrar que esqueceu mais um dia de
fazer a barba, e refletir que há um bom tempo não vê necessidade para tanto, bom, dessa
forma nada havendo, a não ser uma dessas olhadas casuais que nos servem de cumprimento
e nos dizem, certo, sei que você está aqui, não me amole, André agora volvia para o lado de
fora, olhando para qualquer lugar distante além das vidraças. Alex apóia-se nos cotovelos.
– Como foi seu dia? – arriscou perguntar, tentando esgueirar um pouco mais a vista para
ler qualquer coisa do jornal, mas nem que force a vista, simplesmente não pode.
– O senhor deseja alguma coisa? – veio a garçonete.
– Uma cerveja, naturalmente – respondeu sem olhar, mas percebeu que ela se ia.
– Bom – respondeu André.
– O meu não foi tanto, eu adiei por mais de duas semanas fazer as compras, hoje tive de ir
num mercadinho, você nem imagina. Cheguei a pensar em contratar uma empregada, mas
meu salário não dá pra isso, na verdade só agora eu tenho visto como as coisas são caras.
Depois dizem que morar sozinho é bom. É uma merda – meteu a mão dentro do bolso. – Quer
fumar?
– Não, eu parei.
– É verdade, mas quem não arrisca não petisca. Que dia é hoje?
– Sexta-feira.
– Jurava que era quarta. Viemos aqui na quarta, não?
– Foi.
– Você tá lacônico – e pausou alguns instantes até que acendesse o cigarro.
– Acho que vou ser promovido.
– Isso que é ânimo. Vou ser promovido – e imita um tom de choro –, meus pêsames. Tem
certeza que não quer um cigarrinho pra comemorar?
– Ainda estou um pouco chocado, é isso.
– Não é sempre que se reconhece o talento das pessoas no mundo de hoje, você deve ser
talentoso, daqui a pouco você se dá conta e aí se anima.
– Pois é, o problema é talento pra quê. Pense comigo, me ajude e diga o que eu devo
fazer, vou falar na língua leiga, que é pra você entender. Há um cliente rico, há um importante
advogado que preside um escritório, e há eu. O cliente rico está sendo autuado por uns sócios
da sua empresa, enfim, o estão acusando de desviar uma certa quantia dos fundos de
emergência e de vender algumas informações à concorrência, o problema foi o tempo que
203
demorou na justiça para que conseguissem ter acesso a essas informações, e foi
recentemente que descobri que estive trabalhando em cima de informações falsas. Encobrimos
todos os documentos que incriminavam o cara. Todos. Tudo tranqüilo, nada que eu não tenha
feito. Mas só estou me dando conta que é tudo mesmo muito podre. São ladrões se roubando
e isso é muito descarado. O fundo movimentava uma grana legal, o problema é que parte saía
para umas dessas instituições de caridade, coisa que por si só é meio babaca, mas o sujeito se
aproveitou disso pra criar instituições fantasmas e desviar o dinheiro pra ele. Hoje ele foi
inocentado por falta de provas, e agora vamos entrar com uma ação contra danos materiais,
difamação e pelos danos morais que ele sofreu. Danos morais.
– Escroto.
A garçonete deixou a bebida sobre a mesa, os olhou, sorriu de malícia e se foi.
– Meu talento pra encobrir uma sacanagem é que pode me promover, e o pior é que eu
não estou impressionado com isso, estou até achando normal. Estou achando absolutamente
normal. E aí, o que eu faço?
– Quanto à sacanagem ou não ser o mesmo cara idealista?
– Quanto a não ser idealista, porque pela sacanagem eu já optei, é que ou sou promovido
ou me demitem e fodem minha vida, é o tipo de escolha em que colocam uma arma na tua
cabeça e uma mulher nua na tua frente, e dizem pra você ou tomar um tiro ou comê-la.
– Mas pra que você tenha essa mulher muitos outros terão de deixar de fazer sexo, e o
problema é deles – tomou o gole.
– Porra, é esta a essência do capitalismo. Mas, sabe, a gente só pensa nas coisas ruins
que podemos nos tornar como idéia, sempre distante, é sempre no amanhã, o dia que nunca
chega. A gente teme esse futuro distante e não percebe as mudanças dessa noite.
– É verdade, também é por isso que só a longo prazo as coisas do mundo são percebidas
e mudadas. O cara que hoje mata achando que está revolucionando por necessidade, amanhã
será o ditador que se contradiz pra fingir se manter fiel ao que acreditava, e cabe aos novos
chegarem e dar um chute em tudo isso, é por aí.
– Olha que é verdade, Alex, é isso mesmo, faz sentido.
– Por isso eu só bebo e fumo, me suicido de um jeito agradável que é pra não tomar
chutes, e nem chutar, que aí eu me canso.
– Mas não é o que ocorre, porque os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos
mortos.
– Eu sou um gênio por estar morrendo mais rápido que você – ri.
– A história é contada pelos que já foram.
– Merda, o maço acabou.
– A história é o sonho incompleto daqueles que já foram, e ainda assim nos agarramos
nela por uma confiança estúpida.
– Escreva um livro, essa frase tem um quê de epíteto.
– Estou falando sério.
– Análise? – e revirou o rosto por cima do ombro. – A menina de saia azul, de salto agulha
e de...
– Pensou no que eu te falei?
– Oi? – virou-se tentando conter o gosto amargo que sentia.
– De fazermos uma sociedade. Pode ser qualquer coisa, não precisa ter nada definido.
Nem que seja assim, de sairmos pra beber e falarmos mal das coisas que vemos diariamente.
Nem que seja pra falar do que quiser. Desabafar.
– Precisamos de mais pessoas – Alex falou fortemente.
– Tipo quem?
– Amigos, amigos de amigos, e por aí vai – coçou a nuca. Não podia responder muito
rapidamente ou insinuaria o quanto lhe importa.
– Sei, mas o que você acha?
– Acho que se é pra fazer alguma coisa, que façamos direito – o fogo acendeu-se em seus
olhos.
Ele sabia que fascinaria a André, que esse tipo de entonação tem o efeito de motivar as
pessoas, ainda mais quando elas são André e estão sedentas por qualquer migalha de
esperança de satisfação em um mundo que só as pisa. Eis os olhos atentos e cansados que
estão a olhá-lo. Ele sabia que o fascinaria. Nem por isso tinha controle sobre si mesmo.

204
– Seremos uma sociedade livre, abstrata e terrivelmente livre como diz o retorno à
escuridão, nela faremos o que quisermos, não haverá qualquer limite que não seja imposto
diretamente pela força do próprio semelhante. Se eu quiser erguer essa tulipa de cerveja e dar
com ela em sua cabeça, torça pra que você possa se defender, senão eu te mato.
– Calma, não podemos fazer algo assim.
– Sim, precisamos de um lugar apropriado pra isso, sermos discretos. Ou não. E
precisamos de mais pessoas.
– Legal. Mas como?
– Vejamos, deixe-me pensar – como se ele já não estivesse com essa idéia na cabeça.
Alex disfarçou enquanto forja as formas de como vai falar o que já tem conteúdo, mas
esses segundos de fingimento não seriam em vão, se poria a cogitar se essa ousadia dele
realmente valia a pena, se de fato interessa além de seu breve período de existência impulsiva.
Os jeitos de André eram como os de uma criança que atenta a qualquer coisa que o pai a dê,
um brinquedo ou um atrativo que a revele um mundo novo e cheio de possibilidades, não se
pode tomar aquele olhar como referencial muito válido de opiniões, era ele o único e exclusivo
responsável por qualquer coisa que fosse cuspida de sua boca, tal como pelos efeitos. Esse
fardo era um pouco cansativo, de forma que se arrependeu quando o constatava.
– Façamos assim, que cada um de nós – e tomou um gole do chope – possa sugerir até
sete pessoas, elas irão passar pela avaliação dos que já estão membros da sociedade, e tendo
sido aprovadas elas entram.
– Sete? Por que sete, e não dez?
– Sete é um número cabalístico – falou com jeito de estar respondendo mas que merda de
pergunta, se trata de um número qualquer.
– Qualquer número é cabalístico, se não me engano, a cabala também lida com
numerologia.
– Eu não quero saber disso, foi apenas um número – e levantou as mãos. – Parece ser
uma boa quantidade, parece razoável, entendeu? Pode ser cinco, se você preferir. É mais
prudente que dezenove, entendeu?
– Sete está bom, acho. Mas poderíamos chamar qualquer um?
– Alguém que você presume que aceitaria. Mas não poderia contar nada pra ele até que
estivesse dentro, acho. Só quando entrasse é que levaríamos a pessoa para nossa sede, pois
esta é uma sociedade secreta.
– Isso me parece difícil, como faríamos?
– Deixe-me ver – e aqui ele novamente finge estar criando. – Veja se concorda, podemos
fazer do seguinte modo, a gente explica no geral do que se trata, mas sem dar muitas pistas,
só no geral. Depois submete a pessoa a um teste.
– Um teste – André arqueou as sobrancelhas, isso não deve ser bom sinal, Alex, é que
você deve estar se excedendo, agora não faz mais diferença.
– Algo que a pessoa não faria habitualmente, como arrancar a roupa da esposa de um cara
no meio da rua, roubar a rosquinha do policial, lamber o focinho de um vira-latas, andar de
quatro latindo, começar a rir num enterro, não sei.
– Parece divertido – estala o pescoço.
– Estou falando sério. Você está parecendo comigo na outra vez que conversamos. Preste
atenção – e tentou fazer a cara que diz que nunca falou mais sério em toda vida, não é tão
bem sucedido.
– É que parece loucura demais.
– Até que estejamos habituados, o primeiro despejo da liberdade é exatamente realizar as
coisas que estão reprimidas.
– Não tenho mesmo a vontade de andar de quatro latindo.
– A busca por sensações novas, que normalmente não teria oportunidade, tem sim.
– Bem – André tomou um sonoro gole –, pode ser, mas me parece loucura ainda assim.
– Você mesmo falou, você mesmo falou que devíamos transgredir o imbecil – sacode os
ombros –, você também achou que seria divertido.
– Ainda acho, apenas também acho que seria loucura.
– É, provavelmente será tão divertido quanto estranho.
– Não sei, assim, ouvindo assim, eu não sei.
– Vamos lá, foi você mesmo que sugeriu – deu com as costas para trás do banco, irritado.
– E pelo visto você recebeu muito bem.
205
– Nos encontramos durante a noite, de tempos em tempos. O que me diz?
– Não sei, há outras coisas que tenho que pensar, até mesmo se eu for promovido.
– Você tá pouco ligando pra essa bosta de promoção – aponta firmemente –, na verdade a
detesta, vai ficar se comportando como se fosse a oportunidade que sempre esperou?
– Não é isso, você sabe que não é. Mas eu tenho responsabilidades.
– Sei – é, aquela outra frase deve ter significado uma indireta das óbvias, a de que ele não
tinha alguma, e tem de suportar. – Mas não irá atrapalhá-lo.
– E Júlia em casa.
– Chame-a também – essa idéia foi tão terrível quanto repentina.
– Você acha?
– É claro.
– Ela vai achar estranho, creio que vá rir, não creio que vá aceitar.
– A seriedade de uma coisa, meu amigo, é proporcional à determinação que você deposita
sobre ela – e acenou com a mão, que entoou uma máxima.
– Ainda assim a seriedade de uns é ridícula para outros.
– Se Júlia ainda é como lembro dela – e tomou um gole para amenizar o assunto –, ela se
deixa muito levar pela segurança dos outros, é impressionável no que diz respeito à atitude.
– Eu não posso negar, ela é assim.
– Então se mostre firme, mas pra isso eu acho que você precisa estar suficientemente
convencido.
– É, pode ser isso que me falte, eu não sei.
– Lembre-se do que você disse de nós, depressivos, que não é preciso de muitas migalhas
pra nos motivarmos.
– Está tentando ser persuasivo – sorri. – Está indo bem.
– Estou. Vamos tomar mais uma cerveja?
– Aceito.
– A cerveja ou a sociedade?
– Façamos um teste dos dois – e sorriu.
Era isso, sentiu que estava nascendo. Estava encaminhado o que há uns dias teria temido.
Ninguém entenderia porquê. Não seria algo diferente do que ele mesmo previu, pelo contrário,
e seria superficial afirmar que essa iniciativa é complemento ao retorno à escuridão, quando na
verdade se trata absolutamente dele mesmo, tão somente dele mesmo, do retorno à escuridão,
do destino que o outro falou e nada mais. E agora o corroia uma angústia sorrateira, dessas
que não afligem com força, mas são como aquela dor de dente constante, se duvidar de tanto
ali estar ou se acostuma com ela, ou muito provavelmente ela o leva à loucura. Começa a
pensar se não teria, por fim, encontrado o objetivo máximo de suas abstrações, o clímax de
suas saídas noturnas, de sua procura por qualquer coisa que o distraísse, a coisa capaz de
fazê-lo, simultaneamente, esquecer e encontrar a si mesmo. Deve ser assim que se realizam
as grandes transições espirituais, ele pensou, se duvidar é mesmo algo que acontece quase
sem querer, ou no máximo com uma inocente intenção da qual se sabe quase nada, e por fim
um acidente. É a história do ser que se solta das pedras, pois é que é controverso dizer se ele
saberia que estava prestes a estatelar-se contra as rochas, tão controverso como dizer que ele
supunha não haver rocha alguma. Ele era mais esperto do que eu, Alex ainda pensa sobre a
criaturinha da fábula, ainda que nos igualemos em coragem, ele dizia, e a coragem está mais
em falta que a sabedoria, esses são novos tempos, onde novas coisas hão de estar
hipertrofiadas, e as antigas podem cessar com o seu crescimento, dar uma pausa, que é para
compensar seus tempos de domínio. Ele, já em casa, pensava essas coisas.
Comia biscoitos de queijo e tinha preparado a penumbra da sala especialmente para que
pudesse ficar ali, assim, esse é o jeito que julga ser o mais gostoso. Assim, jogado no sofá,
com a televisão ali, meio longe para que não a enxergue muito bem, mas ouvir-lhe os
sussurros é suficiente para suas intenções, um pouco mais que isso e eles já o atrapalhariam.
É uma hora muito parecida com a hora da vigília, onde não se destina muita coerência a
qualquer coisa que seja pensada, nesse caso é que o primor era dado às coisas mais
abstratas, ainda que tecessem entre si uma rede, que quase involuntariamente fizessem, entre
si, um estranho sentido. E teorizavam muitas coisas, desde o melaço incômodo nos dedos,
vinha dos biscoitinhos que ele comprou na padaria outro dia, passando pelas solitárias horas
em que ele se dizia, pronto, agora hei de prestar atenção na baboseira que está passando na
tevê, não há outro fim senão relaxar, já que não me sobra mais espaço na cabeça para
206
escrever as mesmas merdas que continuam me encomendando, e já que agora também tenho
outros assuntos um pouco maiores que a revisão do bloco de notas. Alex é mesmo um desses
rapazes que, às vezes, quer mesmo é pretexto para se queixar de alguma coisa, mas esse
deve ser um talento específico de alguns, mesmo, realmente, meramente se queixar. É
também reconhecível a personalidade das pessoas portadoras dessa doença, ela se exibe
como sintomas. Há, por exemplo, a implicância com qualquer coisa, e se não houver ninguém
por perto para que se castigue, é capaz de falar sozinho, podendo até ser capaz de criticar a
própria bagunça, isso porque não arranjou nada melhor ou mais evidente. Há também o jeito
amargo com que reclama, já que nem toda reclamação é antipática, e agora ele parava um
pouco de se observar para se perguntar, mas que bagunça é essa que está a mesa?, e voltou
a pensar, dessa vez partindo para rumos mais específicos, enquanto não abria mão de chupar
os próprios dedinhos lambuzados, que se fosse livre teria o pretexto necessário para ser
amargo com quem quisesse, que aparentemente é algo que ninguém proíbe, as pessoas só se
tratam bem umas às outras porque têm medo de serem mal tratadas, é puramente covardia,
mas queria ele experimentar, e assim que tivesse a primeira oportunidade diria para qualquer
um que o deixasse implicar em paz com quem quer que fosse, e que o deixasse xingar, que ele
é um homem livre.
Desse jeito, no escuro que oscila pelos dançares de televisão, que agora deve estar
passando um dos noticiários da madrugada, falando das quedas de hoje na bolsa de valores,
das concorrências nas exportações que nosso país vem enfrentando, da urbanização mal
planejada, e aí já se vê as propagandas partidárias, aí vem um comentarista e uma charge
humorista, falando ainda mais dos acordos econômicos, da crise de sabe-se lá o quê, do golpe
no país que não se sabe o nome, parece ser de algum lugar aí que se fragmentou faz uns
anos, da fome, dos tratados da poluição, dos descalços, da falta de saneamento básico, dos
índices de desenvolvimento, finalmentes, ele se perdeu com divagações mínimas sobre tudo
isso e com as máximas sobre as coisas que entende. E o que ele assistia não estava na tevê,
mas sim sobre a mesinha em sua frente, onde agora pouco esteve ele repousando os pés, só
não o fazia mais por estar frio, assim prefere encolhê-los dentre as almofadas do sofá. Olhava
o livro de capa preta, O retorno à escuridão, mil vezes pior que o malleus malleficarum, o
martelo das bruxas, manual de rastrear o diabo, está ali aquele exemplar que sabe-se lá na
mão mais de quem estará a essa hora, e sabe-se lá quem o estará folheando. Numa
madrugada assim, deve ser alguém muito solitário, pensou. O exemplo mais evidente era o de
André. As coisas estão saindo de controle. Ele soube desde sempre. Ele pretendia. É uma
dessas negligências às quais nos damos ao risco, naturalmente o preço há de ser pago ou
extorquido, seja por retribuição natural cósmica, por semear o que se planta, ou seja lá como
se dê, e ainda parecem ser muitas as formas de se deixar perder o controle e se gostar.
Em sua barriga mantinha o bloquinho de notas, e se entretinha com o movimento da
respiração que o fazia subir e baixar, subir e baixar, subir e baixar e, às vezes, sem nenhum
propósito fora do autismo, observava como a prancheta resolvia desprender-se de seu colo e
deslizar barriga abaixo, como a gravidade é divertida. Não antes, é claro, dele agarrá-la, que se
abaixar depois para retomá-la não vale a pena. Nela deviam estar escritos nomes. Não que
precisasse realmente, isto é, ele poderia simplesmente pensar em alguns, fazer a referência
entre essas palavras e seus respectivos possuidores, mas é que para ele esse instante é feito
procedimento do processo criativo, isto é, ter assim uma folha em sua frente, esperando que a
conjuntura de qualquer pensamento que tenha, contanto que seja digno disso, seja melhor
formulado e estruturado, era a motivação que lhe faltava. Ainda que, agora ele se diz, isso não
o esteja adiantando muito nesse instante. É que, tal como o processo criativo, ele não sabe por
onde começar, não tem de que trampolim partir, que nome há de pôr ali?, está estagnado. Em
situações como essa, o melhor que você tem a fazer é ir por partes, como por exemplo, se o
que você deseja são nomes, então pense em muitos, nomes que já ouviu, nomes inventados,
nomes de conhecidos e desconhecidos, em algum momento todos eles vão colidir com a
gravura de um rosto emoldurado na sua cabeça, assim saberá que por coincidência pouco
cansativa você achou o que procurava. Mas ai, pára, que ainda não é o suficiente, e esse
branco já o está fazendo se desanimar, as idéias anteriores podem dar a entender nesse ritmo
que são estéreis, que passaram tão rápido quanto um pensamento devaneado dentre os tantos
que teve agora pouco, e que pela sonolência já o esqueceu. Alex precisa unir os nomes que
deseja com seus enigmáticos propósitos. Tenho de ser pragmático, ele se disse enquanto
coçava o rosto, fazia isso porque queria despertar, e por que essa determinação?, ele se
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perguntaria a fim unicamente de responder-se, bem, agora ele se explica, é que eu desejo
formar uma sociedade de pessoas livres, uma organização secreta, uma congregação, uma
confraria, onde não existem regras, apenas uma única determinação chamada conveniência, e
até parece que ele está prestes a entoá-la, parece que com gotículas de um prazer cheio de
orgulho essa palavra salta meio a perdigotos. Não posso dar de frente com o mundo, ele
pensou. Mas posso me infiltrar diabolicamente nele, e quando pensou isso só lhe faltou uma
dessas gargalhadas esganiçadas que dão os vilões. É isso que ele sempre tem feito, ele nunca
realmente pertenceu a lugar algum, apenas tem se infiltrado, e talvez seja por isso que ele
ostente ser um mestre em reconhecer ocasiões, ainda que não abrace a todas, mas isso é
porque quem quer tudo na verdade não quer nada, e são poucas as coisas que realmente o
apetecem. Como, por exemplo, o nome que acabou de escrever.
Júlia, diziam as letras. Agora elas já mostram um borrão rasurado, é que ele o risca
diversas vezes à caneta. É, meu rapaz, você está mesmo se comportando como um tolo, está
se aventurando fora dos limites do amor próprio, deve lhe ser essa insistência como uma
infecção no cérebro, essas toxinas precisam ser liberadas de algum jeito, tal qual se liberam
nos detritos. Ora, não está extrapolando em nada, não há nada de antiquado em imaginá-la
nua, agora, nesse exato instante, contorcendo-se ali no carpete da sala, com cara de quem
não agüenta mais a espera, pondo a língua para fora como uma deusa hindu cheia de fúria e
prazer. Pare. Pense, se isso ainda for possível, pronto. O que está fazendo?, colocar o nome
dela aí é monstruoso, é mostrar para si mesmo na forma de uma pancada nos olhos quais são
suas intenções. É perder o controle sem gostar do que descobre. E não ignore o que você
sugeriu a André, não tome como algo que se diz habitualmente, que aquilo foi realmente
diabólico, você não devia se testar nesses limites, essas são fronteiras que não devem ser
cruzadas, se é que existe uma, mas se um dia ela existir, sabemos que essa é a sua.
Considere apenas que nada disso compensa a você, que, achando ter ganhado alguma coisa,
descobrirá que foi tão longe quanto o peregrino que andou em círculos e se cansou, como o
cara que morreu na praia. É melhor se convencer que você não disse aquilo para ter o pretexto
de estar perto dela. Alex não seria vil o suficiente para unir o útil ao agradável, mas isso não é
coisa que alguém hesite em fazer, talvez apenas dessa maneira que não. Há coisas muito
maiores no mundo, coisas que até mesmo ele faz e que não estão vinculadas ou gravitam em
torno dessa tal de... como é mesmo o nome dela?, jura que esqueceu por alguns instantes, ah,
sim, é Júlia a tal da moça, que, com toda sinceridade do mundo, agora já não passa de um
borrão desimportante no seu caderno de notas.
Respirou numa bufa sonora. Realizou um processo mântrico que ele acaba de inventar
para desinibir o processo criativo, os vasos por onde deve correr a inteligência, para que as
idéias por mais absurdas que fossem não tivessem mais vergonha de fluir, aí rugiu,
resmungou, bradou de levinho. Tudo terminou numa tosse catarrenta, os pulmões doíam.
Certo, vamos lá. Podia escrever até sete nomes, mas os selecionaria entre muitos outros.
Começou a pô-los lá, e eram muitos e ao mesmo tempo de ninguém, era o nome da rapariga
que encontrara uma vez, ela vendia cosméticos lá na época dos seus albergues, e tinha
também o nome de um simpático senhor de idade que certa vez conheceu enquanto passava
por uma dessas praças onde se reúnem os senhores de idade, uma doutora um pouco
desequilibrada que gostava de sexo com violência, um ou outro gato pingado que conhecera
nas ruas, um rapaz bonito que se metia em brigas, um gordo que as terminava, um sujeito que
lida com tráfico de influências e agiotagem, uma menina ingênua de trancinhas que sonha em
mudar o mundo, uma mulher se acabando no bar, uma prostituta com nome de romana, outra
puta de instintos assassinos, um cafetão rude, uma velha que sempre está na varanda a
espera do defunto, o sujeito de sexualidade duvidosa que espreita os mictórios, a frustrada
esposa infiel, o mecenas arrogante, tudo que por fim conseguia se lembrar, tudo que por fim
lhe clareava nas memórias. Riscou um por um, nenhum parece bom o suficiente, nenhum
servia, tudo isso seria passado?, e foi isso que o fez começar a pensar que nem todos foram
feitos para serem livres, e seria ele mesmo o próprio espírito do discernimento, mas isso é
absurdo, não é ele juiz de nada para dizer uma coisa dessas. Então deixa para lá, que as
coisas apenas fluam, como flui o rio que espatifa a criatura do mítico conto. Apagou um por um
pois não poderia recrutar a todos. Apagou um por um porque nem todos têm a coragem que
ele está procurando, não agora, mas talvez um dia venham a ter, e coragem para quê nem ele
sabe exatamente, apenas sente que irão precisar. Posteriormente estará especificando dado
por dado de suas divagações, é que, quando se esquematiza qualquer imaginação que se
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tenha, ela passa a assumir uma convincente carranca de realidade. As pálpebras de Alex estão
pesadas, os olhos ardem, mas heroicamente continua forçando a vista, rabiscando suas coisas
no escuro, que são tão iminentes que não poderiam ser deixadas para depois, que, pela
manhã, se não estivessem prontas, perderiam toda a validade, já teriam apodrecido antes da
colheita. Isso ele não permitiria, não dessa vez, não permitirá adiar a si.
As rasuras estão terminando e nelas estão histórias inteiras, mas são dessas histórias que
dizem respeito ao passado, pertencem ao segredo de tudo perdido, futuramente significa as
coisas por fazer, que são as coisas que importam. Em alguns momentos da vida temos tal
iluminação que nos põe desvinculados do passado, ainda que se ignore que foi ele que o geriu,
esse momento o fez livre de si, podia se tornar o que quisesse porque era livre do passado,
então era livre do que era. Pronto, acabou. Tudo o que precisa fazer agora era sugerir um ou
outro nome que até agora não tivesse servido.

209
– Hoje você demorou – foi assim que Alex o recebeu.
– E fico feliz só de ter saído da porra do engarrafamento – disse André, e tomou seu posto.
– Dois moleques quase que me roubam, se eu não fecho o vidro a tempo. E aí?
– Dia movimentado – e girou o cinzeiro, é uma dessas lamúrias cotidianas que o mais
esperto sabe ser mentira.
– Nem me fala.
– E então? – a pergunta veio no tom de alguém que já trata de algo familiar.
– Você não vai imaginar – André tirava o paletó, a pasta já no canto.
Ele não imaginava mesmo, não é comum que se tente surpreender e já se tenha uma
aceitação como essa, e não apenas isso, mas o troco tão dinâmico, essa mudança de
posições. Resta-lhe a cara típica aos trouxas.
– Fiquei com essa coisa me martelando – André não esperou por muito mais tempo. –
Essa coisa dos nomes.
Agora se acendeu o brilho de expectativa, ainda que os espólios da cara dos trouxas ainda
permaneça, o modo de se mudarem as feições é como mudam os sentimentos através de uma
linha de alterações, às vezes tem lá as suas linearidades, ainda que muitas vezes seja da água
para o vinho, e ainda assim se notem lá suas semelhanças. Olhando assim, por fora, as coisas
não parecem tão diversas.
– É uma idéia que parece inofensiva. Mas até pra dormir me custou – concluiu, enquanto
desabotoava o colarinho. – Deus, que sufoco, me sinto num cadafalso. Acho que essa é a
melhor hora do dia.
– Não parecia tão impressionado com a última conversa.
– Não sei, é que meus pensamentos colidiram de uma maneira estranha.
– É?
– Como se de uma hora pra outra eu passasse a não a pensar mais com a minha cabeça,
e sim que fosse outra pensando por mim. Deve ser a sua.
– Se eu sou persuasivo – escarninho –, nunca tinha me visto chegar a um ponto como
esse.
– Até estou vendo as coisas mais diferentes. No começo achei que fosse uma ansiedade
que passaria, aos poucos eu vou vendo que não é assim, parece ser uma cobrança, uma
pendência. Júlia falou pra eu ir no terapeuta. Um que ela ia. Um saco.
– É?
– É – pigarreou alguns instantes –, as pessoas parecem outras, é como se eu estivesse
num mundo de cadáveres. É isso que eu acho, que me dei conta que estou morto, mas
esqueci de parar de respirar. Está tudo meio cinzento. Estou mumificado, e pelo visto isso é
mais comum do que parece. Você tá aí, rindo, mas é estranho, um pouco sinistro, sinto mesmo
que estou cercado por assombrações.
– Acho que nada justifica essa tua crise – e continuou rindo –, o teu caso é dos graves, se
percebe, Júlia estava certa. Se interne.
– Pense o que quiser, também não quero saber. Conseguiu algum nome?
Essa é uma boa pergunta de se fazer, dessas que excitam, é um dos sinais que precisava
de que André está se tornando uma pessoa fácil de se lidar, mas para respondê-lo fez que não.
Implícito com o olhar ele ainda acrescentou, nada, nadinha, mas pelo que você pode perceber,
pelo que estou te insinuando aqui, agora, não foi por displicência e pouco caso que as coisas
acabaram estéreis, as minhas olheiras falam por mim, meu desconcerto ressalta, ainda que eu
não esteja mesmo cansado, e essa falta de cansaço sugere uma agonia que não pára.
– E você?
A pergunta derradeira e o sorriso silencioso que transborda aquele suspense
desnecessário que diz uma vez mais, você não vai imaginar. E, se está sendo dito que não iria
imaginar, e por conta dessa cara de taxo que André vem fazendo, e por esse tatear na direção
da pasta, a resposta tem pelo menos algo de um pouco crucial. Mas Alex é um sujeito vivido,
sabe que as desilusões são proporcionais às expectativas, então ele se modera, é o mínimo
que pode fazer, eis o mínimo de autocontrole que uma pessoa relativamente sã tem mesmo de
possuir.
– Que é isso? – acabou por perguntar, suspendendo os olhos sobre a mesa.
– Calma – desgraçado, e isso é tudo que ele tem a dizer. Se ele parece não ter pressa,
tudo bem, olhe um pouco ao redor, se entretenha com o movimento das garçonetes, enforque
210
o ar ou um Judas imaginário, preste atenção na conversa ao lado, enfim, cuide um pouco da
vida dos outros, que a sua se estagnou.
– Pronto – alertou André. Alex já ia levar a sério suas últimas intenções, prestara atenção
no rebolado da menininha que passara lá próxima ao balcão. – Devo confessar que resenhei
muitas vezes, revisei muitas pessoas, é estranho pensar que eu me senti na cobrança de fazer
algo bem feito.
– Não precisava o esforço – a voz sai trêmula, sorte que está virando o rosto, que assim
deu para disfarçar, e essa era a hora perfeita para pegar um novo cigarro, naturalmente que
comprou mais desses desde a última vez.
– Não tenho certeza, mas foi o que arranjei – e meiosorriu levemente. – É que também não
quis chegar de mãos vazias – e ainda vem com insinuações, o desgraçado.
Só volvendo o olhar outra vez, já com o fumo pendendo num lado da boca, já tateando o
fundo do bolso em busca pelo isqueiro, dentro de bolsos pode tremer as mãos, um grande
terremoto, ele gosta de bolsos, que viu mais claramente a pasta sobre a mesa. Acendeu o
fumo, expeliu fumaça, perguntou.
– Que é isso? – a voz sai mais rouca do que na primeira vez.
– Um dossiê – falou como se fala um agente secreto, deve ser isso o que ele está se
sentindo. Era o que lhe faltava.
– Dossiê – repetiu, levantando as sobrancelhas, gesto esse que traduz mais ou menos a
seguinte pergunta, dossiê, hein?, certo, agora diz-me que merda é esta.
Mas André nunca explica as coisas quando elas precisam prontamente de resposta, e deve
ser isso um dos ossos do ofício ao que acaba se apegando, que se esquece de deixar nas
prateleiras do escritório e se leva para a casa, um inferno. Pelo menos ele empurrou com os
dedinhos, Alex, a pasta em sua direção, com esse jeito todo de quem tem toda a eternidade
parada a seu favor, não o apodrece. – Abre – ele disse. E aí está Alex puxando a pasta para si,
repuxando os elásticos que a prendem, e agora ele a solta, a abre e a põe mais uma vez em
cima da mesa. Não é preciso ser perito ou entendido dos termos técnicos que lá constam para
que se dê conta que se trata dos dados de uma pessoa, e estão entre eles informações mais
acessíveis à gente leiga, tal como, sendo o mais importante entre todos, ainda que não mais
importante de tudo, o nome do sujeito, a seguir pela supérflua data de nascimento, pelas
coordenadas da residência, o número dos telefones. E aí depois entra isso que deve ser a
grade curricular, e olha, que desatenção, que só agora vai olhar a foto três por quatro colada
no cabeçalho. Sabe quase tudo que alguém próximo desse sujeito saberia sobre ele, se
duvidar consta aí até mesmo o tipo sanguíneo, o plano de saúde, isso porque simplesmente
saber da residência de uma pessoa, assim por nada, é algo até um quanto perigoso nos
tempos de hoje. Só ainda não sabe o que de fato importa.
– Quem é ele? – ergueu a cabeça e perguntou.
– O conheci quando ainda estudava, há muito tempo que não nos falamos.
– Consta aqui que essas informações são da universidade – folheou brevemente.
– Sim, puxei do computador do escritório, não é coisa difícil de se conseguir lá dentro.
– Certo.
– É um cara muito legal. De qualquer forma, não o vejo há muito tempo, não sei se ainda
posso dizer o mesmo – debruçou-se sobre a mesa para olhar.
– Não me importa que ele seja legal. O que ele tem que nos interessa?
– Você também não tem nada que nos interessa, Alex. É apenas o nome de uma pessoa
diferente, com seus altos e baixos, idas e vindas, acho que a questão da diferença é a
prioritária.
– Podia ter escolhido alguém do teu escritório, da tua rotina, seria muito mais fácil.
– Você sabe muito bem que não adiantaria de nada, o segredo – e aponta paulatinamente
– é a diferença. E deixe-me fazer do jeito que eu quiser, mas que coisa.
– Você falou de um jeito forte. Ainda assim não sei com quem estamos lidando, não tente
me ludibriar, tudo que sei é que ele estagia na universidade central, isso não define o caráter
dele, na verdade não define absolutamente nada.
– Está se importando com o caráter?
– Eu sei lá com o que eu estou me importando – e largou a pasta de qualquer jeito.
– Pode falar se não gostou da sugestão.
– Não é isso, só não sei o que pensar. Deixe pra lá, apenas me ignore.

211
– Atualmente você é a única pessoa na minha frente, não poderia te ignorar. Podemos
pedir as bebidas enquanto isso, impressionante que até agora não o tenha feito. Mas vamos lá,
vamos nos equilibrar, temos uma cota de sete nomes, não é isso?, e só eu até agora sugeri
um. Agora é sua vez.
Alex sorri, maquiavélico, – Drusilla.
– Drusilla – repetiu André. – Quem é?
– Uma amiga que conheci há muito tempo atrás.
– Que seja essa Drusilla, então – e moveu os dedos com um gesto meio imbecil de, isso aí,
camarada, vá adiante, estou te encorajando.
– Mas deixe isso pra mim, comecemos com o que temos. Que fazemos com isso? – e
apontou a pasta.
– O contatamos e explicamos a idéia, eu acho.
– Não, é claro que não. Temos de investigá-lo, ver se tem o espírito ideal.
– E qual é o espírito ideal, Alex? – riu.
– Não é isso algo que se diga em palavras, é algo que apenas se nota.
– Sei. E me diga, rapaz, como você pretende notar um espírito.
– É muito simples e natural – pôs o cigarro no cinzeiro. – Vamos segui-lo.
– Espera, dá um tempo, olha o exagero. Isso é meio sinistro. Além de ser escroto.
– O que você sugere, diabo?
– Existe um aparelho chamado telefone, que...
– Sim – interrompeu –, você que o conhece vai ligar pra ele, mas só depois dele já ter
recebido a carta anônima.
– Carta anônima – tom de pergunta.
– O convite para ingressar na sociedade.
– Parece misterioso – tom de sacanagem.
– É essa a intenção – Alex não se abala, ele raramente se abala. – Antes despertar a
curiosidade dele, preparar um pouco do espírito que te falei, do que você simplesmente ligar e
falar, oi, lembra de mim?, aquele cara da universidade, então, você nem deve mais lembrar de
meu rosto, mas sim, tenho um motivo muito especial pra te ligar. Antes de você explicar
qualquer coisa, ele já vai estar te achando um imbecil. Não é uma situação em que se bata o
telefone na cara, mas provavelmente ele vai falar pra você algo do tipo, escuta, coloquei aqui a
água pra ferver, desculpa, mas não estou interessado, certo?, ando muito ocupado. Ou, então,
se for mais educado, ele te diz o seguinte, André, sim, sim, lembro de você. Ah, parece
interessante. Depois retorno a ligação, correto? E aí você sabe quando vai ouvir falar nele
novamente, não é? Nunca.
– Façamos da sua maneira, que seja.
– Temos que dedicar um dia à caçada dele. Com a ajuda de seu carro isso vai se tornar
mais fácil.
– Mas aí entra um pequeno imprevisto – conveniente imprevisto. – Vou estar sem o carro a
maior parte da semana. O carro de Júlia acabou de sair da oficina, ela faz questão que eu
ponha também o meu, essa baboseira de revisão geral, sabe como é.
– Sei, sei como é.
– Vou estar tomando carona com ela, vai ficar complicado.
– Você não está me enrolando, não é?
– Não, rapaz, eu tô falando sério. Vou ficar mesmo sem o carro.
– Então deixe isso aqui comigo – grunhiu, puxou de volta a pasta para si.
– Vai mesmo fazer?
– Alguém tem que tomar essa iniciativa, senão a inércia do mundo irá eternamente nos
domar.
– Então, ao menos me ligue depois que conseguir, certo?
– Chega desse assunto, minha cabeça já está doendo. E a culpa é sua.
As bebidas dessa noite não desceram com um efeito muito bom, o resultado foi uma
combinação quase letal entre química explosiva de álcool, cheiro de ar poluído e cidade
noturna movimentando-se no caos, ninguém parece respeitar a faixa dos pedestres. Pelo
menos André o largou próximo do metrô, momento tentador para se falar algo do tipo, então,
sabe que estou com uma doença dos ossos?, se eu ando demais as pernas podem se
esmigalhar, torcem e aí eu caio, você não gostaria de se sentir responsável por uma tragédia,
vai que eu despenco nos trilhos do metrô, se você chegar a testemunhar ainda é crime não
212
prestar socorro. Ainda existe em si o constrangimento a moderar algumas das iniciativas, e não
requisitar pelo torso inteiro quando se ofereceu a mão foi algo que preferiu não fazer.
Posteriormente ele se arrependeria, os resultados foram catastróficos, dentre eles aquela
sonolência que instaura uma preguiça tão forte que não importa onde está, parece haver
sanguessugas a sugar todas suas energias, e mesmo não estando no conforto fraterno do lar,
aos poucos isso passa a tornar-se um horizonte obsoleto, tudo apraz a um longo bocejo.
Chegou em casa aos frangalhos, era uma viagem que fazer sempre o estava cansando, após
fechada a porta se despejou de tal maneira sobre as coisas todas, que jurou para si mesmo
que nunca mais se levantaria do sofá, que dormiria com os sapatos e hibernaria durante uns
bons meses. É que os pensamentos atuais o deixam ansioso, mas bem o conhecemos, disso
logo se origina enxaqueca, se duvidar até os pesadelos mais terríveis, que são aqueles onde
se pensa que acordar é cada vez mais um sonho impossível de acontecer e, como sonho, se
repete por sufocantes e intermináveis vezes. Mas os piores mesmo são aqueles proféticos,
onde vê, por exemplo, o mundo todo em chamas, enquanto, das trevas, ele se tornou o único
espectador. Se houvesse alguém por perto é bastante evidente que o seu empreendimento
provavelmente seria mencionar que nunca sentiu um mal-estar semelhante, que é até inútil
tentar ir a um médico, que antes que chegasse já teria morrido. Mas agora ele mora sozinho,
não há ninguém para ouvi-lo, por isso ele se entretém com a sua abandonada criatividade.
Sentiu-se só, agora não é esse um estado que lhe soe muito frutífero. Seria, na verdade,
um ótimo momento para deixar que o formigamento da perna se alastrasse por todo o corpo, e
que em pouco tempo abrisse os olhos, se dando conta de que há algum tempo os tinha
fechado e não percebeu, e por estar dormindo muito tempo numa posição estapafúrdia é que
acordou com dores nas costas e com o próprio ronco. Aí teria o trabalho maravilhoso de
lembrar-se que podia dormir numa cama toda só para si. Coçaria a bunda, pigarrearia para tirar
o gosto de sono da boca, e sem propriamente abrir os olhos, de maneira que na manhã
seguinte sequer se lembrasse de como foi parar na cama. Essa é sua história. Ainda assim, até
aqueles que não tem um senso muito apurado de responsabilidade sabem identificar quando
precisam fazer algo muito importante para si próprios. E esse é o seu caso. Todos sabem o
que é melhor para si, disse-lhe uma vez um padre, um sábio, é verdade, também sendo
verdade o que dissera. Sem mais delongas motivadoras, é por isso que Alex está defronte à
mesa que lhe serve de escrivaninha, parece mesmo compenetrado, com direito ao abajur
aceso e tudo, repousando com o queixo no braço, de olhos miúdos, enquanto aguarda o
computador realizar as operações que acabou de comandar. É claro que tem trabalho a fazer,
e é claro que esse não se trata de alguma encomenda da redação, tampouco de idéias
pessoais escritas sem um outro fim que não seja o de suportar o tempo que lhe deteriora.
Agora ele tem de fazer algo verdadeiro, sustentável, algo que exercerá influências ao mundo
de fora, que será julgado e fará valer a carga que ele tem a descarregar, que provocará
impressões não por acaso, mas porque foi feito para isso, tal qual devia ser o retorno à
escuridão em sua circulação pelas vielas da cidade.
Pôs a pasta mais ao lado, trazendo-a para a luz, para mais perto de si. A abriu e se disse,
estarei escrevendo para um homem que não conheço, mas terei de fazer como se sim, então,
para todos os efeitos, finjo que esse rosto pálido, esquálido, de olhos que não me dizem nada
com sua tão pouca gravidade e com essa barbicha ridícula, finjo que esse é meu conhecido de
anos, que sei cada uma de suas vontades, fobias, manias e a posição preferida de dormir. De
qualquer jeito, nenhum estranho é algo completamente diferente do que já se viu antes, é
receio demais pensar assim, não sou tão inseguro assim. Mas André tem razão, é mesmo
loucura, se não é loucura é simplesmente confusão, é estar deslocado a tal ponto que não se
sabe mais o que faz, um infundado que ainda não atingiu os graus da intolerância para tornar-
se doença, mas não está longe de acontecer. Mas tudo isso pode ser empurrado nos
julgamentos de si para si, já o que não pode é se dizer cruamente que isso tem jeito de ser
coisa de criança. Esse termo é um pouco mais ofensivo, ainda que muitas vezes se trate de
algo digno suficiente a se dar crédito, como por exemplo quando se considera o desapego das
crianças, a inocência já nem sempre etc, e não a ser encarado como repúdio. Mas dizer assim,
desse jeito que se lhe foi mostrado, que é coisa de criança, e ainda pior, ele estar em dúvida se
é ou não é ridículo, se não é uma pendência que ele tem com os anos de jovem, todos esses
momentos já passados da vida, isso sim é sintoma para que ache estar beirando a loucura,
sinal que está indo dormir com uma coerência estúpida e acordando com a impressão da
idiotice embrulhada em seus lençóis, desnuda pela luz da manhã, sorrindo e lhe dizendo bom
213
dia, querido. É uma idéia inigualável, Alex contestou. É uma dessas idéias que de tão
fantásticas ficamos receosos se será bem vista, é uma característica das coisas inovadoras,
elas sempre fulminam, mas tenho de ir aos poucos, e esse é um primeiro passo. Mas, se der
errado, então, que se dane, que se der em merda ninguém vai ficar sabendo, e ele nunca
dormiria novamente em paz se possuísse esse peso de não tentar, já bastam todos os outros
que quase inevitavelmente se adquirem após já ter se passado uma quantidade razoável dos
anos de vida, e são uns pequenos, outros maiores, mas poucos decisivos como esse.
Olhou mais uma vez para o retrato que nada lhe dizia, que lentamente se convertia em seu
conhecido secular, em pouco tempo teria se convencido de conhecê-lo tão bem que poderia
jurar que já se viram nas vidas passadas. Era como forjar uma pequena obsessão temporária
sobre algum alvo. Podia tirar, por exemplo, as energias que direcionava a Júlia, ainda que a
imagem dela não o tenha incomodado atualmente, mas enfim, usar a concentração cansativa
que dedica a ela para usar sobre a investigação desse tal. Tenho de ser duro e conciso,
definiu.
É bom começar usando um elemento de retórica, não, uma pergunta não cairia muito bem,
as pessoas que lessem iriam achar que se trata de uma propaganda, mesmo que lessem até o
final já teriam essa primeira impressão a estragar a todo o resto. Escreveu a primeira linha, e
foi bastante preciso. Você foi escolhido, dizia, mas não, isso mais parece publicidade de cartão
de crédito ou de supermercado, já podia imaginar a imagem do sujeito – não só dele, já
carregava na cabeça uma imensidão fantasiosa que receberia esse convite – rasgando o
envelope logo após abri-lo. Que era, querido?, perguntaria a esposa do camarada, se bem que
é meio jovem para que tivesse uma mulher, mas, se fosse esse o caso, ele responderia que
nem sabe ao certo, mas certamente era uma dessas infinitas baboseiras que metem nas
nossas caixas do correio, que é uma grande falta de respeito, que não escolhemos ter nossos
nomes sorteados para essas coisas etc etc, e nada que interesse. Tinha de ser algo mais
carregado de mistério, e não tão impessoal. Você não nos conhece. Ficou bom. Ele arrepiou-se
lendo o que ele mesmo escreveu. Fantástico.
Você não nos conhece. Talvez possa imaginar quem somos, achou que isso soava como
uma forma de ameaça, mas apesar de coercitivo achou que seria moderadamente funcional,
então continuou. Você foi escolhido, pôde enfim inserir essa frase dinâmica, e sorriu
vitoriosamente ao imaginar o susto que não teria quem a lesse, o que estaria pensando essa
hora, se foi escolhido para morrer, se é mesmo uma ameaça, de pronto estaria olhando se a
carta de fato não tem remetente, ao que, ao confirmar que não, estranharia mais ainda.
Demoraria alguns segundos até que o coração voltasse a bater mais calmo, até que parasse
de supor as coisas horríveis que cometera no passado e que poderiam estar voltando para se
vingar, uma namorada ciumenta, uma corrupção aqui ou acolá, alguém que detém o segredo
de sua vida e começa a mostrá-lo pelo envio de uma carta. Por favor, não feche essa carta.
Não, por favor soa desesperado demais. Se bem que ameniza muito do tom anterior, o que
pode acabar sendo decisivo, senão isso, ao menos tempera a agressividade, que o melhor
agressivo é o agressivo tranqüilo, tipo com o silêncio dos inocentes, pois é, o canibal é
consciente do que faz, isso o torna ainda mais maléfico e todos torcem para ele. Resolveu
inserir. Por favor, não feche essa carta. Você não nos conhece. Talvez possa imaginar quem
somos. Você foi escolhido. Por favor, não feche essa carta. É, estava sendo lacônico como um
espartano, é bom que transparece muito pouco, só um mestre da empatia conseguiria imaginar
quem escreveria coisas como essas e com que intuitos, só alguém de talentos sobrenaturais
que conseguiria fazer isto, ainda por cima com a preocupação que deverá estar nascendo.
Resolveu arriscar-se um pouco mais no desenvolvimento, mas é claro, após todo esse prelúdio
já lhe era certeza que conhecia não só aquele para quem escrevia, mas a qualquer rosto que
lhe aparecesse na frente, qualquer rosto que possa imaginar. Se você está recebendo essa
carta é porque tem algo especial. Como saber disso? Você só a está recebendo porque
alguém que te conhece o indicou. Não queremos a sua curiosidade, ainda que nos seja útil.
Não queremos sua atenção. Queremos que questione. Eis um novo horizonte. Saberá mais.
Em alguns dias receberá uma ligação. Não comente com ninguém sobre esta carta. Imagine,
enquanto isso, tudo o que pode não ser. É mais que o suficiente. Ainda que não tivessem
muitas linhas preenchidas, encarou as que já tinha com um olhar que questiona a suficiência,
que ainda quer cutucar a perfeição, mas percebe que isso seria perigoso e inútil. A impressão
que pretendia causar se fechava hermeticamente naquelas frases centralizadas que não
diziam nada, mas sugeriam até demais, veja só, eram um círculo que se findava naquela última
214
reflexão, imaginar tudo o que poderia não ser. Tinha em mente a idéia de usar a carta com
todos candidatos ao ingresso na sociedade.
Foi aí que, ironicamente, matutando algumas coisas que já não ia mais inserir no texto,
deu-se conta dessa nova e decisiva problemática. Antes de tudo, que seja explicada como ela
surgiu, e isso deu-se porque Alex começou a pensar em inserir na carta não a questão de que
a pessoa seria contatada por telefone daqui a alguns dias, mas algo do tipo, nos encontre em
tal lugar.
É claro que esse pensamento logo se dissipou por questões de cunho prático, é que
ninguém simplesmente se moveria para um lugar desconhecido só porque uma carta sem
remetente e que não diz absolutamente nada orientou que o fizesse. Ainda assim, esse
pensamento serviu para que atentasse à questão de que precisavam se reunir num lugar.
Aquele Schneider é um bom lugar, pensou, é um bar familiar, calmo, aconchegante, mas não,
não pode ser num lugar assim, é claro que se precisa de um lugar próprio, o lugar que ele
mesmo citou por alto com André como sendo a sede, onde se possa fazer de tudo, ainda que
esse seja outro termo que não queira dizer muita coisa, ah, vai, quer sim. Vão precisar de um
lugar para se reunirem, e esse será o marco que definirá que eles não são somente uma idéia.
Mas isso é coisa para ser cuidada depois, há outras questões mais importantes a se ponderar,
como, por exemplo, com que conteúdo há de preencher as sete vagas que dele partem, e essa
é sim a parte mais vital, o elo principal da estrutura, conquanto não tenha as condições
propícias para quebrar a cabeça com isso. Certo, salvou as coisas que tinha feito, e estava se
espreguiçando e supondo que poderia perder um pouco de tempo com a televisão até que o
sono chegasse, quando apitou o correio eletrônico.
Fazer um estudo sobre a arte da periferia como processo de civismo, A redação. Devia
fazer isso agora, de madrugada, já que durante o dia estaria ocupado, mas eis que o cansaço
falava mais alto e, pela primeira vez, desde que ritmou a pontualidade do ofício e o desenvolvia
de forma sustentável, definiu que ainda tinha tempo para adiar, e que não faria agora o que
pode fazer amanhã. Deixou tudo ligado e com um longo bocejo se foi.
E pela manhã ainda sentia aquela concavidade penetrante nos ossos da testa, essa
pressão constante, o conhecido sintoma de quem pelejou com afinco horas e mais horas para
que o sono, que não queria vir, caísse numa armadilha e o acabasse abraçando. É essa uma
luta irônica, talvez a única na qual se preze perder pelo cansaço, enquanto a vitória, que não é
exatamente a vitória, mas, controversamente, a perda, a entrega, dá-se pelo martírio pessoal
de ter mais forças e ânimos do que gostaria de ter. É que Alex está com sono, durante toda
sua vida a luz do dia o significou muito pouco, chegou uma hora em que ela se tornou
vingativa, agora não é nem mais um pouco hospitaleira.
Devia ter acordado mais cedo, as suas intenções iniciais eram de interceptar a saída do
alvo número um, o indicado fulano, quando ele estivesse deixando o seu lar em direção do
trabalho, mas já estar ali com o sol alto e com o azul dos céus berrante já há de ser
considerada uma grande conquista sua, quando foi por muito pouco em sua cama que ele
pensou em desistir, que o adiamento é quase sempre a iniciativa pela qual qualquer
desistência almeja.
Ajeitou os óculos escuros sobre o nariz, dava uma olhada com ares de mistério nos
arredores, se dizia que era mesmo um bom lugar de se viver. Agora, por exemplo, estava nas
sombras de algumas poucas árvores que restaram da pracinha, é um lugar aconchegante,
ainda que não faça muito o seu gênero. Mas vai que de repente, um dia, ele tem um filho,
quem sabe?, poderá ter um apartamento por aqui e trazê-lo para passear junto às outras
crianças, quem sabe assim não mantém contato com as suas eventuais mães, aquelas jovens
que por ali se dão o trabalho de acompanhar o crescimento da prole, não são de se
desperdiçar, as mães e não a criançada. Riu-se da idéia, mas não há tempo para risos. Tinha
de ficar de olho nos prédios do outro lado da rua. Pelo menos não foi difícil achar o endereço, o
dossiê em mãos tornou o processo tremendamente referencial, tudo que teve de fazer foi saltar
numa estação de metrô um pouco afastada de onde ele mora, mas uma vez estando nas ruas
só precisou se informar numa padaria para descobrir que estava perto de seu destino, e aí se
foi pela própria inteligência.
O número do prédio é aquele, cinqüenta e um, esse que ele está fitando, não se
importando se alguém por perto se dá conta da maneira obcecada com que ele olha, posto que
não deve ser essa a postura de alguém de fato criminoso, isto é, se ele possui esses ares,
essa postura, acontece que ninguém dá a mínima. Depois ele aproveita para comprar o jornal
215
do dia, coisa que ele esqueceu de fazer, aí até consulta as novas estatísticas, se é que haverá
alguma, sobre o retorno à escuridão, esse seu filho pródigo e ingrato, apesar de que ele não
saiba dizer quem é realmente o ingrato, se ele próprio ou o livro, mas isso até que não faz uma
grande diferença. Pegou o cartão telefônico do bolso, não demorou muito para encontrá-lo,
amassado com um chiclete de menta e as chaves de casa. Se presume qual seja seu uso, já
que está defronte a um telefone público, e então disca o número que já sabe de cabeça. Toca,
toca, uma, duas, três vezes, e aí a voz atende.
– Alô – diz a voz.
– Sou eu.
– Oi, Alex – André o reconheceu.
– Estou na frente do prédio do sujeito.
– Já? E que pretende fazer?
– Vou entregar a carta, como o combinado. Deixo com o porteiro, não sei.
– Mas aí ele o vê.
– Não tem importância, não sabem quem sou, vão falar de um sujeito misterioso, sou eu.
– Então vá em frente, que depois acertamos os detalhes.
– Certo. Precisamos falar sobre lugares pra usarmos, isso é importante.
– Hoje à noite, no Schneider, pode ir?
– Por que está em falando em sussurros?
– Não é bem visto tratar de assuntos pessoais no escritório, Alex, então sejamos breves.
– Posso, estarei lá.
– Já pensou em algum nome?
– Não é só você que me pede por um – lembrou-se do outro.
– Como?
– Não, ainda não.
– Tudo bem – e pelo tempo que esperou devia estar esperando que alguém passasse. –
Acho que devíamos fazer de uma maneira melhor, que você seja o número um a ingressar na
sociedade, e já que até agora não sugeriu ninguém, que seja eu teu indicado, você o meu
patrono.
– Por quê?
– É justo, foi você quem teve a idéia.
– Se bem me lembro foi você quem a teve, André.
– Ela está em todos nós, mas você a disse, foi o precursor.
– Parece que será esse meu fardo. Então você é meu indicado.
– Sou. À noite no Schneider.
Alex pousou o telefone no auscultador no mesmo instante em que levou a outra mão ao
bolso. Foi o envelope o que ela trouxe dessa vez.

216
Se até o presente momento já foi dada alguma prova ou indício para afirmar que o seu
masoquismo é quase um esporo do seu pensamento, ou que o pensamento brota do seu
masoquismo diante de um mundo que às vezes acorda com vontade de persegui-lo, enfim, por
via das dúvidas está aí um novo indício do que já tem comprovado e sequer tenta esforçar-se
para contrariar. Chegou a um ponto em que a expectativa de dar com o adverso não se
cristalizava sequer num alvo definido, não se devia mais à carta, não partiria da existência da
sociedade ou do fato de ter reencontrado André, era simplesmente nada disso, ou podia ser
tudo de forma caótica e às soltas, o que importava é que estava ali e sempre lhe estará. Ora,
está tudo muito claro sobre essa perseguição cáustica na sua sombra, ainda que ele não saiba
exatamente o que é, sabe com que fim lhe veio.
Mas até que esteve entretido com a viagem noturna. A sina que o perseguiu durante todo o
dia já não muito lhe abatia. Acontece que choveu uma daquelas garoas de fim de tarde, isso dá
às ruas um aspecto espectral, clima de fim de enterro, conciliando ao fato de que as pessoas
parecem mesmo ter um grande medo de água. Logo estaria ele naquele impávido bolor
subindo uns sobre os outros quase que com os pés nas costas do próximo, espremendo-se
sobre as calçadas, isso porque nas ruas está lá o trânsito fazendo suas próprias travessuras. É
dentro dessa confusão gratuita que todos parecem se animar, mostrar ao que vieram, se
descuidar e revelar o cerne do caráter, aquilo que há de mais espontâneo e impaciente, porque
há alguma inspiração misteriosa por trás dessa confusão, mesmo desenvolvida nos suspiros
de fadiga que podem ser ouvidos a cada esquina, viela, faixa ou travessia. O cheiro dessa hora
do dia é especial, é aquele horário que ainda está começando a ser de fato a noite, que o
movimento extenuante das ruas se transmuta levemente nos movimentos lamuriosos dos lares,
quando resta o mal cheiro do peão que esteve sob o sol fervente do meio-dia, o cansaço atrás
dos olhos do engravatado, as maquiagens e os disfarces que podem derreter, que não há
quem sobreviva intocável a mais um dia de vida. Fosse tudo isso, Alex ainda estaria em paz.
Até pela demora da viagem, por ter tido que viajar de pé estando uma vez dentro do metrô,
estaria até disposto a ignorar o sujeito protuberante que por alguma crueldade do divertido
destino, e também pela perseguição adversa que lhe recai porque é assim e pronto, teve de se
posicionar contra suas costas, o embalando quase que num abraço para que todos tivessem
onde se segurar e proteger-se da inércia do trem, isso é horrível. Compro um carro assim que
sair daqui, ele pensava, sentia uma nova fungada ao pé-do-ouvido e desejava que as
propagandas, e anúncios, e folhetos e cartazes que apareciam volta e meia ou já impregnavam
o seu redor o absorvessem de tal maneira que se deixaria fascinar profundamente por um nada
de tempo, nos segundos seguintes se daria conta, que ótima coincidência, veja só, chegou
rapidamente o seu destino e nem tinha reparado. É de se supor que, uma vez tendo desejado,
o contrário o atendeu. Esfreguei uma lâmpada de merda ou é que me veio o gênio da guarda
mais azarado que podia. Mas não tem problema. Não é algo que o fará se lamentar até
amanhã. O humor é como a garoa de agora, molha um ou outro, arranca alguns resmungos
dos que nunca estão satisfeitos nem com sol, nem com chuva, depois se vai e logo se
esqueceu. Só não podia contar com uma coisa daquelas que estava prestes a acontecer.
Foi quando entrou pelo Schneider e tomou uma direção já prevista, onde André o estaria
esperando. Seu rosto foi todo a carranca dos traços grossos que não sabe mudar. André não
estava sozinho com a xícara de café, o acompanhava uma mulher, idéia estúpida a de chamar
Júlia. Não, não importam seus motivos, seu porquê, nada, esqueça, idéia estúpida, ponto final.
E iria ele mesmo naquela direção para dizer-lhe isso pessoalmente, cara a cara, com todas as
palavras, com os sobrolhos lhe dando o mais imbecil dos rostos. Olha só, que você empalidece
feito criança pega no flagra, mas esse flagrante só existe nos teus medos, de repente em teus
desejos, mas não é hora para filosofia, que seu desespero é a melhor companhia de agora. Iria
lá ele mesmo dizer-lhe aquelas coisas, olho no olho, seu estúpido!, você se faz de inocente
mas gosta de arruinar tudo, não é?, arruinar o quê?, ora, cale a boca, que ainda vem me fazer
perguntas óbvias, que não importa, e aí desceria a mão na cara de André. A coragem precisa
de motivação, e não teria uma para tanto ainda que a procure, desistiu de imediato. Engoliu
que é mais inteligente.
Ia fingir que estar em frente a eles nada significava. Sabia que ia ter de fingir muitas outras
coisas, precisava de sorte, mas, confiando um pouco mais em seus talentos, quem sabe?, a
dissimulação é um aprendizado constante, e mais que isso, é perícia, e aqui abre-se uma
ressalva para Alex gabar-se de que a possui, em tanta proporção que volta e meia ele se pega
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usando-a até quando não percebe ou não precisa, quando se é pego com as calças nas mãos
e o desespero então lhe salva com cinismo e teatralidade. Passo a passo aproximou-se,
desviou-se da senhora que levantava assim que ia passar por trás da sua cadeira, ainda teve
tempo de sussurrar desculpas, minha senhora, mesmo que não estivesse errado, mesmo que
depois vá odiar essa atitude acuada que se mantêm quando se é pego de surpresa. Parece ser
esse um ambiente sufocante, nos cobra e nos estimula a cobrar, o reflexo disso é temer
qualquer coisa que não se espere, como se aí houvesse uma forma de violência, como se
pudesse tudo nos machucar, nos cravam as unhas na pele e ainda nos desculpamos, pedimos
perdão talvez por não termos sangrado o bastante. É que vivemos num mundo de impressões
muito violentas. Pensou se não faria bem em ir se livrando da jaqueta, se não seria esse, como
foi em outra ocasião, o símbolo do desapego e simpatia. Podia falar alguma coisa
complementar, como do tipo, enfim consegui escapar da chuva lá fora, bem, olá, Júlia!, olá,
André!, que interessante que hoje a trouxe, hein? Mas não pôde, que estar diante do rosto dela
é a incapacidade de cauterizar uma obsessão, seja em qualquer gênero de situação, porque o
rosto dela estaria lhe convidando a coisas horríveis, ao mais baixo e ao mais nobre de si
mesmo, mesmo lhe sendo toda essa relação dialética simplesmente descritiva, essas coisas
maniqueístas não o agradam, mas se aplicam. É uma desses caras hipnotizantes, que se olha
e se perde ao refletir sobre o que ele mesmo estaria desejando agora, e é tentado a entendê-
la, qual seria a vontade por trás de cada movimento dela, se o cabelo está penteado por trás
da orelha é uma, se está preso em coque é outra, e nessa discrepância já pode haver o abismo
entre o amor incondicional e o ódio mais truculento, feito aqueles que nos fazem estar prestes
a esganar o pescoço de alguém em nossas mãos simplesmente porque não devia nos ter
irritado. E ainda são possíveis as combinações. O cabelo solto com o olhar cansado traz outras
diversas sensações, o meiosorriso com o cantinho da boca mais o cabelo preso em rabo, sim,
que nem desse jeito que está agora, com a bochechinha apoiada no braço, descansando,
repousando de seus próprios problemas, que nem desse jeito, jeito que traz coisas horríveis a
sua cabeça. A prudência o abandonava, não era mais como ver alguém com quem não tem
mais intimidades, não é como houvesse a distância que o faria zelar pela cautela nos tratos,
nas relações, nos gestos. A vontade que tinha era de jogá-la sobre a mesa, despi-la mesmo
que fosse aos berros, se preciso, que enfiasse um garfo na sua língua, a faria se calar e
aceitar, e ordenaria de uma forma tão aterrorizante que nada, nem ninguém, nem André teria
coragem de intervir, nada seria louco o bastante para impedi-lo, iria até o fim. Depois disso
estaria condenado e estupidamente aliviado. Tinha consciência disso, depois poderia até
mesmo morrer, que era para se livrar da vergonha, da desonra e desses conceitos que o
conduzem para esse destino frustrante, mas tolo seria aquele que diria posteriormente, diante
de seu corpo maculado, eis aí um homem que se arrependeu do que fez, que foi tomado pela
loucura e pagou maus preços. O segundo período pode ainda conter alguma coisa de verdade,
mas arrepender-se, não, o que ocorreria é o contrário. Poucas vezes poderia olhar para trás na
vida e se dizer, nunca estive tão completo.
Engoliu uma espécie de bolor que na garganta atravancava-lhe o ar. Se já o tivessem visto
não importava. Surgiu defronte.
– Boa noite – falou a André.
– Boa noite – André retribuiu o cumprimento.
– Olá – Júlia retribuiu o sorriso.
Até tirou o casaco quando se sentou. Tem mesmo os seus momentos de representação.
Restava o jeito simpático. Restava para si mesmo muito pouco.
– Como anda? – veio André.
– Bem, e vocês?
– Caminhando, como se deve – Júlia.
– Tudo bem. Entregou a carta? – veio André.
Levou alguns segundos para que respondesse, teve de relancear a figura da mulher, ela
estava bonita, mas não é isso que quer saber, quis ver se não há estranheza da pergunta de
André, e não.
– Sim, entreguei.
– Que tinha escrito? – continuou.
Ela só olha.
– Nada demais – não os encarou, leva as mãos ao bolso –, havia o chamado, algumas
linhas, coisa assim. Depois te mostro.
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– Júlia achou interessante a iniciativa.
– Fiquei curiosa, apenas – ela corrige.
– Eu e André andamos mesmo conversando bastante. Júlia, quer um cigarro?
– Eu não fumo.
– Mesmo? – o seu já está na boca, é de lei. – Juro que lembro de você não fumando mais
porque não tinha boca o bastante.
– É verdade – meiosorriu. – Parei faz alguns anos.
– Me sinto estático, é quase como uma punhalada no coração – acendeu.
– Conta para ela alguma coisa das nossas idéias, Alex – André.
– Pensei que já tivessem conversado – esticou o braço por sobre o banco.
– Não precisa me falar nada. Já vi pelo livro – ela.
– O leu? – aí sente um estranho prazer.
– Folheei – ele sabia que isso significava que sim.
Deve tê-lo devorado. E competido com a inteligência de lá a todo instante. E rido
abobalhada com um orgulho que não quis sentir.
– É?, que achou?
– É bastante interessante – falou sorrindo, e só as pessoas que estão certas do que falam
se usam de trejeitos assim. Não pessoas que apenas folheiam.
– É?, algum ponto que queira comentar?, que tenha gostado mais?
– Hum. Quando fala que os jornalistas são inúteis, papagaios de imitação.
– Não foi uma ofensa pessoal a você, claro, mas acho que isso me faz estar em débito,
devo me desculpar.
– Acredite, sem problemas, eu gostei, não estou sendo cínica – e sorria.
– Então estou lisonjeado – olhou para o outro lado e tragou.
Em algum momento de sua vida adquiriu esse vício de ser um pouco amargo com Júlia.
Parece mesmo que sempre será assim. Mas não fazia mal, era recíproco. Ela deve gostar.
– De onde tirou a inspiração pra fazer isso? – parecia estar querendo dizer muitas coisas
com essa pergunta, a cretina, ela o espreitava, analisava cada brecha do sistema, já estava
íntima o bastante para isso, para ter coragem de aproximar-se.
Porque era mais perigosa do que pensava.
– De onde? – deu-se de ombros. – Não sou poeta, não sei descrever bonitamente essas
coisas, eu acho que não precisava disso ou nada assim – mente –, é só a coisa que te vem na
cabeça, que pronto – coçou a testa.
– Mas então – André ainda está ali –, e aquelas coisas pendentes que tínhamos?
– Tínhamos? – olhava para um lado qualquer.
– Me disse sobre precisarmos de lugares, ou estou enganado?
– Oi?, como? – fingiu que não ouviu.
– Preste atenção – a fúria de André pode insinuar um entendimento profundo sobre o que
está ocorrendo. É melhor não subestimá-lo –, estou falando sobre lugares para nos
encontrarmos, para pormos em prática aquilo tudo, e...
– A sociedade de vocês tem um nome? – Júlia.
– Nome? – Alex. – Não, acho melhor manter o anonimato.
– Algo como clube dos desocupados, fraternidade frustrada, confraria da depressão.
Confere uma característica de unicidade, é elegante. Charmoso.
– Não queremos ser elegantes – e sorriu diabolicamente. – E nenhum nome poderia
sugerir ou descrever caras como nós – pausou poucos instantes. – Certo, André?
– Também, nenhum nome desses me agrada – respondeu.
– Pois é. E quanto a você, Júlia, participa conosco?
– Eu?, por quê? – ela quis disfarçar para que tomassem aquela pretensão como
brincadeira, mas aqui vale o que diz da brincadeira ter um fundo, nesse caso muito notável,
que já pertenceu à verdade e agora não se lembra mais.
– Renovar os ares, conhecer gente nova, fazer algo excitante.
– É? – e ri. – Como o quê?
– Já experimentou atirar ovo nas putas?, eu e André fazíamos há um tempo atrás, é das
coisas inesquecíveis.
– Não me lembre dessas coisas, Alex.
– Felizmente que esse tempo já se foi – Júlia. – Particularmente não me apraz. É tolinho.

219
– Então, que pouca criatividade. Eu digo que você pode ser livre, e você me pede por
idéias.
– Dissesse assim, com todas as palavras, que eu entenderia previamente – ela responde.
– Custa a ela admitir que tropeçou, André?
– Dificilmente.
– Não o ajude numa má imagem de mim, amor. Já se passou tanto tempo que ele pode se
convencer...
E essa cena que tem de presenciar, agora. Ela espreguiçando-se toda lânguida pelos
braços de André, que coisa decadente de se ver, havendo jeitos tão mais fáceis dela humilhá-
lo, como rir de sua cara, dizer o quão inútil e desocupado ele é, um jeito tão mais fácil dela se
exibir, que é claro ser o que ela quer, pisar no seu calo, fazer-lhe sentir qualquer dor que puder
infringir. Só falta derreter-se com os beijos, já isso ele não iria suportar, dará uns sopapos,
pegará pelo pescoço, falará que não é assim, seja lá o que estiver ela pensando.
– Podemos olhar no jornal – fingiu coçar a testa, está mesmo é tampando o rosto – por
lugares quaisquer, isso se um de nós não puder ceder a casa. O meu anfitrião não permitiria,
então não contem com a minha boa vontade, que eu logo me descarto.
– Lá em casa é muito pequeno – André respondeu.
– Alugamos um apartamento, então.
– Não, muito dinheiro – redargüiu, bebendo do café.
– Numa praça é que não dá pra ser, ou dá?
– Faz num lugar abandonado – veio Júlia.
– Como é?
– É só olhar em catálogos de áreas da prefeitura, por exemplo – ajeitava os cabelos – ou
de compra de imóveis. Tem uns que você sabe que ninguém mais quer, que foi deixado.
– Então, já que você tem tempo, procure no jornal – ele não podia se dar por ultrapassado.
– Não é preciso, posso sondar essas informações, que são fúteis, com contatos na
prefeitura. Tranqüilo.
Ela ganhou, Alex se retorceu.
– Bem, então parece já que temos a melhor das sugestões – e novamente a cena dos
braços se pegando, era só o que faltava.
– Mesmo assim, ainda temos que investigar, ver a coisa melhor etc.
– Mas escutem, vocês não têm algo melhor para investir o tempo, não? – ela.
– Você não precisa ser sempre tão cética, Júlia, que ao menos isso pode ter algo de
qualidade oculta, não sei, mas não temos nada a perder – é André que fala.
– Eu não sei se a confiança é virtude ou um luxo de poucos – Alex.
Ela contenta-se com a mera emissão de sorriso.
– Então, diga aí, em que devíamos investir nosso tão precioso tempo? – de novo Alex.
– Arte, cultura, solidariedade, crianças carentes, eu não sei.
Alex olhou para André com cara de que merda ela está falando?, e aí ele o procurou do
mesmo jeito, só restando entre os dois o momento certo para o riso que vem soar.
– Acho que, no fundo, o que vocês querem é matar o tempo, é tudo em prol de esgotá-lo.
Enfim, no final, vocês fazem o que quiserem – ela deu com os ombros.
– Fazer o que quiser, ela chegou exatamente no ponto da nossa questão, André.
– Percebo, Alex.
– Parem de agir como se estivessem contra mim, por favor? – meiosorri.
– Estamos, Júlia. É que estamos te persuadindo. É que você teve a honra de ser indicada
por André.
– Indicada.
– Pra ser parte da nossa sociedade.
– Ah, sim. E então?, como é? – sorri. – O que preciso fazer?
– Será um teste, ainda está por se decidir.
Perfeito, ela vai se deixando convencer pela idéia da diversão inocente, vê como ela sorri.
Esse pretexto é terrível, não há quem não se deixe levar, não há forma de persuasão mais
prazerosa.
– E quanto a meu primeiro indicado? – André destruiu o instante.
– É verdade – bufou Alex, dando as cinzas ao cinzeiro, dando a tosse para o ar. – Daqui a
uns dias você liga pra ele, é o tempo que ele tem de ler a carta e de comentar com alguém
próximo, isso porque eu escrevi nela algo do tipo, não fale com ninguém sobre essa carta – o
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cigarro novamente na boca. – Isso vai dar tempo pra ele pensar levemente no assunto. Aí,
quando você ligar, explica qual é o caso. Ele vai achar tanta besteira que pelo menos vai se
tranqüilizar, sabendo que a carta não é de nada grave, e é isso mesmo que vai falar para a
pessoa com quem comentou, que apenas esqueça, que era piada de mal gosto. Fazendo isso
é porque depois ele vai pensar melhor e aceitar.
– E então?
– E então depois eu os explico o resto – bocejou.
– E se ele não agir como você planejou – veio Júlia – e não contar o que André falou pra
ele no telefone para a tal pessoa próxima?, isso importa?
– Aí é porque ele terá ou muito ou nenhum interesse em aceitar, e vai ser apenas uma
questão de tempo até descobrirmos sua opção.
– Parece ter mesmo pensado em tudo... – ela, diabólica.
– É o fardo de quem não dorme pra fazer algo produtivo – bocejou uma vez mais.
Essa menina não muda, por mais que as coisas da superfície insistam em dizer que sim. É
claro que estava pensando em Júlia, é claro que o resto da noite se passaria com olhares
furtivos sobre a mesa, assim que fosse possível estaria a encarando de frente, podendo se
espalhar melhor em seus contornos, como se deitasse sobre eles, os acariciasse, e eis aí um
tipo de rosto que se apaga da memória facilmente, é assim para que se tenha a ânsia de olhá-
la novamente. Ainda assim não será sempre que poderá dirigi-la a palavra, que ele sabe
quando está sendo intrusivo, quando sua imagem está excedendo a aparência que ele quer
aparentar. Olhá-la nos olhos por muito tempo seria perder-se neles. Era um perigo. Ela o
ameaçava o tempo inteiro. Começava a pensar que existem pessoas que realmente nascem
para a malícia, ou se não é isso um objetivo é pelo menos um modo, o importante é que o tem
desde o berçário, uma maldição, dessas coisas cármicas, mas ou ela se rendeu ou converteu a
seu favor, que usa muito bem, está bem claro que não pode se queixar. É o tipo de momento
que o coloca para pensar, não é possível que só eu note essa aura terrível, esse lampejo dos
olhos que depois de já terem me olhado ainda deixam alguma coisa de pestilenta no ar, são
olhos que se vão mas continuam insinuando, e é angustiante porque é certo que há alguma
mensagem por trás deles, eles sempre querem dizer alguma coisa, seja uma forma de ameaça
invisível ou somente um truque dos assuntos da sedução. É, e depois ainda há a incerteza se
não foi isso só impressão, por mais que a certeza refute o tempo todo, persistente, dizendo
rapaz, atente a isso, que não é de se menosprezar, não é de se subestimar, cuidado que é o
tipo de coisa que anuncia que não vai demorar muito para engolir você. Pois é. Aí só resta o
cuidado, e aí uma vez mais vem a cara dela, a instaurar outra questão. Ela só devia querer lhe
pôr uma forma de temor, e por fim, depois de tanta complexidade interior, depois de um sorriso
escuso, ela conseguiu o que queria tão simplesmente, está satisfeita às custas dele, nada
mais. Em seguida ele a olha novamente, procurando por mais. E se lamenta por isso, mas não
pode se libertar sem pagar alguma coisa, então percebe ser vício que passou a ser vital.
Lembra-se de quando libertou-se dela, é claro que não podia apelar para vias que não
fossem sutis, é claro que se quis partir não teria como simplesmente jogar-se abruptamente
fora de seu círculo de coerção, não há como quebrar algo que te sorri meigamente implorando
por piedade, então o preço que pagou e as suas sutilezas estiveram naquela carta. Não havia
nela nada de enigmático. Só o que ele queria dizer, dentre as quais devem estar coisas que
todos sempre querem. Desabafou-se e despiu-se a si sem perder os rumos, mostrou-se,
seguro da idéia de que não haveria mais porque envergonhar-se e que não há tão mal assim
em se revelar, que o tempo que não a veria, esse que inicialmente ele planejava que fosse
muito, senão o próprio tempo que lhe restasse de dias sobre esse mundo, seria o tempo
suficiente para mudar-lhe tanto que não mais precisasse se constranger. Disse que era melhor
ficarem longe. Que nada os atrai tanto assim para mantê-los perto. Disse que sentia-se triste e
estava acostumado a desaparecer das vidas que escolhia levar. Ela foi a etapa de uma dessas
vidas, mas as coisas agora se complicavam e ele sempre foge, isso porque percebeu que a
vida é curta demais para perder tempo suportando-lhe os pesos, fugir é a alternativa mais
simples e mais leve. Chegava uma nova hora, então adeus. Não ia notar, mas, uma vez
chegada a hora de retornar, coisa que nunca lhe tinha acontecido, mas de fato chegou, olharia
para trás e diria, não me responsabilizo por esses atos, esse não sou mais eu. E isso
aconteceu. Ele dizia que estava tornando-se terrível conviver com alguém de quem não se
sabe o que esperar, e que por sua vez não é na imprevisibilidade dessa pessoa, de Júlia,
aonde reside esse seu estigma, não é dentro dela que estão as letras para seu epitáfio, mas na
221
sua própria confusão, porque por alguma razão desconhecida, Júlia – nada disso ele revelou,
mas de si para si sabe –, você foi eleita para despertar as coisas mais caóticas de Alex, foi feita
para acabar com o pouco juízo que ainda lhe resta, talvez por isso ele possa se lamentar, que
infeliz coincidência, um mundo tão gigantesco e com tantas pessoas, e logo a que personifica
meu inferno eu tenho de encontrar por estar vagando nas mesmas ruas que eu, e ainda assim
não consigo me convencer disso a tal ponto que me arrependa do dia em que a conheci, e por
não arrepender-me fico ainda pior, achando que há algo pendente, sabendo que me controla
de diversas outras formas, as quais não conheço e ainda adoro. Ou, por outro lado, um
estopim assim, um rosto que nos cause essas coisas terríveis pode até nos ser necessário. E
além de tudo é a parceira de seu amigo, que a ama. Alex teve a obrigação de protegê-la nem
que fosse de si. Desistia, parava, volvia, voltava, se olhava, a olhava, pensava meu deus, que
absurdo, e por instantes conseguia convencer-se do absurdo, mas quando a cabeça estivesse
pensando de novo, da maneira que age o pensar dos mais típicos, continuariam sendo essas
as sensações a lhe seguir, as dúvidas sem respostas, as divagações para encher o tempo,
para torcer que ele se arraste com mais piedade. Por fim retornava ao ponto de partida. Se um
dia tivesse se libertado não haveria porquê de seu retorno.
Mas a sua liberdade está muito além dela. Ela é apenas o impulso para ele ser o que
quiser.
Eis a hora de indignar-se. Aí atirava coisas ao escuro como se ordenasse, anda, devora a
tudo, apanha logo minha alma, que eu, que sempre me atenho tanto aos fenômenos cotidianos
e ao que meus olhos podem julgar, sou eu que sofro nas abstrações, mais do que sofre
qualquer filósofo, artista ou espiritualista, e sou eu que continuo vendo na escuridão uma
solução, e me é a melhor e única saída, ainda que só reste entre mim e a escuridão o medo de
me entregar, e assim eu já não sei para onde vou. Botando-se de peito aberto contra todas as
coisas assim, o que estava fazendo era pedir por uma resposta ao cenário estéril que o
persegue sempre que acorda, porque há este enfado constante que lhe pesa, queima-lhe o
estômago, dizendo que as coisas continuam como sempre as mesmas, e que para mudar isso
só uma lâmina contra a barriga, só mesmo remoer nas vísceras. E remoer as vísceras lhe é um
ritual bárbaro de leitura de sorte, tal como a liam nas entranhas dos bichos, ele lia nas suas
próprias. Ele viu primeiro Júlia. Foi ele que a viu antes. Não era justo que André a tivesse
tomado e levado a isso tão a sério. Poderia ser exatamente o golpe dessa ocasião antiga que
lhe forneceu essa dor, essa gastrite da qual não consegue se livrar. Que pelo menos ele, o
André, a tivesse usado e então deixado para ele, para que aí se desse conta de que não mais
a queria, de que não mais faria diferença pegar os restos do outro, mas ao menos saberia que
a podia possuir. Agora, no contrário, se agonia com a idéia do intocável e adora destruir coisas
intocáveis. Em algum momento de sua vida ele disse, e foi com sinceridade que o fez, que as
virtudes e os defeitos da pessoa podem se encaixar perfeitamente com os defeitos e as
virtudes do outro, deve ser esse o atrito que se trava entre quem se gosta, saber que foram
feitos um para o outro, e esses dois seriam André e Júlia, sim, ele confessou, eles são feitos
um para o outro, e ainda confirma que foi sincero, mas gostaria muito de se livrar de sua
honestidade, quitar suas dívidas e não dever nada.
E é então que dizia o bilhete, dadas tais causas acima ilustradas, mas todas sempre nas
entrelinhas – a fraqueza, a covardia, a incerteza, a confusão, a loucura, a moral, o medo,
simplesmente essa velha companhia –, me desculpe por tudo mais, me perdoe, que preciso a
alguém pedir perdão, ainda que não tenha a quem, ainda que assim eu faça a você. Perdão
por todas as vidas descartadas. E já supondo a absolvição que ele não disse que merecia ou
não, foi-se.
– Deixei uma carta pra você.
– Eu me lembro, Alex. Mas não dizia muita coisa.
– Eu disse que um dia ainda nos veríamos – ele esperava ter mentido.
– É verdade, mas depois de algum tempo não se sabe o que esperar.
– Talvez.
– E lembro que me pediu desculpas, também. Por quê?
– Por qualquer coisa – tossiu.
– Isso me parece um pouco depressivo.
Foi quando ela mostrou que estava disposta a esquecer. Foi quando, cruelmente, e ela
soube o que estava fazendo, deu-lhe a esperança de começar de novo.

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De dentro do carro ele vai vendo as ruas a passarem, as calçadas que não dizem nada, a
sujeira do aspecto indiferente que brilha de todas as coisas. Olhando para ela, logo ali, lá está
no banco do carona, rindo, sorrindo, olhando afora e aos cantos, sempre parece olhar com os
cantos. Vigia secretamente cada detalhe das mãos dela, até quando os pés se movem, ou o
instante em que ri com mais força, ela faz com que qualquer um se acabe só por tê-la feito
sorrir, que não é um prêmio fácil de se conquistar, que é muito comedida, ao menos não num
sorriso espontâneo desses, que é dura de se roer e de se averiguar a polpa. Imagina se ela
não estaria ciente do diabo que é. Cada vez que mais pensava sentia que não, ela não intuiria,
e mais sentia que ainda não sabia responder se de fato ela o é. Lembrou-se do importante
coadjuvante, o camarada que dirigia, se bem que não é muito inteligente pensar nele como
coadjuvante, quando ele mesmo era quem estava jogado ao lado exclusivo do banco de trás,
calado, taciturno, escondido até onde as feições o permitiam, o cabisbaixo que não tem forças
para reclamar de nada, mas se pudesse o faria de tudo, ainda que saiba que não é o tudo que
causa toda essa insurreição. Resolveu folhear outra vez o jornal que, também excluído, estava
ali junto a ele, de alguns grifos em vermelho, desenhos de círculos, e isso porque preferiu não
olhar o catálogo que o deram, que de tão grosso só de folhear as páginas já se cansa. Ia
ouvindo a conversa da frente, falam de colegas de trabalho, citam nomes cheios de
referenciais comuns, era a prova para perceber que era ele o coadjuvante, de tão subalterno
sorrirão sem quase olhá-lo, muitas poucas vezes o farão, nem ao menos se entristeciam por tê-
lo participando tão pouco das vidas que ali se contam, por ser um merda. O projeto de trabalho
dela, se anda bem, e ela diz que não é tão importante assim, mas conta dos elogios da
diretoria, e que ainda está pensando é mesmo nas férias, quem dera que saíssem logo. Ele
conta das infelicidades que vieram de brinde com a promoção, mas tudo bem, é coisa que faz
parte da vida. Se chamavam de amor como estivessem se chamando pelo nome. O rapaz gira
o volante, ele atrás acompanha cada volta, quem desse o carro fosse bem num poste, ou num
muro, que é para assegurar que ninguém vive, é que Alex gosta muito dos dois, só não pode
suportá-los juntos.
– Riscou o último endereço? – dado instante ela volveu para trás, após segundos de
silêncio, e perguntou. Isso significa que já havia usado bastante aquele que estava consigo ali
na frente, já pode arriscar-se na sobremesa.
– Risquei – e a sobremesa respondeu.
– Acho que perdemos o dia, mais um sem êxito. Isso já está nos custando muito –
intrometeu-se André.
– É, e da próxima vez eu não venho mais – ela debateu-se sobre o banco com ares de
criança entediada.
– Disse a mesma coisa na vez passada – Alex. – Deixasse que eu e André nos
virássemos.
– Eu vim pra acompanhar ele.
– Lembro mesmo dele ter pedido esse favor.
– Não discutam, ok? – André.
– Não pediu, mas, se não quisesse, que falasse antes, como se eu não estivesse ajudando
vocês, como se não tivesse ajudado, como se eu não estivesse fazendo praticamente tudo.
– Está esperando alguma recompensa, além da sociedade estúpida? – pôs nos termos que
julgou pertencerem a ela.
– Meu deus, e essa arrogância – reclamou. – Eu sempre soube que minha ajuda não ia ter
volta. E eu só fiz pra ajudar, por vocês. Antes vocês tivessem como me recompensar, como se
eu estivesse esperando por isso. Antes a sociedade estúpida pudesse me dar alguma coisa em
troca – e ela aproveitou-se para usar as coisas que pertenciam à ela mas não vieram de sua
boca.
– Senhora mártir cristã, o que você pode ter em troca é tudo, todos precisam se livrar de
alguma coisa.
– Grande coisa, muitas vezes se quer uma coisa e se precisa de outra completamente
diferente, tudo ao mesmo tempo.
– É?, e por quê?, dê um exemplo.
– Vocês dois poderiam parar? – André.
– Simples – ela deve ter secretamente gargalhado –, desejam-se muitas coisas, mas sabe-
se que são outras as mais oportunas.
– Custo-benefício – e circulou mais algumas linhas no jornal.
223
– Exatamente – ela boceja –, o querer não é nada sem custo-benefício.
– Agora é pra ser, que não estamos cogitando se é melhor abrir mão da vontade própria
pra se viver na tranqüilidade, apenas queremos ver um pouco de nós mesmos, e é isso aí, é
só.
– Achei ser o porquê de querermos todos tranqüilidade o que queriam descobrir.
– Eu não sei se quero isso. Mas tenho a certeza de que descobriremos a tudo por
coincidência – ia metendo a mão dentro do bolso.
– Sem fumaça de cigarro aqui dentro do carro, por favor – disse ela.
– Por favor, André, não fique parado. Faça alguma coisa. Ela é insuportável.
– Deixe-me dirigir, que aqui eu não conheço.
Alex estaria ele mesmo tratando de investigar essas coisas, pôr em andamento esse
assunto de achar um lugar onde deverá funcionar a sociedade, mas tem parecido mesmo algo
que demanda tempo e uma certa cautela administrativa, trabalhos de investigação,
comparação, interesse, sem contar que todos esses requerem um dispêndio de energias que
ele sozinho não possui. É claro que, dentro do universo da realização de um trabalho
cansativo, que se diga até mesmo infrutífero, é melhor que se o faça acompanhado, que aí,
além do seu peso cair sobre as costas de todos e não somente na sua própria, também há de
se distrair e de se importar um pouco menos do que o faria se estivesse só. O cansaço já se
apossa de Alex. Ele é assim, quando as coisas começam a enfadá-lo, age emburrado, como
criança que se fecha, conspira para contrariar todas as coisas assim que tiver a oportunidade,
não exatamente por querer que elas dêem errado. Perto de algumas pessoas, age de forma
com que não se reconhece, nesse caso os inteligentes presumem o porquê e os outros o
desprezam.
E aí recostava a cabeça sobre o vidro fechado, do lado de fora vê as manchas sujas do
anoitecer entristecer as ruas, a pichação e a sonolência brotando das esquinas, os entulhos
debulhados em rasgões no lixo, os bêbados que vão passando procurando uma alcova para
desmaiarem, a matilha dos vagabundos que aprenderam a conviver com essa paisagem
submundana, que parece mais cenário de conto de terror onde impera o abandono e os
olhares desconfiados que parecem esconder qualquer coisa importantíssima, de repente o
próprio terror explícito da cena seguinte etc. Alex raspa a barba com os dedinhos, fica
pensando sobre a credibilidade da sociedade, deve valer realmente a pena para André, que é
um sujeito cheio de frustrações e pendências consigo mesmo, com seus sonhos fracassados,
os quais não deve ter podido realizar durante toda a vida que escolheu ter, mas não presumiu
como ela o escolheria, sem querer ela o recepcionou e não teve mais saída. Não há outra
razão para ele estar mobilizado em dirigir por esses lugares desconhecidos, nessa recém-noite
caída que já está calada, e infelizmente com a companhia de Júlia, que ou não larga dele ou a
intenção é de não largar de ambos.
Aqui se vêem os círculos de hidrocor vermelho, é o que indica os locais que são boas
pedidas e deverão ser estudados, ainda que esteja ultrapassada a idéia de investir
substancialmente nisso, isto é, não cogita a possibilidade de interferir financeiramente, como
na forma de um aluguel, capital financeiro, assinatura de contratos, ainda que se tenha nesses
jornais preços bastante camaradas de umas pocilgas bem isoladas, que é o que importa, que
seja discreto e de preferência sem vizinhos para incomodarem. Alex tinha planos terríveis
crescendo no seu secreto imaginário, eram diversas teorias fragmentadas que iam se unindo e
pareciam formar por coincidência os quebra-cabeças mais macabros, não havia peça que se
unisse que não fosse para revelar alguma sordidez, uma dessas idéias que, ao instante que se
tem, vem junto a vontade de um risinho amargo, que se sorri intimamente e que se carrega
com um gosto de sadismo quase inocente e bastante genial. Riscou num xis os dados de um
casebre abandonado, dizia seu dossiê, espalhado em papéis sobre o banco, a enviar agente
municipal, no aguarde de relatórios. Era o suficiente para que desvalorizasse completamente
esse terreno, assim como o próximo que riscava, de um apartamento nos subúrbios que dispõe
do seguinte problema de pequenos casos de infiltração, e então ele já podia imaginar o que
aquilo realmente significava, a umidade causando aquele bolor medonho nas paredes, um
ambiente gotejante cheio de ratinhos a sair das trevas e a dar espiadelas nos assuntos dos
outros. Sem contar que, num apartamento, os problemas de vizinhança que teriam não
compensariam, e quanto a isso Alex tem lá sua experiência, para tanto basta relembrar as
estórias dos pensionatos em que eventualmente se meteu. E se, por um lado, isso o conferiu
alguma experiência de como persuadir e enrolar os patrõezinhos, por outro isso já o cansou,
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agora está velho e irritadiço, cansado e indisposto, busca algo que é muito próximo à sua
aposentadoria, e diga-se de passagem, é claro, que tem muito direito a ela, a um lugar onde
pudesse se sentar de pernas ao alto e finalmente parasitar as sensações que durante a sua
existência o tomaram como hospedeiro. Foi o que ele se disse, que era a hora de se vingar,
ainda que não saiba bem de quê. Circulou violentamente um dos anúncios, imagina estar
fazendo um rasgo de estilete no rosto de um estranho.
– Até agora a melhor pedida é aquele apartamento no décimo terceiro andar do prédio, que
é bem de frente ao parque – falou Júlia. – É um lugar ótimo, desvalorizou só por causa dos
assaltos ali perto, cheguei a fazer uma matéria sobre isso outro dia. Para nós, isso não importa
– concluiu ela.
– Há porteiro no edifício e movimento na rua – André. – Já são contras, temos de estar em
paz para fazermos a bagunça. Não acham? Com vizinhos não dá, mesmo.
– A questão é um cenário sugestivo – Alex.
– Acho que me perdi, devia ter entrado na direita lá atrás – André.
Pôs o jornal no colo uma vez mais, balançava as perninhas numa dança, e aí estudou a
melhor possibilidade que havia, a de um bar interditado, tendo o contra que achá-lo era
estupidamente difícil, tendo de passar por ruas sem iluminação, por buracos no asfalto
concentravam uma lama que mais parecia ser o suor nojento expelido pelas fendas do inferno
ou mesmo dos problemas de esgoto da cidade, até que conseguissem embrenhar o carro por
umas vielas estreitíssimas, das quais o mundo todo se esqueceu e os retrovisores vão
arranhando nas paredes, e por fim achar a rua abandonada, que fedia a lixo e a ponto de
extermínio, fedia a um lugar desses onde os mercenários despejam os cadáveres nos
matagais, e que a polícia nem mais se dá ao trabalho de procurar ninguém por lá, cumprindo
mais ou menos com os seguintes padrões, desapareceu?, perto dali?, é, meu caro familiar,
procure naqueles pântanos escuros da cidade, que é lá com certeza que achará estripado o
teu cônjuge, irmão, pai etc. Vendo por esse lado, não parece mesmo um lugar muito bacana de
se escolher, é esse o indício de que a opção feita será pelo menos absurdo, o menos
intolerável, ainda que haja noite à frente, e dias, se preciso, até que se convençam da loucura
a que estão se dedicando. Mas essa é uma impressão que não deixa de acompanhá-lo, da
loucura, e é incrível que haja nisso um senso de responsabilidade maior, uma gana que nos
faz, no caso faz a Alex, continuar a perseguir algo tão tacanho, filosoficamente como o sujeito
que tenta eternamente escapar pelos barrancos da caverna das sombras e ver a colorida luz
do sol, ou, mais filosoficamente ainda, como o cão que persegue o próprio rabo enquanto
mastiga o ar com dentadas sinistras. E não é essa uma estupidez canina, e sim a intuição de
que algo haverá de ganhar em meio aos pulos e grasnados. Seguiu com os olhos adiante.
Já é o sétimo dia de buscas, está emocionalmente em prantos, que não é um sujeito
acostumado a perseguir heroicamente muitas das coisas que quer. Antes o problema fosse
exatamente ele, mas não sua imaginação, e ora?, ele mesmo se perguntaria, qual a relação
entre a agonia da minha imaginação e agora estar com esse olho gordo, essa vista torta para
os cantos?, simples, que ele imagina que o aparente bem-estar e segurança de André viessem
de fontes que ele não podia dispor, desse manjar revigorante do qual não pode provar. Era só
supor essas coisas que pronto. O via na cama, e Júlia rastejando sobre ela, de camisola, com
este sorriso que até as santas sabem dar na hora adequada, dizendo melosamente coisas
como, amor, que aspecto de cansado é esse?, vem aqui, que te faço uma massagem, que sei
exatamente o que você precisa, coisa e tal. E é nesse coisa e tal e nos seus detalhes onde
reside o problema, é nisso que acarreta o gosto de se testar, pensa nessas coisas para provar
que é forte, mas sente a pulsação acelerando, sente o estômago se apertando e começar a
sacudir-se, a querer balançar a ponto de revirar-se em cambalhotas, e quando vê o que está
tentando fazer, conclui ser fugir do nervosismo que ele mesmo instaurou, escapar dos
pensamentos que ele mesmo articulou. Pronto, consegue esquecer. Respirou, e da respiração
vem a tosse, o pigarro melancólico de quem fuma, que o faz preocupar se não estaria
enfartando naquele instante.
– Confere o número – ouviu a voz de André soar quando metia as mãos no bolso em busca
do novo maço.
– É este – ninguém melhor para ajudá-lo que Júlia.
– Chegamos.
Alex bocejou e olhou pelos vidros de trás, a rua está vazia, ao menos essa tem lá seus
postes até essa altura em que estão, assim como é cercada de pequenos estabelecimentos
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comerciais, o que é sinal de que há movimento durante o dia, provavelmente almas penadas
durante a noite, nada mais. Foi sentindo o carro parar, e ia se encostando. Assim é melhor, que
enxergar em movimento para sua cegueira crescente é muito pior. Mas teve de franzir os olhos
para deixá-los visitar o deserto escuro que se ergue mais adentro da calçada, é que ela faz
uma divisa com uma pequena cerca de grades, demarcava o território de algum lugar, deve ser
o estacionamento onde preenchem as vagas os panfletos velhos e lembranças de qualquer
coisa, ali, onde a civilização se arruinou.
– Parece um lugar aberto, não há nada – murmurou Júlia, olhava para trás, a medrosa já
estava preocupada com o vazio.
– Deve haver mais para dentro, melhor conferir – Alex só falou para se opor.
O celular de alguém tocou, numa dessas campainhas que se ouvem e nos fazem
perguntar, será que o sujeito teve a escolha de configurar uma merda destas?, mas enfim,
pelos movimentos afoitos de André a apalpar os próprios bolsos enquanto ergue o traseiro do
banco, logo descobre-se de quem era, ao que ele o tomou e olhou no visor das identificações
de chamadas.
– É assunto do escritório, era só o que me faltava – choramingou. – Alô – e atendeu.
Alex prefere deixar cada coisa em seu lugar, abriu a porta do carro e deixou o mestre do
celular a cuidar de seus magistérios, e que ele cuide de seus próprios. Foi-se para a calçada,
olhou mais uma vez na direção das vias da rua, era muito grande, e quanto mais pudesse ver,
melhor, que as esquinas por perto de alguma forma simbolizam perigo, nunca se sabe o que
pode virar delas etc, e principalmente ao se instituir pensamentos criminosos, é que se faz
entender a si mesmo como marginalizado, no crime, crê-se que só entende a si mesmo frente
ao perigo, não tem causas iminentes para esse mas dispõe e simpatiza da agonia dos ladrões,
da criança enxotada, do assassino que acidentalmente chorou, dos oprimidos, do preso a
receber uns chutes, da moça que nos quer furar com coisa pontiaguda, do viciado etc. É
também ridiculamente excitante, mas esse é o lado que ele mesmo reconhece como infantil, e
perdoai-o, aqueles que podem lançar a primeira pedra porque não se descobrem ao se excitar,
com ele é assim que ocorre. Perdoai-o todos aqueles que um dia dirão, sou quem eu sou sem
me experimentar. Júlia também saiu do carro. E veio para segui-lo.
Ele foi dirigir-se às grades do cercado, olhou de relance para trás e não foi muito
comovente ou instigante ver o rosto de André bradando qualquer coisa por trás dos vidros,
certamente tomando suas decisões importantes, a soltar perdigotos no volante enquanto define
o destino do planeta em algum caso sem muita importância. Já ver Júlia, encolhida em suas
roupas e vindo em sua direção, era outra coisa.
– Só há estacionamento aqui, Alex – ela disse, pôs as mãozinhas na haste da grade,
retirando-as ao constatar que está fria.
– Não, há coisa mais para dentro, veja.
Mas era ele quem ela olhava, e ele notou. Ela estava se aproveitando do momento para
renovar as formas do controle que detinha.
– O que foi? – precisou ser um pouco rude.
– Nada – ela acatou.
O silêncio fez com que ficassem olhando as trevas por alguns segundos.
– Esse é o endereço de um teatro que fechou – Júlia falou.
– Parece um bom lugar. Pelo menos a julgar pelo clima em volta.
– Um lugar pra muitas possibilidades – ela teve de ser enigmática.
E ele teve de olhá-la perguntando o que dissera, ainda sabendo que não devia. Ela nada
respondeu, deixou que as meias-palavras crepitassem em freqüências distintas na mente do
único ouvinte, a nova tormenta seria divagar sobre seus significados e chegar a alguns
terríveis, dos quais não pode e não quer ter certeza. Deixa estar. Coisas da vida.
Ouviu a porta do carro abrir-se novamente, André vinha saindo com alguns resmungos.
– Como se eu estivesse em casa e tivesse de resolver todas as coisas no momento que
bem entendem – resmungou num tom bruto –, não, não quero saber, que me esperem chegar
no escritório pela manhã, que já estou fazendo mais do que devia. Sim, certo. Até – e desligou.
– Não me diga que precisa ir embora? – e Alex, ao perguntar, ainda que não tenha
exatamente um porquê concreto, torce para que a resposta seja que sim, que fique aí a
vontade com minha noiva, eis aí o porquê concreto.
– Não. Podemos continuar o que viemos fazer.
Contentou-se.
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– Teremos de pular a grade, e se alguém vê?, não é ilegal? – veio Júlia.
– Grande merda – e Alex meteu as mãos nos bolsos. – Mas não será preciso – e apontou a
direção –, que por ali não está fechado.
E de fato havia lá a passagem sem cadeados, sem trancas, sem necessidade para tanto. É
mesmo melhor que se deixe cada um com seus ofícios, e mesmo que não haja graduação
aparente para tanto, é este um que pertence a Alex. E aí, por isso a iniciativa, por isso era ele
agora a andar com passos pesados e o queixo fincado no peito, como se espantasse o frio, e
entrava agora no velho estacionamento, as sombras dos pequenos prédios lá do outro lado
caíam sobre sua cabeça, como estar abraçado por uma capa escura, uma nojenta copa de
árvore, a cidade velando seus passos, tornando-se invisível a todos os olhos, podendo, mais
que nunca, fazer o que queria, fingir-se ser tudo que não é, nada menos. O pátio logo ia
tornando-se melhor visto, e olhando para trás caminhavam os dois outros vultos consigo.
Averiguou se na rua ainda não passava ninguém, e de fato não. Ela era iluminada por uma luz
amarela. Esse tipo de iluminação suja ainda mais a cor das coisas. Certo, aí deu uma passada
sobre cartazes velhos, jornais rasgados, esses papelões que um dia podem ter servido de
morada para um nômade mendigo que teve a sorte que eles têm agora de encontrar sabe-se lá
o quê, e é mesmo fascinante, ainda que não de muita interessante observação, que o mesmo
objeto ou lar possa servir para interesses completamente diferentes, e pode ser esse um
argumento muito humano e encantador sobre a heterogeneidade, ainda que Alex o pense por
alto e isso lhe provoque apenas um bocejo rugido, muito honesto mas muito insensível. E o
trabalho a realizar ali será simples. Olhar com pretenso metodismo, averiguar e debater com os
colegas rapidamente alguns critérios, geralmente não há mesmo espaço para muitas
controvérsias, e nada até agora conseguiu espaço para uma unanimidade. Essa vez não
deverá ser tão diferente, talvez a penúltima da noite, ou a última, quem sabe a emergência de
André, se é que é emergência, já não agrava um pouco a conjuntura, mesmo que seja ao
retirar o espírito mítico que os incita a busca, instaurando um pouco da crueza opressiva da
pressa, das coisas da vida, coisas que cobram os horários e anulam as melhores fantasias e
os sonhos onde somos tudo que queremos ser.
Viu as coisas a seguir sem qualquer espetáculo maravilhoso com que se descrevem as
grandes descobertas, tanto porquê não é uma, sem qualquer sensação de coisas fulminando
as retinas, nada, a não ser a sensação de vazio que aleija até seus maiores feitos. Ergueram-
se – esses detalhes seguintes que veria – no escuro do semblante das coisas que foram
assassinadas por conveniência, pela fraqueza nos joelhos de quando o tempo passa. Era uma
dessas coisas que só apresentam vidas quando com um propósito, com certa utilidade de
consumo, e agora nada mais daria vida àquelas portas entulhadas do teatro, berço de ratos,
aranhas, de trapos, onde não só as portas estavam lá todas bloqueadas da forma de quando
se interdita algum lugar, mas as janelas e o próprio átrio também têm suas caretas alvejadas
de muitos pregos e muitas hastes de madeira se entrecruzando na geometria aleatória das
coisas toscas, com faixas de isolamento e um cheiro de coisa morta, de poeira molhada. Por ali
não havia como entrar, foi a primeira coisa que concluiu, ou não tem ou não vale a pena, eis
sua análise muito apurada, como por exemplo a que diria que lugar maravilhoso, mas
alimentava a idéia persuasiva de já dar aquilo como encerrado, a não ser que seja o caso de
alguém dizer, o que deve ser muito improvável que aconteça, que ainda há qualquer coisa a
ser feita. – Que tem aí? – perguntou Alex, que viu André se metendo na direção dos entulhos,
mais à frente.
– São os vidros das bilheterias – e se forçou a olhar –, todos embaçados, que quase não
vejo nada dentro – a seguir tossiu. – É, só há poeira – afastou uns panos que cobriam as
vidraças –, é, só poeira...
– Nada? – recuou alguns passos, curvado. – E a porta? Olhou a porta?
– Não tem nem como eu chegar lá – e abanou o ar com as mãos, desbravou heroicamente
a fumaceira dos destroços. – Tá tudo trancado, arrebentar não vale à pena, é melhor deixar pra
lá.
– Pena. Parecia, à primeira vista... – e então não conclui.
– Mas olhem isso aqui – o interrompeu. – Vejam isso, por aqui – dizia a voz de Júlia.
Teve naturalmente a atenção atraída. A viu lá, metida em áreas mais escuras, além do
átrio abobadado onde se têm os entulhos aglomerados, mas se ela estiver mesmo a entrar
num beco, que é o que parece à primeira vista, deve estar mais submetida à sujeira que eles
ali. Mas foi andando, chegou àquela direção. Olhou o que Júlia desvelava. Viu o escuro do
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gueto. Então a passagem. Franziu o sobrolho com a idéia de que a sua luz do fim do túnel era
esse corredor asfixiante. Opressivo como não deveria. E estranhamente foi chamado, que se
arrebatou não se sabe porquê, mas com a mão sobre o rosto para conservar o ar saltou uma
só vez à caminhada rápida. Constatou que detinha o poder quando não viu eles lhe seguindo.
E isso deu-lhe ainda mais vontade.
Com o corpo afastou os segredos que recheavam a passagem. Lançaram-se em sua visão
os sacos de lixo, sobre uma lata um gato preto arrepiou-se, gritou e foi embora. As paredes
vinham se fechando ainda mais, e muito escorregava sobre ela, é essa a placenta de onde
estava, a viscosidade dos órgãos do mundo, que nunca se viu mais escura, senão neste lugar.
O fim das coisas estava oculto logo ali, era o retorno à escuridão. O fim do túnel.
Lá estava a porta o esperando, as trancas rebentadas, quase secreta, essa porta dos
fundos. A olhou, percebia sua mensagem.
Entendia previamente que esse era o lugar.
Estranhíssimo, porém perfeito, é o que lhe corria nas idéias e vinha diante dos olhos,
parado diante das poeiras flutuantes da ribalta escura, sobre o palco ele era o protagonista de
qualquer roteiro que fosse, é que qualquer um cairia bem, ele mesmo passearia entre todas as
histórias, tinha em si a mutabilidade de tudo que fosse. Era o eixo principal, o centro do drama.
O personagem do espetáculo cósmico que todos devem viver. Rompiam-se as cortinas
vermelhas, abertas como no dia de um espetáculo que todos se esqueceram de vir assistir. Só
restava uma expectativa já morta, fidedigna a bocejos e a olheiras, a falência que se impregna
nos ambientes desolados, e se olhasse com atenção talvez até pudesse ver o esqueleto inerte
de um que morreu esperando que ali, passando as eras, ocorresse um espetáculo à altura do
que Alex tinha em mente, que destrincharia a tudo, mudaria os confins do teatro e da
civilização para sempre. Estranhíssimo, é o que ele pensa com sorriso irônico nos lábios, e
para que a imaginação aflore basta que se dê apenas um passo, talvez dois e aí já caia no
abismo de suas vaguezas, vala onde aprenderia a sobreviver, se é que já não tem aprendido,
não é mesmo, meu bom Alex?, pois é, ele responde.
Sozinho, no escuro, eis o momento inicial que sofre indícios significantes de sua soberania,
seu passado e sonhos estão ungidos num só, que é ele, esse vulto astuto, de jeito cruel, agora
como o erguer de um deus, quando levanta assim o queixo, e quando pensa, e sente as
disposições que agora está sentindo, e tem a certeza de que está começando a cometer um
parricídio. Toda história começa de um parricídio, e mais tarde ele amadurece esse
pensamento, que agora está em transe, está olhando fixo as cadeiras da platéia, imaginando
as tantas sombras que poderiam estar ali o vendo, ocupando os entulhos, dando sentido ao
abandono, que o abandono por si só não tem sentido real, é a extração de todas as
esperanças de um dia. Ele quer dar esperança. Ele move-se pelo palco. Ele coloca as mãos no
bolso, dá uma passada para frente e para traz, ri quando nota ter feito uma pose, e aí já
imagina a atenção daquela multidão silente, onde um suspiro comprometeria a mística, um
silvado entre os dentes já seria razão para recriminação, porque naquele instante todos
querem ouvi-lo. Ele ri de novo, nota ter assumido posição muito parecida a de um imperador,
ainda que o tenha acompanhado uma modéstia orgulhosa, dessas que dizem mais ou menos
assim, ah, que é isso, muito lisonjeiro. Era bom e nobre o suficiente para se esquivar desses
elogios. Bom, nobre e ridículo. Imaginou lucidamente muitas coisas, as luzes da ribalta
subitamente acendendo-se, seu rosto clareado, as cortinas flamulantes e o furor da gente
ensandecida por qualquer motivo, que tudo que ele menos precisava agora era uma razão.
Tinha achado o seu perfeito esconderijo, a vida nunca ali iria encontrá-lo.
Não havia porquê alguém querer entrar nesse lugar. Está sujo, úmido, a essa altura refúgio
de baratas, ratos, escorpiões, já que se tem tanto resto velho de madeira, ou bichos piores da
imaginação das crianças. Começou a temer a presença de mendigos. Mas pelo silêncio
aterrorizante das trevas não devia ter aqui uma vivalma, e claro que isso não é de se estranhar,
Alex. Se houvesse algum intruso em seu teatro o expulsaria a pontapés. Era o lugar perfeito,
ninguém nunca iria achá-lo, para isso também eram convenientes as portas lacradas lá
defronte, que aos interessados em atingir os segredos desse submundo clandestino só restava
o único caminho dos becos, escuros e feios, desagradáveis, mas que oferecem resultado, que
é no caso a porta para os bastidores, onde se cruza mais um labirinto que anuncia
repetidamente a idéia de estarem entrando nas ruínas de um lugar abandonado e perdido da
memória faz seus séculos, mas só ao se cruzar as curvas sinuosas de onde ficam os contra-
regras e os fantasmas das óperas é que se pode alcançar as coxias, onde se vêem os restos
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de cenários antigos, as vidas que se reproduziram ali em cima e seus devidos elementos,
universos destruídos que também poderá usar para suas brincadeiras. Aí vem o palco, as
descidas para a platéia, enfim, o caminho inverso que julgaria ter um dia que realizar, ainda
que não tenha por algum acaso pensado muito em qualquer ocasião a respeito disso, enfim, vê
tudo o que precisa. Não tem dúvidas desde já. Gargalhou internamente, era um escárnio e uma
afronta contra todos seus inimigos imaginários, e sentiu-se protegido, faria o que quisesse. A
segurança esvaiu-se com as vozes da coxia.
Eram seus outros convidados que chegavam, julgava estar ouvindo eles falarem qualquer
coisa, embrenhados e provavelmente – deus queira, deus queira que sim – perdidos nas
curvas dos bastidores. Não responderia ao chamados e depois fingiria que não ouvia, que a
acústica dali não é muito boa, e em movimento de recuo quase involuntário meteu as mãos no
bolso e encolheu o peito, na esperança de estar camuflado nas trevas, sabendo que aquele
lugar lhe fazia bem, pensa que devia ter feito o esforço de sair na procura sozinho. Adotou
postura mais relaxada, da coxia despontaram os outros.
– Enxerga? – soou mais alta a voz de André, e para Alex a sensação de já ter se
acostumado ao escuro era gratificante, enquanto os via tateando pateticamente pelo caminho,
em resposta sentia-se invisível.
Não há melhor sensação que poder tornar-se invisível.
– Eu não vejo nada – ela respondeu-lhe em sussurro, é o tipo de voz que já vem temendo
o que está prestes a encontrar, Júlia tem uma constituição psicológica de medo do escuro.
– Olá – ele não pode conter-se, riu.
– Alex, onde você está? – e o camarada franziu o sobrolho na direção da voz.
– Com o tempo a tua vista acostuma.
E foi o que aconteceu, começando por terem começado a identificar os vultos uns dos
outros, proporcional ao desagrado crescente de Alex, que ia tendo a sua sensação original
cada vez mais minguante, a vantagem que possuía agora se esvaía, e não a tendo a níveis tão
estapafúrdios, que seria besteira considerar que conseguiria manter, restava a ele se apegar a
cantos onde era invisível e talvez sempre será, na maioria de seus pensamentos. A intimidade
que desconhece em si é a única coisa que lhe resta, que todo o resto pode ser percebido por
algum astuto de fora, seja por freqüência da observação, seja por outras formas de esperteza,
de alguma forma podem se comprometer uns aos outros, e ainda que esse não seja um
problema realmente grave, o de ser, por exemplo, decifrado e conhecido, ele talvez carregue
algum trauma, que essa idéia o angustia, parece que se ocorresse ele se perderia, não restaria
mais fundamentos, você me desbravou, diria, e morreria. Outras vezes tem a impressão de que
não importa o quanto se mostre, sempre será mais profundo que aquilo. É um pensamento
conciliador, ainda que mais uma vez angustiante por outro aspecto, o de que ele nunca vai ter
ciência de si mesmo, e apesar disso ainda causar-lhe um pouco de angústia é algo que
desistiu de tentar. Então é melhor que não suscite essa polêmica, que a deixa para lá. O que
tem a fazer é se concentrar às vozes de Júlia e André, seus companheiros de sociedade e
liberdade, ainda que não saibam provavelmente nenhum deles o que isso significa, e que
possa ser esse título um lugar-comum, que com o tempo Alex pessoalmente há de encarregar
de quebrar.
Agora eles estão murmurando coisas entre si, escute, Júlia parece reclamar do cheiro, o
rapaz de que quase tropeçou no escuro, a Alex resta um suspiro consternado e um leve estalar
da língua no céu-da-boca, que diz tsc inaudivelmente e se cala. Veja como é surpreendente
esse palco, cuidado, que eu quase caio na ribalta, melhor seria se os holofotes estivessem
todos acesos, talvez haja um jeito de acendê-los lá atrás, não?, ou uma câmara lá em cima, do
outro lado, mas isso é teatro, não cinema, os murmúrios dizem essas coisas, escorregavam
movimentando a poeira e se censuravam, calando-se de sufoco. Agora era Alex o espectador,
e que seguia os seus passos mas não deixava de analisar as fileiras entre aquelas cadeiras –
agora se centrava um pouco mais na realidade, o problema que seria arrumá-las, problema
não realmente desanimador – os camarotes que ficam num nível superior das cadeiras dos que
pagaram menos, para que possam esses favorecidos olharem melhor o palco etc. Gosto daqui,
pensou num suspiro de emoção cansada, ao mesmo tempo em que ouviu sua prerrogativa
atendida.
– Gostei – disse Júlia.
Aí viu uma iluminação azulada brilhar, provinha de um desses aparelhos de luz própria,
provavelmente o celular de André. Ele moveu-o pelo chão, não antes de infelizmente fazer sua
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cara se tornar visível fora da redoma do escuro, e agora ia julgar mais ou menos onde estava
pisando. Deu com um pedaço restante de cenário, o plástico deixado ali no meio para o canto
do palco, pregado numa das coxias de forma que quase anuncia para quem vê a entrada
nesse tal lugar, deve de ser o resto de uma cidade cenográfica, já que diz Verona,
provavelmente para ilustrar um arco do tipo, bem-vindo à Verona, ainda que nessa cidade
provavelmente não se tenha um arco e muito menos essa hospitalidade, mas estamos num
teatro e aqui valem as ilusões.
– Verona – leu André.
– É o nome daqui? – escarninho de Alex.
– Provavelmente foi alguma peça de Shakespeare que encenaram – Júlia.
Deve haver nesse exemplo alguma coisa romântica, erótica, perversa e oculta, porém
notável à mente maliciosa e vivaz de Alex, melhor não divagar, que pode estar indo longe
demais. Agora eles estão dizendo entre si que é mesmo um lugar e tanto, é discreto, é escuro,
é sentencioso e sugestivo, simbólico e prático, agressivo e clandestino, porém nada há que os
diga ilegítimos, então não há contras capazes de se opor. Enquanto se dizem essas coisas,
Alex desce pelas escadinhas, com cuidado para não cair, e ruma para os cantos da platéia,
olha para onde estava que é para entender a percepção dos que assistem cá de baixo, e agora
analisa a decadência das cortinas, o estado do palanque, o estofado das poltronas, tudo mais,
e tudo isso exerce um papel de coerção fascinante, um amor contagiante que o toma, que o
envolve, que o faz sentir uma torrente de coisas vívidas, e que se tornam ainda mais vívidas
por não serem vistas, por estar escuro, e nessas trevas – não entende mais porque o conceito
de trevas é desprezado por todos nós – sente-se que vai se tornar o homem que quiser.
– Declaro aberto o retorno à escuridão – ele então ri.
Os outros dois pararam o que estavam fazendo e o ouviram.
– É então assim no fim das contas que vai batizar a sociedade? – Júlia.
– Não, é assim que se chama o que fazemos, retornamos à escuridão, é nosso princípio.
– Então está decidido, será esse o lugar – André quis possuir alguma voz de comando. – E
agora? – mas essas coisas o fizeram vacilar.
– Por mim, e agora nada – respondeu erguendo as mãos do bolso e jogando-se de costas
contra o escuro, que acabou o amparando no acolchoado da poltrona –, não preciso nem sair
daqui.
– E quanto aos indicados? – André de novo.
– Sim, é verdade, já é hora de ligar para o teu.
– Também quero indicar alguém – Júlia.
– Quem?
– Ainda não sei, mas verei o que posso fazer. Alguém do trabalho, como eu disse.
André discava números em seu celular.
– Te dou um convite, e você precisa deixar furtivamente, mas ouça bem, furtivamente, na
portaria ou correio de quem vai receber, ou no armário, na pasta, tanto faz, e precisa ser uma
pessoa interessante, que você saiba... – Alex falava, e pára – André, o que foi?
– Estou já ligando para meu indicado, o que digo?
– Você faz de repente e ainda tenho de saber?
– Vamos lá, dê-me idéias, ou falo o que bem entender – pausou. – Explico a ele?
– Explique – respondeu-lhe impetuosamente –, e dê-lhe o seguinte endereço, marque para
daqui a uma semana.
– O endereço?, daqui?
– Não, não. Eu vou lhe dizer e você passa a ele, e logo mais entenderá.
– O telefone está chamando – desceu em passos rápidos a escada e sentou-se numa
poltrona.
Júlia, encolhida, os observava logo a frente. Por um instante predominou o silêncio. Logo
acabou. Os olhos de André se abriram quase nada, do jeito de quem ouve alguma coisa.
– Alô – e respondeu.
Começaria o seu monólogo, para todos os efeitos é essa a sua conversa com o alguém do
outro lado da linha.
– Sou eu, André – falou com firmeza admirável, até que fingia bem, ao menos é bem
treinado, e fê-lo olhando a Alex, indicava alguma coisa, certo que era o sujeito que buscavam.
– Recebeu o convite, eu presumo – ainda mantinha um tom absorto.

230
– André, o rapaz da universidade, há muito tempo estudamos juntos, eu era teu veterano, e
fui um dos porta-vozes de nossa revolução, se é que sonhos se chamam assim. Estou certo
que não se esqueceu. Sim, eu mesmo.
– Sim, fui eu quem a mandei.
– Não, essa não é uma brincadeira, logo saberá por quê.
– Sabíamos que ia ignorar a carta um tempo depois, nem por isso ia esquecê-la, tanto é
que fala bem de seus detalhes.
– Por que falei no plural?, por que outra razão seria? Não se trata apenas de mim, ainda
que tenha sido por mim que você foi indicado. Você diz respeito a mim.
– Sim, isso mesmo, indicado a isso, é um novo horizonte. Estranho?, certo, mas poderá ter
as suas respostas se quiser.
– Garantias? Não, risco.
– Como?, deverá ir daqui a uma semana no seguinte endereço, que já te passo, será na
seguinte esquina, após a seguinte avenida, que verá o que precisa ver. Anote.
Essa noite Alex chegou em casa e sentiu que agora sim podia finalmente morrer quando
desabou sobre o leito.
– Você conseguiu – lhe disse o outro saindo de debaixo da cama.
– Foi – suspirou profundamente e dormiu.

231
Alex volta ao mais recentíssimo dos presentes com todo o lixo entulhado que ele é.
O que é a dor de cabeça a se tornar constante?, é inteligente que passe a não ser mais
vista como dor, que a dor é uma comparação, uma nódoa a agoniá-lo diante de algo que ainda
estaria são. Algo estaria em paz, a dor é o detalhe que está errado. Ocorre que a sua dor
eterna não pode mais ser dor, acostumou-se e aprendeu-se a não percebê-la, ainda que, com
ousadia de alguma metafísica, ele possa se dizer que é, meu caro, isso que você está sentindo
é uma puta de uma enxaqueca. É também por isso que não há felicidade sem tristeza, ao
menos não dentre as coisas claras, que de repente os ingênuos têm tudo isso mas não se dão
conta nem dos afagos nem das agruras que comportam. Mas esse raciocínio vai gerar outras
argüições sobre só existir de si para si o que de fato se sinta de si para si, não havendo, assim,
um feliz inconsciente, porque ou se sabe que se está feliz, ou não se está e pronto, portanto
não será o tu a definir o que há em mim, e eu não sei o que fazer ou sou quando vou me
tornando uma grande dor minha.
Ele vai um pouco mais além e chega à conclusão de que o pensamento é uma forte
enxaqueca com a qual se acostumou, portanto é a enxaqueca um pensamento com o qual
ainda não consentiu. É essa coisa instintiva, esse impulso que o faz vir à vida, à luz, mudar
através de processos traumáticos, como no parto que lhe deu ao mundo, como quando foi
arrancado da tranqüilidade idílica só porque alguém teve o capricho de escolher ter um filho,
que é para preencher a própria vida, que é para cuidar e observar a complexidade gradativa da
coisinha miúda, como quem se impressiona com um novo bichinho e, se for pensar assim, dar
a vida a alguém é uma das coisas mais egoístas toleradas por todos, já se inicia no princípio de
ignorar as escolhas do outro, rejeitar reconhecê-lo como portador supremo de suas próprias e
íntimas vontades, ainda que isso se dê pelo simples fato de, ora, não haver ainda nenhuma
vontade a existir, não existir ainda o prematuro ranhento, o come-leite, então acontece que dá-
se a vida para algo que nem existia, e portanto não pôde escolher.
É que os vivos gostam muito de germinar o nada com suas existências, com a ânima,
trazendo novos seres desse vazio milenar. Pretendem pirraçar a mortalidade, ocorre que a
mortalidade não ri de volta, seja porque não tem humor ou é que já perdeu a boca, então o vivo
está apenas a dividir sua agonia com o que antes nem havia. Estava um pouco aborrecido com
tudo isso por subitamente não querer ter mais alma, deu-lhe uma vontade arrebatadora de não
conhecer essa dor de cabeça, de não ter de tolerá-la pulsando na testa, que pouco a pouco
aquilo está fazendo algo que ele nunca antes julgou ser possível, isto é, transcendendo os
limites do seu cansaço e o pondo cada vez mais diante da figura de um reflexo no espelho
onde os ossos foram roídos, deram-lhe marteladas nos joelhos, a cavidade dos olhos a
parecerem uma cova doente, o hálito de doente terminal.
Dia menos dia ia morrer, não podia fugir, nem dormindo ou fugindo até que não mais
agüentasse, uma hora terá de sentir uma dor final, e então o sono involuntário. Escondia por
dentro dos bolsos um tique nervoso que começou a criar com os dedos, ficava-os raspando
nas bordas, ia e vinha e eventualmente parava nas coisas que dentro carrega, mas olha que
não é isso algo digno de se dar muita atenção, também é discreto, que no rosto o gritante se
concentra. Não deve dormir desde a segunda, isso pelos olhos amarelos. E as atenções vão
passando rápido, de semblante inseguro e rastejante pelos cantos, nadando no raso. É só a
ansiedade, e não um mal que possa soar pior, que o tiraniza, que não o deixa apreciar nada,
nem viver de deslumbramento ou encantamento místico, porque de tanto escavar suas
intimidades descobriu assim que suas respectivas profundidades podem esconder uma moréia
disposta a saltar e abocanhá-lo, com medo de tocas e predadores ele segue entrando pelos
corredores, percorrendo, cabeça baixa, passadas largas, é idêntico ao criminoso que tem muita
pressa mas sabe que na esquina o aguardam. Já tem reunido tantos crimes que corre não para
fugir da culpa dos que já eram, mas da oportunidade dos que estão por vir.
Dobra na esquina dos camarins e começa a ouvir vozes, é sempre mais ou menos nesse
ponto. E não sabe mais se é melhor que já estejam lá, a espera, à paisana como a esposa
varando a noite enquanto você dormia com a amante, para já olhá-lo e fuzilá-lo com as
perguntas, dentre as quais não gostará de responder nem as que sente-se disposto a fazê-lo.
Olha o pulso, o relógio marca as duas e trinta, claramente não chega a ser duas e trinta da
manhã e menos ainda da tarde, só podem ser duas e trinta do outro dia que já se foi, irritou-se
e finalmente o tirou, jogando-o fora para a bagunça que o receba. E dura então um segundo
até que chegue ao palco, subiu-lhe na espinha uma nostalgia serena, dessas em que
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reconhece as coisas boas da sua vida, as coisas que o inspiram, um gostoso passado
acalentador, mas nada que não abandonaria, porque é tudo isso algo que tem de ser
lembrado, e o que tem de ser lembrado já morreu ou tem meio caminho andado para o túmulo,
é que já foi o seu tempo, essa sensação que incendeia a si mesmo e se apaga, restam cinzas,
quem dera isso ocorra rápido. É claro que não, ele não merecia, previamente sabendo que,
tendo isso desejado, encontraria o revés, que é sempre assim, ou por implicância do destino ou
por um peso que se impõe por ver alguma estética no hábito de mártir.
Os rostos conhecidos estão lá, o mais espantoso é a naturalidade, e ele sente raiva e vê
que todos estão em paz, e a paz de tantos o enfurece ainda mais, praticamente não se dão
conta da sua presença. Veja, continuam com suas próprias conversas, sorrisos, bocejos, tocar
de mãos, trincar de isqueiro, arroto, espirro, camaradagem entre amigos, tapas nas costas ou
pé-na-bunda, e isso apunhala o seu orgulho.
Deixa estar, grunhiu coçando a garganta, e atravessa o palco a rastejar as solas no chão,
como quem vem para uma reunião como todas as outras, onde costuma sentar-se no limiar
das luzes acesas da ribalta, que o banham e o fazem sentir-se mais poderoso. O melhor que
tem a fazer é o mesmo que faria, que de repente isso é o melhor que todos nós temos a fazer,
eis a triste realidade que muitos de nós, inclusive você, só percebem muito tarde. Deixa tudo
que for peso para André, que eu não quero me importar e, pensado isso, deu de ombros com o
furor revolucionário de um dromedário, espreguiçou-se rugindo timidamente e se aproximou
para ser o que ele mais sabe fazer, aquela coisa clandestina que carrega consigo nas
madrugadas.
Habib ergueu a mão quando o viu, lá estava o camarada sentado sobre o palco a saudá-lo
com silêncio, ao que lhe respondeu com os olhos e foi espiar os demais. Deu pela falta de
André, esse é o mais importante, o resto não fará quase diferença, são mais como fetiches,
coisa coadjuvante e substituível, então ele sente-se desprezível por descartar, desculpa-se
relembrando-se que não existe outro protagonista em sua vida que não seja ele mesmo, e isso
é uma coisa biológica e não o jeito da realidade ser que ele pretenderia se pudesse fazê-la.
Sentou-se calmamente no canto qualquer, a mocinha loira fumando na primeira fileira das
cadeiras acenava, novamente preferiu saudar com silêncio a um alguém, era o tempo que
restava até que fosse reparado, e que inferno, está mesmo se tornando coadjuvante das
próprias coisas que fez, vai imaginar o que todos outros coadjuvantes estejam passando, se
não estão como ele?, destrinchados e deixando de saber o que são, o que se teria ali seria,
ainda que secreto, o inferno prestes a deflagrar sua boca, dentar o primeiro inocente, a
primeira virgem que vier pela frente, que o desespero é cego e trôpego, e em terra desses até
o rei caolho pode ser varrido pelo trotar dos irmãos. Lá está Bublitz. Lá está Stern. O primeiro
está deitado entre as poltronas com as pernas passando por entre elas, ele também esconde
algo de afoito no olhar, mas está sorrindo. Stern está próximo a penumbra, sentado sobre a
escadinha, não vê o que está fazendo e não se importa. Os outros que vieram estão
espalhados pelo palco ou pelas poltronas, não há regra de organização a não ser o conforto,
há tanto esse princípio reina que quase por costume poderia gostar, mas não é verdade, que
se gosta não é pelo costume, que o costume aqui de nada vale. Esse lugar que rouba a sua
paz é também o que lhe faz sentir-se perfeito.
– Aí eu falei pra ela, ah, minha filha, se você realmente acha que eu tenho que saber te
informar isso, vai reclamar com a gerência, né?, que a complicação da coisa que você sabe é
proporcional ao que você ganha, e eu não recebo pra isso, não sei por que as pessoas têm
esse hábito de achar que você tem que resolver as coisas pra ela, te vêem como utensílio pra
tudo, basta que esteja ao alcance – falava uma voz feminina.
– Tem que saber se promover, mas se impondo.
– É isso mesmo, aí ela disse o seguinte para mim, tô pouco ligando, o cliente quer é
praticidade e ser atendido bem. Mas minha senhora, não sou um bicho aqui atrás da mesa e a
senhora está me tratando assim porque acha que eu sou paga pra isso, ou sou uma máquina
que esquece de mim mesma na hora de vir trabalhar, ou mereço isso ou coisa parecida, a
senhora deve ter lá seus problemas e todos os motivos do mundo pra estar assim com pressa,
né?, mas eu não vou ficar calada, você só reclama comigo porque acha que eu não vou
responder.
– Dormi no escritório outro dia, foi uma merda, e a ressaca horrível?
Parece a descrição de sua existência, conclui isso ao pensar à toa, e pensar à toa é o que
mais tem feito durante esses tempos, submetido a esse esmiuçado processo de retorno à
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escuridão, e questionava se um dos erros primários que eles teriam cometido, ainda que o
princípio de que seja isso um erro esteja gradativamente abafado pelo tempo, é que, por mais
que não tenha se passado muito, quanto mais se sente o tempo, mais ele nos incinera com sua
passagem e nos deixa para trás, e é um lado otimista de se encarar as coisas, que quanto
maior o sofrimento sentido, mais rápido a dor se apaga, seja pela morte, quando as coisas
chegam num certo nível insuportável para o corpo, seja pelo alívio das lágrimas etc, ou do
vômito. Mas enfim, o que pensa especificamente nesse momento é que um desses erros, ou
senão acertos, agora ele já não sabe mais, da coisa da sociedade e etc, foi ter anexado o
retorno à escuridão com o convite dos novos membros. Parece um gesto simbólico de
instrução, uma coisa misteriosa que posteriormente favorecerá a integração do novo sujeito,
mas por outro lado ele sente isso pesar em si de uma forma que, agora, quando ele pensar em
se desvincular, conseguirá muito menos ir adiante. Só podia mesmo ter sido idéia de Júlia. Ela
oferece as coisas oportunas nas horas certas, sabe persuadir como se estivesse oferecendo
uma sugestão irrecusável, e assim ela enreda o tolo incauto feito nas teias da tarântula, mal
saberá a vítima de que nessa aparente bonança deve haver na verdade é uma consciência de
maldade futura, que só olhos extremamente cruéis, feito os dela, podem perceber previamente.
– Por que não envia também uma cópia do livro?, junto ao convite faz um efeito muito
maior, a pessoa com certeza o leria antes de receber o contato.
É, que boa idéia.
Lá pela sétima fileira um sujeito louro trepa com pouca comodidade com a rapariga de
madeixas pintadas. Pouco adiante o gordinho olha e se masturba. Os demais conversam, ou
calados insinuavam tudo o que a gente usualmente pensa, diz-se dessas caras que nada
insinuam.
– Dá pra parar com essa merda aí no fundo? – um senhor grisalho e de olhar torrencial
rosnou.
– Dá um tempo, velho escroto – a menina.
– Te dou uma surra assim que você sair daí.
– Vem logo aqui, se for homem.
– Se eu for eu te dou a surra, te deixo com a boca desgraçada.
– E eu te dou um tiro.
Ele continua a refletir. Apesar dos contrapontos ele gostava do que tinha criado, não sabe
dizer se essa idéia foi original a ele, mas se há confirmação para algo em que chegou sozinho
é razão maior ainda para se orgulhar, ainda que tenha uma certa impressão crescente, e ela
vem crescendo junto a uma náusea pela vida, de que o quão longe foi é original a tudo, que se
desvirtuou de qualquer estrada que antes via, e agora rumava para o escuro sem se importar
se encontra outra via ou precipício. Ele gosta de precipícios, se venda e pula rezando que a
queda demore. Passou a mão na testa e limpou-se do suor, e chega a uma conclusão que o
deixa atônito, constrangido por si mesmo, acabado e reduzido diante tantos paradoxos, e eis
qual é, ele se diz, eu gosto de tudo isso como nunca gostei de nada, é sobre isso que caiu o
meu amor, sobre isso dediquei a minha vida.
Estava diante da coisa vista de perto, se ela por si só não fugisse da regra, ele a forçaria,
e se não fosse por querer, seria a força. Apaixonou-se pela gente que perdeu o pudor, a
vergonha, apaixona-se pela gente que começa a tentar ser feliz e que achou que seria ali, e
que não mais temeu, e foi apaixonando-se cada vez mais e os acompanhando, e os incitava e
fazia o mesmo que eles, porque deveria servir como arauto, ainda deve se sentir um pouco na
obrigação, se não fosse ele que tivesse a iniciativa não seria mais ninguém. Entendeu que ama
as coisas vulgares, ver sorriso nas putas e nos bêbados, ver gente ser capaz de rir entre as
coisas mais nojentas, fugir da família honesta na calada da noite para encontrar
desconhecidos, trair o esposo dizendo dele ser um chato, um bosta fracassado, e na manhã
seguinte acordar ronronando sobre os seus braços, e não importa quem essas pessoas sejam,
ele mesmo durante o dia os esqueceria e a noite se apaixonaria ainda mais, e gostou da vida
de sombra mais real do que nunca num mundo ao qual nunca pertenceu.
– Vamos fingir um assalto hoje? – pergunta Bublitz.
– Pode ser.
– O cara estava sendo algemado e eu não escondi uma risadinha.
– Reunião. Estava morto de sono, olhei a presidência, apontei o quadro e disse, tchau.
Apóia o estupro, a covardia e a loucura, se é uma tentativa é porque é permitido, qualquer
coisa é válida, qualquer coisa é legítima só por poder acontecer. Tudo o que se diga o contrário
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é medo que nos botam para que não descubramos quão suja e quão bonita nossa vida pode
ser.
– É melhor esperar André.
Ali na sociedade tudo tem um fim oculto e transcendental. Em qualquer coisa que se
resolva fazer. Às vezes ocorre de não saberem disso. Não há coisa mais autêntica que
reconhecer que até as grandes causas partem do princípio de uma motivação individual, e aqui
na sociedade é tudo pessoal. O centro do universo é o indivíduo, a gente não pode se ver
como grupo sem antes se redescobrir como indivíduo. Aqui se reconhecem as razões de ser
do assassinato, olha-se de perto o esterco para descobrir a verdade. Pena que o medo
recentemente tenha entrado nessa gente, e diante disso mais do que nunca cabe a ele intervir,
é a hora de acabar com todas as coisas mordazes e ser cru, claro, direto ao ponto, que se está
na chuva é para se molhar, que se atirou de cabeça no poço foi por supor que tinha água para
embaixo aparar, pouco importa se não supôs que espatifaria com o crânio nas pedras. E não é
coisa que se dê apenas consigo, que afinal hoje em dia desconhece alguns dos rostos que
estão ali, são tantos que deixou de acompanhar o que eles são, são aquelas caretas que não o
dizem nada, mas é claro que não pode se aprofundar em todos ao mesmo tempo, são os
males da superpopulação, e é partindo dessa construção que, por limitações nossas, as
famílias e as civilizações vão crescendo e se separando sem controle para cada canto da
cidade. Ele quis perder o controle rumo a uma nova direção, fez questão. Descobriu ser algo
fácil de conseguir.
Só se é responsável por si mesmo. Conclui isso e algo horrível aconteceu. Assim como, às
vezes, se reconhece a presença corpórea de alguém a se aproximar, mais raramente ainda
esse sentido se refina tanto que passa a poder especificar quem deve estar se aproximando,
deve ser esse um dom mediúnico que Alex não pediu para ter, mas tem, e é coisa que não tem
escolha, como a fome que sente, que pelo menos ainda opta ou não por comer, então é coisa
muito mais próxima a um desarranjo dos fortes, vem como de uma peristalse e faz arrepiar os
pêlos do corpo, tira-lhe as alternativas e deixa-lhe apenas o constrangimento a premunir a
sensação que a ordem só existe para encontrar suas próprias exceções, suas zonas mortas, e
intui assim que um novo bombardeio de coisas horrorosas está para chegar. Virou para olhar.
Lá vem Martin, a barba está asseada, os olhos profundos, as roupas bem escolhidas.
Pronto, a imaginação prontamente se revolta, que agora vai ocorrer uma desgraça, só a julgar
pela cara desolada do rapaz, cara de quem não sabe o que olhar mas mira a tudo com muita
força, essa é a expressão de um suicida, então supõe o que vai acontecer, não precisará ser
dito mais que um adeus e dar mais que um sorriso antes de sacar um revólver das roupas,
engolir o cano e explodir os miolos na frente de todos, seria a sua forma agradecida de se
despedir, a intenção de traumatizá-los, espetacular, a sua forma gentil de vingança e de livrar-
se ao mesmo tempo da acidez que está a perfurar-lhe as ventas, de uma vez por todas, cortar
o mal pela raiz. Uma coisa eles têm em comum, que Alex também pensa, mas que merda, e
esta enxaqueca. Cairá o corpo contra a ribalta e estará tudo acabado. Está até vestido de
preto, aquele sujeitão elegante, arrumou-se especialmente como se a morte fosse especial.
Está pronto para afirmar sua liberdade e mostrar a que ponto ela chegou, domará sua morte,
escolherá a hora de sua chegada e fará disso um circo.
A cúpula seleta dos cúmplices angustiados o olha, e ver Martin certamente lhes seria um
tapa contra a testa, deve ser, é quase claro que sim, e também é quase claro que se
perguntam que raios ele estaria fazendo ali, não devia estar, não devia ter vindo, que egoísmo,
é que talvez não seja bem-vindo, ou acontece que apenas não era esperado. Bublitz chega a
se erguer das poltronas, desliza o traseiro para o lado e quase cai nas frestas, pela posição
deve sentir uma câimbra nas panturrilhas, e Stern engatinha pelas trevas, os olhos de Alex se
empretecem para não deixar escapar nenhum segmento da razão, afinal que é simbolizada por
luzes etc, e medrosamente estufa o peito para não arfar, evita a qualquer custo o pigarro que
quer sair, se duvidar o vômito ou o próprio coração escorregando entre os dentes. A vida
segue-se no mesmo ritmo de sempre, como sempre.
Segue-se a transa lá no fundo, quem fuma, fuma, uns jovens que bebem continuam a fazê-
lo, há as drogas para quem as querem, umas gargalhadas, umas conversas comuns também,
o gordo voyeur a se entreter com uma sensação mais frustrante do que teria ao assistir uma de
suas pornografias, a fêmea insinuando-se dedicadamente ao rapaz ainda educado que
comenta com ela os possíveis porquês de terem chamado de assalto uma reunião assim, no
meio da semana e num horário avançado da noite, que ninguém supunha. E eis que Martin
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entreabre a boca, está prestes falar, Alex encara sua alma a congelar-se, e por fim a derreter-
se.
– Nunca estive tão feliz em toda minha vida – ele murmurou.
Como é?, ninguém precisou perguntar em voz alta.
– Nunca estive tão feliz em toda minha vida – repetiu com mais entonação.
Beirou o incontrolável a vontade que sentiu de agarrá-lo e matá-lo, acertar-lhe nos
testículos com a ponta do sapato, girá-lo sobre o palco e atirá-lo para que fosse eletrocutado
pelos spots da ribalta, enfiar alguns cabos de alta tensão na gengiva, no céu da boca, vê-lo
chacoalhar, e por alguns instantes esteve convencido de que iria pôr seu desejo em prática,
ignoraria a desvantagem física, que a fúria iguala homens a deuses. Para sua própria sorte,
tudo o que fez foi enrugar brutalmente a testa, não detinha controle, e por instantes a escuridão
fechou-se como se lhe fosse nublar as vistas, beirou o desmaio e vitoriosamente voltou, só
deixou de ser secreto seu rosnado.
– Martin, você tá bem? – a pergunta derradeira saiu de boca qualquer.
– Não me ouviu? – murmurou sofregamente. – Nunca estive tão feliz – e olhou para Alex.
Martin saltou nas suas pernas e, a engolir o choro como se naufragasse na tempestade
diluviana, desatou a soluçar.
– Obrigado, muito obrigado – a voz rouca rugia.
Em um instante se faz aqui um silêncio de se ouvir as traças roendo as unhas, todos
paravam suas coisas para acompanhá-los. Alex treme, a face implora a ajuda de quem quer
que fosse, os rostos desentendidos que somente se fazem de tontos. Martin se agarra às suas
costelas como filho carente, pelo amor de deus, pára com isso, antes viesse o tiro na boca, que
eu ainda esperava.
Foi Habib quem gentilmente pousou as mãos nas costas de Martin, era provável que
hesitasse, sentindo o receio que teria se tratasse de um bicho exótico que de repente deu para
agir estranho. Murmurou algumas coisas que Alex não conseguia e nem quis atentar, porque
só ouvia aquele obrigado ecoando diversas vezes na sua cabeça, era isso o resultado da
digestão porcamente feita da figura que tinha em sua frente, era absurdo demais para que os
sentidos aceitassem sem refutar, aquele homem encharcando de lágrimas as suas roupas,
porque tinha se redescoberto criança.
– Vocês não entendem – ouviu essas palavras soluçando –, é horrível, estou me sentindo
bem quando sei que não devia, eu não quero me sentir bem, mas não consigo, estou satisfeito
– assoou as palavras –, e começo a me convencer disso, obrigado, me ajudem.
– Que diabos aconteceu? – das poltronas perguntaram.
– Nada, León, esquece – Stern subia as escadas.
– Como nada, meu amigo?, como nada? – e ria.
– Aí ele disse, foi você ou não? – uma conversa foi interrompida.
– Martin tá louco – vinham mais a frente.
– Vamos lá, Martin, passou, fica tranqüilo – Habib tentou puxar-lhe as costas, porém ele
reagiu.
– Escutem, eu devo contar pra todos vocês. Todos vocês precisam ouvir.
Estava tudo ruindo.
– Tira ele daqui, pelo amor de deus – Alex gaguejou, tentava movê-lo para longe, não
conseguia, lhe puxava pelos cabelos, tremia as pernas, mas não podia, era impossível, não
conseguia.
– Cala a boca aí, ô! Cala a boca, merda! – Bublitz começou a apontar para frente e gritar.
– O que houve? Que aconteceu? – a barulheira sem foco e sem destino.
Ao menos com todo esse barulho, essas vozes sobrepondo umas as outras, um gritando
aqui e o outro tentando responder a dois ao mesmo tempo acolá, é bom que ninguém ouve as
sandices que possam ouvir dessas lágrimas, todos entram no mesmo estado de espírito e em
pouco tempo só o que restará é confusão. Ótimo. E a veia sobre a testa dilatando, que Alex
não sabia mais o que fazer. Aí o mundo girava, ouve de lá as vozes, me falaram que tudo
estava por acabar!, e agora é isso que eu vejo, um marmanjo chorando sem porquê?, não, isto
é, isso é você que me vem dizer que não tem um porquê, mas que tem algo de podre aí, tem, é
muito óbvio, e é melhor irem dizendo!, cala a boca, León etc, deixa que a gente resolve isso,
mas por quê?, por que tem de ser vocês a resolverem?, queremos saber, é, todos queremos
saber, todo mundo!, vocês aí não querem?, queremos, é claro, e risadas, por favor, calem a
boca, é, façam um favor e apenas tirem ele do meu colo!, pára com essa palhaçada aí, oh, que
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isso não tem cabimento, há-há-há, tá rindo do quê, meu deus?, há-há-há, eu vou dar com isso
em sua cabeça se não parar de rir!, parar por quê?, por acaso não tá engraçado?, olha só, há-
há-há, você não tá acreditando, vou dar com isso na tua cabeça, seu filho da puta, é melhor
que saiamos daqui, é, não conseguimos mais manter nem a desordem em seu devido lugar,
como se houvesse devido lugar para uma coisa dessas, claro que se diz que na vida tem hora
para tudo, então seria essa uma boa hora para o fim. Debruçaram-se todos como uma multidão
de famintos esfarrapados sobre o plenário do palco, uns metiam seus corpos a subir a ribalta,
gritam coisas só para piorar-lhe a dor, parecem fugir enlouquecidos de açoites imaginários, e
Alex ali, é, veja só, que teve de se tornar o centro das atenções da forma que nunca escolheria
se fosse essa uma questão de desejo. Contorcia-se de todas as maneiras, tinham dado a ele
uma cruz, e as coisas estavam se tornando um pouco mais violentas. Puxavam-se os cabelos
do gigante ensandecido, e ele urrava, era uma fúria domada, que tomava mas não queria
reagir, se agarrava ao pescoço de Alex e às roupas, deixava-lhe a marca de hematomas pelos
dedos, rasgava, se esfregava, era horrível, nada podia tirá-lo dali, nada pode desgarrá-lo.
Mais ou menos nessa hora algo ainda mais inusitado veio à tona. O círculo de pessoas
rapidamente se abriu, vinha alguém de fora impetuosamente os varrendo do caminho, afobado
e caindo pelos lados, chutando tudo que lhe fosse empecilho. É André, ele vem vindo. Chegou
com um soco na cara de Martin. Acertou-lhe com o punho e ele sentiu. E ele ruge abrindo a
boca para o alto, fecha os olhos clementemente abrindo os braços aos céus e cai rolando para
o lado. Alex não pensou, rastejou para escapar o quanto pôde. Só teve tempo de ver a sombra
de André saltar por cima de Martin e continuar a bater.
– Ah! – e ele não reagia, só se contorcia.
– Que é isso, porra? – Bublitz escalava a ribalta.
Aí começava tudo de novo. O que ele tá fazendo?, por que ele tá batendo no cara?, pára
com isso, larga ele aí, oh!, pára, pára, há-há-há, não ri de uma coisa dessas!, como não, o cara
ficou maluco?, dá com a garrafa na cabeça dele, não, espera, deixa eles se entenderem, fica
um pouco pra trás que senão é perigoso, sai daí, anda. E via um soco, outro, dois, quatro,
acertava na orelha, dava no nariz que era para atordoar mais ainda, que com nariz quebrado
não se brinca, e Martin agradecia a anestesia com os olhos cerrados e a expressão patética de
quem quer morrer, que a dor se tornou a única força de expressão possível, que não conhece
mais como gritar. Só agora de pé, Alex, e mal em pé, raciocinava, e punha a mão sobre a
testa, pensando quase em altos brados, meu deus, eis a vida pegando fogo, e tinha vontade de
rir. E não se atrevia a se aproximar. Por clemência ou não, André está furioso, ouvia-se a
mandíbula trincando de longe, os dentes rangiam, babava, descontava sua raiva em alguém
que sorria. E é claro que quem chegar perto recebia.
Júlia também estava lá. Ainda ofegante, por cima da gritaria e do tumulto, ele pôde vê-la.
Olhava embasbacada, e no silêncio eles se comunicaram, ela dizendo, veja onde vocês
deixaram isso chegar, na verdade, não, veja onde você deixou tudo chegar. Ao que ele
responderia, sim. Já havia quem torcesse por André, para que ele pusesse o sujeito para
dormir, sem que ao menos soubessem o porquê, sentido é do que menos precisam, vai, vai,
vai, bate mais forte, dá bem no queixo, dá pelo lado, na mandíbula!, reage aí, seu merda!, pega
os joelhos dele, pega. Antes fosse uma briga no seu sentido convencional, que exige lá alguma
reciprocidade, que produz ditados do tipo quando um não quer dois não brigam, e o que se vê
não é exatamente isso, e sim um algoz que faz o favor a um mártir de braços abertos,
aceitando o que lhe for dirigido, deixando o pecado ser absolvido, ponto final. Há quem risse,
houve também Bublitz, que pulou para apartar e por ser muito magro acabou empurrado por
André, que por muito pouco não foi bater é nele, e aí ele rolou pelo palco fingindo que sentia
dor, gritando por nada e ajudando a incitar o tumulto, dizendo que achava ter quebrado a perna
e coisa assim, que estava ficando doidão. Martin está empapado de sangue, parece ser a
segunda vez que ele desacorda por vários segundos.
Só está começando mesmo a parar porque outros pularam sobre André, aproveitando seu
cansaço, isto é, os gêmeos, que até onde se permite a semelhança genética eram
completamente diferentes entre si, o mais refinado deles murmurava palavrões quando deixou
cair seus óculos de grau, certamente o perdendo para sempre entre os pés da aglomeração
que sapateia, e também León, que é desses velhos bons-de-briga, deve ser que pelo histórico
militar esteja sedento a também tirar o seu pão-de-sangue de cada dia. O gêmeo mais forte é o
que agora há pouco tinha se entretido com a mocinha lá nas fileiras de trás, ele conseguiu dar
uma chave-de-braço em André e fazê-lo recuar, o almirante está a puxar-lhe pelo queixo para
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que o rosto se levante e fique todo vulnerável. As demais aves de rapina se embolam ao redor
de Martin, cheias de murmúrios e más expectativas, profecias lúgubres e ais, uns risos aqui e
acolá, é que o rapaz mais parecia um corpo mutilado ou um joão-bobo, tonteando ajoelhado e
fazendo que ia cair para trás, mas só ameaçando e nunca indo. Aí explodiram em gargalhadas
que saboreavam a insegurança do receio se deviam ou não estarem rindo.
– Obrigado, André, muito obrigado – e quando Martin ia tombar um monte deles o
seguraram.
– Eu quero saber que merda está havendo aqui! Eu quero saber! – gritava a voz metálica
de León.
– Não só você, almirante, que nós também – as vozes do fundo.
– Eu não agüento isso!, eu não agüento ver uma coisa dessas!
– O que você tá fazendo aqui?
– Eu não agüento ver uma coisa dessas!, eu não agüento isso!
– Pelo amor de deus, o que vocês precisam fazer é manter a calma – a voz quase sem
expressão de Júlia.
– Olha o rosto de Martin – Bublitz passa os dedos no rosto viscoso e mostra o sangue –,
que porra – diz pausadamente – é essa, André?
– Isso não se faz, isso foi imbecil – Stern.
Aí falavam simultaneamente o fotógrafo, aquele Gabriel, falava estridentemente a menina
loira que se insinuava ao corrupto da polícia, falava o velho Bonaparte que era aquele com
sérias pendências sexuais, ainda a vestir as calças enquanto subia e descia as escadarias sem
saber para onde ia, gritavam os mais recentes de quem mal sabia os nomes, desde o velho
empresário que vem aqui para relaxar até a vagabunda recalcada que pela primeira vez pode
dar por prazer para todo mundo. André estava realizado, aliviado pelo suor, na face os
lampejos de uma noite inteira de satisfação, noite ou séculos. Ninguém mais se entendia.
A sociedade foi feita para ser assim, ainda que entender isso venha de surpresa. As coisas
loucas são as primeiras coisas que nos explodem, e não basta que se diga que as pode, tem
que mostrá-los dia após dia que sim. Alex teve uma vontade terrível.
Encheu os pulmões de ar, arqueou os braços para trás como quem se entrega às forças do
destino, mas como quem as contraria lançou um grito horrendo, rouco e desafinado, arranhado
um tenor desagradavelmente escandaloso e sujo. No início o barulho em volta era tão grande
que fazia o seu ato ser tão forte somente como intenção, mas aí a coisa toda mudou com a
repercussão de sua vontade que pôde finalmente se convencer de si mesma e se deixou
propagar com todas as forças que haviam. Gritaria até não restar mais vida, eis como se
suicidaria, como seria esquecido e abandonado, como extinguiria toda sua combustão,
berrando continuamente, é verdade, outro já fez isso diante da baía algumas noites passadas,
mas agora era a vez dele, e seria o grito mais cruel, sinistro, grotesco, enraivecido, nele
proclamava o ódio como única saída para a merda onde ele se meteu, o ódio como única saída
para a vida. Gradativamente roubou a vida das outras coisas, silenciaram para ouvi-lo, se
assustam porque notam não ser uma voz qualquer, eram restos de entranha ribombando e
soltando restinhos de seu catarro. O ah se acaba, mas ele não. Aí ele foi na direção de Martin
e afundou-lhe com o cotovelo na cabeça.
– Cacete, que relaxante – murmurou quase sem voz.
E deixa o círculo abismado o olhando, petrificado e sem atrever-se a comentar, assim
deixaram que ele abrisse passagem, passou como se estivesse mais bêbado do que nunca e
fugiu para as coxias. No escuro sentiu reviravoltas remoendo o seu coração, o estômago
incendiava. Apoiou-se em uma parede qualquer e vomitou, sentiu que eram aquelas feridas
que já fazia muito tempo que queriam ser expelidas, e quando vinham à tona era assim, para
chegar destruindo a garganta de uma só vez. Vomitou sonoramente com os sons dos mais
nojentos, fez questão de gritar aquele gluerh, a maior parte das viscosidades voaram mesmo
nas roupas ou para os lados, até o ponto em que secara o intestino e nada mais vinha, salvo o
aperto medonho que o faz sentir a glote fechar, às vezes a piedosa se abre, e respira. Deu com
a cabeça na parede, um pouco mais de coragem e teria sido com força, que é para abri-la de
uma vez, não a parede, evidentemente, e permitir-se vomitar de verdade.
– Você está bem? – era Habib, aquele rapaz calvo de algumas intermináveis outras
situações a seu lado.
– Eu não confio em André – foi a resposta.
– Como não? Por quê?
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– Eu não sei, não me dê ouvidos, só estou desabafando.
– Então desabafe.
– Ele está se tornando o líder, está sendo cada vez mais autoritário.
– Não permitiríamos um.
– Ele age como – fez que ia vomitar mais, saiu seco.
– É melhor que por agora você apenas relaxe.
– Cacete – e riu –, que relaxante.
Quando voltou, estava a maioria da sociedade reunida para um aviso oficial, não que haja
ferramenta burocrática aqui que defina que há, de fato, algo oficial e não-oficial, mas a julgar
pela seriedade da procedência, pode perfeitamente assim ilustrar e compreender. Alguns no
palco se encarregavam dos últimos detalhes de sabe-se lá o que seja, sinceramente isso
sequer o interessa, mas está ciente de que a maioria deseja mesmo uma resposta, não dá-la
agora seria uma arrogância que acabaria semeando uma discórdia mais desagradável do que
se podia suportar. Mas ainda riu ao olhar as poltronas e ver que improvisaram Martin deitado
sobre elas, veja, que ainda gemia e resmungava, entre essas palavras deviam haver diversos
obrigados e sorrisos desses bem estapafúrdios.
Cuspiu o resto de saliva estomacal ao canto, ao mesmo instante em que despojou-se do
casaco sujo. Viu Júlia vir com gestos comedidos em sua direção, mas seus olhos aguados não
enganavam a ninguém, ela vinha implorar.
– Não deixe que contem pra eles o que aconteceu – suplicou –, vai ser uma catástrofe, por
favor.
– Não sou eu quem vai contar – e apontou para André.
– Como você pode simplesmente não fazer nada?
– E você, Júlia, vai fazer alguma coisa? – sabia que a resposta era não, ainda pelo seu
silêncio.
Ela de fato não respondeu, e ele concluiu.
– Então vá à merda.
A deixou, julgando haver na expressão boquiaberta e desenganada os retalhos de
qualquer esperança de controle que ela ainda poderia deter sobre ele. Mais do que nunca
vinha conseguindo se libertar dos próprios demônios, pois o vício que passa a ser escolha não
mais é vital, e se o for, bem, é pelo menos sincero. Não podia abrir mão de algo que lhe fizesse
tão bem, isto lhe era a sociedade, não um vício, mas uma escolha, dane-se se vício ou não,
pelo menos o iluminava dos pés à cabeça. A sociedade apresenta o mais eficiente sistema de
exorcismos que já se viu.
Sentou-se no canto da ribalta, que é de seu praxe, e lá esperou. O almirante o olhava
rudemente com jeito de quem quer dizer mais ou menos o seguinte, eu sei que você anda
aprontando muito mais do que dá a entender. E ele responderia de volta, infelizmente, meu
caro, pois é. Os libertários que aí estavam essa noite foram tomados de apreensão, e olha que
de início tiveram a boa-vontade de ignorar os prenúncios de que a ida deles ali significava algo
a mais que o habitual. Júlia ziguezagueava junto a seus dilemas morais e a multidão
perguntava que raios ela, que os tinha abandonado por causas que, desculpando o termo
cabal em que Alex pensa e a imprecisão com que o formula, eram meramente de frescura, que
raios ela estaria fazendo ali. Não parecem ser muitos os que gostam dela. André discutia
alguma coisa com Stern e com Habib, ouviam-se os gritos de Bublitz e outros enxeridos.
Queremos saber o que houve!, bradavam os daqui, e ele só suspirava, não se envolve com o
estardalhaço que batia palmas para chamar-lhes a atenção, tampouco com a diplomacia dos
de lá. Tempos áureos em que se misturavam.
– É melhor que Martin os fale – André entoou com a voz forte.
– Seria fácil, se você não tivesse amassado a cara dele – gritou a voz de uma mulher.
– Por favor, temos de nos acalmar – veio Júlia. – Se não pararmos pra pensar agora,
ninguém...
– Mas e o que você tem a ver com isso, sua putinha? – a mesma mulher vociferou.
– André? – Júlia implorou por ajuda.
Alex riu da alma até a periferia.
– Ei, mais respeito por aqui, certo? – e André tomou as dores.
– Mais respeito por quê? – ergueu-se Bonaparte, tinha esse apelido por causa da gastrite,
sempre anda com a mão na barriga. Imaginar o porquê de ser ele a tomar partido daquela

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garota poderia resultar num atrativo interessante à imaginação. – Vocês f-f-ficam – também
gaguejava – de segredo com a gente, e quer que re-re-reeespeitemos por quê? A-ah, mas vai!
Ergueu-se o estrondo dos gritos, e batucavam, tum, tum, batucavam eles em cacofonias
que anestesiavam qualquer entendimento, em pouco tempo até o mais tímido que ali fosse
hermeticamente lacrado se veria incitado a estar pulando como um símio e batendo sobre a
caixa torácica, hô, hô, rodopiando e grunhindo e competindo a euforia, mais felizes do que
quando o ancestral do homem descobriu em algum osso de bicho o poder de matar o
semelhante e quis rugir em seu dialeto primitivo, graur-ur-uhá, eu tenho esse poder. André é
uma poça suja de suor e ergue os braços, pelo modo que abria a boca e parecia estar prestes
a vomitar os dentes e pelo jeito que o rosto ficava roxo acreditava que estivesse berrando
muitas coisas, ainda que por toda força que tinha não pudesse se fazer páreo à loucura
generalizada, que agora os incitava a arremessar pedaços de destroços por cima das cabeças
uns dos outros, se alguém fosse atingido que se danasse, e perdoando a repetição ilustrativa,
Alex se diz novamente que quem está na chuva é para se molhar, que quem pulou no poço é
para cair de cabeça, não se sabe mais o quê etc. Alex estreitou o ombro para o lado, que é
para não ser atingido por um pedaço de coisa que se estatelou ao seu lado no palco, e
enquanto isso fez concha com as mãos para proteger o cigarro que acendia. Passaram uns
rastejando por seu lado, e gritavam, e era um festival de gente gesticulando para aqui e para
lá, é que a emoção faz com que não falemos mais com a boca, mas com as deformações do
rosto, de uns espasmos estranhos do corpo. Satisfez-se ainda mais quando evidenciou Júlia
quase que em posição de prece, as lágrimas escorrendo dos olhos e implorando para que
alguém ouvisse sua razão, porque achava ser dela que nesse momento precisavam, enquanto
todos desaprenderam a amar figuras como essa que aparecem para corrigi-los. Não
precisavam mais de correção. Agora já eram muitos. Em pouco tempo acreditariam que eles
são os certos de verdade. E mesmo se fossem poucos já teriam força suficiente para fazer o
que agora estão fazendo, mirando profundamente nos olhos lamuriosos de quem implora para
que ouçam a verdade e a voz da sensatez, adentrando através do olho de quem sabe que é o
único a possuir a luz num poço escuro, e ainda assim disposto a envolver sua cabeça entre as
mãos e gritar não!, não!, para tudo, para a ordem, para a expressão, para a pessoa, para o que
fosse. Tragou o cigarro e só não se deitou para não ser atingido por um pé.
– Eu falo! Eu falo! – gritava a voz que não mais importava que ouvissem. – Eu posso falar!
– ninguém mais deve realmente querer ouvir –, me ouçam! – Martin já deve esbravejar faz
muito tempo, estava azul e vermelho, as pessoas ao seu lado acompanhavam seus gritos em
uníssono, ainda que não com o mesmo porquê.
Só agora Alex pode entender alguns de seus desejos iniciais. Tudo que ele quis foi gritar,
agora gritam por ele. Só agora via para que a sociedade foi feita, e agora se convencia de que
ele próprio, sim, previra, ainda que não soubesse, ainda que soubesse só agora. Vivenciava
uma espécie de morte dormente, onde independia o que ouvisse, assistiria a tudo com um
sorriso de adeus nos lábios, um adeus que já se permite qualquer excesso, porque tudo é
como último pedido.
– Matamos uma pessoa! – berrou Bublitz contorcendo o corpo todo, e ria.
Stern saltou por cima de outras cabeças e lhe caiu sobre, derrubando e enrolando-se
ambos no chão como sacos plásticos que o vento leva até se perderem nas calçadas cheias e
sujas, que gritam. Matamos uma pessoa, ele ri de novo e grita mais forte ainda. Mataram uma
pessoa!, mataram uma pessoa!, há-há-há, mentira, que coisa escrota de se dizer, dá um chute
no pescoço, aí, aí!, agora sim acerta a nuca com um caco, porra, porra, porra, porra, cale essa
merda dessa boca, seu veado!, ah, ah, ah!, olha a bagunça, calem a boca todos vocês!, e via-
se Martin rasgando com as mãos as roupas, puxando-as do peito e gritando para os céus,
lamentando que se a terra não o ouvia, quanto menos deus poderia. – Eu matei! Eu matei! – e
era um desespero tão grande que torna impossível ser mentira. Alex terminou um longo bocejo,
um novo trago, ergue-se e também começa a gritar.
– Assassino de merda! Assassino! – e erguia os braços. – Seu assassino de merda! Porra!
Assassino! Seu assassino! Assassino! Assasssssinooo! Hô, hô! Assassino!
– É, é!, vamos enforcá-lo, bate nele, quebra o fêmur, bate na clavícula, na cabeça, na
cabeça aí!, é, na cabeça aí!, ô.
– Bate, bate, bate – cantarola um – na cabeça de Martin! Bate, bate, bate – batucava no
chão –, mata, mata, mata.
– Ele matou! Ele matou!
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O assassinato não tinha nada demais. Só o que precisavam era um pretexto para gritar.
Não houve qualquer diálogo falado, mas eis aí muitas coisas que estavam sendo
compreendidas pelos trejeitos que irradiavam das bocas abertas e estridentes, que gritar por
estar numa massa que berra é normal, mas só os sábios lêem os olhos desses loucos e sabem
porquê gritam, e contra o que o fazem. E quando alguns ali puderam se dar conta, nas íris se
acenderam uma lâmpada rubra, a certeza de que o último restinho de coração que neles
restava escorria com a hemorragia do impacto. Gritaram para comemorar e lamentar
simultaneamente. Eis uma reação em cadeia que se devia prever antes de estourar.
Pobrezinho daquele que se meter na frente. Não seria Alex esse incauto.
Nada podia se erguer contra a sociedade. O que vai se pôr contra uma força que reuniu
taxistas e fotógrafos, desde médicos a artilheiros, detetives a salva-vidas e a escritores,
professoras de primário, secretárias e advogados, mestres-cuca, repórteres, estagiários e
datilógrafos e maquinistas, os doutores, os historiadores e revolucionários e acomodados,
ladrões, vadias e esforçados, frustrados, deprimidos e excitados, felizardos a felizes e aos
rancorosos, ranzinzas, esperançosos, velhos e jovens?, que vai se erguer contra algo que pela
primeira vez não fará distinção entre gente, que descobriu a verdadeira igualdade e, mais que
isso, que isso é só a coisa das mais básicas, que vai se erguer contra algo que se fará
descobrir o que realmente é gente? Aí pensou algo sobre a morte. Em julgamentos
filantrópicos talvez toda essa filosofia em que pensava mudasse de vigor, mas vamos lá, que
Alex se pergunta, a morte – quase natural, diga-se de passagem – de um ser humano muda o
rumo do mundo?, não, e na verdade até às vezes pode beneficiá-lo, como por exemplo, não foi
da vontade de tal sujeito morrer, mas posteriormente ele pode ser transformado num mártir.
Pelo menos o cadáver, que por si só não é nada, passa a ser uma memória, servindo de
alguma coisa para os que ainda existem. A garota que morreu não era nada, a não ser alguém
que se arriscou, que coragem, pena que um louco a matou, mas isso não vem ao caso. Agora
o seu nome é palha para a fogueira, que se morreu, pelo menos não vamos nos esquecer e
deixar que as traças da sua lápide, no caso as algas da baía, que piada cretina, não
deixaremos que a morte roa suas memórias e a torne somente uma morte vã, como as que se
vêem diariamente nas vielas do dia-a-dia, da gente que não se conhece e se ignora. Martin era
ouvido em meio a choros.
– Nunca vou esquecer do seu rosto pedindo para que eu parasse, mas eu não conseguiria,
na verdade eu não queria!, e era um querer tão forte que eu não podia me desobedecer, a
minha paz para o resto da vida estava naquele momento. Eu me senti tão completo – no seu
choro ninguém podia distinguir quando havia felicidade ou tristeza, e os outros o ouviam
maravilhados.
– Quando bati pela primeira vez, ela se apavorou e me olhou com um rosto – fazia ele
mesmo a expressão –, e eu me senti estremecer no fundo de um lugar que eu não conhecia
em mim, e descobri que naquele momento descobria minha alma, que ela existe, e eu a
alcancei.
– E bati uma, duas, três vezes! E não queria parar! E eu estava chorando, estava furioso,
saber que ela não podia me barrar era um delírio, ela fincando as unhas na minha cara, no
meu peito, ela não podia, e isso fazia com que eu risse dela, que eu a olhasse como se
estivesse dizendo pra que se arrependesse. E ela temeu tanto que eu temi ainda mais, e não
pude parar por medo, mas também por coragem, que eu nunca me perdoaria se não acabasse
com aquilo, e agora não me perdôo por não ter conseguido parar. Foi maravilhoso! – olhou as
próprias mãos como quem olha algo imaculado. – A vida é uma merda frágil – e elas tremiam
–, essa é nossa condição, assim é como vivemos.
– E isso é ser livre, é saborosamente cruel, insaciável – aqui ele foi poético – é como se
dar um tiro e ter um orgasmo, é esquecer do passado e estar completamente vazio, poder pelo
primeiro instante ser realmente você, e naquele instante você se descobre e no instante
seguinte esquece, pra sempre terá de se procurar novamente.
– O retorno à escuridão existe, não é uma idéia, eu o vi, eu deixei de ser eu mesmo e pude
me tornar alguma coisa melhor, ou alguma coisa pior, mas aquilo era a verdade. Agora eu
enlouqueci, mas não é por isso que eu sofro, que agora a loucura é permitida.
Ouviam suspirando.
– E antes eu temia, mas agora não mais. Eu consegui aquilo que todos buscam sem
querer, e é esse na verdade o fundo do poço, agora estou nele e poderei me erguer.

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– Os merdinhas que ainda vêm aqui por diversão! – gritou com trejeitos proféticos. – Esses
putos enrustidos, eles vão somente ajudar a nós, a nós, os livres, os amorais e livres, os
corruptos, que chegaram ao ponto de não conseguirem respeitar a mais nada porque enfim
viram!, é, viram!, que nada é verdadeiro, merda, então o que vocês estão fazendo? Vão
sussurrar aí pelos cantos dizendo que eu enlouqueci?
– Continuem indo para seus trabalhos durante a semana, fingindo que nada está
acontecendo, relaxando pra suportar um dia que só acaba com você, e se dizendo que isso é o
bastante, sem saber que você pode ser muito maior – e chorou fitando os céus –, que tudo que
pode fazer é fantástico – chorou ainda mais –, e continuem se enganando, tomando na cara
com a vida de taxista, para o que ninguém liga e respeita – e olhava o gêmeo –, se fodendo
com as cobranças de médico, que dá tudo de si pra se realizar, e se conseguisse ele nem
estaria aqui – e o senhor rechonchudo –, ou fingindo ter glórias no passado enquanto é
pisoteado na cabeça pela realidade – ao senhor León. – Tudo isso é só idiotice – e olhava a
André –, não!
– Vocês não são apenas suas próprias frustrações – e chora –, é tão bonito, são o anúncio
de uma era em que elas gritam, ah!, ah!
– Digam que não. Continuem com seu lazer de fim-de-semana, tentando se dizer, cada vez
que sorriem, que estão realmente alegres. Vocês sabem que não estarão. Se estivessem não
estariam aqui.
– Vão ficar comendo suas mulheres ou dando para seus namorados, ou pra qualquer um, e
acordar com o mesmo gosto de café matinal na boca, o mesmo pão que não dá mais prazer,
mas você se engana que sim, as rugas vão começar a nascer, não, não, elas já estão desde
que nascemos – pigarreia, rindo – e começamos a fazer as escolhas mais imbecis. Deus, eu
nunca consegui falar tanto. E você quebrará o espelho e rasgará os pulsos pra morrer, dará um
tiro na boca, gritará e arrancará os cabelos até ter reunido vontade suficiente pra pular pela
janela, que é a única coisa que adianta alguma coisa, a única saída que apresenta algo
diferente, mas não deixa de torná-lo um imbecil. É isso que vocês são, uns imbecis, e eu
também.
– Vão ler os jornais do dia e se agoniar por uma ou outra notícia, rir e se queixar alto de
outras e não poderão fazer nada, estarão sentados numa mesa imbecil com filhos falando alto
coisas imbecis a sua volta, é papai, quero isso, mamãe, quero aquilo, e vão te consumir a
própria vida, vão foder inocentemente a ela e vocês ainda acharão bonito, mas é esse um
assassinato desde cedo. Se orgulharão de abrir mão de vocês mesmos para que esses
imbecis se ergam, e um dia eles farão o mesmo pelos próprios filhos, e em geração nenhuma
alguém realmente viverá.
– Façam alguma coisa! Que pode, podem. Por favor, só resta querer.
Todos choravam e rastejavam ao redor um dos outros e o ovacionavam, quem diria que o
momento o tornaria um orador exímio, o deus inspirador das lágrimas que poderiam abater até
mesmo Alex.
– Esse homem está maluco! – berra León metalicamente, e a voz se esganiça. – E os
loucos falam o que falta aos sãos, ouçam-no!, que é tudo verdade – e ajoelhou-se gritando e
mordendo as próprias mãos, arrancava os próprios dedos. – Sou um merda, um velho
vagabundo com ilusão de superioridade, um romântico que vive para o que já morreu, sou um
nada!
– E-e-eu também! Eu também – Bonaparte abraça León e chora.
– Ele tá certo – Sylvia, que é a libertina, não que não houvessem mais dessas, mas cabem
bem os rótulos quando se deseja ilustrar momentaneamente a alguém, ainda que não se
queira matar a descrição, Sylvia chorava –, somos vis – começou a passar as mãos no corpo
esfregando a sujeira que sentia. – Ai, somos tão sujos...
– Vai à merda! – alguns nunca se entregam. – Fale todas essas coisas por você – gritou
Gabriel –, não vamos servir pra que você se sinta melhor.
– Você tá com medo, garoto – gargalhou León –, nada mais.
– Medo de quê? Não tenho razões pra temer.
– Então é pior ainda, não reconhecer isso só te torna mais maricas.
Desataram-se as gargalhadas enquanto olhos buscam por um silêncio que nunca mais
encontrariam. E por resumir-se tudo à máxima sinceridade, seria impossível definir um foco em
que todos poderiam se ater, que a sinceridade oscila e nunca se sabe o que dela pode vir, que
cada um é um. Assim, pode haver um a rastejar de costas no chão, entre um sujeito sentado,
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enrustido, melancólico, pensando como vai fuzilar todo mundo aqui na semana que vem, e
outro que está saltando em piruetas a berrar irrá-irrá, é tudo isso possível, finalmente tornou-se
tudo permitido. O grande circo de horrores que Alex tem no espírito é finalmente externado, e
ver isso o fazia relaxar. Debruçando a cabeça para trás, como se deitasse e se deixasse levar
a esmo por alguma correnteza, imagina estar vendo estrelas a girar no céu, e na terra ouvindo
sinfonias, e aí queimou satisfatoriamente os dedos na guimba do cigarro. Eis a sinfonia.
– Maricas! Maricas! – muitas vozes.
– Vocês não sabem o que estão dizendo!, não acabaram de ouvi-lo?, mas que merda, ele
acaba de confessar que matou alguém!
– Foi, sim! – Martin gritou.
– E por um acaso faria de novo?
– O arrependimento não vem ao caso – disse Habib –, lamentar-se não é produtivo, olhar
para frente sim.
– Ele se acabou e agora se reconstruiu – diz Sylvia.
– Meu deus, meu deus, o que vão fazer? – a moça loira encolhia o rosto nas mãos e
chorava.
– Ele matou alguém, e agora estamos todos na merda, essa é a verdade.
– Pare de falar uma coisa dessas! Nunca mais repita isso.
– Não se sinta culpada, não fomos nós – o doutor Dantas, que é o rechonchudo doutor,
doutor de médico, subiu na poltrona e abriu os braços como que abre asas. – Mas o ouçamos,
o ouçamos!, somos todos culpados de apatia – gritou para ser ouvido –, todos culpados das
coisas que acontecem no mundo, se é que há culpa, mas tudo que acontece, de certa forma os
responsáveis somos nós, reconheçam isso, finalmente.
– Isso é bobagem, que bobagem está sendo dita...
– Se a vida fosse assim não haveria sequer culpa.
– Se a vida não fosse assim sequer precisaríamos estar aqui.
– Ah! Agora não nos cabe a mais nada, a não ser escolher.
– Escolher o quê? Escolher?
– Apenas escolher, não me faça explicar uma coisa dessas.
– Não estou me sentindo bem, estou um pouco...
– Apenas escolher, é o que devemos.
– Escolher o quê?
– O quê? – Gabriel urrava –, escolher a quê?, se eu vou te matar no instante seguinte?
– Sim, seu fedelho imbecil – León grunhiu como se estivesse ele mesmo prestes a isso. –
Se não agüenta, saia!, saia! Vá embora!
– Entrei antes que você, não é você que vai me mandar embora.
– Parem com isso, não os leva a lugar algum – André apontou vividamente.
– Os deixe – Alex tragou o fumo.
– Só não descumpram o pacto – Stern.
– É com isso que estamos preocupados?, é com o pacto? Essa porra de pacto?
– E tudo isso não estava incluído no pacto, estava? – Gabriel suava frio.
– É com isso que você está se importando? – León.
– Meu camarada, sequer estou falando com você, faça o favor de me deixar em paz.
– Se você quer paz, foda-se!, vá embora daqui, que não é o lugar certo pra isso.
– Pára, pára – a menina loira chorava.
Há-há-há, que coisa mais absurda, chega disso, por favor, há, há, ouçam a um só, pelo
amor de deus, assim ninguém se entende e o que vai acabar acontecendo é um matar alguém
de novo, por favor, ah, de novo não!, ainda não posso acreditar, há-há-há!, gritavam umas
tantas várias coisas autônomas. Numa hora como essas uma arma falaria mais alto, disparo ao
alto ou tiro na têmpora. E pensar que poderiam tê-la, que não havia nada para que impedisse
alguém de trazer uma, de tirá-la das calças e fazer o que quisesse. Mas a expectativa é o que
realmente excita, o ato consumado não deve ter muita graça. Não saber o que vai encontrar a
cada dia é sempre a melhor de todas as situações. O contrário do que geralmente se sabe
sempre acordar. Está a fugir disso que se sabe todos os dias, porque nada disso lhe foi
suficiente.
– Hein?, hein? Ninguém concorda? – e minguou a descobrir que se alguém o fizesse não
seria atraído por seu carisma–, como? – as forças se foram e empalideceu.
– E eu que sou da polícia – lamuria-se Robes, o agente, com a cara entre as mãos.
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– Vamos conversar aos poucos, vamos fazer... – esse sujeito recebeu uma garrafada na
cabeça.
– Acabou tudo, o sujeito ali está sangrando, alguém o ajude.
– Estou morrendo!, estou morrendo!
– Há-há-há, vamos fazer algo bem horrível por aí.
– Vamos para a rua, então.
– Tá louco?
– Vamos fazer algo bem horrível.
Acaba que no fim tudo o que fizeram foi comemorar o retorno à escuridão, secretamente é
o que Alex mais fará, e de todos é o que mais está a comemorar, ainda que venha a se
lamentar com a mesma freqüência. Por muito tempo silenciou e deixou que tudo fosse
conduzido do jeito que parecia melhor, no desenrolar que devia o mais espontâneo, não
poderia imaginar alguma coisa diferente da própria ocasião que se apresenta, tudo o que tinha
de fazer era se curvar, sorrir e fluir. Eis aí a maturidade do sentimento que não se originou essa
noite, mas foi gerindo-se pelas eras em forjas de sangue, por fim fervilharam o seu.
Agora se questiona se não teria sido assim melhor, do jeito que simplesmente foi, com
esse deixa estar. Já não seria com tanto esforço que poderia vir a achar que está tudo bem,
tudo ok. A reunião se encerrou como de costume, pelo cansaço de seus participantes e pela
hora, que quanto mais avança a noite mais se observa o seguinte contraste, a ascendência de
cada vez menos lucidez, mas também algumas noções pouco bem-vindas de
responsabilidade, porque sempre tem alguém para lembrar que tem de trabalhar no dia
seguinte, que tem que visitar a mãe doente no hospital e já está ciente das olheiras com que
fará isso, tem uma reunião com familiares etc. É que geralmente o sono de tantos é
compensado, de que forma?, ora, simples, pela satisfação, que, por um lado, se está a ganhar
as pálpebras pesadas e a desatenção diante de tudo ao redor, por outro lado é mesmo capaz
que rendam mais nos seus cotidianos, pois enfim resta uma sensação de leveza das mais
redentoras e terapêuticas, estarão revitalizados e coisa assim, os demônios que vivem dentro
já relaxados pela dose do vício que é poder se mostrar. Essa gente torna-se transcendente ao
sofrimento porque ri em sua cara e vencem-no pelo cansaço. Eles criaram a maior consolação
que o sujeito pode ter. Se Alex está destruindo vidas ou mantendo-as, é este um problema
conceitual, de tão relativo de pouco importa, só lhe resta esse semblante escuro ao sentar-se
no meio-fio, a viciar-se em mais um cigarro, a fumá-lo como se fumasse o último, a tossir como
se fumasse o primeiro, sabendo que na verdade engasga pelo nojo de se achar meio
asqueroso, sabendo na verdade que o que sente é também meio orgulho.
Se antes a cabeça estava cheia demais para que pensasse, agora apega-se ao vazio
como um mimo onde se apoiar. Júlia atravessou a calçada ao longe. Parece ter feito de tudo
para evitar passar por onde ele está. Ele fica rindo por aqui. Ela o teria visto, não haveria outra
razão para estar andando a passos rápidos assim, com as mãos tensas a segurar os interiores
dos bolsos, deve estar provavelmente a pensar alguma coisa do tipo, que nunca mais volta ali,
que idéia imbecil ter vindo, que foi um erro ter estendido as mãos aos ingratos que não
quiseram tomá-la etc. Que se danasse, pensou um pouco revoltoso, e a revolta aderiu a níveis
mais profundos, que fosse à merda, pensou e não pediria desculpas pelos termos, o repetiria
mil vezes e enchendo a boca se o precisasse repetir. Quando ela entrou pela porta do carro,
ali, estacionado no vazio da calçada defronte, teve a impressão de que perdê-la de vista assim
era sinal de que jamais a veria novamente, mas é claro que isso, agora, não vai mobilizá-lo,
essa mesma sensação que em outros tempos provavelmente faria seu coração rodopiar e
morrer de nervosismo. Está indo agora?, é, bem feito, que quem perde é ela, se bem que é
tolice pensar isso, que muita pouca diferença deve fazer a ambos, mas que vai tarde, vai.
Bublitz passou andando próximo, acaba de pular as grades do estacionamento baldio, ajeita
aceleradamente o gorro na cabeça, que o cansaço se acumulava nos olhos mas não nas
formas, e quando o rosto magro cruzou com os horizontes de Alex, o acenou amistosamente,
ao que ele retribuiu, natural, pois é um excelente garoto e não faria diferente. Stern sairia em
seguida, outros mais, mas esses não o viram ali encolhido, e os demais já se teriam ido ao
descanso dos lares, àquela mesa de bordados e o tal gosto de café matinal na boca que Martin
aludira e Alex entendeu exatamente do que ele estava falando. Deve ser muito mais difícil para
eles, pensou, enquanto o gosto do cigarro migrava da língua para o céu da boca, aí a expeliu e
concluiu, devem ser eles os maiores vitoriosos. É mesmo uma grande vitória. Se não, é pelo

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menos uma grande tentativa, uma que não se pode mais encarar com sorriso na boca e com a
paz dos indiferentes.
Foi André quem agora chegou, pálpebras cerradas e fachada meio alucinada, e ver a ele
era imaginar Júlia chorando no silêncio do carro, pois, como ficou claro, ela se adiantou ao
seguir para lá, tendo muito provavelmente antes disso implorado secretamente para que
saíssem logo dali, que se não o fizessem ela ficaria louca, acabaria não respondendo por si.
Ou está chorando ou remoendo-se de raiva, que seja tudo junto também é possível e acaba
sendo o mais provável. André o abraçou, caindo de joelhos diante dele com os olhos miúdos.
– Assassinamos a história – Alex sussurrou calmamente.
– Todas as coisas novas nascem de um parricídio – balbuciou freneticamente –, Zeus
precisou ir contra Saturno para que nascesse a mitologia.
– Engraçado, eu tinha pensado algo a respeito disso, mas parece que acabou
amadurecendo na sua boca. E olha, que faz mais sentido do que eu presumia – e continuou a
fumar.
– Estamos no caminho certo, não é?
– Eu não sei.
– Se não estivéssemos já teríamos descoberto. Uma coisa incerta não poderia pôr tanta
gente pra pensar assim, o pensamento é o que importa.
– Atualmente não tenho conseguido pôr os pensamentos em ordem – coçou o rosto. –
Para entender as coisas tenho ido e voltado ao passado, às vezes uns mais distantes, às
vezes outros mais próximos, e quanto mais alcanço uma resposta, me chega outra pergunta, é
a situação clássica.
– Você é um grande sujeito, Alex. Nada disso seria possível se não fosse por você.
– Obrigado, André – e o olhou nos olhos como se dissesse muitas coisas, nem ele mesmo
saberia o quê.
– Hoje foi terrível.
– É a tendência.
– Por mais que tentemos nos esquivar a verdade sempre aparece, você falou de tendência,
acho que essa é a pior tendência que descobrimos.
– É uma experiência e tanto.
– É. Bem, eu...
– Boa noite a você, sim.
– Até a próxima, aqui?
– É de se esperar. Até mais ver.
André se foi com passos profundos em direção ao carro, os escuta chibatar o asfalto como
trovões. André diz que nada seria possível se não fosse por você, mas ocorre que nada seria
mesmo possível se não fosse por ele, que a rigidez do caráter provou-se vital para tornar as
coisas todas práticas e efetivas e concisas. E eu, segue-se pensando, não posso ser rigidez
alguma, nem mesmo se fosse das confusões, que também é coisa que me vai-e-volta.
Habib saltou das trevas encolhendo o peito, estava de passagem.
– Parece que no final você esqueceu de cumprir com tua própria loucura – disse a Alex.
– É – e ele absorvia a imagem de André se distanciando –, mas hoje eu já me pergunto se
valia realmente a pena, e acho que não.
– Isso é só você que pode saber. Boa noite, Alex.
– Boa noite.
É que a loucura era Júlia.

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Voltou ao passado. Sou um abandonado, eu me auto-despojei numa sarjeta, me isolei para
sempre do mundo das coisas limpas e aceitáveis, das luzes e dos sorrisos comedidos, dos
trabalhos bem-sucedidos e dos sujeitos bem-vestidos, das coisas supérfluas que tão bem nos
caem, rejeitei a tudo isso e me cabe um anonimato nas trevas, já me empenho em vagar à
noite vigiando quem nunca saberá quem eu sou. Refletia acerca dessas coisas enquanto
terminava um pacote dos biscoitos de queijo que tanto aprendeu a gostar, são crocantes e de
um saboroso gosto amargo. Quase inconsciente olhava a televisão muda, ali, próxima ao teto,
e ele parado numa esquina qualquer entre as estantes da loja de conveniências, o rosto
erguido, segue com o jeito de quem não matuta nada importante e de fato não o faz, a
aproveitar o silêncio que é o contrário do silêncio que terá ao estar em seu lar, que há de ser
angustiante. É que não conseguiu dormir e arranjar qualquer outra coisa para fazer em casa
seria extremamente desgastante, pensou precisar espairecer e as paredes o coagiam, por isso
resolveu vagar um pouco.
Acabou dando numa esquina, dessas que não têm nada em especial nem próximo e nem
distante, e nessa normalidade está agora afogando os ânimos, não porque estejam
voluptuosos, mas então, está numa loja de conveniências vinte e quatro horas, que pelo
horário de agora lhe assegurará privacidade, vê-se isto no vazio chiado da televisão a
sussurrar, a presença respeitosa de um ou outro desgarrado dos rebanhos diurnos, bêbados,
tristes ou miseráveis e o rapazinho cansado do expediente que ignora os perigos de sua
displicência e mantêm os braços apoiados na cabeça, por várias vezes quase cochilou ao
balcão. É bom que aí uma daquelas câmeras com aquele jargão diabólico de sorria, você está
sendo filmado, o pega e ele não dura muito com esse emprego. Acontece que não tinha nada
mais interessante para fazer, então se ocupou um pouco do ódio que sentia pelo balconista, o
ódio mudou a sua forma de perceber, o ódio passará a motivar seu ser, veja só, até mesmo as
mordidas nos nachos revelam expressões de revolta, vingança sem uma causa, aquela coisa
pesada no sentimento, sabe como é. Imagina estratagemas de assalto, a furtividade com que
os bandidos entrariam pelas portas, sacariam suas armas, apontariam e humilhariam aquele
desgraçadinho, que o atendeu com tanta má vontade quando tudo o que ele queria saber era
quanto estava o preço dos biscoitos, realmente, é mesmo algo digno de se suspirar
pesadamente quando se pede que se consulte o preço de uma coisa no seu código de barras.
Fica a matutar suas diversas maneiras daquilo acontecer, evolui ao ronco bronco que se ruge
quando se é degolado, ri-se de vê-lo empapar-se de sangue traqueal, de repente tudo também
poderia ser da maneira mais tradicional, que é a de estourar-lhe os miolos com um revólver na
testa, não descarta a idéia da facada nas tripas porque daria o tempo dele sangrar enquanto
olha quem o assassina, ter privacidade com a morte a chegar. É, e isso tudo porque Alex não
agüenta ficar mais em casa, que lá cada canto o põe a pensar sobre a sociedade, divagando
sobre métodos e baboseiras que planeja, teorizar a expectativa de como será, sentir-se
ridículo, então teorizar ainda mais, então tentar retornar à escuridão etc, é que às vezes
precisa pensar um pouco sobre a morte de um desconhecido, parar um pouco, dar um desses
passeios inspiradores.
Foi quando viu aquela garota dos cabelos desgrenhados, que foi a primeira coisa que lhe
marcou na impressão, os fiapos todos rebeldes eletrizados e repelindo-se uns dos outros.
Podia olhá-la sendo discreto, é o que prefere fazer, ainda mais a julgar o seu comportamento
estranho, especial, engraçadinho, que no caso é o de se posicionar em frente a máquina de
cigarros e ficar atentando se o mocinho do balcão não está de olho, isto é, é quase um convite
para mostrar que está aprontando alguma. De repente ela quer roubar os maços, mas para
alguém querer uma coisa dessas tem mesmo de estar muito desesperado, se bem que ela tem
uns olhões assim, coberto por olheiras marcantes, um rosto pálido e abatido que é típico da
gente viciada em pelo menos alguma coisa, então tem mesmo todos os traços de uma pessoa
simpática. Teve de disfarçar um pouco para não ser pego bisbilhotando, mas ela estará pouco
ligando para você, se diz, além do quê, aqui dentro só resta um senhor a ocupar-se da sessão
dos uísques, a freqüência hoje a noite está mesmo boa, pode falar. Os biscoitinhos estavam
acabando.
– Tenta fingir que esbarrou – murmurou –, às vezes cai um.
– Quê? – assustou-se.
– É a carteira que quer apanhar? – apontou.
O estranhou por instantes, – É.
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– Chuta mais ou menos em baixo, às vezes cai.
– Faz barulho.
– Aquele rapaz não pode fazer nada, não faria diferença mesmo se você forçasse.
– Qual é a tua?
– Nada.
O estranhou por mais uns, – Então paga pra mim.
– Eu não vou dormir com você – e sorriu.
– Como é?
– Eu não vou... – ia mesmo repetir.
– Cretino – e fez que ia sair, pois é, Alex, que você conseguiu mesmo atrapalhar a vida da
menina.
– Calma – não se fez de rogado, ainda ria –, eu te pago a carteira.
– Engole se quiser, que eu não faço questão.
– Bom, se é assim, eu pego pelo menos pra mim – e foi.
– Babaca.
– Qual teu nome?
– Como é?
– Mas quanta dificuldade – insere a moedinha e olha para trás.
– Sylvia – a garota hesita e o deixa penetrar.
– Fumemos.
E ela aproximou-se. Elas sempre se aproximam. Abriu o maço e estendeu-lhe um, e ela
aceita. Olhando-a assim começava a ter idéias. Ofereceu-lhe o isqueiro, ela o olha escabreada
porém deixa que ele acenda, agora é ele quem dá um passo para trás, coça sonoramente a
barba por fazer, que há muito que ele já perdeu a paciência, e acende o seu próprio cigarro,
que está dependurado na boca feito gangorra que já não tem força e vai cair.
– Já tentou aqueles adesivos? – ela perguntou.
– Quê? – ergueu a cabeça.
– Que combatem o vício.
– Não, também não tenho curiosidade. E aquelas coisas podem dar overdose.
– Não funcionam.
– Acho que já tenho câncer nos pulmões. Com sorte só em um.
– Tem mesmo cara de quem tem – falou com a boca cheia.
– Não sabia que existia uma cara dessas.
– Existe – sorria – cara pra tudo.
– Você não tem cara de nada – e se lembrava de outro ser que não tinha rosto, e mais
miserável ainda, que não tinha nem nome.
– Essa deve ser a pior cara que existe.
– Não, a pior cara é sempre a que está lá no espelho.
– Ou então eu tenho cara de vagabunda, que provavelmente é o que você acha.
– Por quê? – pigarreou.
– Não tem porquê, é a coisa óbvia.
– Não é verdade, o que eu tô pensando é em te pedir o telefone.
– Por quê?
– Também não sei. Talvez te convidar pra um lugar.
– Quem é você?
– Alex, prazer.
– Sei, e isso não me diz nada – se cumprimentaram.
– Também não me diz. E aí?
E ela deu o telefone, o disse e ele respondeu que anotava na memória, e era mesmo, e
não corre o risco de esquecer. E antes que ela se fosse, conseguiu escorregar um convite por
dentro de sua bolsa. Agora ele carrega convites consigo, sente que a qualquer instante pode
precisar. Nada melhor que um desconhecido que cheire a caça, nada melhor que fazer o
imprevisto. E podia executá-lo tão facilmente que não teria porquê se poupar disso, não seria
digno. Com as mãos enfiadas nos bolsos e o orgulho escondido no rosto, observou
calmamente enquanto ela partia. Deixei a entender, ele se disse, que ligaria, pena não poder
ver sua cara quando descobrir do que se trata. Começa a ter a idéia que quanto mais
desconhecido o indicado, mais fácil é dele aceitar.

247
Alex mais do que nunca está começando a trocar a noite pelo dia, que agora ele pode, e
não só quanto às capacidades, mas o que importa mesmo são as razões, e agora ele tem
criado o terreno e os pretextos que precisava para viver como desejou. O vampiro oculto está a
afiar os seus caninos, conhece o seu terreno de caça, estuda minuciosamente as curvas da
escuridão, é sua passarela discreta, avista e saliva ao notar nosso pescoço, deseja toda a vida
que corre a pulsar na jugular. O espreitar noturno lhe tinha sido necessário, agora começa a
perceber um processo que teria se originado com essa sua vontade inocente de substituir a
sina, de adiar o tédio, finalmente está alcançando seus objetivos finais. Não havia melhor
público para selecionar que não qualquer um, a questão era a hora, o momento em que os
sorrisos escorrem, que nenhum sorriso é natural e suas carrancas sugerem o que realmente
desejam. E só uma inteligência apurada poderia agarrar a cada símbolo. Feito a dele,
esperteza que é refinada para isso, genial, sim, no instante em que trava contato com uma
pessoa, e basta que lhe seja dado uma pista, apenas uma, e ele saberá dizer quem tu és, não
conseqüentemente com quem andas, mas também a isso saberá dizer, mas principalmente
terá dito quem tu te tornaste. É essa agora a sua missão, é a queima de combustíveis fósseis
do antagonismo entre a vontade mais ridícula que pode um ser humano ter, e a sanidade que
um dia possuiu, mas não se foi completamente, não há pior seqüela que essa.
Ele tem algo que pode excomungar a todos, acredita nisso ou meramente deu-se conta. E
não, essa não é uma mudança, nem está muito certo quando isso começou. Sempre possuiu
essa vocação para a destruição, o que acontece é que tende a cada vez mais descobrir, não
só isso, a escolher assim fazer, sente que é o único rumo que se tem a tomar, que se lhe resta.
Primeiro pensa ser coincidência que todos vão se enredando em sua escolha pessoal, a
escolha pelo retorno à escuridão, depois entende que não há entre a gente tanta diferença
assim, que no fundo os anseios humanos hão de ser os mesmos, por mais que as épocas
abafem, ou que abafem as urgências da classe, da vida moderna, e tudo o mais, os risos são
mais ou menos os mesmos, a maneira de se nascer e engatinhar, de devotar-se às coisas e
apaixonar-se e sofrer. Alex é o primeiro humano de qualquer mitologia, aí ele se confunde um
pouco, não sabe se foi ele que separou o céu da terra, ou se soltou o fogo para a gente, ou se
foi os males, enfim, à parte essas controvérsias de sua ignorância descartável, ele entende
mais ou menos os moldes no qual se inseriu, ou foi inserido. E é assim que na madrugada
adentro ele ruma, e inspira os outros a irem consigo.
Júlia agora anda empolgada com a idéia da sociedade, tanto que ela mesma quer usar o
seu direito de sugerir até sete indicados, e ele riu, mas ela previu a risada e esteve com o
princípio da isonomia na ponta da língua, como se valesse de alguma coisa. Tolinha, foi o que
ele pensou em contrapartida, mal sabe ela que uns são mais iguais do que outros, esse tipo de
coisa só se aplica quando se quer, se bem que seria chato, e nada mais do que isso, chato, me
enredar nessa discussão sem fim, ou que termina em grito e cruzar de braços, e eu não quero
me cansar. Só de imaginar a voz estridente choramingando cheia de razão, e André, que não
toma o partido de ninguém, é demais. Seria suficiente se encontrasse um pretexto que a
fizesse calar, mas ela não é do tipo fácil de conviver. Por um instante volveu para o lado de
fora da janela do carro, distraiu-se com as dinâmicas do mundo de lá, se dá ao luxo de pensar
sobre as coisas que tinha a fazer em casa, por um instante até quase lembra-se que fazem
dias que tem adiado os trabalhos pendentes, se já houve um ritmo, hoje ele se perdeu, tudo
bem, logo a voz dela inviabiliza qualquer concentração, transe, meditação, nirvana, e é mais
como se arranhassem unhas num quadro negro.
– E por que não? – perguntou. – Hein? – esganiçou a voz de Júlia.
– Eu disse que não? – virou-se furioso para dentro. – Apenas sorri, deixe-me sorrir em paz.
– É do que se diz sardônico, caso não saiba.
– Puta merda, como eu sou inteligente...
– Alex, menos – André balbuciou.
– Que é isso?, complô?
– Se alguém olhasse de fora – Júlia recomeçou – diria que você tá acostumado a ter a
razão. Nunca foi assim. E isso não mudou. Nós aqui sabemos que é só mesmo a pretensão.
– Como sou pretensioso.
– Chega – ela rosna para trás.
Bufou, ao que deixava para lá, – Chega, é claro.
– Mas quem você tem em mente, amor? – André pergunta.
– Um conhecido do trabalho – respondeu.
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Deve ter comido ela, é a primeira coisa que pensa quase que por instinto de sobrevivência,
desses que eriçam os pêlos do braço e dilatam as pupilas. Aí concluía sobre as ramificações
nas palavras dela, naquelas suas recém-ditas justificativas, a notar a insegurança constrangida
com que as entoou. É que até entre os mais caras-de-pau ainda resta um tanto de
constrangimento, que ainda não conhece alguém que simplesmente não sofra de peso algum
na consciência. Eis uma razão para senti-lo, já que no almoço, sem a menor necessidade de
ocasião especial, ela estaria – isso ele afirma porque já viu – dizendo a André que o ama mais
que tudo, que ele é a razão para que ela esteja viva, e no jantar estaria nos lençóis com o tal
conhecido do trabalho, conhecido do trabalho é a desculpa esfarrapada, e ela está só gemendo
que é para que não se troquem os nomes, ah, ah, ah. Ele julgaria Júlia, se pudesse. Recrutaria
os indícios que tem e os pesaria, mas só se pudesse, foi dito, é claro que isso é porque ele não
pode, e por quê?, porque cada vez que pára para pensar nisso, como é o caso de agora,
acaba perdendo as estribeiras do seu raciocínio, solta-lhe as rédeas, e como se sabe de outras
ocasiões não prevê aonde tudo vai descambar, que agora, por exemplo, ele vai imaginando ela
na cama com um desconhecido, e depois com outro, e depois com mais outro, depois com
todos esses e mais uns, e olha, agora é simultaneamente com esses caras, e ela rola, se
lambuza toda, de um jeito que é tão agressivo de imaginar que ofende e envergonha até a ele
mesmo, que sabe que ninguém está vendo o que lhe passa na cabeça. O coração aperta com
um ciúme que não deve sentir. Engole, trancafia. Tem de proteger os sentimentos de André,
que é seu amigo.
Esteve suando frio, mas tudo isso é interno, enquanto conversavam os dois camaradas no
banco da frente, e ele não sabia por que rumos tinha fugido a conversa, mas a julgar que eles
estão trocando carinhos e discretas juras de paixão, afinal não podem se exceder com um
intruso no carro, tudo acabou bem mais uma vez. Ele esquecido ali atrás. A vida segue da
mesma maneira de merda de antes, a prova disso é que por mais uma vez está ali, sozinho,
diante dos dois. Aí ele se lembra do que estão fazendo essa noite, e consegue se tranqüilizar.
Estão indo recrutar o primeiro membro da sociedade, partindo do suposto que ele não tenha
gargalhado diante do convite e do telefonema, ao que parece que não, segundo André
constatou. Ainda não é garantia que ele vá comparecer, Alex constatou, ao que André o
respondeu, fora do escritório não sou homem que precise ou queira de garantias. Está certo,
não há quem possa questionar uma afirmação como essa, se calou com dó e se conteve.
A avenida cheia de luzes é uma que ele conhece, de dentro tudo passava como feixes, raio
laser, a realidade borrada numa mancha de aquarela, coisa assim, e ele não se prende mais
tanto à atenção dessas coisas, que a vista cada vez mais debilitada já não permite. Às vezes
tudo o que resta é como um cego ficar centrado num ponto vazio, não merecendo a atenção de
nenhuma outra alma, cabe pensar, a esquina ele reconhece, por um instante o som dos pneus
carecas guincham, o incomodam feito se o acordassem a pontapés. O endereço ao qual ele
orientou que André passasse tinha sido outrora articulado, que muita pouca coisa lhe escapa
da cabeça, e ainda que carregue consigo o espírito essencial que vá usar essa noite, ainda
está a gerir a coisa terrível que há de ser feita no futuro. O retorno à escuridão o está pedindo
para funcionar, primeiro foi forma de livro, agora acontece na forma de gente. Estão chegando.
O retrato que tem da rua era mais ou menos esse, que há muito tempo não vai ali, mas por
algum lampejo do acaso foi a memória que tinha da arquitetura dela, do clima, que seja, que
lhe foi mais ou menos inspirador, ou talvez tenha sido mesmo randômico que tenha dito vamos
exatamente para essa tal rua, por que não outra?, dane-se, vai ser essa e ponto final, é porque
definir entranha à coisa um tom de segurança, e essa constatação inútil e implicância sobre
uma merda de assunto provavelmente o estarão fazendo se perguntar que raios é que tem na
cabeça, provavelmente a resposta é desagradável, pouco. Aqueles prédios de poucos andares,
a rua de movimento disperso, novamente esquina, o posto vinte e quatro horas, que como ele
previu ainda existe e é de fato vinte e quatro horas, como tal apresenta lá o seu movimento até
a essa hora da noite. É bom que tenham escolhido esse dia, um desses de fim-de-semana,
que ninguém trabalha e não se devem satisfações, e quanto mais movimento melhor.
Abaixou o vidro, quase não consegue rodar a manivela emperrada, e deixou o vento
despentear-lhe a cara com jeito de quem sente a satisfação de um cão. Na porta do lugar viam-
se os carros parados, devem ser os carros dos playboys, dos malacos, dos que não têm o que
fazer. Feito ele. Olhou orgulhosamente por estar tudo nos conformes, como se fosse ele quem
comandasse a presença daquela menina apoiada no carro, do marmanjo se curvando sobre
ela, de outros sujeitos dispersos nos capôs com suas garrafas de bebida, e os invejou por isso.
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O frentista que trabalha no posto e olha torto para a rapaziada, que o estardalhaço que fazem
não é lá dos mais agradáveis à vizinhança, que é pacífica, esse tipo de coisa etc. Júlia fez com
que a atenção de Alex se convertesse em náusea ao comentar de que o esmalte de sua unha
está saindo, veja só, ela sempre sabe usar dos meios eficientes para derreter o cérebro
inimigo. André contestava, ao menos é o que parece, e isso já é passado, a eventual escolha
dela para indicado – Alex não pode argumentar, não acompanhou a discussão, tampouco quer
travar uma com ela, de repente um outro dia em que esteja apenas ele e André no Schneider,
é certo que as coisas fluirão muito melhor. Certo, a atenção novamente. Não, Júlia boceja e
reclama languidamente do cansaço, que bonitinha, olha que por um instante ele mesmo se
compadeceu e a olhou piedosamente. Certo, a atenção. Os jovens defronte, a moça saindo
com as compras, que alguns gostam de fazer compras a noite que é mais tranqüilo, o frentista
acabando de conversar com o limpador, o sujeito com o queixo fincado no peito, o movimento
da gente randômica de todos os dias que entra e saem desses lugares que não nos dizem
nada.
– Ele veio? – a voz de Alex saiu sonâmbula.
André demorou tempos para olhar, ia metendo o carro pelo caminho das bombas de
gasolina, o cheiro dali era relaxante. Antigamente, sempre que ia em postos, Alex gostava de
deixar os outros malucos porque ameaçava riscar o isqueiro e jogá-lo no chão, por uns
instantes ninguém o levava a sério, depois de uma insistência chata começavam a acreditar, e
depois de mais um pouco era ele mesmo quem começava a desconfiar de que o faria.
Chegaria muito perto de explodir, se ele não soubesse que não poderia aproveitar o espetáculo
por muito tempo é capaz que já o tivesse feito, e ele ainda culpa esse cheiro, pensa que
anestesia a razão, é como uma droga, vicia e te faz ter na cabeça tudo o que você realmente
quer, tudo que não tem porquê. André está olhando por fora das janelas, pode ver facilmente o
frentista acenando com a flanelinha, indicando que tome o caminho tal para a tal bomba. É
Júlia quem acena que não, que diz que não precisa se dar ao trabalho, ela é metida a
simpática e a prestativa, gosta de fazer essas coisas sorrindo. Alex só consegue imaginá-la na
cama, agora com o frentista, até esfregar os olhos e expulsá-la da cabeça. É por essa altura
que André começa a girar o volante, o carro grunhe, mas começa a obedecer e a efetivar o
retorno. Olha um pouco, a demora é preocupante, faz menção de que vai indicar alguma coisa,
mas volta atrás, que percebe que fez confusão. Aponta novamente, dessa vez é mais certo, é
ele, o sujeito com o queixo fincado no peito, Alex particularmente o reconhece do dossiê, e ele
também o deve estar reconhecendo, não a Alex, mas a André, que acaba de olhar, deve
processar as informações que Alex conhece que ocorrem na gente que não se vê faz muito
tempo, isso se ainda não está pendente o reconhecimento. Com o rosto quase todo protegido
pelo vidro do motorista André grunhiu alguma coisa, não está muito claro o que ele disse, mas
sim as intenções. Diz que é de fato aquele quem buscam, o rapaz com ares recém-saídos da
juventude, a barbicha ruiva que ele limpa dos farelos de algum salgado que comeu para não
esperar de mãos abanando, esse sujeito que parece um pouco afoito, porque dá passos de um
lado ao outro. Ótimo, os ansiosos são sempre mais fáceis de se lidar, mas esse olhar, se é que
realmente há esse olhar que Alex pensa estar emitindo, perdoando-o porque não pode
enxergar muito bem, esse olhar tremula de insegurança. Já não é um bom sintoma, e nas
trevas às quais ainda está submetido ele franziu o rosto, é que sente-se o juiz das coisas mais
íntimas que já possam ter sido réus, e exerce seu magistério ainda que não saiba muito bem
como. Júlia bocejou.
– É ele? – perguntou Alex, e não desviou os olhos.
– Diferente, porém inconfundível – respondeu André.
– Está franzindo os olhos, não parece ter nos visto – continua André, silêncios após.
– Ou está confirmando.
– Já nos viu – Júlia.
– Não estou falando disso – ele retruca vitoriosamente –, confirmando se é seguro. É a
única coisa que ele pode estar considerando.
– Às vezes as pessoas te escapam, Alex – ela.
– Diga-me uma vez – altivo, ele urrou –, e eu calo a boca.
É claro que só a coagiu porque sabia que ela não podia, e o gosto de vê-la se calando com
o sorriso que ainda tenta ostentar austeridade mas não consegue, porque visivelmente se
acabou e o ciclo de ameaças se fechou, era embriagante. São situações magníficas como
essa, pensou, de domar uma mulher, e que está longe de ser uma mulher qualquer, que
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ninguém poderá me tirar. Vê a prática de um deus desconhecido dentro de si, está emergindo,
que esteve afogado há muito. O vulto do sujeito da barbicha.
Vinha andando, é, começara, e olhava de um lado para o outro, e Alex estava certo ao
concluir que todos os terrenos da criatividade do indicado deveriam estar aflorando, a
imaginação dos piores crimes do passado e a conspiração vingativa que agora se podia cair
sobre si na presença de um velho conhecido, obviamente que não o representa absolutamente
mais nada, mas nada impede, por exemplo, que o tenha vigiado durante todos esses anos. Até
o instante final, quando resolveu contar-lhe a verdade para que continue escondendo o
segredo, ou simplesmente seja essa uma ameaça, que se conhece seu endereço, a família etc,
e a morte pode não ser o pior entre os fins dentre os tantos que ele pode imaginar. O sujeito
olha para as sombras temendo estar sendo vigiado, é claro, e Alex se refestela só pelo prazer,
que lhe é suficiente, de desarrumar um pouco as coisas que não são suas, que ele implica e
interfere na privacidade dos demais. Agora tinha que usar da disciplina rápida dos
pensamentos, deduzir o que lhe diziam os traços, o jogo de pernas meio desequilibrado que
devem ser de nervoso, as mãos de punhos cerrados que devem ser tensão, o sorriso que vai
surgindo que deve ser de gentileza, um homem doce que pensa estar rude, rude que não vem
conseguindo ser doce, mas compensa a tentativa e ela por si só já representa muitas coisas.
Por um instante os olhares se cruzam, e a posição vantajosa deve ser mesmo a tua, Alex, já
que ele te desconhece e você é meio assim, antipático, fulminante, digamos ardoroso, que faz
mais jus. Há um gesto de respeito comedido, mas por trás desse ele também o ignora, Alex,
não reconhece tuas devidas importâncias, teus planos que te levaram aí, e subestima que é
você a agora esmiuçá-lo, que destrincha a polpa hipócrita que ele é, dentro de pouco estará
atingindo o caroço duro. Acredite, em breve todas essas impressões irão se desfazer por causa
de uma só palavra dita pelo rapaz. Prova de que Alex não é psicólogo, só é um vulgar, e ainda
bem que Júlia não pode perceber essas coisas e se vangloriar às custas dele, tá vendo?, ela
diria. Sorte que os pensamentos fazem sh de silêncio, e eles riem constrangidos deles
mesmos, com as mãos na boquinha e evitando escapar silvado entre os dentes. O vulto está
na janela, e ele sorri. Alex mingua porque é nulo, só faz diferença para si mesmo, que também
se não fizesse seria esse um belo de um caso grave.
– Olá, oi – o rapaz.
– Stern – André saúda-lhe o nome pela primeira vez, a insólita ocasião o deve embaraçar.
– Boa noite – sorrisos, essa mania de simpatia de Júlia. A imaginou na cama com o
recém-chegado.
E abre a porta do carro, no máximo resmunga ao estalar uma maldição improvisada no céu
da boca, que agora descobriu motivos suficientes para estar de mal-humor, decerto vai se
vingar. Sente-se o capanga amargo que executa o trabalho sujo do rapaz de blusa social e de
diplomacias, e esse é André, mas se satisfaz ao pensar que é o seu cargo esse que detém o
funcionamento das coisas, a coragem e a atitude, por mais que seja ele a abrir o peito e a
sugerir, são ossos do ofício, que seja nele que venham os punhais, aí nunca se sabe se vai ser
exatamente nesse segundo ou dois depois que vai ter o desprazer de ver o próprio sangue
jorrar, a cabeça rolar, qualquer coisa assim. Stern – não se sente muito à vontade para pensá-
lo pelo nome, mas tem de se acostumar – o olhou, com jeito que não entende, o desconforto é
recíproco e se perdoa.
– Entra – André colaborou, mas há um instante de constrangimento silencioso, um dos
piores se não o pior que se há. – Vamos, entra aí – foi convincente, que insinua que há algo
muito importante que não pode ser dito ali, há esse odor de mistério, mas tudo está bem,
vamos lá, o encorajou da melhor forma.
E ele cede, pobre coitado, tarde demais. Alex começa a ceder espaço no banco, desliza o
traseiro pela poltrona, e Stern – mal o conhece, que estranho pensá-lo – vai entrando, e ele
mesmo é quem fecha a porta, a metáfora é clara de que é ele mesmo quem encerra o seu
destino, põe os pingos no i, assina a petição sem ler as entrelinhas, paciência etc. Começa
aqui, pensou, o primeiro ato da sociedade, de antemão a escalação dos nossos atores, um
rebanho sem saúde a ser sacrificado. Não vai demorar para que a explicação torne-se
necessária, que nasça a controvérsia, que é dela que tudo germina, e o carro parte para a noite
da cidade.
– Fiquei surpreso quando você ligou – começa pelo óbvio.
– Eu imaginei – André está se saindo bem –, mas foi necessário – assim o atiçaria a
curiosidade, está realmente se saindo bem –, desculpe qualquer coisa – e o tom ameniza.
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– É só que eu não imaginava relação alguma – sorriu, coçava afoitamente o pescoço –
entre a carta e você. Fui pego de surpresa, mesmo, mas o que significa tudo isso?
– Logo lhe diremos. Ah, sim, nós, essa aqui ao meu lado é Júlia, minha noiva, e o que está
aí atrás contigo é Alex.
– Olá – a desgraçada simpatia dela.
– Olá – o escarninho sacal.
– O convite – continuou André –, ou melhor, a carta, é, como eu já predisse, um convite.
Poderá aceitá-lo ou não, isso fica a cargo seu, mas a questão emergencial é um convite para
quê – é um bom orador. – Se você foi indicado – e ia manobrando perfeitamente, sabia que
ruas tomar, incrível, mas enfim – é porque um de nós te conheceu, no caso eu, e
particularmente te indiquei porque foi uma imagem que me voltou na cabeça. Você pode ser
totalmente diferente do que eu o tomo, muito tempo se passou.
– É verdade, muito tempo se passou.
– Por isso, se eu fiz um mal julgamento, acabará não fazendo tanta diferença para você,
resta a mim me desculpar pelo incômodo e por te ter feito perder quase a noite toda.
– Ainda não entendi.
– Está sendo convidado para a nossa sociedade.
– Sociedade de quê?
– Já ouviu falar no retorno à escuridão? – André continuava, Alex retorcia-se.
– Bem, não.
– Iremos dá-lo para que o estude. É um livro, uma idéia. Fala sobre gente livre, e prevê
como será a organização dessas pessoas. Estamos constatando, e precisamos de espécimes
exemplares, você é um deles. Foi escolhido por critério pessoal meu, entrará por critério
pessoal seu. Uma vez dentro, não há regras.
– Não sei se o entendi bem.
– Quais suas perguntas? – Júlia se intromete. – Por que eu?
– Bem, na verdade sim – e ele sorri constrangido, está se deixando dominar por ela, como
todos os incautos desavisados, principiantes da vida, coisa assim. – Por que isso tudo?
– Porque sim – Alex foi forçado a intervir. – Não há porquê, porque se precisa ou se quer,
porque se acha bom ou se acha interessante, porque se tem tempo a gastar, porque não
aproveita o tempo que já se esgota. Diga você.
– Bom, é que não posso responder no vazio.
– Terá seu tempo – ele continuou – até que leia, assim como os outros indicados. Aí
escolherá e, caso nos diga que sim, será testado.
– Testado?
– Pra ver se possui o ânimo – gesticulou pesadamente.
– Ânimo? – meiosorriu.
Quanta repetição, – O ânimo adequado.
– E qual este seria?
– Descobriremos juntos – e teve razões para sorrir diabolicamente.
– Esse é um projeto fabuloso, Stern – veio André, ele representa a ala persuasiva –, posso
garantir que será, será – perdeu-se o adjetivo na boca – estupendo, acho – mau adjetivo. –
Catastrófico – bem melhor. Isto o relaxou.
– Parece um empreendimento inusitado, André, eu não sei, é isso que você tem feito da
vida?
– Poderemos conversar melhor daqui a pouco – sorriu e respondeu.
– Para onde estamos indo? – uniu o lógico com a sugestão.
– Cumprir a etapa de integração número um – e é Alex quem respondeu.
– Que vem a ser?
– Vem a ser tomar uma cerveja.
As reuniões do Schneider estão mesmo tendendo a aumentar, que da inocência dos
encontros triviais entre Alex e André nasceu, ou melhor, concretizou-se a ousadia do retorno à
escuridão, até o instante que começou a vir Júlia, era indício mais que notável que um quarto
lugar estaria agora sendo ocupado, senão brevemente um quinto, sexto, sétimo, seguindo até
que o bar não mais suportasse os arruaceiros, mais dia menos dia seriam enxotados num
episódio tragicômico necessário, é o que pensa Alex, e com o que não se importa. Nada mais
eficiente que uma boa noite à toa para unir as pessoas. A união é a parte mais importante
desse processo, conhecer-se vem em segundo plano. Aí entre as últimas vem se tolerar, que é
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até mesmo algo que a humanidade em geral não se sabe usar muito bem, então se perdoam
os pecados de individualidades chulas como essas, agulhas desencontradas no palheiro do
mundo, pela apatia do palheiro geral. A tolerância é uma questão que Alex pode antever, mas
precisa descobrir porque ela é necessária, e poderá fazê-lo através do retorno à escuridão. Se
acabar descobrindo que não é tanto como ele imaginou, bem, pessoalmente vai se sentir um
pouco desiludido, mas paciência, fazer o quê, é legítimo, nada mais.
A primeira rodada de chope fica por conta do patrono da noite, isso é o que ficou
estabelecido. A idéia veio de Alex, e ele ria como se fosse mais uma piada entre amigos,
quando na verdade é para esconder que ele não tem um tostão furado na carteira, se não
desviasse as atenções assim ele teria de mendigar, estaria frito. Por sorte se deixaram levar
pelo espírito da confraternização, do oba-oba, da brincadeira e risada amistosa, e felizmente
até Júlia não lhe foi empecilho, ela que sempre está disposta a destruí-lo, e se notou suas
intenções foi por piedade que as deixou passar sem remendas. Passado por cima disso pôde
relaxar. Explica mais ou menos de onde surgiu o retorno à escuridão, e é essa uma conversa
que valeu à pena até aos camaradas mais antigos, que por aspectos da relação e pelo acaso
das falas não puderam anteriormente se enredar nessa conversa, mas aqui ela estava. Alex
pode enfeitar um pouco, principalmente depois da segunda tulipa. Disse que viajou por lugares
distantes e entrou em contato com culturas diversas, e as fundiu, na verdade elas que se
fundiram dentro de si, foi o que disse para ser mais humilde, que ser passional é simpático,
mas o que importa é que elas foram se arquitetando e se desenvolvendo, e então chegamos
na conclusão de que o sujeito é um instrumento dessas forças etéreas que entram por ele, se
montam num quebra-cabeça e de repente passam a fazer sentido. Eis aí uma idéia
interessante, o homem como ponte de toda coisa. Quê?, fumou, esqueceu-se. Não mais o
ouviam, mesmo, que ele começou a contar outras histórias – detesta quando Júlia boceja
enquanto ele fala – como por exemplo a da despedida do último apartamento.
– Ela tirou a roupa e disse, quero dar – a versão já mudou um pouco, com o tempo ele se
perguntaria o que de fato aconteceu.
– Pelo amor de deus, Alex, que coisa vulgar – ela o reprimiu, já previa isso.
– Não sei por quê – e afundou a guimba no cinzeiro exaltado –, você tá julgando como se
fosse uma merda, mas duvido que nunca falou isso pra alguém.
– Ei, ei, que é isso? – veio André.
– Nem que tenha sido pra você – consertou.
– Além de não vir ao caso, é completamente diferente – Júlia.
– É?, por quê?
– A mulher era casada, o estava abrigando por favor do marido, e só porque você vai
embora ela simplesmente tira a roupa e diz que quer dar? Acontecer acontece, certo?, e
então?, você quer que batamos palmas pra você?
– Não, é claro que não. Mas podemos bater palmas pra ela, que teve a coragem de
mostrar que na verdade era apaixonada por mim – e riu, procurou Stern para rir junto e ele já o
acompanhava.
– Apaixonada?, é melhor que eu não comente nada sobre isso...
– É que é muito difícil apaixonar-se por mim, certo, Júlia?
– Talvez seja só um problema de cara-metade, mesmo – ela consegue dar as respostas
mais destrutivas do jeito mais deslavado.
– Ela só não soube como se expressar – tentou ignorar. – Tanto que aquele quero dar – já
está convencido de que era isso que a personagem o tinha dito, e tenho dito, é que o contexto
confunde-se com a realidade – representou pra mim a mesma coisa que significaria um eu te
amo.
– Para você – Júlia.
– E pra ela também. É o mais importante.
– Você não pode saber. Para você.
– Sim, para mim, o incapaz de amar, a escória do planeta, as fezes do mendigo, a coisa
mais baixa dentre as coisas mais escrotas.
– Ele está bêbado – André advertiu.
– Pude ver – Stern.
– Mas os efeitos de meu amor foram os mesmos, não, na verdade ainda maiores e mais
reais que seria os de alguém que acorda todos os dias com o mesmo rosto sujo de remela ao
lado na cama, que vê o cônjuge indo ao banheiro, ouve a descarga e imagina os detritos
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rolando água abaixo, que desenvolve sempre o mesmo silêncio de manhã cedo porque estão
cansados de se olhar. Brigam por nada porque não têm mais nada a dizer um pro outro e isso
os irrita. Eu ter ido embora fez com que eu salvasse o amor dela. Cretino eu seria se lhe
arruinasse o casamento.
– Nunca ouvi nada tão racional – Stern, não é ironia.
– Que coisa suja de se dizer – ela se fechou.
Preferiu ele se fechar também, que a verdade muitas vezes pode partir para o
apontamento de algumas situações reais, isto é, se alguém o entende, específicas demais,
entenda-se por em torno dessa mesa, e situações reais não é o que eles estão discutindo, e
algumas podem acabar comprometendo a integridade de algumas pessoas, pois é. Preferiu a
solidão de outra tulipa, o gosto da espuma, o cigarro a inchar-lhe os pulmões de uma ardência
azeda, como se o ácido de seu motor estivesse escapando e corroendo-lhe, mas é prazer que
o traz, a não ser pela ressaca que presume estar disposto a apresentar no dia seguinte. Ouve
de longe o assunto entre os outros e o indicado, aos poucos se distancia de seus interesses e
não lhe diz mais respeito, a não ser pela impressão de que pode conhecer um pouco mais de
André através da recapitulação de seu passado, e não há assunto em comum entre duas
pessoas que não se vêem há anos senão essa história em comum. Stern fala das coisas da
universidade, e à medida que se desenvolve vai se mostrando um rapaz um pouco mais aberto
e seguro de si, se o dão espaço ele é calculista e metódico, ainda que não esteja privado de
um apuro emocional que o incita, muitas vezes, a períodos de timidez, que se sente um pouco
deslocado, se curva, e coça a barbicha. É engraçado quando ele a coça, é coisa que uma
criança faria, no fundo se eles continuam estando ali é porque todos devem ter em comum o
fato de não terem escapado da infância. Olha só, que ele vai dizendo coisas interessantes.
André foi um orador excepcional na época da universidade, era conselheiro de turmas, líder
nato – associa isso prontamente à suas frustrações, era chefe do grêmio, coisa assim. Alex já o
conhecia, mas é que isso não o interessava. Só o interessa o que é realmente importante.
André, assim vai contando Stern, ao riso de um e correção de outra, era aquele romântico
dentro do curso que forma advogados, daqueles que dizem que não vão perder o idealismo
nem mesmo defronte às realidades mais cruas e caóticas da vida infame, e isso nele Alex já
conhece, só ignorava a sua capacidade de, mesmo sendo apaixonado, envolver a tanta gente
aquela época, aí teve uma história lá de que lutou contra a privatização de não se sabe o quê,
contra certa política acadêmica antiquada etc etc, coisas políticas assim que não o interessam
e que não lhe são bem filtradas, porque ele já recebe essa complexidade com a má vontade de
não querer usá-las. É engraçado olhar para essa cara de meia-idade, não raramente
empapada do suor de um trânsito hediondo e com as olheiras do dia péssimo de trabalho, e
imaginar um líder juvenil, sorridente e popular. Contêm a risada para não cometer uma gafe e
diz para si mesmo que o tempo passou, que acontece. Tanto é que agora André se lamenta, e
diz para Stern coisas do tipo, é, veja só no que me tornei, enfurnado num escritório e fingindo
para mim mesmo que ainda não descumpri a promessa que fiz. Para que escorresse a ilusão
olhos abaixo foi preciso o pontapé dos polícias, uns cassetes, umas pedradas arremessadas
dos baderneiros de todos os lados – teve uma manifestação e coisa assim – um braço
quebrado e estilhaços de bomba de cerâmica na cabeça. André odeia a polícia até hoje. Não
fala abertamente porque falar de ódio é extremo demais para alguém como ele, mas deixa
sugerido nos seus comentários comedidos. A sugestão é crucial. Alex as agarra.
Stern confessa que na época que esse André da antiguidade era seu veterano detinha por
ele certa admiração, tanto que o seguiu nas idéias reformistas, que falar revolucionárias hoje
em dia é pesado demais. É até daí que vem a referência que André tem sobre seu indicado.
Ele concorda que ninguém pode manter os sonhos por tempo demais, que na verdade essa é
uma questão mesmo de saúde, porque certamente quem toma sempre na cara e não aprende
é autista, e não se trata de firmeza de caráter, meramente ocorre que não interage com o
mundo. Infelizmente o que tem visto na universidade – que assunto chato, Alex traga e repara
Júlia também cansada – é uma multidão de podres interesseiros, formandos e formados, eis o
número crescente. E a expectativa do mundo lá fora, ou melhor, do mundo que nos cerca
agora, é exatamente essa, mas é este um bom emprego temporário para Stern, que quando
crescer profissionalmente deseja estar numa firma, como André, que o adverte que talvez seja
melhor que procure coisas melhores na vida, mas Stern diz que só poderá chegar a essa
conclusão pessimista uma vez estando lá, e que faz muita questão que seja assim. Alex gostou
desse comentário, mas nada disse, os está estudando, e às vezes acha que André fez uma
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boa escolha, às vezes acha que não. Mas também não pode julgar muito, e aí ele olha no
relógio do bolso, que só ele ou outros colecionadores devem ter nos dias de hoje, vê a hora e
desconfia de algumas coisas.
– Algum problema? – André o pergunta por acaso.
– Não. Só acho que a minha indicada não virá.
– Indicada? – será isto ciúmes em Júlia?
– É. Fiz tudo que estabelecemos, desde a carta até o envio do retorno à escuridão –
atritava o dedo contra o isqueiro.
– Por que não nos contou nada? – perguntou André.
Ele deu de ombros e riu, como se seus comentários que dizem estar tudo nos conformes,
se é assim não há por que se preocupar que as coisas fujam do controle, se bem que fugir do
controle não é estar nos conformes, ou a intenção é que a fuga seja o conforme, então deve
estar mesmo tudo direitinho. Júlia começa um monólogo dirigido a André sobre
companheirismo, trabalho em grupo, pessoas que não sabem o que isso significa, não, que
não importa que acabe sendo prejudicial a alguém, e para esse tipo de coisa ser evitada é que
tudo tem de se passar pelo conhecimento de todos, que são iguais, blá, blá, blá etc etc etc.
Alex sorri cruelmente porque o seu paladar mais apurado está na parte da língua que identifica
polêmica, aprendendo com o exemplo talvez ele invente, da próxima vez, algo que nem seja
verdade, do tipo, contatei uma legião de mendigos para virem aqui tomar umas e vocês
pagarem a conta, só para deixá-los, na verdade deixar a Júlia, com o queixo temporariamente
no chão, porque ela, que teme a própria sombra, se assusta ainda mais com a dos outros, e
ela sabe o que a dele é capaz, o seu ceticismo azedo de mulher é na verdade medo da vida se
descarrilar da ordem que ela a deu. Medo de tudo. Ela continua o discurso que já cansa até
André, não vai chegar a lugar algum, a não ser no seu velho cansaço, a voz infantil e estridente
a reclamar e depois emburrar-se no canto e cruzar os braços. Eis que Alex se considera mais
sábio. Eis que olha a porta, e vê aquela moça de roupas largas chegando, o cigarro
escorregando entre os dentes, a careta de quem está prestes a cobrar uma satisfação, aquela
tal de Sylvia que ele mal conhece, e ela vê todos aqueles desconhecidos numa mesa, e o
desconhecido que mais conhece sorrindo com a mesma cara-de-pau sinistra com que sorriu da
outra vez, e aí modera o tom de voz, ainda que seja concisa como Alex imaginou ser.
– Não li aquela merda que você me mandou, você parece ser louco, mas eu aceito.

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Etapa número um, indicar até sete pessoas. Etapa número dois, é necessário o
comparecimento da pessoa indicada, que ela mostre interesse no enigma do convite. Etapa de
integração número um, pagar um chope no Schneider e antever o indicado, é o chope aqui o
mediador mais eficiente das verdades ditas e vistas. Etapa de integração número dois,
reconhecer o indicado e definir se entra ou não na sociedade. Mas esse é só o nome
burocrático que Alex inventou para conferir à coisa um certo ar de importância. A etapa de
integração vital significa fazer uma loucura. Mas ninguém ainda sabe disso.
A loucura revela a predisposição de ser livre, esse critério definirá a qualidade das práticas
na sociedade, o que torna a loucura um método perfeito de eleição e modus operandi.
Inicialmente será uma surpresa, mas no instante em que acontecer com o primeiro deixará de
sê-lo, então terá de compensar a surpresa tornada inexistente de outra maneira, e como se
resolver isso?, é muito simples, com certeza de que sempre será pedida uma loucura muito
pior que a outra. É melhor pensar que a loucura seja escolhida especialmente para cada um,
que represente os medos do sujeito, alguma coisa metafórica assim, algo que todos nós, da
sociedade, ele vai pensando, teremos de saber identificar. Como primeiro patrono, ele definirá
a loucura que terá de fazer seus indicados, eles ainda não sabem nem que a terão de fazer, e
essa é a parte mais divertida de todas, que o rendeu até noites de insônia e de agonia sobre a
cama, se balançando, angustiando e pensando, meu deus, como posso ter tido idéias tão
boas, e a agonia é por não poder pô-las imediatamente na prática, dessas ansiedades que não
são doentias, são de reconhecimento de genialidade. Ria bem baixinho, sufocando no
travesseiro aquele riso de maldade, mas um gemido escapou e acabou acordando o outro.
– Boa noite – o outro bocejou escondido debaixo dos lençóis.
– Também não consegue dormir? – se entusiasmou.
– Na verdade estava em relativa paz, até você me acordar.
– E o que veio dizer para eu não fazer dessa vez?
Os olhos brancos de fantasma piscaram no escuro, – Nada vim restringir, apenas vim me
usar um pouco de sarcasmo... notar um pouco do teu paladar em brincar com a vida das outras
pessoas.
– É uma prática que não conheço muito bem – meiosorri amargamente.
– A hipocrisia não é nem um dos teus defeitos, não tente desenvolvê-la, não te cai bem.
– Tudo bem – retrucou –, mas continua sendo uma boa experiência...
– Lembra-te do que falou ao padre outro dia.
– Oi?
– O padre a quem foi falar, com quem se confessou.
– De que parte do que conversei com ele você está falando?
– De quando tu disseste que inocentemente destruiria a vida deles.
– Boa memória a sua, outro. Mas acontece que eu também a tenho, e lembro-me bem que
ele me respondeu com algo como, filho, não se faz uma coisa dessas com inocência.
– Ao que você lhe respondeu que o caminho do inferno está cheio de suas boas intenções.
– Disso eu não lembro. Mas certamente não foi o que eu falei. Não desse jeito.
– Foi o que quis dizer.
– Pare com essa mania de botar as coisas na minha boca e definir o que eu digo, o que eu
sou e o que não sou. É irritante, você torna impossível qualquer conversa, seja ao menos um
amigo imaginário tolerável.
– Está começando a me definir, já faz bem.
– Ainda com isso de querer um nome, um rosto, seja lá?
– Por hoje não quero mais nada de você, apenas que durma.
E se foi, deixou-o no silêncio, quando suspendeu os lençóis o outro não estava mais lá, e é
claro que uma ordem dessas não basta para que ele durma. Lamentou-se pela solidão onde
nem o outro teria feito o esforço de acompanhá-lo, rezou revirando-se para que chegasse o
momento onde pudesse sufocá-la, nem que para isso tenha de cair num inferno cujas
plaquetas na estrada eram das suas intenções e lá esteja condenado a jogar com a vida da
gente, acabou tendo de dormir o dia adentro, que a noite vem se tornando a única hora em que
pode despertar. Falou-se em noite, aproveitando-se da deixa, Alex observa que este em que
está é um bom horário, via a noite que começava a se aprofundar, mas os cansados e os
mortos da batalha do dia de hoje ainda não tiveram tempo suficiente de se recolherem ao
conforto do lar. É o instante em que a substituição do trabalhador honesto pelos gigolôs e maus
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caráter começa a se efetivar, mas ainda são forçados a um verem os outros, encontrar-se nas
calçadas, coexistir o trato educado de nem sempre com os palavrões de nem sempre, e por aí
vai, que com contraste é tudo muito mais interessante. Situou-se no tempo, agora lhe resta
situar-se no espaço, e aqui ele vai, calçada suja, prédios escuros, vias escusas, avenida
torrencial com carros à sua frente roncando em alta velocidade. O grito escandalizado de uns
vizinhos pelo calhorda fazendo escândalo no átrio dum prédio porque a mulher não lhe quer
abrir a porta. Tem o suficiente para desistir de observar, não porque teme os brados do cara,
mas por causa da enxaqueca. Ok, continuemos, ele se diz. Calhorda escandalizando,
manobrista apitando, pessoas de passos velozes nas calçadas, o sujeitinho com cara de
assaltante, e isso o lembra da conversa sobre caras que teve outro dia, o importante é que o
assaltante com cara de sujeito está numa viela distante, apoiado com os cotovelos na parede
do beco, esperando a primeira velha indefesa ou garoto mirrado passar para arrancar-lhe a
carteira, o celular, qualquer besteira assim, fingindo ter uma faca ou se for corajoso dirá ter um
revólver, e se tiver que sacar é para usar, ele vai dizer para apavorar. Antes isso que mendigar,
que Alex não nasceu para pedir as coisas, assim como não pediu para nascer, ele já saiu
arrancando tudo na sua frente, a começar pela placenta, nasceu com uma única dependência
que foi o cordão umbilical, que ainda fizeram questão de cortar.
Poderia agora romper, por exemplo, com a cara de André, com um soco ou com um grito,
tanto faz, esse André cujo aspecto cansado o deixa irritado, já que as vezes tem a impressão
que ele gosta de se fazer de coitado para furtar carinhos de Júlia, eles mesmos depois de
tempos juntos não enjoam desse chove-mas-não-molha, o mais irritante. – Ô, coração – ela
tenta ser discreta mas não pode ser discreta falando uma coisa dessas –, você parece tão
exausto – não sabe onde termina a menina idiota e começa a mulher imbecil. Estão apoiados
no carro, estão parados numa via secundária, dessas que se desviam da avenida principal e
onde os carros fazem de acostamento quando não é para ser. Já os seus olhos estão vidrados
na autopista onde as coisas passam como relâmpagos e parecem abrir o espaço-tempo, criam
aquelas coisas um estrondo de trovão que grita brum, e deixam um resto de vento para trás.
Abre esta porta, que não tenho a noite toda e não tenho mais fôlego!, ouviu bem?, não tenho
mais fôlego pra ficar aqui gritando, sua, sua... fechou os ouvidos ao escândalo, provavelmente
ele a pegou com outro, mas ela conseguiu reverter a situação, disse que não ia esperar a vida
inteira por um cara que desaparece e certamente está com suas vagabundas, vagabundas,
sim, que faltam dedos nas mãos para contá-las, então que mal faz se ela também deita com os
seus?, veja, que agora ele está tentando entrar na própria casa, e a mulher jaz lá em cima, no
canto da janela, escondida nas cortinas fingindo que não está vendo nada, contando com a
boa vontade do primeiro vizinho irritadiço que surja de sua toca e grite que está chamando a
polícia. Alex sentiu como se não estivesse conseguindo respirar, bola de pêlo na garganta, um
nojo existencial o contaminou.
– Etapa número um, você indica até sete pessoas. Etapa número dois, envia o convite e o
retorno à escuridão, dá um tempo e vai de encontro a essa pessoa. Etapa número três, se
paga uma rodada de chope pra todos da sociedade no encontro com essa pessoa. Etapa
número quatro, o patrono manda que seu indicado faça uma loucura.
– Como é isso? – Stern espreguiçou-se e perguntou.
– Cala boca, não acabei – trincou a mandíbula. – Etapa número cinco, o indicado faz a
loucura se quiser mesmo entrar na sociedade, e o coletivo decide se fez por merecer. Fim das
etapas. Pode falar.
– Parece divertido – Sylvia silvou e cuspiu o chiclete que mascava.
– É por isso que viemos aqui essa noite? – este é Gabriel. É o primeiro indicado por Júlia.
É a sua vingança contra Alex, que por nada indicou Sylvia. Júlia fez o mesmo com alguém que
trabalha com ela.
É esse sujeito que há um tempo Alex esteve imaginando se não teria dormido com ela.
Não seria absurdo supor que sim.
– Vou ter de fazer uma loucura – Stern deve se divertir com a possibilidade.
– Hoje não é sua vez.
– Conceitue loucura – Stern sobrepôs sua fala.
– Qual o seu plano? – Júlia.
– Parece justo, discordem se forem contra – sabia que não o fariam, só uma pessoa
poderia tentar fazê-lo, a estava olhando nesse exato instante –, que seja por ordem. Hoje vai
André.
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– Então não devíamos começar por você? – ela discordou.
– Bem – e ele hesitou por alguns instantes –, suponho que não tenham pensado em nada.
Quando chegar uma hora melhor, eu me disponho. Vocês me conhecem.
– Podemos improvisar – ela sorria.
– Vocês podem improvisar ou confiar em mim – apontou para as têmporas – quando digo
que já tenho tudo pensado...
Foi assim que inverteu a situação, com uma mentira.
– Eu não me importo – falou André. – Eis aí uma puta idéia.
– E posso dar sugestões? – Sylvia. – Loucura, loucura? – sorria.
– Júlia, ameniza na minha vez – e esse garoto novo. Ele deve achar que estão ali para
brincadeira. É só o que lhe faltava.
Alex não dedicou muito tempo a olhá-lo fulminantemente, sua preocupação atual é a de
tirar a venda do bolso da sobreveste. É um pano que se pode amarrar no rosto para se fazer
de cabra-cega, e sua idéia segue mais ou menos por aí. Gostou da sensação de estarem todos
o olhando nesses instantes, sentiu que estaria fazendo um bem para eles, agindo em prol
deles, em breve eles mesmos tomariam as rédeas de seus destinos. Pequenos pintinhos
saindo do ovo. Lambuzados de gosma.
– Vou amarrar isso no seu rosto – falou, recebido por olhares de desconfiança –, e você
ficará cego na rua. Alguém aí tem um celular? Stern, Gabriel? – Stern o tirou do bolso do
casaco, estendeu-lhe. – Certo, agora pega o teu, André. Isso, certo.
– O que eu tenho de fazer exatamente? – esse risinho Alex sabe o que significa, é receio.
Falar loucura pode ser inspirador e divertido a quem ouve. Até perceberem que é Alex quem
fala. – Não me apronta nada absurdo.
– Absurdo, absurdo, é claro que não, que isso nem existe – ele respondeu. – Necessário,
eu diria, tem de ser... – ele quem pensava num adjetivo dessa vez – interessante – perfeito.
– E o celular? – estava com o seu em mãos.
A cara de Júlia não era das melhores. É claro que ela não gosta de o estar vendo no
comando.
– Te amarrarei a venda, você não verá nada. Pegarei este celular, o de Stern, e ligarei para
o teu, que estará o tempo todo no teu ouvido. Ouvirá a minha voz e terá de obedecê-la – e riu.
– E onde está a liberdade dele nisso?, eu vejo a tua... – sempre há alguma astuta.
– Ele pode escolher obedecer-me ou não, não pode? – e sorriu. – E se essa relação não te
satisfizer, então encare isso como superação do medo, que se tem completamente tudo de
liberdade nisso, descobrir-se no absurdo, exceder o ridículo. Preste muita atenção. Você se
entrega e percebe que estar plenamente entregue é estar livre de prestar contas. Preste
atenção, é um outro lado de se ver as coisas...
– Parece interessante – Gabriel, jeito de descaso.
– É divertido, já vi um cara pendurar-se no parapeito de um edifício – diz Sylvia –,
balançou-se e ninguém precisou mandar que ele fizesse, estava muito drogado. Era um grande
filho da puta.
– Continua sendo escroto, não engulo – Júlia.
– Aceita o desafio, André? – e o olhou.
– Aceito – ele responde a sorrir.
– Continuo não querendo que uma coisa dessas aconteça comigo – Júlia.
– Então temos um problema maior. Quem é a favor, isto vale até pra quem ainda não foi
aceito, da loucura?
Foram cinco votos contra o de uma. Ela morde os lábios e tem de se resignar.
– Aceita o desafio, Júlia? – Alex.
– É bastante ridículo. É exigir confiança. É coisa que não se exige.
– É exigir – Alex ri – colhões...
– Não fica assim, Júlia – o cretino do tal amigo dela –, como o André explicou, é uma puta
idéia. Você não tem noção de como se fica ansioso ao receber a carta do nada – pelo menos
uma utilidade em seus comentários. – Estou certo que vão honrá-la.
– Venha cá, André – Alex acenou, ele obedeceu. Curva o rosto para que se lhe ponha a
venda. Alex ri de si para si mesmo ao imaginar o que os eventuais transeuntes da rua devem
estar pensando de um marmanjo curvado para o outro fazer-lhe de cabra-cega, provavelmente
não há mais esse que pense já ter visto de tudo na vida.

258
Agora ele disca o número no celular fornecido, enquanto Stern passa as mãos em frente ao
rosto de André e pergunta se está enxergando alguma coisa, ele diz que vê tudo preto, nem
pelos cantos?, nem pelos cantos, que está maciço demais. O telefone vibra, os dedos de André
certamente que sabem como percorrer os caminhos dele, sem dificuldade o atendendo e
levando até a orelha. Alô.
– Agora girem a cabra-cega.
Aí o rodaram, inicialmente só Sylvia e Stern, pegando-o pelos braços e aproveitando-se
para empurrá-lo mais rápido, que é divertido. Depois Júlia resolve participar, no começo meio
timidamente, depois acabou se rendendo que até vê-se nela um sorriso de maldade. Essa é a
Júlia que devia ser constantemente. Alex deixou ele ser maltratado por um bom tempo
imaginando que tontearia o bastante, até que dissesse, certo, deixa, e o deixassem. Sorriu
secretamente ao ver André trocando as pernas sem mesmo ter de sair do lugar, mas até então
a cabra-cega também se diverte, deixa estar, por via das dúvidas tomara que continue assim.
Alex sorri de feições marotas e acena silenciosamente para que saiam de perto, ao que
atendem, e retribuem os risos com expectativa.
– Certo, André. Esquerda. Não, a esquerda é a outra, merda, o outro lado, é claro. Não,
não coloque as mãos pra frente, tatear não vale. Isso, assim, só pode fazer os movimentos que
eu mandar, e por enquanto tudo o que pode fazer é usar a mão pra segurar o celular. Certo,
dois passos pra frente.
– Isso – continuou, rindo ao notar a insegurança –, não precisa recear, mais dois, três
passos, é só calçada que tem a frente. Mais cinco. Ah, cuidado com o buraco!, ahh!, já
passou... era brincadeira.
– A frente, a frente, sim. Pare – o viu entrando no fluxo dos pedestres. Sorriu. – Três
passos para a esquerda – a essa altura os estranhos correndo olhavam o imbecil vendado. –
Agora dê uma rodadinha.
Despertou risos o suficiente dos que estavam consigo e observam a distância, era a hora
perfeita para falar, – Agora corra pra frente – todos calaram a fim de espiar com atenção. E não
obstante André obedeceu, não sem recear por segundos. Um pé se impulsionou, aí o outro,
tropeçar era quase inevitável, mas o negócio é que podiam desviar dele enquanto estivesse na
calçada mais aberta. O grande problema era quando o corredor de gente afunilava, e se
alguém gritara maluco!, antes, ou apenas olhava exasperado pelo louco que passou correndo,
os mais da frente não podiam nada fazer. Era inevitável que esbarrasse em alguém, e primeiro
foi numa mulher que quase despencou do salto-alto e se embaralhou nas próprias roupas.
– Alex, não exagere – disse-lhe Júlia.
Ele não pára. E podia ouvir atrás do hálito de André bafejando na linha os rugidos
encolerizados da mulher que foi pega, ou ela receou e perguntou se era cego, até descobrir
que não é coisa que faça lá sentido, e ele ainda de quebra podia acompanhar de longe a cena,
que maravilha de entretenimento, tem de fazer isso todo dia, isso não, se não enjoa, mas tem
de fazer coisa pior.
– Diga que quer comê-la.
– O quê? – ouviu a voz vinda da linha em uníssono com a de Júlia.
– Há-há-há! – Sylvia rachou o bico.
– Ela está indo embora, diga antes que ela não possa mais ouvi-lo. Diga!
E se ouviu a voz vinda da linha, não coincidentemente simultânea ao cego lá adiante
gritando para o alto, para seu alvo que não sabe para onde foi parar, – Eu quero comê-la.
É isso, começou a ganhar a noite, ainda não pode dar-se por esgotado tendo o aval de
uma cabra-cega tão obediente. Desatou a rir-se numa gargalhada explosiva, que ia crescendo
até lhe sair pelos poros, que os olhos simultaneamente se encheram de lágrimas. Ainda mais
quando viu a mulher parando, sim, a mulher na qual o cego esbarrou, é, e provavelmente olhou
para trás perguntando algo, como é?, sem saber se ri de desespero ou emburra-se de vez, a
julgar pela face ela se espanta, mas que porra você disse? Ele tem de parar de rir para fazer a
caridade de orientar um cego nas ruas.
– Diga que vai arrancar a roupa dela com a boca.
– Vou arrancar a sua roupa com a minha boca – repetiu.
– Alex – Júlia.
– Há-há-há – Sylvia.
– Faça um gesto obsceno com a língua, como se a estivesse lambendo.
– Porra, Alex – a voz atrás da linha murmurava sem saber se ria ou se fazia.
259
– Faça!, ela está indo em sua direção! Você precisa muito disso. Pede por favor.
– Eu sei, eu tô ouvindo!
– Faça!
– Slurp! Slurp!, preciso muito disso, por favor.
Alex chorou, mas engoliu o riso, já pode ouvir daqui a mulher esbravejando. Palavras
deslocadas como louco, imbecil, idiota, coisa assim, não seria de se espantar, o pior era ver
André se deixando intimidar, que se curvava todo como para fugir de um tabefe feminino, e às
vezes punha a mão involuntariamente na venda, que era pelo instinto de tirá-la, mas resistia,
até que vem sendo heróico. – Ela está em sua frente, a uns três passos. Diga que sabe o que
ela quer.
– Eu sei o que você quer.
– Sua cadela!
– Cadela! – estava mesmo gritando, e o povo olha torto.
– Agora você vai ter o que merece desse cego voraz, vou te pegar de jeito.
– Agora você vai ver o que te espera, vadia imunda – está reproduzindo bem.
– Avance nela.
– Grar! – urra e vê-se ele abrindo os braços, e a mulher começa a estapear o ar, e ele
saltando. Alex sente que conhece uma alegria que deus não, já que diz-se desse não interferir
no livre-arbítrio das gentes. Agora ele é dono de uma vida e gosta de confirmar isso.
A multidão se forma, vêm os gritos, burburinhos eclodem até que a moçoila vitimada se
solte dos braços do maluco e consiga escapar, uns escândalos ou uns urros de raiva, mas
deixe, minha senhora, que você teve lá sua utilidade histórica, e ela, a história, reconhecerá os
seus méritos no momento que for oportuno, de repente essa história te absolverá, deixa estar,
mentira, que riram de você e agora estão a esquecê-la de vez. Júlia se debate na direção de
Alex, Stern tenta convencê-la de que não é preciso, que está tudo sob controle. Corra para
frente. Agora pare!, não, agora pare.
Por pouco evita que ele dê de frente a um homenzarrão, desses que a impaciência é
garantia para encrenca, e ele passa gesticulando, lá no fim da calçada, a sua vida e a sua
morte passando a caminhar na calçada defronte aos olhos de um cego que por ser cego não
seria espectador de nada, mais parece que a vida a correr diante dos olhos do cego seria uma
insatisfação borrada a negro ou uma memória vazia ou imaginada. Pare, ele está quase saindo
de vista, diz aquele Gabriel. – Não tem problema – Alex murmura com a mão no fone para que
André não os ouça –, que aí fica um pouco mais complicado para todos nós.
– Manda ele saltar numa perna só – Sylvia.
– Salta numa perna só aí, André, que estão querendo ver isso de você.
– Manda ele gritar chamando todo mundo de veado! – Stern.
– Diz que só tem veado nessa rua aí, André.
– Só tem veado aqui.
– Que é isso, rapaz, mais alto – rindo.
– Mas que porra, que só tem veado aqui! – urra a voz do telefone –, só tem veado!
– E se vem a polícia? O que vocês pretendem fazer? – Júlia.
– Eu corro e passo as instruções no celular – não resistiu, mas acaba se calando por achar
estar implicando demais, e ela é vingativa, melhor que ele pense no seu espinhoso futuro.
Certo, faz a concessão.
Só não pode abrir totalmente mão de seus planos.
– Parado, volver a esquerda. Três passos, pare. Há muita gente na sua frente – a concisão
se apossa do tom de voz. – Agora não estranhe quando as pessoas andarem.
E você terá de andar também.
– Para onde o está levando?
– Ele está cruzando a avenida.
É verdade, está. Atravessando a faixa de pedestres da larguíssima autovia, no momento
que o sinal para os carros estava fechado para eles, é claro, e assim lá está o cego metafórica
se tornando ciente da sua cegueira da vida, mal sabendo que cruza a rua acompanhando
quase naturalmente a mais um bocado de gente, sem saber conquanto porquê o faz, nem para
onde vai. Por um instante ele se perde da vista, e no rosto de Alex há seriedade profunda, é
quase como alguém que está concentrado, medita sobre um foco, coisa assim. Imagina
momentaneamente como os outros o vêem, e sabem que o estão circundando, pasmados,

260
boquiabertos, esperando em silêncio sem saber o que dizer, mas isso não importa. Tudo que
importa agora é libertar André.
– Agora você pára. Algumas pessoas podem esbarrar nas suas costas, mas não se
importe, não há mal, pare – em poucos instantes se vai a demanda de gente, desde a mais
concentrada até aquelas que passam correndo. Só restara um certo alguém parado no meio da
faixa de pedestres. Júlia e sua demonstração de taquicardia.
– Deite-se.
– Pare! Pare – ela começa a enervar-se, espuma, tola, que se André ouviu os gritos por
trás do telefone provavelmente os tomaria como continuidade da ordem, você, querida, é a sua
faca de dois gumes.
Deve também ter sido por isso que ele pareceu rapidamente incitado a cumprir a ordem.
– Não, sério, aí já é demais – Gabriel.
Não se sabe quanto é demais. – Conte até dez.
– Um – a voz não sabe se ri ou se tremula.
– Pelo amor de deus!, pelo amor de deus, um carro que não o veja pode pegar – Júlia.
– Dois.
– Alex, é melhor parar por aqui – Stern.
– Três.
– Por favor, mande ele sair dali agora, que isso é imbecil – Júlia.
– Quatro.
– Não, isso é legal – Sylvia.
– O sinal vai abrir, mas ele só vai criar tumulto, que nenhum carro é louco de passar por
cima, a não ser esses que driblam, ou batem, ah. O sinal... – Stern.
O sinal abriu.
– Cinco.
– Mas o que é isso?, eu te odeio, Alex, você é um merda!, um merda sem graça, idiota –
Júlia irrita-se e dá as costas, e vai-se na direção que deve ser de seu carro.
Olha subitamente para ela, que por isso não esperou. Na linha soou uma buzina, e o ronco
dos motores passa rapidamente pela rua, isso os que podem se desviar do cego deitado como
quem se deita na linha do trem.
– Alex, mas que m... – agora que André entendeu, o perspicaz.
– Tire a venda e saia daí – ordena isso enquanto olha Júlia. Fecha o celular em seguida,
assim o desliga.
Não demora para que se ouçam os brados, que sempre se têm aves de rapina presentes
para notar um escândalo, e se há notícia que corre rápido por qualquer lugar que seja, é essa
da possível desgraça, que até mesmo o delinqüente que estava preocupado em subir para
casa e resolver as pendências com a mulher agora está indo ali na esquina dar uma espiadela
no que falam ser a cabra-cega que quase estupra uma moça, é a versão mais sinistra, ao
contrário da que dizem que ele quase a estrangulou em público. O assaltante à paisana
também chega a conclusão de que não precisa mais ganhar a noite, ou pelo menos pode se
recrear, e vai lá espreitar junto do povo, onde os carros buzinaram e provavelmente se conta
de um sujeito que desejou ser atropelado, que pulou em cima do capô dos carros e de repente
sumiu, uns apontam para uma direção, dizem que ele foi para lá, não, não, na verdade ele
subiu naquela ladeirinha, entrou na rua, sabe-se que era um cego suicida, usava uma venda
porque seus olhos eram da mais apavorante insanidade, cobriu-os para poupar que o vissem,
e graças a deus que ele correu e sumiu. É dessas coisas que se vêem uma vez na vida e nos
faz poder afirmar que há maluco para tudo no mundo, ou então que de médico e de louco todo
mundo tem um pouco, que o veneno só difere do remédio na dosagem, ao que aquele sujeito
deve ter exagerado, e Alex não sabe ministrar a ingestão de nada. Tem a impressão de que
pode ganhar o mundo, a começar por si mesmo, e dá continuidade à perdição de Júlia, porque
um eu te odeio não é justo, não é coisa que se espere mesmo de alguém que se mantenha
eternas richas e umas disputas mesquinhas por poder. Eu te odeio é forte demais, chega a ser
deselegante, é o golpe final que o deixa desarmado porque não se espera tamanha apelação,
que torna inverossímil o porquê de tudo que até agora fez, é tão infantil que na revanche não
pode fingir seriedade, e por fora ele parece austero e decidido, mas não é, parece disciplinado
e objetivo, mas não é.
André surge, não importa que viela cruzou, por que beco passou e por onde atravessou a
rua sem que o vissem, e sem a venda é certo que não deverá chamar a atenção, estão a
261
procura de um bicho capaz de saltar contra umas mulheres fracotes, ele não parece ser quem
procuram. Mas engraçadamente ofega, transpira feito um porco. Percebe-se o quão
profundamente aliviado da vida parece estar. Essa é a descarga de adrenalina que nos põe no
limite, é o hormônio da paz. Provavelmente o anestesia a língua e o diz que não precisa falar.
Ele não sabe o que dizer, porquanto pareceu desaprender a respirar, que não é isso que faz,
grunhe, e tenta sorrir, porém baba, e olha a todos e diz que conseguiu, conseguiu não se sabe
o quê, tudo isso mais parece um grande e inútil ridículo, mas o fez. Não demora a que Júlia
salte em seus braços e o envolva toda preocupada. O beija no rosto, vários beijos, o toca para
ver se não aconteceu nada, se nenhum carro lhe bateu quando ela o tinha perdido de vista, aí
o aponta e o dá uma lição de não obedecer imbecilidades assim, aponta feito mãe a prantear
no colo do filhinho, verá se ninguém o pisou por maldade, ou se a mulher que ele quase
agrediu não descontou injustamente as loucuras que sofreu, se não o chutou nos testículos, se
as coisas não estão do avesso. Alex teve de brincadeira a vida dele em suas mãos, podia fazê-
lo rolar da ribanceira de uma construção abaixo e ele não saberia. Por um instante acreditou
que pudesse matá-lo, e que teria conseguido. Até Júlia mostrar que ela não valia tanto a pena.
– Chega dessa bobagem – murmura, resmunga –, vamos para casa, por favor, sim? Por
mim, André?, por mim? – sempre é por você, minha cara.
– Sim, meu amor, nós vamos – a tomou carinhosamente pelo rosto, afagou-lhe os cabelos.
– Alex, fui aceito na sociedade?
– Sim, André. E acho que ninguém vai discordar. Meus parabéns.
Lembra desse evento com um sabor de retrospectiva amarga e a impressão de que não
devia tê-lo feito. Mas é sempre assim ao se retornar à escuridão, ele nunca espera as coisas
que vai aprender, elas o surpreendem de tal maneira que está se convencendo de que precisa
de um canto exclusivamente seu para fazê-lo, um santuário individual de reflexão, poderia ser
um quarto escuro, isolado acusticamente, longe de tudo, sem vizinhos, onde pudesse gritar
todas as dores, moldar cada carranca e feitio bizarro que lhe remeta cada coisa que explode e
arrebenta-lhe o espírito sadio, arrancar os próprios cabelos, enfiar na pele as unhas, rasgar de
um lado ao outro, suicidar-se etc. Por ser mais prático ele deglute. Mas nem por isso deixa de
se descobrir, apenas não se torna tudo aquilo que pode. Muito justo, talvez vital, que tenha
interrompido toda a coisa no momento do eu te odeio. Já se passou algum tempo e tinha
provas em si mesmo, chama-se isso de cicatrizes, de que isso ainda está entalado na
garganta, bolor mal engolido, bola de pêlo de sangue. Olhava a frente, jogado no sofá, sentia-
se um saco de compras velho que se deixou no meio do caminho e se esqueceu, aí bocejou
roncando, que por um instante quase pegou no sono, não há melhor coisa que quando o
cochilo vem e sem licença nos vence. A tevê passava um filme que dizia ser inédito, mas deve
ter mentido, já viu aquelas imagens passando em algum lugar, aquela cena se repetindo, os
mesmos diálogos, ou porque já os viu ou porque tudo é clichê, as coisas tornaram-se um dejá
vu delas mesmas, não há saída desse universo de repetições. Havia Carla, ela é coisa a parte.
É, mas ainda assim não há uma diferença muito enorme entre ela e essas coisas que fica
remoendo, e ela está ali na mesa, fazendo as unhas enquanto lê uma revista que por acaso
deve ter comprado no caminho de casa. O intervalo entre uma folheada e outra diminui cada
mais, sinal de que está se cansando e preferindo só as gravuras, deve ser de mulheres bonitas
em roupas bonitas ou do ator famoso que acabou de casar, até o momento em que ela admite,
certo, não agüento mais ver esta babaquice, e se dedica exclusivamente às coisas que ela
pensa, e o que isso seria ele não sabe, porque perdeu tanto tempo consigo mesmo que só o
cativa os seus próprios assuntos, não perde muito tempo com nada que não tenha algo de si.
Ele a olha e pensa que o retorno à escuridão pode estar fazendo com que se isole
temporariamente de todos as outros, que para isso seja necessário que ele se feche até que
afunde totalmente no seu ser só, algo que ele não previu, e que agora, talvez não amanhã ou
depois, mas agora, lhe ocasiona mal-estar. Carlinha?, ele a chama.
– Hum – ela perde a concentração.
– Você já se sentiu como se quisesse fazer uma coisa que na verdade não quer? – o que
ele sente na verdade é que isso não tinha ficado claro, e ele não é dado a essas conversas
empapadas de significados inúteis.
Tanto é que ela continua a olhá-lo com cara de interrogação.
– Digo – ele pensa, agora vai se remendar –, como se estivesse viciado numa coisa, mas
não pudesse parar de fazê-la, e às vezes até você mesmo se convence de que fazê-lo é o
melhor que tem a fazer, e às vezes essa é uma boa impressão, mas às vezes é ruim.
262
– Tipo com homens? – ela sorriu. – Quando as moças se decepcionam, mas continuam
indo atrás?
– É, pode ser, tipo com homens. O que te leva a ter essa sensação, continuar indo atrás
etc?
– Geralmente é a paixão, não sei.
– E o que te faz sentir essa paixão?
– O jeito da pessoa, a atração física, a química dos pensamentos, não sei.
– Não, não – ele ergueu as patas –, eu me expressei mal, o que eu quis perguntar é o que
a paixão te faz sentir de tão especial que você não quer ou não consegue largar mão dela.
– Aí eu não sei dizer ao certo. É uma coisa que suga, sei lá.
– Suga? – franziu o sobrolho.
– É, que tem uma gravidade, e te puxa na direção daquela pessoa, que quando, quando –
pensa, sorrindo a constranger-se – ela não está contigo ainda te suga na forma de
pensamento. Não tem muito como reagir, é hormonal, não sei, é quase uma dependência.
– Entendi – é mesmo, o problema dele é quase a mesma coisa.
– Está apaixonado por alguém, Alex? – ela pergunta sorrindo.
– Não, não se trata disso, tanto é que esse exemplo foi você mesma que deu.
– É mesmo – e lixou as unhas. – Está com algum problema?
– Não, apenas quis devanear, mas já me convenci que não devo, não se preocupe.
Ela sorriu e continuou a fazer o que fazia, e ele sente-se tentado e ainda não pode olhar
outra coisa que não ela.
– Carlinha – continuou –, é difícil se apaixonar por mim?
– Como é? – volta-se rindo, de repente é esse um mal sinal.
– É difícil se apaixonar por mim? É algo que seria estranho de acontecer, complicado, que
você olharia para a pessoa e riria?
– Não é difícil, ora, é normal – anuiu a cabeça como quem não sabe o que ele espera, e
poucos realmente podem saber.
– Normal quanto?, como quanto seria com qualquer outra pessoa?
– É – acatou –, não tem porquê ser diferente, digo, você não tem alguma coisa que te
estrague ou te endeuse ou coisa assim, então é só a depender do desejo de cada um, mesmo,
sei lá, não sei.
Por um instante ficou chocado, quase horrorizado, que nunca alguém antes lhe disse uma
coisa feito essa, isso aqui foi doce, pôde-se ver mesmo na intenção. E é certo que olhá-la
penetrantemente assim a constrangeu, a coloca sem saber se realmente disse a coisa
oportuna, se o magoou ou coisa assim, e mal ela sabe que o cativou de tal maneira que ele só
não perde as palavras porque não é bobo.
– Você se apaixonaria por mim? – pergunta.
– Oi? – e não sabe se ri ou se estranha.
– Se você se apaixonaria por mim.
– Esse tipo de coisa não é assim que se decide...
– Não estou pedindo pra que você faça, estou apenas supondo. Você disse de
pensamentos que se sugam, corpos que se atraem, alguma coisa assim. Então, considere
todos esses fatores, há alguma possibilidade, não importa se é remota ou se é próxima, de
você se apaixonar por mim?
– Esses fatores falam por si só, não tem como eu pensá-los artificialmente.
– Nossa – franziu novamente o sobrolho –, isso que você falou foi forte.
– Por quê? – ela tremula o riso.
– Não sei, acho que te subestimei, e agora você me fala que não se pensa algo
artificialmente. Eu achava o contrário, que só se pensasse por ser artificial. Mas talvez você
tenha razão. Algumas coisas fluem... são naturais... não esperava algo assim vindo de você,
uma verdade tão – pensou – inédita.
– Eu tenho os meus momentos – ela fica bonita quando se gaba por brincadeira.
– E se você fizesse uma forcinha?
– Forcinha? – quem franze o sobrolho agora é ela.
– É, pra se apaixonar por mim.
– Está falando sério?

263
– Sim, nós moramos juntos, isso é quase um casamento, mas se for também estraga, e às
vezes até nos damos bem. Eu gosto de você, assim, não é amor – ênfase na palavra –, assim,
amor do jeito que dizem, mas gosto.
– Atualmente eu conheci uma pessoa – viu sua ilusão desmoronar como castelo de cartas
por um peteleco feminino, mas não se importou muito, que já está acostumado.
– Como ele é?
– É só um rapaz que eu conheci faz umas semanas.
– Por que não me contou nada? – enciúma-se.
Ela dá delicadamente de ombros, ela não deve ter nunca imaginado que aquele rapaz, logo
você, Alex, pudesse constrangê-la. – Não foi algo que eu tivesse na cabeça, não sabia que se
importava.
– Como ele é? – amarguradamente repetiu a pergunta.
– Bem, é normal, é comum, eu não sei.
– Como ele é?
– Educado, gentil, atencioso, mas não muito pegajoso, que assim eu também não gosto –
riu de levinho e pareceu corar, as moças têm essa mania. – É seguro de si, é competente, mas
é modesto, é simpático, tranqüilo, se dá bem com todo mundo e tem também um bom trabalho,
é corretor de imóveis, e o mais importante é que aparentemente gosta de mim, o mais
importante deve ser isto.
Ele entreabre a boca para gemer algo do tipo, é tudo que eu não sou, mas julga que seria
antipático demais, não está disposto a ele mesmo se sentir mal por uma patada que desse sem
razão de ser. Enciúma-se sem saber porquê, na verdade deve ser isso forçado, algo do tipo,
não quer realmente sentir essas coisas mas está se dizendo que deve, que seria interessante
senti-las, mas ora, também é um pouco difícil que uma coisa artificial pudesse persuadi-lo
assim. E não está disposto a levar isso muito adiante.
– O troque por mim – ele fala.
Ela ri, – Não fale bobagem...
– Ele não pode ser bom de cama como eu – ao que ele falou isso ela pareceu não gostar
muito, dá para se notar esse tipo de coisa.
– Desculpe – ele mesmo se emendou –, às vezes eu sinto que tenho que falar uma merda
que estrague tudo. Acho que eu sempre quero estragar tudo.
– Não diga isso, não tem nada a ver.
– É verdade, desculpas não combinam comigo – e se revirou de barriga para baixo no sofá,
bufando. – Vou dormir, que é o que faço melhor.
Estava cansado de ter as ilusões arrancadas, as decepções outorgadas, essa procedência
maçante que sempre parece estar pronta para lhe chegar, que é como o filme que se diz
inédito na tevê, e na verdade cada futuro do roteiro é claro e previsível, tanto que nunca o viu
mas desde o começo já tem se cansado. Inicialmente ele não tirou da cabeça, como se fosse
nisso o tempo todo em que estava pensando, que na verdade sem muitos mistérios era e ele
sabe disso, não tirou da cabeça a última reunião, o discurso comovente de Martin que devia na
verdade ter partido de seus lábios e o episódio gratificante do cacete, que relaxante. É claro
que é dessa paixão que ele não consegue se livrar, se bem que só às vezes ele deseja uma
coisa dessas, e aos poucos vai se convencendo de que não deve mais desejar uma coisa
dessas, que certamente é sintoma de fraqueza. Mas ele é um fraco, um frouxo, um inseguro,
que não consegue dar cabo de seus desejos nem quando se diz que ele tem liberdade para
isso, que ainda precisa amadurecer isso lentamente, num processo que sabe-se lá quando
haverá de dar por fim. Eu te odeio, veio a recordação daquele dia, algo que na verdade ele
deveria estar esperando, que deveria suportar, e na verdade está pensando isso tudo porque
sente que deveria ter ele erguido o tom de voz ali ainda mais e gritado, não, sou eu quem te
odeio, deixa-me em paz. Carla lhe era uma certeza de que não podia escapar de Júlia. Júlia é
seu karma, e agora ele medita para suportá-lo. Mantras internos, o sono chegando. O cochilo
que vence sua angústia, o cochilo o redime. É a única hora em que ele não é masoquista,
porque é o instante em que não se pode pensar estando acordado, e ainda não dorme para
que tenha pesadelos. É o momento em que é livre de si mesmo, se desloca e se distancia, até
por fim afundar mais uma vez. Deixou-se pensar em Carla.
Já formava com a sociedade quando a conheceu, na verdade é como é atualmente, e é
com ela – com a sociedade – que ocupava suas noites, e nos dias que não ocorriam encontros
ele se remendava com a seqüela deles, é quando ele finge estar realizando os trabalhos que
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precisa fazer mas na verdade está angustiado por não poder ser ele mesmo, gritar suas
entranhas, deitar na faixa de pedestres e dizer que lhe atropele quem tiver coragem, sorrir
ternamente como só se pode quando se está relaxado e por fim sorrir por felicidade, que só se
pode quando se esquece de tudo. Não lembra muito bem como andava a formação da
sociedade naquela ocasião, se já tinham lá seus quinze ou vinte membros, que aí já iam para o
teatro, e confessavam ou não um para o outro seus problemas, desabafavam as frustrações,
os medos, as lágrimas e as neuroses e as impotências. Isso foi mais ou menos na época em
que era comum formarem um círculo lá no teatro e conversarem como se fizessem parte de
uma terapia, algo que nem ele nem ninguém tinha planejado, mas a graça era realmente deixar
as coisas fluírem conforme fosse, que parecesse melhor, e acabou sendo isso vital para que se
conhecessem e pudessem enlouquecer posteriormente sem a necessidade dos testes, e sem
ser esse um privilégio para os novos indicados. Mas enfim, até mesmo quando se dispõe a
pensar em Carla lá está ele se voltando ao seu vício, vamos lá, meu caro, faça alguma
forcinha, que ninguém é de ferro mas certamente você se cansa ao não desgrudar a cabeça
desse velho assunto. Foi assim que a conheceu. Uma noite em que voltava da reunião,
fedendo a bebida, pensou se não seria melhor dormir numa sarjeta qualquer, que não lhe faria
diferença alguma, que quando acordasse a ressaca seria afinal a mesma, então que se
danasse. Foi por sorte que ele identificou que tinha rumado para perto de casa, ih, estou perto
de casa, ele se disse, então se dispôs a fazer alguma força, que mesmo com todos os
pretextos para abrir mão da sanidade a normalidade ainda lhe falou mais alto, cruzou alguns
becos, quase se perdeu, mas achou o caminho de volta, ufa. Quando se meteu para dentro da
casa por certos instantes confundiu os degraus do hall com uma cama, mas aquele cachorro
da vizinha que sempre late, não a vizinha, o cachorro que late quando chega alguém repetiu a
procissão, atentando-o momentaneamente às pálpebras que insistiam em se fechar,
estimulando-o a se arrastar pelas paredes e atingir a porta. Uma tentativa, duas, na verdade
sequer estava com a chave em mãos. Duas, três, perdeu a conta, achou a chave, enfiou,
tentou, não, tentou, abriu. Entrou e empurrou a porta com o pé, e foi ficar nu.
Os sapatos no carpete. A sobreveste no sofá, com ela foi a blusa, e as meias na mesa
arrumada. Da garganta seca ele não podia se despojar, e ficou com preguiça de tirar
totalmente a cueca, por pouco não desceu mais do que nos joelhos, que aí ele teria de levantar
as pernas, e ao deixar as calças no corredor ele quase caiu. Foi na cozinha beber água, sorte
que não tem como errar um caminho que já se tornou mecânico, sorte que não foi beber a
água da privada. A mesinha arrumada, o cesto de frutas de enfeitar, a pia, a dispensa. Clic,
apertou o interruptor, mil sóis se acenderam e queimaram suas retinas, é isso, estava cego
para sempre, sorte que teve agilidade suficiente para desligá-la. Com o escuro ele se dá
melhor. A geladeira não ia pegá-lo no mesmo truque, que quando a abriu e acendeu-se sua luz
ele já tinha se precavido, e abaixou o rosto, aí fez bagunça tateando e desarrumando a tudo
em busca do vidro de água, o leite que ele acaba de derrubar ele arruma amanhã, ou se algum
imprevisto acontecer ele arruma ainda depois. Bebeu, bebeu, foi se aliviando cada vez mais,
fez escândalo ao pôr o vidro de volta, coçou o rosto e arrotou. Vai fechar a geladeira, vê as
silhuetas da mesinha arrumada, do cesto de enfeitar frutas, ops, de enfeitar as mesas na fruta,
hã, enfim, pensou naquela coisa que via, que simplesmente se é, sem associar adjetivos ou
formas de definição, simplesmente que se é, e aí viu também a dispensa, a pia, o liquidificador,
a mulher de camisola na porta, os salgadinhos desarrumados logo ali. Aparentemente tem algo
fora do lugar, não são os biscoitos. A mulher de camisola o vigia. É assim que ele conhece
Carla. Diga oi para ele, Carla.
– Que merda significa isso? – oi, Alex.
Por um instante ele acha que a cozinha tomou vida e falasse, não consegue formular
nenhuma explicação óbvia para o fenômeno, é injusto que se desarrume assim a vida de
alguém que se despreparou totalmente, pegá-lo pelo susto, tomar-lhe pelas rédeas, que assim
ele se debate todo como cego que tateia a tudo e não sabe para onde vai e não sabe de onde
vem, isso serve tanto para ele mesmo quanto para o que o agride. Bebe mais um pouco
d’água, Alex se pergunta se não entrou na casa errada, muita coincidência que na casa errada
estejam lá seus biscoitinhos. Da mesma forma que ela não pode ser uma ladra porque usa
camisola, não pode ser ele ladrão na casa de ninguém, primeiro porque está na sua casa,
segundo porque ladrões geralmente não se despem ao assaltar a casa alheia, ora, claro que
será a casa alheia, que ninguém rouba da própria casa, e ele não é um desses viciados em
drogas ou coisa próxima. Posso ser um estuprador, ele pensou, é isso, o que aconteceu eu
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temia, ops, aconteceu o que eu temia, uma experiência cósmica me transmutou para a cabeça
de outra pessoa, agora sou outro ser, ainda que por algum erro eu me recorde da minha vida
passada. Estou aqui com um propósito bem definido, o de estuprar, ou seria o de roubar, mas
esse não sou eu na verdade, as coisas estão fora de seus lugares de origem. É claro que essa
dor de cabeça só pode ser um erro de programação. De repente pode aquela ali ser a vilã.
Caso não fosse não estaria segurando uma faca. Facas seguradas assim não são para cortar
legumes ou preparar o almoço, está muito tarde para preparar o almoço. Falou alguma coisa
relacionada a polícia, deve ser ela da polícia, só que não mostra distintivo algum, como
tipicamente fazem, também não chegou já atirando, e polícias não devem se vestir assim nem
ao dormir, teria um revólver. Não, vai chamar a polícia, não sei para quê. Por quê?, como
assim por quê?, ela aparentemente retorquiu.
– Apenas me deixe dormir – é o que ele diz.
Sonhou que estava sendo esfaqueado, a imagem da faca lhe foi inconscientemente
assimilada, tanto que se apavorou, eis aí uma má viagem, bad trip, como queira chamar, um
sonho onde tudo parece ser rastejar numa lama preta que podem ser as águas do mar que
cansaram de se quebrar, e esse som chiado de quem foi transportado a um vídeo cassete
defeituoso ou acaba de estourar uma granada por perto. Essa noite ele exagerou muito de
tudo. O tempo se partiu e num piscar de olhos sentiu que assim que os fechava acordava num
lugar completamente diferente, isso nos prova que o tempo é relativo e vez em quando se
arromba etc, e em segundo lugar nos lembra de que o começo da vida tem cheiro de café
amargo e tato de sofá velho, coisa que no estado normal ele não poderia recordar. Se retorce,
chia como criança, diz que não quer, não sabe exatamente nem do que está se queixando,
mas choraminga, e aí vem o gosto da café na boca, desce rápido demais, seguram-lhe a boca
para que mostre os dentes e veja se o escravo é bem tratado, enche forte demais, imbecil
quem teve essa idéia igualmente imbecil, que isso incita Alex a engasgar-se, e para vomitar
resta dois segundos. Eis a imagem que tem de si mesmo acordando, sua cabeça debruçada
para o chão e uma poça de vômito se formando no carpete, é ele que está se esvaindo, está
derretendo, deixará de existir. Ele se vê refletido e se identifica, em seguida sorri. Há uma voz
feminina se queixando do nojo e de muitas outras coisas, mas gradativamente que a ouve, e é
bom que continue falando que isso o põe de volta no rumo consciente das coisas, dá-se conta
de que invadiram a sua casa e se aproveitaram dele, a prova disso é que está só de cuecas e
certamente não foi ele que se deixou assim, pode jurar que não, e é óbvio que não vai deixar
isso barato. A cabeça ainda pesa, então para que não tente se levantar para o sofá, que está
pesado demais, segue o princípio da gravidade e se deixa estatelar no vômito, rastejando ao
carpete.
– Quem é você? – resmunga ele.
– Eu quem te pergunto – ela grita.
– Está de camisola na minha casa.
– Está de cueca... na sua casa?
– Não me confunda, foi o que eu disse – e se levantava. – Um cigarro. Ah – sussurrou
melancolicamente com a mão na testa –, meus cigarros...
– Como entrou aqui?
– Já lhe disse, minha senhora – a início não a enxergava muito bem, estava descabelada,
sem exatamente um porquê que seja racional ela lhe pareceu bastante velha –, se estou na
minha casa é porque entrei com a chave, e não pulando a janela ou arrombando, muito menos
me teletransportando.
– Também tenho uma chave – ela foi sarcástica, mas é injusto fazer uma coisa dessas
num momento como esse, eis que o confunde inteiramente –, então... temos aqui um
impasse...
– Oi?
– Essa casa é de meu tio.
Estava explicado, mas isso só começou a fazer sentido quando ele se pôs a lembrar que a
casa não era dele no sentido pleno, clássico e judicial. Certo. Agora as coisas estão ficando
mais toleráveis, mas não se pode dar por vencido.
– Seu tio é um certo Condor?
– Sim, exatamente – baixou o tom de voz.
– Chegou tarde demais, estou morando aqui de favor antes de você, e não posso conviver
com alguém que não me deixa vomitar no carpete em paz – foi beber água da torneira.
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– Eu, eu – agora ela não sabe o que dizer.
– E digo mais – dessa vez ele foi ao banheiro e afundou a cara na pia, bebendo a água e
bochechando. O outro ali no espelho ria de sua cara, mas aí abanou fortemente com a mão e o
faz ir embora antes que importunasse –, vou ligar pra ele perguntando que maluquice é essa,
que qualquer um entra aqui, porque se é a filha daqui a um dia será o primo, o cunhado, o sei
lá o quê, e a minha privacidade?
– Mas sou a sobrinha.
– Foi o que eu disse.
– Não sabia realmente que teria problemas em vir para cá, juro que tinha certeza que a
casa estava vazia. Mil desculpas.
– Você apontou uma faca pra mim e me entornou café goela abaixo, eu podia ter morrido.
– Eu não sabia o que fazer.
– E como eu vou saber se está falando a verdade?
– Vou apanhar a minha carteira de identidade, você pode ver meu sobrenome e confirmar.
– Não! – que ele não enxerga, está alucinado. – Você pode puxar outra arma. Vou ligar pra
ele, e...
– É tarde, não vá incomodá-lo por minha causa, por favor.
Agora podia vê-la melhor. Diga oi para Carla, Alex.
– Oi.
– Oi – ela responde.
– Sou Alex, desculpe a grosseria, bebi um pouco demais, tomei também umas outras
coisas, não sei onde enfiei a cabeça.
– Eu percebi. Sou Carla.
E ela lhe explica que na verdade não queria ter feito isso, de chegar na casa dos outros
durante a noite e sem aviso prévio, mas ela achou sinceramente, desculpas, que não teria
ninguém e tem a chave daí por questão de emergências. Ela não gosta de pedir ajuda, talvez
por orgulho ou timidez, talvez por ambos, mas é que foi despejada por não pagar o aluguel,
que perdeu o emprego no lugar onde trabalhava, que viu que não podia fazer outra coisa. Ele
diz para esquecer, que não faz mal, que valeu pelo menos o susto, que foi excitante. Ela
pergunta se realmente não tem problema, ele diz que não, e desculpa-se da grosseria mais
vezes, que é mecanismo de defesa, que nunca se sabe com que tipo de pessoa vai ter que se
lidar, esse tipo de coisa. Mas que está lá sozinho, e tem espaço suficiente para quem precisar,
que não será ele, que não é nem dono dali, a proibir alguma coisa, e por via das dúvidas
amanhã ele liga para o mecenas, para o tio dela, para confirmar que ela chegou e explicar a
situação, e por via das dúvidas confirmar se ela não é de fato uma falsária, aproveitadora de
inocentes, algo assim. Mas até que ela parece bem gentil. Outro poderia estar bem mais
incomodado com o vômito no carpete, independente da casa em que estivesse.
De volta a cozinha, fica pensando um pouco sobre a diferença das pessoas enquanto ela
prepara mais um café, dessa vez um que não desça com o estômago querendo vir na direção
contrária. Pensa brevemente em indicá-la. Dar a ela a carta é mais fácil do que a qualquer um,
explicá-la, por enquanto, assim, enquanto não a conhece mais do que superficialmente, mais
do que as causas que a trouxeram até ali, seria um trabalho simplíssimo. Olha só, faço parte
de uma sociedade que faz uma coisa chamada de retorno à escuridão, e é o seguinte, uma vez
nela, você poderá fazer o que quiser. Não, é melhor que não. Ela parece um pouco pura, ainda
que Alex estranhe esse termo no qual pensa, que ele não tem talento para identificar pureza,
então seria simplesmente isto a ausência de impureza, já que impurezas ele não está
reconhecendo, e a moça ali segue a cozinhar, a bunda empinada, gostaria de apertá-la as
ancas, a carne branca macia, o decote que às vezes se alarga e com sorte poderia ver-lhe os
peitos. Não seria justo submetê-la àquilo que ele tem presenciado. Ela lhe preparou um pão
com queijo e presunto. Não pode perder uma mulher que lhe faça lanches, ainda que não se
saiba se ela fará isso para sempre com o mesmo sorriso atencioso na cara. Ela é bonita e não
o desafia, é simplesmente ela mesma, ainda que não possa dizer o que isso realmente seja,
então pensa que ela é essa coisa desconhecida, sem nenhuma dificuldade nisso.
– Eu não conheço Condor há muito tempo, nos vimos apenas algumas vezes, no máximo
às vezes ele liga pra saber como estou cuidando das coisas.
– Parece que confia em você.
– Considero como tal – bebeu do café, falou com a boca cheia, coçou os pêlos das pernas
–, ainda que seja uma amizade diferente.
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– Sei.
– É mais um fascínio artístico e um jogo de interesses que nos atrai. Ele me ajudou – mais
uma mordida.
– Então já morou em muitos lugares antes daqui? – ela bebericando o café também é
bonitinha, com a voz rouca de sono, o óculos e o cabelo despenteado, assim ele não resiste.
– Em tudo que é canto que você possa imaginar.
– E isso tem alguma coisa a ver com o que você faz?
– Espero que você não esteja se referindo ao episódio de hoje.
– Não – ela riu –, me refiro ao que você faz da vida, e espero que não seja isso que hoje eu
vi.
– Faço aquilo no que a situação me puser, no momento o que faço me traz aqui, amanhã
de repente eu já posso ter ido embora.
– E o que isso significa? – ela se apóia no cotovelo.
– Que agora eu falo sobre a arte na periferia como forma de civismo, às vezes dos
importantes monumentos de nossa cidade. Já fiz trabalho de vagabundo e parasita, também –
bebeu mais, amargo assim que é bom –, um serviço aqui, uma quebra-galho acolá, nunca
fiquei muito tempo numa coisa só, me cansei, que eu me canso fácil de tudo.
– Eu também estou cansada – ela confessa –, mas ao contrário de você, não estou
cansada de ficar num só lugar, é sim exatamente o contrário, de não ficar. Estou cansada de
ficar correndo de um lado para o outro e não poder me estabelecer, de ter que acordar todo dia
com esse tipo de preocupação. É muito ruim acordar sem reconhecer um lugar familiar.
– Somos mais parecidos do que você pensa, que eu ter vindo pra cá pode representar em
mim essa mudança. Mas, independente do motivo, sempre se está cansado por alguma coisa.
– É. Então por acaso coincidimos – ela sorri.
– E não sabemos se amanhã estaremos nos cansando do que hoje nos é uma coisa nova.
– É verdade...
– Posso por exemplo ter enjoado de seu rosto, e por mais que agora eu goste de estar
olhando você, quando eu acordar amanhã já vou estar cansado de vê-la, porque conhecerei
cada curva previamente sem precisar te olhar, e saberei que ruga da cara é reservada para
cada ocasião, e isso já terá me dado nos nervos.
– Então tem que aproveitar antes que isso aconteça.
– Sim.
Ela sorriu com o canto dos lábios e foi lavar a louça. Alex se ergueu e agarrou-a por trás, aí
a segura pelas pernas e a espreme contra a pia, que depois do primeiro beijo no pescoço ela
se amoleceu e fechou os olhos. Nem ele e nem ela dizem uma palavra sequer. Ele a envolve
com as mãos na cintura, ela arfa e suspende as mãos, a passa pela nuca dele, segura seus
cabelos, ela geme, se arqueia e se dá para ele. Ele a vira e a põe contra a pia, a torneira
aberta respinga, a água os molha mas ele não sente, também respingam seus beijos que se
dão com fúria e avidez, estalados e chupados, até que ela desajeitadamente apóie a bunda,
não antes de tirar-lhe as mãos de lá, mas enfim que suba com a pia na bunda, ops, com a
bunda na pia, que ele ainda está um pouco bêbado, percebe-se, e ela o envolve com suas
pernas para que ele a carregue, a toma pelas costas e a levanta, não desgruda da boca que
tem preguiça, e por ter preguiça de levá-la até o quarto é que a joga sobre a mesa da cozinha,
e amanhã ele arruma, ou quem sabe, se algum imprevisto acontecer ele arruma ainda depois.
Está mais preocupado em arrancar-lhe as alças do vestido e subir em cima dela na mesa, que
preocupantemente range com a bagunça. É assim que ele conhece Carla.
E pela tarde acorda desnudo na cama, e ela dormindo ao seu lado o abraça com todo o
carinho que pode haver entre duas pessoas que se conheceram na noite passada. Ele a olha e
a estranha, ainda assim uma terrível impressão lhe vem nos moldes de uma turbulência, que é
a ressaca, é a náusea, mas também uma certeza. Ele não enjoou do seu rosto. Nunca a
meteria em suas tramas.

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Alex atualmente está passando por uma fase de intensa introspecção, e isso se dá, não
sendo mistério para si mesmo e talvez não sendo mistério aos mais perspicazes, porque ele
colocou na cabeça que só compreenderá os rumos que a sociedade vem escolhendo se
revisar todos os passos que ela já executou, desde as escolhas menores, os processos de
transformação e a desobediência que desde o início lá esteve, até os acontecimentos mais
decisivos, como o assassinato que aconteceu aquela noite no hotel. Como foi levado a
acontecer e como foi estimulado por outras infrações. É claro que houve outras. A história da
sociedade é a história de suas infrações. Por isso Alex pede desculpas pela possível
prolixidade de seus pensamentos, e entende que precisa remeter-se para um lugar de seu
passado que, sendo mais uma vez redundante, se é de seu passado, é porque é um lugar seu,
e ele está a se referir especificamente a quando a sociedade começou a crescer, durante o
período de testes dos novos indicados, quando a primeira regra que criaram foi quebrada. Era
mesmo indisciplina desde o parto. E a certeza que se pode ter é que, de fato, não havia regras,
no máximo convenções que volta e meia algum engraçadinho terá de ignorar, quase sendo
essa quebra, portanto, uma regra vital do próprio funcionamento da coisa. Mais tarde pensará
sobre isso com a mesma concentração que veio pensando a caminho do teatro. Porque por
agora estava pensando em Carla.
Não pensa em Carla como quem pensa em Júlia, isso é claro. Júlia é um assunto a parte.
É um assunto sobre o qual está cansado de conhecer as peculiaridades e que, por razões que
ele também conhece muito bem, é esse um assunto que não se mistura com nenhum outro.
Certo, deixe Júlia para lá, que você está pensando agora é em Carla. E pensa, inicialmente, na
estranheza de que quando ele foi sair essa noite e ela não se levantou da cadeira da sala –
que acontece que ela também é notívaga, diz ter insônia –, e não fez aquele episódio de cruzar
os braços e perguntar para onde ele está indo, enquanto bate os pezinhos no chão, deve ser
porque cansou de ser enganada, pode ser também porque notou que ele está cansado de
mentir. A mentira acaba sendo proporcional à quantidade de perguntas. E ele não tem porque
falar a verdade para ela, se bem que também não tem porque mentir, não tem que fazer nada.
Na verdade, geralmente se mente porque se teme algo, ou então porque é cansativa a
verdade, e não é natural gostar de se cansar à toa. Antes ela o olhava torto e engolia a
contragosto a desculpa esfarrapada da vez. Mas agora não, ela se acostumou e não liga mais
para se uma coisa é o que dizem ser dela. Não tem importância o que Alex diz, o que é
horrível. Ela já o está encarando com naturalidade, o que é o mesmo que perder o interesse e
a preocupação. Ela aos poucos não está mais ligando para você, Alex. E a culpa é sua, que a
subestimou, que a desinteressou. É mesmo, novamente esse ponto de vista o afligiu, isso de
pensar que esteve pensando em si mesmo por tanto tempo, suou tanto com os próprios
problemas, se é que se podem chamar esses de problemas, que de tão egoístas são
meramente aflições, mas que se danem as relatividades, o que importa é Carla, e ela entrou
num processo de partida já faz algum tempo e só agora ele tinha começado a perceber. É. E
não há nada o que fazer quanto a isso, mesmo que estivesse planejando, é que a verdade se
clareia como num amanhecer estrondoso à sua razão. É que Carla não combina contigo, eis o
grande e terminal problema. É onde se inicia e se tem por fim a discussão. Infelizmente quem
combina contigo é Júlia.
Hoje, ao chegar, a reunião já estava em andamento. Como de costume, suficientemente
cheia. Preenchimento esse que já o incomoda, mas por enquanto ele engole, que é para
quando estiver pronto para gritar o grito sair com tudo, e o grito de hoje diria muitas coisas. Se
tiver oportunidade ele não se fará de rogado, há de gritar. A escuridão dos bastidores o
acolheu por um tempo, mas eles de nada importam, que agora está passando pelo palco,
caminhando como quem anda sobre a conhecida palma da própria mão em direção a sua
posição no escanteio, onde há de se sentar e esperar que alguma coisa caoticamente
incomum aconteça, saia essa de um grito, seu ou de outrem, da proposta de alguém, cada
noite é uma coisa nova, aí reside o alívio, aí reside sua segurança, na insegurança de não
saber se hoje cantam um coro ou se resolvem lhe dar um chute nas costelas. Tanto é que hoje
a coisa incomum que está acontecendo é até mesmo incomum dentre as coisas já incomuns,
que é a de estar agora só um presente no palco, falando para todos que – e pasma – o ouvem.
É que ficou estabelecido que durante qualquer reunião alguém pode ser sugerido para presidi-
la, mas isso é coisa das teorias mal sucedidas. É que com o tempo descobriu-se que essa
proposta é vaga demais, e que não se pode impor coisa alguma a uma massa que se
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transformou num hospício sem medicamentos, o que se percebe porque geralmente essa
sugestão vinha acompanhada de pessoas contrárias a isso, geralmente falando coisas do tipo
ah, vai te catar, temos mais o que fazer e você quer nos embromar, vamos para a rua que é
melhor, sair por aí e fazer algo terrível etc. Até agora León fala, e eles ouvem. No próximo
instante alguém vai retorquir. Deve ser mesmo algo importante, tanto que não é usual, e Alex
previamente detesta.
– Ouvi boatos – eis o discurso – de pessoas interessadas na cisma, de tirar o seu da reta,
de literalmente se acovardar, acovardar – é um homem bruto, de palavras brutas – por causa
de pretextos hipócritas, que é hipocrisia, de que aconteceu um crime aqui, entre vossos irmãos.
Ora, ora!, ora!, se houve um crime, são todos, cada um de vocês, automaticamente cúmplices
e incitadores. Alguns mais, alguns menos, mas esse é o tipo de coisa que cabe somente ao
critério pessoal, porque perdemos o controle dos julgamentos, porque não cabe a nós ver
coisas tão íntimas, é na verdade leviano tentar ver coisas tão íntimas.
– E não devemos punir os culpados? – grita uma voz da platéia.
– Então começa por ti mesmo, seu retardado imbecil – se exalta por uns instantes, que é
quando grunhe e cospe perdigotos. – Não acabou de me ouvir? Se há culpa, somos um nela,
como seremos na inocência.
– O veredicto não pertence a nós, não somos nós quem julgamos o mundo – grita outra
voz.
– Sim, somos nós! – e interrompe num uivo –, que legitimamos nosso próprio universo, a
começar por dentro desse teatro, e se formos cair na discussão de qual legitimidade é a mais
poderosa, estaremos admitindo nada mais do que já sabemos, o que o retorno à escuridão nos
ensina, que o legítimo outorgado está entrando em choque com o legítimo natural, e bem
sabemos qual deve finalmente perecer, qual o caminho que finalmente se abre na nossa cara.
Abaixo a ditadura com a máscara de igualdade! Abaixo o direito repressivo! Abaixo as
convenções indiscutíveis! Abaixo o hábito! Onde está vossa força, camaradas?
– O almirante enlouqueceu.
– Quem enlouqueceu foram vocês – rosnou –, que silenciam diante da primeira
tempestade. Assinam cláusulas no escuro, esse é o pacto que firmaram, e agora uns não
sabem para onde ir, uns se borram de medo, os outros deserdam, correndo para suas tocas,
com medo de si mesmos, que não há outra justificativa.
– O negócio é o seguinte, almirante – é Gabriel quem fala –, ninguém entrou na sociedade
pra se foder. O pacto que fizemos não previa uma situação de emergência. É egoísta forçar
que todos permaneçam incondicionalmente no mesmo barco condenado a afundar.
– Afundar? – urrou. – Forçar?, quem o está forçando aqui, minha criança?, meu garoto? A
porta da rua nunca deixou de ser serventia da casa, não é hoje, que se precisa valer, que vai
se contrariar.
– Acontece que a casa agora não diz mais respeito somente a ela mesma. E quanto a
Robes? Ele trabalha na polícia, por quanto tempo ele vai ter de se ferrar a descumprir a lei em
que nós interferimos? Qual o juramento mais forte, o do retorno à escuridão ou o que ele fez
para sua carreira?
– E qual dos juramentos cabe realmente à vida? – pergunta alguém.
– Não seja hipócrita, antes de tudo, falando como se fôssemos inocentes até agora. Está
apenas com medo, está apenas com medo porque não foi sua a mão a executar o que poderia
ter querido fazer, mas ainda assim está com medo porque foi longe demais.
– Só te faço uma pergunta, Gabriel – é André quem a faz, que parece sentir-se ofendido –,
por que diabos você aceitou o convite?
– Não para matar alguém – a resposta vem mais constrangida que qualquer coisa.
– Você entrou pelo mesmo conforto que teria se fosse passear de caiaque aos domingos –
gritou impiedosamente em contrapartida, ergue o dedo indicador –, ou tirar umas férias na
montanha, ou talvez seja a mesma coisa que estar transando com a garota mais linda que
você conheceu. O prazer não é gratuito, a vida tem lá seus preços, são o que chamamos de
reações, e agora você viu que não estava disposto a pagá-los, mas comprou, você também o
fez, mas está vendo que as coisas não são bem assim.
– E você também não viu?
– Vi, mas reagi. E cresci – e pelo tom panfletário com que estipulou essas palavras, o jeito
que ele fez também foi todo profético, tudo isso incitou um foco de crescentes comentários que
concordam consigo.
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– Camaradas! – grita León. – Ainda assim há importância nas falas de Gabriel, uma
importância vital e que nos cabe ponderar. Lembrem o que nos repetíamos, uns para os outros,
os mais antigos para os mais novos à medida que entrávamos, promete fazer simplesmente o
que quiser? Promete buscar a coragem para que o faça? A ordem do dia!, a ordem do dia!,
nada mais era pedido, nada mais, não há regras a serem debatidas, não há controvérsia que
não possa ser dita em voz alta – e gesticulava teatralmente –, não há nada mais simples que
isso.
– Talvez seja isso que queremos mudar – Gabriel.
– E nos transformarmos em quê? – André. – Somos o que somos exatamente por isso.
Voltar é estragar o que nos tornamos, estragar a tudo.
– Talvez queiramos mudar o que somos, ou o que nos tornamos.
– Como eu ia dizendo – urra novamente León –, cabe, nesse instante que é a todos tão
marcante – ele fala bonito –, separarmos voluntariamente, separarmos voluntariamente o joio
do trigo, porque quem acha que está disposto a ficar, ficará, e quem acha que não tem
estômago forte, que não agüenta, que não tem capacidade de vislumbrar – enche a boca para
falar essa palavra – as maravilhas e os perigos do retorno à escuridão, essas pessoas que
ignoraram as nossas tantas conversas por ingenuidade, esses sairão, e que nunca mais
voltem.
– Não há conversa no meio de gritos! – grita um.
– Isso é tudo covardia!
– E como garantir que os que sairão não irão denunciar os que ficarem?
– Espero que essa não seja uma ameaça – León trinca a mandíbula. É um animal.
– Temos de saber pôr cada coisa em seu lugar – veio Robes.
– Deixem de papo furado – André ergue os braços e pede a atenção – e façamos da
maneira mais simples possível. Quem quer sair que levante o braço exatamente agora.
Formou-se um curto momento de tensão, coisa de segundos, com direito a gente se
entreolhando e a murmúrios entre os mais familiarizados, que segundo Alex é coisa de gente
que precisa do apoio e do estímulo do próximo para manter uma vontade que caso contrário
não permaneceria, algumas pessoas ainda não se acostumaram a não precisar de concessão
para ser sem temor. Deve ocorrer muitos desse processos menores de um para o outro e de si
para si mesmo, o primeiro vai se erguer tentando ser forte mas acaba hesitando, os
acompanham alguns, com jeitos suspirosos, acabou que uns quatorze braços, é o que Alex
conta, se levantam. É um número que dependendo de quem olha pode ser tanto insignificante
quanto suficiente. A qualidade deles é insignificante. O número é ruim. Dentre eles está
Gabriel, que parece ser o único fraco com alguma disposição de dizer que o é, e Alex imagina
se não seria esse momento usado por Júlia para ela desertar mais uma vez, mas está
abraçada nos braços da cadeira, decerto se segurando para não saltar e gritar, chega com
tudo isso, que ninguém agüenta mais e eu menos ainda, estou fora e quero muito levá-los
comigo. Robes perigosamente opta pela saída, que agonia, mas no momento seguinte abaixa
o braço e fala.
– Não, eu fico. A palavra acima de tudo, sem ela não sou nada – e muitos devem ter se
aliviado. Alex se aliviou.
– Vão embora, maricas, covardes, desertores bundões. Lhes faltam as bolas, é isso que
nos resta.
– Deixe-os, almirante – André diz –, que nessa situação o melhor que eles tem a fazer é
não atrapalhar. É a última reunião que assistem. E fazem bem.
E marchou uma demanda de cabisbaixos diante de um silêncio funéreo, saíram com o
peso ressentido da alcunha de traidores e de tudo que há de ruim lhes pesando nas costas,
mas o que se pesa vindo do olhar de uns pode nos compensar com o fim de um grave
embrulhar de estômago. Alex se preocupa mas não há o que ser feito, resta rezar que esses
minutos de tensão passem, ou que a tensão mude e ao menos venha a compensar, esperar
que esses rostos escabreados com que os remanescentes devem imaginar se fizeram a
melhor escolha para suas vidas acendam o furor do caos, que é muito mais impulsivo que esse
frio apático, que o caos é vida em movimento, e ali eles estão por entrar na velhice da melhor
vida que já tiveram. Agora vão se sentar praticamente todos juntos e decidir, ainda com tom de
gravidade, enquanto alguns reclamam em vão por alguma explosão de autismo, mas essa não
pode por enquanto acontecer, as coisas do futuro da sociedade, do futuro deles mesmo,
assunto que atualmente vem se tornado mais urgente, até que um lamente que quanto mais as
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coisas se complicam mais se perde o pouco tempo de vida que resta para resolvê-las, quando
talvez seria tão melhor ignorar a todo problema e com isso ganhar todo o tempo que se pode
ter para si. Um diz que é melhor que mudem de lugar, que agora, com essa divisão súbita,
ainda que da minoria, a existência deles pode estar realmente ameaçada, outros não estão
nem aí, se tem de acabar, que seja, mas outro diz que não, que o lugar não representa quase
nada, que o importante são as pessoas, é como achar que precisam de um templo para orar,
mas como assim, não representa quase nada?, é onde podem achar a todos nós juntos, nós,
que somos clandestinos, marginais, assassinos, então o melhor que temos a fazer é esperar a
poeira abaixar e permitir que as coisas se desenrolem, depois disso marcamos uma próxima
reunião, farejaremos o ar com a ardilosidade de um cão ferido e veremos se ele está menos
hostil. A maioria se mostrou favorável a essa idéia. Aí um diz, finalmente que esse problema
está resolvido, até que demorou bastante.
– Infelizmente isso é algo que só está começando – revela um alguém mais prudente.
É que a cisma por si só não representa absolutamente nada, não tem força, é de
integrantes que temem, e isso passa a ser deixado muito claro, e não há poder num punhado
de gente que treme, de frio, de fome, de receio, não há força nas vísceras, energia para o ato.
Essa cisma é de indicados que colocaram a sua paz acima da auto-realização, ou que ao
contrário dos que aí estão, são pessoas que têm, na paz, a realização. O retorno à escuridão
fala de guerra inteligente, fala de conflito, de sentir as angústias e não lamentá-las ao
terapeuta, de puxar os próprios cabelos enquanto se enxerga no espelho, e as caretas contém
rugas, estão a cada dia mais feias. O retorno à escuridão fala desse berço de homens
melhores, a manjedoura de uma era de rejuvenescimento. Que reside ali, com eles, com Alex,
nesse teatro. Eis no que acreditam. A cisma não significa nada. O problema é a consistência
deles mesmos. A certeza que estão adquirindo. Ele olha cada rosto conhecido, vê o medo e a
paixão, sorri ao imaginar que estão transparecidos também nele, ainda que a companhia do
cansaço deva roê-lo ainda mais que qualquer outra que o siga, ainda que esteja realmente aí
porque o cansaço de todas as coisas já nasceu consigo e nunca há de separar-se. Ele se vê
compelido à retornar à escuridão, ele em si foi essa exigência inicial. Chega a conclusão de
que o que está vendo não é totalmente estranho e inesperado, que na verdade a sociedade já
começou entre trancos e barrancos, não seria de se espantar que tomasse fôlego e
ascendesse com o mesmo som do parto.
Volta ao tempo em que os testes dos indicados nem tinham acabado, porque só André
tinha passado por uma loucura e já havia gente desobedecendo as instruções, ainda que
desobedecer seja o espírito geral, havia então gente que não estava nem aí para o que foi
estabelecido e antes de passar por sua loucura e ser aceita estava tomando a iniciativa de
enviar um convite e um exemplar do retorno à escuridão para um estranho aos demais. É aí
que na continuidade das loucuras, na madrugada que ficou marcada para que dessem
andamento às coisas, na rua escura e deserta em que estavam se encontrando, surgiu um
sujeito cujo nome é bem estranho. Bublitz foi quem se apresentou intrusamente. E a princípio
não apenas não se sente a vontade em tratá-lo pelo nome, como também estranha a ousadia
entranhada nesse que o porta.
– E aí? – foi o que ele perguntou sorrindo numa cara-de-pau dessas que deixa qualquer
um irritado. Alex o detestou e o amou. Não poderia prever naqueles instantes que ele, junto de
poucos outros, seria um dos que se tornariam a cúpula daqueles que levaram mais ao fundo
tudo o que por ele foi pregado, isto é, aqueles que escorregaram ou que desceram até mais ao
fundo do poço, supondo nele haver mola para subir novamente, ou não.
Ele é amigo de Sylvia, e por mais que tivesse em mente reclamar com ela não o faria, que
aquele jeito de quem não liga para nada é forte demais, e ele não suportaria se depois de um
sermão, certamente algo que odeia dar, que não combina nem um pouco consigo, ela
simplesmente olhasse para o lado e como uma lhama indiferente a quem monta na corcova
cuspisse o chiclete ou o fumo como quem diz, ou melhor, não diz nada, apenas boceja.
Deixasse isso para Júlia, riu quando pensou na hipótese, já que ela sempre acha alguma coisa
para se reclamar a respeito ou fazer um charme detestável, e quando não encontra esse algo,
inventa, que é para não desaprender a técnica. Imaginou que se ela não disse nada é porque
tinha de ser inteligente, ela não podia, já que também indicou Gabriel antes mesmo de ela ser
aceita, mas por outro lado fez isso para vingar-se de Alex, é finalmente um ciclo, mas enfim,
tendo pensado em aceitação é exatamente pela aceitação dela, já que devemos seguir uma
ordem, que estamos aqui essa noite, se recordou disso com felicidade. Voltou novamente as
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atenções a Bublitz. É o tipo de rosto que não te diz nada, bem, na verdade como quase
qualquer outro rosto simplesmente por si só. É um rosto curioso, que fica com os olhos na
expectativa de subitamente arregalarem, mas não o fazem como porque se tivesse um
pregador nos cantos. Quando ele pode está roendo as unhas ou ajeitando um gorro que
sempre carrega consigo, assim, fica puxando-o de um lado para o outro sobre a cabeça, é um
gorro cinza, as vezes ele o tira para afagar o cabelo, são loiros e estão sempre sujos e
despenteados, e olhando assim na verdade ele tem cara de criança, é o mais novo entre todos,
quase mal tem a barba. Por final das contas parece mesmo que Sylvia escolheu bem, e já que
ela é indicada por Alex, Bublitz de certo modo é um mérito também seu. Ele começou dando
um parecer interessante sobre a sociedade.
– Eu comecei a ler e achei muito engraçado, me acabei de rir. Posso entrar?
É claro que pode, meu caro. Qualquer um pode, isso vai depender exclusivamente de sua
disposição à loucura. Não deverá ser tão difícil, Alex só espera que seja sujo. Enquanto isso
acontecem outras controvérsias, ao que está longe de querer tomar partido em todas.
– Tenho que estar amanhã de manhã na universidade, não podíamos acabar mais cedo? –
Stern.
– Mas é fim de semana – Sylvia.
– Eu sei, é um caso excepcional.
– Pode ir embora se quiser, hoje a noite não é pra você – André. Ele parece um pouco
mais seguro que das outras vezes que assumiu a responsabilidade de falar, isso se mostra na
palavra, em qualquer coisa que venha dela. Decerto que o último capítulo o fez bem, decerto
Alex quer acreditar nisso.
– De qualquer jeito eu não quero perdê-la – ele meiosorriu.
– Como é? Alguém pode me explicar como é que acontece? – o tal do Bublitz.
– Quem foi que chamou esse cara? – Júlia.
– É da seguinte maneira, seu patrono vai indicar que você faça uma loucura, e você terá de
fazer. A depender de seu desempenho todo mundo vai julgar se você foi apto ou não – André.
– Quero uma loucura bem bizarra.
– Vou pensar em uma pra você, Bú – Sylvia.
– Voltando ao que Stern falou – veio aquele Gabriel –, também tenho algumas coisas pra
fazer amanhã, plantão no jornal.
– Mas é fim de semana – Alex.
– Eu sei que é fim de semana, mas tem gente que trabalha no fim de semana, raios.
– Não precisa se exaltar – Alex.
– Mas eu não estou me exaltando.
– Não precisa falar gritando comigo, eu posso te entender quando você fala baixo.
– Mas que...
– André – Alex interrompe –, já tem em mente qual será a loucura de Júlia? – é inegável
que sentia lá seu certo prazer não apenas pelo contexto, mas por poder sugeri-lo tão
deslavadamente, do jeito cínico que ele julga indispensável. Sabia que não podia trocar
palavras diretamente com ela. Não era mesmo algo que ele quisesse.
Mas não pode evitar que quase involuntariamente a provoque. Provavelmente ela também
não pode.
– Bem, pensei – ele responde –, mas... – pronto, já tem aí motivos para olhá-lo com
insatisfação – não sei se eu sou a melhor pessoa pra sugerir uma coisa dessas.
– Quê? – apertou o fundo dos bolsos e o olhou.
– É que eu posso acabar sendo muito parcial, posso acabar não fazendo jus ao mérito da
loucura pra proteger Júlia, esse tipo de coisa – desabotoava os botões da blusa com jeito de
quem se envergonha.
– Não precisa me poupar de nada, André, que eu posso suportar o mesmo que vocês,
ainda que – risadinha pretensiosa – eu só não veja por quê – ela diz, e não teria dito a mesma
coisa da vez passada. Na verdade disse algo um pouco longe disso. É.
– Não é uma questão de pedido seu, Júlia – André. – Prefiro evitar ser parcial ainda assim.
– Mas a intenção é exatamente essa, que você seja parcial, que escolha algo que vá fazer
efeito sobre ela, e ninguém melhor do que você, que a conhece, para isso.
– Prefiro passar esse cargo a você ou pra qualquer outro, Alex.
– Não – retrucou instantaneamente, e um certo diabinho na consciência tentava seduzi-lo a
aceitar, é muito, muito, muito tentador, certo, mas ele foi mais digno. – Também faz parte de
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seu próprio processo, poder ordenar uma coisa dessas, não dependerá apenas se ela tem
coragem de obedecer, mas de você que tem capacidade de afirmar.
– Pedirei qualquer coisa, então.
– Faça isso – Alex não perde a seriedade, ele nunca perde –, e simplesmente não a
aceitaremos dentro, e a sociedade provavelmente terá morrido sem graça alguma, sem mal ter
começado.
– Alex tem razão, será bom – Stern.
– Faça o que for para deixá-los satisfeitos, André – Júlia, até parece que não está
ressentida.
André pondera, só resta a Alex torcer, não se espantaria se os outros em segredo também
o fizessem. Talvez André não tenha se libertado tanto quanto ele pensou, talvez lhe falte
exatamente romper com esse seu grilhão especial, esse que caiu na cabeça dele mais
subitamente do que quando caiu na sua. Júlia. Se os ajudou a ficarem juntos, agora precisa
ajudá-los a se separarem, que no contexto anterior fez um bem, em cada situação precisa
continuar fazendo, nem que isso signifique o oposto do que fez outrora, a contradição às vezes
é necessária, é questão de movimento e evolução e seleção natural. Mas é claro, ele se diz,
restringindo-se para manter o bom senso, que essa separação é metafórica. A liberdade
implica em se divorciar um pouco de tudo. E tenho dito.
– Está certo, então – viva.
– Lembre-se que eu posso simplesmente abandonar isso tudo – foi ela quem falou, deve
ter sido essa uma ameaça para ele, é, com toda certeza que foi. É claro que ela vacilaria, é
claro que hesitaria e iria impor alguma condição, condição é coisa de quem teme. É óbvio que
esse não é seu lugar.
– Perfeitamente, não queremos forçá-la a nada – não queremos, ele disse. Porque se
quisessem poderiam.
– Júlia – André tomou fôlego –, você se passará por uma puta.
– André? – ela.
E ele gela por um segundo, surpreso e hesitante por não ter sido preciso que ele fosse ao
ouvido do camarada e lhe estimulasse com idéias terríveis, não, não era preciso, que ele tinha
aprendido. Ele sabia o que fazer. O invejou, ao mesmo tempo que soube estar bem
acompanhado. E se felicitou o suficiente por ter visto que era exatamente aquele sujeito a
conseguir deixar a moça com o rosto pálido, que se fosse outro não teria sido tão bom a deixá-
la com olhos da desolação de quem se perdeu, sinal de que a alma estava tentando escapá-la
pelos poros, e que se a continha era faltando quase toda a vontade, certamente se
desmilingüia. Não poderia ter ganhado melhor prêmio que esse. Mas algo tolo dentro de si
preocupou-se por ela. Não por muito tempo, que ele logo sorri, mas é sorriso secreto, e a
preocupação ele logo ignora. – Sério isso? – pergunta aquele Bublitz. É mesmo, meu caro, é
mais divertido do que você pensava.
– Você se passará por prostituta – ele falou no seco. – Entrará no primeiro carro com
homens que te pararem.
– André, o que você vai me pedir? – ela esbugalhou os olhos.
Ele já pediu.
– Você vai cobrar um preço bem barato, algo ridículo, que ninguém possa recusar. Irá com
eles até a primeira esquina, nem mais, nem menos, e então dirá a eles que não quer mais, e
sairá.
– Não vão deixar! – ela brande os braços, tem gente que ainda quer contestar o absurdo,
não sabe que se é absurdo é porque não se contesta, no máximo se foge. – Mas que coisa
absurda, que coisa imbecil, e quanto ao perigo?, nisso você não pensa?
– É importante que façamos isso, Júlia. Se queremos...
– Importante? Fale por você. Pelo amor de deus!, o que eu tenho que ouvir?, não faz o
menor sentido – às vezes o sarcasmo se desespera. – A outra vez, como se não bastasse da
outra vez, ainda essa. Você sabe por quem está se deixando levar, não é?
Pronto, tinha de sobrar para ele. Melhor ficar quieto. Olhar para o alto e assoviar.
– A prova de que será importante também pra você é exatamente essa tua reação.
– Meu deus, André!, você está se ouvindo?, e de quem é esse discurso?, por acaso é seu?
– Porra – então trincou os dentes. Nunca o viu gritar com ela até hoje. – O que você pensa
de mim? O que você acha que eu sou? Uma marionete de Alex?
– É claro que não, eu... – foi interrompida.
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– Tudo que eu faço tem de ser contrário a ele pra que pertença a mim?, que se não for, eu
estarei servindo a ele? Sou eu que quero fazer isso, e se você não estiver disposta a cumprir,
pense o que quiser ao meu respeito, eu não me importo, diga o que quiser ou me condene,
você pode escolher, mas se não quiser, o que tem a fazer é ir embora.
– Não fale assim comigo – choraminga.
– Então pare de querer você ordenar tudo o que eu faço – andou de um lado para o outro,
melhor que ninguém se intrometa, que deixem o circo pegar fogo –, e se você quer estar aqui,
conosco, agora, então faça, se você tiver coragem, porque é um experimento, pode ser
estúpido, você pode achar que não vale nada, mas pare de me julgar. Aqui somos iguais, é
assim que deve ser. Se você não acha, vai pra casa.
– Eu não estou ordenando...
– Então confie, ou não, mas responda por si mesma.
– Não grite comigo na frente dos outros – a voz de manha, que coisa hilária.
– Só gritei pra que me ouvisse, espero não ter de fazer isso mais vezes. E quanto à
loucura?
– Se você me pede, se você quer...
Alex não acreditava no óbvio que estava prestes a ouvir.
– Eu mostro que posso fazer.
Sua vontade era de uivar à lua e fincar as unhas na carne do peito, não sabe se de alegria
ou se de fúria, ou só de pirraça, talvez das três e de outras mil coisas a mais, mas esse tipo de
coisa tantas vezes se confunde que não cabe a ele ficar pensando, não compensa a sua perda
de tempo etc.
– Escuta – Bublitz interveio –, posso te dar um canivete, eu carrego comigo por questão de
segurança, mesmo. Se der merda, mas fica tranqüila, que provavelmente não vai dar, mas de
repente se der, né, que nunca se sabe, se eles não te ouvirem, quiserem te apalpar à força ou
coisa assim, você mostra o canivete e os ameaça, mas ainda pode não ser suficiente, né,
então você não só mostra, qualquer coisa finca na coxa de um.
– Eu não vou enfiar um canivete em ninguém.
– Foi só maneira de dizer, não é enfiar, é só dar a entender, é que eu não sei, nunca se
sabe o que pode acontecer, digo, não acho que algo de ruim vá acontecer, é até provável que
não, mas você sabe que nunca se sabe, né, daí no caso de acontecer a coisa, é melhor...
– Eu não vou enfiar um canivete em ninguém, chega.
– Tudo bem – ele anuiu com as patas –, não quero entrar nessa discussão, você faz como
preferir.
Engraçado, pareciam estar descrevendo um certo episódio antigo de sua vida. Alex se
compadeceu do rapaz que pegasse Júlia como puta. Agora imagina se aquela puta
ensandecida de outrora não estaria também praticando o retorno à escuridão.
– Tudo bem, Júlia. Se você quiser, pode levar o canivete – André permitiu.
– Tenho um batom roxo aqui na bolsa – Sylvia diz –, posso ajudar a te maquiar. Vamos
descabelar você um pouco, ajeitar esse blazer, encurtar um pouco a saia.
– Você parece entendida disso.
– Mas é você que vai se tornar a puta – e Sylvia sorriu.
É mesmo. Aquilo gelou a cara dela numa figura que Alex nunca vai esquecer, fotografou na
memória e inteligentemente disse para si mesmo, eis uma imagem que é para o resto da vida.
Ele procura definir mais ou menos o que significa essa cara, mas descrevê-la torna-se difícil
aos termos mais comumente usados, então ele pensa apelando para uma metáfora, e a
metáfora é a seguinte, que a garota parece ter olhado para o céu procurando por estrelas e se
descobriu olhando fezes. Uma grande pilha de bosta no canto da calçada. Bosta de mendigo,
que é mais lamacenta, é com esse rosto que ela está vendo o mundo. E ficou puta com isso. A
pena lhe volta por alguns instantes, porque até na miséria Júlia consegue ser sedutora. Então
ele chega à conclusão de que só teve um lapso de emoção bonita porque a miséria a causou,
então é na miséria que ele encontra seu melhor. Mas pena é um sentimento que não se deve
ter, pena ou inveja de ninguém. E ia tudo no mais perfeito andamento. Júlia é preparada,
pintada, rasgada, enquanto as hienas risonhas dobram as línguas para não cometerem a gafe
de sorrir, que é claro ser o que desejam, mas isso não diminui a indelicadeza, bendito se
houvesse o primeiro indelicado a ter a falta de vergonha de rir espalhafatosamente na cara da
mulher e sacaneá-la chamando-a aos berros de puta. André não ri. Ele anda estranho nos

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últimos dias. É como se fizesse um pequeno serviço nojento, um bem maior que, para
alcançar, deve passar antes por um certo asco.
O bando vai caminhando. Com um pouco de esforço a boa-moça vai se converter numa
perfeita meretriz de beira de esquina, a beleza deve ajudar um pouco, ela deve saber ser
vulgar quando pretende, que seja esse um desses instantes. Alex pensa que toda mulher tem
uma puta dentro de si. E prefere não se ocupar disso, então reflete que se é com toda mulher
ele não sabe, não conhece e não tem a curiosidade de conhecer a todas, mas Júlia decerto
tem uma dentro de si. E se não tem mesmo um lado de puta, ao menos já tem garantido esse
outro, é este o famoso lado filho da puta, que apesar das equivalências é mais diferente do que
dá a entender. Ver ela suspendendo a saia que usa no escritório é revigorante, puxando a
meia-calça para cima para ficar mais presa às cochas, por instantes a idéia de tirar uma foto e
dar um jeito de mandar para seu escritório é tão fascinante que o deixa aflito com a idéia do
que pode fazer. Ele não pode deixar de encará-la, seria jogar fora sua glória. E torna-se ainda
pior fazê-lo com um ar de naturalidade que só ele deve possuir.
– Por favor, pode olhar pro outro lado? – veja, finalmente ela dirigiu a palavra a ele, está
completamente derrotada, ela nunca vai perdoá-lo.
– Ainda não estou vendo nada demais – cínico, mas mais cínica é ela, que foi lhe falar ao
invés de fazê-lo a todos.
Ela riu tendenciosamente, o escárnio não precisa de muitos motivos para nascer, e ela
quer derrubá-lo, não ao escárnio e sim a Alex, e colocá-lo aos seus pés, mesmo sendo ela que
rastejaria feito um verme se lhe fosse pedido, talvez devido mesmo a essa disposição ela
possa ser capaz de uma vingança avassaladora e sem pudores quando a hora chegar. Mas
nada pode ser avassalador o suficiente para atropelá-lo, ele zomba da cara do diabo, e tudo o
que Júlia consegue ao rir, pelo desespero de uma honra que não tem, é fazê-lo pensar que ela
está se fantasiando de uma puta que demora para cair do salto, tardará, mas uma hora vai. Ele
não retribuiu o riso, não precisa se rebaixar. É claro que isso a enfurece. É claro que um repete
o erro do outro, que Alex já não sabe quem primeiro provocou, é certo que isso ninguém nunca
saberá, é algo que se perdeu na inflexibilidade das guerras e na impossibilidade de voltar e
corrigir. É aí que ela vem com uma conversa estranha.
– Alex, você deve entender alguma coisa de psicologia, alguma coisa dos nossos
comportamentos, então me diga, sabe qual a diferença entre o neurótico, o psicótico e o
perverso?
– Oi? – ele meiosorri.
– Um espelho, por favor? – ela pede e Sylvia a entrega, deve ser para passar o batom, que
graça. – O neurótico, Alex, falando para os leigos – odeia quando ela se dirige tão diretamente
a ele, prefere quando é um pouco mais hipócrita –, é aquele que entende o ambiente onde
vive, os códigos que usam ao seu redor, por que as pessoas agem da maneira que agem, esse
tipo de coisa.
– Que merda de assunto é esse? – Bublitz leva a mão à boca e tosse.
– Mas o neurótico sente-se deprimido, pra baixo, coagido, é aquele que não se adapta, que
não consegue, é o cara que se lamuria de tudo, que não segue em frente, todas as suas forças
se acabaram.
– Parece interessante – a garganta se embola mas a voz sai firme.
– O psicótico – começa a passar o batom.
– Tenho um pouco de sombra e blush e pó de arroz – Sylvia.
– Muito obrigada – ela une os lábios e faz biquinho com cara de nojo. – O psicótico é o
sujeito que cria uma realidade para si mesmo porque não se identifica ou não consegue viver
naquela que lhe foi apresentada, ele cria seus próprios valores, é um cara egoísta e muito,
muito solitário – como se qualquer um não fosse assim, minha cara.
Ele continua ouvindo com jeito de quem não responde a nada.
– E o perverso, finalmente, é o sujeito que aparentemente não tem nada demais, que pode
se adequar ao que lhe é dito, que aparentemente concorda, entende, está bem, mas tem
alguma necessidade mórbida de chocar por nada, de ser cruel, sádico mesmo. Ele gosta de se
testar e atravessa a vida de qualquer um para que isso seja necessário, simplesmente porque
quer, porque vai se sentir bem.
– E? – tenta sorrir, mas imagina o que ela dirá.
– Você consegue ter tudo de todos ao mesmo tempo, e essa deve ser uma proeza
inimaginável. Parabéns – vai terminando de se maquiar.
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– Tenho direito a uma pergunta?
– À vontade.
– O que te levou a essa inspiração súbita a meu respeito?
– Raiva, talvez – e ela ainda ri.
– Outra pergunta – ele objeta –, se acha que é um neurótico, psicastênico...
– Psicótico, é mais simples.
– Se acha que é um neurótico, psicótico, perverso que é o responsável por estarmos aqui,
agora, por que você contribui?, por que contribui com a sua presença?, se você acha
bobagem?, pode falar, não vamos achar que você está fugindo.
– Não acho que seja você o responsável – continua ela sendo a perversa, ainda não
aprendeu.
– E não se trata de fuga ou comparecimento – intervém André.
– Então? – ele pergunta, talvez o horror de não ser reconhecido responsável o afete ainda
mais.
– Se trata de imposição – Júlia.
É aí que ele tira a mão do bolso e lhe aponta o indicador num sinal ameaçador, – E não é
com essa cara deslavada que você consegue se impor.
– Não, é com atos, eu vou fazer – ela grunhe.
– Eu te desafio – ele sabe o que está fazendo. Ele sempre sabe –, eu quero ver.
– Pois bem – ela ergue a cabeça. Ela morde a sua isca. Qualquer um morderia.
O beco escuro está sendo deixado para trás, não é dormitório de ninguém e nem berço
para nada, a não ser aos ratos e os cães rasga-sacos, que não mais existem vira-latas hoje em
dia, e todos passam a se envolver com a atmosfera do lixo, não apenas os cães mas também
os livres, é como se suas sombras todas deformadas nas paredes mantivessem relações com
o sujo, feito passassem não só a abarcá-lo mas a completá-lo e dar sentido. Seguem a
concubina de hoje, cumprem o absurdo que saiu da mente de um qualquer e agora já foi
abraçado por todos, porque se há diagnóstico específico ou transcrição desse fenômeno como
patologia é quando se afirma que a novidade é contagiosa, ainda mais quando por algum
motivo alguém faz com que creiam nessa idiotice como instrumento para se alcançar algo tão
profundo, como se diz ser o caso da liberdade, na verdade algo tão simples e sem glória
alguma, natural, tão orgânica como o desejo fisiológico de cagar, porém espertamente
desacostumada. A sociedade quer resgatar algo simples.
E a sociedade quer desmistificar isso. E portanto rastejam como piolhos que nos pêlos
dum bicho qualquer buscam abrigo, a seguir uma vagabunda, Júlia fantasiada de uma, ou uma
que aproveita o álibi de ter de ser, é uma cena estranha, das que nos envergonham de estar
perto ou de conhecer aquela pessoa, mas ele poucas vezes se sentiu tão bem, achando-se um
parasita e percebendo que outros também gostam de sê-lo, veja só, que até seu modo pessoal
de andar se reproduz nos outros, e eis aí uma relação de vice-versa, tal como seu modo de
olhar e a saliência dos caninos sedentos por sangue, ele não é único a tê-los, e sente que
finalmente não está só, recrutando a sua prole, e os recruta não a fim de uma utilidade, mas de
qualquer coisa, tudo, é tudo permitido e ele não quer ter de esperar nada, nada. Sugar o
sangue um dos outros, essa é a sua prática e o único objetivo, se haverá fim que se haja de
uma vez só num ronco bronco e desgastado, com um boi seco a dar um coice e cair por não
mais suportar tantos morcegos a drená-lo, e o hospedeiro é esse mundo, esse beco sujo e os
ratos guinchando, e Júlia que se fecha porque sabe o trabalho que tem de realizar, mas o
hospedeiro e o verme é ao mesmo tempo Alex, o mundo por sua vez também é um vampiro
aconchegado em seu pescoço. As coisas nunca estiveram tão claras e nunca pareceram tão
simples, lhe conta o ritmo da jugular sobre o mistério sem graça ululando ao que aparece em
sua frente.
As formas brancas de Júlia saem fantasmagoricamente da rua como se fosse um leite
derramado da treva, um leite que a boca da escuridão engoliu e agora repele por fazer mal.
Alex quer seguir em frente com passos rudes, desses que se estatelam no chão e mostram
que está bravo, não que realmente haja causa para isso. Mas André estica o braço a frente.
Com isso todos param, o respeitam, e Alex é o último a entender que também é bom respeitá-
lo, que isso significa para que eles parem, mas ora, como?, é que devem vigiá-la dali,
escondidos, da escuridão para onde vão retornar, e Alex começa a sentir-se o mestre dos
trocadilhos pelo seu raciocínio quase rápido, não tão brilhante e um pouco imbecil, é verdade,
mas concorda com a idéia de que seja bom deixar que Júlia se vire. De preferência que tome
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na cara, que ela merece. – Espera – Bublitz balbucia um instante, e então lembra-se de correr
desajeitado na direção da vadia, a qual ele ajuda por tirar do casaco um objeto fosco e discreto
que deve ocultar lâminas enferrujadas.
– Obrigada – ela lhe sorri com a pouca disposição, ainda que pareça sincera.
– Tem de acertar perto da virilha, e aí rodar, e rodar, até dar a volta na sua própria mão,
que é pra doer e causar estrago, pra revirar a carne, de preferência pegar numa artéria.
– Obrigada – não há mais tanta disposição.
Bublitz corre de volta para junto dos demais, resta a meretriz e seu desafio.
– Até a primeira esquina, Júlia – a voz de André soa como a de um mártir que rosna –,
relaxe. Dará tudo certo – e com um passo para trás entrou no breu.
E ela espreita a rua como bicho receoso em sair da toca, lá fora pode ser muito perigoso,
deve ser porque ainda não deve lidar muito bem com a possibilidade do vexame, algo como
estar nu e saber que não adianta pôr uma mão na frente e outra atrás, sempre vai ficar de fora
um pedaço comprometedor do que se envergonhar. A sorte dela é que é uma rua dessas que
não têm porquê ter muito movimento à noite, que não tem nada que apeteça à gente boa ou a
gente honesta, salvo talvez as suas próprias residências. A vergonha dela só serve de si para
si, há olhos como os de Alex, dos quais ela não pode escapar. E ela ainda se tornou uma
mancha na integridade da boa gente, mais um motivo que terão para se envergonhar dessa
situação da cidade, onde a gente é forçada a conviver lamentavelmente com figuras feito
essas, largada às misérias do espírito, céus. Ele se dá ao luxo de ficar imaginando o que ela
temia, que é superficial pensar que a pessoa só tema o ato em si, nesse caso o ato é
submeter-se a algo que ela repudia, ou ao menos disfarça que repudia, que ele sinceramente
não pode afirmar com certeza, e mesmo se pudesse seria divertido se não o fizesse. Ela deve
temer por exemplo que uma concorrente chegue de repente saltando de uma das vielas e grite
ei, você, essa aqui é minha área, e Júlia com a vozinha melosa e altiva de boa moça, desculpe,
senhora vagabunda, não é o que você está pensando, mas antes de pronunciar a letra v ela
teria recebido um tapa que nem teria visto de onde saiu, só lhe restaria a estampa da palma de
uma mão no meio do rosto sardento. Ou de repente em algum carro passa um colega de
trabalho dela ou um vizinho seu, o que seria uma coincidência quase impossível e talvez divina
para acontecer numa cidade desse tamanho, e o sujeito a olharia e pensaria, porra, essa aí
realmente não precisa fazer isso, quem diria, uma gostosa dessa ao meu alcance e eu sei que
é por prazer. Imagina. Depois de hoje, Júlia, de certo modo, lhe pertenceria para sempre, ou
até não, que ela é esperta e de repente se acostuma. Ela é um camaleão, se adequa a tudo
com vocação para a falsidade e para a simpatia, a melhor das alpinistas sociais, se é o que ela
deseja. Olha lá, do fim da rua já vem passando alguém, parece ser gente que caminha por aqui
simplesmente porque lhes é caminho para algum outro lugar mais importante. Do outro lado da
rua o grupo das meninas a olham torto e também devem cochichar, algo como, olha lá, uma
prostituta numa rua pacata como essa, que nada a ver, a esta hora, não sei mais que fim essa
cidade terá, ainda bem que a minha irmãzinha não anda por aqui à essa hora, elas chegam a
dar uma risadinha. Tudo que ela faz é cobrir as coxas, é, como se a palma de sua mão
pequenininha fosse capaz de cobrir essas vergonhas, vai lá, é mesmo algo bom de se olhar.
Ao pensar nisso olhou para André. Sentiu ciúmes.
Logo vem o primeiro carro. Ela olha para trás de relance, por trás da força que quer
transparecer ela está implorando por ajuda, implorando que voltem atrás, que surja a surpresa
de ser comunicada que o teste só era para ir até aí, ver se ela era realmente capaz, que é
óbvio que não iam submeter ela a uma coisa vil assim. Mal sabe ela que a sociedade não
acredita em vileza e que ser descuidado e inconseqüente é um instinto divertido. Enxergue a
perversidade nas pessoas certas, Júlia, e não só em mim, Alex pensava, pensara também em
desafiá-la, advertir-lhe com tom ameaçador para que se empenhe, para que não fique
esperando que intervenham, que nada ali irá salvá-la, e que ela tem ainda assim a sua
escolha, mas acontece que ela sequer deve enxergá-los no escuro, e os faróis que vêm
chegando iluminam o seu rosto. E olhando neles ele lembrou-se.
– Pois é. E quanto a você, Júlia, participa conosco?
– Eu? Por quê?
– Renovar os ares, conhecer gente nova, fazer algo excitante.
Algo excitante. Imagine o que agora ela deve estar pensando.
O carro passa, e ela não está se empenhando, o que fez com que Alex bufasse. A vontade
que tinha era de ir ali e puxá-la pelos cabelos, fazê-la curvar-se e gritar, vai fazer o que foi dito
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ou vai ficar se escondendo?, o que vai ser? Mas não precisou, que algo angustiante arrepiou-
lhe a alma, porque logo depois que o carro passou dela, já está a alguns metros a frente, e
para a surpresa colossal da mulher se pode ver que ele engata na marcha ré para voltar. Não
há nada pelo que possa ter parado subitamente, senão a bela puta que pode conseguir, por um
acaso que a noite resolveu pôr na frente do retrovisor, e não é um travesti, nem mesmo uma
dessas garotas desgastadas, enrugadas, acabadas, de rua, com olheiras e com expressão de
velha, com a cara amarrotada do cansaço de tanto se esfregar em motel vagabundo. É Júlia,
que está longe de ser a oitava maravilha do mundo, mas está mais longe ainda do ranking das
desgraças. De repente é o suficiente para que um carro que ia no mercado comprar bebidas
pare ao vê-la e mude suas intenções, que pode ser esse o caso, como pode não ser, podendo
ser também na verdade uma mãe de família ali dentro que não vê mais ninguém na rua e quer
parar para pedir informação, que a pobre senhora não viu que está falando com uma rameira
da pior estirpe, ou é uma mulher tranqüila e não se preocupa com isso. Mas olha lá. É, ele não
se confundiu, está mesmo chegando nela, e torce para que ela não hesite, ela ainda pode dar
as costas e correr, se bem que ele se aliviaria caso ela saísse em disparada, há de ser mais
seguro para todos nós. Ele também teria vencido e isso bastaria. Mas, sim, idiotamente, apesar
de tudo, ele quer seu bem, se bem que aparentemente seja essa uma coisa que Alex, se quer,
não sabe como fazer e talvez sequer saiba como desejar. Mas Júlia não se porá em
segurança.
O vidro se abaixa e pode ser vista uma cara masculina, é de jovem, garotão. E Alex não
sabe dizer muito ao certo quem faz o papel da vítima, mas que ela e o predador se
encontraram ele está ciente, tudo em ordem. Se afasta um pouco rumo aos umbrais, os outros
vermes o repetem. É, e Júlia tem sido consistente, que está se aproximando, com alguma boa
vontade até se admite que ela está se esforçando para encenar bem a personagem que lhe
cabe, talvez o rebolado seja natural às fêmeas, à qualquer delas, mas esse jeito de ajeitar o
cabelo não, ou deve ser só o figurino que realça, mas não importa, e sim que fique
convincente, e ela está sendo, também porque foi obediente e atendeu ao chamado, prestativa.
Ela se curva, não há um decote que se possa apreciar muito bem, que é o máximo que se
pôde improvisar da blusa que usa para o trabalho, mas se vê como o garoto a fita, a bolina só
com o olhar, a come no segundo seguinte. Alex o entende, é bom poder não ter pudor, nem
que seja pagando. Por trás dos vidros há mais dois sujeitos dentro. Ela curva-se ainda mais,
hesitante, quer olhá-los, de repente fica satisfeita em não dar com um desses velhos
desocupados, nada asqueroso demais, de repente ela até passou a gostar. André deve ter feito
isso pela adrenalina do ciúme. Que canalha.
Com algum esforço pode ler os lábios se movimentando, e então ouvir.
– E aí, moça? Tudo bem? – tosse e o som de música. – Quanto é, hum?
– O quanto vocês quiserem pagar – responde secamente.
Há um momento que deve servir para o riso entre eles. Eles devem estar olhando uns aos
outros, desconfiando do milagre e pensando por que é que deus lhes faria isso. Olham para a
rua, para ver se nenhum cafetão à espreita oferece perigo, se nenhum bandido está vindo para
consumar um truque. Mas não. É irrecusável, tudo em ordem. A porta se abre, não, Júlia, não
entre. Corra para sua segurança. Para o conforto da sua eterna mediocridade. É mesmo
angustiante, é claro, ela vai mesmo entrar. Perna após perna lá vai ela, mostra as coxas sem
querer, e blam, a porta se fecha. Que o tempo passe rápido, que quando se dê conta ela já
tenha retornado e esteja chorando de alívio, que acabou. Mas Alex olhou para o lado e
encontra todos estáticos. André está pálido como uma parede. O escroto, no fundo, deve estar
gostando. O carro não se move.
Alex se arrepia de mau presságio, que por um momento a loucura parece se tornar uma
faca de muitos gumes para ele que se importa, mas deve ser disso que quer se livrar, ele e
todos, se não nem estariam aí, mas isso não impede que a faca o corte, corte uma lapa de
couro, lhe retire e assim continue por diversas camadas da epiderme, e ele engole, engole, a
dor queima sutil, contraindo, as dores no tórax, mas engole que não pode nem enfiar as mãos
num bolso para fumar, a tensão por trás da calma. Atrás dos vidros negros há indícios de
movimentos, não sabe dizer se é a coisa óbvia, se já começaram, se é só Júlia se arrastando
pelo banco ou de repente é o vulto de coisas que sobem e descem sobre as outras, não, ele
não quer imaginar que Júlia optou pelo caminho que lhe é de menos dor, que iria deixá-la mais
confortável, que é a de aderir, de aceitar, da idéia de já que não pode fazer nada, que
aproveite, até para sacanear André, para mostrar que não devia ter feito isso, para que,
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quando sair de lá, mostre os dentes de prazer e esfregue na cara dele que foi ele quem pediu.
Agora a devem estar apertando os peitos, pondo a mão entre as pernas, subindo a saia,
devem ser mãos rápidas e sem preliminares, diretas ao ponto porque não têm muito tempo a
perder, e gostando ou não ela não pode fazer nada, e não faz, que não há gritos, só a paz
superficial de quem não berra mas sente, bocas indo-lhe no pescoço, mãos indo nas mãos,
que a tomam e levam para outros lugares, e o tempo vai passando. Alex enruga todo o rosto e
na cabeça ecoam as palavras de André.
– Até a primeira esquina, Júlia – nada mais, nada menos.
O carro está parado.
André está rígido, inerte, não respira, só se move o que ele não comanda, que são os
bolsos que agarra firme, o pano envolto das mãos a tremer. A qualquer momento ele irá
intervir, ou não. Bum, um som de corpo contra a porta, estão acontecendo coisas, quando a
esperança contava que fosse só conversa, coisa assim. Há sussurros que o fazem congelar,
deve haver uma lambança, começa a imaginar cenas ininterruptas de sujeira, os botões da
blusa que ela usa escancarados, ela arqueando a cabeça para trás e rindo de vergonha e um
pouco de tesão, fingindo gostar, dando um gemido de ai quando na verdade está rígida, pára,
não pensa nisso, que não pode ficar antecipando sofrimento, e é você mesmo que o está
validando. Pode ser isso que ele quer e que ainda não está muito claro, matar-se, que também
é forma de se livrar de tudo, bum, outro som de baque, e ele não soube mais o que fazer. O
carro não anda. O carro não anda. O carro não anda. O rosto de André fica azul, os olhos
estão vermelhos. Ele deve estar do avesso. Não sabe o que se passa dentro dele. Deu sua
mulher para estranhos. Fantástico. Não sabe o que é mais terrível de olhar, se ele ou o carro.
O carro não anda.
O homem se deixa persuadir pela liberdade e não a entende, a ataca de impulso, e não
percebe que todas as condições criadas em sua volta lhe dizem que a única forma de se ter a
liberdade é na inconsciência absoluta, na ausência de si, na profunda e eterna despedida, a
inexistência fatal do departamento da ceifadeira. O homem deve ser o único bicho que sonha
com a morte e não percebe. Mas a teme, desejará o que não quer possuir. Ele começa a se
convencer de que Júlia ser fodida por estranhos na sua frente e na frente do noivo dela não é
tão ruim assim. Faz parte de seu processo de iluminação das suas catacumbas perfumadas de
formol.
O carro anda e os nervos se congelam, e anda tão lentamente que se devia dar à puta um
desconto à meta, mas Júlia deve saber, como todos sabem, que não pode sair antes da
esquina, nem mais, nem menos, e não adianta argumentar, porque não. Ele já está em
farrapos e também é como desejar o que não quer, porque se arrepende, ao mesmo tempo em
que não. Gosta bastante. O carro acaba de passar da esquina, agora sente um nó no intestino.
O carro continua andando. A mataram, tudo deu inocentemente errado, feito a criança que
coloca a arma do pai na cabeça do irmãozinho. É como esperar que um bocejo de
despreocupação possa destruir a qualquer coisa que esteja no caminho de seu hálito, e às
vezes destrói. O carro freia bruscamente. André quer ir até lá, movimenta as pernas do jeito
que consegue encontrar forças para isso. Mas pára. Também não importa mais, a porta do
carro se abre, e saindo às pressas dele, que quase tropeça e quase cai de quatro, vem Júlia.
Com um chiado agonizante o carro relincha para todo o quarteirão, canta pneus e sai roncando
às pressas. Ela não corre, mas trota de volta, e com uma das mãos fecha o canivete, se nele
enxergasse lama vermelha já saberia o que ocorreu. Parece que não.
A maquiagem está borrada e um olho está com contornos de inchaço. Ela se abraça e
parece ter encarado tudo bem. André corre na sua direção, rompe-se em mimos, agora está
claro que a ama mais do que a amaria em qualquer outro dia, abre os braços, a toma, e ela
sem forças e sem expressão apenas aceita, quieta e mais ou menos forte. Alex a olha e não
sabe o que fazer. Por cima dos ombros de André ela o vê seriamente, mas sem rancores. É
como se dissesse que o entende.

280
– Outro dia – e André bebeu toda a tulipa num gole, findo num ah e num piscar de olhos, e
agora também limpa a boca com a roupa – um cliente antigo da casa estava lá, os casos dele
ao que parece estão perdidos, sinceramente eu nem lembrava o nome do sujeito, nem do
rosto, um bandido, laranja de não sei quem, queria mais que ele sumisse que eu não estava
nem aí, que não me fazia diferença, meu mundo seria muito melhor sem ele.
Alex olhava com o rosto sorumbático para o lado de fora dos vidros do Schneider e sentia
que os dedos sem consistência alguma deixariam escorregar o cigarro.
– Comunicaram pra esse cara – André continuou – alguma coisa do tipo que a polícia tinha
descoberto novas provas das fraudes que ele cometia, lavagem de dinheiro, acho que a própria
mulher dele procurou a polícia, medonho, mas não sei, é só um exemplo – apoiou a cabeça na
mão – que também nem me interessa. Eu comecei a ouvir os gritos do meu escritório. E aí vi
gente andando daquele jeito afobado e olhando torto para todo mundo, porque se sabe que
tem alguma coisa errada. Quando eu meti a minha cabeça para fora da sala só vi um maluco
fazendo meu chefe de refém, você não tem idéia – e gesticulou como se o dedo fosse uma
arma na têmpora –, apontando uma arma para meu atual chefe, e um círculo ao redor dele, os
seguranças tentando negociar, você não tem noção.
– Você quis que ele morresse? – ainda olha o mundo de fora.
– Que pergunta, é claro que sim. Mas foi um idiota, um superior meu, que quis dar uma de
herói e avançou contra o cara assim que ele vacilou num instante qualquer. Mas o cara deu um
solavanco e acertou nele um tiro na barriga. Foi a coisa mais autêntica que eu já vi acontecer
naquele lugar.
– Eu imagino – coçou a testa e levou o cigarro até a boca. – O herói morreu?
– Por pouco que não, agora está no hospital, o socorreram há tempo. Eu não sei por que o
cara não fez isso com o juiz, na hora da audiência. Não sei mesmo. Acho que simplesmente
ele não fazia a menor idéia do que estava fazendo. Acho que não fazia mais nenhuma
diferença. Mas agora eu estou substituindo meu chefe enquanto ele não volta, com direito a
seus clientes, acesso irrestrito a cada caso, aos fundos de emergência da firma e tudo o mais.
Alex não pode deixar de conter um risinho.
– É – André assente. – Também é por isso que eu fiz aquilo com Júlia.
Alex o olha sem expressões além da cara que, como se diz, é a única que deus o deu.
– Porque isso me fez perceber que as coisas são irônicas, que tem males que vêm para
bens, às vezes até que não, mas só sabemos quando arriscamos...
– Às vezes o bem pode sortear alguém por acaso, acaba caindo sobre alguém que não
tinha porquê, como foi seu caso.
– Pode, mas é um dos efeitos caóticos da vida, algo que não se pode prever, há muita
coisa que não se pode especular. Acho que é por uma insegurança acerca disso, dessa coisa
natural, não sei, que tanta gente é sedenta por ordem, por organização, por disciplina.
– A psicologia fica pra você – Alex curvou-se –, que eu estou cansado.
– Por alguns momentos eu não me importei a mínima com Júlia.
Alex suspendeu a cabeça e o encarou mais uma vez.
– Eu sei – ele está vago, continua a falar no mesmo tom –, e se não sei imagino – pausa
por alguns instantes olhando o movimento ausente do bar – que ela deve dormir com outros
caras, ao menos às vezes. Qualquer um às vezes dá sua escapada, precisa fazer essas coisas
pra não se chatear muito com a vida, ter uma aventura, e aí acaba mentindo, não sei, não
entendo muito bem, mas é o que vejo. Todo mundo mente...
Alex não soube o que dizer.
– Hoje de noite eu descobri que contanto que eu não saiba – e suspirou quase sorrindo –
tudo bem. Não exatamente tudo bem, mas menos mal. Desde que eu nem desconfie. Não sei
se você me entende. Ela sabe porque faz as coisas e o que faz, ela não precisa de um babaca
lhe sussurrando coisas ao ouvido pra que ela saiba o que está fazendo, ninguém precisa disso.
Mas imaginá-la com outra pessoa é a coisa mais angustiante que continua existindo pra mim,
me deixa louco, é algo que me remói desde a estrutura, e no fim é como se eu fosse apodrecer
e cair com os joelhos quebrados, ia perder tudo, a cara na lama pra sempre, pra sempre.
– Você nunca a traiu?
– Apenas duas vezes, mas acho que ela acabou adivinhando. E se sabe ou não, não é
uma coisa que diga em voz alta, provavelmente porque não liga. E se liga não é falando
comigo que vai demonstrar. E foi mesmo há muito tempo, primeiro com uma garota da época
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que eu ainda estagiava na firma, depois com uma mulher já na casa dos quarenta num
congresso estúpido, que passei aí uns dias fora da cidade. Mas não sei, foi um pouco inútil,
continuo tendo conceitos importantes sobre fidelidade. Só não é legal humilhar quem te ama.
– E não se importa de pensar assim, sendo que você acha que ela se dá ao luxo do
contrário?
– Não posso querer que as pessoas sejam o que eu espero delas.
– Ou isso é muito nobre ou muito estúpido.
– Talvez, mas eu sinceramente não me importo, é simplesmente algo meu e continuará
sendo.
– É, no fundo não é algo que faça muita diferença prática – mais um trago.
– Ela nunca conversou sobre algo a respeito com você, não é?
– André – responde com jeito de quem vai falar o óbvio –, ela me odeia – e coça
sonoramente o rosto.
– É uma merda – ele suspira –, mesmo que nos esforcemos pra entender a necessidade
de uma pessoa, não se trata de entendê-la, não é como aquela história que diz que temos de
entender o que uma mulher deseja, e não sei mais o quê. Você pode se esforçar pra atender
todas as necessidades da pessoa, que ela mais do que nunca terá pretexto pra ter mais outras,
ela não só nunca vai estar satisfeita, como nunca vai sequer querer estar satisfeita. Estar
satisfeito de alguma forma deve ser estar infeliz. O melhor que você fizer e até o impossível,
nunca será o bastante.
– Se você dá o braço já vão querer as pernas etc.
– A relação entre as pessoas é a relação de um se mostrar capaz de estar em cima do
outro, pra extrair tudo dele, ir sugando a alma...
– É verdade.
– É raro haver algum momento que se tenha paz, sabe?, entre duas pessoas.
– Tenho que concordar de novo.
– Alex – e o olhou.
– Oi.
– Mudando de assunto.
– Oi.
– Eu sei que a intenção da sociedade é sermos livres, independente de como isso se dê,
de como seja, do modo, ou se sequer vamos conseguir ultrapassar as fronteiras do ridículo
perigoso e nos dar um sentido maior...
– Sim – a voz mansa.
– Ainda assim vou te pedir uma coisa muito importante.
Ele apenas o olha, não sabe muito o que esperar.
– É por fora, entre amigos, nada a ver com todo o resto – continua.
– Diga.
– Não tente comer Júlia.
Ele arqueia as sobrancelhas como se perguntasse o quê?, repete aí.
– Se por acaso te der vontade e nela também, seria essa uma coisa que você faz por mim,
por nossa amizade.
As sobrancelhas continuam arqueadas, sorte que não podem ver que o cigarro quase lhe
queimou nos dedos. Não gosta de quando ele toca em assuntos assim.
– Por quê? – ele continua falando. – Vê algum problema nisso?
– Claro que não, rapaz – dá de ombros e tenta fazer cara de normalidade.
– Eu confio em você. É que, se isso acontecesse, seria pra mim demais pra engolir, seria
uma sacanagem grande demais pra suportar, seria como perder os dois, meu melhor amigo e
a mulher que eu amo. Eu prefiro ser sincero, entende?
– Você pode ficar tranqüilo, André – e ele também foi sincero.
– Obrigado.
– Não tem por que agradecer uma coisa dessas, é óbvio – e até conseguiu sorrir.
– O agradecimento é por tudo, por qualquer coisa, não só por isso.
– Então obrigado a você também – e meiosorriu. – Tô acabado de sono.
– É, eu também. Só não queria ir pra casa direto.
– Quando você voltar ela já vai estar dormindo como um anjo, e pela manhã tudo estará
como antes – e começou a vestir o casaco.
– Não como antes, que aí teria sido inútil.
282
– Certo, não como antes, porém tudo jóia. Conseguiu se libertar, hoje?
– Consegui, mas também vi que existem outras prisões.
– Entendo – terminou de se vestir –, o importante é mesmo poder reconhecer todas...
– E você, se libertou? – subitamente o pergunta, e por ora ele nada responde.
Até um certo momento.
– Sim.
E então se vai.
– A ordem do dia é questione! – André discursava –, e a ordem de amanhã será questione!
– falava essas coisas para os novos integrantes que se amontoavam no teatro para ouvi-lo. – É
o que nos diz o retorno à escuridão, que também deve ser questionado, e ao questioná-lo o
estarão realizando, e o porquê disso deve ser entendido. Podem acreditar ou não nas coisas
que estão escritas, que vocês receberam, não é pra ser mesmo uma bíblia. Mas se estão aqui
eu creio que querem descobrir alguma coisa, todos nós queremos. Comecemos por nós
mesmos. E é tudo o que nós temos. Uns querem prazer e não vêem mais como tê-lo, uns
querem dor e não serão vistos como doentes ao persegui-la, aqui sabemos que o você do dia-
a-dia foi deixado lá atrás, no beco, que ficou do lado de fora pra alguma coisa desconhecida
entrar.
– Por isso – ele continuava – não precisamos ter medo, com o tempo iremos perceber.
Aqui dentro está nossa coisa desconhecida para nós mesmos. É aqui que podem vir as
vergonhas que se escondem debaixo do travesseiro antes de dormir, porque sabemos que
olhariam torto se a vissem, e então eu me pergunto, e por que me olham assim? E eu vejo que
sou pequeno.
– Vejo que sou um grão de areia que foi apanhado por um vendaval e ainda quer supor a
direção em que ele sopra, o que o causou, e todas as outras perguntas que nos fazemos. O
pior é que as perguntas fazem efeito, e o retorno à escuridão nos diz que quanto mais olhamos
ao redor, mais nos veremos perdidos nesse vendaval, tufão de mentira e caos que com o
tempo cresce e cresce.
– Esse tufão são aqueles que nos dizem o que devemos ser, é o mundo, o tempo, é a
história, são suas mães e vocês mesmos, e é também toda a discussão intelectual que nos
enfiam em nossa cabeça, lixo pra ficar se perdendo o tempo, merda no cérebro. Conclusão?,
envelhecemos com um câncer no fígado, porque tivemos de segurar com todas as forças –
andava de um lado para o outro no palco – algo do que não podemos destruir, o desejo, que
vem de algo que também não se pode fugir, do mundo.
– O retorno à escuridão diz que a alma é idealmente um lago sereno e, à partir do instante
em que vem a existir, já era, tudo foi estragado, toda paz. As pedras voam no lago e elas são
também como dados sorteando. Essa é a nossa alma.
– O retorno à escuridão entende que a vida fez com que perdêssemos a nossa
individualidade para cumprirmos um contrato que não assinamos, e somos obrigados, sorrindo
ou com úlcera, a segui-lo.
– O retorno à escuridão entende e nos diz que a coletividade não é justa para o indivíduo,
somos engrenagens, dínamos, correias, graxa, propaganda, produto, que é um mundo onde as
mercadorias andam e os homens ficam parados, primeiro porque é cômodo, depois porque se
atrofiam as pernas.
– O retorno à escuridão culpa abstratamente uma única força como responsável por todos
os males, doenças e miséria, essa força é a moral. A moral é um trem descarrilado. Com muita
sorte o homem só poderia administrar uma moral absoluta se fosse imortal. Mas não é. E como
não, a moral se perdeu, e não é mais o homem que a faz, é claramente ela que faz o homem,
essa entidade que nossos ancestrais criaram e que se tornou tão mais que nós, vejam, e se
perguntem se é justo que sejamos os escravos de uma coisa que não existe fora da nossa
imaginação. Se perguntem. Uma coisa que só depende de nossa crença para que haja é
fantasia. Vamos lá.
– O que é alguém feliz?, alguém que coincidentemente está adaptado, está ok, residente
da moral que existe, ou de repente com vocação pra hipocrisia. O que é alguém infeliz?
Alguém que admite que há certos instintos perniciosos para a sociedade, certas vontades,
certas vontades divinas no fundo do estômago e não está disposto a deixá-las de lado, e por
isso sente-se um traste ou um excluído, um lixo, sente-se derrotado porque não é legal, sente-
se cansado porque não foi autorizado.

283
– Esse homem tem a chance de engolir a todo seu vômito e ficar em paz, o que lhe será
trabalhoso ou o vai acabar matando.
– Ou terá a chance também trabalhosa de se libertar e ser criminoso.
– A liberdade é crime em potencial.
– Temos direitos, mas são frangalhos, são farelos e nos fazem pensar que são banquetes
para que nos acalmemos, os direitos não representam um consenso entre as pessoas, não
representam uma justiça para nós, são apenas imposição com concessão, uma imposição
muito inteligente. O grande interesse de se manter a paz. Não é mais que isso. O direito nos dá
paz burra. A liberdade é guerra inteligente.
– Os direitos, esses direitos são interesseiros quando nascem e corruptos quando
extinguem a si mesmos, e isso é porque eles possibilitam sua própria extinção a qualquer
instante em que se vejam ameaçados, porque sente-se que são invioláveis, que são
incontestáveis. O começo do questionamento do direito não está no reconhecimento do
coletivo, está no resgate dos desejos individuais, na base mais podre no mundo, nós, onde a
mentira começa.
– O retorno à escuridão diz que a liberdade não é uma promessa de maravilhas, como
querem que acreditemos, e é indispensável que entendamos o que essa promessa é, por que
tanto nos coage. Coage porque o homem é tolo, é inconsciente, ele deseja a satisfação, ainda
que na prática ele não a consiga e nem a assalte. O direito nos confunde, nos atrapalha para
que sigamos com o que ele diz ser liberdade, todas as merdas que nos dizem ser legítimas e
boas. O direito diz que ele é liberdade.
– Não há liberdade boa ou ruim, simplesmente há a sua força e o que dela vier. A
criatividade do fundo da alma. É uma coisa das tripas, somos ácidos, todos nós, querendo vir à
tona. Se é pra descobri-la, sejamos verdadeiros. E eis a única forma de se ser verdadeiro,
questionando a tudo, tudo, a tudo, que nada é inquestionável, e nenhuma autoridade é
inquebrável, e toda autoridade é inútil, nada, nada. Não precisamos de nenhuma certeza ou
impressão de que a temos. Não há por que termos certeza. Nada mais será nos ensinado e
aceitado, que isso é escravidão, tudo será descoberto porque se pode e porque se quer.
– Isso é maturidade verdadeira.
– Essa é a prática que até hoje o mundo temeu.
– Uma hora ela gritará que é necessária.
– Somos aqui a experiência vencida de um tempo novo que nunca vai acontecer, mas que
está muito a frente do que vemos lá fora. Começamos a unir as nossas frustrações, nossos
podres, nossas vergonhas, são elas que vêm aqui à noite para confraternizar, para destruir,
nem que seja entre nós, a culpada de toda a miséria, desgraça, injustiça, hipocrisia, covardia. A
moral. Ela nos fez menor do que somos. Ela nos pôs doente.
– Eis o nosso pacto. Promete fazer simplesmente o que quiser?, promete buscar a
coragem para que o faça? Não há leis, há conveniência. A porta sempre estará aberta pra
quem quiser se retirar. Quer indicar alguém?, que o faça até sete pessoas, e se quiser
questionar a isso, o faça, e discutiremos. Da mesma forma que se quiser sair e contar para o
mundo sobre a nossa sociedade nada impedirá que o faça, que se for de uma vontade forte o
bastante para que acabemos, é justo que se acabe, se for essa vontade maior do que a de
continuar. Façam o que quiserem, colham o que plantarem, arrisquem-se e não tenha medo.
– Olho por olho, dente por dente, unha por unha, e cada um por si ou cada um por quem
bem entender. Todo o governo é forma de opressão, toda lei é ultrapassada, ela quer ser
violada, tudo o que supostamente representa e que tem as armas legítimas pra impor e ditar o
que é certo ou errado não pode existir. Podemos chamar isso de involução. É mesmo,
precisamos mais do que nunca involuir. O retorno à escuridão chama isso de redescoberta,
que se nos perdemos é natural que precisemos nos reencontrar.
– E no meio do caminho que deixamos para trás vamos ressuscitar nosso cadáver.
– É isso que o retorno à escuridão é, descoberta de si mesmo, um resgate da
individualidade que se afoga, de você que se afoga, para que se redescubra o coletivo. Você
se perdeu e foi afogado numa massa de esterco. Se erga e corrija o que está de errado. E o
retorno à escuridão te orienta. Caso você queira. Percebe que quando você se tornar livre as
primeiras coisas que florescerão são as que você tem escondido. Os desejos que trancaram no
baú, escondidos de sua mãe, de seu namorado, de seus filhos, do irmão, de seu patrão, às
vezes de você, é, sim. Ignorar o problema não o extingue. E é a coisa mais imbecil que se
pode fazer.
284
– Não existe transcendência sem entrega.
– Só quando se for completamente você, poderá depois ser algo mais, e ser a si mesmo já
o é.
– O retorno à escuridão entende que tudo o que se tem é a própria vida, e é passageira em
quantidade e infinita de valor. Vocês não têm mais nada. Todo o resto é ferramenta de se dar
prazer. E aqui podemos ter.
– Aqui entenderemos como nós podemos ser.
Predominava um silêncio de expectativa nas fileiras do teatro, não preenchidas mais que o
suficiente, não cheias, porém gradativamente a mais. A sociedade realmente nasceu de sua
própria lógica de infrações e agora crescia pelo sujeito que foi indicado e nem efetivamente foi
aceito, mas já chamou o amigo, porque gosta da idéia de criar o suspense em alguém, porque
gosta de enviar uma carta sem assinatura e um livro sinistro que diz coisas do tipo, que é hora
do mundo se acabar, que só vai surgir alguma coisa que preste quando houver cinzas o
bastante para isso, que diz que é assim que o homem aprende e é na desgraça que vê o seu
melhor. Isso os deve ter atraído, até hoje ninguém que recebeu um convite o recusou. Há, por
exemplo, aquele certo Habib na platéia, está mesmo atento, os olhos seriamente vidrados, ele
é calvo, entradas brancas e fartas na cabeça, parece ser de poucos amigos, o discurso não
parece emocioná-lo mas é certo que entra no seu cérebro, e não coração, talvez porque muita
gente que esteja aí queira na verdade descobrir se tem um, ou descobrir se não é o coração
mais algo que inventaram existir só para se ter algo em que pisar. Esse Habib, por exemplo,
parece ser aquele sujeito disposto a sentir qualquer coisa pois não sabe exatamente o que é
possível, e essas deduções Alex, ali, sentado ao canto da ribalta, deve mais uma vez às suas
longas noites de vampirização, graças a elas os segredos dos demais são quase tão explícitos,
ou assim ele pensa, que só falta pularem no seu colo. Foi Stern quem pôs esse Habib, diz tê-lo
conhecido em um lugar que Alex não lembra onde, mas de nada importa. Há Bublitz, mas esse
ele já conhece, é que ele está aplaudindo as palavras de André.
Há alguns outros. Há o sujeito que ele por enquanto não sabe o nome, Sylvia foi quem o
pôs. Diz conhecê-lo de uma videoteca no centro da cidade, uma dessas que são feitas para
filmes pornôs e ele é freqüentador assíduo. Então deve ter gostado do discurso da vergonha,
todos devem ter gostado. Ele é gordo, pigarreia. Deve ter se casado com uma mulher horrível
que a essa altura já se separou dele. Deve também ter filhos imbecis que ele pensa serem
prodígios. O gordo deve estar cansado de tudo isso, mataria a todos se pudesse, e como na
verdade não quer matá-los, ou está tão acabado que não consegue, está aí, na sociedade.
Deve ter problemas no trabalho, problema no trabalho deve ser o principal estímulo, não por
regra ou coincidência, mas é que o trabalho consome a maior parte do tempo da gente certa,
da gente honesta, que acaba muitas vezes ocupando toda a vida, assim é certo que esse tipo
de afazer vai ocupar os poucos momentos de felicidade, se é que existirão, e as unhas roídas
de preocupação. Devem estar aí também os desempregados, os excluídos de várias formas.
Quanto mais segregados melhor. Eles têm um sentimento único de raiva, mesmo que ela não
seja muito bem elaborada. É o gosto de que se tem muito preso na garganta, um gosto faminto
por um desejo que ainda não se sabe pôr em palavras.
O doutor Dantas foi posto por André, era seu ortopedista da época em que ele era inocente
e sonhador, e porque ele quebrou o braço, ou de repente foi umas costelas, ficaria grato a
qualquer um que o tratasse com um pouco de calor humano, com consideração e um interesse
que pode parecer, mas também só parece, ser coisa além da ética, que passa até por
interesse altruísta e tudo mais. Alex sabe que isso é bobagem, se duvidar o próprio André hoje
sabe, mas deve ser para resgatar esse sonho que conseguiu achar o doutor novamente, ou na
verdade se encontraram por acaso e a nostalgia despertou um fracasso sedutor em André,
enfim, não é o tipo de coisa que se fique perguntando, mas é uma curiosidade que se veja, se
sorria e diga, é, que legal, e deixe-se para lá. O doutor Dantas deve ter aceitado porque
acabou de sair de um divórcio complicado, e para afogar as mágoas uns bebem, outros se
trancam em casa e choram, uns se dedicam inteiramente ao ofício que é para manter a cabeça
ocupada, alguns se suicidam e outros ingressam em sociedades secretas. O senhor Dantas
bebe e às vezes faz uns longos serões, palavras dele, que Alex não está supondo nem
imaginando nada, que ele não é leviano, se bem que, ora, pode estar aí um passatempo que
acabe sendo divertido, começar a inventar coisas sobre a vida dessas pessoas e depois
espalhá-las como se cuspisse veneno pelos cantinhos, tudo para semear discórdia e
comprovar que ela é o cenário das melhores coisas que tentam acontecer. De repente uma
285
outra hora, que agora está cansado, e ao que parece Stern está subindo para o palco, deve
estar vindo falar, mas só ameaça, que quem torna a falar de novo é o mesmo André.
– Primeiro você indica uma pessoa e envia a ela um convite e uma cópia, pode indicar até
sete pessoas – quando alguém pergunta por que sete se responde que é um número
cabalístico, e isso é suficiente. – Segundo, a pessoa precisa comparecer a um encontro.
Terceiro, quem indicou confraterniza e paga uma bebida para seu novo indicado e para todos
que quiserem ir junto – essa é a parte mais popular. – Quarto, quem indicou inventa uma
loucura para que seu indicado a faça – e essa é a mais animada. – Quinto, o coletivo decide se
mereceu ou não. Fim das etapas. As loucuras são nas ruas e podem ser absolutamente
qualquer coisa. Desde dar todo o dinheiro que você tem pra um mendigo ou estuprar uma
velha – essa parte da velha sempre arranca caras de riso dos céticos. – O importante é você
mostrar que tem estômago. Essa é a obrigação de todo mundo. Assim, uma boa loucura é
obrigação não só de quem é indicado, mas também de quem indica.
– Às vezes, ir até o fim – continuou – é até mesmo ruim – fala com muita franqueza. – O
que devemos fazer é o nosso melhor, prometermos ter coragem, nada mais, nada. Não usem
isso pra se esquivar da loucura, vou avisando. Depois da loucura nós vamos pra cá. Nesse
teatro você faz o que você quiser. Nada mais, nada menos. Agora Stern vai lhes falar sobre
como foi a sua loucura.
– Eu tive de xingar numa rádio-patrulha – fala timidamente, mas aí ele ri, que está falando
de coisas muito divertidas. – Tinha a viatura da polícia estacionada próxima ao parque, eu vim
das entradas e disse que tinha acabado de ver três caras cercando a uma mulher enquanto
andavam, tudo isso de forma bem suspeita, e que não tinha visto nenhum posto da guarda
noturna, que vim correndo aqui para fora falar. Eles falaram que iam conferir, eu dei mais ou
menos as orientações de onde eu vi, disse que era próximo à ponte. Eles perguntaram se eu
não podia ir com eles mas eu preferi que não, que estava tomando meu caminho pra casa e
que já era tarde, então os dois agradeceram e foram com as mãos no porrete para dentro, e o
que eu queria, eu queria mesmo era o carro deles logo ali estacionado. O rádio ficava chiando
e passando as informações.
– Eu olhei e vi lá do outro lado da rua André, Alex, Bublitz, Sylvia e os outros de vocês que
eu ainda não sei o nome, mas espero conhecer logo, e tentei meter a mão na porta do carro
mas vi que estava trancado, acenei pra eles mas eles não estavam nem aí. Fiquei preocupado
de os policiais voltarem, então tive que ser mais rápido, e comecei a forçar o vidro que estava
abaixado até a metade. Foi uma merda, mas tive de fazer. Quando consegui abaixar o
suficiente eu pulei para dentro, fiquei com as pernas pra fora e o tronco metido entre os bancos
– aí começou a rir.
– Não sabia mexer naquelas coisas, peguei o rádio, comecei a clicar, eu mal conseguia
entender o que a voz do outro lado ficava falando naqueles tilts estranhos, foi aí que cliquei no
botão vermelho e falei, central, está me ouvindo? Quando eu ouvi positivo, viatura-alguma-
coisa, fiquei louco. Eu me senti apossado por um espírito – risadinha –, é sério. Eu devia dizer
que roubei a viatura e mandá-los à merda, mas preferi dizer que eu era um civil desesperado –
aí pôs a mão na boca enquanto ria e coçava o cavanhaque – porque tinham matado os
policiais na minha frente, que era um grupo terrorista, bandidos dentro do parque, tinham
comido minha mulher, não sei bem, e que mandassem todos os reforços.
– A mulher da central começou a me fazer perguntas e eu disse que não entendia, queria
saber quem eu era, se não era um trote e como podia?, eu choramingo que não sabia, que iam
me matar, que fizessem alguma coisa. Foi quando eu dei com o cotovelo num botão e ligou a
sirene, só ouvi apitar uma vez. Eu comecei a me debater – e se debatia ao narrar – lá dentro,
comecei a puxar as pernas para dentro mas estava preso e não vinham me ajudar. Quando eu
consegui pôr as pernas pra dentro a porta se abriu e eu fui pego, os policiais me apertam
perguntando que merda – e começa a rir –, que merda que eu tô fazendo – e engasga com o
ânimo – e eu gaguejo, não sei o que dizer, e eles começam a gritar comigo, falam pra eu virar
que vão me revistar, seu filho da puta, vamos te prender, isso é desacato e tudo mais, e eu
começo a desesperar e digo que queria ouvir o rádio, que queria ter visto uma arma, por favor,
sou um advogado, trabalhador, e começo a pedir pra que não me matem, e eles simplesmente
riem porque eu estava com medo e eles não entendem. Você vai preso, com polícia não se
brinca etc.
– Foi aí que eu cheguei – Bublitz grita da platéia, erguendo os braços.

286
– E ele gritou pega ladrão, pega ladrão, eles estão vindo, estão chegando, que um dos
polícias murmurou acho que merda e foi atrás de Bublitz, sabendo que tinha algo errado, e
assim que o outro pediu pra eu pôr as mãos no capô e que ia me revistar alguém jogou uma
pedra no vidro do carro, e depois outra.
– Fui eu – Alex traga do cigarro.
– Jogou e saiu correndo, que eu só vi o policial indo atrás, eu me desesperei porque ele foi
atrás e ainda sacou a arma, e aí ele ainda me diz pra que eu ficasse ali, e ainda ia me algemar,
mas acho que ele viu as lágrimas nos meus olhos, eu me borrei. E ele não sabia se perseguia
o vulto que acabava de entrar num beco ou se a mim que desobedeci. Ainda bem que a
loucura é só uma.
– Só uma – Alex gargalha, limpando a cara de suor – o cacete.
– Cada um vai ter a sua hora – André conclui.
– P-p-posso fazer uma pergunta? – diz o barrigudo que freqüenta as locadoras pornô, e
parece que vai ter um ataque de gases, que põe a mão sobre o ventre, mas melhor não ser
cruel que pode ser isso alguma doença, coisa que traga dor, não se sabe.
– Não.
– Minha loucura p-p-pode envolver mulheres?
– Vai envolver um travesti – grita alguém lá de trás.
– Seu desafio é assistir seguidos todos os filmes de putaria que você tem em casa – grita
outro.
– Ah, v-va-vai t-t-te f-f-ooo-ooo-der! – esse é Bonaparte.
É assim que começa uma reunião da sociedade. Geralmente Sylvia seleciona, a cada
reunião, praticamente em todas, e raramente repete, um homem para ir lá com ela para os
bancos finais, aí transam. Menos Bonaparte, e há teorias que dizem que ela gosta de ser má
com ele, outras dizem que ela faz isso exatamente por ele, porque percebeu que o sujeito
gosta realmente é de olhar, então não é raro vê-lo acompanhá-la, cada qual em sua devida
função. Às vezes as pessoas sentam-se sem padrões e simplesmente conversam.
– Eu olho para meu filho – diz o doutor Dantas, com os olhos aguados – e penso que
simplesmente não sei o que fazer com ele, não sei criá-lo, não quero dar o mesmo futuro que
eu tive – confessa –, não posso administrar minha vida e cobram que eu administre a dos
outros.
– Fale sobre a sua mulher, doutor Dantas, aquela piranha – um qualquer que queira criar
polêmica.
– Aquela mulher! – e ele se empolga ao amassar pescoços imaginários entre as mãos. – O
que as mulheres querem é montar em nossas corcovas, nos fazer de burros pra carregar o
conforto delas, nos extorquir até que não precisem mais, e eu sou burro, porque me dediquei à
lógica e não aprendi a lidar com traições, com o ardil da paixão, que é por onde se persuade as
pessoas e elas se destroem, esse sou eu.
– Você é realmente um coitado.
Aí ele se levanta explodindo e grita, – Mas vocês todos são!
Cada um se realiza de sua maneira, e alguns não precisam fazer nada para isso, só ter o
estímulo dos outros, isto é, estar num meio assim tranqüiliza a muita gente, que passa a
sonhar de olhos acordados e notar que há feiúras na realidade que são mais alegres do que as
manchas azedas e sem vida do cotidiano, da mancha da camisa, de ter de lavar louça, pratos e
talheres sujos, de ter uma criança esperando em casa com as fraldas sujas esperando ser
trocadas, porque senão seriam isso maus tratos etc. Esse é um lugar onde se pode fugir e
ninguém te diz como, ainda que volta e meia uns usem os outros como ferramentas. Uns
fogem cantando e tocando violino, Stern explica que isso vem de uma frustração sua, que
queria ser músico na infância, pouca gente quer ser músico na infância mas ele é um desses
casos excepcionais, mas o pai o induzia à matemática e a física, coisa que ele julgava útil
porque era o que fazia, e aí se origina uma conversa sobre os pais de cada um, que uns
choram, outros se orgulham, outros ficam indiferentes, enquanto isso Stern toca violino
irritantemente, até que Alex se enfurece, o pega e o quebra sobre a ribalta e grita, – Cacete,
ninguém aqui respeita minha dor de cabeça.
E Stern pula sobre ele, e lhe dá um chute sobre as pernas, que desabam os dois do palco,
começam a brigar até que um se canse e peça para parar, se bem que às vezes não param, é
preciso que alguém com mais bom senso venha apartar. Quem também gosta de dar socos é
Habib. Às vezes ele esmurra Bublitz por nada, porque diz que ele é um imbecil, sempre está
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rindo e xingando os outros, e Habib, que uma vez quebrou seu nariz, diz ser uma pessoa que
já fala pouco, e se está ali é para demonstrar a sua raiva das coisas e poder, no cotidiano, se
conhecer melhor e ser mais equilibrado. As reuniões são interessantes porque relaxam, porque
possibilitam que se faça amigos com virtudes que estão longe de ser as da tradicional
camaradagem, companheirismo, identificação, respeito-mútuo, tudo isso que nos pregam. Aqui
se fazem amigos por causa da honestidade, porque se falam as piores coisas na cara da
pessoa, muitas vezes coisas reais, muitas vezes coisas furiosas e muitas vezes coisas
deslavadamente mentirosas, mas o que importa é que se admite que um faz parte do desejo
do outro, nada mais, não há nenhuma forma de exclusão nessa magnífica violência. É que a
sociedade é um campo de guerra. É natural que em algum instante alguém possa se ferir. Alex
entende que é isso o que acontecerá posteriormente a esses fatos lembrados. É como tomar
um delicioso banho de banheira com uma criança brincando de girar ao seu lado um rádio
ligado na tomada, ou pedir para um cego cortar um legume e na verdade pôr os próprios dedos
sobre a mesa, ou seja, não se pode dar a cara a tapa esperando que alguém nunca vá lhe
atirar a primeira pedra. Só que arriscar é mesmo muito divertido. E se divertem principalmente
quando levam suas loucuras à rua, é aí que começa a maior de todas as polêmicas entre eles.
É que está estabelecido que podem ser livres apenas nesse espaço fechado, que é o
teatro, a cova deles, a representação calabouçal de suas próprias mentes, mas como não se
pode estabelecer nada por muito tempo sem que haja punição, é certo que em algum instante
alguém vai perguntar por quê, e não se convencerá com a desculpa esfarrapada que alguém
dá, que na realidade o divertido mesmo acaba sendo ir para a rua, que depois de um tempo
todo esse esquema de terapia, todo esse padrão de conversa, gritos etc, não se sustentaria
por si mesmo porque perderia a graça, a loucura já seria o habitual e perderia a graça de se
estar contestando a sanidade, e a sociedade pequena, fechada em si própria, ao contrário do
que podem ter pensado, não nutre todas as expectativas e não representa toda a dinâmica do
mundo selvagem lá fora, da coisa como ela é e com diversidades ainda maiores do que podem
hermeticamente oferecer. Não é que alguém em algum instante tenha notado isso e começado
a inverter os modos do jogo. É que é um processo de todos eles que em algum instante haverá
de explodir.
Uma vez a cova se abrindo, o liberado logo há de se alastrar.
Alex morde uma torrada com requeijão a ajeita o prato com ovos mexidos no espaço da
mesa que Carla arranjou para que ele pudesse comer, que é o que ele devia fazer, estar
prestando atenção no cheiro gostoso da comida, no gosto especial, mas nem por isso
agradável, de despertar cedo amanhã com a certeza de que deve acertar alguma coisa no
trabalho, pois A redação assim requisitou, isto é, seus treinados membros bolaram
metodicamente durante horas como serem misteriosos o suficiente ao enviar a mensagem,
senhor Alex, por favor comparecer à sede do jornal para assuntos pendentes, sendo que não
há assunto algum pendente para ser tratado. Isso o põe a imaginar que chegará finalmente o
momento de sua demissão, que depois de tanta negligência, trabalhos mal-feitos e enrolados,
já que, naturalmente, tem preocupações muito mais eminentes, como ser cúmplice de
assassinato ou o que vai comer no almoço, porque Carla disse que, por algum motivo que ele
não se recorda, ela não vai poder estar em casa, afinal, depois de tanta vagabundagem e vida
clandestina não há como um jornal sério e que trata de coisas importantíssimas simplesmente
ficar sustentando alguém que não produz nada. Já extraíram dele o suficiente, mesmo. Ele se
enfurece com a injustiça e mastiga violentamente a torrada. A minha revolta, ele pensa, cairá
sobre a torrada. Em seguida passa violentamente mais requeijão sobre ela.
Carla deve estar ao telefone porque está falando, pode ser, mas tomara que não fale na
verdade com ele, que não a acompanhou desde o início e sequer sabe se o assunto se refere
a si. Qualquer coisa é só ficar de vez em quando murmurando hum, que pode ser para fingir
que está ouvindo e mostrando que está, ou meramente para encenar que está vendo algo
muito interessante no jornal, qualquer coisa que o desperte a atenção e que possa fazê-lo
resmungar. Mas nem é o jornal que ele fita, que na verdade até agora ele tem pensado nele
mesmo, como não é de muito se espantar, e vez em quando sobre Júlia, que não está tão fora
assim do assunto inicial, e assim reflete sobre todas as mudanças que averiguou terem se
passado com ela durante o tempo em que voltou, e ele se perdoa por repetir-se flagrado nesse
assunto imundo. Júlia. Morde a torrada fingindo estar mordendo a aorta dela. O requeijão é o
sangue a escorrer pelos cantos da boca, o ovo mexido o restinho das veias. E o café
acordando as pupilas que ainda dormem o faz esquecê-la por instantes, o aroma quente
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esvoaçando da xícara, a virar mais uma vez a página do jornal, é bom se manter em dia com
as notícias, perceber que a mecânica do mundo não está nem aí para nós, que ela que nos
aborda e nos extrai a polpa, o sulco, estranhamente precisa de nós para continuar havendo,
certamente que não de todos nós, mas ruiria sem esse todo. É um problema de
individualidades. Tudo começa pela individualidade. Tudo precisa de um começo, e tudo tem lá
seu fim.
– Você acha que esse vestido fica bom? – ela surge de algum lugar, ele não a olha, mas
deduz que ela esteja fazendo pose –, talvez seja melhor algo mais informal.
– Vai encontrar aquele teu namorado? – escarninho.
– O quê? – ela silencia por uns instantes, ele lê o placar dos esportes. – Não ouviu o que
falei?, hoje é o dia daquela entrevista.
– Hum.
– Então eu não sei se pode dar uma boa impressão, pode ser requintado demais, passa a
impressão de que eu sou enrustida, ou talvez – interrompe-se –, Alex, você está me ouvindo?
Não, Alex, você não está ouvindo, está com o café entupido na entrada da garganta, com
as bochechas amolecidas por contê-lo, a língua perdendo a sensibilidade e cedendo a vida
para o calor. É que os olhos estão vidrados numa página do jornal, e seria um exagero inútil
ilustrar as reações de um susto grave, por exemplo, com ele cuspindo café sobre a mesa e
abanando a própria língua por averiguar que está quente, porque a verdade é que quando esse
tipo de circunstâncias escuras se fecham sobre nossas cabeças, a reação inevitável que temos
sobre essas é assumir uma postura defensiva, ele se retrai, é em instantes como esses que ele
descobre e entende a única coisa que tem e que lhe resta, a si mesmo. Eis Alex, o sujeito a
parte de todo o mundo e vidrado numa folha de jornal. Tudo o que se pode entender é que há
alguma coisa lá, entre seus padrões, linhas, gravuras, que o põem a sentir-se como se
estivesse num daqueles sonhos onde se está nu e todos o olham e apontam para você, se
bem que nunca teve um sonho desses, que essa nunca foi exatamente uma de suas
preocupações e suas fobias são menos elementares. Ele lê sobre ataques terroristas,
violências nos subúrbios, crianças desaparecidas, grupos de extermínio, nada que fuja muito
do cotidiano, ainda que seja capaz de aterrorizar algum velhinho sem assunto, um que
resmungue para alguns dos camaradas que sentam na pracinha para jogar truco, veja só, que
essas coisas não têm mesmo cabimento e nós não tomamos jeito, e aí colocariam a culpa no
país, na política, o mais revoltado em deus, que ele nos abandonou. Alex não culpa nada. Alex
não sabe o que pensar.
Tudo estaria no seu mais perfeito andamento se não constasse ali uma fotografia do
retorno à escuridão. Os trechos que seguem a seguir vêm em fragmentos, porque a cabeça se
rejeita a arquitetá-los e uni-los da forma que outrora saberia que assim deviam ser. Talvez seja
efeito do ácido de outro dia, é mesmo, dizem que isso deixa lá os efeitos retidos no fígado, ou é
no rim, ele não lembra, e que depois de um tempo indeterminado seus efeitos voltam porque
são jogados de novo na corrente sanguínea, e aí voltam também as alucinações sem razão
aparente, se bem que isso nunca aconteceu antes e alucinações ele tem sem precisar de
tóxico, então deve ser mentira, até porque o maior problema real que isso lhe rendeu até agora
é ter ocasionado dele dormir nas sujeiras do teatro, porque voltar para casa alucinado é um
lixo. Essa foi uma das formas encontradas para inovar as práticas da sociedade, se bem que
essa está longe de ser uma das horas em que precisa retornar à escuridão e rever os seus
estragos. Na verdade, o retorno à escuridão é, agora, da forma mais literal que se pode
considerar, o seu maior problema.
A princípio ele não entende. Depois, aos poucos a testa começa a estalar. São as pecinhas
da cabeça. Dissolvendo a verdade atrás das coisas, as pecinhas consternadas pelo abalo
sísmico do óbvio.
– Não está me ouvindo? – ela continua, ela não consegue parar. – Mas que falta de...
– Por favor – ergue de súbito a cabeça –, dá pra parar? Você não está vendo que no
momento eu tenho assuntos um pouco mais importantes do que os seus? – a seriedade fria na
voz.
Carla treme os lábios, faz cara de mágoa tangente à surpresa absolutamente
desesperançosa que deve nutrir sobre essa sua imagem, se encolhe porque não deve ter mais
nada a dizer e nem ter forças ou vontade, e segue devagar pelos cantos. Depois você se
acerta com ela, Alex, que agora há uma emergência. E é nas emergências que se conhece as
melhores capacidades de si mesmo, veja como seu raciocínio é brilhante, talvez imaginativo ao
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extremo, pode ser, mas é o que dizem do seguro ter morrido de velho, e quanto mais saúde e
garantias der a ele menos mal e mais trabalhoso. Primeiramente ele associa a imagem dos
jornais de hoje com o seu chamado por A redação, teme profundamente, sente-se vulnerável,
sente como se lhe houvessem descoberto o grande segredo, então treme em segredo da
cabeça aos pés, mas começa a pensar nas soluções possíveis, que inicialmente teimam em
querer vir em proporções que não o satisfazem, que é supor coisas grandes demais e estéreis,
como chegar até a janela, abanar o jornal e gritar que foi ele. Mas a mente trabalha rápida e
perfeitamente, que aí a coisa mais simples e eficaz que julga poder fazer é ligar para o trabalho
e notificar que de fato recebeu a mensagem – ignorá-la seria muito pior – e adiantar que estaria
disposto a ir se apresentar hoje mesmo, se não estivesse com esta gripe de forte indício de
estar insinuando querer se tornar uma pneumonia. Se vai se esforçar hoje para sair de casa é
no máximo para ir ao médico, ele dirá.
Assim que realiza tudo o que julga precisar, o telefone pousa pela segunda vez no
auscultador, sobre o qual Alex está curvado e sussurrando suas coisas secretas ali, todo
encolhido no sofá. Ele não se importa se Carla o esteve olhando ou se ouviu, mas a essa altura
o que ela realmente deve estar fazendo é alimentando o ódio que deve nutrir cada dia mais
sobre ele, de repente até chora para desabafar, que algumas pessoas mais emotivas são
dadas a isso, ele nunca entendeu exatamente esses processos, mas enfim, não nota nada,
não toma cuidado com nada, apenas colhe as vestes já espalhadas sobre a mesa e
rapidamente as mete sobre o próprio corpo, em passos rápidos ele ainda consegue ter tempo
de se lembrar das chaves de casa, ah, e do jornal, que já ia se esquecendo. Fechou a porta a
rapidamente e se foi.

290
– Eu só quero saber o que significa isso – ele joga o jornal sobre a mesa do bar –, é
demais?
– Calma – André ainda mal acaba de chegar, está tirando a jaqueta –, a emergência está
nesse jornal?
Ele acena com a mão como se lhe jogasse mais alguma na cara, aí repete o mesmo
processo mas dessa vez para trás, atira o próprio corpo sobre o banco, grunhe pelo
desconforto de tê-lo feito rápido demais e tenta fazer uma cara de mistério que acaba não
podendo disfarçar preocupação.
– É difícil sair no meio do expediente assim – ele ainda se queixa, como se fosse hora para
isso, curva meio o pescoço, assim, como quem não leva muita fé e precisa reclamar, de
repente é só porque não é uma boa hora de encontrá-lo –, deixe-me ver – e toma o jornal em
mãos, já não era sem tempo.
– Sabe o que isso significa? – e ele curva-se sobre a mesa.
A garçonete vem andando, por muito pouco que não o acaba assustando, já estava
relativamente perto quando finalmente se dá conta. Começa a acenar negativamente desde já,
como faz quem está dentro do carro e tem de avisar o insistente moleque do sinal que está se
aproximando para vender seu produto. A mocinha sorri e acena que entendeu como se ela
fosse muito mais inteligente que ele, o está avisando de que não precisa ser dada toda essa
ênfase a uma coisa para ela ser captada, e ela finalmente se vai, sorte dela, que por pouco não
lhe despertou uma fúria maior. Ele grunhe. André continua lendo a página aberta.
– Isso significa – continua a falar em grunhidos – que alguém da sociedade fez merda.
– Ih, é o retorno à escuridão – André levanta as sobrancelhas.
– Ih? – ele quase dá um pinote da mesa, mas só consegue rir. – Você leu o resto?
– Que parte?, a das crianças desaparecidas ou desses grupos de extermínio?
– Não!, mais pra baixo.
Ele tira o óculos do bolso do casaco e o põe, deixa de forçar a vista para ler nas linhas
pequenas, – As investigações asseguram motivos suficientes para que a polícia acredite que
haja uma rede mais complexa de terrorismo envolvida nos últimos atentados – ele pausa –,
atentados? – e repete.
– Eu também não sabia – dá de ombros. – Na outra página tem a foto de uma igreja
depredada, e três delegacias de polícia – prende o riso, que é muito engraçado – foram
fulminadas com pelo menos uma granada e tiros. Lê aí, diz que um escrivão que trabalhava
quando aconteceu disse que achou que os presos tinham sido soltos.
– Ao investigar um suspeito conseguiram um flagrante num apartamento – André abaixa
um pouco mais a cabeça –, onde acharam armas de pequeno porte, telefones celulares e pelo
menos dez exemplares de um livro que hoje está em circulação.
– É.
– O suspeito ao ver a polícia não obedeceu à voz de prisão e trocaram tiros, sendo
baleado, levado às pressas ao hospital mais próximo, ao que não conseguiu chegar a tempo.
– Agora você me diz o que significa isso.
– Eu não sei – a voz prudente desnorteada, vai tirando os óculos do repouso –, é estranho.
Muito estranho, bastante curioso.
– Está claro, André, o que mais poderia ser? As coisas que aconteceram, por fim terem
descoberto os exemplares do retorno – faz uma cara de que é óbvio. – Foi alguém da
sociedade, alguém de lá está vazando os conceitos, é isso. Algum dos nossos fez merda.
– Calma, temos que pensar – e coça o queixo, reflexivo –, acho que ninguém lá dentro teria
capacidade de se organizar assim, nem capacidade nem tempo, menos ainda disposição.
– Sinceramente, não sei.
– Você tem alguém em mente?
– León, talvez. Almirante veterano, velho aposentado, frustrado, violento, perigoso – vai
fazendo as contas no dedo –, tem todos os motivos e condições pra estar aprontando alguma
coisa.
– Não sei, León tem lá essas coisas no temperamento, mas é de uma devoção e fidelidade
que não sei se podemos contestar – ele sempre tem de ser humano demais, o pior é que às
vezes acerta, quando está certo ele é insuportável. – Não acho que ele iria nos trair assim, e
seria uma traição, é simples, batizemos as coisas precisamente e isso não teria outro nome.

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– Certo, foi só uma idéia – passa o dedo ao redor da orelha. – Pode ser também que foram
os da cisma.
– Os que saíram há pouco?
– É. Você lembra do que Gabriel falou?, aquilo mais ou menos assim, o que vocês irão
fazer se os que saem agora denunciam vocês? Isso aqui no jornal é uma forma imbecil de
denúncia, não sei, mas não deixa de sê-lo, diz aí.
– É muito difícil, Alex.
– Se não é uma denúncia eles podem ter resolvido fazer sua própria sociedade, à moda
deles.
– Logo eles que se tremeram com menos que isso?
– Bom, se é menos – e Alex recua na cadeira – eu não sei. Digamos que sejam situações
ligeiramente parecidas. Eu não sei.
– Eles eram uns covardes quaisquer – o meiosorriso destrutivo –, só uns caras
preocupados com a própria situação, o que eles querem saber é de comodidade, e veja só,
uma complicação como essa – aponta o jornal. – Jamais. Você acha que eles seriam capazes
de fazer isso?
– Não.
– Por causa do medo, quando souberam o que aconteceu – pára um pouco, olha para os
lados. – Não há outra razão que não seja o medo do que aconteceu com Martin...
– Com a moça, você quer dizer. Com ele não.
– E se é pra fazer isso aí – aponta o jornal, não o ouve –, seria muito mais fácil que antes
sugerissem dentro da sociedade, que não aconteceu.
– Eu não sei – fala como quem admite que as palavras do outro têm algum sentido. – Mas
pare pra pensar, também. Se não se trata de alguém que esteve ou ainda está na sociedade,
como você justifica isso?
– Ainda resta a terceira possibilidade, não gostou muito dela?
– Não vejo como ela poderia ser – o risinho, então se encosta novamente no banco e olha
para fora.
– Pode não ter nada a ver conosco.
– O retorno à escuridão não te ensina a fazer sociedades. Essa é uma idéia nossa. O livro
fala da vida, não te ensina a ser um terrorista.
– Aqui não fala sobre sociedade alguma.
– Mas é algo que envolve união, a união em prol da discórdia...
– Ainda assim, pode ser que alguém que o leu o levou a sério.
– Como assim?
– Alguém que acreditou na vida que o retorno à escuridão descreve – pausa uns instantes.
– E então aprendeu-a sozinho.
Ele riu por graça ou por irritação, – Então você acha que não tem nada a ver com a gente?
– Tem com você...
Ele pára e o olha no fundo. Recebe aquelas palavras.
– Não tem nada a ver comigo – a voz séria.
– Se isso for verdade – André continua –, se isso de alguém simplesmente ter levado a
sério as coisas que você disse e estar fazendo essas coisas, veja só, depredar igrejas, atirar
em delegacias, vão tomar isso como responsabilidade do retorno à escuridão.
– Estão discordando da ordem, do mundo – pára e pensa e finge estar com o olhar
centrado.
– Não muito bem feito, é verdade – pega o jornal mais uma vez. – Mas conseguiram
levantar polêmica, estão sendo concisos e bem práticos.
– Então você me diz que a sociedade não deve se envolver – é isso, é claro que ele não
pretende ter mais razões para achar que o peso de tudo tenha de cair sobre suas costas, é
claro que não pode deixar isso por estar.
– Antes temos que descobrir do que realmente se trata – já ele é assim, prudente –, e só aí
podemos ter uma resposta. Mas temos de falar aos outros. Se for coisa de alguns deles, nós
sabermos pelo menos servirá pra pressioná-los a dizer a verdade.
– Se não for...
– Acho que a gente não deve se preocupar – ele começa a pegar o casaco –, que é uma
coisa que não nos diz respeito diretamente. Talvez não diga nem a você. Não sei.
– Você está indo embora?
292
– Preciso voltar ao trabalho, tenho uma pilha de casos para resolver – é que hoje ele não é
o homem livre. Hoje ele é somente o advogado.
– E o que eu faço?
André acha graça da pergunta e não esconde o sorriso paternal, – Cuide naturalmente da
sua vida, sim?, procure não se preocupar com isso, isto é, vá atrás, mas não se enerve.
– Quando é o próximo encontro?
– Depois de amanhã, se eu não me engano – e já vai se levantando. – Nós nos vemos lá.
Ele não responde, apenas desce com a cabeça na mesa, deita-se quando na verdade sua
vontade é a de batê-la para a testa ricochetear e quando voltar vir os filetes de sangue. Por uns
instantes é seduzido pela idéia de dormir ali mesmo, não parece nada mal. Se vê andando por
um corredor de gente que se lhe abre na calçada. Se vê atravessando o sinal. Se vê cruzando
páginas vazias. Vê a réplica de sua vida, o seu microcosmos está ali, agora. Na caminhada ele
percebe que tudo é um origami com sua cara. Sorri para as coisas, as entende, elas sorriem de
volta. Todo homem, meu amigo, só é homem quando só. Quando junta é maluquice.
De repente se vê na banca de jornal, de repente seu corpo reclama por querer um cigarro e
por não agüentá-lo. Força porque ele é um ser humano que tem o poder de escolher, é
também o animal brilhante capaz de escolher a hora de morrer, faz jus a isso, o que muitos
devem invejar. De repente está andando tão rápido que os outros tem de se abrir para que ele
passe. Aí está parado em frente da vitrine de uma livraria, há muitas capas, há seu próprio
rosto refletido meio embaçado, há o rosto de muita gente que passa e não se vê. Há o retorno
à escuridão amostrado numa pequena moldura de canto, e eles se reconhecem. O livro o
pergunta, veja só, você por aqui?, e ele responde com os olhos, sim, esse lugar está se
tornando pequeno demais para nós dois. Aí ele se estremece porque sente a vontade de dar
uma daquelas risadas diabólicas que dão os vilões dos filmes, alongando e tomando fôlego
malvadamente, risadas como aquelas que destroem por segundos toda a coragem e auto-
confiança que têm os heróis, feito a bruxa má, gênio do crime, bicho-papão, coisa-ruim. Então
sente uma lágrima descer-lhe pelo rosto e se pergunta se ele errou.
O livro de capa preta na sua frente é que o responde, não pode evitar.
O maluco com máscara de palhaço entrou na loja de conveniência quando ela já estava
vazia e nada, a não ser as traças e aquele desgraçado que sempre dorme faziam seus sons, o
das primeiras é aquele crepitar ruminante que nos dá a saber que a vida está esmigalhando
lentamente a si mesma, se comendo, autofágica, e do segundo vem aquele ronco entediado
que aborrece a qualquer um, isso antes do palhaço mascarado entrar e se vingar por Alex,
ainda que ele não saiba o que está fazendo. O garoto do caixa não sabe, o palhaço também
não. Ele carrega consigo uma arma de fogo e não se faz de rogado, vai andando furiosamente
e ronronando coisas por trás do pano, e aponta para a cabeça do rapaz, está pronto para
estourar-lhe os miolos.
Ele acorda assustado, bem feito para o desgraçado, que depois dessa é certo que vai ser
despedido, porque é certo que os patrões, que também é certo que não são boa gente, vão
apurar nos vídeos de segurança o que houve e vão vê-lo dormindo quando devia estar
vigiando, talvez ele nunca mais durma em paz nem na sua própria casa, que quando abrir os
olhos pode dar com um bufão aterrorizante que não esperou a justiça divina e veio com as
próprias mãos fazê-la. É um palhaço sinistro de cabelos verdes e narigão, desses de mal
gosto, que põem qualquer criancinha a chorar na barra da saia das mães. O que acontece é só
que uma imagem dessas não impõe muito respeito, então a início não se deve saber muito
bem como se agir diante de um cara fantasiado que te aponta uma arma, e o rapazinho faz o
que provavelmente qualquer um faria depois de arfar de susto, põe-se num passo para trás e
esbugalha os dois olhos, e é quando ouve.
– As duas mãos na cabeça – o palhaço berra e é atendido.
– Fica tranqüilo, tudo bem, tudo na paz – o está tentando tranqüilizar, tolo, que não sabe
que não se deve usar de psicologia com um sujeito que se veste de clown e ainda o aponta
uma arma.
– Não fale! – o palhaço uiva. – Se não eu fico louco, eu não quero ouvir sua voz.
Entendeu? Entendeu?
– S...
– Eu não quero ouvir sua voz! Grar!
E começa a virar todas as coisas no chão, a começar por aquele cilindro de plástico onde
ficam a vender óculos baratos, depois dá palmadas sobre o balcão para quebrar os aparelhos
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que lêem cartões, chutes nas prateleiras, aí puxa os fios e desliga os computadores, passa as
mãos varrendo as estantes daqui e elas começam a se soltar umas das outras, lá se vão os
chocolates, os mini-doces, os donnuts, as barras de cereal, os tubinhos com chiclete em forma
de ovo de dinossauros, tudo começa a cair. Mas o palhaço não se satisfaz com tão pouco, para
ele ainda é necessário derrubar aquela máquina que muito lembra um poste e que fica
preenchida de gomas de mascar, o vidro se quebra sonoramente e espalha as bolinhas por
todas as direções, colorindo o chão e tornando-o mais divertido.
– Cada vez que você fala eu fico louco, entendeu?
O atendente não respira e acata, inchando como um sapo.
– Muito bom, é que eu tô com dor de cabeça, e eu espero que você compreenda. Se você
falasse de novo eu ia ter que começar a atirar pra todos os lados, e certamente ia acabar
acertando você, e nós não queremos que isso aconteça, não é?
Ele concorda que não.
– Não fale do que você não sabe, seu merda – e aponta o revólver para a cabeça dele –,
que eu quero que isso aconteça sim, se eu tiver vontade de estourar sua cabeça eu vou fazer
isso, e você não pode fazer nada, entendeu? Você não pode fazer nada, está a minha mercê,
se eu quiser te matar, eu te mato. Não depende de você, isso pode ser a bosta que for, mas
você não pode ajudar em nada e nem fazer nada pra melhorar sua situação, ela está
completamente condicionada a mim, eu tô malucão, fora de mim e sou eu quem vai decidir
sobre sua vida. É uma bosta, mas é isso.
O rosto começa a ficar vermelho e os olhos começam a tremular aguados.
– Se vai chorar feito uma mocinha, ao menos pegue um lenço – e o rapaz foi limpar o rosto
com o braço. – O que você pensa que tá fazendo? Eu mandei você se mover?, mas que
merda, é assim que você vai tentar melhorar teu lado, ou já desistiu?, jogou tudo pro ar?, hein?
Eu não queria te matar, mas eu vou ter que fazer isso, você tá me obrigando.
– Por favor... – o soluço.
– Você falou!
– A-ah!
A coisa mais idiota que se pode fazer é achar que o palhaço aqui não passa de um
contador de piadas. Eis aí um palhaço revoltado, farto do circo da existência, o circo da razão
só lhe cheira a feno velho e a esterco de elefante, não se vê mais nada por perto porque
alguém muito inteligente deixou a jaula do leão aberto, deixou que saísse e ele devorou o
rapaz com um chicote. O palhaço sabe disso porque ele viu, é o último remanescente, e ele vai
mostrar que com ele não se brinca, por isso ele bate uma, duas, três vezes sobre o balcão, que
para o louco vale de tudo e pelo menos os outros não se arriscam a ficar contestando, apenas
aceitam, e se passar por louco pode ser tão mais fácil, é tão menos cansativo, é tão melhor
quando ninguém tem um argumento para destroná-lo e sabe que não pode fazer
absolutamente nada para atar as suas mãos, porque ali todos os sarcasmos se anulam, toda a
timidez, a vergonha e só resta o medo, passa a haver nada mais que vulnerabilidade, onde um
louco de quem não se sabe o que se esperar está com sua vida nas mãos. Deve ser uma
sensação ruim não saber o que esperar da pessoa que tem sua vida em mãos. Saber que
daqui a dois segundos pode realmente não estar mais vivo. Bem feito para ele, ninguém
mandou despertar em alguém essa raiva, nem que tenha sido dormir a sua culpa.
– Agora eu quero – o palhaço diz quando sobe no balcão e lhe coloca o cano da arma bem
na testa – que você encha a minha calça.
O atendente está engolindo a voz do choro e já se precipita para abrir o caixa, mas o
palhaço não se importa com essas besteiras que importam a todos os outros e acena que não.
Se pudesse olhar em seus olhos é provável que veria um olhar aterrorizante e o rosto mais feio
e maltratado que já teve possibilidade de fitar, que com essa voz esganiçada e com esses
modos só pode ser a pessoa que sentiu a pior entre as piores dores do mundo, que ficou assim
por não ter outra alternativa, que às vezes não há saída a não ser ensandecer para continuar
sobrevivendo.
– Não quero seu dinheiro de merda, seu lixo, seu trapo humano, o que te faz pensar que
eu quero o dinheiro dos outros? – pressiona-lhe a arma na testa. – Isso não me vale de nada, o
dinheiro desses outros de merda, eu quero mesmo é que você pegue esse dinheiro e faça
bagunça com ele, que jogue para cima, que rasgue.
As mãos trêmulas começam a abrir o caixa, o sujeito teme olhar aquela carranca defronte,
já vai sonhar com ela para sempre. – Rasgue – o palhaço ordena, e deve ser ciente que aquilo
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em suas mãos não vale absolutamente nada que o rapazinho começa a soluçar e rasgar
dinheiro, enquanto o joga para o chão, e o palhaço o incentiva, porque mete uma mão ali
dentro, pega tufos de grana e arremessa ao ar, e grita coisas como iuhul, uh, enquanto a
confusão é criada.
– Eu não quero esse dinheiro que eu uso pra limpar a bunda – diz –, eu quero balas. As
balas é que me interessam.
É claro que o atendente não entendeu. É claro que uma má vontade dessas enfureceria o
palhaço.
– Em que parte eu não fui claro? Eu quero balas, jujubas, docinhos – e estica as próprias
calças. – Quero que você ponha todas as balas que tem nas minhas calças.
É horroroso que não possa sequer sorrir. A vantagem da loucura é que ninguém mais quer
te compreender. A loucura é forma primitiva de poder, é algo que urge a necessidade de
redescobrirmos, a loucura faz com que no primeiro ataque já estejam prontos a te obedecer, a
imprevisibilidade é o maior trunfo que pode haver na relação de mim para ti. Depois que sair
dali talvez o sujeito pense, que merda, fui roubado por um palhaço que provavelmente apontou
uma arma de brinquedo na minha cabeça e me fez rasgar dinheiro, além de encher as suas
calças com doces, é algo do que deveria rir por ser tão humilhante e por se temer algo assim,
mas não temer a isso não deve ser pior que morrer nas mãos de alguém porque não quis dar
os doces que ele pediu. Seria humilhante para a memória do morto, cabe a ele pensar nos
seus familiares e nas gerações póstumas, que se ele vai deixar alguma coisa é pelo menos o
nome, essa coisa toda. Mas isso não importa. Dai a césar o que é de césar, ao vencedor, as
batatas, ao palhaço as guloseimas, cada coisa em seu lugar, e cada lugar confundindo-se com
muitos outros, porque nada tem as fronteiras muito bem definidas, e nunca se sabe quem
estará a delimitá-las, essa noite veio redesenhar essas fronteiras e mostrar que as coisas
serão um pouco diferentes de hoje em diante. Essa é a grande lição dessa noite, que se pode
aprender ao se entupir suas calças de balinhas.
Elas começam a escorrer pernas abaixo, mas não faz mal. Algumas ficam nas calças. Ri e
envolve o que pode com a blusa, só não enfia na boca porque não dá. – Agora você deita no
chão. Não ouviu?, deita no chão! – segundos de silêncio. – Isso, com as mãos na cabeça.
Agora você vai contar até cem. E de olhos fechados. Eu posso querer voltar pra pegar mais
alguma coisa. E se eu não tiver contado até cem e já te vir de olhos abertos, meu amigo, eu
vou ficar completamente fora de mim, vai ser completamente horrível, vou ficar com vontade de
ver cérebro, e você deve saber o que acontece quando me dá uma coisa dessa – aí ele berra.
– Pá!, pá!, pá!
Aparentemente o balconista reza. Com alguma sorte ele já terá ido embora, o dorminhoco
torcerá para que, enquanto esteja com as pálpebras cerradas, o cara não pretenda na verdade
é dar-lhe um tiro na cabeça, mas só resta torcer, não pode fazer mais nada. Deve estar
começando a contar. Justiça foi feita.
Alex, com as mãos metidas nos bolsos e remexendo com o cigarro no canto da boca vê o
palhaço atravessando a rua, vem em sua direção. Aparentemente André, que está um pouco
mais atrás, deixa escapar a risada, que logo vai se tornando não apenas dele, mas de um coro
que não é feito de poucos. Sylvia começa a pular e a aplaudir o seu indicado, que realizou
melhor do que devia a sua loucura, isto é para não dizer que se excedeu e que, por ter se
excedido, que as exceções são sempre o que mais contam, foi mais do que bem, e Bublitz
acaba de tirar a máscara de palhaço e de jogar a arma de plástico na lixeira dos recicláveis. –
Qual a sensação de ver que alguém cumpriria a ordem que você desse, Bublitz? – alguém
pergunta.
– Vou guardar a máscara de lembrança – e ele se limpa do suor do rosto, que escorre
como se saísse de uma poça, tremulando mais do que mostrou quando se o via lá dentro. –
Temos que fazer isso mais vezes. É sério. Fazer uma loucura só não basta, nós devíamos
fazer isso todos os dias.
– Ele está em transe – André ri.
– P-p-podemos i-i-ir lá e dar um susto daqueles no vendedor.
– Não – Sylvia ri –, ele já teve o que merecia, agora as coisas ficam a cargo da gente, que
devemos nos divertir. A cada loucura – e olha para Bublitz maliciosamente – cada um vai
receber um prêmio meu, que é pra incentivar.
– E-e-eu v-vou lá! – Bonaparte se precipita, o senhor Dantas ri e o segura.

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Alex só podia olhar Júlia e imaginar se fosse ela a fazer essa oferta de Sylvia. Não é que
tudo que seja difícil tenha um gosto melhor, trata-se apenas de um gosto especial, que também
nos cabe provar tanto quanto as coisas fáceis. As sensações são mutantes, por conta disso é
que está sempre afundando nelas, para inová-las e inovar-se junto, até que a própria orgânica
não mais o permita, seja por morte, paralisia nas pernas ou impotência, por isso ele fita o fundo
dos olhos de Júlia, que está sorrindo a olhá-los, porque é claro que sua gravidade lhe vai
exercer alguma influência. Nem toda amargura, seriedade e frieza são realmente implacáveis.
Ela também não tem assim toda essa ruindade. É bonito quando ela sorri. Alex chega à
conclusão de que ela deve fazer isso mais vezes, de repente até dependa de coisas simples,
como ele mesmo, para que ela o faça. Mas pensar isso é muito perigoso. Sem muitas razões
além do carinho, André chega ali perto e a abraça, sorri e deve estar cochichando coisas
meigas ao pé de seu ouvido, ao que ela retribui e o enche de beijinhos. Ele se enoja, mas eles
dois formam um par, é inegável, e se é ele que se impede de ter um, paciência e continue.
Agora quem toca no seu ombro é Habib, que vem confraternizar, é um momento entre amigos
e ainda estão se conhecendo. A sociedade é um plano perfeito. Eis o seu microcosmos, o
origami com sua cara. Quem não tem um par é assim que compensa.
– Uma rodada de chopes por minha conta – André grita e todos vibram.
É que é preciso conhecer não apenas dentro do teatro a atitude dessas pessoas, onde ele
sabe que, por causas já previstas e muito justificáveis, eles farão exatamente o que nunca
poderiam, porque quanto mais se enterra o tesouro mais o pirata quer roubá-lo, já que depois
da opressão o que a liberdade traz é exatamente o que nunca se viu, o que até então esteve
oculto. Mas isso, por si só, não define tudo dessa gente, e Alex quer vê-las por completo, tanto
nuas e escancaradas como embrulhadas nas colchas com vergonha do amanhecer, que assim
ele também se descobre, e elas por sua vez se descobrirão nele. Quem elas realmente são,
talvez tenha aí um problema que nunca encontre a resposta e que abomina a própria pergunta,
mas vale a intenção e sua crença na própria competência de que poderá vê-las, assim, não só
enquanto gritam que odeiam suas esposas ou dão para qualquer um lá nas fileiras de trás do
teatro, mas quando estão rindo e tomando um chope, limpando a boca constrangidos por ter
restado uma migalha de comida entre os dentes.
O mundo é feito de rodadas de chopes, de conspirações feitas em galpões velhos e
abandonados, de homens que escrevem coisas simples aqui e acolá e acabam criando idéias
gigantescas, que na verdade não existem senão enquanto abstrações, que o que continua
existindo na prática, para sempre e de verdade, é o homem e suas pontes, nada mais. É a
gente que agora ri e se diverte, que não importam tantas diferenças, todos querem o mesmo.
No fundo tudo se remete a mesma coisa. A nascer, a ter mais ou menos os mesmos prazeres,
a dar mais ou menos os mesmos sorrisos, chorar quase pelos mesmos motivos e depois de
morto ser reduzido ao mesmo nada. Está aí algo feiamente incrível.
Eis aí sua maneira de pensar otimistamente, o mesmo que chegar à conclusão que tudo se
resume à mesma maravilha humana, sorrir tendo imaginação, e já que se tem imaginação
pode-se vislumbrar uma coisa muito melhor que essa existência de merda, cheia de erros
incorrigíveis para que arregalemos os olhos e vejamos em que merda estamos e o quanto
vamos nos frustrar ao tentar corrigir o que é ruim por ser acidente fatal, o que o homem faz
acaba em acidente fatal, o homem é um acidente fatal, um pateta desastrado, então tudo
corresponde à mesma desgraça entre a gente, somos iguais na desgraça e isso é muito bonito.
Em segredo, é por isso que ele está a brindar. E quando sorri não é essa uma expressão
pasma, bestial, inútil, mas quem tiver olhos que veja que a cada piscadela de agora ele
pretende dizer muitas coisas.
– E-e-e-e... êêêê... – dessa vez a gaguez empacou – e-e-esse é Tony, e e-esse é T-tomas.
Estava nos finalmentes com a tulipa e Bonaparte a sua frente apresenta dois dos novos
convidados, que na verdade são idênticos, são gêmeos, o que o põe a pensar sobre
constituições genéticas, de repente o quão somos determinados, de onde vem o ego das
pessoas, que eis aí algo que sabemos mais ou menos enquanto fenômenos, mas não
sabemos das causas e não sabe-se mais o quê, mas aí pensa tanto que fica cansado, desiste,
e se contém em apenas olhá-los.
– Você é Alex, certo? – aparentemente é Tony quem fala, ele não se lembra, que já é difícil
associar nome com cara, ainda mais quando se tem duas caras iguais. É um que usa uma
camiseta, que apesar de geneticamente igual ao irmão os fenótipos seguem por outros rumos.
– Sou, sou Alex.
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– O meu irmão diz que você é um gênio. Diz que você escreveu aquele livro.
– Isso é indiferente, de nada nos importa quem o fez, apenas que foi feito – mentira. – É do
cara aí do lado que você tá falando?
– Sim, é meu irmão.
– Isso eu notei, mas por que ele não fala por si só?
– Ele está emocionado por ter recebido o convite – diz e olha para a cara de um rapaz
sério de óculos –, não é, irmão?, é que ele leu o retorno à escuridão antes de receber o
convite, imagine, isso é coisa do destino.
– É – acata a voz idêntica ao lado.
– É – continua a primeira voz idêntica –, tem coisas que não têm outra explicação.
– Hum – é melhor não dizer nada.
– Por favor, meu irmão está louco para que sejamos aceitos, por favor, deixe-nos entrar.
– Etapa número um, o sujeito convida até se...
– Eu sei! – ele implora e coloca os braços sobre a mesa. – Conheço todas as etapas de
cor, e vocês podem pedir a loucura que for, podem pedir que façamos a coisa mais idiota
possível, se quiser ficamos nus aqui, agora, que eu mijo nele, nesse bar cheio de gente que
não tem nada a ver com isso, isso não é nada pra nós. Quer ver?
– Pelo amor de deus – e mexe as mãos para que ele se contenha –, não faça uma coisa
dessas, não na minha frente.
Pensa que descobrir a sociedade pode ter se tornado uma oportunidade de status na vida
miserável de alguns.
Por um acaso vê que Júlia o está olhando e sorrindo. Ela fica mais bonita quando sorri.
Aparentemente o véu das inimizades, temporariamente ou não, que isso nunca se sabe e
muito menos com ela, esse véu se desfez sobre eles, certamente não é algo no que possa
apostar, também não é coisa que o impeça de sorrir de volta. E ela ainda feliz se abraça em
André, para que você se lembre qual é o seu lugar, mas não precisava ter feito isso, Júlia, que
ele nunca esqueceu.
– Quando eu for indicar alguém, aí vocês vão ver o que é loucura, que já estou planejando
desde... – Stern fala, desse jeito um pouco tímido, assim, brincalhão aqui, às vezes calado, um
bom rapaz.
– Ensino história, ensino médio – diz Habib a alguém.
– Indiquei uma pessoa – diz o senhor Dantas –, daqui a uma semana ligo pra ela saber o
que significa.
– Não sei se vocês ouviram – Bublitz –, mas eu suspendi a arma e falei para o cara, é,
agora você me forçou a te matar, é hora de você pagar seus pecados, comece a rezar, e acho
que ele mijou nas calças – ri junto dos outros. – É sério, não é algo que vocês iam querer ver,
não digam uma coisa dessas, fiquei com dó, é, sim, com pena.
– Acho que devemos brindar – André diz. – A tudo que existir de ruim e que queira se
juntar a nós, porque não prestamos – e aí todos riem. – Brincadeira, todos sabemos que nós
prestamos, mas é de uma maneira bem especial – e todos riem novamente. – Os que
precisarem vir a nós serão recebidos com os braços abertos. Mas eu não sei ao que brindar, se
é que querem fazer isso, então digam-me.
– Ao retorno à escuridão – diz um qualquer.
– Sim, ao retorno à escuridão – André sorri e levanta a tulipa.
– Não – Alex interrompe.
– Por quê? – Habib.
– Isso já fazemos todos os dias, nos poupemos da redundância. Vamos fazer uma coisa
que realmente importe, que assim as loucuras também vão ter sentido, o sentido que os outros
desprezam. Cada loucura vai representar algo que queremos dizer, e elas não são testes para
nada, só para nós mesmos. Tudo aqui se trata de vocês mesmos, de mais nada. Um brinde a
mim, antes de tudo – e todos olham com sorrisos tortos de estranhamento.
– Cada um brinda o que te for mais especial – então ele continua. – Tem de ser um brinde
secreto, porque ninguém mais tem algo a ver com isso. Vamos brindar cada um, a um.
– Parece justo.
– É, então nosso brinde será um minuto de silêncio.
– Porque a felicidade dos outros é nosso luto – um divaga um pouco mais.
– E nossa felicidade nem sempre precisa ser gritada, e ela não diz respeito a ninguém, só
a nós.
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Alex ergue a taça e todos o acompanham, sem encostar os copos eles brindam em
silêncio, afoga-se em brinde as suas mágoas. Ele dá a entender que está brindando a si
mesmo, e não se importa que outros copiem o seu exemplo como ideal, ele sabe que é o maior
incitador de loucura, é o pavio da chama que sem ele não queimaria, mas agora não se
importa. Ele brinda na verdade à sua própria loucura, Júlia, de quem gradativamente tem se
libertado, mas que, mesmo entre trancos e quedas, não teria sido sem ela que ele teria
conseguido o impulso de ser o que precisou para que agora estejam aí todos esses, querendo
ser, querendo transformar-se no que realmente são, isso é coisa muito importante, e quem
sabe no futuro esteja diante de cada vez mais desses, mas a verdade é que o futuro pouco
importa. Obrigado, Júlia. Ele a olha para revelar isso a ela, ela viu, saber se entendeu ele não
pode, mas crê ter feito o suficiente.
Todos brindam inevitavelmente a si mesmos.
Hoje eles também conhecem Carina, o cadáver problemático. Diga oi para eles, Carina.
– Oi – diz a moça morena, a moça do riso um pouco tímido, normal a quem chega num
monte de desconhecidos.
E não são desconhecidos quaisquer, antes fossem, e não esses alguéns dos quais, ao se
falar, já devem vir uma sorte de comentários estranhos, como por exemplo ao se ouvir a
pergunta que volta e meia deve se ouvir e deve reproduzir-se mais ou menos assim, o que
exatamente vocês são?, simples, minha cara, vá, compareça, e verá com os próprios olhos o
que te interessa, a natureza por trás da enigmática e, cá entre nós, inoportuna carta. Deve ser
uma situação dessas, um ensaio de propaganda assim que, no geral, faça os outros se porem
a imaginar qualquer coisa um pouco mais quixotesca, por exemplo, que intenção sinistra
esconde-se nessas letras?, quando provavelmente tudo o que menos se espera é sair de sua
casa à noite, ou de repente do trabalho noturno, ou de repente da casa da mãe doente, que se
dane, que não importa, quando provavelmente tudo o que menos se espera é dar com um
grupo de pessoas que parecem ser uns bêbados de fim de expediente, happy hour decadente.
Não é numa coisa dessas que se possa ver algo demais. O sorriso de constrangimento de
repente é de desilusão, isto é, se tudo até agora foi capaz de produzir qualquer sorte de
expectativa, como na promessa do convite de lhe resolver todos os problemas, não é
exatamente isso o que está dito, mas inferido pelos mais desesperados. Ela vê, e Alex vê que
ela vê que ali estão médicos, advogados, doutores, contadores e vendedores. De repente, se
ela tem as atenções bem treinadas, ela vai um pouco mais além e percebe que não são nada
disso. São pessoas disfarçadas. Aquilo é uma fantasia e uma conspiração. Está bem claro que
há algo de muito errado naquela simplicidade quase nojenta.
– Vejam – e André abre os braços para as suas boas vindas –, minha nova indicada. Essa
é Carina.
– Sua indicada? – esse tipo de surpresa é sempre ciúme, uma moça feito Júlia não é do
tipo que gosta de surpresas, possivelmente nem das boas, que isso pode fazê-la pensar
acerca do tudo o mais com que sua posse, entenda-se isso por André, pode surpreendê-la. As
coisas ficam mais fáceis quando controladas. Alex quer o descontrole delas. Júlia é sua
arquiinimiga.
– Olá, Carina – dizem em cacófatos as caras já bêbadas.
– O gosto para as escolhas de André está mudando – ele tem que provocar, e a arte das
indiretas continua sendo dentre tantas outras a mais imbecil, que é coisa de gente fraca que diz
a mesma coisa porém sem todas as palavras, mas é instigante porque encontra um aval na
hipocrisia da gente. Ele também quer destruir a hipocrisia, quer ainda mais destruir qualquer
aval.
– Muito engraçado – Júlia sorri sinceramente, ele não colhe a destruição que pretendia,
que pena. – Sou Júlia, noiva de André – uma concessão sempre tem de ter um seguro.
– Nos conhecemos quando fiz estágio num banco, e olha que isso foi quase quando
comecei os estudos, já faz muito.
– Você já fez estágio num banco? – Alex riu.
– A vida – e André discursou com tom milenar – nunca foi minha aliada. Sempre precisei
me virar da maneira que aparecesse, precisei domar o que viesse – todo mundo gosta desse
discurso.
– Um brinde à dureza da vida – um sugere, e eles brindam.
– É o começo da sessão lamúria – Alex resmunga.
– Sente-se e conte-nos mais sobre você, Carina.
298
– Eu não sei se poderei ficar muito tempo – o receio da prevenção, e Alex se satisfaz por
não passar uma boa imagem, e para melhorá-la ele tosse engasgado com o fumo e arrota o
bafo de cerveja, satisfaz-se por poder estragar a tudo. Ela está sorrindo como sorriem aqueles
que não querem, mas mostram, que não estão prestando atenção em você –, só o quanto der
– note bem, está terminando a frase que começou, e não as idéias dele.
– Como se conheceram? – pergunta um.
– O que ele te contou? – pergunta alguém que treina a sua maldade.
É só um bando de estranhos, acalme-se, é o que ele pode dizer a ela enquanto se põe em
sua pele, enquanto se transmuta no seu corpo feminino, e o faz tão habilidosamente que
começa a sentir as formas da curva, os volumes dos peitos e o jeito que o coração palpita e
ordena as coisas, e deve ser isso que cresce em si, a tão requintada malícia das mulheres,
cada vez que ele se aproxima de uma percebe ser mesmo ardil o que lhes corre nas veias, e
continuará não tendo coragem de ir a fundo. É interessante o jogo de tentar adivinhar o que a
levou a ser escolhida, e há mesmo uma teoria interessante por trás disso, a de que ninguém
nunca erra ao indicar uma pessoa. E então tem diante de si a seguinte questão, se é realmente
isto que foi pensado, que há algo nesses sujeitos que os condena a não se enganarem, que na
verdade haja nele algo que o impeça de se enganar, porque tudo que for feito ali foi por portas
abertas por ele, não por ter possuído apenas a visão necessária, mas possuir as pegadas
certas, mas afinal, sente-se condenado ao acerto, a escrever certo por mais que entorte as
linhas, e pode ser essa uma maldição. Acaba sendo estranho imaginar que todos tenham
talento para essa sociedade. Não é que ela represente o que queremos ser, ela está sendo a
atividade de nós, o fim de si mesmo descoberto sem querer, acompanhado de um riso.
Pela sua incapacidade de vislumbrar um futuro mais distante que o amanhã é que ele acha
poder extrair o sulco verdadeiro de cada um. Ele tem a idéia de que somente quando o homem
souber que só lhe resta um dia para que a vida se acabe para sempre, quando morra de vez
até mesmo a esperança que já vem a um tempo se debatendo, só aí que se vai descobrir o
que de fato se é, e mesmo assim talvez tenha-se somente uma pálida idéia. Não importa que
seja tarde, que antes tarde do que nunca, já dizia o sábio gari, o sapateiro e o mendigo da
pracinha. Essa coisa de espécie já é um conceito ultrapassado, eis aí a nova etapa das nossas
concepções. Só existe uma única coisa real, ele inferiu, que começa e termina em mim, que
vida triste e limitada aqui dentro.

299
Passeava mecanicamente com os dedos sobre as mesmas teclas que seu hábito já previa,
quase como se pensasse e o aparelho o ouvisse de forma tão conveniente que o atendia com
a precisão que esperava, mas olha que às vezes não, que uma vez ou outra tem de parar e pôr
em ordem as letras, que agora por exemplo ele está tendo que apertar o backspace e apagá-
las e trocá-las de lugar. Primeiro ele pensa que é idiotice conspirar para perder a própria visão,
e quando o perguntam por que ele não vai logo a um oftalmologista, agora que ele tem
dinheiro, um plano de saúde e todo o tempo do mundo, por mais que não goste de admitir, ele
diz que é porque o risco de ficar cego é excitante, e todos riem e se esquecem da premissa
original. O que ele tem mesmo é preguiça e agonia de gente e coisas lhe mexendo nos olhos,
para pôr um colírio já é um sufoco. Em segundo pensa sobre que besteira está escrevendo,
que se deu ao luxo de divagar e do mais importante já esqueceu. Aí ele descobre que está
fazendo uma lista sobre zonas de reflorestamento. É mais ou menos o seguinte, o serviço, ele
tem que comparar o processo de crescimento da cidade de forma a provar que esse é um
desenvolvimento mal planejado, mas também tem de dizer que as pessoas de hoje estão
preocupadas com as reservas ambientais e coisas do gênero. Pê ésse, impôs A redação, mas
impôs, é claro, com discrição e suavidade, que é para mantê-lo sob disciplina, fazer uma
pequena concessão para que ele se sinta importante, de alguma autoridade, e hipocritamente
ele se sente. Pê esse, recomenda A redação, é interessante ressaltar a importância da
produtividade do papel. Mas ele não liga para os papéis. E também não liga para as florestas
ou para as plantinhas. Ele fecha os olhos e se vê com um lança-chamas, ou não deve ser
exatamente nisso que ele pensa porque nunca viu realmente um lança-chamas e não sabe se
os que aparecem nos filmes correspondem aos da realidade, mas o caso é que ele imagina
algo grotesco com ele a empunhá-lo, que destrói as matas, e as imagina gritando, os caules
sangrando como crianças indefesas, raízes saltando feito tripas.
O som da tevê está chiando em algum lugar do escuro e ele imagina que Carla ainda
esteja nua e enrolada nos lençóis ali no sofá, que é onde ele prefere fazer as necessidades
dele e ela pelo visto também, porque se isso não é um histórico da garota ela ao menos tem
aprendido a se habituar. Carla é como um móvel para mim, ele pensa, e apesar de não gostar
muito da idéia de também o ser para ela, não exatamente se entristece, apenas se consterna e
segue vivendo. É que existem móveis para todas as coisas, tem de deitar, de ficar olhando, de
apoiar outros utensílios, de guardar, de enfeitar, deve ter um de se curar agonias, ela é um
desses. Quando ele está agoniado, angustiado por coisa qualquer, vai lá e a usa, ou quando
chega tarde da noite e está um pouco triste por causa das perdas que sofreu durante o
caminho, isto é, estava na sociedade e tendo tudo para ser feliz, ou simplesmente não mais
tendo os pretextos para ser infeliz, e de repente tem que voltar para um lugar onde quando se
chega nas entradas as velhas notívagas o olham torto, haja paciência. Aí ele vai e a usa de
levinho. Pode ser para abraçar, como se aperta uma almofada, ou tratar como se trata uma
criancinha, fazendo cute-cute, esse tipo de coisa, não se importando com o ridículo e a
apertando as bochechinhas enquanto a chama de fofa. Aí se cansa do brinquedo, dá o bocejo
daqueles que já perderam o ânimo e vai fazer outra coisa, ou então se deita para o lado. Pode
ser sexo também, mas não é regra e nem é mais importante, como alguns teimam em dizer
que têm-se relações baseadas somente nisso etc, deve mesmo haver, mas isso é ridículo. Às
vezes só a quer numa determinada posição, como se arruma um quadro, um vaso de
porcelana ou um abajur, porque acha que a estética atual não combinou com o feng shui do
local, e por aí vai.
Essa é a parte mais complicada de se ter um móvel que nas horas vagas também é gente,
que ele teima em ficar se movendo. Em um dado instante você a deixou por exemplo perto do
sofá, que ali ela fica quietinha, bonita e não incomoda ninguém, dá um contraste com as luzes
das persianas etc, e em outro instante simplesmente se moveu e já está estragando a sala se
pondo a olhar através da janela, ou pior ainda, andando e arrastando os pés pelo assoalho,
fazendo aquele barulho insuportável de atrito, às vezes até aprontando traquinagens na
cozinha, porque resolveu pegar alguma coisa para comer e como se não fosse suficiente o
barulho das panelas ou da geladeira ainda tem de se ouvir aquele mastigar de alguma coisa
indo e voltando. Por isso ele às vezes tem de intervir. Pensou em simplesmente tirá-la de um
lugar e colocar em outro, isso não deu muito certo nem mesmo como idéia, aí teve de começar
a ser um pouco mais persuasivo. Do tipo, se ela está horrivelmente estragando o silêncio do
sofá, ele vai, senta-se um pouco com ela, fala algumas bobagens e faz alguma gracinha que a
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faça sorrir, nada demais e sem se dedicar muito, também porque não vale a pena se cansar, aí
pergunta em dado instante, que tal irmos dormir?, e olha que às vezes dá certo, se bem que
geralmente antes ele tem de desgastá-la, transando ou falando ou sendo chato, eis aí um
preço a ser pago por sua merecida paz. Mas isso só às vezes, que em outras vezes ele precisa
ser um pouco mais enérgico e bradar alguma coisa do tipo, pelo amor de deus, não está vendo
que estou com dor de cabeça?, desligue essa televisão. Se bem que essa não é uma
estratégia realmente muito inteligente, acaba ocasionando em alguns choramingos de
discussão e não raramente também em uma dor de cabeça real.
– Você não me quer aqui – é o choramingo com que está mais acostumado –, e eu não
quero dar trabalho – é uma mistura de resmungo infantil e orgulho.
Aí ele tem que se comportar daquela maneira que ninguém que quer partir um coração
deve se comportar, isto é, voltar atrás, dizer que foi mal compreendido, não exatamente dizer
que se arrepende, mas dizer que não é exatamente assim, na verdade é assim mas não com
todos os pingos do i, e por aí vai. Provavelmente ela já viu que os mares estão para seus
peixes e desata a chorar, que é para impressionar mais ainda, e começa com aquele choro sob
medida que aos poucos vai se misturando com a voz soluçada, e o soluço se amplia cada vez
mais, parece se instigar a abrir um berreiro, mas ela ainda se contém, que Carla é uma mulher
forte. Ele tem de tentar reverter um pouco a situação.
– Se alguém tem de sair sou eu.
É a hora das verborragias, porque começam a teorizar sobre aquilo de quem chegou antes
tem mais direito de quem chegou depois e, ao invés disso aprofundar Alex na polêmica que ele
mesmo criou, tudo o faz começar a pensar se não seria isso um pretexto para os velhos do
mundo subjugarem os mais novos, e talvez seja mais ou menos esse conceito por trás de
coisas como a propriedade privada, quem chega antes, quem cerca é o dono, que estupidez. E
ela está gesticulando e brandindo e anuindo com os braços, enquanto ele pensa sobre como a
escravidão mais usual do nosso sistema se propaga em nossas vidas emocionais. Ela está
falando coisas importantíssimas e ele não consegue prestar atenção em nenhuma delas, ela
pode gritar que não vai vencê-lo, que não vai tirá-lo desse mundo de padrões imbecis e
pensamentos sem rumo no qual ele se meteu e se mete, não conseguirá porque ele tem a
concentração de um monge e os olhos de um cachorro manso. É bom, que assim ele pode se
passar por complacente, por ouvinte atento, e de repente é esse o tempo que ela precisa para
desanuviar as lágrimas que alguém muito cruel ocasionou, e nem ele e nem ela sabem
realmente porquê. Agora ele pensa que sempre estamos buscando pretextos para pormos as
lágrimas para fora, lágrimas ou vômito. É o vômito que nos motiva, motiva as emoções mais
opostas, a fúria ou a felicidade, que, em um, se tem a vontade de gritar a expelir as mais
íntimas nódoas e, na segunda, de tanto rir machuca-se o abdômen e se tosse em seco por não
mais suportar. Engraçado, que o que as pessoas querem é se expelirem. Ele não, ao menos
não agora, que quer ficar em seu canto. Mas o mundo não é compreensivo e por isso o
persegue.
Mas olha, que não só deus, mas também Alex escreve certo por linhas tortas, e sem
querer, nos finalmentes, ele acaba conseguindo o que pretendeu, que para ela restaram tantas
lágrimas, que chorá-las extraiu todas suas forças. Talvez aquela maldição de sempre acertar.
Assim, ele não apenas se livra de Carla, como também encontra uma paz única diante de seu
próprio cansaço. Depois do próximo bocejo ele chega a conclusão de que tudo está bem.
Pensa que, se olhar para trás, a encontrará no sofá ronronando entre os lençóis que ele trouxe
quando ela reclamou do frio. Ela pode ser um oásis de aconchego. É, mas não pode se dar a
essa tentação, tem de fazer os trabalhos, são tantos os atrasados que não os distingue mais. É
interrompido pelo telefone. Veja, mais um potencial motivo para uma discussão com Carla, e
não importa que o telefone esteja mais ao alcance dele do que do dela, ela aparentemente não
está fazendo absolutamente nada, e compactuar assim com a interrupção da obrigação dele
de pensar é outra coisa imperdoável. Ele rosna e reza para que o toque silencie. Ela deve estar
te olhando, a curiosidade é mesmo fonte do mal primordial, a religião nos diz isso, mas é que
ela desconfia de seus amigos, e quando o telefone toca é sempre uma voz que dá a entender
que seja um deles. Qualquer um desconfiaria. Mas eis aí um de seus erros, Alex, que você se
disse que podia ser inocente, que podia dar-se a esse luxo, e ignorou o perigo de apresentá-la
a eles, há destruições que só se fazem ver a longo prazo, e não é esse tipo de visão uma de
suas virtudes, e o telefone toca. Melhor fingir que não quer atendê-lo, que às vezes também
não sabe quem pode ser, que sente-se incomodado, que ele não é todo mistério e às vezes é
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um pouco normal, sendo isso realmente o que lhe deve faltar, mas acabou percebendo que
realmente não queria atendê-lo, não sabe se isso porque vive em estado de terror constante do
que pode encontrar do outro lado da linha, ou porque precisa de todos os pretextos que
conseguir para se livrar inclusive da sua sina na sociedade e ser um pouco mais normal. Anda.
Se tocar mais umas duas vezes acabará soando estranho, será irritante e a irritação é estímulo
para atenções, tudo o que você não precisa. E toca mais uma vez, e com o intervalo diminuído
de forma diabólica, decerto algo conspirou para isso. E finalmente seja o que deus bem
entender.
– Alô – a voz tenta sair como a de quem tem poucos amigos, grunhe mais que qualquer
coisa. Ele nunca consegue ser tão rude quanto na intenção.
– Não pense que esqueci de você – lhe disse no ouvido a voz de Condor.
– Ora – murmurou com a voz entorpecida, aí virou-se levemente pela cadeira, pois
associou a voz com a mocinha que estaria deitada logo ali no sofá, e virar-se acaba sendo um
péssimo trejeito, ela o estava olhando e agora certamente vai pensar que é ele quem está
tramando alguma coisa, que afinal está tratando de algo muito suspeito e sigiloso e que esteve
agorinha conferindo se ninguém por perto se intromete, pois é, já cometeu a gafe e não há
mais muito o que ser feito, então ele se vira e curva-se novamente sobre a própria privacidade
–, você.
– Como estão as coisas, meu rapaz? – há muito barulho de som no outro lado da linha,
talvez esteja no trânsito.
– É, bem – ele hesita porque o nervosismo dos pensamentos anteriores o impede de
assimilar eficientemente as palavras –, está tudo indo, indo de vento em popa.
– A casa, como está?
– Muito bem, vai bem, estou cuidando dela com todo cuidado. Tudo certo?
– Sim – foi sucinto –, estou passando mais ou menos perto daí, e lembrei-me de você.
– Me sinto lisonjeado – mais uma vez olha ligeiramente para trás.
– Não há porquê. Quero saber das novidades.
– Tenho feito tudo o que me pedem – era quase uma justificativa.
– Seria tolice não aproveitar uma chance dessas na vida. É o tipo de coisa que acontece e
ramifica de um jeito único as coisas que nos vão acontecer, e nos alteram para sempre os
rumos.
– É – seria realmente difícil insistir falando nisso –, a propósito, estive adiando.
– Sim?
– Há uma certa Carla morando há algum tempo aqui na sua casa – tampou levemente a
boca.
– Ela?, como? E por que do aviso só agora?
– O como é meio evidente, ela apareceu lá por seus motivos e se acomodou – riu um
pouquinho, gosta de bancar o esperto –, por que não te avisei, acabei achando algo normal de
se acontecer, tipo, gente da família que por algum motivo teve de sair de sua casa e recorre ao
canto de um parente, esse tipo de coisa, e além de tudo a casa não é minha – agora banca
humildade.
– Sei – isso pode querer dizer muitas coisas.
– Tem algum problema? É você quem manda – eis a melhor coisa que se pode dizer para
alguém, ou talvez não, que às vezes há responsabilidade implícita nisso.
– Não, problema algum – a voz sussurra –, ela deve estar passando dificuldade e precisa
de um tempo. Há pessoas que não conseguem pedir ajuda, são orgulhosas demais.
Ela não parece orgulhosa. Talvez o que ele esteja fazendo é falar de pessoas que não são,
como você, que se humilha, que não tem amor próprio. Só te resta se calar, que é para não dar
crédito à verdade.
– Você anda aprontando? – a voz do velho pergunta.
– Como assim?
– É apenas uma curiosidade – tossiu como os velhos tossem por uns instantes –, uma
curiosidade que me veio. Estava refletindo sobre qualquer coisa num dia qualquer desses e por
acaso sua pessoa me veio em mente.
– E o que fez a minha imagem te aparecer?
– Às vezes nós todos temos intuições.
– Então você teve uma, diga-me o que havia nessa.
– Era como se eu pensasse com receio em você, e em resposta você risse.
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– Risse como?
– É meio óbvio. Como ri alguém que está tramando alguma coisa, que tem um segredo e
acha que é superior demais para compartilhá-lo.
– Não sei – ele coça a própria nuca um pouco nervosamente –, acho que talvez isso seja
pelo fato de eu falar pouco, é que às vezes isso nos faz ter impressões enganosas sobre os
outros, não sei.
– Não tem nada a ver com o fato de você falar pouco, porque você sabe muito bem o que
falar e as horas em que deve fazê-lo, ainda que talvez lhe seja um pouco inconsciente que isso
tudo lhe ocorra.
– Talvez o senhor esteja me dando crédito demais, e não é bem assim.
– Dou-te crédito como daria a uma criança sabida, a qual eu já olho torto, e quando ofereço
um doce retiro rapidamente as mãos temendo ter os dedos abocanhados ou os bolsos
saqueados.
– Felizmente tudo está certo – arfa trêmulo.
– E Carla?, como ela está?, está tratando bem dela?, como se fosse preciso, ainda a tenho
como pequetita. Há tempos não nos falamos, presumo que não goste muito de mim. Mas fico
feliz porque ela parece pelo menos confiar. A confiança já é bastante coisa.
– Por que está me falando essas coisas?
– É com você que estou falando no telefone agora, e sinto que posso despejar as minhas
coisas vis em você. Me parece que em você elas terão alguma utilidade, quando não mais têm
em mim.
– Muito obrigado – e bufa –, está aí uma confissão que eu nunca tinha ouvido antes.
– Não me diga que ficou chocado.
– Fique tranqüilo, irei aproveitar bem as suas coisas vis. Como sugeriu.
– Não sugeri, foi apenas outra impressão que tive, tal qual a intuição onde você ria.
– Está certo, você me confundiu – e põe a mão sobre a testa –, não sei exatamente o que
lhe dizer.
– Lembre-se de suas responsabilidades, menino, e que pôr tudo a perder é sempre mais
fácil do que parece. Você é um porra louca. Se cuide. Esse é um conselho sempre adequado,
concorda?
– Entendi.
– E Carla é uma ótima menina. Linda, não é?
Pára por instantes. – Sim – pensa em se virar, mas melhor não olhá-la, que é como se ela
já pudesse ouvi-los. – É, sim.
– É uma pessoa boa, portanto cuidado com a convivência.
– Não entendi. Sou eu que devo tomar cuidado?
– Cada um de vocês se insere em meios distintos, não é?, são coisas que não se
misturam. São incompatíveis, caso contrário ela pode estragar as suas virtudes e você as dela,
e ambos vão perder o que têm de melhor.
– Isso faz uma estranha razão – murmura e sente os olhos pesando –, ainda que eu não
identifique quais são essas virtudes.
– Todos sabem o que têm de melhor, mas isso não se coloca em palavras.
– Mais parece um pretexto para se iludir e admitir que na verdade não há nada de bom...
– É muito mais complicado reconhecer a bondades dos outros.
– Já tenho problemas comigo mesmo, e esse do reconhecimento.
– Então devia me ouvir mais vezes, caso temesse entrar em confusão.
– Não temo.
– Nesse caso, boa sorte a você.
– Espero não precisar, mas também espero tê-la.
– Até mais.
Pousou o telefone no gancho e a repercussão do contexto lhe disse que só com um cigarro
se aliviará, é dessas tensões que vêm crescendo sem mesmo mostrar suas causas, feito
acordar e dar-se conta que está com taquicardia, e ali está ela na forma de um nervosismo que
precisa escapar. É claro que os maços estão ao alcance, e por não mais que um instante
desesperador acha que perdeu o isqueiro, mas ele está ali abaixo de uns livros que
desarrumou da prateleira. A presença de Carla dificulta um pouco mais sua vida a medida que
o força a se reorganizar. Por exemplo, não pode mais deixar o bloco das anotações solto pela
mesa, se é que ela já não bisbilhotou, isso porque ele se deu conta de que era sua intimidade
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desnuda de qualquer jeito num canto da casa, assim ele tem de disfarçar, deixando as suas
coisas debaixo de livros com títulos desinteressantes, coisa que ninguém tomaria para ler,
como a hipertrofia da democracia representativa ou oligarquia cadente, uma profecia. Quando
acha um pouco mais arriscado, tem de deixar suas coisas nos bolsos das jaquetas, mas a
estratégia dos livros é duplamente melhor porque, quando os revira, também se confere um ar
de inteligência, coisa que cai quase sempre bem. Aí estava com o cigarro na boca. Aí vem a
crise de tosse, a garganta obstruída por algo próximo a um bolo de pêlos, a contração que
teima em não parar, a peristalse que o está fazendo regurgitar o coração. Não lhe sai nada,
que ou não foi dessa vez ou já perdeu o bicho que lhe bombeia o sangue, por pouco até pode
jurar e ignorar ter ouvido alguma voz ali perto perguntando-lhe se está tudo bem, se não está
tendo um treco, mas ele baqueia com os braços sobre a mesa mais do que bastaria, que ele
mesmo não reconhece mais os limites da encenação. Olha a tela do computador e a vê sorrir,
força um pouco mais a vista porque algo parece estar errado. O computador está sorrindo.
Sente que isso é uma merda, e sorri de volta.
O uso do ácido lisérgico surgiu como uma alternativa ocasional, tal como na ciência é
normal que ocorram mutações em certas espécies e estas acabem definindo-lhes o destino, o
seu e de todas outras espécies por perto, sejam as que vão comê-la ou aquelas que serão
devoradas. Assim é, ainda que Alex se perca numa imensidão de probabilidades que fazem jus
a uma resposta de por que se deu esta adaptação, o pioneirismo de novas situações, esse tipo
de coisa. Não há exatamente como definir, e todo esse excerto ele está ensaiando para
justificar o fato de que ele não se lembra como isto aconteceu, o momento em que alguém teve
essa idéia em específico, algo do tipo, vamos ficar loucos, as drogas ajudam, vamos ficar fora
de nós mesmos, ou dentro de nós mesmos, como isso é clichê e útil, vamos visitar novos
níveis do conhecimento sobre nós, coisa que em resposta outro riria pois este é um papo bem
sinistro a fim de expressar meramente aquela coisa que foi dita logo de cara, isto de ficar
doidão, e ponto final. Mas ele pode pensar um pouco sobre o contexto em que isso ocorreu,
que felizmente lhe é evidente, e se não lhe fosse é certo que teria algum problema na cabeça.
O uso do ácido lisérgico foi adotado como alternativa para distrair os ânimos mais afoitos.
Façamos algo novo, deve ter sido mais ou menos assim que alguém sugeriu, e é disso que
Alex não se recorda, ainda que tenha acatado posteriormente com a idéia, particularmente por
ela ser brilhante, independente de como lhe veio, do porquê etc. Sim, façamos algo novo,
saiamos nas ruas e destruamos alguns carros de luxo, alguém então pode ter sugerido, é, e
assim as coisas ficam mais difíceis, primeiro porque não se sabe qual das propostas é mais
séria, depois porque é mais difícil encaminhar qualquer idéia quando estão todos rindo sabe-se
lá do quê. Não, é sério, essa coisa de sair é tremendamente perigosa, já nos basta a loucura,
que é controlável por se dar em pequenos focos, que é coisa que se trata individualmente, mas
imagina se começam a sair todos por aí fazendo o que querem?, para começar receberíamos
uma resposta fulminante que nem saberíamos de onde vêm, isso não seria inteligente, a partir
do momento que seria uma forma de suicídio não intencional, seria corajoso, mas não
eficiente, e não há motivos muito grandes para arriscarmos a nossa vida. Antes morrer
lutando!, diria um grito qualquer, desses que assim que são ouvidos já se sabe que não sabem
exatamente o que estão dizendo ou o que querem dizer, ainda assim vale o espírito, obrigado,
amigão.
Mas não é isso que propõe o retorno à escuridão nas entrelinhas, não é um panfleto que
sugere mais ou menos diretamente esse absurdo, de que saiam todos na rua fazendo tudo que
for improviso?, mas esta sociedade do teatro, essa nossa sociedade, é apenas um protótipo
pequeno de como seria essa sociedade grande, ampliada, então o que temos a fazer por
enquanto é nos contentarmos em sermos livres num espaço fechado. Por que você diz por
enquanto?, chegará um momento em que isso mudará?, e isso que você está falando mais
parece uma estratégia de cuspir de vez um monte de paradoxos para que ninguém tenha
tempo de questionar a todos e algum passe desapercebido, do tipo, este paradoxo de sermos
livres num espaço fechado é bastante gritante, é a mesma contradição que a vida impõe a nós,
dizendo para que prezemos pela liberdade que não temos, e é com esse objetivo que o mundo
nos ilude, com o objetivo de que acreditemos que estamos sendo livres, quando não estamos,
porque a liberdade é um símbolo forte, mas não é necessariamente boa para nós, mas
representa a possibilidade da satisfação. Assim, caros amigos, diz o orador mais sábio, o que
estamos fazendo não é simular o protótipo dessa desordem idealizada que o retorno à
escuridão nos sugere, e sim repercutirmos, tanto aqui dentro como em nossos lares, a mesma
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coerção a que lá fora eles nos submetem. E o que você quer dizer com isso, afinal?, que é
impossível fugir desse tipo de influência, que essa moral, essa opressão, acabará sendo
imortal por ser inevitável? Não, que uma coisa dessas não se afirma para um bando de
dementes sem criar algazarra e sem dar cordas a uma destruição estranha, é como lhes dizer
que terão de cooperar em vestir a camisa de força. Então o que raio estamos fazendo aqui?,
acreditando em algo que não existe?, sendo hipócritas?, dessas velhas formas de hipocrisia o
mundo já está cheio.
– Se é para fazer, vamos fazer direito – este é o lema de Alex.
É difícil entender que dentro dessa frase, a considerar os seus efeitos, esteja contido um
significado terrível, nessa coisa de fazer direito, o desejo oculto, também não tão oculto, mas
furtivo à vista de todos, de saírem todos para a passeata final, à loucura coletiva que ele acha
que iria abarcar tudo e, sem permitir exceções, ia persuadir uns inertes a saltarem de suas
janelas e se unirem a multidão que serpentearia entre as ruas gritando o comando do dia, e o
comando seria um palavrão. A maior de todas as ofensas. É um pouco difícil, Alex, até para
você, imaginar que tenha sido isso o que você quis dizer, quando os efeitos acabaram sendo o
apaziguar dos ânimos, isso porque talvez até mesmo a idéia mais exaltada não tenha se
revelado exatamente preparada para você, para a sua rebelião leviatânica e, sem muita
consistência, até o furor que convence se apaga com o tempo. Quem sabe você arrebenta com
tudo em uma outra ocasião.
Então vamos usar coisas que façam com que vejamos nossas vontades de uma forma com
que nunca antes vimos. Se o problema está na nossa própria personalidade, se há alguns
preconceitos fundamentados nela por anos e anos, polidos há tanto tempo em nós, enfim,
destruamos, descaracterizando a nós mesmos, e descubramos no final a massa podre que nos
tornaremos. É claro que essa coisa de identidade é relativa, e se se perde uma, outra se
ganha, porque se não se morre não se é vazio. Algo estará lá, tanto é que, antes, outros já
devem ter tido essa idéia de se fazer cobaia de uns experimentos muito sinistros, os mais
cultos chegam a citar correntes de poetas, a gente mais desinformada diz que conheceu um
sujeito que se sentiu capaz de voar, outros já viram uns lobisomens saindo da lua que raiava a
entrar pelos cantos, um ou outro diz já ter experimentado, mas com doses fracas demais, uns
temem usar drogas mais fortes. A verdadeira e única coragem, disse Alex, é a que gira em
torno da morte, porque a vida é tudo que se tem, e o ato de heroísmo é o aquilo que passa
perto de perder isto, o herói é aquele que passa perto da morte e ri. É por isso também que
aqui só se suporta a gente corajosa, porque a sociedade já começa arriscada e isso é repetido
como lucidez que não se apaga para a gente, é passado dos velhos para os novos como um
lema, que saibam desde já, por exemplo, que não seria impossível e nem haveria o que
impedisse um patrono de dizer ao seu novo indicado, sabe tua loucura?, põe uma arma na sua
boca e dispara. Mas não é isso que vem ao caso, e felizmente esse não constitui um capítulo a
parte da história da sociedade, ao que Alex suspira e por outro lado pensa, mas que pena,
seria bom ver miolos desse jeito. Bem, ele se diz, vamos lá, continuando.
Quando você se torna livre, as primeiras coisas a se manifestarem serão as coisas antes
oprimidas. Primeiro a confusão de nunca ter tido este poder. Talvez o cara fique perdido e não
saiba o que pode fazer. Então passará a metralhar seus desejos mais notáveis e acessíveis,
após um tempo virão os mais bizarros. É como no princípio universal da conservação. Nada se
perde, no máximo se transforma, a fauna da psique é uma górgona estranha. Vamos dar uma
olhada no que temos aqui, sugeriu alguém. E se é para fazer, vamos fazer direito.
Estão ajoelhados e em fileira, o pescoço baixo como aqueles que esperaram o carrasco vir
guilhotinar. Conservam um silêncio fingido, fingindo ainda mais por aparentemente ser tudo
muito respeitoso, de todo modo é como fosse a apreensão de um enterro, onde ninguém sabe
ao certo como se portar, onde resta ainda se dar conta que o morto de fato se foi e nunca mais
vai voltar, esse tipo de coisa. Aqui é um pouco diferente, a sensação deve ser o invés, feito
como se os mortos pudessem regressar ou fossem eles mesmos, ali, que estivessem sendo
enterrados, que vale a pena ser morto assim, que muita coisa tem de ser morta para que
qualquer coisa nova possa nascer no seu lugar.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Eis aí uma idéia mais criativa do que falar corpo de cristo, amém. André é como o
sacerdote, vem trazendo a hóstia de boca em boca, para que os ajoelhados a comam, é uma
congregação religiosa. Depois de engolido o adesivo de ácido partirão ali por dentro para fazer

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qualquer coisa, para pôr em prática qualquer idéia, que dentro de mais ou menos uma hora
deverá estar começando a fazer efeito e as coisas se tornarão ainda melhores.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Uns não tomam nada do que se lhes põe na boca. Nenhuma das outras drogas que vêm,
também. De fumar, de cheirar. Eles argumentam que têm de trabalhar no dia seguinte, e Alex
os chama de covardes, mas é certo não ser justo fazê-lo em voz alta. Ele não quer pressioná-
los para não desvirtuar a si, mas os repudia, e é esse um preconceito, porque repudia sem
compreender, e por outro lado tem aí a ignorância de saber que está sendo intransigente e por
preguiça não querer se provocar ao esforço de não ser, portanto apenas os condena, e o faço
antes que eles condenem também a mim de uma só vez, pensa ele, que é para todos nós nos
danarmos juntos numa situação estranha e até hoje imprevisível.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Olha para o lado e há rostos novos, eles estão aumentando de número a cada dia, perdeu
o controle de tal maneira que se esquece, desculpe-me a negligência, ele também se diz para
si mesmo, mas acontece que realmente se esquece-lhes dos nomes, assim como tem em
mente que decerto em pouco tempo não poderá acompanhar os processos pelos quais cada
um tem de passar, assim não sabendo afinal sequer o histórico dos novos integrantes da
sociedade, tal como não saberá sobre suas loucuras, mas não faz mal. É, não faz mal, porque
no mundo real não se pode conhecer a todos e saber de todos ao mesmo instante, é um dos
limites orgânicos da interação, senão é mesmo a apatia.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Há um senhor amargurado, com jeito de que foi pisoteado pela vida e não se fez de
manso, com jeito de quem reclama diariamente da aposentadoria e resmunga que as coisas no
seu tempo já eram uma merda e que agora estão piores ainda, e que depois de tantos anos de
vida na esperteza o único padrão que consegue identificar nas coisas é de que elas realmente
caminham para trás quando pensam estar caminhando para frente.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Há gente que já ri abobadamente prevendo os efeitos do entorpecente, mas ainda sem
senti-lo, que muita dessa gente tudo o que precisa é de um pretexto para rir quando por si só
desaprendeu. Há gente que põe a barriga para o alto e olhando para o teto espera que a vida
se torne mais bonita, e Alex imagina se uma tentativa dessas poderia dar certo. Ele tem
vergonha de tentar.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
O senhor Dantas chora novamente porque ama a mulher que o deixou e porque descobriu
que depositou muito do tempo que tinha para si nos outros, ingratos outros, e ao contrário de
isso fazê-lo nobre o tornou um alguém perdido e medíocre. E ele não quer ser egoísta como
solução. Só queria que o mundo melhorasse.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Bonaparte o acompanha, mas chora confessando que nunca vai conseguir escapar de sua
solidão, ele tornou-se intolerável a si mesmo ao ponto de se olhar no espelho e sentir asco,
asco por si mesmo deve ser um estado de decadência além das fronteiras da mais escrota
humilhação. O que ele quer não é uma mulher, é reconhecer que ainda há um fundo do poço a
se alcançar, é que assim ele descobre que não esteve na merda mais cabeluda, e diante de
cada descoberta ele se vê afundado um grau a mais, e este é o seu vício infinito que repugna e
do qual não pode escapar, mas não se pudesse se sentir amado, o que ele sente que jamais
poderá.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Bublitz grita porque sempre o chamaram de irresponsável e a inocência se tornou sua
máscara mais apresentável, e aqui ele pode ser tanto inocente quanto ardiloso, finalmente não
há nada que lhe pese nos ombros, aqui não importa se está certo ou errado, e ele grita porque
se alguém ousar contestá-lo ele terá forças para contestar em contraponto, aprendeu que é
assim que se faz, que são os animais que oferecem a outra face, e não ele, que é um pouco
mais que um.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Stern finca as unhas na pele e diz que precisa aprender a não temer o sistema que ele
optou por integrar, se sente preso e asfixiado e não consegue enxergar escapatória, vê que na
clandestinidade o único destino é, mais cedo ou mais tarde, a desintegração, e só restará um
gosto ruim de memória que ocasionará, por fim, no total isolamento e total separação, divórcio
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da sua esposa, da família, dos gatos de rua que adota, será tarde demais para tudo, e não é
este divórcio algo que ele possa evitar, por mais que o óbvio lhe recomende a passar longe,
algo em si jamais o perdoaria se fugisse, talvez o coração, talvez o estômago.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Habib se fecha e se contém ao observá-los e diz que só se sente inteiro quando se vê
enlamaçado dos mucos de outras pessoas, ele precisa aprender a senti-las e elas sentirão
qualquer coisa por ele, e ele as sintetizará sempre que puder, e as levará à provação que
precisarem passar, porque ele não reconhece limites a não ser o limite dos outros, e a medida
que redesenhá-lo irá, por conseqüência, libertar também a si.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança.
Sylvia escolheu seu eleito de hoje e o levou ao fundo, lá faz questão de gritar, de urrar e de
fingir um prazer que só ela saberá se realmente sente, talvez nem mesmo ela, mas tanto assim
só pode ser fingido, é o que Alex acha, caso contrário encontra um motivo para invejar alguém
que as pessoas desprezariam, delícia de mulher escandalosa. Ou talvez ela queira se
convencer de que essa destruição na entrega é boa para si e que ninguém lhe pode dizer o
contrário, que ninguém, e por isso mostra tudo a que veio sem constrangimentos, tem alguma
coisa a ver com isso, porque ali ela gosta de ser assistida. Não é apenas ela a interessada em
mostrar as coisas podres que veio contendo até hoje. É feito comer por anos lavagem de porco
e depois meter o dedo na goela.
Talvez os mais conhecidos sejam os mais intraduzíveis para você, Alex, e talvez isso
apenas te remeta a certeza de que quanto mais próximo de alguém mais se saberá que não
sabe nada sobre ele, ao que talvez a alternativa para este problema esteja em não se
aprofundar demais em ninguém, que na superfície tudo é mais claro e menos complicado, a
turbulência está do lado de dentro. E se não seria isso um grande auto-engano?, que na
verdade você não entende mesmo nada e cada coisa que você pensa que eles te dizem não
chega nem perto da verdade do que eles querem te dizer. Alex, você é um merda, olhe para
Júlia e diga do que ela se liberta, vá, a olhe e diga o que ela pensa, por que ela grita, por que
ela chora, por que será que mantêm esse rosto aglutinado de persuasão destinada a canto
algum, por que ela enxerga a todos melhor que você e te destrói sem planejar. É que ela está
nesse mundo por engano, a sociedade pode não estar preparada para ela, ou pode ser você
que a esteja superestimando mais do que ela merece, quando a verdade é o contrário e ela
continua, ali, sendo uma das mais deslocada, uma inocente parasita que sugará o ânimo dos
espontâneos. De André tanto se sabe que há também muita controvérsia, que Alex na verdade
é um cara inseguro que não sabe nada com a precisão que gostaria.
– Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança – estava de pé e defronte a ele, o olhou
complacente nos olhos e deu-lhe na boca a hóstia, que Alex engole chupando-lhe os dedos.
Ali perto do palco alguns congregavam, ou isso ou algo muito parecido, pois ouve
claramente suas vozes e vê que estão quase num círculo, engraçado. Se divertem quase que
como escoteiros, pensa que só lhes falta cozinhar marshmallows e cantar umas cantigas, é
claro que caberá a ele intervir se for necessário ou se uma coisa dessas ganhar espaço e,
mesmo por nada, daqui a pouco chegará criando uma polêmica avassaladora ou falando
coisas que não podem ser ditas em voz alta, do tipo, há alguns que estão aqui por realização e
outros por frustração, qual dos dois é você?, a propósito, há quanto tempo sua mulher já está
dando pro vizinho?, e a discórdia estaria criada, a discórdia é o único lugar onde todo mundo
se insere. Gosta da idéia de se integrarem, mas às vezes acaba se enojando. Quer ouvir gritos.
Ver sangue. Tem aquele chato do Gabriel falando com todos como se mediasse o encontro,
nunca foi muito com a cara do sujeito, mas isso é porque foi Júlia que o indicou, e ele acha que
Júlia não tem capacidade de indicar alguém. O cara está lá no palco achando que pode
organizá-los, deixa estar, que mais cedo ou mais tarde logo ele vê que não é bem assim.
Aí se ergue um sujeito gigantesco, bem vestido e bem asseado, desses que escondem
alguma coisa, um bom rapaz em todas as maneiras que, no entanto, está ali, e isso já deve
querer dizer bastante coisa.
– Sou Martin – ele diz. Digam oi para Martin, rapazes.
– Olá, Martin – só falta ele falar que está há tantos dias sem beber, só falta baterem
palmas.
– Fui indicado por Habib – ele cruza as mãos e continua –, morávamos no mesmo bairro
quando éramos adolescentes, eu me mudei, sou formado em culinária, tenho um restaurante,
e...
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– Que merda esse veado tá falando? – alguém berra. – Cala a boca aí na frente, sua
cozinheira, que ninguém tá preocupado com sua vida.
E ele não sabe exatamente como reagir às risadas que surgem, parece ser muito dócil, que
alguém mesmo sem saber onde está inserido já teria dado uma resposta a altura, ele deveria
saber que o que conta é se arriscar.
– Cala a boca você aí atrás – Alex ergue o braço e grita se cuspindo –, que ninguém pediu
a tua merda de opinião – trinca o queixo e olha para frente. – Aqui a coisa tem que ser assim.
Não se pode dar moral pra nenhum desses babacas, e vocês são todos uns babacas.
– Vou abrir as caixas de cerveja – Bublitz.
– Continua aí, Martin, estamos te ouvindo – Gabriel.
– Bem, eu estou ciente das regras, recebi o convite há uma semana e fui explicado das
coisas que teria de fazer.
– E por que aceitou? – Júlia. Ela deve pretender alguma coisa com isso.
– Bem – esse negócio de sempre começar as frases com bens deve ser coisa de gente
insegura –, na verdade não há exatamente porquê não aceitar.
– Um monte de desconhecidos que basicamente não se importam com você – ela dá de
ombros e ri.
– Como se ele se importasse com nós – Alex –, como se fosse isso que importasse.
– O que quero saber é exatamente isso, o que importa, o que conta...
– É quase abstrato, minha cara – esse comentário, a depender de como seja dito, pode
arruinar completamente a credibilidade da pessoa ou promovê-la radiantemente –, há uma
coisa pouco captada por trás de toda razão que nos mantém aqui. Talvez seja um impulso de
descoberta que todos tenhamos, talvez estejam certos quando afirmam que as pessoas não se
satisfazem com pouco, surgiu algo mais pra que vejamos, então vamos querer.
– E por que não o deixa responder a pergunta, Alex? – ela.
– Porque essa competição é nossa – a sinceridade de sua parte a destrói –, porque na
verdade somos sempre nós que estamos competindo pra ver quem se sai melhor – ele olha
para as unhas como se falasse algo trivial, garoto exímio, e depois espana uma sujeira
imaginária da jaqueta –, e não parece justo usar alguém de fora disso.
– Como é? – ela ri. – Já te passou pela cabeça que eu possa estar realmente curiosa?, do
que ele tem a dizer?
– Até que me passou, mas me desiludi muito rápido.
– Deixe-o responder – grita uma voz dos gêmeos, e que raiva deles, mas que bom, que já
estão muito bem adequados.
– Vê? – Júlia se ostenta porque se sente vitoriosa.
– Isso não me diz absolutamente nada – e boceja.
– Posso responder – volta Martin –, estou aqui porque senti que seria interessante que o
fizesse, desculpe, não acho que possa dizer algo mais... – ele procura o adjetivo.
– Mais profundo – André o acha.
– É, mais profundo que isso, pode ser. Simplesmente eu quis. Nada mais profundo que
isso.
– Viu? – Alex. – Quase abstrato.
– Então é algo imbecil – e ela acena negativamente, mas sorri.
– O poder como meio ou como fim, Martin? – ele grita de repente.
– Como assim?, não sei o que responder.
– As coisas estão rodando. Desculpe.
– E os demais desconhecidos? – Stern.
– Este é León – o senhor Dantas vem tropeçando lá de trás especialmente para introduzi-lo
–, meu indicado. É um sujeito de fibra. É exatamente do que precisávamos.
– Eu posso falar por mim, muito obrigado – o velho retruca formalmente, mas rosna feito
um cão doente.
Então é quando deita sobre a ribalta de barriga para cima e, repetindo o exemplo que viu
alguém por aí a realizar, olha para o teto como se olhasse para o céu e espera que algum
milagre aconteça, que a vida se torne mais bonita. Só consegue vê-la bastante diferente. Já é
alguma coisa para quem não tem nada.
Sou Alex, ele diria para todos. Tive uma idéia absurda e enredei todos vocês nela, e riria
como ri o piadista, que a arte de enganar não é para os mais bobos, isso está evidente. É
engraçado pensar por essas vias, que sendo assim a arte de enganar a si mesmo devia ser
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alguma coisa que exigiria alguma técnica, é uma ironia com a qual não quer se martelar.
Pensou nisso porque está ouvindo diversos sous, e agora pensa se é realmente eficaz os
modos que as pessoas usam para se descreverem, é claro que não devem estar planejando
realmente ser eficientes, é apenas um pouco vil reconhecer que estão tratando de um assunto
que na verdade não diz absolutamente nada. Eles que são sóbrios que se entendam. De
repente se vê num barco, está se jogando de um lado para o outro nas águas do mar aberto.
Está dentro de um nevoeiro que é feito de bebida alcoólica, pode abrir sua boca e é o mundo
que lhe vomita as coisas, de fora para dentro, e ele se embriaga prazerosamente. Talvez esteja
dentro d’água. Talvez seja ele a agulha no palheiro, e os gigantes do mundo afora desejam
encontrá-lo, por que motivo não sabe dizer. É um cadáver pensante que está precocemente
sendo roído por ácaros, talvez hajam muitas outras coisas que o roam, sabe muito bem que
eles se alimentam do resto da nossa epiderme morta, e agora ele os vê, comendo a si,
mastigando, ouve as mordidas, as pequenas garras roçando, é uma sinfonia como de
infestação de gafanhotos, e eles sorriem ao serem vistos, olá, meu alimento. Um búfalo passa
de um bastidor ao outro rugindo solitariamente. O búfalo fui eu numa outra encarnação, ele
pensa. Um albatroz se desprende das cortinas. Serei eu este albatroz depois de morrer.
Sou Carina, diz a voz feminina, e todos devem estar aplaudindo depois que ela conta
algum detalhe constrangedor de sua vida, do tipo a vitória de estar há incríveis cinco dias sem
beber, aí ela reconhece que é alcoólica, ou obsessivo-compulsiva, cleptomaníaca, invejosa,
fanática, esquizofrênica, qualquer sorte de coisa que se tenha para confessar, nem que seja o
assassinato de um pintinho que ela matou sem querer, é que isso não deixa de ser menos
morte, numa feira de animais que ela foi quando era criança, ela apertou o pintinho forte
demais porque ele era fofo. Pode ser também que ela tenha sido estuprada na infância pelo
pai, pelo tio, pela família toda, sabe-se lá, mas sou Carina, é o que ela diz, e isso não quer
dizer absolutamente nada. Ela diz que já trabalhou num banco, já fez um curso de corretora de
imóveis, é formada em letras e hoje trabalha numa loja de grife feminina. Tudo isso diz menos
ainda. Olá, Carina, como nós, você não é absolutamente nada, não adianta se esforçar. Fui
almirante, diz outro.
– Quanto tempo trabalhou na aeronáutica? – perguntou um.
Almirante é a patente máxima da marinha, seu completo imbecil etc, enche a boca para
falar isso, xingamento, riso e tal. É claro que ele deve estar mentindo. Deve ser um sonhador
psicopata. Este é León, Alex se levanta e ri quando ele conta que quarenta anos de carreira,
medalhas, congratulações e homenagens se acabaram quando tornou-se intolerável sua
vocação senil de humilhar, ofender e perseguir, muito além das fronteiras do razoável e da
maldade corriqueira instituída entre os fardados, seus subordinados mais próximos, mas tudo
bem, tudo ok, nada disso exigiria outro corretivo que não uma simples vista grossa, se não lhe
tivesse passado a ser hábito flertar com as esposas de seus importantes colegas de alta
patente em festas de gala onde todos vão muito alinhados, esse tipo de coisa. Tornou-se
bêbado, quase sempre doente e instável, sim, ninguém entendia por que alguém desperdiçaria
o preenchimento de uma carreira cheia de pompa pela vulgaridade dos bichos e dos homens
que vivem no presente. Seus exames foram taxativos e fizeram dele uma caricatura
psicológica, sua cuca estava transtornada e só trataram de oficializar e documentar aquilo que
todos sabiam na prática, que havia se tornado, há anos, e nunca poderiam adivinhar o por quê,
alguém insuportável, irracional, imprevisível e histérico, simplesmente louco, forçado a se
aposentar, e tudo depois de esmurrar-se, sim, assim foi o estopim, depois de esmurrar-se com
um jovem oficial numa decadente briga de bar, numa desprezível briga por mulher, com direito
a garrafa na nuca e a ter sido atirado através das vidraças. Quebrou as pernas e tem nelas
alguns pinos, por isso manca. Tudo isso foi muito intragável e foi forçado a se aposentar. A
corporação, ou seja lá como eles a chamam, não poderia engolir o bolor da sua presença, toda
atenção escandalosa que atraía, o circo que já era para alguém de sua posição. Já não era
sem tempo de você cair, não é mesmo? No fim, apenas teriam extraído tudo o que pudessem
de você. Eles não compreenderam que nunca houve troca alguma por todo tempo que você
deu, e a lucidez do uso e do desperdício da sua vida miserável lhe veio de repente e ele não
havia mais nada para dar e queria apenas, exclusivamente, receber.
– O que faz alguém indicar um velho conservador pra vir até aqui? – grita um.
– Não vou morrer – urra impressionantemente –, sem antes fazer algo verdadeiramente
importante.

309
Não é mais que um velho frustrado. Deve estar mentindo, também. De repente tanta
frustração amontoada caracteriza um ecossistema jamais visto. Há este Tomas, ou seria Tony,
que é muito difícil dizer qual, e o nome não é lá um grande referencial, que depois ele vai
novamente se confundir e essa é a sua desculpa para pouco se importar com ambos, mas
afinal, há este Tony, ou seria Tomas, que é salva-vidas, é o que ele disse, no caso o
verdadeiro em questão entre os dois, o Tomas ou o Tony de verdade, enfim, e esse salva-vidas
do corpo de bombeiros trabalha na praia, sentado naquelas plataformas, e fica vigiando se não
há crianças indo mais afundo do que podem, enquanto os pais tomam suas cervejas, vendo se
não há nenhuma moçoila se debatendo a se afogar, que aí ele tem de soar o apito e vão todos
se atirar na direção do mar. Em poucos trabalhos, ele diz, você torce para que uma coisa dê
definitivamente errado e você não possa fazer nada. Alex o entende, deve ser tremendamente
frustrante ver aquelas criancinhas que nada sabem da vida emitindo seus chiados agudos e
brincando de seus joguinhos egoístas, uma onda mais forte as pegando e arrastando suas
cabeças na direção das pedras é todo o necessário para os pais se desesperarem um pouco,
talvez para aprenderem a tratar melhor de suas proles, ou por nada, que no mais já seria um
gostoso espetáculo. O outro gêmeo diz ser motorista de táxi, e acha seu ofício muito mais
tentador e coercitivo a coisas horríveis e usa isso para competir com o irmão, que não haveria
graça se houvesse entre eles paz de espírito. Por exemplo, estando no volante de um carro em
alta velocidade se pode fazer tudo, se tem a vida do passageiro em mãos e raramente ele se
daria conta de alguma coisa dessas, dando-se ao luxo de muitas vezes ser arrogante,
pretensioso, mal-educado etc, pouco sabe que o taxista não é um covarde e que a ética e a
nossa segurança são mais inseguros do que se pensa. É só deixar um almofadinha desses
num bairro suburbano e letal, para onde está me levando?, perguntaria, e o taxista poderia
apenas murmurar por algum tempo, ora, estamos tomando uma outra avenida menos
engarrafada, que mesmo que o sujeito pusesse na cabeça quase incontestavelmente que há,
realmente, algo errado, ninguém é totalmente seguro para dar um veredicto firme sobre as
intenções alheias por um só indício, de uma única tacada. E por não ser firme o bastante seria
tarde demais. Para onde está me levando?, perguntaria novamente, vou saltar do carro, isso
está errado. Então salta, que está mesmo muito longe de casa e num lugar onde seria
assaltado e morto antes de encontrar uma placa. É engraçado ver que geralmente se tem mais
poder do que imagina.
Ele chega a perguntar ao taxista de onde vem aquela mania de ficar olhando e analisando
os passageiros pelo retrovisor, coisa que sempre fazem e o que o faz sentir-se desconfortável,
assim deve sentir-se todo mundo que não esteja familiarizado com umas práticas de voyeur. A
resposta é um pouco engraçada, que a gente, os taxistas, na verdade estamos olhando é para
o trânsito, mas sabemos que os passageiros sentem-se assim e não vamos abrir mão de vê-
los irrequietos, é uma implicância com a qual nos viciamos, é fácil e é saborosa.
– É que vivemos realmente coagidos pelo medo – diz sabiamente um estranho.
É mesmo, temos medo de sermos irresponsáveis quando se pode fazer exatamente o
oposto do que esperam e, a seu tempo, ainda deturpar o que é a responsabilidade, e temos aí,
e ri ao pensar nessas coisas, ou uma extrema ignorância nossa ou uma covardia ainda maior.
Mas tem gente ali insatisfeita em falar de serviços, porque estão desempregadas e porque isso
não determina o homem. Estão certos, ele sorri e deixa rolar ao lado a garrafa de cerveja, de
barriga para cima começa a se contorcer feito minhoca. Falemos então do que determina o
homem. Cala a boca, ouvem-se os gritos. É que tem coisas que não precisam ser ditas em voz
alta, que aí se tornam cansativas, e é claro que nem tudo precisa ser explicado para ser
entendido. Alex ouve os gritos e presume estarem fazendo uma bagunça e tanto, e ele já não
consegue distinguir as pálpebras das cortinas. O albatroz passa voando uma nova vez. O
albatroz serei eu depois de acordar.

310
O bonsai não devia estar aí, ele o inspira uma paz tão invejável, uma tranqüilidade tão
inabalável que a sua vontade é de levantar-se e esmagar os seus galhos com a palma das
mãos, rugir e sorrir ao vê-los trincando. Antes estivesse fazendo uma terapia, que então diria
doutor, você sabe que sou louco, certas horas os loucos não podem evitar. Pare. Olhe um
pouco ao redor, dê-se conta de onde está, realize, comece pelo som enojante de pêndulo,
deve mesmo ter sido posto aí para mantê-lo sedado, seus olhos agora estão se fechando, está
sendo hipnotizado etc. Ele pensa nessa possibilidade e ri de levinho, mas por todos os efeitos
o esconde porque o doutor sentado logo a frente está terminando as suas anotações e pode
não gostar. Não por ser doutor, mas provavelmente por ser um pouco chato, que a rispidez
deve ser mesmo a melhor maneira padrão e mais funcional dos outros se tratarem. Ele pensa
em se queixar do sono, mas não deve ser esse um sintoma crucial de alguma coisa que vá
importar a alguém. Ele pensa que o sujeito a sua frente pode ter se tornado áspero por causa,
por exemplo, de ter dado muitas notícias sobre morte, porque ele mesmo, por exemplo, se
tivesse de noticiar alguém que está morrendo ou que um parente na sala de operações acaba
de falecer com o estômago aberto, bom, ele crê que se sentiria um pouco mal, de forma que
provavelmente trataria isso da maneira menos terrível possível para não agravar os efeitos. É
que nem aquela piada mais ou menos assim, levantem-se todos aí na enfermaria que têm o pai
vivo, não, você não. Ele pensa que depois dessas anotações o médico possa estar se
preparando para anunciar friamente sua sentença de morte. É o pretexto que precisa para
começar quebrar a tudo, a começar pelo bonsai.
– Eu tenho câncer? – pergunta.
– Ainda é cedo para afirmar – por favor, pare de anotar e dê um pouco de atenção.
Olha para os próprios dedos como quem diz não reservar muita atenção a um assunto fútil
como esse, até perceber que isso é imbecilidade, e já não sabe como se comportar, isso nunca
foi característica sua, mas os lábios estão tremulando agora enquanto ele imagina forças
microscópicas destruindo o seu corpo e roendo cada vez mais a sua vida, dessa vez é coisa
digna de se ter um diagnóstico.
– Como posso ter certeza?
– Talvez seja enfisema pulmonar.
– Enfisema – repete.
– É bastante conhecido popularmente, hein? É quando os tecidos dos pulmões são
gradativamente destruídos, eles – gesticula, e ele pode se ver dentro dos próprios pulmões em
meio a manchas negras e rostos demoníacos – ficam muito distendidos.
– Acho que entendi.
– Como essa doença ocorre nos alvéolos, que é onde ocorre a troca gasosa do oxigênio
pelo dióxido de carbono, é muito comum como sintoma do enfisema – ele pára e boceja um
pouco –, desculpe, a falta de ar em algumas ocasiões.
– Sei.
– A boa notícia é que você é jovem, geralmente são tabagistas de longa data, que já têm
os seus sessenta e cinco anos, que começam a demonstrar os sintomas. Devo até lhe dizer, só
vemos por aí campanhas para erradicação do fumo, dessas que colocam nas carteiras de
cigarro fotos de gente com câncer de língua e coisa assim, puxa, mas enfim, só colocam essas
coisas porque o sujeito que está com enfisema não morre imediatamente, mas fica de três a
quatro anos usando o serviço de saúde pública, e esse é um grande problema. Por que não
erradicar logo o mercado tabagista?, e perder o ganho com impostos?, tá louco. As coisas são
assim.
– Tenho dinheiro, não preciso usar o serviço público – não está muito certo do que diz.
– Para sua sorte. Eu só estava refletindo – e volta a anotar.
– Isso quer dizer que vou morrer de três a quatro anos?
– Não, não me entenda mal. Estava me referindo aos senhores de idade – pausa uns
instantes. – Há quanto tempo você fuma?
– Desde cedo. Desde os doze ou treze anos.
– Hum.
– Como ter certeza?
– Bem – coça o queixo –, faremos alguns exames complementares, radiografia e
tomografia computadorizada do tórax, exames de sangue e espirometria.
– Espirometria – repete com tom de pergunta.
311
– É um teste – gesticula amplamente mais uma vez – que mede a capacidade de ar que
têm os teus pulmões.
– Certo.
– Há também a possibilidade de ser o carcinoma brônquico.
– Puta lixo.
– Calma, este é um sinônimo para o câncer.
– E eu devo me sentir calmo com isso?
– Não sou preparado para te responder isso – e deve estar refletindo, é isso que ele faz por
alguns segundos –, mas sei te dizer que o câncer de pulmão é o mais comum dos tumores
malignos. Cada ano, mundialmente, sua incidência cresce dois por cento. O cigarro continua
sendo responsável por noventa por cento dos casos de desenvolvimento desse tumor.
– É o meu caso. E quanto ao tempo de vida?
– O senhor não tem por que se precipitar, senhor Alex. Iremos fazer as coisas da melhor
maneira possível, ambos queremos o melhor para você. Agora preste atenção, vou te listar
uma série de sintomas e o senhor terá de me confirmar, certo? Antes que façamos uns exames
mais detalhados, certo?
Ele acena que sim.
– Tosse persistente ou mudança no pigarro usual do fumante?
– Sim, atualmente tenho tido uma tosse – tenta procurar um adjetivo para descrevê-la, não
o acha e apenas gesticula algo podre.
– Certo, certo. Encurtamento da respiração?
– Às vezes me falta o ar – abaixa a cabeça. – Estou com câncer.
– Escarro com sangue?
– Não, isso nunca.
– Rouquidão?
– Talvez.
– Sente dores no peito quando respira profundamente?
– Não sei te dizer, acho que não.
– Alguma perda de peso registrada, perda de apetite?
– Até tenho me alimentado bem.
– Certo, certo. A ressonância magnética nos ajudará bastante. Faremos também um
exame cito-patológico do teu escarro, esse é um exame relativamente simples, mas que nos
tirará todas as dúvidas.
– Não sei, não estou me sentindo muito bem.
– O senhor quer que eu peça à moça da enfermaria um calmante?
– Quais as chances de sobreviver?
– Não é melhor que antes façamos os exames?
– Eu gostaria de saber.
– Há diversas técnicas desenvolvidas de tratamento, se for o caso de você realmente estar
com câncer – ele pára e boceja por mais uns instantes –, desculpe, há tanto o tratamento
cirúrgico como por radioterapia ou quimioterapia. Em todo o caso também podemos combinar
todos eles.
– Entendi.
– Só com os exames poderei definir um quadro mais apropriado. Mas o senhor deve saber
que deveria ter recorrido antes a um médico, senhor Alex.
– Eu sei, é que eu estava outro dia em casa – pensa segundos – e tive uma crise de tosse.
O ar apertava minha garganta, a senti se fechando com um gosto muito ruim na boca. Nunca
me senti assim depois de fumar, fiquei até um pouco assustado. Aí a minha – pensa
novamente – amiga, que mora comigo, ela que fez questão, insistiu tanto que eu tive de
prometer que viria.
– Sugestão bastante responsável.
– É, eu sei.
– E a sua pressão, como anda?, tem problemas de pressão?
– Oi? – pensava em outras coisas.
– Histórico de pressão alta, sim?
– Faz uns anos que medi e estava um pouco alta, mas o doutor disse que era tolerável,
que podiam ser coisas da vida.
– Devia tirar com mais freqüência.
312
– Desculpe.
– Tire a sua roupa e vista aquele robe.
– Oi?
– Vou te pesar, coisa assim.
Foi se sentindo como um carburador furado, um motor revirado e com as pecinhas que
antes rodavam agora precisando serem engraxadas, que ele deixou o hospital e foi ter com as
ruas como se em nenhum outro lugar que fosse conhecido pudesse obter uma privacidade
como essas, que é tudo que no momento ele precisa. Para ser bastante sucinto, ele se diz, me
sinto um lixo, desses que são revirados por cãezinhos magricelas ou por mendigos. É
engraçado que pelo menos o episódio de hoje foi bastante para amortecer a sua ansiedade de
fumar, que cada vez que pensa nisso, não exatamente por vontade, mas por vício mecânico e
não orgânico e também para se testar, lhe vem também um arrepio ziguezagueando nas
costelas, e refletindo sobre essas coisas ele pára e pensa que essa coisa da morte é muito
incrível. Todos estamos condenados etc, se há uma única certeza na vida essa é a morte etc,
toda sorte desse tipo de coisa que dizem por aí, mas ainda assim é um pouco incomparável a
uma autoridade chegar a você e falar com todas as palavras, você vai morrer por tal e tal
razão, no caso não há exatamente nada definido, mas ele está certo de que tem câncer de
pulmão, ou seja, agora ele sabe que morrerá disso e caso não queira, o que geralmente não se
quer – e pode tirar daqui diversos temas interessantes – terá de se submeter a tratamentos
estranhos, provavelmente passar mal diariamente e perder cabelo etc. Tudo isso para adiar um
pouco mais a morte, é claro, porque não pode compreender muito bem como se pode
assegurar qualidade de vida, como pode ser essa a questão, submetendo-se a processos
traumáticos como esses, enfim, façamos uma síntese de tudo que você pensou até agora,
Alex, desde o dia que você nasceu, e perceberemos que você parece ter sido educado em
outro mundo. Ele chega à conclusão de que o homem se sente mal quando não tem mais
esperança. Saber o dia e o como de sua morte é angustiante porque se opõe a esse princípio.
Então a gente prefere desconhecer as coisas e, ignorando-as, viver em paz, e esse
comportamento, não exatamente dizendo respeito aos seus fins, mas considerando os seus
meios, que é essa apatia que só deseja paz mas que se cega e cegamente afunda em ilusão,
já nos custou muito. E ele não será mais um a se repetir nos próprios erros que condena e, por
isso, antes de atravessar uma rua, a se esbarrar com a gente pela faixa de pedestres, ele mete
um cigarro na boca e o acende, inalando-o como quem desafia, mate-me se for capaz. Depois
de aproximar-se do gosto horrível que da outra vez sentiu e quase lhe voltar um novo acesso
de pigarro, ele pensa, mas que merda estou fazendo?, e tudo fica bem com um sorriso.
Na verdade hoje ele não pensa sobre coisas especiais, e aquela enxaqueca, que era
mesmo um pensamento com que ainda não se acostumara, tem sido temporariamente posta
de lado. Hoje ele se encarrega das coisas frívolas, como se pusesse uma trilha sonora bem
leve num toca-discos imaginário dentro do seu cérebro e a vida fosse compassada por ela, tipo
um sujeito sendo visivelmente assaltado por um trio de trombadinhas logo ali, numa viela da
esquina, passam a ser vistos por seus olhos no máximo como uma ironia da vida, algo que
ocorre, mas vê lá, é o tipo de coisa que acontece, não é tanto para enfeiar. Assim deu-se ao
luxo de olhar vitrines por aí como se não fossem elas feias e como se nada de enjoativo
tivessem. Põe um pouco da prática do velho costume de antes, observa as pessoas e imagina
quem são elas, mas desde o sorveteiro à atendente da loja de perfumes que o estava
esperando bem na porta para sugerir que comprasse alguma coisa à sua noiva, esposa,
alguma dessas coisas que ele não tem, não consegue entendê-los muito bem, que não
aprendeu a estudá-los durante o dia, não aprendeu a fazer uma coisa dessas que não seja
diante de caras já cansadas. Conhece os caminhos da cidade, sabe como tem de esquivar dos
pontos de ônibus, e dos ônibus que atravancam as sinaleiras e não deixam espaço para os
pedestres, e sempre há alguém xingando a caminho, sempre um que tenta vendê-lo alguma
coisa e algum com cara suspeita que deve estar vindo roubá-lo qualquer coisa, ao que ele
passa bem longe. O metrô, procurar desesperadamente um lugar, de vez em quando ter de
cedê-lo para alguém de idade por uma educação que não se pretende de fato por boa vontade
etc.
E então o Schneider. Chega tirando a jaqueta e convencido de que é um dia como
qualquer outro, e na verdade é mesmo, mas ele precisou de antemão se convencer de que
esse é um dia como qualquer outro porque anteriormente tinha se convencido de que esse era
o dia de sua morte. Não que esse não possa ser, não é porque está tranqüilizado de que seu
313
pulmão não vai implodir e de que não vai vomitar os alvéolos que algo pior não possa
acontecer. Mas, no momento, não há nada pior ou melhor que André a esperá-lo, também um
chope para ele, para os dois, que provavelmente o camarada pediu em consideração e o
deixou a esperar. André está com os botões todos desabotoados e o cinzeiro cheio de entulhos
deve lhe pertencer.
– Achei que tinha parado de fumar – vamos lá, que a julgar o contexto, um comentário
desses vem até com tom de súplica, mas Alex está se acomodando como quem despoja um
corpo velho para sempre.
– Voltei em segredo desde aquela noite – André justifica e enterra a guimba nas cinzas.
– Me sinto responsável – vira a cerveja.
– Não, tudo bem. Como foi o seu dia?
– Chato – a boca ainda cheia.
– Eu não fiz nada no escritório o dia inteiro – fala enquanto lê o jornal que lhe jaz no colo. –
Acabei organizando coisas para a sociedade.
– É?
– Pelo visto aparecerão três rostos novos no encontro de hoje – ele fuma
despreocupadamente.
– Da última vez – limpa a boca da espuma –, calculei que não conhecia pelo menos uns
cinco – pára alguns instantes, como quem não sabe o que falar ou está desconfortável. – Será
que tem gente que excedeu o número de indicados e nós não nos demos conta?
– Andei olhando isso, mas tenho quase certeza que não. Apenas não prevíamos como
tantos iam querer indicar os seus próprios. O aumento é assustador, porém é natural.
– Sintoma de iniciativa – fala em tom de quem não quer dizer nada com isso.
– É – e ele acata. – Organizei sugestões para a loucura de pelo menos quatro, hoje vamos
realizar ao menos a de dois. Nos encontramos no ponto de ônibus perto dos correios, lá pelas
onze.
– Talvez eu não vá – ele pensou em começar a frase com sabe o que é?, mas isso é se
submeter demais, antes se impor, que é assim e pronto.
– Por quê? – ele ergue os olhos. André não é menos sério.
– Besteira – pigarreia para disfarçar e curva as costas sobre a traseira. – É que hoje não
acordei me sentindo bem, coisa que passa, resfriado – coça a cara com expressão de cansaço
–, sabe como é.
– Você é quem sabe – abaixa os olhos novamente, parece não se importar –, mas você
andou faltando muitos encontros no último mês.
– Não é pra ser uma obrigação.
– Eu sei, mas é que isso torna inevitável que você acabe desconhecendo muita gente que
esteja entrando, é por isso. Chegará um dia em que você entrará no teatro e o verá
absurdamente cheio, e até encontrar seus velhos conhecidos vai ser uma guerra – sorri e
traga.
– Eu não vejo por que me preocupar, parte disso porque você mesmo se encarrega de
tudo.
– É preciso dar as caras, se não eles saem do controle.
– Como?
– Bem – e folheia o jornal –, é preciso pelo menos às vezes haver uma imagem que os
mantenha nas estribeiras. Vai que um que entrou agora recebe a notícia daquilo que aconteceu
– o fita por menos de um segundo –, a coisa de Martin e tudo mais. Se não houver quem
contorne o susto inicial, aquela coisa que arde que é princípio de medo, sabe?, tem gente que
vai simplesmente abandonar por nada, e isso é bobagem.
– Se quiserem sair, que saiam – afirma curiosamente.
– Alex, não é assim – tom de quem deixa um assunto indiscutível para lá.
– Como não é assim? – ri.
– Se podemos evitar isso, que é algo inofensivo de se fazer, isso de ajudar e orientar as
pessoas, por que não deveríamos?
– É coerção.
– Não estou impondo nada, não é uma coerção.
– Temos de estar cientes que nossa imagem de quem criou a sociedade, de quem esteve
no início e coisa assim, passa uma responsabilidade que pode ocasionar em coisas que não
prevemos.
314
– Tipo como?
– Podem achar que estamos lá para guiá-los.
– Ora – ele quase ri, mas chega a ser uma bufa meio esnobe –, é claro que isso não está
acontecendo. Mas e se a situação nos dá esse poder, não é certo que o usemos?, e eles
aprenderão conforme as necessidades da vida. Tomando na cara caso seja preciso.
– Quem pode acabar tomando na cara é você.
– Diabo, Alex, que preocupação é essa? Do que você tá falando?
– Por te entenderem errado eles podem acabar se levantando contra você. Juntos eles são
mais fortes.
– E por que fariam isso? – se curva sobre a mesa.
– Talvez você tenha sido um pouco autoritário.
– Eu? – se aponta. – Por quê?
– Querer dizer o que é certo, como eles devem fazer as coisas, como devem se comportar.
– E quando eu agi assim, Alex? – pergunta com espanto.
– Isso está implícito no comportamento moderador.
– Minha pergunta persiste, quando eu agi assim?
– Por que chegou daquela vez espancando Martin?
Ele ergue os ombros e esbugalha a cara.
– Bati porque o vi num estado deplorável, humilhante, e aí eu quis – e ainda faz a
concessão de responder o óbvio.
– Me pareceu que queria calá-lo.
– Bem, eu queria, mas sabia que não poderia fazer por muito tempo. Então me aliviei
previamente e esperei pelo pior, descontei antes do inevitável acontecer para não precisar
fazer depois.
– Não sei te explicar, não sou bom nas palavras como você – move as mãos de qualquer
jeito para representar qualquer coisa. – Não sei, às vezes você aponta as pessoas de um jeito,
de um jeito, ah.
– Não se faça de humilde, quando você tem o que dizer você sabe fazê-lo muito bem. E
agora eu realmente não estou te entendendo.
– Por que, por exemplo, você quis reter toda a organização da noite do hotel para você?
– Como é? – cara esbugalhada novamente. – Ainda preciso responder isso? O dinheiro
roubado – isso ele fala bem baixinho – ia pesar nas costas de quem? E a sugestão...
– Eu sei, foi minha – Alex se retorce e mingua.
– E então? – incentiva-o com as mãos.
– Nada. Mais bebida.
– Isso o está incomodando? Se estiver pode dizer, e vamos conversar.
– Não está me incomodando, esqueça.
– Calma, não precisa se irritar, estou tentando colaborar, não sei bem ao certo com o quê,
mas estou disponível.
– Mas que merda – murmura rudemente –, já ficou claro que deve ser mesmo impressão,
então deixe esse assunto de merda pra lá.
– Você tá com ciúmes?
– Como é? – agora a cara a esbugalhar é a dele.
– Não entenda mal – ele apazigua com as mãos –, ciúmes por eu estar atuando mais
diretamente com os novos indicados, estar acompanhando mais de perto. Porque, se for isso,
você tem que saber que é somente porque você não está tão presente, e...
– Pode parar – levanta as mãos dizendo que não quer mais ouvir. – Que coisa absurda –
meiosorri. – Não vou me enciumar por uma coisa dessas.
– É que pareceu.
– Tenha santa paciência, porra.
– É você quem tem agido de modo estranho – e põe o fumo novamente na boca.
– Eu? – aponta para si e pensa que era o que lhe faltava, entrar numa guerra de sofismas,
como se não bastassem os seus próprios mal formados. – Agora você tá parecendo Júlia,
sinceramente. Se não estivéssemos sozinhos eu juraria que ela está buzinando no seu ouvido
algumas idéias desse tipo.
– Essa sua implicância por Júlia também tem que parar.
– Implicância? Estou mentindo?, diz.
– Não a estou inocentando, veja bem, mas isso não o torna menos culpado.
315
– Pelo amor de deus, pare de agir feito diplomata, me xingue de uma vez.
– Não é porque estou tentando pôr as coisas nos eixos que estou sendo diplomata.
– Não, é porque está agindo feito ela que está sendo angustiante – e simula arrancar os
próprios cabelos, o que André não parece receber muito bem.
– Vamos parando por aqui – diz seriamente, então.
– Tudo bem, mas me diga se ela andou te pedindo alguma coisa, por algum motivo do tipo
eu ter mandado ela ir à merda porque ela não estava ajudando em nada e queria atrapalhá-los
na sociedade, coisa assim.
– Não, ela não andou me pedindo nada, e não é Júlia o problema.
– Sou eu, então? – evitou o clichê da pergunta, então quem é?, ao que ele responderia
quase certo com tom de close, você.
– Na sociedade não existem problemas – mas é isso que responde após tirar o cigarro da
boca. – Tudo é permitido.
– Mas foi você que agora há pouco disse que se pudesse intervir em alguma coisa, na
verdade se pudesse intervir nesse tudo supostamente permitido, não veria mal em fazê-lo, se
tivesse poder.
– Depois – ele tosse e ri levemente – você diz que não sabe usar as palavras.
– Ou será que esse tudo permitido nos permite, inclusive, escaparmos da liberdade?
Estaríamos realmente, pela primeira vez, sendo livres para então abrirmos mão da nossa
liberdade?, e levarmos a dos outros junto?
– Agora acho que você está exagerando.
– Tudo isso nasceu de um grande exagero.
– Eis aí um exagero inoportuno.
– É muito difícil julgar uma coisa dessas.
– A ordem do dia é questionar.
– Mas não por isso achar que necessariamente se terá a verdade.
– As mentiras não duram por muito tempo.
– E nós, estamos durando muito tempo?, não temos os primeiros sintomas de falha?, de
que a espontaneidade da sociedade será de se dissolver?
– Está querendo deixá-la, Alex?, é isso?
– É claro que não – responde sinceramente. – Mas a ordem do dia é questionar. Se eu não
for capaz de questionar o que está dentro, a começar por nós mesmos, só terei me iludido.
– É, acho que esse assunto todo só foi mesmo um leve desentendimento.
– Não diga isso, ele teve lá seu fim e sua validade.
– E qual acabou sendo, afinal?
– Sinceramente, eu me perdi – põe a mão na testa e suspira.
– Então, por via das dúvidas...
– É. Por via das dúvidas não deu em nada – suspira mais uma vez.
– Não fique assim, isso tudo foi um pouco denso demais. Mais um chope, eu pago.
– Não, não, obrigado. Acho melhor eu ir embora, a enxaqueca voltou, e está de matar.
– Mas já? Tem certeza de que não irá ao encontro? Parece que um hoje terá que entrar
num hotel de luxo e cagar no carpete da recepção.
– Isso não me motiva muito.
– Temos de concordar que as loucuras se tornaram mais interessantes que andar vendado
na rua e deitar no meio da avenida.
– Não seja anacrônico, mudanças vão ocorrendo, percepções vão mudando.
– O que não muda – e ri – que defecar num carpete guardado de seguranças deve ser algo
imperdível...
– É verdade, tire uma fotografia. Se a dor de cabeça me permitisse, sabe como é.
– Como quiser. Tome uns analgésicos.
– O farei, pode deixar. Então boa noite.
– Peça para Carla cuidar bem de você.
– Sim, claro. Boa noite, André.
– Boa noite, e cuide-se, Alex.
Foi-se embora todo rudemente confuso, porque se mantinha aquela impressão inegável de
que ainda há algo de muito errado, mas por uns instantes se convence feito bobo de que não,
aí fica todo aturdido, porque se alguém o convenceu tão bem do contrário do que o está
incomodando, deve ser ele mesmo o errado, que ainda é adepto das coisas racionais e
316
repugna o romantismo de se dizer, sinto que algo está errado por mais que pareça certo, e
ponto final. Mas ele sente que algo está errado por mais que pareça estar certo, nesse caso
impõe umas reticências, e aí tudo bem. Pois é, mas talvez essa insatisfação com André seja
mesmo apenas uma implicância, vai lá, que se duvidar é até mesmo a crua realidade que ele
percebeu e você não quis admitir, que é um tipo de inveja, não, ele não usou exatamente esse
termo, mas o outro queria significar isso, tanto que não tem mais importância literal, e de
repente é isso mesmo, inveja. De repente ele acabou, Alex, fazendo as coisas melhores do que
você, que você, que deu um fôlego necessário às coisas e tudo o mais, que nada disso existiria
sem você, ora. Então o que você sente pode ter mesmo lá seu fundo de verdade, e André
agora seja uma marionete dos jogos de conveniência de Júlia, que é tipo o mal primordial. Foi
por isso que ela voltou, tire Júlia do seu caminho, Alex, se bem que isso não é exatamente
justo de se fazer, talvez lhe seja essa moral um problema, essa irritação sobre a justiça, ou
talvez seja mesmo melhor atraiçoá-la, pegá-la pelas costas, por exemplo, numa das reuniões,
estuprá-la, depois afirmar cuspindo na sua cara que foi você quem escolheu estar aqui, sua
puta, e eu, se estou aqui é para ser livre, e fui, e é isso. Isso seria uma droga completa. A
plenitude da sociedade só vai ocorrer no momento em que seus integrantes se desvencilharem
dos valores mais básicos, como os laços da amizade ou a palavra que se deu. Quando, então,
não se agüentarem mais. Que mundo horrível ele rascunhou nos seus horizontes.
E ele também está começando a praticar essa ruptura, a se desvencilhar, naturalmente
realiza a quebra que previu e deixou-se contaminar. E está se permitindo deslizar. É o que
acontece no caso do convite de Hugo, aquele motorista de outra ocasião, e Alex aqui
reconfirma que, como todos já devem saber, não conheceu aquele sujeito senão pela
eventualidade de uma carona encomendada por um burguês medonho que nunca mais em
vida deve ou deseja ver. Alex deseja se justificar e catalogar suas loucuras, que catalogar é um
meio de depois pôr-se a relembrar e rir.
Imagine você, no auge de uma coisa louca que anda fazendo, a coisa louca é a sociedade,
e a anda fazendo nas escondidas, ainda melhor, e é essa coisa louca uma coisa que precisa
de mais gente, e toda gente, como já nos é comum saber, gosta dessas coisas ilegais, que
toda liberdade é passível de crime, e não seria crime o que é se não nos fosse atraente, e é
mais atraente ainda quando além de ilegal passou a ser errado, sussurrado e acompanhado de
risinhos no escuro. Certo, você está no auge da tal coisa louca que anda fazendo, e está
assinando o recebimento de seu contra-cheque na recepção do escritório, e se lembra que
infelizmente trabalha para um centro comercial gigantesco, desses prédios espalhafatosos e
com burocracias para ir de um corredor ao outro, e se dá conta que podia ter se metido numa
situação muito pior, tendo de usar terno e gravata todos os dias. Mas você apenas tem de estar
na recepção do departamento de relações humanas, retomando, e pensa em flertar com a
moça de cabelos curtos enquanto assina um formulário para criação de conta bancária, porque
você precisa de uma se quiser receber o seu salário, e você não pretende trabalhar de graça. A
moça de cabelos curtos prende sua atenção mas não está nem aí para você, que ela tem os
seus formulários muito mais importantes, e até as coisas da vida dela parecem um bocadinho
superiores, é o tipo de moça que apenas se expressa a nós, os vulgares, que é feita para nos
atender e se submeter caridosamente aos nossos problemas mundanos, que ela é toda
cheirosa, bem-vestida, é feito comissária de bordo, que nos serve com um tom de piedade, e
talvez tira o fone do gancho e fala direto com a direção, os sujeitos mais importantes, que não
são você, e você chega e diz, olá, vim pelo salário, e ela te põe um formulário na frente numa
ausência de palavras que quer dizer algo próximo a um anda logo. Você pensaria em arrancar-
lhe o sutiã com a boca e dizê-la, quem é que manda aqui?, eu sou o capeta na terra!, você
talvez não, mas Alex sim, e tendo dito isso, é de fato o que ele pensa, e é isso aí. Aí o
motorista que nem deve reconhecê-lo também recosta-se no balcão, só o viu uma única vez e
se foi muito foi pelo retrovisor, e inesperadamente o conquista a simpatia quando se põe ao
lado e toma a iniciativa de sorrir-lhe camaradamente, as pessoas deviam mesmo sorrir mais.
Ele olha para a moça que, da mesma maneira que não retribuiu o seu olhar, é claro que não
vai retribuir ao dele, são todos farinhas do mesmo saco. E ele pede o mesmo formulário do
salário. Não teria a idéia de convidá-lo se assim que a mulher abaixasse a cara não o tivesse
visto fazendo caretas. Ele também devia pensar aquela coisa do sutiã.
Mantém na cabeça as coisas com as quais se empolga, o endereço espiado do formulário
do motorista foi uma delas. Conhecendo pouco o indicado de repente é até mais emocionante,
pondera. Depois se vai, uma semana após a carta e o tal do livro chegarem, ele o ligará.
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O cão de uma daquelas vizinhas abre o berreiro, ou melhor, berreiro é coisa de choro de
criança, se bem que serve para conceituar algazarra, sendo essa uma, então está bom, o cão
abre o berreiro assim que ele põe as patas, não o cão, mas o próprio Alex, no último lance de
degraus para chegar ao corredor de sua casa. Pensa em mais tarde atirar um bife envenenado
janela adentro dali, enquanto a vizinha dorme e o cão lhe fareja. Se bem que não é muito
provável que consiga, que assim que saísse de casa o latido já estaria chamando a polícia. Aí
enfia a mão nos bolsos, ele comprou chicletes outro dia, de repente se lembrando dos chicletes
ele pensa em comprar daqueles que tiram a ânsia de nicotina, que é do que ele precisa, ou
melhor, do que não precisa. Mas o que ele quer mesmo agora é só a chave. A acha feliz por
não muito tentar, enfia uma, duas, três, enfim, a merda da tranca que continua emperrada, um
dia ele arromba isso e liga para o verdadeiro dono dizendo que entrou ladrão.
– Essa merda de poodle não pára de latir – já entra reclamando. – Odeio poodle.
– É um cocker spaniel – diz a voz do sofá, e é bom para o feng shui de hoje que Carla
continue ali.
– Que seja, late parecendo uma gralha e deve pular nos tornozelos das visitas e ficar
trepando – se despe e põe a mão na cabeça como se a dor estivesse explodindo numa
hemorragia de sangue esguichado, mas ela nem lhe deu atenção, que agora ele só está
tirando as roupas e atirando-as para qualquer canto, tenta mirar o sapato no abajur para
derrubá-lo e fazer ela brigar consigo, mas não acerta o alvo. – Esse negócio da velha do
cachorro sempre estar na janela também é um saco. Sempre que o cão late ela vai olhar quem
está entrando e saindo, se bem que quando saio o cão nem se importa tanto, afinal tudo que
entrou terá que sair, e isso não torna a vigia muito mais completa.
– Na verdade não é uma velha, é um senhor.
– Hoje você está pra me contrariar, hein? – passa por frente da televisão, deixa a jaqueta
sobre a cadeira –, eu já vi a velha várias vezes, sempre aparece pra espiar quando eu tô
chegando.
– Está enganado, é um senhor. É que você não enxerga nada de longe e confundiu.
– Então é um homem com cara de velha. Certamente eu tenho mais razões do que
pensava para implicar com sua vida.
Ela não o responde e ele não gosta muito disso. De repente é porque ele não notou no
cabelo novo, não reparou nele cortado de um jeito diferente e tudo mais, ou é nas unhas
pintadas de vermelho, que mulher tem dessas coisas, então ele a olha mas só a vê enroscada
nos lençóis e encolhidinha no sofá como não lhe é novo, e não vê nada diferente que pensa xi,
a mudança é menor do que eu previa. Fica prestando atenção até não mais agüentar e desistir,
mas acontece que por esses instantes gostou de olhá-la no sofá, há alguma coisa de artístico
nisso, é algo que possa gostar de fazer mais vezes daqui em diante. Ele senta-se na cadeira e
folheia como quem não quer nada uma revista que lá está aberta.
– E aquela entrevista de emprego? – pergunta. – Como foi?
– Não consegui – ela responde.
– Falaram que você é qualificada demais?, eles falam umas besteiras assim.
– Não lembro o que falaram.
– O que está passando aí na tevê?, parece ser tão interessante.
– Novela.
– Você está bem concentrada.
– Sorte que você percebeu.
– Certo. O que eu fiz? – meioergue os braços. – O que foi dessa vez?
– Nada.
– Como nada?
– Eu só estou assistindo a novela, nem todos os motivos das pessoas dependem ou
gravitam em torno de você.
– Tá vendo?
– O quê?
– Essa filosofia rude.
– Como assim, filosofia rude? – ri sem paciência.
– Essa coisa de que as coisas não gravitam em torno de mim.
– E por um acaso gravitam?

318
– Não é o que eu estou falando, mas como é que o comentário sobre a concentração em
uma novela pode gerar um comentário como esse se não houver previamente algo errado,
uma mágoa, um rancor, sei lá?, me explica?
– Você perguntou o que você fez, foi isso.
– Continuo perguntando. Por que as pessoas não são mais fáceis?
– Quais das duas você quer que eu responda?
– A primeira, pelo amor de deus – junta as mãos numa prece.
– Respondo-lhe, você não fez nada.
– Então o problema é esse.
– Como assim?
– Às vezes as pessoas ficam estranhas com as outras porque elas não fizeram nada, ou
seja, deixaram de fazer alguma coisa que importava. É meu caso?
– Talvez seja, Alex – meiosorri toda esnobe.
– Desculpe se não percebo essas coisas, mas se for isso você deve me contar.
– Eu não te devo nada – bufa de raiva –, agora entrou nos comerciais.
– Eu sei que não deve, foi maneira de dizer – suspira como quem cansa de ser bonzinho,
aí prefere a chantagem emocional. – Acho que estou com enfisema pulmonar.
– Você fuma igual a um porco.
– É isso que você me diz? Eu disse que estou doente, e é isso?
– Não faça drama, Alex, você sabe o quanto fuma. E isso é coisa que tem tratamento.
– Tem nada.
– Tem sim, pare de agir feito criança.
– Agora responde a segunda pergunta.
– O quê? – está começando a se enervar.
– Por que as pessoas não são mais fáceis?
– Ah – e suspira com tom de meu deus, como tenho de ser paciente –, é só que elas não
são o que você quer delas. Exigir isso seria demais.
Ele se levanta e se põe rastejando pelo carpete até à beira do sofá, aí a pega pelos
pezinhos e os põe nos ombros. Vai boliná-la um pouco, que o que ela deve estar precisando
mesmo é de um pouco de atenção masculina, e isso, por mais que se use como argumento,
não é coisa de gente insensível, que essa desculpa é coisa da mulher egoísta, que quer que o
homem seja completamente altruísta, que se dê totalmente a ela e não possa ganhar de
maneira alguma mesmo quando o que deseja é fazer o bem. Ele quer fazer o bem quando a
mete as mãos nas cochas e começa a apertá-las.
– Alex, o que é isso? – ela ri de inesperado.
Aí ele a morde na perna e dá-lhe um chupão.
– Ai, Alex, pára com isso, que coisa sem noção – ela tem todo o jeito de estar gostando,
mas ao que ele põe a língua para fora e vai subindo por seu joelho, lhe vem um tapa de algum
lugar que não pode ser de outro senão dela, e não lhe acerta senão na cabeça, forçada a parar
com a obscenidade para se coçar.
– Você não era assim comigo.
– Que coisa – ela resmunga inibida e encolhe-se toda, puxa os lençóis e fica escondida.
– Eu gosto de você – ele diz inesperadamente até para si próprio.
– Como andam os amigos do jantar daquele dia? – ela o sobrepõe.
– Como é? – curva a cabeça para trás. – Por quê?
– Nada, estive pensando sobre eles.
– E pensando no quê? – abraça os próprios joelhos.
– Desde quando você liga para o que penso?
– Seja mais fácil. Desde que você pensa algo relacionado a mim.
– Ah, certo – ela ri. – Nada, apenas estava pensando que vocês todos pareciam íntimos e
você não fala muito sobre eles. Essa é a questão, você não fala sobre você.
– Se é assim é porque eu não vejo nada interessante para dizer, digno de menção, essas
coisas.
– Mas as pessoas podem querer saber.
– Nesse caso elas perguntam, certo?
– Estou te perguntando.
– Perguntando o quê?
– Espere, deixe-me pensar.
319
– Está vendo?, nem você sabe ao certo.
– O que você faz quando sai às noites? – é claro que ela já tinha um plano.
– Já conversamos sobre isso. Gosto de sair, às vezes vou em bares, às vezes ando a
esmo, olho as pessoas, me embriago um pouco e volto – e olha que não é de todo mentira.
– Por que não posso sair contigo?, sempre que eu sugiro de fazer algo, você arranja uma
desculpa pra me dispensar, tanto é desculpa que eu te percebo nervoso.
– Gosto de curtir minha solidão, e ter que dizer isso me põe numa situação um pouco
desagradável.
– Curtir a solidão é o que você mais faz.
– Nossa.
– O quê?
– Uma ofensa tão verdadeira quanto essa são poucas as vezes que ouvimos.
– Não foi a intenção ofender, é claro, desculpe.
– Não, tudo bem.
– Mas isso não muda as suas desculpas.
– Agora eu já as mudei, já justifiquei.
– Trocou uma por outras.
– Mas que coisa.
– Tudo bem, apenas não diga que para alguém se conhecer basta que se pergunte.
– É verdade, não basta, você me convenceu.
– E eu também não pergunto mais – ele tenta boliná-la mais uma vez. – Mas pára com
isso, que saco!
– Não é o que você queria?
– Não.
– O que eu fiz?
– Nada! – grita.
– E é esse um problema?
– Meu deus, você é insuportavelmente chato.
Agora ele se cala magoado, de braços cruzados, de rosto abaixado, assim ele olha na
direção da televisão, que vai passar a assisti-la emburrado, assim. Pensa com rancor, ou
melhor, o rancor é quem pensa ou o que o faz pensar no diálogo de agora há pouco, mas isso
tudo só dura alguns instantes, que assim que ia começar a resmungar vê uma mancha negra
na televisão, parada e disforme, que esteve ali para ficar na tela durante alguns segundos até
voltar a iluminar a sala com imagens dinâmicas, mas isso não muda o fato de que viu algo
familiar. E só segundos depois se assusta.
– O que era aquilo na tevê? – volta-se para Carla uma vez mais.
– A imagem, você diz?
– É, a imagem.
– Tem aparecido toda vez que dá o intervalo. Vou aumentar o volume pra você escutar.
– Estamos convencidos – diz a voz do entrevistado na tevê – de que tem relações diretas
com o aumento da criminalidade e os saques generalizados nas periferias.
– Não pode ser – ele murmura.
– O quê?
– Sh, deixa eu ouvir.
– O chefe-de-polícia Dimitri – o nome combina com a sua imagem, que passa a aparecer e
ser assediado pelos flashes da fotografia, e pela expressão do rosto ele não gosta mesmo
muito disso, é um sujeitão todo magro e amargo e com apresso formal, é quase um diabo, de
traços aterrorizantes, finos e terríveis, desses que aparecem nos pesadelos, que conhecem
calabouços cheios de dossiês secretos, desses que já torturaram muitas pessoas há um tempo
atrás, e ele tem cara de que esteve entre eles dando uns palpites bem cruéis –, afirma que há
uma rede clandestina atuando em diversos focos do subúrbio e os incitando a vários gêneros
de práticas subversivas, que têm sido desde o depredar de igrejas e outras classes de
desrespeito religioso – aí aparece uma santa com bigodes –, até o saque de estabelecimentos
comerciais. Por favor, o que o levou a chegar a essas conclusões, a essa teoria de
conspiração?
– Olha, está pra aparecer de novo – Carla diz.

320
Quando a imagem do retorno à escuridão aparece na tela, ele põe a mão na testa e
entreabre a boca, uma palavra quer escapar, mas só consegue chegar aos pensamentos e diz
mais ou menos o seguinte, é, fodeu.

321
Alex agora precisa repassar algumas de suas memórias mais importantes e talvez as mais
decisivas, e elas estão acorrentadas umas nas outras porque não há como, por exemplo,
separar a coisa da noite fatídica do hotel, aquela em que morreu uma certa garota, se bem que
crime já não se sabe mais se isso realmente foi, já que crime é somente uma coisa da qual se
lembra e que se faz diferença, e a diferença que foi feita agora reside no passado, mas enfim,
não há como separar os eventos daquela noite, que são também conhecidos como operação
rua, do roubo à firma de André – idéia brilhante que só um certo alguém poderia ter tido, mas
jura que no princípio foi apenas brincadeira –, e também do jantar de confraternização, do
inchamento do teatro de cada vez mais indicados etc, coisa assim. Agora inchado mesmo está
o seu cérebro, com todas essas coisas para pensar e com tão pouco tempo, que coisas muito
importantes parecem estar palpitando no andamento das coisas, e elas não vão esperá-lo por
muito tempo para que venham aí. E assim, meu pobre Alex, outro dia você estava preocupado
com aquela coisa filosófica de ser ou não ser, isto é, portar-se ou não portar-se de tal maneira
em relação a sociedade, estarei, ó céus, você se dizia, desvirtuando-me ou não? etc, e se não
isso, os outros estarão?, mais etc. Assim como vemos historicamente entre tantas outras
coisas, a filosofia é deixada de lado porque ela não constrói muito nas emergências, a filosofia
é boa na paz ou para quem tem preguiça de fazer a coisa construtiva. Alex aqui abre uma
ressalva à preguiça e não a deixa por perder. Aqui vai ele retornando à escuridão.
Tudo começou, esse início é bem bonito, o que ele observa por alguns instante com a idéia
de que se suas memórias estivessem sendo escritas seria essa uma construção de período
que as pessoas gostariam de ler, mas se acaba por se alongar demais pode acontecer de
começar a ficar desagradável, então é melhor ele ir parando por aqui. Tudo começou, ele ia
dizendo, como não é muito de se espantar e não tinha muito que ser diferente, numa das
reuniões. Já tinha tomado muito ácido e estava doidão. Com muita gente não seria diferente,
sempre que olhava para o lado alguém estava caindo da ribalta, assim é bom que lhe rende
umas risadas. Se não estava caindo estava escalando, mas a graça final de tudo isso parece
ser a de se jogar mais uma vez. Têm aqueles que se entretém com isso. Ao que se percebe
Sylvia arrecadou mais membros para sua causa e junto a ela tem mais três casais trepando lá
ao fundo, do jeito que Alex se encontra encará-los é fascinante, por um instante são ondas
negras a espumarem coisas das entranhas de algum lugar, tudo parece ser a saliva de um
lugar obscuro que não se vê, a dinâmica da escuridão e tudo o mais, e o mundo é cada vez
mais veloz e quanto mais o tempo passa mais se acelera, que é para ele ver o fim como uma
ironia angustiante que vem marchando, quarto cavaleiro do apocalipse, montado e com coisas
para decepar-lhe, e vem cada vez mais rápido. Há o círculo dos que levam uma televisão, ao
que fazem uma certa sessão exclusiva de cinema, assistir a certos filmes estando malucão é
outra coisa, ao que não se demoram a fazer-lhe a releitura, porque geralmente se vê gente nua
passar com garrafa de bebida na mão tendo esquecido do que antes estava fazendo, é como
decidir ir ao banheiro e por alguma causa nojenta que não nos cabe ponderar ter esquecido,
afinal, o que fazia, e aí só resta vagar a esmo feito vida que precisa de um propósito. Tem
gente nua se derrubando sobre as poltronas porque levaram a sério um tal filme clássico que
alguém aí trouxe, parece ser coisa de guerreiros da antiguidade, tinham uns que lutavam nus
na lama e julgavam estar alcançando o máximo de suas virilidades, mas enfim, melhor não
reviver polêmicas tacanhas como essa, se bem que, ou há este conjunto de homens pelados
se divertindo à moda antiga ao saltar um por cima dos outros, ou seus graus de alucinação
começaram a revelar umas visitas da homossexualidade ao cérebros etc. Outro dia um ficou
inconsciente quando um engraçado meteu-lhe a garrafa na nuca, o mais interessante é que
depois ninguém o queria levar ao hospital, selecionar quem não estivesse rindo já foi difícil.
Outro dia foi ele mesmo que desmaiou com uma porrada de madeira pelas costas, não lembra
o que fez para merecer isso e supor uma razão não muda nada, mas então, ele acordou como
se a cabeça derretesse porém estivesse mais pesada do que nunca antes a sentira, e sobre
ele se debruçava o rosto de um garoto estranho e de uns outros preocupados, ao que o garoto
sorriu quando murmurou desculpas, que se excedeu. Não tem problema, garotão, a sua hora
irá chegar, que quem pelas costas fere pelas costas será ferido, a não ser que tenha a certeza
momentânea que pode pô-lo para dormir de uma vez só com um golpe corajoso pela frente.
León está enchendo o saco de todo mundo, as pessoas não o enxotam porque
provavelmente temem que ele carregue consigo uma arma de fogo, ele deve mesmo ter uma,
deve ser paciente o bastante para ainda não ter explodido ninguém. Alex não saberia
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descrever exatamente como foi o processo de reconhecimento entre Martin e Carina, se bem
que é um desses acontecimentos peculiares razoavelmente marcantes, mas nem tanto, que
estando por exemplo numa roda de amigos que não têm mais o que fazer, olha-se os dois e se
murmura coisas obscenas, do tipo, é, esse grandalhão não perde tempo, e aí movimentos de
lambida com a língua, aí terá sempre algum engraçadinho para confirmar, pois é, e de fato ela
tá com uma cara de quem quer. Eles se isolam do grupo como verdadeiras amigas, foi assim
que os percebeu e essa impressão o influencia por muito tempo, ou essa é a memória mais
distante que tem de ambos ou é a mais forte, a que sobrepôs a de qualquer outro momento em
que algo diferente acontecesse, de todo modo, quando não se sabe da verdade, sua versão
mais engraçada é preferível, ele pode apostar consigo mesmo quando se sente sozinho, e com
os outros quando se sente sociável, quanto tempo vai demorar para que ele a leve lá para o
fundo, junto dos escolhidos de Sylvia. Parecem um pouco recalcados, esses dois, eis a sua
última observação, antes de arrotar e esquecer o que pensa, que agora o que lhe vem é mais
ou menos o seguinte, é, o coma dessa vez está chegando, hei de acordar trinta e cinco anos
depois, um futuro alternativo me aguarda.
Ainda tem uns lá que inventam de misturar as coisas com filosofia, André geralmente está
entre eles, gosta de fazer suas analogias e compará-las com as dos outros, que a sociedade
segundo eles precisa de uma identidade filosófica, o que Alex acha muita redundância, ainda
assim já ouviu falar de uma tal de coisa epicurista, mencionam sabe-se lá o quê existencialista,
niilismo, não sei quem era niilista, niilista o caralho, aqui todos prezamos pela mais pura
vontade de poder, a destruição de tudo a coincidir com a nossa afirmação, para então nos
negarmos por completo. Um diz que pertencem à abadia da thelema, e uns riram depois dessa
menção, e então um deles entoa feito cânone, faze o que tu queres será o todo da lei, que os
espertos que entendem o que está sendo dito devem ter seus desimportantes motivos.
– Por que é que consideramos – pergunta um – a liberdade como um valor a que todos têm
direito, toda essa merda? – gole de bebida. – A liberdade às vezes é uma droga.
– É coisa de fé – responde outro.
– Outro dia – um pobre-diabo fuma – eu estava discutindo com a minha esposa essas
coisas bem corriqueiras, vocês sabem, esse tipo de coisa que se conversa antes de dormir,
comentei algum assassinato no jornal, sem muita pretensão e tudo mais. Minha esposa é
dessas pessoas que adotam aquele ponto de vista mais conhecido por todos, vocês sabem
mais ou menos como é.
– Não, não sabemos – um murmura e cai porque troca as pernas.
– Sabe sim – ele espuma –, é aquela coisa de dizer que a religião é boa porque a fé torna
as pessoas melhores, que evita que as pessoas se matem, ela me disse que sem a religião
seria muito mais fácil de uma pessoa matar a outra. Primeiro eu tentei ser legal, eu disse
assim, querida, as pessoas não deixam de matar umas as outras pela fé no bem, mas porque
têm medo do inferno e do que é muito mais real, a punição, e etc.
– Cale a boca, não queremos ouvi-lo.
– Aí ela disse que não tenho esperanças na humanidade, e aí, nossa, eu já perguntava pra
ela onde ela colocou na cabeça que matar era ruim, e ela disse que falando bobagens não tem
mesmo como conversar comigo. Ela virou pro lado e nem quis me dar, disse que estava
cansada, teve um dia cheio. Mas me chamou de enfadonho. Enfadonho, que merda de termo é
esse?, pensei em matá-la – coça a testa –, mas acho que me contento com o divórcio.
– Isso, estrague a sua vida porque sua mulher é séria, ainda que uma cadela, e você é um
problemático, um qualquer, um esterco que não vale nada.
– Eu devia tê-la dito que a liberdade só é boa para quem a suporta.
– Eis aí um grande dilema, nenhum visionário talvez seja capaz de respondê-lo com
certeza, vamos lá, a gente está pronto para viver num mundo livre?
– É impossível impor a liberdade para todos.
– Não se impõe liberdade, tanto é que esse termo é imbecil.
– Foi só ilustrativo, é claro, seu pedaço de bosta.
– Não me importa, foda-se – e ameaça matá-lo com um pedaço de pau –, quebre as
amarras, que a liberdade vem como um estado natural. Já disse o filósofo que estamos
condenados a ela.
– Então vamos nos condenar direito, o que o mundo nos faz é aliviar a sentença.
– Justiça seja feita.
– Qual o programa de hoje, hein?
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– Até chegarmos num momento iluminado onde realmente teremos a liberdade de abrirmos
mão da nossa liberdade, porque aí quereremos, sem que se previnam e desde sempre a tirem
de nós.
– É aquela coisa do homem ser lobo do homem, isso nunca mudou.
– Não me importo com nada disso, não é nada que possamos fazer.
– Estarmos aqui já é fazer alguma coisa.
– Não, isso é conversa de gente frustrada, e estamos aqui porque somos isso, uns
frustrados, não tem no que ver mistério, nada mais.
– Combater a tirania, a ignorância etc.
– Nem os seus filhos te respeitam!, e você me vem com esse assunto de tirania.
– Não dou com a mão na cara deles porque os amo, mas na tua eu posso dar.
– Ei, ei, vocês aí, calma.
– Que calma nada, deixa eles se arrebentarem, nós vamos é apostar.
– Qual o programa de hoje, hein?
– Quem é que tá perguntando essa mesma coisa a toda hora?
– É que podíamos ir para a rua, roubarmos uns carros, batermos num policial sozinho e
roubarmos as roupas, sejam criativos.
– Podemos tramar o assassinato de um político.
– Meu neto chegou em casa – começa a contar a mulher – e eu estava sem roupas no
sofá.
– Não, isso tudo é muito chato, vamos queimar umas lojas para criticar o sistema.
– Escutem, o que essa senhora acaba de dizer?, pelo amor de deus.
– Eu disse – ela continua –, que queria que ele visse tudinho, tudinho.
– Que porcaria!, que coisa nojenta.
– Ele chorou, trancou-se no quarto, disse ser a velhice.
– Alguém nos denunciaria, não confio nem em mim, nem em vocês, como saber se vocês
mesmos são confiáveis?
Aí começam os vários focos de burburinhos, nada fora do normal. Essa coisa de sair na
rua deve ser uma vertente de um espírito já cheio e que quer transbordar, isto é, feito balde
d’água que já se conheceu até as bordas e que tem como iniciativa básica sempre querer ir
mais adiante, é mais ou menos nesse momento que surge uma série de idéias para um jeito
novo de fazer as coisas, e com tantas cabeças a pensar, na verdade com tantas cabeças
incitadas a pensar coisas loucas, decerto não é pouca criatividade que se tem, saindo por aí,
vindo e indo para todas as direções.
– Devíamos nos espalhar, colar cartazes e folhetins.
– Ai, que enxaqueca.
– Que porcaria!, essa senhora, que porcaria!
– Descobertos nos vulgarizaríamos.
– Fechados nos aristocraciaríamos.
Mas na sociedade não há muito espaço para as teorizações. Essas coisas ficam para os
livros. A sociedade é muito diferente.
– Vamos chamar mais que sete pessoas, que minha cota já se encheu, quero ser livre com
isso também.
– Isso, estrague tudo de uma vez.
– Não sou proibido.
– Isso não te torna menos imbecil.
Na sociedade o importante é que continue havendo tumulto, e é para Alex como se
estivesse trancafiado na própria cabeça e tudo que ouvisse não fosse mais que sua própria
confusão, se está representada nesses alguéns de pouco importa, que já diziam os ditados
herméticos, ele os aprendeu e adora citá-los por lhe conferirem uma autoridade divina, que
dizem sobre o que está fora é como o que está dentro. Chega a um ponto em que não pode
mais distinguir caos na cabeça ou no teatro e tem a impressão de estar tendo revelações
cósmicas, pode também ser um resgate de memórias distantes ou, ainda mais espantoso, está
aprendendo a viver a memória dos outros. Noite escura, os prédios que são concretos que se
estranham, que estão aí desde sempre e se apagaram desde então, e entre os caminhos das
ruas que enveredam muitos corredores de larvas imundas e baratas, por trás e dentro de tudo
é como se estivesse algo vibrando, algo de dentro das lixeiras, coisa de um frankenstein
sinistro que sabe-se lá o que é, talvez deva ter nascido da permutação da merda, isto é, vários
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detritos que se foram combinando ao acaso e agora têm um coração que pulsa, se pensarmos,
não é assim tão diferente de como se entende que surgimos. As criaturas das trevas estão
soltas, demônios, cães, estão avançando pelos nossos corredores numa marcha quase sem
barulho, só se ouve o trincar de dentes, o princípio de um grito horrível, medonho e agudo de
bruxas que gelam o coração, rostos como se fossem rostos de mortos, roídos e mastigados, lê-
se na cara uma fúria desejosa de acordar. Esperaram muito para isso e as ruas da cidade
terão de suportá-los, a imundície acorda e num bocejo delicioso brada é, vida, cá estou. E das
janelas a gente pálida se debruça, meu deus, e rói as unhas. E a gente se tranca e apagam as
luzes de casa, pergunta o que estes sedentos estão para devorar. Deve ter ocasião em que os
sedentos respondam, olha que o próximo é você.
Alex não sabe responder quando pegou no sono e muito menos situa no tempo a hora em
que acordou, só está com a impressão de que novamente inventaram de acertá-lo na cabeça,
a sensação do cérebro assando dessa vez é muito maior, está dourando e derretendo por
dentro. Está na calçada e rodeado pelas caras inexpressivas de mendigos velhos, desses que
se encontram aos montes, acha que está na calçada porque reconhece a avaria nas costas,
que está deitado na pedra, ou coisa dura, e o vento que desperta o seu tato não é tão
carinhoso assim. Ei, camarada, dessa vez você exagerou, e talvez a voz que lhe diz isso seja
familiar. Não faz assim tanto mal, é, deve estar numa vala comum, não consegue mover o
corpo, sua frio, passa mal, beira a morte, mas intui que calçada afora outros estejam
desabando feito ele. Ouve as vozes e têm tom de despedida, é normal que estejam todos indo
embora e não é de se espantar que ele passe a noite ali, sinceramente não lhe é tão
desagradável, tem gente que se acostuma, vê lá, afasta essas britas um pouquinho, sacode e
esfrega-esfrega e as põe de lado que o chão é travesseiro onde fronha se dispensa. E aí, qual
a próxima?, alguém diz, e num mundo que tudo é feito de coisa embaçada, como se ele
usasse óculos de um grau muito mais forte que o que lhe foi prescrito, tudo que vê são riscos
descrevendo mais riscos, a silhueta da gente é como grafite garranchal num papel rasgado, e
tudo é frágil, assim, passível de rasgar, a própria vida o é, então sente-se muito vulnerável,
muito triste e mais fraco que um molusco, a pele eriçada, e se põe a gemer porque estar vivo é
muito doloroso, ai, ai, ai, pára, pára, pára. E aí, qual a próxima?, quando voltamos?, se duvidar
vindo aqui para o teatro, para a sociedade, todo dia encontrará alguém, sabe como é, todo
mundo aqui está é muito cansado das coisas formais, muito cansados mesmo, então é isso,
seja como tiver de ser, a coisa que vier na cabeça, que toda inspiração é legítima e o que vier
primeiro ganhará o seu lugar. E aí as coisas começam a ficar vazias, abandonadas e
silenciosas, ele sente-se abandonado, um abandono que beirando a morte pode sentir arrepiar-
lhe os ossos, ai, ai, ai, todo o mais se apaga.
Hora de acordar, as eras rodopiam, e ele se diz que lute contra a demência. O mundo entra
pelas pupilas que se arregalam, sente como se o sino de uma catedral imensa lhe batesse
contra a testa e o tirasse de um pesadelo, que assim abriu os olhos subitamente, tomado pela
sensação do desespero, que nessa forma abstrata que ele agora conhece deve ser realmente
assim, sem justificativa ou porquê ou merecimento, mas simplesmente é por aparecer, na
confusão do cérebro que não sabe mais que coisa deve nos pôr para sentir em cada momento,
assim confunde o comando bocejar com o comando pânico. Abre os olhos de sobressalto e
não reconhece traço, curva, ou meio, pois é, ele pensa, que agora o transplante de consciência
realmente aconteceu, acordei num outro corpo, estou na merda, assim que sentir minhas
pernas saltarei pela janela. E então a dor de cabeça que o destitui das idéias. Mas aí ouve a
maciota do sfreg-sfreg de sola de pé e pelo jeitinho é pé de mulher, ele vai se esforçando para
olhar. Aí aparece Júlia de camisão vagando numa sala desconhecida. É, de fato racharam com
minha cabeça.
Ela está se agachando, deve ser um sonho, não demorará para que comece a seduzi-lo, e
esse é um bem estranho, o sonho, é, onde a vê com o rosto cansado como se tivesse sido
sufocado por travesseiros, ou mais simplesmente é a cara de quem não dormiu ou mal acorda,
as olheiras, é, e o cheiro insuportável de café, o cheiro felizmente não é dela.
– Está melhor? – com a voz rouca.
– Vi um trem passar por mim. O que você está fazendo aqui?
– Bem – e ela sorri –, essa é minha casa – é bom quando ela apenas diz o suficiente.
– André – tosse-tosse e esfrega o rosto –, foi idéia dele. Eu podia ir pra casa. Onde ele
está?
– Dormindo. Acorda daqui a umas horas para o trabalho.
325
Essa é uma estranha chance.
– Estou no sofá?
– É isso – ela sorri.
Agarre-a e diga que chegou a hora, que é hoje. Ela não é tão atraente assim, mas eis seu
problema, meu caro, não saber distinguir gosto e trabalho.
– Tome – ela lhe põe algo quente na boca, por instinto ele sabe que para que não babe
deve debruçar a cabeça para trás e esperar que desça, para isso pode ser preciso que engula
o enjôo. E ele engole, e engasga, o amargo o alimenta. É só aí que passa a sentir realmente
sono, que o cansaço enrola-lhe as pálpebras como o faria a cortinas velhas ou a carpetes
empoeirados, e elas devem mesmo estar precisando de uma boa de uma espanada, que antes
não era sono o que o derrubava, era melancolia vagabunda. Desabou de costas como se não
estivesse caído o suficiente, como se ainda houvesse o que cair, e aí pensou que era o fim, de
novo, coma estranho pelos próximos trinta anos, vê lá, sente-se semi-consciente mas ainda
não é dessa vez, isso se os efeitos do veneno que Júlia pôs no café não agirem rapidamente, é
verdade, que ela se aproveitou de seu estado e da sua incapacidade de discernir para dar-lhe
o golpe letal entrando-lhe pela boca, que é como se dissesse, engole tuas palavras, que eu
venci. As tripas se apertando devem ser seu estômago se queimando.
– Acho que vou vomitar – sussurra sofregamente.
– Não, aqui não – as sobrancelhas enfeiam o rosto.
– Certo, vou me controlar.
Júlia apóia as costas no sofá e puxa a camisa grande cobrindo-lhe os joelhos.
– Sabe, estou bastante cansada – vê a silhueta dela falar.
– Hum – eis sua resposta.
– Foi uma boa idéia – a voz ecoa, Alex espera que a frase faça o seguinte sentido, foi uma
boa idéia esse veneno no café –, essa coisa da sociedade – é o que ela diz.
– Hum.
– Não me entenda mal, só estou desabafando porque você está acabado, provavelmente
até o amanhecer não vai lembrar de mais nada.
– Geralmente isso não me acontece – sussurra.
– Que seja – talvez ela sorria –, que se não se esquecer, ao menos não dá mais
importância.
– Me sinto derreter. Nunca estive tão cansado em toda minha vida.
– Tem algo que eu gostaria de te dizer.
– Eu sei o que é.
– Sabe? – ela franze o sobrolho.
– Aqui estamos novamente – e ele ri silvando.
– Sabe – ela está com um cigarro aceso em mãos, não a viu acender –, acho que você se
nivela muito pelo passado.
– Hum.
– Acho que na verdade o está tentando resgatar. É claro que esse é um trabalho de andar
em voltas. Todos acham que você é o cara que gosta de viver no presente, o sujeito que criou
a sociedade, como se isso quisesse dizer muita coisa, e por aí vai. Acho que sou só eu que
penso diferente. Eu acho que você se nivela pelo que já está perdido, é um tipo de pessimismo
– traga levemente –, por isso você se destrói, é a única alternativa que você vislumbra, e por
isso seu destino é previsível.
– É isso que você queria me dizer?
– Não, não era.
– Porque eu vou me lembrar dessas coisas.
– Tudo bem – meio que dá de ombros –, o que eu queria é agradecê-lo.
– Por quê?
– Aquela noite na baía.
– Há coisas – ele ergue levemente o dedo mas vê duas dela e não sabe para a qual
apontar, duas estupidamente lindas e com rosto de sono –, que não se pensam em voz alta.
– Esse é um sonho – e o sorriso diabólico –, nos sonhos se permite muito mais.
– Os sonhos despertam recordações.
– Não faz mal – e ela o olha –, obrigada.
– Certo.

326
– E nunca mais falaremos sobre isso, porque esse também foi um sonho nosso, um sonho
de cada um de nós.
– Certo.
Ela rasteja para perto de si, os braços estão próximos às pernas dele, ele quase não a vê
mas é o bastante para que a entenda.
– Vocês duas – sente que tem de falar – são estupidamente lindas.
Ela esteve sorrindo e agora está colando os lábios nos dele, é esta uma dessas memórias
que se apagam porque ela sabiamente o confundiu com o gosto do cigarro, coisa que o fez
para que ele nunca se recorde exatamente o que é aquilo, se é um sonho com intenção de
beijo ou beijo com gosto de cigarro, mas desse gosto ele não vai se esquecer, ainda que lhe
seja um como qualquer outro que já sentiu, o terrível mesmo está no olhar, esse que olha
próximo a seu rosto, olhos de quem realmente está cutucando-lhe na intimidade, para roubá-la.
São olhos de serpente, e a serpente aproveita para arrancar alguns segredos seus até
finalmente murmurar uma ordem que não vem em palavras, mas que diz para que durma, ele
obedece.
Viaja no tempo, pendura-se no espaço infinito como se estivesse num carrossel chato e
repetitivo e tudo estivesse reduzido de forma a situar-se apenas ali, agora, porque para curar a
ressaca é necessária uma noite preta feito essa, sem sonhos e com a sensação de naufrágio,
mas é uma noite da qual não percebe a passagem, e quando ele acorda é como um afogado
atirado por uma onda para fora das águas, enche o peito porque pode respirar. Entreabre a
boca como se há muito tempo não o fizesse, aprende novamente a viver e os pulmões doem,
doem estupidamente como se acabasse de tê-los colocados ali ou, o pior e mais provável, se
abriram o seu abdômen, sempre se lê a lenda de gente com quem aconteceu isso, e quando
ele se levantar e for até o espelho do banheiro encontrará lá um recadinho, sim, tiramos um de
teus rins. É, está prestes a recordar que havia consigo uma figura feminina, ou talvez fossem
duas, que ele tem a nítida impressão na memória de ter murmurado algo como, as duas de
você são infernalmente lindas, mas essa memória está totalmente fora de contexto e o que foi
dito, sabe ele, está se confundindo com a intenção do que dizer, que geralmente por confusão
não são a mesma coisa, a palavra sempre é imperfeita, e aqui está ele filosofando momentos
antes de saber que foi exposto à luz do sol, ele é um vampiro e uma coisa dessas não pode
acontecer, a luz é fraca, coisa de persiana que não conseguiu barrar, mas ele tem certezas, e a
certeza é de que está queimando.
Há quadros comprados de camelô e bugigangas e móveis, ele reconhece essas coisas
como reconhece o sabor de dormir em sofá, tanto reclamou e tanto fez que até hoje é viciado.
E ele reconhece os formatos dessa casa, e agora se retorce como peixe fora do aquário, no
caso tem a impressão de que o mundo inteiro inundou-se, imergiu nas águas de ontem para
hoje, por isso o sol está fraco assim e as paredes têm esse aspecto borrado, como se,
enquanto tudo se difrata belamente, ele se desse conta de que a garganta está seca e não tem
como respirar, que tudo está morto, então lhe vem um peixe se balançando e lhe diz, glub.
– Água – ele sussurra debaixo d’água, reconhece onde está.
De repente há uma careta em sua frente, ela é pálida, ossuda e tem olheiras, tem entradas
de calvície mas cabeleira suficiente, queixo fino e testa grande que franze, morde uma torrada
mas ainda assim faz muitas coisas, isto é, está falando coisas rápidas, não sabe se é com ele,
é tão rápido e sem sentido que parece ser com o telefone, e ainda consegue fazer outras
coisas, como agora, que abotoa as próprias mangas com muita maestria e enfia o copo d’água
que Alex pediu em sua boca. André está cuidando dele como quem cuida de uma criança,
deve lhe limpar a baba, passa um pano no rosto, aí morde a torrada que cheira muito bem e
continua a falar coisas rápidas num idioma que Alex desaprendeu.
– Ele disse para mim o seguinte, não me importa o que você faça, o que eu quero é
solução, estou pagando por solução e não por explicação.
Não sabe exatamente se esse rosto pertence ao seu sonho que não se lembra ou se é o
sonho que o persegue e é intruso a esse rosto, que parece estar executando uma cirurgia em
você, Alex, porque você não sente seu corpo e ele está balançando as mãos indo e vindo, suas
mãos devem ter lá bisturis e serras, agulhas e injeções, é natural achar que André também
está muito doido e não faz a mínima idéia do que está fazendo. Mas não é como se ele fosse
igual a você.
– Eu disse que lhe faria o que quisesse, afinal está realmente me pagando, mas para não
se esquecer que somos ambos profissionais.
327
Tem uns quadros abstratos que parecem dançar, eles estão claramente diminuindo de
tamanho, são coisas dessa arte moderna que ninguém entende, tipo lança de cristo numa
mancha de piche, trem descarrilado da consciência quando se desenham linhas retas. O cheiro
de torrada lhe abre o apetite, é uma ânsia quase súbita, que de repente se sente disposto a
alçar a boca e roubá-la numa mordida, mas é meio sujo roubá-la da boca do camarada, ainda
mais que, quando ele abre a boca para falar, dá à luz as migalhas indo e vindo, e ele não vê
mal em pescá-las do ar. O grande problema continua a ser que está se engasgando com um
copo d’água, porque André o está entornando goela abaixo, e Alex se sufoca mas não
consegue reagir, não tem forças para sequer se debater, será morto pela ironia da fraqueza,
enquanto olha implorando nos olhos do cara que o está assassinando enquanto dá atenção à
outras coisas.
– Ele disse que a diferença entre nós é que eu era um profissional de merda. Eu engoli.
Essa casa de André é bem bonita, tem um clima de aconchego modesto e ele gosta desse
tipo de clima modesto, tem aspecto de quem trabalhou duro para consegui-la, e a decoração
tem jeito das frescuras de Júlia. Eles devem praticar feng shui aqui também, pensou, se bem
que aquela outra presença fazendo crunch-crunch ali perto não inspira muita paz, pelo
contrário, é completamente deselegante, e se fosse ele o dono daquele lugar não seria
tolerante como André, que deixa Júlia sair por aí fazendo o que quiser, mastigando em voz alta
quando ele está falando. Aquela ali é Júlia, sentada na mesinha – ele consegue suspender o
tronco e olhar – toda arrumada de blazer e coisa e tal, cheirosa, os cabelos molhados de banho
recém-tomado, as pernas cruzadas, se fosse a fêmea dele não deixaria ir trabalhar assim, com
saia comprida e meia-calça, mas não sabe dizer quem está certo, se o cara perfeito é ele ou
André. Por alguns instantes ele pensa em se mudar para aí, olá, agora sou da família de vocês,
mas ao se lembrar que tem seu próprio cantinho prefere se convencer de que isso é
insubstituível. É, a verdade é que chega à conclusão de que não devia sequer estar aí, que não
se misturam coisas da sociedade com esse tipo de vida pessoal, que se tratam de dimensões
diferentes. Pois é, Alex, eis o seu problema, você é o mesmo na íntegra, é o super-herói que
não dispõe de um alter-ego e que usa a mesma fantasia, ou nenhuma, vinte e quatro horas, e
ou é isso muito bonito ou muito decadente.
– Hoje chegarei lá pelas sete, quer que eu prepare o jantar? – Júlia não gosta de café, os
seus pequenos dedinhos estão brincando com a colher, a remexer o suco.
– Hoje é a sua coletiva com os políticos, correto? – André o abandona para fazer mil
coisas.
– É isso.
– Não sei, amor, não vai estar muito cansada?
– Em todo o caso eu peço comida. É o quê dessa vez?, massa, chinesa, sanduíche?
– Não sei, te ligo à tarde pra avisar, no caso de eu esquecer você pede massa, tá?, que é o
que estou com vontade agora.
– Tá bom, amor. Coma mais alguma coisa, essa torrada é muito pouco.
– Só mais uma, que acordei um pouco tarde e tenho de me adiantar.
– Eu também. O trânsito fica uma loucura.
– Acordei – ele resolve anunciar.
– Já não era sem tempo – o escárnio de Júlia, que agora ela pôde voltar ao normal. Mas há
um sorriso diabólico ao olhá-lo. É assim, essa é Júlia, não há com o que se espantar.
– Bom dia, Alex. Como está a cabeça?
– Bois, mamutes – arrota.
– O que quer dizer? – Júlia.
– Que assim foi pisoteado – André, que eles são amigos e se entendem. – Se lembra de
como veio pra cá? – sempre riem dele.
– Vagamente. Me lembro um pouco da sua cara e da sensação de ser carregado, depois
dormi e só agora acordei. Mas obrigado.
– Que é isso, não há de quer. Senta aqui com a gente, come alguma coisa.
– Obrigado, mas não, estou um pouco enjoado. Eu bebo um pouco de suco mas prefiro
não comer – pata após pata finalmente vai se levantando, assim, devagarzinho, prefere ficar
apenas sentado, que sentado não dói e nem tonteia.
– Tem que comer, Alex – agora é Júlia a tratá-lo como criança, mas não é esse o tom de
voz de quem realmente se importa. – Se não, não agüenta mais teu ritmo – às vezes parece
ser isso que ela deseja, o seu infarto.
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– Não, obrigado, mas eu já me sinto bem melhor. Vocês já estão de saída, não é isso?
– Sim, é o trabalho, o mundo não pára para nos acompanhar – André come sucrilhos.
– É verdade, também tenho de adiantar algumas coisas – mentira, e coça a cabeça, e
percebe que Júlia o olha, merda, ela deve ter percebido. – Eu saio com vocês, se puderem me
deixar no metrô eu agradeceria – boceja.
– Claro, te deixo lá – André. – Se achar que precisa ficar mais, sem problemas, saia
quando quiser, fica à vontade.
– Não, realmente me sinto melhor.
– Vou pôr o teu suco – Júlia.
– Obrigado.
– Alex – ele odeia esse som de colher batendo em copo –, lembra das coisas que falaram
ontem?
– De algumas, sim – mente de novo, dessa vez não coça a cabeça e mantêm um ar de
seriedade, que é para disfarçar melhor. – Mas de qual parte?
– Sabia que Martin tem um restaurante? Acho que você já estava desmaiando quando ele
comentou.
– Interessante – coça as pernas.
– É meio engraçado isso. É meio inusitada essa variedade que nós temos, que a
sociedade tem – sorri antes da colherada –, é muito legal.
– É mesmo – Alex.
– A sociedade foi mesmo uma boa idéia, querido – Júlia.
– Obrigado – diz André.
– Obrigado – diz Alex simultaneamente.
Era o que lhe faltava, contestar autorias, essa é muito boa, é realmente o que lhe falta. Era
o que lhe faltava, contestar o querido, essa é muito boa. Mas então ele tem a desculpa de estar
acabado para não retribuir o sorriso cordial que André o lança, é, porque ele deve ter achado
engraçada a coincidência e tudo mais. Merda. O rosto meio ríspido não é de mera ressaca e
desconforto. É de algo próximo ao auto-desprezo.
– Então – André continua –, Martin nos convidou para um jantar lá, só para o pessoal da
sociedade que quiser ir. Mas é claro, tudo nos conformes – gesticula como se falasse com um
cliente –, sem excesso, absurdos ou liberdade. Coisa para socializarmos. Achei bastante
interessante – colherada.
– Não sei, não parece muito bom.
– Por quê?
– Não se misturam as coisas.
– Por quê?
– Na sociedade somos os nossos personagens autênticos, nos comportando não somos
mais. Isso pode criar uma espécie de hiato que confunda os objetivos, não sei.
– Achei que você estivesse bêbado – André sorri.
– Não estou bêbado, André, só com uma ressaca filha da puta.
– Certo – ele ainda sorri. – Mas nós já fazemos mais ou menos isso. Volta e meia vamos
ao Schneider tomarmos chopes, lembra só. O patrono paga uma cerveja pra todo mundo, é
assim.
– Não sei – coça de novo a cabeça –, é um contexto diferente. Ali não estamos nos
comportando, estamos nos preparando para uma desgraça e rindo disso. Estamos na
iminência de explodir.
– Não vejo nada demais nisso – ela sempre tem de opinar.
– Eu concordo com Júlia – nossa, e isso é realmente fascinante.
– Não se mistura – resta a ele dar de ombros e se repetir.
– Acho que você está sendo um pouco dramático, não acho que seja algo de tanta
importância assim. Pelo contrário.
– Pelo contrário – repete com tom de pergunta.
– É, porque acho que até com essa coisa de personagens autênticos e tudo o mais, se nos
conhecermos estaremos nos aprofundando em nossa convivência, no eu um do outro,
estaremos passando para um outro nível de percepção de nós mesmos.
– Acho que isso é ver coisa onde não existe – agora é Júlia quem fala para André –, acho
que é meramente um jantar, é ocasião para relaxarmos e nos divertirmos, e não ficarmos

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complicando, escavando dificuldades onde não tem nenhuma. Eu não sei, relaxem um pouco,
é isso o que vocês deviam estar fazendo, aproveitando, só isso.
– Eu te amo – André sorri.
– Eu também te amo – bleargh.
Ele sinceramente não sabe o que dizer por longos instantes, fica assustado, está com cara
de quem não acredita ou não suporta o que está vendo, imagina que só lhes falta se lançarem
cada um por um lado da mesa e começarem a lamber um a boca do outro enquanto derrubam
a comida pelo chão. É, ele pensa, me ignorem completamente que não faz mal, desejo mesmo
estar invisível, comecem com essa coisa aí de novo que me levanto e vou embora, é bom que
não atrapalho.
– Façam como quiserem – ele diz como complemento do que pensava.
– Não seja tão rude – Júlia.
– Não, tudo bem – ele fala com tranqüilidade –, vocês me convenceram. Eu realmente
estava sendo dramático, e você simples. É assim que as coisas devem ser.
– O seu suco está aqui na mesa, pode vir tomar – é o que ela diz.
Senta-se com eles e não se importa com os modos, põe a mão e bebe, não se importa
com o mal cheiro que provavelmente exala, ele é o mendigo que comunga com os burgueses,
por educação e com um pouquinho de asco eles devem suportá-lo. É bom que eu me lembro
de dois cheiros, ele se diz enquanto toma o suco que deve ser de maçã, muito saboroso, à
propósito, eis um dos méritos de se morar com alguém que pode preparar as coisas para ele,
mas são os seguintes os dois cheiros, um é o de dormir na calçada à noite, que tem um cheiro
próprio de muitas solas de sapatos e muitas histórias suadas a serem contadas, o segundo
cheiro é de uma certa fumaça de cigarro que lhe foi soprada dentro da boca durante um sonho,
esse caso é de cheiro que vira gosto, um pouco ruim, como se lhe pusessem chocolate amargo
na goela, coisa de gosto especial, um pouco violento e corrosivo, e vicia mesmo assim. E na
verdade ele se vicia nesse clima fraterno de organização que ele nunca conseguiu reproduzir,
olhando o abajur, imaginando que foi escolhido à dedo enquanto o casal ali se abraçava e
animadamente percorria as fileiras de uma lojinha, enquanto Júlia resmungava que o tecido do
sofá e as cortinas podiam combinar melhor, e André ria porque achava graça, achava fofinho o
comportamento da mulher, que isso já é um matrimônio sem se oficializar, é mesmo, até
parece que a essa altura eles poderiam se separar. É curioso pensar nessas coisas, na
escolha de azulejos e na compra desses quadros engraçados, tem um que são girassóis que
parecem ter sido pintados por uma criança, mas como eles não têm filhos ele prefere não
cometer a gafe de perguntar de quem é. É curioso pensar que essa realidade nunca vai
acontecer consigo. Por bem ou por mal, Alex, você nunca conseguiria ser assim. Agora Júlia
vai lavar a sua louça, porque deve ter um cuidado único com as coisas desse lugar e tudo o
mais, só com muita disciplina para chegar onde ela chegou, e parece toda bem-sucedida, é
uma moça realmente competente e sobretudo esperta, certamente que sabe aproveitar as
ocasiões que lhe aparecem como ninguém, não só pela inteligência, mas decerto, aqui Alex
observa, que ela dá para quem precisa no momento certo, mas dá de um jeito que mantenha o
seu poder, que não se torne vulgar, ela deve saber certamente quando está dando por prazer e
por esperteza, se bem que uma mulher como ela sempre deve saber conciliar para se dar
particularmente bem. Ele não sabe dizer se fica com ciúme ou inveja. Se lembra vagamente,
então, de uma certa psiquiatra que em algum momento passou por sua vida e, numa das
tantas conversas que tiveram, por acaso ela lhe disse que a psicanálise nos ensina que o
desejo do macho pela fêmea se origina na inveja pela facilidade com que ela pode conquistar
as coisas por causa do corpo e tudo o mais, aquela coisa da mulher ser guardiã do sexo, que é
só querer, estalar os dedos e conseguir uma fila. É um ponto de vista interessante, mas a
doutora estragou a sua opinião quando disse que no caso da mulher, ela tem inveja é do pênis
do homem, e bem, ele não sabe dizer muito bem porquê, mas essa idéia é um pouco escrota
demais até para ele, aí se detém, ri e prefere não se levar a sério. Deve haver algo em André
que Júlia inveje. Alex não sabe dizer o quê.
Agora André está colocando o paletó enquanto Júlia já o abandonou na mesa, sente que é
ele a mais uma vez não acompanhar o ritmo das coisas, a não crescer, a não sair do lugar, e
deve ter esse estado seus prós e contras, mais uns do que outros, e ele prefere não pensar
sobre isso. É não pensando que ele engole o resto do suco, da metade para o fim não mais
sentia o gosto, mas o peso de sua cabeça vai se tornando um pouco mais suportável. O
cansaço a deformar-lhe o rosto deve estar monstruosamente notável, mas é melhor que finja
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força, guardará como segredo que a primeira coisa que fará na cama, ops, melhor dizendo,
quando chegar em casa, é desabar na casa, ops, na cama, e apagar. É feito um cachorro que
segue as escolhas dos seus donos, onde quer que eles vão haverá de segui-los, como
sonâmbulo com intervalos de consciência. Bem, esse é um estado um pouco melhor do que
uma situação como a de por exemplo umas semanas atrás, onde ele acordou e estava sentado
no banco do metrô quase vazio, lá pela manhã cedo, e certamente que já realizando a mesma
viagem pela qüinquagésima vez e com o trem a seguir para a garagem, até um senhor ter tido
a gentileza de acordá-lo para dizer, toma cuidado, amigo, se não passa a tua estação. É meio
engraçado imaginar alguém que possa ter tomado aquele vagão mais de uma vez, enfim,
chegado e visto o mesmo cara apagado, dormindo no mesmo lugar, o senhor deve tê-lo
cutucado para averiguar se não tinha morrido, não deve ter, porque ele ronca. As noites na
sociedade são bastante interessantes, só nunca consegue prever como e quando vai acordar.
Vez ou outra o esquecem no próprio teatro, não é isso muito bom porque os ratos se
aproveitam para se divertirem nos corpos imóveis, assim é provável que pegue leptospirose,
peste bubônica, também porque o palco é empoeirado de ser impossível evitar a alergia e as
cadeiras são apertadas e tortuosas, acordar acaba sendo uma merda. É um pouco melhor que
dormir na calçada. Perceba, Alex, a tua sensação de plenitude em acordar e estar em casa,
você sobreviveu.
Agora ele pisca os olhos e está no hall, há plantinhas em vasos chineses e olhar a apatia
das plantas o seduz, tem vontade de destroçá-las, como destroçaria a inocência de uma
criança ainda sem pudor, e a criança dentro dele o diz que é muito interessante testar as
formas de vida, é por isso que as crianças destroem inocentemente para chorar no depois.
Pisca os olhos e se assusta ao ver no espelho um certo reflexo de rosto sanguíneo e com os
olhos esbugalhado, ao lado dele está um homem mais conservado e uma mulher elegante, o
aspecto fantasmagórico deve ser a sua cara. Ele sente vontade de sorrir de si para si mesmo,
como quem se olha e diz, aí está você, mas como quem admite a agressão que vem da
estranheza nada faz.
Pisca os olhos e a cabeça ergue-se de repente, adormeceu recostado na vidraça,
acostumou-se à voz de André reclamando no celular enquanto dirige, mantendo em dia os
seus negócios enquanto ainda arruma tempo para reclamar sozinho do trânsito, que não anda,
que é uma bosta mal administrada e sem policiamento, a bosta do imposto que a gente paga
não serve para nada, malditos corruptos, mas que esse é na verdade um problema de
educação caseira, é algo que vem da criação etc e tal. Parece mesmo um pouco lento, está
tudo parado e não sabe dizer se é o sinal, não enxerga daí e é melhor não abrir o vidro que na
outra calçada tem um monte de pivetes que fingem querer enxaguar os vidros mas o que
querem mesmo é capturar os descuidados, passa o relógio, passa a carteira, se não eu te furo,
coisa assim. Se colocam um estilete em sua garganta é bem capaz que ele afirme, pronto,
pega meus documentos se você acha que eles te servem de alguma coisa, é, é, é tudo que eu
tenho e só tenho porque ninguém nunca quis isto de mim, agora me deixa dormir em paz, é o
que importa. Enquanto André mantêm o seu moral rígido e a sua disciplina sobre qualquer
subserviente de que ele dispõe, e decerto é reclamando e bradando com ironia, que ele é bem
eficiente e azedo quando quer, que se consegue uma coisa dessas, bem, ele está se saindo
muito bem, tanto é que às vezes Alex se treme de susto achando que essa voz rouca e cruel
feito a de quem sentencia alguém à morte está sussurrando é no seu ouvido. Pisca os olhos e
o carro está parado, vê a praça com as sujeiras da muita gente e sabe que é hora de ir
embora, vê lá os papéis rasgados, as feiras livres, as quitandas e a estação do metrô mais
próxima.
– Tchau – bocejo rouco.
– A próxima reunião vai ser daqui a três dias, à meia-noite – André põe a mão na fala do
celular para que alguém do outro lado não se confunda nas conversas.
– Estarei lá – e vai sair.
– Alô, sim, ainda estou aqui, e ainda quero a droga dos papéis despachados até às quatro
da tarde, eu não quero saber se... – e enfia a mão na buzina porque se passou quase mais que
um segundo que o sinal ficou verde e a fileira não andou.
Alex chega em casa com o mesmo fôlego de quem conquistou a terra prometida, se despe
feito um dromedário que se revolta contra seu beduíno e é cambaleando que não se importa se
tem alguém ou não em casa, vai tropeçando por tudo até invadir o quarto, em silêncio se

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despoja contra a cama e ela que o agüente, dá um ronco aliviado de quem ainda não dormiu
mas está incrivelmente próximo a nunca mais acordar, é assim que apaga.
É isso, é assim que ele mostra a si mesmo que é capaz de qualquer coisa, dorme até que
se canse de tanto fazê-lo, larga todas as coisas porque não lhe cabe peso algum, porque ele
não os quer, cospe no tempo que os outros acompanham, ri do ritmo do mundo, não é dele e
nem o será, e vê lá, que é assim se desafiando que naturalmente ele está em paz. É, descobriu
que sua paz está condicionada a algum sonho odioso, qualquer violência um pouco menos
comum o seduz, por isso não lhe é incomum ter sonhos com rostos fortes, sonhar com
silhuetas, caretas que berram-lhe alguma coisa como se implorassem para serem ouvidas, o
que importa é que são rostos fortes que passam assustadoramente e quando expelem
perdigotos e rangem-se os dentes amarelos é como se o dissessem, estamos aqui, e assim só
resta pensar que as caretas dos sonhos, como a dessa senhora que parece não conseguir
fechar a boca num grito eterno ou do sujeito que tem olhos puxados e o fica encarando com
aquele jeito de que está de olho e sempre estará, então, só te resta pensar, Alex, que essas
são as caretas de você. É aí que ele tem uma idéia mais ou menos esperta e o pensamento
que a ocasiona é o seguinte, pode ser que eu encontre aqui uma cara para o outro e ele pare
de assombrar a minha vida, mas no mesmo instante é como se pudesse ouvir-lhe a voz em
seu ouvido já o recriminando, que ele não quer a droga de um rosto, seu tonto, ele quer um
nome, coisa muito mais difusa e livre. É então que uma outra voz de algum lugar dentro de si
também lhe diz, é, mas é que você sempre se perde do caminho certo. Parece mesmo ser
essa uma questão muito profunda, coisa que percorrendo o seu hiato cerebral ele se intriga e
mal responde, que às vezes não sabe responder, porque tudo que não é absoluto deve nos
deixar inseguros, afinal, que não há como não portar nenhuma dúvida a toda hora, ao que isso
ele se avisa porque quer se suportar. Ele não sabe responder se o certo é coisa da qual sua
tendência todo mundo sabe, mas sempre encontrarão um louco que lhes dirá que pode não ser
assim.
Ele não sabe se só está desvirtuando a vida por birra da existência, por richa com deus,
porque certo dia acordou com a vontade de quebrar tudo o que qualquer um construiu. Algo
dentro de si que quer e ainda consegue convencê-lo lhe diz que a destruição é o primeiro e
mais complicado de todos os princípios. Ao acordar ele não se lembrará de mais nada.
Mas esse sonho ele já teve, o mesmo que de tempos em tempos regressa, a causa para
isso ele deixa para astrólogos ou quiromantes ou sabe-se quem mais se interessaria por seus
problemas, problemas, é do que ele chama tudo que lhe pertença, tudo que lhe seja exclusivo
e espontâneo, que tudo pensado é uma espécie de pressão que não devia existir mas que
acaba improvisando-se bem, e se antes pensou em paz é melhor concordar com os budistas,
parece para isso ser o melhor jeito separar-se o homem de tudo que ele cria e naturalmente é.
Toda a espiritualidade se concentra num remédio para dormir. Se vê no divã de um psiquiatra,
que nos sonhos todos sentimentos são ampliados, porque se deslizou sobre os precipícios que
são as paredes da alma e se está mais próximo das fontes de todas as coisas, e por assim
sentir-se lhe vem de brinde do inconsciente, e ele gosta de brincar de ironias, uma peculiar
vontade de desabar que está o pondo a quase chorar. Quer contar as mágoas para um ouvinte
imaginário, o doutor a quem ele possa dizer, não tenho mais vontade de ver por mim mesmo,
extirpe meus olhos e me dê um ponto de vista qualquer, diagnostique a minha panacéia, e só
por curiosidade diz-me o que é que eu tenho. Mas aí onde devia haver um doutor ele vê Júlia e
ela começa a distinguir neurose, psicose e perversidade, e isso tudo é um saco, uma mulher
chata que não me deixa em paz, e se diz um ah, não, e tem a intenção de abandonar o
consultório quebrando a tudo, e como é apenas um sonho tudo isso pode acontecer. Veja só,
Alex, que você ficou divagando entre as brechas das coisas que lhe surgem quando você não
tem mais o que fazer, já ia se esquecendo do sonho que está tendo, que se repete e como se
agora fosse um presságio seja melhor não ignorá-lo. É aquele sonho em que o mundo se
esvaziou e ele é tudo o que resta, a praça espoliada onde um dia andou a raça perdida dos
homens reluzindo a claridade da baía e as bilheterias para tomar as barcas de transporte
abertas porém abandonadas como se todos tenham tido de fugir.
O jornal gruda-lhe na canela, é sempre esse o mesmo jornal, o pedaço de notícias que não
são de hoje e que ele tentará olhar para ver se finalmente encontra o seu nome nas páginas do
obituário, mas antes que o faça se desiludirá com a idéia e simplesmente há de afastar os
trapos de seu corpo, ande e me deixe em paz, dirá para o jornal mas pensando em toda a série
de idéias que ele sabe que vem a seguir, achar-se deus, questionar a solidão, revisar-se e
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construir-se a si mesmo, até o instante em que ele sabe que deverá acordar de sobressalto,
porque o susto que vem dos estrondos que marcham além dos prédios da cidade é cada vez
único e decerto por mais que se prepare mais será pego desprevenido. O vento sopra num uh
rouco e crepitante que o faz lembrar do cenário de um filme de velho oeste ou do ronco de uma
caverna e, pensado isso, só porque preparou-se para todas as outras coisas, seu inconsciente
vinga-se e afirma sua soberania a colocar mais a frente, com um aspecto todo sinistro,
desafiando todo o seu controle sobre o mundo em ruínas, o pistoleiro intombável da sua
imaginação, isto é, o outro. Ele pensa em sacar uma pistola imaginária e, quem sabe,
matando-o no sonho ele se convença para sempre de que o mata de verdade, é coisa da
sugestão, questão de afirmação. Mas é claro, meu caro rapaz, meu pobre tolo, que não pode
num duelo psicológico contra o outro, que decerto já começou com essa risada estrondosa
porque ouve as suas idéias e está golfando na cara delas. Alex se encolhe como quem
reconhece o predador.
– Então, você aqui – murmura, que é para não sentir-se completamente fraco.
– Sim, aqui estou. E contente, pois a hora está para chegar – diz a voz de diabo.
– A hora de quê?
– Como se não soubesse.
– E não sei – se enraivece –, e você, outro, chega disso, de fingir que é oráculo de alguma
coisa. Porque não há como saber do futuro, sei que isso é impossível até mesmo a você.
O outro solta uma gargalhada medonha que o arrepia até na lógica, que se suicida. E
então o estrondo.

333
Está parado, com a munheca ele evita que caia o queixo, a bochecha amassada no
antebraço, a cara de sono, de letargia como efeito de paralisia, e está parado porque por
diversão está tentando alongar ao máximo possível a sensação de dejá vu que está tendo
quando olha a tela do computador com meia dúzia de coisas escritas e fica pensando, mas
quase sem pensar porque o dejá vu é uma sensação na qual se tem de concentrar
plenamente, olha só, tenho a certeza de que já vivi esse mesmo momento numa outra ocasião,
e cá estou a repeti-lo. Estranho universo. E olha, daqui a pouco ele descobrirá estar com essa
sensação porque conseguiu repetir o mesmo período duas vezes tendo escrito lá suas seis
linhas, é essa uma relativa façanha, mas ele se perdoa primeiro porque está cansado e de
saco cheio de estar escrevendo sobre isso, depois porque a frase que usou foi alguma coisa
pronta, algo como um clichê que dá um ar de importância à qualquer besteira, coisa universal,
lugar-comum, ainda que ao dar ênfase demais à coisa vulgar na verdade se está ofendendo
claramente a inteligência de quem lê, para isso Alex não está nem aí. Por instantes se esquece
do que escreve, é, é porque o primeiro parágrafo se adequa a qualquer coisa, desde a história
das tecelãs desempregadas do centro da cidade como a dança como instrumento de
integração étnica. É verdade, ele escreve sobre o passado dos músicos do metrô, pois todo
mundo tem a curiosidade de saber onde um mendigo aprendeu a tocar flauta ou saxofone tão
bem. É.
Algum lugar da sala começa a fazer trinc-trinc, está condicionado e sabe ser este o som da
porta, agora começa a trepidar porque alguém do lado de fora não se acerta com a chave no
trinco, ninguém mesmo merece essa porta, um dia ele ainda a derruba só por raiva. Coça os
olhos e pensa, ufa, eis aí o meu pretexto para relaxar um pouco, como se você precisasse de
pretexto para deixar de fazer qualquer coisa, Alex, que para começar o trabalho já foi um
sufoco, mas você é o cara responsável, o cara que dá valor às suas coisas, tem de ser assim,
gostam de caras assim. Falando em gosto e em pretexto lá vem Carla, chega em casa
tranqüilamente como fazem as pessoas sãs, e não enfiando os pés por debaixo do tapete e
caindo sobre ele ou reclamando de alguma coisa, pode ser qualquer coisa, até inventada sob
encomenda para ocasião, que uma reclamação é sempre uma boa forma de começar uma
conversa. Feito as pessoas sãs, ela não começa conversa alguma, apenas entrou, agora está
se encarregando de fechar a porta e de suspirar com ah de alívio, eis um bom sinal, Alex, é
como ela se sente ao voltar para casa, como se sente ao voltar para você. É claro, se não for
esse um ah de puta merda, chego e já tenho a certeza de ter que aturar mais uma série de
chatices, que sofrimento. Alex se magoa com ela pela hipótese e pela via das dúvidas. Se
encolhe e nada diz, finge digitar, é então que por obra do acaso escreve em seu texto a curiosa
palavra truinglemblift. Fascinante, é mesmo sem querer que as coisas são criadas, e como de
filósofo todos têm um pouco, que de louco não é só um tanto, ele logo pondera, o homem foi
um erro divertido de deus. Estaria e até gostaria de pensar mais uma coisas profundas
quaisquer se Carla não estivesse andando e bagunçando toda a sua tranqüilidade, ela ainda
tem de ficar arfando quando se abaixa para pegar umas roupas por ele espalhadas, bem, se
quer reclamar, o faça na cara. Sente seu perfume, ela está cheirosa.
– Olá – ele escreve a palavra gunbrut, mas não a acha tão interessante quanto
truinglemblift e a apaga, é que finge estar muito concentrado. – Não nos vemos faz uns dias.
É verdade, mas é comum que as pessoas se desencontrem, ocorre uma vez ou outra. De
dia ele sofre de ressaca e de doenças do cansaço, à noite precisa ir aos encontros da
sociedade, que aí durante o dia Carla deve encarregar-se de seus próprios assuntos e tem o
respeito de não acordá-lo, durante as noites ele também só a acorda quando precisa
urgentemente de alguma coisa, sexo, vontade súbita de conversar, coisa e tal. Restam as
madrugadas familiares, que é como o chefe de família que não fez serão no escritório e que
pode ter o descanso merecido com a esposa.
– É, você tem andado ocupado – ela sai andando pelo corredor e é o que diz, isso o deixa
satisfeito, porque reconhecerem o esforço que não fazemos ou é frustrante ou rejuvenescedor.
Ele sorri e está pronto a dizer que tem andado com uns sérios problemas por aí, uns
assuntos inadiáveis, coisa séria que cabe à gente responsável, mas acha melhor não encher
lingüiça. Agora ele fecha o arquivo que escreveu sem salvar e se diz que faz depois, que o
atraso de um ou dois dias não é coisa a ser considerada vindo de alguém que sempre andou
no prazo, que tem uma disciplina quase oriental, segue as normas à risca e tudo o mais. Ok,
você merece mesmo um descanso, cuide-se, trate de tua vida, vamos lá. Aproveita esses sons
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de coisas sendo agitadas na cozinha, panela aqui, ou deve ser a frigideira, e ele está mesmo
cansado de comer sanduíche de manteiga ou as bolinhas de queijo das quais já enjoou. Se
senta lá na cadeira da cozinha e como não quer nada fica emitindo grunhidos para ser
percebido.
– Quer comer alguma coisa? – gosta dela por isso, a prestatividade.
– Vai fazer alguma coisa pra você? – humilde.
– Posso fazer algo se você dividir comigo.
– Então não seja por isso – sorri e comemora pelas costas. – Qual a boa de hoje?
– Almocei numa cafeteria muito legal, e você?
– Estava faminto, comi aqui na esquina.
– Sei, e o que mais?
– Vim para casa trabalhar – dormiu a tarde toda.
– Esqueceu de comprar as coisas da dispensa que eu pedi.
– Nossa, é verdade, desculpe. Amanhã, sem falta.
– Tudo bem – smerch-smerch enquanto mexe nas coisas.
– Não, amanhã – retruca a si mesmo subitamente – tenho de resolver umas coisas no
centro. Talvez se der tempo, à tarde.
– O que tem de resolver? – por instantes ela se vira para trás.
– Como assim?
– O que você tem de importante para fazer.
Essa, minha cara, não é coisa que fique se questionando, é mal-educado, – Coisas
aleatórias, receber instruções do trabalho – olha só, é a melhor coisa que se tem a dizer, um
pouco clichê, considera, mas bem, bem, antes pouco do que nada – e almoçar com um amigo
lá mesmo.
– Tudo bem – ela suspira com jeito cansado.
– Olha, se você não quiser fazer a comida, tudo bem. Podemos comer fora. Pizza.
– Não, não tem problema – ela olha para trás e sorri.
– Um jantar à meia-luz, essas coisas – é por coincidência, e mais ou menos por aqui, que
começa a gerir uma estranha idéia.
– É, seria diferente – ela ri. – Não vai perder a vontade?, não pode deixar pra outro dia?
– Na verdade – ele sorri com jeito de quem diz, olha, como sou espertinho –, posso sim.
– Que bom, então – o som do bife na frigideira, ele odeia esse som. Alex, não o bife, que já
está morto, deliciosamente morto.
– É sério – ele continua. – Um amigo meu tem um restaurante, e convidou um pessoal,
assim, amigos bem seletos – e quão seletos são –, gente muito fina – ele sente vontade de rir
–, para ir uma noite dessas, você imagina, coisa agradável, aconchegante, comum, papo em
dia etc.
– Hum.
– Eu nem estava com muita vontade de ir, fazia pouco caso.
– Agora quer que eu vá com você – ela é bonita quando faz assim.
– É, é. Vem cá.
Ela vai e senta-lhe no colo, que ela não deve ter se esfregado em nada o dia inteiro, agora
os hormônios devem estar à flor da pele, é o que ele supõe. Ele a cheira no cangote porque
gosta de vê-la arrepiada, ela dá um risinho logo em seguida, aí estão nessa brincadeira com
jeito de quem tenta conversar mas só emitem miados, algo como a proximidade da linguagem
primordial de nossos ancestrais das cavernas. Deviam tanto se comunicar mais ou menos por
esse código de murmúrios como por aqueles barulhinhos chatos e irritantes que fazem as
mães, ô, nenê, digui-digui e coisa assim, que põem as criancinhas a sorrirem como quem
pensa, puta lixo, que merda esta senhora retardada está fazendo na minha frente?, enquanto
isso os que não podem rir e não têm os pensamentos tão secretos quanto uma criança tem de
sofrer calados. Mas o que se ouve aqui são ais, huns, hens, e por aí se entendem as
intenções.
– Acho que a cozinha é meu lugar preferido pra isso – gruda-lhe a boca no pescoço.
– É porque você é machista, gosta da idéia da servente, da mulher submissa.
– A submissão excessiva de alguém, minha cara – fala pomposamente –, deixam as
pessoas com medo de machucá-la, as fazem se sentir responsáveis. Não, isso é bem ruim.
– Você tem medo de me machucar?
– Não – ele quase ri como quem diz, ora, é óbvio que não –, por isso nos damos tão bem.
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– Não acho, eu me preocupo com você.
– Se preocupa comigo? – ele nunca pensou nas coisas dessa forma, até pára de afagar os
peitos dela. – É?, e como assim?
– Como assim, sendo – ela se vira e rouba-lhe um beijo.
– Hum.
– Não nos conhecemos há muito tempo, mas eu sinto que isso não faz tanta diferença, eu
me importo com o que você pensa, eu sei que você é um cara legal.
– É, eu sou.
– Um pouco esquisito, mas é.
Ela o acaricia na nuca e sorri, é um sorriso de sinceridade como se muitas poucas vezes
se vê na vida. Ele brinca com as mechas do cabelo curto dela, acha bonito que ela corte assim,
gosta de afagá-la, gosta de apertá-la como se fosse um brinquedo, é, e a curiosidade que
sente acerca de sua complexidade, algo como, Carla, quem foi você no passado, ou melhor,
não no passado, que tanto assim não me interessa, mas ao menos antes de misteriosamente
surgir com uma faca na minha cozinha a me tomar por ladrão?, quem é, afinal, você?, um
sorriso desses tem diversas causas, coisa de esperança, uma beleza duradoura e tudo mais.
Carla é o tipo de mulher que mesmo quando envelhecer continuará bonita, dessas que nos dão
um ar de leveza que não se pode ofender. Não se pode machucar, seria cruel demais fazê-lo.
Ela te representa uma oportunidade de segurança, coisa única, mas é coisa que você não quer
ter, ainda que continue sendo muito tentador.
Carla é muito secundária em sua vida, mas a sua lembrança, porque tem pessoas que
mais nos servem como símbolos a representar algo do que realmente como gente, serve para
ancorá-lo à realidade e pensar que a normalidade não é assim um sonho tão distante. O
mundo retruca lá fora, brum, eis um ronco desses guturais de uma tempestade que não se
anuncia e vem caindo com tudo, com as janelas recebendo uma torrente com o som batucante
de chuva. Ele a leva pela casa fazendo bagunça com as roupas e com o chão mais uma vez,
mas isso é coisa que os beijos legitimam, e de repente tudo torna-se frio como que para forçá-
los a se abraçarem, a se aconchegarem um na carne do outro, valorizar isso da pele, que não
são todos que têm e que não se cansaram. Tem um zíper no vestido que é feito para isso,
roupa é feita para ser tirada, ele fica impressionado com a velocidade como ela faz, não é
exatamente que tenha praticidade em tirar a roupa, mas que provavelmente tenha a técnica de
lidar com homem.
Já deve ter tido muitos, é um sorriso experiente, tem a inocência na dosagem certa que
sabe dever possuir e a malícia inevitável das conhecedoras. Ele adora essa marca vermelhinha
de alça de sutiã, adora sardas na clavícula, dá vontade de mordê-las. Adora quando é a mulher
que se deita na cama e manda que ele venha, que não tem muita paciência para acatar com as
responsabilidades do dominador e gosta sempre de vencer a competição. Ele pretende se
lambuzar a noite inteira.
Agora está rendido à chuva, rendido ao bom cansaço da cama, os lençóis foram expulsos
previamente e agora restam dois corpos nus entrelaçados na cama, ela dorme com a mão em
seu peito e com a cabeça no ombro, ele olha o vazio e toma cuidado para não incomodá-la
enquanto fuma. Fica pensando no quanto é ruim dormir com Carla e imaginar-se com Júlia,
isso está chegando a níveis inadmissíveis, em algum instante ele começa a se sentir culpado,
e não é exatamente de se espantar. É mesmo como uma droga, vede, é como seu cigarro, no
momento em que nos surgir um pretexto para tomarmos a nossa dose de satisfação não
hesitaremos, no início até a hipocrisia é válida, algo como, ah, estou me divertindo para saciar
uma fantasia, assim ele objetiva mais diretamente o caso Júlia, mas a hipocrisia se tornou vício
e se vê que não é coisa da qual se livre assim. Ele olha para Carla, ela dorme tranqüilamente,
ele sente pena de si mesmo. Mas aí também sente o gosto saboroso da vingança, isso é algo
que subitamente o ilumina. Vai usar Carla para tirar Júlia do controle, que é algo que ela se
gaba de ter, exatamente por tê-lo perdido de si para si por um acaso que não previa ganhou o
controle dos outros, é também razão para todo mérito que possua, vai pô-la com ciúmes ao ver
que está a perder a sua maior presa. Vai fazer o que ele previamente sabe que nunca devia
ser feito, ele vai cruzar as duas.
Põe-se sentado, sente o frio acariciar-lhe as partes baixas e é essa uma sensação marota,
ao que olha para a janela e vê e ouve os rastros incansáveis da chuva batendo e dizendo que
não planeja se interromper tão breve. Tudo bem, ele responde, que me venha finalmente o
dilúvio, que afogue a todos nós. Hoje a noite alguém da sociedade deve estar se reunindo, nem
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que sejam poucas pessoas, tudo bem, não é a chuva que afugenta os necessitados, é isso que
todos são, viciados com abstinência de muitas coisas, carentes. É quase impossível de evitar
que ele saia. Ela geme meigamente, acorda quando o sente se levantar da cama, e o perdoe,
Carla, ele entende que deixar-te abandonada assim é indelicado e até vil, ele queria te contar
que tem coisas a fazer, mas não pode, que tem coisas que não se misturam.
– Aonde vai? – ela sussurra.
– Eu não sei – ele pega as calças no chão.
– Fique – ela puxa para si o travesseiro.
Ele a está cobrindo com cuidado.
– Não se preocupe. Durma.
Ela suspira alisando os cabelos com as próprias mãos e não parece disposta a obedecer o
comando. Ele está vestindo as roupas no escuro, é ele quem por instantes parece disposto a
não cumprir com a intenção, mas é claro que nada pode ser forte suficiente como essa
disposição. Ser livre é um caminho sem volta, quem experimenta só a morte para corrigir. A
sociedade é uma oferta para nunca mais. No escuro ele olha Carla e por segundos a ama mais
do que muitas coisas. Posto o casaco, dá as costas e já a esqueceu.
Os olhos estão abismados, centrados, desconsidera completamente a roupagem
empapada, o calor que sobe por sua alma é todo único, é coisa que não se possa nunca
desconsiderar e a cada tentativa de repeti-lo acaba-se conseguindo algo melhor, eis um
encontro da sociedade. Essa noite ao que tudo indica eles vão iniciar alguém, pois é, mas ele
não gosta muito de acompanhar esse processo, é muito mais prático mandar a todos se
explodirem, o competente que realizar o processo terá eternamente seu respeito, quanto aos
efeitos, muita paciência. Isso que Alex está sentindo é poder, pensemos todos juntos, ele
ordena, notemos a situação de agora, quem não se satisfaria?, quem não se sentiria o tal?,
veja só, ele acompanhado desses tantos rostos, companheiros de ideal ou seja como possa
chamá-los, veja só, essa quantidade de gente entrando à noite pelas escadarias do metrô,
quem olha pensa que são diabos vindo da chuva, não é coisa muito sólida que se observe todo
o dia, essa procissão lúgubre, desses que se olham em silêncio como se escondessem a tudo
e estivessem dispostos a fazer qualquer coisa, e estão mesmo. São tantos e o número cresce
a cada dia, mas desconhecer uns rostos não é algo que faça assim tanta diferença. Olhem e
aprendam, crianças. Está parado, está assistindo algum espetáculo que se insinua bem
próximo a si, ao seu lado uns muitos, enfileirados com disciplina que se pode quebrar pela
vontade do primeiro que resolver destruir qualquer coisa, parece mesmo que estão aí pessoas
inteligentes, pois é. Ao outro lado do trilho mais fileiras deles, homens e mulheres estão no
aguarde. Quem antes ali estava, quem ousa pegar o trem a uma hora dessas da noite, hora
que os pertence, ainda vai fugindo lá mais para trás enquanto recua com olhar de curiosidade,
é possível que se assustem pela gracinha destrutiva de um que tenha mostrado a língua ou a
genitália, mas não é isso coisa que Alex esteja prestando atenção. Lá na frente está André,
como sempre. Ele está um pouco a frente da faixa amarela, da qual geralmente nos dizem,
prezado passageiro, para sua própria segurança se mantenha atrás da faixa amarela, a sua
segurança também depende de você, atente ao espaço entre o vau e o vagão. É certo que
André está pouco se ferrando para a própria segurança, decerto não deve ser apenas Alex
tentado a correr até ali e empurrá-lo. Ele não sabe mas até hoje tem a curiosidade se os trilhos
do metrô podem te eletrocutar a todos os instantes ou apenas quando o trem está passando, o
que é um pouco imbecil, se o trem está passando por cima de sua cabeça preocupar-se se
ainda será eletrocutado ou não é um pouco irrelevante. André desafia a própria sorte quando
fita o pequeno abismo, tira as mãos do bolso e por uns instantes vai abraçar a Júlia, carinho
fora de hora.
Tem uns seguranças lá em cima, desses que ficam naquela guarita vigiando se o
funcionamento das coisas está como eles querem que estejam, se não tem nenhum
trombadinha aprontando com a carteira das pessoas de bem, se não tem nenhum pilantra
fugindo de uma estação para a outra, esse tipo de coisa. É claro que hoje eles escolheram
vigiar a vida das pessoas erradas, e alguém precisa avisá-los disso antes que seja tarde. Como
agora há pouco. Não é exatamente de se espantar que um ou outro tenha vindo. É, do jeito de
quem insinua que vai fazer algo, descendo assim as escadas, pondo a mão nas armas, mas
ninguém aqui teme cassetete ou arma de fogo, que se alguém morrer com um tiro no peito vai
estar feliz por saber que a multidão dos demais não vai perdoar jamais o ousado que quis se
intrometer no assunto que não é dele. Eles vêm provavelmente dizer que esse tipo de
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movimento no metrô, essa coisa misteriosa que não deixa claro o que vai fazer, é tudo isso
proibido. Eles não sabem que é tudo permitido. Talvez alguém os pergunte, por quê?, então
saberão que a ordem do dia é questione. Mas não, Alex, poupe as nuances de sua
imaginação, nada disso será necessário, que é inteligente e claro que muitos pensaram como
você, e bastou que uns olhem aos guardinhas, e armados ou não eles param, é, param como
quem hesita e eles se entreolham, vêem que esse agora não pertence a eles e que não devem
ser orientados, pois é, não é recomendado que interfiram numa coisa desse nível acontecendo,
então é melhor, para o bem de todos e principalmente deles mesmos, que deixe como está,
façam olho torto, ignorem, se digam que tudo não passou de um sonho ou como preferirem.
Os guardas se encaram e vão embora, cada qual com sua autoridade, onde não há, que a
ausência se respeite, e tenham dito.
– Eu quero – diz León –, que você pule na frente do metrô – ele diz isso ao seu indicado de
hoje – com os braços abertos, pronto para morrer, se isso for preciso, se por algum azar isso
acontecer. Se tudo der certo vão te amparar do outro lado. Se não, você não fará a mínima
falta para o mundo, mas lembraremos de você.
– O trem vem muito rápido. E é um salto longo demais – retorquiu o covarde.
– É mesmo, e você só vai pular quando eu disser já, quando eu disser que deve. Nada de
pular quando você quiser, quando te der vontade, que isso não nos dá graça, é inofensivo.
– O almirante terá a sua vida nas mãos dele – André fala com um jeito altivo.
– Sim, eu terei – ele se diverte. – E você terá ou não a coragem de assim depositá-la, de
confiar em mim. E eu vou logo dizer, quanto mais você hesitar mais eu ficarei furioso e poderei
fodê-lo quando chegar a hora, e se você meramente não quiser fazer, desistir, bem, ótimo para
você, apenas não nos serve.
– Não precisa se incomodar – diz o indicado, ele sua, está pálido, porém rígido. – Não vai
ter que gastar mais de sua saliva. Vou pular até se o trem já tiver passado, dar com a fuça
nele. O mundo não sentirá minha falta.
– Isso, meu garoto. Estão vendo vocês de onde é que se tira um indicado?
– Eu entendi – ele esfrega as mãos, trêmulo –, que é para não termos medo. Nunca mais
na vida eu terei – esse deve ser um frustrado ao extremo, traumatizado de anos de terapia,
livros de auto-ajuda e essas coisas do gênero.
– Então ultrapassa a faixa amarela, que é o primeiro crime que você comete, e quanto mais
crime você cometer em um só dia melhor. Vai lá, que o trem já passa.
Alex boceja, não é que não esteja empolgado de ver alguém muito provavelmente ser
amassado pelo metrô, é que talvez precise inovar um pouco, retorcer no conceito da loucura,
criar coisas emocionantes e divertidas, que pular no metrô é só suicídio. Mas tudo bem, ele não
interfere, é justo que cada patrono saiba do destino de seu filhote, que o oriente, é, ainda que
não se possa confiar em alguém com esse sorriso de León, é um sorriso de abutre que diz
mais ou menos o seguinte, hoje sentirei cheiro de sangue fresco. Enfia as mãos no bolso, tira o
relógio, abre-lhe a portinhola, são onze e meia, dejá vu, muitas vezes até agora esteve com a
sociedade às onze e meia, é uma hora que os pertence. Alex coça a garganta e olha o indicado
se tremendo porque sabe que está prestes a pular, aí vai cuidar de sua própria vida.
– Ai, que chatice – murmura e evita um novo bocejo, fica brincando com os dedos ao redor
dos lábios.
– E então – Habib está ao seu lado –, já soube da idéia de Martin?
– Sim, sim – cantarola, agora está pegando a carteira de cigarros. – Ele não veio hoje?
– Está do outro lado, não consigo vê-lo daqui.
– Não sei se vou – faz um pouco de charme, faz conchinha com as mãos e mima o fumo
recém aceso.
– Acho que é interessante. Fortalece a união. A união é importante.
– Talvez o rapaz ali se espatife, ele está tremendo.
– Então nos arrependeremos pela manhã – sábias palavras.
– Depois esquecemos – mais sábias ainda.
– E quanto à tua loucura?
– Oi? – o olha de relance.
Os trilhos crepitam, estão anunciando que o trem se aproxima, em poucos segundos do
túnel se verá os seus faróis.
– Se esqueceram de você, não teve de fazer nada.

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– Diga-me qualquer coisa, e a farei – ele sorri, mas sabe que mais vale a ameaça que seu
futuro, real ou ilusório, coisa assim.
– Não acho que precise ser assim – ele ri. – Mas tenho uma teoria para isso. Também
tenho razões pra pensar que a loucura não devesse ser assim, posta de cara para o sujeito,
logo de início.
– Fale-me sua teoria.
– Acho que você não precisa de loucuras formais porque já foi provada desde cedo a sua
capacidade de realizar as informais, seja qual for a situação, seja como se dê. As primeiras
loucuras, o estímulo para tudo isso de agora – aponta a frente –, saíram de você. As pessoas
sabem disso, e te respeitam. Te vêem mais ou menos como isso que você disse, é só
desafiarem alguma coisa e você a fará.
– Entendo – traga.
– É claro que olhando de perto sabemos que não é bem assim.
– É?, por quê? – o olha de relance. O trem está chegando e fazendo os seus barulhos de
eletricidade faiscante pronta para torrar viva uma pessoa.
– Você pode ser infalível a quase todo o instante, que as pessoas julgam as outras
baseadas no que vêem delas na maior parte do tempo, é simples e é isso aí. Mas isso tudo
tem um custo, não é de graça. De perto todo mundo é fraco.
– Sou completamente fraco – e fuma.
– Então deve ser isso que a sociedade vê em você, não a fraqueza, mas eles gostam de
sua desilusão. Eles querem se desiludir feito você. É o maior exemplo, e isso não é coisa que
se diga, mas é claro que se sabe.
– Obrigado, me sinto orgulhoso – cospe.
– Também por isso – Habib continua –, a loucura não deve ser como ela é.
Alex o olha com todo jeito óbvio de quem está perguntando onde o rapaz quer chegar, e
assim por instantes o fita com todo jeito de que na verdade não quer dizer nada, que não
poderia nada perguntar, porque está com uma expressão de ressaca ancestral e o cansaço
que deve ser uma entidade própria reencarnando na sua casca, que é o que ele é, se não for a
própria entidade da fadiga que fossilizou e está eternamente enterrada nesse mundo. Uma
casca, eis o seu paradeiro espiritual, por isso, deve ser, deseja chocar-se, bater-se, quer se
partir, que escorra para fora o que houver, está curioso. Perde o espetáculo, não faz diferença,
na verdade nem o confirma, só julga que assim o seja porque ouve o rugido do trem chegando
e em seguida rompe-se uma salva de palmas, espera que estejam saudando o cadáver do
herói que saltou, é quase o harakiri, o cara que saltou é tão honrado quanto um samurai para
perder assim a própria cabeça. Ou não morreu, vai ver as palmas são porque ele chegou ao
outro lado, ou de repente era só um teste e ao ver-se que realmente pularia o puxaram dali
antes que ele realmente cometesse a loucura, que muitas vezes não se vê diferença entre
poder e ir pular e realmente consegui-lo, ainda que isso seja bondade demais. No fundo ele vai
sentir da mesma forma, como se tivesse morrido, mas agora com uma chance, ou um monte
delas a mais. Puxa vida, a sociedade tem um novo membro e daqui a uma semana
provavelmente mais uns sete, ou oito, ou nove, saídos apenas desse.
– A loucura – Habib tosse após olhar para frente –, tem que ser uma escolha trabalhada
lentamente, um processo de observação e aprendizagem que parta do patrono e do indicado.
Um estudo detalhado de cada um dos seus indicados, prioritariamente os que você mesmo
colocou e posteriormente todo o resto da sociedade. A loucura é o amadurecimento desse
conhecimento de cada um. Os antigos devem ser os demônios dos novos para que eles se
tornem fortes, eles têm de fazer com que eles confrontem o que têm de pior, para isso antes de
tudo é preciso identificá-los. Desafiar a morte não é a coisa mais assustadora que se pode
pedir para alguém. A coisa mais assustadora que se pode pedir é aquela que com certeza trará
arrependimento para o resto da vida. Se a pessoa conseguir aniquilar a moral que a coage a
não fazer seja o que for, não sei, se consegue superá-la, isso é estar realmente livre.
– Para que isso possa acontecer – Alex diz –, é preciso eliminar antes qualquer medo das
conseqüências que todos ainda tenham.
– Sim. Não é coisa que se possa deixar de ter, correto? – o olha de relance.
– Sinceramente eu não sei. A repressão pode realmente estar mesmo tão profundamente
enraizada em nós que até na rocha de nosso ego – isso soou bonito –, quando estivermos lá
lhe dizendo, olá, coisa fundamental de mim mesmo, te encontrei, veremos a recheando um
pouco de auto-repressão.
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– Ou não – Habib está com as mãos no bolso.
– É, ou não – expele fumaça pelo nariz.
– É o que estamos tentando fazer, certo? Ver o quão nós, selvagens, fomos polidos.
– Sim, deve ser.
– Talvez haja como eliminar todo nosso medo.
– Sim...
– O retorno à escuridão – Habib fala, pronto, aí já se torna incontestável – diz que o ser
humano sem medo se torna imortal em qualidade.
– Eu sei, eu o fiz – murmura, que na verdade sabe que o retorno à escuridão é uma dessas
coisas que se autogerem.
– A imortalidade enquanto quantidade é impossível, de forma a ser uma grande babaquice.
Tem um cigarro aí pra mim?
– Fique à vontade – retira o maço.
– Então – continua –, o importante é mesmo ser imortal na qualidade. Mas, se me permite,
eu o contesto um tantinho.
– A ordem do dia é questione – ele repete sem muita vivacidade.
– Assim como a estrutura do corpo limita a vida quantitativa, é a quantidade de liberdade
que define a vida qualitativa.
– É, faz sentido.
– A medicina e o estudo do corpo fazem a vida quantitativa se prolongar – ele continua –,
ainda que não nos possa tornar imortais, isto é, um dia morreremos, é claro.
– Então a liberdade também é limitada por nossa constituição – Alex, com tom de pergunta.
– A liberdade é limitada por nossa quantidade de força, mas é paradoxal, porque você
pode ser um fraco livre, ainda que não seja tão gostoso. A questão é que você pode ser fraco,
mas morrer lutando por si, e então estará livre.
– Acho que captei.
– Temos de extirpar o câncer que nos digere a vida qualitativa. Você tem razão, esse
câncer é o medo. Comecemos por não ter de temer o desconhecido, que sempre existirá pela
incapacidade da razão de responder a certas perguntas. Comecemos, em segundo lugar, a
não temer a morte, mas não podemos arranjar desculpas para tolerá-la, não podemos deixar
de viver por medo dela, é o que fazem ao olhar um céu.
– Tudo isso está claro. Qual o ponto? – joga no chão a guimba do cigarro.
– Você precisa ter uma loucura para nos exemplificar. Vencer um medo muito grande para
que possa nos incorporar esse avatar, esse homem imortal.
– Talvez possamos fazer isso com outro.
– Você já teve algo com Júlia?
– Como é? – então o olha.
– É o que comentam, que vocês se conheceram há muito tempo, que algo aconteceu antes
de ela estar com André e algo ficou mal resolvido.
– Metidos em falar do que não sabem – bufa. – Isso é prazer de distorcer, o que as
pessoas querem são histórias fantásticas.
– É?
– Nos conhecemos há muito tempo, eu, ela e André. Somos amigos, a prova disso é que
estamos aqui.
– Tudo bem – ele silencia. – Foi só algo que eu por acaso pensei.
Ele silenciou por instantes, Alex não gosta desse silêncio. Acaba preferindo por instantes
ouvir a farra dos outros.
– É que seria uma loucura e tanto – ele continua.
Alex entende que esse é um desafio e que tem a obrigação de aceitá-lo. São essas
pequenas sugestões que os outros nos dão que nos oferecem um estopim único, é, e aí nasce
algo que Alex sabe que deve fazer, porém não está claro o que lhe é mais valioso, o que
realmente há de fazer, porque sua loucura não é a arruinar Júlia, não, a sua missão é trair a si
mesmo e trair a André. Bublitz vem aí.
– Vocês viram?, tentei gritar pra assustá-lo, mas ele pulou mesmo assim – ele ri. – O
maquinista tá com medo de sair do trem, deve estar na cabine chamando a segurança.
– Não há segurança – Alex.
O que ele está pensando não diz respeito a isso.
– Alex – chega aquele Gabriel cercado por outros –, vamos andando, sim?
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– Oi? – ele finge que não o ouve só por implicância.
– Alex – André vem vindo aí.
– Olá.
– Teatro?, vamos lá? – você não merece a confiança que ele lhe tem.
Júlia vem ao lado com as mãos metidas na roupa, é mesmo, ela não lhe merece a
devoção. Ele olha para Habib por relance, para condená-lo ou pela fraqueza de mostrar-lhe
que entendeu o recado, mas ele se perdeu na multidão da sociedade, ao que deixa Alex para
pensar que é, qualquer um e qualquer coisa da vida nos serve como aquele diabinho a
sussurrar as idéias no ouvido, o mundo na verdade é um grande demônio, nós mesmos
carregamos e gostamos da tentação, tentar é maravilhoso. Tem gente discutindo o que fazer,
que agora há pouco serviu como preliminar, estão todos excitados. Pronto, espera que daqui a
pouco o almirante começa um discurso sobre a coragem ser o principal de todos os valores,
simplesmente porque antecede a qualquer outro, e ainda mais!, diz que isso não são palavras
suas, mas de algum sábio grego desses aí, ao que alguém deve retrucar gritando que aqueles
gregos eram boiolas, aí vem aquela história de que preconceito imbecil etc, seu ignorante etc e
tal, mas que merda, deixe-o ser imbecil em paz, é tão agressivo e delicioso sê-lo. Também tem
gente laureando o indicado de hoje, porque essa é uma etapa implícita da sociedade. A coisa
do incentivo é importante, quanto mais um resolve se exceder mais ele força os outros a
acompanhá-lo, é mesmo, uma guerra bonita de ser vista. Ser livre é uma reação em cadeia.
Agora ele vai subindo pelas escadas do metrô misturado com a gente que trepa pelos
corrimões ou mija nos degraus, que prazer encontram nisso ele não sabe, mas um dia eles
amadurecem e aprendem que há formas mais fenomenais de infração, primeiro começa a se
libertar pelas coisas pequenas, mas isso é tudo uma evolução até que possa atentar
diretamente contra tudo que nos mantêm e nos determina, isto é, você começa a contestar
porque não se pode ficar nu no meio da rua, porque com isso você está contestando, enfim, o
que é o pudor?, e em pouco tempo é óbvio e interessante que estejam se perguntando qual o
valor de uma vida?, meus amigos, Alex responde, ou talvez seja o retorno à escuridão a fazê-
lo, que são conjuntos de idéias psicografadas por divindades do caos, e responde, enfim, que o
caos não se evita por mais que se o engane, a paz que parece servir-nos de panacéia, de cura
para todos os males, de condição primordial para tudo, não, essa paz na verdade é frustrante,
maçante e acomodada, essa paz não pode existir por muito tempo, ninguém mais pode com a
frustração. E sabe-se lá o que vai acontecer com a vida. Uh-uh, gritam as pessoas enquanto
correm e se jogam de peito aberto uns nos outros, lá acima a escada se rompe como um canal
vaginal e se abre para o mundo, como o cérebro se relaciona com o parto a gerir a idéia e levá-
la à fala, assim, como a metáfora perfeita de uma caverna maternal e tranqüila, que dizem uns
que é na verdade nosso verdadeiro sonho de consumo e nosso objetivo sexual – retornamos
ao útero da nossa mãezinha, por isso enfiamo-nos nas moças por aí, querendo nos pôr adentro
– a saída do metrô representa perfeitamente o fim do aconchego quentinho e a entrada num
mundo infernal, cheio de relâmpagos, água torrencial, e aqueles sons cruéis de raios
vociferando. Esse parto é bem grotesco, é quase como a abertura da tal caixa de pandora, que
Alex imagina como um espetáculo de onde salta, e deve ser mesmo de dentro da mulher, que
essa coisa de caixa mais parece metáfora para boceta, mas afinal, imagina como se saltassem
vespas, algo como uma peste se esgueirando, uma nuvem de gafanhotos ou de demônios
estranhos, é isso o que ocorre naquele instante. A sociedade é expelida com a fúria de tudo
que é sujo, o vômito de algo maior.
Eles viram as lixeiras sobre o chão e gritam para os céus coléricos, falando coisas sobre
ser essa a vingança contra deus, que já não era sem tempo, que vão destruir tudo e violar o
cadáver da história. Está entre eles um coveiro, ele chora ajoelhando-se, desde que entrou na
sociedade pôde tolerar-se como necrófilo, ninguém o entende que ele cansou-se do vigor das
mulheres, que cansou-se do tanto que elas falam, reclamam, cansou-se da própria voz aguda,
tudo o que ele quer é um silêncio fúnebre e desempenhar sem controvérsias sua sacanagem.
Pena que aqui não há nenhum corpo para você, amigão. É engraçado como se pode encontrar
tantas pessoas loucas estando no mesmo lugar, eis algo que parece coincidência aos incautos.
Ora, para isso não há mais do que uma justificativa muito simples. Não é que haja um dom
inato a cada um dos presentes que fez com que farejassem podridão em alguém e de repente
se tocassem, vou chamar esse sujeito que ele exala o jeito de quem está disposto a fazer
coisas muito horríveis, mas a verdade é que de perto não só ninguém é normal, como é
profundamente doente. Basta o incentivo para o horror. E vamos blasfemar, alguém sugere
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como iniciativa, contra a coisa que nos prende imediatamente. Todos têm de blasfemar contra
alguma coisa ou contra alguém. É gratificante como decapitar a cabeça de um ícone,
guilhotinar um rei.
Tem gente que está xingando políticos, chamam-nos de porcos, se eles sabem que o
poder infinito corrompe infinitamente, ao menos não sedes hipócrita, é tudo o que estão
pedindo. Blasfemam contra as próprias mães com a política da palmatória, eles querem matá-
las, matar as próprias mães que lhes falaram imbecilidades sobre como devem ser, que
descontavam os nervosismos na coisinha mais fraca ao alcance, que aprenderam a subordiná-
los pela justificativa do amor, como se ele justificasse todas as coisas. Que as velhas
apodreçam no asilo, dizem alguns, porque elas são nojentas e antiquadas, é nessa postura
que os velhos de hoje encontram sua forma de chamar atenção, eis o sintoma da senilidade,
tentar roubar a juventude dos demais. É tudo uma briga por imortalidade mas a gente não sabe
como consegui-la. Que se acabem os pais, que batem nos filhos, nas esposas, porque são
frustrados e não sabem, enfim, como sê-lo sozinhos, que morram estuprados por homens mais
fortes do que eles, que sofram e se dêem conta de que nada são, que só lhes resta o suicídio.
Sylvia gargalha e revela que seu pai a estuprava na infância, a mãe lhe surrou para que nunca
mais repetisse coisa desse tipo, coisa normal, e quando foi pedir ajuda para o tio, é, para o tio,
veja só, o tal pai fez-lhe a proposta irrecusável de usufruir da menina, hoje é assim que ela se
destrói, que às vezes a dor do trauma é o que precisamos para esquecê-lo.
Mas um homem não é um único trauma e não é simples a ponto de uma coisa condicionar
toda a sua vida. Um homem é feito de vertentes infinitas, por isso eles blasfemam muitas
coisas e nunca uma só, que o homem nunca é simples para ofender-se com só uma coisa, e o
limite é o que lhes vier na cabeça, nada mais. Blasfemam as freiras, enrustidas, dos veados
aos homófobos, do preconceituoso ao revolucionário traíra, que não existe causa aplicada se
não há a traição, é o que nos ensinou cristo, protagonista do drama cósmico que devemos
viver, a incompreensão é o que nos aguarda, e bendito seja o Judas, diz um, foda-se ele, tinha
mais que ser enforcado, e cristo também, ai, coitado, também tinha que ser crucificado.
Desculpem-nos os puritanos, perdoai-vos, que eles não sabem o que fazem.
Malditas sejam as fêmeas, maldito seja o todo!, o universo, a criação, o dia à dia, o céu do
dia, a luz da noite, as lindas estrelas, os astros e os pombos, os parques, as criancinhas, os
doces, os outdoors, as roupas, malditas sejam as roupas que vestimos, não precisamos delas,
não nascemos com essas roupas e não nos vestimos para proteger-nos do frio e do calor mas
sim para cobrir a pica, malditos sejam os carros que poluem e maldita seja a camada de ozônio
que só nos traz polêmica, malditos os bichos, que nós também o somos, maldito seja o tempo
que é o assunto entranhado em toda coisa, maldita seja a morte, se ela for forte o suficiente
que me pegue agora, agora!, caia o raio, caia o raio, vem, vem, maldito seja tudo, maldito seja
eu, Alex grita de si para si enquanto canta, uh-há-hú!, uh-há-hêi-ê!, uh-há-hú!, deve haver toda
uma relação entre estar livre e se aproximar do comportamento indígena, por sua vez deve
também haver uma relação entre a falta de educação, e a educação aqui é pisoteada e banida,
e a coisa da fonética. De quanto menos palavras e de quanto mais grunhido fizer-se o idioma
melhor. Tudo pode ser expressado com mais facilidade, como quando grita o seu ódio para as
pessoas nas outras calçadas, são poucas vivalmas numa hora como essa, e fogem
desesperadas ao verem que aparentemente o inferno se abriu. Alex por fim cai de costas numa
poça, trinca os dentes de frio e rasteja, está rolando contra a sujeira para encontrar a si
mesmo.
Do outro lado da calçada uma senhora de idade foge apavorada, tanto que deixa cair seu
guarda-chuvas e encara a tempestade para fugir da loucura que deve ter visto ao virar a
esquina. Um garoto igualmente aterrorizado porque há homens desnudos e sujos de lama
atravessando a rua com cânticos horrendos passa correndo, adentra uma poça d’água com a
canela e dá um banho de lama na velha, é claro que ele não está nem aí para a senhora. Alex
o detesta desde já. Deixa estar, meu amigo, que sua hora vai chegar. É que uma tempestade
não torna as pessoas melhor. Talvez um desastre nuclear.

342
– Não vai apresentar a moça?
Alex ajeita a gola da jaqueta, é dessas refinadas, é certo que se sente naquele ar que nos
colocam as ocasiões especiais, qualquer uma longe das usuais, quando se cheira o vinho e
bebe-se com jeito, bem, como ele dirá?, um pouco refinado demais. Ele está se sentindo muito
bem. Começou a sua vingança, ele sorri e se olha no reflexo da vidraça, qualquer um também
se acharia bonito, elegante, com os cabelos arrumados, a cara asseada, jeito fidalgo, pequeno-
burguês, não há nada mais charmoso que ficar ajeitando a gola, é um gesto avassalador, muito
mais se vier acompanhado de um breve e galante pigarro que o eleva. Nada pode ser mais
elegante que o cara de jaqueta chamado Alex. Por uns instantes esse personagem lhe cai tão
bem que até se acostuma em vesti-lo. Ele nunca será esse cara.
Na verdade se sente numa selva escura, onde feras invisíveis se angustiam, é que não
agüentam ver esse mundo de luzes além da vidraça, e essas feras se suicidam. Você
prometeu domar a sua fauna mental. Você prometeu não esmiuçar coisas densas. É como
olhar para uma poça de esterco e querer ver revelações sobre si mesmo, vê só, este é você.
Esses são você, os padrões na poça. Deixa isso para as noites da sociedade, hoje você tem de
ser falso. Engraxa o sapato e se torna aceitável, dá nó na gravata que não tem, expele um
sorriso.
– Essa é Carla – minha... tem de condicioná-la a algo, é assim que se fazem as
apresentações. É menos perigoso deixar inferido, deixa estar.
Carla é seu ás, um pequeno trunfo que necessariamente tem de usar, do contrário não se
perdoaria, é que é muita coincidência o destino oferecer uma peça que lhe pode ser, à ilusão
ou não, tão decisiva e ele deixá-la apodrecendo na insossa e estéril geladeira do passar dos
tempos. É claro que quando a olha e a vê sorrindo ele se sente um pouco cruel, utilitário, e não
é essa uma crueldade da qual vá se orgulhar, dentre tantas outras que o fazem se sentir bem,
porque essas últimas são as crueldades necessárias, as de superação. Ele sente-se cruel por
a estar usando para alfinetar Júlia, a estar fazendo feliz quando seus motivos são
completamente egoístas, e ainda bem que pelo menos ele não está se usando de auto-
engano, decerto a consciência o torna ainda mais vil. De todo modo ela está sorrindo, sorriso é
bom. Ela nunca saberá, nem se toda a intuição remetê-la a isso, Alex. Você pode disfarçar
muito bem. E ela, ignorando, ficará contente, feliz porque você se importa com ela, a está
dando atenção e, nos sendo pressuposto não sermos ilha, estará com ela criando lá uma
ponte. Ela ficará contente porque tudo que a gente quer é companhia que nos some a alegria,
que possibilite o prazer de dar e o gosto de receber, é isso o que ela quer compartilhar contigo,
mas tudo bem, tudo jóia, ela não sabendo que é somente uma peça, e você pode cuidar disso
com muita sutileza, todos estarão felizes, mas é, você não teria nem depois de descartá-la a
coragem de dizer, você não é gente para mim. É isso que te torna um fracassado. E meio que
por redenção amorosa ele passou mais cedo os braços pelos ombros dela, dizendo-lhe em
segredo para perdoá-lo, mas que nesse caso os fins precisam justificar os meios, e realize, não
está sendo tão perverso assim, apenas executando uma dessas pequenas sujeirinhas. Algo
como esses clichês que falam sobre trair a confiança, se bem que ele nunca deu motivos para
que créditos fossem depositados nele, nem mesmo tem se mostrado ser um cara de confiança,
um cara legal para o qual se abririam e, ainda na categoria do clichê, não é ele um cara a
quem dariam a entrada para que ele venha e então pise no coração.
– Ora, quem diria – vem André falar. – Você e as suas surpresas – logo ele que tem o
hábito de roubar suas fêmeas.
Júlia está linda, não é de se espantar. Está com os ombros de fora, são ombros que dão
vontade de abraçar. Ele já abraçou muitas mulheres mas nunca encontrou ombros tão
saudáveis como esse, convidativos, são mesmo propícios, só indo para os olhos é que a coisa
se estraga. Ela o olha indefinidamente, mas se vem dela é coisa cruelmente indefinível, não é
preciso mais que um vulto de cumprimento enquanto sorri para saber que seu sorriso a ela é
um golpe e que ele pode começar desde já a se arrepender por cutucar a fera com vara curta.
Boa noite a todos.
A música ambiente vai tocando bem tranqüila. Perde-se um pouco no aquário colorido, há
o pequeno córrego d’água. Há a mesa que é uma meia-lua. Há o vidro que enxerga o lado de
fora, esse jardim deve ser de hortênsias, é uma pena que ele não entenda muito de flores,
quem sabe quando envelhecer não estude botânica, tenha um quintal e crie um cachorro.
– Alex tem bom gosto para as mulheres – diz Bublitz.
343
– Não fiquemos falando isso – preferia volver-se ao aquário –, não a fiquem
constrangendo. Seus merdas – Carla está sorrindo.
– Podemos falar sobre outras coisas – Stern. – Por que não nos conhecemos um pouco
melhor? – é, risos.
– Podemos falar cada um de nós um pouco de nossas vidas a partir dos últimos dez anos –
Martin está enfeitando a mesa, acendendo essas vela e deixando a simetria das coisas
impecável.
– Coisa chata – diz Bublitz. – Não é isso que nos interessa, e sim como andam as coisas
na cozinha.
– Dá um tempo – o maître ri. Alex se pergunta se conhece de fato esse rapaz ou se essa
cara está recheada de um ser diferente.
– Eu estava com uma ressaca horrível do dia anterior – André termina uma tulipa, e ri. –
Um dos diretores me olhou e disse se não seria melhor, depois de uma noitada feito essa, mal
sabia ele – ri um pouco –, hum – Júlia limpa o canto da boca dele –, se não era melhor eu ir
para casa e deixar as coisas com alguém de confiança, então me deu um tapinha complacente
no ombro. Eu tive de dizer, meu caro, com a competência de trabalhar assim eu ainda pego o
teu emprego.
– E ele ainda acha isso bonito – diz Júlia.
– É trágico, mas está bom assim...
– Amor, se importa se eu fumar só hoje? – Júlia, se debruçando nos ombros de André.
– Querida – André a olha com jeito de que isso não é coisa de se falar em público –, de
novo?, já conversamos tanto...
– Tudo bem, coração, deixa pra lá.
– Estamos na ala dos fumantes, Martin?
– Fiquem à vontade – dá com os braços a fim de passar-se por legal –, as normas aqui não
importam.
Esse comentário produziu o clima inegável que antecede o riso, ainda vem a ser um clima
pesado.
– Ela é sua nova indicada, Alex? – é o que Stern pergunta olhando para Carla.
Ele retruca como se fosse devorá-lo de fúria. Alguém aqui está falando mais do que deve.
– Como assim? – olha o sorriso amarelo de Carla ao perguntar.
– Você sabe – cabe a Alex corrigir os erros, é sempre assim. – Indicada... – e sorri como se
estivesse constrangido. Ele nunca se constrange de verdade. Encena o papel dos patetas –,
não dê ouvidos a ele.
– Hum. O que vocês preferem, estrogonofe de frango ou de carne? – Martin.
– Ah, sim, tudo bem – Carla sorri.
– E então – vem Júlia dizendo, e se debruça sobre a mesa com todo um esquema ardiloso.
Se as mulheres são terríveis com seus homens quem dirá contra as rivais –, há quanto tempo
vocês se conhecem? – é, Júlia, você o conhece há mais tempo, de repente você vai levantar e
dizer venci.
– Alguns meses – Alex responde e está metendo as mãos dentro do casaco.
– É – Carla, não se arrisque em falar muito. – E de uma forma bem interessante.
– É? – Júlia arqueia as sobrancelhas. Carla também não é um anjo.
– Conte os detalhes – André sorri quase tossindo, Júlia o cutuca na costela.
– Não é isso que vocês estão pensando... – Carla ri simpaticamente.
– Ainda não estamos pensando em nada – Júlia.
– Alex está morando na casa de meu tio. Eu alugava um apartamento faz um tempo, mas
por alguns problemas no trabalho, então, eu não pude mais pagá-lo, tive de acabar mudando.
Achei que a tal casa estivesse livre e que não ia incomodar ninguém...
– Certa noite eu cheguei e ela me esperava com uma faca.
– É isso – ela ri segurando-lhe o braço. – Achei que fosse um ladrão.
– É, realmente. Um perigo – Júlia.
– Há muitas queixas de assalto lá nas redondezas, arrombamentos são comuns, hein? –
Carla.
– Hoje em dia, basta uma surpresa para que alguém nos esteja esfaqueando – Júlia, e
deve ser essa uma ameaça.
– Mais um chope? – Bublitz se dispõe a pegar.
– Eu gostaria de um, por favor – Carla.
344
– Eu gostaria de dois – Alex, um para cada mulher que o atormenta.
– E vocês, como se conheceram? – Carla. – Alex contou que são amigos de longa data.
– Contou a nossa história para ela, Alex? – André ri.
– Não fale desse jeito, ela vai acabar estranhando, essa coisa de nossa história e tudo
mais.
– Houve uma briga num estacionamento, até hoje não sei muito bem porquê. Por que era a
briga, Alex?
– Eu não lembro.
– Houve essa briga, e por acaso eu e uns amigos, nada a ver entre eu e ele – ele vai
gesticulando –, nem nos conhecíamos, por acaso, veja só, quem estava brigando?, ele e os
seus amigos. Tivemos de nos meter porque eles estavam caindo em cima dos carros, e um
deles era do meu camarada, que acabou sendo acertado sem ter nada a ver. O resultado,
passamos a noite no hospital.
– Alex não parece conseguir dormir em paz se antes não armar uma merda – Carla sorri.
É, minha querida, você não faz idéia.
– André está sempre me contando essa história. Como se eu esquecesse. A propósito, sou
Júlia.
– Prazer.
Elas têm um jeito próprio de encaminhar as suas rixas. Aqui Alex crê que estão
implicitamente, e imperceptivelmente a qualquer homem, a brigar por sua posse. Tipo uma
briga milenar secreta. Aí vem Bublitz e as tulipas de chope. Ele finge que é garçom e vem tão
alegremente que Alex se preocupa se não encontrará alguma coisa horrível na sua bebida, jura
por deus que se sentir cheiro ou gosto parecido com de mijo, ou que apenas o imagine com um
pouco mais de realismo, que seja, ele dará com algo de vidro na cabeça do garoto. Prefere
deixar que outros a experimentem antes, enquanto isso fuma, hábito ainda seguro.
– Também nos conhecemos há muito tempo – Júlia termina de dizer.
– Todos aqui – André –, se conheceram indiretamente. Essa coisa do contato é fascinante.
Primeiro éramos eu e Alex, depois eu, Alex e Júlia. Primeiro éramos eu e Stern – aponta-o, e
ele se coça em contrapartida –, depois eu, Stern, Alex e Júlia. Primeiro eram Stern e Martin,
depois, então, e por aí vai...
– Isso é bastante normal, amor – Júlia coloca as mãos por sobre seus ombros.
– Vieram poucas pessoas – Alex.
– É, não são todos da sociedade que tem disposição de fazer algo normal.
Mais um olhar feio, olha lá, cada vez mais não se sabe onde parar com os excessos.
Bublitz parece se constranger mas não saber porque pecou, mas por sorte ou por via das
dúvidas ele acatou, então está bem, tudo ok, tudo sob controle, que por sorte Carla não
entende a malícia por trás dessas palavras, e de repente toma sociedade como se referisse a
sociedade em geral, do tipo, a sociedade está passando por muitas crises, ou então ao referir-
se ao governo de uma sociedade, ou então, com um pouco mais de inteligência, ela até pode
subentender que sociedade é como um grupo de pessoas com afinidades entre si, mas daí a
tomá-la como fraternidade secreta de práticas horríveis é exigir um pouco de quem nada
desconfia e de quem aparentemente não tem razões para de nada desconfiar, seria para isso
preciso uma inteligência das especiais, presume-se não ser esse o caso dela, mas quem é
Alex para afirmar uma coisa dessas?, ou desafirmar?, quem é ele para falar sobre
inteligência?, nada, ele não é nada, apenas tem coisas demais na cabeça para preocupar-se
ainda por cima com essa outra, hábito que é quase coleção, fetiche obsessivo, e vai em frente,
assim ele segue em frente, que esquecer não é remédio, mas alivia por um tempo
esperançoso.
Sente-se excitado, é uma excitação como arrepio desconfortável ao ver que basicamente
são todos a mirar sempre que podem as pernas de Carla. Deve ser gratificante ter a sua
mulher, sua fêmea, extensão de si mesmo, propriedade de um jeito muito especial, cobiçada
pelos próximos, invejada por outras, isso provoca e revigora a sexualidade do poder, que como
está notando se traduz em arrepio ascendente. E talvez ela queira ser desejada e fodida em
cima da mesa, e a liberdade dela o excita. A idéia de liberdade dá vida ao seu corpo bonito e a
alma que talvez ele não conheça de verdade. Há um pouco de nojo na idéia de oferecê-la, mas
isso lhe arrebata como uma missão de amoralidade. É como sonhar com a própria mãe nua,
sentir desejo de comê-la e, por ter de ser livre, porque agora tem de se forçar a isso, é quase
escravo da liberdade até o instante em que se possa libertamente abrir a mão e deixá-la partir.
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Então, por ter de ser livre, tem de confessá-la o que sentiu e não engolir esses impulsos tão
baixos, tenham vindo talvez de um édipo bastante violento, que seja. Sorte, ele pensou, que a
minha mãe esteja fora de meu alcance, e se alivia por ao menos nisso não ter a pendência da
realização de uma situação bizarra. Se atenha a Carla, a culpa é dela de ter posto esse
vestido, que ela senta-se e a escorre nas pernas, são boas pernas no final das contas, ao que
não culpa as fantasias de quem quer que seja, muito menos as suas. Não custaria muito jogá-
la sobre a mesa e comê-la, gargalhando que é para ofender Júlia.
– Você é mesmo muito bonita – é o que Júlia diz.
– Obrigada – talvez Carla a estranhe, que ela nem é tão bonita assim.
Teve de prepará-la para que ela estivesse aí. Talvez os seus métodos tenham sido um
pouco sádicos.
Ele pensava, talvez entre as primeiras vezes na vida em que pensava sobre um tema tão
revoltante para ele quanto esse, sobre aquilo de que, quanto mais se preocupa com alguém.
mais se tem medo de machucá-lo, e acaba-se sofrendo pelo temor disto e acaba-se deixando
de realmente aproveitar as delícias desse alguém. É como o caso daquele psiquiatra famoso,
não lembra o nome dele, paciência, mas se ele bem lembra foi com esse sujeito que aconteceu
aquele caso do médico se apaixonar pela paciente problemática e temê-la profundamente pelo
mal que ele mesmo podia causar a ela. Tudo isto de poder absoluto não é incondicionalmente
bom. Ou talvez seja apenas uma questão de não sentir-se responsável por nada, sempre que o
fantasma da responsabilidade vier lhe assombrar bastaria exorcizá-lo, xingá-lo e dizer que está
pouco se fodendo, que fará o que for preciso para satisfazer-se, se o alvo, isto é, se a pessoa
que se interpõe ou representa a sua própria realização não for forte o suficiente para suportar
ser a sua cerca a ser pulada, o seu trampolim, o seu banquete, eis uma dessas coisas que
devemos olhar com jeito de tsc e enfim murmurarmos com alguma dó, que pena.
Aí ele se lembra de algo que não se lembrava há muito tempo. Na época em que ele fazia
suas anotações, muito antes do retorno à escuridão, talvez inclusive mola e estímulo do que
veio a ser este retorno à escuridão, acabou por acaso lendo uma poesia, coisa de que não
gosta muito, mas não se importando muito com os porquês, ele se contêm em aceitar que com
essa deu-se uma atração casual, que há seduções fortes demais para se digerirem. Ora, o que
isso tem a ver com o assunto?, Alex se pergunta a nível retórico, e ele imediatamente pretende
se responder. Dizem as linhas, essas que o tocam.
– Esperavam, dessa forma, que eu tivesse um coração?
O inventaram para o corte ornamentar,
para o sangue nunca parecer em vão.
Ele quis ter arrancado o próprio coração, queimado ele para um deus pagão e se tornado
totalmente livre. Mas ele sente um coração e se preocupa se não conseguiu se livrar dele. E se
preocupa se ele não seria inevitável, se é algo além do que inventaram para o corte
ornamentar, para submetê-lo com a legitimidade que assim ordena o coração, que fala em
linguagens estranhas à razão etc etc, tudo isso que dizem sobre suas idéias emotivas
sussurrando nos ouvidos. Se essa coisa de peito for realmente orgânica, assim ele terá de
acreditar que a moral é inevitável, esta coisa pronta para moderá-lo, para guiá-lo, o coração
nunca ordena o mal, muito suspeita essa voz interior, esse suporte interno que o fará sentir
nojo e afirmar com cara de repúdio que isso ou aquilo é feio, que isso ou aquilo não se deve
mostrar, será esse instrumento máximo de controle, como é, só que mais grave, muito mais
grave à partir do instante em que nada pode ser feito. Se o coração é orgânico só mesmo com
um punhal. Se não, ele ainda precisa limpar-se. Limpar-se das obsessões que nada lhe
acrescentam.
(...) e minha boca,
já sem dentes, de gengiva maltratada, se prostrava, tão faminta,
a calar... E a própria antipatia mal sequer a permitia!
Concluía-se, a tola, assassina do amor... mal sabia que era esse
quem o hábito retinha. Essa ânsia por matar.
Tem de limpar-se do que pode anteceder o amor.
Porque quanto a Carla, não faz muito tempo que estavam a caminho e ele precisou treiná-
la, ela dobrou a cabeça e a recostou sobre seu ombro, respirou com uma tranqüilidade feliz,
essa deve ser a pior de todas. Estavam no táxi, foi tudo um pouco rápido e inevitável. Ele
preocupava-se há horas, há dias, desde que a viu da primeira vez, com o que podia fazer a ela,
mas só agora percebia não o que podia fazer, mas que se preocupava. Ele sentiu os seios
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roçarem nos seus braços, e aí esquece tudo o que outrora pensou, tendo isso como resultados
de uma moral longínqua e opressiva e faz o melhor que pode oferecer de si, ou seja,
concentrar-se no instante, que por acaso é se permitir. Ergue levemente a sua cabeça e deve
tê-la surpreendido quando lhe segurou gentilmente o pescoço e a beijou, que ele não é dado a
esses carinhos gratuitos, mas não é por isso que alguém deva supor que ele está na iminência
de cobrar alguma coisa, é claro e possível que ele queira somente um beijo, e o tem. A beija
com suavidade e com direito a olhares intrigados quando as pálpebras se abrem, e ele se
arrepende de tê-lo feito. Olhou para o lado de fora e desiste de se entender, deixa que o
mundo o reconstrua, uma vez dissolvido e absolvido, quem sabe reencarnado em uma outra
pessoa.
E ele por muito tempo foi a solução elementar de todos os assuntos, um canal onde o
inconsciente coletivo se dirige e toma chá com sua partícula elementar, encontram-se e
concordam, vão reclamar um com o outro da vida e fazer passear por sua carne as frustrações
de toda a humanidade, que no fim não devem diferir muito das suas próprias, no fim nada se
difere. E o inconsciente lhe conta um segredo, que não é preciso de causas complexas para o
homem se ferir e se destruir. Culpar traumas para supor as mágoas que temos é um absurdo,
aqui o inconsciente o diz profeticamente que todo homem já nasce magoado, que viver é um
martírio descomunal para a alma e é o seu principal, é inevitável que ela acumule dores, a
alma tem um poder absurdo de ser, mas também o castigo de viver as conseqüências. A alma,
no fim, compensando ou não, sempre sai destruída. E aí tem de acordar porque a porta do táxi
em que veio se abriu, o estalo o eriça a atenção como a de um gato que afia as garras e grita
crunhéu. Ele foi mais discreto e só balançou a cabeça, tem de pagar o táxi, não é muito do
agrado mas engole o contragosto por saber precisar, o número no taxímetro desperta um
inevitável resmungo, mas tudo certo. Ele pensa em criar uma pequena tensão, um cabo-de-
guerra com o dinheiro, é meu, não, não é e, com uma lágrima teimosa a corroer-lhe a mucosa
do olhar, pensou que terá de ficar umas semanas improvisando quando chegada a hora do
almoço, é isso aí, e paciência, cheire cola.
Os risos e os fragmentos de conversa o trazem de volta à mesa.
– Olha aí, ainda há uma panela muito grande lá dentro – vem Martin servindo as suas
coisas.
– Tem certeza que não precisa de ajuda? – diz Carina.
Lá também está Carina, sorrindo porque está se divertindo, é que está mais adaptada a
toda essa gentalha, ao que tudo indica ela é do tipo que prefere ouvir. E sem saber ao certo
por quê, Alex quando a vê sente uma contração estomacal, uma martelada que sente a gente
que está sendo avisada de alguma coisa, um desconforto que deve anunciar um mau
presságio. Mas aí a risada alta de alguém o faz se distrair, riso é algo em que vale a pena se
prender.
– Eu não posso mentir – Habib toma mais um gole e soergue os ombros –, eu não agüento
mais jovens. Estou velho e gosto disso.
– Você sempre foi assim.
– É verdade, eu nunca tive senso de humor.
– Sempre foi destrutivo. Habib é um rapaz que tem fases – Martin vai pondo os pratos em
ordem –, e quando está em sua fase sociável, se escondam.
– Por quê? – alguém pergunta.
– Ele vai fazer todas as piadas sem graça, usar de humor negro, hum, e vai achar estar
fazendo bem, e vai implicar com você, vai te por no chão achando que isso é conversar –
Martin.
– Somos todos de fácil convivência – Alex fuma.
– É por isso que somos amigos – André.
– Por isso eu prefiro os livros à pessoas. Uma coisa é a gente e outra coisa são as idéias
que temos. As idéias são coisas incompletas e muito bonitas. É a melhor parte de qualquer um.
A pessoa inteira é que não presta... – Habib.
– Eu nunca soube diferenciar essas coisas muito bem – Alex.
– O que se é, então? – vem André. – É o que se faz?, é o que se pensa?
– O que se quer parece mais apropriado – Júlia.
– Hum, eu concordo com Júlia... – Carla.
– É por isso que geralmente se diz não saber o que somos. – André. – As pessoas não
sabem o que querem. É também por isso que estamos aqui.
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– Perfeitamente – Habib. – Mas estamos fazendo direito?
– Você está?
– Estou evoluindo, e quanto a você?
– Vou indo bem, obrigado.
Alex espera que Carla entenda todo esse discurso sobre realização de desejos e sobre
estarmos aqui como sendo por estarmos aqui, assim, vivos.
– A comida tá uma merda, Martin – Bublitz.
Alex sente que sua mão está sendo tocada, olha imediatamente e lá repousa a mão de
Carla.
– Acho que devíamos brindar – André.
– Ao retorno... – começa a falar um.
– A nós? – Alex interrompe e ergue o copo.
É, foi uma boa saída.
– A nós – diz André e sorri.
– A nós – Bublitz, ergue o copo.
– A nós – não sabe o que se passa por trás do olhar de Júlia.
– A nós – Martin, ele sorri para Carina, que o acompanha.
– A nós.
– A nós – Stern com olhar satisfeito.
– A nós – Habib.
– A nós – Carla olha Alex e sorri.
E é isso, é algo que por si só se afirma, tenho dito. E eles bebem, e dito isso de nós, os de
inteligência mais subjetiva podem perceber que aí se escondem uma série de pactos, não só
um, não só referente às intenções de um deles, mas pactos da sociedade, pactos de vingança,
pactos de desejo e promessas de esperança, paixão e coisa assim. Como se pudesse ter aqui
o fim natural a um epílogo, essa lembrança deveria, assim Alex se diz, minguar em sua cabeça
e desaparecer, abrindo espaço para uma outra série de acontecimentos que em nada
estivessem interligados a esse, mas a vida não é uma novela e tampouco um livro onde um
final perfeito nos aguarda. À parte um momento que encerraria redondamente uma cena, ainda
há muitas coisas que simplesmente a estendem, como agora, em que as pessoas comem e em
focos menores cuidam de seus assuntos, e aí há bocejos, reações menos ardorosas, olhos que
piscam e não querem dizer nada, som de gente mastigando, afinal estão comendo, restinhos
que escapam pelas bordas dos pratos, gente limpando a boca com guardanapo, olhos um
pouco ciumentos, mãos que apertam as outras por baixo dos lençóis, um sorriso ao seu lado
sendo contido e toda essa sorte de coisas.
– Com licença – diz Júlia um certo instante –, vou ao banheiro. Carla, Carina? – o olhar
convidativo da fêmea que quer fofocar. Com Júlia isso é sempre mais monstruoso. É claro que
se usando de um fator assim, socialmente aceitável, da normalidade aparente dos truques das
mulheres, é claro que ela conspira, com Júlia nunca se pode supor inocência.
– Ora, deixe elas conosco, Júlia – André.
– Não vou deixar moças bonitas – e o beija no rosto – com meu noivo – e sorri como se
estivesse brincando. – E elas devem ter segredos pra me contar.
É, Carla deve estar achando isso simpático de sua parte. Inocentemente ela se deixará
seduzir e não há nada que você possa fazer sem parecer exagerado, Alex. Elas se levantam e
os homens olham as bundas enquanto as pernas vão as torneando, um passo para frente,
outro, indo, indo, que esses movimentos são hipnóticos. Olhá-los é inevitável e perdoável, que
se Alex olha os de Júlia, André olha os de Carla e estão quites, e os demais olham as três, e é
isso. Não é isso com que ele se preocupa. É, que agora imagina ela lá, isto é, sua Carla, pensa
neste termo sua não como pronome possessivo – mentira, ainda que odeie isto –, mas por
referência inevitável, porque se há alguém com que ela poderia ser vinculada, esse alguém
seria ele, que é o mundo mais perto do seu. E ele a imagina cercada por Júlia, um predador
talvez muito mais astuto do que ele mesmo, as imagina no banheiro de frente ao espelho como
quem vai retocar a maquiagem, passar o batom ou ajeitar o contorno das sombras, e é o
momento ideal para Júlia fingir perguntar inocentemente alguma coisa vital e estragar a tudo.
Ela pode se comportar até com um jeito lúdico. Por exemplo, o que vocês são?, ah, mas sabe
que ela não sabe explicar, então Carla há de estranhar um pouco a pergunta mas há de rir
constrangida, dizendo que as coisas ainda estão caminhando rumo a alguma definição, que só

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o tempo pode descrever tropegamente esse tipo de coisa, processo de conhecimento um do
outro etc.
Então por que ele não a chamou para a sociedade?, Júlia diria com aquele tom agudo tão
chato de quem está contestando o óbvio, mas sabe estar cometendo uma gafe cruel. E mesmo
que ela estragasse tudo, sua vida, sua paz, ela usaria argumentos tão persuasivos que seria
impossível concordar consigo mesmo e discordar dela, e a perdoaria, talvez porque precise
dela. Que sociedade?, aqui a mocinha retrucaria ainda sorrindo, com jeito de quem ainda não
está disposto a mostrar que está insatisfeito com o desconhecimento de algo aparentemente
tão óbvio, que decerto está sendo ela a última a saber. Como assim, que sociedade?, viria
ainda essa pergunta, você não sabe que sociedade?, ele não te falou?. O tom de seriedade a
agravar o silêncio, e um deixa para lá. Por favor, não conte nada para ela. É ele mesmo quem
quer contar, e ele não supôs a possibilidade de que as coisas pudessem se estragar assim, e
torna-se profundamente infeliz por sentir que ele nunca será capaz de dar um golpe e se sair
vitorioso, que nunca conseguirá estar por cima de Júlia. Bons eram os tempos em que se
esquecera dela ou que eram amigos.
Ou de repente você a trouxe aí porque ela é outra coisa da qual você quer se libertar e
sabe que só Júlia poderia fazê-lo. Ou talvez seja apenas um teste, seja da sua força, seja da
dela. O porquê ele não sabe. É que você não sabe aonde quer chegar e ainda assim faz
qualquer coisa, não, na verdade é exatamente por isso que você faz qualquer coisa. Não é
meramente alguém que se testa nas conseqüências, é alguém que está completamente
perdido, que tanto não sabe o que fazer que procura em qualquer lugar uma saída, a cada
porta que se abre, reflete-se e se dá conta de que não é bem por aí, paciência, que a partir daí
só resta o peso nas costas e as dores de cabeça. Esqueceu que tinha um prato servido em sua
frente. Dá-lhe uma garfada. Não é uma comida excepcional, o paladar parece ter-se dissolvido
pelo liberar azedo de algum hormônio que lhe diz para passar mal, que não pode fingir essa
indiferença todo o tempo sem ter vontade de algo explodir, e ele sabe que em algum momento
terá de fazê-lo, por isso formulou a sociedade.
Espera que se rompam logo os choros no banheiro, sabe-se lá por quê Júlia teria contado
a Carla alguma sordidez dele por pura inveja e sacanagem, e que saia uma mulher de lágrimas
furiosas, que não há pior, e que ela se dirija a ele, dê-lhe uma bolsada que realmente há de
doer, um tapa no rosto, a fincada de unhas na bochecha e então irá embora, ao que o deixará
com um ardor na cara e o embrulho de mal-estar de quem mais uma vez não sabe o que fazer,
e só lhe restará fazer o óbvio, terminar sua comida.
Como prova de que o mundo nos é lento demais, ou como prova de que não é simpático
às nossas dores, Alex está percebendo que tratam de algum outro assunto bem mais
interessante.
– Eu não acho que seja realmente um problema – dizia Martin.
– O quê? – ele vai e se mete.
– Cá entre nós, esse jeito que ele olha Carina... – Bublitz sorri.
– Já lhe disse, não é um problema.
– O que tem demais? – Alex bebe.
– É coisa de paixão, não se discute – diz Stern e sorri com ironia.
– Não me venha com isso, não se trata de nada disso – Martin.
– E então, é do quê que se trata?
– Eu me identifico com ela. Gosto dela e é só – ajeita as roupas e fala num tom elegante.
– Essa coisa de se identificar é bem velha, viu? – André ri.
– O respeito está implícito quando se quer o bem de alguém? – Alex fuma.
– Por quê? – André.
– Nós respeitamos as pessoas como formas de atração – ele sente que está confuso –,
para fisgá-las em nossos jogos, em nossa prisão, num cárcere aconchegante, e isso é querer
bem, querer cuidar. Mas às vezes você tem de desrespeitar porque precisa ser sincero, e ser
sincero é bom. Porra, como fazer o melhor para os outros?, como agradá-los e protegê-los ao
mesmo tempo?
– Por quê?
– Não há como fazer – ele conclui. – Isso é uma grande babaquice, é uma perda de tempo.
– Alex, você não está falando nada com nada – diz Habib.
– Simples – despejou as cinzas no cinzeiro –, estou me perguntando por que Martin não a
come.
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– Que é isso, Alex? Nem todas as coisas circulam em torno disso – ele parece irritar-se.
– Você sabe me dizer em torno do que todas as coisas não circulam, mas não deve saber
dizer em torno do que elas o fazem.
– Reconhecer como não é... já é um grande avanço – e garfou no prato como se nada
acontecesse.
– Assim como desconstruir é a iniciativa da construção – André o ajuda.
– Vocês podem falar o que quiser – Habib diz –, mas me pergunto a mesma coisa que
Alex.
– Eu não devo satisfações a você – ele ruge baixinho e os olha com o jeito que olham as
pessoas de poucos amigos.
– Mas para si mesmo deve – Alex está descontando seu caos nos primeiros que fazem por
merecer. – Um desejo é simples e você o está enfeitando. Não sou eu que vou dizer do que se
trata, apesar de supor – e sorri. – A liberdade é rápida – isso ele murmura como quem teme os
ouvidos das paredes.
– Escute, não é pressionando ele que você o fará descobrir se ele está se enganando –
André.
– É, e se vocês não se importam, não vou mais tolerar um desrespeito como esse – ele
parece começar a ter ciência de sua força. – E caso isso venha a acontecer...
– Perfeitamente – agora Alex se orgulha com um pesar de consciência, e o fita nos olhos –,
então eu nunca mais falarei sobre isso – e acata.
– Discutamos sobre o desemprego estrutural – Stern agora deu para usar de arezinhos
irônicos – ou coisa assim.
– Vocês precisam de boceta.
Ele os deixa rirem com seus próprios assuntos, como se nem eles nem suas risadas
fossem feitos para si, nojento e infeliz como um menininho gordo e excluído por não dividir os
doces. Remói-se no orgulho que é a única coisa que lhe resta, até lhe vir André, que se
debruça ajeitando as mangas e olhando para os outros lados com jeito de quem pretende falar
em particular, ao que só lhe falta realmente o som de pst.
– Gostei disso que você fez – André murmura e leva a garrafa de cerveja à boca.
– Achei forte da parte dele.
– Estou falando da sua namorada.
– Sei.
– Você mesmo – mais um gole – disse que não se misturavam as coisas...
– E você se esforçou pra me convencer do contrário.
– Ainda assim, ela não é da sociedade.
Ouvem os trotes de tamanco, agora eles se olham torto porque as mulheres estão
voltando. Viram-se com discrição para olhar e confirmam que o som antecede as imagens, e lá
vem elas. Alex espera o episódio do tapa. Tudo o que lhe passa na cabeça é um teatro,
espetacular demais. E tudo que lhe vem é um sussurro de André que o faz estremecer, mas
cujas origens não percebe e fica a cargo de inúmeras outras ocasiões entender.
– Não faça mais uma coisa dessas – é o que ele diz.
E ele não sabe se deve ficar estático e deixar que o cigarro queimando por eras chegue a
lançar-lhe as cinzas nas pontas dos dedos, e então ele despertará e descobrirá que esteve
envidrado num instante e que não acompanhou o tudo o mais a apodrecer, é isso porque agora
só há cinzas e um mural abandonado como numa viagem ao futuro, tudo se passou e ruiu e
por alguma maldição do destino sua consciência ficou ali, estática, vendo tudo desabar, e o
pescoço atado ao espetáculo.
Carla sentou-se e por baixo das toalhas aperta a sua mão, mas isso não é indício que alivie
alguém que, para estar atento, precisa de um pouco de desespero, até que chegue a hora de
roer as próprias unhas metendo os dedos goela abaixo. Esse é Alex. Olharia firmemente e
inquisidor para André se Júlia não estivesse sentando e se espreguiçando em seus ombros.
Ela vai dar beijinhos no pescoço e murmurar coisas no seu ouvido, e nunca estará na posição
dele para saber afinal as coisas que ela fala quando faz essas coisas, pode estar falando sobre
o quanto gosta de estar ali com ele, ou o quanto está se sentindo mal nesse ambiente de
pessoas chatas, se bem que essas não são pessoas chatas e ela está sorrindo, e um
comentário como esse acompanhado de um sorriso teria de ser coisa de gente muito falsa, é.
ao que ele ainda fica num impasse e não sabe afinal o que achar. Pode ser apenas uma piada
erótica, algo do tipo, se não estivéssemos em público você não imagina o que eu faria com
350
minha língua. Ela fala isso mas quando pode ser livre não o faz, Júlia é uma missão muito
complicada. Deve ser a mais difícil de todas. O orgulho dela deve ser algo profundamente
narcisista – é a coisa mais óbvia que ele supõe –, vai agonizar com suas vaidades até o fim.
Daqui a pouco ela murmura algo sobre os jardins de hortênsias, ou são hortênsias ou
begônias, ele realmente entende muito pouco disso, mas ela sabe de um monte de coisas, tem
muito mais estudo, lê muito mais revistas, tem muitos outros canais de tv e já viajou por muito
mais lugares, pode falar algo sobre o quanto o ambiente é aconchegante e familiar, como essa
iluminação do mundo lá fora muda a cara dele, parece apenas um retrato emoldurado na
parede, e aí ela pode apelar um pouco para filosofia, que é coisa que também se aprende para
ostentar, dizendo que as coisas vistas daqui se tornam preto-e-branco porém bonitas, ao
contrário do monocromático pulsar do lado de fora, e isso é mais coisa de poeta que de
filósofo, mas assim como não entende de plantas Alex também não define muito bem alguns
ramos da estética. Carla faz um carinho tímido no braço dele enquanto bocas a sua frente se
abrem e gargalham suas comédias.
Não vai demorar para que comecem confissões e coisas assim. É coisa que gosta de ouvir,
e se diz que é algo que todo mundo precisa.
– Eu tenho a impressão – diz Stern – que o mundo começou a implodir. Percebemos isso
quando começam a acontecer uma sorte de coisas estranhas. E elas estão por aí cada vez
mais. Você vê todo dia pelo menos uma pessoa falando sozinha, andando na rua.
Impressionante. Outro dia, à noite, eu andava numa rua movimentada, esperei o sinal abrir pra
mim, enquanto isso parei na faixa. Quando o sinal dos carros parou, olhei por acaso para um
deles, e havia um homem nu dirigindo. Nu e indiferente, ali pelo trânsito como se tanto fizesse,
tão normal quanto, quanto – pensa um termo, acaba se perdendo.
– É tipo ver um camelo deitado na calçada – Bublitz ri.
– Tão normal quanto andar pra frente – Stern.
– Se eu visse um dromedário deitado na praça – Bublitz – acho que eu ficava malucão,
dançava rugindo ao redor dele, algo assim.
– São sinais que nos vêm – André fala.
– Sinais do quê?
– De que realmente as coisas estão implodindo – responde Stern –, como se a tendência
fosse dessas coisas estranhas começaram a acontecer sem limites ou previsão, a chegar um
momento de descontração total em que você não saberá identificar o lugar em que você vivia
anteriormente, tudo – ele faz um gesto abrangente –, tudo terá sido deformado.
– É como se houvesse algo palpitando – diz André –, algo que num instante simplesmente
vem à tona. Algo que não se reconhece e não se permite à luz do dia.
– Parece uma teoria de conspiração – diz Martin.
– Não se trata de conspiração, não há como conspirar essas coisas – Alex diz e fuma. –
Simplesmente começa a ocorrer, e continua ocorrendo. É um declínio – afunda a guimba no
cinzeiro – que não se pode evitar.
– Contribuímos com isso – diz André –, mas não somos mais do que mais uns.
– É uma coisa da qual não se pode escapar – Habib.
– Ao mesmo tempo – Bublitz fala com voz profunda – eu sinto que é como se nada mais
além de mim importasse. Eu mesmo é tudo do que tenho alcance. Eu não tenho controle de
nada. Eu ando, eu trabalho, eu estou em casa, e é como se tudo estivesse correndo sem mim,
e não é isso algo que me faça tanta diferença, assim como não os faço diferença.
– Bem, eu acho – diz Alex – que quando você está bêbado, quanto às coisas estranhas,
elas são atraídas por você, passam a acontecer por todos os lados.
– A decadência é generalizada, Alex? – Júlia.
– Eu diria que ela é inevitável. Não aceitamos isso por culpa da morte. Vivemos com medo
dela, da morte, e tentando evitá-la pelas coisas que vão em frente, depois que nós já estamos
parados, já fomos abatidos – traga e bebe. – Tentamos nos organizar por insegurança,
queremos negar o caos pra pensarmos que estamos seguindo em frente. Queremos evitar o
caos quando tudo que vem do homem é condenado à morte, a decadência está em tudo, nas
nossas vidas e no que faremos. Tudo cairá, até que não se tenha mais o que cair, nem o que
se levantar.
– O ser humano quer ser imortal enquanto espécie – diz Habib. – Essa visão é uma
enganação.
– A única certeza – Alex sacode o novo fumo – está com a individualidade.
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– É aquela coisa do penso, logo existo – diz André.
– Eu nunca entendi muito bem essa lógica, mas se você me explicasse eu ficaria
infernalmente agradecido.
– Se você é capaz de cogitar, se você parte de um princípio cético e questiona todas as
coisas...
– Por que não respiro, logo existo?, planto piruetas, logo existo?, se você faz alguma coisa,
você existe, ou então não a faria.
– Porque não seria uma dedução sobre a existência, não seria a única certeza que
supostamente se pode ter, e... – mas Alex vai interrompê-lo de novo.
– Aquela coisa do tudo que sei é que nada sei, também. É algo esperto de se dizer, nada
mais, é um estado de espírito, um lugar comum da gente, uma indução – ele dá de ombros –, e
pra que eu preciso disso?, tudo isso me parece uma prova de que a gente se alimenta de
nossas próprias inutilidades. Bem, temos o consolo de que elas não vão nos condenar para
sempre, porque no fim iremos morrer – e sorri.
– Podemos ser melhores – diz André – ao identificarmos essas falsidades.
– Não se trata de melhor ou pior – o semblante de Alex torna-se negro. – É coisa
meramente da destruição. De destruir esses enunciados. De simplesmente não ficar se
preocupando com enunciados, então destruímos tudo para não nos preocuparmos com nada,
só isso.
– Às vezes ele consegue ser assustador... – Carla se mete como se soubesse do que fala,
mas de repente seu sorriso amistoso apazigua a insensatez.
– Destruir por destruir é imbecil – diz André, ainda o olha na cara.
– Não – ele se curva para trás. – É um instinto.
– Um instinto seu, nada mais.
– Não tenho culpa – ele boceja – se tenho a coragem que você não tem. Se você foi
adestrado.
– Não se trata de coragem, não se trata de algo inevitável que deseja aflorar, e sim, se
trata de ter apegos, porque não ter apegos te induz à autodestruição, você se torna vazio. Esse
é você.
– Agora – ele põe a mão no peito –, vai me dizer que sou vazio porque não ajo como você.
– Rapazes – Júlia sorri –, estamos jantando.
– Não – ele se debruça sobre a mesa e sorri do jeito que só ele faz –, deixe ele falar sobre
sua esperança e como ela é superior a mim.
– Certo, Alex, chega, que não dá pra conversar com você – André se recolhe.
– É claro que não.
– Joguemos – Júlia propõe, e uma proposta como essa é algo que se estremece uma
pessoa. – Ou melhor, não joguemos, que essa coisa de jogo da verdade é bem ultrapassada.
Ainda que eu ache – e sorri – bastante divertido. Alex falou de destruição, e eu particularmente
acho que só existe destruição se você estiver totalmente entregue e rendido, na palma de outra
pessoa, quer você confie nela, ou não. Isso é abrir mão de todo o poder e conquistar... algo
novo de si mesmo, porque, por outro lado, essa entrega, isso de não ter mais segredos é algo
que te liberta, porque o segredo é uma conta consigo mesmo, não tê-los é não ter o que
dever...
– O que você quer dizer? – Stern fuma.
– Se destruir é se libertar – Alex abre os braços todo feliz.
– Não quero afirmar nada, apenas quero vê-los praticando – e ela sorri.
– Podemos confessar nossos segredos e não mais tê-los – André.
– Ou acordarmos arrependidos – Alex.
– E é mesmo como se diz que quem não deve não teme – Júlia.
– Está certa de que todos nessa mesa podem afirmar isso? – ele pergunta mais do que
parece.
– Estou certa de que todos são prudentes o bastante – ela sorri.
– Prudência – ele ri bem esnobe –, não queremos saber de prudência.
– É, a prudência não nos importa – diz Bublitz.
Enquanto Carla simplesmente sorrir estará tudo sob seu controle.
– Eu não pretendo ser amigável, só verdadeiro.
– Seja – ela dá de ombros.

352
– Qual o lugar mais estranho – olha Stern e em silêncio lhe diz estar se remetendo às
estranhezas reconhecíveis do mundo –, onde trepou com André?
– Alex – ele o olha feio. Fazer o quê?, a pergunta não foi feita para você.
– Na escada do prédio dos pais dele, no banheiro do meu escritório, lá no jornal, no carro
estacionado – ela responde.
Aí vêm umas risadas.
– Quanto tempo demorou pra você dar para ele?
– Não, agora sou eu que pergunto. Quanto tempo demorou pra você comer essa garota?
– Ei – ela sussurra e talvez não saiba onde meter a cara, e não há mão a ser segurada
abaixo dos panos, que elas estão rígidas e erguidas sobre a mesa.
– No mesmo dia em que a vi, porque eu não perco tempo – ele responde, rígido. – Com
quantos homens você já traiu seu noivo?
– Porra – Bublitz ri.
– Com nenhum – ela responde tão avidamente que é impossível acreditar na realidade e
desacreditar nela. Ela responde tão firme que ele estremece.
– Carina – vem Habib –, está na cara que você tem se insinuado para Martin. Desde
quando você quer dar para ele?
– Eu não...
– Não ia contar – Alex a interrompe – que você foi para a casa do gêmeo depois de uma –
ia dizer reunião, mas Carla não pode ficar curiosa com termos incomuns, então pigarreia e
emenda os termos –, de um encontro, foi Tony ou Tomas, ou foram os dois, não sei. Você não
ia contar?
– Eu... – ela esbugalha levemente os olhos, não sabe por onde se vai.
– O que é isso? – Martin dá com os ombros para trás.
– Não me venha com essa, eu estou perguntando, é só. Ela responde se quiser.
– Sim, eu fui, mas isso não interessa a vocês, não é da sua conta.
– Você trepou com os dois? – Bublitz ri.
– Agora chega – Martin faz que vai se erguer.
– Relaxa, Martin, não é nada demais, e é só brincadeira – André, que agora te é
conveniente, sacana.
– Não, eu trepei apenas com um, é claro. Não sou uma vagabunda – ela responde, e ri
contidamente.
– Carla, Alex é bom de cama? – Júlia esmigalha um sorriso cruel.
– Eu não me queixaria... – ela meiosorri.
– Essa é uma resposta educada da qual não tenho que reclamar – ele diz.
– Alex nunca teve do que se queixar – André e sua ironia bebem um longo gole.
– Que é isso, o que vocês querem é constranger uns aos outros – diz Martin –, não serem
verdadeiros.
– Se quiséssemos constrangê-lo – André ri –, diríamos na tua cara que você não é capaz
de pegar a mulher mais bem disposta a se dar.
– Espera, acho que você está me confundindo – Carina diz.
– Eu tenho de concordar – a função de Alex é semear a discórdia, tanto é que não deixa
exatamente claro com quem exatamente está a concordar, é.
– Você está falando isso, rapaz – Martin –, porque finge não conhecer a mulher que tem.
– Ei, ei, ei – Júlia ergue as mãozinhas. – Vamos parando por aí.
– Quantos homens, Júlia, você desejou – é mesmo Martin quem dá o contragolpe –
quando já jurava amor eterno a André?
– E não venha nos responder que nenhum – Stern tosse e esfrega a barbicha –, que isso é
algo humanamente impossível, tal como a mentira é natural.
– Qual foi a pior mentira que você já contou para André, Júlia? – Alex ri.
– Bem, desejei poucos – a voz mingua e ela fala olhando-os torto. É bom vê-la mordida
pela própria peçonha –, mas são coisas completamente abstratas, coisas que não valem a
pena falar, porque quando se fala algum pensamento a gente dá seriedade a eles, e uma
seriedade dessas nem sempre existe de verdade – ela olha André como se justificasse. – É
como andar na rua e querer uma roupa.
– No caso, pensar como seria trair a confiança de quem mais te quer bem – Habib.
– Sim, é, mas temos de pensar essas coisas às vezes – ela não deve estar muito certa do
que fala –, para aprendermos a valorizar...
353
– Nunca fantasiou estar com outra pessoa ao estar com André? – Alex.
– Às vezes... – ela começa a corar.
– Júlia, eles estão exagerando. Por que está respondendo? – André.
– Eu não... – ela se interrompe, move os ombros de leve, de repente ela quer ser sádica,
de repente é que ela não sabe.
– Com quem? Diga para nós – Stern.
– Com pessoas do trabalho – ela põe a mão sobre a testa –, com pessoas que vejo na rua.
Gosto de imaginá-las estando comigo porque...
– Porque você gostaria de dar para todos?, pra qualquer um – Alex.
Ela fica em silêncio.
– E então?
Ela não responde, está arranhando de levinho a mesa.
- Oi?, estou esperando.
Ela vai responder, abaixa a cabeça.
– Sim.
– Eu não ouvi isso – quase risinho, e aponta a orelha. – O quê?
– Sim, é isso.
– Júlia?
André parece estar se tremendo todo no íntimo de vergonha, só não entra em colapso
porque ainda não deve acreditar muito no que ouviu, rijo, todo inerte, cara de bobo, mas que
está se incendiando de desconforto.
– É, acho que tá na hora de parar – Bublitz murmura.
– Quando é – ele vai repetir, Alex sempre tem de fazê-lo – que você o trai?
– Sempre que eu me canso... – os olhos estão meio vermelhos.
– Se cansa porque sua vida é um saco – ele arqueia as costas num espreguiço, coisa que
a gente vitoriosa se dá o luxo de fazer –, ela é tão chata que posso perceber isso estando fora
dela.
– Foda-se, Júlia – é o que André diz.
– Desculpe – ela o olha, pescoço tortinho, cara chorosa.
– Foda-se você, é isso. Que coisa escrota você compactuar com isso. Como se você
precisasse mesmo responder.
– Desculpe – tremulando.
– Eu desejo tudo de ruim a você, que algo se vingue do mal que você me faz, que venha
alguma justiça.
– Desculpe, André – começa a soluçar, coisa de quem não tem o que dizer.
– Eu quero que você se dane. Você sempre foi assim. Nunca prestou.
– Não é verdade, não fale assim comigo – e vai agarrar-lhe os braços, mas ele retira, é
claro, e o faz bruscamente.
– Júlia, você ainda está com vontade de traí-lo?, por que você se importa? – e Alex ri.
– Não!, pára, que coisa, não me faça responder – ela esbugalha os olhos e desengata
umas lágrimas discretas.
– Você é perturbada – André continua. – Espero ter se cansado de mim o bastante para
me esquecer. Quanta... quanta sujeira – ele também não muda muito o repertório –, eu deveria
te largar.
– Pare, por favor – ela chora como uma criança –, pare.
– Alex, você não acha que... – Carla vem lhe sussurrar no ouvido, pois é, que com toda
essa confusão esqueceu-se dela, mas ela e a toca na mão, diz com isso que não se preocupe,
que não é coisa com que deva encher a cabeça, no mais que é algo que deve estar prestes a
acabar, que ela tampe seus olhinhos para fingir que nada acontece ou que nada aconteceu.
– Você está cansada?, eu estou cansado de me importar com você. E você vai... vai ficar
se fazendo de inocente. Vai dizer que sou eu fazendo drama. Eu não sei onde eu estava com a
cabeça de desperdiçar meu tempo com você. Pra ouvir isso. Eu sou um imbecil.
– Eu te amo – ela se joga no colo dele.
– Que coisa incrível de se ver – Bublitz sussurra.
– Não, quem ama não magoa, nem que seja assim – nada melhor que uma afirmação
simples e conclusiva. Ele faz uma pose de criança magoada e esnobe e a joga sobre a cadeira,
se pudesse machucá-la seria bom vê-lo fazê-lo. Mas ela se recosta e se contorce, é uma
dessas coisas lindas que só se vêem uma vez na vida. E aí André está saindo exasperado em
354
direção ao banheiro, deve estar com o estômago querendo vir à tona, com as tripas se
revirando, com todo seu chão querendo subir e gritar um grande bleargh contra a humanidade,
com vergonha de todo mundo que ouviu o que não tinha que ouvir, não será mais ninguém
além de uma privada a ouvir o seu lamento.
– Por que você fez isso? – Carla pergunta em seu ouvido, Alex, vede o espanto, e não te
espantes, que é bem mais que normal.
– Eu? – foi ele quem fez?
– Sim!, por que você, vocês fizeram isso?
– Ele precisava ouvir aquelas coisas. Júlia precisava falar. É assunto deles, não meu.
– Eu também tenho algo a falar – é Martin quem vem lá. – Também estava iludido com as
mulheres, no caso com esta Carina – e a olha firmemente. – Ela mentiu para mim, ou melhor,
não é como Júlia, mas é uma omissão que também é traição de confiança, e creio que essa
seja a pior coisa que podemos fazer uns aos outros.
– Martin está certo – Bublitz urra.
– Por isso quero dizer que onde havia fascínio pela pessoa, agora sinto asco – e a olha
enojadamente. – Não imaginamos que a pessoa que admiramos, que prezamos, pode nos
esconder algo que é visível nos ser importante. Às pessoas que nos ignoram, que cuspamos
em suas caras.
– E onde havia admiração de minha parte por você – responde-lhe Carina –, agora eu sinto
asco, porque você espera que eu seja o que você quer e não considera que sou uma pessoa
de carne e osso, que pode cometer os mesmos erros que você. Não cobre dos outros o que
você não é. Faço o que eu quero, e não há porquê isso te importar.
– Parece que estamos quites – ele ergue o sobrolho.
– Somos todos nojentos – diz Alex.
– Vocês não entendem – Júlia esfrega a cara com as mãos –, eu o amo mais do que tudo.
– Entendemos perfeitamente, Júlia – Alex fuma quase tranqüilamente. – Só parece justo
que ele veja que você é uma porca.
– Você é o maior porco de todos – e o olha com um nojo furioso. – Você é a própria lama.
– Eu não te odeio por eu me espelhar em você, que é o que você faz em mim – expele
fumaça pelas narinas. – Eu e você somos iguais.
André está retornando, o aspecto esgotado, a força que lhe havia para gritar parece
mesmo ter descido ralo abaixo, ido ao esgoto, se perdido com o rumo de todas as coisas. Ele
senta-se e anestesiadamente beija carinhosamente o rosto de Júlia. Ela já está saltando em
seu colo e abraçando-lhe o torso com todas as forças de mãe que protege a cria, de certa
forma ele o é, e ela o envolve e o enche de beijos e de lágrimas, ele apenas a recebe com os
olhos semi-cerrados.
– Eu te amo, eu nunca quero deixá-lo, eu te amo tanto – ela põe a cabeça em seu peito e o
aperta com força. Ele passa-lhe as mãos, ninando-a.
Carla está tão boquiaberta e deslocada quanto Alex ri, ao que os outros parecem dispostos
de começar um brinde, talvez seja um brinde ao amor dos dois, que é muito bonito, ou a
qualquer outra coisa mais baixa, que é o que realmente existe, mas enfim, um brinde ao que é
divertido, que é o que realmente os mobiliza, ainda que nem todos saibam lidar exatamente
com as lágrimas de incompreensão que brotam nos dois. Chegará um instante breve em que
Júlia sorrirá, ainda com o rosto desanuviado como o borrão de maquiagem pelas lágrimas, que
pela primeira vez ela se torna um pouco mais bonita. Ela sorrirá com jeito de que, enfim, pôde
vivenciar algo fulminante que pode dizer que finalmente passou. André está muito mais
tranqüilo.
– Eu acho – Martin desabotoa a gola e toma um gole de uma garrafa, cospe sabe-se lá
porquê na sujeira de seu prato –, que é uma boa eu servir a sobremesa.
– O que fez para nós? – André pergunta.
– Espero que vocês gostem, preparei um bolo de cenoura e uma torta de limão.
– Torta de limão – André sorri. – A minha favorita.

355
Ele seguiu andando como se não houvesse nem por que nem para onde seguir, e não é
exatamente apenas como se fosse, mas eis aí algo que realmente pode assim ser. O sentido é
um filho que se adota. Não se importa com a escuridão das ruas e com o horário avançado,
nem olha os céus em busca de estrelas esperançosas porque sabe que elas são invisíveis, e
esse pensamento de estrelas vem especialmente por causa de Carla, que olha para cima,
assim fazem as pessoas que ainda têm alguma coisa ou têm muito a admirar, deve acreditar
nisso com tanta força que vê as estrelas acima do apodrecimento do nosso teto.
A inveja por instantes, é, mas não é isso coisa digna dele sentir, cada um vê basicamente o
que lhe é natural, se o seu mérito está em enxergar as trevas, está certo, tudo ok. É esse seu
jeito de comungar com deus. Ele tira a jaqueta e atravessa a rua, gosta de silêncio assim, raro
de se ter na cidade, bom para espairecer, bom para se encher da própria solidão, isto é, se
Carla não tivesse descido do salto alto e o estivesse acompanhando, que é coisa que poucas
até hoje fizeram. Lá à frente está a praça, o cântaro do chafariz, as árvores que traçam
caminhos meigos durante o dia e escuros a essa altura das trevas, quando tudo ganha formas
suspeitas e opressivas, os bancos e os mendigos, se houverem, enfim, os restos de pipoca
entranhados nas frestas das calçadas, por aí vai.
– O que aconteceu hoje foi estranho – diz-lhe a voz que o segue.
Ele chuta pedregulhos, olha para o nada e o saúda com o olhar. A idéia de ter um cãozinho
novamente lhe vem em mente por supor assim, trivialmente, por essas imaginações cotidianas,
que seria bom ter uma companhia amistosa, que o alegraria, que o lamberia as mãos e tentaria
escapulir da coleira enquanto ele passeia sem pensar em nada, como tenta fazer agora, num
lugar mais ou menos assim. Ele enfia as mãos no bolso e de fato se sente excepcionalmente
só, de fato enche o saco da própria solidão, o que o angustia ainda mais, porque antes
estivesse realmente só, que poderia esperar por uma companhia que o curasse, mas está
sendo seguido e nada adianta, a solidão é realmente algo que o acompanha e não se cura.
– O que aconteceu hoje foi estranho.
As árvores se curvam para saudá-lo todas tortas, carrancudas e paquidermes, e ele supõe
que dentro dessas sombras esteja mais seguro, mas essa coisa de segurança não é algo que
também importe, mas estaria bem mais seguro do que vagando lá fora, à vista quem sabe das
estrelas, mas ele deseja dizer a ela – à Carla, não a estrela alguma – que mesmo fugindo das
vozes de sua cabeça, minha querida, isso é coisa tão imbecil quanto fugir de gotas da chuva
na precipitação da tempestade, mesmo que esteja querendo partir, se refugiar no escuro,
sossegar, lhe atrai ainda assim uma agonia profunda a latejar, uma agonia de lançar-se contra
tudo, à guerra, o peito aberto e talhado com suas unhas. Ali perto do cântaro está sujo e calmo,
num aconchego que teria um coveiro no seu cemitério, que sabe só haver consigo as
memórias, as assombrações e seus rangidos, o que o leva a pensar que não é ele tão diferente
assim de um certo zelador de cemitérios que também freqüenta a sociedade. Há mesmo um,
um que não respeita os mortos e fode com eles, com os corpos, que é mais ou menos o que
ele faz, desrespeitar e violar tudo. Ele se senta sob a sombra do anjo da fonte, que é um anjo
que ainda não cresceu, na verdade são alguns, uns querubins para animarem a vida da praça
pela manhã, mas ela agora está toda morta. Ele senta porque parece a coisa mais óbvia a ser
feita. Não supunha que Carla viria, sentaria, olharia para um céu fosco e ainda sorriria. É
quando ele se sente disposto a contar todas as coisas das quais antes não podia e se libertar
de mais um grande peso que ele criou para carregar e perdeu o controle disso porque quis.
– Eu queria te contar algumas coisas – é o que ele diz, quer lhe contar muitos segredos.
– Quem é você?
– Uma pessoa – começa a responder – certa vez me disse que as pessoas que se tornam
inesquecíveis para nós geralmente são as que fazem essa pergunta.
– Ela também te disse que pra isso nunca se tem resposta?
– Não, mas isso é coisa fácil de se perceber.
– É mesmo – sorri e o olha.
– É uma pergunta que continuará sendo estranha, mesmo que seja bastante simples.
– É uma pergunta divertida.
– O que ela te disse quando estavam no banheiro?
– Júlia? – esse nome nos lábios dela não cai bem, é como natureza que definitivamente
não se encaixa mas teima em coexistir.
– Sim, Júlia – já nos seus ele é mais do que previsível.
356
– Ela retocava a maquiagem... – ela fala tranqüilamente.
– Não deve viver sem encher a cara de porcaria.
– Ela retocava a maquiagem, e me disse, talvez quando você se aproximar mais dele, ou
seja, de você, talvez quando você se aproximar mais dele você possa me contar algo a
respeito.
– Foi o que ela disse?
– Sim, é o que diz alguém que quer conhecer outro alguém.
– Não é isso – apóia as mãos na borda – uma coisa que faça realmente sentido.
– Talvez não para você, mas para mim fez completo sentido.
– Por quê?
– É como se ela quisesse te enxergar por causa de algum interesse, mas não conseguisse.
– Você acha? – ele sorri ironicamente.
– Sim, acho. Ela também disse mais outra coisa.
– O quê?
– Ele não fala muito sobre si, já acho que é impossível conhecê-lo, às vezes acho que é
porque não há o que se ver, mas não sei. Ela falou com um tom de admiração.
– Admiração? – ri ainda mais com os olhos.
– Ou também de frustração. Por que te é tão estranho?
– Bem, é apenas uma impressão contrária a que eu tenho, ou a que eu tinha, já não sei
mais. Ela nunca se abriria de verdade com alguém. Não sei.
– Não sei – Carla sorri moderada –, ela é uma pessoa estranha. Não gostei muito dela.
– É? – vai ver que ela não é exatamente uma insanidade criada por sua cabeça, que há
mais gente que compartilha mais ou menos do óbvio, que nunca ninguém assim o disse antes.
– É, ela age como se escondesse algo.
– Você é surpreendente.
– Por quê? – ela sorri.
– Porque é simples, enxerga coisas difíceis com simplicidade.
– Obrigada – ela abaixa a cabeça. – Você gosta dela?, é isso?
– Não – ele sorri com um sorriso que por instantes vem convencido de que é sincero.
– É que com ela você age de forma estranha. O que aconteceu hoje?
– Uma competição vil, mesquinha e egoísta vinda de cada um que esteve lá. É coisa que
cada um precisava.
– Não sei, eu me senti tão estranha, ver aquilo era tão irreal, como se me faltasse o chão,
mas na verdade era apenas desconforto, é algo que eu simplesmente não gostaria de ver. Eles
são muito estranhos.
– É isso que eles querem testar, até onde lhes resta esse tal chão, até quão fundo podem
cavar.
– Eles querem, você não?
– Não agora.
– Mas você está acostumado com aquilo, não está?
– Sim.
– Por quê? – um sorriso mortiço se abre.
– Eu não sei exatamente. É que são meus amigos – ele está prestes a inventar uma
explicação, a perder-se, a qualquer coisa.
– Então não precisa falar – ela balança as perninhas e sorri. – A não ser que você queira, e
disse que queria me contar coisas, se trata disso?
– Bem, não – mente. – Eu queria falar umas bobagens agradecendo por sua presença,
pedir desculpas pelo constrangimento, dizer como você é legal pra mim, mas acho que dizer
isso é coisa dispensável, eu não sou bom com isso e tudo mais.
– Ainda resta minha pergunta.
– O quê?
– Quem é você?
– Sou Alex – e sorri e dá de ombros. – Desculpe, nunca saberei responder.
– Não faz mal, eu também não sei. É sempre mais fácil falar dos outros.
– É mesmo.
– E quem são esses seus amigos? – vira-se para ele.
– Estranhos.
– Pare – ela sorri.
357
– Quero esquecê-los.
– Por quê?
– Para me sentir bem.
– Não se sente bem com eles?
– Agora eu não me sentiria.
– Não se sente bem com eles, ou não se sente bem?
– Sinceramente, eu não sei.
– Posso dizer uma coisa?
– Claro.
– É apenas uma impressão que tive a seu respeito.
– Vá em frente.
– Acho que você tem um vício de se testar.
– É verdade.
– Acho que você só está bastante triste com alguma coisa.
– Por exemplo?
– Com ser um grande erro.
– Sou um grande erro? – ele meiosorri.
– Não é que seja, mas estou dizendo porque às vezes eu me sinto assim.
– E por que você seria um grande erro?
– Porque você às vezes quer se sentir pleno, ser tudo o que as pessoas esperam de você.
Até descobrir que não pode ser pleno, que você sempre estará insatisfeito – sorri. – Os outros
também, sempre estarão insatisfeitos. Então você tenta ser razoável, escolhe pela humildade,
mas na verdade você fica paralisado no meio dessas coisas e então você não saberá mais
dizer se é a vida que não lhe dá absolutamente satisfação alguma, porque você passa a falhar,
falhar e falhar, se é a vida que não lhe recompensa as tentativas, ou se é você que se
encaminhou todo errado e não há mais o que ser feito.
– Não sei, acho que você é muito mais esclarecida sobre isso do que eu.
– Porque você também é orgulhoso.
– E ainda quero insistir em ser um erro.
– Sim.
– E como saber se meu erro, que é erro para os outros, não poderá depois ser para todos
algo muito magnífico?
– Saberá se tentar, o resultado de uma coisa dessas deve ser maravilhoso, mas é algo que
se faz sozinho e com um peso um pouco desagradável.
– Às vezes as pessoas falam coisas profundas como se pudessem ler a minha cabeça.
– É que somos todos parte um dos outros, Alex.
– Entendi. Sou um quebra-cabeça de mim mesmo que só eu posso remontar, e isso está
acontecendo quando vou me enxergando em você ou em qualquer outro.
– É isso.
– É uma das primeiras vezes que falo de mim, não gosto muito de fazer isso, mas todos
tentam.
– Aos poucos, se tornou algo possível pra você – e ela sorri.
– Eu não sei o que fazer com você.
– Então me beije – sorri, lhe toma a mão e a põe num seio.
– Eu acho que Júlia e André vão se entender como nunca antes.
– Por que está pensando nisso?
– Foi algo que me ocorreu. E não foi isso um resultado que eu planejava, apesar de agora
eu me orgulhar dele.
– O que você queria?
– Destruí-la da maneira que eu pudesse. Ela queria se libertar de alguma coisa, talvez das
mentiras dela, talvez só quisesse ser má com André dizendo aquelas coisas na frente de
outros que, bem, não têm nada a ver com o caso deles. Eu queria ser mau, fiz aquilo por
crueldade, nada mais.
– Às vezes você me assusta, espero que seja apenas porque não o conheço.
– Eu também me assusto – e a beijou.
Abre-lhe as pernas e abocanha as roupas sem preocupar-se com a comodidade ou
conveniência, ela dá um gemido quando ele vem, ele sente vontade de chorar por fazer o
mesmo que Júlia faz, imagina outras pessoas estando ali menos a única que devia, que é a
358
que realmente está, seja porque o homem tenha medo de ser feliz ou porque meramente a
felicidade não o satisfaça, mas sim a ambição. Ele esteve muito perto a falar da sociedade e
dele mesmo e depois dessa noite nunca mais estará da mesma forma sincera que estava,
como uma luz que se derrama, que diz oi, cheguei, de repente se faz valer e também de
repente faz com que certos assuntos se apaguem da pertinência. E é isso.
Agora está tendo um sonho não exatamente claro, é mais ou menos um desses sonhos
que se iniciam por sensações, aos poucos a lhe definirem um novo cenário, se um paraíso
exótico ou um pesadelo urbano, ciclicamente dizendo onde iremos nos enquadrar e o que
novamente iremos sentir.
Era uma dessas vielas escuras que de tanto que são mais parecem ser aquele tal túnel da
morte, que temos de cruzar e tudo mais, e parece ser mesmo inspiração de horror, que nas
paredes os cartazes vagabundos e rasgados transpiram olhos predadores nos rostos antigos,
é, eles despertam de sua solidão, são espíritos sofridos e começam a ruminar um ah-uh-ah em
timbre triste e furioso, muito parecido com a mandíbula que subitamente sofre um ataque de
bruxismo e passa a realizar esse som cruel de osso decrépito até que os dentes se partam
pelo atrito um no outro, porque parece tudo ser condução à velhice, um clima estranho de
osteoporose, e deve ser fugindo disso, e por isso, que ele corre.
Corre e olha para trás, onde os últimos feixes de luz habitam, e a sujeira transborda
virando-se e rolando, e o ronronar dessas formas invisíveis e inimigas continuam, sente que
são como gatos maliciosos que chegam meigamente, ainda assim com uma rouquidão fatal, e
no melhor instante vão é fincar as garrinhas nos seus olhos. Olha por cima dos ombros, é um
desses sonhos em que temos a certeza de que estamos sendo seguidos por algo muito pior do
que podemos suportar, é mesmo, se foi um sentimento que conjurou esse cenário foi o medo,
e agora ele atiça a torrente de outros mais, como nojo de si mesmo e vergonha, principalmente
a covardia que por instantes ele se convence de que deve cultivar, ainda que o porquê não
saiba exatamente bem, e aí vem a sombra. É, por instantes realiza que o outro desistiu
daquela idiotice de rosto, de lhe achar o nome, que ele afinal excedeu o prazo que lhe foi dado
para esse trabalho, que devia ter sido mais veloz e menos displicente, pois é.
Mas o outro não tem essa forma de correr e nem essa presença de espírito, não se move
tão obstinado assim e poderia descascar-lhe os ânimos numa só gargalhada, e o outro não é
uma criatura estúpida que usaria suas forças em vão, ainda que goste de jogar. A essa altura
do seu espírito, Alex, se ele desejasse abocanhá-lo, é isso algo que poderia acontecer sem
tantos rodeios etc. Esse algo que o persegue quer matá-lo, e por intuir isso você foge sem
importar-se de lhe ver o rosto, mesmo que, feito o outro, não tenha um. Não é isso coisa que
importe tanto, mas o que está vindo dele, e no caso é a morte, ódio ou alguma outra iniciativa
que te machuca. E então o som seco e cortante. Veio o tiro pelas costas e o acordar de
sobressalto.
O mundo está se acabando lá do lado de fora com a queda de um novo dilúvio, as janelas
trincando como fossem se abrir à força, o assovio já sem fôlego dos ventos que apitam num
grito arranhado e impedem que ele ouça o próprio coração, e ele está passando as mãos na
testa e no peito, pelo suor que deles cai acredita que ou o coração já lhe tenha parado de
bater, porque não mais o sente, ou lhe tenha saído pela boca e só o resta procurar entre os
lençóis para engoli-lo de volta antes que seja tarde.
A série de relâmpagos desenha móveis assustadores, é como se, à medida que
enxergasse as suas sombras, julgasse que tudo está mudando de posição, até um instante em
que tudo esteja de ponta-cabeça ou que o criado-mudo tenha criado dentes e esteja na
próxima seqüência de iluminação em cima da cama para pegá-lo, levá-lo para algum mundo
das coisas horríveis do inconsciente. Aí um trovão parece rachar com tudo, e ele se esconde
debaixo dos lençóis, tremendo como num berço, como se pano fosse protegê-lo. Antes tivesse
um sono de criança como Carla, que aconchega o corpo ao seu e resmunga ainda em seu
sono, não por estar incomodada com o cataclisma lá fora, mas porque tem algo errado com os
movimentos aqui de dentro, aqui na cama. Mais um relâmpago e você sabe o que irá
acontecer, as sombras hão de tomar vida, e pronto, lá estarão, ou melhor, lá elas estão, na
forma do demônio resmungando com a garganta oca, feito som de maré na caverna à beira-
mar, e o vigiam aqueles olhos brancos. dessa vez como se tivessem a cabeça empalhada na
parede.
– Você está assustado – ele fala em tom misterioso.
– É claro – sussurra e afasta delicadamente o braço de Carla.
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– Por quê? – grunhe.
– Não é sempre que se tem pesadelos tão reais assim.
– E nem idéias como essa.
– Do que você está falando, outro?, e claro que você não podia vir numa outra hora um
pouco mais cômoda.
– Não sou eu quem decido.
– E quem é? – espera ouvir que é ele mesmo para que lance uma gargalhada.
– Também não é esse o assunto, sejamos sucintos, você sabe que não pode me ludibriar.
– Valeu a tentativa. Diga-me das tais idéias.
– Não preciso, você mesmo as conhece, já me valeu o esforço de apontá-las.
– Você disse querer ser sucinto.
– Veja só, meu caro, seu raciocínio está aguçado, já tardava, já tardava, o seu esboço de
manipulação está se desenvolvendo de maneira exímia.
– Isso foi um elogio?
– Você está planejando agravar a sua situação.
– Não, eu não estou – sorri tremulamente.
– Sabe muito bem o que significou o que aconteceu com ela.
– Até você – e coça o rosto – receia em falar o nome de Júlia?
– Bem, apenas não é algo que me seja interessante.
– Sei.
– Você quer se vingar de algo que nunca lhe aconteceu.
– Acabou-se aquela noite no jantar.
– Não, foi lá onde começou, você sabe bem.
– Não me diga uma coisa dessas, é você que está me incitando.
– Não se incita plenamente a um anseio que nem exista, e bem, se basta apontar-lhe um
desejo para que isto o seduza, não é em mim, então, que reside a tentação... talvez seja, mas
não é de mim que vem a sua fraqueza, e eu não tenho nada com ela.
– Onde você quer chegar?
– Que você viu que detém algum poder sobre ela e que de alguma maneira ela também
segue o seu jogo.
– Ou ela também está articulando para que eu pense isso.
– É um risco que você está disposto a correr.
– Você sabe que eu não gosto quando você fala por mim.
– Desculpe, tenho tentado perder esse vício. E você?
– Eu não tenho um vício como esse, felizmente – e ri.
– Mas tem outros muito piores, e essa noite você os organizou. São suas idéias.
– Pare com isso, à medida que você fala elas vão clareando em minha mente, é você
quem conspira para que elas venham à tona e passem a acontecer.
– Eu não gosto de deixar nada nas entrelinhas, falo por voltas e me uso de mistérios, mas
aponto claramente o caminho que quero mostrar. É como a parábola daquele que aponta a lua
e o tolo olha o dedo.
– Não estou te olhando o dedo, apenas não vejo também lua alguma, na verdade não vejo
nada.
– A culpa da cegueira não é de quem aponta.
– Mas se lhe houvesse um pouco de boa-vontade, você poderia ser um pouco mais
didático.
– Então quer ouvir os meus conselhos.
– Sim, não perco nada com isso, você não me tira nada e ganho mais alternativas.
– Você está começando a me entender, de repente também está próximo a conseguir.
– A conseguir o quê?
– Achar-me o nome.
– Não sei onde termina o seu interesse pessoal e começa a importância de tudo isso.
– É por isso que ainda não o achou.
– Já me perdi completamente da conversa, e você?
– Eu não, para mim está muito claro o que eu lhe disse e, já tendo o feito, a
responsabilidade agora está sobre você.
– Agora eu lembro, achei que me fosse dar algum conselho, não me venha pressionar.
– Não sou eu quem o faço, são as ocasiões. Deprima-se por isso, mas não pode fugir.
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– Você vem, me desperta idéias e diz que sou responsável por elas.
– Você pensa em mim como um diabo, assim sendo é muito legítimo que eu o tente.
– Eu cedo às tentações que me vêm porque eu não as enxergo como algo demais.
– E também não pretendo que o faça, apenas vim avisar-lhe. E, claro, quero meu nome.
– Caso eu não o ache você vai me caçar, me matar?
– Claro que não, você tem até o fim de sua vida para fazê-lo, mas quanto antes o encontre,
nós dois estaremos felizes, e eu deixarei de importuná-lo.
– Entendi. Nesse caso, vou pensar a respeito.
– Veja, Carla está acordando, é melhor que eu vá embora.
– O nome dela você não tem problemas em pronunciar.
– Você tem?
– Não.
– Então, boa noite.
E ele some se apagando na escuridão.
– Eu não sabia – Carla lhe afaga com os olhos cerrados – que você falava enquanto
dormia.
– Só quando tenho alucinações – balbucia, vira-se para o outro lado e dorme.
Chegada a mais próxima ocasião em que os ânimos lhe convirem, aí estará Alex
acordando para mais um dia onde, depois de olhar o teto como se ele lhe estivesse contando
inúmeras coisas interessantes, gemerá de preguiça ao confrontar a rotina de não fazer idéia de
como empregar seu tempo e perderá mais tempo planejando e adiando do que efetivando o
que imaginou fazer. Pensar é uma das coisas mais cansativas que existem. Ai, que preguiça,
então ele murmurará para algum ouvido imaginário e nada o responderá, então começará a
planejar onde deve comer, se no armazém da esquina uma outra vez, ou se prepara um ovo
para o café da manhã, e que por isso é uma pena que Carla não esteja em casa, isso nem lhe
é uma certeza, mas pelo silêncio é o que tudo indica.
As mulheres nunca estão por perto quando precisamos delas, salvo quando têm interesses
próprios, e não deve haver interesse maior em Carla de lhe cozinhar um bife. Ele chegará ao
seguinte consenso consigo mesmo, posso adiar um pouco mais os trabalhos que tenho, que
não dão mesmo por minha falta, e para que eu não pense mais tanto a respeito é melhor que
nem cheque o e-mail, então vou deitar no sofá e ver algum seriado desses com gargalhadas no
fundo, são tão imbecis essas gargalhadas, mas chega a um ponto em que ele acaba se
rendendo e rindo contra a própria vontade, e dentro dessa letargia coçará diversas partes do
corpo até se dar conta de que perdeu todo seu sono, e isso geralmente acontece lá pelo pôr-
do-sol. Quando as coisas estão escuras o suficiente o faro muda, a penumbra o atiça, os pêlos
se eriçam, as cores tornam-se mais vivas e não há para onde jorrar tanta energia.
Sente uma vontade viciosa de surgir na janela e gritar qualquer coisa desconexa que
assuste, porque as coisas conexas não têm exatamente graça, então começaria com aquela
velha coisa de fogo, fogo, enquanto os vizinhos boquiabertos aparecem para conferir
abraçados em seus cônjuges, tudo isso é coisa de garoto querendo se divertir, enquanto
espreita alguém na rua e começa a rosnar coisas sem sentido. É simples temer alguém louco.
E se a pessoa não se amedrontar de verdade e ainda chamá-lo de retardado, ele descerá
correndo para provar a si mesmo que pode levar uma brincadeira o quão longe lhe apetecer, e
geralmente isso vem a ser um lugar bem distante.
Quando lhe possui essa mística, lá está ele novamente entrando nos confins da sociedade.
Sentou-se e pensou, seria bom se alguma coisa horrível acontecesse no planeta. E como não
existem mais muros separando as coisas, nem tensão de guerra iminente, nem muito risco das
nações implodirem por causas misteriosas, ele é forçado a fazer ele mesmo a sua pequena
parte. E a sua parte é mais que desejar que ocorram umas tragédias por aí para sua diversão.
Dessa vez, quando chegou, se deparou com algo que aparentemente aconteceu e por
alguns instantes prendeu a atenção de todos que estão aqui esta noite. Primeiro pensa que
deve ter havido algo divertido e começa a criar expectativas. Depois vê que Sylvia está lá no
fundo normalmente com alguém, então se esse algo que ocorreu não foi capaz de quebrar sua
concentração, descaminhá-la, não foi lá tão interessante assim. Aí ele descobre que foi só uma
polêmica passageira, parece que alguém se desentendeu com Bonaparte e deu um soco na
cara dele, o que é claramente um pouco injusto, mas bastante engraçado. Ele está lá
resmungando nas cadeiras que o nariz dele quebrou, se perguntando o que vai dizer em casa,
ao que alguém lhe responde que ele mora sozinho e em contrapartida ele resmunga mais
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ainda, é mesmo, e as pessoas ao seu redor têm de se esforçar para serem compreensivas, o
consolarem, esse tipo de coisa, quando parece que está todo mundo por perto prestes a dar
risada. O que aconteceu?, alguém que também chega por agora perguntou, e parece que ele
falou alguma coisa da mulher do senhor Dantas, que estavam todos chamando-a de
vagabunda e esse tipo de coisa, como é de praxe, mas tudo indica que dessa vez ele não
suportou ver um gago bobalhão o humilhando. É uma pena que Alex tenha perdido uma briga
de dois caras gordos, bobos e desengonçados. Com os ânimos apaziguados, a não ser pelos
resmungos, ele vai até a ribalta sentar-se, cruza as pernas como monge budista e puxa um
cigarro. Estão apresentando mais um pessoal novo, há uma loira feiosa com aspecto de
estudante, um careca troncudo com aspecto de bandido, e um outro sujeito que não tem
aspecto de nada, ao que felizmente ele deve salvar-se desses estereótipos que os outros ficam
lhe botando ou tem de se contentar com o estereótipo da cara de nada, ou até melhor, cara de
bunda.
Eles desenvolveram pelo hábito, sem oficializar, um certo corredor polonês. Não é desses
em que espancam as pessoas, porque isso seria visivelmente chato, e na tentativa de bater
nos novos os velhos teriam de lutar entre si, que no fim só estariam tendo pretexto para se
quebrarem praticamente todos os dias, o que seria bastante cansativo e insustentável. O
corredor polonês é mais ou menos uma série de xingamentos, porque os novos quase nunca
têm um temperamento desinibido o suficiente para contestar. É uma sessão de humilhação
onde se fala mal desde o bairro que o sujeito mora até de como é imbecil o próprio nome do
cara, que tipo de pai teria coragem de arruinar a vida de um filho assim etc. No fim, é apenas
uma forma edificante de conhecerem os novos integrantes. A salvo quando acontecem
episódios desagradáveis, ainda que não menos engraçados, de como quando o careca
troncudo também não gostou da idéia de Bonaparte tentando humilhá-lo, foi na sua direção,
deu-lhe tapinhas na cara e disse mais ou menos assim, te cuida, irmãozinho, e ele se cuidou.
Ele também descobriu que o camarada do episódio do metrô – ficou um tempo até se lembrar
que episódio tinha sido esse, por instantes achou estarem se referindo ao bondoso velhinho
que o acordou na estação terminal –, aquele camarada que saltou de um lado ao outro dos
trilhos é um policial corrupto. Não sabe muito bem que tipo de corrupção ele realiza,
provavelmente é aquilo dos traficantes pagarem mesadas para continuarem com suas áreas de
influência, ou assim que se prende o bandido mais procurado se o solta na esquina seguinte
etc, mas essa é só a imaginação de Alex. O pessoal por curiosidade perguntava a Robes, que
é como se chama o tal, se isso da sociedade não é criminoso e tudo o mais. Ele responde que
dependendo de quanto se pague e para quem se pague, andar na rua pode se tornar crime
inafiançável e transformar em vítima de estress profundo o rapaz que atirou a avó pela janela
do sétimo andar. Isso é tão misterioso que Alex deita-se e tem a fabulosa idéia de cochilar. Aí
perguntam a Robes por que diabos ele aceitou filiar-se a sociedade, e ele diz que está cansado
de tanta imoralidade, que usará esse lugar para ser uma pessoa mais direita.
Posteriormente, falando sobre as coincidências da vida, Alex contará como ele encontrou
numa dessas lojinhas de fazer compras um rapaz das suas antigas, que já não via há muito
tempo, um certo Andriolli, um obeso que se dizia pacífico mas adorava confusão, um desses
ogros que aparentam ser simpáticos, mas no fundo o que sabem mesmo é arrotar e serem
asquerosos. Encontrou-o na fila de um remoto lugar vinte e quatro horas, ele não estava com
vontade de ir para casa depois de uma reunião e resolveu comer alguma coisa, e quando
estava decidindo, eis que começou aquela conversa típica e já desgastada de como esse
mundo é pequeno etc e tal, o que na verdade não lhe fez nenhuma diferença, ao menos até
que durante um cafezinho tenha tido a idéia. André por um instante duvida de que ele tenha
mandado o convite para um desconhecido, que o tempo passa e não podemos prever-lhe as
mudanças, mas Alex retorquiu dizendo que na verdade assim é muito mais fácil, que André
deve experimentar. É só conseguir o número de telefone e ter um pouco de boa-vontade para
conferir o endereço no catálogo, e caso não conste lá, terá de ter um pouco mais de boa-
vontade e investir numa amizade a longo prazo, até que se possa descobrir uma maneira de
presentear-lhe com o retorno à escuridão e um convite oculto na contracapa.
A prova de que isso pode se tornar uma forma de experiência bastante interessante é
Hugo, aquele motorista, sendo iniciado com ácido, assim, ajoelhado defronte a uma pessoa
aleatória nas margens do palco e sendo catequizado com a hóstia do deixai, ó vós que entrais,
a toda esperança. E ele ri dizendo que tem de dirigir para gente importante amanhã, que numa
condição dessas não conseguirá dormir, que deixem para outra ocasião, mas ninguém se
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importa, as coisas serão o que elas têm de ser. Quando Alex se deitou sobre as poltronas, veio
André se aproximando com um ar desmilingüido, o presenteia com uma garrafa de cerveja
enquanto bebe da sua própria e senta-se do lado.
– O que eles ali no canto estão fazendo? – Alex pergunta.
É que lá. aonde ele olha, há uma roda de pessoas que deram um jeito de ligar uma
televisão, fizeram gato, puxaram de não sabe onde, enfim. Não foi outro a fazê-lo, senão
André, encarregado de conseguir ligar as luzes do teatro quando estão em noite de encontro,
coisa que na verdade todos fogem ao perceber que têm de fazer, porque é serviço que sempre
faz levarem choque.
– Estão vendo filmes de terror, não sei – responde.
– Parecem que estão vendo um poltergeist, está tudo chiado, odeio quando a tevê não
funciona.
– Eles estão doidos e querem conhecer a sensação de se borrar de medo.
– Entendi.
– Vai querer tomar alguma coisa hoje?, cheirar? – o olha e sorri. – Falando nisso,
precisamos de mais dinheiro para comprar as drogas.
– À propósito.
– Oi.
– Sobre a noite no restaurante.
André sorri e ergue a garrafa de cerveja, é esse um pedido delicado para que pare de falar.
– Pra você, que é meu amigo, eu posso falar que não tem problema – e meiosorri. – Fazia
tempo que Júlia e eu, bem, você sabe, não íamos para a cama, coisa de quem vive junto há
muito tempo, coisa de casado, mas nada realmente anormal. Mas, aí. Rapaz, posso te falar por
anos de experiência que nunca tivemos uma noite como aquela. Ela pediu pra eu...
– Estou mesmo ávido para ouvir os detalhes.
– A sinceridade faz com que as pessoas se entendam – ele parece consternado, olhando o
vazio, não muito certo das coisas que diz –, a sinceridade excita.
– É mesmo.
– Eu me senti muito estranho.
– Eu acho que não conseguiria imaginar.
– Senti – e ele gesticula como se algo lhe florescesse no peito – um ódio tão grande
crescendo em mim, um ódio de corno, mas era um ódio que me purificava, que descarregava,
entende?, despejava uma quantidade de adrenalina em cada parte de meu corpo, aliviava as
artérias.
– Fascinante.
– Eu realmente a amo – com tom sôfrego e de perdição.
– Espero que isso seja realmente bom, André.
– O que quer dizer com isso?
Alex dá de ombros como se suas palavras não pudessem ser mais claras.
– Júlia prefere sair da sociedade – André continua a falar.
– Como é? – e ele sente que estragou tudo. – Por quê?, não suportou?
– Diz que pode não estar fazendo tão bem assim.
– Você não interveio?
– Eu a respeitei.
– Esse tipo de coisa – está desesperado –, pode ser contornada entre nós, entre amigos,
também servimos para isso, para nos apoiarmos nas horas de insegurança. Não há ninguém
melhor que o amigo pra bater em nós, porque você sabe que será ele também a nos ajudar a
nos reerguermos e tudo o mais.
– Ela sente o que é melhor para ela, Alex – fala com jeito de quem afirma o incontestável.
– Entendi – grunhe.
– As portas devem estar sempre abertas – emite sem muita firmeza e bebe.
As portas estão sempre abertas para que as coisas lhe escapem.
– É mesmo. Liberdade.
– Sim. Olha só, ao que parece não vão deixar em paz o seu novo indicado. Estão chutando
ele ou é impressão?
– Não sei, não enxergo de longe.
– Já pensou numa loucura pra ele?
– Pensei em mandar seqüestrar uma freira, acho que será mesmo isso.
363
Ele ri, – Parece uma boa idéia.
– Já conheci padres legais, mas nunca uma freira legal. Acho que são todas muito
enrustidas.
– Deve ser.
– Escute – Alex interrompe o rumo da conversa. – Essa noite eu tive uma idéia.
E realmente não sabe mais dizer se a teve e o outro tão somente a incitou, ou se esse
convencimento que agora tem é produto da persuasão vil deste diabo, ou se foi inteiramente
soprada por ele em seus ouvidos sonolentos, que não se pode aproveitar a fragilidade de
alguém que dorme para dar sugestões, ainda que seja um pouco claro que lhes foram do
agrado, pois é, mas qualquer idéia arriscada seria. Se há um momento para demarcar um
acontecimento importante, essa é uma boa hora para definir o início da operação rua.
– É?, sobre o quê?
– Diz respeito às últimas discussões do pessoal daqui.
– Qual das discussões?
– Sobre só podermos ser livres – e começa a vigiar um foco de bagunça a se iniciar,
aparentemente estão disputando por Sylvia – nesse espaço do teatro, no máximo quando nos
excedemos nas noites de loucura.
– Com quem Sylvia estava lá no fundo? – André levanta ligeiramente a cabeça.
– Não sei, acho que era com aquele rapaz novo, o que tem a cara de bunda, mas depois
sou eu que irei lá – Alex bebe. – Continuando, está me ouvindo?
– Estou.
– Então, algumas pessoas questionam se não seria melhor levarmos essas idéias ao lado
de fora.
– É absurdo, tem de ser secreto, o porquê é evidente.
– Eu sei, por isso tenho um plano.
– E qual o seu plano?
– Veja só, Martin já está de novo na sombra de Carina – aponta.
– É, ele não desistiu.
– Você também não desistiu de Júlia.
– É sobre isso que você quer falar comigo, Alex?
– Não, estou apenas questionando a validade de seu comentário.
– Perfeitamente, você acaba de conseguir fazer com que eu me sinta uma merda.
– Não foi a intenção. Desculpe.
– Eu sei, no final das contas não é sua a culpa.
– Não sei bem se existe um culpado.
– É que às vezes eu me sinto dominado, coagido, e mesmo quando sinto que sou eu quem
detém o controle, bem, ainda resta um pouco de paranóia, como se eu estivesse me sentindo
assim só pela vontade dela, só para me manter mais ainda em suas mãos, consegue me
entender?, eu sei que é complicado, mas consegue me entender?
– Entendo exatamente o que você diz.
– É?
– É, já vivi algumas situações parecidas.
– E o que você fez?
– Bem, deixei tudo pra lá – isso, mente que você vai longe.
– Eu não posso largar a minha vida pra lá. É dar um tiro na boca.
– Júlia não é a sua vida, e é de Júlia que estamos falando.
– Eu não sei – está falando que não sabe mais ao certo o que é sua vida e o que deixa de
ser.
– Você é muito maior que isso, André. Eu te conheço da época em que você era você,
possivelmente sem ter nem as marcas de tua mãe – e ri. – Sei como você é, talvez por
enxergar de fora seja um pouco mais fácil dizer, mas eu tenho certeza, ou quase certeza, você
não precisa de mais nada para se afirmar, bem, digamos assim, entre aspas, pra ser você.
– Sem certas coisas, eu mudaria tanto que passaria a não ser mais eu.
– Isso talvez seja não querer mudar, porque inevitavelmente mudanças imprevisíveis
ocorrem, é que você só não está querendo tomar partido delas, não está querendo se mudar
voluntariamente.
– É, pode ser.

364
– Em alguns momentos você deixará de ser você mesmo e se descobrirá em outros
aspectos.
– Bem, eu sei.
– Então? – ergue os ombros.
– Ainda estamos falando de Júlia?
– Bom, acho que também serve a ela.
– Não é essa uma coisa que eu quero mudar. Eu a entendo.
– Você a entende? – não parece ter escutado o que ouviu. – Ela é praticamente um
monstro que te tiraniza – e ri como riem as bruxas malvadas –, você não se sente a vontade,
se sente oprimido, e está tudo jóia?
– É uma insegurança minha, Alex. Não posso culpar o comportamento dos outros quando
sou eu que estou inseguro, obcecado e em estado de nervos – parece mesmo que isso cai
bem é em você, Alex. – E você não acha que está se metendo demais? – é seu amigo, pode
falar as coisas assim, sem rodeio.
– Então está certo – ruge e bate as patas no chão, vencido.
– Preciso te contar da secretária que está se insinuando pra mim. Uma coisa dessas é uma
experiência revigorante.
– Eu não quero saber, também – se emburra e se levanta. – Vou assistir o filme junto com
aqueles outros e descobrir a sensação de se cagar de medo.
– E o plano que você mencionou?, estávamos falando sobre ele quando tudo mudou.
– Falamos depois, aqui é impossível, que essa confusão me excita – e na verdade vai lá
para o fundo disputar a vaga de Sylvia com alguém.
– Então no Schneider.
Chegando lá no fundo vê Sylvia no escuro, que ainda tem alguma discrição, com as saias
arreganhadas e as pernas entrelaçadas nas ancas do rapazinho com cara de nádegas. Há
uma fila de oportunistas que estão ali próximos, jogados pelas poltronas, fumando e apostando
suas coisas no carteado enquanto Sylvia lá ao fundo não termina, e quando Alex vem
chegando eles o cumprimentam, menos Bonaparte, que está mais próximo à escuridão e se
não o cumprimenta é porque está com a mão ocupada. É uma situação um pouco perigosa,
pensa, mas não está se referindo a Bonaparte, mas à moça ficar sujeita assim a tantos
homens, ao que dizem que para evitar um estupro ela carrega consigo uma faca escondida,
apesar que ele pense que para uma mulher como ela o estupro seria uma experiência de vida,
melhor não falar isso em voz alta, para não soar machista e monstruoso.
– Bonaparte, que nojo, você podia ficar ao menos um dia sem fazer isso? – alguém diz.
– M-m-me d-deixa em paz – ele anda irritado.
Alex soltou uma risadinha dessas que com alguma dificuldade se tomam por simpáticas, e
está se preparando para sentar-se junto aos rapazes e apostar a primeira coisa que sacar do
bolso, só para ter a graça de tentar ganhar roubando quando sabe que todos ali estarão
fazendo o mesmo, isto é, no final não deixará de ser uma competição, mas suprimindo as
regras tradicionais, competirão o jogo de quem rouba melhor, e tudo isso é muito interessante
porque reinventar as coisas é fascinante. Joga a carteira sobre a poltrona, diz para si mesmo
que ali dentro só tem lixo e, como se lhe ouvissem a cabeça. todos se entreolham e assentem
a concordar. Aí ouve um grunhido grosso vindo ali do fundo. A primeira imagem que lhe vem
na cabeça é do cara terminando o que esteve fazendo, tendo tremeliques nas pernas e
mordendo alguma coisa de Sylvia, mas ao que tudo indica aquele segundo grunhido que ouve,
que soa como um grunhido de estranheza, não é tão comum assim, não é coisa de se esperar.
E então o grito, um grito que receia mas que por final ruge a expressiva revolta de um mas que
porra.
Alex olha e vê o sujeito tropeçando para trás enquanto suspende as calças.
– Ela menstruou em mim – é o que o sujeito estupefato diz. – A vagabunda – e ri porque
não sabe exatamente o que deve fazer – menstruou em mim.
– É o quê? – alguém ergue a cabeça do jogo e se pergunta.
Quando lhe olham a camisa é clara a mancha de sangue, ela escorre até a calça e agora
na mão, o cara-de-glúteos se olha com nojo, graça e estranhamento, deve ser algo como um
desses traumas que passamos uma vez na vida para nos lamentarmos posteriormente dando
risadas, e é isso que todos fazem, começam a rir ainda incrédulos da situação, precisando que
confirmem, que ressaltem, para que efetivamente comecem as gargalhadas, apesar de ser um

365
pouco evidente que há alguma coisa errada, é que mais lá, fundo na escuridão, há uma perna
branca desmilingüida, pois um corpo desfaleceu e está no chão.
– Sylvia? – Alex se ergue.
– Ela simplesmente menstruou em mim, essa vagabunda começou a soltar sangue.
– Bonaparte, o que há aí? – perguntam.
– E-eu n-não sei.
Alex saltou da poltrona e foi se aproximando, ao que se deparou antes de tudo com a cena
um pouco desagradável de Bonaparte terminando de guardar seu saco estranhamente peludo
na cueca enquanto detinha um olhar preocupado e ia bisbilhotar mais de perto o que há. E aí
Alex surpreende-se ao encontrar Sylvia com as pernas trêmulas e caída ao chão, as costas
apoiadas na parede e um aspecto pálido como em quem a vida está escapando, e há alguma
coerência nessa observação, há camadas de sangue enfeitando sua saia, que é onde o
sangue se mostra mais preto, ainda que quando escorra por suas pernas, e veja só, é uma
quantidade das boas, o suficiente para uma poça, é vermelho tão fortemente como uma lama
que pensou ter vida. Algo dentro de si lhe diz que deve passar mais tempo fascinando-se com
o sangue, que isso não é coisa que se veja sempre, e de repente invejar a sensação de Sylvia,
que chegar assim perto da morte, sentir que a vida está indo embora, fluindo para fora de onde
devia estar e que você nada pode fazer, que por mais que você lute não há força de vontade
que se possa opor à física de um buraco que resolveu vomitar sua polpa, é, chegar assim perto
da morte deve ser uma experiência e tanto. Mas ele esbugalha os olhos e se lança movido por
uma vontade tão súbita que ele só poderia segundos depois afirmar que a teve, e se prostra de
joelhos ao chão e a toma nos braços manchando-se ele também, em parte porque é atraído
pela sujeira, por outro lado é como se tivesse a ilusão de que um abraço mudaria alguma
coisa.
– Sylvia? – ele dá tapas em seu rosto. – Ela está sangrando muito – grita, por fim.
– U-um m-médico – Bonaparte bate palmas olhando lá para frente.
– O que o cara fez com ela, hein? – vem aquele Tomas, talvez o Tony, enfim. – O que esse
sujeito fez, merda?
– Eu não fiz nada – agora o cara-de-bunda começa a tremer –, eu estava ali com ela, de
repente senti algo, e quando olhei...
– Alguém chama um médico, cacete.
– Eu sou médico, abram espaço – surge o senhor Dantas do alvoroço que se iniciou lá na
frente, que os abutres sentiram cheiro de carne fresca, não vai demorar muito para que por
instinto eles se amontoem e venham ver qual a vítima do momento, e não é de se espantar se
um deles lamber os beiços e murmurar para o vizinho, olha só, isso é legal. Alex está mesmo é
imaginando como um ortopedista sabe conter uma hemorragia, se não vai olhar e comentar
com ar técnico, hã, bem, é um caso claro de fratura exposta do ísquio, ou talvez do próprio ílio.
É, talvez.
– Ela começou a sangrar – o cara-de-bunda não pára de falar e tira a camisa, olhando-a
como quem olha as fezes alheias. – Eu a olhei e ela não respondeu nada.
– Isso não pára de sangrar – Alex coloca as mãos nas pernas dela e sente como se
houvesse um terremoto interno, é como um abalo sísmico que não chega a ser visível, mas ele
está escutando, assim como não se sabe como bate um coração, mas ele bate. – Olha só – e
engole seco ao ver a mão sendo coberta de sangue.
– Ela deve ter aids – fala um qualquer.
– Você não fale isso nunca mais. Não fale uma coisa dessas nem brincando – um outro
fica insano.
– Não é menstruação?
– Ela tá pálida – tarde demais, já se formou o círculo, uns sobem nas poltronas e se
debruçam para olhar.
– Se isso for uma menstruação, as mulheres precisam fazer uma transfusão mensalmente.
– Parem de falar besteira, isso é sério. Ela tá toda esbagaçada. Olha só, aquilo foi um
esguicho?
– Não pára de sangrar.
– Só estamos filosofando um pouco em cima disso.
– Pode ser escorbuto – fala um.
– O sintoma de escorbuto é sangramento nas gengivas, não tem nada a ver.
– E quem disse que as gengivas não estão sangrando?, você por acaso as viu?
366
– E se o cara ali esfaqueou ela?
– Eu não fiz nada!, pelo amor de deus!, eu não tenho culpa se ela, se ela...
– E você não tá nem aí, não é?, desde que você não tenha culpa, você não tá ligando a
mínima se ela tá pálida, morrendo ou entrando em coma.
– Mas eu não disse isso!
– Mas é claro que você pensou.
– Vamos precisar levá-la a um hospital – diz o senhor Dantas depois de se posicionar.
– Sylvia, olhe para mim – Alex dá tapinhas em seu rosto e pensa como é agoniante ver
olhos se revirando, ficando brancos, é como se estivesse diante da transformação de uma
pessoa num nada qualquer, e não é essa uma coisa que vá querer ver novamente. – Está me
ouvindo?, Sylvia?
– Precisamos parar a hemorragia e a levarmos pra ser atendida. Talvez ela precise mesmo
de uma transfusão.
– Quem é que vai meter a mão aí? – pergunta um.
– Foda-se – Alex grita. – Vocês são uns merdas, uns imbecis que não servem pra nada,
estão olhando uma pessoa morrer na frente de vocês e fazendo piada. Vocês todos são os
responsáveis por isso e não estão nem aí, eu quero é que vocês morram, seus pedaços de
bosta.
– Tudo é permitido – afirmam.
– Então espere – Alex saliva – o instante em que vou arrancar os seus dentes com um
martelo.
– Deixe-os e me ajuda aqui, Alex – diz Dantas.
– O que houve aí atrás? – Bublitz chega pulando pelas poltronas. – Tô malucão.
– A hemorragia fora de época e em grande intensidade pode ser sintoma de câncer de colo
de útero – o senhor Dantas fala com tom sério.
– É a época dela, ou não?, ela tá naqueles dias?
– Puta merda, como você quer que saibam?
– Vamos usar o meu carro – André já chega falando, vem empurrando muita gente.
– Eu juro que não sei como isso aconteceu – é mesmo um cara-de-bunda, olha a todos
que passam para falar essas coisas, e treme como um pato sentindo frio.
– Não me interessa – o careca com cara de bandido –, você não precisa ter culpa de nada
pra eu me vingar de você. Pára de chorar. Anda, sua moça, pára de chorar.
E ele vai engolindo os soluços. Alex a carrega nos braços e os atravessa rosnando, e não
há quem o pare, não há quem possa e não há quem afronte, é, mas é que carregando nos
seus braços o que ele julga ser quase um cadáver, entende ainda assim o porquê de alguns
risos e o porquê de ocorrerem, pois é, ainda que soem absurdos, o que acontece é que todos
que estão ali estão cansados de serem bons porque devem, coisa que sempre lhes foi
cobrada, essa coisa da vitória do bem sobre o mal com que nos viciaram. Estão cansados de
ajudar a senhora de idade atravessar a rua ou dar esmolas para o cego, estão cansados de
levantarem do banco do metrô porque a lei favorece o idoso e no contrário se será acusado de
má educação. É mesmo, a educação é uma merda, estão cansados de serem educados.
Acontece com alguns revolucionários livres de precisarem ser maus, comportamento esse
proveniente da necessidade de testar-se e afirmar-se, até que por fim a vontade esteja
amadurecida para libertar-se de qualquer tendência. Bem, a sua está madura, mas não sabe
muito bem o que querer. Parece angustiante supor que aquela pessoa em seus braços possa
não sobreviver, é coisa que sempre vai parecer. Por outro lado, deixá-la morrer e antes disso
deixá-la perceber que a sua vida está em suas mãos, e ele não trataria dela com mais que um
sorriso de diversão, seria uma experiência interessante.

367
– Você não teria aí um cigarro?, os meus acabaram.
Se espreguiça e recebe com insatisfação o peso abaixo dos olhos, é mesmo, com um sinal
de indisposição desses não se pode brigar, é quase como se velassem as pálpebras e já
pudesse sentir a satisfação de um sono gostoso a chegar, e a forma tirânica da consciência a
surgir no escuro e acenar que não deve, a balançar o dedo, na-na-ni-na-não, vestida como
uma velha macabra interessada em dar uns sustos dos diabólicos. Chega a dar com as
primeiras imagens, hamadríades dançando com roupas de seda quase translúcidas e
chamando-o para que venha e lhes faça o que quiser. Mas tudo que há de verdade é um cheiro
de éter que o aproxima muito da sensação de podridão, eis um dos poderes ocultos do olfato,
essa coisa de associação, e essa também é uma coisa interessante na qual Alex às vezes
perde seu tempo a pensar, isso da sinestesia, e tudo o mais, ainda que não possa repetir os
pensamentos a si mesmo para que não cansem a estética para aqueles que porventura os
ouçam. Ele coça os olhos e as ninfas escapam. Começam a dar lugar a um pesadelo onde
predomina o som do pim de um desses aparelhos que nos mede a freqüência dos batimentos
cardíacos, isso porque está ele internado numa cama e sentindo sua pele formigar com a
picada de agulhas, injeções que lhe dão e que não cessam, é quase como ter um maníaco
fazendo-lhe acupuntura, e ele não pode gritar porque caso o faça todo seu sistema nervoso
entraria num colapso que provavelmente o explodiria, o faria ter uma convulsão e comer a
própria língua, coisa do gênero. É, ele se espreguiçou, e agora desliza as costas pela cadeira e
se pergunta o que está fazendo ali. Olha e vê as paredes brancas e as enfermeiras de verde
passando, por instantes as associa com vaga-lumes. Por instantes olha uma maca coberta e
imagina que o cadáver que jaz nela esteja começando a libertar seu espírito, pois de repente
contraiu dons mediúnicos, é, contraiu, não o cadáver, mas ele, contraiu como se fosse mesmo
uma doença, afinal nesse ambiente tudo deve se misturar num miasma estranho, tipo uma
larva astral, isso é, coisa que ele já teve a oportunidade de ler a respeito num desses panfletos
que se entregam nos ônibus, se acha que sua vida está com problemas vá você também para
a sessão do descarrego, receba os passes magnéticos para sanar a deficiência de seus
chakras etc. Bobagem, em quanta merda eu estou pensando?, ele se diz, e são muitas as
respostas que recebe, a primeira quando uma enfermeira mais adiante – não pode lhes
observar as nádegas usando essas roupas que mais parecem uniformes de bombeiro – retira o
pano da maca que ele julgava estar ocupada por mais um indigente morrendo nas filas por
atendimento, e nada mais há do que alguns equipamentos desses aí, seringas descartáveis, ao
que ele treme quando vê as seringas porque teme que seu sonho, ou delírio, ou imaginação de
agora há pouco se torne verdade, mas ali tem frasquinhos com líquidos milagrosos e coisas
que salvam vidas ou curam enxaquecas, ou então despertam do sono, é do que ele mais está
precisando. Ele odeia hospitais porque todos nele parecem cansados demais, ou apreensivos
demais para descansar. Ele fica tentando entender por que o velho que está sentado em uma
das fileiras atrás da sua não pára de murmurar alguma coisa do tipo, ai, meu pai, me liberta,
me tira desse sofrimento, enfim, por que ele quer se livrar da dor que deve estar sentindo no
joelho ou nos rins e está num hospital e não tomando arsênico. Talvez seja porque só poderá
continuar a reclamar estando vivo e a graça é exatamente essa. Esse é um lugar onde as
pessoas que querem ser atendidas já passam por você e, se as olhar, elas retribuirão a
atenção com um olhar triste e lânguido daquele tipo, ai, meu pai, que sofrimento. É um lugar
onde as pessoas podem estar no canto gemendo ai, ai, ai e terão o pretexto perfeito para isso,
a imaginação dos outros, que ficará matutando se o garotinho magrela com olhos chorosos
está com uma dor de estômago ou um câncer na cabeça. É um pouco estranho pensar em
qualidade de vida quando Alex não consegue responder se as pessoas desejam viver melhor
ou viver mais, talvez viver melhor seja sempre mais difícil porque não se há muita iniciativa
para fazê-lo, então optam pela esperança, e vivendo mais se pode tê-la, a esperança de
aproveitar melhor a vida que já deixaram de ter. Agora ele começa a ver cadáveres, todos se
transformaram em cadáveres. O mundo sofreu um holocausto e tudo foi tão rápido que não se
deram conta que morreram, ao que antes viviam uma vida bem melhor, cheia de fartura e tudo
o mais, ainda que depois de mortos tenham sido jogados a esse lugar, na vida perdida teriam
esse lugar como o inferno, e não se dão conta de que suas memórias foram apagadas, exceto
no que lhes serve para atormentar, como por exemplo a impressão de que há coisa melhor do
que isto, que deve ser coisa que só se possa sentir já tendo experimentado numa outra
anterioridade. É esse o caso, o espírito de todos está perdido nesse limbo. A merda da criança
368
do banco de trás não pára de chorar, porque aparentemente quebrou o braço e está na fila
pelo ortopedista, num mundo onde a dor sempre irá nos acontecer, a saída ideal parece ser
nos infringir sempre uma dor maior para que as cotidianas sejam suportáveis. A primeira coisa
que Alex fará ao chegar em casa é quebrar o próprio braço, vai se tornar tão forte que rirá de
tudo, tudo. A vista está indo embora, começa a achar que bebeu demais, o que acontece mais
ou menos durante todo o dia.
– Você não teria aí um cigarro? – repete com a voz em tom de ai.
– Estamos num hospital, Alex – responde André, que lhe está ao lado, sem entonação.
– Engraçado, acabo de ter um dejá vu.
– Já estivemos numa situação parecida uma outra vez.
– É a vida, cheia de truques. É como se não tivéssemos saído do mesmo ponto.
– Ou como se tudo levasse à mesma coisa.
– Então estamos andando em círculos.
– Essa é a vida – André olha sem fascínio para os cantos.
– Somos pessoas diferentes porque mudamos, pessoas diferentes a fazer as mesmas
coisas.
– É.
– Então a única certeza que podemos tirar de tudo isso é o cansaço – e boceja.
– Sim, é verdade – e olha como se buscasse por alguma coisa.
– A vida é uma fuga do cansaço.
– Essa é a filosofia de nós, os depressivos.
– Você sempre vem com essa – e abana a mão. – Você é um saco.
– Dou o nome certo às coisas enquanto você se acostumou demais a elas.
– O que será que vai ser de Sylvia?
– Eu não sei...
E eles silenciam porque não é esse um assunto que valha a pena, porque há tosses
demais, há espirros demais e lamúrias demais, há sons de telefones e ramais e de elevadores
atingindo o andar, há o som de cadeiras de rodas e das macas, de enfermeiros recitando com
voz grossas e indiferentes nomes quase impronunciáveis de remédios enquanto os médicos
saem de uma porta contando piadas com um nome de doença. Não é exatamente piada, é
uma conversa que começa mais ou menos assim, aí ela veio pra mim e falou, oi, há quanto
tempo, você me deve notícias e esse tipo de coisa, aí pergunta da mãe do rapaz, se está tudo
bem, ao que ele responde, ela está com um tumor. E os dois médicos não sorriem e vão
andando para um caminho sinuoso até a sala de cirurgia onde irão abrir a barriga de alguém.
– Será que é culpa nossa? – André continua a falar.
– Sylvia? – pergunta.
– É.
– Eu não sei.
– Não a forçamos a nada.
– Mas a incentivamos.
– É mesmo, por isso eu não sei. Talvez, no fim, ela fizesse o mesmo em qualquer outro
lugar.
– Se há um culpado fui eu, que a indiquei.
– Acho que estamos fazendo o jogo deles – André diz. – Esse jogo de querer sempre achar
um culpado.
– O jogo deles – pergunta como quem pergunta deles quem?
– De todo o mundo.
– E você não é parte do mundo, o mundo são eles – mais um tom de pergunta.
– Faz um tempo que nos dispusemos a isso. Mas talvez também estejamos fazendo o jogo
deles ao pensarmos que somos especiais, quando na verdade estamos sendo previsíveis ao
nos enganarmos para nos sentirmos bem.
– Há uma forma de evitarmos essa angústia.
– Isso ainda me soa um pouco asfixiante – André fala como estivesse a terminar um
pensamento. – Oi?
– Há uma forma de evitarmos essa angústia.
– Como?
– Indo até o extremo de cada coisa pra que assim possamos testar todos os limites, para
que não restem dúvidas, para que não reste como.
369
– Isso não vai fazer com que encontremos a verdade.
– Mas fará com que não a enxerguemos da mesma maneira que agora – e meiosorri. –
Fará com que se torne um anseio ultrapassado. Ou que estejamos continuamente nos
esquecendo dela, dessa verdade que só existe para nos pôr em dúvida.
– E tudo isso para quê?
– Para sabermos que não estamos fazendo qualquer coisa – esfrega uma mão na outra.
– E tudo isso para quê?
– Eu não sei exatamente.
– Talvez a verdade nos angustiar não seja algo tão ruim de acontecer assim.
– É mesmo, não é. O ruim é quando somos fracos para desafiá-la.
– É verdade, entendo.
– Talvez tudo comece realmente da angústia.
– É pelo menos o que nos trouxe aqui – e simula um pescoço sendo apertado –, essa coisa
asfixiante.
– Os botões do seu pescoço estão abotoados – aponta.
– Sim?
– Pode ser isso lhe asfixiando.
– Ah, sim, obrigado.
– Onde está Bublitz?
– Está ali na recepção reclamando com a atendente-que-não-pode-fazer-nada.
Ele olha na direção do balcão e, junto a umas gordas que se revezam no atendimento dos
telefones, está uma que não apresenta nada de especial, salvo que tenta acalmar os ânimos
de um rapaz que fica erguendo as patas e batendo-as no balcão, depois se descabela como se
estivesse entrando em desespero e estivesse prestes a dar na cara da mulher, que deve estar
começando a supor que seja muito melhor chamar a segurança do que explicar-lhe que é uma
inútil e que não pode questionar a burocracia para dar-lhe algumas informações sobre um
parente morrendo etc, que no caso aqui se trata da garota que teve uma hemorragia das
grandes numa hora tremendamente inapropriada, ainda que comumente não se considere
haver hora apropriada para isso, é certo que ao menos está entre as mais menos apropriadas
um instante do bom e velho coito, o que ela devia estar pensando?, não posso nem mesmo
relaxar. Se chamarem os seguranças será incrível.
– O que vocês acham que foi? – perguntam.
Martin está sentado atrás de André, ao que por sua vez Alex tem de se virar para olhá-lo,
que é norma da educação que ele ainda não questionou, que se olhe nos olhos da pessoa
quando for falar com ela ou dar uma resposta, ainda que muitos não o façam mas não por má
educação, mas porque acham haver nos olhos algo de especial, ao contrário do pescoço ou do
braço. Independentemente Alex olha e, tendo pensado à respeito de olhos, se decepciona por
ter acabado de mirar e deparar-se com a mulher que tem um curativo gigantesco num deles e
está sentada ao lado de Martin, ou ela é caolha ou tem algo muito sinistro e certamente
contagioso, por isso ele não esconde a careta de susto, para possivelmente ser desagradável o
suficiente para que ela note, se ofenda e saia dali. Ela aparentemente não percebe, não é à toa
que é cega, ou tem algo muito sinistro, num dos cansados olhos. Ou não notou ou está sendo
mal educada. Ele tem todas as razões para odiá-la. Pobre de Martin que é tão grande que o
braço quase se esfrega no dela, pronto, se contagiou.
– Miomas, talvez. Às vezes eles causam sangramentos assim – André é quem responde.
– Espero que não seja algo grave.
– É – Alex acata sinceramente. Sylvia é uma boa pessoa.
– Martin – chega Bublitz sussurrando como se falasse coisas secretas –, você tá com sua
soqueira aí?
– Por quê?
– Você tem uma soqueira? – Alex sorri.
– Acho que os seguranças estão vindo aí e vou dar com isso na cara deles – Bublitz se
explica.
– Nem pensar, e de preferência não chegue nem perto da gente, que eu não quero me
meter na confusão que você foi lá causar.
– União, camaradagem etc – é um bom articulista, esse rapaz.
– Pensasse nisso antes de ir xingar a enfermeira – e ri.
– Pra que você tem uma soqueira? – Alex.
370
– Para me prevenir de assaltos, só isso.
– Você tem uma soqueira e nunca usou? – Alex acha isso inadmissível.
– Eu sou perfeitamente estável e não tenho problemas com isso – é, quase um zen-
budista.
– E por que entrou para a sociedade? – olha para a moça de curativo, mas ela parece estar
anestesiada demais para ouvi-los.
– Me faz bem, não tenho de me comportar igual a vocês para me sentir bem.
– Me empresta a soqueira, vai – Bublitz. – Ninguém vai ver de onde eu a tirei, e se você
não quiser me ajudar eu apanho sozinho que não tem problema, mas deixa eu amassar a cara
de um, vai, vai.
– Não vem vindo ninguém aí, Bublitz – André coça o queixo.
– Sai, sai – Martin.
– Que horas são? – Alex.
– Duas e trinta da manhã – André responde.
– Está bem cheio, acho que as pessoas resolveram trocar a noite pelo dia.
– Feito nós.
– Eu não posso demorar muito – Martin hesita em falar alguma coisa. – Minha mãe às
vezes tem insônia, se eu chegar em casa tarde demais, ela...
– Você mora com sua mãe? – Bublitz.
– Sim, eu moro – resposta rígida. – Ela pode – continua o que estava a dizer – estranhar,
não consegue dormir e fica tendo crises.
– Um sujeito de barba na cara, trabalhador e tudo o mais, mora com a mãe? – Bublitz.
– Ela é doente – agora ele rosna. – Tem esclerose lateral amiotrófica.
– Então ela já deve estar dormindo, não vai ficar preocupada.
– Ela vai – rosna olhando-o feio –, e juro que se você brincar com a minha mãe, aí sim eu
uso a soqueira, e se é pra amassar alguma coisa, amasso você.
Enquanto isso Alex está imaginando Martin, esse sujeito com um andar dócil, de trejeitos
de um bom gorila, de gestos finos e fala educada, rumando para a sua rua através das
calçadas sujas em mais um inóspito dia que foi vencido com muita ternura e dedicação. Ele
está com o saco plástico abaixo dos braços, pois fez as compras necessárias não só a ele,
pois é ele quem deve se encarregar das coisas todas, e aceita a responsabilidade que lhe foi
imposta, é o herói do dia-a-dia, o mártir otimista das incansáveis repetições que teimam em
nos pisar a cabeça e nos colocar abaixo do que já estamos, é tudo uma relação entre botas e
cabeças, entre línguas e calçadas, só resta, portanto, o mérito que vem de como se age em
relação a isso, e Martin estende as mãos aos companheiros caídos e certamente dá os
trocados que tiver e mais alguns ao faminto do semáforo pelo qual passa todos os dias, e o
faminto do semáforo já sorri ao vê-lo, pois sabe que garantirá pelo menos um pão, que naquele
sujeito específico se pode confiar. Agora Martin está entrando na rua escura onde ele mora, o
problema da pouca iluminação e da pavimentação tem rendido boas críticas da vizinhança,
mas o governo não faz nada porque o governo sequer deve conhecer essa rua, que está
perdida entre muitas outras. E é uma dessas ruas onde seus habitantes, inclusive Martin,
dizem a cada ano que pretendem se mudar, que só estão esperando reunir mais um dinheiro, e
eles não sabem que todos pensam a mesma coisa, porque o mundo de hoje torna as pessoas
desunidas a ponto de não conhecerem sequer o vizinho e portanto não sabem que todos têm o
mesmo sonho irrealizável, mas talvez seja melhor assim, porque se desiludir-se
individualmente já é algo ruim de se acontecer, desiludir-se em todo um conjunto deve ser
assassinato de toda a raça. Martin estará pensando em mudar-se e arranjar um apartamento
num lugar melhor da cidade onde não hajam tantas incidências de violência e onde possa dar
melhor qualidade de vida para a mãe, que tem esclerose lateral amiotrófica, que Alex não sabe
o que é, mas por ser um rapaz sagaz vai deduzindo que esclerose é coisa que o velho tem e
começa a ficar esquecido, lateral é do lado de alguma coisa, deve ser do cérebro, amio ele não
sabe o que é, mas trófico parecer vir de nível trófico – aquela coisa dos bichinhos se
alimentando – ou de atrofia, e como isso não se trata de cadeia alimentar, ele imagina, por fim,
que o problema da mãe dele seja uma coisa no cérebro que a deixa esquecida, babando pelos
cantos e com alguma coisa atrofiada, talvez o próprio cérebro, ou talvez o corpo todo tenha
encolhido, algo assim. Então Martin pensa na qualidade de vida da mãe, mas em seguida
chegará à conclusão de que isso não importa muito porque ela realmente não sai muito de
casa, também, não há como descer aquelas escadas tendo esclerose amiotrófica no cérebro.
371
Chega à conclusão que o que importa mesmo é sua qualidade de vida, e portanto o restante
será reflexo, que se ele quer se mudar dali é para o bem de todos, é, mas principalmente da
qualidade de vida da mãe, ainda que ela não saia de casa e que para ela não faça diferença.
Ele olha para os lados tendo chegado ao portão do edifício, vendo se enquanto bisbilhota
pelas chaves não aparece ninguém que quer a sua carteira. Por sorte ninguém surge dessa
vez com esse objetivo, a não ser a velha do primeiro andar que surge tal qual uma carranca na
janela para ver se não é um malandrinho tentando forçar o portão, ao que verifica que não e
deve suspirar aliviada, afinal é Martin, de quem ela, por ser velha e conhecê-lo, deve pensar
que eis aí um bom vizinho, não tenho mais nada com o que me preocupar. Ele vai subir os
degraus cuja luminosidade oscila pelos pifes da rede elétrica, alguém tem que consertar isso,
ele deve se dizer, mas por não ser ele vai continuar subindo os longos degraus enquanto
pensa sobre a decadência da classe média e coisa do gênero. Lá perto do último degrau, já lá
pelo seu andar, surge o ladrão que infiltrou-se desde antes no edifício e só estava a espera de
um morador desavisado, para que então o aborde e que entre na casa para varrer tudo. Vai lhe
dizer coisas como, fique calado etc e tal, você mora sozinho?, não se mexa, tenho uma faca,
ao que Martin vai dizer que não, que não mora sozinho e que ele não precisa se usar de
violência nem nada assim, que ele vai colaborar, se ele quer a sua carteira, mas ele não quer
carteira porra nenhuma, ele quer tudo que ele tiver, dinheiro, jóia e coisa assim, e que vai
entrar no apartamento e que se ele não colaborar vai ser furado, que vai entrar no apartamento
e levar o que ele quiser, que é para ficar calado para que quem esteja lá dentro não saiba, que
se tentarem reagir vai furar mesmo, que não tem problema em enfiar a faca na garganta dele,
ou no rosto, afinal ele não tem nada a perder, ainda que esteja suando de nervosismo e
pedindo para que ande mais rápido. Não há como achar que um sujeito como Martin possa
reagir, olha só, essa voz mansa, esse aspecto educado, o jeito dócil de quem sabe que não
deve piorar a situação tendo um assaltante em sua frente, que o melhor é dar tudo o que ele
pede porque o importante é sempre a própria vida e tudo o mais. Aí ele põe a mão no bolso da
sobreveste dizendo que vai tirar a chave, e que pode pegar a carteira também, se o bandido
quiser, mas ele só murmura que ande rápido se não quiser sangrar. Aí Martin tira a mão com a
soqueira e dá na cara dele, só basta uma para que o ladrão voe com as costas na parede e
caia todo desnorteado. Aí ele, que é ladrão, já deve estar acostumado a apanhar muito de todo
mundo, começa a murmurar quase instintivamente que não, que não lhe bata, que não o mate,
que lhe desculpe aí, que não teve escolha e não sabe o que mais, ao que Martin só lhe dá um
chute, porque é um bom rapaz, bons rapazes sapateiam conforme o ritmo da consciência, não
ia espancá-lo por um desejo súbito de vingança, é, e o vai arrastando pelas pernas enquanto o
ladrão choraminga e tenta debater-se, quebrou o nariz e está tonto, nada pode fazer. Martin o
joga escada abaixo e deixa que role, depois espanando as mãos e dizendo para si mesmo,
missão cumprida.
É então que abre a porta de casa e antes mesmo que gire todos os trincos ouve a voz da
mãe lá de dentro chamar-lhe pelo nome várias vezes para confirmar que de fato é o filho quem
está chegando, porque de repente a tal da esclerose lateral cerebral também causa alguma
coisa de surdez, ao que ele responde previamente, para não deixá-la preocupada, que sim,
sou eu, mãe. Ela diz que ouviu um barulho aí fora, o que é?, foi só o gato.
– Onde está Stern?, onde está Habib? – Bublitz pergunta.
– Foi tomar um café lá fora – responde Alex. – Habib, eu acho que foi fumar. E eu devia ter
ido junto.
– Doutor Dantas – André sinaliza e eles reparam na chegada do mencionado.
– Olá – pode ser psicológico, mas ele parece um pouco cabisbaixo, o que se justifica.
– Alguma notícia? – Martin.
– Sim, sim – pronto, agora espera ouvir é que o útero derreteu.
– E então?
– Bem, a hemorragia foi na verdade um aborto.
– Aborto.
– É, ela estava grávida de pouco mais de dois meses, tomou uma série de medicamentos
para interromper.
– E ainda assim foi ao teatro?, não acabou tomando demais?
– Pela quantidade de remédios que ela ingeriu – ele continua –, tudo leva a crer que ela
sabia o quanto era e sabia de seus efeitos. Acredito que ela na verdade tenha tentado se
suicidar...
372
Um instante desses de estranhamento e luto – prévio.
– Suicidar.
– É. Acredito que ela tenha ido ao encontro por despedida.
– Despedir-se de nós? – Martin.
– Eu não tenho competência para afirmar uma coisa dessas. Despedir-se dela mesma,
talvez.
– Mas que merda você está dizendo? – Bublitz.
– É quase o óbvio ululante.
Óbvio ululante. Um instante de estranhamento e confirmação.
– E agora?, como ela está? – Alex.
– Fora de risco, mas precisará ficar internada por uns dias. Chamarão sua família.
Se Alex soubesse não teria interferido. É triste como não se pode decidir nem mesmo
sobre a própria vida. Não se é nem mesmo autorizado para morrer, a julgar que é hora.
– Então é isso – André resmunga como aquele que quer dizer muitas coisas a mais.
– Meu deus – sussurra Bublitz –, isso é verdade?, por que merda ela fez isso?
– Não tem como ninguém saber, rapaz – Alex se espreguiça sobre as cadeiras.
– A não ser perguntando pra ela – André. – E eu acredito que ela não queira nos ver.
– Por quê? – pergunta Bublitz.
– Talvez porque nós sejamos a recordação de uma vida que ela quis esquecer – responde.
– Pelo contrário – intervém o doutor Dantas. – Olha, pela minha experiência de conversar
com pacientes – olha só, nem parece o mesmo de dentro do teatro –, eu tenho a clara
impressão de que nós fomos a vida que possibilitou ela se sentir um pouco melhor.
– Bem, ela não foi até o fim – André.
– Às vezes não é preciso – Alex.
– É verdade, Alex, às vezes a tentativa basta.
– E se for isso o que ela quer, acho que o mínimo que temos a fazer é respeitá-la e, para
mostrar que sua vontade não foi ignorada, não temos nada a fazer. Talvez tenhamos feito o
oposto de respeitá-la quando a trouxemos para cá.
– Não podíamos deixá-la morrer – diz Bublitz.
– Podíamos – e ele coça a nuca –, mas escolhemos não fazer.
– Alex, isso é realmente complicado de julgar – diz o doutor Dantas.
– A ignorância continua sendo nosso túmulo – ele fala poeticamente.
– Eu acho melhor irmos embora, antes que a família dela chegue e queira saber quem
somos nós – André.
– Seus amigos, é o que responderíamos – Alex.
– É, não seria de todo mentira.
– Não, não seria.
– O problema está em nos mostrarmos, em haver possibilidade de descobrirem de onde
somos. Onde ela estava quando aconteceu – André continua.
– Se souberem talvez não a deixem voltar – Alex.
– E você acha que ela voltará?
– Eu não sei, mas acho que se ela sobreviveu é porque deve.
Então ele parte para o lado de fora com uma sensação que não é exatamente de angústia
sobre os ombros, como angústia em potencial, não está triste nem feliz, está no abismo dessas
coisas e é como não sentisse nada. Assim, deixa o cheiro mortuário de éter para o que julga
ser do ar puro quando as portas automáticas dos tantos descidos andares ronronam ao
deslizarem e lhe vem o cheiro de quiabo e fritura, que é como essa cidade fede, esse cheiro,
sempre esse cheiro, e é como houvesse uma fumaça negra eternamente a embaçar sua visão
e entupir seu faro. As buzinas longínquas, o som da freqüência das coisas, que o mundo não
consegue realmente ser silencioso, sempre há um reverberar de algo, no mínimo de energia
elétrica, e as ambulâncias apitando e a gente entrando correndo com as macas, parece que
houve um acidente grave de carro com gente embriagada no volante, aí vem chorando uma
senhora atrás da maca que pode ser tanto a mãe do motorista ferido quanto da vítima, não
importa, que mãe não faz essas distinções, só se importa com a perna aberta com feridas
estranhas e com os cacos de vidro que devem estar nos tendões.
– E então? – vem Habib com o cigarro, estava sentado junto a umas senhoras de idade
que passaram mal no meio da noite.
– Pelo amor de deus, dê-me um trago – Alex.
373
– Ela abortou, estava grávida. – Bublitz.
– Por isso a hemorragia – ele acena formalmente enquanto passa o cigarro a Alex.
– É, por isso – André acata.
– Meu deus, eu sou um viciado – devolve o cigarro bafejando pelas narinas.
– Cadê Stern? – Bublitz.
– Ele vomitou em si mesmo e o levaram achando que podia ser sintoma de infarto.
– Sério?
– É – continua Habib –, mas ele os convenceu de que era por causa da bebida. O serviram
um chocolate-quente e uma barra de cereais. Está lá dentro comendo.
– Em quem eu tenho que vomitar pra me arranjarem um sanduíche? – Bublitz.
– Não tem sanduíches em hospitais, apenas papa – André.
– Papa e barras de cereal – Habib.
– E sopa – o senhor Dantas.
– Ainda vamos ficar ou podemos ir? – Habib.
– Acho que não agüento mais de sono – Alex.
– Agüentaria se estivesse no teatro – André.
– Não, é que lá eu não me importaria de dormir.
– Então, o doutor Dantas pode deixar-me no metrô? – Habib.
– Eu também, por favor – Bublitz.
– Não sejam por pouco, os deixo em casa.
– O senhor é um bom homem – Bublitz.
– Tudo bem, mas vamos sem Stern, que esmola para três não há santo que suporte.
– Tudo bem, vamos deixar ele aí – Bublitz –, depois ele se vira. Está se alimentando e tudo
mais. A vida dele é melhor que a nossa.
– André, me deixa em casa? – Alex.
– Certo.
– Foi uma noite e tanto – o senhor Dantas.
– É mesmo.
– A próxima reunião fica pra quando? – Habib.
– Três dias está bom pra vocês? – Alex.
– Acho – Bublitz é quem acha – que um pessoal pretende estar lá daqui a dois dias.
– Bom, então vamos depois de amanhã e no terceiro dia também – André.
– Parece bom. Boa noite a vocês.
– Boa noite, até a próxima.
Agora Alex está com a cabeça apoiada no vidro do carro, além dele o ócio se estende em
direção a tudo quanto é coisa negra, agora já parece, de primeira vista, que todo o universo é
assim, essa coisa frígida, parada e nem por isso pura. Não se importa em reconhecer as ruas
porque elas parecem todas as mesmas, é mais ou menos tudo que lhe passa essa sensação.
Antes retornar ao sonho das seringas, ele pensa, e poder me excitar com alguma coisa, uma
qualquer. Aí André estraga tudo quando liga o rádio. São horríveis essas vozes dos programas
noturnos, são feitas para nos dar ainda mais sono, ficam fazendo sorteios com prêmios ao que
os ouvintes ligam para responder, e esse parece ser um desses programas em que a mulher
fica do outro lado da linha conversando sobre sexo, as pessoas ligam para contar os seus
problemas e terem eles comentados, do tipo, isso é normal, ou, é, isso é algo que você deva
conversar com seu marido, ou, moça, largue seu namorado se ele te disse isso, e por aí vai.
Os notívagos ligam sabe-se lá de onde e os ouvintes aqui se excitam por causa da voz da
radialista, até que ela não dá assim tanto sono, e você se sacode para ouvir essa voz de
mulher gostosa, Alex, o que faz André perceber que você ainda está vivo.
– Tudo bem? – e o pergunta.
– Tudo, tudo – cantarola.
– Esses programas no rádio, ninguém suporta.
– Então desliga ou muda a estação.
– Não, não quero ouvir música.
– Então desliga – boceja.
– Quero ficar ouvindo alguma coisa.
– Então vai tomar no cu.
– Você me disse que tinha um plano.
– É, eu disse.
374
– Explique-me agora.
– É uma idéia dessas que se tem no estado de vigília, da qual não estamos muito certos
mas de repente começa a nos ser persuasiva.
– Entendi. E, no caso, qual é?
– Ainda não está muito bem estabelecida, não está clara na minha mente.
– Mas fale.
– É a idéia de contagiar o mundo de fora com o espírito que temos na sociedade.
– Abrir-se?
– Não. É mais vago e não nos mostraríamos.
– Continue.
– Devemos semear um espírito de insanidade em todas as direções.
– O que seria o espírito da insanidade? – ele sorri.
– É como olhar para o lado e ver um cara dirigindo nu. Como atravessar a rua e poder
encontrar qualquer coisa. Quando se olha para o lado e se tem a impressão de que os sentidos
das coisas começaram a ruir, como se estivesse drogado e não se soubesse.
– É um pouco divertido – André sorri como quem não leva fé.
– Até as preocupações das pessoas são as mesmas – ele permanece firme, ele sempre
permanece. – Ao andar num túnel escuro você tem medo de ser assaltado, ser morto, qualquer
coisa assim. Eu quero instaurar um medo que faça a pessoa supor, e que seja um temor real,
de que uma velha possa abordá-la porque está carente de sexo, porque não faz isso há anos –
aqui André começa a rir –, ou porque não entende que hajam pessoas andando nuas sem
razão aparente. Eu quero soltar os bichos do metrô, isso é, do zoológico, e ver eles andando
no metrô, e as pessoas olhando e não sabendo que diabos está acontecendo.
– Você quer – André ainda ri – que não saibamos mais distinguir o que é surrealismo do
que é real.
– É isso o que eu quero. Esse é o legado que a sociedade deve passar. É assim que ela
deve conspirar. Ir de encontro à razão e mostrar o como ela é frágil. Fazer as pessoas rirem
embasbacadas por não saberem mais o que está acontecendo, e no fim elas se entregam.
– E como pretende fazer uma coisa dessas?, quais os meios pra se fazer algo assim?
– Olhe, prostitutas – aponta para fora. – Se tivéssemos ovos jogaríamos nelas.
– É, eu já tinha reparado e pensei na mesma coisa. E quanto aos meios?
– Temos de criá-los. Colocar nos outdoors propagandas estranhas, como por exemplo a
cara de um urso panda apontando para o leitor como se o chamasse para o exército e falando
para ele na legenda, a vida é uma bosta, recrute-se já – André sempre tem de rir. – Ou então
nos infiltrarmos nas edições de revistas, sei lá, só estou supondo, e colocarmos bigodinhos e
chifrinhos nas fotografias da gente importante e coisa assim.
– Isso é ligeiramente impossível – André.
– Podemos fazer propaganda falsa, também. Colarmos folhetos nas paredes dizendo que
há bandejão, sabe, aqueles restaurantes populares?, em restaurantes grã-finos aleatórios, mas
fazemos algo bem convincente. Coisas que simplesmente estraguem tudo. Vamos colocar uma
saia de prostituta e batom na estátua pública da virgem Maria. Escrever uma legenda na boca
de cristo crucificado falando assim, não estou aqui porque eu quero, me tirem daqui, seus
filhos-da-puta.
– Pare, eu não consigo mais rir e dirigir – André bufa.
– Não sei por que está rindo, isso é algo muito sério.
– Ainda que seja estupidamente divertido.
– É.
– De qualquer forma, seria preciso que todos nós nos engajássemos nesse tipo de coisa, e
talvez até mesmo mais dos nossos.
– Sim, e além de disposição ser algo que não falta, estarão felizes pela oportunidade de
estarem indo às ruas.
– Sei.
– Podemos usar as loucuras com esses fins, também. Dois sujeitos pelados que entram no
posto e pedem por gasolina, ao que o frentista vê, é claro que além dos dois nus, que não há
carro nenhum. E eles falarão que não é preciso, e um começará a tomar um banho de gasolina
enquanto o outro brinca com um isqueiro. Que tal?
– Bom, é uma idéia e tanto. Mas precisaríamos de algo que acho que você não supôs.
– O quê?
375
– Dinheiro – e sorri como se fosse algo simples, algo que não vivemos sem, e que podia
ainda assim ter ignorado, veja só.
– Não, eu supus.
– E então?
– Podemos dar um jeito.
– É? – ri como quem ri de uma criança. – Que jeito?
– Eu andei pensando em tudo – e que isso fique bem claro.
– Oi.
– Você me disse certa vez sobre um episódio que aconteceu na firma em que você
trabalha. Seu chefe foi rendido por um maluco, um outro pulou para salvá-lo e tomou um tiro.
– Você se lembra disso. Às vezes tenho a impressão de que você esquece de tudo que te
falam.
– Eu lembro do que é interessante. Você ainda está substituindo o herói?
– Sim – acata com cara de estranhamento –, na verdade a empresa deu férias a ele. Por
quê?
– Está com acesso às coisas dele?
– Estou me encarregando de alguns de seus clientes importantes, é o que tem me custado
mais tempo. Aonde quer chegar?
– Você mencionou um fundo de emergência.
– Alex – e o olha de relance, deve estar com medo de o volante revoltar-se e lançá-los
contra um poste.
– A minha idéia é que você tire de lá um dinheiro grande para nós e insignificante para
eles.
– Você quer – e sorri com escárnio – que eu roube minha firma?
– É isso. Você a odeia, mesmo.
– Não se trata de ódio. Se trata de ser algo imbecil.
– Por quê?, você tem acesso, pode. É claro que iremos planejar as coisas direito, de forma
que ninguém descubra.
– Eu não seria apenas despedido – o escárnio continua –, eu seria preso e nunca mais
conseguiria nada na minha vida. Pare com isso.
– Ninguém saberá – ele fala tão sério que assusta. – Mas precisamos de boa vontade para
assegurarmos isso.
– Isso não vai acontecer.
– Pense bem, será a nossa primeira forma de revolta substancial.
– E a segunda? – sarcástico.
– O panda falando da vida, a virgem prostituída, as lojas recebendo uma multidão de
pobres querendo comer, a polícia sem saber o que faz.
– Eu sendo preso e estuprado na prisão?
– Essa parte não existe.
– Você ficou maluco.
– Agora sou eu quem digo pra que você pare com isso.
– Você perdeu a noção do que está me pedindo. A gente não deve perder a noção assim,
Alex.
– E o que eu o estou pedindo?
– Não me venha com sofismas, o que você está me pedindo é muito simples. Está pedindo
para que eu arrisque a minha vida por uma loucura que você teve idéia de fazer. É só.
– Não é só. Estou pedindo para que você admita que a sociedade é uma parte importante
de sua vida.
– Não é fazendo algo assim que estarei provando uma coisa dessas – ele engole seco. –
Já tenho deixado isso bem claro.
– A sociedade é mais importante a você do que hoje são muitas outras coisas.
– Não fale besteira – grunhe. – Não há sequer como você poder julgar uma coisa assim.
– Sim, há. Se tudo se acabasse, a sociedade e tudo mais, eu não digo que você morreria,
mas sentiria tamanha saudade que deixaria de ser a mesma pessoa. Se você olhasse para o
futuro e visse a você depois da sociedade, provavelmente não se reconheceria. Assim como
você disse que sua vida era Júlia e não se imaginava sem ela. O que você me disse hoje
serviu para que isso clareasse a minha mente.
– Sem um trabalho eu morreria de fome – rosna.
376
– Você não vai perder o seu emprego, mas será um risco. E de qualquer modo ninguém na
cidade morre de fome. Há muita comida por aí. Basta tirar de quem tem demais e dá-la a quem
tem de menos – ri de levinho. – Há esses serviços de atendimento social e tudo mais. Sério. Eu
já vi um mendigo com uma placa escrita, já comi. Ninguém morre de fome.
– E se descobrem? – aparentemente não ouviu sua resolução da fome mundial.
– É uma possibilidade como o mundo ser invadido por extraterrestres, um meteoro cair
agora no capô do carro, começar a chover fezes.
– Não exagere.
– É o que eu ainda estou querendo dizer. Quero fazer acreditarem que o exagero pode se
tornar possível. Todos terão de passar a conviver com a oportunidade do absurdo.
– E se descobrem? – insistência incômoda.
– Não vão descobrir – apóia o queixo sobre a mão e olha introspectivo para fora.
– Mas e se descobrem?
– Para isso – Alex pensa e conclui – temos que ser rápidos e efetivos o suficiente. Para
que quando descubram, se descobrirem, não haja mais nada a ser feito. Será tarde demais.
– Eu não sei o que te dizer.
– E eu também não posso te cobrar uma resposta agora. Mas não pense que não vou te
pressionar, que vou esquecer disso com o passar de uns dias. Pense, isso é tudo, e eu não
vou esquecer.
– Nem eu. Você está certo, tenho de pensar.
– Certo, então tudo certo.
– Veja, estamos chegando.
– Eu vi. Obrigado pela carona.
– Que é isso, já me acostumei – e não sabe se isso é sarcasmo, uma hora como essa não
é válida para se discutir.
– Então obrigado pelo costume – é o que diz, e o carro vai parando e sacolejando
enquanto choca suas rodas no meio-fio escuro.
– Tudo bem. Boa noite a você.
– Boa viagem, boa noite.
E o processo a seguir é feito maquinadamente como se bastasse pensá-lo e seus
elementos em nada se alterassem desde a última vez. Tenta sair vitorioso da luta contra o
bolso, não consegue, que ele engole a chave para que precise enfiar as mãos cada vez mais
fundo, é quase como se o braço nunca fosse atingir a fim algum. Aí entra e pensa em checar a
caixa dos correios, e como de costume chega à conclusão de que nesse escuro vai acabar
pegando a correspondência dos vizinhos que deixam, incautos, suas coisas destrancadas, e
assim ele acabará descobrindo as correspondências secretas que uma certa senhora casada
troca com seu amante, ou melhor não, que coisa secreta assim não é enviada pelo correio, é
óbvio que não, no máximo consegue descobrir que revista cada um assina ou uma ameaça
desses serviços de cartão de crédito ou telefonia dizendo que fulano está em falta com o
pagamento e que não vai demorar para que entrem na justiça e arruínem sua vida, sujem seu
nome etc. Não há mais tanta graça em bisbilhotar o problema dos outros, essa coisa fetichista
de espiar a vida alheia, a graça agora é destruí-la. Aí vêm as escadas e talvez não agüente
mais dar tantos passos. O latido temerário do cocker spaniel quando ele pensa que está
prestes a descansar. A luta novamente pelas chaves, porque ele é tolo, reclama delas mas
sempre as põe no bolso depois de usar para ter de achá-las mais uma vez, e são esses
pequenos vícios e desatenções que temperam e estragam lentamente toda uma existência,
como uma bola de neve que no dia seguinte se converterá num intenso mau-humor e
depressão capazes de fazer esse sujeito pacífico assassinar alguém na cafeteria que o serviu
a bebida com gosto de meia, é isso mesmo, quem estuda vê que, sentir-se asfixiado, como
sente-se André ou sentiu-se numa outra ocasião, sentir-se asfixiado é um processo de coisas
mais simples do que se vê e tão vulgares que, se fossem expostas, o atormentado por essas
coisas se sentiria ainda mais ordinário por ser atormentado por coisas que ele mesmo com
certeza há de julgar tão imbecis. A angústia, pensa Alex, isso que ele está sentindo por não
saber se Carla estará acordada e falará com ele, porque falar numa situação como essa é
inadmissível, isto é, quando ele não consegue sequer contrair o diafragma e a respiração é
penosa, a angústia é um reconhecimento de que somos imbecis, e por mais que saibamos que
existem coisas não imbecis, não conseguimos alcançá-las porque estamos presos à
imbecilidade. Só resta, então, a consciência a atormentar. E a casa toda escura, com felicidade
377
constata que Carla dormiu, acaba sentindo que foi um pouco injusto, mas esse é um segredo
que não contará para ninguém, assim não lhe faz mal. E a solidão e as trevas o inspiram, de
modo que enquanto arremessa as roupas pelos cantos chega a conclusão de que dormir ou
seria um desperdício ou seria o encontro com sonhos que não pretende ter.
Ele senta-se a frente da escrivaninha, acende o abajur que já é mais que suficiente, pega o
seu bloco de anotações secretas da gaveta e imagina se alguém não andou bisbilhotando, é
algo muito possível de se acontecer com essa inocência cruel que temos, e assim se
atormenta por longos minutos com essa idéia, até chegar à conclusão de que tem de se
concentrar e trabalhar, que o horário de dormir que tem é durante o dia, agora é hora de
despertar.

378
– Eu sou desenhista – o sujeito com cara-de-bunda é quem fala isso, e ergue a mão com
um sorriso no rosto.
– Ninguém te perguntou nada – retruca outro, se bem que acabaram de perguntar, e a
pergunta se deu mais ou menos da seguinte forma, se alguém de vocês souber ou trabalhar
com coisa de desenho, pintura, grafitagem ou algo assim, que já vamos explicar o porquê, por
favor, se manifeste agora. Muitos provavelmente não gostam do rapaz por ter a cara-de-bunda,
o que seria um preconceito infame, algo bem desaconselhável. Por outro lado, são esses que
não vão mais poder comer Sylvia, é natural que precisem de um bode expiatório para o que
aconteceu.
– O que eles estão fazendo? – Bublitz acaba de chegar, dobrou a esquina com uns
camaradas, devem ter sido eles que o avisaram que a reunião hoje não seria no teatro.
E ele deve estar olhando aquele aglomerado de pessoas na rua, cuidando de se
embrenhar nas sombras dos becos, nos vestíbulos mal cuidados dos prédios escuros que não
parecem ter vida e nem janelas acesas, e lá estão bebendo, outros estão decidindo coisas
importantíssimas em círculos fechados, outros fazem brincadeiras estúpidas como colocar
latas de lixo viradas no meio da rua, ainda que saibam ter escolhido um lugar assim, meu caro,
por não haver trânsito praticamente nenhum. Pergunte a eles, Alex, os dê um esporro, não,
que uma coisa dessas não se justifica, mas pergunte o que diabos vêem de prazeroso no que
estão fazendo e eles lhe dirão que é para arruinar a manhã seguinte de qualquer um que se
atreva a acordar bem disposto. Então ele vai pensar que é realmente uma boa causa, vai se
sentir tentado a participar, mas a gravidade o coage a continuar sentado na calçada, porque
terminar com essa garrafa de cerveja exige um ritual religioso de apreciação. Ele olhou para
frente e sente os espasmos de risada crescendo, a medida que olha para o outro lado da rua e
vê aqueles homens que não conseguem arrombar a porta de uma loja fechada. Eles têm até
um pé-de-cabra e não são capazes de dar cabo de um trabalho sem algazarra, a vontade que
ele acaba de ter é dizer que vai ali no beco aliviar a bexiga, urinar, ele diria para não ofender a
ninguém com termos chulos, e uma vez estando escondido ligaria para a polícia e lhes diria
alô, sou morador de tal lugar, dessa rua escura e tudo o mais, e estou vendo um grupo de
estranhos muito suspeitos tentarem há mais de vinte minutos arrombar uma loja, mandem
todos seus reforços, são muitos e estão armados, sim, posso ver daqui, estão armados dos
pés a cabeça, o número que eu estimar você multiplica por cinco, e deve ser essa a quantidade
deles. E então ele iria embora e leria as notícias no jornal de amanhã. E tomaria café enquanto
veria seus rostos assustados, talvez sorrissem, estampados orgulhosamente num caderno
intitulado, mais um dos absurdos de nosso mundo, bando de vândalos não conseguem assaltar
uma loja de material de construção, e o que alegam é que queriam mesmo as tintas.
– Vamos precisar – diz André, cercado por uns camaradas – de alguém que tenha acesso
a uma gráfica – e toma um gole da cerveja –, seja um parente, seja o irmão que trabalhe lá,
não sei.
– Esse cadeado não quer abrir – Andriolli sussurra gritando do outro lado da rua, um gordo
empapado de suor. – Dá pra vir mais gente aqui?
– Se eu tiver de ir aí – Alex – pra fazer por mim mesmo, juro que dou com esse pé-de-
cabra na sua testa.
– Vem então pra ver, você não tá mesmo fazendo nada – e ergue a arma.
– Eu trabalho numa imprensa de jornal – diz o careca com cara de poucos amigos.
– Será que consegue fazê-la imprimir algumas coisas para nós? – André, e pensa. – Não,
é arriscado. Será que você não pode conseguir a chave, não sei, dar um jeito para que a gente
vá lá, alguma coisa assim?
– Não tem como, mas a depender do que seja posso tentar fazer para nós.
– Folhetos – diz Alex, erguendo a cabeça –, cartazes, tudo que você puder fazer.
– Você pode alterar algumas notícias, também. Trocar a ordem de palavras, atribuir
sentidos estranhos para as frases, mudar um dado aqui ou acolá, será que alguém nota?
– Depois que leiam, é claro que sim – o careca.
– Mas é mesmo pra que notem, vão achar que foi erro de quem escreveu – Alex.
– Eu não me importo, eu posso fazer, desde que não me incrimine diretamente.
– O que diabos estão fazendo com essa loja? – Stern ri.
– Vamos invadi-la – um qualquer tem a resposta na ponta da língua – para vandalizar as
coisas.
379
– Ei, você – Alex sinaliza ao cara-de-bunda.
– Eu? – e aponta a si mesmo, depois olha para trás, coisa que todo cara-de-bunda faz.
– É, é. Quem foi que te indicou?
– Aquele meu camarada, ali – e aponta outro desconhecido que está arrombando a loja.
– Isso não me diz mesmo muita coisa – coça a cabeça e arrota. – Fala com André, ele vai
falar coisas interessantes pra que você faça, se puder, tudo certo?
– Sim, sim – ele se anima todo, é, céus. – Posso fazer qualquer coisa, pra quando vocês
querem?
– Para assim que puder ficar pronto – e joga a garrafa de cerveja contra um muro na
direção de pessoas, estilhaçando-a.
– Se cuida, se você me acertar, já sabe – León urra, Alex ri.
Ele olhava para as pessoas que se contorcem no meio da rua, talvez estejam querendo
sentir-se como vermes, um deles parece não ter suportado a experiência porque está inerte,
olhando boquiaberto para o céu. Se mais um tiver de parar no hospital, isso terá começado a
ser um problema a sair de controle. Certo, o sujeito acaba de vomitar para o alto e
desengasgou o que o sufocava. Sempre colocar para fora, essa é uma boa filosofia. E então o
som do rombo. O acompanhamento dos uivos de comemoração não deixam dúvidas.
– Pronto – Andriolli se debruça sobre os próprios joelhos e arfa feito um porco. – Abriu.
– Vocês – vem Tomas, ou seria Tony? – entortaram a porta toda. Não é possível que
quebrar um cadeado seja tão impossível.
– Então vem você e faz melhor – reclama outro.
– Não preciso, já fiz a minha loucura, e certamente foi algo muito pior do que isso.
– Então não reclama, sabichão, se eu não me intrometi com a tua.
– Isso é porque eu fiz direito.
– É, e deve estar orgulhoso de se fantasiar de travesti direito – e todos riem.
– Não fui eu quem fiz isso, foi meu irmão.
– Vocês são iguais, não faz diferença.
– Quebrei o meu nariz, por dias tive de dirigir meu táxi assim, de olho roxo, porque mexi
com a mulher daquele grupo cheio de bandidos, e é o que você me diz?
– O que eu quero saber – Andriolli – é o que precisamos fazer agora. Arrombamos uma
loja. E aí?
– Quando eu me vesti de palhaço foi muito legal – Bublitz.
– Agora – André se balança todo, e aí balançam-se as mãos, que é para se fazer ouvir, a
mostrar que é o que pretende – entramos na loja e pegamos latas de tinta.
– Esse tipo de coisa pesa.
– Todo mundo tem que ajudar.
– Vamos pegar sprays, também – Alex.
– Vamos pichar alguma coisa – sugere um.
– É, podemos.
– Mas pra que estamos fazendo tudo isso?
– Assim que chegarmos no teatro explicaremos. Serão coisas incríveis.
Assim segue-se o mutirão da gente da sociedade, que entra pela loja e, por prazeres
ignorados pela explicação – Alex recebe ajuda de Habib para levantar e vai espiando
enquanto se aproxima –, alguns chutam as prateleiras, derrubam tabelas com preço, quebram
as lâmpadas e não se importam mais com o barulho e com o chamativo que são, que são
essas as conseqüências da inconseqüência, que não consideram que o grupo eleito para olhar
se nenhum vigia noturno se aproxima da tal ruazinha onde estão são exatamente os drogados
que estão estirados sobre o chão e vomitam sobre si mesmos, articulando idéias sobre os seus
escarros e sobre a filosofia por trás da decadência, veja só, tem um lá que está citando um
poema e é mais ou menos assim, perdoando-o por não citar as fontes biográficas e por estar
em condições de errar, há mais filosofia no meu escarro do que em toda moral do cristianismo,
isso é mesmo bonito. Basicamente, em pouco tempo não verão nem perceberão mais nada,
simples, porque não haverá mente que o faça, ela rirá de si mesmo e se dirá, é, danou-se,
adeus. Mas até que Alex vê que mesmo na loucura há disciplina, veja, que a fileira dos
camaradas vem passando agora carregando as tintas, são como as formigas que, até onde ele
saiba, não precisam de açoites para que funcionem, então ele viaja de que todos são partes de
um formigueiro exclusivo, um formigueiro onde pela primeira vez as coisas estão fadadas a
funcionar, mas foi apenas um desses lapsos que ele tem, onde a realidade parece assumir
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gostos melhores do que o habitual, simplesmente por ser um gosto diferente ou nova forma de
impressão, e na verdade é esse o gosto de virar-se do avesso.
– Vocês vão ficar aí deitados e se contorcendo? – Stern vem passando e pergunta aos que
zelam pela segurança de todos.
– Não conseguimos mais fazer diferente.
– Sim, ele tem razão, não podemos nos levantar.
É mais ou menos assim que se inicia a operação rua, logo veremos de que maneira isso
acarretará em certas coisas decisivas, as quais ele ainda está para rever, retornar à escuridão,
coisa assim, mas a grande sacada, o real golpe de mestre foi ter percebido que uma válvula de
escape assim mais ou cedo ou mais tarde seria necessária. Aí estão passando pelas ruas e
uns carregam os amigos como feridos que nunca são deixados para trás. É certo que uns
fingem estar cansados para não andar. Então é tudo como naquela idéia, ou visão, ou sonho,
pode ser tudo isso que ele já não se lembra, em que todos os caminhos escuros vão
silenciosamente se ocupando do mutirão com tochas, a passeata fúnebre que não lamenta o
enterro de nada, e se houve algum foram eles os próprios assassinos. E, dessa vez, nada pode
debruçar-se da janela para olhar, porque definitivamente não há prudência nisso, é como
quando se diz que o abismo não é feito para ser fitado, a não ser que se ouse tornar-se o
monstro contra o qual se luta, algo assim. É como espiar a queda de Sodoma. Você vira sal ou
resolve ir lá e participar do fiasco. Aí estão de volta ao teatro. Ele espia o pessoal no círculo
dos desabafos. Ele odeia gente que se lamenta. Tem vontade de rir, de se apiedar desses,
como Júlia diria, neuróticos, que são feitos de dromedários e assim continuam sem o ânimo
revolucionário de dar coice nas suas cargas. O que lhes resta são as lágrimas, e devem pensar
que elas fazem muito bem, que aliviam, esse tipo de discurso para que implicitamente aceitem
que a covardia é inevitável. Mas nem todos podem ter uma visão como a sua, é algo orgânico
e prático, há pessoas mais talentosas que as outras, e você gosta de pensar assim. Mas pensa
novamente em Júlia e essa é sua cegueira. Também não se pode exigir plenitude da coragem
de ninguém.
André está cuidando de tudo, é a pessoa ideal para esse tipo de coisa. E a cada
movimento de mãos, ou do suor que lhe vai escorrendo e que ele limpa com uma esfregada,
ou quando sacode a roupa para arejar-se, parece que se empolga ainda mais, céus, nada pode
fazê-lo parar de falar, nada pode pará-lo, chama um cara que está do outro lado do teatro, seja
na jogatina ou experimentando a vida através de filmes, e hoje estão vendo um de alienígenas
e a bad trip de um ali deve estar levando a uma sessão de abdução bem sinistra, mas André
chama a um, dá instruções, e as pessoas geralmente admiradas ou pouco ligando acatam,
mas não se pode enganar a um sujeito que está compenetrado na sua missão, então André os
puxa novamente e lhes põe as mãos nos ombros, dizendo coisas do tipo se me entendeu
bem?, ouviu tudo o que eu falei?, olha lá, isso é coisa muito séria, vai lá curtir a sua noite, mas
quando chegar em casa pela manhã pensa no que eu te falei, hein?, quer que eu te ligue para
lembrar?, então é isso, está bem claro, hein, camarada. É assim que ele fornece as missões
das pessoas e explica por alto os efeitos em que chegarão, mas por um instante muita gente
se distrai porque algum esperto usou os sprays de tinta, todo mundo sabe que é tóxico, nos
olhos de algum outro, que enquanto grita que vai ficar cego para sempre e que vai matar o cara
que fez isso, que não sabe se ri pela experiência ou lamenta a imprudência, aí o vão levando
em busca de uma torneira para enxaguar abundantemente, é o que se deve fazer, diz um,
incerto se conseguiu ler totalmente a instrução, Alex o entende, o mundo é feito de letras
miúdas para que poucos possam usá-las, ele é um desses tantos segregados. De repente,
começa a sessão da hóstia e ele está de joelhos na frente do palco. O traficante que lhes
consegue as coisas ilegais chegou e cresce a expectativa de estar trazendo pão aos famintos.
– Deixai, ó vos que entrais, a toda esperança – começa a mesma coisa.
De repente apareceu um índio, isto é, mais ou menos quando ele estava ouvindo clarins de
valquírias saindo da boca das traças, podia ouvi-las roendo os entulhos do camarim,
impregnando as frestas do palco, tendo elas a própria vida do tempo, já que o tempo é
decomposição e são as suas bocas o agente, as da traça ou as nossas, ele já não sabe mais,
mas então ouviu-se o uh-uh-uh apache mais ou menos quando ele enxergava estrelas que não
existiam, rodando por sobre sua cabeça como fazem luminárias de quarto infantil, e parecia
estar sendo transportado para a terra do nunca, para lugares fantasiosos de maravilhas
verdejantes com fadas sininho que toda criança – inclusive ele – tem uma, só não se satisfez
com o princípio de que bastava acreditar, foi essa a idéia que alguma fada soprou-lhe no pé-
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da-orelha, ele não aceitou e tudo se arruinou, o sonho bom foi começando a escorregar para
dentro de um pesadelo e acabou dando origem a um inverno nuclear cinzento. O índio podia
ter saído de sua cabeça, não que ela tenha se aberto como fez a cabeça de um deus da
mitologia para sair-lhe algo coerente, nesse caso é como se ele desabrochasse como uma flor,
que meigo, mas como, felizmente ou não – ele já deve ter observado algo a respeito disso –,
sempre nos resta um pouco de razão a ser usada, ele articula e chega à conclusão de que o
índio é nada mais que um sujeito nu que se pintou com tinta e que resolveu se comportar como
bicho das selvas, pulando sobre as poltronas e as mordendo, porque são presas. Até que foi
montar nas suas costas, de onde já caiu. Começa a ver totens e agora as vozes são das
florestas, o que ele deve fazer é conhecer a sua fúria animal. É mais ou menos quando o
cântico de uh-uh-uh vai aumentando e ele joga o cigarro sobre o chão, o amassa com a sola do
sapato, e depois de tirar a camisa bate no peito supondo-se gorila, mas dói e ele tosse diante
de seu rugido silvestre, então ele talvez seja apenas uma capivara que ronrona. Tem gente nua
se pintando. Depois de jogar a sua cueca sobre o rosto de alguém ele se une a elas. Ou todos
estão vendo uma fogueira, que essa coisa de alucinação coletiva pode realmente ocorrer, o
que o faz pensar totalmente sobre a credibilidade da verdade, ora, se a loucura começar a ser
aceitada por duas pessoas ela já será um objeto existente, a realidade é o único lugar de
interação que há, ou puseram fogo nos entulhos. Se houvesse mesmo um incêndio, já não
importa, porque homens e mulheres dançam para ser purificados e com um propósito desses
só o fogo para acatar.
Ele cai de costas sobre o chão e reza por uma epifania qualquer, reza para a terra do
nunca que quando era criança tentava alcançar, e por talvez não conseguir ser mais criança
nunca o fazia, sempre virava na estrela errada, esqueceu as coordenadas, não sabia mais se
era a segunda estrela à direita e direto até o amanhecer ou a primeira ou terceira à esquerda,
acabava estrebuchado de volta na cama. Aí ele culpa o suicida que pulou de um prédio por não
se importar com quem o poderia ver, culpa a menininha que quando a via o olhava parecendo
que pedia por ajuda e depois teve de morrer. Tudo leva um pouco de nós o tempo todo, mas
algumas levam rápido demais. Então ele se vê mais uma vez transportado para aquela
recepção de hospital, as paredes reluzem porque são portais para outro mundo, e agora os
enfermos, com lascas no rosto e fraturas expostas, não se lamentam, mas o olham, e sorriem,
bem-vindo, irmão. É, só resta fechar os olhos e suspirar para que deus o liberte, me liberte
desse sofrimento que já não sei mais o que é, mas não tenho dúvidas de que está aqui.
E deus não o libertou. A prova disso é que está aprisionado ao mesmo dejá vu do teto do
quarto sem cores, como se o preto-e-branco, a escuridão que existe antes de abrirmos as
pálpebras se atrasasse de fugir antes que ele a percebesse. O próprio vazio boceja e
negligencia seu serviço de existir somente como idéia e, por uns instantes, se faz concreto e
visível, até escapulir vertiginosamente bem diante de sua cara. E esse fenômeno ele nunca vai
esquecer, ciente de que jamais há de se repetir. É mesmo o quarto, o escuro expeliu o quarto
que sequer é dele, que raio estou fazendo aqui?, como sequer eu vim parar aqui?, e então o
enjôo e a depressão. Presume se o vazio não pode se confundir, e se um dia, quando ele
resolvesse de repente abrir os olhos, o vazio, por conta de um desses atrasos, se dissesse,
tenho de agir rapidamente, e se atrapalhasse e tecesse ao redor a realidade de uma cabana
num país de camponeses, um iglu, ou uma oca. Talvez, se tivesse os poderes de um monge
ou de um iogue, rompesse os véus dessa grande ilusão que envolve tudo e pudesse
transformar a si mesmo num pastor de cabras ou em alguém que valesse a pena.
Mas o que o vazio teceu – e agora não é mais vazio – e lhe põe na frente, arqueada com
as camisolas que vestem ancas, ops, ancas que vestem camisolas, mirando, as ancas, não a
camisola, na direção de seus olhos, enquanto rebolam na frente do armário, é Carla. Ele
gostava de ver mulheres aleatórias acordarem, agora fazê-lo com a mesma o está deixando de
saco cheio. Ela está se vestindo e isso é escatológico, o escatológico não é mais assim tão
agradável, existe mesmo uma hora para tudo, e essa definitivamente não é uma hora para
isso, ainda que exatamente isso o quê, ele não saiba responder. Ele está sofrendo com a
enxaqueca e com seu samadhi que não pára de produzir sua religião insana particular, talvez a
gente precise mesmo de bases, de um chão, que quando nos submetemos à revelações
demais, nos cansamos por não haver mais nada de estável e nada que possa render uma
afirmação, por ser tudo subjetivo, pois é. Mas, vê só, ele está sofrendo com a enxaqueca e
com as voltas da sua memória, mas por restar em si um espírito perpétuo de gentileza sente
vontade de murmurar, ou grunhir, ou o que o catarro e as cordas vocais permitirem, pelo
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menos um bom dia, Carlinha, algo que ninguém azedo faria. Olha só, em resposta às suas
puras intenções, ela está de costas e resmungando que é ela quem tem de fazer tudo, que mal
acabou de acordar, e quanto dorme essa mulher que não sai a noite, bem, que ele saiba, e
acorda somente um pouco antes, não muito, dele que foi feito para sempre estar em
frangalhos. O bom dia com que ela o recepciona são queixas e mau humor, ela tem de fazer
compras, cuidar da vida dela e ainda cuidar do funcionamento da casa, que antes deixasse
tudo sujo, mas que não está acostumada com isso, que está puta e não sabe o que fazer
quanto a isso, blá, blá, blá.
É que queixas e mau humor são sempre a seu respeito, a respeito de Alex, por isso ele
fecha os olhos e finge continuar dormindo, finge mais ainda não ouvir nada quando
secretamente está mesmo é rindo de sua esperteza, como sou esperto, ai, que cansaço e não
posso nem me espreguiçar. Não lembra nem com que roupas voltou para casa, não lembra se
dormiu no metrô mais uma vez, ou se foi carregado por caridade, que recebê-la, ultimamente,
tem sido uma das suas práticas favoritas. Sorri com a idéia de encontrar aquele dono, ou dona,
do cocker spaniel, e ele, ou seria ela? o olhar torto e atravessar à calçada próxima, porque não
é bom ser visto, ou vista, ou ficar por perto de um sujeito que chega em casa nu, a noite, e
quem sabe mija nos degraus. Esse sou eu, ele pensa e ri, a possibilidade disso tudo.
Cuidado, lá vem os trotes dos cascos de Carla, troc, troc, abaixe a cabeça, finja dormir,
certo, não é algo assim tão difícil. Ok, ela resmunga algo acerca da sua inutilidade, mas não
tem coragem suficiente de acordá-lo, isso é porque suas queixas não têm razão suficiente, se
tivessem, ela estaria motivada a tomar qualquer iniciativa contra a opressão que você a
submete, essa tirania emocional nas entrelinhas, mas não, então ela só está relaxando porque
reclamar faz parte do seu rito de satisfação, e não será você, a Alex, a interrompê-lo. Ele não
sabe se se concentra no chiado de seu tímpano, talvez um câncer na caixa craniana, se é que
há câncer nesse tipo de lugar, mas há no osso e tudo mais, então essas forças sinistras podem
estar devorando a sua cabeça lentamente a ponto de atormentar-lhe a audição, e não sabe se
deve concentrar-se nela ou nos barulhos vindos lá da sala, que é coisa de gente que quer
acordar e incomodar e não sabe como chamar atenção, aí faz barulho colocando coisas sobre
a mesa, tossindo, fingindo estar bradando ao telefone com algum namorado, que é para lhe
fazer ciúmes, mas não vai conseguir, falando alto, e por aí vai. Então a porta bate, é um sinal
de que tudo está bem, comemorado por um longo bocejo e um espreguiçar ruidoso. Sai
rastejando pelo tapete até atingir o toalete, se apóia na pia e se levanta, esfrega a vidraça para
que o rosto do outro não apareça e não esteja lá rindo de sua cara, gargareja, vomita um
pouquinho da ressaca de ontem, erra a mira da latrina e pensa que xi, depois tenho de limpar o
azulejo, de preferência antes de Carla voltar, caso contrário, morte estranha por dor de cabeça
via reclamações infinitas etc.
Faz as escatologias matinais, ao que se sente pleno e procura não pensar em nada – com
o propósito da não-descrição de tais atos – e depois da ducha em que cochila em pé ele se diz,
não, hoje eu encaminho um trabalho de qualidade à redação, porque sei reconhecer que o que
eu levo é uma vida dupla e ao menos numa das identidades tenho de me mascarar com
responsabilidades, e nesse dilema aqui estou eu.
Aí está você, olhando o bilhete deixado por Carla, são anotações simples cuja
complexidade microscópica não o escapa do olhar. Fui almoçar fora, ela diz, mas a questão
não é o que você foi fazer fora, minha cara, mas com quem. Se é mero utensílio de vingança
ou se comete a ousadia de gravitar além da vida nessa casa. É, ele sabe o que ela quis lhe
causar com isso, ela não tem metade da inocência que aparenta, apenas não a dará crédito,
muita pretensão achar que ele realmente se importaria, simplesmente quando amassa o
bilhete, boceja e erra a mira da lixeira. Joga-se no sofá e planeja os próximos minutos, até dar-
se conta de que os gastou planejando, propositalmente enganando-se e permanecendo inerte.
Aprecia um pouco do que pode ouvir do cric-cric das tesouras do seu José logo abaixo da
janela que dá na varanda, porque a razão de uns homens é filosofar, a de outros cortar ervas
daninhas, se bem que bem pensando Alex realiza ambas, mas por não saber à qual se dedicar
acaba pecando na qualidade, e a sua qualidade deve de ser proporcional à do estômago, que
está pronto para regurgitar alguma coisa a não ser que tome um ar. Tropeça e coça as
nádegas rumo à janela da rua. Pára e inspira os sons de sirenes, de motores e escapamentos
de moto que alguém eventualmente confunde com tiro e morde as mãos de preocupação, ai, a
violência me atingiu, e veja só, está um belo dia, do jeito que você gosta, sem muita incidência
de raios solares, sem calores descomunais, sem chuva ou sem sal algum, ou seja, mais um dia
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como qualquer outro, merecedor de que se apóie no parapeito e lance um longo suspiro de
superioridade sobre tudo e sobre todos. Ele coça o rosto, as pessoas que têm miopia ou
qualquer outro gênero de debilidades visuais podem e até deviam imaginar como ele se sente,
porque se tudo é uma questão de sentido ou sensação é tudo mais questionável do que nunca
quando as imagens se vão vindo e indo naquela crosta de cegueira embaçada que nos faz dar
vontade até de coçar bem na íris, na vontade de se descascar uma feridinha, finalmente o
suspiro que deu por cima de tudo volta contra si, como se as coisas que ele transcendeu
resolvessem vingar-se, dando na cara desse pretensioso que esperou sair impune, é, mas não
se trata do mundo e ele sabe muito previamente disso, o mundo é um corpo morto no espaço
sideral, cadáveres não devolvem o coice e ele assim parasita um cadáver bem grande, junto a
todos nós, também por isso está condenado a morrer, porque o hospedeiro previamente não
supre seus anseios. Tudo se trata de estar a coicear a si mesmo. Ele pára, não como quem
pára por estar em movimento, mas para perder todas as expectativas de um. E não é com um
engasgo de surpresa que recebe as coisas que agora está vendo, muito menos com uma
careta desengonçada ou uma gotinha fria de suor descendo pela medula, antes de tudo porque
ele não quer vulgarizar a surpresa, isso não cabe a ele e nem é interessante, depois porque
ainda se demora na junção do quebra-cabeça, demorará mais ainda para perceber que não há
nenhum, tudo o que resta é murmurar para si um é, algo como, é, pois é, é a vida, um é que
nada diz e um deixar para lá.
Há um sujeito lá embaixo, olha só, mais ou menos ali, numa calçada que não está nem
perto nem longe de lugar algum. O cara está parado, fumando e olhando a parede onde há
panfletos presos, cheios das sujeiras dos vote em mim, compre isso, venda aquilo, compro seu
carro usado, compre seu terreno no céu, dê dinheiro para a caridade. Mas, entre toda essa
sujeira que ali está, é certo que deve haver ali algum detalhe urgente, a julgar pelo cara que
parou a sua caminhada rumo ao algo muito importante para onde se dirigia. Deve haver ali algo
fascinante, mas Alex desiste de compreender sem nem mesmo ter se excitado a descobrir. É
quando ele olha para cima, não para cima, mas apenas ergue com o rosto e se diz na forma de
impressões, cansei-me, vou-me embora. É nesse preciso momento que o cadáver do mundo,
com algum arroubo de vida, lhe devolveu o suspiro. Cristo está num grande cartaz que sobe
pelas paredes, é uma propaganda que vai se repetir ao longo de toda a rua, é justo que todos
que espiem de suas janelas para se entreter nessa tarde vejam quem está ali, e é cristo
apontando diretamente para você, Alex, e ele está sorrindo como você imagina um padre
pedófilo sorrindo aos coroinhas, não é exatamente vil, há algo de hilário em seus traços, e se
ele o aponta, bem, é uma ótima estratégia, porque ele tem algo muito importante para te dizer
diretamente. Aí, a legenda, sua mãe irá morrer essa semana. Ele ergue, Alex, não cristo, as
sobrancelhas, como quem está lendo um trecho de livro e surge um excerto que de tão
deslocado parece ter sido introduzido só para impressioná-lo, para avisar que não se distraia,
revise todas as últimas linhas até agora, e agora ele está mais acordado, debruçando-se para
observar a extensão da parede, engasgando com o gosto de poluição, os carros passam
roncando e o sujeito que fumava parado na calçada não mais está, mas uma mãe andando
com suas filhas que saíram da escola e o pessoal que vai passando não importam, só aqueles
olhos marotos de parede invadindo sua janela, sua privacidade, para amaldiçoar-lhe, veja só, a
mãe. Ele entra se espreguiçando pelos cantos, cai sobre a cadeira, puxa o telefone e vai
discando. Do outro lado da linha está chamando, não serão necessários mais que alguns
toques para que o estalido final do auscultador do destino tilinte, é o intervalo até que a voz o
diga.
– Alô.
– Olá, sou eu – Alex fala.
A voz de André torna-se sorridente, – Então, recebeu o meu presente?
– Acabo de vê-lo pela janela.
– O que me diz?
– Fascinante.
– Vamos, esse não é um adjetivo que cative – risadinha. – Espere um instante – e se
ouvem as vozes da gente conversando coisas de trabalho, decisões muito importantes devem
estar sendo tomadas enquanto Alex boceja.
– Pronto – André regressa, por fim.
– Escroto.
– O quê?
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– Estou falando do adjetivo, esse cativa mais.
– Ora, não é por aí, nem tudo que choca é cativante.
– Você não me parece muito ocupado.
– Por quê?, desenvolvendo conversas supérfluas?
– É.
– Pelo contrário, estou com uma pasta gigantesca em minha frente, se você pudesse ver,
ficaria aterrorizado.
– Então?
– Quer saber a lógica de eu não estar cuidando dela?
– Acho que sim.
– Muito bem, é que estou sendo contrário ao que me dão, nadando contra a correnteza
através de gestos mínimos, e não estou me importando com o cansaço.
– Você começou a entender – estala a mandíbula.
– É profético, você falando dessa forma.
– É cativante porque choca, porque excita a atenção.
– O que achou do cartaz?
– Você entendeu bem o que eu tentei te dizer e achei não ter conseguido.
– Os méritos não são meus. Só um minuto – segundos de vozes abafadas. – Eles estão se
divertindo. Nunca vi tantas idéias boas em tão pouco tempo em lugar nenhum. Acho que não
se pode pará-los quando estão se divertindo. Acho que não se pode parar alguém que se
diverte, antes o mundo todo soubesse das vantagens da diversão.
– Há mais?
– Colocamos em algumas zonas da cidade pra adiantar, em estações do metrô, em pontos
de ônibus, em algum tempo conseguiremos mais, o que importa é também a variedade,
estamos trabalhando nisso. Quando se derem conta de que algo está errado e arrancarem, já
poderemos fazer o dobro.
– É um começo.
– É. Só um minuto. Desculpe, foi só impressão.
– E quanto ao outro assunto?
– Sobre isso conversamos depois.
– Entendi – passa a mão sobre o rosto, que assim se espana o sono.
– Hoje começará às onze. Vai?
– Não sei, tenho muito o que fazer.
– Pare de me enganar.
– Estou tentando me enganar, não a você.
– É um talento que você tem menos ainda.
– Acho que por mais que conheçamos as pessoas essa é uma das coisas que não se pode
dizer delas, nunca se saberá o que realmente passa numa cabeça, do que estaremos tentando
nos convencer, em que essa pessoa já se enganou ou deixou de se enganar.
– Essa é uma conversa que ficará para outra hora, também.
– Pensei que estivesse nadando contra a correnteza.
– Bem, um passo para trás, dois para frente. Se não eu tropeço, não é?
– Sei.
– Te espero às onze.
– Certo, vou estar lá.
– Até.
A carta em que Carla diz que teve de dar atenção para alguém mais importante vem
rolando sobre o chão como se ainda quisesse se exibir, vê só, ainda estou aqui, não pode se
esquecer de mim, coisa do gênero. Mas ele a chuta com o pé para um canto escuro qualquer,
vai-se embora e o deixa em paz, que ele não se prende a futilidades, ele só se atém às coisas
vitais. A redação manda que ele escreva sobre o impacto estético das obras de saneamento
dos grandes rios poluídos de nossa cidade. A redação manda que ele escreva sobre poluição
visual enquanto contradição entre arte e pressão psicológica. A redação ordena que fale a
respeito do determinismo que deve haver sobre a poluição das fábricas para os artistas
proletários, afinal de contas, ele pensa que não demorará muito tempo para que o comuniquem
num bilhete sucinto, num correio recebido pela manhã, vai lá, com muita boa vontade quem
sabe o mandam uma cesta de café da manhã dizendo-lhe, já o usamos o suficiente, você já
disfarçou validade o suficiente e agora está despedido, e todo um velho processo terá de
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começar uma nova vez, ainda que se saiba que uma hora isso terá de acabar. Não haverá
próximos recomeços, ele afirma visualizando no espelho o moribundo daquela menção que diz
de um sujeito que nada e morre na praia, afoga-se no raso ou se cansa, e não parece
realmente tratar-se dele, que não se afoga, e não no raso, e também não se esforça, seus
músculos estão em dia, obrigado, mas acontece que por mais que não se faça sempre se
espera chegar a algum lugar, é uma expectativa simples de se estar vivo, sempre se esperará
o algo novo que não se sabe o quê. Ele agora sabe, apenas cuidado com o ciclo vicioso de
quem quer sempre mais, é, por mais que o negue, nele também se enredou.
Ele está no carro, se irrita algumas vezes porque a manivela que faz descer a janela está
emperrada, a cinza do cigarro está ameaçando cair de seu dedo e não há muito o que possa
fazer, estica o braço e a debruça sobre a fresta mínima, lá se vão os pedacinhos, menos
aqueles que caíram para dentro, pobre do estofado, é mesmo melhor aproveitar que ninguém
viu e se fazer de inocente, um sorrisinho amarelo, um olhar deslocado para os lados, e quando
se vira lhe vem o cheiro do molho de sanduíche, ou é o cheiro de picles, é muito ruim quando
comem essas coisas perto de nós e quando estamos num lugar abafado, e o que piora a feiúra
da ocasião é ver Stern respirando pesadamente a cada dentada e melando a barbicha com
catchup, do som nem se comenta, é tão repulsivo que não acha outra saída senão cada vez
implicar mais, olhá-lo com essa cara de nojo, de dá-me um tempo, até que consiga
desencorajá-lo completamente, no fim provavelmente não dará lá muito certo, ainda que sirva
para que você se conforme. O som de tic-tic vem de André, ele está fazendo alguma coisa com
o relógio, se entretendo em destrinchá-lo, ao que tudo indica, consertando, coisa assim, mas
não, constata-se que está mesmo é batucando, amordaçando sua cabeça com a distração de
uma música bacana. Por instantes, será Alex mesmo a produzir seus sons enquanto choca a
cabeça no vidro, é mesmo muito divertido ficar matutando se o crânio humano já nasceu com
essa devida consistência ou se muitos precisaram se sacrificar em uns longos processos de
seleção natural até que os ossos estivessem fortes o bastante a ponto de não sucumbirem a
um capricho, feito o seu, de dar com a cabeça contra uma coisa qualquer. É estranho, a vida
preserva a si mesma, mas esse não é exatamente um processo do qual se pode dizer
inteligente, não, inteligente até é, talvez só não seja exatamente justo, o que talvez só o fosse
se cumprisse com a sua vontade particular, e agora sua vontade mais atual é de testar a
sensação de ter a testa se abrindo. Bem, talvez você seja construído, Alex, para se proteger de
si mesmo, é nessa grande sacada que consiste a evolução, a tentativa sacal de prever até
quando você pretende ser protegido, e é por isso que você precisaria querer muito estourar a
cabeça para conseguir, porque se essa é tua vontade, reside nisso o verdadeiro e mais secreto
conhecimento e assim ou você teria muito poder, como já diria a máxima religiosa de conhece
a ti mesmo e os deuses e os universos estarão entre essas coisas tais, ou teria mesmo uma
estrondosa desilusão letal e não haveria proteção craniana que a suportasse.
Sorri pensando na dor de cabeça, muda de idéia bem rápido, as coisas são bem mais
frágeis do que pensa, estou a todo o tempo, ele vai pensando, na beira da morte, é isso que
me caracteriza, me entendo num precipício mortal. Ele está cansado de abstrair e agora põe a
mão sobre a testa como quem reclama do cansaço porque se lamuriar virou um hábito, para
distrair-se não precisará de muito esforço, entenda-se com isso que ouve os sons vindos de
Stern e uns grunhidos de Hugo, esse está no volante, e quando se diz que está no volante não
é porque esteja dirigindo, mas porque está literalmente no volante, ainda que dois corpos
materiais não possam ocupar o mesmo lugar no espaço, se bem que depois de alcançarem
cada vez mais esferas de liberdade talvez consigam mudar a própria física, enfim, a percepção
dela já conseguem, então o que Alex vê, e meiosorri ao fazer, é um desgraçado fatigado que
não mantém mais os olhos abertos com o rosto grudado onde deviam estar as mãos, isto é, de
repente ele vai dirigir com a cara. Em todos os encontros ele mistura umas coisas sinistras. Há
muitos entre eles que gostam de sentir-se mal. André fala.
– Saia pra fumar. Você está nos sufocando.
Ele o olha por segundos nos quais silenciosamente o chama de chato, vai, seu chato, nos
quais diz que dane-se, os incomodados que se mudem, apesar de que é ele quem abre a
porta, encolhe-se pelo frio noturno de mais uma rua tímida, e são tantas a impregnarem sua
memória que as confunde todas como quebra-cabeças ou retratos surreais, confunde coisa
com coisa, um passado com outro, que não seria mais de se espantar fechar os olhos e ver
numa das lembranças André de saia e de batom, atuando no lugar que no espaço-tempo devia
pertencer a Júlia, ou sabe-se lá, lembrar de um episódio qualquer num banheiro masculino e
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ver as mulheres da sociedade, pense em Sylvia por um exemplo mijando de pé, o que seria
muito horrível, mais escatológico do que ter as mãos empapadas por seu sangue vaginal.
Preocupa-se com ela. Estou amando cada qual ao meu modo, ele se justifica, e imagina a
moça entubada na penumbra de um quarto de hospital, aqueles apitos cardíacos que nos seus
sonhos ele viu pararem, ainda que na ocasião medissem a seu próprio coração, imagina a cara
branca e sem vida da moça, olhando como dissesse que quer morrer, por favor, para as
pessoas que sentem compaixão fazerem alguma coisa, ao que em volta os murmúrios
cochicham pobrezinha, escolheu o pior dos caminhos, esse tipo de coisa, e de repente a mãe
ou o pai ou os irmãos, abraçando-a, perguntam por que perderam contato, por que se
deixaram distanciar, não devia ser assim, é algo que simplesmente se sente que não se deve
fazer, mas o ócio e a displicência às vezes são maiores e só vamos notar o valor das coisas
quando elas tentam se suicidar, é que nada nunca esteve bem, nada nunca esteve realmente
bem, apenas não se soube delas, e não é porque não se sabe que está tudo certo. De repente
foi o melhor que Sylvia pôde oferecer. De repente foi o melhor que Júlia pôde fazer, saindo da
sociedade.
O melhor que podiam oferecer sempre se torna visível, seja pelo suicídio, isto é, não seja
leviano, Alex, você não sabe realmente se o foi, mas suponha que é, então, seja pelo suicídio
de Sylvia, ou seria meramente aborto, que disso se há mais certeza, seja pelas declarações
infernais de Júlia, no fim todos estão querendo ser o melhor de si, e mais ainda lá no fim estão
fazendo isso por causa deles mesmos.
Alex crê ter tornado isso possível a todos.
Como ao garoto na esquina escura que está à paisana, porque lhe foi dado o trabalho de
vigiar algo muito importante, todos têm serviços igualmente divertidos, caso contrário não seria
isso justo, então ele imagina que os outros que se perderam por ali agora estejam depredando
algum comércio, ou colando propagandas horríveis como a montagem da velha de pernas
abertas que se verá em cada poste com a legenda cativa-me, ou devora-me. É, pode imaginá-
los passeando pelas sombras de viadutos, nesses lugares que se for você a despontar de lá o
considerarão marginal, pode imaginá-los grampeando seus cartazes para que, à luz do dia,
todos vejam o cristo que amaldiçoa a sua mãe ou a esfinge moderna com uma cara realmente
escrota. Estão fazendo o serviço sujo que todos precisarão ver. A cada novo dia irá se temer o
que a noite que vem há de aprontar. Ele sai e sente-se senhor de muitas coisas, se dele
mesmo já é bastante.
– Eu não sei exatamente o recurso que tenho de usar – André e Stern estão conversando,
e isso é um saco –, foi isso que ele me falou. Eu lhe disse, meu amigo, você não tinha sido
treinado?, estou aqui pra você me ajudar a organizar as coisas, pôr elas em ordem, e não pra
perder meu tempo te ensinando, vê se pode.
– É coisa de gente insegura, primeiro emprego – Stern.
– Já faz algum tempo que perdi a paciência com toda forma de insegurança.
– Isso não é muito encorajador.
– Grur – às vezes Hugo, que deve estar se esforçando para acordar, grunhe alguma coisa
assim, deve ser um pedido de ajuda.
– Cada coisa em seu lugar – André vai falando. – Em um dado momento temos de frustrar
as pessoas de um jeito para encorajá-las de outro.
– Isso é porque – Alex sempre se intromete – você olha para eles e se vê, vê o quão
frustrado você mesmo foi, quer destruí-los, afundá-los junto, que estar só seria insuportável.
– É isso mesmo – André sorri. – Mas não me encha o saco, que eu sei que foi essa a sua
intenção.
– Tudo bem, você ter admitido já foi gratificante o suficiente – e volta-se novamente para
fora.
– Grur.
– Acho que aquele sanduíche não me fez muito bem.
– Você é um porco comendo – Alex.
– Olha só – André aponta para fora.
O garoto suspeito, aquele mesmo à paisana, está acenando um pouco mais
escandalosamente do que seria preciso para que o vissem, está pulando, na verdade dando
saltinhos, se continuar assim por tempo demais isso parece significar que algo deu muito
errado. Saindo de uma viela escura vê-se uma sombra tremulando na parede. É o que estão
esperando. Primeiro surge a freira, que a estão aguardando na hora e no lugar certos, é tudo o
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que precisavam, a senhora de idade engomada que a essa altura deve ter terminado suas
coisas importantíssimas na paróquia e estar indo apressadamente para casa, coisa que não é
lá muito segura de ser feita, primeiro por causa da hora, certo, segundo porque é Alex quem a
está vigiando e fumando com uma tranqüilidade quase impecável o que restou do cigarro, pois
é. Certo, aí vem a freira. Ela vai passando de pernadas rápidas quando cada viela cruzada
será uma vitória, minha senhora, você é mesmo uma heroína, ainda que nada possa ser
exatamente ideal e estão aí para provar-lhe isso, que as leis caóticas do equilíbrio é que nos
regem, de tal forma que se a sorte hoje sorrir para um, estará virando as costas ou rindo na
cara do próximo, um monstro cego e sem rosto que é parente da justiça, que inclusive começa
a perecer e mostrar as suas contradições à partir da própria ilustração, e todo esse assunto de
imagens, símbolos e dos irmãos siameses sorte e azar dispondo inclusive da mesma cabeça
vale para justificar, minha senhora, que hoje não são dentes gentis a lhe espreitarem, mas
dentes ciumentos e senis, rostos decrépitos rindo doentiamente nas surdinas, que trincam as
mandíbulas e querem roubar suas razões, estão famintos e a senhora é a ração. Então salta
das trevas escuras e nojentas o homem gordo, e ele está nu, e vai persegui-la.
– Olhem – André está se pondo para fora do carro e se debruça por cima dele, é por aí que
ele mesmo se obedece, e vai um pouco além porque está rindo.
– Você mandou que ele atacasse uma freira? – Stern.
– Foi – Alex.
– Ela está correndo, que lixo – Stern.
– Estou vendo – e ele ri.
– Andriolli vai alcançá-la. Acho que ninguém queria ver isso.
– Por que diabos ela não grita?
– As pessoas têm medo de entrar em pânico – Alex. – Até quando não devem elas
permanecem em ordem. O pânico não deve ser bom.
– Ela está em pânico.
– Ela não pode mostrar – expelindo fumacinhas.
– É – Stern.
– Ela está correndo desesperada. É, acho que já está se aproximando de nós.
– É por isso que ela aprenderá que não existe luz no fim do túnel. Articulamos as coisas
para o mal, não foi uma brincadeira inocente, ainda que seja estupidamente construtivo.
– Destrutivo, você quis dizer – André.
– Se tornaram sinônimos.
– Mais me parece questão de grau. Ela está vindo.
– Não, são mesmo sinônimos. Melhor eu apagar o cigarro, que é pra eu ser educado, não
quero bafejar na cara de uma senhora caquética e saudável.
– Ela me parece que vai gritar.
– Andriolli caprichou – Stern põe a cabeça para fora da janela.
– Sim, ele está balançando o pênis. O que foi que ele tomou? – André.
– Nada, que eu lembre. Olhem a cara dele, como está fora de si e tudo o mais – joga a
guimba no chão e a pisoteia –, parece que tá se divertindo como nunca, depois de hoje ele
será capaz de fazer qualquer coisa.
– Eu acho mesmo que ela vai gritar.
– É claro que vai, já está se entregando à si mesma. É assim, se começa andando mais
rápido por estranheza, aí quando se percebe que está mesmo em apuros você começa a
correr, então você começa a perder a esperança, aí a se decepcionar com tudo e não
vislumbrar futuro algum para si, é quando você pensa que vai morrer, ainda que não precise
ser essa uma ameaça evidente. Ela não vai saber mais o que fazer, só restará o instinto, não
mais a vergonha, a merda da esperança – pigarreia – ou a gentileza – pigarreia novamente –,
ela vai se tornar o que tem de melhor e mais primitivo.
– Então a estamos ajudando – e André batuca sobre o teto do carro.
– Sim, será uma daquelas situações, ela irá se deitar no fim de tudo, olhar para o teto e se
dizer, hoje estou nascendo novamente, vou fazer as coisas serem diferentes, verei que a vida é
mais – não encontrou o adjetivo vil, então gesticula de forma que se faça entender – vocês
sabem, do que parece. E aprenderei a chafurdar nessa lama, nessa lama ruim.
– Mas talvez, Alex – aí vem Stern a falar –, você esteja tirando razões de onde não há,
inventando-as e esmiuçando qualquer coisa com sofismas, tudo para esconder o fato de que
você não está fazendo muita coisa a mais, a não ser destruindo a vida de uma freira.
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– Eu já disse, são sinônimos.
– Oi? – Stern.
– Destruir e construir – André. – Somos como as parcas. Fiar o destino, medi-lo, cortá-lo.
Destruir faz parte de uma só necessidade.
– Parece um assunto interessante – Alex arrota.
– Ela está vindo – Stern.
– É, ela está – Alex.
É, ela está. E ela vem.
– Por favor! – de perto pode-se vê-la chorando, que engraçado –, aquele homem – ela
aponta, está tremendo, talvez ele não se agüente e desabe numa risada antes que ela termine
–, ele é louco, está me perseguindo, vocês estão vendo isso?, por favor, eu só gostaria de me
acalmar – e apóia o rosto incrédulo, logo ela quem devia ter fé em algo, veja só, apóia o rosto
incrédulo sobre o braço, negando-se a enxergar, mas ela sofre de um jeito talentoso, há
mesmo vocação para essas coisas.
– O quê, senhora? – Alex. – Acalme-se, fale devagar – e vai dá-la apoio.
– Olhem! – e ela aponta –, ele simplesmente apareceu, começou a correr atrás de mim
falando coisas horríveis, é um louco, por favor, posso ficar até me acalmar?, eu quero ir pra
casa, meu deus, eu não sei o que ele queria, nem por que apareceu, eu achei que podia ser
um assalto, eu...
– De quem a senhora está falando? – André.
– Ele! – aponta para trás, mas não há ninguém.
– Seja quem tiver sido, senhora, acho que ele foi embora tão rápido quanto apareceu –
Alex, enquanto Stern tremula um riso nervoso.
É muito claro em olhares como esses que ela deve estar perguntando-se, desoladamente
para o nada, se por uma ocasião fantasmagórica qualquer ela não enlouqueceu.
– Será que não foi uma impressão? – André. – Você viu um vulto e achou que seria alguém
a seguindo, ouviu barulhos mas eram na outra rua, eu não sei, a noite deserta pode nos
impressionar.
– Ele estava nu! – ela está pasma até agora.
– Senhora! – Alex não quer que ela repare em coisas imorais.
– Eu não sei – ela olha para trás, e treme –, eu tive a impressão de estarem me vigiando
desde que saí da igreja, isso tudo é muito estranho – e se encolhe e chora solitariamente.
– Não é melhor que a senhora – André cobre a boca que é para não rir – volte de onde
veio e espere algum tempo?, fale com as suas colegas, as irmãs, peça para alguma te
acompanhar até em casa, andar sozinha a essa hora pelas ruas é extremamente perigoso,
pode acabar encontrando toda sorte de loucos, desses que saem fazendo maldades aí por
nada.
– É – Alex.
– Eu não sei – ela não sabe de nada, enfim –, eu não quero voltar. Ele vai estar lá, eu sei.
É muito longe. Eu não me sinto segura – aí está recobrando a razão, o que é muito ruim,
porque os olha e faz uma cara de vocês me desculpem. – Olha, me desculpem, por favor – e
funga o choro –, acho que o melhor que tenho a fazer é esquecer – olha para trás, porque
ainda não pode honrar com suas palavras – e ir embora, apanhar o primeiro táxi, desculpem-
me por tê-los incomodado, que deus os abençoe, obrigada.
– Não seja por isso, senhora – Stern.
– É o mínimo que podíamos fazer – André.
– A senhora quer que a deixemos no ponto de táxi mais próximo, ou quem sabe no metrô?
– Alex.
– Não, meu filho, eu não quero mais incomodá-los, não imagino – mas deve desconfiar
coisas horríveis – sequer por que estão parados aí, não gostaria de atrapalhá-los, eu apenas
agradeço.
– Nós, minha senhora – Alex fala em tom profético –, só estamos aqui para causas
indignas, para pecar.
Dessa vez Stern deixa escapulir o riso entre os dedos e Hugo levanta a cabeça para ver o
que vai ocorrendo.
– A senhora nos desculpe – ele continua –, mas é a mais pura verdade, ainda que não
sejamos sujeitos ruins. Mas o que estou fazendo, hein?, justificando aqui a minha vida como se
eu quisesse perdão, como se eu quisesse me fazer entender.
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– Acho que todos querem, meu filho – ela está pouco se lixando para seus dilemas, e isso
é tremendamente agressivo, ela está mais preocupada em olhar para trás e se dar conta se um
gordo nu não saltará da escuridão em sua busca.
– Talvez. É por isso que fazemos boas ações, além de existir prazer em dar, abrir margens
para que os outros nos vejam é uma necessidade espiritual tão grande quanto ter fé – e
contém a sua própria risada.
– Eu não quero incomodá-los – ela é tão penitente que chega a ser falta de educação.
– Incômodo algum – e ele abre a porta. – É o mínimo de docilidade que podemos requerer
uns dos outros. Se não pudermos esperar nem isso de alguém, acho que teríamos nos tornado
animais.
– Obrigada, meu filho, tem certeza que não haverá problema?, está certo, hein? – ela
choraminga.
– Atravessar umas ruas escuras não fará diferença ao carro, ainda que a uma senhora
andando sozinha por aí, é, isso faça toda diferença, porque está submetida a esse tipo de
coisas, assaltos, vândalos, gente louca, estranhos mal-interessados, então, se podemos
contornar a isso, tudo certo, tudo ok.
E ela vai entrando, – Vocês são muito gentis, deus os pague – abençoados sejam etc.
Ela deve começar a supor que algo está realmente errado quando você, Alex, senta ao seu
lado e fecha a porta com esse sorriso amarelo de criança que está prestes a aprontar, se é que
já não o fez e vem fazendo e, por um orgulhozinho diabólico, faz questão de mostrar sua
astúcia e sadismo nos gestos mínimos.
– Só estamos esperando um amigo nosso – é André quem fala, ao entrar –, que foi
comprar um maço de cigarros na banca que tem naquela rua – ela não o ouve, ela se encolhe
e espera acordar e estar em casa, sua feito uma leitoa e limpa a testa enrugada, ainda que se
atenha a atos um pouco mais delicados, ele não sabe dizer por que as pessoas são tão
refinadas, passando o pano, indo-e-vindo, enfim, ficando bem, o que não pode acontecer.
E não irá. Antes que ela possa suspirar de alívio e se dizer com aquele eco interno de
choque, mas choque aliviado, que passou, que se foi mais um episódio de sua longa jornada
de anos que vem tratado com afinco e devoção, mais medalhas para os joelhos cansados e
para as costas ligeiramente encurvadas, antes que tudo isso possa acontecer e que ela possa
sorrir novamente e pensar-se segura, intocada, quando a própria vida só é vida porque é
perigo, antes que ela possa pensar que poderá voltar aos santos, ajoelhar-se e imaginar as
coisas bonitas que viverá quando atingir o paraíso, quando acabar essa vida de coisas sujas e
de carne, sangue, volúpia etc, toda essas coisas que usufruímos quando deveríamos
transcender, antes que ela possa pensar sequer, obrigada, meu bom deus, por zelar por meus
passos, porque o senhor é meu pastor, nada me faltará, tudo posso naquele que me fortaleço,
e tu és minha fortaleza, ó, senhor, antes que ela possa absorver qualquer impressão do dia de
hoje e refletir sobre ele, ou até mesmo rir como quem ri dos perigos distantes e estéreis
enquanto conta sua experiência ao servir chá para as amigas boquiabertas, e muito
provavelmente antes mesmo dela pensar, esta sou eu, e estou vivendo coisas que a vida
oferece mas nunca pude sucumbir, o gordo nu do beco entra desesperadamente no carro, e
ele ruge, e ainda que não caiba no banco, dá um jeito de sentar ao lado dela e esmagá-la. É
pior vê-lo nu do que Stern mastigando picles e transbordando molhos nojentos.
A senhora grita um chiado seco e longo, e essa expressão de pavor Alex nunca vai
esquecer. Ele vai tentar pensar a respeito, seria mais ou menos assim. Tudo que a pessoa
acredita ruiu diante do pior rosto que podia enxergar. A alma dela parece estilhaçar por trás
das retinas, os cabelos devem arrepiar-se todos por trás do manto onde esconde a cabeça, é
um pavor estranho, como encontrar o próprio filho se matando e, risonho, o ver brincar com a
faca, ou de repente dar com o marido enforcado no lustre ao chegar de um dia de trabalho, e
aqui ele poderia ficar supondo as razões que a levaram a tornar-se uma freira, noiva de deus, o
único cara do mundo que não pode desapontá-la, só ele não poderia desapontá-la num mundo
que pede sempre por paciência, e quando não por isso, pede por desculpa.
Ela percebe que a vida é uma violência estranha e sempre há como inovar, essa é a área
em que mais se pode inventar, e criatividade é o que não lhes falta. Ela entende que não pode
fazer nada e possivelmente desmaiar é uma bênção que ela não conseguirá ter. Quando todos
riem é ainda pior, ela estremece e deve urinar nas batinas.
– A senhora vai ver – o gordo range os dentes e faz como se fosse agarrá-la pelo pescoço.

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– Pelo amor de deus!, pelo amor de deus! – e ela perde a voz, olhando para o rosto do
diabo mas sem enxergar nada, é, estado de choque estranho etc.
– Não chame – ele baba – pelo nome do senhor em vão. Vou castigá-la. Vou destruí-la, ai,
meu pai. Essa noite você é minha.
– Hugo – André ri –, anda, vamos lá.
– Grur.
– Alguém acorda esse cara, por favor? – Stern.
– Estou todo doidinho por você – Andriolli continua. – Me toque – e suspira no cangote da
mulher. – Me toque – está inebriado de prazer.
– Hugo, acorda – e dá-lhe um tapa na cabeça.
– Anda, vamos embora daqui antes que alguém venha – Stern.
– Quero você – e o gordo pega nas pernas da freira.
– Por favor – as lágrimas desanuviam seu rosto –, me deixe em paz – e ela começa a
gaguejar, e põe a mão sobre o coração –, me deixem em paz, pelo amor de deus, por favor.
– Não faremos nada de grotesco com a senhora – Alex. – Mas você tem de colaborar.
– E-e-e-eu n-n-não...
– A primeira coisa que a senhora tem a fazer é ficar em silêncio – ela o obedece
instantaneamente, mas não pode engolir o choro assim. – Ótimo. Veja só, esse meu amigo,
esse gordo nu, acabamos de ajudá-lo na fuga do hospício, ele esteve internado. Ele é um
fetichista, eu fico envergonhado de ter de pôr as coisas nesses termos, assim, com uma
senhora de respeito, quanto a isso eu não tenho dúvidas, mas eu sinto que devo ser muito
claro, acho que seria escroto de minha parte se não o fosse, poderia ser muito pior, eu não
quero dificultar as coisas. Então, esse meu amigo tem fetiches estranhos. Ele precisou ser
retirado de lá. Se ele não cometesse uma loucura, apenas uma que fosse, ele morreria,
entende isso?, espero que a senhora compreenda, não é um problema qualquer.
– Adoro uma religiosa – e põe a língua para fora. – Me toque. Toque meu corpo. Por favor.
Hugo acorda sem que ninguém ordene e maquinadamente dá a ignição, vai ver de repente
lembrou-se que precisa ir a um lugar qualquer, ih, preciso visitar a minha mãe, coisa assim, e
talvez seja ainda dormindo que esteja conduzindo, e lá vai.
– Ele é completamente louco, é um bicho – Alex. – Ainda que todos aqui dentro sejamos
bichos. Por mais que tentemos nos sentir especiais, é coisa que a ciência nos comprova, acho,
é, a ciência não afirma nossa superioridade além de justificar a complexidade de nossos
tecidos, sistemas, esse tipo de coisa. Não sei. Tenho essa impressão, que todos somos uns
bichões. Qualquer um quer se sentir especial, mas não me parece verdadeiro falar bem de nós
mesmos, é mesmo bastante tendencioso, não?, tudo isso me parece uma grande besteira,
vocês se sentem alguma coisa demais?
– O homem só se fascina consigo mesmo – André entra na discussão –, porque não
suportaria ser uma coisa simples.
– Se deus está nos olhando, ele não estaria preocupado com formas de vida mais úteis no
universo?, digo, em algum lugar, em uma vida melhor, não sei, elas devem haver, não é? –
Alex.
– Eu presumo que sim, é muita pretensão a nossa nos acharmos importantes – Stern.
– Grur.
– Eu não quero saber dessa conversa chata, eu estou louquinho, deixa, vai, deixa eu te
pegar todinha – e rosna como se estivesse prestes a devorá-la.
– Tira a perna do meu colo, seu gordo de merda, que coisa nojenta – Stern.
– Nos basta a existência do intelecto para ficarmos loucos e buscarmos razões
transcendentais a nós, isso é uma bobagem, quando tudo o que precisamos é permitir o
inconsciente... – Alex, e aponta as têmporas. – A senhora não tem vergonha de ficar chorando
quando devia se manter forte por sua fé?
– Ora, não seja sujo – André.
– Deixe-me falar em paz, só fiz uma pergunta, ela pode responder se quiser, ela tem
escolha. Pode ser uma escolha injusta. Mas foda-se.
– Não se trata de justiça, acho, mas meramente do peso que vemos ter nossas decisões –
André.
– Foi uma frase bonita, às vezes você fala coisas que parecem discursos, você tem talento.
– Obrigado.
– Por favor, eu...
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– Minha senhora, não tínhamos concordado da senhora fazer silêncio?, esqueci que te fiz
uma pergunta. A senhora não sente vergonha de foder com os motivos por que dizem que
devemos ter fé?, que isso nos torna pessoas melhores?, que nos torna mais fortes frente às
adversidades do mundo?, não é?
– A minha fé... – ela começou mesmo a responder.
– Olha lá, hein? – ele sinaliza com o dedinho –, não tente ser arrogante conosco, mas você
pode tentar, hein?, eu só não me responsabilizo pelas atitudes do meu amigo, o outro
camarada aqui falou de peso das decisões etc, parece que vamos entender mesmo isso,
porque ele aqui está completamente fora de si.
– Eu não estou me agüentando mais, ai, meu pai, vou fazer o pior, vou fazer – ele sussurra
em seu ouvido.
– Eu não sei o que dizer – ela abaixa a cabeça e chora. – Por favor, me deixem ir – está
totalmente vencida, é assim que agem as pessoas cansadas. – Eu imploro. Por favor, me
deixem ir.
– Implora pra mim, vai, eu fico louquinho – e põe a língua para fora.
– Se deus é onipotente, agora esse meu amigo, gordo, vulgar e com fetiches por freira é
um deus nesse carro. Sua vida está nas mãos dele, eu sei que é uma comparação escrota mas
é tudo o que te importa. E isso é muito mais comovente que um deus que não se posiciona,
que chamamos como se nos fosse atender, quando é muito claro que quem está a favor de
todos não está na verdade do lado de ninguém.
– Por que está me falando isso?, eu... – ela murmura sem vida.
– Acho que vou me masturbar – Andriolli.
– Você não invente de sujar o meu carro – Hugo. O que é impressionante.
– Tenho algo muito mais interessante pra sujar – e dá uma piscadela.
– Sabe, moça – Alex continua –, a moral existe quando eu quero exportar para todos o que
eu acho ser bom. Eu não vou conseguir educá-la assim, então vou me ater – e ri – a mostrar
que você pode ser uma boa pessoa sem nada do que você acredita. Como agora. Aproveite o
instante, é libertador.
– Eu não sei o que dizer. Eu sou uma boa pessoa. É verdade.
– Porra – quase grita, mas acaba sorrindo –, a senhora também não sabe de nada.
– Faça ela admitir isso – André.
– Admita que a senhora é uma bosta.
– Eu não posso... – ela gagueja.
– Diga! – grita.
– Eu não sei o que dizer.
– É simples, repita minhas palavras, palavra por palavra, eu sou uma bosta.
– Está falando de si mesmo? – Stern ri.
– Sim, e de você também, e de todos nós, mas o que interessa é que ela me diga. O
primeiro passo para o viciado é admitir o seu estado, certo?
– Viciado em quê? – André.
– Mediocridade, idiotice, esse tipo de coisa. Vamos, diga-me, quero ouvir.
– Ai, pára, por que fazer isso?, o que te fiz? – e chora. – Por favor, deixem-me em paz. Vai,
por favor. Eu só quero... só queria... ir pra casa. Por favor. Eu não tenho nada. Por favor. Eu
não tenho nada.
Andriolli aperta-lhe os seios, e ela já solta um berro como se tivesse sido toda violada.
– É mesmo uma questão de ocasião. Diga que deus não está aqui.
– Deus não está aqui – ela repete.
Alex a olha desapontadamente.
– Eu queria entender o que se passa na sua cabeça. Você blasfema por necessidade
quando a sua vida devia ser muito menor que sua fé. Eu pensei que valesse a pena morrer por
ela. Mas só a merda da vida restou. Você é uma hipócrita suja, isso é muito legal, mas eu
presumo que esteja chorando por isso e não por causa da gente. Ou você acha que dizer isso
nesta porra de carro não muda em nada sua vida? Porra, muda tudo. Porque não pôde ser o
que você quis. Eu só quero que você saiba isso. Por favor, saiba disso... não é possível que
você pense poder ser cínica só porque está lidando com gente escrota e perigosa. Só se
isolando e se abstendo do perigo é que você está bem. Isso é uma merda. Merda, você não
vive nesse mundo.
– Ele é uma lição de vida – Andriolli olha para frente e ri –, eu não posso evitar.
392
– Repita, deus não está aqui – Alex, rudemente.
– Eu não posso – ela esconde o rosto.
– Repita!
– Deus não está aqui!
– Você é mais suja do que todos nós juntos.
– Deixe eu decidir em paz a minha vida! – ela berra. – Pára!
– Não se trata de sua vida – ele ri, satisfeito. – Não se trata da senhora ser uma mulher
imbecil. Porca vestida de modo bizarro. Estamos aqui te vendo não pra te deixar em paz, é
mesmo pra sermos impiedosos. Você não vive numa bolha, cacete, não tem como eu te
respeitar, te olhar e fingir que você não existe, você não me desce goela abaixo. O mundo está
cheio de esterco como a senhora. Eu preciso te chocar.
– É – André ri –, ele saiu mesmo de controle.
– Diga que deus não está aqui, nem poderia estar, pois está dormindo.
– Eu não posso falar uma coisa dessas – e está com a mão no peito. – Ai, ai – começa a
gemer, deve estar enfartando.
– Não me importo se você morrer aqui dentro. Vou despejar você numa rua qualquer e terá
sido uma morte por causa natural, nunca descobrirão, então eu não tenho que me preocupar. E
se você não controlar seu coração, não pense que alguém aqui irá te ajudar, que iremos ficar
com peso na consciência, não a temos, não temos nenhuma.
– Ai, ai, ai.
– Mas que merda, ela tá tendo um treco no meu carro? – Hugo.
– Fica quieto aí que tudo está bem – Alex. – A senhora me diga que deus tá dormindo.
– Não posso.
– Diga!
– Não!
– Diga! – e a olha fulminando. – Se não te dou uma surra!
– Deus tá dormindo!, pára – e chora copiosamente.
– Ela realmente não aprende. Você é pior do que eu pensava. E eu sou mais tolerante do
que eu me considerava.
– Diga que você é uma merda, afinal – André, lá na frente.
– Eu não sou nada, deus não está aqui – ela soluça –, eu falo o que vocês quiserem, mas
por favor, me deixem ir embora, dizer não me importa, eu não agüento mais, não estou
passando bem, juro por deus, por favor, me deixem ir embora, eu não sei se vou agüentar,
tomem o que quiserem, eu digo o que vocês quiserem, mas parem com isso.
– A senhora sabe que arruinamos sua vida, não sabe?, sabe que sabemos onde a senhora
trabalha, estávamos vigiando desde que saiu de lá. E podemos voltar. Talvez voltemos mesmo.
Mas não somos os monstros que você pensa. Somos mais como anjos. Em tudo há uma
validade.
– Eu não sei... não me machuca... eu não sei... por favor... pára.
– A senhora não sabe mesmo de nada – e ri. – Mas o seu maior problema não é esse. É
que nem quer saber. Não sou eu que sei, cacete. Mas você nem quer saber.
– Me deixem...
– Sim, te deixaremos, é claro que não iremos fazer nada à senhora. Não precisamos de
motivos pra sermos altruístas. E não íamos nos arriscar por sua causa, você não nos significa
nada, e você sabe que não significa nada pra ninguém.
– Obrigada, muito obrigada – e limpa o rosto, quase desfalecendo.
– Repense sua vida.
– Obrigada, muito obrigada.
– Sério, dê logo um tiro na sua própria cabeça, se entupa de veneno, você é realmente
insuportável.
– Obrigada, obrigada.
– De nada, minha filha – Alex fala, condolente. – De nada.

393
Alex faz carinho nas margaridas e pôs o buquê de rosas na mesma estante em que alguém
deixou outro presente. O quarto de hospital é mais iluminado e menos cheio de densidades do
que ele imaginava.
– Obrigada – Sylvia fala. Não é que esteja irradiando saúde, é claro que não, mas está
longe de estar entubada, ele talvez tenha exagerado ou criado expectativas demais sobre o
que ia encontrar nessa cama. É apenas ela.
– Como está?
– Viva – ela está pálida.
– É tão ruim assim?
Ela alude com a cabeça numa mistura de fazer que sim com fazer que não, que não está
muito certa. Ele meiosorri de volta.
– Fiquei preocupado.
– Como estão as coisas? – ela não tem muito o que falar.
– Estão indo.
– É claro, as coisas não param, hum?, hein?, exceto aos mortos.
– Às vezes tudo o que se quer é descansar – e sorri.
– É – o rosto dela se ilumina com uma hipocondria sutil.
– Quem deu as flores?
– Meu pai.
– Sei – ergue as sobrancelhas, não consegue imaginar gente assim, assim como ele, tendo
pai, ou mãe, parece um pouco clichê, o sentido convencional dessas palavras é quase como
diagnóstico de doença, não é a toa que ela está como está. – Como ele está?
– Magoado. Eu acho.
– Como pode se magoar com um suicida?
– Como se magoa com qualquer um que nos ofenda.
– Sei.
– Eu não sei, não tenho certeza, mas resta a impressão.
– Entendi.
– Aqueles olhares tortos pelos cantos, aquele suspiro de cansaço, como se precisasse
arcar com uma responsabilidade que nunca pediu, o peso que sou.
– Teríamos te ajudado.
– É? – ela tremula o riso. – Como?
– Só a tentativa às vezes é o bastante.
– Não se faz alguém voltar a andar por estar ali a animá-lo, é ilusão – vai falando rancorosa
e devagar. – Você não está animando o paralítico. Você está pressionando ele e querendo
livrar todos por perto dessa condição. A merda dos outros por perto incomoda. E o paralítico
verá que só tem a perder.
– Falei de ajuda, não de cura. Talvez tivéssemos dado um tiro em você.
– Ele verá que não é verdade aquilo que dizem que só se descobre que tinha alguma coisa
quando a perde. Devem estar imaginando que é assim que ele se sente, mas ele vai descobrir
que a sensação de perda independe de ter realmente possuído alguma coisa. Porque não se
tem realmente nada, nada se possui com esse sentido que entendemos, mas a sensação de
perda é inevitável... mas também não perdemos nada. Só não há vitória alguma.
– Eu não sei o que dizer. É psicológico.
– Sim, e por ser psicológico deve ser insignificante. Talvez seja falta de serotonina em meu
cérebro. Eu seria muito mais feliz e descobriria que os problemas que eu acho ter, olha, na
verdade eu nunca tive, se eu tomasse uma injeção com sopa de coisas dentro.
– Isso te incomoda?
– Sim.
– Talvez tivéssemos te dado um tiro. É que não estamos preparados para descobrir de
onde as coisas que sentimos vêm e porquê.
– Há um porquê?
– Eu não sei, e você?
– Eu acho que não.
– Eu acho que não precisamos de um – ele meiosorri um meiosorriso quase inexistente.
– Veio condenar minha fraqueza, Alex?

394
– Acho que vim lamentar que não tenha conseguido. Que tenha que passar por isso. Mas
eu não gostaria que acontecesse de novo.
– Não acha que fui fraca?
Ele a olha ternamente, e sorri.
– Não se intimide pelo que os outros disserem a você.
– Não há como saber o que eu sou se os outros não me disserem.
– Eles nunca te dão aquilo que te pedem.
Ela silencia por instantes. Ele vai continuar.
– Você não é fraca. Tudo só pode se tornar melhor a começar por você. Então você é
legal. É a última esperança do mundo.
– Eu não sei...
– Eu também não, mas acho que sim.
Ela se cala.
– Volte para a sociedade quando se recuperar, se recuperar não, quando achar que deve,
estaremos sempre com as portas abertas, somos seus amigos.
– Eu não sei do futuro, mas vamos ver – ela alude com a cabeça mas deixa em aberto.
– Dê-me notícias.
– Darei.
– Estou indo agora encontrá-los. Ficarão contentes em saber que você está...
– Eu entendi.
– Até mais, Sylvia.
Então ele toma sua mão e a beija.
– Tchau, Alex.
Então, o Schneider.
– Oi – e vai tirando a jaqueta e sentando-se aonde vê que sobrou espaço.
– E aí? – Bublitz come pãezinhos de queijo.
– Oi – Martin esfrega a gravata, sujou com salsa.
André estava olhando através das vidraças, o lado de fora parece muito mais interessante
do que o que se tem aqui dentro, é assim que acontece, o horizonte é uma linha imaginária que
se distancia quando se aproxima, é o infinito inalcançável ou alguma coisa assim, no entanto o
está fitando como a dançarina da casa de strip que se remexe, e você pode olhá-la e imaginar
o que quer que seja, afinal não houve um tempo e talvez nunca haja em que o pensamento
tenha se tornado completamente escravo da vontade dos outros, é a prova de que sempre
restará esperança, mas voltando à questão da dançarina, você não pode tocá-la, é como o que
André faz. Olhando, distante, deve ser isso em que está pensando, é mais ou menos isso que
o queixo apoiado no braço dá a entender, que podia ter agarrado a horizontes, coisa assim,
que agora está se revoltando contra as normas não porque quer se satisfazer sempre e a todo
custo, mas o que ocorre é que em André tudo parece ser apenas um chafurde de pendências,
a frustração não o deixaria dormir em paz se ele fizesse diferente, sua vida não é, portanto,
uma escolha, mas uma necessidade orgânica, e necessidades orgânicas são desanimadoras.
Aí ele interrompe o que tem a pensar para virar o rosto a Alex, oi, Alex, e petiscar uma bolinha
de queijo, daqui a pouco devem estar chegando mais chopes, quem sabe uma porção de
batata frita. Todos chegaram?, Habib folheia a página do jornal quando diz essas coisas, pelo
óculos e pela pasta que estão ao seu lado, ou melhor, os óculos a engarrafarem o rosto, a
pasta ao lado, deduzindo por notoriedade que pertencem a ele, é uma relação divertida entre
proximidade e posse, olha só, bem, então imagina que deve ter saído de suas aulas
vespertinas, onde conviveu com adolescentes que não querem saber de nada porque talvez
neles haja a sabedoria de que não há nada realmente incontestável para se saber, então ele
terá lecionado entre trancos e barrancos, isto é, entre suspiros de saco cheio e olhares no
relógio para ver se muito falta ao sinal bater, por enquanto ele pode dizer, é, só faltam mais
três tempos, nos quais terá de ensinar sobre coisas que de tanto serem ditas já perderem o
brilho natural, como amanhecer diariamente e deixar o sol perder a sua graça. Hoje vamos
falar sobre as pólis. Hoje vamos falar sobre a crise do sistema feudal. Hoje vamos falar sobre a
independência de tal lugar. Hoje vamos falar sobre doutrinas, hoje vamos falar sobre
imperialismo. Hoje vamos falar de revoluções, aí uns dois alunos bocejam e ele deve
provavelmente se perguntar, por que diabos estou falando nisso?, e ele mesmo há de se
responder, porque eu não teria modo melhor de investir o meu tempo, e então ele entenderá
que a vida é uma escolha não pelo melhor, mas por aquele tal do menos pior, e enfim sorrirá
395
com uma satisfação irônica, porque como dizem os populares, para quem não tem nada
metade é o dobro. Aí eles ficam por vários instantes em silêncio, ressalva feita ao crunch-
crunch de quem mastiga algo crocante, por exemplo torradinhas.
– Por que não fomos ao teatro? – Stern.
– Os chamei – André finalmente se vira – porque há coisas que preciso falar, e apesar de
elas estarem vinculadas à sociedade, não dizem respeito, enquanto procedência, a todos os
envolvidos. Por isso não estamos no teatro.
– Qual foi? – Bublitz.
– Por que nós? – Habib, e ri comedidamente.
Alex espreita e percebe que ele está lendo as tirinhas de humor.
– Confio em vocês, são a minha cúpula, a minha intimidade.
– Vamos ao que interessa – diz Alex.
– Roubarei a firma onde trabalho, e preciso da ajuda de vocês.
– É? – Martin.
– Enfim, sabedoria, enfim, nos resta comemorar – e ergue a mão buscando por uma
garçonete.
– É?, Como você pretende fazer uma coisa dessas? – Stern.
– É para discutir isso que os chamei.
Silenciam por poucos instantes, pois aí vem aquela gordinha que se equilibra com a
bandeja, é, e o faz mesmo que a bunda entale no espaço desrespeitoso que deixaram entre
umas cadeiras, a sua reação entretanto é a de sorrir, o sorriso quase de quem pede desculpas
pelo que não cometeu.
– Pra quê? – Stern.
– Como assim, pra quê? – Alex.
– Normalmente uma coisa dessas depende de um motivo bem forte – Stern continua, pode
ser muito chato.
– É que me parece um pouco óbvio – Alex.
– Farei isso – agora é André quem começa a falar – antes de tudo porque é uma dívida
que eles têm comigo. Trabalho por anos, esforço tacanho – e vai movendo os dedinhos como
quem enumera coisas muito importantes –, enquanto, é claro, que me submeto a coisas que no
fundo não compensam, simples, eles tiram de mim coisas que não pedi para tirarem, coisas
que não estavam no contrato, é aquela coisa da exploração implícita. Agora irei me vingar, a
vingança é a coisa mais satisfatória que existe.
O calvo gorducho ri mais um pouquinho, a nova tira deve estar hilária.
– E se descobrem? – Stern.
– Essa preocupação é quase universal, mas é abstrata, e não é por todos a terem que ela
é real – Alex.
– Se descobrem – André ergue levemente os ombros –, eu me ferro, vou preso, algo
horrível assim me acontece. Mas farei com que não haja como.
– Aí entramos nós – Alex.
– É isso – e aponta para ele.
Aqui se inicia a trama do roubo, e nem o mais atento, partindo do pressuposto de que não
se lêem pensamentos, poderá ver como ela amadurece rumo à sua plenitude, ou seja, como
ganha corpo nos pensamentos de Alex, a imaginá-la etapa por etapa, a visualizar por sugestão
as coisas que serão ditas a todos, parte por suas próprias idealizações, parte por detalhes que
sempre escapam da nossa compreensão e que encontramos melhor arranjados na cabeça
alheia, e é até mesmo bonito de se perceber que a nossa inteligência não é absoluta, ora, se o
fosse e ainda assim tivesse tantas poucas certezas, evitando o extremo de se dizer que
nenhuma, é melhor não se aprofundar na conclusão que disso podemos tirar, a de que
absolutamente se teria a certeza de que o absoluto é a cegueira, e se enxergássemos ainda
assim veríamos angustiantemente somente as trevas e nada mais. O espírito dele funciona
como um sistema de portas, como o que já sonhou em tempos idos e ocasião distintas de sua
vida, mas então, o inconsciente é um labirinto de portas, uma vez que qualquer uma seja
aberta sempre haverá um novo cenário, por isso ele divaga, sempre se há um novo lugar para
ir, ainda que não haja exatamente um onde se chegue. Certo, ele fuma e as tensões amainam,
vamos lá. André fala.
– Primeiro, é preciso do cara do ar-condicionado.
– O que um cara do ar-condicionado tem a ver com um roubo?
396
– Já chego lá.
O cara do ar-condicionado é a maneira mais coloquial de se representar o rapazote da
manutenção, o primeiro movimento de peão de xadrez que André previu, como ele tem
demonstrado pelo riso de agora, que é de estranhamento, isto é, não há como o mocinho que
conserta aparelhos, que foi especializado a esse tipo de afazer, destinado socialmente a ter
uma série de entendimentos tão distantes de uma complexa série de requisitos exigida
daqueles que desejam realizar um roubo eficiente, enfim, não há como associar a sua imagem
com o brilhantismo do crime, não há como supô-lo culpado, ao menos até que chegue o
momento apropriado, é certo que, se haverá um, André já pensou a seu respeito, e é certo que,
por ser André, noites em claro foram desperdiçadas, melhor dizendo, investidas, na
recapitulação do assunto vigente, ok. O cara do ar-condicionado pode ser qualquer um de nós,
André segue dizendo, exceto, obviamente, eu mesmo, ele é o agente direto, o sujeito que
surge no clímax da situação para fazer o trabalho sujo e por fim deixar que todos respirem
aliviados, ele será a garantia que, se descobrirem alguma coisa, os motivos dessa alguma
coisa ter acontecido serão tão confusos que se perderão, será como recriar a história, impor
uma série de controvérsias e de segundas versões, de forma que não se saiba o que fazer ou
para onde ir, a não ser resignar-se em desistir ou adotar um ponto de vista que não se trate
exatamente da verdade, do fato – que é o que importa caso o pretendessem perder.
– Não vão me achar – André continua falando, e sorri – porque eu serei apenas mais um
interessado, ou melhor, mais um suspeito no meio de muitos que podiam ter o mesmo
interesse.
Lembra-se da pasta com infinitos casos?, ele pergunta a Alex, e você, Alex, quase
cochilando no antebraço, anui, que se lembra da história de nadar contra correntezas e tudo
mais. A pasta fará com que ele não possa, ou ao menos fingirá que não pode cuidar de
nenhum assunto supérfluo, ou seja, atualmente nada externo a seus casos complicadíssimos
importa. Ainda que, pela responsabilidade doente incubada no estressado e no obsessivo, ele
saiba que há outras coisas urgentes a serem tratadas, das quais não pode dar cabo sozinho.
Como o problema do ar-condicionado. Aí entra o seu estagiário. Aí alguém interrompe a sua
idéia.
– Espera – é Bublitz –, eu ainda quero saber por que tem um cara do ar-condicionado, de
onde é que ele vem?
– Ele virá de um possível interesse do meu estagiário. Será ele a chamar.
– Como? – Alex.
– Falará com a empresa que faz manutenção para nós, evidentemente.
– Muita gente trabalha numa dessas. Por que o cara a ser enviado seria exatamente o seu
cara?
– Porque – André sorri como quem triunfa – será ele a contatar o meu bode expiatório, vê
só. Estagiário, o ar-condicionado da sala que estou tomando conta, porque o antigo
responsável está se recobrando de um tiro, não é?, quebrou de novo – Alex demora um tempo
até perceber que ele fala como se dirigisse ao estagiário, então imagina um garoto novo, com a
barba bem feita, é, o rostinho liso, as roupas engomadas, o cabelo cortado, óculos e aqueles
ares de sou bom, o futuro dessa nossa nação, da família, sei votar, e por aí vai.
– Então – André continua –, essas coisas eu falo com um tom de pressa, certo?, ok, então,
estagiário, eu fiz uma ligação e estou aguardando a confirmação dos rapazes, você pode se
encarregar disso por mim?, anota os dados, espera o sujeito que vier e tudo o mais, aí o deixa
fazer o que for preciso – aqui ele ri um pouco – para consertar – ri mais um pouco – tudo até
que o camarada baleado volte. Entenderam?
– Sei, no caso quem ligará e providenciará tudo já será um de nós – Martin.
– É isso – André.
– Como?, quem? – Stern.
– Quem ainda não sei, mas o como é simples. Eu e mais uns poucos temos a senha de
acesso ao fundo de garantia, se algum dinheiro dele fosse roubado, seríamos nós os últimos
suspeitos, não sei, as pessoas tem uma tendência a desconfiarem do óbvio.
– Aí podem entrar os indícios mais distantes – Alex começa a se enredar.
– Exatamente, aí entra meu estagiário, isto é, nada o impede de me ter roubado, por
exemplo, todo mundo sabe que ele faz serão às noites, pelo menos três vezes na semana, é
um escroto de um workaholic achando que vão reconhecê-lo, então, isso é mais um motivo

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para pensarmos que ele conseguiu invadir meu computador, sei lá, algo assim, e pegar as
minhas coisas secretas lá, entenderam?
– Não precisa divagar – Habib fecha o jornal. – O importante é que nada aponte
claramente a você.
– É, eu sei – e ele coça a testa –, é que ainda assim fico um pouco nervoso...
– Eu não vejo porquê – Alex finca o cigarro no cinzeiro –, você fez coisas muito mais sujas,
como gestos obscenos para uma inocente senhora nas ruas – e não contém a risada –, ela
certamente não mereceu aquilo, enquanto agora o que você está fazendo é roubar de ladrões.
– Há o ditado – Habib. – Não se preocupe que terá teus cem anos de perdão.
– Não, o ditado diz o seguinte – André continua –, ladrão que rouba ladrão ganha aí os
seus cem anos de crédito, mas eu não sou ladrão, sou vítima que está ousando, mas não
preencho sequer o tal requisito, é mesmo somente atrevimento.
– Nunca tinha pensado dessa maneira – Bublitz.
– Mas também não estou me importando com o perdão – André.
– E se por um acaso de nos acontecerem as hipóteses mais remotas de todas, quaisquer
que elas sejam – vem Stern debruçando-se sobre a mesa –, use sua imaginação, algo que
você não previa deu errado, é obviamente falha humana, mas isso não importa, porque quando
algo dá errado numa situação como essa tudo que importa são as conseqüências. O que
acontece?
– Não te entregarei.
– Não foi isso que perguntei, e não estou insinuando que era disso que eu queria saber.
– Mas está mais calmo? – alude com os olhos paulatinamente.
– É inevitável...
– É porque é óbvio que se algo dá errado, o que acontece é que tentarei pensar alguma
coisa até me convencer de que não resta nada a ser feito.
– Acho que vocês estão se preocupando com bobagem, é o medo do principiante – Bublitz
não é pretensioso, por isso funciona. – Vocês se esquecem – às vezes solta o que vale a pena
ser ouvido e nessas vezes o recebem com algo como um ora, veja, até que faz mais sentido do
que deu a parecer quando começou a mexer com a boca – que vivemos num mundo impune,
não há porquê ficar se agoniando – bebe um gole de chope, pára por instantes –, que isso é se
convencer de que está fazendo uma coisa que já não é normal.
– É.
– Se não vamos ao teatro hoje – Habib coça o rosto, a pança e ajeita os óculos –, então
me digam, que tenho de preparar umas provas lá, sabem como é.
– E quanto ao crachá? – Alex pergunta.
– Que crachá? – Bublitz.
– Como o cara do ar-condicionado se identifica? – ergue os ombros e faz cara de que está
ressaltando a dúvida
– É aí que entra o Ananias – responde André.
– Quem bosta é Ananias? – Alex.
– Ananias está na sociedade. Ananias é estelionatário. Ele confunde as regras das coisas.
– Quem bosta é Ananias?
– Aquele rapaz magrinho com dread lock no cabelo, usa um óculos estranho, o braço dele
é fino como minha canela – Bublitz gesticula.
– Que bosta é dread lock?, tô brincando, disso eu sei.
– Ananias entra em sistemas – André bebe um gole e vai falando –, ele acha pessoas, tem
contatos por aí, consegue pôr o nome do inimigo de quem paga na lista dos devedores,
consegue fazer os cartões não o aceitarem e causar esses pequenos infernos cotidianos,
esses constrangimentos por aí que a gente tem de suportar e às vezes nos perguntamos se
pode ser esse um engano inocente, porque mais parece que alguém aprontou para nós.
– Foi o Ananias – Habib.
– Foi.
– Perguntei de crachá e você me fala de um cara chamado Ananias.
– Ananias vai rastrear o sujeito que precisamos. Um qualquer, será um nome autorizado da
empresa em questão, então cuidaremos de dar a esse nome um rosto diferente do que ele
atualmente carrega, e esse rosto será temporariamente o senhor Carlos, ou senhor Milton, ou
Ari, não sei como vai chamar-se.
– Já se chama, apenas ainda não descobrimos.
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– É isso, já se chama, qual nome e qual rosto que forem, e vamos roubá-lo sem que saiba.
– Para que seja mais uma fuga das atenções, que não saibam para onde olhar.
– É – André, sorrindo.
– Então certo – Alex batuca no tórax. – Quem será o Ari?
– Pega um cara qualquer da sociedade, dá um dinheiro, não sei – Stern.
– Não, isso é sujo, temos de nos subordinar à certos valores – André –, que sem valores
também tudo acaba se traindo.
– É um pouco perigoso afirmar isso, me cabe concordar, mas não acho que exista algo que
seja sujo – Alex. – Se não for tudo.
– Habib? – André.
– Sai, sai.
– É, tem que ser por livre e espontânea vontade, e tem que ter bolas, porque se não é
inútil, é certo – Bublitz.
– Então vá você, é um rapaz corajoso, a sua performance como palhaço foi ótima – André
ergue o sobrolho.
– É?
– O que precisará fazer é pôr a farda que vamos arranjar, pôr o crachá que vamos
produzir, aparecer lá onde vou te orientar, dar um olá para o meu estagiário que vai te atender,
aí você fala que não vai demorar muito mas que precisa de privacidade pra trabalhar, você é
um cara de confiança, não tem por que desconfiarem, não sei, eu cuido para ele não ficar no
pé, pronto, e ah, sim, se por um acaso você me vir transitando nos corredores não me
cumprimente, não nos conhecemos. Não sei, onde eu estava?, da privacidade, se isso não
colar, diz que não pode entrar claridade, que não se concentra com o barulho, não sei, mas
pode deixar, eu ajudo, eu ajudo, eu encho ele de trabalho, que é para não ficar estranho.
– Sim, sim, vá, diga aí.
– Aí uma vez tendo acesso à sala é ok, é tranqüilo, vai ter de usar o computador e acessar
uma senha que eu vou te dar, página de Internet do banco, é bem fácil, essas coisas de hoje
são bem didáticas, e vai programar que o fundo fique aberto às pessoas de um tipo de acesso,
que eu vou te passar lá.
Alex boceja enquanto espia as outras mesas, a menina com as costas nuas, o mocinho
que está com medo de aproximar-se dela, fica imaginando se não seria mais divertido prestar
atenção nesses tantos espalhados por aí.
– Aí eu cuido do resto e não terá como chegarem a mim – continua.
– Eu não sei. Pode ser. De repente – Bublitz. – Apenas não me culpe se eu subir em cima
das mesas e gritar. E aí vou abaixar as calças. Arregalar minha bunda, mostrar meu cu.
– Não me invente essas maluquices – André hasteia o dedo.
– Pode deixar, confia aí, vou fazer tudo direitinho.
– Isso é muito sério.
– Eu sei, eu sei.
Alex confunde-se e por pouco não afunda a guimba no cinzeiro dos amendoins, é que se
parece tanto com cinzeiro que seria justo dar-lhe o nome de um, mas enfim, o que faz mesmo
é encher as mãos de amendoim, mais especificamente para metê-los na boca.
– O ar-condicionado não tinha um problema? – crunch, crunch.
– Ele sai de lá e diz que uma peça está faltando, que vai encomendá-la, algo como filtro de
não sei o quê, repimboca da parafuseta. E depois eu digo que assumo tudo.
– Ela olhou aqui para a mesa – Alex está tentando apontar alguma menina. – Acho que
devíamos ir todos lambê-la.
– Vemos os detalhes depois – André confessa que a vagabundagem Alex ganhou, mas eis
aí a concessão dos sábios.
É mais ou menos aqui que o importante dessa noite se acaba.
– Como anda Júlia, André? – Habib pergunta.
Bem, bem, ela anda muito bem, essa não é exatamente a resposta de André, é mais algo
que fica ecoando nas cavernas da mente de Alex como uma cisma, como a angústia do que
não é para ser, mas acontece quando atravessa as calçadas, esbarra nos pedestres
aglutinados ou está sentado no metrô olhando para a cidade além da vidraça. Então pensa em
Júlia sem ele, esse não é exatamente um problema, mas Júlia sorrindo sem ele, aqui as coisas
mudam um pouco, então ele tenta calcular quantas vezes, desde que não mais se viram, ela
deve ter matutado sobre ele, no desgaste da sua memória e ainda assim sorrido
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relaxadamente, é um cálculo impossível porque não pode discernir a quantidade de sorrisos
que a pessoa dá num dia, mais difícil ainda se torna identificá-los, se são de conveniência,
surpresa, insegurança, ou da lembrança de você.
Chega em casa e tudo parece estar melancolicamente tranqüilo, tudo naquela ordem que
te mantêm aconchegante, como você não está bêbado não veio tropeçando nos degraus,
como chegou cedo poderá aproveitar para dormir e ter um sono revigorante, que tem sido raro.
Vai tirando e deixando as roupas pelo caminho com um vazio que confunde-se com uma
leveza na alma, porque o vazio talvez esteja comendo as coisas dentro de si, e indiferente a
você, porém com gosto de doçura, está o som do ar-condicionado – já não agüenta mais ouvir
falar de ar-condicionado e o tal Ananias, ou seria Ari? – vibrando por trás da parede, é uma
noite quente e Carla deve estar esparramada com o colo nu a sentir o vento gelado lhe vindo,
uma gracinha, como um cãozinho. Mas não custa averiguar se ela está sozinha. Ela não
ousaria fazer o contrário. É mesmo, não ousaria, seria de uma vileza cujo praticante é você,
não ela, deixa estar.
Vai rastejando no escuro a entreabrir a porta, olha que olha, porque já não enxerga bem o
que seja, e se está escuro é porque não se deve enxergar, mas vale a pena insistir e até que a
vista se entenda com as trevas demora um tempo, mas vai, ela está mesmo sozinha, que
bobagem pensar o contrário, a diferença é que não está esparramada como um bicho, mas
encolhida como outro mais dócil. Carla sempre estará aí para quando ele voltar. Senta-se, liga
a tevê, quanto mais silêncio mais falam alto os pensamentos, e, por favor, no vestíbulo da sua
mente o porteiro está se desculpando para as coisas complexas que ficarão de fora. Aí abre o
jornal com um suspiro de satisfação que as pessoas dão quando abrem os jornais, ele não
sabe porquê. Lá está Júlia. Ela está numa página avançada do jornal que se compra ali na
esquina. Está sendo fotografada junto a uns homens elegantes, apertando mão de gente
importante e sendo aplaudida, é bastante coisa o que uma foto pode captar. E aqui lê-se, ainda
não sendo as entrelinhas do jornal, mas a cara de Júlia, sou vitoriosa, ganho tudo o que quero
conseguir na minha vida, sou dessas sutis batalhadoras, visto essa altivez e estou sempre por
cima. E na parte explícita e jornalisticamente designada ao público vulgar, que somos todos
nós, incapazes de nos contentarmos com as fotos secas por conta da outra incapacidade, no
caso a de lê-las e esmiuçá-las, precisamos também das letras, que dizem o que nos importa
saber, ficando as coisas a mais para a psicologia e para quem tem tempo para gastar com ela.
Parabéns, Júlia, condecorada com um desses prêmios anuais, coisa assim. Parabéns, Júlia,
assim você alavanca a sua carreira, é de exemplos femininos como você que estamos
precisando. Alex e seus olhos de reticências. E a vida seguiria da mesma forma que antes
seguiu.
Mas não seguiu. Primeiro porque você deita na cama com uma mulher ao lado e percebe
pelo ronronar de quem acorda casualmente, mas já se prepara para cair num sono tão
profundo quanto o de antes, que ela o percebeu, mas não quer te ver, não pelo cansaço, não
porque você não faz diferença, mas para te evitar. Aí, olhando para o silêncio e para a
escuridão do teto, você pensa que não é que a mudança das coisas dê-se tão lentamente que
nos seja imperceptível, elas mudam mesmo bruscamente, você que não acompanha os seus
porquês, e isso o apavora, congela como se seu inferno estivesse num ranger de dentes
silencioso, quem sabe com rostos tristonhos lhe observando do escuro, de repente o inferno é
esse, essa casa, essa cidade, esse país, está ali e só finalmente o está percebendo. Aí tem-se
aquela coisa da noite indo embora, com ela vai-se o terror dos pesadelos que ficam
sussurrando uns aos outros e na vigília se adiam, e só sendo adiados dão-lhe a esperança de
poder estar em paz, é estranho mas é comum que uma esperança dessas venha junto a um
suspiro quase de quem não agüenta mais. O sol vai mais uma vez romper como quem não
quer nada com as carnes das persianas e saudar somente a ele, é o que resta ao sol, como
grito sempre ouvido desde que acordamos e por isso a ele já nos tornamos surdos, isto é, só
existe som se houver o silêncio, e ainda que haja a noite, que é disso mais especificamente
que se está a tratar, não é por isso que se dá os créditos merecidos ou não das luzes, certo, o
sol saúda somente a si, ninguém o vê mas está sempre se mostrando. Alex vai acordar e suas
pálpebras vão se romper com a súbita consciência de quem na verdade não sonhou e vê-se
que por fim acordou para tal, para sonhar, e deverá estar refletindo, ele poderá pensar, nasci,
ou então, como pensamos mais usualmente, é, mais um dia, eu não sei o que fazer com mais
um dia que eu tenho.

400
Ele vai tropeçar pelos cantos, vai imaginar se a porta do banheiro não emperrou porque ele
a empurra e ela não se abre, começa a pensar no dinheiro que vai ter de desembolsar, no
drama que terá que viver até achar algum marceneiro, que ele não é experiente com essas
coisas do cotidiano, não sabe se está preparado para isso, mas chega a hora na vida de um
homem que deve se deparar com esses acasos inevitáveis que a todos ocorrem, ele começará
por aí, ele se diz, a procurar um marceneiro no catálogo telefônico, até Carla gritar lá de dentro
que porra, ele não a respeita, que pare de forçar a porta sem sequer bater, porque ela está lá
dentro usando, que mais alguém vive nessa casa que não só ele etc, e ele se assusta, tinha
realmente esquecido. Ele vai sentar-se por ora na mesa da cozinha e apoiar a testa no braço,
assim faz uns planos que não irá pôr em prática, assim faz outros que irá, bufa porque está
pensando em organizar as coisas e geralmente esse é um processo doloroso, anda, caminha,
vai a sala, vai ver a luz entrando pelos mesmos cantos por onde entra, as persianas que dão
para a rua se batendo com os açoites do vento, vai ele até a janela, vai ver que o cristo que
amaldiçoava mães, talvez por pendências em vida com a sua própria, não se sabe bem, não
está mais lá, e no muro vê-se apenas os garranchos dos pichadores que não lhe dizem nada e
o espaço de rasgos que alguém vai usar para pôr os seus anúncios. Vai imaginar o carro da
polícia parado na esquina, que é lá onde os guardas conversam com as pessoas da
vizinhança, a boa senhora que mata hora perguntando-os como andam os índices da
criminalidade e tudo mais, se maridos andam batendo muito nas suas mulheres, se diminuiu ou
aumentou o número dos moleques que saltam dos becos anunciando que dê cá a sua bolsa, e
por aí vai, imaginando o guardinha de trânsito apitando e pedindo para que os carros
parassem, o motorista do ônibus escolar fazendo a mesma curva que faz com provavelmente o
mesmo ônibus em trinta anos de serviço, as crianças o chamando pelos mesmos apelidos de
antes, as crianças se chamando pelos mesmos apelidos que seus pais se davam, o sorveteiro
a sorrir familiarmente ao olhar satisfatoriamente a sua loja que começou com uma casinha e
agora já tem dois andares, reconhece agora os lucros de seu progresso etc e tal, se alguém
inventou a palavra dinâmica foi para enganá-lo ou na verdade caracterizar as etapas da inércia,
ela por si só não é tão simples assim, também tem os seus momentos. Ele vai sentar-se e
fazer sua nova matéria sobre a beleza da culinária de um famoso restaurante vegetariano, vai
se empenhar tanto que não saberia, se olhasse no seu rosto, onde termina a comoção, se é
que há alguma, e começa o pânico.
Carla vai surgir e sentar-se, ainda está de camisola, ela há de se sentar no sofá e ligar a
televisão, ele vai perguntá-la se hoje ela não tem nenhuma entrevista de emprego e
ironicamente aproveitar-se para estender-se e perguntar se não vai sair para almoçar com
alguém importante, ela vai responder-lhe tranqüilamente que não, sem aceitar a provocação,
Alex então sorri porque percebe que ela realmente voltou, até quando?, até quando. Ela vai
comentar sem se olharem, que é quase como fazem as pessoas casadas, mas os clichês de
dizer que isso é assim ruim ou bom não importam a Alex, vai comentar como são
desorganizados esses serviços que ficam de nos avisar quando há emprego sobrando e
faltando em tais lugares, que anda mesmo difícil e isso é bastante desanimador, mas
paciência, que a vida é vida porque vai seguindo entre os trancos e barrancos, e bem que ela
queria jogar tudo para o alto, largar a tudo de repente, mas é realista e sabe que não pode
fazer isso e arriscar gratuitamente a felicidade. Vai comentar que o preço das comidas está
aumentando muito rápido, ele murmura um uhum ou coisa assim. De repente ela comenta
sobre algo que viu outro dia que a chocou, mas pelo jeito que ela diz, não especifica se foi um
choque digno de risadas ou de estupefação, de indignação ou transe, que foi quando ela viu o
outdoor com um coelho e ele a dizia, a sua vida é tão inútil que isso te chama atenção. É
impossível deixar de ver coisas como essa, por mínimas ou esporádicas que sejam suas
aparições. É mesmo?, ele a diz, fascinante, e era um anúncio do quê?, ao que ela responde,
eu não sei, o pior é isso, acho que de nada. Então ele terá a iluminação sem estardalhaços,
enquanto olha a seqüência de palavras sem vigor na tela do computador, enquanto ele não faz
nada, isto é, desperdiça a si mesmo miseravelmente, os outros estão por aí, se alternando e
possivelmente se angustiando da mesma maneira que ele se angustia agora, e no momento
que lhes vêm essa angústia, possivelmente partem da premissa de que precisam fazer
diferença, erguem-se as ancas das poltronas dos lares, põem-se os pequenos na cama mais
cedo e inventa-se uma desculpa para a mulher, então saem e irão soltar nas ruas os panfletos,
colar as coisas em seus respectivos lugares, mostrar o que não se quer ver. Eles precisam

401
mostrar. E por instantes ele sorri por isso estar acontecendo, boceja em seguida, pois deixa
estar.
É com essa expectativa que não se ousa articular com mais especificidade e não se diz em
voz alta que os dias vão se passando, distante da sociedade porque crê que ela esteja
passando por um momento de hiato muito importante entre seus dogmas, não é realmente um
hiato, talvez ele só queira escapar das tensões que ele mesmo criou, talvez no fundo não goste
de aproveitá-las, tão somente de vê-las já realizadas em sua frente e tudo mais, não, que ele
não é fraco assim, mas admite que existam outros gêneros de pendências que não são
preocupar-se exclusivamente com o que vai aprontar essa noite com os seus, se irá destruir
um hidrante ou indicar alguém só para fazê-lo fingir-se de cão e implorar para que a carrocinha
o leve, talvez depois do episódio com a freira as coisas tenham se tornado realmente mais
possíveis. Mas ele continua sabendo que as reuniões ocorrem todos os dias, alguns vão em
uns, outros vão em outros, alguns se ausentam por semanas e voltam cheios de novidades,
outros não vão há meses e acabam por se desligar, mas esses deixam-se para lá, primeiro
porque podem, depois porque não são interessantes, outros não perdem um só dia e outros
acabam tornando aquilo sua vida, que correm riscos de enfartar, de repente outras formas mais
dinâmicas de morte. A garoa fina que cai nas madrugadas vai continuar esfriando as coisas
enquanto ele e Carla ficam juntos em silêncio debaixo dos lençóis a assistirem esses seriados
com piadas e risos no fundo, que são para poupar o espectador de esforços, esse pessoal de
hoje chegou ao ponto de antever qualquer coisa, perdemos todo o mistério, eles pensam em
tudo. Não se pode dizer que esse tempo tenha se passado por um fim, que como se sabe as
coisas inexoráveis não têm a um, talvez tampouco tenham um começo, melhor que a isso os
físicos teorizem, os filósofos sorriam e os leigos bocejem, tampouco tem o fim, isto é, o tempo,
um objetivo, senão aquele que quem o enxerga o dá e acaba assim por contradizer a razão,
para quem nada devia ser relativo – e o tempo o é – e nada alcança mas de tudo se aproxima,
por fim, esse tempo passa-se com o objetivo de vislumbrar as suas inutilidades como sendo
incompetências gerais de nós mesmos, por isso elas nos aprazem e por isso o homem inventa
necessidades, ele gosta muito de se desumanizar, criar vontades que não possa sanar e
portanto se agoniar, no mais gosta muito de se manter ocupado. Ele deixa as coisas irem
seguindo sem ele para se dar conta de que as coisas também não hão de se acabar quando
ele se for, é como se nosso herói, este Alex com quem convivemos ao longo de sua espirituosa
e detalhada trama, fosse dotado de uma espécie raríssima de inteligência atemporal e pudesse
antever as coisas que vêm a seguir, o que deve muito certamente ser uma ironia do destino,
que mostra-se como mulher que gosta do voyeur mas não deixa o sujeito confirmá-la com o
toque, então, para soar um pouco agradável, o destino vai acontecer mais ou menos como ele
esperou, até o instante em que as diferenças o surpreenderão e tudo será como antes não
poderia ser, é assim o destino, uma criança que mostra ser sempre mais inteligente do que
supúnhamos. Alex deixa as coisas irem seguindo sem ele para preparar-se para o que ele não
sabe e nem supõe que vai acontecer. Então está deixando as coisas seguirem sem você, Alex,
porque não sabe mais até onde você as quer.
Olha para Carla e seus olhos brilham no escuro, são brilhos um pouco alienantes, ainda
mais quando estão piscando os reflexos da tevê. Tem uns pensamentos piegas, se um dia
poderia vir a amá-la, se poderia dedicar-se a ela, se uma pessoa pode lhe ser importante como
a crença geral incita a gente a pensar, esse tipo de coisa. Ela o olha de volta num relance e
sorri, e ele entende que não pode traduzir um sorriso desses, na verdade, pensando bem, são
pouquíssimas coisas e não só sorrisos que ele teve a ocasião de entender, então esse será um
desses momentos de lucidez, ele percebe que não pode e nem conseguiria viver em um
mundo, e isso é válido como se o mundo se comportasse feito uma pessoa ou um bicho, então,
não pode e nem conseguiria viver em um mundo que não o entende, e vice-versa, ainda que
faça os outros acreditarem que ele o sabe explicar, ainda que teime em dizer a si mesmo que
sim. Há algo que continua e está sempre perto de si, e talvez sempre o estará pondo nos eixos
e o mostrando que, se não sabe de nada, sabe muito pouco, e este é o enigmático outro. Não,
ele não aparecerá nesse instante com uma argüição nova, e não, Alex não terá a pretensão de
explicá-lo, ao menos não agora, veja bem, que é hora de outros assuntos, e os outros ficam
para o futuro, ainda que, como dizem esses místicos que por aí se encontram, tudo o que está
secreto há de ser revelado etc. Os olhos de Carla foram como olhos de uma cobra não-
venenosa parados para sempre na escuridão, congelados para sempre num segundo aleatório
onde o tempo finalmente cansou-se de correr, e ele está aí para presenciar esse momento
402
histórico, mas o tempo não deixa barato quando alguém enxerga suas falhas, e o fez
adormecer. Foi olhando e pensando em Carla e no tempo e no outro e no futuro que desmaiou,
e esse é um sonho de muitos protagonistas onde nenhum está muito claro, a névoa das
incoerências vai se condensando num orvalho por dentro do qual ele viaja até alcançar uma
fenda da sua inconsciência onde já esteve outras vezes, está no mesmo sonho. Corre pelo
beco escuro como num desses filmes com o visual bem retrô, seria bonito se não lhe fosse
macabro, com direito a uma película cinza sobre tudo e umas sombras tão bem desenhadas
que não podem ser da realidade, deve ser de quadrinhos, mas ele não pode se dar o luxo, não,
senhor, de divagar essas coisas assim, que da mesma maneira que antes o estão
perseguindo. Ele olha para trás e o vulto negro, de quem nem o outro o pode proteger, está lá.
Ele sempre está, e então a certeza de que não pode escapar, e então o tiro. Pá!, estronda, ei-
lo. Eis os olhos de Alex abrindo-se, com suor escorrendo por entre eles e um grito de agonia
barrado na glote.
Não sabe quanto tempo se passou e nem se importa. Ainda escuta a chuva caindo lá
longe. A perna de Carla ainda está cruzada com as suas, a mão não saiu de sua virilha, e você
não sabe que horas são, tudo está escuro, mas essa campainha a berrar na noite é o telefone
tocando, mais uma vez, e uma, e uma, só há uma forma de dar fim a isso, esse movimento
mecânico de esticar o braço, ali, à cabeceira, e atendê-lo.
– Alô – a sua voz morta.
– Está feito – a voz de André.
– O quê?
– Está feito, tudo está pronto. Preciso desligar, ou Júlia acordará.
– Boa noite – não pôde murmurar mais nada.
– Nos veremos em breve.
E desliga. Simples assim.
E Carla o abraça, sonâmbula, com voz de sofrimento.
– Por que você faz essas coisas? – sussurra.
Ele não tem o que responder.

403
E o indício de que muitas coisas estranhas estão vindo por aí está acontecendo. Em um
belo instante, ainda que coisas como as que vêm a seguir não possam ser nunca belas, e essa
seja só mais uma maneira estética de se começar um pensamento, ainda que, se formos
pensar, como é o caso de Alex, que vai pensando, esse excerto de era uma vez um belo dia e
coisa e tal é bastante irônico se formos considerar que depois disso haverá alguma história
com lobos que comem os personagens, sejam porquinhos ou gente, bruxas malvadas e sono
eterno, o que o leva à conclusão de que esse humor com o qual se sorri com o canto dos
lábios, esse culto secreto ao trágico é bastante sedutor a nós. Ele gosta de ser uma exceção,
então esse não é um belo e nem mesmo um trágico instante, senão uma hora da noite com
suas buzinas, caleidoscópios e gritos. Ele anda com os ombros encostados nos próximos e
cuidando que não se esbarre por aí, atravessa para a banca de jornal, fica parado defronte a
essa, vendo sobre os anúncios mais recentes das revistas que lançaram sobre história ou
pornografia, vê-se também ali, empilhado, o jornal das artes, é, que como bem se lembra é
onde ele conseguiu um emprego, mas desse ele não compra mais. Aí mete a mão dentro do
bolso a procurar as moedas que carrega separado, quem sabe depois ele não pára no café da
outra esquina para ler as poucas coisas que o interessam e que ele está a comprar, é quando
percebe que ao seu lado está uma senhora, e não é de se espantar que uma senhora de idade
como esta esteja interessada em comprar uma pilha de jornais, uma das coisas que mais
aprazem aos bons velhinhos que já não têm muito o que fazer e nem o que conversar, que
seus assuntos foram ficando para trás e morrendo no meio do caminho, ela sobreviveu porque
foi esquecida de ser interrompida. É uma dessas senhoras que querem regressar à juventude e
não sabem muito bem como. Os hábitos e os ritmos mudaram, não é mais tempo de ficar nas
janelas namorando a rua e esperando o príncipe encantado vir com um flerte discreto, até que
se lhe apareça na sacada e numa noite bonita e cheia de promessas a leve para a cama,
enfim, as coisas hoje não são assim, as jovens pintam os rostos e vão para a caça, põem o
batom vermelho porque é uma cor forte e atraem os machos, assim como flor que não tem
perfume precisa de uma cor gritante a chamar pelas abelhinhas. Seja sucinto, Alex, essa
senhora é uma dessa moderninhas, que usam roupas de couro e se pintam, deve também
participar de um clube de motoqueiros e falar em gírias, porque para ela a vida nunca acaba
enquanto houver juventude de espírito, deve ser nisso que ela acredita, e Alex está livre do
gênero de preconceito que repudia essas loucas tribos urbanas, ainda que tenha motivos para
achá-la um pouco escrota demais, um espantalho fantasiado, e quanto a isso não pretende se
justificar. Tudo estaria bem se não a olhasse por tempo demais e percebesse que a conhece, é
Saudades, a vizinha da janela do outro lado de anos atrás. Olha para a frente com cara de
ham?
Não parece ser mais tão Saudades assim, então. É melhor inventar-lhe outro nome,
Desespero pode ser um bom, mas na verdade o desesperado é ele quem está, é você quem
sente esse desespero porque não consegue entender como alguém sai de sua janela e está
agora – está mesmo – saindo da banca de jornal não antes de piscar para o vovô que o vende,
é incrível. Ele disfarça e a vê indo embora rua afora, pois é, e se foi, e ele sorri, porque ainda
que não entenda, perceber é sempre um bom início. Imagina que se o episódio do camelo
dormindo no trânsito acontecesse ele não se espantaria.
Assim, meio que graças à aparição de Saudades, começa o desenvolvimento da noite do
assassinato, crime que já se pode entender que não é mais assim tão crime. É que às vezes,
para que entendamos o que uma coisa não é no presente, se precisa olhar para o passado e
entender-se como, nesse caso, essa coisa deixou de ser ela mesma. Sendo bastante simples é
isso que ele chama de retorno à escuridão. E o assassinato não vem de uma série de
acontecimentos que olhemos de fora feito espectadores ou, supondo o mais absurdo, feito até
mesmo leitores, que olhemos de fora e nos digamos assim, nossa, tudo me leva a acreditar
que é isso de fato que vai acontecer, os indícios não podem se fazer contrariar, é presumível,
previsível, tudo está caminhando para que isso aconteça, não, porque esse tipo de coisa vem
ao acaso para quem pratica e para quem é vítima, é como espetar o dedo numa farpa, ficar
consternado pela dorzinha, então chupar o dedão e espremê-lo até que a farpa saia, e tudo
voltará a ser bom. Vamos lá. Alex realiza a longa viagem de cada dia, isto é, um ônibus por
longas ruas, e a demora do trem do metrô que não chega na sua estação, pronto, daí já pode
seguir andando ao teatro, e vai se entretendo ao imaginar as coisas recentes que marcaram
sua vida e que se passaram rápidas demais. Imagina Bublitz, com aquele jeitinho que beira a
404
inutilidade que já se conhece, e só não beira um pouco mais porque Alex evita rotular quem
gosta – mentira –, vestindo um macacão azul e atravessando as calçadas labirínticas e cheias
de gente até o prédio em que André trabalha, a famosa firma de direito onde tudo pode
acontecer, ou quase tudo, porque tudo mesmo só no teatro, então, deve ser um desses prédios
cinzentos e com vidros espelhados, desses arranhas-céu que impressionam quando são vistos
mas que não têm nem cor nem vida alguma, endeusando e estragando a paquidérmica cidade
grande.
Aí Bublitz vai conferir se o prédio é aquele mesmo, e é, e vai olhar em volta como quem
teme estar sendo perseguido, todo fraco que está um pouco errado já se acha muito criminoso.
Vai entrar, está tomando fôlego, ora, é óbvio de quem se trata, com um crachá visível no peito
e que diz Ari, técnico de ar-condicionados, se é que o crachá dessas pessoas diz mais ou
menos assim, o mais provável é simplesmente que seja um aviso quase apagado de que é da
manutenção e coisa assim, mas com esse crachá e com a maleta de material ele é
inconfundível, imparável, mas ainda assim toma fôlego que não quer gaguejar ou acabar
pigarreando na cara dessa recepção por onde passa muita gente, porque é um prédio muito
importante, estar ajudando a pô-lo abaixo de alguma maneira lhe deve ser extremamente
gratificante, quase um alívio, como ajudar na cura de uma amarela e infecta doença. Oi, ele
dirá para a moça que usa óculos de lésbica, isto é, aqueles óculos pontiagudos que não
enganam, ela está mascando chiclete e isso o deixa relaxar. Ele apontará para o crachá com
um sorriso bobo no rosto. Oi, sou o tal do Ari, e isso fala por mim. Foi bem mais fácil do que
pensou.
O elevador está cheio de rostos inchados e cansados, não se falam. Esse silêncio é um
grito por ajuda, o socorro, socorro estronda, mas tem de ser suportado, que ainda não é hora
para ouvi-lo e messianicamente estender as mãos.
O estagiário pomposo vai lá recebê-lo, cheio de sorrisos que devem esconder uma série de
ostentações, cheio dessa educação arrogante da qual tanto vemos por aí e da qual estamos
fartos, cansados, mas Bublitz vai apertar-lhe a mão com um sorriso ainda maior, porque estará
dizendo a si mesmo, nos termos em que conversam com si mesmas as pessoas simples, é,
meu caro, você é mesmo pior do que eu pensava, e vou fodê-lo. Você deve proceder assim e
assado, aquele aparelho sempre quebra etc e tal, não pode demorar muito, meu camarada, ou
melhor, meu senhor, pode deixar que o que você está fazendo é tentar ensinar um padre a
rezar – e aponta o crachá, ele é o senhor Ari –, pode deixar, confia aí, que está comigo, está
com deus, cada profissional em sua qualificação, isto é, você com seus sofismas diários e
petições escabrosas e eu permitindo que você continue confortável. Para não passar o dia com
calor e encharcando suas tenras axilas. Por aquele mar de cubículos e de telefones tocando e
emergências acontecendo não há um sinal sequer de André, Bublitz deixa escapar um suspiro
porque sabe o que tem de ser feito, essa será a única chance. Deixe a porta entreaberta e
apareça para olhar, se não estiver muito ocupado, diz Bublitz, ele joga essas idéias porque
quando mostra segurança nada pode pará-lo, seria até agressivo se ele fosse realmente lá
bisbilhotar no trabalho universalmente recomendado do senhor Ari, essa humilde e
competência referência de anos etc, então, quer saber?, fica à vontade, só não demora muito,
afinal é só um aparelho de ar-condicionado mesmo, não?, é, é, é mesmo rapidinho. Bublitz
sabe o que deve ser feito.
E então, na madrugada que André se certificou de que fez o que não podia fazer, toca o
telefone que diz a Alex, é, pois é, está feito. E agora ele está entrando pelas coxias do teatro,
ouve os burburinhos e pensa se já não está havendo estardalhaço sobre as novas peripécias
de nossos heróis, se um não se gaba da quantidade de panfletos sem sentido que colou por aí
no outro dia, se o mesmo cara não se gaba do trote que passou no corpo de bombeiros, se
outro ainda está falando da sua loucura, que foi uma idéia vinda de Alex, que é a de se fingir de
suicida por algumas horas no lado de fora da janela do seu prédio, no parapeito onde qualquer
vento pode arrastá-lo e espatifá-lo como uma fruta podre na calçada uns vinte andares lá em
baixo, até que viesse a multidão gritando que pulasse!, pula, pula!, até que os bombeiros
chegassem e preparassem para armar suas escadinhas, até que despontasse da janela um
psicólogo engravatado que arrombou o seu apartamento e lhe disse, não faça isso, todas as
dores do mundo não são suficientes para acabar assim com a sua vida, não há motivo forte o
bastante para essa atitude, ela é sempre precipitada, reconsidere. E então o sujeito vai
perguntar, do que você está falando?, um homem não pode tomar um ar do jeito que ele bem
entender nos limites da sua própria casa, é um absurdo, não pode relaxar sem que lhe metam
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o pé na porta de casa e estraguem com tudo. Eu já vou sair, não fique parado aí, me olhando.
E então voltará sozinho para dentro do apartamento, e a multidão lá embaixo deve ir ao delírio,
vibram como no circo onde o domador se enfia na boca do leão, e por bem ou por mal o
espetáculo compensa.
Mas ali no teatro as coisas estão normais, bem, pense em termos mais apropriados, certo,
estão seguindo. Tem o sujeito que chora nos braços de alguém mais simpático, porque ele se
sente excitado em saber que a mulher o trai, mas você tem certeza?, lhe pergunta alguém que
não sabe muito bem o que dizer, e certeza ele não tem, mas está viciado em imaginar, e gosta,
mas não gosta do que gosta, e é por isso que chora, antes pudesse se convencer a gostar,
antes se convencesse de que o seu problema é uma doença, isso o redimiria, ele seria a
vítima, e não um cafajeste entediado e asqueroso. Apenas dêem medicamentos a esse cara.
Salve-o do que ele tem dentro de si. A redenção está para a fé como a faca está para a carne,
vai lá, menos sanguíneo, como o garfo para o bolo, como a entrega para a vida, mas ninguém
aqui quer mais sonhar com entregas que rendam paraísos deliciosos, não há mais tanto o que
esperar. Os sonhos estão acabando, limitando-se ou ficando cada vez mais sem graça. A
esperança morre. Aquele rapaz da cara-de-bunda não cansa de vir aos encontros por mais que
o estejam perseguindo, entenda-se persegui-lo pelo cara careca e sua trupe, aparentemente foi
ele mesmo que inventou o boato de que a menina que menstruou não resistiu e está morta,
menina que menstruou, maneira um pouco chata de referir-se a Sylvia, é isso que Alex acha,
chata, mas também não está se importando ou dando lá muita atenção a esse assunto, o que
tinha de ser dito aparentemente já o foi. Aí sacaneiam o cara-de-bunda. Seu pinto deve ser
realmente grande, ficam dizendo uns, e o empurram para os lados. Você a matou, rapaz, falam
os outros. Estamos de olho em você. E o socam. Se ele continua voltando é porque gosta.
Algumas pessoas se viciaram em tomar porrada, por um lado isso sempre os desagrada, por
outro é muito difícil ser o que não se foi acostumado. Os papéis do divórcio do doutor Dantas
devem ter chegado por agora, é o que tudo indica, ele está deitado ali numas poltronas e foi
assim que entrou em coma alcoólico. Alex teve essa seguinte idéia em uma recente vez, é
mais ou menos assim, as agitações do mundo, rápidas e famintas, são pouco mais que um
bocejo do ócio, um abrir de boca manso da solidão. Um gentil do qual não se recorda do rosto
vem lhe trazer uma cerveja, então está sentado da mesma maneira que usualmente o faz,
como um monge discreto que vem se aproximando sem saudar a ninguém, as eras dessas
cordialidades serem necessárias já se passaram, e lá ele senta-se como na sombra de uma
árvore onde por um acaso das antigas sentou-se um rapaz e foi iluminado com os mistérios da
morte e da vida, e viu que os extremos são todos irreais, e isto significa que extremamente
devemos desconsiderá-lo, e aqui estamos com essa desconsideração, apanhando a cerveja e
docilmente agradecendo, que às vezes a doçura escapole, e o estranho deve conhecê-lo muito
bem pelo jeito com que dá tapinhas em seus ombros, esse jeito fraterno de ser, e lhe diz sem
se exceder muito, porque também tem lá as suas coisas muito importantes para fazer,
sentimos sua falta, bem-vindo de volta. André vem vindo.
– Como vão as coisas? – Alex pergunta.
– É – ele ri meio embriagado.
– Pois é, hein?
– E você, que andou sumido?
– É.
– Várias novidades – à longo prazo os recursos da comunicação tendem a encurtar.
– Poucas, o de sempre.
– Não foi um pergunta.
– Então certo.
– Que fez por aí?
– Essa cerveja tá quente.
– Tem certeza que é cerveja mesmo?
– Fala sério – esbugalha os olhos.
– Outro dia fizeram com uma garrafa isso mesmo que você pensou.
– Isso – e olha a garrafa – é realmente cerveja quente.
– O que uma crença não faz?
– Não torna o crente mais seguro de si. Estou muito preocupado – e toma um bom gole.

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– Há controvérsias – André troca um pouco as letras, mas como o que se chega aos
ouvidos é o contexto geral e algumas coisas decodificamos tão rapidamente para fins de nossa
produtividade, é isso aí.
– Quais as tais novidades? – pigarreia audivelmente.
– Estão dizendo que Bonaparte não freqüenta mais os cinemas pornô ou coisa assim. Está
se curando daquela coisa voyeur que tinha, também.
– Não fale de cura, se a quiséssemos faríamos terapia, não estaríamos aqui estuprando
nosso fígado, nossos rins e cabeça.
– Você entendeu o que eu quis dizer, não é?
– Entendi.
– Não é pelo vício que se liberta – André acende um cigarro.
– Então?
– É do cansaço que vem depois dele. Esse deve ser o melhor cansaço que existe.
– Não, o melhor é o do cemitério.
– Estamos sempre nos aproximando desse, não é? – André tremula o riso. – A vida é uma
jornada à paz.
– Não, a vida é uma jornada à angústia, até que em um dado instante finalmente se a vê,
se aterroriza e não há mais nervos que agüentem, por isso se morre.
– Você tirou o dia pra me contrariar – e deita-se.
– As suas contradições estão nas próprias dições, se eu quisesse contrariá-lo era só deixá-
lo falar sozinho. Isso prova que o que quero é ajudá-lo.
– Seu escroto.
– Continue.
– León defendeu aquele cara com o rosto meio assim.
– O cara-de-bunda – Alex completa.
– É assim que o chamam? – André arqueia as sobrancelhas.
Alex faz que tanto faz.
– Ele o defendeu – e André assente para o vazio como se fosse com ele que conversasse.
– Aquele careca o estava irritando, dando tapas e coisa assim, desses desrespeitos à toa que
tanto se vêem, aí León tomou-lhe as dores, sabe, despertou algo de preservação da inocência
nele, eu não sei explicar, e para um velho ele até que está em forma, vou lhe dizer, tinha que
ver ele arrancando umas poltronas soltas do chão, era feito um pequeno cavalo.
– Sei.
– Depois ele se irritou com esse cara-de-bunda que estava muito ridículo falando obrigado,
obrigado, vou te recompensar, meu amigo, obrigado e coisa e tal – pausa para as risadas –, aí
resolveu é dar nele, só uns tapas ao que eu vi, é.
– Faz sentido.
– Fiz a maior loucura da minha vida – fala fitando o vazio.
– Até agora – sábia correção, e a chama do cigarro.
– Eu não tenho conseguido dormir – os dois fumam lado-a-lado.
– É arrependimento?
– Eu não sei.
– Geralmente uma coisa dessas se sabe imediatamente.
– Você acha que eu precise de um psiquiatra?
– Eu não sei.
– E isso também não se devia saber imediatamente?
– Eu não sei.
– Talvez nós dois precisemos de um bom médico – André é astuto.
– Por isso que me ligou no meio da madrugada.
– Você é astuto.
– Precisava conversar?
– É o que estou fazendo agora, não é?
– Precisava conversar?
– Só queria avisar. E agora somos ricos.
– Não é pelo dinheiro. Isso é uma merda.
– Eu sei.
– Avisar te fez sentir-se melhor?
– Por que a curiosidade?
407
– As olheiras, o aspecto – gesticula.
– Fez um pouco, sabe como é. Não se pode saber se estaríamos pior quando já nos
sentimos mal.
– Então está arrependido.
– Eu não sei, talvez outra coisa.
– Então o quê?
– A dor de ter deixado de ser o que me tornei.
– É como um parto, ninguém quer nascer.
– Mas antes não conhecíamos a dor. Agora já devíamos ter aprendido a escapar.
Por instantes resta apreciar uma bagunça ali na frente, dessas que se sobressaem entre as
muitas outras, que foi capaz de ser convidativa o suficiente para fagocitar os membros dos
diversos grupos. Alex está tentando imaginar se também se identificaria com essa dor, ele que
nunca a teve, e se sentiu algo próximo não soube interpretar.
– E agora? – André o interrompe.
– Agora sabemos que a dor é regra, e a fuga mais uma das nossas tantas idiotices.
– Não é isso que eu quis saber.
– Quer saber o que faremos agora que somos completamente loucos.
– Sim...
– Somos?
– Isso é algo – André diz – que passaremos a vida inteira nos perguntando e confirmando.
– Certo.
– E agora?
– A outra parte do plano.
– Você tira essas idéias de algum lugar?, às vezes parece que as inventa na hora.
– E você continua perguntando.
– É claro. Eu gosto de ouvir.
– É como se houvesse outro dentro de mim – e dá um sorriso divertido que só ele entende
–, uma fonte de inspiração macabra que me foge do controle, e que me fica ao pé do ouvido
dizendo-me que não faça isso, não faça isso, mas é exatamente o que eu acabo por fazer.
– Me parece ser um demônio dos bem treinados.
– É mesmo, você disse perfeitamente, como se você tivesse um – franze o rosto.
– Júlia.
– Ah, bem.
– Achei que era de Carla que você falava, ou não necessariamente dela, mas elas nos
aborrecem tanto, as mulheres, que acabam nos inspirando é por isso, porque é de um
problema que reagimos.
– Entendi, tem a sua lógica – coça a nuca suada.
– Agora somos também uns demônios, conspirando pra tomar a razão dos outros.
– E esse continua sendo o plano.
– Diga.
E ele vai falar depois de uns longos segundos de apreciação do cigarro, – Temos de
enlouquecer as pessoas por dentro de suas vidas, as noites não bastam mais, as pessoas têm
de fazer certas coisas com seus maridos e esposas, nos trabalhos e por aí vamos, e temos de
chocar mais gente, que o choque é a melhor apreciação que há.
– Acho que já estamos fazendo essas coisas, estando aqui. Não sei. Me sinto cansado.
– Façamos melhor – e interrompe um instantinho –, não quer falar?
– Não é isso, apenas acho que exagerei, não sei, tudo isso também tem arruinado meu
pensamento, ele não é mais tão lúcido quanto antes, não sei – e se apóia na testa.
– Ainda não sabemos o que é lucidez.
– Talvez, mas dói – e fecha os olhos.
– Enxaqueca?
– É o parto que você falou, é o parto.
– É bom que ele tenha acontecido – fala num tom austero. – Por isso, preste muita
atenção, que está tudo me vindo agora, vou falar apenas uma vez, já que não vou lembrar
depois.

408
Alex se curva nas roupas negras e se sente uno com o espírito dos morcegos, já que na
existência tudo, todas formas devem ter sua essência abstrata impregnada atrás das coisas
que se vêem. Ele quer sentir-se uno com a entidade dos morcegos porque são bichos noturnos
e asquerosos, ratos voadores como ele. Gostam de sangue, também como ele, ainda que para
um morcego falte motivos tão especiais quanto os de Alex, é que o mundo inteiro, Alex, são
símbolos para representar você, tal qual os morcegos, que são parte, mas sempre apenas
parte, da sua ânsia por sangue, ainda que tenha motivos que não saiba exatamente quais são,
como um cãozinho que representa parte, mas olha lá, apenas parte, da sua carência. Por um
instante se ilumina com uma dessas epifanias que lhe dizem que o sentido máximo das coisas
é se conhecer, olhar um espelho no princípio até ficar saciado, depois até começar a suspirar
de tédio, se arrepiar de solidão, até morder os pulsos porque não agüenta mais ver a mesma
coisa em trezentos e sessenta graus, e aí, mutilado e sanguinolento, já indo embora, vai se
entender, descobrir-se egoísta o suficiente para nunca contar esse segredo a ninguém e levá-
lo para o fim.
O motoqueiro passa numa dessas manobras perigosas ziguezagueando rente ao carro,
Alex se esbugalha de um susto passageiro que o arranca da imaginação e percebe que nunca
estará pronto para partir, não tem a responsabilidade de conhecer sua hora final. Olha o lado
de fora e espia o trânsito, a moça bonita ao lado está comendo um baguete enquanto dirige,
está aproveitando que não precisa mexer o volante, já que algum retardado fez alguma
besteira lá na frente e está tudo assim, engarrafado, provavelmente o sinal abriu para o imbecil
e ele avançou sem considerar o engarrafamento lá da frente, e agora o sinal fechou e o
pessoal do cruzamento não pode avançar, ficam esses carros no meio do caminho, e buzinam
como se fosse adiantar, e isso é ruim, e ele espia o taxímetro, ouve o taxista resmungando dos
perigos desses caras que dirigem motos, que outro dia um veio acelerado sem nenhuma
noção, e repete, sem nenhuma noção, todo apagado, e o táxi freou e ele nem se deu conta,
bateu atrás e foi rolando no teto e por cima do capô, se quebrou todo, sorte que não foi nada
mais grave, já pensou?, mas bem que devia ser, porque um idiota desses acaba merecendo.
Os números no taxímetro estão aumentando, mas Alex finge que não, essa noite ele se sente
um pouco mais poderoso que o habitual, e não questionemos suas ilusões e nem entremos no
mérito se são essas realmente ilusões ou tudo que é sentido é válido, que alguns sentem-se
felizes nas missas, outros gritam nos trânsitos, uns jogam peteca na praia, e outros se injetam
gana de poder para sair pelas ruas prontos para destruí-las. E ele não está nesse mundo de
mãos afundadas na buzina e de anda logo, seu filho-da-puta, por quanto você comprou sua
carteira?, ele não está no mundo da voz do rádio cantando clássicos de sessenta, criou sua
própria shangrilá, ajeita o óculos escuros por um ar sombrio, e se diz, sou do mundo dos
morcegos, da linda escuridão. Do lado de fora da janela as pessoas estão sobre seus carros
arremessando garrafas de vidro sobre os outros, atiram-nas no vizinho. Das janelas dos
edifícios a gente se debruça para precipitar móveis incandescentes e ver o fogo explodindo na
calçada, os pedestres se protegendo da chuva e arrombando as lojas, o carro que explodiu e
deixou um cara com um corte imenso na cabeça, a criança que se perdeu da mãe e corre
chorando e fugindo da multidão, com alguma sorte a mesa que vem caindo de algum décimo
andar a atinge na cabeça e a parte imediatamente, sem o sufoco que é de ser pisoteado. Ele
sorri, satisfeito, ao ver gente com as mãos ensangüentadas raspando-as no vidro do carro,
estão pedindo por ajuda. Não há gratidão, só desespero, e você sente-se feliz.
– Aqui, senhor?
Olhe para o lado, você deixa a vida passar porque a fica sonhando. Só há a calçada, a luz
suja de cor amarela rastejando até onde não consegue mais entrar, o pessoal de aspecto
cinzento que passa como que por erro da visão, e a hora, que ainda que não se veja
concretamente é esta uma hora e não outra, associa a hora com as coisas que ela ocasiona,
Alex abre parênteses para acrescentar que esse é o caso também da loucura, mas se atém ao
que propôs, então essa hora é aquela em que as lojas estão fechadas e a gente já tem medo
do rapaz barbudo que vem andando logo atrás. Custa-lhe um pouco confirmar se é ali que tem
de parar, não vai pedir para que o taxista leia o nome da rua, o fará por conta própria. É aqui
mesmo, sim, mas também não irá dizer isso, tirará o dinheiro do bolso da sobreveste, uma
quantia dessas que ficam enroladas e pelo aspecto dão a entender que há sempre mais, então
enruga o queixo como enrugam as pessoas altivas enquanto vai contando cédula por cédula e

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fazendo com elas um barulho esnobe, seleciona um pouco mais do que o visor marca, as
estende.
– Fique com o troco.
Mas não é tudo o que faz, que não haveria sequer porquê ensaiar a custo de nada essa
arrogância, uma vez que quando se olha atentamente a sua mão, aquele mais perspicaz e que
já o conhece de ocasiões prévias veria nela o cartão branco que vai junto do dinheiro, cujo
conteúdo logo se entenderá. O taxista o recebeu e aproximando um pouco mais o rosto ele vai
ler, num desses relances quaisquer, pela curiosidade de saber se o cliente é um doutor
importante ou parlamentar, porque quanto mais ilustres figuras usando o seu táxi, melhor para
a satisfação inútil de fim de noite. Lá só há a legenda estranhíssima, tudo o que você quiser.
Ele deve estranhar. Alex não se importa. Numa cidade onde há a carranca de cristo nos
ameaçando em cartazes ou velhas que se chamaram Saudades e hoje são dominatrix, um
cartão como esse é sintoma de um pouco disso tudo, a promessa de tudo, o erotismo da
imaginação. Mas Alex não poderá responder a um hã, permita-me perguntar, mas que raios
quer dizer com isso, senhor?, ou, se preferirem os sucintos, que porra é esta?, que mais
parece uma estranha proposta sexual, que, para quem tem a devida noção da gravidade da
trajetória dessa estória, sabe que nada impede que venha a ser, enfim, não responderá nada
que possa lhe ser indagado porque já está batendo a porta do carro, está de costas para
adequar-se a como as pessoas interagem, e com jeito do humor negro de quem sempre está
disposto a rir de coisa séria ou de quem, se preciso, inventaria uma catástrofe para isso, sorri.
Foi andando com o rosto fincado no peito, como quem não pode ser percebido por ninguém.
Assim está invisível.
Vivem como vegetais. Falta vida em todas as coisas porque a vida nunca lhes veio e não
se põe vida nelas. É culpa de todos. O retorno à escuridão pode ser uma guilhotina eficiente,
um carrasco que iriam aprender a amar porque nos faz entender que a cabeça rolada não fará
assim tanta falta, é um desses carrascos que não estão fora de nós e de quem precisamos
urgentemente.
Alex foi subindo as escadas até o vestíbulo do hotel luxuoso. Vê os olhares tortos ou
cordiais da gente pedante, ele gosta. Está adorando ser a sombra entre os pedantes. Vá
adiante. É uma desses recepções com uma aconchegante música ambiente, deve haver algum
rapazote sem barba na cara, todo engomadinho a servir um champanhe para quem aguarda
pela reserva que fez com muita antecedência, as cortinas em cetim, a gente importantíssima
engravatada que veio de tantos diferentes lugares com tantas malas para dois, três dias, e
aquele tom de educação comedida que é mais ou menos assim, não te conheço, você não me
conhece, não fui nem um pouco com tua cara, te acho horroroso, nem isso, mas que você tem
cara de bicha, tem, mas, por algum motivo, talvez porque eu não queira que me dê com esta
sineta no nariz, não vou falar essas boas verdades em sua cara e vou ficar aqui tentando
raciocinar os limites entre o que chamam de crítica construtiva e ofensa despropositada. De
repente é o tom que constrói, não o conteúdo. Então tudo o que criamos baseia-se nas
aparências. Há uma atendente gostosa sorrindo de simpatia falsa por uma orelha até outra
quando o vê chegar. Na verdade diz que espere, e não se enerve, ela terá que atender essa
fila de homens e mulheres importantíssimas que começam a se agoniar, porque o hotel hoje
está mesmo agitado. Alex não é uma criança e aprendeu que não se dá crédito a esses daí.
Fura a fila de pessoas que não podem desperdiçar nada do seu tempo com a simplicidade de
quem pediria uma licença, que ele não pediu.
– Senhor – diz a moça esbelta, uma dessas que dá vontade de arruinar com a vida –,
estamos com alguns problemas na nossa agenda, por gentileza, pode esperar na fila? – isso
quando alguns já cochicham, que não são poucos que percebem um cara-de-pau qualquer e
engolem baixinho seus resmungos, e como se sabe não conseguem nem mesmo pôr uma
atendente a funcionar.
Ele abaixa um pouco o óculos e acha isso charmoso. A olha penetrantemente.
– Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança.
– Como? – ela sobressalta o rosto.
– Você me ouviu muito bem – escute, que ele não vai repetir.
– Com licença, e quanto a mim? – se revolta o sujeito de trás.
– Eu já estou providenciando, senhor... – a moça, que parece assustada, responde o cara.
– E então? – Alex está adorando isso.
– Vigésimo sexto andar, senhor – ela sussurra rapidamente.
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– Que horas você larga o serviço? – ele continua.
– Mas por favor, eu estava na frente! – o chato de trás.
Alex vira-se ajeitando o óculos. O olha dos pés a cabeça. Alex é muito mais importante que
você. Deixe-o tratar com a moça que é o melhor que você faz, procure um outro atendente, um
outro hotel, outra vida.
– Eu tenho todo o turno da noite, senhor – ela sua frio, olhando a fila revolta.
– Não tem. Eu quero você no vigésimo sexto. Assim que puder, ache outro pra te substituir.
– Mas senhor, eu... – é interrompida.
– Eu contarei os minutos. E não vou esquecer.
– Eu tenho que...
– Estou esperando.
Ela entreabre a boca que não solta nenhum som.
– Nós também estamos esperando! – brada o homem de trás. – Por gentileza, senhor, faça
o favor de se dirigir ao final.
Ele o olha por longos instantes em que é encarado de volta. Por fim, dá o riso discreto de
quem ri de uma criança. O cara está ali, ficando vermelho, com os vasos de sangue do rosto se
dilatando porque não sabe o que fazer, porque nunca imaginou que petulância assim fosse
possível, e é, e talvez pense em pôr o dedo em riste em sua cara e bradar, você por acaso
sabe com quem está falando?, mas teme que a resposta seja um cuspe bem na boca, ou bem
pior, mais um riso desses, que é de se humilhar alguém, colocá-la inferior aos restos do que
comeu e aos dejetos que dispensou, e Alex entende que o respeito só existe porque não se
tem coragem de quebrá-lo, não porque se precise. Vai dar as costas para ele e para toda a fila
com a tranqüilidade e segurança de quem sabe que o amaldiçoarão, temendo-o, aterrorizados,
antes de dormir, abraçados com seus cônjuges, vulneráveis e inseguros, é que o mundo nunca
esteve tão hostil assim. Alex vai caminhando e todos o olham torto, ele gosta. É um tipo de
celebridade às avessas, que a esposa cochicha com o senhor no sofá, mas não quer mostrar
que está olhando escancaradamente. E em silêncio ele ri de todos. Até do magrela do
elevador que acaba de se fechar, ali enfadado de estar sentado na cadeirinha, que treme os
dedos logo depois de perguntar, o andar, senhor?, e ele o respondeu ajeitando os óculos,
vigésimo sexto. É que ninguém vai a esse andar, ele é mal-assombrado ou alguma coisa muito
parecida, um estripador assassinava virgens nos quartos de lá há meio século atrás, ou teve
um desses incêndios de causa desconhecida, indo um pouco além, vai ver foi um incêndio
causado por combustão humana, dessas que aparecem nos programas de ficção científica, os
demônios do morto ainda perambulam pelos quartos de lá. A gente vai saltando andar por
andar, e ele se enerva cada vez mais com a demora, já é pelo menos a terceira bufa que dá, e
o rapazinho espinhento dos controles não sabe o que vai ser da pele dele, que esse rapaz
bruto da sua frente pode ser o próprio estripador que voltou da morte e por ser noite de lua
cheia veio completar o seu ritual, matar a décima terceira virgem como manda a tradição, na
falta de uma vai o próprio rapazinho, e daqui a pouco vem o plim do vigésimo sexto.
Previamente, porque é muito educado, olha o rapazote e sorri em agradecimento, e ele deve
estar com uma grande diarréia, isso sim, ou outra qualquer coisa que lhe cause o sintoma de
suar frio e sorrir torto do jeito que faz. Aí vem o plim. A porta se abre e há um bobalhão de
jaqueta olhando ridiculamente para cima, deve imitar um segurança ou está com torcicolo, ao
que olha quase a rosnar contra Alex, quando percebe que é neste, no vigésimo sexto, que ele
chegou, e é nele que pretende ficar.
Eles estão se encarando fazem alguns segundos. Era só o que lhe faltava. É aquele seu
conhecido cara-de-bunda.
– A senha, por favor – ele ruge.
– O quê? – franze o cenho.
– A senha – rosna ainda mais.
– Vai à merda – e sorri.
– Senhor, se não me disser a senha, terei de quebrar suas bolas – está trincando os
dentes.
Alex o pega com as duas mãos pelo colarinho e o põe contra a parede.
– Você tá de sacanagem?, deixa de bobagem, seu cara de cu, e vai à merda.
– Desculpa!, desculpa – ele protege o rosto.
– É só o que me faltava – e o larga. – Onde está André?
– Eu não sei – o cara-de-glúteos coça o rosto –, acho que em algum dos quartos.
411
– Você está sendo irônico comigo?
– Larga mão de besteira, Alex.
– Certo. Cadê André?
– Por aí.
– Sei, por aí – e lança um olhar ameaçador que não é muito eficiente.
Por aí, por aí tem muitas coisas, deve ter também um imbecil cuja loucura muito
provavelmente é chamar o elevador ao vinte e seis a todo instante, e assim que a porta se abre
ele vai falar alguma coisa terrível para o mocinho que trabalha lá de dentro, como por exemplo,
sabia que tua mulher está aqui?, você não sabe o que ela tá aprontando, e o rapazinho
engoliria seco consternado, porque não é de se espantar que algo assim possa ocorrer, já que
toda hora que se acende a luminária do vinte e seis, ou que alguém pede para subir até o vinte
e seis, ele percebe o karma ruim que os acompanha, um miasma pesado de mafioso ou gente
mau-caráter, que sorri e diz obrigado, mas transparecem a ruindade de como dissessem,
desgraçado, desejo-lhe câncer. Por aí tem-se esses corredores luxuosos, em portas nas quais
gente de família deveria descansar, assistindo programas domésticos e se preparando para
acordar cedo para um tour pela cidade. Por aí até tem quadros bonitinhos e seu aspecto de
tranqüilidade à meia luz. Ele cola o ouvido numa das portas, o critério que ele usou para
escolhê-la se desconsidera, viu, gostou de sua textura e foi lá. Isso parece ser música indiana,
um cantarolar com cítaras ou coisa assim, mas se o som o confunde, o cheiro de mirra que
escapa pelas frestas o tira a dúvida, e ele estranha, com jeito de quem está longe de esperar
por algo assim, olha para a porta e a soca três vezes. Pelo tempo ninguém deve tê-lo ouvido e
ele fica irritadiço. Aí quando gira a porta ela se abre, e pela rapidez alguém também tentou
abri-la por dentro, e é puxada de uma só vez, a sauna feita de incenso vem toda em sua cara,
porque ali ele é convidado a se juntar a alguma festa hindu ou algo muito parecido com isto,
seja tantra ou, na verdade, nada disso, porque há uma mulher com um colar de penachos
coloridos na sua frente e isso não parece oriental mas deve ser sim algo cherokee, e ela está
nua, e assim que o vê o puxa para dentro com uns gritinhos, ele não lembra de seu rosto mas
sabe, e não há como não saber, que é uma das ocupantes das poltronas do teatro, então vai
trotando para dentro.
O apartamento está inteiramente ocupado por dançarinos que balançam suas barrigas e
ancas sob uma luz azulada que eles trataram de arranjar, ele não se preocupa em digerir a
visão das estatuetas de buda e do pessoal ajoelhado, sem roupa qualquer que não sejam
cocares e brincos extravagantes, máscaras de dragões chineses, os braços erguidos para os
céus orando ao primeiro deus excêntrico de que se lembre o nome, para que agüente a
quantidade de coisas incríveis que estão para acontecer ou agradecendo e implorando um
pouco mais. Um gorducho corre com sua genitália balançando atrás de umas três meninas
novinhas, ele ruge, elas estão começando a entender que hoje não escapam, que não há como
entrar na chuva sem se molhar, é uma pena que a sociedade seja assim tão arriscada. Alex
olha mais de cinco pessoas por cama e não consegue enxergar como aquilo está sendo
realizado, isto é, em que buraco vai cada coisa, como essas pernas estão se cruzando, e se
aquilo que parece ser a barriga de alguém realmente o é, se não é outra coisa, panturrilha ou
nuca na enrolação. A garota que o recebeu e que ele não faz idéia de quem seja o está
deixando mais a vontade, vai tirando a sua roupa e murmurando algo num dialeto que ela
acaba de inventar, até por um truque qualquer do destino algumas palavras se parecerem
muito com a língua que ele entende, e elas significam alguma coisa próxima de estou muito,
muito doidona. Aí passa uma odalisca montada num sujeito que se faz de cavalo. Está dando
coice nos móveis. Alex massageia os seios da mulher, que é o que ela aparentemente quer,
mas pelo que parece ela não sente absolutamente nada, está dando linguadas no ar como se
beijasse ou fizesse algo mais intenso em alguma coisa imaginária, então ele se limita a
perguntar se por um acaso ela saberia dizer onde estaria sua turma, se ela está por aí, mas a
garota não ajuda, deve achar a pergunta muito complicada e cai sobre os próprios braços, a se
esfregar no chão e a imaginar algo que Alex não está preparado para saber. É melhor não
continuar aqui, ele se diz, antes que achem que fui eu.
Sai, e à frente da porta está um cara rastejando e vomitando no carpete, é bem claro que
não consegue enxergar Alex, assim que o vê força os olhos e toma um desses sustos,
tremendo, desses que nos fazem agir feito bichos e nos debatermos para os lados sem
especificar direção alguma, até que é interrompido mais uma vez porque algo está subindo-lhe
pela boca, ele vai tapá-la com a mão. Vem, vem, e não demora. Torna a vomitar uma
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quantidade torrencial de alguma coisa. É claro que Alex vai perguntar, ao que tampa o nariz e
olha para o lado, se ele não poderia fazer isso na droga da privada, não no meio do corredor,
mas não é impossível que o sujeito o responda que a arrancaram, por isso está ali. Vomitasse
pela janela, então, que seria ao menos engraçado, ao que ele responde que já o fez. Então
tudo bem. Ele não poderia dizer onde estão seus camaradas mesmo se soubesse, e não será
mesmo um trabalho muito desgastante o de investigar. Quase o acertam com um vaso, não
sanitário, pelo amor de deus, quando tenta entrar num quarto todo escuro, com isso atrapalha
uma sessão de cinema, a julgar que a única coisa ligada é a grande televisão passando umas
imagens de cadáveres que andam e farejam os vivos para comê-los e continuarem, assim,
mortos, mortos-vivo, é uma trama um pouco engraçada, mortos que se esforçam para não
largar da sua condição, porém é uma trama sinistra se ele pára e observa, coisa que não está
exatamente disposto a fazer, à medida que desconfia que não o estejam recebendo bem,
porque ainda está andando pelos corredores de calça e cueca e ainda não se pintou de
excrementos, como alguns já fizeram. Talvez não dê para esse pessoal parar. E ao pensar
nisso pondera se não devia estar arrependido, sorrindo conclui ser muito o oposto. O processo
do hotel é como incitar uma manada ao estouro, deixar que façam o que quiserem, na manhã
seguinte restará apenas o silêncio dos coniventes. É um modo de sociabilizar. De inspirar. No
teatro nunca desconfiariam que eles existem, que a intenção que eles portam existe, salvo por
episódios isolados que só significariam algo para uma astúcia das mais desenvolvidas, dessas
percepções que não deixam escapar nada. São precisos uns eventos como o do grupo de
gente que aparentemente não tem nada em comum e não reivindica a coisa alguma fazer um
dos seus saltar de uma plataforma do metrô à outra, é claro que com o trem passando no
mesmo instante, que o contrário seria tranqüilo demais, colher de sopa, coisa que não apetece
ao choque. Ou o caso dos cartazes postos por aí, ruas e mais ruas afora, que não fariam
sentido algum a não ser para um punhado de mentes bem dispostas às suas doenças. É um
modo ousado de dizer que podem fazer tudo, onde quer que seja, seja porque podem comprar
ou tomar, o que importa é que podem conseguir. Destroem o que tocam para mostrar, para
revelar, também porque destruição é transformar, e quem repugná-los em segredo os estará
admirando, não exatamente diretamente a eles, que não se sabe sequer que eles são esses,
mas essa loucura que as coisas pequenas passaram a transpirar, como lembrar-se de uma
noite num hotel e entender que coisas incrivelmente insólitas, ainda que ninguém possa dizer
exatamente quais, nem mesmo aqueles que estiveram entre as tais, aconteceram num certo
vigésimo sexto andar, e que na manhã seguinte tudo sumiu como se fugisse do sol, e estórias
sobre vampiros serão contadas, vampiros ou uma seita profundíssimamente secreta cujos
membros vão à recepção dizer que deixai, ó vós que entrais, a toda esperança, e seguem a
angustiar a todos que passem pelo andar que os pertence.
Alex marcha triunfantemente e destila um orgulho altivo que até para si mesmo é bem
nojento. O quarto do pessoal do carteado não é de se espantar que esteja tomado de jogatina,
as camas viraram mesas e todos os círculos fedem a fumo, há gente jogando no chão e gente
quebrando o frigobar. Eles vão erguendo o braço quando ele entra, outro arrota na sua direção,
em retribuição ele mostra o dedo-do-meio, ainda assim todos sorriem, que nunca estiveram tão
próximos e não se vê do lado de fora camaradagem como essa. Lá está León e a sua cara
enrugada, fumando um charuto que não deve mais ser fabricado, deve ter guardado por uns
trinta anos a uma coisa feito essa, só esperando por uma ocasião especial, e quando se é
velho nunca se sabe se amanhã viveremos para a próxima que eventualmente nos venha, eis
aqui um velho que soube encaminhar bem a sua sorte, ainda que fite com uma morbidez
tristonha através da janela, debruçado no parapeito e olhando para a noite, que retribui sua
atenção com uma nuvem de fumaça e luzes fracas das janelas de prédios de onde ninguém
olha. Já que o mundo não o acena, Alex deve se compadecer e não deixá-lo olhando o infinito
em vão, isto também é função da sociedade, então vai falar.
– Como vai, almirante? – tapeando as costas.
– Você, Alex – e o segura pela cabeça –, é um bom sujeito.
– Obrigado – rindo –, você já está um pouco bêbado.
– É, estou.
– É, você está.
– É o mínimo que ainda me resta poder fazer, me destruir como bem entender.
– Mas sentiríamos a sua falta – a morte já deve estar mesmo se aproximando.
– Ainda não fui enterrado, haverá tempo pra sentirem muito mais.
413
– Está indo muito bem, almirante, muito bem.
– Você sabe que vocês são geniais, não é?
Vocês. Ele odeia ter autorias contestadas. É melhor não perguntar o que ele quer dizer.
– Não precisa exagerar – precisa de cigarro, vai metendo as mãos no bolso.
– Poucas vezes estive contente assim. Pode ser que não dure por muito tempo, mas é o
bastante para que eu deixe a vida com chave-de-ouro.
– Cacete! – grita alguém próximo. – Acabo de perder meu carro.
– Acabo de ganhar um.
– Vai durar o suficiente para todos nós – envolvendo o cigarro na mãozinha e acendendo.
– Eu fico pensando – continua León, o queixo assim erguido, coisa de velho nostálgico – se
outras pessoas já não tiveram esse entendimento da liberdade, essa coisa – e está com uma
expressão engraçadíssima de quem procura um adjetivo dos melhores.
– Sei, entendi – Alex sorri.
– E está ao nosso alcance o tempo todo. É tão rápido de se conseguir que me enoja ver
que quase ninguém o faz.
– Somos espertos porque enxergamos o óbvio, almirante.
– Somos espertos, meu rapaz, porque nunca conseguirão nos cegar o suficiente.
– Todo mundo aposta a mulher – a voz próxima.
– Me diga ao menos uma serventia da sua para que eu me convença.
– Aquilo que a tua não faz, a minha faz muito bem.
– Não me importa, eu só quero que lave minhas cuecas.
– Algum de vocês viu o pessoal?, André? – Alex.
– Oi? – um fecha as cartas na mão e se ajoelha fora da cama.
– Se algum de vocês viu André por aí.
– Acho que na sala das orgias.
– Existe uma sala para orgias? – e ri.
– Existe uma que é só pra isso – respondem.
– Eu o vi na sala das bebidas – outro.
– Também tem uma só pra isso? – Alex.
– A maioria das garotas fica por lá, bebericando antes de acontecer algo pior.
– Entendi, eu vou procurar – e faz que vai saindo.
– É André mesmo quem você quer achar – um dá um risinho –, não seria Júlia?
Alex pára e se vira.
– O que você disse?
– É que – ele continua com o risinho –, Júlia não está mais com a gente, certo?, se o que
você quer é vê-la, é melhor aproveitar que ela deve estar sozinha em casa, e ir lá, bem, é.
Alex aponta o dedo na direção desse rapaz e todos vacilam.
– Se eu fosse você, eu me preocuparia em parar de falar merda – rosna.
– Não é por mal – o sujeito empalidece.
Alex dá as costas, bufando.
– Mas é o óbvio – o sujeito fala.
Alex vira-se de uma só vez e salta para esganar o desgraçado, que antes de vê-lo voando
a cair contra seu pescoço ainda atrevia-se a ensaiar mais um de seus risos, mas então se
esbugalha todo, isto é, agora ele entenderá que um aviso é mais que suficiente, que não se
deve esperar mais tanta boa-vontade, principalmente em assuntos cujo pavio é curto, e ele
jogou com um monstro que não se deixa perder, não é como apostar nas cartas o carro e a
mulher, onde ainda resta a esperança de poder lucrar. Alex o acerta com uma joelhada na
barriga, não é que ele brigue bem, não há nada de técnica aqui ou qualquer coisa que se
aproxime disso, apenas as unhas cravadas na jugular e o peso da fúria que ele consegue se
pôr a seu favor, é assim que vai bater a cabeça dele contra o carpete, não haverá dificuldades,
todos abrem o espaço para que consiga.
– Pára!, pára! – o atacado lhe põe a mão no rosto para se livrar.
– Pára o cacete, ri agora – ele baba.
– Eu só estava... – reluta, e é interrompido.
– Eu não quero nem saber o que você estava.
– Alex – León vem agarrar-lhe por trás e tirar-lhe –, ele só está bêbado, ignora, ignora,
rapaz. Deixa, que isso não merece esforço.

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– Eu não quero ignorar nada, eu não vou engolir calado, é só isso, pra tudo há uma
conseqüência, eu sou a conseqüência – está com os braços presos e vai se erguendo.
– Você é um merda, rapaz, hein? – o desgraçado já livre põe a mão sobre a cabeça ferida.
– Não fui eu que perdi minha mulher.
– Moralista! – urra, essa acusação é gravíssima.
– Você quer brigar de verdade? – enrijece o punho.
– Sério, isso não faz sentido, é melhor se acalmarem – diz um outro deles.
– É, seu imbecil – e León aponta para o polêmico –, cala essa sua boca, senão é comigo
que você vai se ver.
– Eu vou embora daqui – Alex olha para os cantos.
– É, meu camarada, bem sábio, e ouça o que eu digo, que quebrar narizes cansa.
Foi achar André numa penthouse bem escura, com ares de mistério e um cheiro pesado,
que a respiração de gente como eles exala muitas doenças, e meio de tabaco. Estão lúcidos,
que sorte, ou é o que parece, não há poças do vômito de ninguém escorrendo por sofás ou
gente ajoelhada que não consegue se erguer, o que o prova que também há uma graça remota
na sobriedade, vai lá, sobriedade também é muito, então que se diga que pelo menos há
alguma graça na lucidez. Estão ali cercando aquela mesa de granizo escuro, que eles são uma
távola redonda, são todos iguais, e é sempre bom ter muito cuidado ao se precaver que da
inocente igualdade não pode saltar um rei. Os cinzeiros estão cheios e vêm mais garrafas aí,
parece ser vinho e uísque, coisa elegante, que o segredo na manutenção da qualidade do
prazer é sua variedade, o céu é o limite, enquanto abaixo dele tudo se pode, não apenas a
ressaca de uma cerveja, mas a delícia de um bolinho de bacalhau e as sensações diferentes
que a dor nos dá. André está lá, risonho, e ajeita a gola da jaqueta. Aí vai enchendo os copos
dos outros camaradas, entenda-se por isso aqueles que se conhecem melhor, como Stern,
Habib, Bublitz, esses tais. E há uns movimentos sobre a cama, está escuro, não enxerga e não
leva muito em conta. Chegou quem faltava, vem dizendo Bublitz, todo sorridente como se o
dissesse que, meu caro, você perdeu o início da festa, já estou no pique há um tempão, junte-
se a mim. E vem dar uma de mordomo, ou se passar de cabide, porque lhe tira o casaco com
uma gentileza desconfiável, tanto que Alex espera que lhe venha um ovo pelas costas ou
algum truque do mais infantil, que toda gentileza precisa de um equilíbrio brutal para não se
pensar mal do gentil, eis a ética que os rege. Habib está ali o olhando de um jeito indócil. Como
se perguntasse se ele fez o dever de casa. Alex é a criança astuta que sorri de volta, dá a
entender que é cheia de tramóias e responde nas entrelinhas de um olhar que pois é, está em
andamento, mas o que ele quer é desconversar, ou fingir que não entendeu o que lhe foi
pedido. Senta-se e o estão servindo. Está para ser uma noite daquelas.
– Quem é aquele babaca, um sujeito de cabelo meio grisalho e com cara de idiota que está
sempre na jogatina? – pergunta.
– Qual o problema? – Habib termina de transbordar-lhe o copo.
– Um que eu vou resolver depois.
– Você tinha de ver – vem Bublitz – a cara dos atendentes quando eu falei, deixai, ó vos
que entrais, nossa, ficaram loucos, eu pude ver eles prendendo a respiração, até me senti um
pouco culpado, mas ainda dei uma boa de uma risadinha. O que vão achar, hein?, já
pensaram?
– Eles não são pagos para isso – Habib –, o silêncio tem um preço.
– Só não se pode enterrar a curiosidade – Alex.
– Mas essa é a última coisa que queremos fazer.
– E quem foi que fez o cara-de-bunda ficar na porta do elevador pedindo uma senha? –
Alex derrama o uísque pelo canto da boca –, é a loucura dele fazer papel de idiota?
– O turno dele já deve mudar – André.
– Turno – franze o cenho com jeito de pergunta.
– É, ele reconhece quem pertence à sociedade.
– Não existe isso de senha, eu o mandei à merda.
– Geralmente ele reconhece a gente por aqueles que o tratam mais ou menos assim.
– Não sei, parece ridículo, mas até que tudo isso ficou bom, está terrível – e vai
esgueirando o olhar em torno.
A porta do que deve ser o banheiro se abre, ou vai ver é sauna pelo bafo quente que
transborda, e lá vem um gordo de roupão. É Bonaparte.
– O-o-olá, Alex, p-pensei q-que f-f-faaa... – emperrou, é uma droga quando isso acontece.
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– Que eu faltaria?
– É.
– Como? – e sorri, como se fosse coisa impossível.
É que é por ele que estão aí. Deve ser. Bonaparte vê a cama remexer-se e se empolga.
– Q-quem é que e-e-está ali? – já que Sylvia não está mais entre eles.
– Tony e Tomas – André responde.
– Com quem? – Alex pergunta.
– Sozinhos.
– Como é? – e então entende. – Que nojo. São irmãos.
André ri, – Isso não os impede de praticamente nada.
Mais um copo, – É bom não saber o que vou encontrar.
– Não é pra isso que qualquer um vem? – André.
– Como se você precisasse questionar as minhas causas, como se não as conhecesse.
– Não precisa ser rude, apenas perguntei.
– Não só perguntou, foi uma inquisição – e mais um longo gole, regurgita a cara azeda.
– Não, não foi – e André meiosorri. – Que foi, está bravo com o quê?
– Bravo por quê?
– Está com ciúmes? – Habib.
– De quê?, dos gêmeos? – e aponta a cama e ri.
– Não. De André.
– Por que eu estaria com ciúmes de André?
– Porque ele foi o responsável por juntar todos aqui.
– Eu não ia entrar numa disputa mesquinha como essa, de quem fez o quê – ofende-se.
– Continua ainda sendo uma pergunta – Habib fuma.
– Porra, é óbvio que não estou com ciúme. E ainda tenho que responder.
– Ele está nervoso, hoje – Bublitz. – E aí?, quer alguma coisa pra relaxar?
– Vendo os dois ali na cama, não quero imaginar o que isso significa – Habib.
– Vai à merda, seu careca escroto.
– Espero que André não esteja pensando – Alex ainda vai continuar – uma imbecilidade
feito essa.
– Não, não estou – mas não é muito convincente.
– Esquece, Alex, o assunto já acabou, vê lá, relaxa – Bublitz.
– Que há?, não sou eu que estou bravo, vocês que encarnaram na minha figura, me
deixem um pouco em paz.
– Viu só?, hoje ele está diferente – Bublitz.
– Desisto – e estala as patas na mesa.
E vai beber, vai fumar até encher três vezes um cinzeiro que era virgem, que como se vê
para tudo há uma primeira vez, não há intocabilidade, nada é invulnerável, a partir desse
princípio ele se esforça para agilizar o futuro, já que é nesse que se encontra a realização de
tudo o que se é pensado no agora, lá estão todos absurdos que nos passam pela cabeça via
fetiches da criatividade, é a linha do horizonte onde se tornam verdade, para lá ele ruma. E
cada gole será como um gotão d’água caindo num chão duro, um plamc estrondoso que, à
parte de onomatopéias, aos poucos o vai amortecendo, e a verdade vai se tornar muito
próxima de ser atingida quando se reconhecer que ela é um sonho mal sonhado, desses que
se têm acordando a todos os instantes por conta de um forte mal-estar, isto é, a realidade é
vista nos momentos em que falha a nossa sonolência. E ele sabe como provocá-las,
sonolência e realidade. Não há muito mistério na lucidez absoluta nem em uma inconsciência
que sempre dure, o segredo também não estaria no meio-termo, como lhe dirão os inúmeros
monges budistas que lhe aparecem na cabeça. A sensação definitiva e verdadeira é a de
oscilar, de cair, voltando às coisas dos sonhos, como se estivesse num daqueles em que se cai
infinitamente e se sabe que acordará entrando no próprio corpo, é no movimento que reside
algum sentido, no movimento sem rumo algum, porque rumo alcançado é estabilidade e
paralisia, e a ida é violência, é caos, é vida, é a certeza de que realmente existe, a sensação
de que não está estagnado e que não conheceu a tudo que pode sentir, o sentimento de que
pode sempre experimentar. Ele começa a entender o sentido de cada dínamo que o rege, os
dedos engraxados e cortados das roldanas do destino etc, quando está ali, diante do caos,
retornando à escuridão, descobrindo um animal, e se vê num quarto onde muita gente dança e
rodopia, e vê como pulam de móveis, e caem uns sobre os outros, e rugem ou imitam
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serpentes, choram enquanto riem, e entende estar encaminhando rumo à sociedade perfeita.
Então, o ritual da comunhão. Aquela coisa com a gente ajoelhada e a boca aberta. Alex não
dispensa a garrafa de vodca que ele não sabe mais onde arranjou.
Há mulheres nuas que o abraçam. Elas ronronam, asquerosas, como se quisessem algo. E
ele ri, porque entende, elas querem extrair qualquer coisa dele, e se perdem sem saber o que
fazer.
Toma os alucinógenos, quer ver o cenário defronte virar areia e ser espanado, descobrirá
que por trás dele não há mais nada, ou o verá traduzido em código de barras, em letras de
computador que se encerrará num game over ou, não havendo mais nada que se imponha de
ser visto, talvez ele possa finalmente sonhar acordado, sonhando para fora ele será o mundo
que bem entender, os coadjuvantes terão partido, restará somente o que importa. Mas ele sabe
que está em sintonia com aquela dança, e não controla mais os seus passos, tem a certeza
incrível de que há realmente um padre, de batina e tudo, doutrinando ferozmente a gente em
meio ao grande bacanal, que é de gente tocando música, plantando piruetas, chorando até
vomitar, drogando-se até acreditar que existe realmente uma coisa diferente de se olhar, que
há como se fugir do tédio, que há como fugir de si, não, não é isso exatamente o que querem,
ainda que um ou outro entre tantos possa querê-lo. Mas acontece que fugindo do que se
conhece você acaba por se resgatar. A novidade e a crise é que te relevam. Ele jura que não
sabe como estava em uma sala e foi parar em outra. Ou é ele que não entende mais a lógica
de andar ou é tudo que se transformou. Alguém que não está muito claro na sua cabeça,
permeada por imagens de monges, fadas, corrupções e impunidades que o inferno invejaria, o
disse certa vez que todos somos os quebra-cabeças uns dos outros, e agora ele consegue
sentir por consciência que transcende a razão como isso é realmente possível, ou, espera.
Talvez não tenha sido alguém que o disse isso, mas ele mesmo, isso comprova a sua tese.
Tudo o que sai da boca dos outros poderia sair da sua. E de certa forma o é. O que sai da boca
dos outros pode ter vindo de uma idéia da sua cabeça. Quando ele começa a se dar conta
disso, inicialmente porque argumenta consigo mesmo se não estaria com inveja de André,
ciúmes de liderança, ciúmes do talento dele, que quer convencer-se que também existem
dentro de si mesmo, ciúmes de Júlia, ciúmes do que quer que seja, que especificar não importa
nesses instantes, ele acaba se perguntando se ora, se tudo dos outros também é meu, talvez
esteja bem perto de encontrar um nome para o outro, que também é peça de seu quebra-
cabeça, o nome que lhe caia bem pode ser na verdade seu próprio nome, seu nome secreto e
individual, seu batismo no fundo da alma. Sente-se perto de conhecê-lo, mas não é a hora, que
pensar em um rumo te faz esquecer da desordem, e esquecê-la te faz com que se perca.
Está num sofá, ou está se convencendo que sim, há pouco teve a impressão de que o
mundo estava de cabeça para baixo, finalmente reconhecera sua forma mais sincera e se
convertera. Alex estava de cabeça para baixo porque o planeta todo estaria afundando depois
de encalhar. E há peitos na sua cara. Ele os fica encarando para se convencer que são
verdade. Peitos existem na verdade, é o que lhe basta. Pisca os olhos e lá está a cara de Júlia.
Pisca os olhos e está a cara de uma estranha. Sempre resta consciência para sorrir de si para
si e se dizer, é, dessa vez eu enlouqueço. Me pega de jeito, me pega, a mulher não pára de
sussurrar, mas ele não está certo que é chamando por ele, ela se enrosca nos braços da
poltrona que é uma beleza. São duas. A outra chegou no seu colo há pouco. Veio rastejando e
ele desconfia que o seu propósito é alcançar não a ele, mas a outra fêmea. Ele desconfia que
ninguém mais enxerga nada. Ou o estão desprezando de um jeito bem cruel. O mundo é uma
sincronia perfeita de vultos, em cada quarto haverá uma sinfonia, uma salsa ou uma flauta
cantarolando para lhe definir os passos, que não são mais motivados por seus pés, mas
continua indo, indo e indo e se transporta de um lugar ao outro, assim, como se não soubesse
porquê, deve ser finalmente a sua verdadeira vontade que ordena, nada que o intelecto há de
compreender. De repente acorda vendo um filme mudo, preto-e-branco.
Está babando, olha aos lados, e há caras pálidas no escuro, todas salivando sobre as
próprias roupas, hipnotizadas, olham a tevê e escutam o tum-tum dos próprios corações. Se
desespera completamente, um qualquer ali segura uma garrafa de uísque, ele a toma das
mãos e engole. Agora está pronto para se entregar de novo. Quer sentir a pior de todas as
dores-de-cabeça, quer ver as próprias entranhas numa ilusão em que ele seja o próprio
parasita. Quer pensar nas pessoas com rostos trocados, e são tantos na sociedade, são tantos
no retorno à escuridão, que já não será assim difícil. O retorno à escuridão iguala a gente. O

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retorno à escuridão entende que toda diferença se iguala na loucura. O retorno à escuridão
descobriu o que faz o homem gente.
Agora sente que está derretendo.
Vai acordar e ter a certeza de que está preso do lado de dentro da tela de um quadro.
Alguém borrou a tela, isso é o que ele é. Dá um grito desesperador e acorda de um sonho
sufocante. Acorda e está no chão. Se não o pisoteiam ele teve sorte, mas imaginar já lhe basta
para que sinta dores, acorda e está no chão, e seu pênis está na boca de uma qualquer, ainda
lhe resta alguma sobriedade sexual para tentar fazer valer sua preferência, teme que seja um
homem, ufa, é realmente uma mulher. Não importaria nem um pouco que não fosse. E aí está
num sonho que se repete muitas vezes, ele está no centro de uma espiral que não pára de
rodar, um carrossel com uma música infantil irritante, um beijo com cheiro de cigarro, beijo num
sofá de sala, rostos dos quais se recorda mas estão ocos porque não representam nada. Então
o seu eu o abandona e ele passa a ser um com todas as coisas, tudo o entende e ele entende
a qualquer coisa, porque ele as é, na verdade não há nada, o retorno à escuridão o retorna a
seu lugar de origem e o comunica que aqui estará seguro, porque não há nada a temer. E por
um instante do qual já se esqueceu esteve livre e esteve em paz. Aí vêm as conversas e o fato
de que somente desmaiara. Aí tem um grande mau presságio, um pesadelo que quer vir, mas
acaba tendo forças para evitar.
Pac-pac, algo pipoca, com esse barulho ele vem a tona. Deve de ser o som de uma
goteira. Ou alguém pondo meias para cozinhar no microondas. Um cachorro passa correndo e
a multidão vai atrás, o coitado late de desespero. O lustre já era. Está numa cama cheia de
homens e mulheres enroscados, todos desmaiados. Ele está com as roupas, que sorte. Não há
fumo ou garrafas de bebida por perto, tudo espalhado ao chão já foi usado. Um sujeito
sangrando entra no quarto e pergunta se já acabaram, ele está realmente sangrando, deve
estar cortado no peito, pergunte se ele está bem, rapaz, mas a voz não sai, é um desses
fetichistas mais violentos, e ele se vai. Alex começa a ter medo, estar ali parece realmente
ruim, vão lhe fazer alguma coisa odiosa, vão mutilá-lo, arrancar-lhe um braço, o pênis, por
curiosidade, como fariam à pata de um inseto. Mas o corpo não o obedece para que se levante
e se vá, e os olhos o traem, os sonhos do mundo da vigília retornam. Meu cérebro está me
abandonando, pensa, ou estarei preso nele para sempre, como se não fosse assim que se
entendesse por gente, assim que tivesse desde sempre sido, e uma sereia começa a tirar a
calcinha. Está afogando-se, acorda urrando e se debate, a água fria do chuveiro jorra contra a
cabeça.
E o rosto de Stern ao lado. Estou seguro, pensa, ele está me dando um banho, está
tratando da minha inconsciência, tudo bem, agora vou acordar e ficar seguro, mas ele não está
te dando um banho, está ele mesmo tomando um, cuidando dele mesmo, e se você está aí é
por conta própria, e começa a enlouquecer. Em que quarto estou?, pergunta, não é algo que
faça mesmo diferença, e Stern não saberá te responder. Roma não foi construída em um só
dia, não, não é esse o ditado, se todos os caminhos levam a ela, todos os quartos também são
o mesmo, coisa assim etc, tudo serve para o mesmo fim.
– Eu tive um mau presságio – murmura, põe a testa sobre o azulejo.
– Um mau presságio sobre o quê? – Stern vomita no ralo.
– O que estão fazendo aí dentro? – uma voz feminina, deve ser a da liberdade.
– Tendo maus presságios – Stern grita de volta.
– Não se pode definir, é uma dessas coisas que vêm, é como você perguntar o que uma
pessoa sentiu ao levar um susto – pausa. – Não se explica, é apenas o susto, apenas aquela
coisa, aquele momento, é apenas o susto.
– Não vamos agüentar muito tempo assim.
– Eu queria um café. Um café, e desaparecer.
– Oi – chega Bublitz e põe a cabeça debaixo do chuveiro.
– Estamos congregando, e isto é excelente – Stern.
– Oi, Bublitz.
– Preciso confessar uma coisa a vocês – Bublitz.
– Diga lá.
– Nunca estive tão triste em toda minha farta existência – e chora.
– Farta existência, era o que me faltava – e Stern vomita de novo.
– Nunca estive tão desiludido, as coisas são tão frágeis – e chora, chora, chora.

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– O que vocês estão fazendo aí?, eu quero usar o banheiro e fico com vergonha – a
alucinação da voz feminina.
– Vocês estão ouvindo isso?, sempre que eu pisco meus olhos acordo num lugar diferente,
e vou até eles por conta própria. Estou apavorado.
– Ai, que dor de barriga – a voz da mulher cedeu, a acompanha o som de coisas
borbulhando no vaso.
– Mas que nojeira – Stern berra. – Mas que grande falta de resp – e antes que termine de
falar vomita.
– Meu deus, o que eu fiz? – e Alex grita puxando os cabelos.
– O que você fez? – Bublitz.
– Não poderemos voltar ao normal nunca mais, nunca mais, isso já está entranhado em
nós, essa loucura, eu não achei que fosse assim, tão desgraçado, eu não sabia que era assim.
– Você tá engraçado – e ri.
– A liberdade é um beco sem saída – e vai chorando, e desliza pelo azulejo e se mistura
com o vômito de Stern. Nunca esteve tão deprimido quanto agora.
– Ai, ai, minha barriga – pode ver os relances da mulher no vaso se contorcendo.
E isso não é coisa que alguém devesse ter de enxergar nem uma vez, nunca. O que foi
que ele fez?, o que foi que eu fiz?, chora feito criança, se encolhe e apóia a cabeça no peito,
começam a entrar desconhecidos no chuveiro e ele continua a chorar, vomitam sobre ele e o
ignoram, e ele ignora. Ele chora todas as lágrimas que quando criança não pôde chorar, as
lágrimas não são as lágrimas de quem acha que está fazendo tudo errado, mas de
reconhecimento que não existe coisa certa, e isso o deixa profundamente desolado. Andriolli
acaba de entrar, e o olhou, e sorri. Ao menos ele tem amigos, amigos que não adiantam para
nada, que tudo o que ele precisa é de uma resposta ou pergunta interessante, e é exatamente
tudo que nunca poderia ter, ele passa a querer ser feliz, e isso passa novamente a ser tudo
que não pode alcançar.
– Eu quero morrer – esperneia.
– Deixa de bobagem – diz Andriolli, tirando o calção e se lavando da lama. De onde, pelo
amor de tudo que é mais sagrado, surgiu esta lama? – Ninguém quer morrer, isso não é
biológico.
– E os suicidas? – engole baba e pergunta.
– Na verdade são suicidados – diz o gordo, e gargalha.
– Mas eu quero, eu quero morrer.
– Você quer um abraço? – pergunta Bublitz, que cai de bunda ao seu lado.
– Eu quero um tiro, por favor – e arranha com força o peito.
– Ai, que conversa mais estranha – a menina ali na latrina.
– Eu tive um mau presságio, um mau presságio daqueles.
– Daqueles como? – pergunta Andriolli, e sapateia.
– Desses que me fazem ter medo de continuar vivo.
– Você, meu amigo, que eu conheço há tantos anos – e está rindo –, é um doente.
– Obrigado, isso ajudou bastante.
– Stern está desmaiado no chão faz cinco minutos – Bublitz.
– Só estou me sentindo arrependido – responde o aparente cadáver.
– Arrependido do quê?
– De ter entrado na sociedade.
– Eu também, eu também – Alex.
– Talvez ninguém esteja pronto para deixar tudo assim, hein? – Stern. – Talvez não dê
mais pra gente se agüentar assim.
Alguns segundos de silêncio, a água rolando pelo chuveiro.
– Ai, que papo estranho – sussurra a voz da latrina.
– Mas que besteira estamos falando – Alex suspira e ri.
– É mesmo – Stern começa a gargalhar.
– Você ainda quer morrer? – Andriolli. – Posso pular em cima de você.
– Quero, mas agora morrerei rindo, não será com um gordo caindo sobre mim.
– Vocês viram que Martin chegou aí? – Bublitz.
– Não, faz anos que eu não enxergo nada – Alex debruça a cabeça no chão –, só sonhos
com mulheres bêbadas, lustres quebrados, microondas e um cara-de-bunda na portaria.
– Mas que merda você tá falando?
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– Uma vez sonhei que estava perdido nos meus sonhos, isso pode realmente acontecer.
– Então, Martin veio com Carina, acho que ele finalmente a comeu.
– Isso não importa nem um pouco, isso realmente não importa mais nada.
– Tem de haver alguma coisa que ainda venha a importar, que nos choque, não é possível
que tudo seja permitido por nós mesmos, a estranheza faz parte, tem de haver estranheza,
estranheza é reação.
– Eles brigam, mas sempre voltam a ser amigos.
– A amizade não importa mais nada.
Alex não mais sabe se é ele quem fala ou os outros.
– Alguma coisa ainda tem que importar.
– Por quê?, por que tem?, você está tão carente assim?
– Por que senão estaríamos mortos, não entende?
– Não, eu não entendo – risadas.
– Nem eu, explica aí.
– Porque não saberíamos distinguir se existimos ou não, porque não haveria mais do que
se libertar.
Então, como se fosse marujo tragado ao alto-mar e finalmente chamado de volta à
superfície, isso o ilumina de maneira tal que vai, assim, aos poucos, acordando, e entendendo
que traz de volta das profundezas lamacentas muito mais do que podia supor, não pode se
arrepender de uma coisa dessas, de se descobrir muito mais do que poderia imaginar. Deve ter
pego no sono por alguns milênios, mas quando acorda o banheiro é o mesmo e todos seus
camaradas estão amontoados pelos cantos que o receberam melhor, e ali está André e uma
abençoada garrafa de vodca apoiada na pia, que o espera enquanto ele termina de escovar os
dentes.
– Por que raios você está fazendo isso? – Alex pergunta.
– Por que você está no chão com Bublitz em cima de você? – cospe no espelho.
– Perguntei primeiro.
– Por causa do meu hálito – e meiosorri um riso amarelo.
– E eu, meu problema é mais sério, estou começando a acordar agora.
– É, é melhor tomar um banho. Que horas são?
Toca o bolso e percebe que não encontra o relógio que sempre carrega.
– Perdi meu relógio – e sorri tristemente. – Era um presente da minha mãe.
– Sua mãe?, você nunca falou sobre ela.
– Eu não precisava falar, eu tinha o relógio. Agora o roubaram, ou o quebraram.
– Talvez você encontre, era um relógio incomum, eu me lembro. Alguém vai tê-lo visto.
– Não adianta mais, já o violaram, que ódio, já não pertence mais a mim.
– Então roube de alguém, se vingue, faça o mesmo.
– É o que farei, e vou tomar as roupas, também. Devem fazer dias que estamos nesse
lugar, não é?
– É, eu acho que sim – e cambaleia.
– Talvez já tenhamos morrido e esse seja o nosso inferno, ficaremos aqui pela eternidade.
– A festa lá fora continua, só tem mais gente desacordando, só isso.
– Eu não agüento mais, acho que chegamos ao fundo, acho que, agora, não há volta.
É quando a porta se abre e entra aquele corpão suntuoso, inicialmente é um vulto
catastrófico, uma montanha toda negra que veio confirmar sua superstição, até depois adquirir
traços mais consistentes e significarem que é Martin. Ele não entrou na discussão, se é que
esta é uma, em um momento mais propício. Primeiro ele sorri, um sorriso que cumprimenta, diz
olá. É um sorriso que estranha o estado de todos ali, e é uma ofensa que possa haver alguém
sóbrio, devia haver uma lei da sociedade que proibisse isso numa situação tão especial. Mas
ele não sorri tão claramente assim, porque pelo jeito que abaixa a cabeça, assim, feito cão
manso, esconde uma preocupação que não quer insinuar com todas as letras, mas a farsa
acaba escondendo-a tão bem que só o falta gritar, fiz alguma grande merda. Então ele acena
de concordância e derrota para os camaradas derrubados, feito como quem diz que, é... é a
vida, e se eu estou aqui com vocês, precisando chamá-los, não quererei mesmo pensar que
vida é essa.
Ele se apóia na parede e começa a tremer. Agora deforma o rosto como se visse um
fantasma, e sua frio. Alex dá uma risadinha, a princípio tudo que assusta é também muito
engraçado. Ele o olha secamente com cara de, pare com isso já, e Alex não acha mais graça
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porque os sustos também dão medo. André o recebe com estranheza, Andriolli decerto está
em coma, mas isso não é tão importante, e Stern e Bublitz estão rastejando para fora do boxe.
– Vocês precisam ver algo – é o que Martin diz.
– O que aconteceu? – André fala gravemente como um ronco.
– Eu não sei o que fazer – abaixa a cabeça.
– Como assim?, o que há?
– Vocês precisam ver – e os olhos se enchem d’água.
Pronto. Alex se ergue. O fita lá na íris e reconhece a vinda do espírito que habita em todos
presságios, dos que fazem os ciganos ou encontram-se nos apocalipses, é este espírito que
tem o talento de visitá-lo, veio novamente e o disse, veja só, meu desafortunado predileto,
pressinta que alguma desgraça há de acontecer, isso não é assim tão ruim, sábio é quem
reconhece nos infortúnios as dádivas que tanto nos escapam, não te cabe lamentar, o que
você andou me pedindo foi algo para se chocar, eu te dei. E já basta o rosto defronte para que
se choque. Parece totalmente despido e só haver o medo. E o medo soa sempre ser coisa
ruim, também sempre contagia. A coisa íntima por trás da carne de cada um é um pavor
contagiante. Muitas coisas foram ditas no silêncio, assim foi feito um minuto de luto em
homenagem a um morto que ele ainda não sabe existir. Vão sair do banheiro como uma
procissão secreta, o chão do lado de fora é um oceano de corpos que se mexem, imploram por
ajuda, sorriem para o teto, copulam, esbravejam, espumam de convulsão e desacordam. No
corredor há um sujeito fantasiando ser uma planta, ele não importa. Então chegam ao quarto
escuro.
Bublitz, que é o último a entrar, fecha a porta, uma sombra sepulcral congestiona-os a
passagem ou veio carregada junto a eles, estão confinados para sempre como num nó que se
deu com as próprias mãos sem saber que se o fazia. Habib está ali adiante roendo as unhas, o
jeito de quem não faz muito mais que isso revela que os espera, tremendo de um jeito singelo,
como treme a gente fria, com uma elegância astuta e demoníaca, mas que não deixa de
relevar que está sendo infantil, e que ser fraco não é algo que se possa evitar assim. Podia ser
alguma coisa com Habib, o problema e tudo mais, que está ali os encarando com o cinismo
dessa cara áspera, e menos mal, mas assim que ele se volta para a porta do quarto, meu
amigo, está mais do que explícito que ainda há muito mais a ser visto. O que aconteceu, vai
perguntar um?, mas Martin não precisa mais responder, eles podem constatar da maneira mais
autêntica de todas, mas o que aconteceu?, vão insistir, com um tom de voz cada vez mais
sobressaído, a verdade é que ninguém quer ter com o que se preocupar, e a vontade sempre
está um pouco aquém do que se tem. André pôs a mão na testa como quem já se diz, não faço
a mínima idéia do que vem, mas já posso aqui pensar com meus botões que fodeu. Sem saber
exatamente porquê ele vai e abre a porta. A princípio é tudo treva e não há ninguém. Ele é
míope, força um pouco a vista, continua sendo inútil. André toma a dianteira e vem entrando,
pelo menos não se pode atribuir a Alex o fracasso da covardia. A escuridão oscila pela vidraça,
a luz que o mundo emite não é nunca linear, num instante as coisas clareiam, e é para todos
enxergarem de uma vez só.
Aquelas pernas brancas e arreganhadas são como cuspidas da escuridão e deixam
escorrer filetes de sangue.
– Você a estuprou? – André sussurra berrando.
– Sim – Martin chora. – Não. Quase.
– Estuprou ou não, rapaz? – e apóia as mãos na nuca.
– É pior, é muito pior – soluça num choramingo horrível.
Se olhar melhor, se resolver encarar o além, vai acabar se dando conta de que a moça não
está desmaiada por conta de um estupro bem brutal, que o sangue não parte da sua vagina
que recebeu uns maus tratos injustos, ela toda não estava preparada para uma violência como
essa, que nunca se está e nada a justifica, que as pernas não estão só num descanso pacífico
do qual acordaria num longo e gostoso espreguiçar. Ele vai acabar vendo o sangue que
respingou empapando a blusa rasgada, e vai subindo, como se fosse ele a rastejar pelo corpo
dela, e de lá já pode lhe descobrir a textura, e tocá-la, e senti-la, mas não é isso algo que
exatamente deseje, é apenas mais uma conseqüência horrível, até entender que chega no
rosto quase invisível e ele está pálido, pálido e viscosamente sanguíneo a insinuar um calor
trapaceiro, pois na verdade está frio e gelatinoso porque ela está morta.
– É Carina? – alguém pergunta, suspirando.
Não há resposta, não pode haver resposta.
421
– Você a matou? – André pergunta o óbvio.
– Sim – é óbvio, é claro que sim, acata como uma boa criança consciente.
– Você a matou? – Stern, aí já é exagero.
– Foi, fui eu – ele se desespera, é claro que foi você. – Eu não quis. Eu não sei. Eu não sei
o que fazer.
– Puta que pariu – Bublitz.
– Por que você fez isso? – Alex.
– Eu não sei, eu não consegui – resposta louca.
– Não conseguiu o quê, rapaz? – Stern ergue os dois braços.
– Eu não consegui parar!
– Por que você começou? – Bublitz pula.
– Eu precisava fazê-la se calar!
– O rosto dela – Alex está olhando – está... simplesmente – e não encontra termos.
– Martin, você matou uma pessoa. Você sabe disso? – André –, você matou uma pessoa.
– Eu não queria!, eu não queria.
– Deus do céu, deus do céu – Stern. – Tudo acabou, é isso.
– Não estava pronto pra isso – Bublitz se esfrega –, pra isso, não.
– Não, não acabou – vem Habib.
– Ele matou – e aponta o corpo – a menina. Ele matou a tal da Carina. Acabou.
– E por que você fez isso? – Bublitz está em prantos.
– Ela não parava!, eu tentei fazê-la se calar, mas ela gritava, gritava e ria, tudo que eu fiz
foi beijá-la – e esfrega o rosto –, ela riu, ela riu, eu tentei fazer ela parar, mas ela não parou,
quando eu vi, eu – é interrompido.
– Você tentou estuprá-la?, é isso?, e ela gritou – André.
– Meu deus, meu deus!
– Eu não estava pronto pra isso, pra isso já é demais, não, assim não dá.
– O rosto dela está... – Alex não termina as frases, só olha.
– Ela disse que nunca ia fazer nada comigo. Nunca. Eu não tive culpa.
– O quê?
– Ela disse que nunca ia dar para mim. Que eu era como uma amiga para ela. A porra de
uma amiga. Foi assim que ela falou.
– Como é?
– Ela falou, eu a beijei, ela não parava de rir. Eu não tive culpa.
– Você tentou estuprar a porra da menina? – Bublitz berra.
– Cala a boca! Cala a boca! – grita insanamente, e todo mundo teme ser o próximo.
– Pára, Martin! – André grita. – Cacete!, você também precisa se controlar. Você precisa
explicar, tá certo?, tá legal?, isso tem que começar por você, certo?, então pára de gritar,
estamos aqui te ouvindo, não sabemos o que vamos fazer, mas estamos aqui ouvindo, isso é o
principal, antes que mais alguém veja isso, isso é, mais alguém viu essa droga?
– Não – Habib apóia a testa na mão.
– A polícia – Stern. – Temos que chamá-la. Acabou, ora. Temos que chamá-la.
– Você enlouqueceu, não é? – André pergunta calmamente.
– Pelo visto é você quem está louco – e ri num pânico cômico. – O que você pretende
fazer?, acabar com a sua vida?, e levar a minha sem querer?, é isso que você pretende?
– Sim – Martin suspira a razão que lhe restar –, talvez seja o melhor.
– Vão descobrir a sociedade, se chamarmos – Alex.
– Isso é o de menos. Vamos ser acusados de assassinato.
– O que a gente tem a ver com isso? – Bublitz.
– Incitamos – Habib.
– Você tá de brincadeira – morde as mãos.
– Incitamos, sim – André. – A sociedade acaba, tudo bem, e seremos indiciados e
descobertos, desde o roubo da companhia até isso – e aponta. – Até, até... – e engasga, rindo
– a tentativa de suicídio de Sylvia, podemos responder por isso e por um milhão de coisas a
mais, é sério, a vida acaba, a vida realmente acaba.
– Eu me entrego, eu me entrego... – balbucia Martin.
– Cúmplices! – berra Stern.
– Não há alternativa – berra André de contrapartida.
– E quanto ao pacto? – Habib.
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– Que pacto, rapaz? – Stern.
– Eu acho que não estou bem. Eu acho é que vou desmaiar – Bublitz, e meio que ri. – Ai,
me carrega, me carrega – e cai no chão.
– Que fizemos de um para os outros – continua. – Estamos juntos nesse sigilo. Então
vamos pensar com calma. Agora não há mais volta. Ela está morta.
Alex abaixa a cabeça e transporta as nódoas do cadáver para si. É o devorador de
pecados. É o mínimo que ele pode fazer por ser culpado.
– De todos os lados a gente fode a vida, e aí? – Stern.
– Ainda há esperança – Habib.
– Escutem, vocês não precisam, não, eu só não sabia se... – e Martin é interrompido uma
vez mais.
– Não, pare, vamos colocar as coisas no lugar – André.
– Que esperança que você acha que ainda temos? – Stern grita.
– A de que você abaixe o tom de voz, antes de tudo – Habib.
– Você tá de sacanagem, não é?, só pode.
– Não é só você que está desesperado aqui, aja com um pouco de respeito.
– Respeito? – aí ele berra mais ainda.
– Parem, vocês dois – André. – Mas que merda, hein?, vamos nos ajudar, certo?
– Sim, tudo está ficando claro para mim – Bublitz se contorce. – Vamos nos livrar do corpo,
é, não é?, não é?, ninguém vai ver.
– Suicídio coletivo também funcionaria – Alex.
– Temos de nos livrar do corpo sem deixar vestígio, a julgar onde estamos não será difícil –
André.
– Temos de pensar nos detalhes – Habib.
– Não, espera aí, isso é muito complicado, nossa, assim eu não sei – Stern.
– Você pode ir embora se quiser, Stern – André. – Seria uma traição de você para nós,
mas de que importa?, não vamos arruinar a sua vida.
– Mas se tudo der errado é justo que te entreguemos, certo? – Bublitz.
– Pára com besteira, certo? – aponta para Bublitz. – Eu nunca disse – a voz amansa um
pouco – que eu ia deixá-los.
– Afinal deu sua palavra – Habib.
– Escute, não sei se você está sendo sarcástico, mas sim, é exatamente por isso.
– Muito obrigado, Stern – André –, é sério, com toda sinceridade, muito obrigado.
– Precisamos de um saco de lixo – Bublitz ri.
– Do que você está rindo? – Martin espuma.
– De estarmos nos livrando de um corpo – e ri ainda mais. – De estarmos matando uma
pessoa.
– Ela já está morta, Bublitz – Alex vai se adiantando para sair.
– Então estamos enterrando.
– O que vocês pretendem fazer? – Stern.
Bublitz dá uma espiadela no escuro, – Rapaz, o que aconteceu com o rosto dela?
– Eu tentei avisar – Alex.
– O que nós vamos fazer?, eis uma pergunta aberta ao debate – André.
– Vamos jogá-la da ponte – a idéia fabulosa.
– E se não afunda no mar? – Stern.
– Não interessa – Alex rosna, fincando o queixo no peito. – Nada que parta dela leva a nós.
Ela não é nossa amiga. Nunca foi.
– Como é? – Stern.
– A sociedade não existe – Habib assente.
– É isso.
– O rosto está deformado, não vão reconhecê-la, ninguém do hotel. Tem os dentes, mas
isso não importa pra gente. Isso se acharem o corpo. Botamos num saco de lixo e atiramos. E
adeus.
– Precisamos de um carro, certo? – Bublitz.
– Nem pense no meu, não vou colocar um cadáver lá dentro – André.
– Viemos no dela – e Martin chora ainda mais. – Discutimos o caminho todo até aqui.
– Ela te deu carona, vocês brigaram e aí você a matou? – Bublitz.
– Cala a boca! – berra e solta perdigotos.
423
– Pára!, pára! – Bublitz foge.
– Pára!, então usamos o carro dela. As chaves devem estar ali.
– E depois?
– Largamos isso.
– Isso? – Martin se arrepia. – É assim que você a chama?
– É um corpo, Martin, é um corpo, não é mais alguém, você a matou.
– E depois?
– Depois quando?
– Quando conseguirmos nos livrar.
– Aí a vida seguirá da mesma maneira que antes seguiu.
– A vida não segue da mesma maneira depois de ver uma coisa feito essa.
– Depois continuamos com a polêmica – previsão sábia para o depois.
– Vou roubar as roupas e o relógio de alguém.
– Um relógio, por quê?
– Para me vingar.

424
Alex retorna a seu presente e foi uma dessas revisões que o deixaram mais arrasado.
Essa tremedeira deve ser sintoma do enfisema pulmonar, senão do carcinoma, esse jeito
de quase não conseguir manter o cigarro entre os dedos e também essa careta sombria de
mastigar doce que veio com arsênico, mas você não está a matutar sobre as entranhas
avariadas de veneno e sim refletindo que toda forma de gosto tem sua serventia, até o gosto
de morte ou a impressão à qual foi condenado, melhor, sente ser tão pouco que deve ter sido a
impressão de tremenda nojeira sobre todas as coisas que fora condenada a vagar carregando
ele como maldição, ele parece muito simples, é ele mesmo o fardo, é ele a sentença, a sanção
e não a vítima, esta é a sua face de quem não está disposto a expressar mais que o azedume
ao qual ele tende a resumir-se, ele passa a entender-se como a carga de um beduíno muito
sinistro, afunilou-se tanto na sua descoberta e, tão perto do fundo, viu não restar mais que isso,
um medo sem nem a glória de ser pavor ou paixão calamitosa e reconhecer-se cúmplice de
uma tragédia que intui mas desconhece-a na totalidade, então não expõe mais que o inevitável
de que está, existe, presente e nada mais, essa disposição já nos conta o bastante a seu
respeito. Fica a encarar a rua, que lhe pareceu uma boa medida fazer-se essa carranca, figa
de espantar os diabos – espantou a tudo por descuido – contra o que sabe que não vai encará-
lo de volta, há coisas dóceis que vão suportar o peso injusto que atira sobre elas. O rosto que a
janela dá o azar de refletir é de velho esgotado com a barba rala e olheiras de ossos salientes.
Sou eu, pensa e sorri. Aprendeu a sorrir das coisas terríveis, dos trastes, não é só para que
não chore, ele foi um pouco além da ironia e do conformismo, aprende a ser feliz com as
coisas terríveis, porque doentiamente pensa serem as únicas que tem e já não tem a
competência da esperança de vislumbrar além. A noite segue doentia lá fora.
Ele pensa nesses termos porque é isso que sente, um tédio maçante que se for
interrompido será por alguma notícia das piores, a morte de um familiar, mas sequer tem um
que se lembre do rosto sem ter dúvidas, nem se lembraria do nome, vai ver é a morte de um
querido, e contaria nos dedos se estes ainda existem. Mas as coisas podem ser ruins de um
modo tão transcendente que não diz mais respeito a ele. Da próxima vez que olhar a tevê
dessa casa estranha em que está, com todo esse movimento de gente pernoitando que parece
estar realizando uma mudança, mas não está, ao menos não no sentido de se pôr a mobília no
caminhão e levá-la para algum bairro muito melhor que esse, da próxima vez que olhar a tevê
quem sabe não dá no noticiário o começo de uma nova guerra, a nação mais poderosa do
planeta terá se revoltado e dito, eu não quero saber, vou sair explodindo hospitais por aí e
matando criancinhas, principalmente as órfãs ou as que já tenham perdido alguma das pernas,
não me importo e nem nunca me importei. É um pouco arriscado olhar para a telinha, não é
que se trate de guerra, a política internacional deve estar estável, salvo uma ou outra exceção
que não chega a ser importante, aparentemente nada está sendo explodido, cada vez mais
grupos violentos do mundo jogam a toalha branca, não se fazem mais separatistas como
antes, nem há nenhuma revolta armada nas ruas que mereça atenção, tampouco há uma
guerra civil prestes a eclodir por causas que os cientistas sociais desconhecem mas estarão
discutindo em seus gabinetes, nem mesmo uma greve dessas de grande importância ou um
discurso ministerial. Mas a inteligência o diz que, se o retorno à escuridão apareceu nos
noticiários mais de uma vez, a lógica dita que não faltará muito tempo para aparecer uma nova,
e ele já não sabe se quer assegurar que esta idéia não é fruto de um sonho que se confundiu
com a verdade numa qualquer noite mal dormida, ou se prefere trancafiar-se num quarto e ficar
ensaiando movimentos autistas, abraçado nas pernas, indo-e-vindo como um joão-bobo. Só
está passando a novela. Eu te vi angustiando, conta-lhe André, que o fica olhando.
Cale a sua boca, eu não lembro de te ter perguntado coisa alguma, tenho a certeza de ter
me reservado o tempo inteiro, não me dirigi a você exceto para falar as coisas mais básicas,
que é o que me exige essa educação da qual estou farto, então não me venha tranqüilizar
como se eu estivesse questionando a minha própria lucidez. Alex o está encarando mas
provavelmente não foi tudo isso que os olhos conseguiram dizer, ainda que o quisessem,
porque como um burrito manso que trai a si mesmo ele ainda sorri tortamente como num
obrigado, obrigado por querer amparar-me. E esquece de mandá-lo à merda. Esta noite, uma
trupe de malfeitores da sociedade entrou num apartamento qualquer, desses da periferia que
só a bandidagem mais amadora e desesperada teria interesse em arrombar, saquear e render
a gente humilde que mora ali, gente provavelmente bem cansada de ter de andar nessas ruas
escuras, esburacadas, onde o cimento dos paralelepípedos deve de ter sido substituído no
425
improviso por um musgo empapado, e cujas curvas das esquinas carecem das formas mais
cabais de segurança, como se não bastasse ter-se de diariamente disputar espaço nas
calçadas com os entulhos que a coleta não levou e ter de cuidar para que as crianças não
brinquem sem uma tia que os acompanhe no parquinho que é o reduto oficial de tétano,
leptospirose e escorpiões do distrito. Não é interesse da sociedade tirar nada de quem já não
tem, ainda que eles possam, às vezes, no inverso, querer bancar o robin hood, alegando que o
problema da distribuição de renda pode resolver-se com uma gangue bem treinada de
terroristas, saqueadores, sabotadores e espiões, uma generalização básica de todos eles, mas
no fundo seus assuntos não são mesmo materiais e sim da mais profunda autoridade
espiritual. Os métodos que usam são muito claros, seus fins não seriam diferentes, eles
pretendem entrar em casas quaisquer, quando seus donos não estejam e nem sonhem que
tipo de diabruras estão prestes a viver, usando de toda sorte das técnicas de arrombamento,
das mais sutis, como passar o cartão de crédito no vau da trinca, até as mais sucintas, como o
babaca que deu com o pé na porta e aumentou em todos o medo de acordarem até o vizinho
narcoléptico, assim entram na casa sorteada para desarrumá-la. Parece ser coisa que destrua
a estrutura sensorial de qualquer um, chegar em casa e descobrir o abajur dentro da geladeira,
as venezianas transportadas para o corredor como um pano de dividir cômodos, as portas
reinstaladas de ponta-cabeça e o tapete da sala grudado, junto à mesinha com o telefone, no
teto, com essa nova arrumação que favorece o lustre. A mesa de jantar está sendo carregada
por uns três rapazes que vão pô-la com a metade para fora da janela, a estante do corredor
parece uma liquidação de roupa íntima, e as gavetas cujas partes internas, destinadas a
guardarem coisas quaisquer, jazem viradas para baixo como se o novo objetivo lhes fosse o de
derramar o conteúdo assim que as abrisse, seria isso se os preenchimentos, papéis, contas,
envelopes com lembranças e álbuns de família não estivessem grudados com cola das fortes.
O choque de ver todas suas coisas violadas, fora do alcance que a elas foi reservado, de ver o
santuário da intimidade excedendo, na surpresa, o que lhe é de costume, agredindo de assalto
o hábito, o jeito que acostumou-se a ser os arredores, deve bastar para inspirar em alguém o
vazio, o vórtex interno que a segurança dos nossos arranjos quer encobrir, a ausência que
revela o tanto da insegurança que somos, o caos do qual fugimos, o vácuo em que estão os
nossos pés e onde firmamos tudo em que se acredita. Tirar as coisas de ordem não é só um
rito messiânico a fim da iluminação, mas uma arte bem divertida. Foi um desses da sociedade
que sugeriu a idéia em voga depois de vê-la num filme cult, mas deixou claro que a película em
questão era toda uma questão classista. Nesta revolução de agora não existem problemas de
classe porque é simples e diretamente uma revolução de filhos da puta, filhos de uma mesma
puta-mãe. Bublitz apareceu mais adiante, feliz, às gargalhadas, porque entornou um aquário na
privada, e está pedindo para quem o ouça que imagine a reação da menininha que deve morar
neste lar, que a visualizem chegando apertada da casa da vovó, prensando as abas da saia
para ordenar a bexiga, então correndo e levantando a tampa da latrina e dando com seus
peixinhos dourados. Antes ela teria visto o que fizeram com o sofá, seu imbecil.
André acaba de comer um cachorro-quente que deve lhe ser a janta de hoje e guarda as
sujeiras no bolso porque, não vai perguntar-lhe do capricho, parece não querer sujar o chão.
Estão assim juntos, lado a lado, primeiro porque é assim que o destino os entende, separados
o destino estranharia muito a diferença a ponto de conspirar para pô-los juntos de novo e
corrigir a inovação incoerente, e depois estão juntos porque eles acham que estão resolvendo
os últimos problemas que surgiram. Ao lado do camarada de cumplicidades e desgraças está
aquela outra figura, esta não lhe diz quase nada. Uma das vantagens de se participar de uma
sociedade secreta é que você sempre vai reconhecer um rosto que te parece estranho de
algum lugar, e sem ele te significar absolutamente nada você vai associá-lo lá com a sua
utilidade, ou seja, com alguma importância que te possa fornecer, por mais que o ignore e
geralmente nem se saiba quem ele é, que se passasse pelo teatro ele poderia vir lhe falar, algo
como, olá, Alex, e você responderia, quem diabos é você?, e riria a cuspir entre os dentes, mas
então, entre tanta diferença, alguma deverá ter o que você precisa, pode se fazer e se deixar
usar quando chegada a hora, é essa uma. Está olhando e se referindo àquele sujeito de meia-
idade, esse bigode e cavanhaque cafonas e esses bochechões vermelhos de leitão. Ele
também deve ter lá seus casos para contar. Da vez que ofereceu pirulitos com drogas para
crianças, algemou o cara-de-bunda numa das poltronas do teatro e o deixou passar a noite lá,
ou pulou de um lado ao outro das plataformas do metrô. Ele pode ser lembrado por seus feitos

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ou meramente chamado de Robes, que pode ser um nome falso, isso não é coisa que importe
muito.
Exatamente pelo fato de ser um desses tantos policiais corruptos deve mesmo poder
responder uma pergunta das mais simples, particularmente essa deve integrar o seu repertório
das citações diárias, mas que bosta está acontecendo?, então Alex toma o jornal que
repousava no marsúpio do casaco nas mãos, o dobra e desdobra várias vezes que é para
parecer agressivo, para soar ameaçador, mas não tem experiência em intimidação e acaba
encenando o papel do nervoso, a vocação o permite um bom desempenho. Aí solta pelas
narinas uma quantidade de fumaça para se tentar atribuir a seriedade perdida e joga o jornal
em cima do sofá, infelizmente este cai sobre um corpo em coma que ele não deu pela
presença, mas fazendo tudo nesse silêncio cadavérico de repente ele lembra um mafioso, ou
pensando por essa linha, um criminoso, não consegue parecer nada que não seja ele mesmo.
Robes olha o pedaço de papel mas parece estar se fazendo de estúpido ou acha charmoso
demorar um pouco para entender que ele deva pegá-lo, então alguém cruza as imediações de
onde estão perguntando se têm alguma idéia do que fazer com uma coleira de cachorro, um
outro alguém sugere que se enforque, e o detetive parece sentir-se instintivamente oprimido
até mesmo entre os seus e espicha-se na jaqueta para esconder o distintivo, então o sorriso
amarelo por trás do bigode felpudo, deve mesmo sentir vergonha desse seu trabalho ou do
modo como acaba o desempenhando ridiculamente, não deve ser mesmo muito bom que
vejam o que ele faz e o que significa, quando ele devia estar nas ruas investigando casos de
crimes passionais ou no escritório traçando perfis de assassinos-em-série, enfim, zelando pela
nossa segurança e fazendo do mundo um lugar melhor de se viver, na verdade está
sacaneando uma casa e atendendo ao pedido de ajuda que recebeu, porque resolveu ser mais
fiel aos seus companheiros, que decerto são mais fiéis a ele do que o mundo que ele finge
proteger a troco de nada.
– É um caso complicado – diz Robes, apóia os braços no sofá e fica acenando.
– Não fale conosco como se estivesse tratando com um marginal que espera pelo
advogado – André.
– Temos que ir com calma – ainda retruca.
– Diz logo que droga significa isso – Alex.
Um sujeito passa perguntando o que fazer com essa caixa-de-areia, um outro sugere que
ele a coma.
– Fala logo – Alex.
– Certo – e mete a mão na jaqueta.
– Você vai atirar em mim?
– Não – e dá uma dessas risadas de quem não sabe brincar.
E tira uma pasta marrom de elástico vermelho.
– O que é isso? – André já vai esticando as mãos.
– Quando vocês me falaram que tinham visto aquela notícia no jornal, deve ser esse aí que
Alex jogou em cima do cara, então, e ainda depois falaram que apareceu a mesma coisa nos
noticiários, já que eu não assisto muito televisão, eu... – é interrompido.
– Você sabe o que é?
– Alguma coisa. Não é que estejam atrás de nós.
– O que tem aí na pasta? – Alex perguntou a André.
– Uns dados de delegacia.
– E aí?
– Falam sobre atos de natureza inverossímil, é assim que está escrito.
– Santa de bigode, saques inesperados – acata com tudo o que já ouviu.
– É isso.
– Não é que estejam atrás de nós? – sorri, pergunta a Robes.
– Não estão. Escute, tenho certeza que isso não tem a ver com nenhum de nós.
– Então o retorno à escuridão tomou proporções próprias? – e ri do ridículo.
– É verdade, Robes – vem André –, eu e Alex já conversamos isso, e concordamos que é
mesmo um pouco difícil. Digo, o retorno à escuridão não ensina a fazer sociedades, estou
usando aqui as mesmas palavras que usei antes.
– Na verdade fui eu quem disse isso – Alex.

427
– André – surge o troncudo com cara de bandido, está com uma lanterna iluminando-lhe a
carranca do rosto, não se sabe porque está fazendo isso, deve pensar que é profissional ou
está lidando com contrabando, coisa assim –, André, André – o chama até ter a atenção.
– Fala, fala.
– Você sabia que os donos da casa estão aqui?
– Cacete, como é? – Alex.
– É, é? – André.
– Estão dentro no quarto – dá um riso meio macabro –, tentei entrar e vi que a porta estava
trancada – mais uma risadinha –, olhei por debaixo da porta e tinha uma perna entrando
debaixo da cama.
– Mas que porra é esta?, como vocês simplesmente entram... – Alex.
– Os telefones estão cortados? – André.
– Sim, sim – o contrabandista ainda está rindo. – Acho que eles só estão esperando a
gente ir embora, devem estar – há-há-há – se cagando todos.
– Mas que merda, podem estar mandando um sos com lanternas para o vizinho – Alex.
– A gente diz que é da companhia elétrica. Por isso estamos no escuro.
– Diz – fala André – que é uma inovação daquela coisa de ajeitar os móveis, de ficar
aproveitando as energias nos cantos da casa, atraindo os bons fluidos, como chama, como é...
– Feng Shui – Alex.
– Então é isso.
– Podem estar usando uma merda de celular. Como vocês não pensaram nisso?, que
desorganização escrota. Que desordem.
– A polícia – Robes boceja – vai demorar pelo menos uma hora pra chegar aqui.
– Voltemos ao assunto.
André retorce o pescoço, coça a boca e espanta o troncudo como quem expulsa ao
cachorro, julga mesmo que esse assunto não o mereça. Alex o olha torto porque continua a ter
essa impressão de que ele tem talento para a tirania. André estala os dedos para chamar
atenção e continua.
– Certo, então, o retorno à escuridão não ensina a fazer sociedades, não incita a isso, isso
é coisa nossa, então qual a ligação que se pode encontrar entre atos criminosos, pichações
que não são nossas, atirar em delegacias e sabe-se o que mais, comprar animais domésticos
pra comê-los, e o livro?
– Eu não poderia responder com certeza uma coisa feito essa – Robes.
– Não precisa ser certeza, pode achar que já é de bom tamanho.
– Posso supor algumas coisas, bem – ele fala calmamente, é um sujeito tranqüilo demais
para um detetive, tanto que irrita, devia ser um torturador –, não é porque não está explícito
que não ensina.
– Isso não faz sentido – Alex acena alguma coisa sem significado com a mão e dá com as
costas na parede.
– Creio que tomou proporções próprias individualmente, o que quero dizer é que podem ter
lido e se inspiraram, é um livro realmente interessante.
– Quem leu e se inspirou? – coloca o queixo na mãozinha.
– Qualquer um, as pessoas que fizeram o que fizeram. Mas temos que pensar – e vai
acenando paulatinamente com os braços, daqui a pouco vai pegá-los e torcê-los. – No jornal,
nesse aí, não é?, sim, certo, no jornal está dito sobre a polícia perseguir suspeito e tudo mais,
trocar tiro e invadir o lugar em que estava, aparentemente era mesmo a casa desse tal
desconhecido, o que indica que foi algo feito de forma amadora.
– Continue.
– Mas havia vários livros, uma pessoa não precisa de vários livros para ela mesma usar.
– É, sim.
– O que ela vai ficar fazendo? – e ri de um jeito imbecil –, consultando todos ao mesmo
tempo pra ver se não há discordância de um exemplar para o outro, ou para aprimorar, não sei,
uma técnica qualquer de leitura dinâmica? – e amplia o riso imbecil.
– Já entendemos, Robes, pode ir adiante – Alex.
– Não é que ensine a fazer sociedades, e também não é que possa ser uma sociedade
como a nossa, mas ele inspira as pessoas a fazerem algo que requer organização, tudo exige
organização, não se pode fazer coisas como essa sozinho.
– Coisas como essa. Então há um intuito por trás disso, isso já ficou claro – Alex.
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– Não é que estejam atrás de nós – sorriso amarelo, bigode nojento.
– Não é isso que eu estou falando.
– Mas podem estar... – o mesmo sorriso.
André, aos mais atentos calado já faz algum tempo, vai falar, – Se não estivessem atrás de
alguma coisa, não haveriam chamado esse certo Dimitri, comissário de polícia, e está escrito
aqui que veio cuidar desse caso. Pode acabar sendo de nós.
– Quem é o tipo? – Alex.
– Um linha-dura – Robes.
– Entendi.
– É alguém do tipo que ninguém que se opôs a ele está vivo para contar a história.
– Visualizei como num sonho gostoso. O conhece?
– Não, eu também estou exagerando, só estou me guiando pelo que os outros dizem, mas
é uma referência, acho que temos que aproveitar...
– Sabe o que eu acho? – Alex sorri.
– O quê? – Robes.
– Estamos fodidos – risadinha sapeca.
– Pense na minha situação – perca logo a calma, sujeito chato –, eu nem devia estar aqui,
mas estou, consegui dados sigilosos e estou passando pra vocês, se vocês estão fodidos
porque há um cara como esse no encalço, mesmo que num encalço bem distante, eu estou
fodido duas vezes, compreende?
– Você precisa sabotar as investigações, mesmo que elas não digam respeito diretamente
a nós, isso se realmente não dizem, que é algo que ainda está em aberto, não podemos saber
só porque divagamos. Atrapalhe, queime os arquivos, comente como o dia está bonito com o
guarda que toma conta das papeladas, quando ele for olhar, você pega lá as fichas e as
mastiga, faça alguma coisa – dá de ombros.
– Eu não posso, quem você acha que eu sou?
– Isso eu sei, é um nada, um nada como nós, mas isso não quer dizer que não possamos
fazer as coisas, somos nadas mas não somos inúteis, principalmente quando se trata de
proteger a própria pele.
– Mas isso não depende de mim, escute, eu não posso realmente nada... – derrotista,
acabado.
– E se forem as propagandas? – André se manifesta uma vez mais.
– O quê? – Alex arfa.
– Jesus amaldiçoando a mãe, o panda que diz que da vida ser tão inútil que a pessoa está
prestando atenção naquilo, e se tudo isso está funcionando?
– Isso não pode dar certo sozinho – Alex se treme de angústia –, é ridículo.
– Mas foi pra isso que fizemos, não foi?
– Foi pra ajudar a espalhar a loucura, a loucura! – se excede um pouco e se encolhe.
– E não é isso?, não é isso que está acontecendo? – fica pondo a mão na cara dele, odeia
isso.
– Escutem, um médico uma vez me disse que uma enxaqueca pode significar tanto uma
gripe quanto um problema ocular.
– Que comentário oportuno, Robes – Alex.
– Escutem, pela minha experiência como policial eu posso lhes dizer, temos aí vários
sintomas que podem existir por causas diferentes, mas também simultâneas...
– Entendi – André aponta Robes, parece chamá-lo de gênio, desgraçado. – Pode ser por
causa das propagandas, e também das nossas loucuras, e também da loucura de outros que
não conhecemos, ou outras coisas a mais. É o mais óbvio. É o mais certo.
– É isso. Ou a queda da civilização, que já não pode mais tardar.
– Meu deus – Alex deita a cabeça na janela. – Estou cercado por loucos.
– E o que tudo isso tem em comum? – retórica de André.
– O retorno à escuridão – Alex mordendo o parapeito.
– Não!, não!, a loucura das pessoas, o retorno à escuridão só está presente por
coincidência.
– O que eu estou ouvindo? – ri e daqui a pouco vai puxar os próprios cabelos.
– Não exatamente uma coincidência, você entendeu mal – e balança a cabeça –, não, eu
que me expressei errado. É um catalisador, um motivo. É o que eu falei.
Robes olha fixo para um ponto só.
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– Você acredita mesmo – Alex argüi – que essa gente toda já queria enlouquecer.
– É exatamente isso, exatamente isso. No fundo, sempre foi exatamente isso. Querem
enlouquecer, e por acaso estão descobrindo um por quê.
– Então todos, todos leram o livro – sorrindo como sorri o pai prestes a puxar a orelha do
filhote.
– Não, rapaz, não. Pare de se desesperar e me escute. As idéias se espalham. A sensação
– gesticula como se isso fosse algo que viesse do fundo das suas tripas –, a empolgação que
vem da idéia, isso sim é algo que contagia.
– Sabe o que eu acho?
– Nem me diga.
– Vou dizer.
– Não, não.
– Que vamos ser todos loucos dentro de umas celas, roendo as grades, gritando e nos
divertindo. Já está demorando.
– Pare, Alex.
– Ou a loucura vai contagiar todo mundo?, até esse tal comissário que torturava gente?
– Não vai chegar até a gente, é só tomarmos mais cuidado. O cuidado é bem importante.
– Robes? – e então o nota.
Ele aponta silencioso para aquela direção, se vire, olhe. A televisão quase muda, ligada
mas sem ser vista por ninguém, que todos estão passando a aprontar as suas, mostra um livro
de capa preta e letras berrantes num branco fantasmagórico. Alex dá com a testa na janela.
– Condor vai me matar – choraminga.
– Quem?
– Esquece.
– Vai ficar aí e não olhar?
– É assim que eu fazia para o bicho-papão ir embora.
– Esse bicho-papão está sendo assistido por todo mundo em frente a uma tevê. Você não
está orgulhoso?
– Estou apavorado, cacete! – se vira e faz que vai esganar André.
– Eu acho que devíamos nos orgulhar, isso sim – e ele quer manter a pose.
– Acho melhor vocês olharem isso.
Volve-se uma vez mais, é claro que não é nada bom. Ele conhece aquela mulher, já a viu
faz algum tempo, na televisão a gente parece diferente, um pouco mais desfocada, ou é isso
ou é a visão dele que o atrapalha, mas se debruça consideravelmente por sobre o sofá, não
consegue enxergar o suficiente, mas parece tanto com a recepcionista gostosa de um episódio
de um certo hotel que nem um sósia poderia ser tão parecido, a fachada atrás dela não deixa
em dúvidas e o induz a quase um dejá vu onde não poderia existir na vida duas mulheres com
um rosto tão parecido.
– Eu lembro dessa garota – André, embasbacado.
– É ela – sussurra.
– Eu não consigo ouvir nada – André tem um chilique. – Ei, alguém aumenta esse som.
Vai, vai, alguém aumenta esse som.
– O que houve com Alex? – Stern vinha passando e o vê tentando fazer a janela de
guilhotina, o pescoço sacrificado como de um galo no facão.
– Acho que ele está tomando um ar.
Alex espia com o cantinho do rosto enquanto grunhe um longo mantra, algo como um ah
chiado de quem está sentindo uma dor letal no peito, coça o busto como se só na marra
fizesse o sangue circular, fica conjurando algum acidente bizarro a todos que passam sem a
boa vontade de aumentar o volume da televisão, mas o cara-de-bunda já se dispôs a fazê-lo,
sorrindo e perguntando se está legal, fazendo sinal de jóia com a mão, e ele ainda assim clama
para os céus por algum acidente medonho, o sujeito não se dá conta que está na frente da
tevê. O volume agora está audível, o rosto da rapariga ainda está ali e soa bem mais vívido,
que agora não apenas enfeita a tela, mas se manifesta. Eis o que ela fala, compreendendo-se
os cortes de contexto, já que a entrevista da moçoila não está em seu início e nos força a
exercitar um pouco da perspicácia.
– Eram realmente estranhos, mas mantiveram seu anonimato, pagaram uma quantia de
dinheiro realmente generosa pelo sigilo, mas é por ética, claro, que o mantivemos. Alugaram
um andar inteiro só para eles, entendeu?, é coisa que nunca nos ocorreu, mesmo para
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encontros ou produção de gente famosa, é mesmo incomum, para não dizer anormal, mas
alguns eventos podem gerar situações assim, é claro que não existe lei que proíba isso. Mas
destruíram tudo, fizeram uma grande lambança, uma sujeira, mas pagaram para isso, pagaram
por tudo, estou dizendo que não tivemos prejuízo nenhum. Eu penso... olha, eu acho que tudo
isso foi uma espécie de recado. É, eu sinto que é como se tivessem deixado um recado, mas
eu não sei bem dizer o quê. Eram muito misteriosos, todos eles, pareciam uma espécie de
maçonaria, até mesmo tinham um código que falava sobre esperança.
Aí a repórter lhe pergunta se ela não poderia, caso requerida, informar os nomes dessas
pessoas à polícia, e a resposta é que muito provavelmente o nome do responsável pelo aluguel
dado foi um nome falso, que essa gente é realmente capaz de articular as coisas para
conseguirem o que querem, até mesmo criando pessoas, usando nomes de mortos ou
números roubados de cartões de crédito. O nome seria de fato falso, mas se ela começa com
esse discurso estúpido é só para não sujar o nome do hotel, que esteve pouco se importando
em averiguar a validade de qualquer dado. Como qualquer um mais ardiloso pode inferir, a
quantidade de uma conta bancária sendo-lhe transferida para o bolso fala muito mais alto que
qualquer senso de decência, o dinheiro descobre o cinismo onde antes não havia e parece
também adquirir vida própria, dizendo um olá tão gentil que compra educação e amor.
– Maçonaria – agora ele não sabe se ri ou se chora.
– É, isso somos nós – André, com um risinho.
Mais um indício que o temor das autoridades se confirma, a medida que estranhíssimos
movimentos anarquistas se espalham como nunca por todas as direções, sem qualquer
unidade de reivindicações, sem quaisquer propostas, resultando num dos fenômenos mais
curiosos, alguns até dizem ser dos mais assustadores que esse século até então vivenciou,
conclui a jovem repórter.
– Anarquistas – tenta fazer a guilhotina funcionar, não consegue.
– Niilistas não ficaria melhor? – pergunta Robes.
– A população média não ia entender – justifica André.
– Boa noite a vocês, estou indo para casa tomar cianureto.
– Não se desespere, Alex, veja só, estamos tendo a publicidade que queríamos.
– Pode ser que sim – e se levanta. – Desde que não haja o meu rosto no noticiário, ou num
cartazinho escrito procurado.
– Isso é coisa de faroeste, não fantasie.
– Eu quero ver o mundo incendiar – Alex –, nem por isso quero que me queimem.
– Tem aí um cigarro pra mim? – André.
– Vá se foder – Alex rosna. – Boa noite pra vocês.
– Boa noite. A próxima reunião é no domingo.
Certo, até a próxima, e o diz com essa cara envernizada. Mas ele sente, talvez um
sentimento como esse seja bastante questionável, mas ele sente que suas preocupações não
são à toa, que não são um capricho desses que o temor cria para emocionar um pouco a
rotina, não, há uma lógica sinistra que aponta para ele e não se pronuncia em voz alta, que é
para não dar crédito, para não correr o risco de atrair. Ora, sendo Alex o indiscutível escritor,
logo, aceitadamente, criador, da obra conhecida como O retorno à escuridão, é justo que toda
a polêmica que cerque essa obra vá, imediatamente ao se repará-la como instrumento central
de acontecimentos tão execráveis, incitar às assustadas pessoas a seguinte pergunta, quem é
que escreveu tais coisas?, e ainda que não seja o seu nome lá, assinado na capa, que por
sinal não consta de nome algum, e tampouco na contracapa ou na explicação que há naquelas
bordinhas que nos servem como marcador de páginas, e ainda que não seja o seu nome lá,
como se o livro tivesse sido descoberto de algum fosso obscuro, resgatado de uma lenda
antiga onde dizia-se que esse livro, que já existe há séculos, era encadernado com pele
humana, é certo que hão de investigar como aquele livro chegou nas livrarias através do selo
do jornal das artes, vão averiguar que não é como dizem os boatos, o retorno à escuridão não
existe há séculos, então vão contatar a sua direção, os seus editores, vão chamá-los para
depor, e driblando uma ou outra controvérsia desses sujeitos que hão de tirar os dele da reta e
pouco se importarão em parar de fornecer o livro, acabarão revelando, ao serem perguntados,
quem é o misterioso autor?, dizem que era um árabe louco que mantinha relações com
entidades ocultas antiqüíssimas, e eles acessarão suas fichas e responderão, porque não se
importam nem um pouco, é um sujeito normal e com um histórico que nós mesmos
desconhecemos, senhores, na verdade nem está muito certo como ele se infiltrou nas filas de
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edição do jornal, talvez esteja aí uma conspiração em andamento há muito tempo e que
passou desapercebida por nós, mas, como prova de nossa integridade, aqui está. Alex de tal,
tal tal. Parece ser um sujeito medíocre, mas estamos convencidos que oculta um grande
perigo. De alguma maneira chegarão até ele, e isso parece mais ser uma contagem regressiva,
dessas que de tão comum os outros acabam ignorando, como é o caso da morte. Mas ele não.
Ele está com isso cutucando, feito sangue-sugas, as suas feridas, e se entregar seu destino à
sorte, as ruínas do mundo cairão bem sobre sua cabeça, o epicentro desse terremoto, e então
rostos como os de André o olharão, o dando as costas, e comentarão, paciência, você deu
azar. Azar nada, gritará em vão, todos já previam que seriam assim, então é isso, a liberdade é
mesmo um beco solitário e exige das suas próprias unhas que escale uma parede qualquer.
Os latidos e rosnares do cocker spaniel começam uma vez mais assim que o pé atinge o
seu andar, não é possível, esse bicho reconhece o meu cheiro, só pode ser isso. E totalmente
derrotado por um cocker spaniel ele não tem pressa de meter a chave no seu respectivo
destino e rodar, uma, duas, três vezes, como ele sabe que é preciso, então suspira triplamente
derrotado, por um cão que o detesta, por uma fechadura que não o obedece e por uma
repórter que o desmoralizou em cadeia nacional. Entra em casa aos trancos e barrancos, fecha
a porta com um silêncio funesto, não lhe resta nem mesmo a paciência para implicar com Carla
ou boliná-la. A sala está escura, do jeito que ela gosta, e ele não tem forças para acender a luz
e ouvi-la dizer, por favor, desligue, se eu cheguei antes e estou aqui acomodada é justo que
continue assim. Ele não agüentaria. Vai andando pela penumbra, ela está no sofá assistindo os
seus seriados, ainda a ouve murmurar que não preparou nada para o jantar, é claro que quer
provocar uma briga, mas deixa estar. Alex vai rastejando para o quarto, senta-se na cama, atira
os sapatos para perto do armário e começa a se despir. Vê a colcha e se imagina se essa noite
não estará se deitando com todos os pecados do mundo, e são todos seus, à medida que
também não o pertencem, mas podem ser todos descobertos. Ia passando para a cozinha,
ouve o crunch-crunch de Carla. Ela não devia estar procurando um emprego?, também não se
ajuda nem um pouco, seria justo reclamar com ela da sua ineficácia, de seu parasitismo, ele ao
menos tem um trabalho, renda, responsabilidade de fachada, já ela carece até das aparências.
É melhor beber esse galão de água e ficar quieto, que antes ela ser culpada de preguiça que
se fosse de assassinato, vandalismo, loucura, e quaisquer outros termos mais corretos que
existam para as tantas coisas que ele anda fazendo, e nem todas são conhecidas como as
infrações comuns ali pensadas, das quais ele sequer sabe quais são crimes e quais deixam de
ser, que essa noção vem mesmo se alterando.
– Está bravo com alguma coisa? – ela pergunta quando ele retorna à sala. Ao que se
lembra, já se passaram alguns dias sem se falarem por uma briga cujo estopim ele não lembra
qual foi. Já tinha esquecido, só recorda de terem brigado por relembrar-se da voz que o segue,
por acaso a mesma que não se cansa de lhe chatear. Agora deve ter sido ela quem esqueceu
de que estavam sem se falar.
– Não, só com uma enxaqueca desde de manhã – massageia as têmporas e senta-se na
escrivaninha.
– Não quer me contar alguma coisa?
– Hum? – vira-se para trás.
– Não sei. Eu lembro de uma vez, há muito tempo, que você disse ter algo pra me falar,
depois desconversou e eu dei aquilo por entendido. Mas você atualmente tem parecido
preocupado, e distante, não deixa de ser algo que combina com você, só me parece ser um
pouco diferente, eu não sei.
– Eu apenas tenho que trabalhar, pôr a vida nos eixos – e liga o computador.
– Espero que essa não seja uma indireta para mim – ela se ofende.
– Não, realmente não foi, estou falando é de mim mesmo.
– Pra variar.
– Qual o seu problema?, o que eu te fiz?
– Nada.
– Apenas me deixe, por favor, estou com uma puta enxaqueca.
– Pois não.
– Não se zangue, eu só não estou disposto a ter conversas assim, me entenda.
– Eu tento.
– Foi um dia daqueles.
– Sempre é.
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– Por favor, pare com isso.
– É tão difícil assim começarmos um diálogo pacífico?, somos amigos, devíamos
compartilhar, interagir, e isso nem mesmo é uma raridade, é uma inexistência, quando
devíamos nos abrir.
– Agora é, tenho mil coisas para pensar, mais outras mil a resolver.
– Amanhã vou sair com aquele rapaz que te falei.
– Carla, não é um instante adequado para tentar me pôr ciúmes – e vai dando ordens ao
computador.
– Certo. E você tem?
– Carla, chega.
Instantes de silêncio.
– Às vezes bastaria uma só resposta – ela insiste e se vira para o outro lado do sofá.
– Então aqui está a sua resposta, não, é isso que você queria ouvir?, eu espero que agora
esteja satisfeita, que pare de fingir que sou eu o egocêntrico, quando estou aqui tentando me
concentrar numa coisa que preciso fazer e você vem descarregar sobre mim os seus
problemas.
– Descarregar os meus problemas? – se indigna.
– É.
Ela se cala definitivamente. Mas ela sempre volta a falar.
– Chegou a ver a confusão que estava dando no telejornal?
Ele pára de digitar, não apenas isso como congela e esquece do que pretendia. Clica
teclas quaisquer só pelo não admitir que foi atingido, apunhalado sem esperar por nada que ele
entenda. É claro que ela não pode saber de coisas como essas, ou descobriu?, que alguém
pode tê-lo traído e contado, por inocência ou de maldade. André que ligou para sua casa e não
o encontrando resolveu pôr a conversa em dia com Carla, não é possível, ela pode ter xeretado
em suas coisas, ainda que não carregue nada consigo que o denuncie sobre a sociedade ou o
retorno à escuridão, ainda que deva ter um modelo dele em casa, ela viu e associou coisa com
coisa, ela é muito inteligente. Parece que ela está vendo dentro da sua cabeça, e isso é menos
possível ainda, ou é um truque bem sacal que a vida resolveu pregar-lhe, só para vê-lo ter essa
descarga de adrenalina e depois, com o coração a tantos toques por segundo, se dizer que
não foi nada, mas que foi por muito pouco. Não vai respondê-la. Era só o que faltava, e sempre
que pensa isso algo ainda está por vir.
– Dá uma olhada – ela continua.
Ele é obediente e se vira. Não é nada que já tenha visto. Se curva mais e mais da cadeira
e não se importa se estará demonstrando interesse demais. A televisão mostra as cenas
aéreas das portas de um shopping, pelos arranhas-céu em volta é um desses grandes do
centro da cidade. Que está fazendo toda essa gente aglomerada nas portas do shopping?, ele
se pergunta como se perguntaria qualquer outro, sem nenhuma comoção maior ou apreciação,
quando ainda não se apresenta nada que demonstre que aquilo virá a lhe dizer respeito. E é
realmente um pouquinho impossível que venha, paranóia sua, Alex, que se o comentário de
Carla veio com toda essa ênfase, foi o destino a fazendo de peão para te irritar, mas não pode
haver azar que seja tão grande para ungir o drama de mais cedo com algum outro problema
que lhe venha a entrar, sem pedir licença, no aconchego lar. Pois é, vai pensando assim,
amigão. Vai assistindo como quem não quer nada. Amanheceu um dia comum na cidade, a
salvo que o centro comercial nunca viu tanta gente junta aglomerar-se nos portões na
expectativa de que se abram de uma vez, são muitos os casais de namorados abraçados, a
família que acordou cedo, os estudantes que estão cabular suas aulas, as senhoras de idade
que não têm um programa lá muito interessante, os mercadores ambulantes, o moço de terno
que vai resolver alguma pendenga, a moça que vai procurar um emprego. É uma dessas
liquidações, ele se diz, uma dessas ofertas imperdíveis que faz a massa aguardar
ansiosamente que lhe tirem os cabrestos e possam sair pastando através das vitrines,
consumindo com as intenções ou com a prática, ou ainda pode ser uma data especial, dessas
que se dão presentes para alguém da família e coisa parecida, e como é raro que ele
acompanhe o calendário não se sente autoridade para julgar. Vai ver é a feira de animais que
leu por alto num jornal, as criancinhas ficam insistindo, papai, eu quero ir, mamãe, me leva, e a
falta de programação acaba causando nisso, todo mundo por si e deus por quem mais rogar,
daqui a pouco as portas se abrem e a tentativa de pegar os primeiros lugares da fila vão fazer
com que saiam atropelando uns a cabeça dos outros. É exatamente o que acontece, e é
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exatamente o que passa a ver. Franze a testa, há uma legenda no rodapé que não consegue
ler. Seria um dia comum na cidade se assim que se abrissem as portas do shopping uma
multidão aleatória não entrasse e começasse a saqueá-lo. Aqui seguem as imagens de um
cinegrafista amador, desses que mal conseguem reter a câmera na mão, se quer ser amador,
pelo menos seja com competência, mas é suficiente para captar as imagens da bagunça, a
gente correndo e entrando nas primeiras lojas que vêem, os vendedores saem e ficam
olhando, boquiabertos, com as duas mãos em cada uma das bochechas, o que que é isso?,
incrédulos, porque não conseguem entender como uma coisa dessas pode acontecer sem
aviso ou sintoma, sem qualquer indício, não aconteceu nenhuma catástrofe, nenhuma grande
depressão ou fome generalizada que leve essa gente a roubar alimentos ou coisa assim, e
nem por isso, pois é que o que estão tomando para si são os supérfluos, são a loja de jóias e
calçados, de roupa, ou baldes de sorvete. Só pode ser um atentado terrorista, um golpe, um
protesto, ou então é greve da polícia que ficaram sabendo e estão tratando de aproveitar. Ao
que nem mesmo parecem se conhecer, isso tudo ele está deduzindo porque a câmera percorre
situações diferentes, não há ordem qualquer, uma comitiva que dos andares superiores esteja
a gritar, agora vamos ao cinema, ou então, agora os estoques da praça de alimentação, mas
exalam um aroma tendencioso de simpatia, isto é, se aquele rapazinho que cobre o rosto com
a camisa para não ser visto já tomou uns tênis e enfiou na sua mochila umas roupas
importadas, não vão derrubá-lo e roubá-lo, que não é justo roubar de alguém como ele, um
irmão de saques, um mascarado, então hão de procurar uma nova loja e tratar de extrair o
máximo que conseguir carregar, ou debaixo das roupas ou sobre os ombros. Aí aparecem os
seguranças rendendo um ou dois, mas olham desesperados em volta, porque uma multidão
está contra eles e a favor dos meliantes oprimidos, e a multidão atira cadeiras e começa a se
enervar, agora estão quebrando os vitrais. A moça que trabalha numa loja de cosméticos sai
em prantos, correndo desolada, e deve tomar um golpe no peito ao ver um mascarado urrando
feito urso para os céus sobre umas mesas da praça de alimentação. Agora, o lado de fora.
A polícia está cercando, podemos ver o que as câmeras filmaram por trás do cerco policial,
onde os cinegrafistas profissionais estão a salvo, é um vai-e-vém de homens de azul que
passam, agachados, porque é bem possível que lancem uma bomba nos carros da polícia,
bem possível que comecem um tiroteio, mas tudo o que acontece é que se vê a multidão se
dispersando e pulando pelos canteiros da saída do shopping, uma família leva uma geladeira
sobre a cabeça, é um exemplo incomum de fraternidade, desde o pai trabalhador até a
pequena filhinha colaborando, que exemplo de união. E começam os tiros, devem ser com
aquelas balas de borracha que dizem não matar, e a polícia vai invadindo, daqui a pouco
chegam os cavalos, daqui a pouco resolvem meter as bombas, de cerâmica ou gás
lacrimogêneo, daqui a pouco com o contato direto resolvem usar dos porretes. Alex está com o
queixo no chão e ainda nem apareceram as cenas do confronto. Gente que vai de cadeiras
contra os escudos do batalhão-de-choque, gente atirando sushis nos policiais. Está chovendo
lá dentro porque já acionaram o alarme de incêndio, não é de se espantar que alguém tenha
posto fogo em algum canto, e a câmera se desliga num chiado de suspense captando a última
imagem dos polícias se entrincheirando como conseguem entre as curvas das lojas para fugir
de cadeiras que caem dos andares acima e dos arremessos de legumes.
Alex sente cãibra no maxilar e o noticiário já retornou ao estúdio. Agora eles vão comentar
o saldo de presos e de contusões, de mortes por pisoteamento e feridos, e os números não
importam, mas imaginar que por trás da seriedade no rosto dos apresentadores está tentando
explodir uma risada de, mais ou menos assim, alguém me explica o que está acontecendo?, e
vão começar a tratar de teorias de conspiração, de uma nova droga despejada nas grandes
bombas d’água, de gangues e do crime organizado optando pela ação armada ou de um novo
mecanismo de ação terrorista que vem se usando de mobilização popular, espera que os
depoimentos elucidem essa nuvem de fumaça, é esse o termo que usam, que se apossou da
visão da nossa autoridade, que segue embasbacada, como você, Alex, e com as mãos atadas.
Quanta bobeira, e ele não consegue se mover. É tomado por uma tempestade de incoerências
tão grande que é melhor resolver rir assim como exige a educação, como piada que não ficou
muito clara, ou melhor, aparentemente é exatamente esse ridículo o que ela quis significar,
então ri-se como quem admite que o óbvio já não é mais assim crível, portanto o óbvio deixou
de ser o que era e está em branco como um cheque trapaceiro, e será o que qualquer quiser
que seja.

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Enquanto aquelas coisas não estiverem sendo mostradas elas não existirão com tanta
avidez. Sente-se seguro enquanto pode, mas não há de aproveitar.
– Eu preciso de um comprimido – isso é tudo. Desliga o que devia fazer, se levanta e se
vai.
Trancado no banheiro, imagina se apenas assim não estaria verdadeiramente a salvo, mas
é difícil confirmar, trata-se de uma ameaça invisível, mas é que imagine só, que um banheiro
não pode nos incitar muita loucura, isto é, ao menos não é um dos cenários mais inspiradores,
ainda que a depender de uma grande vontade tudo possa se curvar, mais uma prova de que
nossa incrível criatividade vence diariamente o meio, um suicida que deseje uma lâmina de
barbear encontraria nessas prateleiras a sua mais plena fonte de satisfação. Não é o caso de
Alex, que senta-se na latrina a observar o nada, o azulejo e o pano de secar a caras. Ainda que
a idéia de pôr um frasco, ou quem sabe dois, de comprimidos goela abaixo não seja assim das
mais distantes. Pensa em levantar-se e ficar-se balançando de um lado ao outro, que isso
representa ainda mais a sua indecisão. Mas acha que sofrer parado e em silêncio cativa mais.
Poderá murmurar uns ais, não dos lânguidos e saudosos, mas daquele realmente rouco e
arranhado, com catarro e quase lágrima que parte de dor entranhada, apendicite ou outro
órgão podre. Aí tem um estalo, qualquer um que o veja não pode reconhecer uma coisa
dessas, não apresenta qualquer sintoma, nem rosto assustado nem um grito de eureca, e é
besteira pensar que as epifanias se vêm em uns momentos derradeiros da breve jornada pela
vida, a julgar pelo acaso com que nos arrebatam podem até vir a ser, mas nesse caso de Alex
a iluminação o agarra quando está curvado no vaso sanitário, assim ele já antes estava, e
assim permaneceu. Ele sabe que deve preparar um ritual, e aqui vai ele.
Abre a torneira, faz conchinha com as mãos, deixa que a água que cai venha escorrendo
um pouco, e agora não a está lavando e nem tateando pelo sabão, mas jogando-a sobre o
espelho, o molha inteiramente, e agora vai repetir o processo com um procedimento que não é
assim tão difícil. Faz que vai beijar o próprio reflexo encharcado, mas bafeja num ah contra ele,
a embaçar a sua imagem, e é nessas circunstâncias, com um rosto que é somente insinuado,
que o outro aparece.
– Chamou? – boceja com ronronar de coisa que não se sabe o que é.
– Sim, o chamei, e serei bem direto.
– Tudo bem, apenas fale devagar, que eu acabo de acordar.
– Não é hora para isso. Você sabia de tudo que estava para acontecer. Era sobre isso que
você tentou me avisar.
– Tentei te avisar, em qual das vezes? – o outro pondera.
– Quando me disse algo como, a hora está para chegar. Era sobre isso.
– Fico feliz que tenha se lembrado, você é um rapaz talentoso, ainda que às vezes eu sinta
que esteja perdendo o meu tempo com você.
– Você não pode fazer nada quanto a isso – apóia-se na pia e suspira.
– É, eu não posso, você é a minha maldição, e eu dependo de você para quebrá-la.
– Achando-lhe a droga do teu nome.
– É, mas sem grosserias, como se não bastasse você me acordar, ao menos considere o
meu mal-humor.
– É ridículo. Tudo isso é ridículo.
– Não se desespere.
– Não – e fecha os olhos pedindo por clemência –, é realmente ridículo. Eu tenho de
pensar. Não há como você saber do futuro. Eu não posso abandonar assim a razão, isso seria
matar a sanidade quando mais preciso dela, é compactuar com qualquer fantasia que me
venha, e não é isso saída para nada. Simplesmente não há como você saber do futuro, não
havia como saber isso, não pode ser.
– E o que é o óbvio, se não um futuro inevitável?
– Como saber a hora exata de se acontecer a uma coisa?, isso é impossível.
– Por que não pára de supor de si para si e é mais esperto, e pergunta-me de uma vez?
– Como você sabia?
– Mas eu nunca disse que sabia.
– Como é? – quase grita.
– Eu disse que a hora estava chegando. Mas se formos realizar dessa maneira, sempre se
tem uma hora chegando, eu só não disse hora do quê, e você tomou uma certa hora que

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chegou como se fosse a dita cuja do meu aviso, foi um truque da minha esperteza e de seu
susto, e nada mais.
– Você só queria me assustar? – ergue a mão para espanar-lhe a cara, mas se contém.
– Acalme-se. Eu também não disse que não sabia.
– Então me diga!, que é o que eu perguntei.
– Eu sabia disso da mesma forma que uma criança sabe o porquê respira.
– Você se gaba, joga comigo, e no final de tudo diz que apenas ignora os seus porquês.
– É, cada um com seus fetiches, respeitemos uns aos outros.
– Ou talvez seja você com suas profecias que provoque essas desgraças.
– Olha lá, não me venha dividir as responsabilidades que te pertencem.
– Então faça uma boa profecia – e implora. – Me livre disso, para que eu possa te livrar.
– É uma proposta fascinante, mas eu não posso fazer nada por você além do que já me
empenho, lamento sinceramente, nada disso é por querer.
– Precisa tanto assim de um nome? – e curva a cabeça quase chorando. – Qual a lógica
de precisar de um?, o que se é, se é e pronto, não se precisa de uma referência, talvez você
não precise de um, considere.
– É outra teoria interessante, mas não insulte minha inteligência, se eu peço por um nome
não é por capricho, já pensei muito sobre isso, sei não haver outra alternativa.
– Precisa ser conhecido, é isso?, é o que você quer?
– Não, um nome há de ajudar a reconhecer a mim mesmo.
– Outro não basta?
– Não me ofenda, não sou o outro, o outro aqui é você.
– E quanto a João?
– Não brinque com isso.
– Você quer uma identidade.
– Terei uma por conseqüência, me tendo terei também o infinito.
– Então é isso?, você é uma monstruosidade ambiciosa?
– Não sei, mas julgamentos até que caem bem, são referências, hão de ajudar, continue.
– Não vou ajudar uma coisa feito essas – e se retrai. – Estou cansado, acabado, exaurido,
tenho tantos problemas e ninguém pode me ajudar, as coisas estão saindo de meu controle
quando na verdade nunca estiveram, estou numa jornada frente a uma desilusão cada vez
mais profunda, e tudo que me resta é a impressão de que o final disso não será nada bom, no
final eu apenas vou me acostumar.
– Me comove.
– E quanto a retorno à escuridão? – ergue a cabeça de súbito. – É um bom nome.
– Boa tentativa – o outro parece estar pensando –, mas não, ainda não encaixa.
– Por um instante tive a impressão de que seria exatamente esse – bufa.
– Como eu disse, foi uma tentativa das boas. Mas não, presumo que seja ainda algo mais
elementar.
– Mais elementar que retornar à escuridão?
– Mais.
– Ódio, amor, paixão, trevas, espírito, coisa, felicidade, liberdade.
– Não, não, não, não, não, não, não e não. Não me apraz nenhum desses.
– E do que você gosta? – trinca os dentes.
– Se eu soubesse não estaríamos aqui, eu falando contigo, você falando uma vez mais
com o espelho.
– Eu desisto. Está mesmo tudo em minhas mãos. Apenas me diga das coisas que
acontecerão, dos óbvios que eu não percebo e você sim, uma profecia que você saiba ser
certa, sem mais.
– O fato de ter sido você a me chamar ajudou-me a elucidar algumas coisas.
– Diga.
– Aqui vai a minha profecia.
– Vamos – e torce.
– Vai me achar o nome, vai sim. E isso me é um alívio.
– Desisto – arfa, sentindo-lhe tudo faltar. – Sério, nem com alguma coisa – e não acha
adjetivo para significado próximo a chula – você consegue me ajudar. E você sabe, é claro que
você sabe, que eu tenho outras coisas com que me preocupar.
– Já eu, não.
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– Passar bem, outro.
– Até a próxima, Alex.
Vai-se à cama com a espirituosidade de animal peçonhento que está tendo o ninho
atacado, enrola-se todo nas colchas, cobre-se até a cabeça que é para nenhum pesadelo vir
puxar-lhe os pés, e não se importa se terá sonhos importantes em que morre pelas costas, em
que o outro gargalha e faz profecias que não dizem nada, ou mais que isso que não levam a
lugar algum, ou com a multidão de espíritos esquecidos que marcha madrugada adentro
esperando a hora certa de se levantar.

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É um horário desses em que as pálpebras ainda teimam em não abrir, que não o fariam
com a espontaneidade de quem acorda mais ou menos com a disposição de quem se cansa
de dormir e se diz, ah, tive uma noite satisfatória daquelas, agora vou me espreguiçar
gostosamente, estalar os meus ossinhos, sorrir e partir para mais um dia que, com fé em deus,
estará muito bonito, céu azul e aberto e com seus pássaros radiantes, mas primeiro ele odeia
passarinhos, depois é esse um horário em que jamais acordaria, salvo à exceção de uma
buzina estridente ter resolvido vir com este trim, trim à seu ouvido. Não é hora para telefone
tocar, mas ele resolveu infringir as normas. Acorda resmungando, ainda carrega consigo um
sonho negro e mal concluído que aos poucos vai se perder. Precisa se esticar para atingir a
droga que não pára de chamar, o sujeito não desiste, pensa em depredar o aparelho como
naquelas cenas de filme em que se joga o telefone e já se o arranca da linha e tudo mais, mas
a casa não é dele, sem saber por que isso acaba importando. Carla ao lado começa a chiar.
Como se não bastasse daqui a pouco ela já deverá culpá-lo, como se o problema fosse dele. E
é.
– Alô – atende com o mesmo tom de quem diz vai à merda.
– Sabe quem eu pus aqui na espera, na outra linha? – é a voz de Condor.
Ai, não.
– Quem? – afunda a cabeça no travesseiro.
– Toda a diretoria de um certo jornal das artes, que provavelmente está esperando para me
ouvir naqueles aparelhos de viva-voz, conhece?, daqueles que ficam numa mesa enorme de
reuniões.
– Sei – por favor, uma espingarda logo abaixo do queixo.
– Imagina por que motivo uma reunião seria convocada a essa hora da manhã?, e por que
ligariam para minha casa para que eu os fale?
– Não consigo imaginar – alguém puxe o gatilho.
– E por que eu, não satisfeito em ter sido acordado – então tem uma crise nervosa de
pigarro –, grosn, grosn, ainda ligo para você?
– Estou sendo despedido? – coça o rosto.
– Despedido? – Carla dá um pinote.
– Sai, sai – mexe a mão como quem diz, sai, sai.
– Como é? – Condor urra do outro lado da linha.
– Não, não era com você – alguém puxe o gatilho uma vez mais, que é por garantia.
– Esse é um assunto que, se eu fosse você, rezaria para não ser mencionado. E há de ser
uma dessas preces que não nos são atendidas – fala tão rápido e tão seco que parece faltar o
ar.
– Certo, mas o que eu fiz? – bam, bam, bam, gosto de pólvora.
– Explique-me você – coisa temível de se pedir.
– Eu simplesmente estou completamente perdido, não sei o que te dizer.
– Talvez eu possa tornar as coisas um pouco mais claras – só falta agora o riso de bruxa
má.
– Talvez – está pensando como seria o seu funeral.
– Depredação de monumentos públicos?, delegacias alvejadas, lojas derrubadas, ondas de
saques sem razão.
– Ah.
– Redes de contrabando de armas – ele não parou, só estava tomando fôlego –, gente
dizendo ser vítima de episódios estranhos, para não dizer absurdos, canibalismo de mortos
como solução para a fome, prostituição de idosos, é, e olha que isso é coisa que vem saindo
no noticiário, de resto você não acreditaria se eu te contasse.
Até que acreditaria.
– E tudo isso – continua, quase rindo –, conciliado a que as vendas do retorno à escuridão
nunca estiveram tão altas e a polícia já insinuou sua crença de que ele é o centro da gravidade
de tudo o que está acontecendo – pigarro de novo.
– As pessoas gostam de bodes expiatórios.
– Não me venha com sarcasmo, rapazinho, que o buraco é muito mais embaixo.
– E quanto à liberdade de expressão? – morde o travesseiro.
– Liberdade?, liberdade?, eu te conto que uma população indefinida, digo, mulheres,
homens e crianças, de todas as classes, etnias ou idades está por aí espreitando feito vira-lata
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com fome uma coisa qualquer para saquear, para depredar ou roubar, que não tem problema,
que está jóia, que essa gente está fazendo coisas que nunca na vida sonhou em fazer mas
hoje faz, enforcando-se em banheiros de shoppings ou batendo num desconhecido que nunca
viu antes, gente da classe média oferecendo cursos de mendicância, cursos de mendicância
pra levantar uma grana, e lhe digo que toda essa gente não é réu de coisa alguma, para
começar porque pra ser réu precisa se estar preso, e depois porque não se pode pôr uma
população inteira como réu de seja o que for, e digo mais, que o réu é o livro que você fez, o
retorno à escuridão, e você vem me falar de liberdade?
– Desculpe.
– Agora você pode se explicar.
– Eu não faço idéia do porquê dessas coisas estarem acontecendo e não concordo com
nada disso, estou na mesma situação que você.
– Não, meu caro, a sua situação é um pouco pior.
– Eu não sei, me demitam, se acharem melhor.
– E em que isso resolve?, ainda que provavelmente isso venha a acontecer.
– Eu não sei – cerra os olhos.
– Escute, é mesmo como você falou, eles querem um bode expiatório.
– Eu entendo.
– A sensação da impunidade é muito pior que da injustiça.
– Eu só não entendo por que estou sendo punido.
– Mas você não está, o que está é seu livro, ele não pode mais ser bem-vindo.
– As pessoas que o compram não são foras-da-lei, o jornal está ganhando rios de dinheiro
com isso.
– Até a hora, rapazote, que a pressão não permitir outra saída.
– Mas que saída?
– Que ele não seja mais distribuído, que ao último exemplar a ser comprado ninguém mais
possa possuí-lo.
– Por quê?
– Porque ele será, agora, oficialmente errado.
– Você acha?
– O quê, rapazinho?, se é errado?, é isso que você me pergunta?
– Se você acha que é a causa dessas coisas.
– A idade de achar já me foi. O senso comum é muito mais poderoso. E você?
– Eu tenho uma dessas certezas que não devia ter.
– O que você anda aprontando, Alex?, com que fogo você anda se metendo, desgraçado?
– Entenda, eu não sou nada, só poderia em sonho fazer tudo isso.
– E você sonharia uma coisa dessas?
– Não ordenamos sonhos assim, senhor.
– Eu tenho de ir, estão apitando novamente, chamando por mim. Tenha cuidado, menino.
Muito cuidado.
– Até – e põe o fone no gancho.
Ao lado, Carla o está olhando com um susto que dá dó, com o rosto pálido do qual todo o
sono já escapou, e que o respeitou atentamente até agora. Ele suspira rendido, desarmado,
que não teria garra para embromá-la, tampouco para a verdade, que é sempre mais dura e
exige mais disciplina e paciência, ainda que ao final seja nela que resida um certo alívio
preenchedor de missão cumprida, de não dever satisfação.
– O que foi isso? – ela engasgou.
– Seu tio – ele se deitou olhando o teto.
– Você perdeu seu trabalho?, o que aconteceu?
– Nada, ao menos nada comigo – começa a falar crendo ser sincero, ao final já não está
tão certo.
– Alex – seriamente. – Você não acha que é hora de conversamos?
– É sério, eu não quero envolvê-la nisso.
– Mas eu quero – e o olha fixamente.
– Está tudo dando errado na minha vida – põe as duas mãos sobre o rosto.
– Então!, você devia me falar. De repente eu posso lhe oferecer alguma ajuda, algum
conselho, qualquer coisa, nem que seja pra você chorar, nem que seja pra eu saber.
– Calma, não é para tanto – e bufa roucamente.
439
– Assim não dá mais, é claro que você precisa falar, em algum momento todo mundo
precisa.
– Eu vou te contar – e então a olha. – Só não estou pronto pra fazer isso agora.
– Por quê?, nunca estará pronto, se não tentar. E você não se move.
– Não diga isso, não diga isso – a voz vai minguando –, não é verdade. Ninguém pode ver
dentro de mim. Ninguém.
– Mas eu estou tentando. E você?, tenta ver dentro dos outros?
– Eu não sei. Eu realmente não sei.
Eles se encaram por longos instantes de olhos aguados.
– Escute – ele diz. – Eu prometo que vou te contar tudo. Só não agora, certo?
E ela continua a te olhar.
– Eu prometo – parece sincero. – Certo?
Ela se rende e acena que sim.
– Eu só preciso – e ele se dispersa –, colocar as coisas em ordem – apanha o telefone
uma vez mais.
– Para quem vai ligar?
– Também isso você saberá depois – e disca para André.
Hoje será marcada uma reunião de emergência. Não é coisa que se saiba ser por alguma
nota oficial, uma burocracia e nem mesmo um estado de espírito geral que assim o diga,
entretanto um estado de espírito assim ao menos em alguns poucos é coisa necessária. E Alex
crê que existam coisas tão importantes a serem tratadas que para isso não importa se serão
retirados assistentes sociais dos seus trabalhos, professores de suas salas de aula, com direito
a entrar o diretor carrancudo com um telegrama que avisa ao dito-cujo que o pai acaba de
morrer, e o dito-cujo entenderia que precisa ir para uma reunião. Advogados que saiam de
seus serviços, frentistas que tomem emprestado o carro do patrão, o médico que desmarque
as consultas e o taxista dê carona para todos. Basta uma ligação, não é de se espantar que
seja para André, e bastam algumas meias-palavras, que se tem a liberdade de imaginar quais
seriam, e seriam, por exemplo, agora, ligue já para todos. E André entenderia.
E então Alex estará sentado num dos bancos do metrô, prepara-se para realizar mais uma
viagem por caminhos sinuosos por trilhos, ruas e calçadas, seria esse o seu pão de cada dia,
por azar às vezes também ingere aquele que o diabo amassa. Estará com a cabeça porque
teme ser reconhecido. É quase como visse ao lado a fileira de cartazes com seu rosto
sorridente e a recompensa que se espera por ele, ou vivo ou morto, que o pessoal que o
procura já é muito ocupado para ainda por cima ficar se atendo a detalhes, onde já se viu. Aí
ajeita a jaqueta sobre o corpo, sopra um frio febril, meu corpo deve estar apodrecendo, pensa,
eis o hálito da morte, se não muito, da doença. E a gente que se aperta uma na outra vai
lotando os corredores. Conversam coisas tão distantes de sua realidade que por um tempo
mínimo ele vai relaxar e se esquecer de si, mas como é para não se acostumar demais ao
gosto, não é para aproveitar muito quando é a saudade que vem à calhar, começa por ouvir um
som de lambida, não exatamente de lambida, mas som de papel folheado, então é certo que os
dedos gordurosos que o reviram passaram por alguns segundos na boca de quem, supõe-se,
pertencem esses mesmos dedos, e como para se provar que as coisas não podem ser tão
irônicas assim, para não dizer escrotas, ele vai olhar para trás. E no colo de uma mocinha ali
está o retorno à escuridão. Não a conhece, não faz a menor idéia de quem seja e para
ressaltar ainda se diz que tem raiva de quem sabe, mas pela forma que está lá de olho numa
dessas páginas avançadas, ou seja, pelo menos já umas trezentas páginas assimiladas pela
cabeça da moçoila, começa a imaginá-la na intimidade de seu quarto de paredes ainda rosas,
é uma menina que começa a ser mulher mas ainda é menina, e está balançando as perninhas
na sua cama com bichinhos, enquanto isso dá risadas porque está passando a noite em claro
para ler o retorno à escuridão, não consegue desgrudar os olhos e o que vai vendo é muito
interessante. Alex olha para frente, está tremendo. Entende que muita gente lê no metrô, e
alguma relação estranha com isso implica que sua parada esteja cada vez mais distante, isso
deve significar que as pessoas lerão mais, ele há de reparar mais, há de ter tempo para se
agoniar com a mínima coisa possível, e ele não sabe se se orgulha como foi recomendado ou
se pula lá nos trilhos quando a porta se abrir. E acaba por não ser nem um nem outro. De olhar
nervoso vai-se este serpenteando ao redor. Se visse um livro de capa preta nas mãos de cada
um dos que se apertam ali consigo no vagão, saberia estar alucinado, é inverossímil, uma
coisa dessas não ocorre, não restaria mais do que sorrir e ter de admitir, chegou a minha hora,
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até nunca, sanidade. Mas ver um livro no colo de um senhor lá do outro lado, e a senhora que
viaja em pé usar uma mão para segurar-se e a outra para ler o retorno à escuridão, não pode
ser tão absurdo assim, está nos limites incertos e nem por isso menos desastrosos da
tolerância, e vamos ainda um pouco adiante, não pode ser tão esdrúxulo que aquele casal de
namorados abraçadinho use um só retorno à escuridão para os dois lerem, que bonito, e um
velhinho perguntando ao jovenzinho onde foi que o comprou, como assim onde?, ele está em
toda parte. Vêm os pingos de suor descendo pela testa, e aí supõe por diversão que seria
catalogada nas artes do humor negro um desejo qualquer de se levantar, segurar-se e berrar
com todo o catarro dos pulmões, fui eu. O retorno à escuridão está por toda parte, e riria a te
apontar, porque você não devia ter ignorado nunca a presença invisível que desde o começo
ele exalou, o espírito obsessor que o acompanha, a entidade que está por trás daquelas
páginas, tudo que você notou quando na noite em que foi lançado ele foi posto em sua frente,
você o abriu e as primeiras coisas que ele o disse foi que abandonasse todas as esperanças
caso quisesse entrar, e você entrou.
E agora a vida que ele possui não se alimenta de você, mas de tudo, e agora já não se
pode parar, nem que se quisesse, nem que você quisesse muito. Vai contando carneirinhos
enquanto corre pelas ruas, que é para aproveitar todo sinal aberto e todo mutirão de gente
passando, que é para ou se cegar ou se entupir da visão de coisas inúteis e se precaver de ver
o pior, vai ver assim chega seguro, mas não antes que pare em frente deste semáforo, é,
sempre tem um sinal vermelho para você capaz de nos arruinar a vida, conciliado a isso a
culpa do homem e seu grande problema é não ser onisciente, coisa que evitaria ele ter de olhar
àquela direção aleatória e que evitaria alguma coisa de lhe ser uma surpresa, e de
principalmente lhe ser uma surpresa o gigantesco cartaz com a gravura de um certo retorno à
escuridão cruzado por um x vermelho de negação, de sou contra porque isso é
indescritivelmente pernicioso, enquanto jaz abaixo a mensagem que ele posteriormente vai
identificar ser de uma igreja, escolha pela escuridão e a desgraça do nosso tempo, ou escolha
por deus e pelo bem. Não é preciso ser nenhum perito em publicidade para criar uma coisa
feito essas, ainda que nem por isso seja pouco efetivo, que ao menos ele já se chocou, é de
roer as unhas e arrepiar o braço. E os panfletos ao lado com a foto de uma velha muito, mas
muito sinistra, usando roupas compradas num sex shop, esse couro negro, meu deus, posso
ver suas cochas flácidas, ela de perfil como se ainda querendo mostrar a bunda, não pode ser,
lá está escrito o seguinte, eu te quero só pra mim. E não parece, meu deus, não parece ser
nada que a sociedade criou, sinceramente, foi mesmo uma velha que pôs isso aí, não é de se
espantar ver um número de telefone. Fui eu, se diz, em seguida se pergunta em uma nova,
porém não original vez, o que eu fiz.
E se diz ainda mais, que quão mais quixotesco e bobo sentir-se, ótimo, excelente, vá em
frente, meu caro, seria um ótimo instante para romantismos e tudo que for ameno, às vezes
não ameno, mas idealizado, tudo que não é capaz de possuir nem hoje e nem aparentemente
jamais, e segue pensando essas coisas enquanto se embrenha pelos camarins sujos do teatro,
como metáfora de toda a vida, onde nunca se entra pela porta das frentes, mas se vem
dividindo espaço intrusamente com as peças descartáveis, isopor partido e areia de sacos,
outrora preenchidos, que se rasgaram, não têm mais serventia, mas ninguém pode limpar. Um
ou outro burburinho já se ouvia, que alívio, sinal de que outros já estão aqui discutindo as
coisas que me dizem respeito, falarão de destino, é claro que falarão, o futuro é do que os
outros mais gostam de conversar, finalmente qualquer forma de amparo, um tanto de pimenta
nos olhos de outrem para me recompensar, e que também eles se virem, não só eu, que são
tão culpados quanto, não só eu.
André está ao palco com mais um dos seus discursos, pelo jeito que abre a boca e ensaia
caricatas tão profundas, erguendo os braços, se curvando, abaixando e apontando, pode-se
até imaginar que ensaiou a oratória em casa, frente ao espelho ou com as paredes antes de vir
praticar. Ele sempre fica assim, todo empapado de suor, as rodelas molhadas abaixo do braço,
o peito pegajoso, que volta e meia ele desabotoa os botões da blusa, e grita tanto que parece
estar muito próximo de desmaiar, está dando a sua energia por isso, o seu sangue, e esses
movimentos de tontura que ele às vezes finge devem ser para ter esse destaque, tem mesmo
esse talento único para berrar com tanta força, não ser ouvido e não se importar. Parece ser
mais uma reunião como qualquer outra. Próxima a ribalta há uma mocinha fazendo as unhas, e
próximo aos pés de André – parece treinar um sapateado, que coisa estranha – Bublitz tira
uma soneca. E quem é de beber, bebe. E quem é de conversar, papeia. É, meu caro. Deve ser
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tarde demais para que eles deixem de ser, nem que seja por um instante, o que se
acostumaram. Então vai desabar sobre uma poltrona da primeira fileira, que pode escolher o
lugar especial que quiser e nem precisa pedir com antecedência, assim ouvirá as
apresentações, isto é, todos os outros, e como gritam, e o que fazem, e com alguma sorte o
inspirarão alguma coisa. E não é que as coisas estranhas tenham tornado-se comuns, aqui se
segue uma que não. Júlia veio parar tão coincidentemente ao seu lado que não pode ser
coincidência, até o olha para cumprimentá-lo, mas bem, vai ver só o notou estando exatamente
aí no último instante, aí se corrige com esse aceno, mas não será de se espantar se ela se
resguardar por alguns segundos com o silêncio que esconde a inquietude, depois levantar-se e
ir embora. Mas Júlia ficou assistindo a encenação do cara lá de frente, pelo jeito que ele se
contorce e passa os dedos pelo ventre, como coisa que vem do fundo, e depois dá com um
punho na palma da outra mão que tem, deve estar falando de tragédias ou urgências ou coisas
fortes com que ele não há de se importar. Ela também não.
E ela ao que parece está tentando chamar atenção, ter com ele mas não sabe como
começar, insinua seja por pentear os cabelos com os dedos, às vezes por respirar mais forte,
ou por descer com a mão na poltrona com um pouco mais de força, que é para fazer aquele
estrondo, os sons se comunicam de forma que esse tem as sílabas inconfundíveis de um estou
aqui. E ele pensa este ah, não, teimando em escondê-lo, mas na fossa em que está tudo deve
ser gritante demais e desejoso de saltar no regaço dos outros, o de Júlia é angustiantemente
bem-vindo.
– Que cara é esta? – ela quebra o silêncio e pergunta.
– Precisa se acostumar com ela – e a cara à qual se refere divide espaço com o cigarro do
entrededos, que tudo é segurado na mesma mão, algo tem de conter esse instinto de escorrer,
está se esmilingüindo feito açúcar em temporal.
– André disse que você estava preocupado – então é isso, a pena.
E ele dá de ombros, é evidente demais, sinta o que quiser, mesmo nojo, chega um ponto
em que não se importa mais, eu não me importo. Por fim só vem a falar muitos instantes
depois.
– Obrigado.
– Por me importar?
– Acho que sim.
– Não há de quer.
– Eu não tenho mais o que dizer – e pisca os olhos com força.
– Então deixe comigo, eu sei algumas coisas. É irônico.
– Eu sei, eu sei. Tudo isso é.
– Não é de tudo que estou falando – e sorri um sorriso molhado.
– Não me torture, por favor – e se deita de cabeça para baixo.
– É disso – e o aponta como se em resposta a um bingo – que eu me refiro.
– Não entendo – engasga quando tenta fumar nessa posição.
– Você não se sente um pouco errado, não sei se o termo é esse – e ela se debruça sobre
o braço –, mas expressa mais ou menos o que eu quero dizer, então, você não acha um pouco
errado que possamos ter uma situação como essa?
– Como essa, de que jeito? – a voz vai morrendo.
– De nos importarmos um com o outro, e se isso não se aplica a você, então que seja a
situação de apenas eu me importar.
– Por que seria errado?, por não nos darmos bem, mas uma insistência metafísica teimar
em nos pôr juntos?
– Sabe, eu não acho isso – e se treme um rostinho triste.
– Eu também não acho que haja uma insistência dessas, apenas – e não sabe o que dizer,
desiste para não se cansar.
– O que eu não acho é que não nos damos bem.
– Mesmo? – o cansaço de quem não quer ouvir a resposta.
– Eu sei que implico com você, e que não há causa justa para isso.
– Certo.
– Mas também nada justifica esse seu bloqueio comigo.
– Eu realmente não sei, Júlia – passa a mão por sobre os olhos, já pediu para que não o
torturasse.
– Se eu me importo com você, me sinto mal, porque parece ser algo que você não quer.
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– Não faça isso, por favor.
– Estou tentando ser sua amiga.
– Eu não posso ser ajudado.
– Não seja dramático, você sabe muito bem que está longe de ser assim.
– Eu não posso ser ajudado – repete e revira várias vezes os olhos –, o que você deve
estar tentando é fazer eu me conformar que a idéia de tudo estar uma grande droga não pode
ser assim tão ruim.
– Pensei ser essa uma forma e tanto de ajudar – e sorri.
– Não, isso é amaciar a carne antes de devorá-la, não é algo que eu espere pra mim.
– Alex, eu não entendo muito bem essas suas metáforas – e continua sorrindo.
– Então, veja isso – e aponta ao redor.
Alguns segundos vão se passando, permite que o ambiente se manifeste, e ele o fará por
todas as direções, como o rapaz lá de trás que salta pelas poltronas e com isso ensaia algum
tipo de dança da vitória, ou o círculo risonho dos frustrados anônimos, cuja reunião deve
começar da seguinte maneira, meu nome é fulano de tal, sou um frustrado, e aqui dirão oi,
fulano, ao que ele continua, e estou há tantos dias sem levar desaforo para casa ou tomar na
cara quando posso revidar, ao que recebe os aplausos de complacente camaradagem.
Bonaparte segurando a barriga como se a pança lhe fosse fugir, deve lamentar um ataque da
gastrite daqueles a julgar pelo como sua, jeito que só os gordos sabem fazer, e não sabe se
senta-se ou vai embora para casa antes que a dor o mate ou ainda se corre a fim de partir a
cara de sujeitos como o cara-de-bunda, que precisam vampirizar a paz ou a dor dos outros.
– O quê? – Júlia e o jeito risonho de quem não entendeu.
– Digo – e move as mãos como quem diz para olhar atentamente –, essa era pra ser uma
reunião de emergência, um encontro onde a gente devia estar ouvindo atentamente – e aponta
para o palco – alguma coisa que todos teriam a dizer, e ao contrário disso não temos nada.
Estão fazendo o mesmo nada. André achando que fala para alguém, uns dormindo porque
acham que nada mais vale a pena, outros porque não dão a mínima pra eles próprios. E isso
quando devíamos estar chegando a alguma conclusão, eu não sei onde pus a cabeça, deve de
ter sido na latrina, quando achei que alguém aqui podia nos trazer alguma informação e juntos
chegarmos a algum lugar, nem que fosse uma conclusão das mais decepcionantes.
– Eu entendo – ela assente.
– Estão acontecendo coisas diretamente relacionadas à sociedade, entende isso?
– Entendo – ela não parece querer mesmo discordar.
– Coisas que dizem respeito à todos nós, que podem comprometer a todos.
– Sim.
– Seja pelas loucuras que nós incitamos, as loucuras que uns de nós resolveram fazer em
público e outros seguiram o exemplo, seja pelo retorno à escuridão estar por aí. Seja até
mesmo por todo mundo ter tido essa idéia de fazer algo estúpido simultaneamente, seja uma
coincidência das piores.
– Eu sei, eu sei.
– E não estão dando a mínima, ou não conseguem dar.
– Acho que se preocupar é bom. Acho que você devia – já tinha se desacostumado com
seu jeito de falar. – Mas não assim.
– Não é um problema que se resolva com essa psicologia, caramba, que é um sentimento
que não se mensura, não há como moderar.
– É egocêntrico achar que esse é um problema que pese exclusivo sobre você.
– Achei ter dito que queria ser amiga, ajudar, coisa assim – rosna.
– Isso me põe no dever de falar umas verdades, não acha?
– Eu sei – e ele coça a testa, por algum porquê ela pesa –, você está certa.
Esses abismos do silêncio que não se prevêem acabam arrombando as portas da ocasião
e chegando, mas não por muito. Ela entrecruza seus dedinhos e olha para o além. Ele não a vê
como uma ameaça e não se importa em perder, fazer tantas concessões que acabe por se
destruir quase sem querer, dar poder para que ela possa pisoteá-lo, acertá-lo na nuca com um
salto agulha, e tendo acabado o deixará agonizando no chão a aproveitar os últimos segundos
que o restarão, ela ainda sorrirá com o rosto inofensivo, não será um fim de todo mal. Ele está
se levantando do chão, mas sem ter sido pisoteado. Por fim senta-se como tendem a sentar-se
as pessoas comuns.
– Isso não pode te prejudicar? – ele torna a perguntar.
443
– Talvez.
– A verdade é que você não está tão envolvida quanto alguns de nós.
Ela não respondeu.
– Eu fiz o retorno à escuridão. Esse é o nome de minha paranóia, é a minha culpa.
Ela continua não respondendo.
– É por André que continua? Ele é outro que está afundado até o pescoço.
– Eu me entendo com ele.
– Eu não duvido. Mas é o caso?
– Já o tenho em casa, me parece que bastaria.
– Então, por quê?
– Talvez porque eu queira.
– Por si mesma?
– Talvez – não muito vívida.
– É sempre esse talvez, mas você podia me responder.
– Mas eu posso não ter uma certeza.
– É, pode não ter.
Apenas é pessoa que esconde muito bem essa ausência.
– Aquele dia no bar – Alex continua a falar –, quando você soube o que tinha acontecido, o
problema do hotel, você me disse que preferia ser cúmplice que envolvida sem saber, disse
isso, ou algo muito parecido.
– Eu não te disse, fiz isso a todos.
– Isso não muda nada – dá de ombros.
– Para mim faz toda diferença, mas é isso mesmo – ela mordisca os lábios. – E continuo
dizendo. Ainda que agora eu ache muito diferente.
– A cumplicidade pode não valer a pena – ele arrisca.
– Não é isso, apenas acho que seja diferente.
– Em quê?
– Eu não sei se vocês são os responsáveis por isso, mas acontece – ela pára, pensando –,
acontece – retoma – que o que antes seria um crime, ou vários deles, porque tudo o que vocês
fizeram não esteve restrito ao episódio com Carina – e a tranqüilidade sacal ao mencionar a
morta inominável, esse passado não tão bem enterrado –, não é mais tão crime assim. Vocês
se complicaram ainda mais. Vocês fizeram que algumas coisas deixassem de ser o que foram
feitas para ser, vocês foram mesmo longe.
– Vocês, o jeito que você fala, você realmente não se inclui.
– Pelo contrário, faço isso mais do que quis, Alex – ela suspira, rindo –, só talvez menos do
que você gostaria. Eu devia me incluir?
– Não foi uma ameaça, nem nada assim.
– Eu sei que não.
– Mas você não tem medo que te descubram?
– Às vezes.
– Eu sei que não me comparo a você. Isso é, você conquistou uma vida.
– Sim, é claro, não há nem como comparar.
– Eu sou aquele cara que quer se destruir, o psicastênico, perverso etc, mas você não.
– Psicótico, Alex – ela sorri. – É mais simples.
– Psicastênico também serve pra mim, mas com você é diferente.
– Eu sei que em aspectos como esse não temos como nos comparar, mas não é que
sejamos tão diferentes assim.
– Eu não sei – ele dá com a cabeça. – O jeito que você mostra temer – e é interrompido.
– Você teme, mas está aqui, e parece não conseguir tolerar a idéia de que com outro
possa se dar a mesma coisa.
– Mas você pode ir embora – e trinca os dentes. – Essa é a diferença.
– Isso talvez torne a minha estadia na sociedade mais legítima do que a sua – e sorri.
– Não, Júlia – se enoja e se volta para outro lado. – Isso, jamais.
– Eu sei que não. É das coisas que não se comparam.
– Isso está entranhado em mim, ou entranhado de mim, sou eu, não se diferencia –
resmunga.
– Eu acho que você devia relaxar.
– Está entranhado em mim como a malícia está em você – resmunga ainda mais.
444
– Apenas relaxe.
– Você ouviu o que eu disse?
– Sim. E você, me ouviu?
– Acho que não – e pára um pouco, olha à frente, embasbacado, que se deu conta de algo
muito importante. – Os diálogos funcionariam melhor se eu ouvisse.
– Eu imagino que sim. Eu sei que não estamos na mesma situação.
– Eu sei – abaixa a cabeça e acata.
– Eu sei que temos que nos preocupar com algumas coisas iguais, e outras inteiramente
diferentes.
– Eu sei.
– Mas, se você quiser, eu te ajudo – venda sua alma. – Se você precisar.
Ele a olha, não será exatamente esse um obrigado, mas a olha de fundo a fundo, um
contato breve de seu rosto rude e pupilas rudes com rosto sardento e jeito lânguido, é feita a
comunicação que não se traduz, e então é quebrada pelo burburinho que vem aí. Ele volve o
pescoço e dá com uma discussão na ribalta, um grupo possivelmente interrompeu o falatório
de André ou intrometeu-se para opinar, coisa assim não vai deixá-lo com o melhor dos
humores, por isso se ouve, ainda que não se escute, a voz dele aumentando de volume, é o
pretexto para se começar uma disputa entre quem fala mais alto, brado aqui e acolá e gente
que nada tinha a ver agora se mete, coisa que procede até aos círculos mais normais e nos
revela a vocação contínua de preferir a força ao invés do conteúdo. Ao que parece alguém
acidentalmente acordou Bublitz pisando em sua barriga e ele está realmente ofendido,
apontando e tagarelando e ameaçando o sujeito que tem a boa vontade de tentar se justificar
onde não ouvimos uns aos outros. É melhor chegar um pouco perto para ver o que se passa,
então pede autorização a Júlia, isto é, autorização com intuito de ser um olhar de licença, mas
uma licença não exige uma concessão tão grande quanto ela o deu, um relance com um
carisma tão profundo quanto da mãe que diz ao filho, eu permito. É motivo para que
resmungue, e agora está pisando nas garrafas vazias e restos de coisas usáveis, o mundo é
feito delas, o mundo é para uso, e é o mundo que foi deixado assim ao chão, ao que ele vai
serpenteando. Que houve?, que houve?, já falam uns outros que vêm se aproximando, mas as
respostas são satisfatórias risadas que confirmam que, como sempre, se há com o que se
importar já estamos a rir delas, subtraímos a importância dessas coisas para de repente igualá-
las a nós. Lá está Habib, pisando no fumo que acaba de consumir, sorrindo como se
concluísse coisas sacais e fizesse uns juízos terríveis das palavras desse que agora se dirige a
ele, o que deve constranger a qualquer um e logo vai fazer com que esse mocinho deixe de
ousadia. E ele o chamou concisamente com a mão, venha, venha, que agora deu-se conta de
que Alex está chegando e as coisas hão mesmo de se agravar.
André também tomou partido e o está acenando mais desesperadamente, venha, venha,
que eu tenho o que falar. Ele não sente o estômago embrulhar nem coisa parecida. Se mais
desgraça vier não terá exatamente com o que se espantar, talvez tenha chegado a ocasião da
sua vida que, como já temeu e anteviu, a única ajuda possível é conformar-se em enxergar a
miséria, um ostracismo desses bem letais que nos fazem eremitas cercados de gente, como
não sendo assim um estilo de vida tão ruim, vê lá, de repente ele se adequa com facilidade à
cela de uma prisão com piolhos e baratas, ou ao roupão branco que se dá aos indigentes.
– E o que foi, agora? – já chega rosnando.
– É um absurdo, um absurdo – pega de alguém um fragmento do assunto.
– Nesse caso, é melhor especificar – meiosorri.
– Chegou a notícia – André não pode deixar outro falar – de que uns rapazes foram presos
por agressão.
– Não esqueça do vandalismo – Habib.
– Agressão – Bublitz chega esfregando os cabelos – é o que vou fazer com aquele merda
que pisou em mim, é uma falta de respeito que... – e é interrompido.
– Desse problema tratamos depois – André quem o faz. – O caso é que uns rapazes foram
presos.
– E daí? – Alex.
– E daí? – como quem perguntou e daí? do óbvio. – Podem dar com a língua nos dentes, e
daí?
– Eles têm motivos pra isso? – Alex.
– Eles têm motivos pra qualquer coisa das quais fazem? – André.
445
– O retorno à escuridão não é loucura deliberada – e sorri.
– Alex.
– O que eu quero saber é se estavam fazendo algo para a sociedade. Depredando,
roubando, comendo bosta e rosnando na privada como aquele cara do outro dia fez,
abordando freiras, eu não sei. Então me digam o que aconteceu e tornem tudo isso um tanto
mais fácil.
– Pergunte para aquele rapaz – André aponta para um sujeito sentado na ribalta –, que foi
o único que escapou, quando você ouvir vai ficar louco.
– E então, você aí, o que aconteceu?
– Estávamos eu e uns camaradas – o rapazinho começa a contar – pra apanhar as barcas,
isso foi ontem à noite, nos conhecemos todos aqui na sociedade, entende?, e passamos a
andar juntos.
– Eu não quero saber desses detalhes, mas acho que você deve explicações a todo mundo
aqui – e arrota.
– Sim, sim, vou continuar. Íamos apanhar as barcas e atravessar a baía, tínhamos o que
fazer do outro lado da cidade, uma festa das boas, aí aconteceu de por um acaso a saída
atrasar, ficamos mais de trinta minutos além do prazo lá dentro, sentados, a esperar, já
ouvíamos as pessoas cochicharem entre si, você deve saber, dessa gente que se queixa e
quer tudo funcionando, mas quando esse funcionamento lhe é tirado das mãos tudo o que
fazem é engolir o grasnido.
– É uma observação interessante, e então?
– Organizamos um ato de protesto.
– Sei.
– O de atrasar o serviço da gente que não nos instrui o porquê da demora e fica lá,
relaxando, quando tanta gente tem mais o que fazer e perde o seu tempo pela incompetência
dos outros.
– Eu não perguntei das suas causas, ainda que sejam interessantes, mas agora apenas
quero saber o que fizeram.
– Saltamos da barca para a água, e subimos e fizemos de novo, que assim a barca não
saía de vez, eles não podiam se responsabilizar por um acidente. Eles falaram pra parar, que
era proibido, e nós respondemos que não víamos onde estava escrito que era. Falaram que
era proibido porque estávamos atrapalhando, e eu disse que eles também estavam, com essa
incompetência de merda, então que se é por isso que se juntassem a nós.
– Sei, e aí?
– Aí falaram que iam chamar os guardas, não ligamos muito, ao que um de nós pegou um
dos tripulantes, sabe quais são, não é?
– Aqueles que ficam esticando a mão pra equilibrar as velhinhas nas entradas.
– Isso mesmo, para que o balanço da água não faça uma delas meter o pé em falso e as
derrube de cara nas águas, o que seria engraçado de se ver.
– Sei, continue.
– Atiramos um desses caras na água, e falamos algo como, festa na baía.
– Muito inteligente. A polícia veio e os prendeu – acena.
– É, mas eu consegui fugir, corri bem rápido para a praça, entrei pelo mergulhão, aquela
entrada para os ônibus, e não viram em qual deles me meti.
– Certo. Viu, André? – e se volta a ele. – É apenas isso.
– Como assim, é só isso?, eles foram presos – e André vem ao rapaz. – Só falta você vir
me falar que não tem problema algum, que está normal, não há perigo, coisa e tal.
– Você, rapaz – Alex se dirige ao rapaz de quem não sabe o nome, também não o quer
saber –, conhece teus amigos melhor que nós, ainda que convivamos todos nesse chiqueiro,
mas a sua opinião certamente tem mais autoridade.
Todos vem chegando mais perto para escutar, seja ali por sobre o palco, seja logo ali
abaixo, a fileira de gente que parece desejosa de alimento ou aguardar um resultado
importantíssimo para a vida de todos, por ora não é que se faça um silêncio respeitoso, mas
algo próximo a isso, algo que já não se ignora.
– Então – ele continua falando depois de espiar a gente que o observa –, você acha que
dariam com a língua nos dentes?
– É claro que não – responde com firmeza. – Fizemos o pacto. Escolhemos fazer. Não
fomos obrigados.
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– O pacto que todos fazem ao entrar na sociedade – Alex incrementa.
– Vocês se esquecem que é uma ocasião especial, as coisas lá fora não estão boas para
nós – André, que não se cansa, e fala para o público. – Se nos descobrem seremos acusados
de crimes que não cometemos, sentenciados com julgamento ou sem, a critério da justiça dos
outros...
– O que diabos você está fazendo? – Alex ri e pergunta.
– O quê?
– Fale comigo, você está falando comigo, não dando uma palestra, se dirigindo assim a
todo mundo.
– O assunto é público.
– Isso é retórica, não estamos resolvendo nada.
– É o que também acho – André chupa o ar com uma expressão severa. – Só se resolve
se expulsarmos ele – aponta o sujeito da ocasião, o coitado –, se o punirmos para dar o
exemplo.
– Como é?
– Diga a sua idéia melhor.
– Simplesmente a de não punir, porque não há porquê, não somos juízes, não somos
nada.
– Temos – André põe as mãos na cintura – de zelar pela nossa segurança. É uma situação
de exceção!, as coisas não são como antes, Alex, e você sabe disso.
– Eles fizeram o que foram propostos a fazer, foram livres, ainda cumprindo com o pacto
porque simplesmente querem, e... – é interrompido.
– Livres dentro da sociedade, do teatro, apenas dentro – André põe o dedo em riste.
– Isso é ultrapassado, foi superado, não existe.
– Eu posso responder – o rapazinho em julgamento se levanta, corajoso – por mim mesmo,
obrigado. Eu não posso falar com certeza por outras pessoas, que só tenho uma boca, o que
posso dizer é que eu não diria nada e me esforçaria pra não dar a deixa de alguém descobrir o
segredo. Simplesmente porque gosto das pessoas daqui. Eu não sabia que isso seria ruim pra
todos vocês, desculpe, eu não teria feito – e então sorri. – Mas foi bastante divertido.
André é obrigado a morder a própria língua, cruza os braços, mas não pode se render.
– Então, a julgar que seja essa uma reunião de emergência – fala a todos –, o que vocês
têm a dizer?
– Eu não sei nada sobre o que tem dado nas notícias – diz um.
– Eu também não sei, fomos acusados por injustiça. Porcos safados – diz outro.
– Eu quero vomitar... – uma garota chora.
– Não fomos acusados, seu ignorante – retruca outro –, apenas estão receando que isso
venha a acontecer.
– Ao que acontece – forma-se a discussão – que a polícia já falou sobre o retorno à
escuridão.
– Isso é verdade? – ai, que dor de cabeça.
– Então, há algo relacionado com as idéias que praticamos.
– E daí?, como se tivéssemos a patente da liberdade, há-há-há.
– Há, mesmo.
– Acontece que essa idéia está por aí, foi-se com o ar.
– Vocês não viram a gente do hotel na tevê?, falando sobre nós?, então.
– Chega disso – Alex bate na testa –, é claro que tem algo errado, só precisamos saber se
vocês, por misericórdia, não ouviram alguma coisa, não sabem, e que procurem saber.
Pelos cochichos e indefinições tudo o que resta é realmente a negativa e um deixar estar.
Há gente que comenta nem mesmo ter ouvido nada sobre esse assunto, esses são os que se
privam das notícias, os jornais só nos trazem coisas sobre violência e pobreza, já nos basta a
realidade para darmos de cara com essas coisas, os jornais deviam encher suas páginas de
tirinhas de quadrinhos. A reunião acabou-se com mais divergências do que as propostas de
início, que ou mais gente ainda resolveu também perguntar, ou mais resolveu omitir-se e
definitivamente abandonar essa comitiva improvisada de auxílio a sociedade. No final, ao que
muito parece, tanto faz como tanto fez, e relembrando-se do que certa vez há muito tempo foi
citado num dos encontros, tinha isso dito que se fosse de uma vontade muito forte que a
sociedade se acabasse, que seria justo que assim se desse, que então acabaria. Talvez nada
venha a depender dessa vontade muito forte, o que exista seja somente uma muito fraca da
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parte deles, uma tão tísica que chega a ser revoltante, é angustiante e, se não for nada disso,
essa opção pela comodidade da omissão e tudo o mais, de repente seja que uma das tantas
facções, os moderados, os extremistas, os drogados, os frustrados, os violentos etc, esteja
com algum projeto misterioso para encaminhar a todos esses males na surdina, e por isso o
tom de distância e o jeito de se olhar torto uns aos outros, coisa que não passaria
desapercebida. Apenas pondere, Alex, que vontades frouxas também não unem a gente por
tanto tempo. Talvez ocorra que não precisem da sociedade, que por isso não se preocupam
que ela se acabe, porque não é uma instituição e tampouco exatamente um grupo, é esse
modo de vir-a-ser e ser no presente que já se impregnou em cada um, cada um que talvez
esteja pouco ligando do que serão de suas vidas, talvez o que vem aí seja fonte de umas
novas sensações e desafios para um universo que já se esgotou e os levou junto à ele. Então
Alex realiza, como olha a qualquer coisa e percebe tudo de todos os mistérios, que a
sociedade torna-se imortal porque a maior parte dessa gente, dessas cabeças de gado rindo e
gritando e dormindo nas fileiras do teatro, descobriu que não tem nada a temer, ou todos se
cegaram para o risco ou aprenderam a ter uma coragem invejável. Se a sociedade não pode
morrer a não ser que os matem a todos, mas não temem a morte, então a venceram. Mas ele
por algum motivo ainda é fraco, teme ter errado, ele e talvez outros mais, mas ele não se
importa, que nunca se é tão exclusivo para dispor de uma maldição diferenciada, seria
pretensão demais, mas enfim, teme ter errado enquanto gente, no final todo o temor é aquele
de no final nos restar a sensação de que podíamos ter feito algo diferente e que dessa maneira
teríamos acertado, dobrado na outra esquina, não saído naquela noite quando disseram que
devíamos ficar em casa, e já que a solução não é a de se trancafiar numa bolha e nela cuspir e
vice-versa os dilemas de coisas que nunca se realizarão por se temer suas conseqüências, ele
tem de retornar à escuridão para buscar umas das coisas mais básicas que já devia ter, na
verdade é inominável, mas o nome chega muito perto de segurança de si mesmo, nem que
seja para sofrer de um jeito mais sutil, sem arrancar os cabelos e temer ter feito o mal, sem
acordar nas madrugadas sem saber se sorri ou sente culpa, e convencer-se de que essas
pessoas poderiam se destruir e ser o que se tornaram sem a sua presença, o que o faz ser
deposto do cargo de demônio para o qual essas almas não rezaram, mas foram atendidas. E
ele olha esses rostos, caminha entre eles, os vigia, que é para aprender, e tudo o que o contam
é que eles não são capazes de ver nada do que vem acontecendo, talvez porque nada
realmente exista, talvez porque desaprenderam a pensar da maneira convencional, mas ainda
não descobriram, como você já, Alex, das dores e prazeres de ser como você é. E ainda vem
um ou outro perguntar, ou ouve essas indagações escapulindo da privacidade do lado, coisas
como, será que há mesmo um perigo?, é melhor eu vir menos para cá e dar mais atenção lá
em casa, ao que os outros responderão, que é isso?, relaxa, que, no fim, todo mundo tem a
sua própria culpa e é com essa que se deve se importar, que culpa coletiva é apenas algo que
inventaram para nos fazer pensar que nossa escolha está absorta e é irresponsável num mar
onde muitas outras convivem, lembremos-nos, dizem os inteligentes presentes à discussão
que se gera, que o retorno à escuridão nos ensina que tudo que existe é o indivíduo, daí parte
todo o resto e isso faz um perfeito sentido. Por fim, cada um é individualmente culpado por
todos males do mundo.
Mas Alex então compreende que está tocando, como numa namorada que se arreganha
um pouquinho mais à sua mão, numa intimidade mais profunda desse ser livre que em algum
lugar o preenche e desse algum lugar o estimula, e acaba por sentir-se mais solitário do que
nunca, porque estar sempre livre é como estar cada vez mais perdido e atazanado. Os outros,
a gente, as situações, tudo pode ofertar sensações em que possa sentir-se a liberdade, mas à
medida em que ele mais se encontra por essa via, por mais que reflete e conhece a si mesmo,
mais ainda se torna um transcendente amoral e mais se distancia de tudo, que se descobre
mais único do que antes se entendia, mais individual que nunca, e por fim chega à mesma
conclusão que antes já chegou, a vitória de encontrá-la novamente está na diferença de como
o fez, e acaba comprovando ser essa conclusão a própria verdade, ei-la, ao se retomar a
liberdade que o mundo nos tirou acaba-se viciado nela, de forma a ser essa a peçonha com
que iremos até o fim nos morder. E no fim morrerá alguém que foi imortal. Se orgulha, por fim,
e em muito breve vai duvidar vezes mais de todas as suas forças e de tudo o que pensou, o
que torna a tudo isso inútil, exceto porque não deixou de se orgulhar.

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Um certo dia desses estava à cadeira folheando o jornal, não está em busca do caderno de
esportes e tampouco da primeira página, que oferece uma passeata sobre sabe-se lá o quê
que sempre acontece, os direitos dos deficientes, então o que está buscando é qualquer coisa
que seja ruim e que acabe por justificar o silêncio de dias ao que as notícias vêm aderindo, há
de comprovar que depois da aparente bonança, que aqui não houve nenhuma, vem a
tempestade, que no fundo só esteve tomando o seu fôlego. Esse jornal que tem em mãos é tão
incompetente que tudo o que o diz, em linhas tão coadjuvantes que até os peritos da leitura,
detetives e coisa assim, precisariam driblar o cansaço e partir para uma segunda revisão, é
que as pessoas estão contratando mais seguranças particulares etc e tal, e que a população
atualmente vem se dividindo quanto a confiança que antes depositava na sua polícia. Isso é
bosta, ele se diz, isso não importa de nada. O que eu quero é ver o nome o retorno à
escuridão, a clandestinidade gritando tão alto, infiltrada em tudo, em cada corpo da burocracia,
num sinal com a cabeça subtendido de homem a homem que vai passando pela rua, ele se diz,
quero ver o modo como nada poderá vir a gravitar, a não ser em torno disso. Gira o cinzeiro
uma vez, o enche com mais tanto escombro de fumo, ao que sem por qualquer motivo
aparente vem subindo o acesso de tosse, dói o abdômen, a respiração difícil, como outro tão
forte que o fez suspeitar do enfisema. Então vai até a janela com a sensação da garganta
arranhar, precisa de um ar. Põe o rosto para fora e contêm a tosse, deus, pensa, estou mesmo
morrendo, sente o gosto de sangue concentrado que tentou ser vomitado, agora o fica
degustando com jeito de quem provou e não gostou, e lá fora faz um dia pálido e sem graça. E
aí, por algum acaso particular e que não o cabe considerar por que olhou para ali e não para lá,
acaba por dar com a calçada abaixo de sua janela e com o sujeito que está mexendo no seu
lixo.
Por alguns instantes se embasbaca, comete o deslize de se debruçar para olhar melhor,
isto é, não é um mendigo que caça qualquer resto de comida, tampouco o pessoal que lucra ao
tirar do lixo latinhas de refrigerante, esse é um caso completamente dos suspeitos, dessas
estranhezas que nos deixa sem saber como permitir o modo do susto vir, o sujeito com seu
paletó negro, a sua sobreveste, alguém que o frentista cumprimentaria por doutor, o distinto
desconhecido com cabelos brancos de alguma experiência de vida, revolvendo sem fazer-se
de rogado, a meter as mãos por dentro do saco das porcarias. Alex curva-se para dentro.
Pense, ele se diz, e a cabeça energicamente obedece, que se ele estiver sendo vigiado é
melhor que não feche estrondosamente as persianas, alguém o veria, mas precisa confirmar o
que está acontecendo, na verdade não precisa, mas é uma dessas curiosidades aflitas que se
impõem como decisivas, então ele se põe de costas na parede e espia como criança a ouvir
por trás da porta. Vê lá, pode não ser no teu lixo onde eles acham que vão encontrar alguma
coisa, algo que o incrimine ou uma pista para seguirem com a investigação, mas citando uma
vez mais aquele ditado que diz de todos termos um pouco de médico e de louco, deve haver o
ditado-irmão que aborda o criminoso. Então de repente estão atrás da velha do cocker spaniel,
esse lixo que já está na rua pronto para ser comido por seu caminhão fedorento, esse lixo é o
de todos do edifício. O instinto contra a paranóia o avisa que está sendo ridículo, ainda bem
que nada ou ninguém pode ouvi-lo daí, enquanto isso a razão das mais evidentes vai dizendo-
lhe, enquanto ri, que é óbvio que estão aí por sua causa, ou melhor, por causa de seus restos.
As costas deslizam pela parede, está encarando o lado de dentro. Revise, ande rápido.
Não há nada que possa te incriminar, ainda que todas as evidências tenham levado até
você. Mas você nunca se preocupou em levar trabalho para casa, você não sabe o que pode
ter jogado fora, você não sabe se a sua conta telefônica te pôs em contato com gente
procurada, e se não isso, se a sua conta telefônica recebe chamadas de tantos números
diferentes e que não podem ser esses números amigos seus, ninguém tem tantos assim, não
nos dias de hoje, nem mesmo você, que é o fantasma desprezível que já andou por todos os
lugares, conhece todas as pensões e que em todo canto haveria alguém cuja jugular você já
mordeu. E chega à conclusão de que repassar todas essas coisas seja inútil, que se eles
quiserem achar alguma coisa contra você, a seu favor, sobre o que for, eles simplesmente
implantam, simplesmente dão um jeito ou simplesmente já conhecem o jeito mais propício de
aproveitar uma falha sua, e sendo todos criminosos, não faz tanta diferença ser algemado e
processado por um crime que não cometeu, a injustiça não seria de todo um engano, só o
apontamento menos preciso de um erro que necessariamente existe. Então ele corre a cruzar
a sala, quase tropeça no tapetinho enrugado, coça as pernas por sobre a cueca, chega à
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escrivaninha e arranca o fone do gancho. Fica um pouco confuso ao olhar, como quem não
associa a forma à essência de uma coisa, o som de tuu contínuo é convidativo, venha cá, use-
me, mas ele não pode, e entende isso, já que lhe vem a inteligente suspeita de estar sendo
grampeado, e não sabe há quanto tempo, e muitas informações da sociedade já foram e viram
por essa linha, e ele que julgou ser coisa inofensiva de se tratar, nunca se preocupou, seria
coisa que se perderia no caos dos milhões de gente que habitam nossa cidade e tem lá seus
próprios problemas e suas coisas estranhas a tratar, ele achou que o caos o trazia privacidade,
e agora reviram sua lixeira, agora ele põe devagarzinho o fone no gancho com jeito de temer
que até a respiração lhe seja ouvida. Precisa de um cigarro para se concentrar.
Pare, vá pensando, isso, trague, assim está bem melhor, finalmente acordou, está tão mais
lúcido. Se houvesse algo que o comprometesse, seja da linha telefônica, da gente que
possivelmente o segue, da equipe das operações especiais que alugou um apartamento em
frente ao seu para vigiá-lo com binóculos que atravessam a parede, certo, não precisa ir muito
longe, enfim, se algo o compromete já o teriam abordado, pedido para que entrasse no carro
que estacionou ao seu lado, e então dito que sua situação realmente se complicou, mais do
que imagina, e ainda diriam, não é como se você tivesse infringido um ou dois códigos da lei
que faz com que não nos matemos e que mantêm, palavras desses que o abordaram, o ser
humano como ser digno de algum respeito e do depósito de alguma esperança, você não
violou um ou outro aspecto da justiça, você foi é de encontro a tudo que seja justo, abdicou de
tudo que viesse da lei, é o anticristo, o avesso, não queremos saber se nasceu para isso ou se
em algum momento escolheu, ou se ainda está tão confuso quanto nós, apenas viemos dizer
que sua situação se complicou e realmente não sabemos que fim dar a você. É, meus caros,
ele responderia, também penso sobre isso e não chego a nenhuma conclusão. Pensa em se
meter numa gabardina e se embrenhar numas ruas sinuosas até que alcance um telefone
público onde possa sussurrar por ajuda aos seus, é claro que vigiando se ninguém o segue. E
aí esse um dos seus falará, então diz aí, por que você precisa de ajuda?, eu não estou muito
certo, responderá. Então está passando mal?, precisa dizer algo urgente, aconteceu algo que
tenha reencaminhado as coisas, alguma medida nova tem de ser improvisada etc etc,
especulação e tal?, então Alex deve responder alguma coisa muito próxima a um não sei bem,
não estou certo, digo, porque a julgar que coisas estranhas vêm acontecendo, velhas em
lingerie de couro nos panfletos das vielas e gente que se angustia nos horários do expediente
esperando uma deixa para que se possa dar uma inspiradora espiadela a mais no retorno à
escuridão, a julgar que essas coisas vêm acontecendo, então um homem a fuçar-lhe na lixeira
feito rasga-saco pode tanto ser nada, um senhor com uns fetiches que a julgar pelo método ele
não quer imaginar quais, como podem ser todas as razões de sua paranóia, no fim do pensar
em tudo isso ele se joga no sofá, fica segundos deixando que o tempo silenciosamente
apodreça a vida, depois estica a mão a tomar o controle da fendinha entre as almofadas e liga
a televisão. Esse é um mundo de toda maneira insano, cheio de manias, é incrível como nos
surpreendemos com elas, é o que ele se diz, tudo parece ser digno de escárnio, então não
sabe responder por que até agora se importou, é coisa que pretende deixar em aberto. Alex
muda para o canal das notícias.
Então lá estaria, à toa, dizendo que finalmente pode pensar um pouco sobre si, porque
está convencido de que tudo que fez até agora há de ser tudo menos isso. Se diria coisas
fúteis, tal qual relembrar-se que a tosse voltou, já a paciência de voltar ao médico não, que
devia se cuidar um pouco mais, não por causa da saúde, mas também não pretende sentir-se
mal. Estaria à toa a desenterrar coisas quaisquer, mas não está, porque as imagens da tevê o
cativam com a reportagem que por coincidência ou encomenda para si estava ali o esperando
em um certo ponto, logo se verá o quê. A moça bonita enruga a testa, que assim te olha mais
penetrantemente, é assim que se dirige a você, e está já na metade de sua narração desses
crimes secundários, sim, Alex já pensou se não seria um episódio dos terríveis, gente que
pulou em bando nas águas da baía e imitou focas aos que passaram, vai ver um suicídio
coletivo nos trilhos do metrô, mas não se excita a supor essas coisas, então afunda com a
cabeça no travesseiro, ruge um som próximo a um mugido e presta atenção como presta um
jovem cansado à aula desinteressante. Aparentemente foi o assassinato de alguém, do filho
que matou os pais, não se sabe bem, mas não é crime por galinha ou dinheiro pequeno, como
da gente que fala errado e constrói nossos telhados e se desentendem pelas causas que
qualquer um se desentenderia, não é nada disso porque essas ruas são bonitas, não é dessas
ruelas escusas sem luz e cheias de lama, então se começa a focar nas imagens do casarão.
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Os polícias vem entrando e saindo e a pouca gente que ganha o pão para espalhar essas
notícias respeita a faixa amarela de contenção, clic, clic, pode ouvir daí as suas máquinas
fotográficas, a imagem vai aumentando, e aumentando, espera aí, essa casa lhe parece
familiar, mas não se lembra de ter passado uma vez na vida por esse bairro, tampouco sabe
como se chega nele, e você já disse, Alex, é a casa que te parece familiar, não as calçadas ou
as árvores, então talvez já tenha visto alguma muito parecida e isso lhe tenha ficado na
cabeça, não precisa esmiuçar muito na memória para saber que não viu muitas casas feito
essas, alguma com fachada igual já bastaria para esse dejá vu. Mas estranho, fica se
implicando, continua a olhar e a imagem não lhe sai da cabeça, uma coisa assim é certa que
nós sabemos simplesmente porque sentimos, ainda que a razão tenha lá as suas falhas, que
contorna com suas trapaças a dizer, é, você não pode explicar, mas sabe que é. Está tratando
de aumentar o volume para ver se não pesca alguma informação decisiva, é quando aparece
com aspecto de que se filmou documento de identidade uma careta que ele conhece.
O queixo vai no chão quando vê aquele rosto gordo e grisalho, o diretor das edições do
jornal das artes, ou da edição, ou de administração, ou publicidade, enfim, ele não sabe dizer,
e como já pensou há muito tempo atrás sobre isso, lhe basta o título tão importante de diretor,
título que agora não mais tem a quem pertencer, porque o homem que o tinha já morreu. É
isso, o viu a única vez em que foi ao escritório, assim como viu a mansão em seu porta-retrato,
agora se lembra e lhe sobe um calafrio que o deixa com a respiração parada, mas continua a
fumar, porque não é para tanto, não o conhecia tão bem para chorar por ele, não é garganta
apertada de choro que o estará impedindo. A moça bonita continua a falar sobre coisas como
tragédia, intrigante ou falta de respostas, ainda que os culpados já tenham sido em sua maioria
identificados e pareça haver um consenso, ainda que o delegado de tal e tal delegacia de
polícia em tal e tal região esteja convencido de que há algo mais, primeiro porque sempre há
algo mais do que parece, depois porque o consenso diz que uns doze homens entraram na
casa para roubar, é mesmo verdade, confirmam, houve o roubo de jóias e de alguns aparelhos
que lucrem se vendidos por aí no mercado negro, a desconfiança do cético delegado deve se
dar porque nada justifica, e não é que realmente precise justificar, mas continuemos, nada
justifica a morte da mulher do doutor diretor, a do próprio, a da filha pequena que acabava de
chegar da escola e da empregada doméstica, o que acarreta em só terem poupado o cãozinho.
Isso nos leva a concluir que todas as pistas apontam para um crime premeditado, acerto de
contas, possivelmente encomendado e com elementos de distração, no caso dos roubos e de
terem comido o que tinha na geladeira e disposto na mesa, pois era hora de almoço, sim, é
isso, comeram, fizeram essa bagunça que visa tão somente atrapalhar a nossa investigação.
Agora voltemos ao estúdio para falar de como anda o trânsito.
Alex entendeu que a propriedade privada está acabando. Então se mortifica, o que mais
tem sentido atualmente seria essa vulnerabilidade, a impressão de que pouco impede que sua
porta se arrebente e dela pule um mutirão de doidos, um bando que só quer entrar, derrubar as
coisas pelo caminho e carregar algo no sorteio do tumulto. Então pensa que, a julgar pelas
últimas coisas que temos acompanhado neste mundo, não tão longe, ao menos pelas coisas
que vem passando essa cidade, muito do que vier a seguir não é de se espantar. Primeiro
começam com a ousadia de roubar o liquidificador do outro, o casebre está precisando de um.
Depois você entra numa gangue para roubar televisores, não é justo que o vizinho tenha um de
quarenta polegadas e você não. Então um dia você chegará tarde do trabalho e uns estranhos
te cruzarão no corredor, lhe dirão boa noite, mas estão carregando o seu fogão novinho, se
não a sensacional máquina-de-lavar. A propriedade privada morre porque não se respeitam
mais os limites do outro, a palavra limite está sendo esquecida, ou no máximo refere-se a
coisas muito mais concretas, como o limite físico, que alguns corpos têm mais massa muscular
e fazem melhor os trabalhos da força, limite de altura, que uns são altos e espichados e uns
outros são baixinhos etc, mas o direito não existe mais, então, ainda raciocinando dessa forma,
não é que você tenha o direito de ser mais forte ou mais baixo, ou você tem, ou não tem, e
tudo que é possível se assalta para si. Primeiro começam as mortes banais porque não se
respeita mais a vida, mas é besteira dizer que não se respeita mais, porque nunca se a
respeitou de verdade, aconteceu que antes já se temeu tirá-la. Agora, com muito mais
freqüência do que na época em que já era um absurdo, em qualquer esquina hão de querer
seu carro, boa noite, te dirão, e virá o tiro nos miolos. E nós sabemos que a impunidade há de
ser uma oferta a mais para a violência, que não apenas tenderá a crescer como fará, e o que
ontem era um vizinho cauteloso hoje já há de se tornar um cidadão convencido de seus
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direitos, direitos ou poder de assalto, que se o roubam, e se ele pode, talvez seja melhor não
ficar para trás, tirar o seu pedaço da torta, que numa sociedade em que ladrão roubar ladrão,
se houver mesmo os cem anos perdoados que cairiam em outros tempos sobre André, essa
prática já nos dispensa a atividade de Jesus Cristo. E isso acontecerá até que não seja mais
uma prática marginal.
Quando todos se roubarem e já estiverem a se matar para violar os bens uns dos outros,
seja a melhor das comidas, quem sabe uma lagosta que preparava para o almoço ou um
ensopado delicioso de camarão, ou até bens caprichosos, utensílios sem os quais
sobrevivemos, mas o homem não vive só de pão e gosta sobretudo de viver bem, eis que
alguns valores estarão no estopim da sua mudança, que não compensará correr o risco de
morrer por um carpete tailandês ou por um aparelho dvd. Então as pessoas descobrirão que
não estão assaltando umas às outras, estão mesmo é em guerra umas com as outras, e o que
pertencia especialmente a alguém pode passar para as mãos do completo estranho antes do
entardecer, que o que fundamenta a propriedade privada são normas desrespeitadas, e não há
mais o que se possa fazer, ela andava numa corda-bamba frágil e caiu. E as pessoas
começarão a perceber que não têm como escapar da guerra que criaram, esse ambiente de
tensão em que algo sempre há de explodir, e não lutarão mais para ter a televisão-cinema ou o
dinheiro que conseguem ao pescar carteiras, e sim pela própria vida, que torna-se subitamente
ameaçada, a vida descobriu-se como bem maior quando todos inconscientemente arriscaram
perdê-la. E Alex estaria roendo as unhas, dando palmadas no colo e balançando-se ao som de
um há-há-há ao perceber que tudo está acontecendo como ele previu, isso está escrito no
retorno à escuridão, assim mesmo, vocês irão se matar, haverá sangue, muito sangue, haverá
loucura generalizada nesse meu estado hipotético de mundo, hipotético, veja só, coisas
hipotéticas não dão nas notícias como calamidade. E depois de se chacinarem por nada, de
futilizarem à todas as coisas, de criarem um caos entrincheirando-se em guerrilhas por nossa
cidade, depois de cumprir o roteiro de coisas ruins que eu propus, ou chegamos no
entendimento máximo de nós mesmos, da coisa mais elementar que perdemos por aí, ou
finalmente acabamos com todos nós, primeiro pelo risco, depois por nos provar que não
valemos à pena.
Mas ele não estapeia as pernas ou ri, tampouco rói as unhas, que parou com esse hábito
quando começou a fumar. Então pensa que deve ter havido uma epifania geral em toda essa
gente, que entendeu e vai pagar os preços para se conhecer, o habeas-corpus que se compra
para ter a liberdade, essa gente não deve mais agüentar séculos de tirania e moral, de
adoração à ídolos e de paz depressiva, enlouqueceram de vez e desejaram pagar com o
próprio sangue. Ou isso, ou perderam todas as esperanças, e terão o seu momento de brilhar,
para nunca mais.
Ele está no quarto terminando de se pôr na jaqueta quando Carla bate a porta lá na sala.
Ele arruma o cabelo com a mão e vem andando. Ela acaba de chegar abraçada com as
compras que fez, mal entrou e diz.
– Então, acho que você me deve uma conversa.
– Outra hora, agora estou de saída.
Ela o olha cabisbaixa, mas ele tem de contornar.

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– Você está encrencado – diz Barbariccia.
– Por quê? – dá com a cabeça para trás, que acaba de sentar e já lhe vem essa.
O som de danceteria está batucando misturando a frenética eletrônica com música popular,
hoje é dia de casa cheia, e ele não se importa a mínima, sequer consegue ouvir nada com
ouvidos de quem escutaria.
– Há quanto tempo não vem me ver? – e fumaça explode das narinas.
– É, faz um bom tempo.
O velho Barbariccia começa a entupir-lhe o copo de uísque, e quanto aos charutos, sempre
são bons.
– Precisa de ajuda?
– Eu não sou desses.
– Entendi, mas não ofende perguntar – e sorri.
– Eu sei, eu sei, é que eu precisava renovar as caras.
– As suas? – dá um solavanco para trás que o papo tremula feito gelatina.
– Não, as caras que eu vejo. Você está certo, estou encrencado – e engole o copo.
– Mas deve saber como eu acho indelicado que venha a mim somente nas horas duras,
procurar um ombro pra chorar, ombro não, que não sou homem dessas frescuras, no seu caso
é uma cara nova que possa fitar. Eu realmente esperava coisa diferente de você, mas bem,
não chega a ser uma decepção, mas o tempo passa e acabamos sem saber o que esperar, o
tempo nos torna pessoas infamiliares.
– Desculpe – abaixa um pouco o rosto –, não sou mesmo a melhor das pessoas.
– Por isso gostamos um do outro – tosse, ou isso é riso, enfim, e enche-lhe o copo.
– Eu só queria – e pára, sem falar nada, olhando em torno, a gente que conversa, aos
casais discretos, as barganhas, as mesinhas privadas, o submundo das coisas, o glamour do
escuro.
– Eu te entendo, meu rapaz, eu te entendo – e lhe cospe fumaça no rosto.
– Esse lugar me traz saudades de uma vida que não tive.
– O que o aflige?
– Sabe como se sentiria uma criança que percebe ter ido longe demais?
– Tenho uma filhinha, lembra-se dela?, entendi o seu exemplo.
– Mas agora não tenho nada que me projeta ou que me diga que pare, e não posso
consertar, as rédeas escapuliram e fui condenado a ser o espectador.
– Que fez? – e se recosta sobre a poltrona.
– Muitas coisas – abaixa a cabeça. Depois resolve virá-la à pista das danças lá em baixo.
– Matou alguém?
– Tecnicamente não – a testa na mão.
– Tecnicamente – caçoa, pigarreia. – Alguém morreu por sua causa?
– Sim, e não duvido que esteja morrendo até agora.
– Então é por sua causa, não por sua culpa.
– Eu não entendo essas diferenças, nunca entendi.
– Às vezes você tem de criá-las onde não há – enche o copo uma vez mais –, mas a vida é
assim, você estipula uma convenção a ela e ela não te desmente, é o que se chama sanidade.
– Eu não consigo me enganar, eu já tentei.
– É porque está achando que isso é se enganar, quando é somente aceitar o subjetivo.
– Eu não consigo me enganar – a testa na mão.
– Isso – e aponta – te torna uma pessoa insegura. Nunca está satisfeito com o que se diz.
Você nunca vai se enganar e nunca vai se convencer de nada.
– Agora você disse algo certo.
– E o que mais você andou fazendo?
– Promete que não conta? – e se debruça sobre a mesa.
– Anda logo – bochechas gordas e vermelhas.
– Você é como um padre para mim, Barbariccia – e toma um charuto.
– Anda, anda – o dedo circula apressado no ar.
– Roubei uma empresa – começa a contar no dedo –, falsifiquei documentos para dar uma
festa de arromba num hotel, você não faz idéia do que foi, fiz orgias com rostos que vejo
passar na rua e não recordo, se bem que isso não é assim tão criminoso, ainda que a parte de
incentivar incesto e sadomasoquismo – pára, pensando – talvez sejam, atentado violento ao
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pudor, também tem a parte do sexo em público, eu não sei. Depredei lojas, roubei, assaltei à
mão armada só por diversão, dei uma lição num garotinho esnobe atendente de caixas,
defequei numa loja de tapeçaria e fugi, seqüestrei uma freira para fazê-la admitir de que deus
não existia, paralisei o metrô nas últimas horas de funcionamento, quase fiz uma pessoa se
prostituir, já com outras consegui, instiguei o suicídio, ri do assassinato, vi gente mais fraca
apanhar da mais forte, instigo gente que eu quero bem e outras com as quais não me importo a
fazerem coisas que estraguem suas vidas, como beber todos dias e faltar no trabalho,
responder o patrão, trair sua noiva etc, eu também fiz pichações em toda a cidade, e produzi
cartazes pra sair colando por aí, mensagens ridículas, puramente agressivas, tudo o que eu
quis foi chocar porque achei muito divertido. Eu quis ser livre e disse que as pessoas podiam
ser livres. E elas me levaram a sério. E agora está funcionando. Eu matei uma mulher e joguei
seu corpo na baía. Todas essas coisas quem fez não fui eu, ou não apenas eu, mas em todas
eu estava lá, eu olhei de perto, tornaram-se parte de mim. E se nem todas elas eu quis,
algumas eu fiz sem querer, mas fiz.
– Você está encrencado – assente. – Mas tem uma vida excitante. Explique-me essa coisa
de ser livre.
– Não – e faz que vai bater a testa na quina –, você também, não.
– Vamos lá, não te custa nada, eu sou uma curiosidade tumular.
– É uma doença – sussurro gritado, olhos esbugalhados.
– O que é uma doença?
– Essa coisa.
– Eu não sou um menino, não é como se você fosse me seduzir, anda, anda.
– Montamos uma sociedade – desabafa – onde as pessoas são livres, elas podem fazer o
que quiserem, absolutamente qualquer coisa, seguimos a filosofia do retorno à escuridão, que
eu inventei.
– Não me diga! – esbugalha os olhos.
– Não – acena desesperadamente em negativa. – Até você?
– Imagine você que minha mulher conhece esse certo retorno à escuridão.
– Perdoai-me, senhor, eu não sei o que estou fazendo.
– E eu li assim que deu nos noticiários de que ele era a causa para uns crimes – é
interrompido.
– A suposta causa – aponta ferrenhamente –, não me venha com essa.
– Mas você acabou de dizer que... – de novo.
– Aqueles crimes não foram meus, são os crimes de todos os outros.
– Mas você disse que, se não fez, quis sem querer.
– É verdade – se elucida, com os olhos distantes –, é a minha culpa.
– Culpa, não. Mas foi por sua causa. Estou orgulhoso de você – e sorri.
– Agora eu sou conhecido sem o ser – cruza os braços. – Ainda tenho de suportar essa
desgraça para meu orgulho.
– Não há um nome assinado no livro, não é mesmo?
– Era pra ser uma piada. Uma piada de mau gosto. Não se assina uma coisa assim.
– Isso quer dizer que previu algo.
– Sim, eu vivo tendo predições.
– Acho que foi pior não ter assinado, nesse caso.
– Por quê?, pra já virem em cima de mim?, é ainda tão fácil de me descobrir que eu me
apavoro, o que provavelmente já fizeram, e estou aqui conversando essas coisas por sandice.
– Que viessem – e dá com os ombros. – Ao menos você não teria se tratado como
culpado. O maior crime é ser inteligente, ter dessas predições, é, é, como você falou. É por
isso que quando o juiz faz aquele ritual do veredicto, vem aquela estória de inocente ou
culpado, inocente, percebe?, que não sabe, que não percebeu, porque perceber é ter culpa,
saber é coisa muito grave.
– Será mesmo?
– Eu tenho certeza, por isso isto de retorno à escuridão será crucificado, porque foi
inteligente e desertou a tudo, você não poupa nem deus nem a criação, você diz que, deixa eu
lembrar o termo, admite que a única esperança está, simplesmente, na merda que o mundo
tenta diariamente esconder, que reação você esperava?
– Até você – e esfrega a cara. – Não sei bem, talvez que adormecesse na mente das
pessoas.
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– Pelo visto você as acordou – e gargalha, cof-cof.
– Talvez eu quisesse acordá-las, só não sabia que seria assim.
– E se arrependeu, é normal, mas não adianta chorar a pedra, a bala atirada.
– Eu não consigo me arrepender. Eu fico no dilema dos inseguros. É isso que eu sou. Você
acertou em cheio.
– Então se orgulhe.
– Também não posso.
– Então, ora, não sei.
– Nem eu.
– Mas posso te perguntar uma coisa a mais?
– Claro, vem, diz aí.
– O que tenho de fazer – e um sorriso amarelo – para entrar nessa sociedade?
A resposta é um olhar de desespero.
– Certo, bem – se remenda. – Eu devia entender o seu sofrimento e não sei o que mais.
– Tudo bem – e a atenção volve-se para as bandas da pista. – Você pode fingir
solidariedade, já vai estar bom.
Então acaba por perceber, feito mariposa sabedora de onde há luz por menor que seja o
foco, vaga-lume que percebe a freqüência do chamado, aquele vulto entre os vultos lá em
baixo, que se destaca sem brilho ou distinção evidente mas deve exalar um qualquer hormônio
especial, coisa que se fareje à milhas, vai que talvez produzido sob medida para suas narinas.
Aguça o faro, treme o nariz, faz que vai se debruçar para ver mais de perto e a miopia
concede. É ela, e está curvando as asinhas para trás, acaba de tirar a jaqueta e dá a volta em
si mesma ao balcão, esse ritmo da caça.
– Reconheceu alguém? – Barbariccia perguntou.
– Sim, uma pessoa, ela não devia estar aqui.
– Por que não?
– Simplesmente porque não – e continua a fitar.
Ela estendeu a mão, foi pedir alguma coisa.
– É uma garota bonita? – Barbariccia.
– É bem treinada.
– Te causa problemas?
Ela acabou de receber a sua cerveja, faz um contorno sensual e fica a olhar à frente, faz
biquinho para beber, e o garotão bonito já se encostou ao lado.
– Hein?, te causa problemas?
– Eu não quero que você a mate ou algo assim – e sorri, mas não desvia o rosto.
– Como se isso as corrigisse, não as pune, isso não compensa.
– Então?
– Te arranjo uma dessas coisas que vai deixá-la à sua mercê.
– Eu não sei se é isso que eu quero – sorri, e ela está flertando com o rapaz.
– Mas por via das dúvidas eu te dou o poder. Então, poderá escolher.
– E eu já provei que comigo isso é um pouco perigoso.
– Então escolho eu – e assovia um silvar de chamado.
Vem um brutamontes negro saído de alguma toca no escuro, sempre esteve à espreita no
caso de haver confusão, sempre esteve em algum canto, invisível, mastodonte camuflado já a
empinar os chifres, e olha a Alex por trás dos óculos escuros, pergunta com isso o que ele
estaria aprontando.
– Preciso da cápsula vermelha – Barbariccia diz.
E o homem deve ser mudo, que não responde, ou soldado, porque só obedece, abrindo da
jaqueta essa caixinha que deve em tempos remotos ter abrigado a charutos de altíssima
qualidade, agora imagina que esteja enfileirada por cápsulas vermelhas. Está mesmo, ou
melhor, não é que tenha visto o interior da caixinha de charutos, porque o brutamontes é
especializado e não deslizaria, mas de seus dedos, que parecem todos dedões, entrega à
palma de Barbariccia esse comprimido vermelho, pela cor não se confunde com um de dor de
cabeça.
– Se parte isso, se deixa o conteúdo escorrer para dentro da bebida – e o desliza na sua
direção – e você espera mais uns vinte minutos de conversa fiada. Vinte minutos depois, faz o
que quiser.
– Eu não sei se é boa idéia – e o empurra de volta, sorrindo.
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– Por que não?, você disse que matou, saqueou, cagou em público – é interrompido.
– Foi maneira de dizer, esses são outros, mas foi coisa que eu quis...
– Foi você que fez o retorno à escuridão – ele continua –, e agora me vem com uma crise
moral?
– Foi você que fez o retorno à escuridão? – pergunta o preto atrás de Barbariccia.
– Por que não grita pra todo mundo ouvir? – esgana o ar.
– Desculpe, senhor – o brutamontes se corrige e se encolhe.
– Bem, é seu, é um presente, você faz o uso que quiser, mas tem de aceitar.
– Certo – e o toma, pegando-o na mão. Que por mais que contrarie, o que foi dito tem o
seu sentido, ele não pode ser o autor do retorno à escuridão e temer a sua loucura, a que foi
escolhida a dedo para si, mas nas horas decisivas sempre se sente um medo diferenciado, que
o medo sempre quer se fazer vencer a fim de evitar nossa alegria. – Faço o que eu quiser, por
fim, mas eu já ia mesmo falar com ela.
– Não se justifique, vá, e apenas não esqueça de mim. E quando precisar, você sabe.
– Não sou desses, rapaz – se levantando –, mas obrigado.
Então desceu as escadas sem o direito de atravessar os corpos que se amontoam, mas os
violou, que empurra da maneira que consegue, que aprendeu a simplesmente poder as coisas
e os melhores prazeres não se pedem com licença, e então marcha, os ombros mais altos
impedem a sua visão, ele não se incomoda, ele confessou ser inseguro, mas agora não é, está
firme e por não saber até quando assim estará ele trata de aproveitar. Desvia de umas
mocinhas, passa das áreas com as luzes que vão-e-vêm, faz uns malabarismos e acaba por
tropeçar, dá com o peito no balcão, reclama um pouco da dor, pede aquele tipo de licença que
a põe a mão nos ombros dos outros e delicadamente os puxa para que se saia do caminho,
por favor, licença, e eles se retorcem porque se incomodam em ter de se abrir, e então a vê,
está bem atrás dela e prefere não fazer a surpresa. O garotão está sorridente, mexe e remexe
a cabeça de orbes devoradoras, ao que deve pensar se aquele movimento indiferente dos
pezinhos da moça que vão ao ritmo do som lhe é um sinal de avanço, que ela está assim, com
esse rabo-de-cavalo e pescocinho convidativo a uma dentada, chacoalhando com a cintura
quase nada de uma dança imaginária, porque isso quer dizer um ah, meu rapazinho, você me
atiça. Alex ignora esse tipo de travessura desprezível, que sua missão é protegê-la. Se pôs ao
lado do rapaz, debruça-se sobre o tablado, ele não dará por si e se o der será como quem dá
por um estranho, o importante é que Júlia não o veja, porque decidiu fazer surpresa. Faz o
sinal certo ao barman, aponta aqui e faz um número com os dedos de dois uísques.
Escuta, não vou me usar das cantadas tradicionais, mas deixe-me valer de um você vem
sempre aqui?, porque já te vi outras vezes, isso me desperta a curiosidade, resmunga o rapaz,
e Alex está sozinho com uns pensamentos decisivos, o pensamento de suas loucuras, das que
deve fazer para ser aceito na sociedade. Ela está sorrindo, sinal de quem não dá o crédito mas
gosta, esse desafio não é para um mocinho desses. Os uísques chegam, com uma mão
estende o maço do pagamento, a outra acabou de sair do bolso com a lendária cápsula
vermelha. Parte e deixa que o pó de pirlim-pim-pim empoeire dentro de um dos copos. E agora
eu já fiz, diz-se. Tateou nos ombros do camarada e espera que ele se vire.
– Olá, a moça está comigo – diz.
Júlia esconde sua surpresa.
– Está? – pergunta o rapaz à moça.
– Sim – e ela responde com a voz rasa –, eu o estava esperando.
O que não recebe de bom agrado, – Bem, desculpe-me, então certo – engole a educação e
se retira. Alex rasteja ao lado dela à ponto de farejar-lhe o perfume, foi ele que o chamou. E
tome seu uísque, Júlia. E ela sorri com o canto da cara.
– Estou surpresa.
– Reagiu bem.
– É a segunda vez que me segue – e põe a garrafa da cerveja ao lado.
– O quê?
– Apenas pensando alto – e a malícia.
– Eu não a segui, estava ali em cima, te vi por um acaso.
– Então, como você diz?, é a insistência metafísica que teima em nos unir.
– Agora acredita em mim?
E empurra com dois dedinhos o copo na sua direção.
– Obrigada.
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E ela o envolve com a mão, mas ainda não bebeu, e tampouco tudo de uma vez, num
fôlego e num gole, que é como devia fazer, ela sabe ser deseducada.
– O que André pensa que você está fazendo?
– Ele não pensa nada. Está no teatro.
– Ele não me avisou que iria hoje.
– Como se precisasse – estala os lábios –, está lá todos os dias.
– Sei, e quanto a você?
– Eu só preciso chegar em casa mais cedo. E não é difícil.
– Entendi, mas posso te perguntar?
– O quê? – se demora a piscar os olhos.
– Não precisa responder se não quiser, mas por que você o trai?
– Por que sempre que conversamos temos de falar nele? – sorri esse sorriso lânguido e
contínuo.
– É o que temos em comum.
– Não é que eu não queira responder a sua pergunta – e ainda não bebeu. – Você, por
exemplo, tem a sociedade.
– Onde você também está.
– Nem todos são iguais – desliza os dedinhos sobre o balcão. – Tem coisas que eu não me
sentiria à vontade a fazer na frente de estranhos...
– Isso é porque não se libertou.
– E talvez não queira – e sorri –, ou queira apenas até onde me é conveniente. A gente se
satisfaz de maneiras diferentes. Eu não vejo razão ou satisfação em fazer a maioria das coisas
que você faz. Algumas delas eu acho bastante idiotas. Mas eu te entendo – e toca levemente
em seu ombro, soco de brincadeira. – Eu realmente te entendo, você é diferente, não chego a
te respeitar, mas é algo que chega perto.
– Bem, obrigado – e não sabe se ri.
– Ao menos não é indiferença o que sinto. Acho que você também não sente isso por mim.
– Não quer o uísque?, bebo eu e peço outra coisa, se preferir – cínico.
– Quero sim, obrigada – sorrisinho –, vou beber. O que acha do que te falei?
– Realmente, não é indiferença, e esse já deve ser um bom sintoma.
– Estou certa – e finalmente toma um gole, ele vai torcendo para que desça mais, é tão
pouco que o angustia.
– Então, com quem você transa?
– Você cismou com essa coisa.
– É que apenas me revolta um pouco – meiosorriso de escárnio.
– Fica com ciúmes?
– Não é por mim.
– De André você não parece ter. Ele me abraçando. A mão dele na minha calcinha.
– Pára com isso. Não é por mim.
– Claro que é. Mas você deve me entender.
– Não, eu não entendo.
– A Júlia que está aqui não é a mesma do dia-a-dia, são máscaras diferentes,
necessidades diferentes, achei que você percebesse isso mais do que ninguém.
– E qual a verdadeira?
– Também achei que não faria uma pergunta banal feito essa – parece desapontada, e
toma mais um gole. – Não existe Júlia verdadeira e nem Alex. Somos tudo isso e talvez nada
dessas caras. Não?
– Pensei estarmos tentando nos descobrir.
– Você pode estar tentando – ela ri. – Só não acho que conseguirá. Me avise se esse dia
chegar.
– Eu não sei – e não sabe dizer do que não sabe, fita o vazio adiante.
– O quê?
– Você sempre me confunde, mas sempre é convincente.
– Que bonito – e essa simpatia é uma agressão, como se falasse a uma criança –, está
desabafando comigo.
– Eu ando chateado com André – ele bufa.
– Eu não quero falar dele – ela olha para o outro lado.
– Ele tem se comportado como se pudesse resolver tudo, mas não pode nada.
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– Alex, por favor, não – ela choraminga.
– Ele temeu que tivéssemos um caso.
– Eu sei – e abaixa um pouco a cabeça.
– Acho que realmente se preocupou com isso – e não sabe se ri.
– Eu sei...
E então se vira inteiramente para ela, que assim pode ver melhor o rosto, olha o abismo, e
ele está a encarar de volta.
– Você foi a responsável por eu ter sumido aqueles tempos.
– Eu sei – ela retorce a testa, complacente.
– Eu sei que não quer falar disso, desculpe, é que me entristeceu – agora faz chantagem.
– Não, tudo bem – ela se dá por vencida –, você está certo. Sufocamos por muito tempo
esse assunto, você fingiu – repare, você, não ela, cretina – que o tempo tinha apagado esse
assunto entre nós, só porque o tempo nos fez mudar, você fingiu não nos reconhecermos.
– Não fale como se a culpa fosse minha, eu não lembro de qualquer mobilização sua –
rosna.
– Eu não tinha porquê...
– E por que pensa que eu teria?
– Porque do contrário não teria voltado.
– É muita pretensão sua – dá com os ombros e com a cabeça.
– Não precisa se ofender – sorriso de quem está no controle. – Apenas diga a verdade,
qualquer que seja.
– Você é uma piranha – e ele ri, bebendo do seu, que não é maçã envenenada. – Eu
sempre tive uma esperança de poder me vingar.
– Se vingar do quê? – ela não pára de sorrir.
– De nada em específico, da angústia que me causa.
– Não é de propósito – revira as mãozinhas.
– Mentirosa, eu não acredito em você.
– Eu acho – bebe – mesmo que foi por minha causa que você desapareceu, e é também
por isso que você voltou, um assunto pendente não deixa o sono da gente em paz – ela
sempre o trata como um desesperado, um fanático –, acaba ocupando o espaço dos outros
pensamentos, por mais que você seja um cara que esqueça facilmente das coisas, tem ao
menos uma que nunca te deixa, e mais cedo ou mais tarde ela o vence.
– Meu assunto não era com você – obcecadamente fita a frente.
– Não? – zomba, como fosse ela a ter a resposta.
– Meu assunto – e não a olha, olha para dentro –, era com o retorno à escuridão.
– E o retorno à escuridão não era um meio de me atingir? – ela abre um sorriso ainda
maior.
– De início, talvez. Depois eu vi que era muito maior que isso. E você tornou-se um detalhe
muito pequeno.
Ela parece se ofender, calou-se. Não por muito tempo.
– É, talvez eu tenha achado isso porque me convinha – agora se faz de pobrezinha, é um
monstro, não desiste.
– Eu tenho certeza que sim – e tem mesmo.
– Aquela carta que você me deixou, guardo até hoje – mais um gole.
– Foi por aquela noite, a sua casa, estávamos no sofá, você quase me beijou.
– Eu sei, André viu, mas eu pude consertar – ela sorri.
– Então devia ter consertado por mim – tom pesaroso –, não sou bom como você, e ele
não perdoou da mesma maneira. Ele apenas engoliu. E não foi minha culpa.
– Eu sei, eu queria.
– Eu não tive coragem de conviver com meu melhor amigo por sua culpa – e ri.
– Eu lamento muito. Ao menos que bom que você voltou.
– Agora somos outros, tudo tornou-se diferente, a sociedade nos transformou.
– E agora está tudo melhor.
– Não, no presente tudo sempre está uma droga, o melhor está sempre no futuro ou no
passado, você não consegue entender.
– Eu sei que antes você não teve tempo de me querer, mas agora tem, e você quer.
Ele suspira, gira o copo três vezes.
– Se não é verdade, me diz que não.
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E antes que ela termine de falar ele já lhe ergueu o queixo, pôs a mão na nuca por baixo
do rabo-de-cavalo que ela amarrou por prever essa situação, e a puxa o rosto como uma
ordem, ela obedece só tendo o tempo de apoiar-se para não cair. Ele a beija de incerteza,
como quem se pergunta se de fato fará isso, ela reproduz a incerteza, para não ser culpada,
ela retribui o que ele a der, para a escolha ser sempre dele, e será aos poucos que então tudo
fará mais sentido, e agora faz, suga os lábios dela, oásis depois de anos no deserto, entende o
que está acontecendo mas a inteligência esteve atrasada em associar gosto com coisa. Ela o
está tocando nos braços, carinho, um gesto que ele não sabia que ela é capaz de dar,
tampouco ele de receber, então a beija com força, desajeitado e ávido, porque percebeu que
pode, e percebeu que pode acabar. Júlia o está apertando contra o corpo dela, ele sente a
curva e a respiração, ela também o quer, está ofegando na sua cara, respirando na sua boca,
as mãozinhas nas costas rudes, porá sobre o cabelo dele, segurará sua cabeça como quem
doma um burro, arranha-lhe a nuca porque perde o controle, te aconchega porque gosta de
gentileza, separam-se as línguas e ela ainda mostra os dentinhos, feito fera que se mostra
insaciada, com os olhos fechados. E ele já previamente sabe que deve se arrepender.
Ela sorri, você não, mas é tarde. Ela pisca e balança o rostinho, deve achar que seu beijo
que roubou o ar dela, não sabe que foi envenenada. Parece estar tonta mas parece satisfeita.
– Algum problema? – ele pergunta, o tom mordaz de quem virou o jogo.
– Eu acho que um pouco bêbada – e então teve um estalo. – Você pôs algo na minha
bebida?
– Sim, eu pus – e ele ri.
– Cretino – e ela também ri.
– Eu não sei bem por que fiz isso, não precisava.
– É, não precisava – e pelo jeito que faz caretas está a lutar para continuar acordada –,
mas quis me dar um pretexto, obrigada.
– Eu também não pretendia isso – e então percebe que ela é sempre mais inteligente do
que ele supõe.
– Obrigada – e se aconchega no seu corpo uma vez mais.
Então é ela a beijá-lo de novo, os segundos beijos são mais precisos porque já se
acostumou às formas do primeiro, principalmente se foram longos e se pôde refletir sobre a
vida e sobre que raios estou fazendo?, como reflete Alex, e a resposta que tem é muito
simples, estou a devorar o fruto proibido. Ela se entrega porque se inclina, se põe na ponta dos
pés, quer se esfregar toda, quer roçar os seios no peito dele, perdeu os pudores e fez ele
perder os seus, que sempre nos resta algum, então ela lhe é a maior ajuda que podia ter, e não
importa se é a mulher do outro, não existe mais convenção como essa, ela é de quem quiser, e
ele toma o que recebe. Então já estão beijando a terceira vez, já é para compensar o tempo
perdido, e com este os imagina na sala-de-estar, no teatro, dentro do carro, no Schneider, em
todos os lugares que deviam estar, mas não estiveram, e já não sabe exatamente por quê, por
nada, na verdade, porque que isso pôde acontecer de fato tão facilmente, e o temor vencido já
não é mais temor, é um passado que faz nos entendermos como ridículos. Vencer o medo não
o faz sentir vitorioso, o faz perceber como sempre foi ridículo. Ela dobra seu braço na nuca
dele, se debruça no seu ombro e fala ao pé do ouvido.
– Vamos, vai, vamos sair daqui, vamos pra minha casa – sussurra no pescoço.
– Não – e ele ri –, vamos fazer como eu quiser. E eu quero foder você, não o meu amigo –
e ri ainda mais.
– Então certo...
– Você só estará em condições de me obedecer – e a pega pela mão.
– Mas tem de ficar bem claro – ela sorri e se derrete nos seus braços – que é por que eu
quero, e não porque tem de ser. Eu quero, viu?
– É claro que quer – e a pega pelo queixo como a um cãozinho.
E ela corresponde, está a mostrar os dentes, ronronando.
– Eu poderia te agarrar na frente de todo mundo – ele diz.
– Você pode, você é livre – ela arranca o queixo da sua mão. – Mas eu não. Então não
faça isso.
É o mínimo em que ele pode atendê-la. Então a carrega, puxando-a, sente-a solavancar
com a tensão dos ombros, mas o segue, desequilibrada mas em passo rápido, ao que olha
para trás e a vê sorrir libidinosa e balançar embriagada com a cintura, ensaiando dança da
fertilidade, ao que ainda vai abraçá-lo nas costas, o seu jeito é de quem já está longe de saber
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o que faz, e sussurra para que dancem, vamos dançar. Ele apenas a joga para frente para que
ande, era só o que faltava, como se tivesse tempo para isso, e ela ri aos tropeços. Pega-a pela
cintura, ela responde um gemido, a puxa para se esquivarem da gente, ela acata, fecha os
olhos e lhe põe a boca no pescoço, vai ficar ali, suspirando, feito fosse um travesseiro, feito
fossem íntimos. A guia pelo corredor do banheiro feminino, as vagabundas estão com as
bundas nas paredes esperando as vagabundas amigas, falam de homens ou do que não o
interessa, e ele as viola porque passa de uma só vez, elas evitam o atropelo e resmungam da
sua grosseria, ele entra pela porta do banheiro, o cheiro rude de intimidade de mulher deve
partir desses garotas que se pintam em frente ao espelho, comentam risonhamente sobre seus
casos até que a primeira note que um homem vem entrando tranqüilamente, e então segue-se
uma cadeia de cochichos e do espanto de quem não sabe que este é Alex, que diz que se um
homem e uma mulher se amassam e cismam em querer entrar numa das cabines do banheiro,
vão entrar e não será ninguém a impedir. Então joga Júlia lá dentro, vai ele em seguida, bate a
porta, a tranca. Será aqui, num banheiro, ele se diz, da mesma maneira que no exato banheiro
ao lado deste eu vi André pela primeira vez, agora aqui, que é para equilibrar, eu fodo a mulher
que devia ter sido minha. E que eu nem mais quero que seja, mas tenho essa dívida a pagar
com o destino, a loucura que me cabe fazer. E antes que tenha tempo de duvidar do que
realmente acha, ela já lhe pulou no pescoço, põe um pé sobre a latrina e se arreganha a
segurar-se no seu corpo. Ela está suspirando e olhando para os céus, um teto sujo e
emporcalhado.
Mas ainda sabe que deve levantar os braços para que ele a dispa. Alex a joga para
qualquer canto, joga a blusa, não Júlia. Boca nos seus peitos, bocas nos pescoços, bate com
as costas dela na parede, ela reclama, a posição está ruim, dane-se, ele não diz isso mas
grunhe algo muito equivalente, e ela não vê o que toca, está de olhos fechados, mas sorri, e
sua, e tateia as pernas dele, não sabe onde põe a mão, então silva feito bicho e o puxa de uma
vez contra o corpo. Está a tirando das calças, ela abaixa as dele, arranha sua nuca e a usa de
apoio para pular e cruzar-se-lhe no corpo, e ele a bate contra a parede, e ela guincha um ah, e
ele a bate de novo, da cabine ao lado ouvem um constrangido que é isso?, ele aconchega as
bochechas no peito dela, e ela fica com um ah, ah, ah, que parece mesmo prece, porque não
está a olhá-lo, no mais é agradecimento. E ele continuamente se diz, estou fazendo, estou
mesmo fazendo. Está fazendo algo que torna o amanhã impossível, completamente diferente.
Ela põe a boca no ouvido e o distrai, as palavras saem avulsas, mas dizem que ela sempre
quis isso, e faz pedidos bem sujos e divertidos. Por alguns instantes se vêem nos olhos.
Mas eles não se suportam, então logo trocam de direção. Não é pelos olhos fechados que
hão de imaginar qualquer outra coisa, estando num lugar diferente enquanto cumprem a
obrigação ou algo assim, apenas não parecem dispostos de querer se entregar na integridade.
E isso é negar o que já aconteceu. As pernas dele cansam e começam a derrapar, a segura
com mais força e ela parece gostar, ela deu um longo ah, agora está tremendo e suando,
depois fica morta, vendo o vazio com os olhos esbugalhados, que deve mesmo é ser efeito da
droga. E então chega a sua vez de gozar. Foi bem rápido e ainda não sabe se valeu a pena.
E cai, tropeça para trás com as calças arreadas, ela desaba com a bunda no chão. A
posição está boa para ele, então tateia os bolsos por um cigarro que há de fumar.
– Meu deus, meu deus – ela murmura, gira a cabeça boquiaberta, da forma que fazem as
pessoas que vêem o mundo em roda-gigante.
– Pronto – suspira de si para si, está feito.
– Meu deus – e ela sorri.
– Quer um cigarro? – está acendendo o seu.
– Por favor – e estica a mão para a direção errada.
Ele vai pôr o fumo em sua palma, e então fechar carinhosamente os seus dedinhos, veja,
pegue. Ela mete na boca, não o prende, cai em seu colo. Ela pega de novo e dessa vez o
morde, ele rasteja a inclinar o corpo, tlec-tlic no isqueiro, está aceso.
– Essa latrina fede a merda.
– Não podia feder a flores – ela pisca os olhos.
– Como se sente?
– Culpada, mas eu gosto dessa coisa de culpa.
– Entendo – e ri feito quem lembra de uma piada.
– O que foi? – ela desliza de costas e se deita com a cara no chão, nunca mais terá uma
visão feito essa.
460
– Eu tenho uma coisa engraçada pra te contar.
– Então – e fuma, agonizando – me conte, tudo o que eu quero é rir.
– Sabe a noite das artes?, aquele evento chatíssimo, quando lançaram o livro, e –
interrompe-se.
– Perfeitamente, sim, aquela gente chata. E você estava lá, mas o que tem?
– Eu mandei os convites.
– O quê?
– Eu procurei você no prédio de seus pais, descobri com um zelador que você tinha se
mudado. E não foi difícil investigar e achar você e André. Eu conspirei, eu mandei os convites –
e sorri, isso faz dele um gênio. – Eu queria que vocês fossem, eu quis me testar – e ri. – Só
não sabia quão longe iria, mas eu fui, e agora estamos aqui, nesse cubículo, com as calças
arreadas e tendo uma conversa legal.
Ela ronrona e se demora com os olhinhos fechados.
– Eu desconfiava – lânguida –, eu desconfiava...
– Foi o meu desafio à insistência metafísica que nos une, à partir de então ela se vinga de
mim, e tem conseguido ser eficiente.
– Você é esperto – Júlia sorri –, bem mais do que todos consideram.
– Obrigado – seu orgulho agradece. – Você estava certa, eu precisava mesmo te ver,
precisava me livrar de você. E até então tenho tido períodos de altos e baixos, uns em que me
agonio, outros em que vejo – pára um pouco para dar um trago –, em que vejo que estou
conseguindo exorcizá-la. Essa noite selou esse fim. Eu finalmente fiz, me libertei, ainda que
possam haver outras prisões depois dessa, não me importa, que agora eu me libertei.
– Eu também – ela sorri, depois de um longo suspiro –, eu também. Precisávamos os dois
disso.
– Eu acho que sim – e sorri, realizado.
– Mas é diferente de quando eu faço com um estranho.
– Então é com estranhos que você geralmente faz?
– Sim, sempre, pra não me comprometer. Mas é diferente.
– Claro, sim, estou certo que é – mas não dá muita bola, não quer ouvi-la desabafar.
– E por isso eu tenho que contar para André.
– Como é? – dá um coice.
– Eu não posso traí-lo dessa forma – ela não pára de sorrir.
– Você não pode o quê? – muito engraçado, é bom que gargalhe.
– É com você, Alex, então ele tem que saber.
– Dá pra tirar esse sorriso da cara?
– Desculpe, é que você me drogou – e continua sorrindo. Ele pasma.
– É isso que você vai dizer? – ele teme. – Que eu te dopei, e... – interrompido.
– É claro que não, vou falar o que houve, que eu quis, a parte do que você pôs na minha
bebida não interessa a ele, só interessa a mim, que estou tendo umas sensações realmente
boas até agora.
– Eu não quero saber dessas suas sensações – joga o cigarro na latrina. – Você não pode
falar isso pra ele, seria uma puta de uma sacanagem.
– Sacanagem foi o que fizemos, e já está feita.
– Mas você é mulher dele.
– Não sou a mulher, sou a noiva – e dá um longo bocejo. – Ai, que preguiça.
– Você é a porra da noiva e está nua num banheiro com o melhor amigo do seu noivo,
pensando em estragar de uma vez a vida dos três?
– Estragar não. Eu sou uma pessoa justa. E era você quem se revoltava com minhas
traições.
– Eu não dou a mínima pra elas. Mas agora dizem respeito a mim – e ri.
– Eu preciso me libertar que nem vocês fazem, me absolver – e se põe sentada uma vez
mais.
– E você quer me foder pra isso, não é? – vai deformando o rosto enquanto fala. – Puta
que pariu. É o que você sempre quer.
– Não, quem me fodeu aqui foi você. E eu gostei – ela diz e pisca.
– Pare de me tirar do sério, não é disso que estou falando.

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– Você continua falando demais e relaxando pouco, pensei que fosse mais livre, sabe?,
perceba, você faz realmente qualquer coisa, entende?, mas você faz as coisas para depois se
preocupar com elas. Isso não está certo. Você é muito preocupado.
– É você – e aponta o dedo a ela – a estressada e enrustida aqui, não eu, não eu, não me
venha falar sobre o que é certo.
Então ela pula no seu colo e o abraça contra os seios.
– Que porra você está...? – e ele não encontra termos para continuar.
– Só isso? Eu quero mais – e geme.
– André pediu pra que eu não te comesse, pediu – puxa os próprios cabelos.
– Eu não sabia disso, você só está me dizendo agora, e ele pediu isso a você, eu não
tenho nada a ver com isso...
– Mas agora que estou te contando você não se sente mal?
– Não, a responsabilidade era sua – e lambe os lábios dele –, e agora já é um pouco tarde
pra me contar uma coisa dessas, não é?, ou se importar.
– Sim, você está certa – resmunga, põe as mãos na sua cintura e tenta tirá-la do colo. –
Mas agora eu não posso mais, tudo mudou, o que você disse mudou tudo...
– Você já está errado – e o beija docemente com gosto de cigarro –, ao menos aproveite o
resto da noite, tire o resto da noite pra errar. Depois você se preocupa, depois você faz o que
quiser.
Alex reflete e vê que há mais razão em dar ouvidos a ela do que se dar.
– Você me convenceu – e a puxa uma vez mais para seu colo.
Chegou em casa e a garoa que começou a cair o pegou de susto. Não foi assim tão
azarado, que já estava perto quando os céus rugiram, então teve tempo de conseguir uma
corridinha e se molhar um quase nada. Acaba de encostar a porta e de trancá-la, está quase
tudo escuro. Então espera que o som cochichante da televisão tenha feito Carla adormecer no
sofá, ou, se dá alguma sorte, ela já estaria naquele estado de sono de quem não dorme há
muito tempo, ainda que não seja há pouco, que se revolta com quem for a nos acordar, e brada
e se encolhe para dormir uma vez mais se por acaso isso acontecer. Ele suspirou a tirar a
jaqueta e foi se virando aos poucos, que é para adentrar pelo assoalho sem aquele rosc-rosc
característico das caminhadas rápidas. Carla está de camisola sentada ao sofá e o fita com os
olhos bem gritantes. Ele sente uma profunda pena dela, e esse não é um sentimento de que
goste.

462
Acontece que à partir de hoje o nome O retorno à escuridão está oficialmente censurado. O
motivo é um tanto óbvio, ei-lo. As investigações concluíram que uma alta percentagem x, que
qualquer estatístico é capaz de mensurar, e a gente comum é capaz de encontrar em qualquer
jornal em circulação, que essa percentagem x de crimes em bandos, que se relaciona com
assaltos a mão armada, atentado à ordem pública, saques massivos, violação de propriedades
particulares e do governo, formação de quadrilha e principalmente assassinatos, está
relacionado direta ou indiretamente com o que nos últimos tempos viemos a conhecer como O
retorno à escuridão. É considerado que esse livro contenha um talento único para incitar a
desordem, talvez até mesmo sua criação tenha sido produto de uma mente perversa e gerida
no seio do crime e para o crime, que só pode mesmo existir esse gênero de interessados,
havendo até mesmo suspeitas desse manual atroz ter incitado outros veículos como jornalecos
e atuais filmes b ao uso de mensagens subliminares que se usam de falácias sobre a liberdade
e símbolos alienantes que devemos vomitar, fazendo jus ao que diz o livro que, antes mesmo
de suas páginas de conteúdo, de antemão revela seu intento como deixais, ó vos que entrais, a
toda esperança, e uma coisa como essa só pode ser entendida como um sinal para todos
aqueles que o vão ler, e que ainda assim se deixam levar, abandonando a lucidez por um
amontoado de sandices vendidas à preço baixo em qualquer livraria. E esse é um desafio para
a civilização, um desafio para o próprio bem, coisa que temos de enfrentar com os rostos
erguidos, que tem de ser compreendida como uma grande afronta sobre a qual não se pode
deixar reinar a impunidade, o que seria a certeza da perda gradativa de todos os valores que
simplesmente nos mantêm vivos, ao que parece ser único objetivo desse certo O retorno à
escuridão tirar, por um fim meramente de preferência ao caos, um fim notavelmente doentio e
irracional, tirar por tirar, a vida de todos, de você e da sua família. O nome O retorno à
escuridão está sendo censurado porque o seu termo estimula uma série de sensações
monstruosas, uma série de cancros que foram criados, e devemos banir essas sensações não
para debaixo do tapete, como esse pseudo-livro afirma, com o seu pretenso entendimento da
psicologia, que fazemos, devemos mesmo é erradicar para a inexistência esse câncer que põe
a gente fora de sua normalidade, para fora de nós, porque todos sabemos, é indiscutível, que
não se compensa uma tomada geral de vidas, uma guerra sem sentido, e temos de abrir mão
da nossa liberdade – não é como se ela nos fosse tirada desde cedo, como afirma o folhetim –
para que respeitemos, assim, a liberdade do próximo. O livro de nome inominável, portanto,
agora será referido com nome dos marginais, termo de ostracismo, que é o que merece
receber, sendo conhecido apenas como o livro de capa negra, para que saibam ser algo
secreto e proibido, e ai daquele que, ainda assim, vir com história de ter curiosidade em se
aventurar. Isso é porque o livro também está saindo de circulação, isto é, assim que o último
exemplar já existente nas lojas for vendido, mais remessas não serão enviadas, repetindo,
assim que o último exemplar que já foi entregue esteja vendido, que não é justo dar despesa
para seus editores, gente de bem e amplamente conhecidos pelo apreço a ética, gente que
não podia imaginar o transtorno que causaria ao publicar esse manual prático de
desumanidades. Todo mercado criado em torno do livro de capa negra será, pois, entendido
como negro, e seus participantes receberão os efeitos severos previstos por nossa severa lei.
E aos defensores ferrenhos da liberdade de expressão, eis o argumento contrário a vocês. A
liberdade de expressão se aplica a livros, colunas jornalísticas, pinturas de todos os gêneros e
épocas, músicas de todos os ritmos, versos, poesias, manifestações populares, tudo isso a que
somos muito favoráveis, porém não prevê a existência de um demônio encarnado, esta coisa
que finge-se sutil para descambar unicamente para a apologia de violências absurdas, este
algo de efeitos colaterais grandíssimos e cujo único objetivo é nos ludibriar para que pensemos
estarmos sendo livres, quando o que acontece é que estamos usando essa pretensa liberdade
para aniquilar as liberdades uns dos outros. Até mesmo a nossa, porque tudo que está sendo
pregado é suicídio. Não podemos deixar que nossas crianças e jovens, adultos, senhores e
senhoras, idosos, mulheres, mães de família e gente trabalhadora, bem intencionadas e gente
correta se deixem enganar como temos vistos que está acontecendo. Então se estarão
refinando os métodos de policiamento, para que se fique atento à tudo que aparentemente fuja
da normalidade. E antes lidávamos com bandidos, agora mais parece que estamos lidando
com loucos, conseqüência óbvia é que sigamos a filosofia de que louco pertence ao
manicômio, sem mais.

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Eis o que acaba de discursar na televisão aquele homem, isto é, o chefe-de-polícia Dimitri,
esse articulista mefistofélico e de jeito penetrante, encarregado de liderar o que os burocratas
chamaram de comissão de operações especiais de contenção do estado da desordem. Ao que
parece todos os telejornais o estão repassando, agora de madrugada, quando teria sido essa
declaração feita durante o dia, dessas que pedem pelo plantão, que interrompem a
programação habitual dos desenhos animados que passam pela manhã.
– Eu não entendo por que você pediu para eu aumentar o volume – diz Carla. – Você quer
me enrolar, quer sempre adiar o que tem a me dizer, e é claro que tem alguma coisa, isso não
pode mais continuar assim.
Ela está sentada ao seu lado, e você, Alex, fica com esse sorriso abobado, a ouve mas não
se interessa, porque chegou em casa e sequer bebeu água, mal descalçou os sapatos e as
notícias já vieram a perseguir.
– Por favor, não faça como se não estivesse me ouvindo – tom de súplica.
– Eu estou – ele abana a mão, pede por um tempo.
– E então? – mas ela espera.
Agora ficamos com o talk-show que passa nas madrugadas, ao que parece teremos a
entrevista com alguma modelo famosa.
– E então? – ela esfrega os olhos, que está cansadinha, deve ter ficado acordada, meu
caro, esperando você terminar de ter com Júlia, não que ela saiba, e não que um dia vá saber,
mas o esperou e parece ter se desapontado, e o céu desaba sobre sua cabeça da forma que
você já tem se acostumado a receber, com a certeza de que sempre mais está por vir.
– Eu vou te falar, e vou te falar agora, fique calma, apenas não me angustie.
E deu com os ombros de qualquer jeito, começa a se despir, ergue-se, coça as nádegas, a
deixou num silêncio que é resposta para a grosseria de seu pedido, ora, não a angustiar?,
parece que por algum acaso do destino ela realmente se importa com você, está apaixonada
ou algo assim, um algo assim que não podia estar acontecendo. Ela se importa com você e se
vê no direito de cobrar explicações, e você diz que as dará, desde que ela não o angustie.
Então Alex foi para a cozinha, deixa as roupas espalhadas pelo chão, permite-se apenas deixar
a cueca, aproveita o silêncio temporário para suspirar e ensaiar uns golpes de boxe no ar, que
com isso libera suas tensões. Abre a geladeira e a fica admirando, bonita geladeira, cheia
graças ao dinheiro que eu recebi fazendo nada, e à boa vontade de Carla, que vai às compras.
Já não mais vê em qualquer coisa o rosto de Júlia sorrindo para si, ao invés disso vem a
imagem de sua bochecha limpando o chão sujo de um banheiro. Quando vai sentar-se na
mesa a trazer consigo a garrafa e o copo futuramente d’água, Carla está apoiada na porta, com
jeito de quem está caladinha, esperando do jeito que ele pediu, mas não deixou de segui-lo,
pois é, e nem que seja uma sombra o seguindo calada de um lado para o outro, continuará a
pressionar, ela não desiste, porque está muito óbvio que ela sente algo que não devia sentir.
Alex puxa uma cadeira, está agora no glub-glub do segundo copo, espana os cabelos que
receberam um pouco de chuva e ensaia outras sortes de rituais distrativos, até que só possa
sorrir um sorriso amarelado e não tem escapatória, ou acumula antipatia de Carla, que é algo
com que ele se importa mas pode vir a se despreocupar daqui a um tempo, ou pode lhe contar
a verdade, coisa que acha que deva e, principalmente, percebe não fazer mais diferença.
– Você prestou atenção no que disse o noticiário?
– O que você acaba de assistir? – ela pergunta.
– Sim.
Ela revira os olhos como quem entende que vai ser enrolada, – Eu já tinha visto a mesma
coisa na reprise da tarde. Posso perguntar por quê?
– Então houve uma reprise ainda de tarde?
– É, foi o que eu disse – parece estar perdendo a paciência.
– Eu não estou te ludibriando, acontece que aquilo fala por mim.
– Como o noticiário pode falar por você?
– Você prestou atenção no que ele disse?
– Alex – põe uma mão na cintura e balança a outra –, tudo que eu te peço é que pare de
me testar, apenas diga, ande logo. O que eu quero saber é qual o problema com o seu
emprego, e um pouco mais que isso, se você por caridade puder me dizer, o porquê desses
segredos, desses telefonemas cochichados pelos cantos, e essas saídas, as saídas sem
motivos ou com uns que de tão esfarrapados só podem ser inventados. Se você não quiser me
contar, alegar que não me diz respeito, tudo bem – e dá com as mãos –, apenas não faça
464
promessas que não pretende cumprir, é apenas isso, antes me desiluda de uma vez que
prolongar essa situação.
– Terminou? – rosna.
– Eu vi – ela continua a esbravejar – a droga do noticiário, satisfeito?, fala sobre a droga de
um livro de capa preta, é assim que agora se chama, o outro nome eu não me lembro, agora
explique-se você.
– O nome é O retorno à escuridão, essa história de livro de capa preta é uma palhaçada.
– Que seja O retorno à escuridão, a volta de quem não foi, isso só vai passar a me
interessar à medida que me fizer um sentido.
– Não cobre com toda essa entonação – ele dá com um ombro e sorri desconsertado –,
você não é minha esposa, ou mãe, irmã mais velha ou coisa assim.
– Eu desisto – o olha com desprezo e faz que vai sair.
– Você não reparou que temos um livro desses na estante?
– São coisas do meu tio, estar na casa dele não significa que eu a fique revirando.
– Na verdade é meu, e fui eu quem o escrevi.
– Como é? – e aí está com a voz mais amena, mas ainda desacreditada.
– É simples, fui eu, eu tive umas idéias, sentei-me, passei uns meses na frente do mesmo
computador-de-colo que você pode ver na escrivaninha da sala, e então veio O retorno à
escuridão, que agora devemos chamar de livro de capa preta – sorri – porque seu nome
original nos desperta uns sentimentos desumanos e nos inspira a fazer coisas atrozes.
– Eu não sabia – a sua voz já mingua um pouco.
– Na verdade me espanta que você não o tenha lido – e ri de desespero –, meus parabéns,
porque você aparentemente é a única pessoa no mundo que ainda não o fez, ou talvez eu só
esteja exagerando e tenha me enganado com o que ando vendo, gente no mesmo vagão que
eu com pelo menos três ou quatro exemplares, propagandas pela rua, o chefe da polícia
ensaiando uma crítica literária.
– O que tem de tão ruim assim? – ela já parece mais interessada, que baixou o tom de voz,
agora está se abraçando e se fazendo carinho, cada braço faz no outro.
– Eu não sei – responde em tom de quem acha graça. – É meio óbvio, mas eu não sei
explicar.
– Então é por isso que você tem se preocupado?
– Não.
– Então eu não entendi mais nada – volta a ensaiar impaciência.
– Eu faço parte de uma sociedade secreta, e é isso que me toma as noites.
– É uma rede terrorista ou algo assim?
– Não!, não.
– É um – ela procura termos – grupo de religiosos?
– Não, caramba – e gesticula estapeando o ar sobre a mesa –, somos um bando de
desconhecidos que teve pelo menos um amigo em comum, nos conhecemos e nos reunimos
para beber, ficarmos doidões, falarmos besteiras, jogarmos cartas, apostarmos, fazer o que
quisermos, percebe?, simplesmente sermos livres.
– Então é isso? – cruza os braços.
– É – e ele se surpreende com a simplicidade que as palavras transformam as coisas. – Só
que às vezes nos excedemos um pouco.
– Como, por exemplo? – ela está chegando para sentar.
– Por exemplo – é claro que ele não pretende falar tudo –, treparmos ao ar livre,
compreende?, não exatamente ao ar livre, porque nos reunimos num lugar abandonado –
também não vai dar mais informações –, ou às vezes saímos, e gente já depredou algumas
igrejas ou roubou coisa de uma loja qualquer – espera para ver a sua reação, tudo que parece
haver é seriedade. – Nós zombamos da autoridade, mas não somos nós que estamos fazendo
essas coisas que dão nas notícias, ao menos não todas elas, é simplesmente todo mundo. E
por isso estou preocupado, ou melhor, por isso e por um milhão de coisas que eu não poderia
explicar, porque as palavras não honram o que sentimos e já estou ficando cheio de tudo isso.
– São aqueles seus amigos – tranqüilamente, acatando com a cabeça.
– Sim!, sim, são exatamente eles.
– É difícil acreditar.
– Eu juro pelo que você quiser que fazemos todas essas coisas, e até mais.
– É difícil acreditar que não sejam vocês os culpados – e o encara.
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– Eu também juro que não!, escute, não temos condição de fazer uma coisa dessas – e
pensa se não estaria mentindo, está –, mas o que temos em comum com esses
acontecimentos é o fato de seguirmos a filosofia do retorno à escuridão, apenas isso, e o livro
está sendo encontrado nos refúgios, ou casas, sei lá, desses assassinos, saqueadores, loucos,
que não nos dizem respeito.
– E qual é?
– Qual é o quê?
– Essa tal filosofia.
– Você quer que eu te explique? – enruga a testa.
– Sim, eu não entenderia? – seriamente.
– Não é isso, é que me pegou de surpresa.
– Estou te ouvindo.
– Bem, é mais ou menos assim – ela te olhando o deixa constrangido. – É uma
constatação que a liberdade do ser humano está unicamente na individualidade, no seu estado
mais primitivo, porque a coletividade o escravizou, e – e se interrompe, ela o olha seriamente, e
você, Alex, não pode deixar de soltar uma risadinha por sentir-se ridículo explicando algo que
te escapa da compreensão, você não é didático e não tem essa entre suas competências, mas
ocorre que seu riso não é muito bem recebido, ela deve achar que está zombando. – Acho que
isso não vai dar certo – e solta mais uma risadinha.
– Você é um merda – te despreza e vai se levantar.
– Por favor, desculpe – ele engole a graça. – Eu vou tentar explicar.
– Não precisa, fica com sua risada, eu não mereço as suas coisas, e não é como se eu
quisesse merecer. Porque eu não quero.
– Eu juro que não foi por mal, não é isso, não a estou julgando ou algo assim, desculpe.
– E quando você fez algo por mal?
– Não sei – pára, refletindo –, acho que nunca.
– É isso o que você vai sempre pensar – e sai.
Alex a segue porque acha que a ocasião mereça.
– Você pediu a verdade, eu te dei e você continua brava comigo.
– Não, a verdade apenas o torna nojento – e se joga no sofá, olhando-o e forçando uma
risada soberba, mas lhe dá pena a fragilidade como ela ri e se oculta –, o que me enerva é o
seu jeito.
– Desculpe, desculpe – ele repete como quem pergunta o que mais pode fazer.
– E não é como se eu quisesse ser sua noiva, mãe ou irmã mais velha.
– Eu imagino que não – desiste das forças e os ombros relaxam.
– Eu apenas estive preocupada, eu prometo que não te angustiarei. É que se você perder
o seu emprego, não sei também o que será de mim, entendeu? – quer se passar por
interesseira, que a indiferença às vezes tem lá a sua simpatia, ou melhor, anula a antipatia da
entrega, mas ela não é bem sucedida –, estou desempregada e morando aqui a favor, ou
melhor, pelo favor de alguém que já mora de favor, o que garante que meu tio não o pedirá
para que se retire?
– Eu não sei.
– Ele é um homem mais interesseiro e instável do que você pensa.
– Eu não penso nada sobre isso.
Então vai até o sofá, senta-se no braço e se deixa escorregar, agora está próximo a ela.
– Carlinha – então continua –, eu não queria e nem quero te envolver nisso, por isso não te
contei antes todas essas coisas, mas estou contando agora. E eu me importo com o que você
pensa – apenas não pensa muito sobre isso.
– Eu não sei, estou confusa – ela faz manha.
– Eu estou com medo, estou com medo do que vai acontecer – não devia esconder a parte
do medo de si mesmo –, e são muitas coisas que podem – talvez a comova pelo instinto
materno, que as mulheres frágeis têm muito dessa coisa. – Eu preciso de apoio – olhar de cão
manso – e com sorte consigo resolver a tudo sem margens de erro.
– Por que você me chamou àquele jantar, naquele dia? – ela parece pensar muitas coisas.
– O quê?, por que isso, agora? – ele é pego de surpresa, ela liquidou seu teatro.
– Eu não sou estúpida, você diz que não queria me envolver, mas tenho certeza que fui
usada para algum dos seus jogos, alguma coisa dessa tua sociedade secreta. Exibiu-se o
bastante?, o como você consegue qualquer uma?, eu sei que sou qualquer uma. Depois
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comemorou com seus amigos como é fácil me enganar?, com seus amigos e com aquelas
putas?
– Você está sendo paranóica – ele fica com o rosto no chão –, não existe nada disso, eu
simplesmente te levei, era um jantar, eu quis te levar, e te levei.
Ela cala a boca e se levanta uma vez mais, dessa vez vai de passos apressados para o
quarto.
– Não se enciúme – e ele ainda tem coragem de brincar.
– Por que você continua nessa sociedade, se te causa essa preocupação?
– Eu não posso sair – e responde o óbvio.
– Por quê?, os outros membros te matariam, te ameaçaram?
– Não, não é nada disso – e chega a rir. – Apenas porque é tarde demais, e isso não muda
nada do que está feito.
– Mas pelo que você me disse, ainda pode mudar o que está para ser.
– Eu não sei o que te dizer.
– Então apenas admita que o que você quer é manter esse drama – ela sorri furiosamente,
ela pode ser letal –, você gosta dessa encenação, é viciado nesse caos, você vê caos onde
não existe, na verdade é você quem põe esse caos onde antes não existia, não me admira se
fosse você o culpado dessas coisas que estão dizendo.
– Carla, boa noite pra você – agora ele se magoa.
– Boa noite, e pode ficar com a cama, só vim pegar um lençol, eu me viro com o sofá.
– Pois bem – e fecha a cara, que não vai suportar chantagem de ninguém.
E ela vai mesmo, não antes de pegar umas colchas, que já sabemos como vem a esfriar
assim que cai uma chuva qualquer, e ela pretende fazer a sua chantagem mas não pretende
congelar. E ele fecha a porta sonoramente no mais tardar da sua saída, ainda esbraveja contra
o invisível, já que não é justo que ela rascunhe saídas tão fáceis quando ele expõe as maiores
dificuldades de sua vida, é deteriorá-lo, é querer pisá-lo e se achar no direito de vir com essa
torrente de veredictos, conclusões sobre a culpa do caos ser dele e não sabe mais o quê. Se
deus não dá asa à cobra, não será ele a fazer mais do que já faz, aqui é pelo contrário, que
trata de podá-las. É melhor que fica com a cama só para si, grunhindo e se esfregando pelos
cantos e pensando na noite que se passou. Então pensa em iniciar o ritual de invocação do
bicho-sem-nome, o sapientíssimo outro, que decerto lhe virá entre ditados cansativos e
ameaças embutidas a aconselhar-lhe do que não deve fazer, o que não parece muito útil, ainda
que em alguma situação que ele não se lembra muito bem qual alguém aproximadamente o
disse, ou mesmo ele, que já não faz tanta diferença, que reconhecer o que não deve ser já é
ajuda ou caminho para reconhecer o que tem de ser. Ele não evoca o outro, não por julgá-lo
inútil ou por achar que não teriam uma conversa interessante, mas apenas pelo cansaço que
há de ser aquela mesma história da falta de um nome e a cobrança se já não o achou, por isso
resolve deixar como está e dormir. E a princípio tem um sonho no qual tem a impressão de
acordar por várias vezes, e em todos há um som de choro. Ele pensa ser de Carla, mas a briga
não é o bastante para que ela esperneasse dessa maneira que ouve, então deduz ser essa a
criança mimada e frustrada dentro de si mesmo que agora abre o berreiro por não ter obtido a
aprovação que quis. Depois resta um sono negro de cansaço com acorde de chuva distante.
E estava tendo um sonho bem preguiçoso, bem sedutor e aconchegante, daqueles que nos
fazem ter vontade de sempre prolongar os cinco minutos a mais de fim de descanso, ainda que
agora seja acordado tão abruptamente que o sonho se perde. É algo que procuraria de volta se
a droga do telefone a tocar uma vez mais não roubasse também o seu sossego e não o fizesse
dar um coice para cima e para os lados já associando telefone a desgraça. Quase cai da cama,
mas precisa de menos tempo para associar o trim, ou bip-bip-bip, que é como gritam os
telefones modernos, da coisa com a coisa propriamente dita. Esse é um sinal de que está mais
preparado que antes. Com um tempo bastará um suspiro no vizinho que ele já estará a postos,
engatinhando no escuro para trás da porta, a segurar umas três facas, duas na mão e uma na
boca, e a esperar a cilada do inimigo. Arranca o fone do gancho e o põe na orelha como se
estivesse quebrando.
– Alô – engasga.
– Gostaria de falar com o senhor Alex – diz a voz de mulher, e ele não reconhece.
– Quem gostaria?
– Falamos do departamento de relações humanas do jornal das artes – a essa hora da
manhã, isso é tudo que ele consegue pensar.
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– Só um minuto – contêm a bufa –, vou chamá-lo.
E fica alguns segundos olhando com cara de tacho para a parede. Espreita então o relógio
do criado-mudo, e não gosta dos números que vê.
– Alô, é Alex quem fala – finalmente bufa, eis a diferença de uma voz para a outra.
– Senhor Alex, eu falo pelo jornal das artes, por meio desta ligação comunicamos que o
senhor está dispensado do seu cargo, eu repito, está dispensado do seu cargo, sendo este um
anúncio complementar, posto que lhe será enviado um telegrama, onde deverão constar os
motivos da dispensa e as instruções para qualquer procedimento válido, inclusive os legais.
– É isso, então?, me ligam para casa, à essa hora da manhã, para me despedir?
– Senhor, presumo que o aviso seja tão somente esse.
– E presumo que você, que é uma mocinha que recebe as instruções de um computador
estúpido, não pode checar aí por que droga que me veio a tal dispensa, porque certamente
você não está autorizada a me dar essa informação, e decerto não dá a mínima para isso.
– Desculpe-me, senhor, mas as informações que tenho é que as razões estão transcritas
no telegrama a ser enviado. O que eu sei é para quem devo ligar e o que devo dizer.
– Ainda que esteja colocando a conversa em dia comigo.
– Não estou colocando a conversa em dia – a voz do outro lado suspira – com o senhor,
apenas, apenas – hesita – te instruindo da maneira que eu posso, ok?
– E não pode muito, diga-se de passagem – rosna e rola pela cama.
– Alguns diriam isso, senhor, mas para mim é suficiente.
– E ainda assim estou certo que não prevê algumas situações emergenciais.
– Não há uma situação emergencial que eu não possa transferir para um superior.
– Tenho uma que você não pode – ri, em seguida começa a gritar com todas as forças. –
Uh-ah-eh! Uh-ah-eh!, ah!, ah!, ah!, blublublu.
– S-senhor, eu terei que desligar – e por que ainda não o fez?
Dane-se, ele pensa, dane-se esse trabalho. Pois na verdade eu sou rico.
– Tô indo aí te pegar!
E, diante do som de telefone ocupado ou linha caída, porque ela bateu em sua cara, você
pode resmungar acerca da falta de educação na reação da mocinha ou pode simplesmente
desatar a gargalhar, e ele escolhe a segunda opção. Aqui vai a resposta da pergunta de Carla.
Ele não sai da sociedade porque gosta. E uma coisa tão elementar assim não se lhe pode
questionar, tenho dito. Ele limpa as lágrimas que chorou rindo, ao que se diga de passagem
riso imbecil, que agora ele mesmo não vê lá tanta graça na sua piada, e não vê mais graça em
arriscar prazer no sono, agora está muito bem acordado, droga de telefone. Então preocupa-se
se Carla não teria acordado lá na sala, dormindo no sofá que é o lugar das visitas, isto é,
sabendo-se que ele mora numa casa que é aconchegante mas não é lá das maiores, e
portanto dispõe somente de um quarto e não um a mais para um hóspede qualquer. Na
verdade, esse lugar mais deve servir como depósito para os livros que não couberam na
residência oficial do senhor Condor, a julgar pela quantidade deles, e devem ser os mais
desimportantes, ou de repente comprados repetidos, se é que alguém chega a confundir-se e
comprar livros repetidos, a ficar entulhados pelas prateleiras ou nos cantos em que o próprio
Alex arrumou ao vir se apossar do terreno.
Alex agora está levantando, e resmungando para não descumprir com a tradição do mal-
humor matinal, coça as nádegas para não descumprir com outra tradição qualquer, limpa as
remelas e abre a porta sem barulhos. Espia na sala, mas Carla não está lá, no sofá estão
somente os lençóis nos quais ela se embrulhou, deve ter mesmo acordado com a campainha
do fone, senão com os gritos. Vai trotando para a cozinha pensando na oportunidade de lhe
pedir perdão para faturar um café da manhã, de repente é só ser um pouco dengoso e fazer o
favor de esquecer a ofensa que ela lhe fez, mas ela não está cozinhando, tampouco já
comendo ou remexendo a geladeira, na verdade sequer está na cozinha, e espichando o
pescoço para fora do recinto pode ver que a porta do banheiro está aberta, sinal de que
ninguém o usa. Então é mais estranho do que parece, porque ela não acordou com seus
barulhos, mas muito mais cedo do que parece, e da mesma forma saiu de casa muito cedo, e
ela não é das mulheres mais enérgicas, isto é, do tipo que se diria, hei de começar a procurar o
emprego que preciso desde cedinho, hei de bater perna desde já, e por mais que volta e meia
venha com discursos sobre utilidade, está longe de não escolher pela comodidade, de não
escolher por acordar tarde e enrolar até que o senso de responsabilidade fale mais alto, coisa
que pelo menos resta nela, e não em você.
468
Então vai ele no banheiro cuidar da higiene matinal, escovar os dentes, urinar etc, acaba
se convencendo de tomar uma ducha, não é demais supor que nesse tempo não ocorrerá nada
de especial ou requerente de observação mais aprofundada. Sai gotejando do chuveiro e
deixando que o corpo nu entorne para o carpete, é das vantagens de estar só em casa, pode
andar assim, sacudindo a genitália e saltitando sem razões, cantando músicas indígenas ou
dançando na frente do espelho. Agora Alex está se trocando, não acha que alguém tenha
curiosidade de saber em que trajes específicos ele vai se meter, mas pensando idiotamente
que possa haver alguém lendo seus pensamentos e que possa vir a ter um interesse feito
esse, ele observa que está se pondo um short confortável de quem não pretende sair de casa,
e uma blusa que é para suportar o friozinho que faz, porque ontem choveu e nessa cidade
sempre que chove também amanhece gelado. E se alguém agora o perguntasse por que ele
está caminhando em direção a porta e com a chave da casa em mãos, ele responderia que
obviamente é para sair, e para quê?, podem perguntá-lo quando ele estiver na varanda que o
dará acesso às escadas e por sua vez ao térreo, e ele não mentiria ao responder, estou indo
checar a merda da caixa de correio. E assim ele desce os tantos lances de escada que precisa
descer para ir do terceiro andar ao térreo, seria um dia bonito se o sol não inventasse de lhe
queimar logo na cara e ele tivesse de andar com os olhos meio cerrados. Quando ele sai, a
droga do cocker spaniel nunca late. É treinado para apenas flagrar suas chegadas.
Alex foi passando pelo pátio, o seu José, com quem ele nunca conversou e tampouco
pretende, está lá a cuidar da pequena fonte cuja água está sempre suja, a julgar por isso esse
prédio tem um jardineiro dos mais incompetentes, por mais que ele cuide da fonte que enfeita o
pátio, ela estará sempre com a água suja, e por mais que o ouça picotar os espinhos do jardim,
os muros sempre estarão com trepadeiras feiosas. Mas o seu José tem um bom dia
simpaticíssimo, impossível de não se responder ou de se pensar mal, por isso ele continua
empregado. Bom dia, ele o diz, e torna seu dia um pouco menos pior, bom dia, seu José, você
responde e segue para o lado do portão, onde o carteiro há de ter enfiado suas
correspondências.
Ele abre a caixa referente a seu andar. Geralmente quem apanha as contas são Carla,
excepcionalmente hoje ele sabe que tem coisa para si. Afastou a poeira lá de dentro e está a
tatear pelo que vier em mãos, esgueira-se com o punho um pouco mais a fundo e estão lá três
envelopes. A fachada de uma denuncia ser a conta de luz, essa ele abre mais tarde. O
segundo é o telegrama do jornal das artes, ele por dentro ri de desprezo e a esse ele rasga,
não o desprezo, porém o telegrama que não lhe faz mais a mínima diferença, a não ser para
despertar seu rancor. E o terceiro é o telegrama desconhecido, muito estranho, porque não tem
remetentes e não se recorda de que os correios mandem coisas assim, mas nos dias de hoje
tudo tornou-se possível, até mesmo que tenha desaprendido a identificar um telegrama. E não
pode abri-lo agora, porque a senhora, parece que só moram velhos nesse lugar, que deve ser
do primeiro andar, acaba de abrir o portão e chegar da rua, a voz baixinha dela deve ser um
bom dia decoroso que geralmente dirige a quem não conhece, já da garganta dele vem o
grunhido da impaciência que espanta a qualquer um. Rasga a borda do envelope que
desconhece, então tira o comunicado de dentro, as seguintes coisas estão escritas. Vi nos
arquivos que te conhecem e querem te apagar, isso não é oficial, chamaram para isso um
assassino, não posso voltar na sociedade, assinado seu camarada Robes.
E não se importa com o que o seu José pode vir a pensar ao vê-lo andando enrustido
como se tomado por uma súbita dor de barriga, olhando para os altos a temer um atirador-de-
elite e a fazer o pulo-do-gato para ir mais depressa a uma sombra, e então subir engatinhando
os lances da escada. Todo o mundo tornou-se estranho.

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Ele não sabe o que pensar. Ele sinceramente enlouqueceu. Preocupa-se não da maneira
de morder os dedos, dar piruetas ou rasgar dinheiro, porque não agüenta mais os valores
desse mundo etc. Preocupa-se do terror já ter batido tanto em seu rosto que já o amorteceu, o
corpo ao adaptar-lhe não foi tão inteligente assim, não devia ter se acostumado a uma coisa
feito essa, a ponto de se olhar num espelho e o reflexo o dizer, parece que há alguém do
submundo enviado para te matar, queima de arquivo, fim do maior bode expiatório de todos, e
como o encontraram deve ser de muito fácil dedução, o jornal das artes deve ter passado as
suas informações. E no fim de tudo dizer-se, paciência, e fazer a barba com suavidade. Algo
nas entranhas está tremendo, o universo querendo jorrar, o inconsciente te pôr ao avesso, mas
a superfície está tranqüila à ponto de deixar as mãos firmes, cuidado para não se cortar. Está
chorando porque comprometeu a sua normalidade quando nem a havia entendido, agora há de
ser normal o que ele disser. Acha que não foi seguido, ainda que a rumar pelas ruas tenha
escolhido sempre as de movimento, evitado as viela estreitas, dessas que descem por becos
escuros, ou as ruazinhas pacíficas quase despovoadas, lugares ótimos, aqui tem de notar,
para os ritos da sociedade. E não houve nenhum rosto que ele julgue ter se repetido em seu
caminho de muitas curvas, o qual percorreu com a atenção eriçada de felino, para confirmar da
suposta perseguição ele volta e meia pára numa eventual banca de jornal que cruze o seu
caminho, esse é seu pretexto para poder olhar para trás e para os cantos sem cometer a
evidência paranóica de olhar o tempo todo por sobre os ombros. Pára no semáforo, a multidão
batendo-se em si vai-e-vém, ele encolhe-se porque existe a lenda urbana de gente que foi
esfaqueada dessa forma e não notou a precisão cirúrgica da incisão no estômago até chegar
em casa, quando só então viu a hemorragia e deduziu, é, estou sangrando, devo com isso
passar mal, é tarde, e morreu. Ele ao menos gostaria de uma morte elegante, que já que tudo
vai se acabar, que reste orgulho ao túmulo, e pensou muito e sabe não haver o que fazer,
exceto pedir por ajuda, é o que tenciona fazer. As conversas das pessoas aos pés de seus
ouvidos são muito agressivas, pior ainda é o som de um certo carro cantar pneu, o sinal não
abriu, mas ele veio lá de trás costurando e pondo a mão fundo na buzina. E esse carro pára
sobre a faixa de pedestres num solavanco de quem não freia muito bem, mas decerto que esse
motorista não é dos melhores, afinal é apenas um garoto que deve ter no máximo os seus doze
anos, Alex julga não só pela aparência, mas porque ele está esticado para alcançar os pedais,
e às vezes deve decidir entre se acelera ou se cuida da visão e do volante, e tudo isso, veja
que habilidoso, com uma mulher de quadris para o alto e a boca entre suas pernas, devorando-
o e sacudindo-se toda. Antes que o sinal se abrisse, o carro antes de todos já relinchou, o
garotinho por dentro dos vidros deve ter emitido um som selvagem, um iahul dos radicais, e
saiu com a pressa de um carro engasgando. Com essa idade é certo que o rapazinho já sabe
ler, e não é de se espantar por que Alex tenha pensado nisso.
Esteve se embrenhando pelos camarins do teatro pensando nas palavras de seu discurso,
que começaria mais ou menos assim, prezados amigos, o momento que tanto esperávamos
finalmente chegou, estou na merda. Ao que perguntariam se isso é grande novidade e ele
interpelaria com um ssh para não o interromperem. Antes a sua culpa fosse somente a
sociedade, é que apenas não consegue se convencer de que há justiça no fato de o caçarem
pela coincidência de ter sido ele a abrir o peito ao mundo e enxaguar o seu horror. Arrepende-
se de estar encarnado nessa pessoa, a refinar e repassar seus semblantes mais mansos,
porque hoje tem de pedir ajuda, falar a todos, hoje não poderá mais adiar, não deixará passar.
Assim que entra pelo palco tem uma visão, não uma divina ou uma epifania, um
esclarecimento sobre a natureza das coisas ou um estalo de compreensão, mas a visão que se
tem ao passar de um lugar para o outro, com a simplicidade de quem, com os dois dedos,
separa as cortinas dos bastidores e vem a espanar a fuligem do lugar não tão abandonado
assim. Assim que ele chega percebe que todos, todos integrantes da sociedade que
comparecem a esse encontro, e não são poucos, quase fazem a casa cheia, estão sentados
em suas cadeiras como espectadores de uma peça, estão respeitando e não há batucada,
estão atentos de uma maneira que lhe arrepia os ossos, e opa, é claro que algo está errado,
porque acaba de entrar o personagem que faltava, ele mesmo, e todos, todos, sem nenhuma
exceção que ele entenda, que ele veja ou admita, dobram os rostos para olhá-lo. Ele congela
de susto, mas que merda é esta?, é o que se pergunta, mas o corpo não responde a reação.
Então vê que Júlia é a única a dividir o palco com ele. Ela se virou e só então percebeu que ele
chegava. Ela está com as roupas de trabalho desabotoadas, o cabelo desgrenhado, e já
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previamente com os olhos vermelhos de choro. É, fodeu, ele se diz. A sua caminhada do palco
até a ribalta, então o salto até o chão, então o rasc-rasc do sapato no carpete, tudo é
acompanhado com uma expectativa sinistra por todos, ele se ouve e é olhado de instante a
instante, de cabo-a-rabo, que tanto o constrange que ele sequer anda da maneira
convencional, porque podem reparar em coisa errada, nunca prestaram tanta atenção nele,
então ele segue enrustido, do jeito de quem não vislumbra nada que possa fazer e abriu mão
de toda a coragem, não falou com Júlia, nem cumprimentou e evita passar por perto, gravidade
que pode lhe fazer mal.
Não se atreveu a movimentos bruscos, mas procurou por André, ele sempre se destaca
dos outros, é uma exceção por si só e portanto o identifica sentado na primeira fileira, a camisa
social aberta, o suor escorrendo-lhe pelos cabelos do peito e na barba por fazer, está fumando,
ou melhor, os dedos fumam, que o cigarro está parado entre eles. O rosto dele é dos piores,
sorte que não o encara, um rosto assim a nos olhar é sentença de morte. Então ele se senta lá
pela terceira fileira, engole um gemido de licença ao passar por umas pernas que te dão
passagem, que já que a unanimidade assiste a esse espetáculo, é bom que não seja ele a
estar no palco e a receber um tomate, ainda que conclua que não é onde esteja que vai poupá-
lo.
Júlia esteve tomando fôlego até agora, ouve-se até mesmo o som baixinho de nariz
assoado, que ela está com o braço atravessado na boca, com os olhos cerrados, por que
diabos está fazendo isso?, Alex não consegue entender e se desespera, ela deve ter contado
tudo, deve tê-lo feito e por isso o olharam daquela maneira, e por isso André não o olhou, por
isso está esse silêncio desgraçado, porque está acontecendo uma das coisas mais esperadas
de todas. Ele apenas não entende por que diabos ela está com essa cara amarrotada na frente
do palco e fazendo isso, por que as pessoas ainda ouvem ela não dizer nada, mas
choramingar baixinho do jeito de quem sofre no quarto escuro e não quer ser percebido. Vai lá,
de repente se você pigarreia um pouquinho incita uma salva de vaias, ou se pergunta a hora,
ou o placar do jogo que não viu.
– Eu trepei com Alex.
Obrigado, Júlia, muito obrigado. Ele desliza o corpo pela poltrona, antes deslizasse ralo
abaixo. Os que estão ao seu lado ficam a olhar torto. Não sorriem. Não fazem nada. Obrigado,
Júlia. Ela franze o canto do nariz como se lá viesse mais choro, que ela contêm.
– Eu preciso falar – a voz toda trêmula, pobrezinha – porque é algo que me, me – não acha
palavras, obrigado, Júlia, palmas, você não poderia ter feito melhor, esse é o golpe baixo
oficial, o fim da picada, a cartada final, o golpe de misericórdia.
– Desculpem – ela pede desculpas. – Desculpe.
O silêncio duradouro, e ele com o rosto escondido na mão, tremendo e pensando, meu
deus, meu deus, que se roga a qualquer coisa quando tudo está em falta.
– Foi num banheiro de uma casa noturna. Ele estava lá por acaso, e eu, eu – ela
choraminga, não é possível que vai se fazer de vítima, não é possível – eu quis, eu quis muito,
eu já queria há muito tempo – pára, a olhar o nada –, e nos encontramos por acaso, eu só
queria tomar uma cerveja – isso não muda nada, ainda está se fazendo de vítima, pare de
chorar –, mas nada do que eu disser pode justificar isso, porque fui realmente suja, eu fui
mesmo nojenta, e eu sabia que estava sendo, mas a gente nunca pode ter certeza de como vai
acordar no dia seguinte... eu achei que podia suportar mais que isso. E eu descobri que não, e
não me sinto bem – intervalo para derrame de lágrimas.
Seus últimos capítulos de novela sem graça.
– Eu não sabia que seria assim – ela continua –, mas, mas – ai, ai, ai – arco com as
conseqüências, eu não suportaria esse peso na consciência, e ainda resta a dignidade de meu
amor. Eu amo André, mas sei que não o mereço, e eu sei que um amor feito esse é
desprezível, um amor que o trai com seu amigo – faz questão de lembrar. – É claro que não
significou nada, só esse prazer vil – e vai tateando o corpo todo, feito fosse imunda.
Obrigado, muito obrigado, continue, vá em frente.
– Só esse prazer vil – pois não –, o prazer da hora, do perigo, dessa coisa de liberdade
que, como eu já sabia, mas teimava em não acreditar, não é tão boa assim. A liberdade – e
assoa o nariz – existe para que as pessoas magoem umas as outras – assoa mais ainda –, e
se já estamos presos aos nossos sentimentos, não há mais porquê sermos livres. Mas eu me
deixei seduzir pelo perigo, pela conquista – e se abraça, tremendo feito pinto-no-frio e olhando

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ao chão, lhe falta o fôlego de encarar a gente –, e me entreguei, nem que fosse para perceber
que não valia a pena. Mas, ainda que eu não suporte... – e pára por longos instantes.
Isso, querida, vá em frente, mata do jeito que te apraz, do jeito que você sabe.
– Ainda que agora eu não suporte, valeu a pena. Eu gostei – e aí chora copiosamente,
sapateando e segurando o queixo para não escapulir do rosto. – Eu gostei muito, chupei ele,
montei no seu colo, dei de costas e de frente, ou com ele em cima da privada – arranha o rosto
–, isso tudo no chão de um banheiro imundo, eu me sentia imunda, num chiqueiro, eu não sei
como é possível mas eu gostei de cada momento – e toma fôlego das lágrimas –, ninguém
nunca me comeu dessa forma, me pegou daquele jeito, do jeito que queria há anos me
devorar, e que ia, que ia me aproveitar.
Aqui começam alguns cochichos, uns distantes, uns embasbacados. Alex verdadeiramente
está cogitando o suicídio.
– Eu senti essa necessidade de ser imunda, e sabia que com ele era como mais
conseguiria, ele, que eu julgo ser o mais imundo de todos que conheço, mas me atrai!, eu não
consigo me conter!, eu o olho e desejo!, me perdoe, me perdoe, me perdoe – começa a fazer
que vai sentar –, me perdoe, eu não mereço, mas não me despreze – desliza pelo chão –,
André, por favor, não me despreze, eu realmente não posso viver sem você, mas às vezes sou
uma ordinária, uma mulher cruel que faz as coisas pra te magoar, acho que é isso que eu
queria, o que eu até mesmo quero, mas, mas – e sorri insanamente –, o amor também é uma
luta, não é?, às vezes, às vezes eu dou golpes baixos, assim como você, mas você é bom
demais para mim, eu reconheço, e eu te amo, te amo loucamente, tanto que preciso de você,
da sua bondade, da sua pureza, melhor coisa da minha vida, única coisa boa e verdadeira da
minha vida – e passa minutos chorando e esperneando para os céus. – Eu estou me
humilhando na frente de todos por você, é para você que estou fazendo isso, por favor, não me
execre, eu não conseguiria – mais minutos soluçando – suportar.
Vem um berro revoltado do fundo da platéia de alguém que se ergueu, não se conteve e se
faz ouvir para todo mundo.
– Você não está se humilhando!, você está humilhando o rapaz.
E logo cresce uma onda de burburinhos. Parece que pela primeira vez algo realmente
choca a sociedade. Às vezes nos deparamos com o máximo dos absurdos para redescobrir
que nos chocamos com o básico, ou o quanto de absurdo escondem as nossas coisas
elementares.
– Não!, não – ela berra feito gralha em contrapartida. – Eu o amo, não quero humilhá-lo.
– Meu deus, Júlia – grita Stern, num canto ao longe –, não queremos ouvir desabafos
como esse – ainda que estejam todos atentos, pois é –, você pode tratar disso em sua casa.
Não temos nada a ver com isso.
– Mas vocês são a sociedade! – ela berra estridentemente, o choro transformou-se em
fúria. – Vocês, vocês simplesmente querem, por que fazem isso comigo? – e fica debruçada no
chão e se balançando –, vocês querem a podridão, entendem dessa imundície, estão aqui por
isso, entendem desse instinto da imundície, e não querem me ouvir? – urro de bruxa malvada
–, dizem que não querem me ouvir?, mas vocês gostam!
– Saia daí, mulher! – grita uma voz estranha já de um lado diferente. – Não se compare a
nós, não queremos entender como uma pessoa pode ser tão baixa, você não está participando
da nossa sociedade, está apenas magoando quem te ama – isso também devia ser permitido,
já não sabe mais. – Você é desequilibrada.
– O quê? Desequilibrada? – perplexa. – Vocês condenam minha sujeira – berra e faz como
quem rasga as roupas –, mas ignoram o meu amor.
– Não acreditamos no amor, quanto mais no seu – outros berros.
– Isso é algo – e mostra os dentes, cuspindo por entre eles – de que ninguém pode
duvidar.
– Faça o que quiser, moça – começa a discursar uma voz sábia –, você é livre para isso.
Mas todos que não quiserem ouvi-la também são livres para fazê-lo, porque o seu exemplo nos
choca, pode ser porque ainda sejamos morais em alguma coisa e ainda reste o que nos
prenda, mas o seu exemplo nos choca porque André é nosso amigo, e o homem, por mais
amoral que possa ser, sempre vai se sensibilizar.
– Eu não me importo – ela grita e rasga o ar com as unhas –, não me importo com nenhum
de vocês, a sua moral pervertida e sua autodestruição – e gargalha com tom de superioridade,
meu deus, ela realmente enlouqueceu mais do que se esperava. – Tudo que me importa – e
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abre os braços como um bichinho afável –, é André. Por favor, não se cale mais, por favor,
nem que seja para me detestar, pra me xingar, falar tudo o que você pensa de mim, desabafe
agora, me odeie, mas por favor, não me despreze.
Alex vê André se levantar lá na frente. Ele jogou o cigarro que fumava no chão, e agora o
está apagando com o pé. Ele está caminhando na direção do palco. Está mesmo. E vai subir
as escadinhas que dão para a ribalta. Júlia está rastejando com os braços abertos.
– André, não vá – Martin dá um salto de preocupação.
E André se vira para a platéia, e apontou o dedo para todos nós.
– Ninguém vai subir nesse palco. Entenderam? – sim, todo mundo entendeu, não há
resposta. Ele completa.
– Eu juro que mato quem subir nesse palco.
– André, meu amor – e se atira nas pernas dele, se abraçando –, nunca duvide do quanto
te quero bem, do meu amor por você, do quanto eu quero que você seja feliz – e mais um
dilúvio de soluços. – Ninguém nunca vai te amar como eu, eu tenho meus defeitos, e são
muitos, mas ninguém nunca vai dedicar tanto a própria vida como eu dediquei a minha a você.
Nós completamos um ao outro, somos feitos um para o outro, meu amor, por que você não fala
nada?, pelo amor de deus – e suplica –, estou rastejando para você, eu faço o que você quiser,
absolutamente qualquer coisa, eu vou mudar por você, eu nunca mais vou te desapontar, mas
eu preciso que você não me despreze, por favor, meu amor, me diga alguma coisa, sim?, diga
que me perdoa, eu não estou agüentando mais essa dor, meu coração, pense na dor que
estou sentindo, por favor, essa indiferença eu não suporto, diga-me alguma coisa, eu imploro.
E então vem o primeiro soco na sua cara. Ela muge e cai para trás. É claro que Alex não
vai levantar. É claro que ninguém vai levantar. Todos se agarram nas poltronas, roem as
unhas, e de repente torcem para o que preferirem.
– André, meu amor – Júlia rasteja para trás enquanto põe a mão no rosto.
E ele está se aproximando.
– Não faça isso comigo – esbugalha os olhos.
O segundo soco na cara, ela cai para o lado. André se abaixa, e acerta o terceiro na boca
dela. Ela está arranhando o chão e se debatendo feito peixe fora do aquário. Está
resmungando coisas que seu amor não quer ouvir, e agora realmente se desesperou, ela foge
engatinhando, mas ele a segue, pisa nas suas costas, ela cai com os peitos no chão, e pelo
baque deve de ter perdido o ar, logo recebe o chute nas costelas, grita com a voz arranhada e
estridente.
– Você pediu – André fala com tranqüilidade – que eu não te desprezasse. Eu não posso
atender. Primeiro, aquela noite no restaurante. Hoje eu não vou engolir. Eu te desprezo – e a
pega pelo cabelo. – Você se tornou uma cadela desprezível. E é a pessoa que dorme na
mesma cama que eu.
– Não me despr – e toma um tapa na cara, cospe um filete de sangue antes de cair para o
lado.
– Cale a boca, sua puta – e aponta o dedo para o chão, onde ela rasteja.
– Eu te amo, isso não vai nunca mudar, eu sou a sua no... – e toma um chute, este foi
preciso, no rosto, agora está com ele totalmente inchado, o supercílio partiu-se, dessa cratera
molhada respinga na blusa um sangue asqueroso.
– Mas não é indiferença o que eu sinto por você – ele continua, e ela vai rastejando para
longe. – Eu te odeio agora como nunca odiei a ninguém. Espero que esteja satisfeita.
– André, pare com isso, por favor – ergue as mãos com sangue e saliva enquanto fala –, ai,
eu entendo o que você está... – e quando ela está para acabar de falar, recebe mais um tapa.
Ela berra e se encolhe completamente, e isso o inspira a lhe dar uns chutes esparsos.
– Você não entende porra nenhuma, você é incapaz – chuta... chuta... –, mas vai entender.
Você vai entender o que me fez sofrer. Eu vou estragar o seu rosto, bonitona.
– Não!
– E quanto mais você reagir será pior.
– André, pelo amor de deus – é a gente desesperada da platéia que está sussurrando.
– Eu vou – ele grita que é para não deixar dúvidas. – Eu vou.
– Você vai me matar! – Júlia, como se isso o desmotivasse.
– Pode acontecer – ele ruge e a suspende pelos cabelos, mas ela fica estrebuchada de
joelhos.

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– Meu queixo... – com a mão na cara. – Por favor!, me ajudem – grita e estende a mão
para todos.
– Não, eu não vou te matar – ele continua falando. – Você tem é que sofrer, e não morrer.
E por que está pedindo ajuda pra essa gente que te odeia?, que sente nojo? – e ele gargalha
uma risada embrulhada de lágrimas –, se eu te matar, isso vai acabar aqui, nunca vão saber o
que aconteceu com você, nunca.
– Eu fui sincera com você – ela implora.
– É o mínimo que você me deve.
– Ai, André, ai – e parece que vai desmaiar –, eu não estou bem. Por favor.
– O que você devia ter feito é não ser uma, uma – o rosto se distorceu tanto que não achou
o que falar –, uma filha-da-puta. E não simplesmente ter deixado de falar a verdade, isso é o
mínimo, é o mínimo, não venha implorar alguma coisa por isso, você me devia, me devia.
– Pára, pelo amor de deus, pára com isso. Não faz mais.
– Você vai entender.
– Você vai me matar – ela só não esbugalha mais os olhos porque estão inchados.
– Já disse que não vou – rosna e a puxa pelo braço, para que se levante, e ela já se
encolhe a esperar a nova pancada . – Mas você vai sentir muita dor.
– Isso não muda em nada... – ela fica tentando escapulir, tolinha – me solta, não muda em
nada, o que está feito, está feito, por favor, pára com essa loucura.
– Vai mudar pra você e para mim, ver a sua dor vai aliviar a minha. E você nunca, nunca
vai se esquecer – ele se embrulha nas suas lágrimas – o que você está me fazendo passar...
– Meu amor, não chore – e ela tenta aproveitar –, sim?, eu juro que será diferente, já foi o
suficiente, eu me forçarei a mudar, farei da minha vida o que você quiser, mas não me bata,
me dê essa chance, sim?, meu amor.
– Eu não vou mais te bater.
– Obrigada, obrigada – e faz posição de prece para agradecê-lo.
E ele puxa a manga de sua blusa, a rasgá-la, e o som de tecido a se rasgar ecoa.
– Não faça isso – ela não entende, mas se cobre.
– Venha cá – ele a persegue.
– Não, não – ela chora, sem forças.
Ele coloca a mão nas suas golas e rasga completamente sua blusa, a deixa de barriga nua
e de sutiã, que já não escapa dos gotões de sangue.
– O que você está fazendo? – ela cobre o corpo –, olha essa gente, por favor, não faça eu
me humilhar ainda mais, já não foi bastante?, hum?, não me faça ainda mais, estou te
implorando.,,
– O que você precisa, Júlia, é de mais humilhação.
– Não!, não.
– Essa que você julga estar passando é uma mentira, é hipocrisia – e a cospe no rosto –
típica de você, hipócrita e teatral, puta falsa, mentirosa escrota, doentia.
– Não!, não!, não!, não fala assim comigo, vai, pára com isso, cacete.
– Se você não quer – e ergue a mão como se fosse lhe dar na cara – mais uma surra bem
dada, e eu não vou repetir duas vezes, estou falando sério, não vou repetir, então não resista.
Ela está engolindo o choro e ele arranca o seu sutiã, o teatro está ecoando uma salva de
cochichos, a gente se debruça sobre as poltronas e pede para que não faça isso, ou que faça,
faça sim, ela merece, mas ninguém subestima o ultimato, ninguém se mantêm mais próximo do
palco que a distância da primeira fileira. Os peitos sardentos estão a mostra e ela finge se
preocupar com pudor. Ela deve estar tendo o que merece. Espantalho em prantos na alvorada
dos corvos. Sem segredos para ninguém. Ele a está tirando as calças, e ela não pode resistir,
olha o seu noivo, com o rostinho assim, baixo, rostinho aberto de inchaço, ela murmura
súplicas que não podemos ouvir daqui, e se ele ouve de lá, finge que não, porque não quis
ouvir. Termina por arriar-lhe a calcinha e parti-la, assim vai deixá-la com um dilema do que ela
tampa com as mãos. E se curva e cruza as pernas para que não vejam nada, tosse de
dificuldade para respirar e baba um filete, chora, chora muito, pobrezinha, chora realmente
muito, pede a ele uma compreensão que não pode receber. E ele a atinge na boca-do-
estômago, que é para que perca o ar de vez e mostre a nudez, que não tem assim nada
demais, ao mundo.
– Agora você tem vergonha – ele diz.
Ela não tem energias para negar.
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– Você quis se mostrar, quis que víssemos como se sente uma porcalhona. Agora você
conseguiu. Mas não foi como esperava.
Ela não o olha.
– Se sente uma porca?
Ela não olha.
– E a podridão te excita – ele continua.
Ela parece enojada ao esfregar o próprio rosto.
– Pois bem – ele assente, e ergue o braço –, porque quem quiser ser podre o bastante com
ela, pode ser. A comam, a espanquem – os olhos vermelhos de exaustão –, a matem, pode
ser, façam o que vocês bem entenderam. Vocês ouviram as palavras dela, ouviram o que ela
quer. Não sou eu quem precisa repetir. Está muito claro.
– André... – chora.
– Cala a boca – empurra de levinho o rosto dela para o chão.
– Você não pode fazer uma coisa dessas comigo...
– Eu não farei nada – e limpa o rosto. – Eu vou embora daqui, não vou ficar pra ver, ao
contrário de você, não tenho a mínima curiosidade de viver uma nojeira assim, de viver o
grotesco que é isso, de ver aquela que foi minha mulher ser fodida e escarrada por quem bem
entender.
– Pelo amor de deus.
– Você não me deixa escolha.
– Você tem uma escolha...
– Eu quero me vingar.
– Se vingue de outra maneira! – ela passa as unhas nos peitos.
– Vocês – ele não sabe se ri, mas aponta para toda a sociedade, e de todo o resto ele já se
desapontou profundamente, e desistiu –, façam o que quiserem.
André caminha na direção dos bastidores, deu inteiramente a entender que vai embora.
Em nenhum momento ele te atribuiu a culpa, Alex. Ou é mesmo mais amigo seu como
nenhum outro que poderá um dia encontrar em sua vida, ou reservou o seu quinhão dum jeito
que o que lhe espera é muito pior do que espera Júlia, que está trêmula e encolhida, e toda a
sociedade começa agora a se erguer de suas cadeiras e se perguntar uns aos outros o que
realmente devem fazer. Alex tentou gritar pelo nome de André, de repente o chamaria e diria,
ei, ainda tem que falar de mim, por favor, vamos nos resolver, mas perdeu a voz por
conveniência, vem a fraqueza que sempre esteve consigo e o deixou no chão. Aquele sujeito
careca, troncudo e com cara de bandido, do qual não se lembra mais o nome, estala o pescoço
e acabou de tomar a dianteira.
– É, bem – ele resmunga um pouco constrangido –, vocês ouviram o rapaz – e começa a
abaixar as calças. – Você entende, não é, moça?
Ela não faz mais que se abraçar e chorar.
E assim vai se criando uma procissão bastante funesta na sua direção e, daqui a pouco
tempo, a gente já vai estar subindo no palco, seja pelas escadinhas ou debruçando-se ribalta
acima, e estará se criando um círculo desinteressado em torno de Júlia, como quem observa
um cadáver ou assiste com pesar a um bicho atropelado, e se lamuriam nas surdinas uns aos
outros, porque, se Alex realmente os conhece, a maioria deve estar julgando fazer mais um
favor à liberdade do camarada André do que praticando algo que os satisfaça. É mesmo por
André, que exigiu e que entendeu a essa coisa como sendo o seu exorcismo, e ora, ela, isto é,
Júlia, o exorcismo, tem o seu quê de merecido, o que pode até não ter definido o ânimo destes
sacerdotes que vão extrair a besta do corpo da mulher, mas certamente foi a ajuda decisiva,
porque a gente da sociedade julga, com esse asco, cada coisa da sua maneira. E eles sabem
se ressentir. E sabem tornar o rancor em força bruta. Alex não faz esforço de se mover, está
em sua completa derrocada, este deve ser até hoje o pior dia de sua vida e sequer é porque
ocorreu consigo, nem seu corpo nem seu moral foram violados, mas talvez tenha sido a alma a
adoecer, enfraquecer para sempre.
Ele vê quando o troncudo se agacha com as calças até os joelhos, ele vê a gente com a
expressão de nojo e de um é, que pena. Ele vê Bonaparte, voyeur desanimado, ir à gente se
juntar. Não deve ser como olhar Sylvia. Agora é uma obrigação. Ele mesmo é o único a
permanecer sentado, e percebe a gente o espreitando das mesmas maneiras que antes, na
verdade, na verdade mesmo, esse não passa de um dia comum, e isso o enfurece de chorar,
assim, pasmo, babaca e boquiaberto, esse jeito de não perceberem que ele é culpado, porque
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deveriam desprezá-lo ao menos um pouco, e não incentivá-lo a conhecer cada vez mais um
novo aspecto do fundo do poço, porque de Alex, de mim, ele pensa, isso já parece ser algo a
se esperar, não é de se espantar, então não terão motivos para se importar comigo, condenar-
me, restringir-me, o que for. Eles são indiferentes porque esperam tudo de mim. Eu sou uma
surpresa, sou algo abstrato e intangível. Então descobre que o vêem como um fantasma
maldito.
Habib vem passando, não deixa de notá-lo e entra pela fileira onde está sentado, agora
está a lhe dar tapinhas no ombro, parabéns, meu garoto, é isso o que ele quer dizer, você
realmente concluiu a sua loucura, não é como se antes não fosse, mas agora é oficialmente
membro da sociedade. Mas atrás dos olhos oblíquos e do rosto rechonchudo, da calvície rala e
o do ar moribundo, ele já deu a entender que está ciente da gravidade, ao que Alex pergunta
com o olhar, o que eu fiz?, e ele o responde que não se aflija, era algo tão preciso que se
tornou inevitável. Mas isso, ele continua a dizer na forma de impressões silenciosas, isto já é
demais. Mas não importa o que pense. Para o retorno à escuridão nunca é demais.
Ele encolheu-se e está até agora a tremer, porque se Júlia é condenada a pagar com a
pele, e vai pagar, ele foi condenado a vigiar, e não é que realmente esteja de prontidão, mas
sabe por intuição o que ocorre, ouve de longe, e essa já é forma o bastante de entender, por
conseguinte de suportar. Às vezes ele escuta um gemido do desespero sufocado. Uma dor que
ela não conseguiu prender. Vê a roda ou a gente abaixo da ribalta esperar com paciência. Ele
abaixa o rosto e não quer supor mais nada, congela-se no tempo, ainda que ele vá correr com
uma lentidão apreciativa, que se dane, não faz mais diferença, cerra as pálpebras mas a sua
shangrilá não o responde, não existe uma ou para onde escapar. Ao que parece, feito ave suja
de ciscar migalhas, ele consegue bicar do éter uma ou outra informação que se deixou
escapar, e então associa por alto, por via dessa concentração imperfeita.
Ao que parece, algumas das moças da sociedade, principalmente algumas das mais
recém-chegadas, que possivelmente não conseguem compreender como um veredicto tão
insensível pode pesar sobre alguém, afinal não somos um tribunal, somos seres humanos, e
como disse aquele camarada sábio que falou numa ocasião, por mais amorais que sejamos é
natural do ser humano se sensibilizar, o choque é inevitável de estarmos vivos, mas nunca
saberemos se um desses choques escapa de moralismos a não ser que os questionemos e os
violemos, e questionando a situação essas moças perceberam que o que há aí não é mais que
o ego do moço profundamente destroçado pela devastação da mulher, e ainda que possamos
antipatizar, ou não, com isso, temos de honrar o nosso princípio de liberdade. Parece que as
novas moças captaram o espírito da coisa com muita competência. Sendo assim, elas dizem,
se vocês querem sodomizar, mutilar, maltratar essa puta, não se deixem enganar, não deve
ser por senso de justiça, porque o nosso ainda é ultrapassado ou muito imaturo. Não se
iludam, se vocês querem mesmo ser livres, a estuprem e a espanquem porque é um desejo do
poder de vocês, não por dizer o que ela merece ou não, do contrário estaríamos todos sendo
hipócritas.
E ao que Alex percebe, os homens se deixaram realmente ponderar, à parte da ala
feminina que fica esperneando ao dizer que vagabunda dessa estirpe tem mesmo é que
apanhar. Mas pôr-se a ponderar revela muito da boa vontade dessa gente, que são os
monstros do mundo e estão piores a cada dia, e ao menos se resguardam a sinceridade,
porque ainda não aprenderam a fazer a consciência parar de latejar pelos motivos que ela volta
e meia inventa, e ninguém aí deve pretender não dormir em paz. E, com a sinceridade, muito
do sofrimento de Júlia deve ter se amainado. Ela foi mesmo bastante sincera. Uma mulher
como Júlia não pode ser tão sincera. Ela vai sofrer de qualquer jeito.
Mais uma reunião está se acabando durante a marcha nupcial, que depois do dia de hoje
ninguém mais deve ter vontade de fazer as suas idiotices, e o ambiente não está propício à
outros gêneros de conversa. Ou é por respeito ou por esquecimento que o deixam lá, parado
na mesma poltrona, todas em torno já vazias, e não o chamam para ver se está bem, ainda
que acenem com as cabeças com um tchau casual aos quais não responde, não vêem se está
sofrendo, morto, com os rins às avessas, se não quer uma carona, nada. Então é dessa
maneira que eles me vêem, entende. E o deixaram só. Vai ver os últimos que saíram
esqueceram de desligar os fusíveis, a luz que os peritos do gato de energia há tanto tempo
arranjaram vem-e-volta. Então só resta ele, Alex e o corpo nu estrebuchado. Alex retira a sua
sobreveste, faz muita força para conseguir levantar-se, o instinto que tem é o de tornar-se
estátua, e a reunião da noite seguinte virá e o encontrará na mesma posição, sentado para
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sempre no mesmo lugar, se entrassem pombos aqui no teatro estariam pousando nos seus
ombros e soltando suas caquinhas, e do mesmo modo a reunião se encerraria, da nova
próxima vez ele ainda estaria. Mas se mobiliza por uma intenção que não lhe oferece muitos
argumentos, mas o convence, de que não pode ficar assim toda a vida. Então ele agora está
seguindo na direção do palco, tão suavemente porque não quer se fazer ouvir.
Júlia está mesmo acordada, o sangue escorrendo do nariz, cortes na gengiva e lábios
ressecados. Ela está acordada e nem tem forças para tremer, imagina ser isso que o que ela
faria se pudesse. Ficou reduzida a isto, a um pacote traumatizado que também nessa posição
pretende vegetar para sempre. Ele se sente o completo lixo que enxerga nela, um prisioneiro
de guerra que nunca vai se recuperar, e um episódio desses muda completamente tudo, muda
a forma de vermos uma pessoa que antes estávamos certo de ser de uma forma. Muda o
passado e o futuro dela e o nosso. Quase lacrimeja quando pousa a sobreveste sobre o corpo
todo maltratado e ela já se treme, crente de que vem mais porrada. Então ele resiste, se põe
de joelhos depois de um grande arfar, toca com as mãos trêmulas o rosto dela, ergue bem de
levinho o queixo, ela resiste, não quer ser vista assim, não quer correr mais risco, será que não
foi o bastante?, ao que ele sussurra, sou só eu. E ela grasne uma vez mais de choro. Alex a
abraçou com toda a delicadeza que pôde, pôs a cabeça dela por sobre o ombro.
– Você – ela sussurra quase sem voz – devia ter me ajudado.
E ela o abraça fortemente, ao que finalmente pode chorar copiosamente sem ter que
rastejar. Ele engole as lágrimas e a afaga contra si.

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Atravessou a porta do Schneider e não precisa mais se encolher para dentro da jaqueta, a
sineta a apitar e a lhe dizer bem-vindo ao caminho do matadouro também o comunica no
estrondo qualquer de sineta que estará protegido do frio de lá fora. Olhando assim por alto é
uma noite, ou melhor, começo de fim-de-tarde das movimentadas, vai ver é porque não pára
de chover e estiar, chover e estiar, chover e estiar nesta droga de cidade, tendo pensado isso
três vezes que é para deixar muito claro que até do clima não sabe o que esperar, restam as
incertezas do céu e o frio que não nos abandona. Pelo que vê enquanto vai entrando, as
garçonetes são um número maior do que quando se lembrava, que nos dias tranqüilos elas
devem ficar dormindo na reserva, na cozinha ou na dispensa, e todas elas agora vão
serpenteando com dificuldade de equilibrista entre a gente. Mas o que importa é André, a quem
acha com facilidade. Está no mesmo padrão de mesa, das bancadas acolchoadas e grudadas
nas vidraças. Sente a espinha abandoná-lo e falir, ele tem de ser mais rápido que seu processo
de covardia, vai andando a passos largos, espera não interromper nem o fumo nem o
cafezinho de André.
– André – pára em frente a mesa, e é isso que gagueja –, desculpe.
André se vira a você, mau sinal, porque agora o está olhando nos olhos, se não é ele quem
o olha são essas olheiras gritantes, pior sinal ainda, sinal de que ele sequer dormiu, ou se o fez
foi escondido na sala das fotocopiadoras do trabalho, deve ser por isso que os cabelos estão
desarrumados, ou porque pela manhã não teve a paciência usual de penteá-los, e a cara
amarrotada não ressalta outra coisa. E é com tranqüilidade que ele fala.
– Senta aí.
E Alex obedece, joga o corpo bancada à frente, desliza os dedos por sobre a mesa e não
se preocupa em denunciar a ansiedade, não é mais o rapaz introspectivo e de gestos
comedidos como em um dia remoto ele se entendeu, que pensava nas reações que um piscar
de olhos ou um sorriso causaria na pessoa a quem se dirige, que pensava no que significa um
silêncio seu ou um pouco de aflição a mais. E não sabe como tem de começar uma coisa a ser
dita, mas sabe como aproximadamente gostaria.
– Desculpa, André – com o tom de súplica.
– Relaxa – levanta o mindinho elegantemente enquanto bebe do café.
– Relaxar? – e fica boquiaberto o olhando –, você me pede para relaxar?
– Ai, que repetição – e ele esfrega a testa –, sim, foi o que eu disse.
– Então é como se nada tivesse acontecido?
– É claro que não, não diga uma coisa dessas, que assim você me ofende, é claro que eu
sei que aconteceu algo, e claro que vou me lembrar.
– Desculpe, desculpe – e abana a cabeça.
– Mas pára com essa droga de desculpa – e abana o punho de qualquer maneira.
– Desculpe – e esbugalha um tantinho a cara ao vê-lo condenar, então ergue as mãos aos
ares, ok, sem mais desculpas, esse negócio de pedir desculpas das desculpas é mesmo coisa
de gente obcecada.
– Então, você não está bravo, furioso, coisa parecida? – e continua.
A garçonete conseguiu se livrar dos obstáculos e vem saltitando na sua direção, ele não a
nota até a hora em que ela já está sorrindo e com a prancheta a postos na mão, pega esse
lápis e caderninho e bota você sabe onde, ele pensa, mas a mocinha já tem de usar essa nova
farda xadrez e ainda tem fôlego de sorrir, ela merece o seu respeito, ao menos a tolere. Alex
não deseja nada, com um aceno de mão a dispensa.
– Estou – André responde, e peteleca as cinzas do cigarro.
– Certo – abaixa um pouco a cabeça.
– Apenas não estou agindo de maneira imbecil, e não pretendo.
– Certo – suspira.
– Isso é – e ele revira os olhos, não parece estar firme, apenas autêntico –, você também
me traiu.
– Eu sei.
– Então, não quer me dizer o que você sente sobre isso?
– Eu não sei o que você espera – dá com as mãos.
– Eu fiz uma pergunta, então só espero a resposta, de preferência nenhuma pronta.
– Estou – desvia o olhar e acaricia o cenho – me sentindo um lixo, desnorteado, eu me
senti humilhado pelo que ela disse e me senti humilhado por você não brigar comigo, parece
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que tudo que atrai as pessoas pra mim é um talento para o sujo, para a merda, e parece que
isso também me impede de ser culpado pela merda que eu venha a fazer.
– Entendo, foi mais expressivo do que eu esperava.
– Eu também não esperava. Eu me sentir mal não importa, fale de você.
– Estou descarregado, desobstruído – insinua um sorriso –, vazio da forma que se sente
quando você acaba de perder tudo. Você sabe?, não é?
– Sim, eu sei.
– É como se tivesse morrido e ainda restasse algo que eu ainda não sei dizer...
– Eu estou arrependido, André.
– Isso é – ele não parece ouvi-lo –, não é tão extremo quanto você quis dizer, está
exagerando um pouco com essa coisa de talento para merda. Mas eu te entendo – afunda a
guimba nos destroços –, ainda que às vezes isso me doa.
– Como assim?
– E você, mesmo tendo feito isso, ainda é mais confiável que Júlia.
– Bom, disso eu estou certo, mas por que a traição dela seria diferente da minha?
– Antes que você tente me induzir – e aponta –, saiba que estou puto com você.
– Certo.
– É diferente porque Júlia é Júlia, você não é ela. Você não é uma manipuladora psicótica
e doentia, carente de ser amada. Júlia fez aquelas coisas – e a expressão se enoja enquanto
fala – simplesmente pra me magoar, por alguma rixa existencial, talvez porque não me suporta
– e bufa – e se adiou pra perceber isso. Ela precisa saber que está me ferrando, e precisa se
humilhar pra que por fim eu não lhe dê com a mão na cara, coisa que ela não pôde mais
conter.
Alex não está muito certo da parte que ele não é uma manipuladora psicótica mal-amada,
mas continua a ouvir com atenção.
– Você – e toma mais afoitamente do café –, você também deve ter as suas rixas comigo,
mas são coisas que não se destacam assim.
– É verdade.
– Eu sei que se comeu Júlia é porque a acha gostosa, e é mesmo, ela é sedutora, exerce
um fascínio, eu entendo, eu entendo que deva ter uma atração especial sobre você, é
maliciosa, também é bonita, tem uns peitos bonitos, uma bunda gostosa, e... – vai
gesticulando, até ser interrompido.
– André, você não me precisa falar essas coisas.
– É mesmo, afinal você já sabe na prática.
– Não é isso que eu quis dizer – rosna –, é que você está se torturando.
– Pareço estar no direito de desabafar sem que você me mande parar, já que foi a você
que eu pedi pra que, se por um acaso viesse o clima da sociedade, a sacanagem, a perversão,
a libertinagem etc, que você não comesse a vagabunda da minha noiva, e me parece bem
claro que você sentiu um prazer especial nisso.
– É, eu sei.
– Mas isso é algo que eu esperaria de você, esse deslize, você não é uma pessoa da qual
se possa pedir pra não se ter alguma liberdade por muito tempo. Você é mesmo o pior escroto.
Talvez nesse aspecto o erro tenha sido até mesmo meu – e sorri como quem diz, que ironia –,
que fiquei com medo, com receio bobo, que pelo visto não é mais tão bobo assim, e te
restringi, quando isso é que te excita.
– Mas eu juro – Alex fala com sinceridade – que não fui eu que fui atrás.
– Eu imagino, e ainda que isso te torne fraco, ao menos te torna menos cruel.
– É mesmo, e eu quero mesmo ouvir essas coisas de você, eu sei que mereço.
– Tudo bem, assunto encerrado, eu bato em alguém da sociedade quando precisar, quebro
uns pratos em casa quando a ira apertar, e ainda estou puto, não esqueça disso – sempre que
fala isso fica a apontá-lo –, mas tudo bem – meio que engole o nervosismo. – Mas eu também
não sou um idiota, digo, eu sei reconhecer os porquês de cada um escondidos atrás dos seus
atos, a sociedade me ajudou muito quanto a isso, e é uma diferença crucial. Eu podia estar
sendo um babaca, um otário. Podia ficar dando escândalo. Mas estou assim, é isso.
– Se você não se importa em dizer, como está Júlia?
– No hospital, onde você a deixou.
– E você não foi vê-la, ou algo assim?, já ia esquecer, obrigado por ter vindo – está mesmo
mais constrangido que qualquer coisa.
479
– Não há de quer – abaixa um pouco o rosto. – Não – e pára por segundos –, mas eu
liguei, depois que você me avisou, eu liguei pra saber como ela estava, e depois que desliguei
eu vi – e dá um risinho – que não me importava mais.
– Eu tenho de te dizer – e exige paciência a gesticular –, a história que eu contei foi
convincente, e ela deu a entender estar disposta a compactuar, mas no fim das contas isso é
um pouco imprevisível, eu não sei como ela vai reagir.
– Eu realmente não me importo, mas o que você disse?
– Disse que foi surrada por assaltantes, então peguei todo o dinheiro dela pra mim, estou
achando que possa devolver depois. Então, ela reagiu ao assalto, foi espancada, mas ficou
consciente, achou ter quebrado costelas ou pelo menos um braço, se arrastou até um telefone
público e conseguiu fazer umas ligações de pedido de ajuda, alguns números não atenderam,
provavelmente você estava dormindo num sono muito profundo ou fazendo serão no escritório,
que não aceita chamada a cobrar. E conseguiu fazer a mim, eu fui ao local com o meu carro,
que na verdade é o dela, a joguei no banco de trás e a levei para o médico.
– Eu não dou a mínima – ele repete.
– Mas vê lá, é uma história bem inventada.
– Antes falasse a verdade, ninguém realmente ia acreditar ou dar mais atenção, a cidade
inteira está mesmo uma merda, não faz diferença contar que uns loucos, e um louco em
especial – e aponta a si mesmo – de uma sociedade secreta, a espancaram e fizeram sabe-se
lá o que mais – e faz sinal para que ele pare –, e não venha me contar, porque isso é algo que
eu escolho não saber. Se eu soubesse ficaria ainda com mais raiva dela, porque tenho certeza
que ela gostou.
– Já repenso se ninguém acreditaria.
– É verdade, é mesmo – pondera.
– E André, o que você disse dela gostar, pelo amor de deus, não é assim...
E ele o encara com jeito de que é, é sim.
– Tudo bem – desiste –, o assunto é seu.
– Não é mais, era, mas eu tenho algum direito sobre ele, e quero deixar bem claro que – e
é nesse exato ponto da conversa entre os dois, que as coisas da vida não esperam momentos
exatamente adequados, que algo muito estranho acabou por acontecer.
Porque um estrondo forte, desses que são inconfundivelmente da explosão de alguma
coisa, estoura num som que não é como do bum que se imagina, aqui se permita a paródia
com as onomatopéias, mas como um som que Alex não sabe exatamente como descrever por
ter sido muito rápido e por, como se verá, assustá-lo e roubar a atenção. A distante impressão
que tem é que antes de tudo foi um tremor, vibração das coisas, e então o estalo que finge que
vai sair chiado mas sai forte feito rojão, em algum canto não muito distante dali, porque os
vidros chegam a trincar, mas não se partem, e os pires e as xícaras e pratinhos de torta dão
breves pinotes estalando sobre as mesas. Alguma coisa explodiu, e foi feio, e isso assusta a
qualquer um.
Alex deslizou para fora da bancada – e André veio ao mesmo instante – e ergue o braço
sobre o rosto, que foi isso?, e espera que seja como nos filmes, que a janela esteja prestes a
se arrebentar sobre a cabeça, mas nos filmes quando o mocinho atravessa as vidraças de um
lugar qualquer ele nunca se fere, os cortes nunca importam. Minha nossa, começam os
murmúrios, e ao notar que nenhum foguete entrará voando por sua cabeça, permite-se olhar
para a gente, que está ou ligeiramente levantada de susto ou caída de vez ao chão, esses são
os paranóicos do tipo dos que ouvem um escapamento de carro pipocar e juram por deus ter
sido um tiroteio. A garçonete derrubou um prato com panquecas, que porcaria, e pela voz
miúda do pessoal, que não entende, a não ser que se os escute bem de pertinho, estão
finalmente teorizando o que aconteceu, e uns dirão que não foi nada, apenas um poste que
estourou, mas é claro que isso não foi som de poste e as caixas de energia não estrondam
dessa maneira, foi um barulho de faltar a audição, de deixá-la chiada. E os mais corajosos
saíram pela porta, assim, como quem inicialmente não quer nada, mas foi homem suficiente
para averiguar, os outros preferem só bisbilhotar de longe quase com a certeza que não verão
a nada, e Alex, que não é tolo de gastar com qualquer coisa a coragem que pode ser muito
melhor investida, é um desses que ficam bisbilhotando de dentro. Põe a patinha sobre o banco
estofado, força a vista, a miopia é uma droga, é só ter um vidro defronte que mal enxerga coisa
com coisa, mas ele só precisa ouvir o que está para acontecer. Rá-tá-tá, dá-se em algum lugar
a saraivada de tiros.
480
Ai, meu deus!, murmura a gente mais escandalosa, esses tampam as próprias bocas para
não cometerem excessos, berrar de vez que ai, meu deus!, não agüento, sou muito sensível
para ver uma coisa dessas etc. A gente que teme os escapamentos de carro já está jogada e
rastejando-se ao chão. Com a segunda seqüência dos tiros, vão ficar desesperadas e revirar
as mesas e se entrincheirar como se isso fosse protegê-las.
– Eu nunca tinha visto um tiroteio tão de perto – diz André, agachado.
– Eu não enxergo nada.
– Eu também não, foi maneira de dizer.
– Não esqueçamos da bomba – e se espicha, mas não consegue enxergar.
– Não esqueci. O que será que houve?
E os tiros não param, devem estar a uma proximidade mais ou menos o quê?, na rua logo
defronte ao estacionamento. Está ganhando espaço a idéia de ser um atentado, ou pode ser
um assalto do outro lado da rua, cochicha um pouco exasperadamente uma mulher, mas o
marido a oprime dizendo que não seja estúpida, assaltos não usam de bombas e isso é tiro de
metralhadora, então pode ser mesmo a polícia em alguma operação especial por aqui, ou
estão fazendo, não a polícia, um saque coletivo. As saraivadas amansaram um pouco, ao que
o grupo da coragem de antes, que tinha saído para investigar, estava na verdade um rolando
sobre o outro no chão desde a primeira salva de tiros, e agora se levantam para dizer
preocupadíssimos que viram muita fumaça do lado de fora, que decerto explodiram ou
incendiaram alguma coisa, se não muitas delas. Alex não dá lá muito crédito, acha que estão
criando estardalhaço para dar um porquê à maricagem, então ele gargalha internamente e
volta a se sentar, enquanto a guerrilha ali na rua está a continuar, ra-tá-tá-tá.
– Eu acho que não vão me trazer um café.
André senta-se e cola o rosto no vidro.
– Estou vendo, tem uns dois caras armados escondidos atrás de uns carros, estão
metralhando para a esquina, os seus comparsas já devem estar vindo se juntar.
– É mesmo?, que confusão...
– Não quer terminar o meu café? – e empurra para Alex.
– Obrigado – e toma a xícara, outra bomba estourou em algum lugar. – É mesmo, tudo isso
me lembrou que eu tinha algo a dizer, e toda confusão do teatro, você sabe, acabou fazendo
com que eu me distraísse, mas é mesmo importante – e vai metendo a mão no bolso.
– O que é?
O som de motores do batalhão-de-choque toma toda a rua, e então vêm os tiros mais
secos porém contínuos, isso é porque devem estar dirigindo e atirando aleatoriamente. A gente
aqui no bar virou as mesas por cima das cabeças, debaixo delas estão tremendo e chorando
de medo.
– Um telegrama? – André, ao tomar o que Alex o entrega.
– Sim, sim, leia – rodopia o dedo indicador.
Ele abre, e lê paulatinamente, enruga as bochechas, pelo tempo que demora está
querendo assimilar bem, ver se o que está escrito é realmente o que está escrito e não o erro
de interpretação de alguma vírgula posta no lugar errado, de repente a possibilidade de ser
uma brincadeira, que essa gente da sociedade não conhece limites.
– Robes não brincaria com isso – diz André.
– Eu sei que não, eu nem pensei uma coisa dessas, estou certo que é sério.
– E você encara com naturalidade que possam ter colocado alguém pra te matar?
– E como eu vou encarar?, eu não sei, desculpe, é que simplesmente – e abre as mãos –,
é algo que está fora do meu alcance, o que eu posso fazer é perguntar o que você e os outros
pensam, e torcer pra que nisso haja uma saída, que era o que eu pretendia fazer.
– Eu estou assustado – desabafa –, é uma situação que complica tudo.
Um vidro mais adentro rompe-se estilhaçando todo, porque pelo visto uma bala perdida
perdeu-se, que redundância fascinante, perdeu-se por aquelas bandas e foi acertar um lugar
qualquer, e as pessoas gritam, ai, meu deus, está vindo para cá, está vindo para cá, ainda
tenho tanta gente com quem falar, tanta coisa para fazer, não quero morrer acuado num chão
de bar.
– Mas também – e Alex apóia a cabeça na mão, a lamentar-se – faz um sentido que eu
não posso negar, e certa vez você me disse que eu não tenho a vocação para me enganar – e
pára um pouco, refletindo se foi ele ou o outro que o disse essas coisas, mas André não
intervém, então julga não fazer diferença –, é verdade.
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– E o que você acha?
– Que os detetives, ou seja lá quem esteja cuidando do caso, eu não sei – Alex é
interrompido.
– Geralmente são os detetives que fazem isso, um ou dois, é como nos filmes, eles
trabalham com um parceiro com o qual geralmente não se entendem etc.
– As coisas da vida real são diferentes da dos filmes, eu agora há pouco pensei que se eu
inventasse de atravessar a vidraça com o meu corpo não me machucaria, ainda bem que me
resta sensatez e sei que não posso sair fazendo isso por aí.
– Por que você teria a idéia de pular uma vidraça?
– Estava pensando se por acaso não era como nos filmes, mesmo. Se fosse, a bomba que
explodiu aquela hora devia ter estilhaçado a tudo, bum, tremido o chão, jorrado as mesmas
pelos cantos, entendeu?
– Fala um pouco mais alto – aponta para a orelha –, não tô escutando muito bem.
– É porque outra bomba explodiu lá fora agora há pouco, meu ouvido também está
chiando.
– Será que vão demorar muito com isso?
– Eu não sei. Que estranho, não é?
– Eu não me espanto mais tanto, está tudo virando os pés pela cabeça.
– Mas então, como eu ia dizendo, eu acho mesmo que a polícia descobriu com facilidade o
verdadeiro autor do livro de capa preta, como?, é muito simples, falaram com o jornal das
artes, eles têm meu nome, eu não me preocupei de esconder, eu não tinha por quê.
– Não se justifique, vá falando.
– Descobriram, e devem ter pensado, bem, não há provas suficientes para acusar esse
sujeito, no caso, eu, este tal de Alex, mas é bem claro que ele tem participação nessas coisas,
é só lermos um pouco do seu livro preto, livro da capa negra, não sei como é para chamar
agora, e para mim isso não me faz diferença, continua sendo o retorno à escuridão.
– Agora é crime falá-lo em voz alta, ssh – André adverte.
– Sim, já me sinto inspirado a umas desumanidades – e coça o pescoço. – Enfim, o livro
parece mesmo ter sido escrito por alguém intencionado a fazer umas coisas que eles
entendem como ruins, é um pouco extremista, um pouco ofensivo, eu sei. Então, o que eles
concluirão?
– Você fez mesmo com essas intenções, não foi?
– Não estrague a minha retórica.
– Eu não sei o que concluirão.
Estoura mais outra granada.
– Que o melhor é antes me apagar – e range os dentes – e depois inventar uma história, o
bode expiatório pra quando tudo isso apaziguar, se é que vai apaziguar, dirão algo como,
finalmente foi pego, resistiu a prisão e foi morto o principal responsável de tudo isso que, como
não é de se espantar e não representa uma surpresa muito grande aos nossos serviços de
inteligência, tem de ser o autor do livro da capa preta. Então vão pegar uma foto minha onde
eu esteja barbudo e sem dormir há dias, se não tiver uma assim no meu álbum de família eles
fazem uma montagem, devem ter lá os seus peritos nisso. E, independendo do que eles façam
ou deixem de fazer, eu simplesmente vou ter morrido – dá com os ombros –, e isso – ri de
desespero – já é motivo pra me deixar em pânico.
– Eu não sei, eu acho que você esteja indo um pouco longe demais, não deve ser para
tanto, tem de haver aí um pouco de fantasia.
– E isso escrito no telegrama é fantasia?
– Isso provavelmente não.
– Então – e dá com os ombros –, eu andei em voltas, comecei com esta droga que não me
diz nada, ainda não saí do lugar.
– Ouça a minha idéia, temos de contar isso ao resto da sociedade.
– Às vezes fico pensando se não há espiões.
– É algo que pode existir – e sorri –, mas duvido que não gostem do trabalho.
– Desde que não o realizem contra mim – como quem pergunta não é?
– Sim, sim, é outra questão.
– Contar ao resto da sociedade, e então?
– Vai ser mais simples do que parece, basta que eu faça uns telefonemas.

482
– Eu preciso de um guarda-costas e ter a certeza – tosse riso –, certeza não, que não é
algo que ninguém ou nada possa me oferecer e eu possa receber, mas um pouco de garantia
de que não vou estar andando na rua e de que um rapaz que me pára para perguntar se tenho
isqueiro não vai sacar uma pistola com silenciador e abrir um buraco do tamanho de uma
laranja minha testa.
– Tenho certeza que a gente da sociedade vai se mobilizar. Mas não podemos pedir algo
sem demonstrar serviço, compelir prestatividade quando não se a mostra saída de si mesmo,
então tenho de interceder a favor daqueles sujeitos que foram presos – bufa de desagrado e
coça a nuca –, ainda não sei como e não é algo que me deixe lá muito feliz.
– Os que atiraram senhoras das barcas?
– Na verdade não chegaram a atirar senhoras, não foi assim tão grave.
– Entendi, mas faça, faça sim.
– Pode dormir sossegado, será inteligência versus inteligência.
– É mesmo grave, imagine você que havia um homem distinto xeretando a lata de lixo do
meu edifício, eu o vi pela janela, o que eu poderia pensar?
– Você nos subestima – André cruza os braços e ri.
– Como é?, por quê?
– Eles – um tom enigmático e profundo que faz Alex arrepiar-se, como se referisse aos
inimigos, a um gênero vago de mal, talvez até mesmo a satanás – não podem fazer nada que
nós não possamos. Se eles pensam que podem chegar em você porque fez o livro da capa
preta – e pelo semblante contêm uma gargalhada de gênio de crime –, vão ver que têm mesmo
o que temer, têm mesmo porque se preocupar, porque se tentarem chegar em você terão de
tentar chegar a todos nós.
– Obrigado – comoveu-se.
– Não vou deixá-lo na mão. Vamos até o fim.
André é um semideus. Ninguém é mais nobre que ele.
– Então – abaixa instintivamente um pouco do queixo –, o outro assunto está encerrado.
Mas como se o destino tivesse criado uma espécie de birra por esse assunto, ou como se
as suas linhas tortas que uma vez lidas nos conformes traduzem as coisas certas que tanto se
espera, são interrompidos para que não haja continuidade dessa pauta, e não será preciso
muito empenho do que seja lá o que for, porque a continuidade já não haverá. É que o vidro
tangente a eles, no qual se encostam e tudo mais, sendo esse tudo mais volta e meia admirar
como deve estar sendo uma linda noite lá fora, arrebenta-se todo, vitimado por alguma bala ou
destroço ou projétil que não importa, mas que foi capaz de estilhaçá-la depois de um som tão
coadjuvante de rajadas de fuzil que passou despercebido. Os cacos fazem como se fossem
uma onda a mergulhar e ambos instintivamente abaixam-se para proteger os rostos. Alex sente
os estilhaços se caindo sobre suas costas, fossem mais precisos seria uma pequena sessão
de agradável acupuntura. Ao erguer novamente a cabeça está um pouco enjoado da chatice da
situação, ainda mais ao receber o sopro de ar esfumaçado e gelado que agora não tem
empecilhos para entrar. A gente do Schneider está chorando e murmurando se estão bem, que
são loucos por continuarem sentados e papeando numa situação dessas. Alex limpou os
estilhaços do ombro e pigarreia, encolhe-se a seguir, porque com essa friagem é certo que vai
se gripar.
– Você se machucou? – pergunta a André, que acaba de se levantar.
– Eu não, acho que não – olhando os braços e vendo se não está cortado, coisa assim.
– Nem eu. É mesmo como nos filmes – se surpreende.
– Agora tem cacos no meu café, que agora é seu – resmunga.
– Prefere ir para o balcão?, lá está mais aconchegante.
– Certo, vamos.
Após acertados por alto os termos, que André é muito mais competente a tratar-se da parte
técnica de qualquer problema ou das organizações, já que estamos falando do principal
estruturador da sociedade e de seus eventos, sejam os fundos de incentivo à insanidade
pública, o roubo da firma, a noite no hotel ou o encontro-nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje. Alex
carrega cada coisa que lhe foi dita com uma confusão de caixa de pandora, mas confiança de
filho que se vê na obrigação da lealdade para com o pai, e este é André, e sendo um pouco
sórdido, já que os pensamentos nos permitem essa segurança, ainda aproveitando essa
analogia, parece que Alex foi um édipo, que comeu sem saber a própria mãe. Assim ele vai
refletindo que há algum tempo atrás pensou ser certo que Júlia devia invejar alguma coisa em
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André, por isso continuaria com ele. Parece que finalmente ele descobriu. Júlia era a principal
carcereira de André, e ela sabia disso, é certo que se aproveitava. Ela sabia que ele poderia
detestar o emprego e a frustração de não ser quem um dia quis. Mas nunca detestaria ela,
Júlia deve ter essa necessidade de segurança, devia se apoiar na certeza de segurança,
conflito com segurança, idas-e-vindas com segurança, briga com segurança, mágoas e perdão
com segurança, humilhação com segurança, felicidade com segurança, risco com segurança,
traição com segurança e um ciclo com segurança que para sempre manteria, rainha de um
pódio que ela inventou. Até você chegar, Alex, porque você libertou André, e não acha que ela
vai deixar essa mudança da alma barato. E Alex pensa essas coisas porque não lhe cabe
ignorar que André deva estar consternado, arrasadíssimo, por dentro mais em cacos que a
janela partida, mais receoso que aquele pessoal que tremia e sussurrava, meu deus, não se
pode viver numa situação assim. E André revelou-se hoje um amigo para toda a vida, para
apertar a mão quando ele esteja para morrer, ou que seja ele a apertar a sua. E serão
enterrados em covas lado-a-lado para que os vermes de cada um possam também se
conhecer e ter uma história tão bonita.
Com as mãos fincadas nos bolsos, o rosto baixo para assim se proteger do odor, as franjas
se balançando e caindo-lhe nas vistas, está mesmo precisando cortar o cabelo, pensa que
lembrar-se disso é engraçado, fica algum tempo a pensar sobre as coisas que se esqueceu por
preocupações como assassino no encalço, comer mulher do amigo e retornar à escuridão, aqui
está se referindo ao ato em si de retornar e não ao livro que o ensina, que, como ele sabe,
ainda que não se importe, não é mais esse nome que possui. As calçadas estão uma
confusão, a noite está escura e a favor do vento sopra uma nuvem de poeira, destroços e uma
fumaça que deve ter muitas coisas podres. Assim que ele atravessou a rua, não pela faixa de
pedestres, primeiro porque não é um bom cidadão, depois porque não há trânsito, já está a
cruzar uns bandos de pessoas acuadas, que tossem suas fofocas ou de repente foram
vitimadas pelos atentados, bombardeio estrangeiro ou guerra mundial do começo da tarde. Ele
não se importa. Vê aqueles que devem ser dos serviços especiais, treinados para matar com
mais precisão e rapidez, armados até os dentes, de colete, roupas negras e que andam meio
agachados, como se fossem dar um pulo de sapo, e vão todos numa fileira, uma espécie de
balé, com o fuzil de um sobre o ombro do seguinte. Prevê o ritmo da dança, lago dos cisnes ou
coisa e tal, mas não é dos mais interessantes. Pára um pouco para assistir uns carros pegando
fogo no outro lado da rua. Não poderia se aproximar muito porque já está lá um monte de
oficial com cara séria a fazer barricadas com carros e cruzar a rua com as faixas de contenção.
Parece que os rebeldes já foram aplacados. Em pouco tempo, sendo esse o limite para os
curiosos que os oficiais não podem compelir para muito longe, um grupo de transeuntes se
formou ao seu redor e, nessa calçada dessa esquina, ainda que não se dirijam a si,
provavelmente porque não é o de aparência mais afável e volta e meia grunhe algum problema
que não tenha nenhuma pertinência com o aqui e o agora, mas comentam uns com os outros
qualquer coisa à respeito. Parece que alguns rebeldes vieram protestar, sobre o quê?, já isso
não sei bem responder, diz um homem barbudo e gordo, que pela autoridade com que veio
falar ou deve ter estado por perto e ser testemunha direta do confronto, ou será um legítimo da
filosofia de quem conta um conto aumenta um ponto. Parece que vieram protestar contra a
falta de liberdade que temos, fala um senhor parrudo já na casa dos cinqüenta. E nos tiraram
alguma outra liberdade?, comenta a moça no tom de espanto de quem se sente desatualizado,
e a respondem que parece que sempre nos tiraram, mas nunca isso foi importante e agora se
passou a reparar. Enquanto estão a falar vai passando uma marcha da guarda montada à
cavalo pela rua, é um batalhão curto porém grande, e que parece diversidade de desfile militar.
Pelo modo como se dirigem uns aos outros, ordens chiadas, vozes crispadas, uns urros de
selvageria de quem se prepara para o pior, estão indo conter algum outro foco de problema, e
os que se acham fazer parte de uma grande trupe ou algo assim, ainda acabam por se
empolgar e ficam dando com os porretes nos escudos. E um soldado, que deve ser mais bem
intencionado que os demais, se desliga um pouco do batalhão e veio avisar que as ruas
daquela direção não são seguras, e vocês, se referindo a todos que estejam parados e
espantados com o que aconteceu, que são gente de bem, não devem arriscar-se de cair na
laia dessa escória, então é melhor que não vão naquela direção de onde não se sabe o que
esperar, toda hora desponta um vilão entrincheirado em algum estabelecimento que adotou
como qg, e estão tentando armar para todos nós. Uma moça gordinha argumenta que mora
exatamente para lá. E então já se abre um sorriso de arrogância manifesta no soldado, que
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avisa, minha senhora, isso já não é mais de minha autoridade ou competência, ou seja, para
que ela se vire, que ele nada tem a ver. Ao mesmo tempo há o estrondo distante e
despreocupante de uma bomba, lá por outras esquinas e avenidas, e a ordem mete os estribos
no lombo dos cavalos, que relincham ofendidos, mas obedecem, a acelerar.
Alex não segue para as ruas em questão porque lá estará a polícia, e não pelas bombas a
volta e meia explodirem com destroços de telhas cadentes em sua direção, fornalha de fumaça
soprando que queima o rosto e cega. Existe nele uma espécie de sentido de invulnerabilidade
em tudo isso ou, no máximo, um desapego que esteja à beira de fazê-lo tornar-se imortal em
qualidade, ainda que para uma coisa dessas o desapego tenha de ser infinito, o qual ele já
abriu mão das pretensões de conseguir. Por isso ele seguiu por ruas mais movimentadas e
seguras, a cada curva que se distancie do problema irá encontrar um número crescente de
gente que não sabe o que ocorreu, se der sorte o número de carros se normaliza, ou até
mesmo um ou outro atrevido, se não mesmo os loucos de doze anos que nessas épocas
assumem os volantes, estão por aí passeando sem se preocupar. Ao descer as escadas do
metrô percebeu que as coisas não estão muito diferentes. Teve a paciência de ir ao guichê
comprar o seu bilhete de ida, mas todos estão vazios. Pode ter havido um toque de recolher
para os funcionários, a verdade é que devem ter todos se borrado. Foi averiguar diretamente
nas catracas do embarque e percebe que as pessoas que vêm estão pulando, porque também
não há segurança que os impeça. Pronto, me danei, pensa, terei de imaginar um jeito de ir
para casa, que não fica nem um pouco perto daqui. Mas acabando de pensar isso, ouve lá na
fossa do trem os barulhos que anunciam a chegada de um. Não será ele a fazer diferente,
pulou as roletas e desceu.
Lá em baixo as paredes estão entupidas do anúncio de fim dos tempos, de novas religiões
salvacionistas que vão ganhando seu espaço, oráculos e mãe-de-alguém que lê a sua mão e
abre as portas da sua vida, ou de mantenha seu estoque de comida em dia, compre com a
melhor das promoções. O vagão que ele toma está cheio de gente dormindo por seus bancos,
o aspecto de mendigos que descobriram como violar mais um conforto, os bancos não são tão
duros e aqui dentro é refrescante. E, é claro, a gente comum que, muito naturalmente, resolveu
pular as roletas e vai lendo seus jornais até chegada a estação.

485
Com uns dedos ele afastou a persiana, cai nas calçadas um chuvisco fino e ricocheteante,
o dia nublado brilha. A chuva deve ter intimidado alguém que eventualmente estivesse uma vez
mais a fuçar-lhe no lixo. Ao que podem também ter dado férias a uma dessas vans que
ficariam estacionadas na esquina, dentro dela se amontoariam uns sujeitinhos de aspecto
sombrio, cada qual na frente do seu monitor, grampeando suas conversas e conferindo as
informações de seus códigos secretos, que são como, reunião hoje, ou então, dois mais dois
são cinco, que é sabotagem dita para confundir o imaginário ouvinte. E não há van, nem nunca
houve. Nem por isso se espreguiça a respirar o ar puro da janela e a se dizer, nasceu um belo
dia, ou melhor, boa tarde. Passou esses dias em casa na esperança de em breve ter tudo
ajeitado, e assim tem algumas situações menores para resolver e se importar, situações
pequenas, ainda que tenham a sua devida importância quase microscópica, como, por
exemplo, o caso de que quando o mês terminar e o salário não for recebido, ele terá de
inventar que o bônus dado pela demissão é suficiente para manter-se por algum tempo,
quando na verdade as evidências nos indicam que esse dinheiro vem da considerável fortuna
extorquida de uma empresa não das mais honestas, e essa grana agora é o fundo de garantia
da sociedade. Ele poderia inventar uma desculpa ou simplesmente não dizer a ninguém,
entenda-se ninguém por Carla, e para todos os efeitos isso será assunto encerrado, por isso
ele não exatamente mentiria quando dissesse a ela para não se preocupar a respeito, porque
realmente não é preciso, ainda que não pelas causas que ela imagine, e se a intenção desse
rapaz por acaso fosse a de ser integralmente honesto, ressaltaria no logo após que não precisa
se preocupar com isso, mas já te faço uma lista urgente do que você precisa roer as unhas de
nervosismo, porque eu não quis te envolver em nada, mas se você não escolheu o usufruto do
destino que era para ser só meu, com essas tuas tantas perguntas e tuas tantas curiosidades
que poderia não ter, e não as tendo poderia estar mais feliz, então realmente a minha presença
já te comprometeu. Mas ele não dirá coisa alguma a ela, o motivo é porque simplesmente não
se falam há dias, não é que ele não gostaria de tomar a iniciativa, é que o orgulho não permite,
e não é desses orgulhos que a gente de fora olha e esnoba, ah, se não fosse esse orgulho
bobo as coisas seriam muito melhores, mas é um orgulho desses monstruosos e opressivos,
que sente vir dos órgãos e não se dispõe a ir embora. E a julgar que ela parece também se
agoniar lá com os seus aborrecimentos, parece que estão vivendo uma experiência de divórcio,
viver no mesmo lar e culpar o outro por toda a discórdia.
Alex está sentado no sofá e a televisão não transmite coisa nova, onda de violência e
teorias de conspiração, suspeita de anarquia infiltrada nos órgãos do governo, inflação
insinuando mostrar suas garrinhas, a gripe de algum tipo de galináceo que está matando gente
mundo afora, a gripe que está, e não o galináceo, e ele nem sabia que frangos gripavam. A
polícia ameaçou greve porque seus salários estão baixo demais para o tipo de serviço a que
estão sendo submetidos. Algumas ruas das periferias mais distantes foram rebatizadas pela
contagem do número de corpos. Portanto não existirá uma rua do dois, ou do três, ou quatro, e
sim dos vinte, trinta ou cinqüenta e cinco, que são as vidas que mobilizam essas operações,
anulada a distinção entre rebeldes, isto é, os vândalos, a polícia e a gente normal, ou seja,
rebeldes em potencial que naquele instante não estavam a destruir nada. Os jornais
manifestam seu pesar à censura, e lamentam que uma suspeita de perigo baste para anular o
nosso estado democrático, mas essa postura pode comprometê-los profundamente, ao que
pode ser traçado um perfil de identificação dessa imprensa alternativa com os desordeiros, que
estão por toda parte, pode ser o seu pai, o seu filho, a sua avó, porque é esse um estado de
espírito e não somente um problema da ação, e dirão que o que fazem não é exatamente
censura, mas uma precaução para contrariar essa expansão da conivência para com atitudes
intoleráveis. Alex boceja e se espreguiça estalando os pés, percebeu furtivamente que Carla
não pára de rabiscar alguma coisa no jornal que está lendo, deve procurar mais alternativas de
emprego.
Os saques estão se intensificando, toda hora o canal das notícias vem com uma última
novidade surpreendente e imprevisível, Alex deveria escrever um novo livro de premonições,
ou então chamado o que vai acontecer, mas não cabe rebatizar o que o livro da capa preta já
representa, o oráculo vindo sem querer de um messias cruel. A polícia está adotando a política
de intervir atirando, atirar para matar, já que nisso se presume eficiência, mesmo que já tenha
acabado por atingir alguns inocentes e alguns já acabaram morrendo, por isso o sargento
alegou que, bem, a inocência também é uma questão de momento, todos esses que foram
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inocentemente pegos já tinham um histórico de lobo-mau, eram ladrões de outras datas,
aproveitadores, traficantes ou assassinos, malandros esperando a situação para saltar do covil,
então não erramos ao todo. Alex e provavelmente o mundo inteiro entendem o que isso quer
dizer, que, quando não teve jeito, umas evidências foram plantadas aqui e acolá. E alguns
policiais que já foram presos a invadir casas alheias estão a alegar insanidade, já isso deve ser
mesmo verdade. Estão estudando a hipótese de um toque de recolher, uns ativistas dizem que
já tarda, já devia há muito ter sido implantado, ainda há gente interessada em proteger as suas
famílias. O silêncio de Carla o faz ter vontade de enforcá-la. O assassinato não é mais a
mesma coisa que antes, ele não precisa temer, e se não o fará é porque não quer, dessas
vontades à longo prazo que por fim nos fazem suspirar de desistência e confusão, e nada
mais, e para salvá-lo dos dilemas o telefone toca. Ele se treme fazendo menção de levantar-se
de súbito, evidente que é ligação para ele, mas Carla está na escrivaninha ao lado do aparelho
e lança a Alex um olhar de indiferença aterrorizante, o ordena que não se atreva, e ele congela
fingindo não ter percebido, fingido ter dado um pinote para outro espreguiço, ou teve súbita
coceira nas costas, coisa assim. E é ela a atender o telefone.
– Alô?
E se passam alguns segundos de silêncio, e então a impaciência.
– É pra você – é claro que é. E deixa o telefone na escrivaninha para que seja ele a ter o
trabalho de ir buscá-lo.
E ele aproveita, ao vir tomar o fone, para espiar o que ela está a revisar naquelas folhas,
olha por alto, alguns anúncios de aluguel de imóveis circulados de vermelho, o que o aborrece
ainda mais. Resmunga de si para si e atende o que é preciso.
– Sou eu – murmura.
– Duas pacas – diz a voz de André – vão já ensaiar.
– Mas que merda é essa? – e coça o pescoço.
– Da outra vez você disse ser dois mais dois igual a cinco, o grande sinal das
desconstruções. O recado está dado.
– Então, agora?, tão cedo?, você não está no trabalho?
– Fecharam o prédio por causa de um estouro na rua.
– Certo, entendi.
– Te encontro daqui a umas horas.
– Estarei, até mais.
– Até.
Ao desligar o telefone olha Carla uma vez mais, e ri por dentro de vitória por saber que ela
não pode lá circular muitas possibilidades de seu jornaleco, ela é uma criança querendo se
afirmar provocando o irmão mais velho, em algumas situações nos cabe desejar a desgraça
alheia por julgarmos ser para o seu próprio bem, e Alex prefere ignorar que ela possa definir o
que é ou deixa de ser importante para ela mesma, mas a entende. A prova de que ainda resta
em si muito de piedade e companheirismo é que fará essa concessão de ser ele a falar, eis um
passo para trás e uns cinco para frente, veja.
– Então, está planejando se mudar – cruza os braços para trás, e anda num rumo qualquer
com uns ares de analítico, terapeuta imaginário.
– Talvez – e penteia o cabelo.
– Sim?, e não me deveria um porquê?
– Por que eu deveria alguma coisa?
– Por educação. Eu imagino o que você esteja pensando.
– É mesmo? – ela não o olha.
– Que eu não sou seu irmão, amante ou pai.
– É verdade, foi realmente mais ou menos o que eu pensei.
– Ainda que não te esteja cobrando dados de toda sua vida, e nem te julgando – isso,
jogue na cara dela –, apenas querendo saber o que devo esperar, se é sua mudança, sua
permanência, se continua essa sua indiferença, essa cisma que não tem o menor cabimento.
– Eu te respondi, e não tenho mais nada a dizer a respeito.
– E no meu caso – ele joga-se no sofá e senta-se em flor de lótus, vai meditar –, não é que
suas perguntas e sua inquisição diária – ficou forte esse termo, inquisição, assim há de ser
bom – sempre me deixem irritado, é uma certa cobrança excessiva, você não pára de me julgar
como se tivesse muitos motivos para isso.
– Acontece que a nossa convivência não é boa.
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– Fale por você – e faz um sinal de ah, vai, para o ar.
– Eu não posso mesmo falar pelos outros.
– Carla, deixa dessa implicância, podemos os dois viver aqui e estarmos bem.
– Eu quero a minha própria vida.
– E por acaso a que você tem é a de outro?
– Não é a que eu quero.
– Eu te encorajo a arranjar um trabalho, acho que isso faz com que as pessoas se sintam
mesmo melhores, úteis, sei lá, ainda que eu não ache que esse é o melhor momento pra você
cuidar disso. Você viu como estão as ruas, as coisas estão instáveis, está tudo uma loucura,
essa violência – e repara que ela relanceia em sua direção. – E não olhe pra mim dessa
maneira, que sobre isso eu já te expliquei, não desconfie das minhas verdades – que na
verdade nem o são, pensa –, porque não vou explicá-las de novo.
– Não quis insinuar nada.
– Sei, então está bem.
– E não é isso que eu quero, e pronto.
– Então – ele dá com as patas nas pernas –, o que você quer?
– Alguma coisa que você não pode me dar.
– E como você – franze a cara de curiosidade – pode estar tão certa de uma coisa dessas?
– Eu não tenho uma certeza, mas é uma intuição. E mais vale ela do que correr um risco
onde eu não enxergo nada que me possa compensar.
– Digo, não é que eu queira te oferecer alguma coisa.
– Eu sei, eu entendi.
– Então – na verdade é que ele se perdeu –, faça o que você bem entender.
– Eu faço. Eu já fiz – ela abre a gaveta da escrivaninha, dela ele vê retirar o exemplar do
livro da capa preta.
– Você o leu? – não parece receber bem.
– Ainda não o terminei, estou quase no final.
– Eu tinha – ele inspira para não rosnar – pedido que você não fizesse isso.
– Não – ela estranha, e quase faz que vai olhá-lo, mas não –, na verdade, não pediu.
– Eu pensei que tivesse deixado um pouco claro.
– E por que eu não deveria ler?
– E por que deveria?
– Eu perguntei primeiro – maldita infantilidade.
– Bem, porque – e pára, a grunhir suas coisas –, para não semear a discórdia em si, para
não ter dúvidas sobre sua felicidade, para não se incitar uns sentimentos desumanos, para não
sofrer uma lobotomia e começar a pensar umas coisas que antes não pensaria, eu não sei,
porque apenas seria melhor.
Ela lança uma gargalhada de escárnio que o faz estremecer.
– Eu contei alguma piada? – quase grita.
– Pode não ter sido sua intenção, mas é difícil acreditar que tenha dito essas coisas a
sério. E quanto à minha parte da resposta, aqui vai, não é que eu devesse ler, mas não vi
problema algum em entender por que o livro que meu colega de apartamento diz ter escrito
pode ter vindo a se meter em toda essa confusão. Para ser franca, eu ainda não entendo –
sorri e se vira para ele. – E, agora que estou quase no final, não é que eu tenha te entendido
mais, apenas um pouco melhor, e tenho percebido o porquê de algumas coisas que você faz, e
o porquê de outras coisas que eu desconfio, e de outras que você insinua fazer.
– Como se houvesse distinção?
– Talvez haja, talvez não, eu não me importo.
– Agora você é apenas mais uma – ele se lamenta.
– Mais uma? – ela se ofende –, e você ainda diz que não me julga. Mas na sua idéia eu
tenho de me comportar de uma maneira pra que te mereça – e esboça um riso. – É ridículo,
você não admite que eu invada o seu espaço, mas os outros têm de gravitar em torno do que
você estabeleceu. Eu não me importo se sou mais uma, menos uma, alguém distinto ou a mais
pra você, dane-se a sua convenção.
– Que seja, você não entendeu mesmo nada – ele resmunga.
– Entendi sim, inclusive a filosofia que você riu na minha cara, que não passa
simplesmente de implicar com tudo – e tremula os lábios mais ainda –, só para contrariar,
como se precisássemos disso, é tão bobo que não há espaço para o outro, apenas se ele te
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der uma porrada, e tudo isso revela mesmo muito desse seu egocentrismo, essa sua maldita
falta de tato.
– Não é nada disso, e você está se excedendo.
– Então me diga o que vem a ser.
– Eu quero que as pessoas sejam sinceras consigo mesmas.
– Seu discurso não corresponde à prática.
– Como você pode me dizer uma coisa dessas?, você só pode falar por si mesma.
– Eu tenho a idéia de que quem é sincero consigo mesmo está em paz.
– Eu tenho um mundo pra considerar!, como posso estar em paz se o mundo pode descer
na minha cabeça?, como posso me bastar?, a sinceridade não me basta...
– Eu posso estar errada, ou apenas sendo irracional porque gosto de você, e isso me faz
sentir extremamente imbecil. Mas o que acho é que você não é sincero porque não admite que
existem algumas coisas que não se misturam, como eu e você, e você não dá a mínima, e isso
é cruel.
– Coisas que não se misturam – ele se espanta –, alguém já me disse algo sobre isso.
– Provavelmente alguém inteligente.
– Sim – ele abaixa a cabeça.
– Eu estou com alguém, mas não consigo estar completamente, e não é porque eu não
queira, mas porque tenho essa esperança idiota em você, e parece que toda esperança, ou ao
menos as que eu tenho, têm de ser mesmo idiotas.
– Eu não sei o que dizer – ele se levanta. – Eu preciso ir.
– Precisa?, do que você precisa?, ir lá pra tua sociedade?
Ele está se adiantando para o quarto, abrindo o armário, e vai vestir a gabardina e outros
requintes mais pesados para o frio, calçar bem rápido os sapatos, bom que não esqueça do
guarda-chuva.
– Sim, é isso, irei encontrá-los.
– Parece que você quer – e ela enfeia o rosto num ódio contido, falta lançar-lhe um grrr de
bicho – me desiludir de vez, ao menos não pode fazer isso com mais eficiência?, dizer-me logo
um vá embora, ou alguma coisa que me dê paz?
– Não.
– Por quê? – grita e ora aos céus.
E segue caminhando em direção à porta.
– Porque não quero que vá.
– Então me diga o que você quer!, faça alguma coisa!
Mas ele não poderá responder, porque fingiu não ter ouvido e já se foi. Assim que fecha a
porta fica a olhá-la, daí, desse lado de fora, ponderando arrepender-se do que fez, pensando
sobre questões de justiça, se não é de justiça é apenas de clemência, que já habita o gênero
da bondade, e por mais que ele sinta essa inclinação para o altruísmo, se este fosse assim
simples de ser posto em prática o mundo estaria transbordando do melhor das pessoas. A vida
parece querer realmente nos arruinar ao pôr as nossas bênçãos numa macieira que de tão alta
tornou-se inacessível, parece que deus aprendeu com o pecado original e finalmente foi
inteligente de privar seus filhos do que mais desejam, ironicamente os separou do que mais
precisam. Alex desceu as escadas sem olhar para trás, ressentido, a provar a si mesmo que
não é nenhum monstro, mas gente, disposto às circunstâncias mostrarem um caráter pouco
cristalizado, às vezes cinicamente duvidoso. Eu não sou um monstro, diz-se, apenas podia ser
melhor, mas eu não quero porque não me parece benéfico, não me é conveniente acreditar
nas coisas que ela me disse, tampouco me é conveniente acreditar que eu não possa mudá-
las, no final há de se turvar o que eu acho que devo, e hei de me adequar ao que eu quiser. E
ele se vai, acontece que esqueceu-se do guarda-chuva, não é mais um grande problema. E vai
com ao menos o descargo de consciência de não deixar de ser sincero.
O encontro já estava em seu andamento quando chegou. Assim que despontou das coxias
Bublitz chegava para abraçá-lo e perguntar se estava tudo bem, porque soube que tinham
tentado assassiná-lo, e ele tem de explicar que não é nada disso, que se o explicaram alguma
coisa contaram tudo errado, que fora os últimos problemas notáveis e evidentes a todos vocês,
as coisas da intimidade estão até seguindo nos moldes de uma calma angustiante, calma de
presságio de tempestade. Ao menos aqui na sociedade a gente supera tudo com facilidade.
Quem gosta de pular, pula, quem é das cartas, joga. Quem gosta de beber, bebe. Enfim. André
está ali nas primeiras poltronas, envolto da cúpula que selou entre si uma união que sabe-se lá
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o que irá desbancar, e ele está sacudindo pelos ombros um rapazinho que chacoalha com o
esqueleto dos pés a cabeça, isso porque André deve estar querendo se fazer ouvir, entendeu?,
entendeu?, pergunta repetidamente, deve ter dado alguma informação importantíssima ou
instrução técnica vital para todo o planeta. Mas o rapaz não tem as condições necessárias para
atendê-las, não é que seja estúpido ou de alguma maneira burro, mas ao que André o solta ele
despenca para trás, desmaiado. O que foi que esse cara tomou?, pode ser aquela síndrome do
bebê balançado, responde outro que vem chegando, e começa a explicar que quando as mães
mais irritadiças e irresponsáveis balançam seus filhotes, o cérebro fica indo-e-vindo dentro do
crânio e isso pode causar formas imbecis de morte. Então será que André o matou?, mas ele
foi averiguar e chuta o aparente corpo, o rapaz se treme todo, então deve ser apenas uma
overdose. Cabe a Martin, que é mais forte e mais explorável, arrastá-lo pelas pernas para a ala
dos desacordados, ali próxima dos restos de cenário, entre todos é o canto mais empoeirado, e
já tem uns ali que servirão de companhia ao dito cujo, e outros que estão no caminho certo.
– E então? – vem chegando.
– Alex, como está? – pergunta Stern.
– Vivo, ao que parece – e se tateia para averiguar. – E vocês?
– Continuando – Habib.
– Alguma notícia sobre as ameaças? – André desabotoa a gola da camisa.
– Eu nem acho que chegou a haver uma.
– E eu não me preocuparia – André senta com as pernas para cima –, ao que parece a sua
casa, ou o prédio, não está sendo vigiado, isto é, pode ser que um dia tenha sido, mas não
mais.
– É mesmo? – arqueia as sobrancelhas, perguntou por quê?
– São os relatórios dos nossos espiões.
– Eu sabia – Alex suspira – que aquele baleiro não me era incomum.
– Você não reparou numa mocinha fotografando fachadas?
– Não. Então estou sendo mesmo vigiado – e não sabe se recebe isso muito bem.
– Também é das nossas. Acha o bastante?, posso pedir para interromperem.
– Não – coça a cabeça –, não acho que me sinto muito seguro.
– Então pedimos para que fiquem uns dias a mais. Escute – e ri –, sabia que esse baleiro
em questão colocou laxante nos doces?, digo, é incrível – pigarreia –, estão unindo o útil ao
agradável, nada mais pode pará-los.
– Sei – e se senta –, mas olha, estou achando o teatro um tanto vazio.
– Falávamos sobre isso antes de você chegar – Habib.
– É – completa Stern –, achamos que a sociedade esteja se transportando.
– Cumprimos sem querer a maior meta de todas – e o sorriso de André.
– Difundir o retorno à escuridão à todos – conclui, adentro de sua introspecção.
– Exatamente, mesmo que não tenhamos a culpa direta – ri-se de orelha à orelha. –
Descrevemos o universo que o mundo lá fora está prestes a se tornar. Só que é muito mais
complexo – e então a risada de psicopata –, é um momento histórico que alcançamos
totalmente além de tudo, algo que escapou de todos os fluxos e foi contrário à todas as
predições, mas internamente – aponta para Alex – existia, e isso não se pode mais negar.
Adormecia essa coisa contrária a tudo, isso que precisou acordar.
– Eu sou um pouco suspeito pra falar sobre isso.
– Por isso, ao menos eu acho – André toca o peito, que quer se fazer de humilde –, que
não há mais por que a nossa sociedade, que já nem é mais tão nossa, permanecer confinada
por essas paredes. O mundo lá fora foi contagiado com o nosso rosto. Com o rosto que
tivemos a coragem de antever – mostra os dentes de ânimo – antes que eles percebessem que
também eram os seus próprios.
Alex apenas o encara seriamente. E se surpreende, porque essa lógica, esse sentido e a
propensão a seu orgulho o atrai, ainda que haja uma atração nela que ele não possa e nem
queira explicar, mas intuir dispensa as razões convencionalmente tratadas, não, ao que pode
ser esse tão somente o temor, também pode não ser. Está pensando se o destino da gente
seja mesmo o de não se diluir, mas picar e envenenar a todo o resto, tornar-se grande de uma
vez por todas numa explosão atômica, reconhecer que o reflexo de uma pessoa, ou mais cabe
ser esse de uma idéia, vai deixar de ser reflexo porque se encontraram no impossível os dois
lados do espelho. É então que a esperteza inocente desse rapazote, enquanto ajeita o gorrinho
por sobre as franjas, a sabedoria indócil desse camarada Bublitz acaba por soltar algo
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interessantíssimo, que o acorda de um sonho ocioso e improdutivo para a nudez com estrias e
feiúras e simetrias das coisas.
– Mas nós não faremos nada que você não concorde.
– Bem, então – Alex enfia as mãos nos bolsos, percebe André mais carrancudo –, façamos
como o método do retorno à escuridão. Cada um fará o que deseja, e isso já é coisa que se
valha. Mas eu não penso que a sociedade possa ou consiga ter um fim. Ela está por toda
parte, não podemos nos livrar uns dos outros – e bufa, estalando o pescoço –, simplesmente
porque entendemos tudo o que está se passando, e se não entendemos, suspeitamos, e
podem ser ambas as coisas, porque ainda que nunca cheguemos a saber, tudo isso pode estar
acontecendo por nós. E não temos porquê de nos separarmos. Eu não sei até quando as
coisas que estão acontecendo continuarão assim.
E começa a perceber que as pessoas que transitavam estão se aproximando para ouvi-lo.
– E – interrompeu-se um pouco, mas vai continuar a falar – que novas coisas ainda estão
para acontecer. O que se vai escolher depois de todos esses escombros que já estão havendo,
ou como se vai evitar para que não haja mais. Mas não que exista uma ordem que nos una – e
dá um riso grasnado –, nos unimos pela desordem desconstrutora dos desejos, o caos
torturante da incompreensão. Então não somos nada pra tomar uma decisão, votar ou definir o
que será, porque não existem coletividades, mas individualidades por acaso reunidas, então
eis a minha opinião, caótica e difusa e única e autêntica feito vocês, sejam livres e descubram
o que é isso, questionem etc e tal.
Ao que, por fim, muita gente da sociedade já tinha se acercado para ouvir, estáticas e
acenando, atentas e de olhos fundos, que à atmosfera coube a conspiração de ocasionar
nesse clima carregado de importâncias ou das opiniões que precisamos e que definem os
rumos da elucidação que precisamos, coisa que não pode mais tardar. Depois de Alex ter
ensaiado o sentido da existência numas poucas palavras cheias de contrariedade, mas que
nos toca na intimidade desse lugar de vazio torácico onde impera a ausência de corações,
deixou sem querer que o silêncio os tragasse a todos, porque na ausência do coração ou na
ausência da coisa pela qual se penetra o amor e a subserviência, penetrou a comoção. E então
ecoam palmas solitárias vindas do palco. Todos que antes não percebiam agora hão de
perceber, está lá prostrado o almirante, o velho León ranzinza e sedento por umas discórdias,
e agora se encontra fardado de uniforme militar a ostentar umas tantas medalhas, tem direito
até ao cap. E está batendo palmas com o peito estufado, o rosto todo jocoso, um orgulho
assustador e trejeitos que nunca se viram, então enlouqueceu de vez, é o que se pensa, e não
deve ser uma inverdade. Mas Alex, assim, calado, a olhá-lo, não subestima e tampouco
presume algo de um velho livre. Não precisará ficar curioso ou espantado por muitos instantes,
ele logo começará a falar.
– Disse tudo muito certo – berra, e ergue o braço para todos se achegarem. – Só
esqueceu-se da continuidade, a óbvia continuidade, que há de ser daí que nascerá uma vida
que se valha à pena, desse ego redescoberto, da morte e da negação dos símbolos eternos,
do assassinato dos valores que nos encarceram, que é da escuridão que há de nascer o
imprevisível novo. Escutem!, camaradas!, não é a textura da individualidade da burguesia
ultrapassada, não é sonho da cabeça dos esperançosos, mas sim a crueza de uma rocha!, a
crueza minha! – ensaia uns gestos eloqüentes –, o feltro do nosso espírito, ao espinho
pontiagudo do inconsciente vamos nós rasgar as mãozinhas!, que somos as crianças que mal
conhecemos. Estivemos cegos, ó, meus irmãos, durante esses séculos fatais.
– León, pra que tudo isso? – pergunta um que se acerca.
– A grande gangrena de todas essas idades, ó, meus irmãos – ele prossegue –, foi o
discurso rebuscado do progresso e o grande equívoco do ser humano, que não presumiu que
seria, que seria escravizado pelo tempo, que não pára de correr. A grande gangrena de todas
essas eras, ó, meus irmãos, foi a opção por uma era das luzes que nunca chegará enquanto
não se retornar à escuridão.
– Almirante – André sobe numa poltrona e berra –, tudo certo, te ouvimos, mas que raios
você está fazendo?
– Estou cumprindo, senhores, meu compromisso com a verdade. A primeira revolução
humana vem aí, e eu, eu incrustarei o meu nome nessa história de doentes e vítimas – e ri,
como quem ri de uma grande ironia – que o tempo há de ruminar e lembrar-se para sempre.
Avante!

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Alex até então manteve o ar dócil e a atenção apreensiva, mas o que a seguir ele
começará a assistir não é exatamente animador, e tampouco o avesso. Da mesma maneira
que um susto não se define, nem adota emoções precisas e é rústico demais para fazer
distinções entre agrado, desagrado, ruim ou extasiante, ele está a viver uma torrente dessas
todas coisas rústicas, imaturas e elementares, e agora estamos a viver algo inédito. Pois
começa a marchar para fora das coxias uma fileira de marinheiros armados com suas
baionetas, fuzis, e pensar que há alguma ordem ou hierarquia que os mantenha unidos, e que
só uma poderia fazer com que sejam o grupo que são, é uma grande tolice de conservadores
que estão a perder o seu lugar nessa terra, porque vêm estes marinheiros fumando e bebendo,
com as roupas deslanchadas e os rostos podres de cansaço e diversidade, de sujeira de
concreto e sorriso que sorri a gente ferrenha. São uns golpistas, e não são poucos, que vieram
unir-se a seus irmãos de sangue, que só têm em comum o fato de pertencerem ao mesmo
gênero humano. León, o que você está fazendo?, ri mais do que pergunta, e a resposta é a
seguinte, o que já demorou demais.
Alex pensa que todos guerrilheiros, carrascos, tiranos, republicanos, parlamentares,
democratas, genocidas, assassinos e presidentes de grandes nações se nomearam guerreiros
da liberdade. Parece que a liberdade, sem nunca ser praticada, legitimou toda a ordem
alienante e ultrapassada, a única pela qual a gente vem se entendendo. Então parece justo
que uns quaisquer, que desejam uma liberdade fria e crua, não se nomeiem coisa alguma. Eles
não são coisa alguma. São identidades sobre si mesmo, à mais ninguém. Então é isso que
significava aquele sonho em que o mundo estava vazio, ele jazia pequeno e abandonado na
praça, e começava por sentir-se solitário, viciou-se em não ser ilha, mas percebia que podia
reconstruir-se e depois percebia que podia ser deus, e então o som do ribombo distante,
naquela época ele não pôde compreender, e tolamente assustou-se e acordou. Na verdade era
mesmo sua criação, e essa solidão cercada por rostos é o preço que pagou para animar sua
idéia e dar vida às trevas. O livro da capa preta o escolheu como intermédio entre esse mundo
de hipocrisias e a verdade soterrada. Mas o livro da capa preta faz dele mais um, e ser mais
um não é mais como antes costumava, porque agora, ser um que se permite enxergar é
reconhecer o deus latente que sempre se precisou enxergar lá fora. E aí ele percebe com um
realismo assustador, meu deus, comecei a destruir o mundo porque eu mesmo criei.
A gente da sociedade se dividiu em alguns grupos, uns esbravejam contra o almirante, que
descumpriu o pacto a trazer para cá gente de fora, e já outros argumentam que não existe mais
o lado de dentro. Outros se abstêm de esbravejar, erguer as patas e grunhir suas
manifestações quaisquer, provavelmente porque temem os fuzis e baionetas. É como
Bonaparte, uns jogadores medrosos, uns mirrados ou mais especificamente o cara-de-bunda,
deve ser porque um dos que chegaram foi convencido pela gente da casa a dizer que ia furá-
lo. Mas é a unanimidade que decide que o pessoal da televisão terá de mudar seu canal, uns
deles já estão exauridos a se contorcer pelo chão, estavam mesmo no meio de um filme, mas
ocorre que todo mundo quer ver o que León diz ser imprescindível de ser visto, então vamos lá.
A televisão fica chiada e a multidão se aglutina uns sobre os ombros dos outros para ver o que
quer que seja. Conserta a imagem, grita um, e um esperto está lá movendo as antenas de um
lado ao outro. Alex não precisa pedir licença e vem abrindo espaço entre todo mundo, um ou
outro que tenta reagir ele responde com um empurrão, e chega a tempo para assistir a
programação de agora. Está vendo as coisas do alto, peripécias do helicóptero das filmagens
ou puseram um grampo-de-imagem numa gaivota. Sobrevoa a baía que separa nossa cidade.
Estaria tudo em paz, nos conformes e na monotonia que existe nas situações que estão
quietas por muito tempo. Se não fosse o encouraçado. O navio gigante a boiar intrusamente
em suas águas, percebemos lá abaixo uns tripulantes, feito filmassem pequenas cabeças de
gado, ziguezagueando pelo convés. E os canhões enormes alçados. Alex tem uma crise de
tosse cuja origem não se remonta ao nervosismo, já se foi dito que ele terá de inventar nomes
novos para as novas coisas que entendeu ser capaz de sentir, então há de se ignorar a causa
do fechamento da glote e meramente pôr essa coisa para fora. Ele leva a mão à boca de
irritação, uns rostos igualmente irritados já o condenam pelo barulho, cof-cof-cof, desses sujos
e com catarro, que depois de a pessoa não cuspi-lo os mais sabidos por perto perguntam a fim
de constranger, e então, lanchou?, mas Alex rosna contra o chão que é para passar de uma
vez. Sai esse rastro gosmento de sangue. Ajeita a gola da jaqueta. Essa não.
– Estou com câncer – suspira, mas ninguém o ouve.

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A mocinha de cabelo chanel está tagarelando na televisão sobre um certo motim no
couraçado, a paralisia do sistema de transportes da baía – a mocinha está na praça cheia de
fachadas do século retrasado que de nada importam, a não ser que é nelas que se apanham
as barcas para ir-e-vir de um lado ao outro da baía –, que foi fechada desde cedo assim que se
soube da ameaça iminente. A tempestade cai, tudo está escuro e a gente se amontoa como
quisesse invadir de qualquer jeito, parecem ter perdido os parentes do outro lado, e então
surge na tela uma corrente humana de homens-de-azul carrancudos, queixos erguidos e
impedindo a multidão que parece ser açoitada com chicotes invisíveis, o contra-regra do
apocalipse aciona os trovões para dar clima ao enredo, aí a tevê fica chiada, e aqui começam a
berrar, anda, conserta esta porra de antena, ajeita que não dá para ver nada, e o sujeitinho
reclama por calma, eu sou apenas um, como se precisássemos de mais que isso para ajeitar a
porra de uma antena. Quando os fantasmas desistem de chiar, a imagem que se tem é da
repórter tendo de duelar o seu enquadramento com uns meninos de rua encharcados que
saltaram da multidão impenetrável, ou surgiram de algum bueiro e insistem em fazer uma
ciranda em torno dela, pula um bem perto da tela com uma careta, revela estar sangrando na
testa e diz, alô, mãe, tô na tevê. Lá no fundo há um cara vestido de macaco. Ele dança. Há
galinhas correndo, gatos e cachorros. Ao que parece, continuamos à parte dos imprevistos –
um policial dá tiros para o ar para dispersar o povo e a tropa de choque lança-se atrás dos
marginaizinhos –, e vamos às informações vitais que nossa cidade merece. Parece que o
principal responsável e líder confesso desse atentado é um velho contra-almirante reformado,
de nome León e um sobrenome impronunciável.
– O-o-olha só, eu p-p-pensei que e-ele fosse a-aa-almirante – Bonaparte.
– Eu sou o que eu disser que sou – ele rosna, e incita a sua trupe a gritar uns eh!, eh!, eh!,
urra!, e por aí vamos de comemoração.
As hierarquias não mais valem nada, tampouco se lembra de um dia em que não tenha
sido assim. Os amotinados fomentam essa tramóia não se sabe desde quando, mas, bem cedo
na manhã de ontem, eles organizaram um protesto contra a qualidade da comida no navio,
então houve o grupo que após o café da manhã dirigiu-se ao convés para prestar as suas
contas de cada dia, cantar o hino da nação e preparar os rodos de esfregar, ou checar os fuzis,
mas houve aqueles que permaneceram sentados onde estavam. O capitão tornou-se ciente da
tola rebeldia e dirigiu-se com seus comparsas à cantina, veio falar que esse não era momento
para acerto de contas algum, tampouco protesto por bobagens ou maricagens, termo que
possivelmente inventou na hora para chamá-los de inúteis e dispensáveis, cheios de frescura.
Ora, sabemos que as coisas na terra firme não andam no mesmo ritmo de antes, então
precisamos estar com atenção incondicional para qualquer coisa, ao que finalmente
perguntaram para o capitão, para qualquer coisa?, sim, absolutamente qualquer coisa, o que
me tira a paciência para um bando de amotinados. E Alex pensa no sorriso que o capitão deve
ter dado ao comunicá-los que nos dias de hoje seria muito, muito fácil enviá-los para a corte
marcial e fazê-los enredar-se num processo de pena de morte, para isso só seria preciso que
os acusasse de alta traição à pátria ou deserção da guerra que eclodiu lá fora, há-há-há, é
muito mais fácil do que parece, por isso aconselho que levantem seus traseiros rosas e
preguiçosos dessas bancadas e se ponham no batente. Mas também é muito mais fácil do que
parece que um deles se levante e dê um tiro na testa do capitão.
A gente que já estava lá fora cercou os comparsas leais ao cadáver, e aqueles de simpatia
ao capitão o acompanharam para o vale escuro da morte. Durante a madrugada os amotinados
navegaram baía adentro. E agora estão ameaçando bombardear a cidade. Uma nova salva de
palmas ou urros enlouquecidos da gente que assiste. E a exigência para que não atirem é que
se abram as portas das delegacias e penitenciárias e se deixe sair todos os que estão presos.
A mensagem desses novos rebeldes diz que não temos o esclarecimento para julgar-nos uns
aos outros enquanto não formos todos iguais. Então, que todos se igualem.
Se a justiça não acatar com as exigências em vinte e quatro horas, bombardeiam uns
prédios do governo e uns emblemáticos à nossa economia. Sede do banco, edifício da
principal exploradora de petróleo, esse tipo de coisa. Na aproximação de qualquer veículo
suspeito aos radares, bombardeiam. Observando-se qualquer descaso da autoridade,
bombardeiam. E se forem condenados, também bombardearão. León regurgita uma risada
sinistra. Alex pisou na mancha de sangue que ele mesmo cuspiu.
– Você acha – pergunta um – que vão acatar com coisas feito essas?

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– Não – e o velho ri –, mas acontece, meu rapazinho, meu jovem e inexperiente rapazinho,
que muitas vezes basta o estímulo para que seja o povo a se rebelar, que ninguém quererá ser
bombardeado e irá ser a gente comum, que agora tudo que há é gente comum, a reivindicar
que assim seja feita a vossa vontade, abrindo as soleiras que contêm os animais. E eles não
podem, não podem, não, se defender – assume a pose de um imperador do nada. – Eles não
podem se esconder do fim de seus tempos.
Mas não, meu caro, Alex pensou em dizer. É o fim também do nosso.

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Não são precisos ritos em encruzilhadas ou com bocas de sapo. Apenas bafeja no espelho
para embaçá-lo. E então dá umas batidas com o dedo para que algo que durma do outro lado
possa acordar.
– Achou-me o nome? – acordou.
– Precisamos falar sobre isso.
– Então não achou – o outro lamenta.
– Escute, você sabe muito mais que eu.
– Ainda que meus conselhos não tenham te importado tanto assim.
– Por quê?
– Porque, porque o óbvio, como por exemplo o óbvio do seu incidente com aquela moça,
aquela certa Júlia, que agora não tenho mais problemas em pronunciar o nome, ainda que
você devesse ter.
– Ao que eu me lembre – e se enoja de como sempre permite que seja o outro a conduzi-lo
para onde quer – você nunca me aconselhou a uma coisa como essa.
– A sua estupidez não me é problema.
– Por que – sorriso nervoso – estamos falando sobre isso?
– Porque é um outro conselho do que você não deve fazer que te dou nas entrelinhas, e ao
que percebo você ignora cada um deles.
– Então – esbraveja – esqueçamos as entrelinhas, falemos um na cara do outro, mesmo
que seja esse um outro problema na nossa relação, que você não tenha uma.
– Não posso atirar umas pérolas aos leitões.
– Pare com isso!, não há pérolas ou suínos, só eu e você. Seria tão mais fácil conseguir o
tal do nome se nos ajudássemos.
– Isso você diz, e eu pensei que já o estivesse fazendo.
– Eu estou com medo de morrer – se irrita e diz de uma vez –, estou com medo, é isso –
debruçado sobre a pia –, é isso mesmo tudo que eu tenho, a vida e medo da morte, ou de uma
determinada morte, não sei como explicar.
– Como se a morte pudesse ser diferente?
– É claro que pode, uns morrem no exílio, outros com tiro pelas costas, e por aí vamos.
– Isso é porque você está doente?
– Então você também sabe. É claro que sabe... – resmunga aos cantos.
– Foram apenas umas tosses e uns escarros com sangue, deixe de preocupações a mais.
– Estou acompanhando microcosmicamente – e ri da idéia – a deterioração que vai
marchando lá fora.
– Não me venha ter idéias como essa, não dizem nada e não têm nada de genial.
– Você devia estar se importando – e aponta para o espelho que não o aponta de volta –,
se eu morrer, o seu propósito acaba, ou a descoberta de um, que seja, não estarei mais aqui
para batizá-lo, você terá falhado.
– Não tente me ameaçar, pode ser a maior de todas as suas burrices.
– Certo – se intimida e treme todo. – Pode ter um assassino em minha cola. E eu não sei
se quando abrir a porta desse banheiro não encontrarei a casa infestada de saqueadores, e
eles me olharão e dirão, olá, e pularão pra me esfaquear.
– Pensei que fizesse parte do que você quis, me espanta que não tenha previsto.
– Eu previ, eu previ, mas não significa que eu quis – e abaixa o rosto. – Outro, você não é
ser humano, não acho que poderia entender uma coisa feito essa. Muitas vezes prevemos uma
coisa, mas ainda assim não sabemos o que seremos de nós mesmos quando essa previsão
acontecer, por isso, muitas vezes – e reflete a fincar os dentes na boca – essas próprias
previsões, e promessas que fazemos e tudo mais, se frustram, porque não prevemos as
nossas próprias mudanças, é por isso que nos arrependemos, é por isso que existe a angústia,
não sabemos qual será, amanhã, o nosso entendimento sobre o que entendíamos antes. Por
isso nunca teremos certeza sobre nada, nunca estaremos em paz.
– Estou orgulhoso, você descreveu a humanidade num falatório improvisado.
– E com isso eu comprovo que – apóia a testa no espelho e fecha os olhos – eu não
entendo como algo que não se está com paz dentro de si pode estar com os outros.
– Eu gosto quando você me define.
– O quê?
– Disse que eu não era humano.
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– Pelo amor de cristo, você está escutando algo do que eu digo?
– Sim, estou, e até me vejo na obrigação de opinar. Talvez este ser que está em constante
mudanças e, portanto, nunca encontra a paz, precise apenas se aceitar.
– Não, o retorno à escuridão prevê isso.
– Fale mais baixo – o adverte –, não queremos que nos ouçam.
– Livro de capa preta, que seja. Não se pode haver paz sem entendimento e o homem é
feito para não entender muito de si. O que podemos fazer é nos entregar e sermos livres. Te
aconselho a não querer ser mesmo gente.
– Vou aceitar a sugestão.
– Agora me ajude você, diga-me o que não devo fazer.
– Os nossos diálogos agora fluem com mais facilidade.
– Por favor – tom de desistência –, apenas diga de uma vez.
– Aqui vai, você não deve achar que algumas coisas do passado já estão encerradas, mais
que isso não posso dizer, a minha língua é o mistério e eu preciso excitar a sua inteligência. A
segunda coisa é que você não deve ignorar Carla, porque ela não merece.
– Não há nada de misterioso nessa parte.
– Mas foi interessante para mim. Você não deveria ficar aí parado alguns dias a mais
enquanto vocês continuam sem falar um com o outro.
– Deve ser porque fechei a porta na cara dela.
– Não é isso coisa que me interesse, em brigas assim eu não meto a colher.
– Escute, eu falaria com ela exatamente agora, mas tenho de ir ao encontro, hoje é um dia
especialmente importante.
– Hum.
– É sério, as coisas podem estar para acabar, tudo isso de encontro no teatro, das nossas
loucuras da rua, dos nossos indicados, porque o mundo simplesmente nos substituiu. Eu
preciso ir, essa pode ser a última vez.
– Eu não quero ouvir sobre isso, não se justifique para mim.
– Então não haja como juiz – grunhe.
– Estou mais para jurado que não se sabe o que quer.
– Estou farto de sua esperteza. Até mais, outro.
– Tchau.
Alex tem a idéia de tomar das prateleiras algum livro que o ajude a encontrar alguma pista
que o elucide de alguma maneira sobre o seu peculiar visitante, está decidido a entender um
pouco mais sobre o outro. Não é que vá recorrer ou encontrar algum modelo de ocultismo ou
teratologia que o possa fornecer a fórmula de nomear ou exorcizar de uma vez por todas esse
ser impersonificável, mas de repente um assombro como esse já foi registrado alguma outra
vez na história, e com alguma sorte o amaldiçoado antepassado não padeceu dessa doença e
tampouco passou a viver enclausurado num inferno individual de achar para algo um nome, ou
seja lá o que for, para algo que não se sabe o que seja.
Pretende folheá-los no caminho, não o da prateleira até o quarto onde há de se trocar,
tampouco do quarto até a porta da sala, porque precisa tomar um certo cuidado de não
despertar as atenções de Carla, que está pouco ligando para você, Alex, porque ri alto ao
assistir uns filmes de canal pay-per-view. Pretende folhear qualquer coisa no caminho nosso de
cada dia. Concentre-se na psicologia da esquizofrenia, o mundo pode ser esta necessidade de
um lugar-melhor na sua cabeça, só mesmo você para fantasiar um lugar-melhor como esse,
ninguém quereria um lugar-melhor tão nojento assim, admitamos nesse caso que o seu
conforto, o seu éden, ou como preferir chamar o seu relicário de idealizações, não é coisa que
vá interessar muito, mas concluir-se-á, caro Alex, que esse seja um lugar em que você mesmo
não é bem-vindo e tem de lutar para não ser expulso, uma mesa de jantar onde tentam roubar
a sua comida, a gente nas ruas te olha com um sorriso falso e as intenções de apunhalar a
quem quer que seja e sem por quê. Aprendeu ou fantasiou essa luta e agora não sabe escapar
e nem imaginar diferente. Concentre-se no mesmerismo, vai ver tudo o que precisa para
entender o outro é repetir-se muitas vezes antes de dormir, achei o nome, achei o nome, achei
o nome, que a palavra vai infiltrar-se no cérebro e roê-lo feito rato a roer o queijinho, e não será
de se espantar quando ao acordar no dia seguinte que te virá um nome jamais pensado, eis o
que precisava, torcido feito uma toalha até conseguir cuspir de você mesmo alguma coisa. Ou
ter-se convencido de que não há por que achar um nome, porque não há outro algum, ou esse

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tal de outro teria sido enganado por lavagem cerebral, achou-me o nome, achou-me o nome,
achou-me o nome, e desapareceria.
Ao que pode ser ele um certo dáimon socrático, desenterra isso de um lugar dos
conhecimentos, porque ouviu da conversas dos outros, ou leu e pôs à escanteio, mas é que a
idéia de investigar a fundo não o cativou por mais tempo, portanto não levou livro algum e já
está caminhando rápido pelas ruas ao ponto de ônibus, para então a passagem do metrô.
Pode mesmo ser isso, o dáimon é essa entidade que nos avisa quando estamos a apanhar o
caminho errado, então é justo que apenas nos diga o que não devemos fazer, só não
consegue imaginar se os antigos que deram nome à coisa, ou falando com mais técnica, que
catalogaram o fenômeno, tinham um espécie de demônio tão sagaz e tantas vezes tão
decrépito e irritante quanto o seu, então sorri, essa gente não agüentaria um outro como o
meu. E não parece que o outro um dia vá me abandonar, reflete, talvez a minha vitória consista
em reconhecer que não existe nome algum, mas não, que chamá-lo para comunicar uma coisa
dessas é suicídio, veja só, todos os seus pedidos foram em vão porque são impossíveis, você
não tem nome algum. Talvez esmigalhasse a sua razão e te enlouquecesse, fizesse com que
dormisse para sempre, explodisse em você um aneurisma, enfim, a vingança do monstro pela
sua petulância, e também ele não deve ter gostado de saber ser condenado a para sempre te
parasitar. O dáimon é essa criatura que fica debruçada em seu ombro para sussurrar, é por
isso que não se pode vê-lo, e de algum jeito ele trapaceia para não se revelar nos espelhos ou
nas superfícies do escuro, põe-se aquela roupagem de coisa alguma, o invisível de olhos
brancos a dizer, olha lá, não está perdendo nada em não enxergar, controla a curiosidade,
rapazinho, que ela pode matar alguém além do gato. Talvez tenha de pegá-lo pelo pescoço
sem olhar, esganá-lo, fazer guinchar, mas Alex não tem porquê pôr isso em prática, a incerteza
o faz voltar à estaca inicial da motivação, antes soubesse que o outro é o fim dos seus
problemas e as vantagens que ganharia pela recompensa de satisfazê-lo.
Está sentado nos bancos de espera enquanto o seu trem não chega, eis quando agora são
os novos horários do funcionamento das coisas, a hora que os maquinistas disserem ser.
Assim que ouvir os trilhos relinchando, ele há de se posicionar na porta da cabine que funciona
para operar o trem, e esperar com fúria onde o senhor que deve dirigi-lo deve também estar lá
bocejando, ai, que tédio, porque não dormiu a noite inteira vandalizando as coisas por aí, mas
possivelmente ele acredita que ainda precise de um emprego, uma garantia, e Alex o perdoa,
que não se pode quebrar com todas as amarras que nos prendem de uma só vez e são poucos
e geralmente são dos quais se esquecem mais rápido estes que o fazem. Aos fins das
conclusões, já esqueceu da irritação e absolveu a demora do maquinista. Vira-se um pouco por
cima do ombro, o cigarro pende sem a força dos lábios. De início o fez, a coisa de virar-se, e
não do fumo, para ver se não pega o outro desprevenido, que ele deve sempre lhe seguir para
sempre saber, como sabe, de tudo da sua vida, mas no final o que está mesmo fazendo é ler a
incrível pichação de abaixo o livro da capa negra. Deve ter se tornado uma dessas coisas que
todos dizem querer pôr abaixo, mas acabam por nunca conseguir, assim como se defende a
liberdade sexual mas ainda se quer a mocinha de risinho recatado, bem criada e de lacinhos
no cabelo como esposa. É mesmo, que se nos devotamos a pichar nas paredes outrora
impecáveis da estação do metrô abaixo alguma coisa, é porque esta tal coisa já é muito parte
de nós. A gorda sentada ao seu lado fica a abraçar a bolsa, a olhar numa direção e a piar, não
pára de resmungar, a mal educada. De início ele pensou que a sua presença a estivesse
incomodando por alguma razão que desconhece, mas tomou o seu banho, está minimamente
cheiroso, ora, e mesmo que não, antes as pessoas toleravam, por conta das obrigações da
convivência, o desagradável espaço do próximo, ao que parece hoje resmungam por menos
que isso. E isso não importa, ela realmente o desanima, de queixas já bastam as suas e ouvir
umas extras o deixam deprimido, por isso pensa em aproximar a boca da orelha da senhora e
soltar um grande berro, sem origem e aterrorizante, que é para que ela corra engatinhando
chão afora enquanto ele diz que olha lá, vai erguer-se para pegá-la.
Mas ela está mesmo incomodada é com aquele casal num canto das paredes, o canto não
é do mais escuro, a rapariga arreganhada para o rapaz acomodar-se entre as pernas dela,
quando algum deles não se contêm solta um gritinho. Alex sorri, satisfeito por não sabe bem o
quê, e virou-se a tempo de ver o moço que vem caminhando com uma faca na sua direção.
– A carteira, ou um buraco na barriga!, vai, vai, vai – é o que ele diz.
– Ai, meu deus! – geme a gorda –, ai, meu deus.
– Sai, me deixa em paz – e solta a fumaça do nariz.
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– Como é, meu irmão?, como foi? – o rapazinho a olhar para os lados e limpar-se do suor
–, você não tá levando fé?, eu te furo, hein, rapaz – faz cara de mau, enruga as bochechas –,
te furo no rosto, te deixo um talho, olhe bem pra mim.
– Ai, meu deus – essa é a distinta senhora –, tome, tome a bolsa, tudo o que você quiser.
E o rapaz deve ficar satisfeito por receber o que não pediu. Alex ri.
– Você não vai fazer nada com essa faca – está rindo –, porque está claro que você não
tem bolas pra isso. Estou olhando pra você e estou te vendo se cagar de medo.
– Como é?, o que foi que você disse? – esbugalha os olhos e põe a lâmina na cara dele.
– Pare de tremer, então corta. Por favor, corta aí.
– Ai, meu deus!, pára com isso, pelo amor de deus – ela se joga para o lado –, pára com
isso, pára, pára – rói as unhas –, alguém me ajude, alguém ajude aqui – é, céus.
– Eu vou te cortar se você não me der a merda da carteira!, eu vou, vou sim!, e vai ser pra
matar, pra matar, seu merda, você acha que – e se cala quando Alex agarra a sua mão.
– Eu te conheço, mas você não sabe com quem está falando – o empurra para trás –, se
ameaça alguma coisa, porra, que ao menos seja capaz de fazer, você não pode me matar,
você não pode nem matar essa senhora...
– Não!, o que é isso?, por favor! – ela começa a rastejar para longe.
– Poderia matá-la – suspira –, e ninguém nunca saberia. Ela não resistiria como eu. Você
não seria pego, mas sabe por que você não faz?, não é porque seja mais trabalhoso pra você,
pôr uma faca na garganta é muito fácil, é muito mais simples que isso, diga-me você mesmo.
– Porque estou com medo – o rapaz pára, pensando.
– Sim, é isso, e se não estivesse ganharia muito mais do que uma carteira ou uma bolsa.
– Rapaz, você é realmente doente.
– Na verdade – continua a ponderar –, se tivesse perdido um pouco de seu medo, sequer
estaria vagando por aí só com uma faca... – e ri.
– Me dá a carteira aí, vai?, sério, ou só um pouco de dinheiro, cacete.
– Bem, foi mais educado, e isso não me diz nada, e você continua sem aprender nada –
coça a cabeça. – Saia daqui, antes que eu sim te mate – abre os olhos de sopetão, o mocinho
já virou-se, que lucrou lá uma bolsa, e sai correndo em disparada.
– Eu não agüento mais – a mulher se apóia na parede e chora –, viver num lugar assim,
viver onde – chora, chora – as pessoas agem assim. Eu tenho tanto medo de sair de casa.
– Por que a senhora está desabafando comigo? – bufa.
– A-ah! – e ela tampa o rosto.
– Temos mais em comum do que a senhora pensa.
Como por exemplo o trem, que já vem chegando.
Já a sociedade é coisa só sua. Assim que se meteu pelo beco das entradas do fundo do
teatro, rente às portas já se estava apinhando de gente. A sociedade é coisa só sua e desse
bocado de rostos fumantes de batéis naufragados, de boinas e sombras nas franjas que não
querem ser vistas, sorrisos hostis mas sabedores de que também há beleza nisso por detrás
de pêlos espessos e rostos, enfim, miúdos ou bochechudos, feios etc etc, que são rostos e
nada mais importa se não aqueles que os preenchem, eis algo que ainda está em branco e no
aguarde de um descobrimento que nunca vem. Ele os empurra e vai entrar, leva umas
cotoveladas na recíproca, se estão apinhados é porque também querem a passagem da única
porta e poucos corredores que o lado de dentro comporta, então ele tem de alçar a carranca
para um ou outro que não se fará de rogado, melhor é escapulir entre uns corpos mais adentro.
E não sabe mais identificar se toda essa gente pertence a sociedade, se cada um desses
puser o seu sete cabalístico, é questão de tempo para que cada residência do mundo receba
por correio um certo livro de capa negra e um convite selado, e aqueles que já terão ouvido a
lenda urbana da gente que recebeu essa carta e depois de abrir o livro perdeu a própria alma,
deixou, o tal que entrou, a toda a esperança etc, chorarão abraçados nos seus cônjuges que
eles também foram escolhidos, não poderão escapar.
Encontrou Andriolli entalado entre umas pessoas que já querem matá-lo, está dificultando
as passagens por aí, então aproveita para perguntá-lo o que está acontecendo. E a sua
resposta é que todos resolveram vir para cá. Ainda que não seja muito clara. Todos os
membros, ou gente da que nunca antes se soube, parte essencial dos todos, enfim. Uns
camaradas o salvam a lhe puxar os braços, tipo o doutor Dantas e Hugo, e o vão levando com
rapidez pelas coxias. O palco mais parece uma feira-livre quando todo mundo decidiu-se por
barganhar no mesmo instante, todos conversam gritando e o que pretende erguer um pouco
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mais da sua voz para se fazer ouvir decerto vai encontrar quem dispute consigo a poucos
metros. León vem feliz a andar na sua direção com os braços abertos, parece que vai agarrá-lo
e dar uns beijos no seu rosto, assustadoramente é isso mesmo que fez. O teatro está tão
lotado que não mais sobra espaço para nada, gente caindo pelas ribaltas e de pé sobre as
poltronas, ah, ah, ah, as partes captadas de uns berros quaisquer, o lugar tornou-se a capital
de alguma coisa que não pediu, sede do evento dos mais atrativos, só assim para sugar tanta
gente, é o centro do mundo, a big apple, que olhar para a platéia é dar com uma confusão de
rostos descendo numa onda para que outros subam pelas costas dos primeiros, um último virá
com um riso escancarado e o dedo em riste, perdigotos a cair na nuca do da frente, porque
todos devem julgar falar muitas coisas importantes, mas ninguém se ouve, e ainda assim
entende perfeitamente o que querem dizer. O almirante está a berrar muitas coisas no seu
cangote, muitas delas recebe com ares de quem recebe também enxaqueca, eis as poucas
coisas que os tímpanos digerem, blá-blá-blá o livro da capa preta, não-sei-o-quê retornar à
escuridão, toda essa gente quer ouvir de você.
– Querem ouvir a mim? – se aponta e ri.
– Sim!, sim!, eles querem ouvir da fonte.
– Eu não sou fonte de merda alguma – faz concha no cigarro e acende. – Mas eu posso
falar por orgulho, por orgulho se justifica.
– Fala lá, fala, fala – e vai dando tapinhas nas suas costas, capaz de não tê-lo ouvido. –
Vocês aí, seus desgraçados, bando de inúteis, piratas imundos, vermes escrotos, coisa assim,
ouçam aqui, vem, vem, vem – mas a voz esganiçada não propaga, e a gente continua no seu
afazer.
– Deixa comigo – se engasga. – Eu falo, eu falo – já tramando suas diabruras.
Aí ajeitou a gola da jaqueta, põe o cigarro entre o fura-bolo e o cata-piolho, inspira que é
para ter ar extra nos pulmões e se prepara. Os braços vão para trás e o peito para frente, que
assim toma impulso, e então o berro, este aaaah alongado enquanto pensa, pronto, com isso
eu morro de vez, de falta de fôlego que não conseguirá mais regressar, de pressão craniana
que se desmantela, vê lá, de repente a cabeça incha feito balão e explode feito saco de pipoca
no microondas, e acaba com sorriso cansado na cara. Primeiro parece ser o grito de alguém
não muito certo se devia despejá-lo, e então grito de quem tem motivo que só se descobriu
para o momento e que no depois já se esqueceu, fúria que nasce e já morreu naquele instante,
seu espaço de vida é um átimo. E então o grito de quem não o fez à toa, que as pessoas aos
poucos ouvem e devem pensar, não é de alguém que apenas teve o calo do pé atingido, ou
não é algo que seja o princípio da risada de alguém gago que se engasgou, aaaaaaah, mantra
desafinado ou a quebra dos instrumentos da filarmônica, a repetição ou continuidade é que nos
impressiona, quanto mais se alonga a dor mais visível se tornou, ainda mais se além de
duradoura seja forte, de se ver as veias do pescoço, de sentir tontear sem o ar, as cordas
vocais gargarejando seus limites. A realidade nos entorna tanta coisa goela abaixo que é hora
de devolver. Que é para a realidade tomar consciência de si e também enlouquecer. Revirando
as tripas o fora e o dentro podem se encontrar, o grito é um ato que não se entende, mas
insinua mais que o bastante, porque tudo está neste, tudo que o preencheu foi jogado e não é
para ser entendido, é para existir no mundo das coisas que não têm sentido, mas que ao
menos existem. E todos vão se calando porque isso pôde calar a qualquer coisa, e aos poucos
vão curvando seus olhares, ou alguns devem tremer, já outros titubear, boquiabertos ou
raivosos, não importa, mas calados, e talvez entendam o que ele está fazendo e identifiquem
quem ele é, um nada, mas um dos furiosos.
Alex encontra sua panacéia no grito e aproveita o máximo cansaço que vingar, sente-se
ficar roxo, não é que a sensação tenha uma cor, mas sente-se enroxescer de inflar, o tórax vai
pesando, e pesando, e ele se curvando com os braços revirados e o tremelique nos dedos, a
voz secando, secando, e ele lutando para que não finde, aperta as pálpebras, aperta o peito, e
agora está com uma feroz bocarra aberta sem que dela nada saia. E então cai, desejoso de
morrer e ser assistido, desse jeito espalhafatoso e intenso é bem vulgar, assim que é bom, e
não é que tenha sonhado com isso, mas é quase como sempre sonhou. Um pouco de
sensação de que se vai desmaiar não é assim tão ruim. Enquanto o olham e devem teorizar
sobre epilepsia, convulsão de efeitos não catalogados e por aí vamos, ele começou a levantar.
Sorri e limpa o suor da testa.
– Cacete, que relaxante – suspira.

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– Queremos ouvir! – grita uma voz faminta da multidão –, diga-nos uma coisa que venha
direto do livro da capa preta – olha só, que já perceberam quem ele é –, fala uma mensagem,
algo aterrorizante, fale, simplesmente – sim, meu rapaz, fale a qualquer coisa, que o que for
eles quererão ouvir.
– É, fala! – grita uma mulher –, diz uma loucura para todo mundo fazer, você, eu, e todo
mundo junto – sobe na cadeira e começa a dançar e apertar os seios –, fale sobre liberdade.
Fale como ela é ruim e ainda a desejamos tanto – essa aí percebeu bastante o espírito da
coisa –, fala palavrão, hum, hum, fala que vai me pegar, vai.
É, é, queremos ouvir o que for, um veredicto para o fim, seja um grito como o de antes ou
uma risada imbecil, talvez seja você este vórtice negro que cada um tem dentro de si e
queremos enxergá-lo antes de tudo em você mesmo, sabemos que você não se importa, por
isso deve ser um monstro que enterrou o próprio coração por ter entendido que ele não é um
desenhinho sorridente transpassado por uma flecha, ele já pensou a respeito disso, pois é, de
ser um órgão que combine com a lama da sola de botas, nada mais. Eles querem ouvir a si
mesmos. Por isso Alex, então, diz.
– Vocês – e ri, engasgando com a garganta rala e a vontade de cuspir sangue de doente –,
vão todos à merda – um longo trago, então ri ainda mais. – Vão todos à merda – repete, que é
para não deixar dúvidas.
Na merda, sim, começam a gritar, entendo por que falou isso, faz um sentido sinistro e
letal, peça perfeita do quebra-cabeça, solução de enigma, temos de ir à merda porque foi na
merda que nos perdermos, sim, sim, é disso que se chama retornar à escuridão, afundar na
merda de si mesmo, onde estão as tantas respostas e perguntas de nós e de onde vem a
pálida e pouco felpuda imagem do que se é, do ser, a incógnita sentença de nós, quando tudo
ao que se acostumou é um acreditar em coisa vaga. Não queremos crenças!, continuam a
gritar, e todas essas coisas estão sendo ditas aos quatro-cantos e a quem tiver ouvidos, ou de
tão alto que até os surdos escutem, e só não o faça quem já morreu. A morte até hoje nos foi o
ajuste final de contas, a desorganização de tudo que se esforçou para se ordenar, a
brincadeira de rasga-saco com a vida da gente, a estourar infantilmente um pacote desses cuja
ocupação única foi a de se encher. Agora nos estouramos antes, e vamos estourar uns aos
outros, e nem a morte mais será a mesma coisa, a vencemos e triunfamos porque a morte é do
jeito que se entende porque é medo, e agora não será mais. Entendemos o que o livro da capa
preta nos diria se ele nos mandasse ir à merda, diria com isso que nos tornássemos imortais.
E diria para sermos corajosos. Porque antes da intenção há a coragem de se tê-la, e
depois a coragem de se fazê-la, e todo o resto é meio-termo para a coragem outra vez e a
coragem é assim o caminho de todas as coisas. Precisamos de homens com mais coragem,
não, não, não é bem isso, precisamos de ter homens pela coragem, então um gritará que só
sem medo se poderá, é, e quem não teme é desesperado, é o louco que se entrega à qualquer
coisa, a criaturinha nas folhas da parábola budista, então são muitas coisas que daqui
podemos concluir. Agora estão gritando uns para os outros, e tudo seguiu da maneira que
daqui em diante sempre será. Alex se diz que vai fazer alguma loucura das piores, como
trombar numa senhora chorona para que tropece rumo aos trilhos do metrô.
– Aonde você vai? – pergunta Habib, que vem chegando.
– Vou me juntar a eles – e tosse uma tosse suja, porque realmente está morrendo. – Não
precisam de mim aqui em cima – e ri –, não precisam aprender mais nada.
– Nunca precisamos – diz um qualquer que esteja de passagem.
– É, nunca precisamos – acata com o estranho que já se foi –, então não precisam mais de
mim aqui em cima. Na verdade não precisam de mim em lugar nenhum.
– Não é uma questão de necessidade – Habib continua. – Eu, por exemplo, vim me
despedir de você, mas não porque preciso, é porque eu quis, é claro.
– Sei – coça a garganta a sentir dores –, sabe, estou morrendo.
– Todos estamos – acata seriamente.
– Então, vai sair mais cedo?, não vai ficar para alguma coisa incrível?
– Não dessa vez – está clara uma idéia de nunca mais.
– Por quê? – espanta-se um pouco.
– Vou rumo à maior de todas as loucuras.
– Eu não quero imaginar qual seja. Você é um bom monstro, sentirei a sua falta.
– Boa vida pra você – e se vai.
Mas ele não terá.
500
Tosse-tosse-tosse. Por mais uma vez fugiu da chuva, a droga da chave não encaixa,
parece que sabe quando tem de funcionar e é quando o contraria, mas a porta se abre, enfim,
e ele entra a encharcar o todo resto. Vira-se de costas sobre a parede e dá com o cotovelo
para qualquer direção, que é para acertá-la, não a parede, mas acertar-se com a porta, e
deixar que ela se feche. Então vai se despir e tremer-se de frio, enrola-se a jaqueta no braço e
a torce sem importar-se com o que molha, esfrega o peito porque viu no filme que se não o
fizesse poderia ter uma parada cardíaca. A sala está iluminada com a luz do abajur, uma
amarelidão que não é como aquela suja dos postes, então é uma amarelidão suave e limpa
que se espalha até onde alcança. Está tudo arrumado e os méritos não são dele, mas mérito é
questão de momento e não questão a se relevar, um dia é da caça, o outro é do credor, algum
dos trezentos e sessenta e cinco, sendo bastante exigente e querendo ao menos um por ano,
há de ser o dia dele. Vou tomar um banho, se diz, porque tem que descrever o passo-a-passo
do enredo de si mesmo para que não acabe por se perder. Estava executando-o ao tirar a
blusa molhada, se Carla não aparecesse saída do quarto e parasse ao vê-lo. Se Carla não
aparecesse toda ajeitada, sapatos, sobreveste e cachecol, se Carla não aparecesse com uma
mala. Então ela planeja mesmo ir. E ele não engole seco, não chega a dar na cara, mas pensa
um essa não que o comove, o faz até mesmo repor a blusa mal-tirada e inclinar a cabeça com
rosto de cão manso abandonado. E a cara dela não é cara séria e também não é de rancor,
também não é cara que se amoleça, deve ter algum perito que possa estudar essas variantes
com uma competência que impede a comoção, e talvez ele o dissesse, e Alex confirmaria, que
essa é uma cara de adeus.
– Não vá – grande começo, seu imbecil.
– Eu já chamei o táxi – voz de suavidade.
– A gente o dispensa.
– Alex – ela abaixa o rosto –, não faça isso.
– É que eu não posso – meiosorri de desespero –, deixar você ir sem a gente se entender.
– Conversar?, o quê? – ela sorri.
– O que você quiser, eu te prometo.
– Eu não queria te encontrar agora. Você foi e voltou mais cedo que o comum.
– Você nem pretendia me avisar? – mansidão frustrada.
– Eu ia te ligar.
– Não, por favor.
– Não – ela sacode o rosto e fecha os olhinhos –, não faça isso você.
– Escute – faz que vai andar na direção dela mas ela se treme, e ele a respeita –, eu sei
que as coisas andaram difíceis, que eu fui um pouco intragável, ainda que eu tenha te
explicado as coisas, eu sei que poderia ter feito muito mais, que eu podia ter me posicionado, e
que era isso que você queria.
– Isso você sempre fez. O que eu queria era ser avisada.
– Então eu aviso agora, eu quero que você fique.
– Não se trata apenas disso – ela não o olha.
– Eu sei, eu entendi, eu sei que não – e mostra as duas palmas no sinal de parar, para que
o ouça, ou melhor, o espere, mocinha, até que ele pense. – Eu não quero apenas que você
fique, eu vou me esforçar para tornar isso possível, um pouco tolerável, que seja, ou alguma
coisa assim, escute, de qualquer jeito as coisas estão mesmo melhorando.
– É?
– É, me ouça, sabe a sociedade, os encontros que te incomodavam?, acabou, as pessoas
desistiram dessa coisa de se reunir, não há mais por que se incomodar, minha relação com
esse assunto acabou.
– Eu espero que isso faça bem pra você.
– Não diga assim com tom de quem não liga.
– Eu ligo.
– Então não fale assim, será bom para mim, mas eu quero que faça bem também a você.
– É você que não está me ouvindo.
– Desculpe, desculpe, eu vou escutar.
– Não se trata apenas disso.
– Então do que mais?
– Eu estou com alguém em quem eu confio, Alex. Não seria justo deixá-lo esperando por
mais tempo porque eu é que não consigo me definir, e porque não me defino por sua causa.
501
Não seria justo – e sorri um sorriso perturbado – trocar a uma segurança que eu sei que eu
quero, trocar alguém que a oferece e que tem os seus defeitos, mas me faz bem, por essa –
pára, pensando um pouco –, por essa coisa que vivemos aqui.
– Não é uma coisa. E esses assuntos não têm de ser justos. E eu posso ser confiável.
– Ou pode admitir que isso já foi longe demais.
– Por quê?
– Estamos morando juntos numa situação indefinida, e isso é um pouco estranho. E não é
algo que eu tenha escolhido. Digo, eu precisei vir pra cá e não sabia que te encontraria. E por
um tempo eu consegui me acostumar, cheguei a gostar, mas depois de um tempo essa
impressão mudou.
– Não, não mudou – aponta para ela. – Você não quer gostar de mim, mas não pode evitar.
– É, eu não quero – ela sorri. – E é mesmo por isso que mudou, eu tive esperança, não é
que a culpa seja sua, mas sim, você tornou-se intragável para mim.
– Eu não me importo com a culpa – tom de quem se penitencia –, pode dá-la toda para
mim, eu a engulo, prometo, mas eu quero que você fique.
– Mas eu – ela continua –, eu posso evitar. É isso que estou fazendo.
– Então não faça, dê-me uma chance.
– Eu estou dando uma para mim, Alex. Veja, não é como se as coisas girassem ao seu
redor.
– Então – engole os nervos –, estão girando ao redor de quem?
– Elas não giram, apenas andam.
– Nós podemos nos misturar, não é como você disse.
– Está certo disso?
– Estou – mentira.
– Eu não estou – sorriso.
– Então eu preciso te desenganar.
– Eu não quero ser desenganada.
– Pode ser – olhos rasos – melhor pra você.
– E por que você acha que pode saber uma coisa como essa?, logo você, que não tolera
que os outros possam falar por você, que não admite que possam pensar que te conhecem.
– Você me conhece melhor do que pensa. E o resto é uma intuição, não é uma certeza,
mas é uma intuição das fortes, você não devia ignorar.
– Eu não vou ignorar, apenas não vou me arriscar.
– Se arrisque, e eu te prometo que – é interrompido.
– Pare, estou indo embora.
– Você simplesmente – e não tem o que falar, estabana com as mãos ao ar e dá com o
rosto a uma direção qualquer. – Para onde pretende ir?, nessa chuva?, por que não espera ao
menos até amanhã?, se precisa sair tão depressa é porque não está certa do que quer, então
não é como se eu devesse abandonar a esperança. Eu não tenho por que permitir.
– Amanhã – ela explica – eu faria a mesma coisa. Eu vou agora por algumas razões,
primeiro porque eu não pretendia te ver, depois porque já chamei o táxi e, por último, ele já
está me esperando.
– Não tinha nenhum táxi lá embaixo.
– Quis me referir ao meu namorado.
– Então – dá com os ombros – mudança de planos. Você me encontrou e toda a
expectativa se arruinou, desmarque tudo o que marcou, fique até amanhã, fique por uns anos,
até que a gente – sorriso bronco – realmente se canse um do rosto do outro.
– Às vezes – ela suspira com tranqüilidade – eu já me sinto bem cansada.
– E você vai morar junto desse seu namorado?, olha lá – e a amaldiçoa –, que você vai
perceber que eu não fiz nada inédito, nem as coisas que você desgostava e nem o pedido de
chance são.
– Eu já vivi o suficiente para saber dessas coisas.
– Então por que não me atende? – rasteja.
– Porque eu não sinto vontade – estupefata da sua própria simplicidade.
– Eu estou sofrendo – põe as mãos na cabeça –, estou doente, tossi câncer, isso é, eu
cheguei a tossir sangue, eu posso estar mesmo precisando de ajuda, eu preciso de você ao
meu lado, ninguém mais me serviria ou bastaria.
– Alex, me ajuda com a mala?
502
– Não – é óbvio que não –, porra, eu não vou te ajudar a sair.
– Tudo bem – suspira –, eu mesma faço.
– Por favor.
– Não faça isso, também é difícil para mim.
– Por favor.
– Alex – fala sobre algo incorrigível, então se dirige à porta.
– Eu estou mudando por você – fica a olhando sair.
Ela está abrindo a porta, o som da chuva cruza a sala, agora ela vai abrir o guarda-chuva,
e finalmente olhar para trás e dizer.
– Então estamos quites, porque você me fez mudar sem querer.
– E eu posso fazer isso valer – a segue.
– Eu te ligo – é tudo o que ela diz, e apressa o passo.
Ela saiu de sua vista e isso já lhe embrulhou o estômago, então precisa correr até a
entrada e debruçar-se, a água fria faz a curva e dá uns sopros terríveis contra sua cabeça e
torso, e agora mingua os olhos para distinguir vulto e coisa com coisa, a silhueta de Carla
descendo a escada. É uma imagem que gostaria de para sempre guardar para si, mas que não
gostaria de guardar sabendo perder a todo o resto, esse retrato do cabelo meia-lua se
balançando pelo vento que sopra de todas as direções, e ela descendo devagar a cada lance,
uma gracinha, enquanto se protege, fragilizada por qualquer coisa, vivendo um mundo que não
a merece, com o guarda-chuva inclinado, porque é dessas chuvas que se derramam em
sopros e pelos lados, e não das que caem corretinhas.
– Eu posso ser melhor para você – e ele a está seguindo – porque eu vivi isso.
– Só se aprende a dar valor ao que se perde.
– Eu ao menos quero sentir esse ter, eu nunca o senti antes.
– Mas teve, teve sim – e protege o rosto –, se não viu, é outro assunto.
– Que seja, que seja agora que eu tenha aprendido a valorizar, ninguém vai te valorizar
como eu o faço agora, você está se privando disso, de uma coisa que – escapam as idéias.
– Amanhã seria diferente.
– Seria, eu ia te olhar e saber que nunca me cansaria.
– Então – ela arfa –, me cansei eu.
– Você não pode estar falando sério.
– Por que não?
– Toda a sua preocupação, e intensidade de antes.
– Sim?, o quê?
– Como poderia simplesmente se esquecer?
– Quão mais intenso, mais rápido se apaga.
– Não seja dura comigo, assim você machuca.
– Estou sendo dura comigo mesma, desculpe.
Chegam descendo ao pátio, o temporal inunda a fonte e transborda feito cataratas
espessas, os ralos aos quais as águas escorrem roncam de um presságio monstruoso, rugido
de fendas, e o excedente virou poça, terão de andar com um certo cuidado por onde metem os
pés, a prevenir que não sintam aquela sensação de água gelada e suja a subir pelas canelas e
coisa assim. A velha do primeiro andar está deitada num banco, está de maiô, óculos escuros
e protegida de guarda-sol. E ela diz.
– Que noite bonita.
Os dois param e ficam uns instantes a encarar como quem não entende.
– Eu preciso ir – e Carla se adianta.
– Eu acho que você apenas está com medo – se espatifando nas poças.
– Apenas?, pensei já ser isso bastante coisa.
– O medo vai fazer com que você perca – e escapam novamente as idéias.
– Alex – alcançam o portão –, eu não quero ganhar isso, nada que venha daí.
E gira a maçaneta que o permite de se abrir por dentro.
O táxi está ali na calçada ronronando com o farolete aceso e indeciso de partir, parece não
querer parar quieto mas pelo sim e pelo não jaz ancorado, só pode ser mesmo o táxi dela, uma
coincidência ao contrário seria uma sorte que não o viria brindar. E ela olha para você como
quem diz que não quer te magoar, mas quer menos ainda magoar a si, e é isso que esse rosto
enrugado deve dizer, que é uma pena, mas que acabou sendo isso o que passou a sentir por
você, pena, dó, o lamento por algo que não pretende corrigir. E que você não consegue
503
assimilar, mas nem tudo se precisa entender um pouco mais. Como ela a se conter numa
carícia em seu braço, carícia que evita um abraço e que não sela compromisso na despedida,
e deve fazer isso por não ter mais o que dizer, ela se cansou, achou ser melhor assim, não
quer tentar as suas esperanças mentirosas, a vida inteira você abandonou as pessoas e
quando pôde se fugiu delas, agora é Carla quem se antecede e o faz consigo. E ele não sabe
se tem o que falar, ou vontade de fazê-lo, é sonho com gosto de chuva ruim e parece justo que
já esteja a se acabar.
– Eu te ligo – ela fala, ela nunca vai ligar.
E ele não responde. Ela adiantou-se alguns passos e abriu a porta traseira do táxi. Atirou a
mala lá dentro e está se preparando para ser rápida o bastante para fechar o guarda-chuva
empapado e saltar ela mesma para o aconchego, tudo isso sem olhá-lo, que não há nada de
oculto que não tenha sido revelado.
– Tchau – ele resmunga sem saber o que está falando, nem acha que foi ouvido.
A porta do carro se fechou, o seu lugar parece ser mesmo na chuva. O seu, não do carro.
Alex não sairá dali enquanto não o vir arrancar, o que não tardará para acontecer, sem
preliminares ou embelezamento de poesia, apenas carro que começa a manobrar, no máximo
ouve-se o som das suas rodas se esfregando como manhosas ao chão, então há de acelerar
na direção da rua e cobrir-se de chuva, cada vez mais, alguma coisa perdida indo-se mais e
mais embora, até restar dois olhos vermelhos de faroletes que são mais sanguíneos que
melancólicos. Ele parado, a chuva crespa a cegar, o farolete a ir-se embora, e então a dobrar a
esquina. Tudo te escapou e você está aí com esse meiosorriso de quem não tem o que sorrir,
de quem não sabe o que fazer ou não restou no que se crer, eis aí uma dessas coisas
acarretadas por essa história de descobrir-se a liberdade, ser inata a qualquer um etc, de
repente o que acontece é que Carla leu o livro de capa preta e finalmente entendeu que não
precisava continuar com esses desfechos por encerrar de umas manipulações já
ultrapassadas, e por isso acabou por parecer sentir pena, porque você não a previu e
realmente se afetou com o inesperado, mas apenas pare de pensar, sorria esse meiosorriso de
quem aproveita a desgraça, que você não tem competência de concluir a nada além de seu
sorriso, ela realmente se foi. Explode lá dos céus um trovão, como ronco de cachorro a ter
pesadelo. Você devia ter saltado no porta-malas do carro e o arranhado enquanto ele
arrancava, nunca esqueceria da marca das suas garras, testemunho de que essa coisa
aconteceu, essa despedida suficiente e tudo mais, devia ter dado com o punho e quebrado as
janelas, saltado adentro, mas tem a preguiça dos desanimados, se não tossisse um tanto ainda
estaria inerte. Lembra-se de ter um portão a fechar e não ficará de fora, simplesmente dá meia-
volta por intuição pouco lúcida do que se deve fazer, o fecha sem averiguar se o trancou, esse
portão tem aí uns problemas. Então retorna ao pátio, vai sapateando sem ânimo pelas poças,
pensa se podia deitar-se na fonte e dar um jeito de se afogar, do jeito que as águas jorram
também o iam dispensar, no final tudo se acaba nessa ignorância do mim para ti, antes tivesse
havido um decisivo adeus, mas só ocorreu olhar de azedo e de desgosto.
A velha do primeiro andar está a curtir o banho de lua, banho-de-chuva, ele não faz a
menor idéia do que diabo essa senhora imagina estar fazendo, se pretendesse perder seu
tempo imaginando as causas dessa gente que o surpreende à toa, sua vida não mais seria
esse sonho egocêntrico sobre os outros, já teria evoluído a sonho dos outros convertido em
preces por um ego que, feito sonho em que se abrem todas as portas e lá está um protagonista
diferente para sua própria vida, se perdeu.
– Sabe – a senhora sorri e balança seu guarda-sol –, eu me sinto só.
Sentado nas bordas da fonte e com a água imunda descendo por seu quadril, ele acata, a
resposta é um é, paciência, acho que a entendo, e se não chegar a tanto, simplesmente é que
não tenho o mínimo fôlego de comentar, contestar, argüir, porque não sou nada do que a
senhora espera. Então vai subir sem pressa nenhuma esses lances da escada rumo a uma
casa vazia. O cocker spaniel já se põe a latir.

504
Dormiu o dia todo, é desses em que se desperta mas se pode falar, a realidade não me
apraz, então o sono que nos termos normais se devia escapar e revitalizá-lo, já tratou de
retornar como companheiro inseparável. Então dormiu sem certezas de estar dormindo,
evitando qualquer movimento no sofá, que as coisas bruscas não são lá muito elegantes, e já
foi observado que acha mais cativante sofrer em silêncio, e dane-se o que cativa, ele se diz e
deixa bem claro, que simplesmente não tenho vontade de me mover. É terrível que ele tenha a
impressão que a sua vida esteja viajando numa jornada de simplificação, onde cada vez mais
os capítulos, as tramas e as suas idéias se restringem e diminuem e talvez já rumem a um
epílogo, isto é, onde antes se abriria um leque de eventos e tantas coisas a se pensar, a se
fazer, pendências em geral etc, agora só resta essa sensação de ser um veterano dos mais
cansados de algo que não consegue classificar, não exatamente cansaço de ser ou de viver,
ainda que assim possa ser dito, é melhor que encontre termos melhores, ele pensa para achar
a um, deve ser mesmo cansaço de ver, ou de repente é receber, vai ver o problema é que o
mundo o excita demais, o entrega carga demais, se o conhecesse e o identificasse como Alex,
partícula perdida meio aos tantos conhecida por tal, tal, e tal, saberia não ser sábio estimulá-
lo. Por não conseguir mais suportar o silêncio de estar só deixa que a televisão fique
sussurrando umas coisas desinteressantes pelo tempo que for, se cobre um tantinho e fica,
sem delongas ou mistérios ou complexidades absurdas que volta e meia ousam impregnar as
coisas mais corriqueiras, a pensar em Carla, que teve esse tempo todo de dormir em estado de
insônia, que é mais ou menos como dormir sonhando sempre com a mesma coisa, ou estar
acordado, quase desmaiando, e da mesma maneira sonhando sempre com a mesma coisa,
para identificar de que o espaço que ela preenchia agora jaz tomado pelo vazio, e ele não está
muito certo de quando vai largar dessa vigília. Essa é apenas uma interrogação por alto,
porque se depender do consenso de seus eus neste instante, não há de largar jamais. Como
quem está convencido de que sua loucura final, bem justo que seja instituída por si mesmo,
seja a de apodrecer no sofá. O feng shui e tudo mais, tudo isso está liquidado. Agora as coisas
estão mornas e despreocupantes, uma ordem na qual não se vê graça de desarrumar, um
passeio frustrante pela imaginação do que não poderia ser a vida dos dois, e realmente não foi.
E ele ri da constatação.
É que sempre esperou o contrário do que devia ser. Acostumou-se com as ironias do
destino e essa não foi ironia alguma. E de tão normal e inevitável o desmorona. A televisão
cochicha coisas sobre bolsa de valores com a voz mais entediante que deve existir, pior do que
as dublagens do canal de animais, vejamos agora, diria o impassível no microfone, a jibóia
enroscando-se lentamente na sua presa, e no próximo bloco a incrível briga entre um crocodilo
e uma píton que acabou por devorar o inimigo, e ele dormiria antes dos comerciais. E fica
tentando pensar por que Carla faz falta, mas não consegue realmente responder-se, e isso o
enerva, não chega a ser amor ou algo assim, nunca se preocupou com ela para atingir um grau
destes de querer bem, vai ver ter sido mais um desejo por realizar que não conseguiu, e talvez
à longo prazo isso venha a ser melhor, ainda que seja mesmo perda de tempo tentar se
convencer disso. Não é amor ou algo assim, só deve ser um desejo frustrado de constituir vida
com alguém, sabe-se lá. Ou talvez é que ela tenha arruinado o feng shui.
Estica a cabeça com um esforço que nenhum ser humano devia ser incumbido de fazer
para espiar na direção da janela, que a luz vermelha de aborto de fim-de-tarde vem penetrando
as persianas, já é fim-de-tarde, então resmunga, não é que seja por conta disso que
resmungue, mas que encontre nisso como encontraria no zumbido de uma mosca uma razão
para um nhé, nhé, nhé, que possa ser ouvido a exemplo por seu dáimon, caso esteja nesses
momentos a debruçar-se por seus ombros, ou por uma coisa imaginária qualquer. Coisa
imaginária que por exemplo possa ouvi-lo do outro lado da linha do telefone, e em resposta
fazê-lo tocar, tocou. Alex se tremeu por baixo dos lençóis mas já se aquieta, que pondera
velozmente por instinto de sobrevivência que é certo ser um chato da sociedade, se não o
próprio André a vir com novidades desinteressantes ou dar o relatório de espiões quaisquer,
pois é, rapazinho, te vi a tomar chuva e seguir uma mocinha, diria o risonho, e foda-se, ele
responderia. Ele finge-se de morto e deixa que o telefone toque até não poder mais, que se for
Carla ele não quer falar só por birra e nada mais, ou no máximo é mesmo um engano. Ok, o
telefone silencia. Ele suspira com um alívio de não estar muito certo de que era isso o que
queria.

505
Ok, e o telefone volta a tocar, uma insistência assim não pode ser à toa, não há força de
vontade que resista, que deve ser mesmo Carla sabendo que ele está doente por sua causa e
resolveu se compadecer mais um tantinho, ele já ensaia o seu discurso de não me amola, não
é como se eu estivesse sofrendo, então apenas deixe-me em paz, certo, ou pode gritar contra
um grupo de desocupados que tenham inventado de passar-lhe um trote, não se sabe o que
esperar do que acontece com o cérebro desse pessoal que lê demais e a qualquer coisa que
se os mete, enfim, rolou para o lado e caiu do sofá, então rasteja com o heroísmo de quem tem
de alcançar algo muito distante, certo. O telefone pára de tocar e ele se frustra. Ergue-se
esfregando o rosto e a sentir-se moído, senta-se de qualquer jeito na escrivaninha, e antes que
lhe tome o ímpeto de organizar alguma destruição, coisa que parece já ser um tanto
contraditória mas acaba que não, que as coisas paradoxais também se teorizam e não é por
ser espiritualmente paradoxo que na prática não se consuma, o telefone toca uma terceira vez,
coisa que não esperava. Pensa se isso é uma estranheza a se relevar, já que quem quer seja
já o devia ter tomado como ausente, então engole seco, leva a mão ao aparelho e o atende
com uma voz rouca e pouco vivaz.
– Alô.
– Alô – responde a voz oblíqua e desconhecida –, quem fala?
– Com quem deseja falar?
– Com o senhor Alex – a voz parece invadi-lo, daqui a pouco não mais existirá noção de
privacidade –, por gentileza.
– E quem gostaria? – respira fundo.
– Sou um certo senhor Edward.
– E quem vem a ser – impacienta-se – o senhor Edward?
– Use a sua intuição.
Silêncio.
– Como? – gagueja, e sorri.
Silêncio. É o seu assassino. Ou caçador, que o ato ainda não foi consumado.
– O que significa isso? – treme.
– Apenas quis ouvir a sua voz. E realmente não há nada demais.
– O quê?
– Até mais, senhor Alex – e desligou.
Assim que desligou deu-se o tempo para rir, risada de desânimo que de tão feiosa mais
parece compulsão, da qual já se cansou e não tem desespero algum, mas não consegue parar,
que seca os olhos e os deixa vermelhos, impregnou-se feito um tique nervoso como de ficar
remexendo os lábios ou tendo tremeliques com os dedos, nesse caso balbucia-se por longos
instantes um han, han, han que nunca lhe veio antes. Massageou as têmporas, mas deve tê-
las rodado na direção inversa da ideal, só consegue aumentar a enxaqueca com sensação de
derrame. Então providenciará um processo que praticamente já é de sua entrega.
Entrou no único táxi parado na esquina, entreabria a boca para dar as coordenadas,
terminaria o que pretendeu se o motorista não estivesse dormindo.
– Acorde – ordena, se fechando todo –, acorde.
– Não me amola, compadre – se retorce, incomodado.
– Escute, te dou o dobro do que marcar na chegada.
– Ai, que sono – o sujeito boceja e esfrega o rosto.
– Feito? – insiste.
– Certo, irmão, certo – e se concentra. – Só não reclame se formos um pouco devagar.
E esses sonhos acordados com um certo senhor Edward que poderia despontar de
qualquer viela, que de repente telefonou do fone público na rua e previa que ele desceria
degraus abaixo se metendo nas roupas e talvez descalço, previa que fosse entrar no primeiro
táxi que visse e pediria que rumasse a uma direção qualquer, que ficar em casa não é mais
seguro, sequer andar próximo das janelas o é. E esses matadores devem mesmo ter os seus
ritos de terrorismos dos quais se usam para descontrolar a presa, ou talvez creia obter algum
poder, satisfação ou troféu, feito canibal a consumir as energias do jantar. Talvez o senhor
Edward abra a porta do táxi, e antes que o motorista possa avisar que já está ocupado o
senhor terá disparado um tiro em você, se não é ele o próprio motorista, se não é a droga do
próprio motorista. E você se encolhe do jeito que se encolhem os verdadeiros amedrontados,
com toda essa rispidez, e o táxi já saiu.

506
E então está no aconchegante hall da mesa de vidro e vasos chineses que comportam
essas plantinhas coloridamente artificiais, é uma avaria que as coisas bonitas sempre tenham
de suportar coisas de plástico. Mas dessa vez não sente a vontade de destruí-los. E está
parado a encarar a essa porta lustrosa e não sabe se deve chamá-la, campainha e tudo mais,
já devem saber que ele vem aí, e alguém de algum andar que não o interessa deve ter
chamado o elevador, porque a luz que indicava dele ali estar moveu-se para baixo, os sons do
movimento rugem para abandoná-lo nesse escuro, coisa que tem aprendido a temer. Dá um
toque na campainha e não calcula a força do nervosismo, prensa, prensa, prensa, finalmente
se encolhe, e a porta se abriu e se encolhe mais ainda. A porta abriu-se e de lá surge André, à
curiosidade que queira saber por que não há espanto ao dar com Alex tocando em sua
campainha, a resposta é muito evidente, esse edifício tem seu interfone e André teve o tempo
que ele demorava a subir uns andares de elevador para preparar-se.
– Entre, entre – e o escancara a porta. – E então?
– Eu não estou seguro – e vai entrando.
Não há som de coisa sequer, os cantos estão escuros, o mundo inteiro está mudo.
– Conte-me – e está a fechar a porta.
– Esse lugar está lúgubre – sussurra, parado e sem saber aonde vai.
– São os seus olhos. Sente-se por aí.
– Obrigado, mas não. Ele me ligou, disse-me até o nome, é uma sentença.
– Ao menos um café?
– Não, obrigado, eu não quero nada.
– Então eu faço pra mim – e vai rumando para a cozinha.
A casa parece diferente da de onde uma vez acordou. O mundo inteiro está mudando.
– Carla me deixou.
– O quê?, não te ouvi.
– Eu disse que Carla me deixou.
Os quadros são mal pintados e só inspiram indiferença.
– E por quê?
– A minha vida parece estar correndo rápido numa série de seqüências sem sentido.
– Fale um pouco mais alto?, sim? – a voz fraca que vem de algum lugar.
– Nada.
André retorna com café que não tem mais o mesmo cheiro.
– Conte-me – e é isso que ele o pede.
– Eu vim por instinto.
– Não quer mesmo se sentar?
– Não.
– Certo.
– Eu vim por impulso, mas não sei se tenho algo o que dizer.
– É óbvio que tem – beberica –, um assassino te ligou.
– E tudo o que eu consegui fazer foi rir – assente. – Perdemos a razão.
– Não, meu rapaz – seriamente –, a reinventamos.
– Vai demorar muito para que nos acostumemos, pra que todos o façam.
– Que seja – sorri altivo –, foi o nosso melhor, o tempo há de colhê-lo.
– Somos mortais, não temos o tempo de mostrar nosso melhor. A não ser que isso seja
muito pouco.
– E por que essa conclusão agora?
– Carla me deixou – mas não é como se um dia tenha estado com ele – e eu não tenho
medo de morrer.
– Por que – gole elegante – ela foi embora?
Alex o mira de olhos quase fechados de roxo de cansaço.
– Foi o melhor dela.
– E você não tem medo de morrer, hum?
– Eu o perdi. Perdi o medo e não sei o que ganhei com isso.
– Não reflita por aí, não é lá muito inteligente, tudo vai se resolver, você ganha a liberdade.
– Liberdade para não ter gosto de usar. O preço dela é o desapego, e eu o paguei.
– É uma época de mudanças para todos, todos estarão abandonando uns aos outros, ou
agirão de forma estranha, ou descobrirão que são coisa que nunca pensaram. Faz parte, não
cabe arruinar a tudo com um suicídio, abandonar-se por nada.
507
– Não sei se estou abandonando alguma coisa.
– E o que isso significa?
– Que assim que sair daqui, volto para casa...
– E o que é isso – franze o cenho – se não abandono da vida?
– Entrega.
– É o mesmo sentido.
– Então será.
E ao desviar o rosto, o que então serviria para apaziguar as tensões, amansar a sensação
de desagrado e coisa assim, deu sem que previsse com o escuro e com algo que o arrepia a
espinha e o faz mal acreditar no que viu. Mais pareceu tomada de filme de horror assistir na
fresta da porta de um dos quartos aqueles dedos pálidos escapulindo, segurando na beirada
para mantê-la recostada, e espiando. E um pouco acima deles lá está a cara de um fantasma
doentio a encará-lo, o morto que não quis ser visto, escondido porque é escondido o lugar a
qual pertence, e um jeito de rancor moribundo que não vai perdoá-lo por tê-la enxergado. E a
porta enfim se fecha, o monstro volta às trevas, era Júlia a vigiar. E por uns segundos ele
esbugalha toda a cara e perdeu o que dizer.
André volveu por cima dos próprios ombros, que ele não há de ser estúpido, Alex, e
percebeu o seu espanto, ainda que agora haja somente o nada, o que parece ter sido sempre
assim, e te toca no ombro, esse articulista sacana, e com esse meiosorriso desinteressante ele
quer dizer para que vamos saindo daqui. E o que te resta é um espanto que realmente o aflige,
faz que algo, corrente de ar ou sabe-se o quê, venha subindo adstringente até a boca, que vem
mesmo do pulmão. Começa uma crise de pigarro, põe a mão porque é educado, o peito vacila
e está hesitando e lhe dizendo sorridente, não, meu rapaz, você não vai respirar. André parece
não saber se ri ou se o ajuda, se te pega pelo braço e te coloca sentado no sofá, mas
desaparece de sua vista quando a dor te turva, te abandona no pior instante onde seu peito
sente sufocar a todo o resto, mas ele retornou com um lenço, e te pôs na boca. Então você
fechou os olhos e deixou a garganta machucar-se. Por fim este ah que não é certo ser de
alívio, e sim nojo, ou dos dois. Segura o pano e o vê manchado de sangue.
– O que você tem? – André.
– Câncer – a voz enrouquecida.
– É certo? – assustado.
– Não, mas não importa.
O peso a apertar-lhe o peito não o importa.
– O que diabo – ele continua, ofegando – significa aquilo? – e aponta a direção escura.
André faz que ssh, o indicador na boca e tudo mais.
– Ela voltou pra casa? – sussurra –, você... você a perdoou?
– O termo não seria bem esse... – sorriso constrangido.
– Então?
– Eu a tolero aqui dentro. Você entende.
– Não, eu não entendo.
– Ela não sai do quarto – sussurra com um cuidado amedrontado, senta-se ao seu lado
para falar o mais perto que a estranheza permita –, fica no escuro, é assim o dia inteiro, vaga
pela casa e pega comida de madrugada, quando eu já estou dormindo.
– Eu não sabia que ela estava aqui... – fala por falar.
– Temos de falar sobre isso.
E é como acordasse, – O quê?
– Ela contou-me todas as coisas.
– Isso eu imagino, isso eu pude ver – suspira.
– Ela contou o que você disse a ela, isso me preocupou. Ela ficou obcecada.
– Contou sobre o quê?
– Falou que o livro da capa preta foi feito por causa dela – e ri, baixinho e sem saber por
onde olhar –, e que por isso você voltou, e...
– Não – arfa –, não é nada disso – e se encolhe nas mãos. – Ela distorceu tudo. Não
acredite nisso.
– É, é o que eu pensei, certo.
Silêncio.
– E disse – André continua – que você providenciou aquele reencontro.

508
– Sim – despeja-se sabe lá para onde todas as culpas –, isso é verdade – e quase ri –, é a
verdade.
– Mas ela está longe de ser inocente nessa história, não é? – esse risinho o agonia.
– Eu não sei, André, eu realmente não sei – que não quer alongar.
– Ela confessou que te ligava vez ou outra, não falava nada, que era pra te dar curiosidade.
Desde que você a viu ela já o investigava, desde que ela viu você numa certa noite naquele tal
lugar, e você a salvou.
– Eu nunca suspeitei, isso eu nunca pensei...
– É a vida – riso desanimado –, cheia de truques.
– Eu não entendo como você pode continuar com ela.
– A minha vida tem que ser assim.
– Júlia – sussurra.
– Bem, você não entendeu. Eu não estou continuando nada, mas disso cuido eu, certo?
– Tudo bem – desiste –, não quero me intrometer.
Silêncio. Talvez algumas coisas nunca mudem.
– Eu queria – continua – seguir uma vez mais as pessoas e vampirizá-las – continua, e
sorrindo – como eu fazia antes, anotar as suas vidas num caderninho qualquer.
– E por que não?, você agora pode fazer o que quiser.
– Não como antes, mas não como antes.
– Mas nada é como antes.
– Eu para isso preciso das trevas, das sombras por onde eu caminhava.
– E não as tem mais?
– Agora não há mais outro referencial.
Silêncio e a certeza do que diz.
– É isso que você e todos nós pudemos dar ao mundo, e agora não suporta.
Silêncio.
– O que eu pude dar ao mundo nunca será dado. Eu sou melhor que tudo isso.
Silêncio, uma respiração meio rida.
– Sabe – Alex resolveu –, eu aceito um café antes de ir.
Silêncio.

509
A violência atingiu níveis de calamidade que provavelmente torna difícil a qualquer um que
não a esteja vivendo imaginar. As portas das prisões de fato foram abertas e se o termo
manicômio não foi abolido de nossa linguagem tornou-se pejorativo a referir-se à casa de
alguém, às ruas quaisquer, se não como um gênero maior, que tudo isso tornou-se um grande
manicômio, mas isso por si só ainda não é nada. Mas apenas a ponta do fio de Ariadne, a
parte visível do iceberg, mais para dentro reconhece-se ter muito mais, e ser pior. As pessoas
não dormirão em paz e as coisas nunca puderam mudar tanto de um dia para o outro, não só o
preço das comidas, que deve já ter sido congelado, porque a especulação e a produção
também se arruínam frente a uma economia suicidada. Mas ainda que a ordem venha a
desmoronar numa marcha galopante, e indícios para isso é o que mais transborda às vistas,
seja pela corrupção massiva que se assume em todos os gabinetes, pela rejeição de uns
valores seculares, pela instauração de um simples por quê?, onde antes havia a conivência e a
omissão, onde predominou um ócio de desculpas a fim de satisfazer-se com migalhas ou
aconchegar-se no medo do pensamento mais estridente, ainda que se tenha ouvido os
socorros tão diferentes de gente tão diferente e que, portanto, anseia a mundos diferentes e
com abismos entre um sonho e outro se os olharmos com uma lupa, ainda que o homem tenha
retornado à escuridão e esteja no caminho de reencontrar-se, se é que um dia antes já topou
consigo mesmo numa estrada que nas aparências não conduziria a lugar algum, ainda e
apesar de tudo isso, essa luta e esta dialética da liberdade parece cada vez mais distante de
conduzir a algum resultado. E não é por isso que se torna menos legítima, é que talvez
precisem de uns séculos respirando os ares que as ruínas e as sobras transpiram. Talvez seja
impossível que exista uma civilização livre na face deste planeta, talvez encontrar o homem
livre faça na verdade com que se depare com o homem morto, essa morte que é o meio que
necessariamente se tem de cumprimentar, e a morte de si mesmo nunca é meio de nada, é
sempre o fim fatal, não há liberdade após a morte, somente dissolução. Talvez um dia se
possa abolir as diferenças das classes, da exploração entre a gente ou da qualidade de vida
que uns têm a mais ou de menos, talvez se possa também abolir a diferença de privilégios,
sortilégios e sacrilégios, coisa assim e por aí vamos, ainda que a intenção do livro da capa
preta nunca tenha sido a de tratar sobre as sinuosidades da justiça, ainda que admita a
concupiscência com que ela nos fascina, a maldade como é tratada e como as suas
promessas vêm a iludir a todos. Talvez o mundo seja revirado de ponta-cabeça por uma
escuridão irritante e subversiva, cheia de perguntas que não admitem muitas respostas e ainda
assim teimam-se em repetir, de um individualismo marrento e infantil, por esta filosofia de
enxergar o que aparentemente não havia pelo deixar acontecer o fenômeno que é o si mesmo,
com essa criação de extremismos que parece altamente desnecessária e cujo único fim é
testar a fibra de que é feita o espírito, a praticar loucuras e aprendendo se gosta delas ou não,
etc, enfim, talvez o mundo torne-se o avesso do que hoje o entendemos, mas não parece
haver um meio de se secar a raiz da diferença – a do espírito, que o mais é coisa que se cria –,
o livro da capa preta iguala a gente porque as põe no mesmo berço, não porque está disposto
a alterar a genética da existência, essa nos ensina ser cada um de nós exclusivo, mas o livro
da capa preta vai além, e ensina que ao se ver que não se entende inteiramente a si, não
entender o outro não pode ser um fenômeno tão ruim. O livro da capa preta diz para que deixe
todas as suas esperanças porque é mesmo a ante-sala do inferno e o inferno são os outros. A
desordem, o caos, o mal, o turvo, o insano são sempre os outros. A ordem é sempre o si
mesmo, é o que se tornou familiar, e esse mundo tomado pela ordem teve a sua era de
coerência. Mas só reconhecendo a desordem em si mesmo é que se pode congregar gente
com gente.
Ainda que isso signifique umas muitas vidas roubadas e muito sangue derramado. As
forças especiais, a polícia, o exército e sabe-se lá quais outras forças-tarefa, de voluntários a
cães treinados, etc e tal, continuam o que vem se tornando uma guerra por interesses, a luta
dos diferentes que ainda se apegam a cegueira, que pelo ritmo que um pé tropeça-se com o
outro, que os passos caminham e que assim a vida se segue, daqui a pouco atingiremos um
nível de estado onde não se há o oficialmente certo e os demônios do errado, apenas dialética
dos inteligentes, gente entrincheirada para lutar com a zona rival, assaltos à mão armada,
bibliotecas servindo de quartel a uns guerrilheiros que clamam por qualquer coisa, incêndio de
carros, bandos de pessoas que saem juntas nas ruas unindo-se aos saques como não fariam
em tempos de liquidação, como o recente caso do sujeito que para não ser morto foi inteligente
510
o suficiente para fingir que estava saqueando a casa, que na verdade era a dele, mas disse
aos ladrões que a arrombaram – eram todas pessoas muito dignas, tudo muito respeitoso –, e
aí, irmãos, chegaram tarde, mas vamos lá. E você realmente nunca sabe o que te espera ao
dobrar uma esquina qualquer. Ou pedem por sua carteira, por suas roupas, por seu corpo, por
sua alma, inventam o que te pedir, pedem para que você faça uma performance, e quando não
houver nada para ser tirado, ainda assim hão de comemorar por nada que se esteja muito
claro, já se tem o bastante. Como chuvas de móveis pegando fogo a debruçar-se das janelas
de uns vários edifícios, tevês ou poltronas, bibelôs velhos e papelada das contas que não mais
se cobram, caindo em brasas e rumo à espatifação nas ruas e calçadas, bem, deve ser uma
festa não exatamente da comemoração de um ano novo, em que estouram a champanhe ou se
veste com as cores do que se espera, esperança, paz, amor, blá-blá-blá, aqui só existem as
chamas crepitando porque não há certeza de um ano novo, mas da queima de um velho, e
tenho dito.
Alex pode-se dizer com tranqüilidade que estar assim, jogado de qualquer maneira e a dias
sem olhar para as ruas, seja por estar sem debruçar-se nas janelas ou por evitar de dar um
passeio na esquina, nem que fosse para se enganar numa comprinha à dispensa vazia, é
mesmo um contrato com a morte. É um pouco milagroso que até agora não o tenham invadido
a casa e dito, olá, você mora aqui?, sim?, certo, é porque podia ser um sacana que veio pegar
as coisas abandonadas mas resolveu fazer uma ciesta nesse sofá, que aliás estamos
carregando. É tão milagroso que julga já ser isso a sua condenação, não precisa de assassino
algum, basta que se o deixe apodrecer nesse lugar. É mesmo uma questão de tempo, e é má a
forma como não passa. Assim como ele soube que Habib suicidou-se, não antes, muito
claramente, de despedir-se da maneira que mais o aprazia, isso é, aquela singela saudação
final no teatro, ao que depois de alguns dias, quando este tipo de notícia ainda seria digna de
ser comentada e até mesmo dava nos jornais que vendem, os vizinhos estranharam a sua
ausência e decidiram entrar na sua residência, provavelmente o que os espertos realmente
queriam era a televisão ou uns livros para ler antes de dormir, enfim, e dão com o corpo de um
certo professor que, descobriu-se, aliciava os seus alunos. Estava com os miolos manchando o
assoalho e por perto apenas o bilhete que não dizia mais que o suficiente, cansei. Ler os
obituários pode ser um passatempo divertido para encontrar antigos amigos. Martin deve ter
fechado o restaurante, decerto muitas vezes arrombado, e ele mesmo deve ter dado um fim na
mãe inválida que tinha aquela doença da qual não se lembra o nome, esclerose fatal e
terminal. Talvez o doutor Dantas possa enfaixar muitas pernas quebradas que os dias que vem
aí estão para produzir, Stern não tem mais onde lecionar, que as portas dos centros
acadêmicos, universidade, escolas, maternais, ainda que não seja num jardim-de-infância que
ele dê as suas aulas, etc, estão fechadas até segunda ordem desde que também se instaurou
o toque de recolher, qualquer um que esteja nas ruas após as dez horas da noite e seja capaz
de se mexer é passível de ser preso, a salvo gente como poucos vigias noturnos e uns sujeitos
que andam armados e ninguém ousa argüir contra, mas preso como?, e levado para onde?,
Alex não sabe responder todas as perguntas que se faz, portanto fica a critério da imaginação
de cada um, que a polícia seja inválida e tudo descambe em impunidade, e cada nova norma
seja um pretexto para a desobediência dela. A seguir por essa coisa da contrariedade, talvez
devessem instaurar uma lei mais ou menos assim, todos sairão de suas casas e farão umas
loucuras bem destrutivas, que de repente todos resolvam desobedecer e ficar quietinhos. Mas
isso não irá acontecer, porque contrariar por contrariar é estupidez, eles sabem muito bem o
que querem por a ordem do dia ser questione!, excite-se. E quem disse isso não foi qualquer
um, mas o livro da capa preta.
A verdade é que não quer saber de ninguém, devem estar todos seguindo as suas vidas,
cada um com o que os restou, não será ele a fazer diferente, que não quer implicar. Clica por
acaso no controle. Esse canal saiu do ar, clic, esse também, e outro mantém no ar apenas
esse símbolo aterrorizante que sugere invasão alienígena ou vodu. Clic, esse também não
transmite mais, faliu ou deram um jeito de abater dos espaços o seu satélite, não precisa ir tão
longe, vai ser só se estouraram os cabos por aí. Funciona esse canal com um talk-show, com
direito à risada ridícula no fundo e piadas para a platéia de idiotas. Ele estica o cantinho da
boca, está se dizendo, ande, homem, dê um risinho, mas não sorri. Essa azia de ficar no torso
inteiro não permite, azeda a boca e todo o resto, clic, azeda o controle-remoto, os livros
espalhados pelo chão que se disse que leria para matar o tempo, migalhas de biscoito no
carpete, cremoso resto de iogurte no sofá. Estica a mão ao chão e tateia a qualquer coisa, vêm
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uns nachos, é que as coisas não estão metaforicamente espalhadas, ele transformou isso num
pardieiro, e ele adora esses queijinhos. Tosse, mais por engasgar com a posição que pela falta
de ar. Deixou-se virar e caiu, se mistura com os farelos e com seus irmãos ácaros, levantou-se
como se levantam as pessoas que não têm um destino, a ponto de olhar em torno e ponderar,
o que faço agora?, posso fazer qualquer coisa, em nenhuma delas eu ganho a algo, antes
fazer o nada, se é que aqui, agora e parado, é isso que estou fazendo, porque não consigo
parar de pensar, de respirar etc e tal, só faz nada quem não existe, estar vivo é nunca
descansar ou ter direito a férias de si mesmo. Se diz que comer apraz, raciocínio de primata
com linguagem paleolítica que sussurra, comer, grung, bom. E não vai à cozinha antes de
apanhar o maço da mesa, e agora está tragando e lutando contra o pigarro, olhando sem gosto
algum a interioridade desses armários de dispensa, a última lasanha congelada parece boa, a
baratinha que escapole devia estar buscando alguma coisa parecida, sinto muito, ó, querida.
Esperou sozinho o apito indiferente de está pronto, meu rapaz, está pronto, comeu sozinho e
com o silêncio das garfadas ou daquele mantra que as geladeiras roncam mesmo no mais
profundo silêncio dos lares. Faz tudo sozinho e sem vislumbrar nada. Mas esse lugar é tão
caótico quanto no teatro, não precisa para isso que as paredes gritem, basta que ele esteja ali.
Deita-se no chão e que não o perguntem por quê, porque quis, aprecia por baixo e de fora um
mundo de linhas simétricas. Abraçou as pernas, no chão ele prensa a bochecha, e então
resmunga uns soluços embolados e repuxa os cantos da cara, é assim que ele chora.
E teve o cuidado de fechar as janelas quando a chuva desabou, vê de relance a claridade
turva de lá fora, mas não se interessa. As gentes ainda devem assistir as suas televisões,
ainda devem chegar do trabalho que não foi à falência ou não é dos que estão fechando as
suas portas, os vizinhos que não sejam dos que tomam banho de chuva com seu guarda-sol
também murmuram que se sentem sós, pois o estranho nunca é estado permanente, mas
estamos muito próximos disso. Esfriou, põe-se uma bermuda e uma camisa, mais longos
segundos sem saber o que fazer ou para onde ir, as paredes não o inspiram coisa alguma,
então está escovando os dentes e se olhando no espelho, não chamará o outro dessa vez. O
mundo se alaga lá fora, e ele vai dormir. Não prega a vista por muito tempo, se ainda o cabe
considerar, resta quase nenhuma graça em enrolar-se nos lençóis dessa maneira, ou ficar de
olho no que a janela deixa insinuar da chuva, raios frios, movimento embaçado, coisa que de
tanto se repete se aborrece, mas não desvia a atenção, que na verdade não cai sobre lugar
algum, é indiferente a si mesmo se dormiu ou se só é mais um sonho com sensação de
atenção torta. E vêm uns pesadelos, mais pensados que vividos, do fantasma de Júlia o estar
vigiando pela fresta da porta de um certo quarto, o rosto branco a esconder-se e cortado por
possessão demoníaca, ou menos que isso, que não é para tanto, jeito de diabo que tem
motivos para sê-lo e aquela adstringência de quem quer gemer por dor, mas evita. Ou sonho
com relance de um rosto do qual mal se lembra a saltar táxi adentro e se apagar. Ou a
procissão marchando que segue ainda mais extensa e silenciosa na cidade escura, aí sente-se
como se desse um rasante nessa direção, tornou-se gaivota que bica e rouba do lixo, mas não
previu que acabaria por afundar, segundos que sejam, e resta a sensação de voltar rápido
demais à superfície, mas o acompanhou a embolia e não conseguiu emergir. Abriu os olhos de
sobressalto inundado de uma sensação das grandes.
Acorda chamado por não se sabe o quê, um debate da vida que se eriça desde lá de
dentro onde jazem os elementos secretos do coma, e eles respondem a uma presença
tenebrosa do presságio que parece ter se fechado sobre as coisas, ao que não se sabe ao
certo de onde veio, se uns ventos indecisos o trouxeram, ou se foi a chuva, ou se sempre
esteve consigo e por acaso acordou. E agora, no estado de vigília, a boca entreaberta e
respirando fundo, muito se revela via adrenalina irradiante que o faz formular um postulado
sem querer, ei-lo mais ou menos, não sei por quê, mas existo, apenas sinto. E estou
condenado a me contradizer, sonhando coisas sobre o nada, mas adiando o encontro até não
mais poder. Não estou certo de que quero morrer, ainda que seria a morte um erro do qual eu
me esqueceria para sempre, que não me atormentaria. Então volve a cabeça aos dígitos do
despertador, e como se saído de uma caverna tão profunda está a sentir que os sons das
coisas novas o machucam, o tchá da chuva ao longe, tambores de canibais, ou mesmo a
claridade ofuscante que é tímida no escuro mas ainda mora lá, então já deve alguma antiga
vez ter vivenciado essa impressão, ainda que caiba repensá-la novamente, já que o rio no qual
já se entrou uma vez é diferente duas vezes, a primeira de todas sendo por você mesmo e
depois porque ele não te esperou, então, vivenciado essa impressão que ser não dói tanto
512
assim, é que tudo a longo prazo se cauteriza, mas estar dói bem mais. Duas e vinte e nove é o
que os números todo pálidos insinuam marcar, mal piscou e as trevas correram rápido,
engoliram a umas coisas e cuspiram outras mais, são duas e trinta de escuridão da
madrugada. E ele não está certo se quer morrer, ou talvez isso venha a se alterar a depender-
se do como, já teve epifanias a sentar-se numa latrina, ensaiou a habilidade esquecida de
chorar lá deitado num chão de cozinha, não é de se espantar que chegue à conclusão da sua
vida por encarar um relógio, por encará-lo e por ouvir essa confusão de orquestras, muitos
instrumentos falando de coisas muito confusas, e um parece desprender-se de todos os outros,
um coro inicial onde alguém ousou cantar mais alto e a partir de então rascunhou-se toda a
imprevisibilidade do futuro, satanás que deu um berro, engasgou ou riu-se do roteiro de deus, e
até hoje ouvimos esse eco dissonante, deve mesmo ser esse grasnido sufocado pela chuva,
mas escorrendo, perdurando até que os sentidos o ignorem como antes. Não, mas grita uma
vez mais, e uma outra, que não é nenhum réquiem, e os escândalos de cães não têm um
roteiro que nós entendamos, quando se define a vontade de uivar à lua ou de responder ao
irmão que cantou sofrendo a morte do dono ou pensando ver espíritos do além. O cão do
vizinho está a latir, o cocker spaniel delator, que por temer a tudo, a tudo percebe. Alex
congela-se na cama, não pode ser, se diz, mas realmente pôde. E de tão impressionado que
está, deve mesmo estar ouvindo coisas que não existem, que as orelhas aguçadas feito de
lobo ao se balançarem de levinho devem seguir também o ritmo da imaginação, não é que a
porta da sala esteja com certeza sendo aberta por um arrombador que não precisa forçá-la,
mas que com algumas pancadas, com técnicas da mais refinada sutileza da segurança, assim
consiga abafar umas poucas batidas mais evidentes, ao que escorregará as trancas porque a
mão soube exatamente onde tatear, giraria a maçaneta e se poderia dizer, caso viesse um
vizinho à janela porque foi acordado pelo cão, que essa fechadura da porta sempre emperra. E
Alex se disse que, imaginação ou não, tinha pouco tempo.
Rastejou pelo chão e tampou a própria boca para que a tosse não o traia, tateia pelo
carpete em busca da sobreveste que deixou jogada, vai precisar dela. E então não pode
respirar e todo movimento é como uma câmera lenta que resolveu ir bem depressa, ao que de
tão rápido e em silêncio não pode exatamente saber o que está fazendo, mas rastejou e pôs-se
atrás da porta. E então, o silêncio. E ela começa a se abrir. Está se abrindo, e o vulto começa a
despontar. Desliza sem se revelar, ninja caminhando pela seda. Pode vê-lo num relance, essas
bem cortadas mechas grisalhas de um sujeito que outro dia esteve a remexer no seu lixo, traje
a rigor de funeral e porte de sacerdote que já vem preparado para a extrema-unção,
arrependimento sem que nem se o peça, para os pêsames familiares e se houver tempo para
uma última confissão, se vir a calhar com canonização, amém. Mas este é o senhor Edward e
ele talvez não compreenda que o sono pesado de Alex apresenta os seus momentos de
exceção, que o medo dele unido ao grasnido do cão arquitetaram mais sentido às coisas do
que os distraídos enxergariam, o mercenário subestimou que você pusesse a se arrastar sem
derrubar um abajur no desespero e sem gemer um grito sôfrego de merda, que o denunciaria e
os poriam num jogo de gato-e-rato até que o último se cansasse, mas o distinto senhor Edward
parece mesmo estar com pressa, porque vem tirando a mão de dentro das roupas e a sua
pistola será apontada para os travesseiros cobertos na cama, que com alguma tolerância e
com ajuda do escuro até se fazem passar por pessoa encolhida, e o seu matador, que só por
acaso não mira para trás da porta onde você implora para que ele não lhe ouça a batida de
coração, faz que vai dar um passo a mais, antes que decerto descarregue um projétil
silencioso, que apenas um já é suficiente, um rosnado seco que a gente que não está
interessada em estardalhaço usa nas suas armas, disparado onde devia estar a sua testa.
O instinto diz a Alex que tem de ser agora ou nunca, e que ainda pode ser que ambos
momentos acabem por se confundir na linha do horizonte, no infinito, mas enfim, segura a
porta e a joga com forças nas costas do assassino, pá, não, isso não é um tiro, é o que
atrapalha toda a quietude de antes com som de porta a bater-se contra corpo, ouve-se um
arfar, e tudo muito rápido, então ignora-se se realmente Alex vê tudo isso, mas é claro que vê,
se não não se lhe estaria mostrado, mas o que ele realmente pensa é na tolice de não ter vindo
dormir com ao menos uma faca, não poderia ir na cozinha tomá-la depois que ouviu indícios de
arrombamento, o senhor Edward o teria visto e tudo estaria perdido, mas simplesmente não
poderia ter optado antes por uma faca porque só agora, e ele diria que não deve explicações
para isso, resolveu continuar vivo.

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A sua visita se desequilibra, cai de bruços para frente, e para a sorte de todos nós ele
também deixou escapar das suas mãos a pistola, mas que não se pense que Alex pulará em
suas costas e se emendará numa briga de corpo para disputá-la, dessas que no final ficam um
sobre o outro até ecoar o tiro, e por longos instantes pairaria aquele suspense de não saber
quem na verdade foi atingido, ao que ele imagina que deveria se perguntar, será que fui eu, ou
ele?, bem, vou esperar alguns segundos e ver se sinto as tripas se expressarem. Mas ele não
tem tempo ou fôlego para isso, tudo o que na verdade faz é aproveitar para saltar da escuridão
e escapulir pela porta, correr com as mãos na cabeça em direção da porta de casa, que o
desgraçado fique lá no escuro a tatear pelo que perdeu até que se dê conta que sua presa já
sumiu, ai, não, parece que ele já encontrou a arma, escuta esses tiros de silenciador que não
acordam a vizinhança mas atravessam paredes!, e se encolhe e se bate no sofá, e cuida para
não tropeçar nos restos que deixou espalhados, o desgraçado atirou atravessando as paredes,
fez uma fileira de buracos, pensa, me perseguira sem sequer me enxergar, descarregou aquela
merda, mirou no escuro e confiou na perícia, essa não, a julgar que não sinto dor, só uns
estilhaços me devem ter pego, mas que foi por pouco, foi.
E sai a toda de casa, o senhor teve lá o seu cuidado de bater a porta após entrar, não
abandonou todas as regras da gentileza, mas Alex não pensará em trancá-la para que não
venha por acaso a entrar mais ninguém, na verdade pensa em atirar-se pela sacada, porque
descer todas essas escadas com a morte na sua cola é inadmissível, assim que fizer a curva
de um andar ao outro lhe virá um balaço certeiro na garganta, mas se saltar quebra lá umas
costelas, perna, ou suicida-se que é para facilitar o trabalho do gentleman sem propriamente
abandonar a honra, mas foda-se a honra, o que ele não quer mesmo abandonar é a vida. E
não se deu conta que já corria escada abaixo ao pensar todas hipóteses que de nada lhe
servirão. Não olha para trás e abana a sobreveste para cima e para baixo, engraçado, está
sendo ridículo, ele se diz, dane-se, que isso pode servir para atrapalhá-lo, mas acha mesmo
que ele erraria e atingiria a roupa ao invés do seu cérebro?, não se sabe, não quer saber e tem
raiva de quem sabe, e tenho dito. Está no segundo andar. Mas a chuva não abafa a correria
que se segue lá em cima. Ele está vindo para você, e a inteligência instintiva, que deve ser a
melhor amiga que tem, diz que se você se meter pelas escadas ele tem como mirar, atira e
acerta, o estará esperando porque não vai cometer o erro de não prever uma outra vez os seus
movimentos. Então esquece o perigo e deposita suas chances na sorte cujo hábito é
abandoná-lo, só no desespero para jogar com ela, põe as mãos na sacada e não pode
demorar. Se ergue e debruça as pernas parecendo um sapo a mancar, evita uma crise de
tosse a socar o peito e pula sem gritar, mas a sussurrar, puta merda. A chuva açoita sua cara e
ele bate as asas feito pássaro que lançou-se de um ninho muito alto enquanto a mãe dormia,
adeus, pobrezinho, e não enxerga para onde há de cair, apenas como hão de acontecer as
coisas, ele cai, algo que não se precisa saber para que aconteça, caiu, e a dor que sente o
anima muito porque o diz que ainda está vivo.
É que entrou pela água da fonte, transbordando-a feito piscina suja a todo canto, que
lambança, mas não foi à toa que disse da sorte ser sua inimiga declarada, desde que ele deve
ter se mostrado ingrato com a vida, ainda no berçário, e ao que não quebrou as pernas ou
costela ou o pescoço, se desequilibra na tangente e dá com o braço na borda da fonte. Engole
o soluço e perdeu tempo, pensa que pronto, agora vem o fim. Mas o anjo quebrado do cântaro
faz sombra sobre si, o vulto negro que estiver na sacada lá em cima não pode encurralá-lo. E a
velha do primeiro andar, guarda-sol e óculos-escuro, o olha, deve se assustar, e sorri. O tiro de
risco esmigalha um naco da cabeça do velho anjo, a julgar que não foi isso um raio fracote que
resolveu ali cair, e não o acerta, mas o desgraçado tentou, e que ele tente já te agonia, e se
esmigalham uns pedaços de cimento a cair sobre você.
Alex está com a mão no ombro machucado, esqueceu-se da dor e rolou para fora, não
calcula coisa alguma na sua corrida agachado, e implora para que de repente o caçador se
satisfaça com a velha que gosta das noites de chuva, que arranque o coração dela, feito o
mercenário da branca-de-neve, e vá entregar à madrasta dizendo ser dele, enquanto isso
nunca se saberá em que ruas ele estará a mendigar, talvez não possa realmente ser banido
enquanto não haja uma foto de seu cadáver no jornal, como se isso realmente importasse ou
houvessem muitos em circulação, mas ele corre, é isso que faz. Abre com as mãos rígidas o
portão da rua, desse átrio acha que nada pode atingi-lo, ao que se arrisca um tanto, seja por
hábito de loucuras, ninguém sabe, a ficar parado, isso mesmo, parado e ver se enxerga a algo
que desça pelas sacadas. Certo, vem correndo pelas escadas aquele vulto escuro do
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assassino que o perseguirá com rapidez, satisfeito em perder seu tempo?, sim, satisfeito, ele
se diz, e debanda para fora desesperado. A rua escura o recebe sem boas-vindas. E ele corre
como nunca antes deve ter corrido rumo à esquina alguma, mais rápido que a sujeira que sobe
dos bueiros e que tentam segui-lo nessa ladeira abaixo. Está tudo vazio, não pode sequer
contar com mendigos que dormem nessa rua, porque eles não existem, ou contar com
eventuais saqueadores que estejam providenciando ali por perto um novo carregamento, essa
chuva deve tê-los espantados a todos, exceto, é claro, ao meu assassino. E olha para trás mas
não pode enxergar a muita coisa. Melhor assim.
O táxi negro esquecido na esquina será a sua escolha. Abre a porta de trás e se joga
deitado lá dentro.
– Anda!, anda!, anda com essa bosta pra qualquer lugar!
– Você de novo? – o motorista acorda todo afetado –, é você mesmo, e de novo.
– Anda!, anda!, vai, vai, vai – e se contorce.
– Que que há?, que que há?
E o vidro traseiro se parte estilhaçando-se todo.
– Porra!, porra!, porra! – começa a agonizar.
– O que você tá fazendo com meu carro, rapaz?, o que você pensa que tá fazendo?
– Arranca!, cala a boca e arranca com isso – chutando o banco.
– Me convença.
– Te convencer?, vão me matar – enforca o ar.
– É aí que vão me matar também.
Não tem o que fazer, sente-se em farrapos, a vontade de esganar o motorista, meu deus,
meu deus, não tem sequer tempo para matá-lo e é louco, mas não a ponto de camisa-de-força
para espiar o que deve vir agora a descer a rua, tudo o que pode fazer é dar um soco de
vingança na cabeça do filho-da-mãe, um suficiente para que doa e ele resmungue e tente se
virar para trás para segurá-lo pelas pernas, quem sabe, e prendê-lo e atrapalhar os
movimentos até que o assassino chegue e possa entregá-lo, ao que falará, o prazer foi meu.
Mas o taxista mesquinho não poderá fazer nada disso, porque quando se vira furioso para trás
encontrará nada mais que sua porta aberta, estilhaços caído aos fundos e nenhum vestígio de
seu passageiro. Mas é bobagem achar que Alex foi assim tão longe, o que seria humanamente
impossível, é um sedentário que julga ter câncer e não um atleta, e some-se tudo isso a
possibilidade de estar com um ombro deslocado, e por conta de todos esses fatores ele está
mesmo é capengando pela calçada a se meter num beco, todo encolhido e buscando
ziguezaguear. E, então, a dor. É dor quente, e não dor de morte, mas dor de navalha que o
rasga sem pedir licença e o abre para se aconchegar na carne mas sem se estabelecer, tomou
um tiro antes que sumisse na escuridão dessas sujeiras, sequer pôde ouvi-lo disparado, ele
resmunga de dor e morde a própria boca, ao menos foi só um tiro de raspão. Mas vigia o talho
ensangüentá-lo num corte no braço, na escuridão sangue é preto e não vermelho, na escuridão
sangue não tem cor-de-sangue mas de sujeira, e imagina que esse assassino deve ser desses
que o orgulho não o permite errar, deve ter mesmo mirado no pescoço, ao que deve estar
furioso de não tê-lo abatido e vai intensificar a caça.
E corre uma corrida que mais é sair se batendo nas paredes que qualquer coisa, derruba
umas lixeiras no caminho, faz estardalhaço, uns gatos pretos dão miados assustados, rasteja
sem fôlego, tosse-tosse-tosse, diz-se que o segredo é respirar e fazer muitas curvas, mas não
há nem fôlego nem outras direções, e o fim da linha que é um muro. Saltou numa lixeira, e eis
o preço a pagar, bater e machucar o joelho, mas é corajoso e apenas resmunga, ao que salta
em direção ao muro, eis o preço a pagar, dar com o peito e faltar-lhe o ar, urf, sacode-se com
as pernas pendendo-as para baixo, que forma humilhante de se poder morrer, uma coisa
dessas não pode acontecer, então dá um jeito de esticar-se todo, curvar-se e jogar-se para o
outro lado, pensa que graças a deus ele não o deve ter enxergado e não atirou, mas já
amaldiçoa a quem rogou depois de cair rolando por uns sacos de lixo dessas vielas onde
ninguém entra para ver o que acontece, e cortar-se com alguma coisa pontiaguda, tétano letal,
não importa, pedaço de lata, espeto-de-pau, caco de vidro, não interessa. Resmunga de
cansaço, mas se ergue tropeçando, tropeça tanto que despenca com a cara no chão. E se
levanta uma vez mais, os gatos do outro lado rosnam seus crunhéus, sons de lixeiras
revirando-se anunciam que ele está a te seguir.
E então você não sabe muito bem onde foi parar, apenas correu e revirou-se por lugares
sem poste e transbordando a nojeiras. Chega a uma avenida desolada por dias, senão meses,
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de influência do livro da capa preta, é que foi forçado a sair de casa e descobre que restou
pouco do mundo que conhecia. Há um carro batido no hidrante que cospe das fendas suas
águas e tudo isso mistura-se à chuva, não há ninguém, nenhuma vivalma, está tudo escuro,
escuro, abandonado, soturno e desgraçado, pensa em entrar no carro mas é claro que a chave
não estará na ignição e ele não é capaz de fazer ligação direta, é sujeito comum que só
conhece dessas coisas por ter ouvido falar, não tem tempo a perder, a iminência da morte o
ensina que não há tempo a arriscar, então estará correndo pelo meia da avenida, bermuda e
camiseta, sangue e casaco rasgado, correndo, correndo e correndo ao mundo ameaçador. As
bancas de jornal fechadas, tudo, tudo, a idade das trevas finalmente chegou. Tropeça adentro
de uma rua, se apóia numa parede de muro qualquer para tomar fôlego, olha para trás e não
enxerga nada. As calçadas estão cheias de papéis velho, não só elas, mas as ruas, e são
tantas, são contas de luz, de água e de telefone, o pedido de divórcio que a mulher atirou pela
janela quando teve de preguiça de pôr o lixo para fora, lixo amontoado e uma multidão de vira-
latas a saltar dos esgotos e a usufruir um teco do apocalipse, fuçando e rosnando e mostrando
os dentes uns aos outros, que é para evitar concorrência, mas dizem que no fim apenas as
baratas sobreviverão. O clarão vermelho e esfumaçado de carro incendiado o diz que é melhor
não ficar aí, que não pode se deixar ser visto, mas ele é esperto, ou muito tolo, de espreitar na
direção da qual veio, averiguar que de fato está tudo no completo caos, mas não num caos que
se movimente, então é, ele se diz, parece que o despistei. E obviamente não há de se confiar
nessa boa-vontade abençoada que algum deus distraído possa ter deixado jorrar para cima de
sua cabeça, então corre, arfando e se curvando, pára, pára, não quer mais correr mas diz que
se precisa, e vai subir ladeiras, conquistar espaço em ruelas a chutar as porcarias entornadas
pelo chão, latas de refrigerante, restos de comida, desperdiçaram uma bela porção de
macarronada. Embalagens velhas com moscas e baratas disputando seus encantos. É melhor
não voltar às avenidas, porque ainda se tem lá uns postes, não é como se vivêssemos um
blecaute, só é como se estivesse bem adiantado no caminho para um. Aí já está num blecaute
eterno. Fecha mais a sobreveste contra si, tosse, é forçado a parar e dar de costas numa
parede, são tantos labirintos que ele não sabe mais, caminhos empertigados de assalto,
estupro e pichação, ao que todas essas coisas também o abandonaram, ainda que devam
poder saltar de qualquer esquina. Deve estar febril, essa sensação ruim de um frio dilacerante,
massageia o joelho por ser a única dor da que pode tratar, é, não tem competência de
averiguar sem um espasmo a situação do ombro, tampouco saberia fazer uma atadura no
sangue que escorre e faz o seu braço trepidar, sou um completo inútil, sorri, largado não sei
onde, possivelmente morrendo, que não deve somente um estouro de miolos como na ficção
para me abater, esse corte e cansaço já devem aos poucos dar cabo. Então caminhou com
pensamentos que ajudam o frio a fatigar-lhe, a vida já pareceu cansar-se de si mesmo e não
resta mais fuga ou ímpeto, esperanças ou todas essas patologias, apenas frustração,
desconforto e liberdade.
Encontrou, em um outro beco conurbado a sabe-se lá onde, um tonel de fogo que está
quase a se apagar, a princípio não entende e não se pergunta por que estaria ali, acontece que
os trapos, lençóis velhos e colchões rasgados se confundem com uns mendigos, eles não
parecem mesmo se importar de ele achar que está secando as roupas por estar ali, próximo
como quem não quer nada, do fogo, se livrando de uma pneumonia e tudo mais, mas por
alguns instantes distantes ele teme o canibalismo. Entende-se mais do que nunca por um
deles, agora não se faz mais diferença. A morte e retornar à escuridão a tudo iguala, e ele não
quer se adiantar nesse pensamento para não se descobrir onde pode acabar chegando. Certo,
então está num lugar diferente, tosse um bocado mais, assim, apoiado numa parede
empatanhada de lama nos rodapés, a qual o sangue que acaba de cuspir vai se juntar. Certo,
então teima em pensar se a sua situação não é um absurdo, isto é, em uma longa e distante
noite perdida no tempo enquanto valor e enquanto detalhes, ele estava certo que em algum
momento havia de se fazer uma escolha lúcida, dessas que anulam as bifurcações e definem a
maior das coisas da nossa vida ou o seu preliminar fracasso, mas eu não sei, ele vai se
dizendo, de que me serve essa lucidez que só me usa a favor dela, não o invés, ela um dia me
teve, e agora abandonou-me de forma que nem anos deitado num divã e choramingando e
fitando o teto hão de me consertar depois de ter visto tão de perto a matéria-prima que modela
a todos nós, e não é que do pó tenhamos vindo, ainda que seja a ele que regressemos, é de
algo muito mais desconhecido e baixo, desse trauma não se há retorno.

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Agora está caminhando uns degraus acima, raspando-se os braços, assim, de tão
estreitinha que é a via, o que pretende é bisbilhotar se a rua adiante é escura o suficiente para
que vá rastejando por ela, e como são as sombras que a chuva produz, de repente se não há
uma abóbada onde possa cochilar, que dormir já não pode mais. Os céus roncam e passam a
chover com mais força, não é coisa que o incomode mais, então ouve trovões monstruosos,
desses que parecem estar próximos e derrubando a tudo que estiver próximo. Há poucas luzes
nas janelas, dessas que tremulam, podem ser de abajur, coisa de quem raciona energia ou
está aproveitando bem melhor a noite, ora, qualquer um estará aproveitando bem mais que ele,
que não está curtindo o filme da madrugada à meia luz, a reprise do talk show idiota, ou antes
estivesse com a sociedade, que nem isso lhe restou, mesmo agora que ela esteja em todos
nós, seria um lugar onde algum esperto o diria, vê lá, agora sua maior loucura é meramente a
de sobreviver. Sentou-se na calçada e apoiou a cabeça num poste, qualquer coisa ele há de
dormir naquele ônibus carbonizado, vítima de quem sabe uns coquetéis molotovs e forte
provisório para umas anarquias, tiroteio ou onda de arrastões, não sabe bem, mas foi deixado
lá atravancando a rua e assim continuará até que se reconheça o desuso, bem, e então a
cabine telefônica com o fone fora-do-gancho, balançando enquanto o vento o açoita porque já
não há mais vidros na parede e tudo mais, mas espera, e se funciona?, e só não se levanta de
súbito porque dói. Vai trotando e rezando, ainda que não se saiba para quê, apenas esperando
que um acaso maior que ele próprio possa pôr esse próprio acaso e nada mais a estar a seu
favor, o telefone está dependurado e pelo que percebe está mudo. Mas então o põe no
gancho, pára um pouquinho para olhar se nada vem de nenhuma direção, sombras crescendo
pelas paredes, sons de riso ou gente a espiá-lo e tramar umas atrocidades, mas não há indício
de nada, então pode deixar de ritualizar essa baboseira e tira de uma vez só o telefone. Põe no
ouvido mas não dá sinal, merda, fecha os dentes de raiva, então fica a clicar no gancho, clica,
uma, duas, três vezes, e já não conta mais quantas. E milagrosamente dá sinal, ao que tomou
um susto, certo, certo, agora se acalme e faça o que for preciso. Põe-se a discar a cobrar.
Vai demorar, ele se diz, então não se afobe, porque a chuva causa mesmo hiato nas
ligações, certo, até que não foi um tão grande. Está chamando. A demora de agora é por outra
razão, porque é madrugada e tem de acordar alguém, mas não é isto coisa que esteja
considerando, o que está é vigiando todas as direções para prevenir-se de um assassino.
Chama, chama, chama. E então um estalo, teme que tenha faltado a linha, mas a voz cansada
do outro lado vai recepcioná-lo.
– Alô.
– André?, André? – aproxima a boca.
– Alex?, que barulheira é essa?
– É a chuva, ou uma interferência – pigarreia. – Escute, estou na merda.
– O que há?, que horas são?
– Eu não sei, escute. O assassino entrou na minha casa, eu consegui fugir, mas estou
ferido, ele atirou em mim. Eu acho que quebrei o ombro, eu – e ri – preciso de ajuda.
– Espere, fale devagar, fale com calma, ele entrou na sua casa?
– Sim, e não tem como me manter calmo, as ruas estão horríveis, estou seminu na chuva e
ele deve estar por aí me farejando, eu não sei...
– Você não fugiu?, não correu?
– Eu o despistei, cacete!, mas ele pode me encontrar.
– Certo, espere um pouco, é claro que vou ajudar, onde você está?
– Venha me pegar, venha de carro, vem, vem.
– Onde você está?
– Eu não sei – pára, arfando. – Espere na linha, eu vou procurar uma placa, buscar um
nome de rua, alguma pista.
– Não demore, ande logo.
– Eu não sei – estendendo a cabeça aqui de dentro – se sequer há um endereço.
– Vá ver, porra. Se apresse.
– Espere – então põe o fone sobre a parte de se discar, e se foi a correr.
Tem de ir até a esquina, procura, gira em torno de si mesmo quando desoladamente não
encontra nada, a julgar pelos hidrantes ou até postes que se vêem arrancados por aí, não é de
se espantar que tenham explodido umas placas ou as tomado para um fim de diversão
qualquer. Mas logo ali no meio da lama está uma, não sabe dizer se dessa rua ou de alguma
próxima, mas a pior das hipóteses é que seja uma placa de algum canto completamente
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diferente deste da cidade e que por vias tenebrosas tenha vindo parar nessa poça de lama.
Ainda assim se abaixou e está a enfiar a mão na água suja, lê o nome de que precisa, larga e
torna a correr de volta.
– Alô, ainda está aí?
– Estou, está chovendo pra valer, estive aqui ouvindo.
– Então, eu não sei se esse nome é mesmo o da rua, está tudo arrancado e destruído, mas
preste atenção, eu estive fugindo por uns becos, não posso estar muito longe de casa – diz o
nome do lugar, alguma coisa fulano-de-tal. – Essa rua tem um ônibus carbonizado, repito, um
ônibus que atravancaria o trânsito, então, você tem essas referências, agora me encontre,
certo?, pelo amor de deus, se apresse.
– Está certo, mas você está bem?
– Apenas venha – pigarreia –, por favor.
Ou a ligação caiu, ou do outro lado alguém deve estar correndo para atendê-lo. Algum dia
essa sua dependência por André tem de vir a acabar, coisa de mãe sempre disposta a oferecer
a barra da saia, mas não hoje, é tudo o que se diz, apenas não hoje, hoje realmente precisa de
alguém que não seja ele mesmo. Sai da cabine telefônica, lamenta um pouco, e então a dor.
Só depois de senti-la consegue assimilar o som de coisa cruzando o ar, a dor na perna o faz
redescobrir-se na dor sem que mal se dê conta, porque não pode raciocinar, e quem sabe um
dia venha a se relembrar de como isso aconteceu, por agora contenta-se com o grito abafado e
a queda, tomada uma rasteira que atinge os ossos, então espatifa-se no rodapé, merda, é isso
que pensou, e merda, merda, merda, essa não, já é o que pensa quando vê a perna esquerda
ensopada de sangue, a aperta e ela treme e formiga, alastrando a impotência de andar. E
então pode assistir este caçador, não um qualquer, é alguém completamente qualificado para
essa missão, mas que também seja sincero, não é das missões mais complicadas, então pode
assisti-lo despontar da chuva, acaba de chegar de junto dos escombros do ônibus, não pode
se esconder de alguém que foi feito para farejá-lo e já está cansado de conhecer os debates da
sobrevivência humana, sempre soube como agiria ou deixaria de agir, pois é, você lhe é tão
misterioso, Alex, que está brincando com você. Podia ter te acertado o peito, então o que quer
é fazer com que doa. Sente raiva que é para enganar a dor, mas não raiva que o ponha a
avançar com as mãos nuas rumo a alguém que pode mirar e te fazer com um gatilho esquecer-
se de quem é para sempre, ou nem esquecer-se, que para isso é preciso algo que esteja a não
se lembrar, então tudo o que pode fazer é rastejar, pôr-se de pé, talvez não possa acertá-lo
com a cabine entre vocês dois, talvez ainda não o queira, céus, não pode apoiar uma perna no
chão, ela se mostra fraca e te falta, e te falta enquanto ainda assim dói, você a aperta e não
cessa de sangrar, manca ao primeiro beco, vai se esbarrando às trevas, se algo pode protegê-
lo é lá que estará.
Ele corre enquanto pode a ranger os dentes, bufa, com um rastro de saliva pendendo-lhe
da boca rumo às roupas. Não é exatamente esperança que sente, é simplesmente luta, não é
fé, deve ser o reflexo de como se lhe batessem no ossinho do joelho que faz a perna toda se
levantar, eu sou, e chora internamente enquanto corre, essa grande reação de uma causa sem
querer, de algum erro. Carla tinha razão, é assim que há de sentir-se, como um grande erro,
um que deve ser apagado. É um beco sem saída. Sem curvas. É longo demais para correr sem
que ele o encontre, agora você está a mostra.
Olha para trás, vê apenas a silhueta letal. Esse sonho.
O sonho em que foge noite adentro e toma um tiro pelas costas. No sonho também se
virava e via apenas os contornos dessa sua morte, um ser que não é que não possua um rosto,
apenas não pode vê-lo, ao que chegou a pensar se não seria o outro, mas não haveria por
quê. Então sorri, porque é um absurdo que possa ter feito essa previsão, mas não pode sentir-
se triste, porque algo que ocorre da mesma maneira que se antevê há anos é uma prova de
que o destino nos quer para seus fins, e talvez por chegar perto de descobrir quais eles são, e
de tanta ousadia quase anulá-los, é que esta falta de rosto pertencente a um certo senhor
Edward está a persegui-lo. Eu não vou morrer com um tiro nas costas, diz o trapaceiro que
entende como as coisas devem ser e ainda assim as rejeita, porque o dever não é o que se
quer, não aceita essa responsabilidade, eu não vou morrer com um tiro nas costas se eu puder
evitar, e se eu puder evitar não morro nem com tiro, nem com sangue a escapar-me, nem com
nada. Corre, mas vira-se para olhar o seu algoz, contorno ceifador ao qual só falta a foice, e o
seu desafio deu certo, não se encara um homem sem despertar-lhe a rebeldia do orgulho, o
tiro que agora nunca saberá se esteve predestinado a cravar-lhe nas suas costas, ou se
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predestinado também estava o seu rosto a colidir no asfalto sujo e ali permanecer até chegar o
bafo frio e sem graça da inexistência, enfim, este tiro é disparado, ouve este estrondo mínimo,
este tiro é disparado e o atinge na panturrilha, a dor, o espasmo, porque ele resolve te fazer
sentir ainda mais, e ouve a chuva abafar o breve riso de jactância.
Alex não está morto, mas tropeçando, grasnando, partindo os dentes de tanto que os finca
uns nos outros, e pôde alcançar uma ruela que logo se abriu, e não é que pense que essa lhe
é uma chance, ainda que engatinhe a ralar a mão no asfalto essa escada tortuosa acima, não é
que vislumbre um grande arroubo de esperança, mas não morrer na hora que lhe foi marcada
já parece uma afronta digna de ser a sua última. Nem que tenha de mutilar seus joelhos ao não
perceber onde os mete, a fincá-los nos cacos de vidros que se esparramam pelos últimos
degraus, o gemido de cordeiro imolado já preparado para o sacrifício e que ainda insistiu em
revoltar-se. Põe-se de costas na parede ao lado, assim o assassino não poderá atingi-lo, o
dará tempo para sabe-se lá o quê. E é a olhar o chão que entende o que precisa ser feito. O
que precisa e o que ele quer.
Apanha um pedregulho qualquer e o atira com força às lixeiras adiante. O som das latas
revirando-se darão a impressão de um homem que correu trombando nelas. É claro que o
senhor Edward não há de ignorar um sinal da posição da sua caça, tudo deverá definir o modo
como ele virá, andando ou a correr, se deve se virar atirando na direção que sabe estar a
presa, se espera para contorná-la e assaltá-la com precisão, apanhá-la com a guarda baixa e
do ângulo que menos possa se defender, tudo isso deve influenciar o raciocínio de um
assassino, ao que Alex vê-se obrigado a igualar-se, e talvez por sangrar intensamente é que
tenha esse fluxo de simplicidades, é que se a dor dos mártires purificaram a humanidade, a dor
de alguém há de purificar o seu próprio pensamento, onde tudo torna-se mais claro do que ele
esperava e do que antes entendia, tem de apenas deixar-se incinerar e purificar-se na dor. E
vai enganar o senhor Edward pela segunda vez essa noite, que muito provavelmente julgou
estar perseguindo uma raposa amedrontada, coisa que não é de todo mentira, mas a
considerar que a presa estaria estabanando-se pelos cantos de algum lugar e não o esperando
com um pontiagudo caco de vidro nas mãos. Devia ter-me matado enquanto pôde, pensa a
fúria e só não o faz em voz alta para não se comprometer. E os passos dele estão vindo a
espatifar as poças d’água. O rosto maduro, cansado e grisalho desponta da saída da viela. E
não foi perdoado.
Porque ele chega a apontar a sua arma na direção onde está certo que se encontra a
vítima inutilizada, mas não morta, e antes que possa dar-se conta que não há nada, talvez o
assassino, que não merece mais receber um nome, não tenha tido sequer o tempo de perceber
que algo nas sombras pouco atrás dele se mexia, e essa coisa deu poucos passos até que
atingisse o seu pescoço. E teve o caco enfiado na jugular, o som de organismo frágil
esguichou, então tudo o que virá a seguir é muito, muito rápido. Alex o apanha por trás e o
corta o quanto puder e quer fazê-lo mais e mais, mas tem de segurá-lo, ao boquiaberto
desconhecido, sufocando a exibir a língua, porque ele tenta mover o braço que segura a
pistola, ainda quer dar seus tiros, agora somente por vingança ou por instinto por terem os dois
compartilhado de desespero, um por sangrar lentamente até a morte, o outro por estar tendo a
garganta aberta. Alex segurou a sua mão, os dois lutam e juntos dispararam os tiros para o
vazio, os becos os recebem. O assassino joga-se com o corpo para trás e faz Alex bater-se
contra o muro, resmunga de fraqueza mas não vai parar de cortá-lo, o segura, atira, atira, atira,
o silenciador de cano-longo da arma sussurrando seu espirro breve que estilhaça as paredes, a
chuva os abafa, não emitem som algum, estão perdidos, esquecidos, esse encontro jamais
será lembrado. E então ficam com este chiado nojento, esse ronco bronco de se ter a traquéia,
a faringe rasgadinha, as forças o estão faltando, Alex desfinca o caco do pescoço e o enfia
uma vez mais, e repete, e outra, ruge enquanto o lasca, o assassino faz que vai se curvar,
ainda tenta dar-lhe uma cotovelada, de tão desastrada gera uns risos que também são de
agonia. O desgraçado vai morrendo em seus braços, não oferece mais resistência, eis uma
lambança de sangue em que os dois agarrados se confundem em que sujeira veio de quem,
agora os papéis se inverteram, o assassino que não merece ser nomeado por estar prestes a
morrer não é menos assassino que o que ganhou mais tempo de vida, ainda que isso não faça
a menor diferença. Mas Alex se diz desgraçadamente que pronto, agora já fiz de tudo. E o
cadáver amoleceu a munheca e deu seu último grasnido, ei-lo apresentado com esse sussurro
de fraqueza e entrega, então suas pupilas se reviraram e ficam brancas. Alex não pára de
esfaquear, mas ele já se foi.
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O sangue está sendo tragado pela chuva, a descer viela abaixo junto a lama, aos ratos que
tomam carona com as nojeiras. Alex tonteou porque já deve ter perdido muito sangue, é por
isso que abandonou o estorvo para o lado e se preocupou, se é que o termo é preocupar-se,
acontece que apenas se ilumina acerca da importância das coisas, e em resposta tossiu, tossiu
muito, deixou o caco cair e olha a palma toda avariada por tê-lo segurado com força, uns
gotões de chuva caem sobre ela e a enxáguam, dói, a põe entre as pernas e grita para dentro.
Em seguida vomita, a chuva lava. E não tem mais coragem de olhar por muito tempo um
pedaço de corpo humano com o pescoço dilacerado, não é a imagem que o causa asco,
tampouco sabe se é asco o que sente, mas saber que foi ele que fez, e é fácil. Deu com as
costas na parede e descansou amaldiçoando a vida.

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Reconheceu o carro pouco depois de tropeçar para fora dos becos, retornou para a rua e a
princípio andou a esmo feito não identificando a nada, não vendo coisa com coisa e a fitar
embasbacado um rumo qualquer. Assim, tropeçando em obstáculos que no chão não havia,
tudo jazia turvo até que um relance qualquer o ajudou. Está ali, parado, estacionado como um
carro comum, feito um dos que estariam abandonados há dias, André devia é ter parado no
meio da rua, escancarado as portas e buzinado até que lhe atirassem ovos ou móveis das
janelas. Passeia na calçada, põe-se ao lado da porta do carona, a abre e se treme todo feito
cachorro molhado, entrou.
– Meu deus – André realmente se espanta –, o que ele fez com você?
– Olá.
– Você está podre. Está coberto de sangue – abre bem os olhos.
– Não é todo meu. Não tem um cigarro aí?
– Está pálido, e – ia falando, se interrompe. – O que aconteceu?
– Eu o matei.
André não o responde, fica por encarar.
– O matei – e dá com os ombros, porque é mesmo simples. – Ele me acertou.
– Depois que falou comigo? – agora ele olha por além do vidro.
– Sim, depois – e sorri. – Eu não sinto a minha perna.
– Você precisa de um médico – mas não se move.
– É, e de um cigarro.
André é uma imagem sua no espelho que não consegue identificar a si mesma. Ele é essa
rigidez de caráter e rosto conciso, você é a criança borralhona, após lambuzar-se corre a
choramingar das sujeiras que fez, que alguém tem de limpar. Essa noite cada um parece
chocar-se de uma maneira ao enxergar no outro alguma coisa de si, e ficam num silêncio
embaraçoso de quem não consegue se entender.
– Então – André parece não saber o que falar, melhor que dê logo a ignição – você está
bem? – é claro que não, pára –, digo – finge um riso –, não acha que vai morrer, não é?,
alguma coisa assim?
– Eu acho que não – futuca a perna e grunhe.
– Pensei que não se importasse mais.
– Me leve pra um hospital, por favor.
– Não serve.
E silencia enquanto está manobrando o carro.
– Porque – e demora para explicar – as filas estão cada vez maiores.
– E aí? – massageia a testa.
– Eu não estou certo... – que grande ajuda.
– Então me leve – gagueja –, me leve – me leve, me leve, me leve.
– Aonde?
O carro sobe pelo meio-fio para desviar do ônibus e faz a gente dentro chacoalhar.
– Para o teatro, me leve para o teatro. De lá chamamos o Dantas, eu não sei.
O silêncio deve ser de quem acata, e ruma-se às ruas escuras.
– E então, como é? – André perguntou.
– É como se eu fosse uma vasilha derrubada, um recipiente partido, meu conteúdo está se
derramando para fora, estou ficando vazio.
– Não – e se cala uns instantes –, como é matar uma pessoa.
– Eu não sei – com sinceridade. – Eu não sei.
– Então deve ser mais fácil do que parece.
Um tanto de silêncio não fará mal. O temporal não deixa que enxergue quase nada.
– Está tudo pilhado – André se debruça para enxergar. – O mundo caiu.
– Outro virá, um dia virá – murmura sem dar importância. – Eu não sei o que me deu.
– Por quê?
– De ter voltado naquela casa. Nunca foi minha. Eu sabia o que ia acontecer.
– Então talvez – se interrompe –, merda.
– O que foi?
– Escombros, vou ter de dar a ré, pegar a outra esquina – e chia ao mudar a marcha. –
Então talvez – continua o que tinha a dizer – apenas fosse uma loucura que quis fazer – risinho
consternado –, eu não sei.
521
– Eu não ousaria, eu não ousaria. Aquilo não foi loucura – soa um tsc, fecha os olhos e
descansa a cara na mão –, foi inconseqüência, foi um suicídio arrependido.
– Eu não sei o que dizer, acho que lamento.
– Sabe, eu me sinto realmente exausto.
– É que você está sangrando.
– É – aperta a cara –, e perceber isso só me deixa mais fodido.
Mais um tanto de silêncio não faz mal. O som dos limpadores de vidro é um convite para a
morte.
– Veja – André tateia algo dos bolsos da jaqueta, limpa e costurada, não é como você –,
tome o celular, procure na agenda a quem ligar e fale que estamos indo, certo?, entendeu?
– Estou morrendo, é diferente de estar surdo – encosta a cabeça no vidro. – Me dê.
Faz que força a visão porque a mesma miopia faz com que doa enxergar, não vai demorar
muito a mexer nas teclas.
– É inútil – apertando uns botões –, está fora de área, sinal fraco.
– É a tempestade.
– Você já ouviu falar – pigarreia –, merda – coça um pouco a garganta – que se a gente se
acostuma a se perguntar onde estou?, estou acordado ou dormindo?, vivo ou morto?, para
onde vou?, e se repete sempre pra criar um hábito, você acabaria se perguntando quando
tivesse lá os seus pesadelos, e dizem que você então acorda dos sonhos quando se descobre
dentro de um?, já ouviu?
– Ouvi uma versão que é acostumar-se a fincar a unha no sabugo.
– Acho a primeira mais dolorosa.
– Realmente.
– Eu tenho quase certeza que estou sonhando.
– Eu posso te garantir que não – e garantiu com a voz rouca.
– Estou lembrando das coisas com uma lucidez que me assusta.
– Como o quê?
– Eu e a doutora sentados num passadiço.
– Eu cheguei a conhecê-la, não?
– Chegou – suspirou. – Eu e a doutora, a moça com quem conversei – e começa a vomitar
as coisas –, acordar ao lado da moça que me abrigou, a irmã – tsc e mão na cabeça – do cara
que me abrigou, a desconfiança de meu mecenas, a puta que queria me furar, uns rostos que
eu lembro sem realmente lembrar, a briga do estacionamento, tudo isso.
– Eu não entendi.
– Estou repassando a minha vida, é isso que está acontecendo.
Espera que André lhe diga que ora, não trate como se fosse realmente morrer, deixe de
tolice, a vida não está passando realmente em frente aos seus olhos, mas o silêncio dele
revela que mais do que a sua capacidade de prever a gente mudou, talvez muito da paciência
que tinham contigo tenha também se acabado, então você sorri, que isso não precisa ser algo
tão ruim.
– Nós mudamos muito? – pergunta, por fim.
– Muito. Muito mesmo.
– Me vê um cigarro.
– Não sei se é bom.
– Anda, vai me acordar.
E o vê tatear os bolsos com bastante pressa, e joga no colo ensangüentado, e de repente
essa combinação proporciona lá um gosto novo, a carteira dos fumos, em seguida vem de
brinde o isqueiro. Você vai pôr o cigarro na boca, vai acender e suspirar de satisfação.
– Só abre um pouco o vidro – André aponta –, tá legal?
– Certo, ok – e o faz até que sinta gotas a entrar.
Silêncio, silêncio, silêncio.
– Em que nos transformamos? – torna a perguntar.
Silêncio.
– Nos primeiros homens da história?, monstros?, em nada?
E não há resposta.
– Esquecidos por opção, que esquecemos de todo o resto.
– Você viu aquilo?
– Eu não enxergo nada por esse vidro faz um tempo.
522
– Muitos, mas muitos homens saindo com tudo de um prédio.
– Parecem ameaçadores?
– Já tomei distância.
– Então deixe eu continuar.
– Faça o que você quiser – suspirou.
– Então apenas – e suspira ele também – me desculpe.
– Pelo quê?
– Não pelo que você está pensando. Mas por tudo, não sei.
– Eu não pensei em nada.
– Me ensine essa proeza.
– Você está mais perto da morte, é você quem devia ensiná-la.
– Se ela é o que está parecendo ser, não tem graça nenhuma.
– Ela – e ri – não deve vir com um nariz de palhaço, nem fazendo piadas.
– É que é tão normal quanto ir dormir.
– Deve ser um bom sinal. De que não está acontecendo de verdade.
Silêncio. Quanto mais dor sente mais acordado continuará. Essa é a sua garantia.
– Estamos chegando – André murmura porque não quer acordar aos mortos –, estamos
quase chegando ao teatro.
– Tudo bem – recosta a cabeça no vidro.
– Não durma.
– Eu não estou morrendo – e sorri –, só estupidamente cansado.
– Também quero pedir desculpas.
– E por que você pede?, quer redenção, feito eu?
– Acho que todo mundo precisa expiar – girando o volante.
– É a mesma coisa que dizer que a ordem do dia é questionar.
– Não, isso envolve algo de flagelo.
– Bem – pigarreia –, eu creio ter expiado os pecados.
– Você os pôs num livro. E agora não existe mais por que se importar.
– Acabamos mesmo com tudo, hein? – abaixa a cabeça e suspira.
– Acabamos.
É nesse instante que o sol vermelho insinua crescer, aurora boreal rebelde primeiro por
não ser de cor bela e depois por não existir nesse canto do mundo, nasceu na chuva como um
corte nos céus que sangra com jeito de vapor, se tremendo e não se deixando ficar muito claro.
Essa fumaça negra a subir ilude a sua visão e tem a impressão de tratar-se de algo muito
familiar. Certa vez viu este corvo negro em forma de nuvem seguindo-o e zelando por sua
sorte, realmente percebe que nunca o abandonou, aparecerá sempre que houver a
oportunidade de se fazer lembrar, que se deve zelar pelo incêndio, mas se põe a encará-lo.
Alex debruçou-se sobre o painel e tenta colar o rosto no vidro, a esquina escura e lamacenta
está sendo dobrada. E então no escuro fez-se um clarão vermelho. E os disparos que vêm de
algum lugar, as rajadas de tiros devem ter se tornado mesmo muito comuns, ainda que não a
perto de um fogaréu tão catastrófico, que é o de se jogar à lareira o princípio desse mundo que
originamos, ainda que não se deva saber qual seja, e a pista para se elucidar todas as
conclusões se perdeu. O carro freou bruscamente, Alex entendeu. O céu recebe as lambidas
das chamas que consomem o teatro e devolvem com a chuva que não pode aplacá-las,
torrando-se e soprando um vento de faíscas para todas as direções, e tudo fez-se vermelho,
vida que se consome e se faz ver por alguém que não seja medroso, que depois vai ao nunca
mais adormecer.
– Meu deus – murmurou.
Leva a mão à tranca da porta e faz que vai abrir.
– Não – André balbucia –, não saia.
E ainda que a chuva impeça a visão, não basta para impedir que vejam uns vultos negros
mudando suas posições nas crateras e escombros da rua, camuflados, quem sabe, por
pinturas-de-guerra, e então disparam na direção das chamas, e se atiram é porque deve haver
quem esteja ardendo com o fogo, uns explosivos caindo pela rua, círculos de fogo condenados
a pestanejar e se apagarem.
– Pode ter gente da nossa escondida por aí – argüi e tosse.
– E o que você acha que pode fazer?
– Está tudo em chamas, meu deus, por que fizeram isso?
523
– Quem quer que esteja aí, estará lutando – não desgruda as mãos do volante de tensão.
– O teatro se foi.
– É agora que você percebeu? – ri –, tudo está para cair, pode não ser nada especial, é
qualquer coisa que por acaso essa noite derrubou.
Mas o teatro em chamas é uma caça às bruxas a sua alma, não poderia se convencer de
que é normal vê-lo cair, mas olha pelo pára-brisa, deforma o semblante e se amarga no
silêncio. E recorda-se com luto que não se pode ter liberdade plena de si mesmo, lembre-se, já
se conquistou a liberdade frente ao mundo, não se pode ter a plena sem um desapego que te
tornaria qualquer coisa, menos gente. Eu nunca vou querer entender uma coisa dessas, diz-se,
tanto porque muito não está aqui para ser entendido, tampouco para se aceitar, mas vem
porque nos viola, e não importa como as coisas hão de se transformar, sempre haverá algo
com o fim de violar.
– Eu vou nos tirar daqui – André limpa os olhos de um cisco e se prepara.
– Não, espere.
– Mas o quê?
– Deixe eu olhar mais um pouco.
– Não é seguro.
– E é a única vez que veremos isso.
– E não é algo – se vira para ele com o rosto iluminado de vermelho, tudo está rubro – que
eu quisesse assistir.
Tudo o que você tinha finalmente se foi. Por adeus ou por fogueira. Foi-se tudo que não
sabe se resta espaço a ainda esvaziar-se para sentir a falta. É, e assistirá o bastante, a lareira
a crepitar aos céus, adeus, a chaminé da loucura excedente dos homens soprada lá aos
deuses ou para qualquer força que se valha por nós, com esses céus de trovoadas nada,
nunca, nem o sol poderá vir a raiar como antes. Dá-se um adeus sem palavras e cobre-se nos
olhos para fixar-se a tudo nas memórias, caos, caos, caos, teme que não possa abri-los uma
vez mais, o sono o consumiria e uma sensação de paz no caos, mas abriu.
O carro guinchou com tudo não se sabe desde quando, deu a ré e se foi, carregará os ecos
com você até que não possam mais gargarejar. Ele não conhecia essa forma de se viver, com
tudo à beira de realmente estar partindo, não é mais como um sonho que tentaria espantar e
não conseguiu, é coisa séria que se cravou e está acontecendo, o fim realmente acontece, não
é horizonte ou linha-imaginária, e o que há?, as coisas todas parecem simplificar-se, está nu,
toda a complicação está descascada, os capítulos da sua história estão breves, os períodos
encurtaram, e ele tornou-se pouca coisa a ser dita, e sorri, que nisso tudo jaz incluída a
inutilidade dos porquês. É que não mais se precisa perguntar. Fecha o vidro.
E tudo lacrou-se uma vez mais, as trevas voltaram a assolar, abertas as pálpebras não há
mais irradiação rubra, não há mais a cor-de-vida e a tempestade não amainou. Começa a
soluçar, porque finalmente tudo converteu-se em intimidade, agora você pode chorar nesses
ombros que não existem, pode chorar, não faz diferença que alguém vá te ver, pronto. E André
te olha com os olhos rasos, vocês se entendem. É o que têm a dizer um ao outro. Mas ele
torna a embrutecer a cara e olhar a frente. E você se abraça e soluça, porque isso é dor, e a
dor te mantêm vivo.
Até que a chuva caia mais rala, e as gotas que vêm diferente o desperte.
– Júlia – André fala esse nome se tremendo – me diz tanta coisa estranha.
– Por quê? – arranha a falta da voz, quer dizer, por que isso?
– Desafiou-me – e sorri um riso suado – uma loucura. Ela acredita mesmo nisso.
– Apenas – e não se interessa, e não sabe o que se fala –, esqueça, deixe.
– Você não entende. Ela não sai do quarto escuro – coça a cara de angústia –, ela quer que eu
a veja definhando, apodrecendo, quer me condenar a isso.
– É horrível – diz por dizer –, mas pensei que não se importasse.
– Não, você realmente não entende. Ela sempre está rastejando pelos cantos à noite, fazendo
barulhos, uns chiados pela casa, é de um jeito que me assusta, e ela – e ri – fala comigo
enquanto eu durmo. Eu acordo e entendo que ela cochichava na minha orelha, e quando eu a
vejo ajoelhada, ela salta e rasteja – ri ainda mais –, põe-se de pé e se esconde, até que foge
pela porta, porque não quer ser vista assim, do jeito que está, não quer que eu veja o que se
tornou.
– E o que vem a ser isso?
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– Tudo o que um dia ela não quis...
– Esqueça, eu – e massageia o peito – preciso de ajuda – é melhor não ser egoísta. – Livre-se
dela, desculpe, me desculpe, mas entendemos que ela é – dá com as mãos – uma coisa sem
volta, uma merda, acho que é porque – tem que tomar fôlego – ela não suportou se arrepender
daquilo que fez, ela fracassou.
– Ela está me enlouquecendo.
– Me ajude. Por favor.
– Não é mais a mulher com quem dormi por anos.
– O que você queria? – e acaba se exaltando um pouco –, você a deixou para que acabassem
com ela, porra, pra que fizessem o que quisessem, você não viu e eu fechei os olhos para
também não enxergar. Mas depois ela estava lá, deixada de lado, a sarjeta teria uma cara
melhor, e eu vi que foi realmente horrível.
– Mas ela culpa você.
A língua se prende, – Eu?
– Eu queria que você entendesse.
E é quando percebe as luzes de postes a faiscar fracos e a projetar fantasmas no vidro
embaçado. A baía mais negra do que nunca foi vista, que não mais parece haver contorno de
água ou do que a gente um dia construiu, mais do que nunca parece o precipício, o abismo que
conduz ao próprio inferno. E essa não parece mais ser a mesma ponte que sempre existiu, mas
sim passarela do escuro, o túnel que nos dirige para a viagem que só se faz uma vez, talvez
entenda isso porque já lhe falta muito da coerência na percepção, e a considerar que coerência
é sinônimo de vida, e a proximidade, ainda que não fatal, da morte, o aproxima também da
incoerência e da irreversibilidade de tudo, chega-se à conclusão de que a morte é a incoerência
enorme de um porquê ao qual faltou resposta, ainda que a vida também o seja, então essas
coisas que consideramos tão opostas são nada além do que a mesma cois a disfarçada na
maneira de dia-e-noite, ou a vida é a esperança de se vir a ter com essa resposta que nunca
realmente se terá, e a morte é o cansaço da pergunta, tudo continuando a faltar. Em alguma
noite das antigas, o horizonte deveria estar chamuscado o piscar das luzes dos edifícios, e a
vigília da cidade o acompanharia. Agora não resta nada, nada, e é isso assustador.
– Me sinto dormindo num poço de merda.
– Hum.
– Por que – pergunta, depois de descolar o rosto do vidro – estamos falando de Júlia?
– Pensei ser o que tínhamos em comum.
– Essa resposta – se surpreende, mas não consegue ir adiante. – Pra onde estamos indo?
– Antes eu conseguisse matá-la. Mas, sabe, não é mais Júlia.
– O quê?
– É uma assombração que fareja meus medos e minhas fraquezas.
– Pare com isso – está mesmo um pouco tonto. – Isso está uma merda. Por que a culpa?, digo,
por que ela me culpa?
– Diz que você a devia ter ajudado, que precisava. Mas isso nem me importa.
– Meu deus... meu deus.
– Ela fareja minhas fraquezas e sussurra ao pé-do-ouvido.
– André, você nem mesmo está me ouvindo, não é?
– E, sabe?, o pior de tudo é que eu vi que Júlia não é mais Júlia, eu já disse isso, não?, – e
o rosto todo treme de rosnado que não quer sair –, é impressionante, e eu não posso ignorá-la.
Percebe que o carro diminui sua velocidade.
– Mas eu tentei – continua. – Achei absurdo, disse-lhe para parar de me atormentar, mas
ela, ela – põe a mão na cabeça – ria de trás da porta, dizendo que a hora ia chegar, que eu
estaria preso na minha liberdade, foi precisamente isso que ela gritou. E que eu entenderia,
que ela se vingaria e tudo ficaria claro.
– Eu não quero ouvir! – chora –, eu não quero saber dessas coisas, meu deus! – rosna –,
você também quer me enlouquecer?, eu posso estar morrendo. Eu não sei se isso é morte.
Que porra, não existe nenhuma intuição – segura a cabeça – quanto a isso. Já não sabemos

525
os dois o que fazer, cada qual com sua loucura, e, e... – gagueja – você me conta por nada
sobre suas desgraças?, ou sobre uma, que já é muito.
– Quando você ligou essa noite, eu soube que não era à toa.
– Eu estava, e estou sangrando, todo inflamado, eu já não sei mais.
– Eu soube que era você a minha loucura.
– O quê?
– Exorcizá-la – fala sobre Júlia –, foi uma dor que me matou. Sério. Não restou quase
nada.
– O que você disse antes?, antes?
– Mas ela esteve certa – e sorri de tristeza –, não me exorcizei de você.
– André, ela está te deixando doente, você não se livrou dela, ela está te carregando para
o fundo, está te levando junto a ela, e – se interrompe.
É que o camarada pôs a mão por dentro da jaqueta com todo o jeito que isso não significa
boa coisa, então André puxou um revólver preto. Primeiro não abstrai. Fica encarando o que
lhe é apontado. Agora está percebendo.
– Meu deus!, meu deus – Alex se treme todo, morde a mão, tampa a boca, fecha a cara.
– Não é mais Júlia – os olhos de André estão vidrados, e falou alto o bastante para deixar
bem claro.
– Meu deus!, meu deus – e ri de desespero, sentiu um gelado entrando pelas feridas e lhe
cravando tão fundo que arranha a alma de porcelana partida –, você quer me matar? – e se
aponta –, me matar?
– Você me ofusca – e aponta o dedo às têmporas – a claridade.
– Eu te ofusco?, eu te ofusco? – se aponta. – O que eu fiz?
– Comeu Júlia, porra – tom de choro –, eu tinha te pedido.
O gosto desse perigo é muito diferente do que o de antes. Fugiu da fatalidade numa ruela,
mas não pôde enganá-la por muito tempo, a sua resposta a esse mundo que o caustica é a
bocarra entreaberta.
– E, e – André continua –, mostrou que podia ser mais livre que eu.
– Não estamos competindo!, porra – esgana o ar mas se encolhe.
– Não fale como se eu quisesse estar fazendo isso. Que se eu pudesse evitaria.
– Alguém está te obrigando? – e começa a berrar e pensar em tantas coisas que as perde pelo
ralo da incompetência –, estão segurando essa arma pra você? – tosse, tosse –, você não
precisa fazer isso, olhe, está angustiado, se você – põe as mãos na cabeça –, ao menos
pudesse se ver.
– Eu preciso me livrar disso – agora os olhos estão com lágrimas.
– Mas de outro jeito – une as mãos em prece –, que eu ajudo, mas abaixa esta merda.
– Você não percebe que não pode ajudar? – tristonho.
– Que fatalismo – espana os cabelos –, que entrega, quando – a boca fica aberta e não diz
nada – eu sou teu amigo, meu deus do céu!, sou teu amigo.
– Comeu Júlia, e eu quem engoli.
– Era minha loucura! – dá com as costas na cadeira.
– E essa é minha.
É um gosto que de tão ruim não vale a pena existir.
– Entende? – André continua –, me desculpe, mas, mas...
É um gosto que nem pelo sabor da experiência escolheria passar, sinal que é muito fraco.
– Você não tem nada, na verdade – continua uma vez mais, e sorri –, não é?, está com
câncer, me disse isso e disse que, que não temia mais a morte, mas como ela vem, e é por
minhas mãos, e se eu pudesse fazer diferente, mas – chorando – as coisas não são o que
queremos delas.
– Eu ainda tenho a vida – encolhe a mão no rosto. – Eu não quero perder.
– É instinto!, supere isso! – ordena –, supere.
– Eu não quero – risos de desespero contagiante –, eu não quero.
– Escute, você já está morrendo, então – engasga –, pense nisso como aliviar a dor.
– Eu não estou sentindo dor, porra!, não se justifique, pare.
– Você está pedindo pra que eu... – parece incerto.
– Estou pedindo pra que abaixe essa arma.
– Ela sussurra o seu nome – trinca os dentes – dentro do quarto. Fica chamando por você
pra que eu nunca esqueça.
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– Mate ela! e não a mim, cacete – e se treme todo e fica encolhido e com a cabeça
reduzida. – Não a mim.
Mas dessa vez não houve resposta, e André mal treme a mão ao segurar a arma. É a
primeira vez que pensa em fugir, reconhece que o desespero esteja lhe possuindo de uma
forma que nunca antes lhe veio, olhar o que está cansado de ver e reconhecer nisso o fim,
enxergar o que já o cansava de tão repetido como sendo a quebra de tudo que poderia
continuar sendo, a rotina agora tende à pior das novidades. Ele pensa em fugir porque o temor
o faz considerar que essas mãos também são capazes de matar, pensou em fugir porque não
reconhece onde está ou com quem está, não, a verdade nem é bem essa, é que reconhece,
mas recusa-se a convencer de que ele foi tolo em não perceber que podia acontecer. Dizer que
o absurdo tornou-se possível não quer dizer muita coisa, é que o absurdo é tudo que não
poderia ser e o que nunca se esperou, não há como prever uma coisa assim, que o que não se
espera é tanta coisa que chega a ser tudo. Acontece que a razão que desenvolvemos, e que
até hoje nos serviu tão iluminadamente, não mais serve para agora, tudo, de fato, é possível,
porque desafiou a todos ao anunciar que libertaria todas as vontades que existem, e não se
deu conta que isso era como dar vazão à mais incrível fonte de poder de todas, como soltar o
próprio deus, criador, destruidor, fulminante. Está ao léu com toda colheita de sua ingenuidade.
E tentou abrir a porta do carro, como gostaria de poder, como gostaria de saltar para fora,
respirar a poluição com cheiro de quiabo, bastaria que conseguisse e não se importaria com o
que depois viria, mas a tranca não o permite, e só o seu amigo poderia deixá-lo ir. Consegue
de relance olhar o céu de chuva, o corvo-nuvem continua a segui-lo.
– Não vai conseguir fugir de mim – André deve finalmente ter se entendido ameaçador.
– Eu quero viver, e você – o aponta, que coragem, e range os dentes – me enganou.
– Finalmente estamos quites – a figura séria.
– Mas eu sempre fui mais sincero, e você não me retribuiu.
– Quer mais sinceridade que estar olhando agora nos seus olhos?
– Que você admita que não pode se livrar de mim. Como não pode dela.
André silencia por uns instantes e ele acha ser isso algum sintoma de vitória, não por muito
tempo.
– Você me subestima – porque é o que ele diz.
– O quê? – não acredita.
– Escute, nada tornará isso mais fácil, nem que você me enfureça.
– Não é te ajudar – e ri, agora dói – a me matar que eu quero. Eu só não quero morrer.
– Eu não sou o imbecil que fará isso por Júlia.
– Então!, então – e os olhos às vezes turvam.
– Eu farei por mim.
– Pare, pare. Me leve pra um hospital.
– E vou te vingar, é a minha promessa que você carrega para sabe-se lá onde.
– Eu não sei o que dizer – e sorri, olhando para frente.
– Eu vou matá-la, livrá-la do nada que ela se tornou. E depois estouro minha cabeça.
– Estourar a porra da cabeça – suspira. – Acho que sei o nome dele...
– Nome de quem?, o que é isso?
– Sei lá – dá de ombros.
– Então, é esse o preço, você me avisou e eu não ouvi, o preço é não restar nada dentro.
– Eu não... – e dá de ombros, não termina de falar.
– Eu tenho mesmo é que pôr tudo para fora, estarei pleno.
– Então enfie essa porra na sua própria boca e estoure.
– Eu não posso levar esse peso para a eternidade. Antes, me livro de você.
– Agora você acredita numa eternidade?
– Não. Mas estou temendo – e sorri –, e por isso é que tenho de fazer.
– Certo – Alex respirou fundo, que já foi roído até os ossos e não consegue mais sentir.
– Não vamos brigar numa hora como essa, algo me diz que eu não devo me sentir triste.
– Não, não vamos.
– Olhe para mim.
– Me deixa... – gruda a cara no vidro e pede por um cochilo.
– Olhe para mim.
– Escute. Não atire na porra da minha cabeça.

527
E ele realmente o olha, veria mais se de prévia não tonteasse, veria André a limpar umas
lágrimas e a sorrir. Se entregar é ruim, mas não faz assim tanto mal, uma hora acontece, e
mesmo que cadáveres não carreguem consigo ódio ou amor ou qualquer outra sorte de coisas
entranhadas, ele acaba não querendo que seu eco, deixado para os ouvidos secretos do
tempo, que volta e meia devem acordar para se entreter, seja de um gênero dos mais
destrutivos. Essa é a hora em que posso mostrar como sou melhor, nunca julguei que podia
acontecer, posso ser terno não pelo acaso das coincidências, mas porque veio profundamente
de mim. E então sorri.
E se treme todo, porque o estrondo foi forte, tanto que o faz doer mesmo dentro da cabeça.
Se isso de agora é finalmente a morte, ela é bem parecida como desmaiar de sono, a diferença
é para melhor, que poderia deitar e dormir em qualquer lugar e não seria dado a frescuras. Se
não fosse a dor. É por ela que ele escoía e é por isso que não a sentiu, o fundo das coisas
nunca é feito delas mesmas, a dor é diferente de tudo que pensou, que chega a lá no fundo
não doer, só dói agora, que ela voltou à superfície, onde tudo é muito escroto. Eu não estou
morto, pensa. Ainda.
Primeiro vê André, há fumaça subindo do cano da arma, e ele parece triste, não o cano.
Então pensa mais ou menos as seguintes coisas, estou com meu peito ferido, acho que eu
deva saber que vou sangrar até morrer, e que isso não é coisa que vá demorar, põe a mão e
dói muito, ronca baixinho e percebe que cada segundo vem expulsar suas forças, e isso é
fascinante, porque é algo que aconteceu a vida inteira, mas só agora se mostra tão ferozmente
a ponto de perceber, e se diz, e até os pensamentos o desgastam, estou morrendo
violentamente. Aproveite a viagem turva, lute para que a nuvem-corvo não venha de uma vez
bicá-lo, reaja um pouco mais, dificulte sua entrega, mas aproveite-a quando chegar. André não
esteve mais no carro, logo quando você gostaria de sorrir uma última vez, coisa que não
conseguiria. Por instante há frio, mas não é aquilo do bafo gelado na cara, é a porta de André
que foi aberta e a chuva cai tão forte que sopra em você. E a sua porta se abriu. Sente-se ser
carregado e ouve alguma coisa na linguagem dos vivos, ele não a desaprendeu totalmente,
algo referente a eu devia ter estourado seu crânio, mas antes deixá-lo para morrer sozinho, do
modo como você sempre viveu, você quer?, sim, eu quero, responderia, não o fez, mas foi
atendido.
Foi deixado no asfalto, a chuva caindo-lhe na cara o acorda um pouco mais, banho-frio ou
coisa assim, sensação de crueza, de dureza, não é como se afundasse, é como se apegasse a
um sólido desconhecido que se inclina, tonteando, para todos os cantos, o mundo bêbado. As
coisas tornam-se surpreendentemente claras, a chuva é um monstro a desabar sobre tudo, o
ronco do motor é surpreendentemente fraco, mas os faróis do carro que vai embora cruzam
fortes o embaçado das tempestades, os raios que não caem mas poderiam, essa ponte que
uniu o lado de cá com o lado do além, o lado ao qual pertence o outro, o lado que o está vindo
atender. É então muito tranqüilo que a solidão lhe reste assim. Ao menos sabe que ela vai se
cansar dela mesma, quando se refletir na poça do sangue que se forma, gritar ah!, assustada
da careta que viu, porque se viu e não se fez assim mais tão sozinha, os espelhos se
quebraram e não há mais idéia ou coisa, só ele mesmo, completo e desabrochando na poça de
sangue. E é por ter a vontade de tentar enxergar uma vez mais a cidade que está rastejando e
deixando esse musgo vermelho do seu preenchimento como trilha a um qualquer – que não
existe – que dê por sua falta, eis que farei um rastro para o nada, só de pirraça. Conseguiu
heroicamente alcançar a base do parapeito, onde se põe de costas para descansar, respiraria
mais se não viesse da boca uma quantidade torrencial do sangue que não é mais exclusivo do
pulmão catarrar, é isso mesmo, tem que pôr para fora. As distâncias nunca pareceram tão
grandes, que ninguém desconsidere o heroísmo que é escalar essa mureta, gritaria sobre ela
se pudesse, mas antes precisa escalar as próprias pernas, agora se debruça sobre ela e a
chuva diz que se curve, curve-se, e ele se diz, não. E é um não dos fortes, que levanta, que a
história começou certamente de um não, do tempo que não passava, quando o fim devia
chegar com um sim, mas ele não vai permitir. Não se curvou, pena que não possa ter
enxergado nada, que a cidade é só trevas, só escuridão, tudo bem, paciência, não posso
mesmo ter tudo o que eu quero. Então se debruça no parapeito, que ele pode pular, se deixar
cair, se quiser, e ele quer. Lá vou eu, é isso que quer dizer seu sorriso. E rola para a escuridão.
A sombra o acompanha num rasante muito veloz.
– Finalmente – lhe diz o outro –, nosso encontro final.
– Sim – ele consente.
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– Dê-me o nome, agora você pode, encontrando-o também encontra o seu.
– Seu nome é não.
– Continue – o outro se excita –, está mesmo quase lá.
– Caos – ele progride.
– Continue, continue – e ele deve até sorrir.
– Morte.
– Eu sabia que era simples assim. Finalmente entendemos um ao outro.
E nesse instante também conheceu-lhe o rosto.

529
André foi deixado para esperar nessa sala gritantemente iluminada que não dispõe de
nada além dessa mesa cinzenta, umas duas cadeiras, a segunda ainda não está ocupada, as
paredes acolchoadas para que a gente que venha a ser torturada possa berrar à vontade sem
incomodar a ninguém, e o espelho negro de fundo falso onde ele se reflete, mas sabe que
atrás o vigiam e devem pensar se já não o fizeram esperar o suficiente, ou se é bom que
amanse ainda mais. Permite-se ajeitar o colarinho, o desabotoa e fica a olhar os respingos do
sangue nas suas mangas e a imaginá-los na sua cara.
Há um grande estrondo, que é da porta ao abrir-se, e a escuridão que sopra lá de fora é
muita. Veja o que ela traz, mais que a dança indecisa das sombras, mas vem este sujeito
esguio e que mede cada passo que é dado, a barba por fazer que só pertenceria a alguém
cansado, mas que se ponha cada homem no seu lugar, não se pode julgar assim a qualquer
um, reparar em certos óbvios é heresia, e existe ou devia haver uma diferença tremenda entre
os dois. E as sombras, que também vêm do escuro, seguem o chefe-de-polícia na forma de
seus cães bem treinados, gente fardada que mais parece parede, vão cada qual ao canto da
sala que mais apraz a cada um, e ficam rijos, cabeça para o nada, atenção para o mal.
O chefe da polícia puxou a sua cadeira, ajeitou a gravata, sentou-se e pôs na mesa a arma
do crime, que André deixou ao chegar. E ronca.
– Por quê?
– Eu quero me entregar – é o que responde.
– Por quê?
– Porque não agüento mais.
– Pois bem – e fica acenando positivo enquanto o encara. – Pois bem. Quero ouvir sua
confissão.
– Eu confesso tudo.
– Não há confissão para uma coisa assim, meu rapaz.
– Se eu dissesse, não acreditaria.
– É mesmo? – e ri fartamente, beira a asma –, me dê o que justifique o ceticismo.
– Eu fiz o livro da capa negra.
A sua companhia ri.
– Não é o primeiro que alega isso, não será o último, todos parecem querer se tornar o
diabo.
– Eu entendo – André sorri, frustrado mas satisfeito –, agora eu entendi.
– E então?
– Eu matei alguém.
– Isso não me interessa nem um pouco.
– Eu sou parte essencial de uma sociedade que o senhor certamente conhece.
– Também não me interessa.
– E o que – arfa – é que te interessa?
– Saber o crime que você cometeu.
– Acabo de falar que matei alguém, e – olha para o nada e sorri –, eu fiz tanta coisa – põe
a mão sobre a testa e ri-se – que eu não sei por onde começar. Eu incitei o caos, a violência,
seqüestrei, roubei e...
– Como por exemplo o roubo da tua firma?, ou aquele corpo largado na baía?
– Isso!, isso mesmo, é parte de tudo. Então o senhor sabe. O senhor sabe...
– Não me tome por ingênuo.
– Se o senhor já verificou quem eu sou – e suspira –, e isso é mesmo tão simples, eu
simplesmente admito tudo do que me incriminarem, invente, me enquadre no que você quiser,
não faz mal, que será tudo justo e ainda faltará mais crimes que eu não saberia dizer.
– E o que eu me pergunto é apenas por que o senhor acha que podemos te punir.
– É preciso haver culpa. É a justiça, eu não sei – e pende a testa. – O princípio. Pela alma,
pelo que nos restar de digno.
– E o que fez por acaso atenta tanto assim contra essas coisas?
– Como?, acabo de dizer que fiz tudo que não devia fazer, não devia nem mesmo pensá-
las, eu fui muito mais longe do que se pode entender quando digo uma coisa dessas, eu não
sei, eu não sei, apenas – suspira – fui onde não devia ter ido, e alcancei essas – paralisa-se –
essas coisas.
– Sim – e o encara com impaciência –, e não me veio em mente o que vem a ser tudo isso.
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– Por tudo que é mais sagrado – suspira –, o que você está falando?, está mesmo tudo ao
avesso, daqui a pouco não restarão nem mesmo as memórias do que um dia já foi, eu não
tenho para onde ir. A minha casa virou isso, eu com medo de tudo, eu fugindo de tudo, minha
casa virou a fuga. E eu não quero mais que seja assim.
– Escute. Digo-lhe uma coisa – e põe devagarzinho o dedo em riste –, eu sinceramente
acredito que sairemos dessa... – coça o queixo – hum. Dessa normalidade de agora. Para
voltar ao normal de antes teríamos de enlouquecer uma outra vez. Os primeiros sinais já estão
sendo dados. Você não é o primeiro e nem o último que entrará pedindo pelo chefe Dimitri,
dizendo trazer algo muito importante, ao que tenho de ouvir a mesma coisa de confessar a
tudo, de ser culpado. Aquele encouraçado, veja que ousadia, já fracassou, seu comandante
louco foi traído por um motim dos seus próprios. A vida vai continuar a andar, ainda que muita
gente vá continuar morrendo.
– E então?
– Você é menos inteligente que eu previ.
– Desculpe.
– As coisas vão retornar à normalidade, vão sim. Mas eu sei – e sorri – que não sairão
culpados daí, isso seria impossível. Porque me é muito claro que não existe um lugar onde a
culpa seja geral sem isso se tornar mais uma forma de inocência. O que eu não entendo, mas
temo em saber – recosta-se sobre a cadeira –, é o como tudo isso simplesmente surgiu, acho
que ninguém nunca saberá – e dá com as mãos no ar para sugerir algo etérico. – E pode ser
mesmo algo que nunca venha a se curar completamente, algo que estará condenado a latejar
na senhora que voltou a fazer as compras, no copeiro que voltou a dar bom dia ao patrão, que
voltou a ler seu jornal. Algo que as pessoas fingem que se esqueceram, mas nas surdinas riem
do que foi. Ou pode ser como diz o livro da capa preta, que se pôs a liberdade sob tanta
pressão que bastou uma faísca para explodir tudo.
– Eu atualmente me inclino a adotar a idéia do senhor.
– E como sabe qual é a minha idéia?
– Pensei ser a primeira.
– Nunca se sabe, nunca se sabe.
– Não vai me algemar? – estica os braços, e sorri.
– Aproveite, sujeitinho, que somos todos inocentes na mesma culpa de estarmos aqui.
– É tudo o que eu sempre quis ouvir – cruza os braços na cabeça e respira fundo.
– Vá para casa – e empurra o revólver, o devolvendo – e aproveite a vida. Enquanto
podemos.
– Obrigado, senhor.
André saiu para o mundo com suspiro de realização atordoada, e sem certeza alguma vai
descendo as escadarias da grande delegacia. O dia é recém-nascido, estamos na alvorada dos
passarinhos, gorjeio desinteressado que sempre nos ecoará. Ainda é muito cedo para que os
carros venham cruzar as ruas no ritmo que normalmente cruzam. A chuva de ontem parece ter
livrado todo o mundo de uma sombra terrível. Sorte que a barraca do jornal acaba de abrir, que
seus cigarros terminaram. E o mundo parece desprovido de quem o veja acontecer. Daquele
que realmente valia a pena.
O senhor da banca acaba de lhe dar bom dia. André pede pelo maço que mais o apetece
e vai ler um pouco dos jornais que estão à mostra. Presídios abertos, linchado um estuprador
que escalava prédios para abordar as vítimas. O senhor muito simpático já o entregou a
carteira dos fumos e cobrou umas moedas de nada. O homem nu vinha andando pela calçada,
pára ao seu lado, dá bom dia ao senhor da banca, mas é para ele que pergunta se por
gentileza não poderia arrumar um dos seus cigarros, pois não, que não custa mesmo nada
atender a esse gentil cara nu. Depois que o cara acendeu o fumo, agradeceu e seguiu seu
caminho, a bunda balançando de despedida. Agora respira fundo porque sente muito sono. Até
que está raiando um dia bonito. É, ele se diz a sorrir e ao a toa mirar o pouco que vê, vou para
casa tirar um demorado cochilo, para depois cumprir com a promessa que fiz.

Fim.

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